epigrafia cripto-cristã primitiva a procura de um genero literario

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EPIGRAFIA CRIPTO-CRISTÃ PRIMITIVA: À PROCURA DE UM GÊNERO LITERÁRIO 1 É opinião comum que o moderno conceito de gênero literário foi grosso modo fruto da virada romântica do século XVIII 2 , em especial teria sido decalcado das concepções de J. W. von Goethe sobre as “formas naturais de poesia”, com as quais o autor alemão, baseado na poética aristotélica, procurava firmar a distinção entre os tipos de gênero de poesia (Dichtarten) e os modos poéticos (Dichtwesen) 3 , pondo em causa a “tirania da norma” pura e simples e valorizando os elementos transepocais de qualidade literária. De lá para cá um imenso aparato literário científico foi desenvolvido para dar conta das distintas categorias de gênero literário de modo que o debate permanece aberto. Inúmeros elementos foram levantados para além do texto 4 até que fosse rompido, na modernidade, as possibilidades de paradigmas excessivamente esquemáticos, descritivos e normativos. Não obstante, o recurso ao gênero como um meio auxiliar de caráter esquemático-ordenador para a classificação de obras literárias mantém-se vivo e atuante, e se agora menos por suas qualidades definidoras do que é cada obra literária (ou um conjunto delas), ao menos pelas possibilidades teóricas dentro das ciências da literatura em apontar o alcance do campo de pesquisa e aspectos estruturais do texto. Do ponto de vista puramente formal da teoria de gêneros literários, o tipo de literatura que floresce ao longo destes três séculos ganhou certo ‘status’ de gênero, ou subgênero da Prosa, enquadrados dentro da categoria ampla chamada ‘Eloqüência Sagrada’, subdivididas em Sermões, Panegíricos, Orações Fúnebres, Controvérsias, 1 Este texto foi apresentado em forma de comunicação para o II Seminário do LABEC (Laboratório de Ecdótica), que teve lugar entre os dias 01 e 03 de 2014. Gostaria de agradecer a professora doutora Ceila Maria Ferreira por esta oportunidade. Este trabalho faz parte do projeto “ecclesia in imperio romano” e algumas das asserções aqui contidas foram previamente publicadas na Revista Jesus Histórico, volume 8. 2012. Pp. 43-53. 2 WILPERT, Gero von. Gattungen. Sachwörterbuch der Literatur. 7a. Edição. Stuttgart: Alfred Kröner, 1989. Pp. 320-321, com exaustiva bibliografia. Cf. Também LIMA, Luiz Costa. A questão dos gêneros. In LIMA, L. C. (Org.). Teoria da Literatura em suas fontes. Volume 1. 3a. Edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. Pp. 253-289 3 GOETHE, J.W. von Noten und Abhandlungen zu besserem Verständnis des West-östlichen Diwans, In: Goethes Werke. Hamburger Ausgabe, Bd.2, München 1981, Pp..187-189. 4 E porque não dizer aquém do texto

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Texto sobre a epigrafia como gênero literário

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  • EPIGRAFIA CRIPTO-CRIST PRIMITIVA:

    PROCURA DE UM GNERO LITERRIO1

    opinio comum que o moderno conceito de gnero literrio foi grosso modo

    fruto da virada romntica do sculo XVIII2, em especial teria sido decalcado das

    concepes de J. W. von Goethe sobre as formas naturais de poesia, com as quais o

    autor alemo, baseado na potica aristotlica, procurava firmar a distino entre os tipos

    de gnero de poesia (Dichtarten) e os modos poticos (Dichtwesen)3, pondo em causa a

    tirania da norma pura e simples e valorizando os elementos transepocais de qualidade

    literria. De l para c um imenso aparato literrio cientfico foi desenvolvido para dar

    conta das distintas categorias de gnero literrio de modo que o debate permanece

    aberto. Inmeros elementos foram levantados para alm do texto4 at que fosse

    rompido, na modernidade, as possibilidades de paradigmas excessivamente

    esquemticos, descritivos e normativos. No obstante, o recurso ao gnero como um

    meio auxiliar de carter esquemtico-ordenador para a classificao de obras literrias

    mantm-se vivo e atuante, e se agora menos por suas qualidades definidoras do que

    cada obra literria (ou um conjunto delas), ao menos pelas possibilidades tericas dentro

    das cincias da literatura em apontar o alcance do campo de pesquisa e aspectos

    estruturais do texto.

    Do ponto de vista puramente formal da teoria de gneros literrios, o tipo de

    literatura que floresce ao longo destes trs sculos ganhou certo status de gnero, ou

    subgnero da Prosa, enquadrados dentro da categoria ampla chamada Eloqncia

    Sagrada, subdivididas em Sermes, Panegricos, Oraes Fnebres, Controvrsias,

    1 Este texto foi apresentado em forma de comunicao para o II Seminrio do LABEC (Laboratrio de

    Ecdtica), que teve lugar entre os dias 01 e 03 de 2014. Gostaria de agradecer a professora doutora Ceila

    Maria Ferreira por esta oportunidade. Este trabalho faz parte do projeto ecclesia in imperio romano e algumas das asseres aqui contidas foram previamente publicadas na Revista Jesus Histrico, volume 8.

    2012. Pp. 43-53. 2 WILPERT, Gero von. Gattungen. Sachwrterbuch der Literatur. 7a. Edio. Stuttgart: Alfred Krner,

    1989. Pp. 320-321, com exaustiva bibliografia. Cf. Tambm LIMA, Luiz Costa. A questo dos gneros.

    In LIMA, L. C. (Org.). Teoria da Literatura em suas fontes. Volume 1. 3a. Edio. Rio de Janeiro:

    Civilizao Brasileira, 2002. Pp. 253-289 3 GOETHE, J.W. von Noten und Abhandlungen zu besserem Verstndnis des West-stlichen Diwans, In:

    Goethes Werke. Hamburger Ausgabe, Bd.2, Mnchen 1981, Pp..187-189.

    4 E porque no dizer aqum do texto

  • Conferncias, Homilas e Catecismos.5 bem verdade que vrios problemas

    concernentes literatura produzida neste perodo, crist ou no, religiosa ou no,

    institucional ou no, etc., trazem muitas vezes mais sombras do que luz s questes

    histricas inseridas neste contexto. Por isso, ainda que admitamos o surgimento de

    literatura crist, as questes referentes a que tipo de categoria tal literatura pertence

    suscita ainda bastante controvrsia. No que diz respeito a uma literatura propriamente

    crist destes trs primeiros sculos, preciso considerar, com Frances Young, ao menos

    5 pontos: A) o que de fato literrio em termos cristos? B) Quais textos devem ser

    includos na categoria de literrios? Eles formavam para as comunidades algum tipo de

    unidade ? C) De qual nvel social e cultural eles se originaram (aqui h que se

    considerar a fixao da tradio oral em forma escrita)? D) Quais so as peculiaridades

    retricas e de linguagem de um modo geral deste gnero de textos? Como estes textos

    devem ser historicamente lidos?6 A epigrafia produzida por cristos no escapa a estas

    perguntas e com elas o problema de delimitarmos a noo de epigrafia crist se torna

    mais complexo. A literatura crist (e suas distintas formas de expresso escrita) cresceu

    no seio da cultura Greco-Romana e traz consigo traos indelveis desta, entre eles o fato

    de ser praticada por uma elite literariamente educada (HARRIS, 1991). Boa parte do

    que at bem pouco tempo atrs se chamava literatura crist se baseava na canonicidade

    dos textos e no legado da Sagrada Tradio (Harnack, 1893: 22-23), a qual apenas

    recentemente tem recebido um outro tratamento. No obstante, o juzo acerca da

    epigrafia crist do perodo segue sem uma avaliao mais aprofundada7.

    Para o presente trabalho, o que nos ocupa um tipo de inscrio marcada por um trao

    muito caracterstico: a dissimulao, ou seja, a necessidade de o(s)\a(s) autor(es)\(as)

    ocultarem(-se) e\ou no revelarem em sua totalidade o sentido da mensagem,

    encobrindo em alguns casos a sua identidade ou disfarando sua crena, em uma

    5 SOUZA, ROBERTO ACZELO- Gneros Literrios. In: JOBIN, JOS LUIS (org.). Introduo aos

    Termos Literrios. Rio de Janeiro: Eduerj, 1999. Pp. 9-67; esp. 61-62. 6 YOUNG , FRANCES. Introduction: the literary culture of the earliest Christianity. In: YOUNG,

    FRANCES et al. (Eds)- The Cambridge History of Early Christian Literature. Cambridge: Cambridge

    University Press, 2008. PP. 5-10. 7 Em HORSLEY, G. H. R. (ED) New Documents Illustrating Early Christianity. Austrlia: Macqaurie

    University 1981, os nove volumes (a partir do 6. volume foi editado por S. R. Llewelyn at 2002) no

    mencionam qualquer palavra sobre o problema do estilo ou gnero da literatura crist, detendo-se em

    problemas lingsticos (vol. 5). Harris sugere que, no caso das inscries, ainda que no seja possvel

    provar conclusivamente, devido a sua diversidade possvel perceber a heterogeneidade da linguagem

    falada (HARRIS, WILLIAM V. -Ancient Literacy. Harvard: Harvard University Press, 1991. Pg.177).

  • atmosfera de crise econmica, social e principalmente poltica, obrigando a superstitio

    crist a constante clandestinidade. Neste caso, as inscries crists, em muitos casos

    cifradas, atendem perfeitamente quelas virtudes da arte da criptografia apontadas por

    Francis Bacon (1561-1626) sculos mais tarde: no devem ser laboriosas para escrever e

    ler [mas] impossveis de decifrar8. Este tipo de carter da literatura crist primitiva

    teve seu reconhecimento apenas no final da dcada de 60 do sculo XX e ganhou o

    nome de crypto-cristianismo por Jacques Fontaine (Fontaine, 1968: 98-121). Fontaine

    aponta mais propriamente o estilo crypto-cristo para a obra de Minucius Felix (150-

    270 d.C.) indicada inicialmente por um dos ltimos editores da obra Octavius, J.

    Beaujeu, que ao qualificar o modo como Felix redige e se dirige aos seus adversrios,

    procedendo por aluses9. Sua obra suscitaria uma leitura em dupla transparncia: de

    um filsofo pago, hostil aos cticos, esticos, monotestas; mas tambm de cristo

    atento s ressonncias judaico-crists e testamentrias10

    . Esta dualidade muitas vezes,

    em nosso caso, expressa por fenmenos lingsticos e morfolgicos como o bilingismo

    (ou mesmo trilingismo), as abreviaes de nomes prprios e, especialmente, pelo

    aparecimento de um iconografia bastante particular quelas superstiones.

    Dois ltimos aspectos no negligenciveis so, de um lado, que a circulao de

    textos era bastante tmida, e de outro o fato de que o mundo antigo, em sua grande

    maioria, era iletrado, alis iletramento at muitas vezes celebrado11

    . O iletramento no

    quer dizer absolutamente analfabetismo. A mensagem de um texto pode ser alcanada

    por meio de intermedirios (W. Harris) ou pelo uso de elementos simblicos ( R.

    Thomas), ou ainda como diz Irineu sem papel nem tinta12. Com isso, o que poderia

    ser decorativo possui grande valor explicativo para a compreenso da mensagem. Por

    isso, no se pode considerar o iletramento ou mesmo o semi-letramento como similar ao

    analfabetismo, nem tampouco em oposio transmisso oral.

    8 BACON, Francis the advancement of learning. II, XVI, 6. Disponvel em:

    https://ebooks.adelaide.edu.au/b/bacon/francis/b12a/. Acessado em: 05.12.2012. 9 Minucius Felix procde par allusions: seuls les connaisseurs taient en mesure de sapercevoir que

    lOctauius (...) visait plus particulirement Favorinus et son cercles. FONTAINE, JACQUES Minucius Felix et les valeurs ambigus dum style cryptochrtien. In: Idem. Aspects et Problmes de la prose dart latine au IIIe. sicle - La gense des styles latins chrtiens. Turim: Bottega dErasmo, 1968. Pg.101. O texto em questo Octavius de Marcus Minucius Felix estabelecido e traduzido por JEAN BEAUJEU.

    Paris: Les Belles Lettres, 1964. 10

    Ibidem, pg. 103. 11

    Cf. Irineu de Lyon III, 4, 2. Cui ordinationi assentiunt multae gentes barbarorum eorum qui in

    Christum credunt, sine charta vel atramento scriptam habentes per Spiritum in cordibus suis salutem, et

    veterem Traditionem diligenter custodientes, in unum Deum credentes YOUNG, FRANCES Christian Teaching. In: Young, F. et al. (Eds)-op. cit. Pp. 464-484. 12

    THOMAS, Rosalind. Letramento e Oralidade na Grcia Antiga. Odysseus Editora, 2005. Pp. 103 sqq.

    HARRIS, WILLIAM V. -Ancient Literacy. Harvard: Harvard University Press, 1991. Pg. 34.

  • Tudo isso contribua para a heterodoxia, entendida por escritores antigos e modernos

    como um distanciamento da regula fidei,13

    no apenas em termos teolgicos, mas

    tambm rituais at pelo menos o IV sculo14

    . O fato traz tona a necessidade de se

    explicar como um credo especfico que no possua qualquer organizao

    sistematizadora difundia-se, ao longo destes trs sculos, a ponto de distinguir o que era

    recto do que era obliquo15

    . Talvez a questo esteja falsamente posta na medida em que

    no se tratava de um credo especfico, surgido ex-nihilo.

    guisa de concluso.

    Neste contexto de iletramento e heterodoxia, as representaes pictricas ganham um

    valor incomensurvel, ainda mais caso estejamos falando de representaes

    acompanhadas de escritos de carter pblico como so de fato as epigrafias. Nelas

    possvel entrever certo cuidado em apresentar e ocultar a mensagem, simultaneamente.

    o que os autores modernos tm chamado de estilo cripto-cristo16. Em nosso caso,

    13

    A aproximao entre heterodoxia e desvio da regula fidei aparece com fora em vrias ocasies em escritores do cristianismo primitivo. Cf. por exemplo Athanasius de Alexandria (295-373 d.C.) Epist. ad

    Episc. I, 5, 1182-1183 (vol. 25, 549, 16). Para A. von HARNACK (Mission und Ausbreitung des

    Christentums in den ersten drei Jahrhunderten. Volume 1. Leipzig: J. E. Hinrischsche Buchhandlung. passim), o sincretismo inicial da igreja primitiva ganhou pouco a pouco a sntese necessria para a

    formao da ortodoxia e as doutrinas desviantes tornaram-se degenerescncias (chamada por isso de

    Verfallstheorie). Quanto crtica Verfallstheorie com as respectivas crticas a Harnack cf. WILLIAMS,

    ROWAN Does it make sense to speak of pr-Nicene orthodoxy?. In: WILLIAMS, R. (ed.)- The Making of Orthodoxy: essays in honour of Henry Chadwick. Cambridge: Cambridge University Press,

    1989. Pp. 1-23.

    14 J no incio do sculo XIX, especialistas apontavam para a diversidade axiolgica na Igreja Primitiva.

    Veja por exemplo o livro de MHLER, JOHANN ADAM Die Einheit in der Kirche oder das Princip (sic) des Katholicismus, dargestellt im Geiste der Kirchenvter der drei ersten Jahrhundert. Tbingen:

    Heinrich Laupp, 1825. Especialmente o captulo III. Alm das diversas controvrsias Teolgicas ou

    Cristolgicas, houve ainda a dissenso Eclesiolgica. Por exemplo: Donatismo (o Batismo e a Ordenao

    sacerdotal) no poderiam ser ministrada aos lapsi. Ainda havia as controvrsias entre Cristos e Judeus-

    Cristos ( Nazarenos Judasmo Messianico, Ebionitas os pobres, cristianismo de converso Torah e Elchasaitas preceitos morais e dietas). Para um tratamento do problema veja a obra: WILLIAMS, R. The making of orthodoxy Essays in honor of Henry Chadwick. Cambridge: Cambridge University Press, 1989. Em especial o artigo do editor: Does it make sense to speak of pr-Nicene orthodoxy? Pp.1-23. Cf

    tambm o interessante artigo de LOSEHAND, JOACHIM The Religious Harmony in the Ancient World Vom Mythos religiser Toleranz in der Antike. In: Gttinger Forum fr Altertumswissenschaft 12 (2009). Pp. 99-132.

    15 Orthodoxia, entendida como sana doctrina ou recta fides, no era noo usada pelos primeiros

    cristos. O problema talvez fosse, naquele contexto, mais de ordem cultual ou ritual do que propriamente

    doutrinal. Veja a discusso em Joachim Losehand The Religious Harmony in the Ancient World Vom Mythos religiser Toleranz in der Antike. In: Gttinger Forum fr Altertumswissenschaft 12 (2009);

    Cf. tambm NORRIS Jr., RICHARD A. Articulating Identity. In: YOUNG, FRANCES, AYRES, LEWIS; LOUTH, ANDREW (eds.) The Cambridge History of Early Christian Literature. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. Pp. 71-90. 16

    Em um artigo recente, HECK, EBERHARD - Nochmals: Lactantius und Lucretius. Antilucrezisches im

    Epilog des lactanzischen Phoenix-Gedichts? - International Journal of the Classical Tradition, vol. 9, No.

  • estes tipos de epigrafias nos ajudam a entender o universo mental cristo primitivo. Em

    especial, aquele dos grupos letrados, isto dos fazem parte da elite romana. No

    criptocristianismo imagem e conceito ganham fora prpria, formando um conjunto

    cujo significado, mesmo que vago, ser reconhecido por aqueles que partilham valores e

    conhecimentos comuns. Neste contexto, talvez fosse impossvel para Nero encontrar os

    cristos, talvez mesmo fosse impossvel que se reconhecessem o que refora nossa

    hiptese de que a nova f, plural e mltipla desde seu momento mais primevo, tenha

    partilhado um evangelho comum mas com prticas muito diferentes.

    Inscries e Comentrios17

    4, Spring 2003, pp. 509-523, ainda que recuse a idia de estilo crypto-cristo, como advogada por

    Fontaine, favorvel ao uso quando este se refere ao que ele chama de camuflagem do contedo cristo

    na literatura. Para a discusso do termo com literatura especializada veja especialmente as pginas 514-

    515. 17

    Trata-se apenas de observaes preliminares

  • A)

    A primeira de nossas inscries foi gravada em uma gema de cornalina, que pertencia a

    uma coleo privada em Londres, com outras jias do mesmo estilo18

    . Segundo o relato

    do arquelogo que comprou proprietria a jia, teria sido encontrada em Constanza

    (Kustendje) em uma praia, junto com outros objetos e foi datada como pertencente aos

    primeiros trs sculos de nossa Era. Atualmente encontra-se no Museu Britnico sob o

    nmero :1895,1113.1, AN186312. Apesar de estar um pouco avariada possvel ver a

    figura do Cristo crucificado, apresentado de modo frontal, exceto pelos ps. Na altura

    do exergo, espao em medalhas ou moedas onde normalmente se grava a data ou

    qualquer outra inscrio, encontra-se uma linha que serve de suporte para a cena. A

    cruz, na forma de um T divide o que seria o conjunto dos 12 apstolos, seis de um lado

    e seis de outro, os quais so apresentados em uma escala bem menor do que a figura

    central do Cristo, mesmo estando ambos os grupos representados a partir do exergo.

    Encimando a gema l-se claramente a inscrio , que em grego significa

    peixe, mas como acrnimo equivale s iniciais do ttulo

    (Jesus Cristo, filho de Deus, Salvador), em lugar do j tradicional INRI

    Iesus Nazarenus Rex Iudaeorum (Jesus de Nazar, Rei dos Judeus). O autor chama a

    18

    SMITH, CECIL The Crucifixion on a greek gem. In: The Annual of the British School at Athens. No. III, Londres: 1896-1897. Pp. 201-206

  • ateno para o fato de que esta pode ser a mais antiga representao da crucificao ou,

    ao menos, uma das primeiras19

    . Um ltimo ponto a notar a associao direta entre

    imagem e escrita, tornando toda a cena quasi bilnge.

    B)

    Para a segunda inscrio, conforme nos relata K. Jaro20, uma antiga lenda conta que a

    Imperatriz Helena, esposa de Constantius e me de Constantino I (306-337 d.C), em

    326 d.C. teria encontrado o Titulus Crucis e ordenado que parte da inscrio fosse

    levada ao seu palcio em Roma, e parte seria mantida em Jerusalm. Consoante o

    mesmo Jaro, do ponto de vista paleogrfico nihil obstat por datar a inscrio para a

    primeira metade do sculo I d.C. e que salvo errore et omissione no h provas nem de

    uma falsificao do sculo IV d. C., nem em poca posterior. A inscrio trlinge

    19

    Sugesto tambm aceita por G. H. R. HORSLEY New Documents Illustrating early Christianity. A review of the Greek inscriptions and papyri published in 1976. Macquarie University: Australia, 1984.

    Pg. 140. 20

    JARO, Karl Inschriften des heiligen Landes aus vier Jahrtausenden. Mainz am Rhein: Philipp von Zabern, 2001. Pg. 319.

  • sendo a primeira linha escrita em hebraico capital, da direita para a esquerda, como de

    praxe na escrita hebraica, e as outras duas em grego e latim, respectivamente. Seu

    contedo to simplesmente o gentlico de Jesus, Nazareno21

    , seguido nas duas ltimas

    linhas da letra inicial que designa a palavra rei, indicando a causa poena: B para

    (basileus) e R para rex. Como registra a lenda encontra-se hoje em Roma,

    na Baslica de Santa Croce in Gerusalemme.

    1 yrjvnh

    2 NAZAREN- B

    3- NAZARENUS R

    C)

    A outra de nossas inscries um exemplo claro da integrao do pictrico com o

    escrito propriamente dito, pois alm da mensagem engastada entre o A e o W, na

    horizontal e o smbolo da cruz, de ambos os lados, na vertical, temos uma srie de

    elementos cuja disposio obedeceu a regras tanto gramaticais quanto estticas, cujo

    fundo sem duvida regido pela crena22

    . Assim, tanto a palavra , quanto a

    palavra , foram abreviadas de forma corrente como em lngua hebraica, como

    21

    O escriba parece, ao escrever Nazareno em grego, , ter substitudo a forma tradicional

    com ETA por EPSILON, como est na inscrio. Ainda neste sentido, substituiu tambm a letra omikron

    em grego, o , pelo ayin i-em hebraico na forma cursiva. 22

    Ed. Pr. Jean-Paul Rey-Coquais, I Tyre 1.49, pp.32-33 (pl. 45.1).

  • reservada aos nomina sacra onde os elementos centrais da palavra so omitidos23

    . A

    inscrio pertence ao baixo imprio mas um belo exemplar da preocupao do escriba

    e\ou proprietrio de marcar a filiao a sua crena. digno de nota, o fato do genitivo

    possessivo ( theos mou - lit. Deus de mim) encontrar-se acomodado bem no centro da

    inscrio, com a terminao genitiva -ou -, coroando a letra capital Mu24

    . Ela datada

    provavelmente para o baixo imprio.

    i Cristo, meu Deus, Glria para Ti!

    D) A ltima das inscries uma estela funerria encontrada na rea da necrpole do

    vaticano que traz o nome de uma certa Licinia Amiati, que viveu de forma

    benemeritria25

    . Datada do sculo III d.C., est uma das mais antigas inscries crists

    a trazer a frmula abreviada D.M. Di(i)s Manibus ou aos deuses dos Manes ou

    deuses infernais, entidades que recebiam o defundo amado. Na segunda linha, ao alto,

    encontramos as inscries 26

    , peixe dos seres vivos A primeira trata-

    se de uma inscrio que representa uma forma hbrida de crena, pag-crist, se

    mantivermos a leitura de D.M. No entanto, o escriba pode fazer interpretar D.M. como

    Domino Meo Ao meu senhor, seguida pela forma desenvolvida acrnimo

    Jesus Cristo, filho de Deus, Salvador, das

    Vidas.

    23

    TRAUBE, LUDWIG. Nomina Sacra. Versuch einer Geschichte der christlichen Krzung. Munique: C.H.Beck, 1907. 24

    Preocupao esta que parece no ocorrer com a desinncia da forma dativa soi a Ti, deslocada para a extremidade. 25

    part sg pres fem abl 26

    part pl pres act masc gen contr

  • Consideraes Finais:

    A distncia entre o significado e contedo destas inscries no irrelevante. Grosso

    modo, podemos notar um entrelaamento estreito, ou ao menos a inteno de que a

    composio proporcione uma leitura onde interajam os elementos visuais e escritos,

    entre a composio destas inscries, com a preocupao do efeito visual, e o seu

    impacto no pblico-leitor. Preliminarmente, nos exemplos mostrados, verificamos ao

    menos trs constantes, em maior ou menor grau, dada a natureza de cada das inscries.

    a) A preocupao entre o simblico e semntico na composio das inscries;

    b) A reiterao de certos elementos que funcionem como meio identificador da

    composio epigrfica;

  • c) A necessidade da anlise comparativa, que no se encerre na inscrio, dada a

    variedade tanto em que tais inscries aparecem, quanto no que diz respeito aos

    contextos histricos distintos.

    Embora as consideraes acima sublinhem o fato de que haja um pblico-leitor cristo

    para o qual eram voltadas estas inscries, preciso no exagerar quanto ao uso pblico

    deste tipo de epigrafia. Em primeiro lugar porque devemos ter em conta o carter

    devocional que leva o escriba ou o financiador da inscrio na confeco destas, de

    modo que a composio epigrfica pode ser mais um sinal de demonstrao da crena

    do que de transmisso de uma mensagem; em segundo lugar, e como conseqncia da

    primeira, porque, ainda que consideremos uma certa unidade composicional na

    distribuio dos elementos figurativos e textuais, perfeitamente possvel l-los (ou

    perceb-los) de modo distinto. Deste modo imagem e texto podem ser entendidos de

    maneira harmnica ou no, isto , sem um vnculo necessrio entre ambos. Ora, ao

    considerarmos pluralidade da mensagem crist ao longo destes trs sculos, as

    inscries crypto-crists atuam como moto e em conseqncia em infinitas direes,

    proporcionando o mosaico de que se falava alhures.