espaco publico

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Tempo Social; Rev. Social. USP, S. Paulo, VOLUME 1(1) ARTIGO ESPAÇO PÚBLICO E ESPAÇO PRIVADO NA CONSTITUIÇÃO DO SOCIAL: notas sobre o pensamento de Hannah Arendt Vera da Silva Telles* RESUMO: Este artigo trata da noção de espaço público no pensamento de Hannah Arendt. Para a reconstrução de suas categorias, parte-se das reflexões da autora sobre o fenômero totalitário na medida em que elas esclarecem essa noção central em seu pensamento. Partindo do problema posto pelo horror da 2ª Guerra no qual os critérios de discernimento entre o bem e o mal, a verdade e a mentira foram aniquilados, a noção de espaço público se determina por referência a uma experiência na qual os homens perderam o “mundo humano” como medida de suas vidas, na qual predominava a solidão e impotência de existências privatizadas e na qual, ainda, se dissolveu a noçáo de liberdade pública, enquanto forma de sociabilidade políitica soldada no reconhecimento do direito do outro à opinião e à ação. UNITERMOS: espaço público, espaço privado, esfera pública, esfera privada, modernidade, totalitarismo, tradiçáo, convivência humana, civilidade, democracia, cidadania, igualdade, diferença, direitos. * Professora do Departamento de Sociologia da FFLCH-USP. 1 Ver especialmente a “Introdução” de La vie de l’esprit (1981b). 2 Este é um dos temas tratados por Hannah Arendt em Rahel Varnhagen: la vie d’une juive allemande à l’époque du romantisme (Paris, Tierce, 1986). Sobre esta questão do comprometimento do juizo público, ver Lafer (1988, p. 252-271). 3 Este é um tema especificamente tratado por Hannah Arendt quando discute a questão social na Revolução Francesa em seu Essai sur la Révolution (Paris, Gallimard, 1967), esp. cap. 2. 4 Além do ensaio “Que é autoridade”, no livro Entre o passado e o futuro (1979), ver também a discussão de Hannah Arendt sobre a questão da Constituição nas revoluções modernas, como problema que diz respeito a um ato fundador, em seu Essai sur la Revolution (1967), esp. caps. 4 e 5. 5 Hannah Arendt explicita sua noção de poder sobretudo em seu ensaio Da Violência (Brasília, Editora da UnB, 1985). Para uma crítica da noção de poder em Hannah Arendt, ver Habermas, J., “O conceito de poder em Hannah Arendt”, in Freitag, B. e Rouanet, J.P., orgs., Habermas (São Paulo, Ática, 1980). Para uma comparação entre Habermas e Hannah Arendt, ver Ferry, J.M.. Habermas critique de Hannah Arendt. Esprit nº 42, 1980, p. 109-124. 6 Sobre a noção de direitos em Hannah Arendt, ver Lafer (1988). 7 Ver “La decadencia de la Nación-Estado y el final de los derechos del hombre”, em Los orígenes del totalitarismo (1974a, p. 368-381). 8 Para críticas a Hannah Arendt ver Lebrun, Gérard, “A liberdade segundo Hannah Arendt” e “Hannah Arendt: um testamento socrático”, in: Passeios ao léu (São Paulo, Brasiliense, 1983, p. 52-66); Lefort, Claude, “Hannah Arendt et la question du politique”, in: Essais sur le politique: XlX- XXe siècles (Paris, Seuil, 1986, p. 59-72); Habermas, Jürgen, “O conceito de poder em Hannah Arendt”, in: Freitag, B. e Rouanet, S.P., orgs., Habermas (São Paulo, Ática, 1980, p. 100-118). Ver também o número especial da revista Esprit (nº 42, 1980) dedicado a Hannah Arendt. 9 Esta questão é discutida por Mongin, Olivier, no artigo Du politique à l’esthetique, Esprit, nº 42, 1980, p. 98- 108. * Professora do Departamento de Sociologia da FFLCH-USP. 1 Ver especialmente a “Introdução” de La vie de l’esprit (1981b). 2 Este é um dos temas tratados por Hannah Arendt em Rahel Varnhagen: la vie d’une juive allemande à l’époque du romantisme (Paris, Tierce, 1986). Sobre esta questão do comprometimento do juizo público, ver Lafer (1988, p. 252-271). 3 Este é um tema especificamente tratado por Hannah Arendt quando discute a questão social na Revolução Francesa em seu Essai sur la Révolution (Paris, Gallimard, 1967), esp. cap. 2. 4 Além do ensaio “Que é autoridade”, no livro Entre o passado e o futuro (1979), ver também a discussão de Hannah Arendt sobre a questão da Constituição nas revoluções modernas, como problema que diz respeito a um ato fundador, em seu Essai sur la Revolution (1967), esp. caps. 4 e 5. 5 Hannah Arendt explicita sua noção de poder sobretudo em seu ensaio Da Violência (Brasília, Editora da UnB, 1985). Para uma crítica da noção de poder em Hannah Arendt, ver Habermas, J., “O conceito de poder em Hannah Arendt”, in Freitag, B. e Rouanet, J.P., orgs., Habermas (São Paulo, Ática, 1980). Para uma comparação entre Habermas e Hannah Arendt, ver Ferry, J.M.. Habermas critique de Hannah Arendt. Esprit nº 42, 1980, p. 109-124. 6 Sobre a noção de direitos em Hannah Arendt, ver Lafer (1988). 7 Ver “La decadencia de la Nación-Estado y el final de los derechos del hombre”, em Los orígenes del totalitarismo (1974a, p. 368-381). 8 Para críticas a Hannah Arendt ver Lebrun, Gérard, “A liberdade segundo Hannah Arendt” e “Hannah Arendt: um testamento socrático”, in: Passeios ao léu (São Paulo, Brasiliense, 1983, p. 52-66); Lefort, Claude, “Hannah Arendt et la question du politique”, in: Essais sur le politique: XlX- XXe siècles (Paris, Seuil, 1986, p. 59-72); Habermas, Jürgen, “O conceito de poder em Hannah Arendt”, in: Freitag, B. e Rouanet, S.P., orgs., Habermas (São Paulo, Ática, 1980, p. 100-118). Ver também o número especial da revista Esprit (nº 42, 1980) dedicado a Hannah Arendt. 9 Esta questão é discutida por Mongin, Olivier, no artigo Du politique à l’esthetique, Esprit, nº 42, 1980, p. 98- 108. RESUMO: Este artigo trata da noção de espaço público no pensamento de Hannah Arendt. Para a reconstrução de suas categorias, parte-se das reflexões da autora sobre o fenômero totalitário na medida em que elas esclarecem essa noção central em seu pensamento. Partindo do problema posto pelo horror da 2ª Guerra no qual os critérios de discernimento entre o bem e o mal, a verdade e a mentira foram aniquilados, a noção de espaço público se determina por referência a uma

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  • Tempo Social; Rev. Social. USP, S. Paulo, VOLUME 1(1) A R T I G O

    ESPAO PBLICO E ESPAO PRIVADO NACONSTITUIO DO SOCIAL:

    notas sobre o pensamento de Hannah ArendtVera da Silva Telles*

    RESUMO: Este artigo trata da noo de espao pblico no pensamento de Hannah Arendt. Para a reconstruode suas categorias, parte-se das reflexes da autora sobre o fenmero totalitrio na medida em que elas esclarecem essanoo central em seu pensamento. Partindo do problema posto pelo horror da 2 Guerra no qual os critrios de discernimentoentre o bem e o mal, a verdade e a mentira foram aniquilados, a noo de espao pblico se determina por referncia a umaexperincia na qual os homens perderam o mundo humano como medida de suas vidas, na qual predominava a solidoe impotncia de existncias privatizadas e na qual, ainda, se dissolveu a noo de liberdade pblica, enquanto forma desociabilidade politica soldada no reconhecimento do direito do outro opinio e ao.

    UNITERMOS: espao pblico, espao privado, esfera pblica, esfera privada, modernidade, totalitarismo,tradio, convivncia humana, civilidade, democracia, cidadania, igualdade, diferena, direitos.

    * Professora do Departamento de Sociologia da FFLCH-USP.1 Ver especialmente a Introduo de La vie de lesprit (1981b).2 Este um dos temas tratados por Hannah Arendt em Rahel Varnhagen: la vie dune juive allemande lpoque du romantisme (Paris, Tierce, 1986). Sobre

    esta questo do comprometimento do juizo pblico, ver Lafer (1988, p. 252-271).3 Este um tema especificamente tratado por Hannah Arendt quando discute a questo social na Revoluo Francesa em seu Essai sur la Rvolution

    (Paris, Gallimard, 1967), esp. cap. 2.4 Alm do ensaio Que autoridade, no livro Entre o passado e o futuro (1979), ver tambm a discusso de Hannah Arendt sobre a questo da

    Constituio nas revolues modernas, como problema que diz respeito a um ato fundador, em seu Essai sur la Revolution (1967), esp. caps. 4 e5.

    5 Hannah Arendt explicita sua noo de poder sobretudo em seu ensaio Da Violncia (Braslia, Editora da UnB, 1985). Para uma crtica da noo depoder em Hannah Arendt, ver Habermas, J., O conceito de poder em Hannah Arendt, in Freitag, B. e Rouanet, J.P., orgs., Habermas (So Paulo,

    tica, 1980). Para uma comparao entre Habermas e Hannah Arendt, ver Ferry, J.M.. Habermas critique de Hannah Arendt. Esprit n 42, 1980,p. 109-124.

    6 Sobre a noo de direitos em Hannah Arendt, ver Lafer (1988).7 Ver La decadencia de la Nacin-Estado y el final de los derechos del hombre, em Los orgenes del totalitarismo (1974a, p. 368-381).8 Para crticas a Hannah Arendt ver Lebrun, Grard, A liberdade segundo Hannah Arendt e Hannah Arendt: um testamento socrtico, in:

    Passeios ao lu (So Paulo, Brasiliense, 1983, p. 52-66); Lefort, Claude, Hannah Arendt et la question du politique, in: Essais sur le politique: XlX-XXe sicles (Paris, Seuil, 1986, p. 59-72); Habermas, Jrgen, O conceito de poder em Hannah Arendt, in: Freitag, B. e Rouanet, S.P., orgs.,

    Habermas (So Paulo, tica, 1980, p. 100-118). Ver tambm o nmero especial da revista Esprit (n 42, 1980) dedicado a Hannah Arendt.9 Esta questo discutida por Mongin, Olivier, no artigo Du politique lesthetique, Esprit, n 42, 1980, p. 98- 108.

    * Professora do Departamento de Sociologia da FFLCH-USP.1 Ver especialmente a Introduo de La vie de lesprit (1981b).2 Este um dos temas tratados por Hannah Arendt em Rahel Varnhagen: la vie dune juive allemande lpoque du romantisme (Paris, Tierce, 1986). Sobre

    esta questo do comprometimento do juizo pblico, ver Lafer (1988, p. 252-271).3 Este um tema especificamente tratado por Hannah Arendt quando discute a questo social na Revoluo Francesa em seu Essai sur la Rvolution

    (Paris, Gallimard, 1967), esp. cap. 2.4 Alm do ensaio Que autoridade, no livro Entre o passado e o futuro (1979), ver tambm a discusso de Hannah Arendt sobre a questo da

    Constituio nas revolues modernas, como problema que diz respeito a um ato fundador, em seu Essai sur la Revolution (1967), esp. caps. 4 e5.

    5 Hannah Arendt explicita sua noo de poder sobretudo em seu ensaio Da Violncia (Braslia, Editora da UnB, 1985). Para uma crtica da noo depoder em Hannah Arendt, ver Habermas, J., O conceito de poder em Hannah Arendt, in Freitag, B. e Rouanet, J.P., orgs., Habermas (So Paulo,

    tica, 1980). Para uma comparao entre Habermas e Hannah Arendt, ver Ferry, J.M.. Habermas critique de Hannah Arendt. Esprit n 42, 1980,p. 109-124.

    6 Sobre a noo de direitos em Hannah Arendt, ver Lafer (1988).7 Ver La decadencia de la Nacin-Estado y el final de los derechos del hombre, em Los orgenes del totalitarismo (1974a, p. 368-381).8 Para crticas a Hannah Arendt ver Lebrun, Grard, A liberdade segundo Hannah Arendt e Hannah Arendt: um testamento socrtico, in:

    Passeios ao lu (So Paulo, Brasiliense, 1983, p. 52-66); Lefort, Claude, Hannah Arendt et la question du politique, in: Essais sur le politique: XlX-XXe sicles (Paris, Seuil, 1986, p. 59-72); Habermas, Jrgen, O conceito de poder em Hannah Arendt, in: Freitag, B. e Rouanet, S.P., orgs.,

    Habermas (So Paulo, tica, 1980, p. 100-118). Ver tambm o nmero especial da revista Esprit (n 42, 1980) dedicado a Hannah Arendt.9 Esta questo discutida por Mongin, Olivier, no artigo Du politique lesthetique, Esprit, n 42, 1980, p. 98- 108.

    RESUMO: Este artigo trata da noo de espao pblico no pensamento de Hannah Arendt. Para a reconstruode suas categorias, parte-se das reflexes da autora sobre o fenmero totalitrio na medida em que elas esclarecem essanoo central em seu pensamento. Partindo do problema posto pelo horror da 2 Guerra no qual os critrios de discernimentoentre o bem e o mal, a verdade e a mentira foram aniquilados, a noo de espao pblico se determina por referncia a uma

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    experincia na qual os homens perderam o mundo humano como medida de suas vidas, na qual predominava a solidoe impotncia de existncias privatizadas e na qual, ainda, se dissolveu a noo de liberdade pblica, enquanto forma desociabilidade politica soldada no reconhecimento do direito do outro opinio e ao.

    UNITERMOS: espao pblico, espao privado, esfera pblica, esfera privada, modernidade, totalitarismo,tradio, convivncia humana, civilidade, democracia, cidadania, igualdade, diferena, direitos.

    As reflexes de Hannah Arendt sobre os acontecimentos que envolveram a 2 Guerra Mundial so pertubadoras,por aquilo que ela conta, pelas questes que sua narrao suscita e pela interpretao que prope para sua elucidao. Paraas notas quese seguem, tomaria como ponto de partida o que Hannah Arendt nos apresenta como uma experincia radical, na qual oscritrios que permitiam aos homens distinguir no mundo a verdade da mentira e o bem do mal, foram subvertidos. E nolimite, aniquilados. E se essa questo importa porque pe em foco o que ela chama de fragilidade dos negcios humanos.Fragilidade que inerente, diz Hannah Arendt, prpria condio humana, mas que ganhou significao poltica a partirdo sculo XIX.

    Nesse caso, a fragilidade dos negcios humanos explicita a experincia de uma sociedade que fez sua entradana modernidade. Uma sociedade na qual os homens so obrigados a enfrentar os problemas da convivncia humana semas garantias que, antes, a religio e a tradio podiam oferecer. Se ambas perderam sua credibilidade no mundo moderno,isso acarretou ao mesmo tempo, diz Hannah Arendt, a perda da autoridade que o passado tinha para os homens e na qualestes se apoiaram, sempre, para se guiar entre as coisas inevitavelmente instveis e mutantes do mundo. por isso que, nomundo moderno, os homens tero que se confrontar com os problemas elementares da convivncia humana sem aconfiana religiosa em um comeo sagrado e sem a proteo de padres de conduta tradicionais e, portanto, auto-evidentes(Arendt, 1979, p. 187). Mas se isso constitui um problema porque, frente ao inusitado dos acontecimentos que rompem osautomatismos da vida cotidiana, os homens encontram-se sem critrios seguros para sua compreenso, compreenso queela entende como capacidade de tomar o mundo familiar. Da mesma forma como encontram-se sem critrios segurospara o seu julgamento, entendido este enquanto capacidade de discernimento entre qualidades. E isto significa dizerque os homens encortram-se sem garantias para se orientar no mundo. Nesta perspectiva, a perda da religio, dastradies e da autoridade do passado equivalente perda do fundamento do mundo, mundo que comeou a mudarde tal maneira que todas as coisas, a qualquer momento, podem se tornar praticamente qualquer outra coisa (Ibidem, p.131).

    Se esses critrios perderam seus pontos de apoio tradicionais, passam a depender inteiramente da contingnciada convivncia humana. E, sobretudo, da capacidade de os homens construrem, na e atravs dessa convivncia, critriose referncias que tenham uma validade intersubjetiva geradora de um senso comum. Mas precisamente isto este sensocomum que parece ter sido posto em questo. No sculo XIX, diz ela, se ainda havia uma capacidade de compreensoe julgamento, esta era j inapta para dar razo de suas categorias e critrios, quando estes eram seriamente postos emquesto (1980, p. 73).

    Para Hannah Arendt, entre os elementos que definem esta capacidade de orientao no mundo vinculada compreenso e ao julgamento est a faculdade de discernimento entre a verdade e a mentira e, tambm, entre o beme o mal. Isto significa dizer que estas no so categorias que se possa derivar do conhecimento terico e especulativo no se trata, portanto, das chamadas verdades da razo. Tampouco podem ser derivadas de valores supremosdados pela cultura, pela tradio ou pela religio e nos quais se tentou tradicionalmente fundar toda moralidade no setrata portanto de valores situados fora da esfera mundana da prpria sociedade. Os critrios de verdade, de justia e delegitimidade so construdos na experincia intersubjetiva que os homens fazem da realidade do mundo. E por isso quedependem do senso comum, que ela define como um sexto sentido que permite a cada um comunicar-se com todos osdemais e fazer a experincia da pluralidade humana, a partir da qual opinio e julgamento se constituem. Da o aspectopertubador de suas reflexes sobre a 2 Guerra. Pois o que ela prope uma indagao acerca da experincia de uma pocaque foi capaz de produzir o fenmeno totalitrio e de uma sociedade que foi, de alguma forma, conivente ou, no mnimoindiferente perseguio e morte de 6 milhes de judeus. Afinal, o totalitarismo no nasceu do nada e a experinciabsica sobre a qual descansa deve ser humana e conhecida dos homens, quando menos porque o corpo poltico no qual seconfigurou foi concebido por homens e de alguma forma responde s necessidades dos homens (1974a, p. 560).

    Esta uma reflexo que emerge do relato que faz do julgamento de Eichmann em Israel em 1961. Mas asquestes aqui no so derivadas de uma anlise da realidade histrico- social da sociedade alem. A radicalidade doproblema vai se desenhando na forma mesmo oomo tenta definir a natureza do crime cometido e pelo qual Eichmann foijulgado e condenado. Na sua descrio, o que se explicita a impotncia das categorias tradicionais de pensamento diantede um acontecimento que abalava todos o pontos fixos nos quais esse pensamento sempre se ancorou para avaliar e julgaras coisas do mundo. Da a dificuldade at mesmo de tipificar juridicamente o crime cometido. Pois no se tratava de umdelito passvel de ser qualificado por referncia ao Estado, lei ou a alguma norma consensual estabelecida. Eichmannatuava rigorosamente de acordo com a legalidade verdade que uma inslita e inusitada legalidade, apoiada na palavrae na vontade do Fhrer mas que nem por isso poderia ser desconsiderada enquanto tal, na medida em que fundava umaordem qual se exigia obedincia e que encontrava ressonncia no que se convencionou chamar de opinio pblica. Nessecaso, o que se punha em cheque era a identificao, prpria do positivismo jurdico, entre a legalidade e a justia. Mas seos fatos que estavam sendo julgados abalavam a convico de que o Estado poderia ser a sede segura de uma racionalidadecapaz de garantir um sentido de justia e de moralidade no mundo, tambm se desmoronava a convico de que este

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    sentido poderia se ancorar na fora da conscincia de cada homem. E estavanisto o lado mais aterrador da histria. Pois Eichmann tinha clara conscincia do que fazia, no apresentou, em momentoalgum, dvida ou hesitao na realizao de sua tarefa. No havia sequer a sombra de algum sentimento de culpa, earrependimento era algo inteiramente ausente de seus depoimentos s as crianas se arrependem do que fazem, disseele em algum momento. Aqui, o que se volatilizava era a crena crist de que, no fundo da alma de todos os homens, h deresidir um sentimento universal de humanidade. E se isto soava aterrador, era porque estava em concordncia com o quea prtica jurdica convencionou definir como bom senso. Como diz Hannah Arendt, a boa sociedade alem haviasucumbido a Hitler e a mxima da religio no matars que guia as conscincias, havia desaparecido (1966, p. 322).

    Mas na descrio da figura sinistra de Eichmann que toda a radicalidade da questo se explicita. Pois noera uma figura sinistra porque fosse movido por algum impulso perverso ou porque fosse portador de uma personalidadecindida por alguma patologia psicolgica. Nem mesmo havia sinais de fanatismo ou de convices ideolgicas slidas.Era, portanto, uma figura sinistra na sua dimenso absolutamente banal: os atos eram monstruosos, mas o responsvelera comum, como todo mundo, nem demonaco, nem monstruoso. a isso que Hannah Arendt se refere quando fala dabanalidade do mal. Um mal que no tem nem profundidade, nem dimenso demonaca. um mal que pode invadir edestruir todo o mundo precisamente porque se propaga como um fungo na superfcie (Apud Lafer, 1988, p. 179). E, se seupoder de destruio to grande, porque est vinculado ao que Hannah Arendt ir definir como incapacidade depensamento, enquanto incapacidade de lidar, vivenciar e enfrentar os fatos e acontecimentos do mundo, encontrandonessa experincia os princpios de disceroimento de que depende o julgamento1.

    essa incapacidade que parece ter tomado conta da sociedade alem da poca. Uma sociedade que acreditaraem Hitler e na propaganda nazista e que estava convencida de serem os judeus inimigos que deverism ser eliminados paraque a Alemanha pudesse realizar seu destino enquanto nao. Portanto, alm da questo do discernimento entre o bem eo mal, havia tambm a questo da capacidade de discernimento entre a verdade e a mentira. O problema, diz HannahArendt, no tanto que algum ou um grupo de pessoas possa se empenhar na mentira organizada. O problema quandoas pessoas passam a acreditar na mentira. E isso grave porque sinal de um processo de destruio do sentido pelo qualnos orientamos no mundo leal (1979, p. 318).

    Ao longo de sua argumentao, a autora desenha o retrato de uma poca em que todos os valores foramsubvertidos. E a idia de uma ruptura com a tradio um dos fios articuladores de seu pensamento. nesse retrato quese explicita o significado da fragilidade dos negcios humanos num mundo em que as coisas podem se transformar emqualquer outra coisa e em que as fronteiras que separam a civilizao da barbrie mostram-se frgeis, incertas e semgarantias. A questo que Hannah Arendt prope a de saber em que, num mundo inteitamente secularizado e desencantado,como diria Weber, pode se apoiar essa capacidade de discernimento sem a qual no poderia existir uma vida civilizada. Se verdade que a questo surge de forma radical nos anos da guerra, em que a corrente subterrnea da histria ocidentalchegou finalmente superfcie e usurpou a dignidade de nossa tradio (1974a, p. 11), , a rigor, constitutiva de nossaprpria modernidade. E precisamente isto que coloca a exigncia de se pensar os dilemas da convivncia humana apartir de seus prprios termos. Essa uma perspectiva possvel para a leitura de seu pensamento.

    Apesar da clareza de sua exposio e do modo sistemtico como constri suas categorias, as questes que domovimento ao pensamento de Hannah Arendt nem sempre aparecem de modo evidente. E isso, talvez, seja responsvelpor uma certa dificuldade que sua reflexo apresenta. A comear pelo lugar que nela ocupa a referncia experinciagrega, questo que tem levado seus crticos a acusar, em seu pensamento, uma utopia poltica que no se sustentapoliticamente, teoricamente, filosoficamente. Mas , a meu ver, pela sua inteno de pensamento que sua obra se esclarece.E se esclarece na sua dimenso propriamente poltica. Neste caso tem razo Lefort, pata quem, em sua grande parte, aobra de Hannah Arendt est ligada sua experincia e sua interpretao do fenmeno totalitrio. Dessa forma, a plisgrega, to discutida por ela, teria que ser vista no como a nostalgia de um modelo de vida em sociedade que o mundomoderno eliminou, mas como referncia a partir da qual sua concepo de poltica se determina, enquanto esforo, comodiz Lefort, por inverter a imagem do totalitarismo (Lefort, 1986, p. 61-62).

    A referncia aqui expertincia do totalitartismo no um rtecurso exterior ao movimento de seu pensamento. ela mesma quem enfatiza a relao entrte pensamento e experincia: o pensamento nasce da experincia e devepermanecer a ela ligada como o crculo ao seu centro. E isto significa enfrentar-se com so acontecimentos que irrompem no presente, sem procurar uma verdade fora dos significados que se armam no tempo de seu prprio aparecimentoe, sobretudo, sem dissolv-lo num princpio de causalidade ou determinao que anularia o impacto de sua novidade(1980, p. 75). O pensamento depende sobretudo da compreenso, esta capacidade especificamente humana de se reconciliarcom o mundo, encontrando um sentido para aquilo que acontece, sem que isto queira dizer sua aceitao passiva, nemtampouco uma tentativa de domesticao do acontecimento, reduzindo-o ao j familiar e desde sempre conhecido. Aocontrrio, compreender um acontecimento equivale a examinar e suportar conscientemente a carga que nosso sculocolocou sobre ns e no negar sua existncia, nem se submeter mansamente a seu peso. A compreenso, em suma, significaum atento e no premeditado enfrentamento com a realidade... (1974a, p. 10). Da Lefort pode dizer que ningummelhor descobriu no desconhecido, no inesperado, naquilo que faz irrupo em nossas crenas, no universo que partilhamoscom nossos prximos, o lugar mesmo do nascimento do pensamento..., sendo toda sua atitude orientada no sentido defazer face ao desconhecido.

    Por isso, difcil entender os conceitos que nos apresenta sem elucidar as questes que esto inscritas em suaformulao. Dessa forma, me parece plausvel tentar uma aproximao de seu pensamento a partir de trs registros que,a meu ver, nucleiam sua interpretao do fenmeno totalitrio. Trs registros que, na verdade, equivalem a trs dimensesimplicadas na experincia da sociedade moderna e por onde Hannah Arendt tematiza questes especficas, que se articulam

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    em torno de uma noo de espao pblico enquanto espao significativo no qual a ao e o discurso de cada um podemganhar sentido na construo de um mundo comum.

    A histria do mundo moderno diz ela, poderia ser descrita como a histria da dissoluo do espao pblico,por onde se expressava um sentido cidado de participao e atravs do qual os homens podiam se reconhecercompartilhando de um destino comum. Nesta formulao, ela est, claramente, tematizando a sociedade moderna essasociedade que foi capaz de engendrar o fenmeno totalitrio , construindo as figuras de uma sociedade despolitizada,marcada pela indiferena em relao s questes pblicas, pelo individualismo e atomizao, pela competio e por umainstrumentalizao de tudo o que diz respeito ao mundo, de tal forma que nele nada permanece como valor, como limitepara uma ao que transforma tudo em meros fins para seus objetivos. No se trata, no entanto, de postular uma continuidadenecessria e inelutvel entre o advento do mundo moderno e a aventura totalitria. As questes todas as questes precisam ser qualificadas e diferenciadas, o que significa dizer, repensadas a partir de seus prprios termos, tentandoatravs delas elucidar as experincias vinculadas aos acontecimentos de nosso tempo.

    Antes de mais nada, a dissoluo desse espao pblico significa a perda de um mundo comum que articulaos homens numa trama visvel feita por fatos e eventostangveis no seu acontecimento e que se materializa na comunicao intersubjetiva, atravs da qual as opinies se formame os julgamentos se constituem. Nesse caso, a dissoluo do espao pblico significa mais do que a perda de um espaocomum entre os homens. Pois essa perda significa tambm a dissoluo do senso comum, comprometendo esta capacidadede discernimento que a compreenso e o julgamento exigem, enquanto maneira especificamente humana de se fazer aexperincia da realidade. A figura histrica que sintetiza essa perda, explicitando ao mesmo tempo seu sentido poltico,so as massas que acreditaram e se deixaram mobilizar pela propaganda totalitria. Seu exemplo extremo e pattico a figura de Eichman que, expressando-se o tempo todo por clichs, esteretipos, tautologias e frases feitas, revelava umaincapacidade de pensamento que equivale a essa incapacidade de experienciar o mundo, como realidade e valor. Umsegundo registro se d na esfera da experincia social e diz respeito ao isolamento, enquanto forma de existncia radicalmenteprivatizada. Neste caso, a perda do espao pblico significa a privao de um mundo compartilhado de significaes apartir do qual a ao e a palavra de cada um podem ser reconhecidas como algo dotado de sentido e eficcia na construode uma histria comum. Suas figuras histricas so, primeiro, os judeus, enquanto prias da sociedade, e, depois, almdeles, todos os que viveram o jugo do anel de ferro que os regimes totalitrios construram em torno de suas vidas.Finalmente, a perda do espaco pblico significa, agora num registro explicitamente poltico, a perda de um espaoreconhecido de ao e opinio, o que significa dizer, a perda da liberdade que exige, para sua efetivao, um espaopoliticamente organizado. Suas figuras histricas so os aptridas e todos os que perderam, nos anos da guerra e do ps-guerra, os direitos de cidadania.

    a partir desses trs registros que uma noo de espao pblico se determina. Em primeiro lugar, o espaopblico o espao do aparecimento e da visibilidade tudo o que vem a pblico pode ser visto e ouvido por todos e, se isso importa, porque essa visibilidade pblica que constri a realidade. Nas palavras de Hannah Arendt,

    ... a aparncia aquilo que visto e ouvido pelos outros e por ns mesmos constitui a realidade. Emcomparao com a realidade que decorre do fato de que algo visto e escutado, at mesmo as maiores forasda vida ntima ... vivem uma espcie de vida incerta e obscura, a no ser que, e at que, sejam transformadas,desprivatizadas e desindividualizadas, por assim dizer, de modo a tornar-se adequadas apario pblica(1981a, p. 59-60).A realidade da esfera pblica conta com a presena simultnea de inmeros aspectos e perspectivas nosquais o mundo comum se apresenta e para os quais nenhuma medida ou denominador comum pode jamaisser inventado ... Ser visto e ouvido por outros importante pelo fato de que todos vem e ouvem dengulos diferentes. este o significado da vida pblica, em comparao com a qual at mesmo a mais fecundae satisfatria vida familiar pode oferecer somente o prolongamento ou a multiplicao de cada indivduo,com seus respectivos aspectos e perspectivas. A subjetividade da privacidade pode prolongar-se e multiplicar-se na famlia; pode at mesmo tornar-se to forte que o seu peso sentido na esfera pblica; mas esse mundofamiliar jamais pode substituir a realidade resultante da soma total de aspectos apresentados por um objeto auma multido de espectadores (1981a, p. 67).Essa realidade, construda na forma de seu aparecimento, o que constitui um mundo comum que articula os

    indivduos em torno daquilo que para eles se configura como interesses comuns. Esse mundo comum, portanto, no serefere a uma esfere cultural dada ou ao mundo da vida definido pela fenomenologia. Tampouco um sistema de instituies,valores, regras e normas que a sociologia tradicional chama de realidade objetiva, qual o indivduo se integra pelas viasda socializao. Esse mundo comum uma construo um artefato humano, diz Hannah Arendt que dependedessa forma especfica de sociabilidade que s o espao pblico pode instituir. Forma de sociabilidade que regida pelapluralidade humana, essa mesma pluralidade da qual depende a existncia da prpria realidade. Como diz HannahArendt, a realidade do mundo s pode se manifestar de maneira real e fidedigna quando as coisas podem ser vistas pormuitas pessoas, numa variedade de aspectos, sem mudar de identidade, de sorte que os que esto sua volta sabem quevem a mesma coisa, na mais completa diversidade. Portanto, no existe uma verdade fora daquilo que aparece enquantovisibilidade e aparncia: ser e aparecer coincidem, diz ela, e isto significa reconhecer que nada do que existe, na medidaem que esta coisa aparece, pode existir no singular (1981b, p. 34). Da a recusa de uma verdade transcendente e datambm a sua crtica s verdades racionais da cincia, que sempre busca a unidade oculta por trs do espetculo dadiversidade pela qual a realidade se apresenta aos homens.

    Na perspectiva daqueles que fazem a experincia da sociedade, a pluralidade dos pontos de vista queconfere certeza ao que existe, sem que essa certeza se desdobre numa identidade que anularia as diferenas sob o signo de

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    uma nica opinio. Essa pluralidade, portanto, faz apelo ao senso comum. Enquanto condio da comunicao intersubjetiva,constri as referncias e as evidncias a partir das quais as experincias pessoais e subjetivas podem ser confirmadas nasua validade, retirando-as dessa vida incerta e obscura que o encapsulamento numa vida exclusivamente privada acarreta:

    O nico atributo do mundo que nos permite avaliar sua realidade o fato de ser comum a todos ns; se osenso comum tem posio to alta na hierarquia das qualidades polticas, que o nico fator que ajusta lealidade global os nossos cinco sentidos estritamente individuais e os dados rigorosamente particulares queeles registram. Graas ao senso comum, possvel saber que as outras percepes sensoriais mostram arealidade e no so meras irritaes de nossos nervos, nem sensaes de reao de nosso corpo. Em qualquercomunidade, portanto, o declnio perceptvel do senso comum e o visvel recrudescimento da superstio eda credulidade constituem sinais inconfundveis de alienao em relao ao mundo (1981a, p. 211)., portanto, apenas na experincia da pluralidade, que exige um espao para que possa emergir, que o mundo

    pode se constituir como medida que transcende a vida pessoal de cada um. E isso que exige o que para Kant definidocomo capacidade de julgamento e que, na interpretao de Hannah Arendt, constitui uma faculdade especificamentepoltica, pois, na medida em que implica a capacidade de ver as coisas no apenas do prprio ponto de vista, permite aoshomens se orientar no domnio pblico. Ao mesmo tempo, o que exige essa forma peculiar de comunicao humana que a opinio, que tem um critrio de validade heterogneo s chamadas verdades da razo, pois depende da persuassoe dissuaso, vale dizer, de um acordo e consentimento pblico, para ser reconhecida na sua verdade. Como diz ela, averdade, desde que enunciada, imediatamente transformada em uma opinio entre outras, contestada, reformulada,reduzida a no ser mais que um objeto de conversao entre outros (1974b, p. 37). E nessa interao comunicativa entreos homens que um mundo plenamente humano pode se constituir:

    O dilogo (diferentemente das conversaes ntimas nas quais almas individuais falam de si mesmas) ... sepreocupa com o mundo comum que permanece inumano num sentido muito literal, enquanto os homens nofazem dele um objeto permanente de debate. Pois o mundo no humano por ter sido feito pelos homens e eleno se torna humano porque a voz humana a ressoa, mas somente quando se torna objeto de dilogo. Pormais intensamente que as coisas no mundo nos afetem, por mais profundamente que elas possam nos emocionare nos estimular, elas s se tornam humanas para ns quando podemos debat-las com nossos semelhantes(1974b, p. 34-35).Enfim, se o espao pblico constri um mundo comum entre os homens, este mundo tem que ser pensado no

    apenas como aquilo que comum, mas como aquilo que comunicvel e que, portanto, se diferencia das experinciasestritamente subjetivas e pessoais que podem ter validade na dimenso privada da vida social, mas que no so adequadaspara ingressar em praa pblica e perdem toda validade no domniopblico (1981a, p. 275). No se trata, no entanto, de uma comunicabilidade geral e genrica. isso que nos sugere HannahArendt quando diz que a esfera pblica s tolera o que tido como relevante, digno de ser visto ou ouvido, de sorte queo irrelevante torna-se automaticamente assunto privado, o que no quer dizer que no seja importante, indicando tosomente formas distintas de existncia social (1981a, p. 60). Portanto, a esfera do comunicvel traz em si inscrito umprincpio de discriminao, enquanto critrio de relevncia, importncia e pertinncia. Princpio que constri as fronteirasde um pblico universal, locus de todas as opinies possveis e que constitudo por aqueles que so capazes dejulgamento.

    Trama intersubjetiva ancorada no senso comum, a construo do mundo comum tem, portanto, uma dimensocognitiva e valorativa, inscrita nos critrios atravs dos quais se torna possvel discernir o relevante do irrelevante, olegtimo do ilegtimo, o justo do injusto, assim como a verdade da mentira, o fato da fico. Enquanto critrios dediscernimento, so referncias a partir dos quais os homens podem se orientar num mundo caracterizado pela pluralidadedos agentes, pela contingncia dos acontecimentos e pela imprevisibilidade dos efeitos da ao que cada qual realiza. E isso que se esvai medida que o espao pblico se dissolve. A perda do espao pblico significar a perda dessa relaoobjetiva com os outros homens e, com isso, a perda mesma de uma noo de realidade.

    E isso tem conseqncias. Com a perda do senso comum, atravs do qual os homens podem fazer umaexperincia significativa com a realidade, a prpria capacidade de pensamento que se v comprometida. Sem a refernciaa uma realidade que se pe como evidncia e critrio de objetividade, o pensamento tender a se reduzir a uma operaolgica, em que cada coisa pode ser deduzida da outra a partir de alguma premissa que pode se prevalecer de umafiabilidade independente do mundo e do outro (1980, p. 74). Sendo uma forma de pensamento que prescinde de todaexperincia, desdobra-se em trusmos e tautologias que encontram plausibilidade apenas na lgica em que as idias searticulam. E isso grave, pelos riscos polticos que contm, pois nesse nvel as diferenas reais no so mais levadas emconta, nem mesmo a diferena qualitativa entre as essncias divinas e humanas (Ibid, p. 75). nisso que se aloja abanalidade do mal.

    Por outro lado, perante uma experincia que se torna incerta porque privada dessa confirmao que apenas apluralidade pode garantir, os homens, dir Hannah Arendt, s podero fiar-se na sua prpria subjetividade, sempreinstvel e traioeira, e tendero a fazer de seus interesses e sentimentos privados a medida de todas as coisas. Aqui, preciso deixar claro que a vida privada, para Hannah Arendt no tem necessariamente um sentido negativo. Equivale a terum lugar no mundo, lugar tangvel possudo na terra por uma pessoa e no qual cada um pode se proteger contra a luzda publicidade. Sua discusso no travada no sentido de desqualificar a vida privada, mas deestabelecer o seu lugar e definir as fronteiras entre duas formas distintas de existncia social e que se poderia interpretarcomo duas formas diferentes de se fazer a experincia da sociedade. So essas fronteiras que se diluram no mundomoderno. E isso significa a perda dos critrios de diferenciao entre aquilo que tem como medida a vida de cada um eaquilo que tem o mundo como medida. Nesse caso, os homens tendero a tomar sua prpria subjetividade como rofernciaexclusiva de verdade e julgamento. Nessa discusso, o ponto em questo para Hannah Arendt e por onde se esclarece seu

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    pensamento, a identificao dos riscos polticos envolvidos na experincia moderna do mundo.De um lado, a perda do mundo comum constri a figura do indivduo desinteressado e desprovido de

    responsabilidade perante o mundo. Para esse indivduo, o outro pouco importa e pouco conta, sua existncia ou noexistncia no faz a menor diferena. Equivale a experincia de indivduos que se tornaram suprfluos no mundo. E foiisso justamente que foi levado ao nvel do paroxismo pelo terror totalitrio. Por outro lado, nesse retraimento para asubjetividade, Hannah Arendt localiza o perigo de uma projeo na esfera pblica de critrios que s podem ter validadena experincia privada. Nesse caso, o risco o de comprometimento do juzo pblico, pois a prpria veracidade eobjetividade dos fatos e da realidade que se encontra comprometida, por conta de uma subjetivao que dissolve a diferenaentre o pblico e o privado, na medida mesmo em que a sociedade passa a existir apenas em suas manifestaes interiores2.E mais: por se tratar da projeo de critrios de validade que no fazem referncia a uma esfera compartilhada de valorese significaes, os homens tendero, para imp-los no mundo, a fazer uso da violncia. Isto ocorre quando necessidades,interesses e vivncias privadas so pensadas como um absoluto que, tal como o antigo princpio da verdade revelada,aparece como fonte exclusiva e soberana de todo poder, de toda autoridade e de todo saber. Nesse caso, transformam-seem virtude e qualificao poltica que reivindicam um direito a se impor na sociedade, direito que no faz referncia a umaesfera pblica de pertencimento, mas a um princpio auto-evidente de legitimidade. Esta a lgica da violncia que, nainterpretao de Hannah Arendt, destri a esfera da interao humana3.

    Se a perda do espao pblico significa a dissoluo do senso comum, tem tambm conseqncias radicais doponto de vista da experincia que as pessoas fazem da vida em sociedade. Isolamento o termo que explicita essa perda deum espao que articula os homens num mundo compartilhado de significados. Reduzidos dimenso privada da vidasocial, esta agora se qualifica rigorosamente como privao. Os homens tornam-se seres inteiramente privados do ser vistoe ouvido. Tornam-se, por isso mesmo, prisioneiros da subjetividade de sua prpria existncia singular, fragmentada esem significaco para o mundo dos homens. Com a perda da esfera pblica,

    os homens tornam-se seres inteiramente privados, isto , privados de ver e ouvir os outros e privados de servistos e ouvidos por eles. So todos prisioneiros da subjetividade de sua prpria existncia singular, quecontinua a ser singular ainda que a mesma experincia seja multiplicada inmeras vezes. O mundo comumacaba quando visto somente sob um aspecto e s lhe permite uma perspectiva (...)A privao da privatividade reside na ausncia dos outros; para estes, o homem privado no se d a conhecere, portanto, como se ele no existisse. O que quer que ele faa permanece sem importncia ou conseqnciapara os outros e o que tem importncia para ele desprovido de interesse para os outros (1981a, p. 67-68).Nessa formulao, o que se esclarece uma segunda determinao da noo de espao pblico que Hannah

    Arendt nos apresenta. Enquanto lugar da visibilidade e do aparecimento, o espao no qual a singularidade de cada um reconhecvel, pode ser reconhecida o mundo aquilo que surge entre os homens, onde o que cada um traz pornascimento pode se tornar audvel e visvel (1981b, p. 19). Mas trata-se aqui de uma singularidade que no a meraprojeo das diferenas particulares que existem na esfera privada, pessoal e subjetiva Trata-se de uma singularidadeconstruda atravs da ao e do discurso atravs da ao e da palavra, diz Hannah Arendt, que os homens se deixamver e reconhecer na sua individualidade. Aqui se chega, em termos conceituais, ao ncleo mesmo da noo de espaopblico de Hannah Arendt. Pois, para ela, o que definidor do espao pblico o fato de ser um espao que s pode serconstrudo pela ao e pelo discurso. Ao e discurso que esto vinculados pluralidade humanase no fossem diferentes,se cada ser humano no diferisse de todos os que existiram, existem ou viro a existir, os homens no precisariam dodiscurso e da ao para se fazerem entender, bastando simples sinais e sons para comunicar suas necessidades imediatase idnticas (1981a, p. 188).

    pela ao que cada homem confirma sua singularidade, pois na sua capacidade de realizar o infinitamenteimprovvel, a ao significa, antes de tudo, dar incio a um novo comeo. Mas a ao exige um espao de aparecimentopara que se torne tangvel na sua capacidade de produzir fatos e eventos. Precisa, portanto, do testemunho dos outrospara que ganhe significado na construo de um mundo plenamente humano o espao pblico o lugar que preservaa aco do esquecimento, diz ela. E por isso que a ao exige a palavra para que sua obra se complete no mundo.Enquanto forma de comunicao, a palavra se determina como discurso atravs do qual eventos, fatos e acontecimentospodem ser registrados, narrados, transmitidos e, por essa via, transformados em uma histria comum todas as coisasno comunicadas e incomunicveis, que no foram nunca confiadas a ningum, deixam de existir, pois no h para elasum lugar permanente na lealidade (1986, p. 105). Sem essa espcie de acabamento que a palavra realiza, e sem a articulaorealizada pela memria, simplesmente no existiria nenhuma histria a ser contada. esse acabamento dado pela palavraque funda uma tradio que no , portanto, simplesmente a continuidade do passado no presente, mas a criao sempre instvel na medida mesma em que depende da contingncia da convivncia humana dos signos, registros,sinais, atravs dos quais uma sociedade pode se reconhecer na sua identidade e na legitimidade de sua existncia4. Por ase poderia entender a importncia que Hannah Arendt confere narrao que, para ela, est vinculada memria. Anarrao significa uma espcie de reificao atravs da qual os acontecimentos ganham significado e, por essa via, oestatuto de uma coisa entre as coisas do mundo existente (1974b, p. 31). Por outro lado, essa reificao por que passatudo o que pode ser contado, narrado, transmitido, equivale construo de uma noo de permanncia e durabilidadedo mundo, aquilo que transcende a vida individual de cada um e o tempo de existncia de uma gerao. Constituipropriamente falando as fronteiras e os limites alm dos quais a ao, na sua capacidade de realizao, no pode prosseguirsem ameaar a integridade desse artefato humano que ela chama de mundo comum.

    isso que nos permite qualificar os riscos que Hannah Arendt identifica no mundo moderno, palco deexperincias ameaadas de ficarem mudas, na ausn

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    cia de referncias e parmetros atravs dos quais possam ser elaboradas como experincias significativas. Em outrostermos, a dissoluo do espao pblico significa a impossibilidade de uma tradio ser criada ou refundada. E, se isso grave, porque sem uma tradio, o pensamento fica sem balizas para pensar o prprio acontecimento que, como diz ela,sem esse acabamento dado pela palavra e pela memria, se fragmenta e se volatiliza num tempo contnuo, homogneo,sem significao propriamente humana. Mas, com isso, o prprio mundo dos homens que dissolvido nessa dimensode permanncia e durabilidade de que os homens necessitam por serem mortais. Mundo que transfigurado em cenrioplenamente objetivado de uma ao que, sem a referncia ao outro e sem o artefato humano como medida e valor, spode ser regida pela lgica da racionalidade instrumental. Do ponto de vista desta, no existem fronteiras ou limites. Otudo possvel implicado na prtica e na ideologia totalitria, de alguma forma, encontra a seus fundamentos.

    Enquanto lugar em que a ao se torna reconhecvel na sua capacidade de iniciar um novo comeo e enquantolugar que preserva a ao do esquecimento e que funda uma tradio, que o espaco pblico deixa revelar sua dimensopropriamente poltica. Dimenso poltica que, para Hannah Arendt, est vinculada idia de uma potencialidade intrnseca ao e ao discurso potencialidade que existe pelo fato de os homens agirem em conjunto. isso o que ela chama depoder e que depende do acordo frgil e temporrio de muitas vontades e intenes (1981a, p. 212). Nesse caso, o espaopblico o espao de efetivao desse poder e, por isso mesmo, s pode existir enquanto potencialidade, pois depende daao e do discurso para sobreviver e existir:

    Sem a ao para pr em movimento no mundo o novo comeo de que cada homem capaz por havernascido, no h nada que seja novo debaixo do sol; sem o discurso para materializar e celebrar, ainda queprovisoriamente, as coisas novas que surgem e resplandecem, no h memria; sem a permanncia duradourado artifcio humano, no haver recordao das coisas que tm de suceder depois de ns e sem o poder, oespao da aparncia produzido pela ao e pelo discurso desapareder to rapidamente quanto o ato e apalavra viva (1981a~ p. 216).Se a virtualidade prpria da ao o estabelecimento de relaes entre os homens, o poder que por essa via se

    constitui no pode, portanto, prescindir da palavra e do dilogo entre homens que buscam se por de acordo em torno dasquestes e decises que dizem respeito a todos. Para sermos mais rigorosos, h uma isomorfia entre a palavra e o poder.Na sua realizao enquanto dilogo, ela que revela as questes pblicas ao olhos de todos. Como enfatiza Enegren, alinguagem constitui o essencial da interao poltica, no apenas por ser discurso e comunicao eficaz, mas sobretudoporqueapenas o logos capaz de trazer luz, ao mesmo tempo, o mundo e o ator para o qual a palavra significa tambmassumir uma identidade (Enegren, 1984, p. 58). Por isso mesmo, na interpretao de Hannah Arendt, o poder no exterior ao e ao discurso. Surge da associao entre os homens e da troca de opinies. sobretudo e antes de mais nadauma forma de interao que instaura suas prprias leis. E sua expresso a interlocuo. Neste registro, o espao pblicose qualifica como espao da deliberao conjunta, atravs da qual os homens, na medida em que capazes de ao eopinio, tornam-se interessados e responsveis pelas questes que dizem respeito a um destino comum5.

    Da a dimenso poltica inscrita na experincia da privatizao a que se fez referncia anteriormente. A perdade um mundo compartilhado de significaes, no qual a ao e a palavra de cada um podem aparecer como algo queimporta para a conduo dos negcios humanos, acompanhada pela experincia da impotncia. Traduz especificamentea perda de um espao no qual a ao e a palavra podem se manifestar enquanto poder. Impotncia que ainda acompanhadada incapacidade de elaborao de uma histria comum. E ser nesse duplo registro que a privatizao se desdobrarnuma forma de existncia que parece inteiramente submetida aos automatismos da vida cotidiana. E que, portanto, spode ser vivida sob o signo do destino e da fatalidade. Nesse caso, a experincia da impotncia equivale pesda daprpria noo de liberdade.

    Na interpretao de Hannah Arendt, liberdade um atributo definidor da ao, enquanto capacidade deinterromper os automatismos dos processos vitais. Por isso, a liberdade se contrape necessidade e esta diferenaque se dissolveu na experincia moderna do mundo j no se percebe a diferena objetiva e tangvel entre ser livre e serforado pela necessidade (1981a, p. 80). Da mesma forma, perde-se a noo da diferena entre a tirania poltica e aliberdade pblica, pois do ponto de vista da segurana privada, dos assuntos domsticos e da estabilidade da vida familiar,essa diferena deixa de ser importante. Por isso tambm, a liberdade no se confunde com o que se convencionou chamarde liberdade interior que no tem manifestaes exteriores,

    que nada tem a ver com a ao e que , por isso mesmo, antipoltica. essa dimenso poltica da liberdadeque se perdeu no mundo moderno. Nesse caso, a identificao da liberdade com a interioridade evidncia de umestranhamento do mundo e de um retraimento das experincias mundanas para um espao ntimo ao qual ningum temacesso.

    O campo em que a liberdade sempre foi conhecida, diz Hannah Arendt, no como problema, mas comofato da vida cotidiana, o mbito da poltica (1979, p. 192). A liberdade, portanto, expressa a dimenso propriamentepoltica da ao. Por isso, ela exige um espao politicamente organizado para aparecer como algo tangvel em palavrasque podemos escutar, em feitos que podem ser vistos e em eventos que podem ser comentados, relembrados e transformadosem estrias antes de serem incorporados, por fim, ao grande livro da histria humana (1979, p. 201). Em outras palavras,a liberdade s pode se efetivar quando se manifesta na sua visibilidade, como uma realidade concreta e tangvel. E issodepende da ao (e do discurso) criar seu prprio espao concreto onde possa, por assim dizer, sair de seu esconderijo efazer sua apario. Sem esse espao, a liberdade permanece como capacidade oculta, como uma virtualidade, que apenasatesta a qualidade especificamente humana de interromper os processos automticos da vida.

    Onde os homens convivem, mas no constituem um organismo poltico ... o fator que rege suas aes e sua

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    conduta no a liberdade, mas as necessidades da vida e a preocupao com sua preservao. Alm disso, sempre que omundo artificial no se torna palco para a ao e o discurso ... a liberdade no possui realidade concreta. Sem um mbitopblico politicamente assegurado, falta liberdade o espao concreto onde aparecer ... A liberdade como fato demonstrvele a poltica coincidem e esto relacionadas uma outra como dois lados da mesma matria {1974, p. 194-195).

    aqui, portanto, que se tem um terceiro registro, no qual a noo de espao pblico se determina enquantocomunidade politicamente organizada. Enquanto tal, faz referncia a uma interao poltica mediada pela lei. Noentanto, Hannah Arendt ir revelar uma noo muito particular acerca do marco legal. A lei, para ela, no tem o sentidode prescrio ou mandamento. Tampouco pensada como regulamentao pblica de interesses privados. As leisexistem, diz ela, para erigir fronteiras e estabelecer canais de comunicao entre os homens. E essas fronteiras sopara a existncia poltica do homem o que a memria para a existncia histrica: garantem a preexistncia de ummundo comum, a realidade de uma continuidade que transcende o espao da vida individual de cada gerao ...(1974a, p. 565). A lei, portanto, no se confunde com o poder, pois este s existe na associao entre os homens atravsda ao e da opinio.

    Tampouco sede da autoridade que, na interpretao de Hannah Arendt, diz respeito a um princpio de legitimidadeancorado numa tradio rememorada e reatualizada a cada momento enquanto ncleo de significao. Enquanto fronteiraspara a ao, so as leis que delimitam o espao no qual a interao poltica se d e pode se realizar. A lei, o marco legal, seconfigura portanto como referncias ponto de ancoragem a partir do qual cada um pode reconhecer o outro na legitimidadede sua ao e de sua opinio. E isso significa, rigorosamente, reconhecer o outro como seu semelhante, sem que para issose tenha que apelar para uma noo genrica de ser humano ou a alguma noo crist de humanidade. E isso queconstri, para Hannah Arendt, as condies da igualdade, entendida enquanto isonomia, e que se qualifica no direitocomum ao e opinio, o que significa dizer, no reconhecimento do direito de cada um e de todos participao na vidapblica.

    Da a peculiar noo de direitos que Hannah Arendt elabora. No diz respeito s necessidades, interesses oudemandas individuais. Faz referncia, antes de tudo, a uma forma de sociabilidade poltica e, nesse caso, o direito s podeexistir no exerccio efetivo de direitos. Exerccio que estabelece relaes e que constri, ao mesmo tempo em que supe,princpios compartilhados de legitimidade6. Portanto, para Hannah Arendt, a questo dos direitos no se qualifica porreferncia ao Estado. Qualifica-se, sobretudo, enquanto forma de sociedade e, mais ainda, enquanto modo especfico de sefazer a experincia da vida em sociedade. essa dimenso que se explicitou com o surgimento dos aptridas. O que ficavapatente, diz ela, com a situao inslita vivida por eles, era a inviabilidade da existncia de direitos individuaisindependentemente de um corpo poltico constitudo, entendido este enquanto espao de existncia cidad7. O problema,diz Hannah Arendt, no estava na garantia do trabalho, da residncia ou mesmo da vida, pois tudo isso poderia serresolvido fora dos marcos legais por conta da caridade de uns, da solidariedade de outros ou mesmo da condescendnciadas instituies. O problema ter acesso s condies de lutar por tudo isso, escapando, portanto, da contingncia decircunstncias sobre as quais no se pode ter o controle. O problema, tampouco, diz respeito liberdade de pensamento,pois sem um espao que tornesignificativas as opinies de cada um, essa liberdade equivalente liberdade do louco, porque nada do que pense podeimportar a algum. No caso dos aptridas,

    a privao fundamental dos direitos humanos se manifesta primeiro e sobretudo na privao de um lugar nomundo que torne significativas as opinies e efetivas as aes (...). Tornam-se privados, no do direito liberdade, mas do direito ao; no do direito a pensar o que queiram, mas do direito opinio. O privilgioem alguns casos, as injustias na maioria deles, os acontecimentos favorveis e desfavorveis, lhes sobrevmcomo acidentes sem nenhuma relao com o que faam, fizeram ou possam fazer (1974a, p. 375).Ter direitos significa, portanto, no dizer de Hannah Arendt, pertencer a uma comunidade poltica na qual as

    aes e opinies de cada um encontram lugar na conduo dos negcios humanos. isso o que ela quer dizer quandoafirma a exigncia de um espao no qual cada um pode ser julgado por suas aes e opinies, e no pelo que so, enquantoclasse, origem ou raa. Ter direitos a ter direitos a expresso que sintetiza a questo proposta por Hannah Arendt.

    Para ela, a perda do espaco pblico significa a perda dessa condio de igualdade que apenas a liberdadepblica pode construir. Excludos ou privados desse espao, os homens ficam fixados nas suas diferenas, enquantoforma de existncia outorgada pela natureza. E o risco, nisso, est na converso dessa diferena em critrio poltico enorma legal. nessa converso que so construdas as figuras do estrangeiro ou brbaro que, por sua diferenaradical, excludo da vida civilizada e que, por ameaar a plis, deve ser mantido distncia e, no limite, eliminado. isso o que acontece quando a esfera pblica dissolvida ou ento invadida pelos critrios que regem a esfera privada.Nesse caso, as pessoas sero vistas e julgadas no por suas aes e opinies, mas pelo que so, em funo dos azares davida, tal como atributos definidores de seu lugar no mundo. o que ocorreu com os judeus nas sociedades europias.Ou ento com os negros, na Amrica. Em grande parte, o que aconteceu com aqueles que, perdendo seu acesso cidadania, perderam todas as qualidades polticas distintivas e se converteram em seres humanos e nada mais queseres humanos:

    o ser humano que perdeu seu lugar em uma comunidade, seu status poltico na luta de sua poca e apersonalidade legal que faz de suas aes e de parte de seu destino um conjunto consistente, fica abandonadocom aquelas qualidades que normalmente s podem destacar-se na esfera da vida privada e que devempermanecer indiferenciadas, simplesmente existentes, em todas as questes de carter pblico... Toda essaesfera do simplesmente outorgado, relegada vida privada

    na sociedade civilizada, constitui uma ameaa permanente para a esfera pblica, porque a esfera pblica est

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    to conseqentemente baseada na lei da igualdade, como a esfera privada est baseada na lei da diferena eda diferenciao universais. A igualdade, ao contrrio de tudo o que est implicado na simples existncia,no nos outorgada, mas o resultado da organizao humana, na medida em que resulta guiada peloprincpio da justia. No nascemos iguais, nos tornamos iguais, como membros de um grupo, por fora denossa deciso de nos concedermos mutuamente direitos iguais (1974a, p. 380).O paradoxo implicado na perda dos direitos humanos que semelhante perda coincide com o instante emque uma pessoa se converte em ser humano em geral sem uma profisso, sem uma nacionalidade, sem umaopinio, sem um fato pelo qual possa identificar-se e diferente em geral, representando sua prpriaindividualidade absolutamente nica que, privada de expresso dentro de um mundo comum, e de aosobre este, perde todo o seu significado (Ibid., p. 381).Igualdade e diferena, eis a um par dicotmico que esclarece o pensamento de Hannah Arendt nos seus

    pressupostos e fundamentos. Tem, para ela, uma dimenso ontolgica e est associado a todas as dicotomias que tantocaracterizam seu pensamento: ao e trabalho, poder e violncia, poltico e econmico, liberdade e necessidade, pluralidadee uniformidade. Todos esses pares encontram sua traduo na diferena entre o pblico e o privado, enquanto lugaresnecessrios de sua manifestao, sendo que, em todos eles, o segundo termo sempre faz referncia s necessidades da vidae aos constrangimentos que esta nos impe. Como enfatiza Enegren, a idia de vida o outro nome, para Arendt, doinexorvel que limita de todas as partes o perimetro do agir, submetendo os homens s foras imperativas da natureza(Enegren, 1984). nesse terreno sombrio que Hannah Arendt aloja o trabalho e o labor que, ao lado da ao,referida sempre ao primeiro plo, constituem o que ela chama de atividades da vida ativa. nisso precisamente que seexplicita uma antropologia pela qual o pensamento de Hannah Arendt deixa revelar uma forma de ontologia. essecertamente o seu limite e que responsvel pela fraqueza de seu argumento quando tenta nos convercer dessa autonomiado poltico que ela reivindica a todo momento e que, para ela, encontra seu paradigma na plis grega.

    Ao, trabalho e labor so, para Hannah Arendt, dimenses transcendentais da condio humana. Dessaforma, o privilgio dado ao no significa negar s duas outras qualquer relevncia e pertinncia. Mas isso supe quecada uma dessas atividades se realize no lugar que lhe prprio no mundo para que possa, cada qual no seu limite e em sua prpriaesfera, convergir na construo do mundo dos homens. O problema, diz ela, que esses lugares se embaralharam, asfronteiras se dissolveram, as hierarquias que deveriam articular seus espaos foram subvertidas e isso, especificamente,que define o problema das sociedades modernas. O moderno primado do trabalho significa que os imperativos danecessidade invadiram a esfera pblica de tal forma, que esta terminou por se desfigurar, transformando-se numa vastaadministrao tcnica e burocrtica que existe apenas em funo da economia. a isso que ela se refere quando discute oque define como ascenso do social, responsvel pela uniformidade e conformismo que caracterizam as sociedades demassa. Trata-se de uma sociedade na qual todos os seus membros consideram tudo o que fazem primordialmente comomodo de garantit a vida. O problema todo que, do ponto de vista das necessidades, os homens no so iguais, masrigorosamente idnticos. E as atividades que em torno delas so realizadas prescindem dessa sociabilidade especificamentepoltica, dada pela ao e pelo discurso. So atividades que apenas relacionam o homem consigo mesmo nessa espcie demetabolismo com a natureza, por onde a sobrevivncia se realiza enquanto consumo (labor) e por conta de umainstrumentalizao de tudo, como meios para se atingir objetivos que tm como medida exclusiva as necessidades de cadaum (trabalho).

    nesse ponto que o pensamento de Hannah Arendt recebe as crticas mais contundentes. Se no terreno dafilosofia se acusa o tributo que paga metafsica clssica ao definir a condio humana por referncia a qualidades essenciaise universais, em torno de sua noo de poltica que as crticas se concentram. Mais especificamente, em torno da noo deuma poltica autonomizada por uma ao e por um discurso desvinculados dos interesses e dos conflitos. Uma ao e umdisicurso que teriam, por definio, uma vocao igualitria que exclui a dominao, a violncia e a desigualdade depoderes. De fato, no pensamento de Hannah Arendt, interesses e luta por interesses, violncia, dominao e subordinao,na medida em que fazem referncia aos imperativos da sobrevivncia que, para ela, so definidores da economia, no tmlugar e nem poderiam ter lugar na construo desse mundo comum que articula os homens e que sinnimo de vidacivilizada. Neste ponto, as crticas so precisas. Ao enfatizar o equvoco de uma interpretao da experincia moderna(mas no apenas moderna) que nega todas as evidncias da inviabilidade de uma tal separao entre o econmico e opoltico, o que se critica, sobretudo, a sua recusa em conferir qualquer dignidade poltica aos interesses que movem oshomens em suas vidas privadas, a sua recusa em reconhecer na plis a existncia do conflito, como uma dimenso que lhe constitutiva e, ainda, a sua recusa em reconhecer notrabalho um potencial de sociabilidade capaz de gerar uma esfera interativa entre os homens8.

    No entanto, se for possvel interpretar Hannab Arendt para alm dela, desvencilhando-se dessa ontologiaque atravessa seu pensamento, no h como no reconhecer que essas dicotomias do o que pensar. Se verdade que aseparao entre economia e poltica no se sustenta, tambm verdade que Hannah Arendt nos ajuda a pensar que h,nessa relao, uma questo a ser elucidada, desde que se recuse a idia de uma trasparncia de uma outra, ou de queuma seria a expresso da outra, caindo, neste caso, na armadilha que ela tanto denuncia de uma funcionalizao de todosos conceitos, de tal forma que as questes neles inscritas se diluiriam e se perderiam de uma vez por todas. Na verdade,Hannah Arendt subverte os termos tais como foram colocados pela teoria poltica clssica, ao afirmar a inviabilidade de seconstituir uma esfera pblica a partir dos interesses privados. Nada mais distante de seu pensamento do que a idia de umpacto social. E nada mais avesso s suas preocupaes tericas e polticas do que a identificao do pblico com o Estado,por referncia ao qual os interesses privados encontrariam os limites e as referncias para o seu agenciamento na esfera da

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    economia. E possvel argumentar que, a rigor, no se trata de uma subverso, mas talvez apenas de uma inverso dostermos clssicos, na medida em que ela se fixa no econmico e no poltico, no privado e no pblico, como instnciaspositivamente definidas e delimitadas. De toda forma, por aquilo mesmo que faz sua originalidade que a questo doeconmico e do poltico poderia ser repensada. Originalidade que diz respeito possibilidade de se pensar a poltica comoalgo que no se define exclusivamente por referncia ao Estado, que se qualifica como forma de socialbilidade e que, porisso mesmo, depende da forma como a sociedade se institui enquanti espao que cria suas prprias normas, suas prpriasregras, seus prprios critrios, a partir dos quais os acontecimentos e os constrangimentos da vida em sociedade podem sefazer visveis e inteligveis para os que dela participam. o que ela sugere quando enfatiza a questo da permanncia em que a palavra, a memria e a tradio se articulam na construo de um mundo plenamente humano nassuas significaes. Na verdade, o termo que parece fazer falta na elaborao de Hannah Arendt o de representao, poronde se poderia pensar a dimenso simblica implicada na construo do mundo comum9. Questo que Hannah Arendtnos sugere na medida mesma em que enfatiza, o tempo todo, o poder da palavra e do discurso, mas que ela parece recusarao se fixar numa noo de ao como algo transparente, que contm em si mesma seu prprio princpio de inteligibilidadequando alcana essa visibilidade, sem mediaes, que ela identifica no espao pblico.

    difcil imaginar uma ao poltica que no esteja vincuhda a interesses. E difcil imaginar uma interaopoltica que no dependa do jogo dos conflitos e oposies que atravessam o espao social. Mas se isso pode aparecercomo algo diferente da simples defesa corporativa de interesses ou, ainda, se pode aparecer como algo diferente de umafragmentao da vida social, depende da articulao de uma linguagem atravs da qual interesses e razes privadaspodem ser, para usar uma expresso de Hannah Arendt, desprivatizadas e reconhecidas publicamente na sua legitimidade.Talvez nisto se possa identificar a eficcia propriamente simblica dos direitos. Lefort, sobretudo, quem enfatiza estadimenso e a leitura de seus textos que nos leva a pensar os direitos enquanto linguagem poltica que articula prticasindividuais e coletivas num espao comum de pertencimento.

    Mais ou menos explicitadas, formalizada ou codificada, na linguagem dos direitos que a defesa de interessesse faz audvel e reconhecvel na dimenso pblica da vida social. E, neste sentido, atravs dela que as diferenas soelaboradas, interpretadas e codificadas. Pois a forma como uma sociedade define aquilo que considerado como direitos,a forma como se assumem, se atribuem ou se negam direitos a uns e outros, traz nela inscrita uma certa noo de justia,o que significa dizer que traz nela inscrito um princpio de discernimento entre o legtimo e o ilegtimo e que sempresolidria, como diz Lefon, com um conjunto de critrios pelos quais se faz a distino entre o certo e o errado, o possvel eo impossvel, a razo e a desrazo, o permitido e o proibido. Categorias muitas vezes implcitas, mas presentes nas formasde percepo, nas crenas, nas convices, nos cdigos de comunicao e tambm nas regras informais que regem asrelaes entre classes, grupos e indivduos (Lefon, 1986, p. 31-58).

    nesse ancoramento dos direitos na dinmica da sociedade que se esclarece a afirmao de Lefort de que oreconhecimento dos direitos no depende da simples concordncia com a legalidade formal constituda. Tampouco dependeda simples sano do Estado. Para que uma demanda de direitos ganhe inscrio jurdica, diz Lefort, no suficiente quetal ou qual reivindicao encontre os ouvidos complacentes do Estado, preciso que ela se beneficie antes... do acordomais ou menos tcito de uma importante frao da opinio pblica, enfim, que ela se inscreva nisso que chamamos deespao pblico. Espao indeterminado que no se cristaliza enquanto ordenamento institucional, na medida em que suaexistncia depende daqueles que nele se reconhecem e lhe do sentido (Ibid, p. 55). Mas, se isso no independe doconflito, este exige um espao no qual possa aparecer como algo reconhecvel e legitimado no seu acontecimento. E desseponto de vista que o espao pblico se determina como espao poltico que tem por efeito instituir uma cena na qual oconflito se apresenta aos olhos de todos (desde que a cidadania no seja mais reservada a um pequeno nmero) comonecessrio, irredutvel e legtimo, de tal forma que todas as divises de fato se transportam e se transfiguram sobre acena em que a diviso apaxece como diviso de direito (Ibid., p. 267). E isto significa reconhecer que esse espao pblico regido por uma dinmica em que o prprio direito sujeito a uma constante reinterpretao, enquanto debate semprereaberto sobre o justo e o injusto, o legtimo e o ilegtimo. Debate sem garantias, enfatiza Lefort, porque nas sociedadesmodernas, sociedades nas quais foi eliminado todo referente que daria garantia prpria lei, ningum pode ocupar olugar do grande juiz, de modo que o debate sobre a justia fica inteiramente na dependncia desse conflito que, ao seapresentar e se fazer representar no espao pblico, implica a abertura da sociedade a um permanente questionamentosobre seus prprios fundamentos.

    Mas isto tambm significa e este um dos aspectos mais instigantes da proposta de Lefort que a existnciaformal de direitos no garante a existncia de um espao pblico e dessa sociabilidade poltica que a prtica regida pelanoo de direitos capaz de criar. Esse espao pblico desmoronaria, diz Lefort, se a posio cada vez mais forte doEstado enquanto garantidor de direitos econmicos, sociais e culturais fizesse reduzir a legitimidade de novos direitos sano do Estado. E se, por outro lado, as opinies tendessem a encontrar um denominador comum, apesar de emanaremde categorias diversas, numa espera dessa sano, tornando-se virtualmente legitimadas na medida em que dispem dafora do nmero. Da Lefort dizer que a existncia de um espao pblico atravessado por essa conscincia do direito ater direitos que lhe constitutiva, que faz toda diferena entre uma forma democrtica de sociedade e os regimes totalitrios:a apreenso democrtica do direito implica a afirmao de uma palavra... que, sem encontrar garantias nas leis estabelecidasou na promessa do monarca,

    faz valer sua autoridade, na espera de uma confirmao pblica, em razo de um apelo conscincia pblica. Da no seressa palavra a mesma coisa que uma demanda dirigida ao Estado. Da tambm a diferena entre a assistncia que o Estadopode garantir em nome dos direitos e aquilo que um Estado totalitrio pode efetivamente realizar a ttulo de proteo ao

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    bem estar de seus cidados. Nesse caso, no se pode falar propriamente de direitos pois o discurso do poder suficiente,ele ignora toda palavra que esteja fora de sua rbita. Dessa forma, esse direito se transforma na outorga de um poder que,sempre arbitrrio, no cessa de fazer a triagem entre aqueles aos quais ele concede os benefcios de suas leis e aqueles queso excludos dela. Enquanto outorga, os direitos criam sditos e no cidados, pois, maquiados em direitos, no somais que fornecimentos que os indivduos recebem, tratados que eles se vem como dependentes e no como cidados(Ibid., p. 50).

    Mas nem por isso se poderia considerar esse espao pblico como algo, por definio, igualitrio. Se verdadeque a garantia formal dos direitos no significa sempre e necessariamente um reconhecimento pblico da legitimidade dasrazes e vontades, interesses e demandas de indivduos ou grupos sociais, tambm preciso reconhecer que os critriospublicamente estabelecidos de reconhecimento e legitimidade contm, em si mesmos, um princpio de discriminao queconstri a figura daqueles que, em funo de sua condio de classe ou de vida, de sexo ou idade, de origem ou de cor, socomo que descredenciados enquanto sujeitos reconhecveis e reconhecidos no espao pblico. Trata-se daqueles que vivemsua condio como diferena que os exclui da dimenso pblica da vida social. Esses, para usar os termos de HannahArendt, so os prias da sociedade e a eles corresponde essa figura de um indivduo privatizado do qual ela nos fala. nessa figura que se pode, talvez, identificar os signos da dominao, questo que est ausente do pensamento de HannahArendt, mas para a qual ela certamente fornece elementos para uma reflexo. Dominao que, no entanto, nunca chega ase objetivar plenamente no espao social, desde que a sociedade se abra a esse questionamento sobre o legtimo e oilegtimo, o justo e o injusto, de forma que o direito a ter direitos possa significar, para muitos, como diz Lefort, umrecuo obedincia cega s normas estabelecidas.

    Disso, certamente, do testemunho os movimentos sociais cuja existncia pblica desenha uma trama visvelque pe em cena, junto com os (ou atravs dos) interesses, razes e vontades que alimentam o conflito, na materialidadedaquilo que reivindicado, uma luta simblica em que se questionam as representaes e imagens institudas referidas condio de classe, de sexo, de idade, de cor, de trabalho, de moradia. Sua aceitao pblica no se faz sem resistncia eambigidades de todos os tipos, mas, seela chega a se impr, no tanto pela fora do nmero ou pela idia convencional de correlao de foras, mas porqueo acontecimento mobiliza em torno dele uma noo de legitimidade e justia que no se fixa num critrio nico, na medidamesma em que se abre a uma multipla, tensa, mas sempre reaberta reinterpretao.

    Recebido para publicao em agosto/1989TELLES, Vera da Silva. Private space and public space in the constitution of the social: notes on the thoutht of

    Hannah Arendt. Tempo Social; Rev Sociol. USP, 2(1): 23-48, 1.sem. 1990.ABSTRACT: This article discusses the notion of public space in Hannah Arendts thought. In order to reconstruct

    its categories, the starting point of this article is Arendts thinking concerning totalitarianism, a central notion in her work.Starting from the problem raised by II World War horror, in which the criterias of judgment between good and evil, trueor false, were annihilated, the notion of public space refers to an experience in which men lost the human world asreference to their lives, in which the solitude and impotence of privatized lives predominated, and in which the sense ofpublic freedom as a form of political sociability based upon the recognition of the others right to action and opinion wasdissolved.

    UNITERMS: public space, private space, public sphere, private sphere, modernity, totalitarianism, tradition,civility, democracy, citizenship, equality, difference, rights.

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