escola e comunidade, juntas, para uma cidadania integral

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119 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 educação, mais especificamente a escola, atravessa um momento de questionamentos quanto ao seu papel social. As transformações sociais e a universalização do ensino trouxeram a diversidade para a sala de aula. O en- sino tradicional centrado na transmissão de conteúdos desvinculados da realidade dos alunos tem se mostra- do pouco eficiente em relação às novas demandas que recaem sobre a escola. Diante deste quadro, torna-se importante a discussão sobre uma educação inclusiva, que privilegie a formação dos jovens, orientada por princípios éticos convergentes para a convivência democrática. Apresentamos a propos- ta de uma educação voltada para a cidadania que articula comunidade e escola em seu projeto pedagógico. Mais diversidade na sala de aula Os discursos pedagógicos enfatizam a necessidade de uma educação capaz de preparar os jovens para o exer- cício da cidadania por meio de uma formação que con- temple aspectos éticos e democráticos. Contudo, a es- trutura escolar e os seus conteúdos privilegiam um tipo de saber voltado prioritariamente à instrução. Esse tipo de ensino, instrucional e preparatório para o nível supe- rior, adequava-se a uma escola que se destinava a pou- cos, restringindo-se a uma parcela da população. Tal mo- delo pedagógico tem sua eficácia subordinada à homo- geneidade do grupo ao qual se destina, ou seja, quan- to maior a convergência entre as expectativas da popu- artigo Escola e comunidade, juntas, para uma cidadania integral. Ulisses F. Araújo Ana Maria Klein* A * Ulisses F. Araújo é Doutor pela Universidade de São Paulo, Mestre pela Universidade de Campinas e Professor da Universidade de São Paulo, Escola de Artes, Ciências e Humanidades – USP Leste. Ana Maria Klein é Mestre pela Universidade de São Paulo.

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Texto de Ulisses F. AraújoAna Maria Klein

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    educao, mais especificamente a escola, atravessa um momento de questionamentos quanto ao seu papel social. As transformaes sociais e a universalizao do ensino trouxeram a diversidade para a sala de aula. O en-sino tradicional centrado na transmisso de contedos desvinculados da realidade dos alunos tem se mostra-do pouco eficiente em relao s novas demandas que recaem sobre a escola.

    Diante deste quadro, torna-se importante a discusso sobre uma educao inclusiva, que privilegie a formao dos jovens, orientada por princpios ticos convergentes para a convivncia democrtica. Apresentamos a propos-ta de uma educao voltada para a cidadania que articula comunidade e escola em seu projeto pedaggico.

    Mais diversidade na sala de aula

    Os discursos pedaggicos enfatizam a necessidade de uma educao capaz de preparar os jovens para o exer-ccio da cidadania por meio de uma formao que con-temple aspectos ticos e democrticos. Contudo, a es-trutura escolar e os seus contedos privilegiam um tipo de saber voltado prioritariamente instruo. Esse tipo de ensino, instrucional e preparatrio para o nvel supe-rior, adequava-se a uma escola que se destinava a pou-cos, restringindo-se a uma parcela da populao. Tal mo-delo pedaggico tem sua eficcia subordinada homo-geneidade do grupo ao qual se destina, ou seja, quan-to maior a convergncia entre as expectativas da popu-

    artigo

    Escola e comunidade, juntas, para uma cidadania integral.Ulisses F. ArajoAna Maria Klein*

    A* Ulisses F. Arajo Doutor pela Universidade de So Paulo, Mestre

    pela Universidade de Campinas e Professor da Universidade de So Paulo, Escola de Artes, Cincias e Humanidades USP Leste. Ana Maria Klein Mestre pela Universidade de So Paulo.

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    lao atendida e os princpios e objetivos professados pela escola, mais efetivos sero o reconhecimento do va-lor dessa instituio e sua atuao.

    A universalizao do ensino trouxe a diversidade para dentro das salas de aula. Novos contingentes po-pulacionais, pouco habituados ao universo escolar, pas-sam a fazer parte deste cotidiano. A escola de hoje est aberta a todos, queles que vo cursar uma faculdade e queles que vo desempenhar outras funes sociais que no requerem tal grau de formao. A integrao desses alunos e alunas, muitos deles filhos e filhas de pais no-escolarizados e, portanto, representantes de uma primeira gerao que tem acesso ao ensino esco-lar, aponta para a necessidade de uma educao capaz de fortalecer os vnculos entre os alunos e alunas, suas famlias e a escola.

    Defrontamo-nos, assim, com novas questes que en-volvem desde a adoo de polticas pblicas capazes de proporcionar no apenas o acesso e a permanncia na escola, como tambm de viabilizar o acesso ao conheci-mento produzido pela humanidade. Um currculo orien-tado apenas preparao para o ingresso no ensino su-perior no faz sentido para grande parte dos discentes. Muitos dos conhecimentos valorizados tradicionalmente nas escolas no se vinculam realidade vivenciada pe-los alunos e alunas e, possivelmente, no sero utiliza-dos por eles e por elas.

    No contexto delineado, torna-se relevante a discus-so sobre propostas que privilegiam a articulao entre a educao escolar e a vida. Entendido dessa maneira, o processo de ensino-aprendizagem no se esgota nos contedos tradicionalmente abordados pela escola, liga-se a um projeto mais amplo da sociedade.

    Durante o sculo XX, o movimento a favor de uma edu-cao comprometida com uma forma de vida democr-tica, conhecido como escolanovismo, trouxe propostas educacionais que buscaram articular a educao intelec-tual vida comunitria, autonomia dos alunos e profes-sores e formao global dos discentes. Essas propostas podem ser consideradas como as bases constituintes da concepo de Educao Integral (Cavaliere, 2002).

    No Brasil, esse movimento influenciou as idias de Ansio Teixeira, que propunha uma escola orientada para prticas e valores democrticos. Para o autor, a democra-cia essencialmente um modo de vida social que exige uma formao que enfatize a personalidade (individua-lidade) e a cooperao (sentir-se responsvel pelo bem

    social). A escola defendida por Teixeira (1975) tem como contraponto a inadequao da escola tradicional su-plementar e preparatria s inovaes e transforma-es sociais. Tais transformaes alteraram as funes da vida familiar e social que acabaram por perder a cons-cincia da sua ao educativa.

    A vida familiar mudou, j no pode oferecer uma edu-cao integral. A vida social tambm mudou: est mais complexa e a criana s tem acesso aos aspectos frag-mentados da realidade. A constatao dessa inadequa-o central na proposta do autor, pois no vazio dei-xado pela famlia e pela sociedade que se insere a sua proposta educacional voltada para a formao integral dos indivduos, extrapolando a mera transmisso de contedos.

    Teixeira, ao sinalizar as transformaes sociais e as suas repercusses no funcionamento familiar, aponta-nos para a necessidade de a educao escolar assumir uma funo que historicamente j foi de competncia p-blica: a formao dos indivduos. Para desempenhar tal funo, a nova escola, precisa trazer a vida para o seu in-terior, tornar-se o local onde a criana viver plena e in-tegralmente, de modo que os educandos adquiram h-bitos morais e sociais.

    Para o autor, as aes desse tipo de educao no po-dem se orientar por procedimentos tradicionais, pois no h como marcar lies sobre tolerncia, simpatia, entu-siasmo. A escola meramente informativa no suficien-te para aparelhar seus alunos e alunas para a atitude cr-tica de inteligncia, para julgar, discernir, ser consciente do que acontece sem perder sua individualidade.

    Assim, a proposta de Teixeira aponta para a importncia de uma educao integral, alicerada na vivncia e nas ex-perincias cotidianas como base e fonte para a construo do saber e formao moral dos alunos e alunas.

    Os pressupostos dessa concepo de educao inte-gral fundamentam a idia, defendida por ns, de que a escola deve voltar-se, tambm, para a formao do cida-do, priorizando prticas e construindo valores que pos-sibilitem a convivncia em uma sociedade democrtica, sem abrir mo de seus contedos, mas atribuindo1 sen-tido ao que transmitido.

    Neste artigo, apresentaremos uma proposta de edu-cao2 que visa a formao para a cidadania a partir da articulao entre a escola e a comunidade na qual ela se insere.

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    Formao para a cidadania

    Em seu sentido tradicional, a cidadania expressa um conjunto de direitos e de deveres que permite aos cida-dos e cidads a participao na vida poltica e na vida pblica, podendo votar e ser votado e atuar ativamente na elaborao das leis e do exerccio de funes pbli-cas, por exemplo. Hoje, no entanto, o significado da ci-dadania assume contornos mais amplos, que extrapolam o sentido de apenas atender s necessidades polticas e sociais, e assumem como objetivo a busca por condi-es que garantam uma vida digna s pessoas.

    Entender a cidadania a partir da reduo do ser hu-mano s suas relaes sociais e polticas no coeren-te com a multidimensionalidade que nos caracteriza e com a complexidade das relaes que cada um e todas as pessoas estabelecem com o mundo sua volta. Deve-se buscar compreender a cidadania tambm sob outras perspectivas, por exemplo, considerando a importncia que o desenvolvimento de condies fsicas, psquicas, cognitivas, ideolgicas e culturais exercem na conquis-ta de uma vida digna e saudvel, que leve busca virtu-osa da felicidade, individual e coletiva.

    Tal tarefa, complexa por natureza, pressupe a edu-cao de todos (crianas, jovens e adultos), a partir de princpios coerentes com esses objetivos e com a inten-o explcita de promover a cidadania pautada na demo-cracia, na justia, na igualdade, na equidade e na par-ticipao ativa de todos os membros da sociedade nas decises sobre seus rumos. Dessa maneira, pensar em uma educao para a cidadania torna-se um elemento essencial para a construo da democracia social.

    O problema que, atualmente, as crianas e os ado-lescentes vo escola para aprender as cincias, a ln-gua, a matemtica, a histria, a fsica, a geografia, as ar-tes, e apenas isso. No existe o objetivo explcito de for-mao tica e moral das futuras geraes.

    Defendemos a idia de que a escola, como institui-o pblica criada pela sociedade para educar as futu-ras geraes, deve preocupar-se, tambm, com a cons-truo da cidadania, nos moldes que atualmente a en-tendemos. Se os pressupostos atuais da cidadania pro-curam garantir uma vida digna e a participao na vida poltica e pblica para todos os seres humanos e no apenas para uma pequena parcela da populao, essa escola deve ser democrtica, inclusiva e de qualidade, para todos e para todas as crianas e adolescentes.

    Para isso, deve promover, na teoria e na prtica, as con-dies mnimas para que tais objetivos sejam alcana-dos na sociedade.

    Entendemos que aprender a ser cidado e a ser cida-d , entre outras coisas, aprender a agir com respeito, solidariedade, responsabilidade, justia, no-violncia; aprender a usar o dilogo nas mais diferentes situaes e comprometer-se com o que acontece na vida coletiva da comunidade e do pas.

    Tais competncias pressupem que os estudantes possam assumir princpios ticos, exercitados em pro-cesso formativo, no qual dois fatores so centrais: que os princpios se expressem em situaes reais,

    nas quais os estudantes possam ter experincias e conviver com a sua prtica;

    que haja um desenvolvimento da capacidade de au-tonomia do sujeito, isto , da capacidade de analisar e eleger valores para si, consciente e livremente.Nesse processo, estudantes e docentes desempe-

    nham um papel ativo. So sujeitos da aprendizagem, interpretam e conferem sentido aos contedos com que convivem na escola a partir de valores construdos, de seus sentimentos e emoes. A construo de valores democrticos deve partir de temticas significativas do ponto de vista tico e propiciar condies para que os alunos e as alunas desenvolvam sua capacidade dialgi-ca, tomem conscincia de seus sentimentos e emoes (e das demais pessoas) e desenvolvam a capacidade au-tnoma de tomar decises em situaes conflitantes do ponto de vista tico/moral.

    Tal proposta educativa, buscando atingir amplos es-pectros de atuao, pode abarcar quatro grandes eixos temticos que, de maneira geral, configuram campos principais de preocupao da tica e da democracia nos dias atuais: tica, convivncia democrtica, direitos hu-manos e incluso social.

    tica

    Na filosofia, o campo que se ocupa da reflexo sobre a moralidade humana recebe a denominao de tica. Esses dois termos, tica e moral, tm significados pr-ximos e, em geral, referem-se ao conjunto de princpios ou padres de conduta que regulam as relaes dos se-res humanos com o mundo em que vivem.

    Uma educao ancorada em tais princpios, de acor-do com Puig (1998), deve converter-se em um mbito de

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    reflexo individual e coletiva que permita elaborar racio-nal e autonomamente princpios gerais de valor, princ-pios que ajudem a defrontar-se criticamente com reali-dades, como a violncia, a tortura ou a guerra. De for-ma especfica, para esse autor, a educao tica e mo-ral deve ajudar a analisar criticamente a realidade coti-diana e as normas sciomorais vigentes, de modo que contribua para idealizar formas mais justas e adequa-das de convivncia.

    Em linha complementar de compreenso do papel da educao para a formao tica dos seres humanos, Cortina (2003) entende que a educao do cidado e da cidad deve levar em conta a dimenso comunitria das pessoas, seu projeto pessoal e tambm sua capacidade de universalizao, que deve ser exercida dialogicamen-te, pois, dessa maneira, poder ajudar na construo do melhor mundo possvel, demonstrando saber que res-ponsvel pela realidade social.

    De forma especfica, lidar com a dimenso comunit-ria e o dilogo com a realidade cotidiana e as normas so-ciomorais vigentes nos remetem ao trabalho com a diversi-dade humana e a abordar e desenvolver aes que enfren-tem as excluses sociais, os preconceitos e as discrimina-es advindas das distintas formas de deficincia e das di-ferenas sociais, econmicas, psquicas, fsicas, culturais, religiosas, raciais, ideolgicas e de gnero.

    Conceber esse trabalho na prpria comunidade em que se vive, no bairro e no ambiente natural, social e cul-tural de seu entorno, importante para a construo da cidadania efetiva.

    Convivncia democrtica

    O conflito uma parte natural de nossas vidas. A maio-ria das teorias interacionistas em filosofia, psicologia e educao est alicerada no pressuposto de que nos constitumos e somos constitudos a partir da relao dire-ta ou mediada com o outro, seja ela de natureza subjeti-va ou objetiva. Os conflitos se apresentam diariamente no mundo: na vida, na sociedade civil e, tambm, na es-cola. Por meio deles, h o confronto de idias, sentimen-tos, atitudes, tornando-se, assim, possvel o consenso e o dissenso.

    O enfrentamento de conflitos permite que se apren-da a respeitar quem dissente, a reconhecer pontos de vista, a compreender posies divergentes, a perceber e respeitar os sentimentos dos outros. Nessa relao, de-

    paramo-nos com as diferenas e semelhanas que nos obrigam a comparar, descobrir, ressignificar, compreen-der, agir, buscar alternativas e refletir sobre ns mesmos e sobre os demais. O conflito torna-se, portanto, a ma-tria-prima para nossa constituio psquica, cognitiva, afetiva, ideolgica e social.

    Na escola, os distrbios disciplinares, a violncia e o autoritarismo nas relaes interpessoais so alguns dos maiores problemas pedaggicos e sociais da atualida-de e vm comprometendo a busca por uma educao de boa qualidade. So fenmenos complexos, cujo enfren-tamento requer disposio e preparo para buscar cami-nhos no-autoritrios.

    Enfrentar esses fenmenos exige dos profissionais da educao uma nova postura, democrtica e dialgi-ca, que entenda os alunos e as alunas no mais como su-jeitos passivos ou adversrios que devem ser vencidos e dominados. O caminho est no reconhecimento dos es-tudantes como possveis parceiros de uma caminhada poltica e humana que almeja a construo de uma so-ciedade mais justa, solidria e feliz.

    Esses objetivos especficos de ressignificao das relaes entre adultos, crianas e adolescentes, e os conflitos a elas inerentes, devem servir de base para a construo de formas de convvio pautados na tica, na democracia e em valores desejados pela socieda-de contempornea.

    Direitos Humanos

    De acordo com Tugendhat (1999), o comportamento moral e tico consiste em reconhecer o outro como sujei-to de direitos iguais, o que significa que, s obrigaes que temos em relao ao outro, correspondem, por sua vez, direitos. Complementando, demonstra que todos os seres humanos, independente de suas peculiarida-des e papis especficos na sociedade, tm determina-dos direitos simplesmente porque so seres humanos. Benevides (2004), ao tratar do tema dos direitos huma-nos, discute sua universalidade e a concepo de que so naturais e, ao mesmo tempo, histricos.

    Partindo de formas de compreenso como as citadas acima, e como resultado do esforo da comunidade inter-nacional para estabelecer parmetros que possam bali-zar as aes das diferentes culturas com relao ao que se considera como razovel, quanto ao respeito aos di-reitos fundamentais dos seres humanos, foi que a Orga-

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    nizao das Naes Unidas promulgou, em 1948, a De-clarao Universal dos Direitos Humanos.

    Esse documento, em sua base, reconhece trs dimen-ses dos direitos humanos:1. as liberdades individuais, ou o direito civil; 2. os direitos sociais; e 3. os direitos coletivos da humanidade.

    Os princpios presentes na Declarao Universal dos Di-reitos Humanos DUDH situam-se na confluncia demo-crtica entre os direitos e liberdades individuais e os deve-res para com a comunidade em que se vive. Juntamente forma coletiva de acordo com a qual foi elaborada, a DUDH pode ser compreendida como a base para o que vem sendo chamado de valores universalmente desejveis.

    Dessa maneira, a DUDH pode ser um guia de refern-cia para a anlise dos conflitos de valores vivenciados em nosso cotidiano e para a elaborao de programas educacionais que objetivem uma educao em valores. Se quisermos, portanto, promover uma educao tica e voltada a para a cidadania, devemos partir de temticas significativas do ponto de vista tico (como o caso da-quelas contidas na DUDH), propiciando condies para que os alunos e alunas desenvolvam sua capacidade dia-lgica, tomem conscincia de seus prprios sentimentos e emoes, e desenvolvam a capacidade autnoma de tomada de deciso em situaes conflitantes do ponto de vista tico/moral.

    Introduzir essas temticas no cotidiano das salas de aula, a partir do conhecimento da situao real obser-vada no entorno de cada escola e nas famlias de mem-bros da comunidade, pode ser um bom instrumento para a construo de valores que reforcem a tica, a cidada-nia e a democracia na educao.

    Incluso social

    De acordo com Barth (1990), as diferenas represen-tam grandes oportunidades de aprendizado. Para ele, o que importante nas pessoas e nas escolas o que diferente, no o que igual.

    Para Stainback (2002), a total incluso de todos os membros da humanidade, de quaisquer raas, religies, nacionalidades, classes socioeconmicas, culturas ou capacidades, em ambientes de aprendizagem e comuni-dade, pode facilitar o desenvolvimento do respeito m-tuo, do apoio mtuo e do aproveitamento dessas dife-renas para melhorar nossa sociedade. durante seus anos de formao que as crianas adquirem o entendi-mento das diferenas, o respeito e o apoio mtuos em ambientes educacionais que promovem e celebram a di-versidade humana.

    A construo de sociedades e escolas inclusivas, abertas s diferenas e igualdade de oportunidades para todas as pessoas, um objetivo prioritrio da edu-cao nos dias atuais.

    Nesse sentido, o trabalho com as diversas formas de deficincias e com as excluses geradas pelas diferenas social, econmica, psquica, fsica, cultural e ideolgica devem ser foco de ao das escolas. Buscar estratgias que se traduzam em melhores condies de vida para a populao, na igualdade de oportunidades para todos os seres humanos e na construo de valores ticos so-cialmente desejveis por parte dos membros das comu-nidades escolares uma maneira de enfrentar essa si-tuao e um bom caminho para um trabalho que visa a democracia e a cidadania.

    A educao comunitria

    Os quatro grandes eixos temticos propostos para uma educao voltada para a cidadania enfatizam a impor-tncia da interao entre escola e comunidade, trazen-do aspectos da vida em sociedade para o currculo es-colar. Assim, o cerne desta proposta tornar os recur-sos da cidade e, prioritariamente, do entorno da esco-la, como espaos de aprendizagem, promoo e garan-tia de direitos.

    A Carta das Cidades Educadoras, chamada de Carta de Barcelona (Gadotti, 2004), de 1990, um documento central para essa concepo. Em tal documento, afirma-se que a cidade educadora um sistema complexo, em

    [...] lidar com a dimenso comunitria e o dilogo com

    a realidade cotidiana e as normas sociomorais vigentes nos remetem ao trabalho com

    a diversidade humana e a abordar e desenvolver aes que enfrentem as excluses sociais, os preconceitos e as

    discriminaes

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    constante evoluo, que sempre dar prioridade absolu-ta ao investimento cultural e formao permanente de sua populao. Ela ser educadora quando reconhecer, exercitar e desenvolver, alm de suas funes tradicio-nais, uma funo educadora, quando assumir a inteno e responsabilidade cujo objetivo seja a formao, promo-o e desenvolvimento de todos os seus habitantes, co-meando pelas crianas e pelos jovens.

    Dentre os princpios constituintes dessa carta, des-tacamos quatro que consideramos centrais nossa pro-posta. Em sua proposio, a cidade educadora deve fa-vorecer: 1. a liberdade e a diversidade cultural; 2. a organizao do espao fsico urbano, colocando

    em evidncia o reconhecimento das necessidades de jogos e lazer;

    3. a garantia da qualidade de vida a partir de um meio ambiente saudvel e de uma paisagem urbana em equilbrio com seu meio natural;

    4. a conscincia dos mecanismos de excluso e margi-nalidade que as afetam.A partir de tais idias, Torres (2005) afirma que a educa-

    o deve deixar de ser vista como funo apenas da comu-nidade escolar para que seja assumida pela comunidade de aprendizagem, de forma que os diferentes recursos e disci-plinas locais possam ser utilizados no processo educativo. Na educao comunitria proposta por ela, todos so edu-cadores e todos so aprendizes, desaparecem as barreiras

    entre educao formal e informal, educao escolar e extra-escolar. Esse o princpio do bairro-escola, que adota o en-torno da escola como espao de aprendizagem.

    Tomando por referncia discusses como estas, acre-ditamos que estudar formas de ampliao dos espaos educativos, rompendo os limites fsicos dos muros esco-lares, pode ser um bom caminho para uma educao em valores ticos e democrticos, que visam a cidadania. Re-forar a importncia da articulao entre sujeito e cultura/sociedade na construo da cidadania e de relaes mais justas e solidrias no seio da comunidade onde cada um vive, pode indicar possibilidades para o desenvolvimento de aes educativas que levem a uma reorganizao da es-cola na forma em que est estruturada, tanto do ponto de vista fsico quanto pedaggico.

    Dessa maneira, embora trabalhemos com a ampliao dos espaos educativos, incorporando os recursos da cida-de e prioritariamente do entorno da escola no desenvolvi-mento de projetos que contemplem a comunidade como es-pao de aprendizagem, o centro das aes continua sendo a escola. Essa instituio, com seu papel social de instruo e formao das novas geraes, que possui os educadores capacitados ao exerccio profissional da educao.

    Para tanto, a matriz para o desenvolvimento das aes conseqentes desta proposta est na constituio do que chamamos de Frum escolar de tica e cidadania3 nas escolas. O frum proposto tem como papel essencial ar-ticular os diversos segmentos da comunidade, escolar e no-escolar, que se disponham a atuar no desenvolvimen-to de aes que mobilizem os participantes. Sua organiza-o articulada, inicialmente, por um educador, de pre-ferncia formado para a funo. Esse educador comuni-trio ser o responsvel por promover a aproximao e o dilogo entre os diversos atores sociais interessados na sua constituio e participao.

    A estrutura e composio deste frum deve ser a mais aberta possvel, tornando-se desejvel que dele partici-pem professores, estudantes, funcionrios, diretores, fa-mlias e membros da comunidade.

    De maneira geral, o frum ser responsvel por orga-nizar e desenvolver as atividades e projetos relaciona-dos aos quatro grandes eixos temticos que sustentam a proposta: tica, convivncia democrtica, direitos hu-manos e incluso social.

    De forma especfica, a atuao do frum se dar junto direo da escola e aos membros da comunidade para garantir os espaos e tempos necessrios ao desenvol-

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    vimento dos projetos. Podemos citar como exemplos de atuao junto comunidade: a busca de recursos que permitam a aquisio de ma-

    teriais necessrios ao desenvolvimento dos projetos; a interao com especialistas em educao/pesqui-

    sadores, que possam contribuir com o melhor desen-volvimento das aes planejadas;

    a articulao de parcerias com outros rgos e institui-es governamentais e no-governamentais (ONGs) que possam apoiar as aes do projeto e a criao de propostas que promovam seu enriquecimento.Caber ao frum, portanto, representar a comunida-

    de dentro da escola, por meio de aes objetivas e pla-nejadas que visam a articulao entre o currculo esco-lar e temticas relevantes para a comunidade na qual a escola se insere.

    As aes envolvendo membros da comunidade so centrais. No entanto, no encerram o objetivo maior, a saber: articular o conhecimento socialmente constru-do, que deve ser transmitido pela escola, s temticas da vida social que se apresentam como imprescindveis formao do cidado, aqui compreendido em seu sen-tido mais amplo.

    Assim, a presente proposta prev aes que, inter-relacionadas, possuem uma dupla direo: para den-tro e para fora da escola. Para dentro da escola, lo-calizam-se as aes que objetivam a implementao da pedagogia de projetos, aliada aos princpios de trans-versalidade e interdisciplinaridade. Os contedos rela-cionados aos projetos desenvolvidos junto comunida-de sero incorporados nas aulas das disciplinas espe-cficas da escola. Para fora da escola, localizam-se as aes que promovem a articulao entre a escola e os espaos de aprendizagem de seu entorno. Assim, a par-tir dos projetos interdisciplinares e transversais desen-volvidos em sala de aula, a escola poder se aproximar da comunidade externa, utilizando seus equipamentos e espaos como fonte de aprendizagem.

    Levar tais temticas para dentro da sala de aula e ar-ticul-las com os contedos tradicionalmente contem-plados pelos currculos pressupe uma nova maneira de pensarmos o papel da escola. Nela, no s os objetivos educacionais devem ser revistos, como tambm a rela-o entre contedos e temticas, que, nessa perspecti-va, inverte-se, ou seja, os contedos passam a ser vis-tos como ferramentas para a soluo de questes rela-cionadas vida e ao interesse dos alunos.

    Esta mudana de paradigma implica a reviso dos papis dos diferentes atores envolvidos e uma abertu-ra da escola, no sentido de estar sensvel e acolher a di-versidade da populao que a compe. Assim concebi-da, a escola no se encerra em si mesma, torna-se par-te integrante da vida de seus alunos e da comunidade onde est inserida.

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    Notas

    1 A proposta de educao aqui apresentada constitui a base do curso de atualizao em Educao Comunitria, oferecido pela Universidade de So Paulo, em parceria com a SME e a Cidade Escola Aprendiz, a 1.200 docentes da rede municipal de ensino de So Paulo, durante o primeiro semestre de 2006. O curso visa a formao de dirigentes escolares e docentes para o trabalho com a comunidade (bairro) onde as escolas esto inseridas, com o objetivo de auxiliar na constituio de redes de ao educativa que integrem bairros e escolas e que tenham como meta a construo da cidadania e da democracia. A atuao do educador comunitrio prev a promoo da inser-o da famlia e da comunidade nos espaos escolares, ao mesmo tempo em que a formao de estudantes e docentes, para atuarem no desenvolvimento de aes educativas junto comunidade e ao bairro onde vivem.

    2 A base dessa proposta est no Programa tica e Cidadania: construindo va-lores na escola e na sociedade, desenvolvido pelo Ministrio da Educao, com a consultoria do autor deste artigo. Esse programa chegou em mais de 26 mil escolas de todo o pas.