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ENTRE LEÕES E CAÇADORES: A MICRO-HISTÓRIA COMO APORTE TEÓRICO-METODOLÓGICO PARA (NA)
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA 1
Ligia Bahia de Mendonça
Universidade do Estado do Rio de Janeiro CNPQ - FAPERJ
[email protected] “ Enquanto os leões não tiverem seus próprios historiadores, as histórias de caças continuarão a glorificar os caçadores”. Carla Del Pontes
A instigação escolhida para iniciar este artigo é valida para além dos textos e das discussões
travadas no campo da História: somos historiadores de leões ou de caçadores?
Para refletir sobre esta questão utilizei a abordagem da chamada micro-história, e para perceber seus
aspectos, uma revista; utilizando-a como fonte e objeto. Fonte por que dela retirei um artigo que
considerei operar com aspectos teórico-metodológicos da micro-história. Objeto por pretender operar
na sua materialidade – uso, apropriação, circulação –, analisando sua utilização como instrumento de
difusão e de circulação de concepções de um campo historiográfico que busca se firmar no cenário
intelectual, estabelecendo como estratégia a representação e consolidação do próprio campo.
Mas, vamos aos eixos: a) (re) visitar a discussão sobre a Revista dos Annales, considerando neste
movimento, desde sua fundação, em 1929 até suas edições atuais, a heterogeneidade dos seus
membros, e a recepção/ apropriação dos historiadores; b) de maneira, ainda, panorâmica analisar a
revista da Sociedade Brasileira de História da Educação, de onde elegemos em seus números, artigos,
para optar por um; c) a análise de artigos que se referem ou se apropriam destes aspectos teórico-
metodológicos, destacando os que dão maior visibilidade a estes aspectos.
A Revista dos Annales, no contexto de suas gerações, propostas e objetivos, surge com uma
concepção de fazer história que fica conhecida, de maneira mais geral, como Nova História Cultural2,
sob influência das ciências sociais, desde as primeiras décadas do século XX. Este fazer historiográfico
não se restringe ao limite do que seria “a história”, mas dialoga com outras disciplinas, sofre
modificações no campo teórico-metodológico, trazendo para frente da cena historiográfica, sujeitos
“produtores e receptores de cultura” (BARROS, 2004, p.61), uma documentação que se refere à vida
cotidiana dos anônimos, sua vida produtiva e comercial, seu consumo, suas crenças, entre outros. Deixa
de privilegiar apenas os documentos oficiais e voluntários, para operar documentos involuntários e
massivos, trazendo diferentes possibilidades de tratamento destas fontes.
A Revista dos Annales, chamada inicialmente de “Annales d’ histoire économique et
sociale”, é fundada em 1929, em torno de dois nomes destacados: Marc Bloch e Lucien Febvre –
dissidentes da “Revue Synthèse Historique” -, como veículo de fazer circular discussões que
combatiam as concepções de “como fazer história”, as quais citamos acima, com destaque para a
corrente positivista. Em 1929 o mundo sofreu com a Grande Depressão de outubro do mesmo ano, com
a quebra da bolsa de valores de Nova Iorque, com muitas conseqüências, porém uma das principais e
mais grave foi à ascensão dos Regimes Totalitários: o surgimento do Nazismo na Alemanha, o
Fascismo na Itália e o Stalinismo na Rússia. Essas crises, posteriores a Primeira Guerra Mundial,
incitou "à superação do relato da história puramente nacionalista, chauvinista" (DOSSE, 1992: 23). É
neste contexto que o primeiro número da revista é lançado em 15 de janeiro de 1929, inicialmente
trimestral, pela editora de Paris Armand Colin, responsável até o número 54, em novembro de 1938.
No ano posterior a revista muda de nome, passando a chamar-se “Annales d’Histoire Sociale”. A
retirada do termo “econômico” do título da revista pode estar relacionado ao estudo das mentalidades,
área da qual se apropriam seus fundadores, porém não a utilizam da mesma forma, conforme esclarece
Dosse (2003): “Marc Bloch alimenta-se mais da contribuição da sociologia durkheimiana do que da
psicologia, que é percebida como material para o historiador, e a ela deve inserir-se a análise das
civilizações, das quais não é dissociável” (p.85-86). Em 1946, Fernand Braudel3, cujo mestre era
Febvre, assume a direção da revista, que passou a denominar-se "Annales. Économies, Sociétés,
Civilisations", que perpetuando a idéia dos Annales constitui sua grande obra La Méditerranée et le
Monde Méditerranéen a l'époque de Philippe II", em três volumes: o primeiro, "La part du milieu", o
segundo, "Destins collectifs et mouvements d'ensemble" e finalmente o terceiro "Les événements, la
politique et les hommes" – tornado-se visível a aproximação com outras disciplinas da ciências sociais,
principalmente a Geografia, assim como seu mestre. Sua reflexão sobre o tempo e o espaço, elabora a
pluaralidade das durações que citamos: a longa duração, chamado de tempo geográfico, onde pode-se
observar as lentas transformações ao longo dos século; a média duração, denominado tempo social, por
estar associado a observação que se faz de grupos ou agrupamentos, voltada as questões estruturais; por
fim, a curta duração, conhecida também como tempo individual, relaciona as rápidas variações,
observando o homem como indivíduo, observação que torna possível a análise dos acontecimentos.
Neste sentido, a área de estudo apropriada por Braudel orientou o título da revista.
Após Braudel, houve a chamada terceira geração e, segundo a tese de Peter Burke (1991), não há uma
figura central, mas vários centros de produção que denomina “policentrismo”, que destaca ainda
algumas novas características dos Annales, como a presença das mulheres, o traço norte-americano, a
história serial, o trabalho coletivo de historiadores, a narrativa, a biografia. É a fase da "Nouvelle
Histoire" ("Nova História"), com nomes como o de Jacques Le Goff e Georges Duby. O primeiro,
bastante conhecido entre os pesquisadores brasileiros, define Nova História como “história-problema”,
como se referia Bloch e Febvre para combater a história-relato: “o historiador... não pode se contentar
em escrever sob o ditado dos documentos deve questioná-los, inserí-los em uma problemática”
(DOSSE, 2003, p.76). A resposta de Le Goff quando indagado sobre a história-problema nos faz
refletir sobre a questão da tradição4, no sentido da influência de seus fundadores. Le Goff, entre outros
aspectos, opera com as documentações, como veremos adiante, chegando a dizer:
“Uma das características e uma das grandes realizações da História Nova, e que coloca
doutro modo o problema da sua credibilidade, consiste numa enorme dilatação do
campo do documento. Isto contempla, por um lado, o recuo do documento escrito, a
busca do documento arqueológico figurativo, do documento oral, que é interrogar os
silêncios da História, a entrada em cena do documento imaginário. Isto reporta-se, por
outro lado e ainda mais fundamentalmente, à concepção daquilo que Foucault
denomina o documento, quer dizer, o sentimento cada vez mais forte que temos de que
o documento não é qualquer coisa que nos foi dado inocentemente , que o próprio
documento é produto de uma certa orientação da História, de que devemos fazer a
crítica, não só segundo as regras do método positivista, que obviamente continuam a
ser necessárias a um certo nível, mas também de uma maneira que eu qualificaria
quase ideológica”. (p.34)
Le Goff parece nos chamar atenção às redes de poderes onde os documentos são produzidos.
Duby que afirma ter uma relação mais estreita com Lucien Febvre, “quis voltar às fontes narrativas e
lê-las de outro modo” (p.42), critica a história positivista que interrogou os fatos de uma maneira quase
policial, dizendo no que se situa: “menos a realidade dos fatos o que me interessa do que a maneira
como as testemunhas, os autores desses grandes textos narrativos tomaram consciência dos fatos que
relatam” (p.42), está voltado para o documento enquanto narrativa.
A análise feita por Almeida (2007) em relação ao texto de Burke (1991) sobre o reconhecimento da
revista que diz chamar atenção:
A formação de uma rede de produção de trabalhos em articulação com editoras, sem a
qual talvez a Revista e posteriormente Escola do Annales não tivesse a repercussão
mundial que obteve, sendo pelos que se incorporam aos paradigmas que apresenta, seja
pelas críticas que sofreu e sofre. (p. 7)
Antes de abordar o debate da chamada quarta geração, detenho-me em outro aspecto da
Revista dos Annales e algumas iniciativas francesas de preservação e circulação: a materialidade da
revista, conforme citado no início do texto, com os conceitos de uso, circulação e apropriação. O
Ministério da Educação Nacional da França, o Ensino Superior e os investigadores5, organizaram um
site chamado “persèe” onde disponibilizam revista de ciências sociais digitalizadas, com objetivo de
viabilizar o acesso ao público, bem como divulgar seu acervo, onde podemos encontrar informações
sobre a revista do período de 1960 até 1999, período em que a revista já era bimestral.
Ao falarmos da quarta geração é preciso salientar que foi marcada por intelectuais que não faziam parte
do grupo dos Annales, como é o caso de Michel de Certeau e de Michel Foucault, autores que foram
lidos apropriados por Roger Chartier e Jacques Revel. Apesar da brevidade do artigo para citar e
analisar dois intelectuais de tamanha grandeza há alguns aspectos relevantes para compreender a
influência destes intelectuais heterogêneos sob esta geração da revista.
Michel de Certeau, jesuíta de formação, em muitas das suas obras conjugou História,
Lingüística, Antropologia e Psicanálise, considerando que a multidisciplinaridade contribuiria para uma
análise mais ampla. Em uma de suas principais obras - “A escrita da História” - refere-se à forma como
o historiador escreve a história, e grande parte seus trabalhos dizem respeito ou se preocupam com a
narrativa da história, aspecto importante também para a quarta geração. Este autor afirma ter sido
marcado – apesar de algumas críticas que faz aspectos teorizados – por Michel Foucault.
Esta geração foi buscar outros modelos de história para repensar as relações de poderes/saberes, as
instituições e a prática discursiva, indo ao encontro de Michel Foucault, entre outras concepções
variadas de pensamento, como o weberianismo.
Revel (1995) inicia um artigo citando o companheirismo que os historiadores mantiveram
com Foucault por mais de trinta anos6, pois Foucault “encontrou um rápido eco por parte dos
historiadores, em particular os dos Annales” (p.3), entre a publicação das obras “História da loucura” e
“As palavras e as Coisas”, na década de 60. Como a “História da Loucura” havia inicialmente, sido
recusada, afirma que:
Foram dois historiadores notórios, na época responsáveis pelos Annales, que
reservaram ao livro uma recepção excepcionalmente calorosa nas páginas da revista,
no ano seguinte. Pensaram ter reconhecido nele traços próximos da história que
praticavam e recomendavam (p.3).
Mas, tanto Revel quanto outros intelectuais afirmam que Foucault não se localiza aí, e
talvez não seja tão fácil “rotular” tal autor. Assim é Foucault:
Nem marxista, nem ligado à escola do Analles, neste último quarto de século a obra de
Foucault tem sido alternadamente louvada e atacada pelos historiadores – e, em ambos
os casos, quase sempre mal compreendida (O’BRIEN, 1995, p.33).
A obra de Foucault pode ser percebida com uma crítica a análise marxista, quanto à dos
Annales, e compreendida como “um modelo alternativo para escrita da história cultural” (O’BRIEN,
1995, p.34). O texto de Patrícia O’Brien (1995)7 examina as contribuições de Foucault para a nova
história cultural, e diz:
A contribuição de Foucault para a escrita da história não é a sua teoria social... Através
do estudo do poder/saber/cultura, Foucault contribuiu, no entanto com uma
metodologia... Voltou sua atenção para um corpo de documento bem estudado pelos
historiadores, as lettre de cachet do Antigo Regime, e impôs seu próprio método ao
projeto (O’BRIEN, 1995 p.51-52).
Foucault tentou através do seu método nada garantir, operar com as descontinuidades,
questionando a periodização tradicional, afasta-se dos Annales entre outras questões, por não estudar
ou não ter como tema a sociedade,
mas sim os discursos verdadeiro/falso: permitam-se dizer que é a formação correlata de
domínios de objetos e de discursos verificáveis e falsificáveis que lhes atribuíveis; o
que me interessa não é simplesmente essa formação, mas os efeitos da realidade que
são a ela associados (Foucault apud O’BRIEN, 1995 p.47-48).
A quarta geração do Annales que surgiu a partir de 1980, mais precisamente em 1988 após
“tempos de incerteza, a epistemological crisis, a tournant critique”8, como diz Chartier no artigo que
define estes diagnósticos, articula duas declarações da época da, Revista dos Annales e da American
Historical Review, abordando as razões e as afirmações da história dominante que no final da década
de 80 e no início dos anos 90 foram abaladas, e afirma:
De um lado, sensíveis a novas abordagens antropológicas ou sociológicas, os
historiadores quiseram restaurar o papel dos indivíduos na construção dos laços
sociais. Daí resultaram vários deslocamentos fundamentais: das estruturas para as
redes, dos sistemas de posições para as situações vividas, das normas coletivas para as
estratégias singulares (CHARTIER, 1994, p.2).
Apontando a teoria/metodologia da micro-história como a “tradução mais viva dessa
transformação da abordagem histórica baseada no recurso a modelos interacionistas ou
etnometodológico” (CHARTIER, 1994, p.2). Chartier cita uma segunda razão que “abalou ainda mais
profundamente as certezas antigas: a conscientização dos historiadores de que seu discurso, qualquer que seja
sua forma, é sempre uma narrativa” (CHARTIER, 1994, p.3), abordadas pelas reflexões pioneiras de Michel de
Certeau9 e pelo livro de Paul Ricoeur10.
Na quarta geração dos Annales, apesar de permanecer num certo “policentrismo”, há dois
intelectuais que podemos destacar - Roger Chartier e Jacques Revel - que propõem um estudo da
História da Cultura que é criada e dispõe-se a partir das experiências vividas que não sejam descoladas
do social, bem como uma nova narrativa a fim de compreender o cotidiano.
Neste período, mais exatamente em 1994, ocorre mais uma mudança no nome da revista que
corresponde aos dias atuais - "Annales. Histoire, Sciences Sociales” que parece compreender toda a
discussão desta geração.
Desde em 1981, a Revista dos Annales passou a ser editada pela Editions de l’Ecóle des
Hautes Études en Sciences Sociales e possui até hoje a mesma editora, continuando a ter número
bimestrais. Ressalto a existência de artigos que se referem ao Brasil, como o de Jacques Lizot, de 1984,
“Les yanomami centraux” e de autores brasileiros, como: Belo Horizonte, une capitale éclectique au
19e siècle de Heliana Angoti Salgueiro(1997). É importante perceber que a partir de (? ) as revistas
passaram a receber títulos relacionados com os assuntos tratados por cada número, como podemos
perceber no segundo número da revistas no ano de 2006 cujo título é Brésil Coloniale com artigos de
Luiz Felipe de Alencastro, João José Reis e nota crítica de Nathan Wachtel, com os artigos: Le versant
bresilien de l’Atlantique-Sud: 1550-1850, la révolte haoussa de Bahia em 1807, Jonathan I. Israel,
respectivamente. Há ainda em 2007, o terceiro número da revista que é dedicado às Colônias das
América como o título Amériques Coloniales La Construcion de la sociéte, com artigo....
A última revista lançada em novembro de 2007 com o título Crimes de sang-Foucault, traz
várias análises sobre as obras do autor, permite-nos notar ainda a grande influência do autor sobre os
historiadores do Annales.
Representa assim, tanto a revista como os intelectuais que em torno da mesma circulavam,
uma forma de pensar teórica-metodologicamente o campo historiográfico e fazê-la um dispositivo de
difusão de um campo de reflexão que não aceita mais ficar marginalizado11, consolidando alguns
nomes dos principais representantes da escola francesa. Circula, além da França, na Itália, nos Estados
Unidos e posteriormente na América Latina.
Estas gerações e toda sua heterogeneidade, como a mudanças que ocorreram na revista ao
longo de sua existência mostram, segundo Certeau (1995) que a “interpretação teórica está, portanto,
ligada ao poder de um grupo e à estrutura da sociedade onde ela conquistou esse lugar” (p.168).
A relevância dos dois intelectuais que talvez represente os Annales, principalmente no Brasil, é clara.
Mas, ressaltaremos Jacques Revel por motivos bem particulares, primeiro porque é o autor que se
dedica e se une ao grupo italiano e juntamente com estes estuda e divulga a micro-história; e pela
disciplina do Programa de Pós-graduação em Educação - Teoria da História -, onde nos debruçamos,
principalmente, sobre a produção de Revel, contando inclusive com sua presença em uma das aulas do
mesmo curso.
Assim, inicialmente, chamada simplesmente de Revista dos Annales, ganha visibilidade e
respeitabilidade nos circuito intelectual passando a ficar conhecida, como alguns chamam: “Escola dos
Annales”; termo que uma boa parte dos seus representantes, nas diferentes gerações, rejeitam, como
vemos na argumentação de Revel (1989):
Uma escola, rigidamente organizada em torno de uma instituição, depositária dos seus
livros sagrados, espartilhada pelas suas convicções e pela sua hierarquia: não há nada
mais alheio à forma como se constitui à volta de um pequeno grupo de homens e da
revista que fundaram em 1929, aquilo que poderíamos chamar, retomando o
vocabulário do capitalismo nascente, uma sociedade de investigações. (p.11)
Jacques Revel (1989) delinea algumas propostas que aqui resgato, compreendendo sua fala
envolvida com o movimento de pesquisa e reflexão e objetivos dos Annales – termo utilizado por este e
por outros intelectuais, para definir a revista. A primeira, que segundo Revel (1989) é na maior parte
das vezes mal colocada, se constitui como um problema de “fidelidade” ao projeto de Bloch e Febvre; a
segunda ao de Fernand Braudel, referindo-se à reivindicação por uma história experimental e a
construção da unidade entre a história e as ciências sociais. Demonstra uma certa preocupação em tirar
a primeira do isolamento, e esta urgência é apontada por Revel (1989) como a proposta central, em
torno da qual é organizada a revista; sucedendo a aproximação com diversas disciplinas das ciências
sociais que é uma das principais características da chamada Nova História Cultural, como: geografia,
uma das primeiras disciplinas com que a história faz contato, mantendo com esta uma relação
privilegiada; a sociologia com a qual o diálogo possivelmente foi mais árduo, mas destacando Pierre
Bourdieu; a psicologia; a etnologia; a economia e a antropologia.
Esta última destaco visto que poderia ressaltar qualquer uma das áreas de conhecimento, por
uma questão de articulação com o tema, pois percebo que a contribuição da antropologia à história com
seus estudos de campo, do comportamento de um indivíduo ou determinado grupo, o material ou fonte
mais rica que fornece ao historiador, entre outros, remete a metodologia do fazer micro-histórico – sem
desconsiderar as tensões que há entre a historia cultural francesa e a micro-história italiana, inclusive
no próprio grupo que estuda a chamada micro-história – o destacando, sem a pretensão de analisá-lo, o
livro de um dos representantes desta teoria-metodologia: “O queijo e os vermes”, de Carlo Ginzburg
(2006). Nele, através de um inquérito da Inquisição de farta documentação, diz o autor em seu prefácio
“de vez em quando as fontes, tão diretas, o trazem muito perto de nós: é um homem como nós, é um de
nós” (p.9), reconstituindo a interpretação da realidade vivida pelo moleiro Menochio, narrando sua
história, mostrando seu comportamento, suas estratégias e táticas perante sua comunidade e os
inquisidores. Procurando notar uma cultura escrita, os livros que leu, como os leu e como viveu na
dimensão social.
Com intenção de promover e realizar as propostas, diz Revel (1989) “a contribuição do
investimento metodológico não parou de aumentar, as técnicas de análise e de tratamento dos dados
tornaram-se mais complexas”, que só é possível, “a partir do momento em que se sai do nível do
programa para o da sua realização prática” (p.40), objetivando não eliminar a especialidade, mas às
“novas especialidades e sua competências e as suas fronteiras” (p.40), promovendo a pluralidade e a
articulação das ciências humanas.
Revel (1989) aponta que a unidade das ciências sociais já não parece tão evidente quanto há
vinte anos, mas argumenta: “o que parece ter-se perdido ao nível de programa está talvez em vias de
ser recuperado no trabalho efetivo” (p.41). Aqui talvez, já possamos esboçar alguns dos braços deste
novo jeito de fazer história, não uma “história estilhaçada ou em migalhas”, mas em construção, onde
na análise dos fatos sociais a interdisciplinaridade passa a “ser experimentada num nível local...”
tornado “os desvios e descontinuidades, o objeto privilegiado da sua interrogação, situá-los e
compreendê-los” (p.41). A luz desta reflexão parece que esbarramos em algo parecido, ainda que
inicialmente, com as características da micro-história sem, no entanto, creditar a este grupo à criação da
mesma, pois este crédito é do grupo italiano, mas de perceber que neste “novo” jeito de fazer história,
ou seja, a Nova História Cultural, encontramos, entre outras abordagens12, à Micro-História,
anteriormente apontada por Chartier como a “tradução mais viva desta abordagem”13, pois é:
Radicalmente diferente da monografia tradicional, a microstoria pretende construir, a
partir de uma situação particular, normal porque excepcional, a maneira como os
indivíduos produzem o mundo social, por meio de suas alianças e seus confrontos,
através das dependências que os ligam e dos conflitos que os opõem (CHARTIER,
1994, p.2).
A tentativa de (re) visitar a revista e o movimento dos Annales abordando seus contextos,
grupos, modificações, tradições e sua materialidade, permite-nos refletir sobre o material impresso
brasileiro: a Revista Brasileira de História da Educação. É necessário afirmar que a escolha implica em
deixar de lado outras possibilidades de análise, mas nos faz reconhecer alguns balizamentos de nossa
reflexão, quanto à história da revista, seu grupo de intelectuais, sua circulação, uso e apropriação.
II – A REVISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE HISTORIA DA EDUCAÇÃO
Sem pretender uma simples comparação, elegi a Revista Brasileira de História da Educação
(RBHE), por considerar relevante e interessante sua constituição a partir da formação de uma
sociedade: a Sociedade Brasileira de História de Educação (SBHE). Fundada em 1999, suas raízes estão
fincadas desde a década de 1980, época em que ganha visibilidade no movimento de discussão e
revisão historiográfica. Insatisfeitos com os padrões historiográficos dominantes, pesquisadores da
Associação Nacional de Pesquisa e Educação (ANPED) organizam um grupo de trabalho para aproximar
os historiadores da educação e formam em 1984, na 7ª Reunião Anual da ANPED, o GT da História da
Educação, que funciona como “núcleo difusor da nova produção historiográfica que vinha sendo
gestada nos centros universitários de Pós-Graduação mais dinâmicos do país, irradiando-a para
outros centros de ensino e pesquisa” (CARVALHO, SAVIANI, VIDAL, 2006, p.2). Na década de 90
é introduzida uma re-configuração historiográfica, “decorrente da introdução, de alguns desses
Programas, de cursos de História da Educação que incorporaram novos temas, questões,
procedimentos de pesquisa e perspectivas de abordagem que vinham sendo alimentados nacional e
internacionalmente”. (CARVALHO, SAVIANI, VIDAL, 2006, p.2). Este grupo possui três
orientações principais, firmadas ainda na década de 90, que exponho resumidamente: a relação da
historiografia educacional com as fontes; relação entre gênero e educação; a interlocução com a
chamada Nova História, orientações que promovem a multiplicidade e ampliação do campo temático
jogando luz em novos referenciais teóricos.
Após a criação do GT de História da Educação, são criados grupos de estudo e pesquisa. Em
1986, “História, Sociedade e Educação no Brasil” (HISTEDBR), que se organizou na Universidade de
Campinas (SP) e institucionalizou-se em 1991 no I Seminário que organizaram. O aumento do número
de pesquisadores e de estudos no campo de História e Historiografia da Educação exigia a abertura de
novos espaços que, em linhas gerais, foi o que impulsionou a criação da SBHE, “um espaço de
interlocução e de consolidação da área” (CARVALHO, SAVIANI, VIDAL, 2006, p.5), sociedade
composta por membros plurais e heterogêneos que têm se dedicado a difundir e fazer circular idéias e
perspectivas diversas da história da educação brasileira atuado em publicações, congressos,
intercâmbios e ação política.
A revista (RBHE), patrocinada pela iniciativa da SBHE, é composta por artigos, dossiês,
resenhas e Coleção Documentos da Educação. Esta revista pode ser encontrada na forma impressa ou
através do portal da sociedade, o que lhe dá grande visibilidade e acessibilidade, seu primeiro número é
composto apenas por autores estrangeiros, estando no 13º número (jan./abr.2007), com artigos de
“investigadores nacionais e internacionais”. A Revista Brasileira de História da Educação (RBHE)
teve seu primeiro número lançado em 2001 e até 2006 sua edição era semestral, tornando-se a partir de
2007; no seu décimo terceiro número, quadrimestral, com uma tiragem de 1.000 revistas por edição.
Atualmente a SBHE conta com mais de 300 sócios, aproximando-se dos 350. A sociedade envia o “kit”
completo da revista para universidades públicas e particulares que possuem programa de pós-graduação
e também para algumas que ainda não possuem o programa.
No quadro abaixo percebemos a circulação da revista dentro das universidades nacionais14.
Regiões do
Brasil
Universidades Públicas Universidades
Particulares
Nordeste Universidade Federal do Rio Grande do
Norte
Universidade Federal do Ceará
Universidade Federal de Sergipe
Universidade Federal do Paraíba
Universidade Federal de Pernambuco
Universidade Federal da Bahia
Universidade Federal do Piauí
Universidade Federal do Pará
Universidade Federal do Maranhão
Universidade Federal de Alagoas
Universidade do Estado da Bahia
Sul Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Universidade Federal de Santa Catarina
Universidade Federal do Paraná
Universidade Federal de Santa Maria
Universidade Federal de Pelotas
Universidade de Ijuí
Universidade Federal de Santa Maria
Universidade Católica do Rio Grande do
Sul
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Centro-oeste Universidade de Brasília
Universidade Federal de Goiás
Universidade Federal do Tocantins
Universidade Federal Mato Grosso
Universidade Federal Mato Grosso do Sul
Universidade Federal Dourados
Universidade Católica de Brasília
Sudeste Universidade Federal de Minas Gerais
Universidade Federal de Uberlândia
Universidade Federal do Espírito Santo
Universidade Federal de São Carlos
Universidade Federal Fluminense
Universidade Estadual de Campinas
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Universidade de São Paulo
Universidade Estadual Paulista (Araraquara,
Marília, Rio Claro, Assis)
Universidade Federal do Rio de Janeiro
LIVRES – USP
Universidade Federal de São Paulo
Universidade Católica do Rio de Janeiro
Universidade Metodista de Piracicaba
Universidade Mackenzie
Pontifícia Universidade Católica
(MG)
Universidade de São Francisco
Universidade Santa Úrsula
Fundação Mineira de Educação e
Cultura
Centro de Educação Integrada do
Vale do São Francisco
Norte Universidade Federal do Amapá
Universidade Federal de Rondônia
Universidade Federal de Roraima
Universidade da Amazônia
A partir do quadro é possível fazer algumas reflexões sobre a circulação das revistas, apesar
de não poder, neste momento, dentro dos limites desse trabalho, analisar quem e como as lêem de fato;
isto é, como se dá sua apropriação. O quadro mostra uma grande distribuição por todas as regiões do
país, com ressalva para a região Norte (três Universidades) o que parece confirmar, e escrevemos tal
análise de maneira cuidadosa, as profundas diferenças regionais que ainda permanecem no quadro
educacional brasileiro.
É relevante ressaltarmos que utilização da revista se dá primeiramente na forma de uma
série documental, ou seja, a análise de todos os artigos que compõem os 13 números da RBHE;
posteriormente trabalhamos com as sub-séries remetendo aos artigos que se referem à Nova História
Cultural, bem como à micro-história. Até chegarmos ao artigo proposto para análise.
Optei por analisar todos os números da revista, considerando a produção apresentada pela
revista, totalizando 94 artigos dos mais diferentes campos e temáticas15. Desses, 56 declaram utilizar ou
operam na perspectiva da teoria/metodologia da Nova História Cultural, à medida que se apropriam dos
autores representantes desta forma de fazer história. Ressalto a utilização e a apropriação de dois dos
autores que analisamos até o momento, sendo Chartier o mais utilizado, citado em 20 artigos, levando-
nos mais uma vez a refletir sobre o seu reconhecimento entre os historiadores brasileiros, e também
sobre o crescimento do número de trabalhos que abordam as práticas de leitura e escrita; Foucault é o
segundo mais citado, em 17 artigos, segundo Gondra (2007) em pesquisa que busca entre outros
objetivos perceber que Foucault tem sido consumido pela História da Educação, as obras do autor mais
citadas são: “Vigiar e Punir” e “Microfísica do poder”, há acessibilidade de leitura já que os livros
encontram-se traduzidos para inglês, espanhol e português, “a primeira obra também se explica pela
chave da tradução e por se considerado um fenômeno editorial” (p.7), uma vez que encontra-se na 32ª
edição como mais 122.229 livros vendidos16. O que explica tal apropriação? Há duas respostas
possíveis, a primeira o objeto a qual Foucault refere-se “o conjunto das instituições disciplinares
instauradas na modernidade, como o quartel, o asilo, o hospital e a escola, cuja finalidade, segundo o
autor, foi o de suavizar as penalidades”, a segunda, “pode ser associado à renovação no campo das
Ciências Sociais” (GONDRA, 2007, p.8).
Busquei encontrar nos trabalhos a utilização dos paradigmas da micro-história, observando
que eles apresentam uma concepção peculiar de fazer história, e, inicialmente, tomei como base traços
perceptíveis dessa vertente: utilização/ apropriação de autores reconhecidos como os representantes da
micro–história, bem como a ausência dos mesmos, e a partir daí analisar sua recepção e apropriação
pelos autores da Nova História Cultural brasileiros. Na mesma perspectiva analisamos apenas artigos, e
notamos o seguinte: há na revista de número 517 um artigo que se refere claramente ao termo micro-
história utilizando-se do livro de Carlo Ginzburg; o autor é também utilizado em mais outros três
artigos18, nas revistas números 9 e 12, sem, no entanto, mencionar a micro-história.
Dada a contingência do tempo, que é nosso algoz, elegi um artigo dentre os citados,
primeiramente por perceber, apesar da autora não declarar utilizar a metodologia da micro-história,
elementos e indícios mais claros de uma maneira de operar dentro de tal perspectiva. A autora analisa a
educação por um olhar particular e diversificado e, ainda que não seja o mesmo período da minha atual
pesquisa, traz um novo olhar sobre a história que antecede o que estudo, podendo, portanto, me auxiliar
na compreensão de alguns fatos ocorridos nos oitocentos.
O artigo “História Cultural e História da Educação na América Portuguesa”, de Thaís Nívia
de Lima Fonseca, propõe estudar a educação brasileira no período Colonial, implicada na investigação
do processo e prática educacionais que extrapolem as duas instituições dominantes, ou seja, a ação do
Estado e da Igreja, e procura perceber as práticas cotidianas dos sujeitos nos movimentos de sua ação.
Faz inicialmente um balanço sobre obras que abordam a historiografia brasileira e a história da
educação no Brasil. Antes da reflexão de alguns aspectos micro-históricos percebidos no artigo, busco
refletir, inicialmente, juntamente com a argumentação da autora, sobre algumas definições sobre esta
abordagem teórica - metodológica, criada pelo grupo italiano19, que enfoca o detalhe, o marginal e o
seu tratamento, bem como a complexidade das estratégias e táticas coletivas e individuais e das
relações sociais, para notar com um pouco mais de densidade algumas características da micro-história
ao longo da análise do mesmo.
Destaco neste momento alguns indícios da micro-história percebidos no artigo a autora faz
crítica a obras tradicionais, como: Varnhagen, Capistrano de Abreu, Caio Prado Júnior, Gilberto Freyre
e Sérgio Buarque de Holanda, que marcam a história e a história da educação no Brasil, afirmando que
“são trabalhos que tratam a educação colonial de forma bastante generalizada, pouco se detendo nas
especificidades regionais e nas condições concretas de realização das determinações governamentais
a respeito da instrução” (p.56). Considera a autora que os projetos educacionais que entendem o Brasil
Colônia como unidade, correm os riscos do anacronismo. É relevante destacar que a tentativa da autora
de colocar todos os intelectuais num mesmo lugar produz um andar em “terreno pantanoso”, diante da
diversidade de pensamento, de formação dos autores.
Suas obras, consideradas matrizes teóricas da história do Brasil, são por vezes criticadas ou
ovacionadas pelos intelectuais mais recentes, e, ousadamente, ressalto dentro do limite deste texto, a
articulação com o tema proposto, pois Antonio Arnoni Prado (2000) na apresentação de “Visão do
Paraíso”, de Sérgio Buarque de Holanda, sinaliza:
“Livro que destoava dos estudos históricos que se faziam na época e, de certa
maneira, ia à contracorrente do que então era moda, em especial o ensaísmo de
timbre econômico-social, quando não marxista, que então predominava”
(p.443), o autor traz entre outros aspectos interessantes sobre a originalidade e
audácia do livro “que teria antecipado, entre nós, a historiografia das
mentalidades, que só apareceria na França depois dos anos 60, na vertente
anteriormente preconizada por Lucien Febvre” (p.443).
Ressaltando no ponto de vista proposto pelo artigo, reúne os diversos autores numa
concepção totalizante da história, o reconhecimento da autora de duas obras responsáveis por introduzir
a idéia de mediadores culturais: Casa-grande & Senzala, de Gilberto Freyre e Caminhos e fronteiras, de
Sérgio Buarque de Holanda, apontando como facilitador do contato entre os portugueses e os povos das
mais diversas regiões, contradiz a sua escrita quanto à classificação dos autores citados.
Porém, atendo-me à crítica feita pela autora sobre a visão e a história totalizante, faço uma analogia
com historiadores do Annales, particularmente Revel (1998), ao analisar a visão totalizante:
“Consideravam que a escala de observação não constituíam uma das variáveis da
experimentação porque supunham, ao menos tacitamente, uma continuidade de fato do
social que autorizava justapor resultados cujo arranjo não parecia constituir problema”
(p.18).
A autora propõe outra crítica as obras citadas, a questão da uniformidade entre Portugal e as
várias partes de seu domínio ou ainda uma relação de polarização entre Colônia/Metrópole: “unidade e
fragmentação, dependência e autonomia, exploração e integração”, visão problemática sobre os
instrumentos necessários à formalização, pois segundo Levi (1992):
“A história social tradicionalmente se considerava capaz de aplicar modelos rígidos à
história e de utilizar um tipo quantitativo de formalização, em que o conceito de
causalidade não poderia ser enfraquecido pela atenção às escolhas e às incertezas
pessoais, as estratégias individuais e de grupos que evocam uma perspectiva
mecanicista” (p.159).
O artigo problematiza como pensar essas relações polarizadas em relação à história da
educação e em que medida essa flexibilização ajudaria a pensar a educação no Brasil antes da sua
constituição como Estado Nacional. Neste sentido, ainda de acordo com Levi (1992), a micro-história
“acentua as vidas e os acontecimentos individuais (e porque não dizer de pequenos grupos, como os
mestiços?)... tenta não rejeitar as formas de abstração, pois fatos insignificantes e casos individuais
podem servir para revelar um fenômeno mais geral” (p.158). É o que Edoardo Grendi (1998) chamaria
de “normal excepcional”. A autora aponta a questão da fragmentação (Novais e Vainfas) como modo
de problematizar análises feitas a partir da idéia de totalidade.
Na perspectiva de responder as suas questões, Fonseca (2006) diz ser inegável a existência de um
projeto ou projetos na América Portuguesa naquele período, como a presença dos jesuítas e de políticas
mais sistemáticas, como a administração das Reforma Pombalina, na segunda metade do século XVIII,
destacando que:
“Se a educação no Brasil nesse momento parece limitada em termos de educação
formal, e sobre tudo pública, não se pode dizer o mesmo de processos educativos mais
amplos que, realizados intencionalmente ou não, implicavam no estabelecimento de
relações nas quais alguma forma de saber circulava e era apropriado” (p.60).
Esse processo ocorria, mas não exclusivamente, entre as pessoas do “grupo social
subalterno” (os brancos, livres e pobres, os indígenas, os negros livres e escravos e a população
mestiça) que, geralmente, afastados ou proibidos de freqüentar a escola, conseguiam produzir
estratégias para se envolverem, de alguma forma com o processo educativo (oficiais mecânicos,
oficinas e ateliês) e souberam dele se beneficiar. Neste momento é possível notar a redução/variação de
escala de observação feita pela autora, que conforme Revel (1998):
“A escolha da escala particular de observação produz efeitos de conhecimento, e pode
ser posta a serviço de estratégias de conhecimento. Variar a objetiva não significa
apenas aumentar (diminuir) o tamanho do objeto no visor, significa modificar sua
forma e sua trama” (p.20).
Neste sentido a análise micro-histórica pode “por um lado, movendo-se numa escala
reduzida, permite em muitos casos a reconstituição do vivido impensável noutros tipos de
historiografia” (GINZBURG, 1989, p.177-178).Diante da análise feita pela autora da existência de
perspectivas diferentes retomo a significação de Grendi (1998) sobre o excepcional/normal que procura
definir como “o testemunho-documento pode ser excepcional porque evoca uma normalidade, uma
realidade tão normal que ela parece habitualmente calada” (p.257), e analisando esta perspectiva
utilizo-me de Ginzburg (1989), segundo o qual a esta expressão contraditória pode ser atribuída pelo
menos dois significados:
“O primeiro, designa a documentação que só aparentemente é excepcional” ou “se as
fontes silenciam e/ou distorcem sistematicamente a realidade social das classes
subalterna, um documento que seja realmente excepcional pode ser mais revelador que
mil documentos estereotipados... Quer dizer, funcionam como espias ou indícios de
uma realidade oculta que a documentação, de um modo geral, não deixa transparecer”
(p.176-177).
Fonseca confirma estas características da micro-história citadas dizendo: “o papel de
grupos e indivíduos é crucial para compreensão desses movimentos na perspectiva de mudanças e de
permanências, atuando como mediadores entre tempos, espaços e culturas” (p.63), propondo para tal
observar tais práticas no cotidiano, que permitem observar os indivíduos em suas ações ordinárias, em
suas relações, cotidianas e aparentemente marginais, e se esta variação de escala ultrapassa uma
descrição, articulando-se com outras escalas, os sujeitos desta história passam a ser os que já vem
sendo chamados de mediadores culturais, que nos leva a perguntar: como e quais ações interferiram na
educação brasileira no período colonial?
A autora diz que somente pela influência da chamada Nova História Cultural na
historiografia brasileira, através de sua diversa teoria/metodologia, é possível jogar luz, acentuar as
vidas comuns -, mas ressalta importância de perceber até que ponto estas variações e diversidades não
se tornam conflitantes entre si – para a compreensão de uma realidade muito mais complexa,
aproximando-se de Ginzburg na questão da realidade, que como a cultura não pode ser reproduzida,
apenas interpretada. Ela aponta a relevância de perceber as questões de fundo, nestes tipos de pesquisas
como o benefício a partir da aproximação com a antropologia que “esclareceu para os historiadores
acerca da cultura como uma ampla dimensão da vida das sociedades” (p.66), mas a cultura deve ser
compreendida sob a luz de duas dimensões caras à história: temporalidade e dimensões sociais.
Percebemos na aproximação da autora à antropologia como um indício da operação micro-história –
mesmo sabendo que outras perspectivas históricas dialogam com a antropologia, como a história social
britânica – notamos na operação do artigo percepções mais próximas da primeira.
Prossegue analisando o conceito de cultura, onde a autora parece-me forçar um pouco a aproximação
entre dois intelectuais.
Analisa o conceito de cultura a partir de dois autores, um representante da revista do
Annales e outro representante do movimento da Micro-história na Itália. Chamando atenção para a
tensão na aproximação dos mesmos: Roger Chartier (1990) com as noções de representação e
apropriação, permitindo pensar as pequenas estratégias cotidianas, nas diversas apropriações de
valores, saberes e poderes, a partir do livro “A História Cultural: entre práticas e representações” e
Ginzburg (1997) considerando a noção de circularidade cultural forjada para o estudo das interações
entre as culturas numa mesma sociedade, a partir do livro “O queijo e os vermes”; ainda que seja ofício
do historiador promover diálogos entre os diversos intelectuais sem, contudo, deixar de observar onde
se aproximam e se afastam teórica-/metodologicamente. A autora pretende mostrar a aproximação dos
dois autores através de livros com estatutos diferentes, pois o livro citado de Chartier, o autor opera
com conceitos; e Ginzburg opera com sua metodologia, mas não define seus conceitos ou noções,
como faz nos livros “A micro-história e outros ensaios” e “Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e
história”. Autores como Chartier, Ginzburg, entre outros, apesar de distintos, romperam com a visão de
uma cultura dominante em detrimento de cultura “popular”, porém a afirmação que Fonseca (2006) faz
em seu artigo de que:
A noção de circularidade cultural forjada por Ginzburg para o estudo de interações
entre as culturas numa sociedade... De certa forma, é de apropriações culturais de que
trata Ginzburg em suas análises, não obstante ele e Chartier partam de pressupostos
diversos – mas não excludente – quanto ao conceito de cultura. (p..67)
Enquanto Chartier a cultura está ligada à representação, como algo produzido para ser
internalizado por um indivíduo ou um grupo; e práticas, no sentido da apropriação dos modos de leitura
(Quem lê? O que lê? Por que lê? E como lê?) ou ainda, na escrita ou nos objetos. Para Ginzburg a
circularidade cultural está relacionada principalmente, como é o caso de Menocchio em “O queijo e os
vermes”, “à constituição de uma série de experiências heterogêneas, sobre o mundo social e que vive
que não está limitado da experiência social” (REVEL, 2007), a cultura parece-me, neste caso articular-
se com as dimensões sociais destas experiências.
Um último aspecto apontado por Fonseca, é o referente às fontes, pois para constituir
pesquisas onde os sujeitos, sejam os grupos chamados genericamente de subalternos ou sujeitos
individuais, é necessário verticalizar o contexto da mestiçagem cultura para realizar uma análise mais
complexa da sociedade brasileira colonial. Nesta perspectiva a diversificação das fontes, como:
“inventários e testamentos; correspondências e atas de reuniões das câmaras... Processos criminais;
relatos de viagens; diários; sermões; documentação eclesiástica” (p.67), torna-se fundamental, sendo
importante ao tratá-las perceber seus detalhes e decifrar suas pistas, ou ainda como sugere Foucault
(2005) diante de um discurso ou de um documento:
“Não procurar ler nas entrelinhas a intenção do sujeito, mas trata-se de compreender o
enunciado na sua estreiteza e singularidade se sua situação, deve se mostrar por que
não poderia ser outro, como ocupa no meio dos outros e relacionados a eles um lugar
que nenhum outro poderia ocupar”. (p. 30-31)
Nesta direção, indica as dificuldades impostas a estes tipos de pesquisas: “a dificuldade de
localização de fontes, leitura dos documentos, manuscritos em sua grande maioria e, por outros, à sua
simples inexistência” (p.68), mas “os silêncios”, as “margens” e as “ausências” são formas para
buscar os indícios mais sutis, para interpretá-los como um todo conforme nos indica Carlo Ginzburg
no seu chamado ‘paradigma de um saber indiciário’2021”(MEN DONÇA, 2006, p.10), pois “quando as
causas não são reproduzíveis, só resta inferir a partir dos efeitos” (GINZBURG, 1991, p.169). Le
Goff faz nesta perspectiva belíssima e importante reflexão:
“A história faz-se com documento escritos sem dúvida, quando estes existem. Mas,
pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos escritos, quando não existem [...]. Como
tudo o que pertencendo ao homem, depende do homem, serve ao homem, exprime o
homem, demonstra sua presença. Há que tomar a palavra documento no sentido mais
amplo, documento escrito, ilustrado, transmitido pelo som, imagem, ou de qualquer
outra maneira”. (p. 540)
Reafirma que “a nós, historiadores, cabe utiliza as ferramentas adequadas para localizar
as fontes e saber fazer-lhes perguntas” (p.68), pois as fontes não falam por si, bem como nos diz
Ginzburg em sua analogia entre o inquisidor e o antropólogo ou historiador, de como chegam a suas
fontes e como lhes fazem perguntas, mas talvez com um certo tom de ressalva como fazem Le Goff
(19992) e Foucault (2005), pois para o segundo o problema não estaria em questionar o documento, “o
documento é um monumento” (p.548), afirma o primeiro; o pensamento destes intelectuais converge no
seguinte ponto, a que nós historiadores devemos estar atentos, os documentos são elaborados pela
sociedade para impor ao futuro sua imagem, são produtos de relações de poder.
CONCLUSÃO
Chartier analisando como se constituiu a Nova História Cultural, lembra um texto de Michel
de Certeau ao qual é sempre preciso voltar:
Ela é uma prática “científica”, produtora de conhecimentos, mas uma prática cujas
modalidades dependem das variações de seus procedimentos técnicos, dos
constrangimentos que lhe impõem o lugar social e a instituição de saber onde é
exercida ou ainda das regras que necessariamente comandam sua escrita. (p. 12)
Foi sob este estatuto da história que pretendemos analisar o percurso da Revista dos
Annales, enquanto movimento de pesquisa, bem como suas gerações articuladas com sua
materialidade, através dessa redução da escala de observação é possível perceber e refletir como se
constitui a Nova História Cultural francesa que marcou boa parte dos historiadores, inclusive fora da
França, com objetivo central de retirar a história da marginalidade e do isolamento. Podemos notar a
constituição de um grupo brasileiro (SBHE) com objetivos claros de propor uma mudança no “fazer
história” dominante no Brasil, com um grupo heterogêneo, onde é possível encontrar autores dedicados
à Nova História, fundadores da RBHE. Apesar das distinções entre histórias, percursos e épocas,
considero que há aproximações nestas duas revistas, como: a insatisfação com modelos dominantes de
história existentes até então; e a utilização da revista como instrumento de circulação, uso e apropriação
de visões defendidas pelos dois grupos, mas principalmente como veículo de circulação de poder que
criam redes de forças, que se concordamos com Michel de Certeau (1995): “é preciso perguntar se
como uma combinatória de forças em competição ou em conflito desenvolve um grande número de
táticas em espaços organizados, ao mesmo tempo, por coerções e por contratos” (p.18).
Nesta perspectiva, além da proposta do artigo de analisar um trabalho que utilizasse a
teoria/metodologia da micro-história, buscamos estatutos que nos autorizasse tal análise, como: a
utilização dos autores que a representa, bem como a apropriação e compreensão dos seus paradigmas, a
aproximação com a antropologia e a massa documental diversificada aspectos que puderam ser
visualizados ao longo do texto. Destacamos que nos vimos envolvidos, porém, nos fios do texto no
ofício do historiador que no seu exercício deve ser sempre vigilante (CHARTIER, 1994, p.12), e é este
ofício vigilante que nos faz refletir/ questionar se sob as coerções, as táticas, os constrangimentos do
lugar social, as instituições de saber onde são exercidas e as regras que comandam a escrita, exercemos
o ofício de historiadores dos leões, que são colocados às margens ou dos caçadores com suas grandes
histórias vitoriosas.
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