entre o direito e a literatura - fabiana marion spengler

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  • 7/23/2019 Entre o Direito e a Literatura - Fabiana Marion Spengler

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    Entre o Direito e a Literatura: uma anlise dajurisdio atual e do papel do juiz no tratamentodos conflitos1

    Fabiana Marion Spengler2

    Resumo: Levando em considerao as crisespelas quais passa o Poder Judicirio e as modi-ficaes do papel atribudo ao juiz o presentetexto tem por objetivo discutir o sistema Judici-rio enquanto meio legitimado a punir condutasracionalizando a violncia. Alm disso, abordaros contornos da funo decisria atribuda aosmagistrados. Para cumprir tal intento utilizou-sedas interseces entre direito e literatura, espe-cialmente discutindo a comdia As Vespas deAristfanes. Desse modo, o texto primeiramentedelineou o monoplio estatal da fora por par-te do Estado enquanto meio legtimo de punira violncia e de dizer o direito. Posteriormenteabordou a jurisdio e suas crises bem como asdificuldades de implantar uma outra cultura quetenha por prioridade as formas alternativas deresoluo de conflitos tais como a mediao, aconciliao e a arbitragem.

    Palavras-chave: Jurisdio. Literatura. Mediao.

    Abstract: Considering the crises Judiciarycurrent undergoes and the changes to the roleascribed to judges, this text aims to discussthe judicial system legitimized as a means topunish conduct rationalizing violence. Fur-thermore, it will engage the contours of thedecision-making role assigned to judges. Tofulfill this purpose, we used the intersectionsbetween law and literature, especially dis-cussing the comedy The Wasps by Aristo-phanes. Thus, the text first outlined the Statemonopoly of force by the State as a legiti-mate means of punishing violence and speak-ing the law. Subsequently, we addressed thecourt and its crises and the difficulties of de-ploying another culture that has priority forthe alternative forms of dispute resolutionsuch as mediation, conciliation and arbitra-tion.

    Keywords: Jurisdiction. Literature. Mediation.1 O presente texto foi elaborado a partir de pesquisa realizada junto ao projeto intitulado 03/2009, processo 0901814) coordenado pela autora.2 Advogada. Doutora em Direito pelo programa de Ps-Graduao stricto sensu da

    E-mail:[email protected] em: 06/12/2010.Revisado em: 11/01/2011.Aprovado em: 29/03/2011.

    Doi:10.5007/2177-7055.2011v32n62p299

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    300 Seqncia, n. 62, p. 299-322, jul. 2011

    Introduo

    3da jurisdio como ho- enquanto instituio monopolizadora da prestao jurisdicional j no capaz de lidar com a complexidade conflitiva, o debate acalorado daresultante no vem alcanando as expectativas de diagnstico e mapea-mento dos fatores culturais causadores da crise. Desse modo, impossibi-litados de romper o paradigma jurisdicional atual que, estrutural, polticae culturalmente, mantm-se centralizado na figura do juiz o debate se faz

    polmico, mas no alcana meios de oferecer respostas quantitativas e,principalmente, qualitativamente satisfatrias aos anseios dos jurisdicio- -sultam na ineficincia estatal em uma de suas funes mais importantes:

    jurisdicionar.

    Porm, apesar das crises, o Judicirio ainda possui o papel de pro-tagonista no tratamento de litgios, subordinando-se lei e dela retiran-do a sua existncia e a sua legitimidade. Por conseguinte, os vnculos ju-

    rdicos/estatais podem ser expostos atravs da anlise da complexidadecrescente das relaes e das estruturas sociais e polticas. Essas relaesesto cimentadas entre si de maneira ainda precria e a isto se chama inte-grao social fraca. Ainda, a expanso de instrumentos de controle socialde carter no jurdico, dentre eles os de tecnologia, de controle informale de meios de comunicao de massa, redundam na necessidade de re-

    3 uma vez que no cenrio brasileiro atual falar em crise tornou-se um inevitvel lugar

    pela incompatibilidade entre as complexas relaes sociais e as estratgias hegemnicas uma crise no concebida exatamente da mesma maneira em reas diversas. Por isso, economia so coisas diversas. Entretanto, existe um conjunto de traos comuns a todacrise, desde que se situe a anlise em um nvel profundo, o das estruturas na maioriadas vezes no aparentes, o das estruturas reais do fenmeno estudado. Por isso, [...]

    a crise aparece ento como um momento no qual se inicia o jogo do par de oposio

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    organizao da justia que vai alm do simples reaparelhamento estatal,passando pela participao popular na sua administrao, na abertura doJudicirio, a formas legtimas e razoveis de democratizao, revendo o

    papel dos juristas.

    Entretanto, no se pode falar do Poder Judicirio como uma insti-tuio descartvel. De fato, ele passa por uma crise que tambm a crisedo Estado e do Direito, mas no pode ser dispensado4 de atuao da funo jurisdicional precisam ser criadas para que o cida-do volte a crer na justia, existindo, para tanto, algumas razes impor-tantes: a primeira a de que uma sociedade complexa no pode dispensar

    um sistema de regras e, consequentemente, uma jurisdio que garanta o justia no possvel sob pena de uma outra vez se ver instalada a guerrade todos contra todos no mais tpico Estado de natureza. Frente s dificul-dades de funcionamento do Judicirio, o que se pretende rever a atuaodo mesmo na busca de respostas adequadas aos conflitos sociais.

    Assim, o presente texto tem por objetivos: a) primeiramente discu-tir o papel do sistema Judicirio como meio legitimado a punir condutasracionalizando a violncia; b) posteriormente os contornos da funo de -

    4 A mesma crise que enfrenta o Direito e o Judicirio brasileiros a crise que atravessam della giustizia civile italiana presenta un tasso di concentrazione delle controversieavanti al giudice ordinario assai superiore a quello degli altri paesi, anche dellEuropacontinentale [...] Di altra natura sono i problemi connessi con la struttura burocraticadellamministrazione della giustizia e col sistema di reclutamento dei magistrati. Detto

    prevalentemente a magistrati che si trovano nella fase iniziale della carriera, e quindi inet media intorno ai trenta-trentacinque anni, poich il progredire nella carriera stessa

    grado. Di autorevolezza manca la giustizia dappello e manca ci che per aspetti pi

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    lizando-se das interseces entre direito e literatura5, abordando o texto

    Para fins de cumprir com tais objetivos o mtodo de abordagem uti- 6, partindo da relao entre argumen-tos gerais, denominados premissas, para argumentos particulares, at sechegar a uma concluso. Como mtodo de procedimento foi utilizado omtodo monogrfico, a partir de pesquisas e fichamentos em fontes bi-

    bliogrficas, estudo de estatsticas ligadas ao tema da pesquisa, alm delivros e trabalhos relativos ao assunto.

    Assim, o texto se organiza em trs partes, sendo que a primeira teve

    por escopo delinear o monoplio estatal da fora por parte do Estado en- -gundo momento foi abordada a jurisdio e suas crises em decidir confli-tos bem como as dificuldades de implantar uma outra cultura que tenha

    por prioridade as formas alternativas tais como a mediao, a conciliaoe a arbitragem. Por fim, o final do texto aborda o mito do juiz decisorcom base na pea de teatro As vespas de Aristfanes.

    esse, pois, o texto que se apresenta.

    5 tambm contado/narrado. A narrativa literria pode ser a mola propulsora de

    compreenso sobre os homens e a justia humana. Sobre o assunto importante a leiturade: OST, Franois. Contar a lei Direito e Literatura. Ensaios Crticos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008; Tempo e narrativa. Trad. Roberto Leal Ferreira. Campinas: Papirus, t. Diritto e letteratura. Unintroduzione generale. Milano:

    Giuffr, 2001.6

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    1 O Monoplio Estatal da Fora e a Vingana Racionalizada:

    o Judicirio como instncia legitimada a tratar conflitos

    Com o intuito de pacificar a sociedade, o Estado toma para si o mo-noplio da fora legtima, alando pelo direito de decidir litgios e evitar/aplacar/punir a violncia atravs de um sistema diverso do religioso e dosacrifical7, denominado Sistema Judicirio. O poder de tal sistema de evi-tar/aplacar/punir a violncia se diferencia de seus outros atributos porqueno ao culpado que se voltam os olhos, mas vtima no vingada, sendo

    preciso dar a ela uma satisfao meticulosamente calculada, para apagar

    definitivamente os seus desejos de vingana, evitando a todo custo que do mal, no se trata de fazer respeitar uma justia abstrata, se trata de

    preservar a segurana do grupo afastando a vingana, de preferncia comuma reconciliao baseada na composio ou em qualquer outra formaque d resultados, de modo que a violncia no volte a ocorrer. O encon-tro entre culpado e vtima se desenvolver em campo fechado, de forma

    Em contraposio a essa ideia que nasce na Europa o princpioda no violncia cuja expresso por si s suscita mltiplos equvocos,mal-entendidos e confuses. Talvez isso ocorra porque desde logo a ex-

    7 demonstra como o sacrifcio possibilitava o distanciamento da violncia, interpretando-ocomo violncia substitutiva, reconhecendo em seu mago uma verdadeira operao detransferncia coletiva que se efetua s expensas da vtima e que investe as tenses internas,os rancores, a rivalidade, todas as agresses no seio da comunidade. Ao conceituar algo muito sagrado, do qual no seria possvel abster-se sem negligncia grave, ou, aocontrrio, como uma espcie de crime, impossvel de ser cometido sem expor-se a riscosigualmente graves. [...] H um mistrio do sacrifcio. As piedades do humanismo clssicoadormecem nossa curiosidade, mas a familiaridade com antigos autores desperta-a. Hoje, o manejam no se sabe o que predomina: se a indiferena, a distrao, ou uma espcie desecreta prudncia. H aqui um segundo mistrio, ou ele o mesmo? Por que, por exemplo,

    p. 13).

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    presso delineia uma negao, uma oposio, uma recusa. Assim, a pala-vra alimenta inmeras ambiguidades. Porm,

    [...] s ser possvel determinar o significado da no-violncia se -porta determinar a que exatamente a no-violncia diz no, a que

    Para que se entenda melhor a busca pela no-violncia e a manei- -lncia privada), importante distinguir entre situao polmica e Estado

    agonal. A primeira refletida na violncia aberta e direta. uma situaoconflitiva ou que corre o risco de chegar a s-lo, pouco importando o graude violncia. A caracterstica essencial da situao polmica que os opo-sitores se enfrentam como inimigos8, o que quer dizer que se do, mutua-mente, o direito de se suprimir fisicamente. J o Estado agonal consistenaquela situao que logrou desativar os conflitos e substitu-los por ou-

    [...] A caracterstica essencial que os rivais no se comportamcomo inimigos, e sim como adversrios9, o que quer dizer que de

    8 inimicizia, diversa dal non essere amico, che si colloca, o collocato fuori non si sa dacosa, ma sempre allesterno di un interno: da un gruppo, da una comunit, da uno Stato,

    viene inside, di un territorio qualsiasie di qualsiasi natura che conserver sempre la caratteristica di unNomos der Erde segnatodallappropriazione di una terra [...].9 anchio posso veramente essere. Con lui ci si confronta. Lavversario mi permette infattinon solo di misurarmi con lui, ma anche con me stesso: mi fa scoprire i miei limiti lemie possibilit. Lavversario come me: ha i miei stessi timore e le mie stesse speranze;

    imparando a conoscerlo, scoprendo la sua forza e le sue ragioni, i suoi punti deboli e le

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    antemo a violncia e a inteno hostil esto excludas, ainda quepermanea a possibilidade de vitria ou de queda frente ao outro

    -do que ambos os competidores renunciam ao ataque da integridade fsicarecproca. Os meios de definir tais regras circulam desde o estabelecimen-to de instituies at a criao do Direito. Tais regras servem para imporcondutas e proibies aos rivais, bem como determinar as condies devitria. Em resumo, o Estado agonal o fundador de uma ordem reco-nhecida por todos, que no est na vontade discricionria do vencedor,

    a ordem a qualquer custo, muitas vezes se lana mo do uso abusivo dacoero, fazendo da mesma um instrumento de opresso.

    -gulamentao e ao Direito10. conhecido como o Estado dos juzes,

    pois busca no procedimento judicial a soluo de rivalidades e de diver-

    gncias polticas. Contudo, as dvidas nascem da incerteza de que a ins-taurao do Estado agonal seja sempre desejvel, temendo que ele

    [...] possa determinar um conservadorismo social ao impor regrasde flexibilidade e plasticidade rgidas que no atendam complexi-

    Desse modo, a misso precpua do Estado estabelecer, manter e,

    se for o caso, restabelecer a paz civil, objetivando garantir a seguranados cidados. Ento, a ordem pblica nasce como resultado de uma orga-nizao constrangedora da sociedade, calcada em obrigaes e interditos.O Estado, por sua vez, arroga para si e exerce um poder de coao sobre

    invece colui che mi impedisce di esistere: dove lui , io non posso essere. Con lui si 10 forza, un grande male politico che ogni cittadino dovrebbe sentire come tale, anche se

    non condivide la posizione di altri cittadini che riconoscono a esso una particolare priorit

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    -dade segura e igualitria recorrendo apenas aos meios depersuaso11; as-sim, os meios de coao servem para obrigar os indivduos a respeitaremo contrato social12 que funda a ordem e a coeso da cidade.

    Ento, percebe-se a existncia de

    [...] um direito e de um dever de defesa da sociedade contra aque-les que perturbam a ordem pblica. Uma sociedade de direito nopode passar sem uma justia e uma polcia institucionalizadas, ca-pazes de pr fora de combate, isto , de neutralizar pela forapblica, os indivduos e os grupos que pem em perigo a paz civil.Portanto, no poderamos organizar uma sociedade de justia e deliberdade sem reconhecer a legitimidade da obrigao da lei e da

    Diante de tais fatos a questo : se a coao social e o uso da forapblica so necessrios para assegurar a paz civil, quais so os meioslegtimos dessa coao? Os Estados respondem a essa pergunta reivindi-cando o monoplio da violncia legtima baseada na teoria weberiana delegitimao. Em resumo, a coao e a violncia so os meios especficosestatais de fazer valer as leis e os pactos entre os cidados. Fica evidenteque existe uma relao orgnica entre o Estado e a violncia, cujo elo irredutvel e constitutivo da instituio estatal.

    Essa coao se d principalmente pelo Judicirio que protege di-reitos e garante o cumprimento das leis aplicando sanes aos infratores.

    Freund) passa a reinar absoluto como nico meio de impor regras de tra-tamento de conflitos, dissimula e ao mesmo tempo revela a mesmavingana avistada nos sacrifcios religiosos, diferenciando-se somente

    pelo fato de que a vingana judicial no ser seguida de outra, rompendo,

    11

    sem classes da teoria marxista.12

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    assim, a cadeia vingativa13. Desse modo, o Poder Judicirio racionalizaa vingana, a subdivide e a limita como melhor lhe parece e a manipu-la sem perigo; buscando uma tcnica eficaz de preveno da violncia.Essa [...] racionalizao da vingana se apoia sobre a independncia da au-toridade judiciria que recebeu tal encargo, atribuio que ningum discute

    particular, um servio de todos e todos se inclinam diante de suas decises.

    Somente ao Poder Judicirio se atribui o direito de punir a violn-cia porque possui sobre ela um monoplio absoluto. Graas a esse mono-

    plio, consegue sufocar a vingana, assim como exasper-la, estend-la,

    a mesma funo, porm o segundo se mostra mais eficaz, desde que asso-ciado a um poder poltico forte. Todavia, ao delegar a tarefa de tratamen-to dos conflitos ao Poder Judicirio num perfeito modelo hobbesianode transferncia de direitos e de prerrogativas o cidado ganha, de umlado, a tranquilidade de deter a vingana e a violncia privada/ilegtima

    para se submeter vingana e violncia legtima/estatal, mas perde, poroutro, a possibilidade de tratar seus conflitos de modo mais autnomo e

    no violento, atravs de outras estratgias. nesse sentido que a no-violncia postula uma transformao pro-

    funda e constante do Estado. Contudo, adotar a no violncia no signifi-ca o desaparecimento de todo o poder poltico de coao. Querer construiruma sociedade sem governo, sem leis, sem polcia e sem justia, umautopia. Assim como utpico sonhar com uma sociedade sem conflitos.

    Tambm o projecto de sociedade que se inspira na filosofia da no--violncia visa instituir um poder poltico de regulao, de coorde-nao, de mediao, de arbitragem e, se for o caso disso, de coac-o, que seja um equivalente funcional do Estado, mas que nos

    13 graas a isso, minimizar a violncia, evitando o seu perpetuar. Depurada da retrica mais

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    parea prefervel no denominar assim, em nome do rigor e clareza

    Um poder poltico assim, se diferencia profundamente do Estado nasua relao com a violncia. Esse

    [...] novo poder poltico em vez de suprimir os conflitos pela vio-lncia, esforar-se-ia por assumi-los e resolv-los pela no-violn-cia. Este esforo deveria enraizar-se numa vontade poltica tenaze ganhar corpo em solues tcnicas suscitadas por uma vigorosainventividade institucional. Estas no se poderiam encontrar num

    qualquer manual terico; deveriam ser implementadas progressi-vamente atravs de mltiplas experincias sociais que no seriamconduzidas margem da sociedade, mas constituiriam um investi-

    Esse investimento em um outro paradigma para a resoluo de con-flitos poderia romper com o modo atualmente utilizado apostando numamatriz consensuada e autonomizadora, cujos consensos construdos pelas

    prprias partes poderiam ser melhor aceitos e cumpridos.

    2 O Judicirio em um Contexto de Crise: a busca por outra cul-

    tura no tratamento dos conflitos

    Enquanto a cultura da no violncia no se concretiza, no ganhacorpo e adeses, a sociedade atual permanece inerte esperando que suascontendas sejam decididas pelo juiz14. Da mesma forma como o cidadode outrora que esperava pelo Leviat para que ele fizesse a guerra em

    busca da paz, resolvesse os litgios e trouxesse segurana ao encerrar a

    14 La nostra cultura appartiene da tempo al gruppo di quelle che hanno deciso didelegare prevalentemente al diritto statale e ai suoi strumenti formali di decisione delle se accusatori o inquisitori, i nostri sistemi giuridici ci sembrano i soli capaci di garantireun livello accettabile di ordine e sicurezza, scongiurando al tempo stesso la necessit di

    ricorrere a interventi di controllo eccessivamente repressivi, se non addirittura totalitari

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    luta de todos contra todos, atualmente vemos o tratamento e a regulaodos litgios serem transferidos ao Judicirio, esquecidos de que o

    [...] conflito um mecanismo complexo que deriva da multiplicida-de dos fatores, que nem sempre esto definidos na sua regulamen- 74-75).

    Unidos pelo conflito, os litigantes esperam por um terceiro que osolucione. Espera-se pelo Judicirio para que diga quem tem mais di-reitos, mais razo ou quem o vencedor da contenda. Trata-se de uma

    transferncia de prerrogativas que, ao criar muros normativos, enges-sa a soluo da lide em prol da segurana, ignorando que a reinvenocotidiana e a abertura de novos caminhos so inerentes a um tratamentodemocrtico.

    Essa transferncia de responsabilidades quanto gesto do confli-to se direciona ao juiz que a traduz na linguagem dele15. Desse modo,

    partindo do processo de racionalizao weberiana, o Estado, ao deter a

    forma de poder legal, detm, tambm, o monoplio legtimo da decisovinculante. As atenes continuam centradas na figura do juiz, do qual seespera a ltima palavra, no importa qual, mas a ltima. O lugar do juizentre os conflitantes uma questo complicada, uma vez que ele no sedeixa encerrar na fcil frmula da lei que assegura distncia de seguran-a das razes de um e do outro. Ele vive no conflito e do conflito que eledecide, pronunciando a ltima palavra. Entretanto, um

    [...] Sistema Judicirio chamado a decidir sobre tudo e com pode-res muitas vezes discricionrios e pouco controlveis, o lugar que

    15 nico matre du language. A expresso matre du language decisiva e densa, como

    muito convincente sobre o poder da escrita e sobre a ideia de comunidade. A conexoentre linguagem e comunidade no , obviamente, imprevista, mas encontrar ligaese mediaes atravs do juiz abre caminhos insuspeitos por meio dos quais se descobre

    que a linguagem da comunidade no corresponde nunca comunidade de linguagem

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    oculta quotas fortes de irresponsabilidade: consente libis e cobrea aguda diferena entre aquilo que o sistema da jurisdio diz que

    65-66).

    Assim, observa-se uma oferta monopolista de justia incorporadaao sistema da jurisdio, delegado a receber e a regular uma conflitu-alidade crescente. Atualmente, chamamos essa conflitualidade crescentede exploso da litigiosidade, que tem muitas causas, mas que nunca foianalisada de forma mais profunda. notrio como a estrutura jurdico-

    poltica foi sempre muito atenta aos remdios e quase nunca s causas,

    deixando de lado anlises mais profundas sobre a litigiosidade crescente,que constantemente traduzida na linguagem jurdica e que se dirige

    jurisdio sob a forma irrefrevel de procedimentos judicirios16.

    A exploso de litigiosidade se d quanto quantidade e qualidadedas lides que batem s portas do Poder Judicirio, especialmente obser-vando a existncia de uma cultura do conflito. Em face de tal fato, a di-reo da poltica do Direito deve ser no sentido de uma jurisdio mni-

    ma, contra uma jurisdio ineficaz.Quando se litiga judicialmente,

    [...] ao juiz pede-se que decida, que diga a ltima palavra combase na lei, e no que desenvolva a tarefa de cimento social quecompete a outros mais preparados fazer. Mas o resultado, sabe-se, paradoxal: incorpora-se no interior das competncias judiciriascada gnero de linguagem funcional, embocando, obviamente,

    em uma estrada errada. Os sintomas da inadequao de tais condi-

    decidir conflitos sociais? O fato de que o Judicirio tem como funo

    16 Dunque il compito del giudice, fuori da ogni retorica, quello di assumere decisionisulla base di decisioni e di permettere decisioni sulla base delle stesse decisioni.Paradossalmente, per, in un sistema ad altissima complessit, pi si decide e pi aumenta

    il bisogno di decisione dato il carattere di rete interrelata dei sistemi di comunicazione

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    fundamental a deciso de conflitos no quer dizer que a sua funo sejaa eliminao de conflitos. Assim, o conflito social representa um antago-nismo estrutural entre elementos de uma relao social que, embora an-tagnicos, so estruturalmente vinculados alis, o vnculo condio

    sine qua non do conflito. Portanto, se os elementos no so estrutural- - limites de sua capacidade para absorver e decidir conflitos, ultrapassando Judicirio eliminar vnculos existentes entre os elementos ou unidades da relao social, a ele caber, mediante suas decises, interpretar diversi-ficadamente este vnculo; podendo, inclusive, dar-lhe uma nova dimenso

    fonte ou impedindo o seu meio ambiente de fornecer-lhe determinados

    Pormenorizando, possvel afirmar que a vida social gera as suasprprias relaes. Se em qualquer uma destas relaes sociais nascer um

    conflito e uma deciso sobre o mesmo for demandada ao Judicirio, estepoder dar uma sentena sobre aquele tipo especial de relao social. Porconseguinte, no pelo fato do Judicirio decidir a respeito de divrcioou separao, de uma ao de despejo ou homologar um dissdio coletivoentre patres e empregados, que deixaro de existir vnculos familiares outrabalhistas, convergentes ou divergentes17.

    institucionaliza) ou processa conflitos sociais, mas suas decises no eli- -

    17 La pace assicurata dal diritto si dimostra spesso carente sia sul piano etico che su dintendere le relazioni sociali diffuso nelle moderne societ tecnologicamente avanzate:

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    cial especificamente demandada, o que no impede, todavia, que outrastantas, com novas caractersticas, se manifestem ou que continue existin-do a prpria relao social enquanto relao social. O ato do Poder Judi-cirio interrompe apenas aquela relao conflitiva, mas no impede o de- manancial de conflitos sociais, mas sobre eles decidir, se lhe for deman-dado. Assim, ele funcionaliza os conflitos sociais, mas no a prpria vida.O que se espera que decida os conflitos que absorve, dados os graves 2001, p. 104).

    3 O Direito, a Literatura, o Mito e o Juiz: construes em torno

    do verbo decidir

    Como destinatrio e membro representativo desse Poder Judici-rio, a quem todos os conflitos so transferidos no anseio e na espera deuma soluo dada e imposta, encontra-se o juiz. Figura que recebe a le-gitimidade de uma sociedade e do Estado como representante dessasoberania jurisdicional, no qual recaem inmeras proclamaes e mitosculturais, sendo [...] transfigurado como ser diferenciado, autoridade in-contrastvel provida de todos os poderes, poupado ao risco de errar e re-

    18em torno da figurado juiz19, sendo este a expresso e representao suprema da soberania es-

    18 Quando o assunto diz respeito a mitos possvel observar que sua noo circula nasceu tendncia geral de analisar em termos de mitologia a cultura de massa e os seus

    produtos. J o texto de Claude Lvi-Strauss trata dos mitos e de suas associaes com a 19 Egresso de uma formao jurdica tradicional, dogmtica e arcaica, o bacharelconviveu com proclamaes do tipo o juiz expresso da soberania estatal, ordem

    judicial para ser cumprida, no discutida, o juiz pode tudo, at fazer preto do brancoou do quadrado, redondo e outras semelhantes. Enunciados tais fazem da carreira de juiz

    um verdadeiro mito. Por que mito? Entre todos os fenmenos da cultura humana, o mito um dos mais refratrios a uma anlise meramente lgica. Explica-se: o mito sugere

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    tatal. Ao contrrio do pensamento cientfico, o mito no um pensamentodemonstrativo, analtico, etc. Ele narrativo, envolvendo emoes, e glo-

    balmente, com menor ou nenhuma pretenso de objetividade. Tem rela- circular voltamos a trabalhar com os argumentos de Ren Girard e Jean--Marie Muller), a cincia nasce, como uma oposio ao mito, como umadesmistificao, como um desencanto do mundo. Assim,

    [...] muito antes do mundo se apresentar a nossa conscincia comoum complexo de coisas empricas e de propriedades empricas, elese apresentou como um complexo de potncias e de aes msticas

    Seguindo a teoria do mito enquanto um complexo de aes trans- observa com extrema propriedade o mito que se firmou em torno da car-reira da judicatura e da figura do juiz asseverando ser impossvel a hu-manidade viver sem esse complexo mitolgico20. Aduz que [...] o mitoreflete uma conotao herica. Auxilia na fantasia de superao das adver-

    E conclui que

    [...] no mundo das incertezas e das vicissitudes, a figura do juiz re-presentaria a ltima trincheira. Quando tudo o mais falhasse, have-

    est profundamente arraigado na natureza humana e se baseia num instinto fundamental eirresistvel, pois tambm sempre tem umfundamentum in re, sempre se refere a uma certa 20 Sobre os mitos construdos em torno do mundo do direito e de seu senso comum de caador de mitos salientando que [...] o que sempre me motivou a caa poderdescobrir se havia entre os juristas a possibilidade de outra linguagem possvel, querecuperasse a sexualidade perdida, que est na origem de toda linguagem; que poderegular as relaes entre os homens fundamentadas no amor e no na coero, recordando

    que a lei do desejo no est motivada pela coero; que pode servir para recorrer aoscaminhos da emancipao; que pode ser o habitat de uma intimidade no invadida [...]..

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    ria um juiz para permitir ao injustiado repetir Ainda h juzes emBerlim

    Efetivamente o desenvolvimento cultural da nossa sociedade noslevou a uma quase inrcia em resolver nossos prprios problemas. Liti-gar passou a ser associado ao pleno exerccio de cidadania de um povo,que se encontra acobertado e seguro pelo manto do Estado-juiz. Em ra-

    problemas, que o Poder Judicirio encontra-se de portas abertas para olitgio de sorte que todos que demandarem encontraro nele a respostade seus anseios de justia.

    O fortalecimento desse mito encontra respaldo nos prprios cursos -nos, como a forma mais legtima) de resoluo de conflitos o processo ju-dicial. Poucos se dedicam a estudar as formas ditas alternativas, evitandosempre enaltecer a composio e a pacificao do conflito.

    [...] a cada vez que algum pretenda fazer valer um interesse, pre-cisar recorrer ao Judicirio. [...] O profissional encarregado de re-constituir a ordem e afastar o dano o juiz. Em torno disso produ-ziu-se densa tonelagem de tratados.

    A figura do juiz, envolto em todos esses mitos, j foi objeto de an-lise em uma obra intitulada As Vespas, pea teatral de autoria do gregoAristfanes estreada em 422 a.C. A obra uma stira produzida em volta

    do Sistema Judicirio grego da poca e que identifica o desencanto com omodelo Judicirio ateniense.

    que traduziu a comdia para o portugus, resume o enredo da seguinteforma:

    -tico controvertido, demagogo corrupto) fantico pelas sesses -

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    -lo de sua mania judicatria e, como ltimo recurso, segrega-o em Filoclon) chegam em frente sua casa, fantasiados de vespas, an-

    tes do amanhecer para lev-lo com eles ao Tribunal, e o ajudamcomo podem em sua tentativa de escapar da priso domiciliar aque o filho o sujeita. H uma escaramua entre os jurados e os es- qual Filoclon a defende alegando os benefcios que obtm pesso- na realidade os jurados so meros instrumentos dos governantes,que desviam em benefcio prprio o grosso da arrecadao desti-nada a alimentar o povo necessitado. O coro se deixa convencere persuade Filoclon a julgar somente os casos ocorrentes em seuprprio lar, comeando pelo de Labes, o co de guarda da casa, quefurtou um queijo na despensa. Graas a um ardil do filho, Filoclon induzido sem perceber a absolver o criminoso, o primeiro ru que -liclon ento resolve reeducar o pai para a vida social, e melhorarsuas roupas e maneiras, passando a lev-lo a jantares. Os resultados

    so desastrosos, pois Filoclon embriaga-se, insultando os demaisconvidados, pondo-se afinal frente dos componentes do coro paradanar indecentemente.

    Logo no incio da comdia, em um dilogo entre dois personagensda pea, Sosias e Xantias, escravos de Filoclon, h uma explicao sobrea doena que ataca Filoclon. Diz Xantias:

    [...]. Se vocs esto curiosos por saber, faam silncio: vou dizerqual mesmo a doena de meu senhor: a paixo pelos tribunais.A paixo dele julgar; ele fica desesperado se no consegue ocuparo primeiro banco dos juzes. A noite ele no goza um instante desono. Se por acaso fecha os olhos, o prprio esprito fica olhandopara a clepsidra. A paixo dele pelo voto no tribunal to grandeque faz ele acordar apertando trs de seus dedos, como se ofere-cesse incenso aos deuses, em dia de lua nova. [...] Logo depois dojantar ele pedia as sandlias, corria para o tribunal em plena noite e

    adormecia l, colado a uma coluna como uma ostra concha. [...]

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    Com receio de no ter a pedrinha para o voto, ele tinha no jardimde sua casa um canteiro de pedrinhas, que renovava sem parar. Esta

    A obra faz crtica aos juzes da poca e a necessidade que tinham dejulgar sempre. A nsia era fruto do preo que recebiam pelo encargo, com-provando ser um rentvel meio de vida para a poca. Assim, o texto d aentender que julgar alm de uma fonte de poder e de projeo social tam-

    bm era um meio de subsistncia do qual os juzes tiravam o sustento21.

    Com efeito, a stira referia-se um caso de juiz que no julgava,

    apenas condenava, independente da justia que havia na condenao.Evidencia assim o julgar de modo mecnico22, possuindo como resultadosempre a condenao, sem que houvesse anlise de provas e fundamenta-o para as sentenas. Por conseguinte, julgar era a funo e condenar aregra/resultado, sem que pudessem ocorrer variantes.

    21 Vrias passagens do livro contribuem para o enriquecimento da ideia satirizada por

    que voc quer que eu abandone, em vez da maior prosperidade. Um processinho recheado mais feliz, mais afortunada do que um juiz? Que vida mais gostosa do que a dele? Que 22 apenas pela necessidade de atender a expectativas em termos de nmeros, estatsticas, e nem sempre pela qualidade das mesmas. Exemplo desse julgar e do distanciamentocada vez maior entre o juiz e o jurisdicionado e entre a premncia que se cobra do

    primeiro a deciso que responde ao segundo o processo eletrnico. Sobre o assunto

    julgar sobraro apenas lembranas nostlgicas? O ambiente democrtico que permeavao Poder Judicirio tomado por um totalitarismo em que, diante da burocratizao gesto, sistemas de monitoramento, coeres de uniformidade, e a consequncia queno restar, parafraseando Lebrun, nem tempo nem espao, e sobretudo desejo para que

    alguns assumam, de tanto que estaro sujeitos a tarefas de controle e de gesto. Ditodiretamente: Gesto sem Jurisdio.

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    Em vrias passagens da pea possvel extrair o prazer pessoal deFiloclon na condenao e sua obsesso com o tribunal e com o poderque lhe legitimado na arte de julgar. Tais concluses so facilmente per-ceptveis em dilogos como:

    Que que vocs esto querendo fazer? Vocs no vo mesmo me me respondeu um dia que eu morreria no momento em que um acu-

    de impacincia depois de ouvir vocs dessa janela, mas no pos-so ir cantar com vocs. Que que vou fazer? A minha gente tomaconta de mim porque estou pegando fogo para ir com vocs, juntar -

    Da simples leitura da obra, fica fcil observar que existia forte ten-dncia condenao, sem mesmo prvio conhecimento da causa e sem

    -alidade evidenciada na pea teatral e aquela com a qual nos deparamosnos dias de hoje, sabemos que

    [...] nem sempre se interpreta uma lei para fundamentar racional-mente uma deciso. E nem sempre a fundamentao e a interpreta-o das leis so anteriores deciso. O que se verifica que muitasvezes primeiro se decide e depois se ocorre a fundamentao e a

    Atualmente, o sujeito juiz encontra-se num dilema semelhanteaquele que se avista no texto de Aristfanes. Porm suas causas so diver-sas: em Aristfanes, os juzes julgam porque no conseguem imaginar-sedesempenhando outro papel e porque acreditam que ningum mais saber

    [...] se decide como deve decidir, com reflexo e enunciao, de-mora mais do que o sistema exige, e traz consigo a acusao de jul-

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    gar contra o que j est estabelecido, dando falsas esperanas...; sedecide como j-est-decidido apaga seu nome da deciso, a saber,no faz diferena quem assina, pois qualquer um poderia assinar

    Assim, para que o texto possa realmente basear uma reflexo sobreos contornos atuais da atividade jurisdicional necessrio, sabidamente,redimensionar o enredo e a crtica para um cenrio mais contemporneo,de modo que As Vespas, enquanto stira retrata um perodo demasiadoantigo e outra realidade social. Pretendeu debater e refletir a nsia de umgrupo de juzes que no podia se distanciar do ato de julgar.

    Atualmente, a necessidade/nsia pelo julgamento encontra lugartambm dentre os prprios jurisdicionados que confiam e legitimam ape-nas o Poder Judicirio como poder soberano, o dono da verdade suprema,que deve23decidir e resolver os seusproblemas. correto afirmar que a

    judicatura continua representando, para a maioria, uma posio privile-giada, significado de poder e representao de uma elite, pois o juiz umdos agentes polticos melhor remunerado pelo Estado24.

    cada vez mais se socorrem dos meios alternativos para solucionar os con- --humana de trabalho e de processos. Por outro lado, existem aqueles que,

    23 importante recordar aqui as lies da disciplina de Processo Civil nas quais seaprende que as partes tm o nus de praticar os atos processuais que a elas so atribudos.J o juiz tem o dever de decidir, no pode se esquivar ou deixar de faz-lo.24 Por que o subsdio dos juzes brasileiros, aps a EC 45, um dos maiores da AmricaLatina? Ao pensar sobre este tema cabe a advertncia de Milton Friedman: no existe lanche

    Sarlet). Embora no tenha sido a pretenso do prprio Poder Judicirio, no ps 1988 o aumento do custo pas, a saber, a atividade econmica precisava compor o custo da

    produo com o fator Poder Judicirio, manifestado pelo binmio previsibilidade e

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    imbudos e submersos na doena de Filoclon, to bem retratada nasVespas, resistem a todas essas estratgias imaginando que ningum, ne-nhum outro ser mortal poder alcanar aquilo que somente eles, ju-zes, sabem fazer: decidir sobre os conflitos sociais. De certa maneira, tal

    posicionamento reflete o medo de perder a prerrogativa de decidir osconflitos, a insegurana pela possvel transferncia de legitimao doseu tratamento aos prprios conflitantes e mais, a angstia pela perda de

    forte cultura nacional de apego s regras jurisdicionais e a crena de que

    a justia apenas se alcana com a prolao da sentena, imposta pelo juiz -cessidade de julgar era caracterstica marcante, a maioria dos jurisdicio-nados apenas veem no Judicirio a concretude de seus ideais. Da mesmaforma que o juiz da obra ansiava em julgar e condenar, os jurisdicionados

    buscam apenas a justia advinda do juiz, baseada na sentena e na aplica-o da lei, ignorando, a grande maioria, outras formas de resoluo de con-

    de demandismo; poderamos acrescentar: tambm padece de medo deresolver seus conflitos atribuindo tal tarefa a um terceiro: o juiz.

    Concluses

    -pecialmente no que concerne adoo de tcnicas alternativas de jurisdi-

    faculdades de Direito e arraigadas nas praxes forenses, cuja soluo doproblema advm do contencioso e da adjudicao dos conflitos de inte-resses.

    Da mesma forma, alguns juzes optam pela prolao da sentena, es-tabelecendo a paz do direito, ao invs de tentar conciliar as partes e al-canar a verdadeira pacificao social. Sentenciar, no raras vezes, maiscmodo e fcil. Assim, igual Filoclon que ansiava condenar os acusados,

    sem prvio conhecimento, existe, hodiernamente, tendncia a condenar a

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    adoo de outras formas de resoluo de conflitos, sem conhec-las, julgan-do-as ineficazes prestao jurisdicional e incapazes de satisfazer o anseiode justia daqueles que sofrem turbao de seus direitos.

    Contudo, apesar da crena uniforme na cultura da sentena, visvel a crise pela qual passa a jurisdio atualmente, uma crise de efi-cincia e de identidade. Crise que ultrapassa a falta de estrutura e alcan-a a qualidade e a eficcia das decises que, impostas pelo magistrado

    terceiro que diz o direito , nem sempre so exequveis e em outrasoportunidades no tratam o conflito de forma adequada produzindo a

    paz do direito, mas no a afetiva pacificao social. Desse modo, se

    torna necessria a busca por mecanismos alternativos de resposta aosconflitos sociais que possam trat-los de forma adequada qualitativa equantitativamente.

    Esses mecanismos consensuais de tratamento de conflitos, entre celeridade processual, da proximidade entre o cidado e a justia, da in-formalidade e da diminuio de custos) principalmente o rompimento da

    um terceiro que impe a deciso) para assumir uma postura dicotmica,na qual a resposta demanda seja construda pelos prprios litigantes.

    Almejando uma justia mais prxima no em termos geogrficos,econmicos ou sociais, mas em termos que signifiquem autonomizao eresponsabilizao do cidado pelas decises dela vertidas , a mediao

    pode surgir como um salto qualitativo tratando o conflito no mais comoum evento social patolgico, um mal a ser curado, e sim como um fen-

    -ca processual judiciria de ganhador/perdedor para trabalhar com a lgicaganhador/ganhador, que auxilia no s na busca de uma resposta consen-suada para o litgio, como tambm na tentativa de desarmar a contenda

    produzindo, junto s partes, uma cultura de compromisso e participao.

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