espaços contemporâneos de interface com a morte

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cadernos de introdução ao trabalho de conclusão de curso em arquitetura e urbanismo, UFSC, Florianópolis Bruno Cordeiro da Fonseca

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  • ESPAOS CONTEMPORNEOS DE INTERFACE COM A MORTEIntroduo ao Trabalho de Concluso de CursoUniversidade Federal de Santa CatarinaDepartamento de Arquitetura e Urbanismo 2013.1

    Bruno Cordeiro da FonsecaOr. Luiz Eduardo Fontoura Teixeira

  • 1. IntroduotA Morte A Morte e o homem ocidental A Morte e a Cidade A Morte e o Brasil A Morte e Florianpolis

    Espao Espaos da morte Espaos da morte em Florianpolis O Desenho

    Referncias Bibliogrficas

    1. Introduot

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    Laudmia, como todas as cidades, tem a seu lado uma outra cidade em que os habitantes possuem os mesmos nomes: a Laudmia dos mortos, o cemitrio. Mas a caracterstica particular de Laudmia a de ser, mais do que dupla, tripla; isto , de compreender uma terceira Laudmia, que a dos no nascidos.

    As prosperidades da cidade dupla so conhecidas. Quanto mais a Laudmia dos vivos se povoa e se dilata, mais aumenta a quantidade de tumbas do lado de fora da muralha. As ruas da Laudmia dos mortos so largas apenas o bastante para que transite o carro fnebre, e so ladeadas por edifcios desprovidos de janelas; mas o traado das ruas e a sequncia das moradias repetem os da Laudmia viva e, assim como nesta, as famlias so cada vez mais comprimidas em compactos nichos sobrepostos. Nas tardes ensolaradas, a populao vivente visita os mortos e decifra os prprios nomes nas lajes de pedra: da mesma forma que a cidade dos vivos, esta comunica uma histria de sofrimentos, irritaes, iluses, sentimentos; s que aqui tudo se tornou necessrio, livre do acaso, arquivado, posto em ordem. E, para se sentir segura, a Laudmia viva precisa procurar na Laudmia dos mortos a explicao de si prpria, no obstante o risco de encontrar explicaes a mais ou a menos: explicaes para mais de uma Laudmia, para cidades diferentes que poderiam ter existido mas no existiram, ou razes parciais, contraditrias, enganosas.

    Muito justa, Laudmia concede um domiclio igualmente vasto queles que ainda vo nascer; claro que o espao no proporcional ao seu nmero, que se supes infinito, mas sendo um lugar vazio, circundado por uma arquitetura repleta de nichos e reentrncias e cavidades e podendo-se atribuir aos no-nascidos a dimenso que se deseja, imagin-los do tamanho de um rato ou de um bicho-de-seda, ou de uma formiga, ou de um ovo de formiga, nada impede de visualiz-los eretos ou agachados em cada um dos suportes ou estantes que ressaem das paredes, em cada um dos capitis ou plintos, em fila ou esparralhados, atentos s incumbncias de suas vidas futuras, e de contemplar numa veia do mrmore Laudmia inteira daqui a cem ou mil anos, apinhada de multides vestidas de modo jamais visto, todos, por exemplo, com barregans cor de beringela, ou todos com plumas de peru no turbantes, e de reconhecer os prprios descendentes e das famlias aliadas ou inimigas, dos devedores e credores, que vo e vem perpetuando os negcios, as vinganas, os matrimnios por amor ou por interesse. Os viventes de Laudmia frequentam a casa dos no nascidos, interrogando-os; os passos ressoam sob os

    tetos vazios; as questes so formuladas em silncio: e sempre deles prprios que perguntam os vivos, no daquelesviro; alguns se preocupam em deixar uma ilustre memria de si,outros em encobrir as suas vergonhas; todos gostariam de seguir o fio das consequncias, dos prprios atos, mas, quanto mais aguam o olhar, menos reconhecem um trao contnuo; os nacituros de Laudmia aparecem pontilhados como gros de poeira, afastados do antes e do depois.

    A Laudmia dos no nascidos no transmite, como a dos mortos, qualquer segurana aos habitantes da Laudmia viva, s apreenso. Nos pensamentos dos visitantes, acabam por se abrir dois caminhos e no se sabe qual reserva maior angstia: ou se pensa que o nmero de nacituros supera grandemente o de todos os vivos e de todos os mortos, e, nesse caso, em cada poro de pedra cumulam-se multides invisveis, amontoadas nas encostas do funil como arquibancadas de um estdio, e, uma vez que cada gerao a descendncia de Laudmia se multiplica, em cada funil se abrem centenas de funis, cada qual com milhes de pessoas que devem nascer e esticam os pescoos e abrem a boca para no sufocar; ou ento se pensa que Laudmia tambm desaparecer, no se sabe quando, e todos os seus habitantes desaparecero com ela, isto , as geraes se sucedero at uma certa cifra e desta no passaro, e por isso a Laudmia dos mortos e a dos no-nascidos so como as duas ampolas de uma ampulheta que no se vira, cada passagem entre o nascimento e a morte um gro de areia que atravessa o estreitamento, e nascer um ltimo habitante de Laudmia, um ltimo gro a cair que, no momento, est aguardando no alto da pilha.

    AS CIDADES E OS MORTOS 5

    CALVINO, talo. As Cidades Invisveis. Companhia das Letras, 1990. 1 ed.

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    INTRODUO

    Chega o momento em que nos encontramos frente necessidade de apresentar sociedade que estamos prontos para desempenhar a funo que escolhemos, por vontade prpria, arquiteto e urbanista. Para tanto, aqui, reuniu-se um resultado provisrio acerca das pesquisas realizadas em um semestre de busca por conhecimento que se possa usar de base ao desenho de um equipamento de fins funerrios, tema esolhido para o presente trabalho. Tema que no surge ao acaso, surge inicialmente por um reconhecimento de qualidades arquitetnicas nos equipamentos funerrios, e uma consequente inquietao sobre a necessidade dos mesmos e sua funo dentro da cidade. Ao se estudar a morte, podemos nos reconhecer como mortais e, como nossos ancestrais, saber viver. O interesse sobre o assunto tem sua confirmao em um semestre passado, quando foi realizado um trabalho de pesquisa sobre o Cemitrio So Francisco de Assis, no bairro Itacorubi em Florianpolis [trabalho disponvel em: http://interfacepinduca.wordpress.com/2013/05/06/a-cidade-de-sao-francisco-de-assis/].

    cemitrio vertical em So Joo Del Rey datado de 1836, Minas Gerais Fonte: acervo pessoal

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    A pesquisa se fundamentou em duas entradas principais: um percurso histrico sobre a relao que o homem ocidental tem com seus mortos e, consequentemente, com a sua morte, e o resultado que essa relao consolidou nas cidades. Entende-se que, ao escolher o caminho adotado, muitas lacunas permanecem abertas a respeito da temtica da morte. Difcil no associar o contdo da morte preceitos religiosos, justifico que a presena constante de referncias uma religio das parte de ideologias do autor, mas sim da influncia que esta institui;o teve na forma;o da cultura e dos costumes no Brasil, mesmo para aqueles que no adotaram a mesma. No objetivou-se chegar a qualquer concluso final sobre o assunto, pretende-se manter o mesmo aberto, a fim de que o trabalho possa ser continuado ou, mesmo, questionado. Uma parte do processo durante o semestre foi registrado em um blog [http://interfacepinduca.wordpress.com/]. Durante o semestre ocorreram algumas mudanas nas intenes iniciais do trabalho, principalmente por um aprofundamento no tema.

    O material a seguir se desenvolve em 3 campos, correspondendo a 3 entradas no desenvolvimento do trabalho. O primeiro, A MORTE trata do desenvolvimento histrico da relao do homem com a morte dos seus e com sua morte e dos resultados que essa relao construiu na cidade. O ESPAO discorre, ainda que sucintamente, as tipologias dos espaos da morte na cidade contempornea e na cidade de Florianpolis, escolhida como campor de trabalho. Finalizando, O DESENHO vem em uma tentativa de marcar um gancho entre o trabalho desenvolvido nesse semestre e o que vir, descrevendo as intenes e diretrizes do desenho, de um certo modo superficialmente, j que as reflexes que resultaro no desenho final ainda esto em desenvolvimento. Declaro, ainda, que este caderno no um produto final, ou mesmo parcial, posi no se pretender em algum momento findar o processo de pesquisa.

    Por fim, gostaria de agradecer a todas as pessoas que diretamente ou indiretamente puderam dar contribuies ao trabalho.Obrigado.

    Bruno Cordeiro da FonsecaFlorianpolis, Julho de 2013

  • MORTE

    Aproximo-me suavemente do momento em que os filsofos e os imbecis tm o mesmo destino.

    Voltaire

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    A MORTE E AS SOCIEDADES OCIDENTAIS

    Os cuidados com o sepultamento dos seres humanos e o culto aos mortos , um pouco enfraquecidos na nossa sociedade contempornea, no tem sua origem na histria recente. H indcios que podem nos levar a crer que mesmo o homem dito pr-histrico j possua um sentimento de respeito e temor e preocupao com seus mortos. H, mesmo, indcios de que as primeiras aglomeraes ocorrem, se no a uma proximidade fsica, com uma facilidade de acesso aos locais de sepultamento dos membros do grupo, lugares estes, sagrados, onde o grupo retornaria a fim de realizar rituais. Algo como costume em algumas religies, de se considerar certos lugares como sagrados: Meca, Roma, Jerusalem, Pequim.

    Em meio s andanas inquietas do homem paleoltico, os mortos foram os primeiros a ter uma morada permanente: uma caverna, uma cova assinalada por um monte de pedras, um tmulo coletivo. Constituam marcos aos quais provavelmente retornavam os vivos a intervalos, a fim de comungar com os

    espritos ancestrais ou de aplac-los.

    (MUMFORD, 1998)

    de fato, o destino do homem e do animal so idnticos, do mesmo modo que morrem estes, morrem tambm aqueles. Uns e outros tm mesmo sopro vital, sem que o homem tenha vantagem alguma sobre o animal porque tudo fugaz. Uns e outro tm o mesmo princpio e o mesmo fim, vem do p e voltam

    para o p

    (Ecl 3, 19-20)urnas funerrias, Segvia, Espanha. Fonte: corbis.com

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    Essa prtica de sepultamentos um dos mais antigos costumes realizados pelo ser humano, adotado por diferentes prticas religiosas e que permanece at o presente e demonstra que a preocupao com o destino final dos membros do grupo, e de si mesmo, sempre estiveram presentes nas atitudes humanas, diferenciando-nos de outros seres.

    Em nosso pensamento contemporneo, a morte pode ter vrios significados, porm, na sociedade ocidental, talvez, a idia mais profundamente enraizada seja a de um fim, por isso pode parecer estranho escrever sobre uma Histria da Morte. Diferentemente do que seria facilmente aceito, a morte e seus rituais, como ocorrem hoje no so tradies de milhares de anos, mas o contrrio, as atitudes perante a morte sofreram modificaes profundas em muito pouco tempo, que se deve uma capacidade de criar mitos da sociedade moderna, ao passo de cerca de um ou dois sculos termos uma revoluo nos costumes fnebres. O livro Histria da Morte no Ocidente de Philippe Aris nos apresenta uma breve cronologia nos mostrando as mudanas do pensamento sobre e das atitudes perante a morte na sociedade ocidental, fundamentalmente na Frana, nao de origem do autor. Os estudos so baseados em fatos, testamentos e tmulos, e a linha do tempo parte de meados do sc.V.

    Uma rpida investigao levou-me a descobrir a antiga prtica funerria, to diferente da nossa: a exiguidade e o anonimato das sepulturas, o amontoamento dos corpos, o reemprego das fossas, o acmulo dos ossos nos ossrios - signos que interpretei como marcas de indiferenca em relao aos corpos

    (ARIS, 2012)

    Por centenas de anos a sociedade tinha uma relao muito prxima da morte, ao qual Aris denomina de uma morte domesticada. Mas porque uma morte domstica? Primeiramente podemos nos lembrar que a espectativa de vida no perodo era expressivamente mais baixa do que temos hoje, se pensarmos que aos 40 anos um homem ja poderia estar em idade bem avanada e encaminhando sua vida para seu fim, veremos que a presena da morte na sociedade era bem maior do que temos hoje. Era fundamental que se pensasse na morte, nesse perodo no se morre sem ter tido tempo de saber que vai morrer, mortes sbitas eram casos de excepcionalidade, mesmo doenas e peidemias j seriam avisos de que a morte se aproximava e, assim, haveria um certo tempo a se reservar na preparao para sua morte.

    O rei Ban teve uma queda grave. Quando voltou a si, percebe que o sangue escarlate lhe saa pela boca, pelo nariz, pelas orelhas: Olhou o cu e pronunciou como pde... Ah, Senhor

    Deus, socorrei-me, pois vejo e sei que meu fim chegado(ARIS, 2012)

    Diversos so os relatos de pessoas que sentiram a morte se aproximar, como o relato do rei Ban ou Trsito que sentiu que sua vida se perdia, compreendeu que ia morrer. Esse aviso, ou sentimento, da aproximao da morte era dado por signos naturais ou mesmo por uma convico ntima, menos do que por fatores sobrenaturais ou msticos, algo que se perdeu nas sociedades industriais, um certo reconhecimento espontneo. Ao se reconhecer como moribundo, prximo de seu adeus, havia tempo suficiente para que se tomasse as devidas providncias para que se efetuasse a salvao de sua alma e pudesse adentrar ao reino do cu ( necessrio lembrarmos que a Igreja Catlica poderia ser a mais influente instituio vigente no perodo, podendo superar, talvez, os poderes dos reis, antes mesmo de Lutero e das reformas religiosas, ento temos aqui uma sociedade dominada pelo pensamento da Igreja Catlica). A idia da existncia de uma dualidade corpo/alma foi adotada pela Igreja Catlica desde seus primrdios, com Santo Agostinho (354 - 430). Leonardo da Vinci em seu leito de morte. Fonte: corbis.com

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    Dentre as providncias a serem tomadas, haveriam a necessidade de se cumprir os ltimos atos de uma cerimnia pblica, quase teatral, presidida pelo prprio moribundo em seu leito e com o mximo de pessoas ao seu redor, familiares, padres, amigos, vizinho e, mesmo, pessoas desconhecidas. Cada indivduo exercia seu papel, e finalmente o moribundo se colocaria a esperar sua morte.

    No Cristianismo primitivo, o morto era representado de braos estendidos em atitude de orao. Espera-se a morte deitado, jacente. Esta atitude ritual prescrita pelos liturgistas do sculo XIII. O moribundo, diz o bispo Guillaume Durand de Mende, deve estar deitado de costas a fim de que seu rosto olhe sempre para o Cu. [...] Assim disposte, o moribundo pode cumprir os

    ltimos atos do cerimonial tradicional.(ARIS, 2012)

    Os atos cerimoniais se modificam sutilmente com o tempo, mas essa atitude de entrega espontnea permanece por longo perodo, basicamente at os perodos da modernindade, quando h mudanas significativas na sociedade e passa a no mais representar a principal atitude perante a morte na sociedade ocidental.

    Desse primeiro recorte histrico a respeito da morte, pode-se concluir, basicamente, duas coisas: primeiro que a morte era esperada, no leito; e segundo que a morte, por um longo perodo histrico, uma cerimnia pblica. Mas do que se tratava essa cerimnia pblica? Fundamentalmente era uma cerimnia onde o morimbundo deveria tratar dos encaminhamentos para que sua alma fosse salva, lembrando, novamente, da fora de influncia da Igreja Catlica na sociedade. A Cerimnia da morte comeava com um lamento da vida, onde se evoca lembranas agradveis da vida do morimbundo, porem um momento triste e nostlgico. Aps o lamento, ocorre o momento do perdo aos companheiros, familiares e todos que rodeiam o moribundo no momento da cerimnia. O terceiro ato religioso e divide-se em duas partes, onde a primeira parte uma confisso dos pecados e a segunda parte a commendatio animae, que seriam preces dirigidas Deus. Finalizando o ritual, h o ato eclesistico onde o padre (ou os padres, pois era muito comum, e prestigioso, que houvesse mais de um padre durante a cerimonia) executava a absolvio de corpo presente. Por se tratar de uma cerimnia pblica, o quarto onde o moribundo presidia tornava-se um local aberto de acesso livre.Era comum, por exemplo, acompanhar um cortejo at o quarto do agonizante caso o cidado passasse pelo mesmo, independente de se conhecer ou no o dono do quarto a que se adentraria,

    esse costume era, inclusive, incentivado pelo moribundo pois a presena de muita gente traria prestgio sua morte. Algumas presenas eram essenciais uma boa cerimnia, que seriam os familiares, amigos, vizinhos, crianas (no h nenhuma representao de um quarto de moribundo sem que houvesse crianas no mesmo).

    No apenas no retardavam o momento de prestar contas, como tambm se preparavam calma e antecipadamente

    (A. Soljentsin, 1968 apud ARIS, 2012)

    Essa morte, que por sculos permaneceu praticamente imutvel, a partir da fase de declnio da Idade Mdia sofre algumas transformaes sutis e o homem ocidental se defrontar com a morte de si mesmo. A primeira modificao percebida na representao, pelos artfices, do Juzo Final. Nos fins da Idade Media, o homem gradativamente vira o seu olhar para si e para a busca de um auto-conhecimento, essa mudana se reflete nas artes de representao da morte, as Ars Moriendi (arte da boa morte), onde o momento do Juzo Final passa de um destino coletivo da humanidade e adquire caractersticas individualistas e chegar a um ponto onde cada ser julgado individualmente no momento de sua morte. Esse Juzo Final individual aconteceria no mais no fim dos tempos, onde toda a humanidade seria

    Dois exemplos de alegorias, datadas do sc.XV, das Ars Moriendi. Os homens so tentados, em seu leito, s vistas do exrcito do cu e dos demnios. Fonte: wga.hu

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    julgada coletivamente, mas durante a cerimnia de entrega do moribundo, onde de um lado esto os seres celestes e de outro as criaturas do inferno em um guerra pela alma do moribundo.

    o moribundo ver sua vida inteira [...] e ser tentado pelo desespero por suas faltas, pela glria v de suas boas aes, ou pelo amor apaixonado por seres e coisas. Sua atitude, no lampejo deste momento fugido, apagar de uma vez por todas os pecados de sua vida inteira, caso repudie todas as tentaes ou, ao contrrio, anular todas as essas boas aes, caso a elas

    venha a ceder(ARIS, 2012)

    apresentada toda a vida ao moribundo a fim de que seja definido o destino de sua alma conforme o balano de sua vida. Os dois exrcitos, celeste e infernal, se posicionam como testemunhas da apresentao da ltima tentao. Essa idia se desvirtuar, entre os sculos XVII e XVIII, ao ponto da crena popular dizer que no seria mais necessrio esforar-se durante a vida, pois ao fim dela todos os erros poderiam ser perdoados conforme a conduta do moribundo nos seus ltimos momentos, e somente em meados do sc.XX essa crena perde foras. Essa primeira modificao nas atitudes frente a morte estabelece uma relao mais estreita entre a morte e a biografia de cada indivduo, aparentemente insignificante, mas uma mudana que introduz um carter dramtico ao ritual da morte.

    As Ars Moriendi tambm trazem a figura do corpo em decomposio, no esqueletos e ossos, mas carne, sendo comida pelos vermes, liberando lquidos da decomposio. Essas representaes no chegam a ser grandemente difundidas, mas rapidamente o homem adota uma posio de repulsa esses corpos, repulsa ideia de que seu corpo ir se decompor, como representado no poema do scXV:

    O CHAROIGNE, QUI NES MAS HON,QUI TEMRA LORS COMPAIGNE?

    CE QUI ISTRA (SORTIRA) DE TA LIQUEURVERS ENGRNDRS DE LA PUEUR

    DE TA VILLE CHAIR ENCHAROIGNE *(P de Nesson apud ARIS, 2012)

    Gradualmente, o horror dos corpos post-mortem passar, tambm, para os corpos

    intra-vitam que esto em estado de degradao, ou seja, os corpos dos idosos e dos enfermos, o corpo daquele que se aproxima de sua morte. Seu corpo em decomposio um sinal de fracasso do homem que, do fim da Idade Mdia, ao contrrio dos nossos dias, tinha plena conscincia de sua mortalidade, e de que sua vida era curta, portanto possuia um amor vida e um apego ao seu corpo intacto (a idia de fracasso no perodo bem diferente da que temos hoje, talvez por termos uma vida mais prolongada e uma menor conscincia da nossa mortalidade).

    Podemos agora somar os fatos: a representao do Juzo Final individual , o reconhecimento pelo indivduo de sua biografia e o apego vida e s coisas possudas durante ela; como resultado, teremos um homem que toma conscincia de si mesmo, e a atitude que tomar frente a essa tomada de conscincia a da individualizao das sepulturas e o desejo de se conservar a memria do ser desaparecido. Devido ao ato de se entregar o corpo do defunto Igreja a fim de que ela cuidasse at o dia do Juzo dispensava a necessidade de sepulturas individualizadas, porm a nova atitude do homem pede que sua memria seja preservada. Inicialmente as pessoas mais importantes, nobres, membros do clero, recebiam uma pequena inscrio. Difundindo-se para a populao mais humilde, as paredes externas e internas das igrejas passam a ser forradas por essas pequenas inscries que trazem o nome, data de sepultamento, funo, e algumas, at, contendo cenas do defunto com seu santo padroeiro, ou Cristo, ou algum passagem bblica, ou ento algumas vontades testamentais do defunto como celebrao de missas, doao de bens Igreja.

    * carnia, que no s seno vergonha, o que ter-te- ento acompanhado?O que sair do teu licor, vermes engendrados do fedor de tua carne vil, carnia formada

    Last Judgement, painel de Angelico em Florena, Itlia. Fonte: wga.hu

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    Contudo, essas placas tumulares no eram o nico meio, nem talvez o mais difundido, de perpetuar a lembrana. Os defuntos previam em seu testamento servios religiosos perptuos para a salvao de sua alma. Do sculo XIII ao suclo XVII, os testadores (quando ainda em vida) ou seus herdeiros mandavam gravar numa placa de pedra (ou de cobre) os termos da doao e os compromissos do padre e da parquia. Essas placas de fundao eram, pelo menos, to significativas quanto as inscries aqui jaz. s vezes os dois se combinavam; outras, a placa de fundao bastava, no havendo a inscrio aqui jaz. O que importava era a evocao da identidade do defunto e no

    o reconhecimento do lugar exato da colocao do corpo(ARIS, 2012)

    A partir do sc.XVIII, o homem das sociedades ocidentais tende a dar morte um sentido novo, exaltando-a e dramatizando-a, ao mesmo tempo, o homem j no se ocupa tanto da sua prpria morte, mas da morte do outro. Paralelamente, no campo das artes, a morte passa associar a morte ao amor, Romeu e Julieta, de Shakespeare, data do fim do sc.XVI e Goethe, importante escritor romntico, escreve suas obras no fim do sc.XVIII. Gradativamente, a morte ser considerada conjunta com atos erticos, sexuais, e a morte passar a ser considerada como uma transgresso social, o primeiro ato de uma pea que culminar no sc.XIX e XX na ruptura do discurso sobre a morte, da morte interdita. Voltando ao perodo romntico, a morte no desejada, mas antes de tudo, admirada pela sua beleza, pela beleza dos corpos enrijecidos pela falta de vida. O ritual, presidido pelo moribundo permanece, mas algo se modificou, alm dos atos de responsabilidade do moribundo j mencionados, a multido de amigos e parentes tem, agora, um papel mais ativo no ritual, de responsabilidade dos assistentes a comoo.

    Ora, no sculo XIX, uma nova paixo arrebatou a assitncia. Ela agitada pela emoo, chora, suplica, e gesticula. No recusa os gestos ditados pelo uso. Pelo contrrio, cumpre-os, eliminando-lhes o carter banal e costumeiro. [...] Naturalmente, a expresso da dor dos sobreviventes devida a uma intolerncia nova com a separao. Mas no somente diante da cabeceira dos agonizantes e da lembrana dos desaparecidos que se fica

    perturbado. A simples ideia da morte comove(ARIS, 2012)

    Tmulos datados de 1613 com representaes dos cavaleiros sepultados , capela-mor de St.Mary, Inglaterra. Fonte: corbis,com

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    Uma segunda grande mudana em meados do sc.XVIII o sentido novo dado aos testamentos. Inicialmente, o testamento era o documento oficial onde o moribundo garantia que seu legado e suas vontades fossem atendidas. Agora, que os assistentes do ritual fnebre passam a exercer papel mais importante na encenao da morte, as vontades do moribundo podem ser transmitidas oralmente seus parentes e amigos e o testamento deixa de tratar dos assuntos relativos religio como da instituio de missas e escolha da sepultura e passa a ser o documento oficial de transmisso de bens aos herdeiros. O testamento se torna um documento laico e jurdico, apenas, pois a famlia, a partir de meados do sc.XVIII, tem maior importncia na vida e nas decises do homem ocidental. O perodo de luto tambm sofre ligeiras modificaes e no mais necessrio limitar as emoes do luto, por um breve perodo de tempo, os sobreviventes tem a liberdade de expressarem suas emoes, chegando ao um exagero, luto, esse, socialmente incentivado, pois ajuda a superar a perda do ente querido. Esse exagero no luto se d pois, aos sobreviventes, que possuem maior papel na passagem da morte, resta a dor e a saudade do outro, o temor da morte passa de si prprio para o medo da morte do outro. O Medo da morte do outro, da falta que ele far, traz consigo a origem do culto moderno aos tmulos e das mudanas ocorridas nas sepulturas, da monumentalizao das sepulturas. O perodo

    de luto pede que se possa visitar o local exato do corpo do ente, a fim de amenizar a saudade, e esse local precisa ser privado, exclusivo famlia do falecido. Os mortos passam a ter seu local prprio na cidade, disputando espao com os vivos.

    As mudanas de atitude frente a morte, na sociedade ocidental ocorreram, at o sc.XIX em um ritmo to desacelerado, que seus conterrneos no puderam sentir efetivamente essas mudanas. No sc.XX temos mudanas ocorrendo muito rpidas em vrios setores da sociedade, e as atitudes frente a morte no so exceo. Essa ltima atitude do homem ocidental frente morte denominada como morte interdita. Os papis na encenao da morte se alteram, no se morre em casa, rodeado por parentes e amigos, morre-se no hospital, onde a equipe mdica, agora, quem preside o ritual.

    [...] Mas sabe, eles no pensam da mesma forma que ns. Para o americano, pensar em alguma coisa que aborrece

    consiste em fazer o possvel para no pensar nela.O barman trouxe os copos. O velho pegou o dele e se levantou.

    Pois bem, sua sade! disse. sua disse Gomez.O velho sorriu tristemente.

    (SARTRE, 2012)The American Way of Life, fotografia de Margaret Bourke-White, 1937. Fonte: corbis.com

    morte de Trotsky, em um hospital na Cidade do Mxico. Fonte: corbis.com

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    Essas mudanas surgem, originalmente, na America, estendendo Inglaterra, Pases Baixos e Europa Industrial, ou seja, pases onde o Cristianismo no tem razes to profundas como na Frana, Espanha ou Itlia. Consiste no desejo de poupar o enfermo de assumir sua provao, a verdade passa a ser um problema social. A sociedade moderna feliz e deve combater qualquer elemento que possa vir a causar um desequilbrio nessa felicidade, ou ao menos, a sociedade deve aparentar ser feliz, transparecer felicidade. A morte causa um desequilbrio na felicidade, portanto a morte deve ser negada, esquecida. O hospital onde as pessoas morrem, pois em casa poderia trazer sofrimento famlia. As pessoas morrem no hospital no por ser natural morrer, mas porque os mdicos no souberam curar o enfermo. No existe mais um ritual da morte, morrer passa a ser um assunto tcnico, uma deciso declarada da equipe mdica no sabemos mais se a morte ocorre quando perdemos a conscincia, ou quando os rgos vitais param de funcionar, a equipe hospitalar quem decreta a morte do indivduo. Tambm se morre no hospital, pois um local, at certo ponto, pblico, e as regras da felicidade da sociedade moderna ditam que no se sofre em pblico, as emoes devem ser reservadas ao particular, Geoffrey Gorer, socilogo ingls autor de The pornography of death, compara o luto masturbao: envergonhada, solitria, quando ningum v ou escuta. Aris conclui, estudando Gorer, que a interdio da manifestao pblica da emoo agrava o sofrimento dos sobreviventes, que no podem liberar livremente suas emoes.

    [...] como a morte tornou-se um tabu e como, no sculo XX, substituiu o sexo como principal interdito. Antigamente, dizia-se s crianas que se nascia dentro de um repolho, mas elas assistiam grande cena das despedidas, cabeceira do moribundo. Hoje, so iniciadas desde a mais tenra idade na fisiologia do amos, mas quando no veem mais o av e se surpreendem, algum lhes diz que ele repousa num belo jardim

    por entre as flores. (ARIS, 2012)

    Nos Estados Unidos, no houve grande influncia, como na Europa, de um Romantismo e a morte foi rapidamente transformada em produto de mercado. Inicialmente os terrenos dos cemitrios eram das Igrejas, como no restante das sociedades ocidentais, porm logo surgiram cemitrios em terrenos de associaes privadas desvinculadas de qualquer religio. O sistema capitalista americano rapidamente absorve as necessidades de luto e trata de torn-lo cada vez mais atraente venda e garantir uma permanncia de seus servios. Logo surge a figura dos agentes funerrios, responsveis por tirar os que esto afetados por em estado de luto e restitu-los sociedade, necessrio maquiar a morte, mas sem faz-la desaparecer. Os novos ritos americanos trouxeram de volta a possibilidade do luto pblico, desde que essa morte esteja bela o suficiente para ser exposta sociedade.

    No temos mais experincia da morte dos outros. A experincia espetacular e televisada nada tem que ver com ela. A maioria das pessoas jamais teve ocasio de ver algum morrer. Trata-se de uma coisa impensvel em qualquer outro tipo de sociedade. Ficamos a cargo do hospital e da medicina a extrema-uno tcnica substituiu todos os outros sacramentos. O homem deixa a companhia dos entes queridos antes de morrer. por outro

    lado disso que ele morre.(BAUDRILARD, 1996)

    No sc.XX a morte passa de pblica proibida. A sociedade reprime a morte e as manifestaes de luto. A ferida causada pelo interdito da morte ainda no est cicatrizada totalmente em nossa sociedade. Apesar de no termos aumentado significativamente nossa expectativa de vida, o homem hoje nega sua mortalidade e mente pra si e para os outros que pode morrer e quando o momento chega algum prximo, e a morte sempre chegar, acometido por uma profunda tristeza pois

    me italiana passa pelo luto sozinho, chorando ao tmulo do filho morto na guerra, . Fonte: corbis.com

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    nessa hora que ele se lembra que mortal. O grande sofrimento do luto no est, exclusivamente, na falta que sentir do ente falecido, mas, tambm, na percepo de sua mortalidade. Tanto a sociedade quanto os espaos destinados ao luto no so, hoje, preparados para receber o indivduo em luto e ao invs de amenizar o sofrimento, acabam por agrav-lo e assim, afastar mais ainda a morte do cotidiano e da natureza humana.

    A morte a maior certeza corprea e coroada como a rainha das incertezas humanas

    (SILVA, 2002)

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    A MORTE E A CIDADE

    Assim como as atitudes perante a morte, o destino dado aos corpos aps a morte tambm sofreu fortes modificaes at os dias de hoje. Apesar da familiaridade e do respeito que se havia para com as sepulturas e com a morte, os primeiros grupos sociais do ocidente que se preocuparam e dar algum destino seus mortos o fizeram, basicamente, atravs da inumao em reas afastadas de suas habitaes ou atravs da cremao dos corpos, que significaria um fim definitivo da presena do indivduo.

    O decoro probe toda referncia da morte. A incinerao o ponto limite dessa discreta liquidao e do mnimo de vestgios.

    Nada de vestgios da morte: desamparo.(BAUDRILARD, 1996)

    Havia, inicialmente, um sentimento de repulsa por seus cadveres e esses povos primitivos os mantinham longe o quanto fosse possvel, fora das cidades ou beira das estradas. havia, ainda, o medo de que esses corpos pudessem voltar e uma repulsa pela decomposio dos mesmos e suas consequncias. Assim, o homem ocidental, mesmo que por motivos negativos, tinha um sentimento de preocupao com o local do destino final dos seus.

    No comeo da era crist, houve uma srie de leis que proibiam os enterros in urbe a fim de que fosse preservada a higiene e a santidade da casa dos habitantes. Apesar do esforo dos governantes e mesmo da Igreja Catlica, comea a surgir nos primeiros sculos de cristianismo um hbito novo, que posteriormente ser aceito e incentivado pela prpria Igreja e, mais recente, novamente proibido, que o dos enterros dentro das igrejas. Joo Crisstomo (349-407 d.C.) exprime essa repulsa por essa nova atitude em uma homilia:

    Cuide de nunca erguer um tmulo dentro da cidade. Se algum deixasse um cadver no lugar em que dormes e comes, o que no farias? Entretanto deixas os cadveres no onde dormes ou

    comes, mas nos membros do Cristo (so Joo Crisstomo, Opera Paris, Ed. Montfaucon,

    1718-1738, volVIII, p. 71, homilia 74. apud ARIS, 2012)a cidade dos mortos antecede a cidade dos vivos

    Lewis Mumford, A cidade na histria

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    Membros do Cristo, ou seja, dentro das igrejas. Chegava um ponto onde as cidades cresciam e os cemitrios ja no eram mais extra-urbem, e as populaes perifricas passam desenvolver suas habitaes em torno dos cemitrios. No havendo mais um distanciamento das igrejas e dos seus cemitrios, alguns membros do clero, inicialmente, comeam a serem sepultados, em crptas subterrneas (denominados carneiros), dentro das igrejas onde exerciam seus ofcios. Esse costume inicialmente negado pela Igreja, pois tem sua origem nos cultos dos mrtires africanos. Os locais de sepultamento dos mrtires eram venerados e visitados pelos vivos, que almejavam serem enterrados prximos a esses santos a fim de que a proximidade com eles favorecessem quem fosse enterrado prximo, adaptando suas crenas, os seguidores da Igreja Catlica almejavam serem enterrados prximos aos seus santos.

    cuidaro de ns enquanto vivemos com nossos corpos e se encarregaro de ns quando tivermos deixado nossos corpos

    [Patologia Latina, volLVII, col. 427-428 apud ARIS, 2012]

    Basicamente, at o perodo do Renascimento, as igrejas se tornam o local principal de deposio dos corpos. Essas igrejas, tambem, eram decoradas com ossos humanos

    que proviam dos prprios corpos sepultados no interior das mesmas, nos carneiros, mas principalmente nas grandes fossas destinadas aos pobres e pessoas de menor importancia social, os mais ricos eram sepultados no interior das igrejas e um dia tambm seriam destinados aos ossrios. Mais do que o destino ltimo dos restos, era importante que se estivesse em terreno santo, a fim de que a alma fosse salva.

    fossa dos pobres, largas e com vrios metros de profundidade, onde os cadveres eram amontoados, simplesmente cosidos em seus sudrios, sem caixo. Quando uma fossa estava cheia, era fechada, reabrindo-se uma mais antiga e levando-se

    os ossos secos para os carneiros (ARIS, 2012)

    ilustrao de cadveres sendo jogados na fossa comum, Londres, Inglaterra. Fonte: corbis.com

    Lawrence Olivier interpretando Hamlet ao encontrar o crnio de Yorick. Fonte: corbis.com

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    O aspecto pblico da morte ainda forte, os cemitrios eram fortemento habitados, tornando-se um local de encontro e comrcio, danas, festas, msica, trocas, servios, enfim, um espao pblico de intensa vida urbana. Essa vida nas reas cemiteriais no dura muit at que as administraes criam leis a fim de proibir essas prticas.

    Ato V, Cena 1Elsinore. Um cemitrio.

    [...]Hamlet. - Quanto tempo um homem jaz na terra antes de

    apodrecer?

    Primeiro Palhao [coveiro]. - Dboa f, se ele no estiver podre antes de morrer, como temos muitos corpos hoje-em-dia, que mal suportaro o enterro, ele te durar uns oito anos ou

    nove anos. Um curtidor te durar nove anos.

    Hamlet. - Por que ele mais que outro?

    Primeiro Palhao [coveiro]. - Ora, senhor, seu couro to curtido com sua ocupao, que ele manter a gua de fora um tempo maior e tua gua um srio corruptor de teu corpo filho-de-meretriz. Ele um crnio agora. Este crnio jazeu na terra

    por trs e vinte anos.

    Hamlet. - De quem era ele?

    Primeiro Palhao [coveiro]. - De um filho-de-meretriz louco, ele era. De quem voc pensa que ele era?

    Hamlet. - No, eu no sei.

    Primeiro Palhao [coveiro]. - Uma pestilncia nele por um bandido louco! Ele despejou uma jarra de Reno em minha cabea uma vez. Este mesmo crnio, senhor, foi o crnio de

    Yorick, o bobo do rei.

    (SHAKESPEARE)

    Podemos afirmar que o crescimento de uma cidade no se da de forma aleatria, ao acaso. H diversos fatores que podem influenciar o crescimento de uma cidade em direo determinadas reas, os planos diretores so exemplos de direcionadores de crescimento urbano.

    Instrumento bsico de um processo de planejamento municipal para a implantao da poltica de desenvolvimento urbano,

    norteando a ao dos agentes pblicos e privados. (ABNT, 1991)

    O Plano Diretor pode ser definido como um conjunto de princpios e regras orientadoras da ao dos agentes que

    constroem e utilizam o espao urbano.(BRASIL, 2002).

    Para o prof. Flvio Villaa, a expanso territorial de uma cidade se d altamente influenciada pelas infra-estruturas existentes, fundamentalmente as infra-estruturas que viabilizem os transportes de pessoas. Ao mesmo tempo, a configurao atual da maioria dos equipamentos cemiteriais, no Brasil, so considerados como equipamentos desvalorizadores do solo urbano. Temos, ento, uma dualidade

    Litografia de 1550 representado o Cemitrio dos Inocentes em Paris, Frana. Fonte: corbis.com

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    de atrao x repulso provocada pela instalao e viabilizao dos acesso aos equipamentos cemiteriais.

    O aspecto repulsivo no se d exclusivamente por questes simblicas da proximidade corpos, mas tambem por aspectos de higiene. Os processos de industrializao ocasionam um grande crescimento da populao urbana e, juntamente, ficam mais evidentes seus problemas por falta de planejamento, como reas insalubres dentro do territrio urbano, falta de saneamento bsico. Logo surgem problemas de sade pblica, causadores de doenas, e a necessidade de uma ao por parte dos governantes e planejadores da cidade. Dentre esses causadores de doenas h um que chama ateno, muito citado por mdicos no Brasil no sc.XIX, os miasmas, supostamente provocados pela disseminao de gases da decomposio dos corpos humanos. Nesse perodo, no Brasil, as pessoas eram, fundamentalmente, inumadas dentro das igrejas, no interior das grossas paredes ou abaixo do assoalho, dentro das mesmas, tambm, eram realizadas, alm das celebraes religiosas, reunies, aulas e mais atividades relacionadas aglomerao de pessoas dentro das igrejas.

    Muitas vezes ares malficos, os miasmas (emanaes ftidas da decomposio dos corpos) que saiam das igrejas, foram acusados como fator de disseminao de vrias epidemias que

    assolaram a cidade (CABRAL, 1972)

    [...]os mortos vieram a ocupar os mesmos templos que frequentavam em vida, onde haviam recebido o batismo, o matrimnio, e onde agora testemunhariam as cerimnias e negcios corriqueiros da comunidade pois, naquela poca as igrejas serviam de recinto para reunies, sala de aula e auditrio para as mais diversas finalidades. Enquanto houvesse espao fsico, todos os mortos seriam sepultados no interior das igrejas. No incio, fora das igrejas somente eram sepultados os escravos, os acatlicos, judeus, protestantes e sentenciados.

    (SILVA, 2002)

    A co-presena dos vivos e mortos no mesmo ambiente, juntamente com os discursos dos mdicos a respeito dos miasmas causadores de doenas, gradativamente causar um desconforto e medo dos corpos em decomposio. Focault, cita o exemplo do Cemitrio dos Inocentes, em Paris no sc.XVII:

    [...] no esprito das pessoas da poca, a infeco causada pelo cemitrio era to forte que, segundo elas, por causa da proximidade dos mortos, o leite talhava imediatamente, a gua apodrecia, etc. Este pnico urbano caracterstico deste cuidado, desta inquietude poltico-sanitria que se forma a

    medida que se desenvolve o tecido urbano. (FOCAULT, 1985)

    Eis que as primeiras reformas urbanas higienstas, no Brasil, ocorrem na capital Rio de Janeiro, como abertura de largas vias de circulao, instalao de esgoto sanitrio, melhoria no abastecimento de gua. A partir da segunda metade do sc.XIX, no Brasil, essas idias tornam-se consenso entre as autoridades das cidades mais importantes e a necessidade da excluso dos cemitrios de dentro do permetro

    Litografia de 1885 representado os miasmas, Nova York, EUA. Fonte: corbis.com

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    urbano torna-se prioridade das prefeituras, dentro dessas prioridades podemos colocar a instalao do cemitrio no Morro do Vieira (atual cabeceira insular da ponte Herclio Luz) e posterior transferncia do mesmo para o bairro do Itacorubi.

    Sabemos, hoje, que esses miasmas no seriam os reais, ou principais, causadores das epidemias urbanas do sc.XVIII, o que no significa que no se deve ter um cuidado especial com o destino dos corpos humanos no que se refere higiene pblica. Os cemitrios so como laboratrios de decomposio (ROSA, 2003), onde h diversas transformaes nos cadveres. A decomposio se daria em duas fases:

    Uma primeira fase de durao aproximada de 6 meses. Nessa fase desenvolvem-se microrganismos anaerbicos, concentrados principalmente nas cavidades intestinais, e so liberados diversos gases e um lquido levemente mais viscoso que a gua com alta capacidade de poluio do lenol fretico, caso no tratado corretamente. neste perodo que se exalam os gases malcheirosos. Na segunda fase, de longa durao, cerca de 3 anos, microrganismos aerbicos se desenvolvem, e ao final da mesma restaro somente os ossos e uma pequena quantidade de hmus.Os microrganismos que se desenvolvem com a decomposio dos cadveres podem ser extremamente nocvos aos seres humanos, e podem se espalhar pelo ambiente pela contaminao das guas. H, ainda, a possibilidade de contaminao por indivduos cuja causa mortis seja uma doena com contgio via area ou, mesmo, que foram tratados com elementos radioativos, que devero ter um tratamento adequado que possa acelerar a decomposio do corpo ou que, ao menos, no permita que seus resduos tenham contato com o ambiente externo. Os cuidados que se deve ter com o destino dos corpos so to importantes para a sade pblica que RIGOTTI (apud ROSA) aconselha que a a desativao de um cemitrio, que s deve ocorrer por motivos de higiene ou de ordem pblica, obriga durante 10 (dez) anos, pelo menos, a manter o terreno em estado de descanso, sem nenhum sepultamento, e por um espao de 20 (vinte) anos no se deve permitir o erguimento de qualquer edificao ou destinar o solo ao cultivo.

    Em contrapartida, esses equipamentos podem ser como ativadores de urbanidade. Sobre uma sociedade baseada na economia pr-industrial, poderamos dizer que era mais importante estar prximo, fisicamente, dos recursos naturais (matria prima para construo, fontes de gua potvel, terras agricultveis) a fim de se ter uma boa localidade para instalao de um povoado ou vila. O desenvolvimento dos meios de comunicao e transportes de matria prima e energia fez com que a urbanizao

    fosse facilitada, mas poderamos dizer que quanto maiores as facilidades de acesso infra-estrutura de transporte de pessoas, maior ser a capacidade de urbanizao de determinada localidade. nesse princpio que se fundamenta Villaa para defender que uma cidade crescer em direo s reas com melhores possibilidades de deslocamento de pessoas. Sposito ainda reafirma enfatizando que a distncia fsica menos importante, hoje, do que a distncia temporal.

    A difuso do uso do automvel e o desenvolvimento do sistema de transporte coletivo sobre trilho permitiram a extenso do tecido urbano e a revoluo nos parmetros de quantificao das distncias, pois os deslocamentos no so mais avaliados pelo sistema mtricos ou equivalente, mas pelo tempo necessrio para tal. (...) A generalizao da informtica e das comunicaes por satlite rompem a necessidade da proximidade, ou da continuidade reforando a possibilidade da

    cidade descontinua e fragmentada (SPOSITO, 1996, p.81).

    E onde entram os cemitrios nisso tudo? As reformas higienistas, como j foi dito, retiraram os cemitrios das reas urbanas e foram instalados fora do permetro da rea urbanizada na cidade, na poca. Para que fosse realizados os cortejos fnebres e uma manuteno adequada das reas cemiteriais pudesse ser feita, as autoridades municipais foram obrigadas a garantir facilidades de acesso essas reas. Em grande parte dos cemitrios municipais hoje, vemos seu entorno bem densificado com

    as distncias so medidas de acorco com o tempo que se gasta em seu deslocamento. Na foto, skyline noite em Shangai, China Fonte: corbis.com

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    pouca, ou nenhuma, rea disponvel expanso, isso nos leva a crer que apesar dos aspectos simblicos e de higiene da proximidade aos cemitrios, a populao soube aceitar essas negatividades em favor de uma facilidade de deslocamento territorial.

    Temos, ento, os cemitrios simultaneamente como equipamentos atratores e repulsores de urbanizao, mas, contraditoriamente, o assunto no tratado em planos diretores ou planejamentos urbanos. Por que?

    Por mais de um milnio, estava-se perfeitamente acomodado a convivencia de vivos e mortos at que no fim do sc. XVII comea a se achar um tanto constrangedor a a coexistncia dos vivos no ento local de deposio dos mortos. De repente, os enterros dentro das igrejas se tornaram insuportveis, a sade publica ataca ferozmente os miasmas emanados pelos corpos em decomposio que, segundo os mdicos higienistas, eram as grandes causas de doenas e mortes. As primeiras reformas urbanas surgem com as preocupaes higienstas, ainda sem a presena de urbanstas, nesta fase se torna consenso, por estarem associados propagao de doenas, excluso dos cemitrios do permetro urbano. Mais tardar, idias modernistas chegam ao Brasil, propagandeadas, principalmente, por Le Corbusier com objetivo de fundir princpios filosficos, sociais e de racionalidade tcnica. As cidades seriam adequadas aos quatro princpios do urbanismo modernista: habitao, trabalho, lazer e circulao, os cemitrios, por no se enquadrar em nenhum dos quatro princpios, so deixados de lado nas prioridades dos planejamentos urbanos. Com o processo de industrializao no Brasil, milagre econmico e consequente xodo rural, as cidade se incham e surgem seus efeitos colaterais, pois as cidades no receberam um planejamento necessrio para receber as pessoas vindas do campo. A partir de ento, as transformaes urbanas se focam no sentido de minimizar os efeitos do inchao provocado pela rpida expanso, com propostas imediatstas, mais focadas em uma propaganda poltica do que numa real transformao do territrio urbano, os grandes projetos urbanos acabam sendo deixados iniciativa privada ou vo ao encontro dos interesses da mesma.

    As reas prximas cemitrios pblicos, inicialmente, no apresentam valor que seja atrativo ao mercado investidor, por se tratar de reas distantes do permetro urbano e com baixa infra-estrutura mas, como vimos, a infra-estrutura viria instalada para se dar acesso a esses cemitrios facilita a urbanizao na direo dos mesmos e gradativamente a rea de entorno ao cemitrio pode vir a tornar-se interessante ao mercado imobilirio. Por se tratar de um equipamento sensvel, os cemitrios acabam por sofrer um processo de inrcia at o ponto onde sua localizao no

    mais justificada pelos argumentos iniciais sua instalao. CORRA destaca alguns pontos que seriam determinantes para a manuteno dos cemitrios nesse processo de inrcia:

    - Custos elevados para uma relocao em relao uma baixa margem de lucro na readequao das terras- Servios diretamente relacionados ao prestado pelo equipamento que poderiam perder as vantagens na localizao prxima ao equipamento cemiterial.- A possibilidade de conflitos com outros usurios do solo urbano frente ao atual consentimento do usurios que j habitam no entorno de um cemitrio- Fora simblica atribuda ao localROSA ao analisar Corra conclui que:

    - seria extremamente oneroso ao poder pblico municipal adquirir novos terrenos para fins de cemitrios, alm do descontentamento que provocaria na populao da regio escolhida para ter um equipamento urbano desse tipo prximo de suas residncias.

    - h inexistncia de conflitos em torno dos cemitrios, j que os moradores se habituaram a conviver com uma vizinhana to incomum. Ao mesmo tempo seria difcil, pelo misticismo atribudo a essas reas, encontrar pretendentes, pelo menos residenciais, a essas pores do espao. O fato de que os outros usurios no detm poder para forar a remoo dessas unidades tambm um fator para a permanncia do processo

    de inrcia; (ROSA, 2003, p96)

    preciso que dentro da cidade os cemitrios sejam considerados um equipamento urbano to essencial como outro qualquer e recebam mais ateno do planejamento, o que hoje no lhe dispensado, ainda que sejam o smbolo mais inexorvel da

    finitude humana dentro do espao urbano. (ROSA, 2003, p97)

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    No Brasil, assim como nas colnias espanholas da Amrica, o que prevalecia era um desejo de ser Europa, refletido em toda carga cultural trazida diretamente pelos navios colonizadores, como posteriormente sendo atualizado culturalmente em relao Europa nos trajes, costumes, danas, msicas, religio, sistemas construtivos, estilos arquitetnicos e, inclusive, nas atitudes do homem perante sua morte e no jeito de tratar seus mortos, havendo um certo atraso quando de algumas modificaes nessa relao, devido lenta comunicao entre os continentes. consenso, at meados do sc. XVIII, o costume de sepultar os seus dentro das igrejas, ou no entorno delas, assim como na Europa crist, era necessrio que o corpo fosse mantido sob proteo da Igreja at que chegasse o dia de uma outra vida.

    A morte no era ento vista como o fim do corpo apenas, pois o morto seguiria em esprito rumo a um outro mundo, a uma outra vida. A rigor no havia morte, ja que se vivia em profundidade a

    crena ma imortalidade da alma (ALENCASTRO, 1997, p96)

    A MORTE E O BRASIL

    Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.

    Oswald de Andrade, Manifesto AntropofgicoEnterro de um negro na Bahia, Johann Moritz Rugenda, 1833, Brasil. Fonte: people.ufpr.br

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    No entanto, no Brasil havia poucas cidades, ou vilas, e a grande maioria da populao vivia nas no campo e reas rurais onde nem sempre havia a disponibilidade de igrejas ou capelas onde se pudesse inumar seus mortos. A designao de terrenos como santos, nas reas rurais, a fim de se permitir a inumao no mesmo e, principalmente, da populao aceitar ser inumada fora das paredes de uma igreja. Era comum, ento, que ricos senhores de terras destinassem boa parte de suas heranas para a edificao de capelas e igrejas no local onde seriam sepultados, a fim de que suas almas fossem salvas. Algumas cidades puderam ser fundadas a partir dessas capelas, como o caso de Itu, Campinas e Limeira, descritos por Cymbalista na obra Cidade dos Vivos.

    Se nos pusermos a procurar as origens das relaes entre vivos e mortos nas cidades paulistas, acredito que no poderemos

    sequer afirmar que os vivos chegaram antes (CYMBALISTA, 2002, p27)

    Juntamente com o proco, viriam os encontros, as trocas, a possibilidade de instalao de casas, comrcio, servios no

    patrimnio da capela solicitada (CYMBALISTA, 2002, p28)

    Do contato com povos indgenas nativos e povos africanos escravizados, h

    uma mescla da cultura predominante catlica do europeu colonizador. Porm, predominante no era a cor branca na pele da populao, a grande maioria de origem negra e mestia trouxeram, de seus costumes originais, contribuies que refletem em particularidades em relao ao comportamento europeu, em toda a populao, branca ou negra. Os descendentes dos africanos faziam seus rituais e cortejo fnebres em clima de grande festa, danas de forte expresso corporal , som de percusso de atabaques. Uma tradio de origem africana que tomou fora no sc.XIX e permanece na nossa sociedade at os dias de hoje a do culto aos mortos.

    Todos viam os espritos ancestrais como foras poderosas que os ajudavam a viver o cotidiano e asseguravam-lhes uma boa morte. [...] a falta de ritos fnebres e sepultura adequados

    conturbavam a travessia do africano para o Alm (ALENCASTRO, 1997, p99)

    Em meados do sc.XIX, as relaes tanto do homem com sua prpria morte, quanto da relao dele com a morte do outro comeam a sofrer algumas mudanas que tero certo reflexo na composio das necrpoles na cidade. A morte era como um evento social, todo o ritual fnebre deveria ser realizado e o cidado no deveria morrer sozinho, isolado, mas com seus amigos e parentes participando da sua morte. Aps constatada a morte, haveria o cortejo do morto enrolado em mortalhas, da casa do morto ao local a ser sepultado, preferencialmente na igreja de seu santo protetor. Era necessrio, ao morto, ser visto, adquirir uma certa visibilidade, muita gente, muitos padres, crianas, amigos, mendigos e mesmo desconhecidos, todos eram convidados celebrao da morte.

    Alm de muitos padres, todo funeral respeitvel deveria ter orquestra. Nada mais espetacular e saudvel do que morrer

    com msica (ALENCASTRO, 1997, p120)

    Talvez mais do que em qualquer outro aspcto da existncia, na morte explicitavam-se de maneira espetacular as distines

    sociais (CYMBALISTA, 2002, p33)

    Gradativamente a celebrao da morte se torna mais individualsta e mais prxima

    Funeral do filho de um rei negro, Jean Baptiste Debret, 1834, Brasil. Fonte: people.ufpr.br

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    de representar na morte as hierarquias da vida. Paralelamente, vo surgindo as idias dos mdicos higienstas, que propem limpar a cidade de agentes causadores de doenas e epidemias. Um dos pontos fortemente atacados eram os miasmasemanados pelos cadveres em decomposio, e a forma mais rpida de elimin-los era por meio da retirada dos mortos do mundo dos vivos, retir-los dos limites das cidades, em lugares altos, arejados, longe de fontes de gua potvel. Mas, em algum momento a sade fsica dos vivos sobrepujaria a sade espiritual dos mortos. Por todo o territrio nacional, leis foram sendo criadas, terrenos reservados implantao de necrpoles. Porm a transio dos cemitrios de dentro das igrejas para fora dos limites municipais no foi rpida e nem pacfica. O processo que durou vrias dcadas na Europa forado a ocorrer em bem menos tempo aqui no Brasil e diversos so os relatos de cidados que se revoltam por se oporem s idias desses mdicos, como a Revolta da Cemiterada de 1836, na Bahia, onde a populao se revolta frente lei que proibia os enterros no interior das igrejas de Salvador.

    A Cemiterada um exemplo do conflito entre tradio e reforma [...] Mais especificamente, ela pode ser entendida luz das mudanas de atitudes frente a morte e aos mortos, em parte do mundo catlico, entre meados do sculo XVIII e meados do

    XIX, aproximadamente. (REIS, 2006, p. 229)

    Reccm auto-declarado independente do Reino de Portugal, o pas se encontrava em situao financeira muito desfavorecida, sem dinheiro para bancar por conta prpria os investimentos para instalao das novas necrpoles fora da cidade, dependendo da iniciativa privada, Igreja e associaes de caridade para doao de terras e donativos para a instalao de tais equipamentos. Portanto, o sc.XIX o primeiro, e nico, momento em que o planejamento urbano das cidade leva em conta a necessidade de locais para o destino final de seus cidados, mas coube ao capital privado a resoluo do problema. Em algumas cidades j existiam cemitrios fora das igrejas, normalmente destinados a pessoas de outras religies que no a catlica, estes que eram proibidos de serem enterrados dentro das igrejas ou, em alguns casos, do lado de fora das mesmas. Isso facilitou que, em algumas cidades, como o caso, Florianpolis, j houvesse uma possibilidade de local a se instalar o novo cemitrio, mas a populao ainda relutava a aceitar esses novos espaos, distantes de suas casas. Apesar de fortes, os esforos das administraes municipais na composio de leis proibindo sepultamentos in-situ, a criao de altas taxas, multas e mesmo priso a quem realizasse tais sepultamentos, so as epidemias o principal

    fator para que essa populao aceitasse os novos cemitrios.

    A febre Amarela fz, no sc.XIX, pelo menos cinco indesejveis visitas ao Desterro. [...] Diagnosticado o mal em dezembro, em janeiro de 1850 os casos j somavam 24, notificados pela Santa Casa. [...] Em dois meses, toda a cidade estava tomada. A devastao foi completa e s os que fugiram da cidade, para fora ou para os seus pontos mais elevados, tinham possibilidade de escapar. [...] nas igrejas no cabiam mais cadveres; foi

    proibida a divulgao estatstica dos mortos. (CABRAL, 1972, p468)

    Dentro do movimento de higienizao que toma conta da recm-conquistada urbanidade brasileira, nada mais restava seno separar a riqueza da pobreza, o centro da periferia e os mortos

    dos vivos. Fronteiras delimitadas, espaoes estabelecidos.(CYMBALISTA, 2002)

    O sc.XX traz consigo as idias de modernidade e o Brasil pioneiro no pensamento modernista, tanto nas artes como na arquitetura e urbanismo (Semana de Arte Moderna, 1922; Edifcio Gustavo Capanema, 1947). Encabeados por Le Corbusier e a Carta de Atenas, buscam a construo de uma cidade viva, para um homem ideal, fundada em 4 princpios bsicos de espao: espaos para o habitar, trabalhar, recrear e circular. A morte no se encaixaria nos princpios de uma cidade moderna, a morte triste, anti-higinica, e assim a morte banida do planejamento de uma cidade, mesmo a Carta de Atenas, de 1933, no chega a citar a necessidade de necrpoles na cidade. Contraditoriamente, a morte se ausenta da vida das pessoas. No mesmo sculo, vemos um desenvolvimento dos meios de comunicao e um pareamento entre as atitudes perante a morte aqui no Brasil e na Europa. Desde ento, a morte no mais discutida em urbanidade e volta a ser discutida em nossos dias, quando os cemitrios esto em sua total capacidade e sem espao para expanso, pois a cidade ja tomou conta de todo seu entorno.

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    A MORTE E FLORIANPOLIS

    Os primeiros habitantes de nossa cidade, que temos conhecimento, so os povos indgenas carijs, povos de lgua tupi-guarani que denominavam nossa ilha de Meiembipe e Jurer Mirim. J esses povos primitivos conheciam tcnicas de cermica que seria utilizada na confeco de urnas funerrias, onde se depositavam ,alm de restos mortais, objetos de pedra ou cermica. Quando mortos, eram sepultados embaixo de terra e uma mistura de cascas de moluscos, ossos e outros objetos, esses locais foram denominados sambaquis.

    A fundao do povoado de Nossa Senhora do Desterro na ilha se d no sc.XVII, por iniciativa do bandeirante Francisco Dias Velho, que d inicio lavouras e algumas construes, no local onde hoje se situa a Praa XV de Novembro e imediaes. O povoado no chega a ter expresso frente nao pos se resume a poucos moradores, cerca de 100 pessoas, at meados do sc.XVIII.

    Nessa poca, face aos deficientes hbitos e condies de higiene, ausncia de recursos mdicos e doenas contagiosas,

    eram frequentes casos de bitos.(SILVA, 2002)

    Assim, o primeiro local de deposio de corpos foi junto capelinha (atual catedral), pois j era de costume trazido pelos colonizadores a inumao dentro das igrejas ou seus arredores.

    em Desterro, os mortos vieram a ocupar os mesmos templos que frequentavam em vida, [...] e onde agora testemunhariam as cerimnias e negcios corriqueiros da comunidade pois, naquela poca as igrejas serviam de recinto para reunies, sala

    de aula e auditrio para as mais diversas finalidades.(SILVA, 2002)

    Desde os primeiros tempos que foi prtica supersticiosa, aceita por tda coletividade, fazerem-se inumaes dentro das igrejas, fssem na espessura das grossas paredes, fssem abaixo de seu piso. [...] Rico ou pobre, ningum admitia outra forma de

    ser enterrado(CABRAL, 1972)

    Certo, das outras vezes no houvera aquele despropsito de vento e chuvas; uma tormenta de guas como h muito no se via em Coqueiros, embora para um pescador ficar debaixo da canoa, rodo pela corcoroca, no carea de ventos nem

    temporais.O Bento Silva no fora tirado j morto, vista da casa, com a

    mulher e o povo clamando na praiae o Dimbo Pierre no se afogou no rio da Palhoa, com a tarrafa

    enroscada nas pernasE o mar no estava que nem uma poa de to liso e to quieto

    - Deus est no cu e v tudo o que se passa na terra.- Mamo, papai vem hoje

    - Vem sim que a Nossa Senhora dos Navegantes assim quer.- Mas cala a boca que podes acordar o Ricardinho, que est

    doente.***

    O sudeste calmou, o Cruzeiro cintila muito baixo e a lua nova parece um C de giz que a noite riscou na lousa negra do cu.

    - O tempo vai mudar pra bom- Lua nova em p marinheiro deitado.

    - Disque toparam um corpo- Aonde

    - No Massiambu. o Jos Lino Os outros no se sabe por onde biam!

    - Sem uma cruz! Talvez at no bucho dos peixes, credo!

    Othon DEa, Homens e Algas

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    Uma coisa deve ser destacada: assim como outras cidades brasileiras, ou povoados, vilas, em Desterro a preocupao com a higiente era mnima, se no inexistente, e esse fato se manter por muitos anos, at, pelo menos, as primeiras reformas urbanas no sc.XIX. As inumaes continuariam sendo praticadas dentro das igrejas, os recursos de sade pblica so escassos e os bitos so parte do cotidiano dos habitantes.

    O sc.XVIII trouxe ilha, pelo mar, alm das diversas epidemias, imigrantes vindos do Arquipelago dos Aores. Esses imigrantes fundaram as freguesias, com a finalidade, entre outras, de ocupar as terras do sul do Brasil para que os espanhis no tomassem posse desses territrios. Se instalaram na regio do distrito sede, encaminhando-se ao Morro da Cruz e atravessando at a regio da Trindade e Corrego Grande, na poro continental na Enseada do Brito, Laguna, So Jose da Terra Firme e So Miguel da Terra Firme (atual Biguau); alm das freguesias no interior da ilha ao norte e sul.

    Em 1750, na direo do norte da Ilha, os aorianos se instalaram em Santo Antonio de Lisboa, de onde avanaram para o Rio Ratones, Canasvieiras e Rio Vermelho. Ao sul, estabeleceram-se no Ribeiro da Ilha e na poca das armaes de pesca baleeira, parte deles deslocaram-se para o local conhecido

    atualmente como Armao da Lagoinha. (IPHAN, 2011)

    Essas freguesias eram destacadas fisicamente do distrito sede, porm se comunicavam aos mesmos atravs de embarcaes pelo mar, os caminhos por terra eram inexistentes ou de pssima qualidade, tornando invivel a comunicao por terra entre essas populaes. Essa configurao faz com que essas freguesias se consolidem como ncleos habitacionais quase independentes, possuam suas igrejas ou capelass, sobreviviam da agricultura e pesca, realizavam algumas trocas comerciais no mercado central da cidade, translocando-se por barco.

    descoberta de ossadas abaixo do assoalho da catedral de Florianpolis. Fonte: globo.com

    mapa de Florianpolis, datado de 1832. Fonte: google.com

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    Ateno especial nestas freguesisa, logo no incio, face a forte religiosidade destes imigrantes, foi dada construo das igrejas, as quais a exemplo da rea central da cidade, tambm foram transformadas nos primeiros locais para assentamentos

    funerrios(SILVA, 2002)

    O incio do sc.XIX marcado por diversas epidemias e a co-presena dos mortos nos espaos dos vivos comea a se tornar um inconveniente. Em 1830 so implantados os caixes ou urnas para o trasnporte dos cadveres, abertos, pertencentes s inrmandades ou municipalidade, eram emprestados, ou alugados a fim de se transportar o defundo da casa do falecido ao local de sua inumao, e logo depois seriam lavados para serem usado pelo prximo morto. Apesar de tomados com muito respeito pelos cidados, os cortejos fnebres acabavam por espalhavam o mal cheiro pela cidade. Na mesma dcada, a administrao minucipal j comea a se preocupar

    com a questo da sade pblica e os efeitos dos sepultamentos dentro da cidade.

    Com o aumento da populao, bvio, o obiturio tambm aumentou e o sagrado viu-se a contingncia de sair das igrejas portas afora, ocupando os seus flancos e os seus fundos, muitas

    vzes at a sua frente, onde se instalaram os cemitrios(CABRAL, 1972)

    Em 1832, surge a idia de criar-se um cemitrio extra-muros, fora do permetro urbano, apresentada por Jernimo Coelho.

    Contudo, a idia no se materializa(ROSA, 2003)

    Desde o tempo em que eu me acho empregado, que ser de cinco meses, na qualidade de Parocho (sic) desta Matriz, um ftido dos corpos ali sepultados, e agora vendo que se argumenta, a ponto de no poder-se entrar na Igreja sem grave incomodo (sic), e que todos j se queixo(sic), participo a V. Exa para dar providncias necessrias, em quanto tempo, para o pblico no sofrer este ar corrupto e pestfero assaz danoso

    (sic) sua sade. (Livro de Arciprestes e Vigrios, n 243, 1849 apud ROSA,

    2003).

    Frente grande quantidade de pedidos, a municipalidade ir demandar esforos para edificar nova localidade, fora dos limites da cidade para o destino final dos cadveres. Deposi de muito debatido, o local escolhido o Morro do Vieira (atual Parque da Luz), devido ao distanciamento da sede municipal e j se preticavam alguns sepultamentos de animais, escravos, indigentes, fato crucial escolha da localidade para a necrpole municipal. As instalaes de infra-estrutura de acesso ao local proporcionaram um avano da urbanidade na direo noroeste (em direo ao cemitrio) a partir do centro da cidade. Ao lado do cemitrio pblico, foi destinada uma rea para cemitrios particulares de irmandades e Congregao Luterana. No entanto, logo se verificaram crticas ao local escolhido.

    O novo cemitrio.O problema mais palpitante de nossa urbs, sem dvida alguma o cemitrio. O actual horrivelmente alcandorado no local mais alto da cidade, e dependurado em pendores e declives, nunca se prestou a uma verdadeira casa dos mortos, tal como exige cemitrio no Morro do Vieira. Fonte: google.com

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    o urbanismo moderno: amplo, ajardinado com largas ruas e avenidas macadamisadas com muita sombra e frescura.

    (40BPESC: O Estado, Florianpolis, 10/07/1915, n.50. p.1. apud CASTRO, 2004)

    A cidade cresce em tamanho e importncia, e intensificam as crticas ao cemitrio que estaria prejudicando a imagem da cidade que se pretendia crescer e modernizar-se. criada, ento, uma lei que permite sepultamentos em uma nova localidade, distante da cidade, no bairro do Itacorubi, porm se matm o costume de sepultamentos no Morro do Vieira. A cidade, ento, passar por reformas de carter higiensta, como a canalizao do Rio da Bulha e inalgurao da Avenina Herclio Luz, inspiradas nas reformas no centro do Rio de Janeiro, Porm somente devivo construo da nova ligao com o continente, a Ponte Herclio Luz, que se deu, definitivamente, as exumaes e a transferncia da principal necrpole da cidade.

    Os restos mortais existentes no cemitrio, [...] foram transferidos para o Itacorubi, onde foi inalgurado em 26.11.1925, o maior

    Cemitrio Pblico da cidade, o So Francisco de Assis.(ROSA, 2003)

    As dcadas seguintes sero de obras facilitando acesso por terra localidades mais distantes da regio central, obras de saneamento e abastecimento de gua, abertura de novas ligaes ilha-continente e sucessivos aterros. A poltica de desenvolvimento e crescimento imbolirio cria melhorias nos acessos ao norte da ilha, como a rodovia SC-401, facilitando, assim, os investimentos aos bairros do norte da ilha e seu consequente crescimento. Quando da sua inalgurao, pensava-se que o Cemitrio de So Francisco de Assis jamais se esgotaria, mas o que vemos, hoje a falta de planejamento das reas de necpole e a quase totalidade de ocupao das vagas. Segundo dados apresentados por ROSA (2003), ao ser inalgurado o Cemitrio So Francisco de Assis, em 1925, a populao de Florianpolis era de cerca de 40.000 habitantes, em 2000 a populao alcana a marca de mais de 340.000, entre o mesmo perodo, nenhuma nova necrpole pblica foi intalada na cidade.

    O cemitrio que antes parecia ficar to longe do centro acaba por ser cercado pela urbanizao. Com a melhoria do sistema virio e meios de transportes a noo de distncia modifica-se e o mesmo passa a ficar de fcil acesso. [...] No tem mais para onde expandir-se e, em 1990 j falava-se em seu completo

    esgotamento(SILVA, 2002)

    ilha conta ainda com os seguintes cemitrios municipais distritais [...]: Canasvieiras, Lagoa da Conceio, Ribeiro da Ilha, Santo Antnio de Lisboa, Ratones, Campeche, Armao do Pntano do Sul, So Joo do Rio Vermelho, Ingleses, Pntano do Sul e Barra da Lagoa. Tratam-se de cemitrios pequenos, esgotados ou em vias de seu esgotamento. Como a exemplo do cemitrio do Itacorubi, a maioria deles no tem mais por onde

    expandir-se pois, foram cercados pela urbanizao.(SILVA, 2002)

    situao atual do Cemitrio So Francisco de Assis no bairro Itacorubi, Florianpolis. Fonte: acervo pessoal

  • ESPAO

    No se encontra o espao, sempre necessrio constru-lo.

    Gaston Bachelard, O Novo Esprito Cientfico

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    As populaes urbanas crescem sem parar e, os bitos tambm, vindo a exigir solues adequadas ao seu trato, de

    forma tica, moral, tcnica e ambientalmente aceitveis.(SILVA, 2002)

    aceito, na sociedade, dois tipos bsicos de destinao final aos corpos de nosso mortos: sepultamento e cremao. Os sepultamentos acabam por ocasionar a edificao de cemitrios convencionais ou verticais.

    ESPAOS DA MORTE

    un objeto arquitectnico que sea una ampliacin del paisaje, que se disuelva tranquilamente en la naturaleza, casi como si

    no existier

    Csar PortelaExemplo de cemitrio convencional do tipo parque. Arlington Cemetery, Washington, EUA. Fonte: acervo pessoal

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    Os cemitrios convencionais so desqualificados arquitetnicamente, com informaes em excesso, ambientalmente questionveis, apesar disso, representam a grande maioria das solues adotadas pelas cidades brasileiras para suas disposies funerrias. Ao mesmo tempo, poderamos dizer que o produto mais valioso da nossa sociedade o solo e, principalmente, o solo urbano. A guerra por espaos dentro da cidade j afeta significativamente as cidades dos mortos, nesse sentido, as tipologias de cemitrios convencionais poderiam ser fortemente atacadas por crticas. Ocupam grandes pores do solo urbano, esto sujeitos acidentes ambientais que poderiam contaminar o lenol fretico com necrochorume (lquido preto, viscoso, rico em minerais pesados, altamente txico) e poderiam ser classificados, tambm, como uma certa poluio visual. Uma alternativa que mantm, quase a mesma tipologia so os cemitrios parques. Surgem, aproximadamente, ao fim da Segunda Guerra, o perodo da guerra deixou cicatrizes profundas na sociedadem principalemente na Europa, e essa tipologia aparece a fim de suavizar essas feridas, criando os ambientes de necrpole mais limpos. A alternativa adquire uma certa aceitabilidade e, a partir das ultimas dcadas, comea-se a internacionalizar a ideia, mesmo nos pases que no sentiram to fortemente as marcas da guerra, como o caso do Brasil. Temos, com essa disposio funerria um ganho por parte do impacto na

    paisagem e do tratamento ambiental, porm a questo da alta demanda de solo urbano no solucionada, em adio, a grande parte desses cemitrios, se no a totalidade, so privados, restringindo o acesso da populao essas disposies.A outra tipologia que utiliza do sepultamento como tcnica seriam os cemitrios verticais, seguem a premissa bsica da multiplicao do solo urbano, a replicao do mesmo. H, por parte dessa tipologia, um significativo ganho em relao aos cemitrios convencionais. Pode-se trabalhar adequadamente a qualidade arquitetnica e o impacto na paisagem urbana, tratar os resduos poluentes consequentes da decomposio dos corpos e ainda ocupam, relativamente, uma poro de solo muito menor que os cemitrios convencionis, alm do fato de manterer o costume mais aceito pela populao ou religies, o de sepultamento. Os lculos, devidamente selados, no mantm contato com o solo, isolam os resduos nocvos ao ambiente e ainda aceleram o processo de decomposio dos cadveres, aponta-se um perodo mdio de 5 anos para a decomposio dos corpos sob a terra, e, nas gavetas (lculos) das necpoles verticais, decompem-se em cerca de 2 anos, ao final de ambos, o que resta so ossos e um p acinzentado com, basicamente, a mesma composio qumica das cinzas resultantes da cremao.

    cemitrio vertical em Finisterre na Galicia, Espanha. Fonte: cesarportela.com cemitrio vertical de So Miguel e Almas, Porto Alegre. Fonte: acervo pessoal

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    A terceira tipologia, que utiliza de tcnica diferente das anteriores, a cremao, o fim absoluto dos corpos. As tcnicas de cremao, apesar de pouco adotadas no Brasil, so bem mais antigas do que se pensaria, e teriam sua origem nas primeiras civilizaes, na Idade do Bronze. Muitos povos primitivos adotavam a cremao como destino final de seus membros como alguns gregos, tribos primitivas brasileiras, vikings, hunos, babilnios e povos germnicos. A falta de aceitabilidade por parte da populao brasileira pode se dar graas grande influncia que a Igreja Catlica teve na formao dos costumes da nossa sociedade, pois a mesma, por um bom tempo, se posicionava contra essa prtica. Os povos tradicionais reservavam as cinzas em urnas e as enterravam, a modernidade traz de diferente cremao o ato da asperso das cinzas, convertendo-se, assim, na eliminao total da memria dos mortos (ou, ao menos, a memria fsica). O processo da cremao

    vm crescendo no Brasil, ganhando aceitabilidade, principalmente porque um processo que no gera resduos txicos (as cinzas finais no so poluentes), no ocupa espao dentro da cidade e, at mesmo, mais barato financeiramente, em um levantamento feito (SILVA, 2002) encontramos valores entre 450 at 3.000 reais para o processo todo da cremao, enquanto inumaes podem chegar a 10.000 reais. Apesar de possurem alta complexidade, os equipamentos de crematrio podem ser implantados em qualquer local da cidade pos no poluem o ambiente, caso seja instalados filtros nas chamins.

    Crematorium Baumschulenweg, Berlim, Alemanha. Fonte: archdaily.com

    Pintura de cremao na ndia, datada do sc.XIX. Fonte: corbis.com

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    A cidade de Florianpolis dispes de 15 necrpoles, sendo 14 na Ilha de Santa Catarina: Canasvieiras, Ingleses, Ratones, Rio Vermelho, Santo Antonio de Lisboa, Itacorubi, Hospital de Caridade, Lagoa da Conceio. Barra da Lagoa, Campeche, Ribeiro da Ilha, Armao e Pntano do Sul como cemitrios pblicos, e o Parque da Paz no bairro Joo Paulo, particular; h, ainda, um cemitrio municipal na rea continental do municpio, no bairro de Coqueiros. Segundo pesquisas anteriores e levantamento de dados recente, praticamente no h vagas para os mortos, tanto nos cemitrios edificados pela municipalidade quanto nos cemitrios das freguesias. A resposta das ltimas gestes municipais se encaminhou para pequenas ampliaes da rea das necrpoles, sem o devido planejamento, s vezes com dificuldades de acesso; ou ampliaes com gaveteiros verticais, desqualificados; ou autorizando sepultamento nas reas de circulao das atuais necrpoles. A atual gesto da prefeitura se encaminha no sentido de realizar um concurso pblico de projeto para uma nova necrpole, verticalizada, ao lado do Cemitrio So Francisco de Assis. H uma total inexistncia de planejamento das reas de necpole nos planos urbanos da cidade, ambos planos diretores, Plano diretor do distrito sede, Plano diretor dos balnerios e, at mesmo, o anteprojeto do Plano diretor participativo no prevem reas destinadas necrpoles ou qualquer outra disposio sobre o destino que se dar aos mortos da cidade.

    ESPAOS DA MORTE EM FLORIANPOLIS

    [...] a poltica que me perdoe mas esta madame muito perigosa, uma bruxa muito tarasca, porque ela est

    infelicitando os seus filhos.

    Franklin Cascaes gaveteiros verticais no Cemitrio So Francisco de Assis, Florianpolis. Fonte: acervo pessoal

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    Das 15 necrpoles, foram realizados levantamentos in-situ de 4 delas: , Campeche, Ribeiro da Ilha, Armao e Pntano do Sul. Optou-se por focar o levantamento de dados no sul da Ilha de Santa Catarina por entender que esses bairros, ainda no se encontram em situao de um certo inchao urbano, possuindo grandes pores de terra livre no edificada, e ainda possuem fortes relaes de afeto de seus moradores com as particularidades do local, em contraponto ao norte e centro da ilha que, na maioria dos casos, perderam suas caractersticas locais, tornando-se como uma cidade padro contempornea.

    Ribeiro da IlhaA Freguesia do Ribeiro da Ilha sem dvida um dos bairros mais antigos da cidade, fundado por colonos aorianos em meados do sculo XVIII, e tem sua importncia para a cidade justamente por ser um dos poucos locais onde ainda restam muitas manifestaes culturais identificadas com este povo, cuja imigrao marcou a feio no s da Ilha, como de todo o

    litoral catarinense(RAZEIRA, 2002)

    O conjunto da Freguesia do Ribeiro se configura como um dos ltimos, se no o ltimo, exemplar das freguesias aorianas para colonizao do sul do pas que se mantem ntegra enquanto paisagem cultural e urbana, um dos fatores que contribuiu para tanto foi a dificuldade de uma melhor mobilidade urbana, por muito tempo, somente por embaraes se chegava ou saa do Ribeiro. Com a

    as 15 necrpoles da Florianpolis. Fonte: google.com (modificado) vista aos fundos do cemitrio do Ribero da Ilha. Fonte: acervo pessoal

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    conexo ao restante da ilha, por meio de estradas, inicialmente a populao mais jovem pode sair para estudar/trabalhar com mais facilidade e o bairro torna-se um bairro-dormitrio. Posteriormente, j com uma populao residente mais reduzida, a freguesia comea a adquirir um certo status turstico/gastronmico. Mas os habitantes que permaneceram residentes no Ribeiro ainda mantm fortes laos com o lugar, as festividades continuam sendo organizadas, algumas delas perderam suas caracterscas e transformaram-se em grandes festas que renem habitantes de toda ilha, outras, como o Terno-de-Reis, continuam ntegras e testemunho do que foi a vida no incio da povoao da Freguesia.

    O Cemitrio da Freguesia do Ribeiro da Ilha [1] era anexo Igreja Nossa Senhora da Lapa [3], porm, hoje, administrado pela Prefeitura Municipal de Florianpolis e vizinho ao Posto de Sade do Ribeiro da Ilha [2], atravz da Praa Hermnio Silva [4], o conjunto igreja e Cemitrio ainda mantem uma certa conexo com o mar, configurao tpica na colonizao Luso-Brasileira, ainda prximo ao conjunto, encontramos o Horto Municipal[5]. O terreno em que o cemitrio est inserido formado por patamares consecutivos, formados por sequncias de ampliaes de re para sepultamento, em aclive na direo de leste para oeste (morro do Ribeiro), em sua cota mais alta (aproximadamente 30m), aos fundos do terreno, temos uma viso privilegiada, acima das edificaes, de um interessante conjunto paisagstico formado pelo mar da Baa Sul e ao fundo a cadeia do Morro do Cambirela. No entorno do atual cemitrio h uma grande poro de terra pertencente prefeitura, , referente aos fundos do posto de sade e rea verde ao lado do cemitrio, h parcelas desse terreno com alta declividade, mas com possibilidade de instalao de um equipamento no mesmo.

    O plano diretor vigente caracteriza a rea como ACI-3 (rea Comunitria Institucional reas de Sade, Assistncia Social e Culto Religioso e Cemitrios) na parte norte, ARE-5 (rea Residencial Exclusiva) na parte sul, o conjunto da Igreja de Nossa Senhora da Lapa e praa adjacente se configuram como APC-1 (rea de Paisagem Cultural rea histrica) oeste APL (rea de Preservao com Uso Limitado). E no Anteprojeto para o novo plano diretor, a rea aparece como ZMC (Zona Mista Central) das bordas dgua at o conjunto da igreja e cemitrio e ZR (Zona Residencial) na rea onde est instalado o conjunto, inclusive com os terrenos da prefeitura municipal, desaparecendo as reas comunitrias, e a APL (rea de Preservao com Uso Limitado) permanece, mas uma parte dessa rea ja transformada em rea para uso residencial.

    situao atual do cemitrio do Ribero da Ilha. Fonte: acervo pessoal

    equipamentos de interesse no entorno do cemitrio Ribero da Ilha. Fonte: google.com (modificado)

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    CampecheDevido, principalmente, ao distanciamento, em relao ao distrito sede da cidade, a regio do Campeche, assim como outros balnerios de Florianpolis, sobrevivia da agricultura e pesca, basicamente, e no se desenvolve muito at o sc.XX. Inicialmente de exclusividade das elites e classes mdias, os balnerios possuam dificuldade de acesso e eram compostos por propriedades privadas, mas ainda muito pouco utilizados, entre as dcadas de 50 a 70 que a utilizao dos balnerios para fins de lazer comea a se efetivar, com implantao de infra-estruturas de acesso aos locais, e consequentemente, comeam os loteamentos litorneos.

    As praias, no entanto, devido distncia em relao ao centro urbano e tambm pela deficincia do sistema virio, se mantiveram, at meados do sculo XX, e especialmente at a dcada de 70, fora deste processo rpido de urbanizao, caracterizando-se como comunidades pesqueiras e rurais nas quais se preservava uma cultura de matriz luso-brasileira que comeava a se afirmar na Ilha de Santa Catarina. (CASTRO,

    2008)

    Nos anos 60, a atividade balneria para a populao local se amplia para a classe mdia alta devido implantao de um novo sistema de estradas, e esta comea a adquirir lotes para construo de residncias secundrias nas praias da Ilha. Portanto, ao longo das dcadas de 50, 60 e 70 tm-se a conformao dos loteamentos junto costa, os quais

    conjunto da Capela So Sebastio, entrada do cemitrio esquerda nos fundos . Fonte: acervo pessoal

    acessos ao cemitrio do Campeche . Fonte: google.com (modficado)

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    ocuparam as reas de campos comuns, predominantemente planos, no limiar da orla martima, e configurando malhas

    preponderantemente xadrez(CASTRO, 2008)

    Marcado por belezas naturais, Lagoinha Pequena e a Lagoa da Chica, Ilha do Campeche, personagens histricos como o francs Antoine de Saint-Exupry, e uma forte urbanizao recente, o Campeche uma importante localidade dentro do municpio de Florianpolis. Os principais acessos ao bairro, e ao Cemitrio do Campeche[1] so realizados pela Avenida Pequeno Prncipe[3] e a Avenida Campeche[2]. O cemitrio fica anexo Capela So Sebastio[4], datada de 1826 e protegida pelo patrimnio histrico (IPUF, 2012), h, ainda uma escola de educao bsica[6] bem prxima ao cemitrio. Apesar de alocada em um bairro predominantemente residencial, o entorno da necrpole, assim como, basicamente, todo o restante do bairro do Campeche, no possui reas de praas e espaos pblicos de lazer, descanso, ou mesmo contemplativo. H, apenas, as praias, que no so espaos pblicos, mas reas livres, que podem ser acessadas por caminhos[5] que passam rente ao cemitrio apesar de no parecer haver conflito nessa relao.

    O terreno do cemitrio, aos fundos da capela, se apresenta como uma rea de fragilidade ambiental, h uma extensa poro de terra entre o equipamento e a Praia do Campeche que apresenta vegetao de restinga com alto risco alagamentos,

    segundo dados do Geoprocessamento do municpio de Florianpolis, devido, tambm, ao relevo baixo e plano. O acesso ao terreno feito por uma pequena entrada ao lado da capela, ou por uma rua chegando ao fundo do cemitrio, onde se pode ser feito o acesso de servios. A administrao municipal no dispe de terrenos prximos ao equipamento, porm h as reas livres, particulares, propcias instalao de uma nova necrpole prxima.

    Um fator muito marcante no local a paisagem natural, afastado da rea mais urbanizada e movimentada do bairro, como na Avenida Pequeno Prncipe, os elementos naturais se fazem muito presentes: a paisagem do horizonte no oceano e a Ilha do Campeche, o som das ondas se chegando s areias da praia, a brisa vinda do mar que faz os galhos das rvores se chocarem.

    A anlise do plano diretor vigente nos aponta que a rea se apresenta como um misto de ARE (rea residencial exclusiva), ARP (rea residencial predominante) e ATR (rea turstica residencial), enfatizando o carter implantao de moradias. E o anteprojeto de plano diretor reserva uma poro maior como rea verde, referente s terras alagadias, mantm o carter residencial e prev como zona mista as vias de maior circulao no bairro.

    entorno do cemitrio do Campeche. Fonte: google.com (modificado) situao atual do cemitrio do Campeche. Fonte: acervo pessoal

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    Armao e Pntano do SulA oupao da praia da armao no entrava no plano das freguesias aorianas, apesar de ser uma consequncia de tal.

    Em 1750, na direo do norte da Ilha, os aorianos se instalaram em Santo Antonio de Lisboa, de onde avanaram para o Rio Ratones, Canasvieiras e Rio Vermelho. Ao sul, estabeleceram-se no Ribeiro da Ilha e na poca das armaes de pesca baleeira, parte deles deslocaram-se para o local conhecido

    atualmente como Armao da Lagoinha. (IPHAN, 2011)

    As armaes localizadas no litoral do Brasil foram empreendimentos coloniais dedicados pesca da baleia e ao beneficiamento das partes econmicas deste cetceo. O nome armao, presente na toponmia em muitas regies do litoral brasileiro, advm na instalao destas unidades produtivas ou simplesmente da realizao da pesca da baleia, em que era necessrio armar-se para o confronto com o grande peixe do

    mar (COMERLATO, 2009).

    Os cidado que se abrigaram na praia da armao, basicamente esses pescadores de baleias, tinham acesso igreja de Santana , onde sepultavam os seus. Com a necessidade de retirada dos mortos de dentro das igrejas, separou-se uma poro de terra ao lado da igreja onde se poderiam ser inumados os corpos. Com a evoluo urbana, a igreja permaneceu em uma posio privilegiada, de frente praia, porm com seu cemitrio no se teve o mesmo cuidado, um ponto de nibus alocado na frente do porto de entrada e algumas edificaes tapam sua visibilidade e, talvez at mesmo, um fator que possa ter sido uma das determinantes de sua localizao, uma constante circulao dos ares, que podem ter sido um pouco bloqueados por essas edificaes.

    Assim como as demais necrpoles do municpio, o cemitrio da armao est lotado e com uma agravante, a urbanizao foi tamanha em seu entorno que no h rea disponvel sua expanso. O tratamento dado ao equipamento no foi diferente dos demais cemitrios mas, dada sua boa localizao territorial, os terrenos prximos foram cobiados em um nvel onde no houvesse como se reservar solo.

    Da Armao em direo ao sul, encontra-se a localidade do Pntano do Sul. esquerda da praia, junto ao p do morro encontrava-se a povoao inicial da rea [2], local onde os habitantes podiam se abrigar dos fortes ventos vindos do sul.

    porto de entrada do cemitrio da Armao. Fonte: acervo pessoal entorno do cemitrio do Pntano do Sul. Fonte: google.com (modificado)

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    Para que no se precisasse fazer o caminho at a povoao local