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ENSINO DE EVOLUÇÃO, DOGMATISMOS RELIGIOSOS E AS RELAÇÕES
ENTRE CULTURAS
Luís Dorvillé (UERJ-FFP)
RESUMO
Contrariando muitas expectativas, o pensamento religioso não desapareceu das
sociedades modernas e nem se encontra restrito às camadas menos informadas da
população. O advento da Modernidade e suas instituições não assistiram ao declínio do
pensamento religioso. O conflito entre visões de mundo religiosas, de um lado, e
explicações científicas, de outro, se não representa algo novo, parece ter adquirido novos
contornos, devido ao avivamento religioso que vivemos nos dias de hoje. Esse cenário
relaciona-se ao fenômeno religioso de maior importância das últimas três décadas no
Brasil e na América Latina: o crescimento vertiginoso de adeptos de denominações
religiosas pentecostais. Tal cenário tem repercussões nas salas de aula de Ciências e
Biologia do ensino básico das escolas públicas e, em menor grau, nos cursos de graduação
em Ciências Biológicas, no ensino superior. Um dos focos principais desse embate é
encontrado no ensino dos conceitos relacionados à evolução biológica dos seres vivos,
fortemente contestado por uma perspectiva criacionista que reserva ao ser humano um
lugar especial na Criação, distinto das demais espécies, as quais, por sua vez, também são
fixas e imutáveis. Considerando este contexto, o trabalho analisa alguns resultados de
investigações de quase dez anos entre os licenciandos evangélicos do Curso de Ciências
Biológicas numa universidade pública situada no Estado do Rio de Janeiro. Uma das
conclusões destas pesquisas indica que a adoção de um discurso inteiramente relativista
sobre o ensino de evolução pode apresentar efeitos tão danosos sobre os licenciandos
quanto os de um discurso científico dogmático. Neste sentido, temos buscado entender
como a perspectiva intercultural pode ajudar a equilibrar posturas antagônicas e
igualmente danosas para a formação de professores de Ciências em contextos com forte
presença pentecostal.
PALAVRAS-CHAVE: religião e ciência; ensino de ciências; formação de professores.
INTRODUÇÃO
Contrariando as expectativas de muitos, o pensamento religioso não desapareceu
das sociedades modernas e nem se encontra restrito apenas às camadas menos informadas
da população. O advento da Modernidade e suas instituições, dentre as quais figura com
destaque a Ciência, o crescente acesso à informação e a novas tecnologias, não assistiram
ao declínio da importância do pensamento religioso e/ou mágico. Pelo contrário, embora
o fenômeno deste suposto reencantamento atual não seja considerado por alguns autores
como evidência de um fenômeno de dessecularização do espaço social (PIERUCCI,
1997,1998), o que se evidenciou em muitos países foi o aparecimento nos grandes centros
urbanos de modalidades religiosas que passaram a disputar espaço com afinco com outras
formas de produção de sentido.
Este conflito entre visões de mundo religiosas de um lado e explicações científicas
de outro, se não representa algo novo, fruto de uma nova era de avivamento religioso,
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como muitos talvez pudessem fazer crer, parece ter adquirido nos dias de hoje
seguramente novos contornos. Estes se caracterizam pela ação de grupos religiosos de
renovado vigor proselitista e pela ocupação desenvolta dos espaços públicos por um
discurso religioso dogmático e uma interpretação bíblica literalista.
Esse novo cenário é consequência do fenômeno social de maior importância no
campo religioso das três últimas décadas no Brasil e na América Latina, a saber, o
crescimento vertiginoso do número de adeptos de denominações religiosas pentecostais
(JACOB et al., 2003). Uma das evidências do interesse recente por esse fenômeno é
apresentada por Novaes (1999) ao constatar que nos anos 70 e 80 do século XX poucos
estudos haviam se dedicado a explicar o significado do crescimento pentecostal. Muitos
dos pesquisadores, então voltados para as grandes questões econômicas e políticas, não
consideravam a análise do pentecostalismo como um fenômeno digno de atenção, sendo
encarado como um fenômeno em declínio, uma vez que as religiões deveriam perder força
diante da modernização tecnológica em curso (NOVAES, 1999).
Duas décadas depois o pentecostalismo dobrou o número de seus membros no
Brasil e não pôde mais ser ignorado, fazendo-se presente em diversos setores da vida
pública, da política aos meios de comunicação de massa, difundindo ideias e modelos de
comportamento que tiveram desdobramentos nos setores mais diversos da sociedade, tais
como na educação, saúde, política, lazer, religião, consumo e sexualidade. Nenhum outro
grupo organizado experimentou tamanho sucesso em um intervalo de tempo tão curto
desde o seu surgimento nos Estados Unidos há pouco mais de cem anos.
Dentre esses espaços se destacam as salas de aula de Ciências e Biologia do ensino
básico das escolas públicas e também, em menor grau, os cursos de graduação em
Ciências Biológicas, no ensino superior. Um dos focos principais desse embate é
encontrado no ensino dos conceitos relacionados à evolução biológica dos seres vivos,
fortemente contestado por uma perspectiva criacionista que reserva ao homem um local
especial na Criação, distinto das demais espécies, as quais, por sua vez, também são fixas
e imutáveis, no que é interpretado como um sinônimo de perfeição.
O caso particular da evolução biológica é emblemático uma vez que esse é
considerado o conceito unificador das diversas áreas que compõem a Biologia
(DOBZHANSKY, 1973; MEYER & EL-HANI, 2005). Deste modo, os conflitos acima
descritos se ocorrem não em uma área periférica dessa área do conhecimento, mas em
uma parte central dessa Ciência. Mais ainda, a própria história da construção do
paradigma evolutivo é, segundo Smocovitis (1992 e 1996), a história da emergência,
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unificação e amadurecimento da Biologia, processo no qual ela assume a sua
singularidade como campo particular da Ciência em sua configuração contemporânea.
No âmbito do ensino de Biologia tanto os Parâmetros Curriculares Nacionais para
o Ensino Médio (BRASIL, 1999) quanto as Orientações complementares aos Parâmetros
Curriculares Nacionais - PCN + Ensino Médio (BRASIL, 2002) são unânimes em
destacar a centralidade do ensino da evolução biológica.
No entanto, especialmente na escola pública, é crescente o confronto entre os
conteúdos a serem ministrados e as visões religiosas trazidas pelos alunos. Muitos são os
relatos de professores que enfrentam dificuldades ao tentarem apresentar nas salas de aula
as interpretações de suas disciplinas específicas. Embora nem todos os atores envolvidos
ocupem necessariamente apenas os extremos desse espectro de posições, as situações
conflituosas se revelam, com certeza, cada vez mais numerosas.
Deste modo, se por um lado Religião e Ciência possuem epistemologias e
ontologias distintas em si mesmas, que não representam necessariamente antinomias, por
outro é difícil, na prática, considerá-los como magistérios não-interferentes, ocupando-se
de domínios inteiramente distintos, como faz Gould (2002) em seu apelo irenista. Na
mesma obra, o autor destaca, mais adiante, que o suposto conflito entre Ciência e Religião
e seu debate consequente, embora ausente na lógica de áreas tão distintas, se encontra nas
mentes e nas práticas sociais dos diversos indivíduos. Se Religião e Ciência em si não são
mutuamente excludentes, algumas de suas interpretações por parte de nossos alunos
certamente o são, particularmente aquelas fundadas tanto no dogmatismo cientificista
quanto no fundamentalismo religioso.
Como se pode perceber, o ensino de evolução, nos seus diversos níveis, envolve
na verdade questões muito mais amplas do que apenas aquelas relacionadas ao
aprofundamento e atualização conceitual dos conteúdos específicos da Ciência de
referência. Como esse tema apresenta desdobramentos que para muitos extrapolam a
Biologia e se relacionam a questões envolvendo visões de mundo e valores, se realmente
desejamos que o seu aprendizado seja significativo, é fundamental que ele seja capaz de
dialogar com algumas das principais ideias que fazem parte das visões de mundo de
nossos alunos. Nesse sentido, as discussões sobre cultura podem apresentar uma chave
de leitura privilegiada que evite tanto uma visão cientificista da atividade científica
quanto de um relativismo estéril que valida da mesma forma, em quaisquer contextos e
sob os mais diferentes critérios (éticos, de potência epistêmica, postura diante da
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alteridade), os mais diversos sistemas produtores de significado, alguns dos quais
inclusive antagônicos.
A CONTRIBUIÇÃO DA CULTURA
O mundo passou por um conjunto de profundas transformações a partir da segunda
metade do século XX, período marcado, segundo Hall (1997), pela centralidade da
cultura, expressa na enorme expansão de tudo à ela associado e ao seu papel fundamental
em todos os setores da vida social, a qual pode ser justificada em quatro dimensões
fundamentais. Delas a quarta dimensão, das identidades e subjetividades, é a que está
mais diretamente ligada às discussões desenvolvidas nesse trabalho. Segundo ela as
identidades são construídas pelo acúmulo das diferentes identificações e posições que os
indivíduos adotam ao longo do tempo e que experimentam como se fossem pessoais, mas
que na verdade são o resultado de diferentes circunstâncias, histórias e sentimentos que
vivenciam ao longo de suas trajetórias como sujeitos únicos. Deste modo as identidades
são construídas como representações através da cultura, sendo cada vez mais difícil
manter as distinções entre mundo interior e exterior, social e psíquico.
Essa nova percepção trouxe avanços significativos nas percepções de diversas
áreas do conhecimento humano e das relações sociais, da Educação às discussões
relacionadas às políticas de afirmação, sendo coletivamente denominada
multiculturalismo. Trata-se, segundo Silva (2009), de um termo ambíguo que abrange
movimentos muito diversos que vão da defesa legítima das reivindicações de grupos
subalternos a outras vertentes envolvidas no seu silenciamento no interior da cultura
dominante. Assim, seria mais apropriado falarmos em multiculturalismos.
Segundo McLaren (1997) quatro tipos principais de multiculturalismos podem
ser reconhecidos: o conservador ou empresarial, o humanista liberal ou idealista, o liberal
de esquerda e o crítico ou de resistência. O primeiro tem como característica principal a
construção de uma cultura comum padronizada a partir dos referenciais dos grupos
dominantes, encarando a situação multicultural como um problema a ser superado.
Assim, o processo de ensino iguala-se a um processo de silenciamento e assimilação
(PANSINI & NENEVÉ, 2008).
A corrente humanista liberal parte do princípio da igualdade natural entre os
diferentes grupos, etnias e povos, enfatizando, portanto, que todos podem ter as mesmas
oportunidades de sucesso no interior do sistema capitalista, camuflando uma realidade
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em que a desigualdade social favorece determinados grupos em detrimento de outros. Em
nome dessa humanidade comum, esse multiculturalismo apela de modo abstrato para
conceitos como respeito, tolerância e convivência pacífica entre culturas (SILVA, 2009).
As correntes humanista liberal e conservadora ou empresarial podem ser reunidas na
classificação de multiculturalismo assimilacionista feita por Candau (2008).
O multiculturalismo liberal de esquerda celebra as diferenças em si e as enfatiza
como partes fundamentais da construção das identidades dos indivíduos, por tanto tempo
submetidos a processos de apagamento dos traços distintivos de suas culturas de origem.
Trata-se de uma verdadeira ode à diversidade que nas últimas décadas inspirou inúmeros
grupos a lutar pela afirmação de suas identidades. Passou-se a defender e a valorizar
expressões como o “direito às diferenças”, a “irredutibilidade da experiência de gênero”
ou a “experiência peculiar das mulheres como mulheres”. Ele se aproxima, portanto, na
terminologia de Candau (2008), do multiculturalismo diferencialista ou
monoculturalismo plural.
ARMADILHAS DA DIFERENÇA
No entanto, como as identidades são construídas por representações feitas sempre
a partir do conjunto de experiências vivenciadas, e sendo essas em maior ou menor grau
o resultado de um espectro de possibilidades diferenciado, que dependem em grande parte
de materialidades distintas, tais diferenças são também construídas a partir de cenários de
desigualdade. Fica claro que, qualquer que seja o tipo de multiculturalismo que se adote,
este não pode ser separado, segundo Silva (2009), das relações de poder que ocorrem no
seu interior, pois é da natureza das formações sociais multiculturais a existência de
situações conflitantes, sejam elas encaradas de modo positivo, como busca de expressão
de grupos dominados, ou como fonte de anomia por parte daqueles interessados na
manutenção do status quo.
Pierucci (1999), por exemplo, não assinala apenas as virtudes de processos de
afirmação de diferença, destacando por exemplo, que as interpretações do racismo e do
chauvinismo, normalmente entendidos como rejeição da diferença, representam na
verdade uma simplificação de um cenário complexo que em muitos casos nos impede de
enxergá-los justamente como o seu oposto: como a celebração das diferenças e a partir
daí a necessidade de imprimir práticas que as reforcem, a fim de manter as distâncias
entre os grupos. O racismo e o chauvinismo representam justamente a obsessão pela
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diferença em nome da cultura, seja ela ariana ou masculina. Nesse sentido é acompanhado
por Eagleton (2005, p.28) que reconhece
Pluralizar o conceito que de cultura não é facilmente compatível com a
manutenção do seu caráter positivo. (...) Os que consideram a pluralidade como
um valor em si mesmo são formalistas puros e, obviamente, não perceberam a
espantosamente imaginativa variedade de formas que, por exemplo, pode
assumir o racismo.”
Aqueles que se comprazem em celebrar as diferenças como um valor em si,
igualando-a apenas a expressões de riqueza, diversidade e pluralidade, abrem caminho a
quaisquer grupos que queiram justificar a sua conduta em nome do respeito à sua
identidade. Além disso, tratar desigualdades apenas como diferenças é escamotear as
relações de poder que estruturam o espaço social, contribuindo para a sua manutenção.
Pierucci (1999, p.84) descreve um cenário brasileiro que evidencia a dificuldade
de multiculturalismos desse tipo:
Difusas preocupações com a qualidade moral do modo de vida urbano nas
metrópoles criam um campo de ressonância certo para mensagens
tradicionalistas, sexistas, moralistas, essencialistas, às vezes fundamentalistas.
A expansão de um certo tipo de protestantismo no Brasil urbano vem se dando
nesta base já há algumas décadas. Sem muito alarde, porém. Hoje, sob a
designação de “evangélicos”, eles formam um bloco bem barulhento no
Congresso Nacional alinhado na defesa intransigente dos pontos de vista mais
reacionários em matéria de moralidade sexual individual e familiar.
O que parece ficar claro é que alguns tipos de multiculturalismo, adotando
perspectivas do relativismo cultural, acabam por favorecer por inversão, algumas das
formas mais virulentas de absolutismo cultural (EAGLETON, 2005). Esse efeito, porém,
não se restringiu apenas às sociedades ocidentais, mas foi exportado mais uma vez, do
Ocidente para as antigas colônias, sendo empregado para justificar, em nome do respeito
pela identidade produzida por sua cultura milenar, a dominação exercida em suas
sociedades por grupos que se baseiam na supremacia do sistema de castas, por exemplo.
O mesmo processo estende os seus efeitos além dos domínios do relativismo moral,
adentrando a seara do relativismo epistemológico, o que tem consequências graves para
a delimitação da natureza da atividade científica, tendo sido empregado para justificar o
ensino dos Vedas nas universidades indianas como parte do currículo de Ciências, bem
como o da astrologia hindu (NANDA, 2003). Mais uma vez, com seu humor sarcástico,
Eagleton descreve esse processo:
“Um relativismo cultural brotou no Ocidente pós-moderno e, refletindo sua
própria crise de identidade, pode ser exportado para nações pós-coloniais de
maneiras que confirmam as formas mais dogmáticas de separatismo e
supremacismo. (...) O que pode parecer a última moda em termos de
radicalismo epistemológico em Paris pode acabar justificando a autocracia em
outro lugar.” (EAGLETON, 2005, p.112-113)
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Deste modo, qualquer defesa de um conjunto de símbolos, ideias e práticas
baseado apenas no fato de constituírem a cultura de determinado grupo em particular, por
si só não é suficiente para justificar sua defesa diante de visões de mundo contrárias.
Trata-se, outrossim, de uma concepção de multiculturalismo que concebe as identidades
como estáticas e essencialistas (CANDAU, 2008) e não sujeitas ao trânsito de influências
e diferentes apropriações. A explicitação dos mecanismos de poder subjacentes às
relações culturais deixa claro, como relata Candau (2008), que elas não são idílicas nem
românticas mas construídas na história e portanto atravessadas por relações fortemente
hierarquizadas.
O último tipo de multiculturalismo apresentado por McLaren (1997), denominado
crítico ou de resistência, e que Candau (2008) designa como multiculturalismo interativo
ou interculturalidade, defendido nesse trabalho, enfoca a questão da diferença sempre
levando em conta as dimensões políticas, sociais e econômicas envolvidas na sua
produção, tendo por base uma agenda política de transformação das condições sociais.
Deste modo, ele rompe com qualquer espécie de visão essencialista de culturais,
entendendo que qualquer pluralidade só faz sentido a partir da tematização do referencial
político da mesma, não se furtando a reconhecer as dimensões conflitivas que nos dias de
hoje as questões ligadas às relações entre diferença e desigualdade frequentemente
apresentam. Nesse sentido, estamos de acordo com Santos (2003, p. 462) quando afirma
que
“Antes de mais nada há que reconhecer que nem toda diferença é
inferiorizadora. E, por isso, a política de igualdade. E, por isso, a política de
igualdade não tem de se reduzir a uma norma identitária única. Pelo contrário,
sempre que estamos perante diferenças não inferiorizadoras, a política de
igualdade que as desconhece ou descaracteriza, converte-se,
contraditoriamente em uma política de desigualdade. (...) Temos o direito de
ser iguais sempre que a diferença nos inferioriza; temos o direito de ser
diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza.”
Essa perspectiva, no entanto, encontra-se dividida segundo Silva (2009), em uma
concepção pós-estruturalista e outra “materialista”. Para a primeira a diferença é
basicamente um processo discursivo, uma vez que as materialidades se expressam em
última análise em processos linguísticos de significação: alguém é sempre diferente em
relação a outro alguém e ambos em si não exibem essa diferença fora desse processo
discursivo de significação. Silva (2009) afirma que tal tendência pode ser criticada pelo
excessivo textualismo e por não reconhecer os processos materiais por si sós como
produtores de diferença. Tomando por base a linguagem e seu emprego polissêmico, esse
tipo de multiculturalismo crítico possui grande potencial de análise de processos que
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consistem de situações dinâmicas baseadas em valores cambiáveis de dominação e signos
de distinção. Contudo, dadas as potencialidades do emprego da prática discursiva, o risco
de produção retóricas vazias autoreferenciadas é muito grande.
A corrente materialista, sem nunca descuidar da importância das representações,
encontra sua fundamentação em influências marxistas, enfatizando os processos
institucionais, econômicos e estruturais que estariam na base da produção dos processos
de dominação que resultam em parte das diferenças culturais, expressas também em
termos simbólicos. Acreditamos que o emprego dessa interpretação seja especialmente
adequado quando as diferenças se apresentam como resultado de uma profunda
desigualdade expressa no interior da sociedade.
UMA LICENCIATURA NA PERIFERIA
A partir dos referenciais teóricos que fundamentam as discussões sobre cultura,
abordaremos agora alguns dos resultados das investigações que conduzimos há quase dez
anos entre os licenciandos evangélicos do Curso de Ciências Biológicas da Faculdade de
Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP-UERJ) e seus conflitos
relacionados ao ensino de evolução (DORVILLÉ, 2010).
Os alunos são em sua maioria provenientes das classes menos favorecidas, com
todas as implicações daí decorrentes, o que se reflete na limitação de oportunidades de
acesso à informação, restrita ao chegar à universidade àquela veiculada pela família,
escola, meios de comunicação de massa e/ou proveniente dos grupos religiosos de que
fazem parte. Muitas vezes tais fontes reforçam as mesmas experiências, não oferecendo
possibilidades de contato com um leque mais amplo de vivências. Esse cenário se reflete
nas matrizes de significado que exercem maior influência sobre as comunidades em que
vivem, em sua maioria de natureza simples e redutora, pouco afeitas a múltiplas
explicações de caráter problematizador.
Deste modo, muitos desses futuros professores chegam à universidade com a
certeza absoluta de que a evolução biológica não existe e dispostos a rejeitá-la de modo
veemente. Por fim, sendo membros de uma comunidade religiosa que, embora crescente,
ainda é minoritária no Brasil, muitos desses alunos assumem também uma postura
defensiva diante de qualquer crítica feita ao posicionamento de um indivíduo ou grupo
evangélico sobre qualquer tema. Nas palavras de uma aluna “os crentes normalmente são
muito mais visados do que os outros grupos religiosos” (DORVILLLÉ, 2010, p. 53). Em
situações como essa não é incomum invocarem o direito a viverem segundo os valores de
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sua cultura, ou fazerem a defesa da pluralidade de pontos de vista, embora sua leitura
bíblica literalista se paute em muitos casos pela intolerância em relação a pontos de vista
diferentes dos seus. Muitos desses licenciandos se esmeram na elaboração de consistentes
discursos críticos contra o dogmatismo científico a partir de conhecimentos adquiridos na
graduação, enquanto ao mesmo tempo se apoiam em um relativismo estéril para justificar
algumas das posturas religiosas mais dogmáticas.
Uma compreensão da relação entre culturas a partir dos referenciais da
interculturalidade nos leva a concluir que a adoção de um discurso inteiramente relativista
sobre o ensino de evolução nesse caso pode apresentar efeitos tão danosos sobre os
licenciandos quanto os de um discurso científico dogmático. Para aqueles que não
nasceram em condições sociais e culturais que favoreçam em um primeiro momento o
domínio desenvolto da linguagem, da terminologia e das leis imanentes ao campo
científico, mas que se dispuseram a obtê-los, à custa de muito esforço e determinação,
uma das maiores frustrações ou ilusões pode se materializar na forma do ensino de visões
de ciência que as igualam epistemologicamente a qualquer outro tipo de saber, em
qualquer contexto. Diante da defesa do Criacionismo como explicação científica de
potencial explicativo equivalente ao da teoria evolutiva, cria-se para alguns dos alunos
fortemente religiosos um espaço de conforto, longe de conflitos e de suas possibilidades
de construção de explicações mais complexas sobre o mundo em que vivem..
Desta forma, assim como defendemos o ponto de vista de que seria uma violência
simbólica estender como verdade absoluta uma concepção universal de Ciência a todas
as comunidades humanas, em todos os diferentes contextos em que pautam a sua
existência, o inverso não deve ocorrer. Todos aqueles que não se encontram isolados do
contato mais direto com a sociedade moderna, não podem ser privados do direito de
acesso a uma compreensão científica mínima do mundo à sua volta e da exclusão desse
ensino, de esquemas explicativos que não façam parte dessa episteme. Esse acesso,
entendido como um direito mínimo, permitem que esses indivíduos possam se posicionar
criticamente diante de questões ligadas à Ciência e tecnologia relacionadas às suas vidas.
Como enfatizado por Lahire (2008) nem todas as diferenças culturais são
interpretáveis como desigualdades culturais. Para que uma diferença produza uma
desigualdade, é preciso que todos (ou pelo menos tanto a maioria dos “privilegiados”
como a dos “lesados”) considerem que a privação do acesso a um determinado bem
cultural ou a um dado serviço constitua uma falha uma injustiça inaceitável (LAHIRE,
2008). Trata-se seguramente do caso do ensino da teoria evolutiva no interior da Biologia,
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com todos os desdobramentos desse conhecimento. Sua ausência ou o comprometimento
de sua qualidade é seguramente, nos dias de hoje, um traço de desigualdade e deve ser
combatido politicamente. Deste modo é importante destacar que pluralismo não é
sinônimo de relativismo mas de engajamento cívico na resolução de diferenças e
discórdias a respeito de que conhecimento é mais apropriado empregar nas diferentes
circunstâncias (COBERN & LOVING, 2000).
Um segundo ponto gerado pelos aportes culturais se refere à ausência de formas
identitárias puras e nem intrinsecamente coerentes, oque também nos parece bastante
promissor ao analisarmos os resultados deste trabalho. Os diferentes discursos produzidos
pelos alunos entrevistados revelam as diversas combinações feitas a partir de múltiplas
influências, recebidas ao longo de suas trajetórias, das quais, os saberes acadêmicos e os
religiosos são apenas algumas delas. Tal constatação não equivale a dizer que todas essas
influências tenham igual importância nas suas construções valorativas e que seu peso não
possa variar de um indivíduo para outro. No entanto, os discursos apresentados não
deixam de exibir a marca de uma mescla que não parece obedecer a uma construção única,
descartando claramente a possibilidade do efeito do ensino de conteúdos acadêmicos
apresentar sobre esses alunos resultados do tipo tudo ou nada. Cada um dos alunos
constrói de diferentes maneiras sua persona evangélica, operando-a também de maneiras
fluidas temporalmente na sua relação com a alteridade. Alguns deles de modo mais fluido
que outros.
Assim, os alunos entrevistados disseram que incorporarão em suas práticas algum
dos três tipos de posicionamentos básicos não estanques, que comportam inúmeras
variações: 1 - orientando seus alunos a partir de um eixo evolutivo que interage
criticamente com outras maneiras de ver o mundo, muitas vezes de maneira conflitiva,
mas resguardando a posição individual e a importância do debate. Encara as dificuldades
surgidas no espaço escolar a partir de uma origem múltipla e complexa, reconhecendo no
conflito de ideias e no debate uma possibilidade de atuação; 2 - informando seus alunos
a partir da visão científica e excluindo do espaço escolar quaisquer outras explicações,
inclusive as religiosas, como parte das diversas influências vividas pelos alunos. Encara
as dificuldades surgidas no espaço escolar apenas sob a óptica cognitiva, demandando
explicações mais adequadas; 3 – ensinando Ciências e Biologia sem qualquer enfoque
evolutivo ou eixo estruturante fundamental, de forma neutra e sem qualquer
problematização com outras ideias. Encara as dificuldades surgidas no espaço escolar
unicamente a partir de óticas pessoais, evitando toda forma de conflito e/ou debate.
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Especialmente o terceiro caso mostra-se mais propício à influência dos movimentos
criacionistas organizados (DORVILLÉ, 2010). Tais concepções estão de acordo com
aquelas encontradas por Teixeira (2012) que em entrevistas com dez professores de
Biologia que professavam alguma fé cristã, observou que eles aceitavam a evolução
biológica, reconheciam sua importância para a Biologia e acreditavam que Deus a dirige.
Em estudo mais recente (SOARES & DORVILLÉ, 2013), entrevistando 48 alunos
concluintes do curso de Biologia na FFP-UERJ, mais da metade dos evangélicos afirmou
ter ocorrido alguma mudança em sua visão de origem da diversidade biológica durante o
curso. Tais alunos, por terem sido capazes de realizar algum processo de acomodação
entre ambos saberes, materializam a possibilidade de convivência entre visões de mundo
distintas. É importante enfatizar que estes alunos, por terem vivenciado trajetórias
semelhantes, podem entender melhor alguns dos conflitos vivenciados por seus alunos,
conhecendo também aquelas estratégias mais promissoras e as que devem ser evitadas ao
lidar com esse tema.
Acreditamos dessa maneira, que a defesa de uma interpretação não essencialista
de cultura, é capaz de simultaneamente resguardar nossa atividade em sala de aula de
interpretações relativistas que as esvaziam, ao mesmo tempo em que nos permitem
entender as múltiplas possibilidades de construção dos conhecimentos científicos com
outros saberes trazidos pelos alunos.
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Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 301928