emerson fernandes diálogo: natureza, pensamento, linguagem
TRANSCRIPT
Emerson Fernandes
Diaacutelogo natureza pensamento linguagem e expressatildeo
Tese de doutorado
Tese apresentada como requisito parcial para obtenccedilatildeo do grau de Doutor pelo Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Filosofia Departamento de Filosofia da PUCndashRio
Orientador Prof Danilo Marcondes de Souza Filho
Rio de Janeiro Setembro de 2018
Emerson Fernandes
Diaacutelogo natureza pensamento linguagem e expressatildeo
Tese apresentada como requisito parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia do Departamento de Filosofia do Centro de Teologia e Ciecircncias Humanas da PUC-Rio Aprovada pela Comissatildeo Examinadora abaixo assinada
Prof Danilo Marcondes de Souza Filho Orientador
Departamento de Filosofia - PUC-Rio
Prof Paulo Cesar Duque Estrada
Departamento de Filosofia ndash PUC-Rio
Prof Renato Matoso Ribeiro Gomes Brandatildeo
Departamento de Filosofia ndash PUC-Rio
Prof Marcelo Joseacute Derzi Moraes Universidade do Estado do Rio de Janeiro ndash Uerj
Prof Carlos Monteiro Junior
Coleacutegio Pedro II ndash CPII
Profa Monah Winograd Coordenadora Setorial de Poacutes-Graduaccedilatildeo e Pesquisa do Centro de
Teologia e Ciecircncias Humanas - PUC-Rio
Rio de Janeiro 28 de setembro de 2018
Todos os direitos reservados Eacute proibida a reproduccedilatildeo total ou parcial do trabalho sem autorizaccedilatildeo da universidade do autor e do orientador
Emerson Fernandes
Graduou-se em Filosofia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) em 2010 Em 2013 concluiu o curso de mestrado em Filosofia pela PUC-Rio com a dissertaccedilatildeo intitulada ldquoConsideraccedilotildees preliminares acerca da construccedilatildeo dramaacutetica do Soacutecrates de Platatildeordquo Eacute muacutesico poeta educador e professor no curso de especializaccedilatildeo em Filosofia Antiga no CCEPUC-Rio
Ficha Catalograacutefica
CDD 100
Fernandes Emerson Diaacutelogo natureza pensamento linguagem e expressatildeo Emerson Fernandes orientador Danilo Marcondes de Souza Filho ndash 2018 189 f il color 30 cm Tese (doutorado)ndashPontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro Departamento de Filosofia 2018 Inclui bibliografia 1 Filosofia ndash Teses 2 Natureza 3 Poesia 4 Mito 5 Epos 6 Logos I Souza Filho Danilo Marcondes de II Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro Departamento de Filosofia III Tiacutetulo
Em memoacuteria do antigo Museu Nacional
Agradecimentos
Agradeccedilo aos meus amigos Dado Villa-Lobos Arthur Macias Benito Guidi Pedro
Tambellini Nancy Ribeiro Bruno Wagner e meus familiares que sempre me
apoiaram nessa longa estrada da vida que comeccedilou no Complexo da Mareacute
Ao meu orientador Danilo Marcondes e aos professores Paulo Ceacutesar Duque-
Estrada Renato Matoso Arthur Dapieve Paul Heritage Maura Iglesias Irley
Franco Luisa Buarque Luiacutes Carlos Pereira Marcelo Moraes Eduardo Barbosa
Carlos Monteiro Ricardo Noacutebrega Alexandre Costa Luiacutes Felipe Bellitani pelo
apoio confianccedila e contribuiccedilatildeo na reflexatildeo filosoacutefica
Agrave minha querida Vanessa Clarice pelo amor respeito e paciecircncia
O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento
de Pessoal de Niacutevel Superior ndash Brasil (Capes)
Resumo
Fernandes Emerson Marcondes Danilo de Souza Filho Diaacutelogo natureza pensamento linguagem e expressatildeo Rio de Janeiro 2018189p Tese de doutorado ndash Departamento de Filosofia Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro
Esta tese tem por objetivo apresentar o percurso geneacutetico do diaacutelogo como uma
praacutetica discursiva oral que se tornou um gecircnero literaacuterio ateacute o momento que foi
utilizado como meio de expressatildeo poeacutetico e filosoacutefico por autores antigos A partir
da obra homeacuterica que foi o pilar eacutetico epistemoloacutegico poliacutetico e pedagoacutegico para
a organizaccedilatildeo da cultura grega esse importante gecircnero tornou-se a base para a
elaboraccedilatildeo das primeiras reflexotildees que culminaram no surgimento do Teatro e da
Filosofia na Greacutecia
Palavras-chave
Natureza Poesia Mito Epos Logos
Abstract
Fernandes Emerson Marcondes Danilo de Souza Filho (Advisor) Dialogue nature thought language and expression Rio de Janeiro 2018189p Tese de doutorado ndash Departamento de Filosofia Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro
This thesis aims to present the genetic path of dialogue as an oral discursive
practice which has become a literary genre up to the moment that was used as a
way of poetic and philosophical expression by ancient authors From this Homeric
work which was the ethical epistemological political and pedagogical pillar for
the organization of Greek culture this important genre became the basis for the
elaboration of the first reflections that culminated in the emergence of Theater and
Philosophy in Greece
Key-words
Nature Poetry Myth Epos Logos
Sumaacuterio
1Introduccedilatildeo 9
2 Phyacutesis poesia criaccedilatildeo e pensamento 18
21 A expressatildeo da Phyacutesis 18 22 Phyacutesis e Loacutegos 29 23 Poesia e Loacutegos 36 3 Poesia memoacuteria e verdade 41
31 A palavra entre os homens e deuses 41 32 Entre a oralidade e a escrita 57 4 Mythos Eacutepos e Loacutegos 64
41 Mito e poesia 64 42 Mito e espanto 67 43 Mito accedilatildeo e verdade 73 44 Mito e religiatildeo 78 45 Mito e a voz 81 46 Mito e muacutesica 88 47 Eacutepos 115 48 Loacutegos 122 5 Sobre o surgimento da palavra-diaacutelogo 127
51 A fala livre 127 52 A palavra e a bela accedilatildeo 133 53 A fala compartilhada 148 6 Consideraccedilotildees finais 164 7 Referecircncias bibliograacuteficas 170 8 Anexos 176
1 Introduccedilatildeo
A palavra diaacutelogo1 tem originalmente algumas acepccedilotildees na liacutengua grega
Dentro delas eacute possiacutevel encontrarmos o sentido de relaccedilatildeo contato e alteridade que
ocorre em qualquer praacutetica comunicativa social poliacutetica2 e reflexiva3 A
grandiosidade da cultura helecircnica foi forjada atraveacutes do reconhecimento da
necessidade do outro que ocorreu em sua mais tenra idade no periacuteodo preacute-histoacuterico
quando o homem primitivo estabeleceu os primeiros assentamentos na parte
continental grega por volta de 40000 aC 4 Com o passar do tempo os habitantes
desse territoacuterio deixaram uma importante heranccedila cultural que repercutiu no futuro
glorioso da civilizaccedilatildeo helecircnica (VERMEULE 1964) atraveacutes dos avanccedilos
tecnoloacutegicos obtidos na idade do Bronze
Esse legado que foi atestado pela arqueologia5 eacute a prova de ter havido um
processo de continuidade entre essas culturas que ocorreu de modo subterracircneo
1 ∆ιάλογοςdiaacutelogos ὁ (διαλέγοmicroαι ) conversaccedilatildeo diaacutelogo Pl Prt 335d Demetr Eloc 223 δ τῆς ψυχῆς πρὸς αὑτήν Pl Sph 263 e οἱ Σωκρατικοὶ δ Arist Fr 72 τὰ ἐν τοῖς δ Debater argumentos Id APo 78a12 geralmente conversaccedilatildeo Cic Att 552 II discurso ou seacuterie de discursos debate (cf διάλεξις) IG 31128 al III = διαλογισmicroός 1 PHib 1122 (iii BC) PTeb 5831 (ii BC) Para mais informaccedilotildees sobre esse termo grego recomendamos a leitura do seguinte livro LIDDELL H G and SCOTT R A Greek-English Lexicon Oxford Clarendon Press 1997 2 Em um regime poliacutetico de caraacuteter monaacuterquico a realeza necessita estabelecer um diaacutelogo mesmo sendo de modo verticalizado com o povo Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do seguinte livro MAQUIAVEL Nicolau ldquoO priacutenciperdquo Trad Antonio Caruccio-Caporale Satildeo Paulo LampPM Editores Porto Alegre 2011 3 Basta notar o parentesco semacircntico que eacute apontado pelos dois filoacutelogos na nota sobre o diaacutelogo atraveacutes da palavra dialogismos διαλογ-ισmicroός ὁ ponderaccedilatildeo D 3623 PRevLaws 1717 (pl) IG 5 (1) 14326 (Messene) etc daqui II caacutelculo consideraccedilatildeo Pl Machado 367a δ λαβεῖν περὶ σφῶν αὐτῶν Str 537 ὁ δ οὗτος esta consideraccedilatildeo Phld D 115 III debate argumento discussatildeo Epicur Pe 138 (pl) Metrod 37 Plu 2180c IV circuito τοῦ νοmicroοῦ δ ποιῆσαι PLond 235819 cf BGU 19i13 (ii AD) V inqueacuterito judicial PTeb 2735 (ii BC) PFay 662 (ii AD) 4 Vide a nossa tabela cronoloacutegica no anexo Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura dos seguintes livros VERMEULE E ldquoGreece in the Bronze Agerdquo Ed Chicago 1964 E FINLEY MI ldquoGreacutecia Primitiva Idade do Bronze e Idade Arcaicardquo Trad WR Vaccari Satildeo Paulo Martins Fontes 1990 5 Sobre essa questatildeo recomendamos a leitura dos seguintes livros DICKINSON Oliver ldquoThe Aegean from Bronze Age to Iron Age Continuity and Change between the twelfth and eighth Centuries BCrdquo London Routledge 2006 EVANS Arthur The Minoan and Mycenaean Element in Hellenic Life Annual Report of the Smithsonian Institution 1912-1913 in Washington DC Government Printing Office 1914 RIVER C ldquoThe Minoans and Mycenaeans the history of the civilizations that first developed ancient greek culturerdquo Ed by Charles River 2016 SNODGRASS A ldquoThe Dark Age of Greecerdquo Ed By Routledge 2000 VERMEULE E ldquoGreece in the Bronze Agerdquo Ed Chicago 1964
10
atraveacutes do amplo desenvolvimento das teacutecnicas naacuteuticas militares agriacutecolas e
artiacutesticas que foram mantidas e modificadas com o passar do tempo entre esses
habitantes do solo grego para suprir as suas necessidades existenciais Dentro desse
contexto um dos elementos que pode ser identificado nesses diversos materiais
provenientes dessas culturas predecessoras eacute a utilizaccedilatildeo da muacutesica agrave serviccedilo da
tradiccedilatildeo mito-poeacutetica que perdurou6 - mesmo depois da fatiacutedica idade das trevas ndash
na memoacuteria dos sobreviventes da realeza micecircnica e dos pastores e agricultores
que se refugiaram no alto das montanhas Atualmente haacute vaacuterios estudos sobre esse
tema que tentam entender como ocorreu o fenocircmeno musical durante a idade do
bronze7 Essa investigaccedilatildeo despertou o nosso interesse por tambeacutem revelar aspectos
do desenvolvimento intelectual humano que podem ser encontrados na sofisticaccedilatildeo
empregada primeiramente no uso da poesia na tradiccedilatildeo oral e posteriormente no
teatro filosofia e retoacuterica no periacuteodo claacutessico
Atraveacutes dessa constataccedilatildeo eacute possiacutevel identificarmos o resquiacutecio de algumas
praacuteticas culturais que sobreviveram atraveacutes da memoacuteria coletiva que pode ser
encontrada na poesia homeacuterica e hesiodica8 Consequentemente esses fatos
fornecem a base para a hipoacutetese de que os remanescentes micecircnicos contribuiacuteram
na reconstruccedilatildeo cultural que desencadeou posteriormente em um novo processo de
organizaccedilatildeo soacutecio-poliacutetico9 no mundo antigo Esse testemunho oferecido pelo
proacuteprio Platatildeo em seu uacuteltimo diaacutelogo inacabado10 e por Heroacutedoto11 Tuciacutedides12 e
Aristoacuteteles13 apresenta para o leitor atencioso algumas pistas imprescindiacuteveis que
revela esse passado mais distante e sombrio dos gregos Consequentemente esses
relatos quando satildeo aproximados dos inuacutemeros materiais analisados pela
6 Haacute diversos estudos que apontam esse processo de continuidade Eacute importante ressaltar que o modo como isso ocorreu ainda eacute motivo de muitas polecircmicas entre os especialistas A nossa intenccedilatildeo secundaacuteria eacute levantar algumas evidecircncias que foram surgindo ao decorrer de nossa pesquisa Uma delas foi apresentada por Jean-Pierre Vernant que se refere ao uso do cavalo que foi inicialmente adotado para diversos usos na civilizaccedilatildeo minoica A importacircncia do cavalo sobretudo no acircmbito mitoloacutegico e militar estaacute extensamente descrita na poesia eacutepica homeacuterica Essa eacute uma das provas do elo de continuidade cultural que falamos anteriormente Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura do primeiro capiacutetulo do seguinte livro VERNANT J-P ldquoAs Origens do Pensamento Gregordquo Trad Isiacutes Borges B da Fonseca 6ordf ed Rio de Janeiro Editora Bertrand Brasil SA 1989 7 Vide o seguinte livro YOUNGER John ldquoMusic in the Aegean Bronze Agerdquo Ed Jonsered Sweden Paul Aumlstroumlms Foumlrlag 1998 8 Vide nota 6 9 Vide Platatildeo As Leis (livro III 677) 10 Ibidem 11 Vide Heroacutedoto Histoacuterias 12 Vide Tuciacutedides A histoacuteria da guerra do Peloponeso 13 Vide as seguintes obras de Aristoacuteteles Poliacutetico e a Constituiccedilatildeo dos atenienses
11
arqueologia contemporacircnea revela algumas evidecircncias que seratildeo expostas e
estudadas nesse presente trabalho Vale ressaltar que dentro desse contexto a liacutengua
grega foi constituiacuteda e aprimorada acompanhando todas essas influecircncias histoacutericas
e culturais recebidas de outras civilizaccedilotildees afins Para esse estudo a anaacutelise do
Linear A14 e B ainda continua sendo um rico manancial para os historiadores
filoacutelogos e antropoacutelogos O nosso meacutetodo investigativo natildeo se ateve apenas sobre
os registros fornecidos pela literatura escrita mas como foi exposto anteriormente
partirmos de importantes estudos arqueoloacutegicos que analisa materiais
arquitetocircnicos orgacircnicos inorgacircnicos pictoacutericos artesanais e metaluacutergicos A
forma como esses estudos satildeo organizados partem da reuniatildeo de todas as evidecircncias
disponiacuteveis para uma investigaccedilatildeo mais detalhada do comportamento humano E
um dos criteacuterios utilizados pelos pesquisadores eacute a anaacutelise do desenvolvimento
tecnoloacutegico que pode ser alcanccedilado de modo comparativo entre os diferentes
periacuteodos da historiografia grega
Como um verbo transitivo que sempre busca o seu complemento a nossa
capacidade de expressatildeo reflexatildeo e criaccedilatildeo opera por essa mesma loacutegica que revela
a nossa incompletude e que assina a imagem da natureza humana em relaccedilatildeo aos
imortais15 Essa caracteriacutestica foi ressaltada e analisada por Aristoacuteteles no livro I da
Poliacutetica16 no qual eacute exposto que o homem por natureza17tem o poder da palavra
articulada18 que eacute fundamental para o processo de organizaccedilatildeo e manutenccedilatildeo
existencial da comunidade humana19 e que se constitui atraveacutes da praacutetica
dialoacutegica20 De modo discreto o filoacutesofo macedocircnio estabelece uma interessante
14 Jean-Pierre Vernant chama atenccedilatildeo para o fato de haver por volta do seacuteculo XV aC uma fusatildeo de diferentes culturas que foi denominada de chipro-micecircnica na qual podemos identificar elementos da cultura minoica micecircnica e asiaacutetica Durante esse periacuteodo eles disponibilizavam de uma escrita que foi derivada do Linear A Logo o estudo dessa escrita possibilita muitas informaccedilotildees sobre esse processo de mesticcedilagem cultural que ocorreu nesse periacuteodo histoacuterico Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do primeiro capiacutetulo do seguinte livro VERNANT J-P ldquoAs Origens do Pensamento Gregordquo Trad Isiacutes Borges B da Fonseca 6ordf ed Rio de Janeiro Editora Bertrand Brasil SA 1989 15 Αθάνατοι athaacutenatoi Os deuses 16 Aristoacuteteles Poliacutetica (livro I 1253 a -10-15) 17 Kατά Φύσιν kata phyacutesin18 Λόγοςloacutegos Posteriormente vamos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre esse importante termo do vocabulaacuterio grego 19 Πόλιςpoacutelis 20 A partir da exposiccedilatildeo aristoteacutelica no capiacutetulo I do livro da Poliacutetica no qual eacute dito que o homem por natureza ou seja por necessidade precisa viver em comunidade (κοινωνίαkoinonia) subentende-se a importacircncia do desenvolvimento do processo dialoacutegico ndash e aqui nos deparamos com uma evidecircncia que remonta diretamente a fundamentaccedilatildeo de nossa hipoacutetese sobre o uso desse
12
ordenaccedilatildeo argumentativa que apresenta em sua obra a relaccedilatildeo entre o pensamento
julgamento expressatildeo sociabilidade e poliacutetica que revela a heranccedila intelectual
herdada das investigaccedilotildees promovida por seu mestre na Academia Aliaacutes foi o
proacuteprio Platatildeo que chamou atenccedilatildeo para esse fato em uma passagem do diaacutelogo
Mecircnon21 Na liacutengua grega eacute possiacutevel observar algumas dessas noccedilotildees atraveacutes da
proximidade semacircntica entre o verbo desejar22 e perguntar23 que assinala esse
caraacuteter de alteridade que abrange a instacircncia epistemoloacutegica poliacutetica e social no
mundo antigo24 Esse traccedilo que eacute perceptiacutevel na maioria das obras gregas expotildee
meio de expressatildeo por Soacutecrates e Platatildeo para buscar a plenitude existencial da poacutelis ndash que eacute essencial dentro desse contexto exposto pelo filoacutesofo macedocircnio (vide in loco a passagem 1252 b 25 ndash 30
ldquoPrimeiro haacute a necessidade de reunir dois seres que natildeo podem fazer nada um sem o outro quero dizer a uniatildeo dos sexos para a reproduccedilatildeo E natildeo haacute nada arbitraacuterio pois no homem assim como em outros animais e plantas eacute um desejo natural querer deixar para traacutes um ser feito agrave sua imagemrdquo) Nesse sentido o contato natural entre os seres da mesma espeacutecie ndash que reside na expressatildeo ldquo ἀνάγκη δὴ πρῶτον συνδυάζεσθαιanacircnke de proacuteton synduazesthai rdquo pressupotildee a atividade comunicativa necessaacuteria no acircmbito da linguagem para a realizaccedilatildeo desse objetivo que tambeacutem tem relaccedilatildeo com a estruturaccedilatildeo soacutecio-poliacutetica para Aristoacuteteles Atualmente na aacuterea da Educaccedilatildeo haacute diversos estudos que apresentam a importacircncia da praacutetica dialoacutegica no processo pedagoacutegico de jovens e adultos Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do seguinte livro FLECHA R ldquoCompartiendo palavras el aprendizaje de las personas adultas a traveacutes del diaacutelogordquo Barcelona Paidoacutes 1997 21 Em Platatildeo Mecircnon (84 c) Nessa passagem Platatildeo estabelece um jogo poeacutetico entre o uso desses verbos que visa destacar a correspondecircncia - e importacircncia - entre eles na investigaccedilatildeo filosoacutefica socraacutetica A atitude de desejar algo estaacute intrinsicamente relacionada com a imagem do filoacutesofo que eacute construiacuteda a partir da busca da verdade Aliaacutes no Banquete essa questatildeo eacute retomada quando Soacutecrates invoca a sacerdotisa Diotima para estabelecer o diaacutelogo que apresenta a imagem do amor agrave sabedoria que soacute pode ser alcanccedilada na relaccedilatildeo de proximidade e harmonia com o proacuteximo 22 Έράωeraacuteo (A) utilizado no Act somente no pres e imp (que na poesia satildeo ἔραmicroαι ἠράmicroην) iacuteon Archρέω Archil 253 impf Hρων Hdt 9108 E Fr 161 Ar Ach 146 - Passar ἀντ-ερᾶται X Smp 83 optar Id Hier 1111 inf ἐρᾶσθαι Plu Brut 29 etc parte ἐρώmicroενος (v infr) - tambeacutem ἐράοmicroαι 3 sg ἐρᾶται Plu 2753b Philostr Academia 48 (vράασθε v Sub ἔραmicroαι) todos os outros tempos seratildeo encontrados em ἔραmicroαι - amor c gen pers da paixatildeo sexual apaixonar-se por (X Cyr 5110) ἤρα τῆσ γυναικός Hdt 9108 etc c acc cogn ἔρᾶν ἔρωτα E Hipp 32 pl Smp 181b abs Aρῶν a lover vl em pi O 180 (pl) S Fr 1498 (pl) opp the ωρωmicroένη o amado Hdt 331 SE P 3196 [ὁ] ἐρώmicroενος X Smp 836 pl Phdr 239a cf Ar Eq 737 (pl) τὸν ἐρώmicroενον αὐτοῦ Lat delicias ejus Arist Pol 1303b23 2 sem referecircncia sexual amar calorosamente opp φιλέω οὐδ ἤρα οὐδ ἐφίλει Pl Ly 222a - ὥστε οὐ microόνον φιλοῖο ἂν ἀλλὰ καὶ ἐρῷο X Hier 1111 cf Plu Brut 29 κινεῖ [τὸ οὗ ἕνεκα] ὡς ἐρώmicroενον Arist Metaf 1072b3 II c gen rei amor ou desejo apaixonadamente τυραννίδος Archil 253 τερπνότατον τοῦ τις ἐρᾷ τὸ τυχεῖν Thgn 256 microάχης ἐρῶν A Th 392 microόνος θεῶν γὰρ Θάνατος οὐ δώρων ἐρᾷ Id Pe 161 Antmicroηχάνων ἐρᾷς S Ant 90 πατρίδος ἐρᾶν E Ph 359 οὗ ἐπιθυmicroεῖ τε καὶ ἐρᾷ Pl Smp 200a e c inf desejo de fazer A Fr 441 θανεῖν ἐρᾷ S Ant 220 Hποθανεῖν ἐρῶντες Hp de Arte 7 Arαγεῖν Ar Ach 146 πληροῦσθαι Pl Phlb 35a 23 Έρέω ereacuteo (A) Ep verbo = ἐρεείνω ἔροmicroαι ἐρωτάω perguntar inquirir c acc rei sobre uma coisa ἐρέων γενεήν τε τόκον τε Il 7128 cf Od 2131 procurar por Aυλαν AR 11354 2 c acc pers questatildeo microάντιν ἐρείοmicroεν (v infr) Il ἱερῆα Il 162 Odλλήλους ἐρέοιmicroεν Od 4192 ὅπως ἐρέοιmicroι ἑκάστην 11229 3 c acc rei pesquisa explorar Nicλυούς Nic ordm 143 (vl ἐρέθοντες) (Prob Ἐρε (ϊ) - cf ρευτής ἐρείοmicroεν perh metri gr para ἐρέ(ϊ) -o-microεν pres subj de radical natildeo-temaacutetico) 24 Vide Platatildeo Teeteto (149 a) Um dos pontos que estaacute impliacutecito nesse diaacutelogo eacute a necessidade do outro para a busca e obtenccedilatildeo do conhecimento Nesse sentido o diaacutelogo eacute o meacutetodo fundamental para atender esse tipo de objetivo Na nossa dissertaccedilatildeo de mestrado haacute importantes observaccedilotildees
13
esse impulso essencial que marca o nosso ponto de diferenccedila em relaccedilatildeo ao mundo
divino Pois ele eacute responsaacutevel por direcionar o homem atraveacutes da busca do
conhecimento que visa suprir os objetivos existenciais mais baacutesicos da nossa
espeacutecie de modo organizado e compartilhado
Nesse contexto eacute possiacutevel detectarmos a importacircncia que desempenhou a
Literatura oral e escrita para o surgimento de um tipo de reflexatildeo mais enxuta que
eclodiu com o surgimento da Filosofia que no seu estado inicial sempre esteve
voltada para auxiliar as accedilotildees humanas (HADOT 1995) na busca da plenitude
existencial Essa tese que foi defendida por Aristoacuteteles no Protreacuteptico25 estabelece
uma argumentaccedilatildeo no qual o estudo teoacuterico deve estar voltado para auxiliar o
mundo praacutetico A siacutentese entre o homo faber e sapiens que foi ressaltada por
pensadores como Mondolfo (MONDOLFO 1969) parece ter sido uma
caracteriacutestica importante da tradiccedilatildeo dos antigos sete saacutebios que teve origem na
expansatildeo cultural promovida na idade do Bronze em diversas civilizaccedilotildees desse
periacuteodo No livro X da Repuacuteblica26 Platatildeo expotildee a junccedilatildeo dessas duas atividades27
que a princiacutepio dialogavam sob o mesmo diapasatildeo exegeacutetico Ou seja o
pensamento reflexivo cultivado entre os iguais28 resulta na construccedilatildeo de um
fundamento que seraacute utilizado como uma buacutessola para encontrar a plenitude
existencial em cada comunidade A dimensatildeo externa ndash e natildeo menos importante -
dessa noccedilatildeo aponta para uma espeacutecie de caraacuteter hiacutebrido que apresenta a
que explicitamos sobre como o processo de composiccedilatildeo dramaacutetica do diaacutelogo estava em total consonacircncia com o questionamento elaborado por Platatildeo em torno da investigaccedilatildeo sobre o conhecimento Um dos detalhes que chamou a nossa atenccedilatildeo foi o fato do poeta-filoacutesofo apontar a proximidade entre o jovem Teeteto e Soacutecrates atraveacutes da metoniacutemia que eacute construiacuteda na relaccedilatildeo entre o corpo e alma para evidenciar de modo sutil atraveacutes de carateriacutesticas exteriores algumas qualidades (Teeteto 144 a) a priori que satildeo essenciais para o desenvolvimento do processo dialoacutegico entre o jovem Teeteto e Soacutecrates Por outra perspectiva essa descoberta chama atenccedilatildeo para o problema da relaccedilatildeo entra a alma e o corpo (vide Feacutedon) que sempre foi um tema muito caro em sua obra Para Platatildeo essa foi uma forma encontrada para tentar combater o sensualismo defendido por alguns sofiacutestas Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura da seguinte obra F Emerson ldquoConsideraccedilotildees preliminares acerca da construccedilatildeo dramaacutetica do Soacutecrates de Platatildeordquo dissertaccedilatildeo de mestrado Puc-Rio 2013 25 Vide Aristoacuteteles Protreacuteptico (Iamblichus Protreacuteptico VI 3627-37 22 Pistelli) 26 Vide Platatildeo Repuacuteblica (livro X 600-a) 27 Εἰς τὰ ἔργα σοφοῦ eis ta erga sophou Essa expressatildeo encontrada no livro X da Repuacuteblica foi ressaltada por Rodolfo Mondolfo em sua obra no qual analisa esse problema Para mais detalhes sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro MONDOLFO R ldquoVerum Factumrdquo Desde antes de Vico hasta Marx Bs As Ed Siglo Veintiuno 1971 28 Como ressaltamos anteriormente na nota 24 essa ideia estaacute exposta no diaacutelogo Teeteto de Platatildeo na proximidade entre a imagem do jovem Teeteto e Soacutecrates
14
multiplicidade cultural da essecircncia helecircnica que foi obtida desde o seu passado mais
remoto no contato com vaacuterias culturas na Bacia do Mediterracircneo
A proximidade com outros povos que foi estabelecida atraveacutes do comeacutercio e
da guerra a partir do desenvolvimento das culturas ciclaacutedica minoacuteica e micecircnica
aleacutem de revelar esse processo de relaccedilatildeo cultural29 tambeacutem foi responsaacutevel por
promover um banco extraordinaacuterio de conhecimento das accedilotildees humanas que foi
mantido e repassado atraveacutes da tradiccedilatildeo oral Esse acuacutemulo que foi fruto de
experiecircncias vitoriosas e amargas foram essenciais para a sobrevivecircncia e
manutenccedilatildeo dessas lembranccedilas do passado que serviu como norte para o futuro
atraveacutes da construccedilatildeo de uma das mais belas expressotildees humanas que foi alcanccedilada
a partir do amplo desenvolvimento das teacutecnicas musicais empregadas na
constituiccedilatildeo da poesia homeacuterica Esse feito notaacutevel reuacutene em sua maacutexima
excelecircncia todos os elementos mais importantes de sua histoacuteria30 que serviu para
pavimentar a estrada sinuosa do mundo helecircnico
No caso grego a linguagem eacute fundamentalmente marcada pelo contato e
observaccedilatildeo da Natureza O mito epoacutes loacutegos e o diaacutelogo satildeo imagens oriundas
dessa caracteriacutestica sublime que se iniciou na tradiccedilatildeo oral e que juntas formam a
relaccedilatildeo entre o ato de reflexatildeo e expressatildeo Essa experiecircncia foi essencial cada
uma delas em seu respectivo contexto para o desenvolvimento da religiatildeo arte
filosofia ciecircncia e poliacutetica no mundo antigo A forma como o homem estabeleceu
29 ∆ιάλογοςdiaacutelogos 30 Eacute importante ressaltar que o sentido de historicidade nesse contexto natildeo eacute equivalente ao conceito moderno Haacute uma grande polecircmica entre os historiadores em torno desse assunto Aliaacutes o termo grego em sua origem carrega o sentido de investigaccedilatildeo ἱστορ-ία historiacutea iacuteon -ιη ἡ inqueacuterito στορίῃσι εἰδέναι τι παρά τινος Hdt 2118 cf 119 ἡ περὶ φύσεως ἱ Pl Phd 96a αἱ περὶ τῶν ζῴων ἱ Arist Resp 477a7 al ἡ ἱ Id περὶ τὰ ζῷα Id PA 674b16 ζωικὴ ἱ ib 668b30 περὶ φυτῶν ἱ tiacutetulo do trabalho de Teofrasto observaccedilatildeo sistemaacutetica ou cientiacutefica Epicur Ep 1p29U abs da ciecircncia em geral ὄλβιος ὅστις τῆς ἱ Eσχε microάθησιν E Fr 910 (anap) da geometria Pythag ap Cordeiro VP 1889 na medicina empiacuterica corpo de casos registrados Gal 1144 mitologia ησίοδον πάσης ἤρανον ἱστορίης Hermesiano 722 2 conhecimento assim obtido informaccedilatildeo Hdt 1 Praef Hp VM 20 ἐις ἐmicroὴ καὶ γνώmicroη καὶ ἱ Hdt 299 πρὸς ἱστορίαν τῶν κοινῶν pelo conhecimento de D 18144 ψ τῆς ψυχῆς ἱ Arist reitor 402a4 II relato escrito de suas investigaccedilotildees narrativa histoacuteria prob neste sentido em Hdt 796 αἱ τῶν περὶ τὰς πράξεις γραφόντων ἱ Arist Rh 1360a37 Po 1451b3 Plb 1575 al Oκ τῶν ἱστοριῶν καὶ ἐκ τῶν ἄλλων microαρτυριῶν OGI 1312 (iii BC) αἱ Μαιανδρίου ἱ InscrPrien 37105 κοινὴ ἱ histoacuteria geral DH Ελληνική ρωmicroαϊκή Plu 2191d restringido por alguns agrave histoacuteria contemporacircnea Lat rerum cognitio praesentium VerrFlacc ap Gell 518 geralmente histoacuteria Call Aet 317 para a polecircmica em torno dessa questatildeo na antiguidade recomendamos a leitura dos seguintes livros HARTOG Franccedilois ldquoEvidecircncia da histoacuteria o que os historiadores veemrdquo Trad Guilherme Joatildeo de Freitas com a colaboraccedilatildeo de Jaime A Clasen Belo Horizonte Autecircntica 2011 E ldquoOs Antigos O Passado e o Presenterdquo Ed UnB Brasiacutelia 2003
15
comunicaccedilatildeo com essas forccedilas divinas moldou o seu proacuteprio modo de pensar e o
espaccedilo de atuaccedilatildeo no mundo atraveacutes de suas accedilotildees O contato com a natureza
humana e divina somada agrave capacidade de observaccedilatildeo e audiccedilatildeo trouxe um traccedilo
singular no processo de construccedilatildeo da subjetividade coletiva grega que
proporcionou o encontro da gloacuteria e o respeito entre as maiores civilizaccedilotildees da
antiguidade Um olhar singular que alcanccedilou a imensidatildeo do cosmo divino para
buscar sentido para os meros mortais quando estabelecia proximidade com os
deuses oliacutempicos atraveacutes de seus mais grandiosos feitos A reflexatildeo expressatildeo e
accedilatildeo que operam de modo encadeado criaram os seus mais belos rebentos atraveacutes
da Poesia Teatro Poliacutetica e Filosofia
Sobre a beleza eacute importante ressaltar que no contexto grego o seu sentido estaacute
em total consonacircncia com a noccedilatildeo de verdade que se forma no periacuteodo preacute-
homeacuterico e perdura ateacute o claacutessico31 a partir do criteacuterio do natildeo-esquecimento e da
accedilatildeo eficaz que garante o ecircxito no campo de batalha da vida A partir desses
princiacutepios a proacutepria constituiccedilatildeo do processo preacute-juriacutedico grego tambeacutem se
desenvolve para auxiliaacute-los na sua organizaccedilatildeo soacutecio-poliacutetica Em um primeiro
momento histoacuterico essas accedilotildees efetivas satildeo imortalizadas pela boca do aedo que
habita entre as duas instacircncias que juntas compotildee o espaccedilo dramaacutetico32 de atuaccedilatildeo
entre homens e deuses Nesse sentido eacute perceptiacutevel a partir do contexto homeacuterico
identificar algumas noccedilotildees que os gregos mantiveram do seu passado mais remoto
com o intuito de utilizaacute-las para garantir a perpetuaccedilatildeo dos valores cultivados pelos
seus ancestrais33 Por outro lado esse legado dispotildee de dispositivos que foram
31 Vide as obras de Homero Platatildeo e Aristoacuteteles Apesar de algumas diferenccedilas entre esses pensadores eacute possiacutevel encontramos essa noccedilatildeo que perpassa por todas as culturas predecessoras dos gregos atraveacutes da mitologia que foi mantida e difundida pela tradiccedilatildeo oral Posteriormente vamos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre esse ponto 32 Ou seja o mundo eacute formado atraveacutes do princiacutepio da guerra Vide o fragmento de Anaximandro (D-K 12 A 9 Simpliacutecio Fiacutes 24 13-25) Nele o filoacutesofo expotildee em sua sentenccedila mais famosa na antiguidade um questionamento que pode ser tambeacutem encontrado na poesia homeacuterica o sentido de ilimitado (ἄπειρονaacutepeiron) carrega o mesmo alfa privativo que estaacute contido na palavra imortal (ἀθάνατοςathaacutenatos) que para noacutes parece ter uma carga semacircntica similar Esse termo que ganha uma importacircncia fundamental na cosmologia do filoacutesofo estaacute em total consonacircncia com o questionamento que foi primeiramente trazido por poetas mais antigos como Homero e Hesiacuteodo Logo podemos encontrar mais uma evidecircncia de como a poesia oral foi importante para manter esse legado da cultura grega e que serviu de base para a reflexatildeo dos primeiros filoacutesofos 33 Uma das provas de continuidade cultural tambeacutem pode ser obtida nas praacuteticas oraculares que ainda desempenhavam um importante papel na esfera poliacutetica entre os gregos Esse fato traz um grande problema para aqueles que defendem que houve um processo de distanciamento da religiatildeo apoacutes o surgimento da Democracia que teria possibilitado o surgimento da Filosofia Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do IV capiacutetulo do seguinte livro VERNANT J-P ldquoAs
16
imprescindiacuteveis para o aprimoramento epistemoloacutegico social poliacutetico e juriacutedico
Para o primeiro basta lembrar a importacircncia da poesia homeacuterica e hesioacutedica em
todas as discussotildees cosmogocircnicas e cosmoloacutegicas dos filoacutesofos preacute-socraacuteticos que
culminou posteriormente no surgimento do debate intelectual no qual o homem
passou a ser o centro de todas as questotildees ou a medida de todas as coisas como
defendia o grande Protaacutegoras de Abdera34 Paralelamente a reflexatildeo juriacutedica e
poliacutetica foram temas de destaque nessas respectivas obras Na Iliacuteada de Homero
por exemplo nos deparamos com uma profunda criacutetica poliacutetica a partir da crise
entre Agamemnon e Aquiles que nos revela a decadecircncia da antiga estrutura
monaacuterquica micecircnica com a figura de um rei fraco e covarde Aleacutem dessa questatildeo
podemos notar a defesa dos valores calcados na honra e na coragem que eacute atribuiacuteda
ao grande heroacutei dos mirmidotildees
Posteriormente em ldquoOs trabalhos e os diasrdquo o poeta campesino ressalta a
necessidade do reconhecimento do papel da Justiccedila35para a organizaccedilatildeo do espaccedilo
social e poliacutetico no mundo humano que deve sempre manter um bom diaacutelogo com
o mundo divino com o objetivo de encontrar a harmonia atraveacutes do valor do
trabalho e respeito agraves leis A sua exposiccedilatildeo vem acompanhada de uma profunda
criacutetica ao modo como a classe aristocraacutetica administrava a comunidade36 Aliaacutes
Origens do Pensamento Gregordquo Trad Isiacutes Borges B da Fonseca 6ordf ed Rio de Janeiro Editora Bertrand Brasil SA 1989 34 Ibidem 35 ∆ίκη Dikeacute Divindade que representa o conceito de justiccedila no mundo grego Eacute importante ressaltar que que nesse contexto o seu sentido tem proximidade semacircntica com a verdade (ἀλήθειαaleacutetheia) pois satildeo elas as responsaacuteveis por organizar a vida humana Esses dois fundamentos teoloacutegicos que pertence a esfera divina eacute outro legado oriundo de uma tradiccedilatildeo muito antiga Curiosamente do periacuteodo preacute-homeacuterico ateacute o periacuteodo claacutessico essa concepccedilatildeo vigorava no pensamento grego de modo irrevogaacutevel Como exemplo podemos encontraacute-la ainda presente nos livros da Repuacuteblica e as Leis de Platatildeo Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura dos seguintes livros GERNET Louis ldquoDroit et Socieacuteteacute dans la Gregravece Anciennerdquo Paris Recueil Sirey 1955 HESIacuteODO ldquoOs Trabalhos e os Diasrdquo Traduccedilatildeo de Mary de Camargo Neves Lafer Satildeo Paulo Iluminuras 1989 36 Hesiacuteodo ldquoTrabalhos e os diasrdquo (v 205 - 285) Sobre essa questatildeo vale ressaltar as consideraccedilotildees que foram apresentadas por Louis Gernet que apontou uma mudanccedila no conceito de justiccedila entre o periacuteodo arcaico e claacutessico ao analisar as duas virtudes que foram oferecidas aos homens por Zeus no mito de Protaacutegoras (Platatildeo Protaacutegoras 322 c) Aleacutem da Justiccedila (∆ίκη Dikeacute) aparece um termo de difiacutecil traduccedilatildeo chamado αἰδώς aidoacutes (Platatildeo Protaacutegoras 322 cαἰδῶ τε καὶ δίκην aido te kai dikeacuten) que segundo o dicionaacuterio de Lidell amp Scott apresenta o sentido de um sentimento moral de respeito aos outros mas aleacutem desse haacute outros a saber αἰδώς όος contr οῦς η (tarde nom pl αἰδοί Sch E Hipp 386) como um sentimento moral reverecircncia admiraccedilatildeo respeito pelo sentimento ou opiniatildeo dos outros ou pela proacutepria consciecircncia e assim vergonha auto-respeito (na ἑαυτοῦ αἰδώς Hierocl em CA 9p433M) sentido de honra αἰδῶ θέσθ ἐνὶ θυmicroῷ Il 15561 ἴσχε γὰρ αἰ καὶ δέος ib 657 cf Sapph 28 democr 179 etc αἰ σωφροσύνης πλεῖστον microετέχει αἰσχύνης δὲ εὐψυχία Th 184 cf E Supp 911 Arist EN 1108a32 etc αἰδοῖ microειλιχίῃ Od 8172 so ἀλλά microε κωλύει αἴδως Alc 55 (Sapphus est versus) ἅmicroα κιθῶνι ἐκδυοmicroένῳ συνεκδύεται καὶ τὴν αἰδῶ γυνή
17
esse fato teve um desdobramento terriacutevel com uma guerra civil de grandes
proporccedilotildees entre a classe dos nobres e dos trabalhadores que levou muitos gregos
agrave morte37 Essa crise foi apaziguada temporariamente atraveacutes da intervenccedilatildeo do
poeta legislador Soacutelon A partir dessas mudanccedilas e das reformas de Clistenes38 a
Greacutecia comeccedila estabelecer uma abertura poliacutetica e social que foi fundamental para
um regime poliacutetico no qual o diaacutelogo e confronto de ideias39datildeo a tocircnica desse novo
momento histoacuterico que culminou no florescimento de grandes personalidades que
influenciam ateacute hoje o nosso mundo ocidental
Hdt 18 δακρύων πένθιmicroον αἰδῶ laacutegrimas de pesar e vergonha A Supp 579 αἰ τίς micro ἔχει Pl Sph 217d αἰ καὶ δίκη Id Prt 322c αἰδοῦς ἐmicroπίπλασθαι X Cyr 144 sobriedade moderaccedilatildeo pi O 13115 αἰδῶ λαβεῖν S Aj 345 2 consideraccedilatildeo pelos outros respeito reverecircncia αἰδοῦς οὐδεmicroιῆς ἔτυχον Thgn 1266 cf E Heracl 460 αἰ τοκέων respeito por eles Pi P 4218 τὴν ἐmicroὴν αἰδῶ respeito por mim A Pers 699 em conta para os amigos ἰχαλκεύτοισιν ἔζευκται πέδαις E Fr 595 esp consideraccedilatildeo pelo desamparado compaixatildeo αἰδοῦς κῦρσαι S OC 247 perdatildeo Antipho 126 Pl Lg 867e (cf αἰδέοmicroαι 112) II aquilo que causa vergonha ou respeito e assim 1 vergonha escacircndalo αἰδώς αργεῖοι κάκ ἐλέγχεα Il 5787 etc αἰδώς ὦ Λύκιοι πόσε φεύγετε 16422 αἰδὼς microὲν νῦν ἥδε 17336 2 = τὰ αἰδοῖα Il 2262 Arat 493 DH 772 3 dignidade majestade αἰ καὶ χάρις hCer 214 III Personδώς personificado Reverecircncia Pi O 744 Misericoacuterdia Ζηνὶ σύνθακος θρόνων Αἰ S OC 1268 cf Paus 1171 παρθένος Αἰδοῦς ∆ίκη λέγεται Pl Lg 943e Logo eacute possiacutevel compreender esse termo como fruto de um contexto soacutecio-poliacutetico democraacutetico no qual era necessaacuterio estabelecer um laccedilo de respeito muacutetuo atraveacutes do diaacutelogo que ainda tem ligaccedilatildeo com a justiccedila divina de Hesiacuteodo Ou seja ela eacute um fundamento que parte de um desdobramento do acircmbito divino para o mundo no qual o homem eacute a medida de todas as coisas Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do primeiro capiacutetulo do seguinte livro GERNET Louis ldquoDroit et institutions en Gregravece antiquerdquo Champs-Flammarion 1982 37 Entre os seacuteculos VII e VI aconteceu uma terriacutevel crise social que produziu uma guerra civil entre a classe dos nobres e dos trabalhadores atenienses Esse problema foi resolvido apoacutes a intervenccedilatildeo do poeta legislador Soacutelon A sua atuaccedilatildeo foi essencial para o estabelecimento da base democraacutetica que foi consolidada com as reformas do legislador Clistenes Para mais informaccedilatildeo sobre esse tema recomendo a leitura do seguinte artigo F Emerson ldquoDemocracia liberdade e poesia a grande revoluccedilatildeo popular de Atenas Revista Iacutetaca Ufrj 2015 38 Ibidem 39 Nesse caso o pleonasmo natildeo foi acidental No uacuteltimo capiacutetulo do presente trabalho pretendemos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre essa questatildeo A forma como a palavra-diaacutelogo apareceu nesse determinado contexto histoacuterico pode responder por exemplo como essa noccedilatildeo foi importante para o desenvolvimento do drama como gecircnero literaacuterio e filosoacutefico
2
Phyacutesis poesia criaccedilatildeo e pensamento
21
A expressatildeo da Phyacutesis
A Natureza eacute saacutebia e ela natildeo faz nada sem nenhum propoacutesito40 Segundo
Aristoacuteteles no livro da Poliacutetica41 o homem eacute um animal que tem o poder da palavra
articulada 42 que eacute a caracteriacutestica sine qua non que determina a sua diferenccedila entre
todos os outros seres vivos43 Esse poder de expressatildeo que eacute regido atraveacutes da nossa
capacidade de julgar44 eacute o que permite ao homem poder se organizar em uma
comunidade 45 justa e por isso ser considerado por natureza um animal poliacutetico46
40 Aristoacuteteles Poliacutetica (Livro I1253 a -10-14) 41 Ibidem 42 Λόγος (Loacutegos) Vide tambeacutem Eacutetica a Nicoacutemaco (Livro IX 9 1170 b11) onde o filoacutesofo afirma que a diferenccedila entre os homens e os outros animais eacute a faculdade de pensar (νοῦςnous) Os animais soacute possuem apenas a faculdade das sensaccedilotildees (αἴσθησῐςaiacutesthēsis) Eacute importante ressaltar a nossa imensa dificuldade em traduzir esse importante termo da liacutengua grega pois ele carrega diversos sentidos e a sua traduccedilatildeo necessita levar em consideraccedilatildeo o contexto especiacutefico no qual a palavra esteja sendo empregada Nessa passagem de Aristoacuteteles por exemplo ela carrega o sentido de uma palavra articulada pelo poder da razatildeo ndash sendo esse outro significado que o termo abrange como vimos na passagem do livro da Eacutetica a Nicocircmaco ndash que nos diferencia de outros animais No proacuteprio texto do filoacutesofo macedocircnio ele estabelece essa conotaccedilatildeo que nos ajuda a encontrar uma traduccedilatildeo apropriada Vide tambeacutem Xenofonte Memoraacuteveis (IV 3 12) e Isoacutecrates Sobre a mudanccedila de fortuna (253-7) e A Nicoles (50) Provavelmente Aristoacuteteles esteja desenvolvendo a sua teoria a partir dessas obras que foram inspiradas no pensamento de Protaacutegoras que podemos encontrar no diaacutelogo homocircnimo de Platatildeo Posteriormente iremos apresentar algumas hipoacuteteses em torno desse termo e a sua relaccedilatildeo com mais dois outros que expressam o sentido de linguagem e comunicaccedilatildeo para os gregos a saber ἔπος και microῦθος (epos e mythos) 43 Vide o mito de Protaacutegoras 44 Λογισmicroός (Logismoacutes) 45 Κοινωνία (Koinonia) associaccedilatildeo 46 ldquoὁ ἄνθρωπος φύσει ζῷον πολιτικόνrdquo (ho anthropos physei zoon politikon) Essa locuccedilatildeo grega tambeacutem levanta intensos debates em torno de sua interpretaccedilatildeo Infelizmente eacute muito difiacutecil traduzirmos com maacutexima fidelidade o sentido que o filoacutesofo empregou nessa sentenccedila O substantivo zoacuteon ao lado do adjetivo politikon parece formar um neologismo que estabelece um importante conceito na filosofia do pensador macedocircnio mas eis que surge uma questatildeo seraacute que esse conceito foi realmente cunhado por Aristoacuteteles ou pelo seu mestre Platatildeo No livro das Leis (livro III e IV) Poliacutetico e da Repuacuteblica (livro VI 546 a) o filoacutesofo poeta apresenta diversas questotildees que satildeo retomadas pelo seu disciacutepulo Eacute certo que esse era um importante tema dentro das intensas discussotildees que ocorriam na Academia Logo se faz necessaacuterio respeitar o contexto do qual essa expressatildeo foi retirada para evitar qualquer tipo de anacronismo ou distorccedilatildeo
19
que busca encontrar a sua plenitude existencial como objetivo final de sua vida47
Nesse sentido o poder de comunicaccedilatildeo e de criaccedilatildeo que eacute fornecido e revelado
pela palavra satildeo determinantes para a construccedilatildeo organizaccedilatildeo e manutenccedilatildeo do
mundo humano Semelhante ao deus platocircnico que se inspira nas ideias48 para a
criaccedilatildeo de todo o universo49 o homem mimetiza50 a Natureza51 para a realizaccedilatildeo do
objetivo que eacute ressaltado pelo filoacutesofo macedocircnio como a finalidade primordial que
define a nossa espeacutecie Ou seja ela eacute a medida de todas as coisas52 Estudar a sua
manifestaccedilatildeo eacute o ideal do homem primitivo que ao reconhecer a sua presenccedila eacute
tomado pelo assombro53 que eacute responsaacutevel para o surgimento da busca pela
sabedoria54 Esse importante passo contribui de modo definitivo para o seu mais
amplo desenvolvimento existencial em nossa histoacuteria O trabalho dos primeiros
pensadores parte dessa constataccedilatildeo inicial Ou seja o olhar dirigido para todos os
fenocircmenos naturais que eclodem ao redor do seu espaccedilo de atuaccedilatildeo delineia o
47 Ευδαιmicroονία (Eudaimonia) O ldquoBem-estarrdquo eacute um dos pontos centrais das discussotildees intelectuais no periacuteodo claacutessico No diaacutelogo Eutidemo de Platatildeo (278 e) essa questatildeo aparece como norteadora para a reflexatildeo eacutetica poliacutetica e pedagoacutegica para os gregos de modo geral 48 Platatildeo Timeu (28 a-b) ldquoὅτου microὲν οὖν ἂν ὁ δηmicroιουργὸς πρὸς τὸ κατὰ ταὐτὰ ἔχον βλέπων ἀεί τοιούτῳ τινὶ προσχρώmicroενος παραδείγmicroατι τὴν ἰδέαν καὶ δύναmicroιν αὐτοῦ ἀπεργάζηται καλὸν ἐξ ἀνάγκηςrdquo Destarte o demiurgo potildee os olhos no que eacute imutaacutevel que utiliza como arqueacutetipo quando fornece a forma e as propriedades ao que se cria Eacute necessaacuterio que tudo aquilo que se efetiva deste modo seja belo 49 Κόσmicroος (koacutesmos) Ο termo carrega o sentido de ordenamento e harmonia 50 Μίmicroησις (miacutemesis) Esse eacute outro termo dificiacutelimo para traduzir No geral os tradutores utilizam a palavra imitaccedilatildeo mas para o contexto grego o sentido eacute muito mais amplo Um deles pode ser a noccedilatildeo de representaccedilatildeo (Leis livro I 655d II 667d IV 719c VII 815a) que ele aplica ao contexto teatral e das artes de um modo geral Mas haacute ainda um sentido mais conceitual que Platatildeo aplica de modo sub-reptiacutecio no livro X da Repuacuteblica agrave teoria das formas Ao contraacuterio de muitos helenistas e especialistas de esteacutetica que criticaram de modo ofensivo a sua exposiccedilatildeo o filoacutesofo parece associar a esse termo um contraponto ao sentido de ldquocriaccedilatildeordquo (ποιεῖν) que eacute a tarefa do demiurgo e do filoacutesofo Para a defesa da nossa hipoacutetese partimos da passagem que citamos do Timeu na nota anterior e tambeacutem de uma importante obra esquecida do historiador Dionisio de Halicarnaso chamada ldquoSobre a imitaccedilatildeordquo (Περι Μιmicroησεως) Ao aproximaacute-la do livro X e da passagem que expomos do Timeu podemos extrair uma tese bem interessante sobre o ato de criaccedilatildeo para os antigos Posteriormente Aristoacuteteles (Poeacutetica 1448ordf17-19) vai explorar o sentido desse termo no acircmbito poeacutetico eacutetico e ontoloacutegico a partir de sua doutrina 51 Φύσιςphyacutesis 52 Platatildeo e Aristoacuteteles defendem que o modelo ou medida (microέτρον) para o mundo humano - diferentemente do que defendia Protaacutegoras com a noccedilatildeo do homem como medida de todas as coisas- eacute a Natureza para Aristoacuteteles e Deus Para Platatildeo Apesar de algumas diferenciaccedilotildees entre elas essas satildeo noccedilotildees similares que deveriam ser o criteacuterio de orientaccedilatildeo para as accedilotildees humanas Nesse sentido atraveacutes da ontologia a filosofia teria como objetivo estudar esses primeiros princiacutepios com o intuito de encontrar o caminho necessaacuterio para a plenitude da existecircncia humana Vide Protreacutepticoe a Metafiacutesica de Aristoacuteteles 53 θαῦmicroα 54 Σοφία
20
campo de possibilidades para a sua afirmaccedilatildeo atraveacutes da construccedilatildeo do seu proacuteprio
mundo que se daacute atraveacutes da revelaccedilatildeo dos seus segredos
Em todas as cosmogonias antigas eacute notoacuterio o desejo de entender esses
fenocircmenos que se manifestam em torno de nossa existecircncia que estaacute associado natildeo
apenas ao nosso instinto de autopreservaccedilatildeo mas tambeacutem pela necessidade da
busca de uma vida plena e feliz apoacutes essa constataccedilatildeo inicial em seguida surgem
as seguintes questotildees quem somos De onde viemos Para onde vamos O que eacute
a natureza A partir dessa uacuteltima buscou-se as respostas para as primeiras O largo
campo semacircntico que se estende em torno do termo Phyacutesis no caso grego nos daacute
a dimensatildeo do tamanho do esforccedilo exposto por esses primeiros pensadores na
antiguidade para tentar responder tais questotildees Ao nos debruccedilarmos sobre a
extensa literatura antiga podemos avaliar na antiguidade as mais variadas
manifestaccedilotildees reflexivas para compreendecirc-la Mas o nosso limite racional nos
impede que tenhamos uma posiccedilatildeo definitiva em torno desse grande problema
antigo Todavia essa delimitaccedilatildeo natildeo pode ser vista como algo negativo ou ateacute
mesmo impeditivo pelo contraacuterio ela nos impotildee a tarefa de ampliar e de manter a
discussatildeo viva Logo pretendemos acompanhar na medida do possiacutevel a evoluccedilatildeo
de certas noccedilotildees expostas por esses pensadores atraveacutes dessa fragmentaacuteria literatura
que nos fornece muitas pistas para a nossa presente investigaccedilatildeo O primeiro ponto
que podemos encontrar um certo consenso entre os filoacutesofos antigos eacute que a
indagaccedilatildeo humana comeccedila a estabelecer os seus primeiros passos a partir da relaccedilatildeo
dialoacutegica entre as forccedilas55 que escapam do seu domiacutenio e que se estende
incialmente entre dois niacuteveis do mundo e do homem56 No decorrer histoacuterico essas
reflexotildees desempenharatildeo grandes mudanccedilas dentro e fora57 da cultura grega
55 Nesse presente texto vamos utilizar dois termos que no contexto histoacuterico grego satildeo correlatos a saber (∆ύναmicroιςdyacutenamis) e (ἈθάνατοιAthanatoi) Posteriormente vamos apresentar alguns pontos sobre a utilizaccedilotildees desses termos desde do periacuteodo homeacuterico ateacute o claacutessico nos estudos sobre a Phyacutesis e o homem 56 Nos referimos ao questionamento dos primeiros poetas e filoacutesofos sobre a phyacutesis (natureza) ateacute a chegada do movimento sofiacutestico e de Soacutecrates que tinha como escopo dos seus estudos o homem no periacuteodo claacutessico De qualquer modo eacute importante ressaltarmos que haacute uma grande divergecircncia entres os helenistas em torno dessa esquematizaccedilatildeo Para o pesquisador canadense Gerard Naddaf por exemplo as obras dos primeiros pensadores natildeo faziam essa distinccedilatildeo entre essas duas esferas Para mais informaccedilotildees vide o seguinte livro NADDAF Gerard The greek concept of nature Albany State University of New York Press 2005 57 Podemos citar dois exemplos para esse caso a influecircncia da cultura grega sobre os romanos e a retomada da tradiccedilatildeo claacutessica durante o periacuteodo do Renascimento por volta do seacuteculo XIV
21
Essa transformaccedilatildeo ocorre atraveacutes dessa capacidade que eacute inerente a todos os
animais mas que no homem ganha destaque por ser considerada como a proacutepria
imagem ou emanaccedilatildeo da Natureza58 Esse atributo permite-nos exercer esse poder
de realizaccedilatildeo necessaacuterio para manutenccedilatildeo de nossa existecircncia Logo torna-se
essencial o estudo de todos os fenocircmenos que nos fornecem essa daacutediva divina59
Compreendecirc-la eacute o papel principal desempenhado pelos primeiros pensadores Essa
forccedila se manifesta de modo tatildeo sublime que se confunde com a forma de expressatildeo
do nosso proacuteprio pensamento60 Em Heraacuteclito por exemplo essa questatildeo define o
sentido de Natureza e linguagem apresentado pelo filoacutesofo efeacutesio A Phyacutesis estaacute
para o Loacutegos 61 assim como a noite estaacute para o dia62
ldquoDesse loacutegos sendo sempre satildeo os homens ignorantes tanto antes de ouvir como depois de ouvirem todas as coisas vecircm a ser segundo esse loacutegos e ainda assim parecem inexperientes embora se experimentem nestas palavras e accedilotildees63 tais quais eu exponho distinguindo cada coisa segundo a natureza e enunciando como se comporta Aos outros homens encobre-se tanto o que fazem acordados como esquecem o que fazem dormindordquo64
Para os gregos entre o periacuteodo homeacuterico ateacute o claacutessico esse termo eacute carregado
de diversos sentidos Mas de uma forma geral podemos resumi-los entre quatro
pontos fundamentais Entre eles estatildeo os seguintes atributos que podemos encontrar
em vaacuterias obras e fragmentos dentro desse contexto histoacuterico substacircncia
58 Φύσις posteriormente vamos nos debruccedilar sobre a intima relaccedilatildeo entre a phyacutesis e a sua expressatildeo (Μύθος Έπος και λόγοςMythos epos e logos) 59 Ou seja que natildeo proveacutem do mundo humano 60 Inicialmente atraveacutes da poesia (ποίησις) e depois do loacutegos (λόγος) que eacute um desdobramento histoacuterico desse importante termo Eacute importante ressaltarmos que esse uacuteltimo abarca natildeo apenas o ato de expressatildeo e a revelaccedilatildeo da Natureza mas tambeacutem o ato de julgar e de agir Se faz necessaacuterio destacar essa diferenccedila sobretudo por causa da confusatildeo semacircntica que ocorre entre os tradutores que ignoram a plasticidade do termo quando retirado do seu contexto especiacutefico 61Φύσις και Λόγος Posteriormente vamos apresentar uma anaacutelise sobre a relaccedilatildeo iacutentima que haacute entre esses dois termos no pensamento antigo 62 Heraacuteclito Fragmento 50 (DK) ldquoοὐκ ἐmicroοῦ ἀλλὰ τοῦ λόγου ἀκούσαντας ὁmicroολογεῖν σοφόν ἐστιν ἓν πάντα εἶναίrdquo (Ouvindo natildeo a mim mas ao loacutegos eacute saacutebio concordar ser tudo um) Heraacuteclito fragmentos contextualizados Ediccedilatildeo biliacutengue Apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e comentaacuterios por Alexandre Costa Satildeo Paulo Odysseus 2012 63 Importante destacar a relaccedilatildeo entre ldquopalavrasrdquo e ldquoaccedilotildeesrdquo (ἐπέων καὶ ἔργων) exposta pelo pensador efeacutesio Posteriormente voltaremos a essa questatildeo 64Heraacuteclito Fragmento I ldquoτοῦ δὲ λόγου τοῦδ ἐόντος ἀεὶ ἀξύνετοι γίνονται ἄνθρωποι καὶ πρόσθεν ἢ ἀκοῦσαι καὶ ἀκούσαντες τὸ πρῶτον γινοmicroένων γὰρ πάντων κατὰ τὸν λόγον τόνδε ἀπείροισιν ἐοίκασι πειρώmicroενοι καὶ ἐπέων καὶ ἔργων τοιούτων ὁκοίων ἐγὼ διηγεῦmicroαι κατὰ φύσιν διαιρέων ἕκαστον καὶ φράζων ὅκως ἔχει τοὺς δὲ ἄλλους ἀνθρώπους λανθάνει ὁκόσα ἐγερθέντες ποιοῦσιν ὅκωσπερ ὁκόσα εὕδοντες ἐπιλανθάνονταιrdquo Heraacuteclito fragmentos contextualizados Ediccedilatildeo biliacutengue Apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e comentaacuterios por Alexandre Costa Satildeo Paulo Odysseus 2012
22
primordial origem processo e resultado (NADDAF 1992) Eacute importante ressaltar
que todas essas caracteriacutesticas estabelecem entre si uma relaccedilatildeo de proximidade
semacircntica A primeira apariccedilatildeo na literatura grega desse termo surge de modo
emblemaacutetico no livro X da Odisseacuteia de Homero65 Para fazermos uma anaacutelise
pormenorizada dessa passagem eacute necessaacuterio nos atermos a construccedilatildeo alegoacuterica
promovida pelo poeta em torno das personagens de Odisseu Circe e o deus Hermes
Aleacutem da apariccedilatildeo originaacuteria do uso da palavra phyacutesis podemos extrair dessa
passagem uma das primeiras elaboraccedilotildees da relaccedilatildeo entre a Phyacutesis (Natureza) e
Loacutegos (Linguagem) 66 na histoacuteria do pensamento antigo No proacuteximo paraacutegrafo
vamos apresentar todo o contexto do qual a passagem foi retirada e comentaacute-la em
seguida
Apoacutes suportar diversas peripeacutecias67 com o intuito de retornar agrave sua cidade natal
Iacutetaca o grande heroacutei ardiloso desembarca em Eeia ilha da deusa Circe68 ao lado
dos seus marinheiros Esses homens que estavam completamente famintos
adentram o territoacuterio desconhecido da senhora das drogas e dos venenos69 mas satildeo
surpreendidos por ela em seu esplendoroso palaacutecio
[HOMERO Odisseia] ldquoComo o ordenaste oacute glorioso Odisseu fomos pela floresta onde num vale encontramos um belo palaacutecio construiacutedo todo com pedras polidas num siacutetio ao redor abrigado Dentro se achava no tear meneando-se algueacutem que cantava ou fosse deusa ou mulher eles logo em voz alta a chamaram Sem se fazer esperar veio a deusa e o portatildeo lhes franqueia belo e brilhante os estultos entatildeo para dentro a seguiram com exceccedilatildeo soacute de mim por ter tido suspeita de dolo Todos os outros sumiram sem que um soacute deles voltasse Por muito tempo deixei-me ficar de atalaia ali mesmordquo Isso disse ele passei logo a espada de cravos de prata grande
65 Em Homero Odisseacuteia (Livro X vv 230-340) 66 Vide nota 48 67 Περιπέτεια (peripeteacuteia) Esse eacute um importante conceito que foi estudado por Aristoacuteteles na Poeacutetica 68 Na mitologia Circe era uma poderosa feiticeira que dominava o poder das drogas e venenos Ela era filha do deus sol Heacutelios e da ninfa Perseis que por sua vez era filha de Oceano e de Teacutetis Em outros registros ela aparece como filha da deusa da necromancia e feiticcedilaria conhecida como Heacutecate Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto vide o seguinte livro GRIMAL P Dicionaacuterio da Mitologia Grega e Romana Trad V Jabouille Lisboa DIFEL 2ordf ed 1993 69 Φάρmicroακον (Phaacutermakon) Esse eacute outro importante termo que demonstra o poder de plasticidade e riqueza poeacutetica que os gregos cultivavam em relaccedilatildeo agrave cunhagem das palavras A determinaccedilatildeo de sentido desse termo necessita -como em outros termos como logos e phyacutesis que apresentamos anteriormente- fundamentalmente do contexto semacircntico pelo qual ele foi aplicado A ambiguidade que oscila entre veneno ou remeacutedio vai depender da posologia ou seja da medida (microέτρονmeacutetron) que seraacute fornecida atraveacutes da razatildeo Posteriormente veremos como esse tipo de artifiacutecio foi essencial para o desenvolvimento e primazia da arte do bem falar na antiguidade Da poesia ateacute o surgimento da retoacuterica esse tipo de recurso foi amplamente utilizado para ornamentar e impressionar os ouvintes atraveacutes da criaccedilatildeo de diversas figuras de linguagem que tinham por intuito comover ou convencer a sua audiecircncia
23
e de bronze por volta dos ombros e de arco muni-me Tendo isso feito ordenei-lhe que mostrasse o caminho seguido Mas os joelhos com ambas as matildeos abraccedilou-me implorante e entre gemidos sentidos me diz as palavras aladas ldquoContra vontade disciacutepulo de Zeus arrastar-me natildeo queiras Tenho certeza que nunca hei de ver-te outra vez e que os soacutecios natildeo mais contigo hatildeo de vir Eacute mais certo fugirmos com estes sem mais demora talvez escapar consigamos da Morterdquo Isso disse ele em resposta lhe digo as seguintes palavras ldquoFica-te Euriacuteloco neste lugar em que te achas sozinho junto da ceacutelere nau de cor negra comendo e bebendo mas quanto a mim seguirei porque forccedila incontida me obriga Tendo isso dito da nave afastei-me e da praia marinha Mas quando estava no vale sagrado e do grande palaacutecio me aproximava de Circe que todas as plantas conhece Hermes me veio encontrar o imortal que o bastatildeo de ouro leva mdash antes de agrave casa chegar mdash na figura de um moccedilo radiante a quem o buccedilo comeccedila a apontar na sazatildeo mais graciosa Da matildeo me toma e falando me disse as seguintes palavras ldquoPor onde vais infeliz atraveacutes desses montes sozinho do siacutetio ignaro Na casa de Circe se encontram teus soacutecios sob a figura de porcos trancados em boas pocilgas Vais ateacute laacute com tenccedilatildeo de trazecirc-los Natildeo creio entretanto que de laacute voltes mas haacutes de ficar onde os outros se encontram Quero poreacutem proteger-te e livrar-te do mal iminente Toma esta droga de muita eficaacutecia e o palaacutecio de Circe entra porque haacute de livrar-te a cabeccedila do dia funesto Vou revelar-te os ardis perniciosos usados por Circe haacute de bebida oferecer-te e veneno te pocircr na comida Mas impossiacutevel ser-lhe-aacute enfeiticcedilar-te que a droga excelente que ora te entrego desfaz esse influxo Atende ao que segue logo que Circe com sua varinha tocar-te no corpo saca depressa da espada cortante que ao lado te pende e contra a deusa arremete mostrando intenccedilatildeo de mataacute-la Ela com medo haacute de entatildeo implorar-te que ao leito a acompanhes De forma alguma te negues subir para o leito da deusa para que os soacutecios te queiram livrar e tratar-te benigna O juramento dos deuses poreacutem exigir deves dela de que nenhuma outra insiacutedia de fato planeja em teu dano natildeo aconteccedila fazer-te vileza ao te ver desarmadordquo Tendo isso dito arrancou o correio de luacutecido aspecto da terra a planta e me deu explicando-me suas virtudes Tinha a raiz de cor negra mas branca era a flor como leite Moacuteli chamavam-lhe os deuses difiacutecil aos homens seria de vida curta arrancaacute-la mas tudo os eternos conseguem Hermes depois de isso feito partiu para o Olimpo elevado pela ilha de aacutervores cheia eu me fui para a casa de Circe O coraccedilatildeo nesse instante batia-me forte no peito Diante da porta da deusa de tranccedilas bem-feitas detive-me de onde depois em voz alta chamei tendo a deusa me ouvidordquo70
70 Em Homero Odisseacuteia (livro X vv 250 ndash 310) ldquoἤιοmicroεν ὡς ἐκέλευες ἀνὰ δρυmicroά φαίδιmicro᾽ Ὀδυσσεῦ εὕροmicroεν ἐν βήσσῃσι τετυγmicroένα δώmicroατα καλὰ ξεστοῖσιν λάεσσι περισκέπτῳ ἐνὶ χώρῳ ἔνθα δέ τις microέγαν ἱστὸν ἐποιχοmicroένη λίγ᾽ ἄειδεν (255) ἢ θεὸς ἠὲ γυνή τοὶ δὲ φθέγγοντο καλεῦντεςἡ δ᾽ αἶψ᾽ ἐξελθοῦσα θύρας ὤιξε φαεινὰς καὶ κάλει οἱ δ᾽ ἅmicroα πάντες ἀιδρείῃσιν ἕποντοαὐτὰρ ἐγὼν ὑπέmicroεινα ὀισάmicroενος δόλον εἶναι οἱ δ᾽ ἅmicro᾽ ἀιστώθησαν ἀολλέες οὐδέ τις αὐτῶν 260 ἐξεφάνη δηρὸν δὲ καθήmicroενος ἐσκοπίαζον ὣς ἔφατ᾽ αὐτὰρ ἐγὼ περὶ microὲν ξίφος ἀργυρόηλον ὤmicroοιιν βαλόmicroην microέγα χάλκεον ἀmicroφὶ δὲ τόξατὸν δ᾽ ἂψ ἠνώγεα αὐτὴν ὁδὸν ἡγήσασθαι αὐτὰρ ὅ γ᾽ ἀmicroφοτέρῃσι λαβὼν ἐλλίσσετο γούνων (265) καί micro᾽ ὀλοφυρόmicroενος ἔπεα πτερόεντα προσηύδα lsquomicroή micro᾽ ἄγε κεῖσ᾽ ἀέκοντα διοτρεφές ἀλλὰ λίπ᾽ αὐτοῦ οἶδα γάρ ὡς οὔτ᾽ αὐτὸς ἐλεύσεαι οὔτε τιν᾽ ἄλλον ἄξεις σῶν ἑτάρων ἀλλὰ ξὺν τοίσδεσι θᾶσσον φεύγωmicroεν ἔτι γάρ κεν ἀλύξαιmicroεν κακὸν ἦmicroαρrsquo(270) ὣς ἔφατ᾽ αὐτὰρ ἐγώ microιν ἀmicroειβόmicroενος προσέειπον Εὐρύλοχ᾽ ἦ τοι microὲν σὺ microέν᾽ αὐτοῦ τῷδ᾽ ἐνὶ χώρῳ ἔσθων καὶ πίνων κοίλῃ παρὰ νηὶ microελαίνῃαὐτὰρ ἐγὼν εἶmicroι κρατερὴ δέ microοι ἔπλετ᾽ ἀνάγκηrsquoὣς εἰπὼν παρὰ νηὸς ἀνήιον ἠδὲ θαλάσσης (275) ἀλλ᾽ ὅτε δὴ ἄρ᾽ ἔmicroελλον ἰὼν ἱερὰς ἀνὰ βήσσας Κίρκης ἵξεσθαι πολυφαρmicroάκου ἐς microέγα δῶmicroα ἔνθα microοι Ἑρmicroείας χρυσόρραπις ἀντεβόλησεν ἐρχοmicroένῳ πρὸς δῶmicroα νεηνίῃ ἀνδρὶ ἐοικώς πρῶτον ὑπηνήτῃ τοῦ περ χαριεστάτη ἥβη (280) ἔν τ᾽ ἄρα microοι φῦ χειρί ἔπος τ᾽ ἔφατ᾽ ἔκ τ᾽ ὀνόmicroαζε lsquoπῇ δὴ αὖτ᾽ ὦ δύστηνε δι᾽ ἄκριας ἔρχεαι οἶος χώρου ἄιδρις ἐών ἕταροι δέ τοι οἵδ᾽ ἐνὶ Κίρκης ἔρχαται ὥς τε σύες πυκινοὺς κευθmicroῶνας ἔχοντεςἦ τοὺς λυσόmicroενος δεῦρ᾽ ἔρχεαι οὐδέ σέ φηmicroι (285) αὐτὸν νοστήσειν microενέεις δὲ σύ γ᾽ ἔνθα περ ἄλλοι ἀλλ᾽ ἄγε δή σε κακῶν ἐκλύσοmicroαι ἠδὲ σαώσω τῆ τόδε φάρmicroακον ἐσθλὸν ἔχων ἐς δώmicroατα Κίρκης ἔρχευ ὅ κέν τοι κρατὸς ἀλάλκῃσιν κακὸν ἦmicroαρ πάντα
24
Apoacutes o desfecho traacutegico que culminou na transformaccedilatildeo dos marinheiros em
porcos Odisseu resolve salvaacute-los com a ajuda divina de Hermes A primeira
apariccedilatildeo do uso do termo phyacutesis aparece exatamente quando o heroacutei de Iacutetaca eacute
interpelado como de praxe por uma divindade com o intuito de auxiliaacute-lo na
missatildeo de resgatar e desfazer o feiticcedilo que foi lanccedilado contra a sua tripulaccedilatildeo Na
passagem do verso 30371 podemos encontrar in loco um dos primeiros momentos
que a palavra eacute aplicada (NADDAF 1992) na literatura homeacuterica Inicialmente o
seu sentido estaacute associado diretamente aos seguintes termos morpheacute eidos e phye 72 Etimologicamente o termo phyacutesis parece ser oriundo do verbo phye (crescer)
que era empregado no geral para expressar o desenvolvimento da forma humana73
e natildeo para designar o aspecto natural de qualquer outro ente por exemplo Para esses
δέ τοι ἐρέω ὀλοφώια δήνεα Κίρκης (290) τεύξει τοι κυκεῶ βαλέει δ᾽ ἐν φάρmicroακα σίτῳ ἀλλ᾽ οὐδ᾽ ὣς θέλξαι σε δυνήσεται οὐ γὰρ ἐάσει φάρmicroακον ἐσθλόν ὅ τοι δώσω ἐρέω δὲ ἕκαστα ὁππότε κεν Κίρκη σ᾽ ἐλάσῃ περιmicroήκεϊ ῥάβδῳ δὴ τότε σὺ ξίφος ὀξὺ ἐρυσσάmicroενος παρὰ microηροῦ (295) Κίρκῃ ἐπαῖξαι ὥς τε κτάmicroεναι microενεαίνωνἡ δέ σ᾽ ὑποδείσασα κελήσεται εὐνηθῆναι ἔνθα σὺ microηκέτ᾽ ἔπειτ᾽ ἀπανήνασθαι θεοῦ εὐνήν ὄφρα κέ τοι λύσῃ θ᾽ ἑτάρους αὐτόν τε κοmicroίσσῃ ἀλλὰ κέλεσθαί microιν microακάρων microέγαν ὅρκον ὀmicroόσσαι (300) microή τί τοι αὐτῷ πῆmicroα κακὸν βουλευσέmicroεν ἄλλο microή σ᾽ ἀπογυmicroνωθέντα κακὸν καὶ ἀνήνορα θήῃ ὣς ἄρα φωνήσας πόρε φάρmicroακον ἀργεϊφόντης ἐκ γαίης ἐρύσας καί microοι φύσιν αὐτοῦ ἔδειξε ῥίζῃ microὲν microέλαν ἔσκε γάλακτι δὲ εἴκελον ἄνθος305 microῶλυ δέ microιν καλέουσι θεοί χαλεπὸν δέ τ᾽ ὀρύσσειν ἀνδράσι γε θνητοῖσι θεοὶ δέ τε πάντα δύνανται Ἑρmicroείας microὲν ἔπειτ᾽ ἀπέβη πρὸς microακρὸν Ὄλυmicroπον νῆσον ἀν᾽ ὑλήεσσαν ἐγὼ δ᾽ ἐς δώmicroατα Κίρκης ἤια πολλὰ δέ microοι κραδίη πόρφυρε κιόντιrdquo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes 71 καί microοι φύσιν αὐτοῦ ἔδειξεkai moi physin autou eacutedeixe (ldquoE a mim trouxe a luz a sua formardquo) Na traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes acima para natildeo perder a fluecircncia e coerecircncia poeacutetica do texto ele optou traduzir forma por virtude de qualquer modo a sua traduccedilatildeo natildeo estaacute tatildeo distante do original pois como veremos a seguir o termo phyacutesis expressa a noccedilatildeo de qualidade ou caracteriacutestica 72 Μορφή εἶδος και φυή Os trecircs termos carregam o sentido de forma ou figura que apresentam as suas caracteriacutesticas exteriores No caso do verbo φυή (phye) encontramos tambeacutem o sentido de crescimento e estatura Vide tambeacutem a definiccedilatildeo apresentada no dicionaacuterio de Lidell amp Scott para esse termo Dor φυά ἡ ( φύω ) growth stature esp fine growth noble stature in Hom always (as in Hes) of the human form and only in acc θηήσαντο φυὴν καὶ εἶδος ἀγητόν Il 22370 φυὴν ἐδάην καὶ microήδεα 3208 most freq in adv sense Νέστορι δίῳ εἶδός τε microέγεθός τε φυήν τ ἄγχιστα ἐῴκει in shape and in stature and in size (or growth) 258 cf Od 6152 οὔ ἑθέν ἐστι χερείων οὐ δέmicroας οὐδὲ φυήν οὔτ ἂρ φρένας Il 1115 cf Od 5212 7210 φυήν γε microὲν οὐ κακός ἐστι 8134 χρυσέῳ [γένει] οὔτε φυὴν ἐναλίγκιον οὔτε νόηmicroα Hes Op 129 cf Sc 88 B 5168 later in gen οὔτε φυῆς ἐπιδευέες οὔτε νόοιο Theoc 22160 rare in Trag τὴν τάλαιναν εὔmicroορφον φ A Niob in PSI 1112088 φυὰν Γοργόνος ἴσχειν E El 461 (lyr) 2 after Hom of animals plants or objects ἐmicroβάλλων ἐριπλεύρῳ φυᾷ κέντρον Pi P 4235 κάνθαρος Αἰτναῖος φυήν S Ichn 300 also τερπόmicroεναι ῥοδέῃ φ of roses Mosch 236 of beans Luc VitAuct 6 of things ἀνέβη ἡ φ τοῖς τείχεσιν their original form was restored LXX Ne 47(1) ἐὰν κατὰ φυὰν διαφθαρῇ τις τῶν λίθων IG 7307340 (Lebad ii B C) II poet for φύσις nature genius σοφὸς ὁ πολλὰ εἰδὼς φυᾷ Pi O 286 microάρνασθαι φυᾷ Id N 125 cf I 7(6)22 φυᾷ τὸ γενναῖον ἐπιπρέπει Id P 844 τὸ δὲ φυᾷ κράτιστον ἅπαν Id O 9100 δεινὸς φυήν Cratin 221 III the flower or prime of age εὐάνθεmicroος φυά Pi O 167 IV substance ἀναίmicroων ἐστὶ φυὴ microελέων Opp H 1639 νεφροὶ τὴν φ ἀδενώδεες Aret SD 23 V microερόπων φυή the race of men APl 41837 VI produce of a year harvest φ τοῦ ἐνεστῶτος ἔτους BGU 7084 (ii A D) cf Pland 2612 (i A D) etcmdashPoet and later prose 73 Ibidem
25
casos o termo eidos e morpheacute eram mais utilizados Aleacutem disso tambeacutem
encontramos outra palavra que foi importante posteriormente para fenomenologia
no seacuteculo XIX74 que eacute o verbo phaino75(mostrarrevelar) que estaacute no radical de
phainesthai 76 A partir dessas evidecircncias expostas podemos afirmar que o sentido
primaacuterio de phyacutesis estava totalmente atrelado aos seguintes termos crescimento
aparecimento desenvolvimento forma ou estrutura de alguma coisa 77 No
exemplo exposto pelo poeta a sentenccedila deixa claro que a forma78 da planta foi lhe
revelada79 apenas quando o deus Hermes interveacutem para lhe transmitir o
conhecimento necessaacuterio para que o nosso astuto heroacutei pudesse desfazer o feiticcedilo
lanccedilado por Circe e com isso realizar o objetivo de libertar seus amigos80
Um dos pontos que gostariacuteamos de destacar aqui eacute a correlaccedilatildeo que haacute entre
o ato de transmissatildeo e conhecimento dentro desse contexto que toma a proacutepria
phyacutesis como forma e paradigma81 desse viacutenculo fundamental que determina a
existecircncia de todas as coisas Mesmo de modo alegoacuterico e sub-reptiacutecio o poeta
apresenta os pontos substanciais para a discussatildeo nesses versos que seratildeo
norteadores para todos os pensadores que surgiratildeo posteriormente Essa trama que
ocorre no capiacutetulo X expotildee de modo exemplar a nossa condiccedilatildeo82 miseraacutevel de total
ignoracircncia que assinala a naturezaforma(phyacutesis) humana e seu distanciamento do
mundo divino mas tambeacutem abre o horizonte para a formulaccedilatildeo de uma educaccedilatildeo83
que possa orientar e resguardar a comunidade atraveacutes desse contato cauteloso com
74 Corrente filosoacutefica que foi desenvolvida por Edmund Husserl (1859-1938) - filoacutesofo matemaacutetico e loacutegico austriacuteaco 75 Φαίνω Aparecer 76 Φαινεσθαιphainesthai 77 Essa evidecircncia nos leva a especular a possibilidade da famosa hipoacutetese conhecida na antiguidade como a teoria das formas ter surgido a partir desse conceito de natureza que foi proposto no periacuteodo homeacuterico 78 Φύσιςphyacutesis 79 Esse eacute o sentido do verbo ἔδειξεeacutedeixe que vem de δείκνυmicroιdeiknumi (trazer agrave luz mostrar fazer conhecido) Para mais informaccedilotildees sobre esse termo vide o dicionaacuterio de Lidell amp Scott Dentro da construccedilatildeo poeacutetica homeacuterica podemos reconhecer a relaccedilatildeo entre esse termo e o da phyacutesis Para nossa hipoacutetese esse ponto eacute de extrema importacircncia como veremos posteriormente 80 Posteriormente faremos uma anaacutelise sobre esse ponto para ressaltar os desdobramentos dessa histoacuteria no pensamento antigo 81 Παράδειγmicroα padratildeo modelo ou base Eacute importante frisar que no pensamento platocircnico esses dois termos satildeo correlatos Aliaacutes no livro X da Leis o filoacutesofo continua ainda utilizando esse mesmo esquema exegeacutetico que encontramos em Homero para apresentar as suas reflexotildees A partir desse fato podemos afirmar que esse eacute mais um indiacutecio que fornece elementos para a validaccedilatildeo de nossa hipoacutetese 82 Esse eacute outro termo correlato para a Φύσιςphyacutesis 83 ΠαιδείαPaideacuteia Posteriormente vamos apresentar algumas caracteriacutesticas sobre a educaccedilatildeo grega
26
os deuses pois a uacutenica forma de um mortal como no caso de Odisseu obter sucesso
contra as forccedilas que natildeo pertencem ao mundo humano - que no contexto homeacuterico
eacute sempre retratado com adjetivos que ressaltam a fragilidade e a brevidade de nossa
condiccedilatildeo ndash eacute estabelecer um diaacutelogo84 com alguma divindade 85 Nesse sentido a
poesia homeacuterica afirma que essa relaccedilatildeo com o mundo divino eacute o uacutenico caminho
que pode fornecer ao homem o conhecimento necessaacuterio para manter a sua
sobrevivecircncia em um mundo que eacute controlado por essas forccedilas antagocircnicas Dentro
dessa construccedilatildeo alegoacuterica86 eacute necessaacuterio recorrer ao extenso banco mnemocircnico de
histoacuterias que foram transmitidas e mantidas desde o iniacutecio da tradiccedilatildeo oral que
possibilitou o surgimento e ecircxito da poesia homeacuterica (VIDAL-NAQUET 2002) no
mundo grego Para adesatildeo coletiva dessas noccedilotildees como veremos no proacuteximo
capiacutetulo eacute necessaacuterio que os gregos compartilhem esses valores que eram
repassados pelos antigos aedos87 de modo unificado atraveacutes de sua liacutengua Um
exemplo desse fato pode ser adquirido na observaccedilatildeo do papel de destaque que
poeta fornece ao deus Hermes dentro do drama sofrido por Odisseu Eacute provaacutevel
como ressalta o socioacutelogo e filoacutelogo francecircs Louis Gernet (GERNET 1968) que
esse coacutedigo de conduta que eram repassados em versos na antiguidade por
intermeacutedio dos mitos fossem utilizados para a construccedilatildeo de arqueacutetipos que eram
uacuteteis natildeo apenas para afirmaccedilatildeo dos valores defendidos pela aristocracia mas para
coesatildeo estrutural da trama narrada pelo poeta pois a total eficaacutecia do primeiro
objetivo vive em funccedilatildeo do desempenho harmocircnico obtido pelo aedo perante o
puacuteblico O reconhecimento dessas figuras facilita a adesatildeo por parte da audiecircncia e
84 ∆ιάλογοςdiaacute-logos Conversaccedilatildeo interaccedilatildeo e relaccedilatildeo e entre duas ou mais pessoas Posteriormente vamos apresentar a importacircncia desse ato natildeo apenas para o desenvolvimento cultural grego mas tambeacutem sob o ponto de vista ontoloacutegico epistemoloacutegico poliacutetico e pedagoacutegico Nesse sentido estamos partindo da hipoacutetese de que os fundamentos principais para cada um desses pontos jaacute estatildeo apresentados de modo alegoacuterico nos poemas homeacutericos 85 ἈθάνατοιAthanatoi Os imortais Na mitologia esse fato estaacute presente na maioria dos mitos que chegaram ateacute noacutes Outro exemplo que podemos trazer podem ser obtidas na obra da Iliacuteada Na guerra de Troacuteia ambas os lados aqueus e troinanos receberam apoio divino 86 ὑπόνοιαhyponoacuteia ἡ (ὑπονοέω) suspeita conjectura suposiccedilatildeo Ar Pax 993 (pl anap) τοῦ microὴ συνειληφέναι Sor 254 cf Gal 6663 ὑπόνοιαι τῶν microελλόντων noccedilotildees formadas de eventos futuros Th 587 ἡ ὑ τῶν ἔργων Id 241 cf E Ph 1133 em sentido negativo ὑπόνοιαι πλασταί D 4839 cf Men Mon 732 2 suggestion Phld Mus p71 K imputaccedilatildeo Id D 113 II o verdadeiro significado que estaacute no fundo de uma coisa um sentido mais profundo τὰς ὑ οὐκ ἐπίστανται X Smp 36 esp significado secreto (como eacute transmitido por mitos e alegorias) ὁ νέος οὐχ οἷός τε κρίνειν ὅτι τε ὑ καὶ ὃ microή Pl R 378d cf Plu 219e opp αἰσχρολογία Arist EN 1128a24 καθ ὑπόνοιαν por insinuaccedilatildeo secretamente Plb 2845 DH Rh 91 δι ὑπονοιῶν Alciphr 24 87 ἀοιδός aoidos cantor Esse termo eacute oriundo do verbo (ᾄδω aidocirc) cantar
27
reforccedila de modo sutil a funccedilatildeo coercitiva que a poesia realiza junto com a religiatildeo
para a manutenccedilatildeo e organizaccedilatildeo juriacutedica no periacuteodo arcaico (GERNET 1968)
Para termos uma noccedilatildeo mais precisa desse fato basta observar o uso intenso
dos epiacutetetos e foacutermulas nas duas obras homeacutericas Segundo Milman Parry que foi
um importante helenista americano que se destacou pelo estudo da tradiccedilatildeo oral
homeacuterica o uso demasiado dos epiacutetetos e foacutermulas tinha uma funccedilatildeo bem
determinada para os antigos aedos permite uma espeacutecie de pausa no fluxo contiacutenuo
da narrativa que lhe fornecia um breve descanso durante as longas apresentaccedilotildees
desses poemas e a possibilidade de estender ou encurtar a sua recitaccedilatildeo (PARRY
1971) conforme a sua vontade Eacute uma espeacutecie de dispositivo extremamente
sofisticado para a cultura oral que oferece ao cantor um domiacutenio maior sobre o
conteuacutedo para o total ecircxito de sua performance em puacuteblico Essa caracteriacutestica
fornecia ao aedo uma possibilidade de assinar a sua singularidade em relaccedilatildeo aos
outros que compartilhavam com ele o mesmo ofiacutecio E isso era algo primordial
dentro de uma cultura tatildeo competitiva como a grega A perfeiccedilatildeo era algo almejado
como maacuteximo valor entre os helenos
Mas haacute ainda uma caracteriacutestica que natildeo foi ressaltada pelo ilustre helenista
E ela reside na funccedilatildeo mnemocircnica e de fixaccedilatildeo do conteuacutedo expresso nas foacutermulas
e epiacutetetos Esse recurso atua como uma espeacutecie de ritornelo88 na muacutesica popular
que desempenha o papel de reforccedilar a mensagem exposta pela canccedilatildeo No caso da
poesia homeacuterica quando nos deparamos com a repeticcedilatildeo de certas foacutermulas e
epiacutetetos nos salta aos olhos - mas sobretudo aos ouvidos89 - o poder de cravar na
memoacuteria coletiva natildeo apenas as qualidades dos heroacuteis mas dos deuses oliacutempicos
Essa estrateacutegia na muacutesica tambeacutem ocorre com o leitmotiv90 que associa a
88 Na muacutesica em geral atua como refratildeo estribilho coro ou ritornelo Esse recurso tem o poder de sintetizar a mensagem geral de uma canccedilatildeo reafirmando o seu principal sentido norteador Ou seja o leitmotiv da canccedilatildeo Essa caracteriacutestica nos fornece alguns elementos para entender o recursoutilizado por esses antigos poetas gregos 89 Esse detalhe natildeo pode ser esquecido por noacutes aacutevidos leitores modernos No mundo antigo a transmissatildeo de conhecimento era dada atraveacutes da oralidade Logo para defender essa hipoacutetese precisamos nos colocar na posiccedilatildeo de ouvinte Nesse sentido a canccedilatildeo popular sobretudo o estilo dos cordelistas em vaacuterias culturas ainda guardam algumas caracteriacutesticas dessa antiga tradiccedilatildeo oral 90 Esse termo vem da liacutengua alematilde e significa ldquomotivo condutorrdquo
28
personagem ou algum tema especiacutefico a uma determinada imagem sonora
composta para o intuito de associaccedilatildeo automaacutetica91
Quando analisamos cada uma das divindades que formam o mundo oliacutempico
encontramos natildeo apenas os sentimentos humanos antropomorfizados em figura
divinas mas de qualidades que atuam de modo simboacutelico na construccedilatildeo poeacutetica
sobre a ordem humana92 O exemplo que gostariacuteamos de destacar no proacuteximo
paraacutegrafo para enfatizar e fornecer elementos comprobatoacuterios para a nossa
hipoacutetese eacute a atuaccedilatildeo de Hermes na Odisseia Teremos a oportunidade de analisar
nesse incidente que ocorre no capiacutetulo X a riqueza poeacutetica agrave serviccedilo da educaccedilatildeo
aristocraacutetica helecircnica que foi importante para os estudos dos primeiros filoacutesofos
gregos que surgiram posteriormente
Na mitologia essa divindade carregava inuacutemeros atributos e entre eles estatildeo o
domiacutenio da magia fertilidade dos rebanhos e da adivinhaccedilatildeo Contudo o seu
epiacuteteto mais famoso na antiguidade eacute o de mensageiro dos deuses Ele eacute o
responsaacutevel de estabelecer o diaacutelogo entre o mundo divino e humano Ou seja o
papel da comunicaccedilatildeo e do conhecimento eacute fornecido aos homens a partir da sua
atuaccedilatildeo que ocorre exatamente quando ele estabelece contato com Odisseu Como
vimos anteriormente no fragmento I de Heraacuteclito o Loacutegos93atua na dimensatildeo
humana e divina e estaacute totalmente em consonacircncia com a Phyacutesis Esse dado fornece
a primeira evidecircncia do desenvolvimento da linguagem94 que pode ser fornecido
pelo verbo phyacutee95 que forma o seu radical A frase emblemaacutetica do livro X na qual
Odisseu expressa que Hermes lhe repassou o segredo da planta soacute eacute confirmada a
partir da expressatildeo ldquoe a mim trouxe a luz a sua formardquo96 E eacute exatamente nesse
91 O ponto que gostariacuteamos de chamar atenccedilatildeo na relaccedilatildeo entre o ritornelo e o leitmotiv eacute a repeticcedilatildeo que guarda o mesmo efeito de fixaccedilatildeo e reforccedilo que satildeo fornecidos pelos epiacutetetos e foacutermulas homeacutericas Um estudo interessante seria investigar qual eacute a relaccedilatildeo desse antigo recurso mnemocircnico na influecircncia na composiccedilatildeo da muacutesica moderna 92 O teatro antigo tambeacutem parte desse mesmo pressuposto que foi utilizado pelos primeiros poetas no periacuteodo arcaico 93 Dentro desse contexto especiacutefico vamos atribuir o sentido de linguagem Eacute importante ressaltar como nos lembra o grande professor Danilo Marcondes que entre os gregos antigos esse era um dos problemas mais importantes Todavia haacute uma grande divergecircncia no uso desse termo entre os especialistas sobre o tema Logo esse presente trabalho visa destacar alguns desses pontos sobre o assunto a partir da literatura antiga Para mais informaccedilotildees vide o seguinte livro MARCONDES Danilo ldquoTexto Baacutesicos de Linguagem de Platatildeo a Foucaultrdquo Rio de Janeiro Zahar (2010) 94 Vide a nota anterior Dito de outro modo sobre o surgimento da questatildeo entre o ser pensar e dizer entre os gregos 95 Φυή Phuacutee formaestatura 96 Traduccedilatildeo literal nossa
29
ponto que gostariacuteamos de focar a nossa total atenccedilatildeo O jogo poeacutetico e semacircntico
natildeo eacute de modo algum fortuito pois Hermes eacute aquele deus que faz revelar - por fora
e por dentro - as caracteriacutesticas gerais da planta (exterior) e o efeito do
venenodroga97 que estaacute escondido no seu acircmago (interior) A luz que se associa ao
conhecimento equivale ao poder de trazer a forma a sua presenccedila que estaacute oculta
aos nossos precaacuterios sentidos Entre essas duas esferas instaura-se uma tecircnue linha
vertical que impotildee uma ordem98com as suas leis99 e com a sua oacuterbita especiacutefica que
seraacute composta a partir das seguintes linhas exegeacuteticas teogocircnica cosmogocircnica e
cosmoloacutegica100 no qual seraacute delineado todo o espaccedilo de atuaccedilatildeo humano tendo
como paracircmetro os imortais
22
Phyacutesis e Loacutegos
Conforme foi exposto anteriormente o uso e a definiccedilatildeo de linguagem que
podemos encontrar amplamente exposta no periacuteodo claacutessico nas obras de Platatildeo101
e Aristoacuteteles102 por exemplo jaacute estatildeo apresentados dentro dessa imagem pintada
pelo poeta nesse sentido podemos afirmar como os grandes homeridas antigos103
que a poesia de Homero expotildee os elementos mais importantes para uma definiccedilatildeo
natildeo apenas da Natureza mas tambeacutem de sua relaccedilatildeo com o Loacutegos104 ou seja o
diaacutelogo entre a Natureza e Linguagem estaacute totalmente esboccedilado dentro desse
97 Φάρmicroακον (Phaacutermakon) Eacute nesse instante que percebemos a grandiosidade do pensamento grego que estaacute atrelado agrave justa medida (ὀρθὸς λόγοςorthos loacutegos) que soacute pode ser alcanccedilada atraveacutes do conhecimento (ἐπιστήmicroηepistheme) Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto vide o livro II da ldquoEacutetica a Nicomacirccordquo de Aristoacuteteles (EthNic II 1103 ndash 35) No capiacutetulo III voltaremos a dissertar sobre o desdobramento dessa importante questatildeo no acircmbito poliacutetico grego 98 Κόσmicroος 99 Νόmicroοιnomoi 100 Θεογονία κοσmicroογονία και κόσmicroολογία 101 Vide o diaacutelogo Craacutetilo de Platatildeo No proacuteximo paraacutegrafo faremos uma anaacutelise pormenorizada de uma importante passagem desse diaacutelogo que corrobora com nossa hipoacutetese 102 Vide a Poeacutetica e Da Interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles 103 Satildeo os antigos especialistas na interpretaccedilatildeo das obras homeacutericas na antiguidade Platatildeo cita esses especialistas no diaacutelogo Craacutetilo (407 b) Para mais informaccedilotildees sobre assunto vide o seguinte livro PSEUDO-HERAacuteCLITO ldquoAs alegorias de Homerordquo 104 Eacute importante lembrarmos que esse termo soacute aparece duas vezes na obra homeacuterica (Iliacuteada canto 15393 e Odisseia canto 156) e parece que estaacute nesse contexto com o sentido de discurso Dentro do presente capiacutetulo estamos utilizando uma de suas acepccedilotildees que estaacute votado para o ato de expressatildeo Para mais informaccedilatildeo sobre esse ponto vide o nosso anexo
30
contexto literaacuterio Mas eacute importante ressaltarmos aqui que o sentido primaacuterio que
encontramos no livro X para phyacutesis precisa levar essa relaccedilatildeo com o loacutegos de modo
bem cuidadoso pois apenas a partir de Heraacuteclito e Platatildeo eacute possiacutevel fazer uma
aproximaccedilatildeo entre essas duas instacircncias que nos ajuda a fundamentar a nossa
hipoacutetese aqui exposta Atraveacutes dessa via-cruacutecis helecircnica podemos compreender
essa relaccedilatildeo que representa as duas faces da mesma moeda de ouro que foi cunhada
pelas matildeos dos antigos bardos ou seja seguindo a loacutegica vertical subtendida no
poema o loacutegos atua como desdobramento da phyacutesis do niacutevel interior ao exterior
do particular ao universal do imanente ao transcendente Os deuses que tudo criam
possuem a verdade (verum factum) das coisas porque satildeo seus criadores105 logo
somente eles tecircm o poder da linguagem divina106 que homem tem acesso apenas
quando lhe eacute revelado os meandros de algo e isso ocorre quando essa verdade for
realmente conhecidapercebidaconcebida em sua totalidade ou seja quando ela se
torna sensiacutevel para o mundo humano Eis os trecircs eixos temaacuteticos que juntos formam
a equaccedilatildeo do problema da linguagem conhecimento percepccedilatildeo e criaccedilatildeo
Curiosamente esses pontos aparecem na leitura que encontramos no diaacutelogo
Craacutetilo107 que na antiguidade era visto como um dos maiores seguidores de
Heraacuteclito108 Como veremos a seguir essa passagem corrobora de modo imparcial
com a hipoacutetese que defendemos ateacute agora a obra homeacuterica estaacute em total
consonacircncia com as reflexotildees dos primeiros pensadores preacute-socraacuteticos em torno
105 Essa importante hipoacutetese foi levantada pela primeira vez pelo filoacutesofo italiano Giambattista Vico em ldquoDe antiquissima Italorum sapientiardquo no qual o conhecimento de todas as coisas estaacute na matildeo de deus pois ele eacute o uacutenico criador da natureza de todas as coisas existentes como o homem eacute a sua imagem e semelhanccedila atraveacutes do loacutegos o homem poder estabelecer um diaacutelogo unicamente atraveacutes dessa via com essa instacircncia divina De certa forma essa noccedilatildeo aparece no pensamento de Descartes na terceira meditaccedilatildeo Rodolfo Mondolfo chama atenccedilatildeo para essa concepccedilatildeo ativista do conhecimento que podemos encontrar na obra de Vico ateacute Marx que parte da leitura dos antigos Para mais informaccedilotildees vide o seguinte livro MONDOLFO R ldquoVerum factum desde antes de Vico hasta Marxrdquo Na antiguidade essa noccedilatildeo aparece de modo mais estruturado na obra ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles (Aris EthNic Livro VI 31138-9b) quando ele estabelece o criteacuterio de verdade a partir de algo que foi realizado e efetivado Posteriormente veremos que essa noccedilatildeo natildeo exclui ou compete com o sentido de ldquonatildeo esquecimentordquo apresentado pelos antigos poetas Pelo contraacuterio ela aparece como algo complementar a esse sentido primaacuterio 106 Λόγος No sentido tambeacutem do conhecimento das coisas divinas que eacute oriunda da mente ou inteligecircncia divina (θεοῦ νόησιν theou noecircsis) Essa expressatildeo aparece no diaacutelogo Craacutetilo de Platatildeo (407 b) quando Soacutecrates estabelece uma etimologia para o nome da deusa Atenas a partir da seguinte frase ldquoaquela que tem conhecimento das coisas divinasrdquo (ὡς τὰ θεῖα νοούσηςhoacutes taacute theia noouacuteses) 107 Vide a ldquoMetafiacutesicardquo de Aristoacuteteles (livro A 6 988 a26) e tambeacutem em Dioacutegenes Laeacutercio ldquoDa vida e doutrinas dos filoacutesofos ilustresrdquo (Livro III 4) 108 Em DK (65) Alguns aspectos da vida e obra de Craacutetilo podem ser obtidos na seguinte obra I Presocratici Prima traduzione integrale con testi originali fronte delle testimoniannze e dei frammenti nella raccolta di H Diels e W Kranz Milano 2006
31
desse problema da linguagem Nesse famoso diaacutelogo de Platatildeo a personagem de
Soacutecrates apresenta uma etimologia interessante em torno desse deus que nos
fornece muitos elementos para a nossa presente investigaccedilatildeo Vejamos a seguir
[PLATAtildeO Craacutetilo] ldquoHermoacutegenes - eacute o que eu farei antes poreacutem desejo perguntar-te a respeito de Hermes por haver dito Craacutetilo que eu natildeo sou Hermoacutegenes Investiguemos portanto o verdadeiro significado do nome Hermes para ver se ele tinha razatildeo no que disse Soacutecrates - de todo o jeito Quer parece-me que o nome Hermes se relaciona com o discurso109 eacute inteacuterprete110 ou mensageiro111 tambeacutem trapaceiro feacutertil em discursos e comerciante labioso qualidades essas que assentam exclusivamente no poder da palavra112 Ora como dissemos antes falar (eirein) eacute fazer uso do discurso aleacutem de haver uma expressatildeo muito empregada por Homero (emecircsato) que significa inventar Da reuniatildeo dessas duas expressotildees ndash falar e inventar ndash formou o legislador o nome do deus como se nos advertisse expressamente homens o deus que inventou o discurso deve ser chamado Eiremes Mas hoje segundo eu penso embelezamos-lhe o nome e lhe chamamos Hermes Iacuteris tambeacutem parece provir do mesmo vocaacutebulo eirein por ser ela mensageira Hermoacutegenes ndash entatildeo parece que Craacutetilo tem razatildeo de dizer que natildeo me chamo Hermoacutegenes pois sou jejuno em mateacuteria de discursos Soacutecrates ndash quanto a Pan camarada filho de Hermes eacute faacutecil compreender que eacute de natureza hiacutebrida Hermoacutegenes ndash como assim Soacutecrates ndash como sabes o discurso indica todas as coisas (pan) e circula e movimenta sem parar aleacutem de ser de natureza hiacutebrida verdadeira e falsa ao mesmo tempo113 Hermoacutegenes ndash desde logo Soacutecrates ndash logo o que nele haacute de verdadeiro eacute macio e divino e reside no alto com os deuses por outro lado o que haacute de falso mora em baixo com a multidatildeo dos homens e eacute aacutespero como o bode da trageacutedia pois em verdade o maior nuacutemero das faacutebulas e das mentiras se encontra justamente no domiacutenio da trageacutedia114rdquo
109 περὶ λόγονperi logon 110 ἑρmicroηνέαhermeneia 111 ἄγγελονaggelon 112 περὶ λόγου δύναmicroίν peri logou dynamin 113 οἶσθα ὅτι ὁ λόγος τὸ πᾶν σηmicroαίνει καὶ κυκλεῖ καὶ πολεῖ ἀεί καὶ ἔστι διπλοῦς ἀληθής τε καὶ ψευδής oistha hoti o loacutegos to pan semainei kai kyklei kai poleia ei kai esti diplous alethes te kai pseudes Essa eacute sem duacutevida alguma uma das expressotildees mais importantes dessa passagem 114 Em Platatildeo Craacutetilo (407 e - 408 a-c) Ἑρmicroογένης - ἀλλὰ ποιήσω ταῦτα ἔτι γε ἓν ἐρόmicroενός σε περὶ Ἑρmicroοῦ ἐπειδή microε καὶ οὔ φησιν Κρατύλος Ἑρmicroογένη εἶναι πειρώmicroεθα οὖν τὸν lsquoἙρmicroῆνrsquo σκέψασθαι τί καὶ νοεῖ τὸ ὄνοmicroα ἵνα καὶ εἰδῶmicroεν εἰ τὶ ὅδε λέγει Σωκράτης - ἀλλὰ microὴν τοῦτό γε ἔοικε περὶ λόγον τι εἶναι ὁ lsquoἙρmicroῆςrsquo καὶ τὸ ἑρmicroηνέα εἶναι καὶ τὸ ἄγγελον καὶ τὸ [408α] κλοπικόν τε καὶ τὸ ἀπατηλὸν ἐν λόγοις καὶ τὸ ἀγοραστικόν περὶ λόγου δύναmicroίν ἐστιν πᾶσα αὕτη ἡ πραγmicroατεία ὅπερ οὖν καὶ ἐν τοῖς πρόσθεν ἐλέγοmicroεν τὸ lsquoεἴρεινrsquo λόγου χρεία ἐστί τὸ δέ οἷον καὶ Ὅmicroηρος πολλαχοῦ λέγει lsquoἐmicroήσατόrsquo φησιν τοῦτο δὲ microηχανήσασθαί ἐστιν ἐξ ἀmicroφοτέρων οὖν τούτων τὸν τὸ λέγειν τε καὶ τὸν λόγον microησάmicroενονmdashτὸ δὲ λέγειν δή ἐστιν εἴρεινmdashτοῦτον τὸν θεὸν ὡσπερεὶ ἐπιτάττει [408β] ἡmicroῖν ὁ νοmicroοθέτης lsquoὦ ἄνθρωποι ὃς τὸ εἴρειν ἐmicroήσατο δικαίως ἂν καλοῖτο ὑπὸ ὑmicroῶν εἰρέmicroηςrsquo νῦν δὲ ἡmicroεῖς ὡς οἰόmicroεθα καλλωπίζοντες τὸ ὄνοmicroα lsquoἙρmicroῆνrsquo καλοῦmicroεν καὶ ἥ γε Ἶρις ἀπὸ τοῦ εἴρειν ἔοικεν κεκληmicroένη ὅτι ἄγγελος ἦν Ἑρmicroογένης - νὴ τὸν ∆ία εὖ ἄρα microοι δοκεῖ Κρατύλος λέγειν τὸ ἐmicroὲ microὴ εἶναι Ἑρmicroογένη οὔκουν εὐmicroήχανός γέ εἰmicroι λόγου Σωκράτης - καὶ τό γε τὸν Πᾶνα τοῦ Ἑρmicroοῦ εἶναι ὑὸν διφυῆ ἔχει τὸ εἰκός ὦ ἑταῖρε Ἑρmicroογένης - πῶς δή Σωκράτης - οἶσθα ὅτι ὁ λόγος τὸ πᾶν σηmicroαίνει καὶ κυκλεῖ καὶ πολεῖ ἀεί καὶ ἔστι διπλοῦς ἀληθής τε καὶ ψευδής Ἑρmicroογένης - πάνυ γε Σωκράτης - οὐκοῦν τὸ microὲν ἀληθὲς αὐτοῦ λεῖον καὶ θεῖον καὶ ἄνω οἰκοῦν ἐν τοῖς θεοῖς τὸ δὲ ψεῦδος κάτω ἐν τοῖς πολλοῖς τῶν ἀνθρώπων καὶ τραχὺ καὶ τραγικόν ἐνταῦθα γὰρ πλεῖστοι οἱ microῦθοί τε καὶ τὰ ψεύδη ἐστίν περὶ τὸν τραγικὸν βίον (Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes)
32
Essa passagem platocircnica que destacamos do diaacutelogo Craacutetilo sintetiza todos os
pontos que ressaltamos anteriormente nesse presente capiacutetulo Independentemente
do foco que muitos helenistas colocam em torno do problema da criacutetica da teoria
convencionalista e naturalista da linguagem que se refere a uma problemaacutetica
contextual da eacutepoca115 o diaacutelogo nos fornece uma gama de elementos que flutuam
em torno da questatildeo da phyacutesis e do nomos116 ou seja da natureza e da convenccedilatildeo
humana Essa era uma das questotildees cruciais do periacuteodo claacutessico que nos ajuda a
compreender a atmosfera intelectual desse periacuteodo Sendo esse eacute um dos primeiros
aspectos que eacute resultado do desdobramento da alegoria homeacuterica Eacute o que veremos
a seguir no proacuteximo paraacutegrafo
Um dos traccedilos de destaque do periacuteodo claacutessico foi sem duacutevida alguma a
abertura intelectual e poliacutetica que promoveram a apariccedilatildeo de gecircnios como o escultor
Fiacutedias Tuciacutedides Anaxaacutegoras e Goacutergias O pensamento de Protaacutegoras e de
Soacutecrates117 que tambeacutem pertence a esse famoso grupo por exemplo carrega um
ponto em comum com esse conjunto de intelectuais ele revela o distanciamento da
subordinaccedilatildeo do homem ao mundo divino118 Mas essa independecircncia ocorreu em
direccedilotildees opostas De um lado alimentou o desprezo dos jovens pela tradiccedilatildeo119 que
foi importante para o surgimento de uma postura criacutetica que pocircs em xeque o proacuteprio
passado helecircnico e de outro contribuiu para enfraquecer os laccedilos de fraternidade
que era a principal base do antigo sistema poliacutetico grego A influecircncia sofiacutestica que
se mantinha atraveacutes da forccedila da palavra (loacutegos) foi determinante para cultivar o
agnosticismo120 e o individualismo entre os mais jovens As teacutecnicas retoacutericas eram
cultivadas com o intuito de fornecer um meio eficaz de conquista e poder pessoal
para os mais jovens121 No Craacutetilo eacute possiacutevel percebemos a ironia e o espanto de
115 Vide o primeiro capiacutetulo do seguinte livro MARCONDES Danilo ldquoTexto Baacutesicos de Linguagem de Platatildeo a Foucaultrdquo Rio de Janeiro Zahar (2010) 116 Φύσις και νόmicroος 117 No proacuteximo capiacutetulo vamos abordar esse ponto 118 De certa forma Platatildeo tentou superar essa crise 119 Cito aqui o processo de Soacutecrates E um dos pontos do processo estava o crime de corrupccedilatildeo dos jovens 120 Refere-se a impossibilidade radical de se conhecer algo que escape da esfera humana Um exemplo o conhecimento dos deuses Vide o caso de Protaacutegoras muito antes de Kant foi um dos primeiros a impor limite ao conhecimento humano Em contrapartida esse gesto acarretou um desprezo pelo estudo da filosofia e tambeacutem alimentou o sentimento egoiacutesta entre os jovens como veremos posteriormente de modo mais detalhado 121 Vide a comeacutedia ldquoAs nuvensrdquo de Aristoacutefanes Posteriormente veremos que o projeto pedagoacutegico oferecido por Platatildeo atraveacutes do diaacutelogo visava reverter esse processo
33
Platatildeo em relaccedilatildeo ao interesse pueril sobre a exatidatildeo dos nomes Como pano de
fundo esse diaacutelogo apresenta a decadecircncia intelectual atraveacutes da discussatildeo em
torno da tese convencionalista que eacute defendida pelos seguidores de Protaacutegoras e
os naturalistas que seguem a visatildeo de Heraacuteclito que tem a phyacutesis como a medida
de todas as coisas Essa eacute uma imagem que expotildee em plano aberto o cenaacuterio geral
dos efeitos colaterais promovidos pela pedagogia sofiacutestica122 Mesmo sendo um
diaacutelogo de cunho aporeacutetico Soacutecrates123 tem inicialmente uma tendecircncia de seguir
a orientaccedilatildeo de Craacutetilo que visa refutar a posiccedilatildeo convencionalista defendida por
Protaacutegoras De modo sorrateiro ele utiliza essa hipoacutetese para liquidar todas as
possibilidades de contra argumentaccedilatildeo do pobre Hermoacutegenes Mas no final
percebemos que ele se distacircncia tambeacutem da linha oferecida por Craacutetilo Esse
abandono eacute algo curioso pois natildeo sabemos se isso revela a postura de Platatildeo ou do
proacuteprio Soacutecrates histoacuterico124 Segundo Aristoacuteteles o seu mestre tinha influecircncia da
escola pitagoacuterica e desde de jovem era um seguidor de Craacutetilo e do pensamento do
filoacutesofo efeacutesio para as questotildees que estavam voltadas para o acircmbito do
conhecimento125 A tese muita difundida na eacutepoca que defendia que todas as coisas
sensiacuteveis estatildeo em processo de mudanccedila contiacutenua teria sido o seu ponto de partida
para a filosofia platocircnica Enquanto que para questotildees de cunho moral teria se
servido da influecircncia socraacutetica
O ponto interessante nessa descriccedilatildeo eacute a disposiccedilatildeo dos fatos e o ordenamento
cronoloacutegico126 oferecido pelo filoacutesofo macedocircnio Diferentemente do mestre da
Academia o seu estilo soacutebrio e analiacutetico apresenta de modo claro para o leitor
atencioso muitas questotildees que vatildeo aleacutem da proacutepria informaccedilatildeo transmitida no texto
A primeira delas eacute o processo de formaccedilatildeo intelectual do filoacutesofo poeta esse traccedilo
122 No cinema o plano aberto (long shot) a cacircmera que representa o olhar do cineasta estaacute distante do objeto de modo que ele ocupa uma parte pequena do cenaacuterio Eacute um plano de ambientaccedilatildeo importante para apresentar inicialmente o espaccedilo cecircnico 123 Ou Platatildeo 124 Uma hipoacutetese para esse ldquoabandonordquo poderia ser interpretada pelo distanciamento de Platatildeo em relaccedilatildeo as duas principais correntes intelectuais do seu tempo No Teeteto por exemplo eacute possiacutevel encontramos uma minuciosa criacutetica em relaccedilatildeo agrave validade do conhecimento a partir dessas hipoacuteteses 125 Aristoacuteteles Metafiacutesica (I6 986-30) 126 Para essa questatildeo seguimos a tese de Wener Jaeger que defende que Aristoacuteteles foi o primeiro pensador que construiu paralelo a sua obra um conceito de sua proacutepria posiccedilatildeo na histoacuteria Ele teria sido o primeiro a promover a criaccedilatildeo de um novo gecircnero de consciecircncia filosoacutefica atraveacutes do modo de expressatildeo que corresponde diretamente ao seu desenvolvimento intelectual Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura do seguinte livro Jaeger W Aristotle Fundamentals of the History of His Development 2nd ed Oxford (1948)
34
pode ser constatado a partir do proacuteprio tiacutetulo do diaacutelogo que leva o nome do seu
antigo mestre O segundo detalhe eacute o modo como Aristoacuteteles menciona a figura de
Heraacuteclito no texto A expressatildeo utilizada de modo literal eacute a seguinte ldquotendo
primeiro se familiarizado desde jovem com Craacutetilo e as opiniotildees de Heraacuteclitordquo127
no texto grego a expressatildeo ldquoas opiniotildees de Heraacuteclitordquo (Heracleiteiois doxais)
parece nos dizer com o uso do adjetivo primeiro (proacuteton)128 carregando o sentido
de anterioridade histoacuterica em referecircncia direta a Craacutetilo129 que as opiniotildees do
filoacutesofo efeacutesio teriam sido transmitidas por intermeacutedio dele Ao contrapor essas
informaccedilotildees com a anaacutelise do diaacutelogo homocircnimo nos deparamos com todas essas
evidecircncias que orientam a construccedilatildeo dramaacutetica e filosoacutefica do proacuteprio texto
Atraveacutes de uma espessa neblina pintada com os tons escuros da figura enigmaacutetica
de Soacutecrates ele refuta metodicamente as duas principais vias hipoteacuteticas
apresentadas no diaacutelogo Eacute importante ressaltar que a mesma tese heracliacutetica que
exerceu uma profunda influecircncia sobre o seu pensamento e de seu mestre Craacutetilo
tambeacutem foi importante para a postura relativista e agnoacutestica de Protaacutegoras130 Essa
aporia carrega um sentido mais traacutegico quando percebemos que a inutilidade dessa
discussatildeo promovida no encontro entre Craacutetilo Hermoacutegenes e Soacutecrates revela algo
ainda muito mais tenebroso ao filoacutesofo de que a linguagem eacute um caminho
totalmente incerto e enganoso para a obtenccedilatildeo do conhecimento da realidade131
Essa longa digressatildeo que fizemos natildeo foi sem propoacutesito Ela se fez necessaacuteria
para obtermos mais instrumentos pois temos a plena consciecircncia que o caminho
que estamos percorrendo eacute extremamente espinhoso Por isso que precisamos seguir
rotas alternativas que satildeo pouco frequentadas pelos mais apressados Mesmo
caminhando em ciacuterculos e com algumas pausas durante esse longo percurso como
o proacuteprio Platatildeo nos avisa natildeo devemos desistir diante dos obstaacuteculos Aprender a
127 ldquoἐκ νέου τε γὰρ συνήθης γενόmicroενος πρῶτον Κρατύλῳ καὶ ταῖς Ἡρακλειτείοις δόξαιςrdquo Ek neacuteou te gar synesthes genomenos proacuteton Kratylo kai Heracleiteiois doxais (Nossa traduccedilatildeo) 128 πρῶτον Κρατύλῳ proacuteton Kratylo 129 Vide a nota anterior 130 A doxagrafia antiga relata uma influecircncia do pensamento de Demoacutecrito sobre Protaacutegoras Mas a partir de vaacuterias posiccedilotildees defendidas pelo grande sofista como a tese dos dissoi logoi nos leva a crer uma certa aproximaccedilatildeo do pensamento do filoacutesofo efeacutesio Mario Untersteiner foi um dos primeiros helenistas que apontou essa hipoacutetese Para mais informaccedilotildees vide UNTERSTEINER Mario Les Sophistes Traduit et precircsenteacute par Alonso Tordesillas Paris Librairie Philosophigue J Vrin 1993 Um ponto tambeacutem que natildeo discutimos em relaccedilatildeo a descriccedilatildeo de Aristoacuteteles sobre o seu mestre eacute a distinccedilatildeo que ele faz de modo muito sutil entre Craacutetilo e Heraacuteclito Para algumas fontes mais antigas a saber em DL livro (III-4) 131 No diaacutelogo Teeteto o filoacutesofo analisa a natureza do conhecimento a partir dessa questatildeo
35
olhar uma paisagem por diferentes perspectivas nos fornece uma visatildeo privilegiada
que habilita o espiacuterito a reatualizar a nossa rota mantendo o ritmo constante em
busca de novos resultados O nosso objetivo anterior seraacute retomado agora Depois
de analisar alguns aspectos discutidos no diaacutelogo de Platatildeo o nosso desvio
estrateacutegico em torno das polecircmicas entre os filoacutesofos e sofistas do periacuteodo claacutessico
nos trouxe algumas evidecircncias para analisar com mais consistecircncia a imagem de
Hermes como a divindade simboacutelica da linguagem para os gregos desde do periacuteodo
homeacuterico
Esses rastros estatildeo contidos na passagem em que Hermoacutegenes pede ao
filoacutesofo Soacutecrates a etimologia do nome do deus Hermes pois segundo o proacuteprio
Hermoacutegenes a partir da linha defendida por Craacutetilo o seu nome natildeo guardava
nenhum parentesco132 com a divindade De forma geral todo o diaacutelogo carrega um
certo tom cocircmico em torno das origens dos nomes mas esse aspecto natildeo empobrece
a relevacircncia que o filoacutesofo impotildee na discussatildeo de outras questotildees que giram em
torno desse centro gravitacional que parte da inutilidade da pedagogia sofiacutestica e
a anaacutelise de algumas teses que surgem do desdobramento do problema entre a
phyacutesis e o nomos Aliaacutes essa problemaacutetica tambeacutem estaacute relacionada com as
reflexotildees que se inicia na obra homeacuterica e que se amplia atraveacutes dos primeiros
filoacutesofos preacute-socraacuteticos e chega finalmente no periacuteodo claacutessico com o diaacutelogo
Craacutetilo Nessa obra Platatildeo expotildee para noacutes os indiacutecios cruciais para a validaccedilatildeo da
interpretaccedilatildeo alegoacuterica que surge do encontro entre Hermes e Odisseu na ilha de
Circe Nesse momento Soacutecrates apresenta todos as caracteriacutesticas desse deus que
estaacute em total sintonia com a tradiccedilatildeo poeacutetica que foi a fonte e a base pedagoacutegica e
intelectual para a cultura helecircnica que o antecedera Atraveacutes da boca irocircnica de
Soacutecrates Platatildeo demonstra a sua erudiccedilatildeo que eacute fruto dessa educaccedilatildeo
aristocraacutetica recitando de cor e salteado a etimologia completa em torno do nome
de Hermes sem hesitar em nenhum momento Sendo essa uma das passagens mais
valiosas da obra que revela a sua capacidade mnemocircnica e o conteuacutedo da educaccedilatildeo
132 A antiga aristocracia fundava o seu poder poliacutetico atraveacutes dessa relaccedilatildeo familiar com os deuses que era fornecida pela teologia homeacuterica Eacute bem provaacutevel que essa praacutetica das correccedilotildees dos nomes pelos sofistas tenha a sua origem na genealogia promovida por essa minoria que detinha o poder na poacutelis Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto noacutes recomendamos o seguinte artigo FACAtildeO Emerson Democracia liberdade e poesia a grande revoluccedilatildeo popular de Atenas Revista Iacutetaca - Revista dos alunos de poacutes-graduaccedilatildeo em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro Novembro (2017)
36
mito-poetica que ainda vigorava no seu tempo Nesse momento podemos notar que
o nome da divindade estaacute intimamente em consonacircncia com os seguintes termos
loacutegos133 intepretaccedilatildeo134 e mensagem135 Sendo tambeacutem considerado pela tradiccedilatildeo
como trapaceiro136 feacutertil em discursos137 comerciante labioso Todas essas
qualidades se assentam no poder da palavra138 Em outras fontes antigas139 que
temos sobre a imagem dessa divindade eacute possiacutevel comprovar a precisatildeo da
descriccedilatildeo platocircnica Nesse sentido e mesmo de modo sarcaacutestico o filoacutesofo expotildee
com perfeiccedilatildeo as caracteriacutesticas simboacutelicas que encontramos na obra homeacuterica140
23
Poesia e Loacutegos
Quando juntamos essas informaccedilotildees ao lado da passagem que expomos
anteriormente sobre o encontro entre Odisseu e Hermes nos deparamos com a
uniatildeo entre duas esferas que orienta todo o processo de subjetividade helecircnico
daquele periacuteodo O uso do termo phyacutesis aplicado pelo poeta naquele contexto traz
o sentido de segredo revelado por um deus que escapa aos olhos humanos que seraacute
posteriormente retomado por Heraacuteclito ao lado desse loacutegos que se apoia nas mesmas
caracteriacutesticas desse uso semacircntico apresentado por Homero na Odisseia A partir
dessas evidecircncias expostas eacute possiacutevel traccedilar uma linha de continuidade entre
Homero e os filoacutesofos do periacuteodo preacute-socraacutetico141 (NADAFF 2005) O primeiro
desses pensadores foi Heraacuteclito Em alguns dos seus escassos fragmentos ele traz
vaacuterios elementos que coadunam com o sentido de phyacutesis que encontramos na obra
homeacuterica
133 περὶ λόγονperi logon 134 ἑρmicroηνέαhermeneia 135 ἄγγελονaggelon 136 Κλοπικόςklopikoacutes 137 τε καὶ τὸ ἀπατηλὸν ἐν λόγοιςte kai to apantelon em loacutegois 138 περὶ λόγου δύναmicroίν peri logou dynamin 139 Em Homero Iacuteliada (livro XXIV 334-5) no hino homeacuterico a Hermes e Aristoacutefanes A paz (14-5) 140 Esse eacute um dos indiacutecios que prova o diaacutelogo em niacutevel mais profundo que haacute entre Platatildeo e Homero 141 Ou seja uma continuidade e natildeo ruptura entre a Poesia e Filosofia
37
ldquoA natureza ama esconder-serdquo142
E
ldquoBem-pensar eacute a maior virtude e sabedoria dizer coisas verdadeiras e agir de acordo com a natureza escutando-ardquo143
Eacute importante ressaltar que esses primeiros pensadores se expressavam com
a mesma liberdade poeacutetica de seus antepassados Esse eacute outro importante traccedilo de
continuidade que pode ser encontrado nos fragmentos de vaacuterios desses pensadores
antigos Atraveacutes de suas obras eacute possiacutevel notarmos um diaacutelogo com a tradiccedilatildeo No
caso sobretudo de Heraacuteclito esse ponto eacute evidente a partir dessas passagens
expostas No fragmento I e no 112 ele usa a expressatildeo ldquoKata Physinrdquo (por natureza)
que eacute uma das primeiras apariccedilotildees desse termo entre os filoacutesofos preacute-socraacuteticos na
antiguidade No fragmento I um dos pontos que chama a nossa atenccedilatildeo eacute o emprego
de duas conjunccedilotildees a primeira que foi mencionada anteriormente eacute ldquoKata Physinrdquo
(por ou segundo Natureza) e a segunda ldquoKata ton Logonrdquo (segundopor esse
loacutegos) Esse Kata atua como uma preposiccedilatildeo atraveacutes do caso genitivo e acusativo
Ele traz o sentido de ldquocomrdquo e ldquovindo derdquo Liddell amp Scott ainda chamam atenccedilatildeo
para o fato dessa partiacutecula carregar o sentido de ldquomovimento que vem de cima para
baixordquo Ou seja haacute uma alusatildeo do velho esquema de autoridade que os poetas
traziam do mundo divino para o mundo humano No caso de Heraacuteclito essas
conjunccedilotildees estabelecem entre si uma relaccedilatildeo de reciprocidade que poeticamente
reforccedila o sentido entre essas duas instacircncias que ele expotildee filosoficamente na
sentenccedila A Poesia e a Filosofia assim como a Phyacutesis e o Loacutegos estatildeo intimamente
conectadas dentro desse contexto Ao partir da obra homeacuterica vimos que o nome do
deus Hermes se caracteriza por essa accedilatildeo de comunicaccedilatildeo vertical entre os dois
142 Heraacuteclito fragmento DK (123) φύσις κρύπτεσθαι φιλεῖ phyacutesis kryacuteptesthai philei nossa traduccedilatildeo 143 Ibidem DK (112) σωφρονεῖν ἀρετὴ microεγίστη καὶ σοφίη ἀληθέα λέγειν καὶ ποιεῖν κατὰ φύσιν ἐπαΐοντας sophronein areteacute megiste kai sophin aletheacuteia legein kai poieiein kata phyacutesin hepaiontas traduccedilatildeo de Alexandre Costa
38
mundos que estaacute presente nessas sentenccedilas que abordam a questatildeo da Phyacutesis e
Loacutegos Essas duas conjunccedilotildees operam de maneira dialoacutegica para acentuar os
diferentes niacuteveis semacircnticos explorados pelo filoacutesofo efeacutesio em torno dos
problemas oriundo da Natureza Como disse anteriormente esses dois termos tem
uma iacutentima afinidade que certamente vem da interpretaccedilatildeo homeacuterica entre a
natureza e linguagem O termo phrazon144(mostrar) que surge no fragmento I por
144 Vide tambeacutem a definiccedilatildeo apresentada no dicionaacuterio de Lidell amp Scott para esse termo a seguir φράζω S Ph 25 etc poet impf φράζον Pi N 161 fut φράσω [α] A Pr 781 etc aor 1 ἔφρασα hVen 128 hMerc 442 Hdt 2150 etc poet φράσα [α] Od 1122 A Ag 231 (lyr) imper φράσσατε Pi P 4117 pf πέφρακα Isoc 593 Phld Po 523 Ep aor πέφραδον ἐπέφραδον used by Hom mostly in 3 sg Il 14500 al (in Od 1273 8142 πέφραδε is imper) opt πεφράδοι Il 14335 inf πεφραδέειν πεφραδέmicroεν Od 19477 749 1 sg ἐπέφραδον only Il 10127 also aor 1 part gen φράδαντος dub in IG 5(2)26115 (Mantinea vi B C)mdash Med and Pass φράζοmicroαι Ep imper φράζεο φράζευ Il 5440 9251 inf φράζεσθαι Od 1294 Ep 3 sg impf φράζετο φραζέσκετο 11624 hAp 346 fut φράσοmicroαι [α] Il 15234 Ep φράσσοmicroαι Od 16238 aor1 ἐφρασάmicroην 17161 Ep φρασάmicroην 2375 3 sg and pl ἐφράσσατο φράσσαντο 4529 Il 15671 imper φράσαι Od 24331 A Ch 113 Ep 3 sg subj φράσσεται Od 24217 Ep inf φράσσασθαι Orac ap Hdt 357 aor Pass ἐφράσθην Od 19485 Hdt 184 E Hec 546 pf πέφρασmicroαι (in med sense) A Supp 438 (in pass sense) Isoc 15195 part προ-πεφραδmicroένος Hes Op 655 mdashThe aor Med is chiefly Ep also Archil 94 Sol 54 341 A Ch 113 E Med 653 (lyr)mdash point out show (never say tell in Hom acc to Aristarch) ἐς χῶρον ὃν φράσε Κίρκη Od 1122 cf Il 23138 Od 15424 also show the way to show where to find ᾗ οἱ αθήνη πέφραδε δῖον ὑφορβόν 143 cf 868 σήmicroατrsquo τά οἱ ἔmicroπεδα πέφραδ οδυσσεύς showed 19250 microῦθον πέφραδε πᾶσιν show make known the word to all 1273 cf 8142 δεῖξε καὶ ἔφρασε hVen 128 φράσσατέ microοι δόmicroους show me them Pi P 4117 ἔφρασε τὴν ἀτραπόν Hdt 7213 κόποι αὐτόmicroατοι φράζουσι νούσους Hp Aph 25 δmicroώων δή τινα microοι φράσον Theoc 2547 τὸ παράδειγmicroα ὃ ἂν φράζῃ ὁ ἀρχιτέκτων IG 22166896 abs φωνῆσαι microὲν οὐκ εἶχε τῇ δὲ χειρὶ ἔφραζε Hdt 4113 ἀντὶ φωνῆς φράζε χερί A Ag 1061 2 show forth tell declare λόγον ἔπος ὄνοmicroα Pi O 260 A Pers 173 (troch) Supp 320 φ τοῖσι ἥκουσι τὰ πρήγmicroατα Hdt 6100 ἑλοῦ γάρ ἢ πόνωντὰ λοιπά σοι φράσω σαφηνῶς ἢ τὸν ἐκλύσοντ ἐmicroέ A Pr 781 τιπρός τινα Hdt 168 Ar Nu 359 (anap) etc c dupl acc φ τινά τι Isoc 15100 τι Pl Phdr 267b περί τινος Isoc 15117 (v infr) ἐπί τινος Id Ep 68 rarely c gen tell of τῆς microητρὸς ἥκω τῆς ἐmicroῆς φράσων ἐν οἷς νῦν ἐστι S Tr 1122 folld by a relat clause φ ὅτι Lys 123 Pl Phdr 278b etc φ ὡς δεῖ γεωργεῖν X Oec 168 φ οἷ ἐπορσύνθη κακά A Pers 267 cf Pr 995 etc with double constr φ τό τε ὄνοmicroα καὶ ἐν ᾗ κώmicroῃ οἰκοῦσιν PRevLaws 295 (iii B C) rarely c part πεφραδέειν πόσιν ἔνδον ἐόντα Od 19477 οὐκ ἔφραζες σῆς προκείmicroενον νέκυν γυναικός E Alc 1012 later c acc et inf Phld lc explain (opp λέγω which means simply speak say) φράσον ἅπερ γ ἔλεξας declare explain what thou didst say S Ph 559 φράζε δὴ τί φῄς Id OT 655 φράζουσιν ἃ λέγει X An 2418 φράζε λόγῳ S Ph 49 Pl Lg 814c οὐχ ἁπλῶς εἰπεῖν ἀλλὰ σαφῶς φράσαι περὶ αὐτῶν Isoc 15117 cf Ep 12 σαφῶς φ τοῖς βουλοmicroένοις συνιέναι Aeschin 1129 of teachers Antipho 613 Pl Tht 180b of oracles Ar Eq 1048 Pl 46 Pl Lg 923a etc of letters Plu Cic 15 abs τοῦτο φράζει ὅτι this signifies that X Smp 830 b cultivate style or phrasing opp αὐτὸ τὸ γράφειν Duris 1 J 3 c dat pers et inf tell one to do so and so ἵνα γάρ σφιν ἐπέφραδον ἠγερέθεσθαι Il 10127 δὴ γάρ microοι ἐπέφραδε Κίρκη (sc ἰέναι) Od 10549 τοῖς ἀνθρώποισι φ σιγᾶν Ar Pax 98 (anap) τὰ ὅπλα ὑπολαβεῖν Th 658 cf 315 4 abs give counsel advise suggest δόλος ἦν ὁ φράσας S El 197 (lyr) II Med and Pass indicate to oneself ie think or muse upon consider ponder Ep Ion Trag but not in Att Prose εὔκηλος τὰ φράζεαι ἅσς ἐθέλῃσθα Il 1554 φράζεσθαι βουλήν βουλάς 18313 Od 11510 ἐνὶ φρεσὶ microῆτιν ἀmicroείνω Il 9423 πάντα microετὰ φρεσίν Hes Op 688 θυmicroῷ Il 16646 ἐφράσθη καὶ ἐς θυmicroὸν ἐβάλετο Hdt 184 πρὸς ταῦτα φράζου bethink thee S El 383 ἀmicroφὶς φ to think differently Il 214 folld by εἰ c fut indic consider whether 183 Od 10192 2 purpose plan contrive φ τινὶ κακά θάνατον ὄλεθρον 2367 3242 13373 microέγ ὄνειαρ 4444 ἐσθλά Il 12212 φράσσατο Πατρόκλῳ microέγα ἠρίον 23126 φράσσεται ὥς κε νέηται will contrive how Od 1205 φ ὅπως ὄχ ἄριστα γένοιτο 3129 cf S Aj 1041 3 c acc et inf think suppose believe imagine that Od 11624 οὐκ ἐφράζετο δυνατὸς εἶναι Hdt 3154 4 perceive observe οἷον ἐγὼν οἰωνὸν ἐφρασάmicroην Od 17161
39
exemplo estabelece a sua ligaccedilatildeo semacircntica com Phreacuten - diafragma coraccedilatildeo como
sede das paixotildees e do espiacuterito do pensar e agir que ocorre na harmonia entre duas
forccedilas contraacuterias que habitam sob a tensatildeo do seu ritmo O focirclego e todo o
movimento de vir a ser mantecircm-se atraveacutes desse fundamento na antiguidade O
Efeacutesio explora a multiplicidade de sentidos para enfatizar a relaccedilatildeo genuiacutena entre
ser pensar e dizer que eacute um e o mesmo145 Ou seja a phyacutesis e loacutegos satildeo termos
equivalentes que expressam o processo total do desenvolvimento da vida desde
Homero a Heraacuteclito
O mais interessante desse processo reflexivo que parte dos fragmentos do
filoacutesofo eacute perceber o fato dele apresentar a sua visatildeo mais profunda da Phyacutesis em
total consonacircncia com a linguagem poeacutetica que desempenhou um lugar de destaque
dentro da cultura grega Ela era a palavra que visava organizar a vida helecircnica e
suprir a curiosidade em torno desses questionamentos mais baacutesicos da existecircncia
humana Como ressaltamos anteriormente a poesia era o meio pelo qual os
helecircnicos conseguiram desenvolver para reorganizar a sua sociedade apoacutes o
tenebroso episoacutedio histoacuterico que culminou no decliacutenio da civilizaccedilatildeo micecircnica146
Esse periacuteodo que eacute conhecido pelos historiadores como a idade das trevas eacute o
momento de uma profunda transformaccedilatildeo social e poliacutetica que teve para muitos
especialistas (SNODGRASS 2000) a sua origem em uma infortuita equaccedilatildeo que
parte de causas humanas e naturais147 Essas importantes transformaccedilotildees foram
τὴν (sc τὴν οὐλὴν ) ἀπονίζουσα φρασάmicroην 2375 with a part τὸν δὲ φράσατο προσιόντα Il 10339 cf 23453 later c gen χειmicroῶνος Arat 745 ποmicroπᾶς Theoc 284 rarely c part ψυχὰν αιδᾳ τελέων οὐ φράζεται marks not that he will die Pi I 168 5 watch guard [ὀρσοθύρην] Od 22129 6 beware of ξύλινον λόχον Orac ap Hdt 357 freq in imper φράζευ κύνα cave canem Ar Eq 1030 (hex) φράσσαι κυναλώπεκα microή σε δολώσῃ ib 1067 (hex) φράζεο δή microὴ microάρψῃ Id Pax 1099 (hex) cf Call LavPall 52 c inf φράζου microὴ πόρσω φωνεῖν S El 213 (lyr) abs φράζου take care A Eu 130 (Perh cf Lith girdziugrave I hear inf girdēti ) 145 Vide os seguintes fragmentos DK (219 50 72) 146 Iniacutecio do periacuteodo preacute-homeacuterico 147 Em torno dessa questatildeo haacute diversos estudos que tentatam entender esse processo de transformaccedilatildeo e destruiccedilatildeo dessa importante cultura preacute-helecircnica Esses estudos arqueoloacutegicos concentram-se em analisar os seguintes materiais arqueoloacutegicos os registros do Linear A e B os afrescos deixados nas paredes fragmentos de ceracircmica e de objetos de uso cotidiano encontrados nas antigas ruiacutenas que formava o esplendoroso palaacutecio de Micenas Para muitos especialistas a duas principais causas do colapso da civilizaccedilatildeo micecircnica parte de causas naturais como o surgimento de terremoto e maremoto e de causas humanas como a guerra e a superpopulaccedilatildeo que forccedilou o deslocamento (diaacutesporaδιασπορά dispersatildeo) apoacutes a invasatildeo doacuterica que obrigou muitas famiacutelias que residiam na parte continental onde estava localiazada a releza de Micenas a se espalharem para outras localidades da bacia do mar Mediterracircneo Esse fato caracteriza-se por um lado como o fim da Era do Bronze e por outro como o iniacutecio do periacuteodo Preacute-Homerico Posteriormente voltaremos a essa questatildeo pois acreditamos que o processo do amplo desenvolvimento subjetivo da cultura
40
posteriormente essenciais para a construccedilatildeo da mentalidade cultural da civilizaccedilatildeo
helecircnica Um dos pontos que chama a nossa atenccedilatildeo apoacutes a fragmentaccedilatildeo e
dispersatildeo da populaccedilatildeo micecircnica pelo Mediterracircneo eacute o processo de total
isolamento cultural que culminou entre outras ocorrecircncias no abandono da
opulecircncia do modo de vida micecircnico e do uso da escrita A guerra a destruiccedilatildeo e
a fome produziram marcas profundas na subjetividade dos sobrevintes da antiga
cultura micecircnica Esses estranhos fatos possibilitaram o desenvolvimento da
tradiccedilatildeo oral atraveacutes do uso da mitologia poesia e do aperfeiccediloamento das teacutecnicas
mnemocircnicas atraveacutes da muacutesica148 Posteriormente pretendemos investigar149 como
esse conhecimento musical foi essencial para conservar e transmitir o legado
cultural desses povos predecessores que ajudaram a construir a mentalidade
helecircnica Mesmo sem utilizar a escrita os gregos conseguiram desenvolver uma
capacidade mnemocircnica tatildeo eficiente que posteriormente eacute possiacutevel identificarmos
a sua utilidade e emprego no desenvolvimento da Retoacuterica Poliacutetica Filosofia e da
Literatura
helecircnica parte desse contexto Para mais informaccedilotildees sobre esse assunto indicamos a leitura do seguinte livro SNODGRASS A ldquoThe Dark Age of Greecerdquo Ed By Routledge 2000 148Μουσικήmousikeacute ldquoArte das musasrdquo Posteriormente pretendemos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre esse ponto que para noacutes eacute essencial para a compreensatildeo do desenvolvimento do subjetivo da cultura helecircnica 149 Vide o capiacutetulo III
3 Poesia memoacuteria e verdade
31 A palavra entre os homens e deuses
Como foi exposto anteriormente o homem desde seus primoacuterdios teve a
pretensatildeo de desvendar a linguagem da Natureza 150 para buscar respostas sobre a
sua origem Para Platatildeo (Teeteto 155 d) e Aristoacuteteles (Met A 982 b) por exemplo
a Filosofia nasce nesse momento quando ele experimenta o primeiro espanto 151
que surge do reconhecimento152 da grandiosidade existencial das forccedilas 153 que
compotildee o mundo A partir disso surgiu toda uma tradiccedilatildeo mito-poeacutetica que teria
como expoentes os poetas Hesiacuteodo e Homero que foram responsaacuteveis por
estabelecer os primeiros pilares da cultura grega Esses homens tinham o poder
divino de traduzir essas forccedilas 154 que ecoavam pela imensidatildeo do mundo antigo
Essa poesia trazia consigo aleacutem da finalidade de responder essas questotildees sobre as
nossas origens o objetivo de ajudar a construir um meio para a orientaccedilatildeo e
organizaccedilatildeo social e poliacutetica do homem grego antigo155 Todo o legado cultural era
conservado e transmitido pela voz dos aedos que eram os uacutenicos instrumentos de
comunicaccedilatildeo responsaacutevel por manter a consciecircncia histoacuterica do seu proacuteprio povo
150 A palavra grega phyacutesis (Φύσις) pode ser traduzida por natureza mas seu significado eacute mais amplo Este termo refere-se tambeacutem agrave realidade natildeo aquela pronta e acabada mas a que se encontra em movimento e transformaccedilatildeo a que nasce e se desenvolve o fundo eterno perene imortal e impereciacutevel de onde tudo brota e para onde tudo retorna Nesse sentido a palavra significa gecircnese origem e manifestaccedilatildeo Saber o que eacute a Physis assim levanta a questatildeo da origem de todas as coisas a sua essecircncia que constitui a realidade e que se manifesta no movimento da vida Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto vide o primeiro capiacutetulo desse presente trabalho 151 θαυmicroάζωthaumazo 152 ἀναγνώρισιςanagnoacuterisis 153 Para GMA Grube satildeo essas forccedilas (∆ύναmicroιςdyacutenamis) e (ἈθάνατοιAthanatoi) que ultrapassam a esfera da mortalidade humana que o grego antigo chama deus (θεόςtheos) Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendo a leitura do seguinte livro GRUBE G M A Platorsquos Thought Indianapolis Hackett 1980 154 Vide o iniacutecio do capiacutetulo anterior 155 Sobre essa questatildeo Jean-Pierre Vernant em um beliacutessimo artigo intitulado como ldquoLa belle morte et le cadavre outrageacuterdquo(A bela morte e o cadaacutever ultrajado) diz ldquoMas para que a honra heroica permaneccedila viva no coraccedilatildeo de uma civilizaccedilatildeo para que todo o sistema de valores como que receba a marca de sua chancela eacute necessaacuterio que a funccedilatildeo poeacutetica mais que objeto de divertimento tenha conservado um papel educativo e formador que atraveacutes dela e nela se transmita se ensine se atualize na alma de cada um esse conjunto de saberescrenccedilas atitudes valores de que eacute feita uma cultura Somente a poesia eacutepica devido ao seu estatuto e agrave sua funccedilatildeo pode conferir ao desejo de gloacuteria impereciacutevel que domina o heroacutei essa base institucional e essa legitimaccedilatildeo social sem as quais ele natildeo passaria de uma fantasia subjetiva Para mais informaccedilotildees vide VERNANT JP ldquoLa belle morte et le cadavre outrageacuterdquo Journal de Psychologie 2-3 (1980) pp 220-221
42
Eacute atraveacutes dos versos desses filhos das Musas156 que o homem grego podia
transcender os limites do espaccedilo e do tempo e acessar todo o seu distante passado
que era presentificado atraveacutes de imagens reconstruiacutedas pela audiccedilatildeo que foram
fundamentais para moldar o futuro da cultura helecircnica157 Com isso o poeta passa
a ser uma figura de grande importacircncia e prestiacutegio dentro da sociedade grega antiga
Na primeira obra de Hesiacuteodo por exemplo o conteuacutedo dessa poesia fala sobre
o surgimento dos deuses158 O poeta usa a linguagem miacutetica para declamar de modo
estruturado a genealogia das divindades que pairavam por toda Heacutelade No seu livro
conhecido como a Teogonia Hesiacuteodo desenvolve atraveacutes de sua narrativa a
primeira ideia de causalidade que temos notiacutecia (TORRANO 1991) e que
posteriormente seraacute utilizada como base para os filoacutesofos que surgiratildeo escrevendo
sobre as cosmogonias159 referentes agrave Phyacutesis
A Teogonia narra sobre quatro geraccedilotildees de deuses que satildeo responsaacuteveis por
todas as coisas viventes que satildeo nomeadas pelos seguintes nomes Caos Terra
Taacutertaro e Eros Mesmo sem comprovaccedilatildeo ou demonstraccedilatildeo durante muito tempo
essa era a explicaccedilatildeo utilizada pelos gregos para estruturar todo o seu conhecimento
histoacuterico e poliacutetico-social Como consequecircncia disso a Paideacuteia (educaccedilatildeo) tinha
como obrigaccedilatildeo de repassar esse conhecimento de forma oral para cada jovem
156 ΜοῦσαιMousai 157 Platatildeo (Timeu ndash 20 e) 158 O professor GM A Grube em seu famoso livro ldquoPlatorsquos Thoughtrdquo chama a nossa atenccedilatildeo para uma importante observaccedilatildeo feita pelo filoacutelogo alematildeo Wilamowitz sobre a palavra deus (θεόςtheos) Para o scholar os gregos usavam esse termo como uma noccedilatildeo fundamentalmente predicativa Em comparaccedilatildeo aos cristatildeos e judeus por exemplo quando eles dizem que ldquoDeus eacute amorrdquo ou que ldquoDeus eacute bomrdquo apontam para uma existecircncia de um ser ldquodesconhecidordquo e consequentemente fazem um juiacutezo qualitativo em torno desse termo colocando ldquoamorrdquo ldquobemrdquo e ldquobelordquo como seus atributos Para um grego essa ordem era completamente inversa pois ao dizer por exemplo que o ldquoAmor eacute deusrdquo ou a ldquoBeleza eacute deusrdquo o grego natildeo estaria apenas pressupondo a existecircncia de uma divindade antropomoacuterfica oculta mas tambeacutem falando sobre algo acerca do ldquoAmorrdquo e da ldquoBelezardquo como realidades natildeo antropomorfizadas que natildeo podem ser negadas e nem confundidas com os cultos religiosos E segundo o professor Grube o sujeito do seu juiacutezo a coisa pela qual se fala encontra-se no mundo que conhecemos e o pensamento pagatildeo estava focado nessa ideia Ao dizer que o ldquoAmor eacute deusrdquo os gregos queriam expressar fundamentalmente o caraacuteter sobre humano de algo que natildeo estaacute sujeito agrave morte ou destruiccedilatildeo e que escapa sobretudo do domiacutenio dos homens Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendo a leitura do segundo capiacutetulo da dissertaccedilatildeo de mestrado intitulada como FERNANDES Emerson ldquoConsideraccedilotildees preliminares acerca da construccedilatildeo dramaacutetica do Soacutecrates de Platatildeordquo Puc-Rio 2013 159 O pensamento cosmogocircnico eacute definido como uma tentativa de explicaccedilatildeo sobre a origem do mundo atraveacutes de mitos Enquanto que o pensamento cosmoloacutegico que segundo os relatos antigos teria surgido com o filoacutesofo Tales de Mileto eacute caracterizado como uma tentativa hipoteacutetica de formulaccedilotildees conceituais que visa uma explicaccedilatildeo mais clara e objetiva da Phyacutesis
43
grego Alguns seacuteculos depois surgiram pensadores que comeccedilaram a colocar em
xeque esse conhecimento tradicional poeacutetico160 A partir de algumas duacutevidas sobre
a origem do conhecimento do poeta grego surgem as seguintes questotildees como
posso ter certeza da veracidade das palavras de Hesiacuteodo Quais satildeo as provas que
servem para sustentar esses argumentos Nossos sentidos 161 Nossa razatildeo162 O
senso comum163 O que eacute a verdaderevelaccedilatildeo164 Tais perguntas foram de extrema
importacircncia para o nascimento de uma postura criacutetica entre os gregos que foi
fundamental para o desenvolvimento do ceticismo165 posteriormente
Marcel Detienne (DETIENNE 1967) sob a influecircncia estruturalista de Leacutevi-
Strauss166 construiu uma interessante pesquisa que visa compreender esse periacuteodo
de rupturatransiccedilatildeo167 entre a tradiccedilatildeo miacutetica e o pensamento racional Essa
postura criacutetica que determina o surgimento de uma forma de pensar mais criacutetica e
elaborada nasce em um contexto social poliacutetico e econocircmico bem especiacutefico a
160 Para John Burnet (BURNET 1930) isso ocorre quando os gregos comeccedilam a se distanciar da visatildeo tradicional mito-poeacutetica Ele parece sugerir no livro algo semelhante ao que antecedeu o periacuteodo Moderno Ou seja esses pensadores provocaram uma crise (κρίσιςkrisis separaccedilatildeodistinccedilatildeo) que possibilitou um questionamento generalizado sobre todos os valores difundidos pela poesia antiga ocasionando uma ruptura radical (tese do milagre grego) que possibilitou diversas mudanccedilas na cultura grega sobretudo no campo eacutetico poliacutetico e pedagoacutegico Nos diaacutelogos de Platatildeo tambeacutem podemos encontrar uma atitude semelhante em relaccedilatildeo aos seus predecessores e coetacircneos Mas esse ponto infelizmente natildeo ganhou a devida atenccedilatildeo do helenista 161 αισθήσειςaisthesis 162 νοῦςnous 163 δόξαdoxa 164 Em nossa abordagem natildeo vamos traduzir o termo aleacutetheia (ἀλήθεια) por ldquoverdaderdquo para natildeo cairmos nas armadilhas que esse termo grego impotildee aos tradutores desavisados pois o sentido que o termo verdade ganha entre os modernos ndash que se contrapotildee agrave mentira ndash natildeo eacute o mesmo que encontramos na literatura antiga No proacutelogo da Teogonia eacute possiacutevel encontrarmos uma formulaccedilatildeo bem interessante apresentada em versos por Hesiacuteodo em torno desse problema ldquoαἵ νύ ποθ᾽ Ἡσίοδον καλὴν ἐδίδαξαν ἀοιδήν ἄρνας ποιmicroαίνονθ᾽ Ἑλικῶνος ὕπο ζαθέοιο τόνδε δέ microε πρώτιστα θεαὶ πρὸς microῦθον ἔειπον Μοῦσαι Ὀλυmicroπιάδες κοῦραι ∆ιὸς αἰγιόχοιο ποιmicroένες ἄγραυλοι κάκ᾽ ἐλέγχεα γαστέρες οἶον ἴδmicroεν ψεύδεα πολλὰ λέγειν ἐτύmicroοισιν ὁmicroοῖα ἴδmicroεν δ᾽ εὖτ᾽ ἐθέλωmicroεν ἀληθέα γηρύσασθαιrdquo Elas [as Musas] certa vez a Hesiacuteodo ensinaram belo canto Ovelhas ele apascentando sob o Heacutelicon divino E a mim antes de tudo as deusas estas palavras dirigiram As Musas olimpiacuteades filhas de Zeus que tem a eacutegide Pastores agrestes maus oproacutebios ventres soacute sabemos muitas mentiras dizer semelhantes a coisas autecircnticas e sabemos quando queremos verdades proclamarrdquo Hesiacuteodo Teogonia 22-28 Para mais informaccedilotildees vide a seguinte obra HESIacuteODO Teogonia A Origem dos Deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano Satildeo PauloIluminuras 1991 165 Ou como o proacuteprio termo skeacutepsis (Σκῆψις) aponta seraacute que o ceticismo natildeo poderia ter surgido nesse momento de criacutetica agrave tradiccedilatildeo 166 Voltaremos a falar desse grande antropoacutelogo no momento que formos abordar o problema da escrita na sociedade grega 167 Para Burnet houve uma ruptura que possibilitou o surgimento do pensamento racional E no caminho oposto segue o helenista Cornford que defende uma continuidade histoacuterica (transiccedilatildeo) entre o pensamento miacutetico e racional
44
partir do desaparecimento (crisetransiccedilatildeo) 168 da figura do deacutespota169 que daacute ensejo
ao surgimento da cidade170 atraveacutes da valorizaccedilatildeo da oralidade como um
instrumento de poder poliacutetico que eacute essencialmente marcado pela forccedila da
persuasatildeo171que determina a partir de um confronto acirrado172 de ideias todas as
decisotildees dentro desse novo espaccedilo social173 (VERNANT 1962)
Eacute nesse ponto que o helenista francecircs tenta buscar o sentido da palavra
aleacutetheia174 a partir das mudanccedilas que ocorreram durante o decorrer da histoacuteria
grega O seu foco primordial eacute rastrear as linhas de forccedilas que formam o leacutexico
desse termo tatildeo complexo para noacutes Para obter ecircxito em sua pesquisa Detienne
aplica o meacutetodo de anaacutelise lexicoloacutegica estrutural no intuito de alcanccedilar as relaccedilotildees
de oposiccedilatildeo e associaccedilatildeo dentro do campo semacircntico entre esses dois periacuteodos
Nessa direccedilatildeo ele percebe uma diferenciaccedilatildeo que ocorre no interior da sociedade
grega de modo progressivo entre dois tipos de discursos a palavra (loacutegosdiscurso)
do historiador Tuciacutedides e o texto do poeta Hesiacuteodo A diferenccedila que reside entre
ambas eacute que o texto do historiador parece ter sido orientado pelos fatos (realismo)
que satildeo oriundos da sua observaccedilatildeo empiacuterica que fundamenta o meacutetodo cientiacutefico
e simultaneamente marca o seu distanciamento com a tradiccedilatildeo miacutetica 175 Enquanto
168 Esse momento de crisetransiccedilatildeo segundo Vernant acontece no momento em que a Greacutecia rompe as suas ligaccedilotildees comerciais com o Oriente O ldquomarrdquo que outrora era uma fonte de expansatildeo torna-se nesse periacuteodo uma terriacutevel barreira Isolada sobre si mesma o que restou da grande civilizaccedilatildeo micecircnica retorna para uma economia agriacutecola apenas para manter a subsistecircncia do seu povo Esse eacute o mundo homeacuterico Natildeo haacute nesse momento uma divisatildeo de trabalho e nem um corpo vasto de matildeo de obra servil Com isso o grande aacutenax cai e daacute lugar a um grupo de homens conhecidos como basileus (βασιλεύς) Esse grupo passa a ser responsaacutevel por todas as funccedilotildees poliacuteticas e religiosas dentro desse novo espaccedilo social E esse eacute um dos pontos que sustenta a tese do helenista para o surgimento ou desenvolvimento do pensamento racional entre os gregos 169 ἄναξaacutenax 170 πόλιςpoacutelis 171 πειθώpeithoacute 172 ἀγώνagoacuten 173 Posteriormente veremos como essa caracteriacutestica foi importante para a constituiccedilatildeo da polis Essa experiecircncia pode ter exercido uma forte influecircncia na formaccedilatildeo da dialeacutetica a partir do surgimento da agoniacutestica Infelizmente Vernant natildeo fala sobre essa questatildeo mas podemos sugerir essa hipoacutetese a partir dos elementos que o helenista apresenta em seu livro De qualquer modo eacute notoacuterio que essa nova forma de pensar tenha se desenvolvido e se ampliado dentro de um contexto democraacutetico mas para noacutes isso natildeo eacute suficiente para comprovar que a Filosofia teria surgido com a Democracia dentro da Greacutecia pois haacute diversos autores como Plutarco (De Iside et Osiride 9) e Dioacutegenes de Laeacutercio (DL I-X) entres outros antigos que mencionam a existecircncia da Filosofia em um periacuteodo anterior no Antigo Egito Aliaacutes eacute importante ressaltar que no iniacutecio do seu livro (DL I-I) Dioacutegenes faz questatildeo de afirmar que a Filosofia tem origem estrangeira 174 ἀλήθεια 175 Esse rigor na elaboraccedilatildeo da obra eacute visto por muitos especialistas como o iniacutecio da historiografia como uma ciecircncia
45
que a loacutegica poeacutetica de Hesiacuteodo176 reside na forccedila da verossimilhanccedila177
ambiguidade e imaginaccedilatildeo No interior do texto hesioacutedico178 parece natildeo haver uma
diferenciaccedilatildeo clara entre verdade e falsidade179 mas entre verdade e memoacuteria 180
Ou seja o discurso poeacutetico parece natildeo ter a pretensatildeo de ser claro e fidedigno aos
fatos como o que ocorre nos textos de Tuciacutedides mas que se coloca como verdade
por ser oriunda do mundo divino A famosa obra do historiador intitulada como ldquoA
Histoacuteria da Guerra do Peloponesordquo eacute marcada por uma ordenaccedilatildeo cronoloacutegica
entre os acontecimentos que datildeo para os leitores um panorama preciso dos fatores
que desencadearam a guerra Enquanto que o tempo poeacutetico estaacute mergulhado em
uma instacircncia que reuacutene em si em um uacutenico instante o presente o futuro181 e o
passado182 Nesse sentido a poesia em seus primoacuterdios atua como uma expressatildeo
imageacutetica183 da eternidade184 que abrange a plenitude do momento da criaccedilatildeo que
escapa da compreensatildeo dos mortais185 Ela eacute responsaacutevel pela constituiccedilatildeo
(linguagem) e manutenccedilatildeo (memoacuteria) da proacutepria realidade que se daacute atraveacutes da
revelaccedilatildeo das musas186 Somente o poeta inspirado187 pode acessar esse domiacutenio
pois ele eacute a uacutenica conexatildeo entre o mundo divino 188 e humano
176 Posteriormente veremos que a poesia de Hesiacuteodo jaacute apresenta profundas mudanccedilas em relaccedilatildeo aos seus predecessores que foram importantes para o surgimento do trabalho desenvolvido por Tuciacutedides 177 Platatildeo (Timeu -29 c) Eacute nesse ponto que Platatildeo afirma que o discurso (λόγοςlogos) eacute uma ldquoimagemrdquo que copia o seu modelo (εἰκότας ἀνὰ λόγον τε ἐκείνων ὄνταςeikotas ana logon te ekeinocircn ontas) e nesse sentido ele reconhece a importacircncia do mito para expressatildeo do pensamento 178 Veremos posteriormente que essa comparaccedilatildeo soacute vale para a Teogonia pois em ldquoOs trabalhos e os diasrdquo o poeta desenvolve um tipo de texto mais claro que seraacute um referencial para todos os escritores que surgiratildeo a partir do seacuteculo V 179 ἀληθεία και ψεύδουςaleacutetheia kai pseudos 180ἀληθεία και microνήmicroηaleacutetheia kai mneme Vide TORRANO J (estudo e traduccedilatildeo) Hesiacuteodo Teogonia - A origem dos deuses 5ordf ed Satildeo Paulo Iluminuras 2003 Pag 29 181 αἰώνaion Platatildeo (Timeu -37 e) 182 Hesiacuteodo (Teogonia-26-8) ldquopor cetro deram-me um ramo a um loureiro viccediloso colhendo-o admiraacutevel e inspiraram-me um canto divino para que eu glorie o futuro e o passado impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos e a elas primeiro e por uacuteltimo sempre a cantarrdquo TORRANO J (estudo e traduccedilatildeo) Hesiacuteodo Teogonia - A origem dos deuses 5ordf ed Satildeo Paulo Iluminuras 2003 183 Vide o primeiro capiacutetulo 184 Platatildeo (Timeu -37 d) 185 Heraacuteclito (Diels-Kranz fragmento 22 B1) 186 Vide o primeiro capiacutetulo da seguinte monografia ldquoΡεριαδο a poesia como potecircncia de criaccedilatildeo e expressatildeo da vidardquo Uerj 2008 187 Platatildeo (Fedro ndash 245 a) Nesse diaacutelogo Soacutecrates afirma que o verdadeiro poeta eacute aquele que estaacute tomado pelo deliacuterio (microανίαmania) A teacutecnica (τέχνηtechneacute) segundo o filoacutesofo natildeo tem nenhuma serventia para a verdadeira poesia Esse eacute um dos criteacuterios que Platatildeo vai utilizar para criticar e consequentemente expulsar os maus poetas da sua Repuacuteblica 188 E dizei-me agora Musas habitantes do Olimpo ndash pois sedes voacutes deusas presentes por toda parte e conheceis tudo natildeo ouvimos mais que um ruiacutedo e noacutes nada sabemos () A multidatildeo natildeo
46
Atraveacutes da etimologia da palavra Poesia 189 podemos estabelecer uma
conexatildeo com essa experiecircncia criadora O verbo poieacuteo190 que forma o radical do
termo traz o sentido de fazer construir e criar Logo a criaccedilatildeo eacute a palavra chave
que daacute sentido e apresenta a accedilatildeo primordial da linguagem que tem por essecircncia
estabelecer a comunicaccedilatildeo que eacute fundamental para a nossa vida em uma sociedade
organizada191 Sem ela a nossa existecircncia natildeo seria possiacutevel Como foi dito por noacutes
anteriormente192 essa experiecircncia singular do sagrado traz consigo a capacidade de
explorar infinitas possibilidades que satildeo construiacutedas pelo pensamento que vatildeo (re)
configurando a cada instante o nosso mundo E eacute por ela que o homem vai tomando
e ampliando a sua consciecircncia de si e de todas as coisas que estatildeo ao seu redor
Nesse sentido a aleacutetheia surge na poesia de Homero e Hesiacuteodo como uma forccedila de
revelaccedilatildeo e manutenccedilatildeo da proacutepria Phyacutesis193 O natildeo-esquecimento assinala uma
relaccedilatildeo direta com a funccedilatildeo mnemocircnica exercida pela poesia dentro de uma
sociedade oral Ou seja ela eacute a uacutenica responsaacutevel por manter e conservar todos os
coacutedigos eacuteticos morais poliacuteticos e religiosos que satildeo rememorados e repassados em
contos e cantos pelos aedos Portanto o significado de aleacutetheia estaacute implicado nesse
periacuteodo ao desejo coletivo de preservaccedilatildeo desses coacutedigos que formam a base
cultural e que sobrevivem atraveacutes da memoacuteria do poeta194
Mesmo com o advento e a expansatildeo do uso da escrita - que para alguns
especialistas como Eric Havelock (HAVELOCK 1982) teria afetado radicalmente
a praacutetica oral - essa atividade sagrada ainda perdurou por bastante tempo entre os
poderia eu enumeraacute-la nem denominaacute-la mesma que tivesse dez liacutenguas dez bocas e um coraccedilatildeo incansaacutevel um coraccedilatildeo de bronze em meu peito Iliacuteada de Homero apud Detienne 1988 p 15 189 ποίησιςpoiesis No grego esse termo carrega os seguintes significados fabricaccedilatildeo confecccedilatildeo e construccedilatildeo 190 ποιέω 191 Eacute o que diz Aristoacuteteles em seu livro (Pol- 1252 a e 1252 b 13-4) E eacute por causa dessa capacidade natural de comunicaccedilatildeo que o homem eacute considerado pelo filoacutesofo como um animal poliacutetico (άνθρωπος φύσει πολιτικόν ζώον anthropos physei politikon zoon) 192 Vide o primeiro capiacutetulo 193 Eacute importante ressaltar que apenas o livro ldquoTeogoniardquo traz essas caracteriacutesticas mais tradicionais da poesia arcaica pois em ldquoOs trabalhos e os diasrdquo encontramos um trabalho mais elaborado que se distancia totalmente da tradiccedilatildeo homeacuterica 194 Diferentemente da modernidade a poesia desempenhava um papel funcional e didaacutetico entre os gregos
47
gregos195 Na sua biografia sobre as grandes personalidades da antiguidade196
Plutarco narra uma interessante histoacuteria sobre o famoso legislador espartano
Licurgo onde conta que o poliacutetico lacedemocircnio fez uma grande viagem para Aacutesia
no intuito de conhecer diferentes culturas e formas de governo para avaliar197 as
singularidades existentes entre Esparta e outras cidades198 O mais interessante eacute
que nessa circunstacircncia ele teria recebido pela primeira vez das matildeos dos herdeiros
e sucessores do poeta Creoacutefilo199 alguns textos contendo diferentes partes das obras
poeacuteticas de Homero Aleacutem das instruccedilotildees poliacuteticas que ele teria extraiacutedo desses
textos essa leitura teria lhe proporcionado tanto prazer200 que ele ordenou que essas
obras fossem todas reunidas e copiadas com extremo cuidado no intuito de
195 No periacuteodo poacutes-micecircnico a escrita ressurge com a funccedilatildeo de publicidade e era compartilhada de forma coletiva O seu uso natildeo seraacute mais restrito a um grupo de escribas que tinha por obrigaccedilatildeo contabilizar e controlar toda a produccedilatildeo de alimentos que eram fornecidas pelos agricultores sob o controle do anaacutex Nesse novo contexto por volta do seacuteculo IX aC ela reaparece como um instrumento de divulgaccedilatildeo das leis Logo o seu uso foi compartilhando de modo coletivo entre os cidadatildeos para o conhecimento e cumprimento das decisotildees que eram tomadas por seus governantes E a partir desse contexto eacute bem provaacutevel que os gregos possam ter evoluiacutedo intelectualmente Aliaacutes Eric Havelock desenvolve a sua tese de que a grande Literatura Grega se expandiu por causa desse novo uso da escrita em cima dessa hipoacutetese Para mais informaccedilotildees vide Eric A Havelock A revoluccedilatildeo da escrita na Greacutecia trad OJ Serra Satildeo Paulo Ed UNESP e Rio de Janeiro Paz e Terra 1996 196 Vidas Paralelas (em grego Βίοι Παράλληλοι Bioi paralleloi) eacute uma reuniatildeo de vaacuterias biografias de homens ilustres da Greacutecia e da Roma Antiga que foram escritas pelo historiador e bioacutegrafo Plutarco A obra tal como a conhecemos hoje em dia tem 23 pares de biografias Cada livro possui uma biografia de um homem ilustre grego e outro romano O primeiro par conhecido Epaminondas - Cipiatildeo o Africano infelizmente esse texto foi perdido Haacute uma ediccedilatildeo rara brasileira que foi baseada na traduccedilatildeo de Jacques Amyot (importante tradutor francecircs do seacuteculo XVI que foi grande amigo do filoacutesofo Montaigne) Para mais informaccedilotildees vide Plutarco ndash Vida dos Homens Ilustres Baseado na traduccedilatildeo em francecircs de Amyot com notas de Clavier Vauvilliers e Brotier Traduccedilatildeo brasileira de Joseacute Carlos Chaves Fonte Ed das Ameacutericas 1951 197 ldquo assim como um meacutedico que compara corpos saudaacuteveis com corpos doentes ele poderia estudar as diferenccedilas entre seus modos de vida e seus respectivos governosrdquo (Plutarch Lyc ndash 43) 198 Essa praacutetica parece ter sido algo muito comum na educaccedilatildeo de vaacuterias personalidades na antiguidade Importantes figuras como Tales Soacutelon Pitaacutegoras Empeacutedocles Platatildeo entre diversos outros tinham por haacutebito viajar no intuito de estudar outras culturas Essa eacute mais uma prova do intercacircmbio da cultura helecircnica com outros povos A formaccedilatildeo intelectual dos antigos era tambeacutem baseada nessas viagens que possibilitaram uma ampla abertura para o crescimento cultural dos gregos Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro
ROMILLY Jacqueline de ldquoPourquoi la Gregravecerdquo Paris Eacuted de Fallois 1992 199 Creophylus of ChiosSamos ou Ios segundo a doxografia antiga teria sido um importante poeta eacutepico grego que foi amigo de Homero e responsaacutevel por difundir as suas obras para posteridade (Plat Rep 600 c Plut Lyc 4 Heracleid Pont Poet Fragm 2 Iamblich Vit Pythag ii 9 Strab xiv) O poema eacutepico Oichalia ou Oichalias halosis o que eacute atribuiacutedo a ele segundo a tradiccedilatildeo teria sido recebido de Homero como um presente ou como um dote junto com sua esposa (Vide Caliacutemaco Epigrama 6 Proclus ap Hephaest P466 Ed Giasford Schol ad Plat p 421 ed Bakker Suidas sv) 200 No texto grego a expressatildeo (πρὸς ἡδονὴν καὶ ἀκρασίαν proacutes edonen kai akrasian ao prazer e agrave licenccedila) apresenta dois termos distintos (prazer e licenccedila ndash para o segundo muitos tradutores escolheram essa palavra para passar o sentido de akrasia - natildeo ter comando sobre si mesmo ndash que estaacute contido na frase) com o intuito de destacar o efeito de ecircxtase sentido por Licurgo ao ler os textos homeacutericos
48
preservar o seu conteuacutedo para repassaacute-las posteriormente aos gregos Plutarco
ainda ressalta que nessa eacutepoca201 os textos de Homero estavam comeccedilando a ficar
escassos E a partir dessa histoacuteria podemos supor duas coisas a primeira eacute que o
legislador foi um dos responsaacuteveis por manter o legado poeacutetico de Homero vivo
entre os gregos A segunda aponta para o ldquoreconhecimentordquo da poesia homeacuterica
como base para a educaccedilatildeo e a organizaccedilatildeo poliacutetica202 E por uacuteltimo eacute importante
ressaltar que essa memoacuteria que foi preservada trazia consigo um dos sentidos do
termo aleacutetheia (natildeo esquecimento) que podemos encontrar ainda em vigor entre os
seacuteculos VIII e V
Todavia esse uacuteltimo testemunho de Plutarco abre para outro grande problema
para noacutes por que seraacute que a obra de Homero estava desaparecendo na eacutepoca de
Licurgo Quais foram os fatores que desencadearam esse processo Haacute diversas
hipoacuteteses que tentam responder essa questatildeo Uma delas eacute apresentada por
Havelock que defende que o ressurgimento da escrita na sociedade grega teria
produzido um efeito radical na antiga praacutetica oral que era a base pedagoacutegica da
cultura grega203 Se de fato isso ocorreu eacute bem provaacutevel que esse foi um processo
progressivo e de simbiose pois como apresentamos anteriormente o proacuteprio
Plutarco nos lembra de que a escrita foi uma ferramenta uacutetil para que Licurgo
pudesse conservar e reunir todas as partes da obra homeacuterica Logo essas
transformaccedilotildees podem ter sido motivadas por outros fatores como a crise religiosa
-sobretudo aquela que era sustentada pela teologia homeacuterica- social204 poliacutetica e a
201 Os relatos sobre essa questatildeo cronoloacutegica satildeo imprecisos O proacuteprio Plutarco (Ac 46 ndash 120 d C) no iniacutecio do seu texto sobre a vida de Licurgo (Plu Lyc13) ressalta que havia diversos relatos contraditoacuterios e o seu trabalho foi reuni-los com o propoacutesito de manter a memoacuteria do ilustre espartano O que podemos supor das informaccedilotildees que foram obtidas eacute que Licurgo pode ter vivido entre os seacuteculos VIII e V O aspecto mais importante na declaraccedilatildeo de Plutarco eacute a constataccedilatildeo do progressivo desaparecimento das obras de Homero nesse periacuteodo Haacute diversas teses que tentam explicar esse fato atraveacutes da transiccedilatildeo entre a oralidade e a escrita (HAVELOCK 1982) De qualquer forma essa eacute uma informaccedilatildeo valiosa para os helenistas que estudam o alcance da obra de Homero e a sua relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo oral e o ressurgimento da escrita na antiguidade 202 Vide Platatildeo (Rep 599 d) 203 Para mais informaccedilotildees vide Eric A Havelock A revoluccedilatildeo da escrita na Greacutecia trad OJ Serra Satildeo Paulo Ed UNESP e Rio de Janeiro Paz e Terra 1996 204 Como veremos posteriormente eacute bem provaacutevel que tivesse ocorrido uma crise social entre a classe aristocraacutetica e a dos trabalhadores (artesatildeos e campesinos) O aparecimento do poeta Hesiacuteodo apresenta vaacuterios indiacutecios para essa possiacutevel crise E para essa direccedilatildeo interpretativa encontramos o apoio dos helenistas Werner Jaeger e Jean-Pierre Vernant O historiador Moses Finley afirma que com o aparecimento da polis a populaccedilatildeo agraacuteria natildeo vivia em uma propriedade isolada mas ela tambeacutem fazia parte do espaccedilo da polis De qualquer modo isso talvez tenha sido mais um fator para a instauraccedilatildeo da crise social Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura do primeiro capiacutetulo do seguinte livro FINLEY M I Economia e sociedade na Greacutecia antiga Satildeo Paulo Martins Fontes 1989
49
disseminaccedilatildeo do uso da escrita entre as classes mais baixas Aliaacutes essa uacuteltima
hipoacutetese pode ser corroborada com o exemplo do proacuteprio Hesiacuteodo que se apresenta
como um poeta205 de origem modesta que cuidava do seu rebanho na encosta do
monte Heacutelicon206 Atraveacutes de uma de suas obras mais importantes intitulada como
Trabalho e os dias 207 podemos constatar que o foco da sua poesia natildeo eacute o mesmo
que o do seu predecessor Homero Enquanto que esse uacuteltimo estava empenhado em
realccedilar as caracteriacutesticas do nobre aristocraacutetico como um modelo para o homem
grego atraveacutes da imagem do heroacutei (JAEGER 1936) que busca a sua imortalidade
atraveacutes de uma morte gloriosa208 Hesiacuteodo estaacute preocupado em mostrar o valor do
trabalho como um instrumento para formaccedilatildeo humana Essa nova proposta
pedagoacutegica traz consigo grandes mudanccedilas dentro da estrutura social dos gregos
que podem ser localizadas em vaacuterios textos da Literatura grega O comedioacutegrafo
Aristoacutefanes por exemplo em uma de suas peccedilas209 apresenta para o seu puacuteblico
uma breve anaacutelise sobre o conteuacutedo que era ensinado por quatros importantes poetas
da Greacutecia210 e entre eles podemos encontrar esse traccedilo que marca a poesia desse
famoso campesino
205 Para esse ponto irei vamos nos basear em uma comunicaccedilatildeo que foi apresentada em 2011 na Semana dos Alunos de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da Puc intitulada ldquoO canto de resistecircncia do Rouxinol sob as garras afiadas do Falcatildeo na idade do Ferro A poesia de Hesiacuteodo e seu desdobramento eacutetico-poliacutetico na Greacuteciardquo Nela eacute possiacutevel notar a diferenccedila entre a poesia homeacuterica e hesioacutedica Enquanto que na poesia de Homero vemos a elevaccedilatildeo de fundamentos de um ideal da classe aristocraacutetica onde seus versos formam a base para uma cultura que contempla a coragem e a determinaccedilatildeo entre os mais fortes com o surgimento de Hesiacuteodo esse paradigma se inverte a poesia se torna uma voz dos menos favorecidos e se faz presente dentro da polis como um importante canal de comunicaccedilatildeo e reivindicaccedilatildeo difundindo assim os preceitos dos camponeses para todos os gregos A partir dessa constataccedilatildeo foi traccedilado um paralelo entre os dois poetas e a suas respectivas influecircncias no campo eacutetico-social na Greacutecia antiga 206 Monte Heacutelicon (Ἑλικών ou Ηλικών transl Helikon [monte] tortuoso de ηλιξ heacutelix espiral em grego moderno Ελικώνας Elikoacutenas) eacute uma montanha na regiatildeo de Teacutespias na Beoacutecia Greacutecia que foi muito cultuada na mitologia grega Com uma altitude de 1749 metros acima do niacutevel do mar localiza-se proacuteximo ao Golfo de Corinto Esse eacute o lugar que Hesiacuteodo teria recebido das musas o canto sobre a origem dos deuses Aliaacutes o poeta Caliacutemaco conta uma histoacuteria similar a de Hesiacuteodo e situa no Heacutelicon o episoacutedio no qual Tireacutesias encontra Atena se banhando e acaba ficando cego poreacutem recebe o dom da profecia Vide hino V de Caliacutemaco em The Greek Anthology With an English Translation by W R Paton In five volumes London William Heinemann New York G P Putnams Sons MCMXVI The Loeb Classical Library 1916 207 Posteriormente veremos que esse trabalho foi um ldquodivisor de aacuteguasrdquo dentro da Literatura grega antiga 208 Vide o exemplo do heroacutei Aquiles na Iliacuteada (Canto XXII ndash 304-5) de Homero 209 Aristoacutefanes (As ratildes 1030-1036) 210 Essa passagem de Aristoacutefanes eacute de extrema importacircncia para os estudiosos da Paideia antiga pois a impressatildeo que temos eacute que no periacuteodo do comedioacutegrafo ndash no seacuteculo IV a C- cada poeta era responsaacutevel por um conteuacutedo especiacutefico dentro da educaccedilatildeo grega Esse programa pedagoacutegico estava divido nos seguintes pontos agricultura guerra religiatildeo sabedoria oracular orientaccedilatildeo moral e o conhecimento da medicina Haacute ainda mais duas outras hipoacuteteses que natildeo podem ser descartadas 1) cada um desses programas poderia estar a serviccedilo apenas da educaccedilatildeo de seus
50
[1030] Eacutesquilo211 - Ora aiacute tens o tipo de assuntos com que se devem preocupar os poetas Senatildeo observa bem como desde
o princiacutepio os verdadeiramente bons se mostraram uacuteteis Orfeu ensinou-nos a celebrar os misteacuterios e a evitarmos os sacrifiacutecios Museu a cura das doenccedilas e os oraacuteculos Hesiacuteodo o trabalho da terra as estaccedilotildees das colheitas e as tarefas agriacutecolas e o divino Homero onde foi ele buscar fama e gloacuteria senatildeo agraves coisas uacuteteis que ensinou estrateacutegia coacutedigo militar equipamentos dos guerreiros212
Nesse sentido encontramos uma mudanccedila de paradigma que se opera no
interior da sociedade grega que reflete uma crise na estrutura social helecircnica A sua
poesia ruacutestica de origem campesina exprime o heroiacutesmo de uma classe social mais
humilde que trava uma luta diaacuteria e silenciosa com a terra dura que abastece todos
os nobres que vivem no conforto dos seus palaacutecios Ao olharmos a topologia da
Greacutecia com mais atenccedilatildeo encontramos um terreno muito acidentado com vales
estreitos que satildeo entrecortados por montanhas Esses fatores dificultavam o
cultivo213 e a sobrevivecircncia de uma cultura que era baseada atraveacutes da agricultura
de subsistecircncia e do pastoreio O historiador Heroacutedoto214 relembra esse fato em um
diaacutelogo entre o rei persa Xerxes e o grego Demarato que narra entre outras coisas
sobre a pobreza e as dificuldades enfrentadas pelo povo grego
respectivos membros 2) numa cultura extremamente agoniacutestica eacute bem provaacutevel que esses poetas disputassem entre si o cargo de grande pedagogo da Greacutecia E talvez seja por isso que o comedioacutegrafo apresente todos esses grupos em sua peccedila pois eles formavam a sua plateia como um todo De qualquer modo natildeo temos provas suficientes para validar essa tese apenas algumas pistas Vale ressaltar que a poesia eacute vista no debate entre Eacutesquilo e Euriacutepides como algo utilitaacuterio e didaacutetico Isso eacute algo irrefutaacutevel dentro desse contexto histoacuterico E mais o seu valor precisa ser avaliado a partir desse criteacuterio que visa o aperfeiccediloamento do homem grego Na Repuacuteblica Platatildeo vai utilizar esse mesmo crivo para estabelecer os pilares da sua polis ideal Logo seraacute necessaacuterio o filoacutesofo fazer uma anaacutelise minuciosa de toda a poesia do seu tempo para estabelecer uma nova proposta pedagoacutegica Aliaacutes dentro da peccedila de Aristoacutefanes esse eacute o leitmotiv que conduz a trama no submundo O diaacutelogo entre os dois poetas traacutegicos Esquilo e Euriacutepides eacute observado pelo deus Dioniso que eacute a divindade que representa o teatro Ele eacute o juiz da ldquodisputardquo - agon - entre esses dois importantes poetas traacutegicos Posteriormente voltaremos a falar sobre esse caraacuteter agoniacutestico dentro da educaccedilatildeo grega 211 Eacutesquilo estaacute no inferno junto com Euriacutepides e o deus Dioniso A cataacutebase - do grego κατὰ baixo βαίνω ir - corresponde a qualquer forma de descida no grego Na mitologia o termo eacute usado para se referir agrave descida ao inferno o mundo dos mortos esse eacute o cenaacuterio utilizado por Aristoacutefanes pois na mitologia antiga esse era o lugar onde vaacuterios personagens buscavam conhecimento Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do interessante livro do professor Eudoro de Sousa Vide SOUSA E Cataacutebases estudos sobre viagens aos infernos na Antiguidade Satildeo Paulo Annablume Claacutessica 2013 212 Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e comentaacuterio de Maria de Faacutetima Silva ldquoSeacuterie Autores Gregos e Latinosrdquo editora Annablume 2014 213 Vide Tuciacutedides (Hist da guerra do Peloponeso livro I -II) 214 Heroacutedoto (Hist VII-CII)
51
[CII] ldquoPois bem senhor mdash tornou Demarato mdash jaacute que assim o desejais dir-vos-ei a verdade e natildeo duvideis jamais daqui por diante de quem usar da mesma linguagem Os Gregos tecircm sido criados na escola da pobreza e a virtude215 a ela se junta filha da temperanccedila e das leis estaacuteveis dando-nos armas contra a pobreza e a tirania Os Gregos que habitam as regiotildees vizinhas aos Doacuterios mdash para citar apenas esses como exemplo mdash sempre se houveram com dignidade bravura e nobreza drsquoalma sendo por isso dignos de todos os louvores Ouso afirmar senhor que eles natildeo soacute natildeo ouviratildeo as vossas propostas que tecircm por fim submeter a Greacutecia como estaratildeo decididos a ir ao vosso encontro e oferecer-vos batalha mesmo que os outros povos gregos disso se abstenham Quanto ao seu nuacutemero senhor qualquer que ele seja natildeo influiraacute na sua decisatildeo de resistir Tivessem eles um exeacutercito de apenas mil homens e nem por isso deixariam de oferecer-vos combaterdquo
Esse relato apresenta para noacutes um panorama geral da vida do homem do
campo que encontramos na descriccedilatildeo feita por Hesiacuteodo Atraveacutes do texto do poeta
podemos localizar o ponto exato de distanciamento dos ideais aristocraacuteticos que satildeo
defendidos por Homero e o momento em que a poesia passa a ser um veiacuteculo de
contestaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo de uma classe de trabalhadores que vive distante do centro 216
Eacute importante ressaltar que essas inovaccedilotildees trazidas por Hesiacuteodo foram feitas
a partir da estrutura tradicional da poesia homeacuterica que era utilizada por diversos
rapsodos como Iacuteon217 O alcance e a aceitaccedilatildeo do seu trabalho dependiam
fundamentalmente do pleno domiacutenio das regras de composiccedilatildeo oral que passam
pelo conhecimento da mitologia das teacutecnicas de construccedilatildeo mnemocircnica e dos
esquemas riacutetmicos como os hexacircmetros dactiacutelicos218 que formam a estrutura da
eacutepica antiga Sem o conhecimento dessas teacutecnicas dificilmente o poeta poderia
obter ecircxito em seu objetivo Para operar a desconstruccedilatildeo ele precisa partir do
215 Excelecircncia (ἀρετή arete) 216 Estamos partindo do pressuposto que nesse periacuteodo jaacute houvesse uma espeacutecie de espaccedilo (preacute-polis) ldquocentralizadordquo que foi passando por diversas modificaccedilotildees ateacute o momento do surgimento da polis Eacute importante ressaltar que natildeo encontramos o termo polis nos escritos de Homero e Hesiacuteodo Todavia isso natildeo nos fornece o direito de afirmar que nesse periacuteodo natildeo existisse uma distinccedilatildeo espacial entre os habitantes que viviam nos campos e aqueles que habitavam em um espaccedilo ldquocomumrdquo perto dos templos religiosos 217 Vide o diaacutelogo Iacuteon de Platatildeo 218 Hexacircmetro datiacutelico (do grego εξ heacutex seis e microέτρον meacutetron medida(s)) ou hexacircmetro heroacuteico eacute uma forma de meacutetrica poeacutetica ou esquema riacutetmico Eacute tradicionalmente associado agrave poesia eacutepica tanto grega quanto latina como por exemplo a Iliacuteada e a Odisseia de Homero e a Eneida de Virgiacutelio Eacute a mais importante forma meacutetrica usada na poesia eacutepica da Greacutecia Antiga
52
interior da tradiccedilatildeo utilizando as mesmas armas do seu oponente219 de modo
metoacutedico Com isso o poeta vai inserindo as suas novas alteraccedilotildees de forma e
conteuacutedo no modelo tradicional poeacutetico para afirmar o seu distanciamento da obra
homeacuterica220 e demarcar a sua posiccedilatildeo como um pretendente ao cargo de educador221
da Greacutecia222 Logo essas mudanccedilas natildeo ocorreram de modo radical mas de forma
sutil e progressiva223 Essa competiccedilatildeo acirrada entre esses dois poetas apresenta
para noacutes outra caracteriacutestica importante que marcou de modo determinante esse
periacuteodo de transiccedilatildeocrise na cultura helecircnica o espiacuterito agonistico
Os gregos descobriram uma forma genuiacutena para superar e elevar ao maacuteximo
os limites da nossa passageira e fraacutegil existecircncia E isso ocorre atraveacutes da poesia
que tem o poder de transformar toda a negatividade e o sofrimento em belas
imagens apoliacuteneas que passam a serem utilizadas como um modelo eacutetico atraveacutes da
arte que atua como um dispositivo necessaacuterio para orientar a vida humana Segundo
Nietzsche (NIETZSCHE 1870) os helenos possuiacuteam uma capacidade singular de
sentir o sofrimento e de saber reconhecer 224 o quatildeo miseraacutevel eacute a vida dos mortais
E com essa triste constataccedilatildeo poderiam facilmente seguir o caminho do pessimismo
e da negaccedilatildeo da vida como outrora seguiu o seu mestre Arthur Schopenhauer Mas
eacute exatamente aiacute que o povo heleno demonstra a sua maior grandeza ao converter
toda a negatividade do mundo em uma potecircncia criadora A arte e a religiatildeo
surgem para os gregos com a funccedilatildeo de tornar a nossa existecircncia suportaacutevel A
poesia de Homero e Hesiacuteodo atua como filtros que decantam a tristeza e a dor obtida
por experiecircncias traacutegicas do passado em imagens profundamente belas e uacuteteis A
religiatildeo apoliacutenea por exemplo eacute um modo eficaz de divinizar todas essas forccedilas
219 Utilizando os mitos e a crenccedila do povo campesino como meio de expressatildeo para alcanccedilar a adesatildeo dos seus pares 220 Algo similar ocorreu com o grande poeta Dante Alighieri na composiccedilatildeo da ldquoDivina comeacutediardquo pois ele natildeo quis escrever a sua obra em latim ndash que era liacutengua dos nobres e intelectuais da sua eacutepoca - mas utilizando o italiano vulgar E com isso Dante e posteriormente Petrarca ao se distanciarem da tradiccedilatildeo culta que vigorava naquele periacuteodo ajudaram a construir os fundamentos da liacutengua italiana atual Curiosamente esse mesmo fato ocorre na poesia de Hesiacuteodo diante da tradiccedilatildeo da sua eacutepoca Pois como veremos a seguir nesse presente trabalho ele foi responsaacutevel por diversas transformaccedilotildees no interior da cultura helecircnica 221 Vide Platatildeo (Rep 607 a) e tambeacutem DK (Xenoacutefanes - frag 10) 222 Vide o primeiro capiacutetulo 223 Vide os seguintes livros ldquoTeogoniardquo e tambeacutem ldquoTrabalhos e os diasrdquo Haacute diversas diferenccedilas que foram registradas por vaacuterios especialistas entre essas duas obras Para noacutes isso demonstra o distanciamento de Hesiacuteodo em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo homeacuterica que estaacute em plena consonacircncia com as mudanccedilas que ocorreram nesse periacuteodo de transiccedilatildeo e crise na Greacutecia 224 Vide o primeiro capiacutetulo
53
225 que estatildeo acima do nosso controle em arqueacutetipos que refletem as qualidades e
defeitos inerentes agrave condiccedilatildeo humana Em alguns fragmentos dos filoacutesofos preacute-
socraacuteticos eacute possiacutevel encontrarmos ecos dessa experiecircncia agoniacutestica que foi
profundamente importante para o nascimento da Filosofia e do Teatro Heraacuteclito226
por exemplo foi um dos primeiros filoacutesofos a ldquoreconhecerrdquo a guerra como um
princiacutepio regulador de todas as coisas
ldquoo combate eacute de todas as coisas pai de todas rei e uns revelou deuses outros homens de uns fez escravos de outros livresrdquo227
E ldquoo contraacuterio eacute convergente e dos divergentes nasce a mais bela
harmonia e tudo segundo a discoacuterdiardquo 228
Essa identificaccedilatildeo com um tipo de experiecircncia que afirma a oposiccedilatildeo entre
duas229 ou mais ldquoforccedilasrdquo como algo afirmativo eacute uma qualidade que parece ter
surgido em uma eacutepoca bem remota no pensamento dos gregos pois em Homero e
Hesiacuteodo eacute possiacutevel encontrarmos resquiacutecios dessa ideia230 Na Iliacuteada por exemplo
podemos notar que os cantos eacutepicos exaltam as accedilotildees dos guerreiros que buscam a
imortalidade atraveacutes de uma morte gloriosa Nesse contexto a morte e o sofrimento
ganham caracteriacutesticas positivas que insuflam o desejo de superaccedilatildeo e nobreza na
alma helecircnica Para Homero o homem adquire a sua dignidade e respeito quando
225 Vide o primeiro capiacutetulo 226 Posteriormente veremos como Heraacuteclito tambeacutem foi um grande criacutetico da tradiccedilatildeo homeacuterica Com isso encontramos mais outro exemplo desse caraacuteter agoniacutestico que marcou o pensamento antigo De qualquer modo eacute necessaacuterio ressaltar que essa ideia segundo Nietzsche jaacute poderia ser encontrada na poesia de Homero 227 DK (Heraacuteclito-Frag IX 9) 228 ἔριςeris Aristoacuteteles (Eacutetica Nic VIII 2 1155 b 4) A deusa Eacuteris eacute conhecida na mitologia como a deusa da discoacuterdia Em ldquoOs trabalhos e os diasrdquo e na ldquoTeogoniardquo o poeta Hesiacuteodo fala da sua importacircncia e da sua origem Esse eacute outro ponto que ele segue a tradiccedilatildeo homeacuterica pois eacute nele que a deusa aparece pela primeira vez citada em um texto escrito 229 Essa experiecircncia agoniacutestica eacute tatildeo marcante que podemos encontraacute-la como uma ferramenta linguiacutestica que foi utilizada na retoacuterica claacutessica com o nome de Oxiacutemoro (do grego ὀξύmicroωρον composto de ὀξύς agudo aguccedilado e microωρός estuacutepido) Ela eacute uma figura de linguagem que consiste em relacionar numa mesma expressatildeo ou locuccedilatildeo palavras que exprimem conceitos contraacuterios Vide os fragmentos de Heraacuteclito 230 Eacute importante ressaltar que o primeiro a trazer essa ideia a partir das consideraccedilotildees de Nietzsche foi Homero Em seguida veremos que Hesiacuteodo parte dessa tradiccedilatildeo mas com um sentido bem distinto do seu antecessor
54
atua com extrema bravura durante os combates 231 Nesse sentido o poeta tem
como dever escrever os seus atos que serviratildeo de modelo para a educaccedilatildeo militar
dos jovens nobres Eacute atraveacutes dessa experiecircncia que o homem pode se aproximar do
Olimpo tornando-se um heroacutei imortal Dentro desse novo contexto o termo
disputa232 passa a pautar todas as experiecircncias e atividades da cultura grega Como
vimos anteriormente a poesia deu um caraacuteter de positividade a uma experiecircncia de
horror que eles conheciam profundamente atraveacutes de inuacutemeras guerras travadas na
antiguidade
ldquoO Terror e o Temor Acorriam (a Discoacuterdia sanha que natildeo cessa irmatilde soacutecia de Ares matador-de-gente desponta diminuta e cresce e entesta com o ceacuteu e calca a terra dor e furor pelas tropas lanccedilando) Quando guerreiros enfim se datildeo de encontro frente agrave frente e os broqueis se entre batem e se entre chocam o vigor das lanccedilas dos homens todo-bronze encouraccedilados contra os escudos bojudos como umbigos ergue-se um tumulto de gritos de dor e de triunfo dos que vatildeo trucidando e dos que estatildeo morrendo e o sangue jorra sobre a terra e a inundardquo233
O impulso de destruiccedilatildeo eacute agora domesticado e desconstruiacutedo em prol da
afirmaccedilatildeo da existecircncia que tem a competiccedilatildeo como o criteacuterio que estimula a
superaccedilatildeo de si a partir do dialogo estabelecido com os outros 234 Em todas as
expressotildees do pensamento antigo encontramos reflexos dessa experiecircncia
agoniacutestica que marca de modo determinante a Educaccedilatildeo (παιδείαpaideia) e o
surgimento da polis Para os gregos esse modelo pedagoacutegico era necessaacuterio para
estimular o aperfeiccediloamento em todos os niacuteveis da sociedade235
Na Paideacuteia Jaeger ressalta que eacute possiacutevel encontramos os rastros de diversos
dialetos antigos nos poemas homeacutericos que apontam que esse patrimocircnio foi
231 Nos proacuteximos paraacutegrafos veremos como essa palavra foi importante para estimular a evoluccedilatildeo do homem dentro da cultura grega 232 ἀγώνaacutegon 233 Homero (Iliacuteada - IV 440-443) Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos 234 A alteridade que abrange natildeo apenas os indiviacuteduos mas a proacutepria phyacutesis 235 Os jogos oliacutempicos eacute um exemplo dessa experiecircncia agoniacutestica Os gregos inventaram os agones que eram competiccedilotildees de cunho religioso como o atletismo teatro muacutesica poesia e pintura com o intuito de cultuarem os deuses e os heroacuteis miacuteticos A poesia tambeacutem tinha a responsabilidade de manter essa experiecircncia viva dentro da memoacuteria coletiva helecircnica Essa foi a forma encontrada para superar esse sentimento de relatividade que estava imanente ao processo de transformaccedilatildeo e decadecircncia do tempo (vide Heraacuteclito e Protaacutegoras) Com isso eles conseguiram a imortalidade superando com intensa beleza os limites de nossa existecircncia fraacutegil e mortal
55
constituiacutedo com a ajuda de vaacuterios povos Essa contribuiccedilatildeo coletiva na composiccedilatildeo
desses poemas orais pode ter sido uma causa importante para estabelecer uma
unificaccedilatildeo pelo idioma entre essas polis que foram surgindo em vaacuterios pontos do
Mediterracircneo e da Europa236 De qualquer modo eacute praticamente impossiacutevel
sabermos com precisatildeo como isso ocorreu de fato Os escassos relatos que temos
natildeo podem nos passar muitas informaccedilotildees sobre as suas origens Alguns
testemunhos fornecidos por Heroacutedoto Tuciacutedides Platatildeo Xenofonte Aristoacuteteles e
Plutarco nos datildeo algumas pistas de como eram constituiacutedas essas cidades-
estados237 Dentro desses relatos conseguimos obter algumas informaccedilotildees preciosas
de cidades como Esparta por exemplo Aliaacutes depois de Atenas ela foi uma das
mais importantes polis do mundo antigo Segundo o depoimento de Xenofonte238
os lacedemocircnios foram homens extremamente virtuosos ateacute o momento da sua ruiacutena
que foi causada pela corrupccedilatildeo dos seus membros239 A sua enorme admiraccedilatildeo pelo
regime poliacutetico espartano demonstra para noacutes uma insatisfaccedilatildeo latente com os
rumos que democracia estava tomando em Atenas Esse descontentamento aliaacutes
era compartilhado por filoacutesofos como Platatildeo e Soacutecrates240 O jornalista americano
236 Pausacircnias (Descda Greacutecia -1041) apresenta alguns pontos determinantes para a constituiccedilatildeo de uma polis condiccedilotildees sociais culturais e poliacuteticas Referente agrave sua arquitetura ela deve conter praccedilas templos e teatro Enquanto que Aristoacuteteles (Pol1330 a34) dizia que a constituiccedilatildeo da polis depende de quatro pontos fundamentais sauacutede defesa beleza e adequaccedilatildeo agrave atividade poliacutetica Segundo Finley o termo polis era utilizado pelos antigos com dois sentidos O primeiro para a cidade em sentido estrito e o segundo no sentido poliacutetico Para Platatildeo e Aristoacuteteles a polis surge devido agrave incapacidade das duas formas de associaccedilatildeo humana (famiacutelia e o agrupamento de parentesco maior) Com o objetivo de alcanccedilar a plenitude existencial de seus cidadatildeos eles constroem um espaccedilo autossuficiente e autaacuterquico O historiador ainda acrescenta que mesmo os agricultores que viviam distante da cidade (centro urbano) fazia parte dessa unidade que forma a polis Todavia isso natildeo isenta o fato de ter havido ndash como apresentamos anteriormente- uma luta de classes - entre ricos e pobres ndash no interior da polis As discussotildees ocorriam em torno da propriedade e posse das terras entre aqueles que eram fazendeiros-fidalgos (que viviam no conforto da cidade) e os lavradores que sobreviviam a duras penas na regiatildeo rural Ou seja entre homens que viviam no oacutecio e outros que trabalhavam para sustentar essa mordomia Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do primeiro capiacutetulo do seguinte livro FINLEY M I Economia e sociedade na Greacutecia antiga Satildeo Paulo Martins Fontes 1989 237 Dioacutegenes de Laeacutercio (DL V-27) menciona uma obra de Aristoacuteteles conhecida na antiguidade pelo seguinte nome ldquoConstituiccedilotildees de 158 Cidades em geral e em particular das democraacuteticas oligaacuterquicas aristocraacuteticas e tiracircnicasrdquo Atraveacutes desse tiacutetulo podemos tirar duas informaccedilotildees valiosiacutessimas para o estudo dessas cidades-estados A primeira eacute a informaccedilatildeo da existecircncia de 158 polis ateacute o periacuteodo do filoacutesofo A segunda eacute o fato de haver pelo menos quatro formas de governo que eram aplicadas nessas cidades Essa obra poderia fazer parte dos estudos do filoacutesofo sobre a poliacutetica que incluem tambeacutem o livro da Constituiccedilatildeo dos Atenienses que vamos analisar em seguida 238 Xenofonte (A Const dos Lacedemocircnios I-1) em Xeacutenophon Oeuvres complegravetes trad Pierre Chambry Garnier-Flammarion 3 vol 1967 239 Ibidem Xenofonte (A Const dos Lacedemocircnios XIV-3 ) 240 Na Repuacuteblica sobretudo no livro VIII Platatildeo faz diversas criacuteticas ao regime democraacutetico ateniense
56
IF Stone (STONE 1988) em seu famoso livro sobre o julgamento de Soacutecrates
investigou esse ponto que foi determinante para o processo que foi levantado contra
o filoacutesofo Nesse momento em Atenas havia ainda uma divergecircncia poliacutetica
antiga241 entre a definiccedilatildeo de cidadania entre os gregos O problema girava em torno
das seguintes questotildees a cidadania deveria ser restrita como na oligarquia ou
aberta como na democracia A polis deve ser governada pela minoria ou maioria
Pelos ricos ou pelos pobres Essas questotildees geravam intensos debates entre
diversos pensadores na antiguidade Podemos ter uma ideia dessa tensatildeo242 nas
paacuteginas dos textos escritos por Aristoacuteteles na Poliacutetica e na Constituiccedilatildeo dos
atenienses Nas obras de Platatildeo e Xenofonte243 eacute possiacutevel constatar que Soacutecrates
era um grande criacutetico dos dois modelos apresentados por seus conterracircneos pois
para ele a cidade natildeo deve ser governada pela maioria ou minoria mas por aquele
que sabe 244 E essa postura criacutetica e o seu envolvimento pessoal com figuras
polecircmicas como Alcibiacuteades e Criacutetias245 foram responsaacuteveis por influenciar a
decisatildeo de vaacuterios atenienses no desfecho do julgamento que culminou na sua
sentenccedila de morte Para muitos helenistas essa histoacuteria apresentou para o mundo
uma grande ironia que teve um desfecho traacutegico pois o projeto pedagoacutegico
socraacutetico que era fundamentado na anaacutelise de todas as opiniotildees (doxa) e que visava
o aperfeiccediloamento dos cidadatildeos fora o que mais causava incocircmodo entre os
atenienses naquele momento Muitos homens e jovens estavam completamente
cegos e surdos por causa do efeito ilusoacuterio provocado pela persuasatildeo sofiacutestica246 A
morte do filoacutesofo eacute um retrato do desequiliacutebrio que se alastrava dentro do sistema
poliacutetico ateniense
241 Vide Aristoacuteteles (Constituiccedilatildeo dos atenienses livro II) 242 Como foi dito por noacutes no primeiro capiacutetulo desse presente trabalho essa tensatildeo social era um fenocircmeno que foi apontado por Hesiacuteodo e posteriormente por Aristoacuteteles 243 Platatildeo (Repuacuteblica e Poliacutetico) e Xenofonte (Memoraacuteveis e a constituiccedilatildeo dos Lacedemocircnios) 244 Vide Platatildeo (Rep V - 473 d) 245 O poliacutetico Alcibiacuteades foi acusado de traiccedilatildeo e o segundo foi responsaacutevel pelo golpe contra Atenas conhecido como a tirania dos trintas tiranos Para mais informaccedilotildees vide Xenofonte (Memoraacuteveis - 111 e 1212-16) Platatildeo (Apol - 33a-b) Dioacutegenes Laeacutercio (DL - 240) 246 Some-se a isso a imagem negativa pintada por Aristoacutefanes que foi um nobre comedioacutegrafo que prezava pela tradiccedilatildeo e rechaccedilava qualquer novidade no acircmbito da Educaccedilatildeo e da Cultura Em uma das suas peccedilas mais famosas conhecida desde a antiguidade sob o nome de ldquoAs nuvensrdquo o escritor mira a sua criacutetica corrosiva em direccedilatildeo da sofiacutestica Curiosamente ele elenca Soacutecrates como um daqueles homens responsaacuteveis pela decadecircncia ateniense Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendo a leitura do segundo capiacutetulo da dissertaccedilatildeo de mestrado intitulada como ldquoConsideraccedilotildees preliminares acerca da construccedilatildeo dramaacutetica do Soacutecrates de Platatildeordquo Puc-Rio 2013
57
32 Entre a oralidade e a escrita
Nesse periacuteodo a praacutetica oral comeccedila a disputar espaccedilo com as inuacutemeras
possibilidades oferecidas por esse importante instrumento de comunicaccedilatildeo Antes
da reintroduccedilatildeo da escrita a oralidade era o uacutenico suporte utilizado para que a
realeza micecircnica pudesse organizar e controlar suas financcedilas (VERNANT 1962)
Para Milman Parry (PARRY 1971) as obras de Homero foram construiacutedas a partir
de uma composiccedilatildeo oral extremamente sofisticada Caso ele esteja certo podemos
supor que a poesia homeacuterica pode ter sido fruto de um tempo onde esse sistema de
comunicaccedilatildeo ainda era desconhecido ou pouco utilizado como suporte mnemocircnico
Todavia eacute notoacuterio que posteriormente a escrita comeccedila a atuar de modo mais amplo
dentro da sociedade grega E graccedilas a ela eacute que hoje podemos ter acesso a diversas
obras do passado Como vimos anteriormente247 Licurgo jaacute aparece em um periacuteodo
no qual a escrita estava sendo utilizada com a funccedilatildeo de salvar as composiccedilotildees orais
que estavam desaparecendo na antiguidade248 Eacute a partir desses indiacutecios eacute que
podemos rastrear o processo revolucionaacuterio que esse instrumento propiciou aos
gregos
Entre os seacuteculos VII e V eacute possiacutevel encontrar os primeiros documentos
escritos249 de cunho privado poliacutetico e religioso A Literatura escrita comeccedila a se
difundir consideravelmente em todas as partes da Greacutecia Em seu livro
Xenofonte250 relata um importante incidente que demonstra para noacutes a raacutepida
difusatildeo de obras escritas na antiguidade Ele narra que em sua eacutepoca ocorreu um
naufraacutegio de um navio que continha uma consideraacutevel carga de livros 251 Essa
suacutebita proliferaccedilatildeo literaacuteria aponta para um novo tempo em que o letramento e a
escrita jaacute natildeo eram apenas restritos ao ciacuterculo da aristocracia Isso reforccedila a nossa
hipoacutetese inicial de que esse fator pode ter desencadeado um processo de
247 Vide o subcapiacutetulo anterior 248 Esse depoimento de Plutarco revela dois fatos a deterioraccedilatildeo da teologia homeacuterica e da tradiccedilatildeo oral 249 Vide THOMAS Rosalind ldquoLetramento e oralidade na Greacutecia antigardquo S Paulo Odysseus 2005 pp 18-19 250 Vide Xenofonte (Anaacutebase 7514) 251 βίβλοςbiblos
58
conscientizaccedilatildeo coletiva que surge a partir do desgaste da antiga tradiccedilatildeo homeacuterica
Aliaacutes o mau uso dessa ferramenta despertou severas criacuteticas de Platatildeo252 Por volta
do seacuteculo IV aC a escrita vinha sendo utilizada intensamente dentro de vaacuterios
setores da sociedade grega inclusive no processo educacional A criacutetica do filoacutesofo
parece revelar uma proliferaccedilatildeo sem controle de inuacutemeros textos que estavam sendo
veiculados sem o rigor criacutetico que o seu mestre tanto prezava Essa propagaccedilatildeo
desmedida de opiniotildees253estava gerando um terriacutevel efeito colateral no sistema
poliacutetico social grego Algo similar ao que ocorre em nossa atual sociedade com o
jornalismo e a imprensa em geral
Contudo eacute importante ressaltar que no periacuteodo claacutessico ainda existia um grande
descompasso entre a atividade de ler e escrever Havia uma desigualdade entre os
nuacutemeros de leitores e escritores254 que era resultado da tensatildeo existente entre a
oralidade e escrita e do processo confuso de alfabetizaccedilatildeo que teria sido iniciado
por Soacutelon em Atenas255 A leitura de algum texto entre os seacuteculos V e IV ainda era
feita por escravos instruiacutedos assim como o trabalho de contabilidade feito pelos
escribas na antiga realeza micecircnica Eacute provaacutevel que o processo de alfabetizaccedilatildeo do
povo seguisse algum padratildeo especiacutefico que permitisse apenas um acesso miacutenimo
atraveacutes da leitura das obrigaccedilotildees e dos direitos256 Eacute notoacuterio que por volta do seacuteculo
V aC o processo de formaccedilatildeo de uma parte dos jovens era privado257 e tinha a
finalidade de formar bons oradores para os debates que ocorriam na Aacutegora258 Esse
era um tipo de conhecimento que natildeo era acessiacutevel para o povo pois aleacutem de caro
era uma poderosa ferramenta de ascensatildeo poliacutetica e social De todo modo essa
instruccedilatildeo estava disponiacutevel ao lado daquela educaccedilatildeo baacutesica oferecida pelo
252 Platatildeo (Fedro - 274c-275b) 253 δόξα doxa 254 Vide THOMAS Rosalind ldquoLetramento e oralidade na Greacutecia antigardquo S Paulo Odysseus 2005 pp 14 255 Havelock sugere que esse processo de alfabetizaccedilatildeo possa ter ocorrido a partir do seacuteculo VI aC no periacuteodo de atuaccedilatildeo de Soacutelon Mas o mesmo ressalta que isso eacute apenas uma suposiccedilatildeo que se baseia em passagens de alguns diaacutelogos de Platatildeo (Prot 325 e ndash 326c-e e Caacutermides 159 c) em um periacuteodo bem posterior a Soacutelon Contudo baseado nas informaccedilotildees de Xenofonte sobre a Constituiccedilatildeo de Esparta eacute bem provaacutevel que houvesse um ensino oferecido pelo Estado em Atenas Para mais informaccedilotildees vide Eric A Havelock A revoluccedilatildeo da escrita na Greacutecia trad OJ Serra Satildeo Paulo Ed UNESP e Rio de Janeiro Paz e Terra 1996 pp 213 nota 4 256 Ibidem 257 Ou seja ele era adquirido para todos que pudessem pagar o serviccedilo oferecido pelos sofistas 258 Aacutegora (ἀγορά assembleia lugar de reuniatildeo derivada de ἀγείρω reunir) Espaccedilo comum onde os cidadatildeos se reuniam para discutir sobre questotildees poliacuteticas
59
Estado259 Logo os sofistas surgiram com o intuito de suprir uma necessidade social
e poliacutetica que surgiu nesse momento de abertura democraacutetica em Atenas
Para o historiador Rosalind Thomas (THOMAS 1992) os padrotildees que
determinavam a utilizaccedilatildeo da escrita e da oralidade eram totalmente distintos dos
que satildeo empregados por noacutes atualmente A antiga retoacuterica por exemplo ainda se
baseava na forccedila da oralidade que ainda era responsaacutevel por decidir as questotildees
mais importantes no acircmbito juriacutedico poliacutetico social e pedagoacutegico Logo a escrita
parece travar um conflito direto com essa antiga praacutetica260 Aleacutem de Platatildeo o sofista
Alcidamas pupilo de Goacutergias foi um grande expoente da retoacuterica grega que
tambeacutem teceu diversas criacuteticas ao papel desempenhado pela escrita em seu
tempo261 Essa tensatildeo existente entre essas formas de comunicaccedilatildeo sinaliza dois
importantes fatos para noacutes o primeiro eacute a disseminaccedilatildeo do letramento entre as
vaacuterias classes sociais Essa inclusatildeo parece estar a serviccedilo do novo modelo da
constituiccedilatildeo poliacutetica que surgiu apoacutes o decliacutenio da monarquia Ou seja essa praacutetica
eacute empregada apenas para que todos os cidadatildeos possam respeitar a legislaccedilatildeo que
comeccedila a entrar em vigor quando as decisotildees satildeo expostas no Poacutertico Real262
Todavia isso natildeo impede que essa praacutetica posteriormente venha desempenhar
outras funccedilotildees dentro da sociedade grega
O uacuteltimo ponto surge de um argumento ex silentio eacute provaacutevel que o contato
com o letramento pelo acircmbito juriacutedico possa ter despertado nas classes mais
humildes a iniciativa de usar esse novo instrumento como uma ferramenta de
expressatildeo conscientizaccedilatildeo e de denuacutencia263 Essa forccedila silenciosa de resistecircncia
pode ter sido uma das causas para estimular o surgimento de um pensamento mais
criacutetico que foi capaz de efetuar uma grande revoluccedilatildeo dentro da cultura helecircnica
259 Gramaacutetica Aritmeacutetica e Ginaacutestica 260 No caso de Platatildeo o tipo de composiccedilatildeo escrita mimetiza a primazia da oralidade Essa carateriacutestica eacute um fator que natildeo pode ser omitido pelos estudiosos pois Platatildeo eacute um dos que demarca atraveacutes de sua obra a ldquocriserdquo entre esses dois meios de expressatildeo na antiguidade 261 Para mais informaccedilotildees sobre esse interessante sofista recomendamos a leitura do seguinte livro Alcidamas ldquoThe Works and Fragmentsrdquo (Greek Texts) by John Muir 1 edition First published in 2001 262 Στοά ΒασίλειοςStoaacute Basileios 263 Essa nossa hipoacutetese eacute traccedilada a partir da obra de Hesiacuteodo Para mais informaccedilotildees vide o seguinte artigo ldquoDemocracia liberdade e poesia a grande revoluccedilatildeo popular de Atenasrdquo revista IacutetacaUfrj 2015
60
Logo podemos supor que a decadecircncia da teologia homeacuterica possa ter levado o
enfraquecimento dessa tradiccedilatildeo que se sustentava na forccedila da oralidade dos antigos
rapsodos E isso pode ter gerado uma abertura que propiciou o acesso de um nuacutemero
maior de pessoas as teacutecnicas mnemocircnicas e de composiccedilatildeo que foram essenciais
para a elaboraccedilatildeo de uma prosa poeacutetica que marcou determinantemente a cultura
grega264
A expansatildeo dessas artes que antes estavam sob o domiacutenio exclusivo da
aristocracia guerreira desencadeou diversas transformaccedilotildees que afetaram
diretamente a subjetividade coletiva grega Vimos anteriormente265 que o aedo era
o uacutenico responsaacutevel pela funccedilatildeo de comunicaccedilatildeo e memoacuteria na antiga civilizaccedilatildeo
micecircnica Apoacutes o advento do alfabeto o pensamento grego vai se desenvolvendo
simultaneamente com as mudanccedilas trazidas pela crise Essa nova linguagem
atravessa a realidade do indiviacuteduo que comeccedila a expressar seus valores e anseios
que agora natildeo satildeo mais pautados apenas nos deuses mas naquele que passa a ser a
medida de todas as coisas o homem266 Essa eacute a nova realidade que vai orientar a
Poesia e a Filosofia desse tempo Essa criatura mortal adquire o poder de domesticar
o loacutegos (o fogo ndash mito de Prometeu) 267 para atender as necessidades que surgem
dentro desse novo espaccedilo social e poliacutetico Nesse momento a palavra ganha uma
vestimenta mais soacutebria fixa e objetiva E nesse sentido a poesia de Hesiacuteodo foi
uma influecircncia determinante para alavancar essas grandes mudanccedilas dentro da
sociedade grega
264 E que propiciou que a poesia fosse praticada por homens do campo como Hesiacuteodo 265 Vide o primeiro capiacutetulo 266 Vide Protaacutegoras (DK - Fr B I) 267 Esse mito de Hesiacuteodo jaacute traz algumas ideias que refutam a teologia homeacuterica Para o grande Protaacutegoras essa dimensatildeo metafoacuterica engloba entre outras coisas a capacidade de astuacutecia (Μῆτιςmeacutetis) e de adaptaccedilatildeo sob condiccedilotildees hostis que foi importante para a evoluccedilatildeo da humanidade atraveacutes da manipulaccedilatildeo e desenvolvimento do loacutegos E eacute nesse momento que ele retoma o pensamento do grande Heraacuteclito pois o ldquofogordquo (πυράpyraacute) para o efeacutesio eacute a proacutepria imagem do Logos que estaacute presente em todas as coisas a partir de uma ldquomedidardquo (microέτρονmetron) Assim como fizera Heraacuteclito outrora Protaacutegoras opera uma brilhante transposiccedilatildeo entre Loacutegos (λόγος) e Deus (θεόςTheos) como uma convenccedilatildeo (νόmicroοςnomos) que foi criada pelos homens Ou seja o deslocamento feito pelo sofista eacute genial pois a ideia que estaacute subtendida no mito agora eacute atraveacutes da forccedila do loacutegos o homem se torna a medida de todas as coisas (πάντων χρηmicroάτων microέτρον έστιν άνθρωποςpanton chrematon metron estiacuten anthropos) Coincidentemente Heraacuteclito e Hesiacuteodo satildeo dois autores que influenciaram esse sofista Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo recomendo a leitura do primeiro capiacutetulo da dissertaccedilatildeo de mestrado intitulada como ldquoConsideraccedilotildees preliminares acerca da construccedilatildeo dramaacutetica do Soacutecrates de Platatildeordquo Puc-Rio 2013
61
Em Os trabalhos e os dias podemos encontrar um dos primeiros recortes
histoacutericos que foi efetuado pelo poeta Esse texto apresenta a imagem do tempo
presente que marca esse contraste com a tradiccedilatildeo homeacuterica Em seus versos haacute um
retrato quase jornaliacutestico268 das mazelas vivenciadas pelo seu povo Essa
abordagem eacute projetada com um olhar criacutetico e incisivo que denuncia a pressatildeo
exercida pelos nobres sobre o povo mais humilde Diferentemente de Homero o
poeta fala atraveacutes da primeira pessoa269 pois nomeia se a si mesmo no seu canto
que apresenta o nascimento dos deuses 270 Nesse momento ele fala sobre a sua
proacutepria experiecircncia existencial em um tempo e lugar determinados Essa sua
assinatura eacute o que tenta fornecer o tom de veracidade 271 que o seu relato visa passar
Com isso ele inaugura um sentido historiograacutefico que foi essencial para o
desenvolvimento da prosa que vamos encontrar em Heroacutedoto e Tuciacutedides
posteriormente Uma tendecircncia individualizadora que natildeo pode ser confundida em
hipoacutetese alguma com a nossa experiecircncia moderna272 Pelo contraacuterio em Hesiacuteodo
esse traccedilo marcante eacute a proacutepria imagem da conquista da autonomia da subjetividade
coletiva dos trabalhadores humildes O poeta reuacutene em si mesmo o grito de dor do
povo e o expressa de modo exemplar em seus versos para que os mesmos
trabalhadores possam encontrar um alento uma voz que clama por justiccedila e
igualdade e que serve de apoio para enfrentar seus opressores com coragem e
prudecircncia Para isso o poeta precisa desenvolver um encadeamento loacutegico
especiacutefico que visa desconstruir o ideal aristocraacutetico homeacuterico e pontuar as accedilotildees
injustas praticadas contra o seu povo e expressaacute-las de um modo coerente E eacute nesse
sentido que o seu trabalho seraacute uma importante referecircncia para o surgimento da
prosa aacutetica
268 Uma abordagem factual 269 Eacute importante ressaltar aqui que o uso da primeira pessoa desempenha uma funccedilatildeo inovadora dentro da antiga poesia Primeiro porque Hesiacuteodo parece ter a intenccedilatildeo de demarcar uma diferenciaccedilatildeo entre o seu trabalho e dos outros poetas Em segundo lugar o poeta utiliza a sua poesia como um instrumento que expressa a exploraccedilatildeo sofrida pelo seu povo 270 Hesiacuteodo (Teogonia ndash v 25) 271 O sentido de verdade aqui eacute de algo que natildeo pode ser esquecido 272 Como o cogito ergo sum de Descartes Essa tendecircncia que vemos em Hesiacuteodo tem o sentido de unificaccedilatildeo de toda uma consciecircncia coletiva de um determinado grupo social que claramente se opotildee como foi exposto anteriormente a classe aristocraacutetica que foi educada pela poesia homeacuterica Ao trazer esse clamor para a primeira pessoa ele impotildee ao seu relato um tom factual que eacute importante para tornar veriacutedico o seu relato
62
Com a dessacralizaccedilatildeo do poder poliacutetico a prosa surge como uma expressatildeo
inovadora ao lado da divulgaccedilatildeo das leis escritas273 Para o sucesso de tal objetivo
se faz necessaacuterio um texto que possa transmitir de modo direto os novos ideais e
normas atraveacutes de proposiccedilotildees claras e universalmente vaacutelidas Esse texto tem o
intuito de ser acessiacutevel para todos os membros da polis Eacute nesse ponto que podemos
identificar mais um traccedilo que nos permite ver o distanciamento com a tradiccedilatildeo
poeacutetica anterior Mas eacute importante ressaltar que esse fenocircmeno natildeo ocorreu de
modo radical Pelo contraacuterio ele coexistiu com as outras formas de expressatildeo que
ainda era cultividas pela tradiccedilatildeo popular De qualquer modo essa novidade
promoveu muita polecircmica entre os intelectuais do periacuteodo claacutessico Para
entendermos esse ponto eacute necessaacuterio levarmos em consideraccedilatildeo a crise de valores
que a antiga tradiccedilatildeo homeacuterica sofreu a partir dessas mudanccedilas poliacuteticas Eacute o que
veremos a seguir no proacuteximo paraacutegrafo
A criacutetica e a investigaccedilatildeo 274satildeo as palavras-chave que contribuiacuteram para a
substituiccedilatildeo da antiga eacutetica da nobreza homeacuterica que utilizava a fama e o prestiacutegio
social dos heroacuteis275 como paracircmetro supremo para julgar as accedilotildees do homem276 O
fracasso dessa experiecircncia fez surgir um espiacuterito criacutetico que age como um vigia 277
permanente de todas as accedilotildees e palavras Ou seja a sua funccedilatildeo eacute impedir os
excessos e as injusticcedilas Um censor 278 Logo o poetafiloacutesofo desempenha o papel
de porta voz desses anseios coletivos e de criacutetico e contraditor da opiniatildeo comum 279 Por fim eacute importante ressaltar que essa caracteriacutestica soacute eacute possiacutevel quando a
escrita surge como um instrumento publicitaacuterio para a divulgaccedilatildeo das leis Essa
nova experiecircncia poeacutetica ronda como uma sombra que age como um espelho que
273 A poesia de Soacutelon jaacute traz essa influecircncia da poesia hesioacutedica Infelizmente essa questatildeo natildeo poderaacute ser abordada nesse presente trabalho mas pretendemos no futuro desenvolver uma pesquisa sobre a relaccedilatildeo poeacutetica entre Hesiacuteodo e Soacutelon dentro desse contexto de crise social 274 Essas palavras trazem o comeccedilo da experiecircncia ceacutetica O verbo σκέπτοmicroαι (skeacuteptomai) que vem do grego para dar surgimento ao termo ceticismo traz em seu radical o substantivo skeacutepsis que significa ldquopercepccedilatildeo pela vistardquo ldquoobservaccedilatildeordquo e ldquoconsideraccedilatildeordquo O verbo skeacuteptomai eacute tambeacutem ainda empregado com os sentidos figurados de ldquoexaminarrdquo ldquomeditarrdquo e ldquorefletirrdquo Esses termos satildeo como pontos cardeais de grande importacircncia para o surgimento do pensamento filosoacutefico 275 Vide as epopeias homeacutericas 276 Vide o caso de Ciacutelon Curiosamente apoacutes o seu fracassado golpe o povo se rebelou de modo violento contra os nobres 277 Como um catildeo (κυνικός kynikos igual a um catildeo κύων kyocircn) 278 ψόγοςpsoacutegos Esse termo em grego tambeacutem traz o sentido de censura Eacute um termo muito utilizado no acircmbito da retoacuterica antiga Vide Demoacutestenes 279 δόξαdoxa Para esse caso podemos utilizar o papel desempenhado pelo grande Soacutecrates
63
reflete as tensotildees e injusticcedilas da sociedade Eacute nesse tempo que tambeacutem vemos surgir
agrave beleza do Teatro antigo pois ele atua nesse mesmo sentido como um poderoso
promotor280 puacuteblico que defende os interesses coletivos da sociedade a partir da
visatildeo panoracircmica do poeta O palco eacute uma espeacutecie de ensaio que antecipa as
reflexotildees que poderatildeo estar presentes nas futuras discussotildees que ocorreratildeo nas
assembleias Sendo assim o Teatro atua como uma espeacutecie de agente regulador
subjetivo281 que expotildee para a cidade os seus pontos mais conflitantes que precisam
ser discutidos julgados e alterados para preservar a harmonia da instituiccedilatildeo
Apoacutes a grande crise social a nova organizaccedilatildeo do Estado foi obrigada a pocircr
em praacutetica um sistema de coacutedigo juriacutedico que respeitasse o direito de todos os seus
membros Essa mudanccedila foi responsaacutevel para o surgimento de um novo tipo de
cidadatildeo ndash no sentido pleno do termo ndash que precisa aprender a respeitar as leis para
manter a organizaccedilatildeo da polis pois a sua realizaccedilatildeo individual dependente
fundamentalmente dessa lei universal (∆ίκηDike) que manteacutem o equiliacutebrio de todas
as partes (classes) que compotildee a cidade
280 Eacute aquele que sempre expotildee para o puacuteblico ldquojulgarrdquo (corte) uma situaccedilatildeo conflitante (drama) 281 Eacute o instrumento disponiacutevel que nos faz pensar sobre as questotildees cruciais para a cidade grega nesse contexto
4 Mythos Eacutepos e Loacutegos
41 Mito e poesia
A ordem disposta entre esses termos que configura o tiacutetulo desse presente
capiacutetulo natildeo eacute de modo algum casual ou arbitraacuteria282 Essas trecircs importantes
palavras na liacutengua grega referem-se ao ato de criaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo humana283
que abarcam o surgimento da tradiccedilatildeo oral ateacute o advento da escrita284 Como foi
exposto no primeiro capiacutetulo o espanto285 despertado atraveacutes das forccedilas
naturais286 que revela a presenccedila da Phyacutesis apresenta a necessidade287 de
comunicaccedilatildeo e criaccedilatildeo288 para a manutenccedilatildeo da existecircncia humana em todos os
seus aspectos Em detrimento desse fato e a partir dos fragmentaacuterios registros
histoacutericos gregos escritos e do mais variado legado arqueoloacutegico que pode ser
obtido atraveacutes da Arquitetura Escultura e Pintura podemos estabelecer uma fraacutegil
tentativa de esboccedilar um mapeamento289 cronoloacutegico e semacircntico do uso dessas
282 Para Fernand de Saussure a liacutengua pode ser analisada como uma realidade autocircnoma em um determinado contexto histoacuterico sem a necessidade de avaliar o seu processo de desenvolvimento Segundo a sua teoria a realidade linguiacutestica do falante pode ser definida a partir do seu proacuteprio uso (O filoacutesofo britacircnico John Langshaw Austin parte desse mesmo pressuposto para a sua ldquoteoria dos atos de falardquo) Para tal objetivo o filoacutesofo linguista elabora dois importantes conceitos para esse estudo o primeiro eacute o de Sincronia No qual determina certas caracteriacutesticas de uma liacutengua em um recorte temporal especiacutefico (analisa por exemplo as variaccedilotildees sociais regionais e situacionais) que se formula atraveacutes de uma regularidade e homogeneidade pertencente a um contexto histoacuterico definido O segundo eacute o de Diacronia Esse conceito eacute responsaacutevel por apontar as inuacutemeras mudanccedilas que uma liacutengua sofre durante o decorrer histoacuterico de uma cultura Esse processo eacute interessante por rastrear as suas principais variaccedilotildees desde a sua origem ateacute o seu uso atual Ao decorrer desse capiacutetulo vamos utilizar esses dois dispositivos com o intuito de analisar o uso desses termos entre a tradiccedilatildeo oral e o ressurgimento da escrita entre os gregos Para mais informaccedilotildees vide o seguinte livro SAUSSURE F de ldquoCurso de Linguiacutestica Geralrdquo 2ordm ed Satildeo Paulo Cultrix 2006 283 Sobre esse ponto vide o capiacutetulo I 284 Para noacutes esse ponto eacute essencial para compreender o processo de transformaccedilatildeo do pensamento grego A escrita na realeza micecircnica segundo os estudos arqueoloacutegicos realizados a partir do Linear B que era utilizado para o controle da produccedilatildeo agriacutecola Apoacutes o decliacutenio monaacuterquico e o surgimento das primeiras polis aparece com um sentido totalmente distinto o de publicizaccedilatildeo das leis Sobre esse ponto vide os comentaacuterios do helenista francecircs Jean Pierre Vernant no capiacutetulo II do seguinte livro ldquoAs origens do pensamento gregordquo Trad Isis Borges B da Fonseca 11 ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2000 285 θαῦmicroα 286 ἀθάνατοι 287 Ανάγκη 288 ποιεῖν 289 Ou seja natildeo pretendemos estabelecer nesse presente trabalho uma linha evolutiva entre esses termos O nosso objetivo visa localizar o uso deles em diversos contextos distintos da historiografia
65
formas de expressatildeo que antecedem o diaacutelogo como gecircnero literaacuterio e filosoacutefico
Essa constataccedilatildeo eacute do nosso grande interesse por apresentar alguns dos meandros
do desenvolvimento do proacuteprio pensamento grego antigo290 De um modo natildeo
linear 291 veremos que essa segunda premissa eacute o fundamento para a primeira No
longo processo de construccedilatildeo cultural cada uma dessas palavras contribuiacutera para a
formaccedilatildeo da subjetividade coletiva que auxiliou na formaccedilatildeo do espaccedilo social
poliacutetico religioso pedagoacutegico e juriacutedico em cada contexto histoacuterico grego
Para muitos scholars como o britacircnico John Burnet (BURNET 1892) eacute
possiacutevel traccedilar uma linha evolutiva que parte do pensamento miacutetico-poeacutetico ateacute o
momento em que o homem grego alcanccedilou a sua maioridade racional atraveacutes do
Loacutegos292
grega antiga atraveacutes da relaccedilatildeo da tradiccedilatildeo oral e o novo uso dado agrave escrita a partir do surgimento da Democracia 290 No famoso ldquocurso de linguiacutestica geralrdquo Fernand de Saussure aplica essa abordagem que foi nomeada de linguiacutestica histoacuterica para estudar a evoluccedilatildeo de uma determinada liacutengua Para mais informaccedilotildees vide SAUSSURE F de Curso de Linguiacutestica Geral 2ordm ed Satildeo Paulo Cultrix 2006 Paacuteg 8 291 Ao contraacuterio de muitos especialistas que seguem a posiccedilatildeo do escolar britacircnico John Burnet natildeo acreditamos que haja um deslocamento evolutivo entre esses termos Para a maioria dos defensores dessa posiccedilatildeo o mito tem origem ldquoreligiosardquo enquanto que o loacutegos eacute o momento que o homem alcanccedila a sua plenitude racional mas isso eacute um ledo engano Infelizmente essa posiccedilatildeo eacute ineficiente para dar conta dessa problemaacutetica Um dos exemplos que essa posiccedilatildeo natildeo explica eacute o uso que Platatildeo e outros pensadores sobretudo no acircmbito da Literatura fazem do mito durante e depois do periacuteodo claacutessico Eacute inegaacutevel que a apariccedilatildeo e o uso de cada um deles passou por consideraacuteveis mudanccedilas semacircnticas que desempenharam uma complexa repercussatildeo na funccedilatildeo cognitiva e na produccedilatildeo subjetividade do homem grego desde do periacuteodo micecircnico ateacute o claacutessico Logo A interpretaccedilatildeo de cada um desses termos necessita ser cautelosamente estudada a partir do seu respectivo contexto histoacuterico Posteriormente veremos que a ortodoxia de muitos helenistas e linguistas acabou impedindo uma visatildeo mais ampla sobre esse problema E isso ocorreu por descartarem algumas contradiccedilotildees que para noacutes eacute salutar para promover um estudo mais abrangente sobre essa questatildeo na antiguidade Uma delas eacute o fato de o mito ter surgido no acircmbito oral enquanto que o uso do loacutegos que muitos helenistas - vide o exemplo do proacuteprio Burnet - aplicam para os primeiros prensadores preacute-socraacuteticos como um discurso mais ldquosoacutebriordquo e ldquocoerenterdquo aparece no choque entre a tradiccedilatildeo oral e a novidade da escrita Esse ponto necessita ser levado em consideraccedilatildeo para um estudo mais aprofundando em torno desse tema A partir disso a nossa pretensatildeo eacute tentar estabelecer uma ordem diacrocircnica de uso desses termos ndash tendo como pano de fundo o momento de transiccedilatildeo entre a oralidade e escrita - sem estabelecer um juiacutezo de valor entre eles dentro do pensamento grego Ainda sobre essa grande celeuma entre os mais diversos especialistas dentro dos estudos sobre a linguiacutestica eacute importante destacar o trabalho desenvolvido por Jacques Derrida em torno desse problema no seu livro chamado Gramatologia Para o filoacutesofo todos os estudos relacionados a esse tema de um modo geral surgem quando o conceito de ciecircncia eacute forjado a partir da fonetizaccedilatildeo da escritura que ocorre com o surgimento do loacutegos Em um momento oportuno voltaremos a essa questatildeo 292 Nesse contexto especiacutefico o termo apresenta o sentido de razatildeo que se distanciou do seu antagonista o mito
66
ldquoFoi somente apoacutes se desarticularem a visatildeo tradicional do mundo e as normas costumeiras de vida que os gregos comeccedilaram a sentir as necessidades que as filosofias da natureza e da conduta procuram satisfazer Tais necessidades natildeo se fizeram sentir de imediato As maacuteximas ancestrais de conduta natildeo foram seriamente questionadas ateacute a antiga visatildeo da natureza desaparecer Por isso os primeiros filoacutesofos ocuparam-se principalmente com especulaccedilotildees sobre o mundo ao seu redor No devido tempo criou-se a Loacutegica para atender a uma nova necessidade O empenho na investigaccedilatildeo cosmoloacutegica trouxera agrave luz uma ampla divergecircncia entre a ciecircncia e o senso comum Este problema exigia uma soluccedilatildeo e aleacutem disso obrigava os filoacutesofos a estudar meios de defender seus paradoxos dos preconceitos do natildeo-cientiacutefico Mais tarde o interesse preponderante por problemas loacutegicos levantou a questatildeo da origem e da validade do conhecimento ao passo que mais ou menos na mesma eacutepoca a desarticulaccedilatildeo da moral tradicional deu origem agrave Eacutetica O periacuteodo que antecede a ascensatildeo da Loacutegica e da Eacutetica tem portanto um caraacuteter especiacutefico e eacute adequado trataacute-lo separadamenterdquo293
Mas essa posiccedilatildeo natildeo eacute satisfatoacuteria para explicar a amplitude que o
pensamento miacutetico-poeacutetico desempenhou ateacute o periacuteodo romano294 Como podemos
ver nessa passagem que foi citada anteriormente essa hipoacutetese elaborada pelo
ilustre professor britacircnico sugere um caminho ascensional que se fundamenta no
distanciamento entre esses modos de expressatildeo a partir de uma posiccedilatildeo antagocircnica
e de inferioridade em relaccedilatildeo ao Loacutegos295 Infelizmente essa via mascara o valor do
pensamento miacutetico-poeacutetico como uma forma de saber extremamente relevante que
surgiu durante a tradiccedilatildeo oral para o povo helecircnico Posteriormente296 teremos a
oportunidade de analisar algumas peculiaridades desse fato que foi reconhecido
atraveacutes da manifestaccedilatildeo da Poesia Retoacuterica Teatro e da proacutepria Filosofia que
juntas satildeo expressotildees maacuteximas do valor intelectual que pode ser mensurado atraveacutes
do legado da Literatura297 e de outras expressotildees artiacutesticas que fizeram da Greacutecia
o modelo cultural do nosso mundo Ocidental desde do periacuteodo preacute-homeacuterico Eacute
importante ressaltar que todas as sociedades antigas em algum momento histoacuterico
utilizaram esse tipo peculiar de expressatildeo para reunir e manter as impressotildees mais
importantes sobre as nossas origens298 No caso grego eacute possiacutevel encontrarmos
293 Vide o seguinte livro BURNET John ldquoA aurora da filosofia gregardquo Rio de Janeiro ed Contraponto Puc-Rio 2006 Pp 21 294 Sobre esse ponto vide a seguinte obra VEYNE Paul ldquoAcreditavam os gregos em seus mitosrdquo Satildeo Paulo Brasiliense 1983 295 Na Gramatologia Jacques Derrida vai tecer durar criacuteticas a esse pressuposto que foi seguido por muitos especialistas que estudam esse tema 296 No capiacutetulo IV 297 Dentro desse contexto incluiacutemos a tradiccedilatildeo oral ateacute o surgimento das primeiras obras escritas 298 Para mais informaccedilotildees sobre essa questatildeo vide a leitura do seguinte livro GRIMAL P ldquoA Mitologia Gregardquo Satildeo Paulo Brasiliense 1987
67
outras aplicaccedilotildees A antiga realeza micecircnica por exemplo utilizou o recurso miacutetico
para a fundamentaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do poder monaacuterquico atraveacutes de algumas
famiacutelias que tinha uma relaccedilatildeo consanguiacutenea com os deuses Ou seja aleacutem do
caraacuteter histoacuterico que eacute atribuiacutedo por muitos antropoacutelogos o mito nesse caso eacute
utilizado para reivindicar tiacutetulos de nobreza para algumas famiacutelias e cidades Esse
tipo de aplicaccedilatildeo nos demonstra o seu caraacuteter plaacutestico e de utilidade para a
organizaccedilatildeo social como um todo ao lado da Poesia
42 Mito e espanto
A forccedila e beleza do discurso299 foi uma heranccedila que foi obtida a partir da
sofisticaccedilatildeo e primazia da fala que foi ampliada dentro do periacuteodo oral Essa
caracteriacutestica foi tatildeo marcante que se perdurou mesmo depois do seu esgotamento
como instrumento de transmissatildeo e conservaccedilatildeo cultural ateacute o auge da escrita
durante o periacuteodo claacutessico No discurso do estadista ateniense Peacutericles que foi
registrado pelo historiador Tuciacutedides300 por volta do ano 431 aC eacute possiacutevel
notarmos o fasciacutenio que bela fala produzia nos ouvidos dos atenienses
A maioria daqueles que falaram neste lugar fizeram elogios ao legislador que acrescentou um discurso agrave cerimocircnia tradicional considerando justo celebrar com palavras os mortos na guerra em seus funerais A mim todavia ter-me-ia parecido suficiente tratando-se de homens que se mostraram corajosos em atos manifestar apenas com atos as honras que lhes prestamos - honras como as que hoje presenciastes nesta cerimocircnia fuacutenebre do Estado - em vez de deixar o reconhecimento do valor de tantos homens na dependecircncia do maior ou menor talento oratoacuterio de um soacute homem Eacute realmente difiacutecil falar com propriedade numa ocasiatildeo em que natildeo eacute possiacutevel avaliar a credibilidade das palavras do orador O ouvinte bem informado e disposto favoravelmente pensaraacute talvez que natildeo foi feita a devida justiccedila em face de seus proacuteprios 299 Μύθος Έπος και λόγος Dentro dessa perspectiva vide a famosa oraccedilatildeo fuacutenebre de Peacutericles que estaacute registrada no livro II (35-46) sobre a ldquoA guerra do Peloponesordquo do historiador Tuciacutedides Mesmo sendo um discurso oral esse pronunciamento eacute oriundo de uma formulaccedilatildeo escrita Para esse assunto vide o seguinte livro HAVELOCK Eric Prefaacutecio a Platatildeo Traduzido por Enid Abreu Dubraacutenzsky Campinas SP Papirus 1996 300 Vide nota anterior Esse texto eacute de grande importacircncia histoacuterica por revelar natildeo apenas a sobriedade da fala que foi esculpida pela beleza retoacuterica desse periacuteodo mas a consciecircncia de cidadania que foi elevada pelo auge do regime democraacutetico e imperialista de Atenas Sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do seguinte livro CANFORA Luciano ldquoO mundo de Atenasrdquo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2015
68
desejos e de seu conhecimento dos fatos enquanto outro menos informado ouvindo falar de um feito aleacutem de sua proacutepria capacidade seraacute levado pela inveja a pensar em algum exagero De fato elogios a outras pessoas satildeo toleraacuteveis somente ateacute onde cada um se julga capaz de realizar qualquer dos atos cuja menccedilatildeo estaacute ouvindo quando vatildeo aleacutem disto provocam a inveja e com ela a incredulidade Seja como for jaacute que nossos antepassados julgaram boa esta praacutetica tambeacutem devo obedecer agrave lei e farei o possiacutevel para corresponder agrave expectativa e agraves opiniotildees de cada um de voacutesrdquo301
A grande novidade desse momento eacute que a fala soacutebria do estadista eacute fruto da
reinserccedilatildeo da escrita que possibilitou uma imensa transformaccedilatildeo dentro do
contexto soacutecio-poliacutetico grego durante o auge do processo democraacutetico no periacuteodo
claacutessico302 Para avaliarmos algumas caracteriacutesticas desse fato no campo da
subjetividade coletiva podemos destacar a notaacutevel coerecircncia entre as partes desse
precioso discurso fuacutenebre que foi declamado com o intuito de consolar os
atenienses e de buscar apoio poliacutetico para o projeto imperialista de Peacutericles dentro
e fora de Atenas303 A escrita agrave serviccedilo da fala desempenha nesse momento aleacutem
de reforccedilar a publicidade das ideias difundidas no conteuacutedo dessa peccedila oratoacuteria304
tem por objetivo produzir um efeito de comoccedilatildeo e apoio atraveacutes da persuasatildeo
produzida a partir do encadeamento entre vaacuterias ideias que esse discurso propotildee aos
seus respectivos ouvintes de modo grandiloquente305 Essa experiecircncia de domiacutenio
da fala que aparece no periacuteodo oral foi ampliada e refinada dentro do acircmbito
301 Tuciacutedides ldquoHistoacuteria da guerra do Peloponesordquo (livro II ndash 35) 302 Sobre essa questatildeo vide o seguinte livro HAVELOCK ERIC A ldquoA Revoluccedilatildeo da escrita na Greacutecia e suas consequecircncias culturaisrdquo Trad Ordep Joseacute Serra Satildeo Paulo Editora da Universidade Estadual Paulista Rio de Janeiro Paz e Terra 1996 303 Na ldquoGenealogia da Moralrdquo Nietzsche revela na sua primeira dissertaccedilatildeo (cap 11) as intenccedilotildees que estatildeo subtendidas nesse discurso de Peacutericles que foram registradas por Tuciacutedides Para essa questatildeo recomendamos a leitura do seguinte livro NIETZSCHE F ldquoA genealogia da Moralrdquo (traduccedilatildeo de Paulo Ceacutesar de Souza) Satildeo Paulo Companhia das Letras 1999 304 O helenista Conford vai analisar as intenccedilotildees fictiacutecias e histoacutericas de Tuciacutedides ao escrever o seu livro que conteacutem esse discurso fuacutenebre de Peacutericles Para mais informaccedilotildees vide CORNFORD Francis Macdonald ldquoThucydides Mythistoricusrdquo Philadelphia University of Pennsylvania 1971 305 Esse discurso pode ser divido em dois niacuteveis o primeiro sentido busca a comoccedilatildeo e o apoio dos atenienses e aliados enquanto que o segundo visa mostrar o poderio beacutelico ateniense para intimidar os inimigos e as outras cidades que ainda natildeo haviam assumido apoio direto ao projeto militar e poliacutetico de Peacutericles Vale lembrar que essa peccedila oratoacuteria carrega os grandes traccedilos da influecircncia sofistica de Protaacutegoras de Abdera e da arte do escultor Fiacutedeas Algumas das suas obras mais famosas na antiguidade se destacaram pelo poder de distorccedilatildeo da realidade com o intuito de fornecer ao espectador um profundo prazer esteacutetico O uso desse tipo de recurso anuncia a intenccedilatildeo do artista que se coaduna com a pedagogia do movimento sofiacutestico de produzir comoccedilatildeo atraveacutes do espanto Nesse sentido ambas seguem o mesmo fundamento da tradiccedilatildeo mito-poeacutetica que pode ser encontrada nas obras homeacutericas Para mais informaccedilotildees vide o segundo ensaio chamado ldquoThe spirit of art of Pheidiasrdquo do seguinte livro WALDSTEIN C ldquoEssays on the Art of Pheidiasrdquo Cambridge university press New York 1885 Paacuteg 42
69
militar pedagoacutegico teatral e juriacutedico306 A organicidade e clareza eram pontos
essenciais para a desenvoltura e eficiecircncia de todos os rapsodos tragedioacutegrafos e
comedioacutegrafos antigos Logo o uso da teacutecnica da grafia alfabeacutetica possibilitou um
domiacutenio ainda maior na composiccedilatildeo e na apresentaccedilatildeo puacuteblica desses artesatildeos da
fala 307 Essa novidade oriunda do advento da escrita teria surgido por volta do
seacuteculo VIII aC e durante um determinado periacuteodo dividiu o espaccedilo com a antiga
oralidade que era o instrumento principal para conservaccedilatildeo e transmissatildeo cultural
Mas antes de abordarmos esse ponto vamos rastrear as evidecircncias que antecederam
esse fato no mundo grego
Os dois primeiros termos que expressam o ato de fala estatildeo voltados
diretamente para a tradiccedilatildeo oral que foi determinante para organizaccedilatildeo cultural
helecircnica 308 Dentro desse contexto o pensamento miacutetico e eacutepico foi responsaacutevel
por formular as primeiras concepccedilotildees de linguagem que revelam o profundo
conhecimento e desenvolvimento das teacutecnicas mnemocircnicas essenciais para a
manutenccedilatildeo e sobrevivecircncia cultural na antiguidade Essa caracteriacutestica pode ser
obtida no antigo culto das musas que eram as divindades responsaacuteveis pela
perpetuaccedilatildeo da memoacuteria309 Satildeo elas que no mundo homeacuterico constroem e
estabelecem a compreensatildeo das forccedilas que organizam o nosso mundo (SVENBRO
1976) Essa concepccedilatildeo tem o poder de fundamentar o conhecimento necessaacuterio para
306 Eacute possiacutevel encontramos nesse discurso de Peacutericles todos esses aspectos reunidos Eacute importante ressaltar que antes mesmo da reinserccedilatildeo da escrita o ritmo e a melodia da muacutesica davam ao discurso poeacutetico o sentido e a coesatildeo necessaacuteria para promover a simpatia e prazer aos ouvintes atraveacutes dos seus respectivos metros Posteriormente essas caracteriacutesticas ainda vigoravam na prosa aacutetica que escritores dramaturgos oradores professores e poliacuteticos utilizavam nesse periacuteodo Sobre essa questatildeo recomendamos a leitura do seguinte artigo FACAtildeO E ldquoDemocracia liberdade e poesia a grande revoluccedilatildeo popular de Atenasrdquo Revista Iacutetacaufrj 2015 307 Vide os apontamentos de Aristoacuteteles sobre esse tema na Poeacutetica e Retoacuterica Eacute importante destacar que houve uma grande polecircmica em torno dessa questatildeo entre os defensores da tradiccedilatildeo oral e daqueles que pautavam os seus trabalhos como os filoacutesofos logoacutegrafos e sofistas atraveacutes do uso de textos escritos Posteriormente vamos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre essa questatildeo 308 Sobre esse ponto vide as consideraccedilotildees que estatildeo no primeiro e no segundo capiacutetulo desse presente trabalho 309 Μοῦσαι (Moũsai) satildeo divindades responsaacuteveis pela inspiraccedilatildeo simboacutelica no campo da muacutesica arte literatura e ciecircncia na mitologia grega O mais interessante eacute que todas as concepccedilotildees filosoacuteficas antigas sobre a origem da muacutesica satildeo fundamentadas a partir dessa heranccedila da tradiccedilatildeo oral Ora esse detalhe eacute de extrema importacircncia por apresentar a relevacircncia dessa tradiccedilatildeo miacutetica para o desenvolvimento da muacutesica e filosofia entre os gregos Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro GRIMAL Pierre ldquoDicionaacuterio da mitologia grega e romanardquo Traduccedilatildeo de Victor Jabouille 3 ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1997 Em um importante artigo chamado ldquoThe gift of speech in Homer e Hesiodrdquo o helenista alematildeo Friedrich Solmsen aponta algumas diferenccedilas entre o uso dessas divindades invocadas por esses dois poetas na tradiccedilatildeo antiga Para mais informaccedilatildeo vide o seguinte artigo SOLMSEN F ldquoThe gift of speech in Homer e Hesiodrdquo in Transactions of the american philological association 1954
70
os gregos dentro desse contexto histoacuterico Ao fornecer aos homens uma
possibilidade de compreensatildeo do mundo as musas datildeo sentido para a existecircncia
humana na organizaccedilatildeo poliacutetica e juriacutedica da realeza micecircnica (GERNET 1982)
Todas as expressotildees do pensamento nesse momento satildeo pautadas atraveacutes da sua
forccedila persuasiva e expressiva emitidas pela fala divina do aedo
[HOMERO Iliacuteada] ldquoOacute Musas me dizei moradoras do Olimpo divinas todo-presentes todo-sapientes (noacutes nada mais sabendo soacute a fama ouvimos) quais eram hegemocircnicos guiando os Dacircnaos os priacutencipes e os chefes O total de nomes da multidatildeo nem tendo dez bocas dez liacutenguas voz inquebraacutevel peito brocircnzeo eu saberia dizer se as Musas filhas de Zeus porta-escudo oliacutempicas natildeo derem agrave memoacuteria ajuda renomeando-me os nomes Soacute direi o nuacutemero das naves e os navarcas que assediaram Troia Pemeleu Protoeacutenor Lito Arcesilau mais Clocircnio iam agrave testa dos Beoacutecios de Aacuteulide peacutetrea de Hiacuteria de Esqueno Escolo e de Eteono milmontanhosa Teacutespio Graia Micalesso vasta em planiacutecies de Harma de Ileacutessio de Eritras os de Eleona Peteona Hila de Ocaleia Medeona bem-construiacuteda Tisbe columbaacuterio riquiacutessimo e os de Eutreacutessio de Copas e os vindos de Coroneia e de Haliarto verdejante e os de Plateia e Glissa os de Hipotebas poacutelis bem-construiacuteda os de Onquesto veneranda bosque de Posecircidon esplecircndido e os de Arna riquiacutessima em pacircmpanos de Nisa divina e Mideia e os de Anteacutedon extremo ponto na fronteira Cento e cinquenta naves da Beoacutecia e nelas em cada barco cento e vinte homens de guerraOs nativos de Aspleacutedon de Orcocircmeno Miacutenias Ascaacutelafos e Iaacutelmeno comandam filhos de Astiacuteoque com Ares (o deus alcanccedilara a virgem casta no alto do palaacutecio de Aacutector o Azeide onde agraves ocultas no leito a possuiacutera esses em fila enchiam trinta naves cocircncavas310rdquo
310 HOMERO Iliacuteada canto II v 484-515 ἔσπετε νῦν microοι Μοῦσαι Ὀλύmicroπια δώmicroατ᾽ ἔχουσαιὑmicroεῖς γὰρ θεαί ἐστε πάρεστέ τε ἴστέ τε πάντα ἡmicroεῖς δὲ κλέος οἶον ἀκούοmicroεν οὐδέ τι ἴδmicroεν οἵ τινες ἡγεmicroόνες ∆αναῶν καὶ κοίρανοι ἦσαν πληθὺν δ᾽ οὐκ ἂν ἐγὼ microυθήσοmicroαι οὐδ᾽ ὀνοmicroήνω οὐδ᾽ εἴ microοι δέκα microὲν γλῶσσαι δέκα δὲ στόmicroατ᾽ εἶεν φωνὴ δ᾽ ἄρρηκτος χάλκεον δέ microοι ἦτορ ἐνείη εἰ microὴ Ὀλυmicroπιάδες Μοῦσαι ∆ιὸς αἰγιόχοιο θυγατέρες microνησαίαθ᾽ ὅσοι ὑπὸ Ἴλιον ἦλθον ἀρχοὺς αὖ νηῶν ἐρέω νῆάς τε προπάσας Βοιωτῶν microὲν Πηνέλεως καὶ Λήϊτος ἦρχον Ἀρκεσίλαός τε Προθοήνωρ τε
71
A partir dessa passagem que se encontra no segundo livro da Iliacuteada de
Homero podemos compreender a importacircncia dessas divindades para o
desenvolvimento do processo de subjetividade coletiva grega No iniacutecio dos versos
o poeta ressalta que elas satildeo as responsaacuteveis por guiar os gregos atraveacutes do
conhecimento que eacute fornecido atraveacutes da memoacuteria311 Sendo assim nos deparamos
com a uacutenica via possiacutevel para ultrapassar o limite que separa o mundo divino e
humano A manifestaccedilatildeo dessa verdade ocorre entre o movimento freneacutetico da
melodia da voz e do corpo312 que materializa em um uacutenico instante313 a presenccedila
dessas forccedilas que organizam o mundo atraveacutes dessas imagens glorificadas no
tempo
ldquoQuando Aquiles por exemplo presta um grande juramento sua palavra eacute inseparaacutevel de um gesto e de um comportamento solidaacuteria agrave virtude do cetro que a confunde com a afirmaccedilatildeo oracular A todo momento a linguagem verbal se entrelaccedila com a linguagem gesticular quando Althaiacutea amaldiccediloa o seu filho sua maldiccedilatildeo eacute palavra e postura toda encolhida ela bate com forccedila no chatildeo para suscitar a Eriacutenia vingadora Eacute a atitude do corpo que confere sua potecircncia agrave palavra uma palavra que aliaacutes se identifica com a obscura figura de Eriacutenia Na suacuteplica a palavra se faz silecircncio eacute o corpo que fala sozinho atraveacutes de uma espeacutecie de prostraccedilatildeo cujas significaccedilotildees satildeo muacuteltiplas estado de luto atitude do morto nos infernos do condenado do candidato agrave purificaccedilatildeo ou agrave iniciaccedilatildeo Quando brota a voz tira sua forccedila do comportamento gesticular Todos estes comportamentos sociais satildeo siacutembolos eficazes que agem diretamente em virtude de sua potecircncia proacutepria o gesto da matildee o cetro a oliveira guarnecida com latilde satildeo o espaccedilo central de uma potecircncia religiosa A palavra eacute da mesma ordem como a matildeo que daacute que recebe que toma como o bastatildeo que Κλονίος τε οἵ θ᾽ Ὑρίην ἐνέmicroοντο καὶ Αὐλίδα πετρήεσσαν Σχοῖνόν τε Σκῶλόν τε πολύκνηmicroόν τ᾽ Ἐτεωνόν Θέσπειαν Γραῖάν τε καὶ εὐρύχορον Μυκαλησσόν οἵ τ᾽ ἀmicroφ᾽ Ἅρmicro᾽ ἐνέmicroοντο καὶ Εἰλέσιον καὶ Ἐρυθράς οἵ τ᾽ Ἐλεῶν᾽ εἶχον ἠδ᾽ Ὕλην καὶ Πετεῶνα Ὠκαλέην Μεδεῶνά τ᾽ ἐϋκτίmicroενον πτολίεθρον Κώπας Εὔτρησίν τε πολυτρήρωνά τε Θίσβην οἵ τε Κορώνειαν καὶ ποιήενθ᾽ Ἁλίαρτον οἵ τε Πλάταιαν ἔχον ἠδ᾽ οἳ Γλισᾶντ᾽ ἐνέmicroοντο οἵ θ᾽ Ὑποθήβας εἶχον ἐϋκτίmicroενον πτολίεθρον Ὀγχηστόν θ᾽ ἱερὸν Ποσιδήϊον ἀγλαὸν ἄλσος οἵ τε πολυστάφυλον Ἄρνην ἔχον οἵ τε Μίδειαν Νῖσάν τε ζαθέην Ἀνθηδόνα τ᾽ ἐσχατόωσαν τῶν microὲν πεντήκοντα νέες κίον ἐν δὲ ἑκάστῃ κοῦροι Βοιωτῶν ἑκατὸν καὶ εἴκοσι βαῖνον οἳ δ᾽ Ἀσπληδόνα ναῖον ἰδ᾽ Ὀρχοmicroενὸν Μινύειον τῶν ἦρχ᾽ Ἀσκάλαφος καὶ Ἰάλmicroενος υἷες Ἄρηος οὓς τέκεν Ἀστυόχη δόmicroῳ Ἄκτορος Ἀζεΐδαο παρθένος αἰδοίη ὑπερώϊον εἰσαναβᾶσα Ἄρηϊ κρατερῷ ὃ δέ οἱ παρελέξατο λάθρῃ τοῖς δὲ τριήκοντα γλαφυραὶ νέες ἐστιχόωντο Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos 311 No grego o jogo entres esses termos eacute bem perceptiacutevel ldquoἔσπετε νῦν microοι Μοῦσαι Ὀλύmicroπια δώmicroατ᾽ ἔχουσαι ὑmicroεῖς γὰρ θεαί ἐστε πάρεστέ τε ἴστέ τε πάντα ἡmicroεῖς δὲ κλέος οἶον ἀκούοmicroεν οὐδέ τι ἴδmicroεν οἵ τινες ἡγεmicroόνες ∆αναῶν καὶ κοίρανοι ἦσανrdquo 312 Atraveacutes do canto e danccedila ou seja entre a voz (focirclegoalma) e o movimento do corpo (mundo sensiacutevel) Na sequecircncia veremos que esse importante detalhe tambeacutem natildeo passou despercebido aos olhos de Marcel Detienne em ldquoOs mestres da verdade na Greacutecia arcaicardquo No quarto capiacutetulo (A ambiguidade da palavra) ele expotildee uma anaacutelise que reforccedila o que foi dito por noacutes anteriormente 313 Νῦν (nun) significa ldquoagorardquo (adveacuterbio temporal) e o ldquotempo presenterdquo
72
afirma o poder como os gestos de imprecaccedilatildeo ela eacute uma forccedila religiosa que age em virtude de sua proacutepria eficaacutecia A palavra que o adivinho o poeta e o rei de justiccedila pronunciam natildeo consiste em algo fundamentalmente diferente da proclamaccedilatildeo do vingador ou das imprecaccedilotildees de um moribundo dirigidas a seus assassinos Eacute o mesmo tipo de palavra maacutegico-religiosa314rdquo
Homero deixa o frenesi guiar as suas palavras que antes mesmo de descrever
o incidente que indica o nuacutemero de naus que atacaram Troacuteia apresenta quase
visualmente para noacutes uma evocaccedilatildeo315 uma prece que parece ser algo de praxe
entre os antigos aedos316 que tem o poder de materializar essas forccedilas divinas no
mundo humano Esse ritual indica a relaccedilatildeo religiosa que pode ter nascido apoacutes o
primeiro espanto diante da grandiosidade da phyacutesis que lhe trouxe a primeira
verdade aos homens a inteligiacutevel fronteira entre o mundo dos mortais e imortais
O conteuacutedo dessa experiecircncia eacute transmitido de modo equacircnime que passa a ser
reconhecido entre todos os membros da comunidade pelo encantamento dos versos
do poeta que era considerado entre seus pares como um artiacutefice divino Como foi
exposto por Marcel Detienne anteriormente essa palavra ganha consistecircncia no
diaacutelogo estabelecido com o corpo que eacute o receptaacuteculo sensiacutevel para a manifestaccedilatildeo
de toda ordem divina sobre o mundo humano317 Toda beleza harmocircnica da voz seraacute
simultaneamente manifesta no ritmo do gestual corporal da danccedila ambas atividades
formam o primor do mais alto valor da cultura helecircnica que se manteve ativa mesmo
depois do decliacutenio do teatro na antiguidade
314 Vide DETIENNE Marcel ldquoOs mestres da verdade na Greacutecia Arcaicardquo Trad Andreacutea Daher Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988 Cap IV (Ambiguidade da Palavra) pag 33 315 Significa literalmente chamar para fora Enquanto que invocaccedilatildeo eacute o contraacuterio ou seja chamar os deuses para dentro Ambos os termos vecircm do termo latino ldquovocarerdquo (chamar) 316 Vide a Teogonia de Hesiacuteodo v 22-34 e o seguinte artigo SOLMSEN F ldquoThe gift of speech in Homer e Hesiodrdquo in Transactions of the american philological association 1954 317 Mais um ponto de convergecircncia ndash ou mera coincidecircncia - entre o pensamento miacutetico-poeacutetico e filosoacutefico A relaccedilatildeo entre essas duas instacircncias pode ser encontrada nos fragmentos de pitagoacutericos como Alcmeacuteon (DK 24 B4) Empeacutedocles (DK 31B17) e no Timeu de Platatildeo (34 c) aos poucos vamos coletando e expondo esses indiacutecios que demostram o diaacutelogo profiacutecuo entre a filosofia e a poesia na antiguidade
73
43 Mito accedilatildeo e verdade
A arte do bem falar era algo essencial na formaccedilatildeo dos homens responsaacuteveis
pela atividade poliacutetica A excelecircncia entre o falar e o fazer era respaldada no modelo
heroico fornecido pela poesia homeacuterica O valor de verdade e honestidade do
orador era forjado pelos seus grandes feitos que eram imortalizados pelos aedos e
reconhecidos por todos os membros da comunidade Nesse caso a guerra318 era o
espaccedilo que fornecia ao homem da realeza o direito de falar e ser respeitado por
todos os gregos Mas esse direito soacute era concedido atraveacutes das conquistas oriunda
dos campos de batalhas no qual cada vitoacuteria era a ratificaccedilatildeo do seu parentesco
divino319 e que fornecia ao mesmo tempo a justificaccedilatildeo necessaacuteria para manter a
sua respectiva soberania poliacutetica Nesse sentido eacute possiacutevel encontrarmos o embriatildeo
para a noccedilatildeo que o filoacutesofo italiano Giambattista Vico vai nomear de verum
factum320 e que de modo conceitual foi aplicada na antiguidade por pensadores de
diferentes correntes como Xenoacutefanes321 e Aristoacuteteles322 Ambos cada um ao seu
318 No proacuteximo capiacutetulo vamos apresentar algumas consideraccedilotildees sobre essa questatildeo 319 Atraveacutes das vitoacuterias e dos belos feitos Os jogos oliacutempicos por exemplo eacute uma praacutetica que manteacutem acesa essa moral heroica que podemos encontrar na pedagogia homeacuterica Todos os esportes carregam a essecircncia agoniacutestica que sempre foi exaltada como maacuteximo valor pela cultura grega na antiguidade Nesse sentido as Oliacutempiadas tambeacutem desempenhavam uma funccedilatildeo pedagoacutegica que servia para incutir essa moral guerreira Posteriormente voltaremos a falar sobre essa questatildeo neste presente capiacutetulo 320 Essa importante expressatildeo viquiana surgiu a partir do estudo do desenvolvimento de algumas culturas da antiguidade Para Vico a accedilatildeo eacute uma parte da razatildeo e portanto depende essencialmente da certeza da manifestaccedilatildeo do seu agente Ou seja a verdade eacute uma conversatildeo entre razatildeo accedilatildeo e efetivaccedilatildeo Esse eacute o seu criteacuterio de verdade O seu objetivo epistemoloacutegico e hermenecircutico eacute deslocar a esfera da accedilatildeo para o acircmbito conceitual Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura dos seguintes livros ldquoDe Antiquiacutessima Italorum Sapientiardquo (A Antiga Sabedoria dos Italianos) e ldquoScienza Nuovardquo (Ciecircncia Nova) 321 Xenoacutefanes de Coacutefon elegias (DK 21 B1 Ateneu X 462 c) (ldquoἀλλ᾿ εἰκῆι microάλα τοῦτο νοmicroίζεται οὐδὲ δίκαιον προκρίνειν ώmicroην τῆς ἀγαθῆς σοφίης οὔτε γὰρ εἰ πύκτης ἀγαθὸς λαοῖσι microετείη οὔτ᾿ εἰ πενταθλεῖν οὔτε παλαισmicroοσύνην οὐδὲ microὲν εἰ ταχυτῆτι ποδῶν τόπερ ἐστὶ πρότιmicroον ῥώmicroης ὅσσ᾿ ἀνδρῶν ἔργ᾿ ἐν ἀγῶνι πέλει τοὔνεκεν ἂν δὴ microᾶλλον ἐν εὐνοmicroίηι πόλις εἴη) ldquoLogo nem havendo entre o povo um bom pugilista nem havendo um bom no pentatlo nem no pugilato ou pela velocidade dos peacutes que mais pelo vigor fiacutesico merece honra entre as accedilotildees dos homens nos jogos natildeo eacute por isso que a cidade viveria em uma bela ordemrdquo nossa traduccedilatildeo 322 Vide Aristoacuteteles Eacutetica a Nicocircmaco (Livro VI 1139) (ldquoἕν τι microέρος τοῦ λόγον ἔχοντος ληπτέον ἄρ᾽ ἑκατέρου τούτων τίς ἡ βελτίστη ἕξις αὕτη γὰρ ἀρετὴ ἑκατέρου ἡ δ᾽ ἀρετὴ πρὸς τὸ ἔργον τὸ οἰκεῖον τρία δή ἐστιν ἐν τῇ ψυχῇ τὰ κύρια πράξεως καὶ ἀληθείας αἴσθησις νοῦς ὄρεξις τούτων δ᾽ ἡ αἴσθησις οὐδεmicroιᾶς ἀρχὴ πράξεως δῆλον δὲ τῷ τὰ θηρία αἴσθησιν microὲν ἔχειν πράξεως δὲ microὴ κοινωνεῖν ἔστι δ᾽ ὅπερ ἐν διανοίᾳ κατάφασις καὶ ἀπόφασις τοῦτ᾽ ἐν ὀρέξει δίωξις καὶ φυγή ὥστ᾽ ἐπειδὴ ἡ ἠθικὴ ἀρετὴ ἕξις προαιρετική ἡ δὲ προαίρεσις ὄρεξις βουλευτική δεῖ διὰ ταῦτα microὲν τόν τε λόγον ἀληθῆ εἶναι καὶ τὴν ὄρεξιν ὀρθήν εἴπερ ἡ προαίρεσις σπουδαία καὶ τὰ αὐτὰ τὸν microὲν φάναι τὴν δὲ διώκειν αὕτη microὲν οὖν ἡ διάνοια καὶ ἡ ἀλήθεια πρακτική τῆς δὲ θεωρητικῆς διανοίας καὶ microὴ πρακτικῆς microηδὲ ποιητικῆς τὸ εὖ καὶ κακῶς τἀληθές ἐστι καὶ ψεῦδος τοῦτο γάρ ἐστι παντὸς
74
modo refletem esse importante traccedilo do ideal de formaccedilatildeo do homem antigo que
se faz na efetivaccedilatildeo de suas accedilotildees no mundo323 atraveacutes da linguagem
O termo que eacute utilizado pelo poeta para descrever esse processo comunicativo
entre os antigos estaacute contido nessa passagem que pertence ao segundo livro da
Iliacuteada Nela o poeta emprega o verbo mytheacuteomai324 para o ato de fala325 que conduz
essa experiecircncia original da linguagem no qual se fundamenta toda a tradiccedilatildeo oral
Dentro dessa mesma passagem podemos tambeacutem notar que essa accedilatildeo estaacute associada
de modo reciacuteproco agrave audiccedilatildeo326 nomenclatura327 conhecimento328 e gloacuteria329 A
proximidade relacional entre esses termos sugere que esse conjunto terminoloacutegico
forma a imagem da faculdade de criaccedilatildeo330 e expressatildeo que eacute amparada pela forccedila
divina de Mnemosyne a deusa da memoacuteria331 responsaacutevel por guardar o
διανοητικοῦ ἔργον τοῦ δὲ πρακτικοῦ καὶ διανοητικοῦ ἀλήθεια ὁmicroολόγως ἔχουσα τῇ ὀρέξει τῇ ὀρθῇ πράξεως microὲν οὖν ἀρχὴ προαίρεσιςmdashὅθεν ἡ κίνησις ἀλλ᾽ οὐχ οὗ ἕνεκαmdashπροαιρέσεως δὲ ὄρεξις καὶ λόγος ὁ ἕνεκά τινοςrdquo) ldquoSatildeo trecircs os itens na alma que controlam a accedilatildeo e a verdade sensaccedilatildeo inteligecircncia e desejo Entre eles a sensaccedilatildeo natildeo eacute princiacutepio de accedilatildeo alguma como eacute evidente pelo fato de que os animais tecircm sensaccedilatildeo mas natildeo tecircm parte na accedilatildeo Aquilo que no pensamento eacute afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo no desejo eacute procurar ou evitar Consequentemente dado que a virtude do caraacuteter eacute uma habilitaccedilatildeo relativa ao propoacutesito e dado que o propoacutesito eacute um desejo deliberado eacute preciso por isso que o raciociacutenio seja verdadeiro e que o desejo seja correto ndash se o propoacutesito for virtuoso ndash e que o raciociacutenio afirme as mesmas coisas que o desejo procura Eacute nisso pois que consiste o pensamento realizador de accedilatildeo e a verdade realizadora de accedilatildeo Do pensamento teoacuterico isto eacute que natildeo leva nem agrave accedilatildeo nem agrave produccedilatildeo a boa e a maacute condiccedilatildeo consistem no verdadeiro e no falso (pois eacute essa a funccedilatildeo de toda a parte pensante) Mas da parte pensante que produz accedilatildeo a boa condiccedilatildeo consiste na verdade em acordo com o desejo corretordquo) Traduccedilatildeo de Lucas Angioni 323 No discurso fuacutenebre de Peacutericles que se encontra na histoacuteria da guerra do Peloponeso de Tuciacutedides (II 41 1-2) o grande estadista ateniense afirma que a ldquoverdade estaacute na accedilatildeotrabalhordquo (ἔργων ἐστὶν ἀλήθειαergon estiacuten aleacutetheia) Nessa expressatildeo podemos destacar a relaccedilatildeo entre aleacutetheia (natildeo esquecimentoverdade) e ergon (accedilatildeotrabalhofazer) que vem do projeto pedagoacutegico homeacuterico e hesiodico Nesse sentido a retoacuterica polida de Peacutericles - que se projeta como uma fala universal- estava bem atenta aos diferentes perfis soacutecio-poliacuteticos que ela deveria abranger No proacuteximo capiacutetulo vamos analisar o choque entre esses dois projetos pedagoacutegicos que revela a crise poliacutetica que se instaurou em Atenas apoacutes a queda da realeza micecircnica Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte artigo FACAtildeO E ldquoDemocracia liberdade e poesia a grande revoluccedilatildeo popular de Atenasrdquo Revista IacutetacaUfrj 2015 324 Vide Homero Iliacuteada livro II (v 489) ldquoπληθὺν δ᾽ οὐκ ἂν ἐγὼ microυθήσοmicroαι οὐδ᾽ ὀνοmicroήνωrdquo ldquoPlethyn d ouk an ego mythesomai oud onomenordquo posteriormente voltaremos a analisar essa importante evidecircncia da tradiccedilatildeo oral na literatura antiga 325 Vide o emprego do termo (γλῶσσαιglossai) liacutenguas no verso 489 326 No emprego do verbo ἀκούοmicroενakouacutemen para o ato de ouvir 327 Para o ato de nomear (ὀνοmicroήνωonomeacuteno) Dentro desse ato como vimos nas consideraccedilotildees sobre o Craacutetilo de Platatildeo subtende-se que o poeta tambeacutem eacute uma figura responsaacutevel pela nominaccedilatildeo das coisas dentro desse contexto histoacuterico 328 No emprego do verbo (ἴστέisteacute) que eacute oriundo do verbo (οἶδαoida) para o ato de conhecer 329 O termo (κλέοςkleacuteos) gloacuteria que nesse contexto oral carrega tambeacutem o sentido de ouvir e de transmitir algum relato (mito) Vide Lidell amp Scott Posteriormente falaremos mais sobre esse ponto 330 ΠοίησιςPoieacutesis 331 ΜνηmicroοσύνηMnemosyne a divindade que personifica a memoacuteria e matildee das nove musas
75
conhecimento de todas as coisas Dentro dessa tradiccedilatildeo mito-poeacutetica que apresenta
a genealogia dos deuses332 eacute possiacutevel encontrarmos a configuraccedilatildeo natildeo apenas da
ordem divina mas da proacutepria estruturaccedilatildeo e desenvolvimento da linguagem e da
racionalidade humana que se expressa atraveacutes da oralidade
Nesse contexto o mito que estaacute contido no radical desse verbo eacute algo
essencial para a organizaccedilatildeo cultural helecircnica sob as leis natildeo escritas333 dos deuses
que se comunicam com os mortais atraveacutes da fala inspirada334 Em seu livro sobre
o conceito de Phyacutesis para os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Gerard Naddaff (NADAFF
1992) apresenta uma hipoacutetese muito interessante sobre a utilidade dos mitos para
os gregos Aleacutem de todos os aspectos mnemocircnicos que ressaltamos na nossa tese
ele acrescenta mais trecircs caracteriacutesticas que aceitamos como razoaacuteveis para a
importacircncia do uso desse meio de expressatildeo para os gregos vejamos a seguir
anthropogocircnico335 sociogocircnico336 e politogocircnico337 Esses trecircs pontos satildeo oriundos
das cosmogonias miacuteticas que foram a base conceitual para os primeiros filoacutesofos
Para o professor lusitano Eudoro de Sousa (SOUSA 1984) essa experiecircncia da
linguagem eacute algo excepcional que evidencia o entrelaccedilamento do homem com a
Natureza Ela assinala o exato instante que a observaccedilatildeo desses fenocircmenos naturais
passa a ocupar o seu pensamento de modo integrado e reflexivo Logo o ato de
criaccedilatildeo e expressatildeo ganham forma simultaneamente quando o mundo humano se
expande atraveacutes das inuacutemeras faces da poesia E eacute nesse interstiacutecio que ele se depara
332 Ou Teogonia Vide o livro homocircnimo de Hesiodo 333 Vide a seguir passagem de Antiacutegona de Soacutefocles onde eacute empregada essa expressatildeo que revela uma crise entre as leis humanas e divinas entre phyacutesis e nomos a partir do verso 455 (ὥστ᾽ ἄγραπτα κἀσφαλῆ θεῶν νόmicroιmicroα δύνασθαι θνητὸν ὄνθ᾽ ὑπερδραmicroεῖνoacutest agrapta kasphaleacute teon noema dynasthai) 334 Vide o diaacutelogo Iacuteon de Platatildeo (533d534e) nessa obra eacute exposta a imagem do poeta inspirado que vem dessa tradiccedilatildeo oral mais antiga Eacute importante ressaltar que durante o periacuteodo claacutessico a funccedilatildeo poeacutetica foi passando por diversas transformaccedilotildees A criacutetica de Platatildeo eacute direcionada agrave poesia que eacute construiacuteda atraveacutes de uma techneacute Essa corrente teria sido iniciada com o poeta liacuterico Simocircnides de Ceos que cobrava por seus versos e defendia o caraacuteter artificial da palavra poacuteetica Diante de uma concepccedilatildeo que foi muito difundida no periacuteodo claacutessico atraveacutes das obras de Phiacutedias a pintura era considerada como uma ilusatildeo ou coacutepia da realidade Para ele a pintura eacute poesia silenciosa enquanto que a poesia eacute a pintura que fala Notem que haacute uma aproximaccedilatildeo intencional entre os olhos e ouvidos Dois importantes sentidos que representam por um lado a tradiccedilatildeo oral e por outro o momento da reinserccedilatildeo da escrita e do auge das artes plaacutesticas Simocircnides pode tambeacutem ter contribuiacutedo para o surgimento do movimento sofiacutestico em Atenas pois para muitos autores antigos como Plutarco ele teria influenciado Goacutergias Para mais informaccedilotildees vide o seguinte livro Sofistas ldquoTestimonios y fragmentosrdquo Trad Antonio Melero Bellido Madrid Gredos 1996 335 Relativo agraves criaccedilotildees humanas 336 Relativo agrave organizaccedilatildeo das sociedades humanas 337 Relativo agraves praacuteticas soacutecio-poliacuteticas
76
com o drama original que obriga a agir de modo incisivo para poder afirmar a sua
proacutepria existecircncia nesse mundo
Como foi exposto no iniacutecio desse capiacutetulo eacute inegaacutevel que a maioria das
culturas antigas levantaram inuacutemeras questotildees que se expressam de diferentes
formas nessa importante praacutetica coletiva oral pois o homem eacute um ser movido por
esse anseio de conhecer o mundo que lhe abarca Esse fenocircmeno investigativo natildeo
eacute um privileacutegio exclusivo do advento da escrita E esses registros natildeo podem ser
interpretados unicamente como expressotildees de praacuteticas ritualiacutesticas no acircmbito da
religiatildeo Aliaacutes o professor Eudoro de Sousa (SOUSA 1984) ressalta que a
mitologia natildeo deve ser compreendida como algo encerrada em si mesma Logo a
religiatildeo natildeo pode ser concebida como a sua essecircncia mas com um dos seus
inuacutemeros acidentes338 Dentro da tradiccedilatildeo oral o aedo por um lado eacute o
instrumento vivo que estabelece a conexatildeo com as forccedilas divinas e por outro atua
como um legislador e pedagogo agrave serviccedilo da realeza Ou seja ele pertence agrave classe
aristocraacutetica que utiliza os mitos entoados natildeo apenas para o acircmbito religioso mas
para a fundamentaccedilatildeo poliacutetica juriacutedica pedagoacutegica e social do seu povo Tendo
em vista esse fato o conteuacutedo miacutetico desempenha uma ampla gama de funccedilotildees de
acordo com cada contexto histoacuterico Portanto essa eacute a conclusatildeo que chegamos
apoacutes o levantamento desses estudos Dentro de toda tradiccedilatildeo oral o mito aparece
como uma expressatildeo central na construccedilatildeo cultural nos primoacuterdios da formaccedilatildeo da
mentalidade helecircnica
Em geral todas as civilizaccedilotildees antigas utilizavam esse recurso com o mesmo
objetivo339 de estruturaccedilatildeo cultural As primeiras cosmogonias por exemplo
carregavam essas caracteriacutesticas apresentadas que datildeo o fundamento necessaacuterio
para a tese defendida pelo helenista americano Naddaff Como apresentamos
anteriormente o mito tambeacutem desempenhava a funccedilatildeo de atender as demandas
soacutecio-poliacuteticas de cada comunidade helecircnica A organizaccedilatildeo e o equiliacutebrio da
antiga sociedade micecircnica por exemplo estava respaldada nos conteuacutedos que eram
338 Parafraseando Aristoacuteteles que diz ldquoo ser se diz de muitas maneirasrdquo podemos afirmar ldquoo mito se diz de muitas maneirasrdquo Para esse caso a conceituaccedilatildeo de substacircncia aristoteacutelica nos ajuda a compreender esse ponto que o professor Eudoro de Sousa estaacute destacando nessa passagem Para mais informaccedilotildees indicamos a leitura do seguinte livro SOUSA E ldquoMitologiardquo Lisboa Guimaratildees 1984 339 Vide o iniacutecio desse presente capiacutetulo e os relatos de Heroacutedoto sobre a sociedade egiacutepcia no seu livro chamado ldquoHistoacuteriasrdquo (Ἰστορἴαι historiai)
77
repassados e mantidos em versos nos movimentos da danccedila dos ritos e nas
inuacutemeras obras esculpidas em maacutermore e pedra que serviam para facilitar a
memorizaccedilatildeo e efetivaccedilatildeo do controle poliacutetico pelo apelo auditivo e visual e que
culminava na heranccedila cultural de mais alto valor que deveria ser transmitida agraves
proacuteximas geraccedilotildees340 Logo todas as narrativas miacuteticas forneciam a mateacuteria prima
da poesia e da arte tradicional que era difundida e protegida atraveacutes dos ritos e
obrigaccedilotildees controladas pela aristocracia real E mesmo com a queda da realeza
micecircnica (VERNANT 1962) e as inuacutemeras transformaccedilotildees que ocorreram durante
esse momento de transiccedilatildeo algumas dessas praacuteticas lituacutergicas341 se mantiveram
durante o periacuteodo homeacuterico ateacute depois do claacutessico342
340 Para essa questatildeo vide o primeiro capiacutetulo do seguinte livro WALDSTEIN C ldquoEssays on the Art of Pheidiasrdquo Cambridge university press New York 1885 341 Λειτουργίαleitourgia O vocaacutebulo Liturgia em grego formado pelas raiacutezes (leit- que vem de laoacutes povo) e - urgia (trabalho ofiacutecio) significa serviccedilo ou trabalho puacuteblico Para mais informaccedilotildees sobre esse vocaacutebulo vide o dicionaacuterio de Lidell amp Scott λειτουργ-ία ἡ anterior Att λητ- IG 22114014 (386 BC) - em Atenas e em outros lugares (por exemplo Siphnos Isoc 1936 Mitylene Antipho 577) serviccedilo puacuteblico executado por cidadatildeos particulares agraves suas proacuteprias custas E 442 Lys 2119 etc λ ἐγκύκλιοι ordinaacuterias isto eacute anuais liturgias D 2021 λειτουργίαι microετοίκων opp πολιτικαἰ ib 18 II qualquer serviccedilo puacuteblico ou trabalho Phib 1784 (iii BC) etc in ἐπὶ τῶν λειτουργιῶν τεταγmicroένος em um exeacutercito o oficial que superintendia os operaacuterios carpinteiros etc Plb 3934 οἱ ἐπί τινα λ Idπεσταλmicroένοι Id 10165 geralmente dever militar UPZ 1525 (pl Ii BC) 2 geralmente qualquer serviccedilo ou funccedilatildeo ἡ πρώτη φανερὰ τοῖς ζῴοις λ διὰ τοῦ στόmicroατος οὖσα Arist PA 650a9 cf 674b9 20 IA 711b30 φιλικὴν ταύτην λ Luc Sal 6 3 serviccedilo ministraccedilatildeo ajuda 2 EpCor 912 Ep Phil 230 III serviccedilo puacuteblico dos deuses αἱ πρὸς τοὺς θεοὺς λ Arist Pol 1330a13 αἱ τῶν θεῶν θεραπεῖαι καὶ λ DS 121 cf UPZ 1717 (ii BC) PTeb 30230 (i AD) etc o serviccedilo ou ministeacuterio dos sacerdotes LXX Nu 825 Ev Luc 123 342 Para Vernant apoacutes a decadecircncia micecircnica ocorreram inuacutemeras transformaccedilotildees no modo de vida grego Entre elas estaacute a recusa da opulecircncia dos antigos funerais dos membros da antiga aristocracia real pois essa praacutetica produzia uma sensaccedilatildeo de diferenccedila social entre as pessoas ao fomentar inveja e desavenccedilas desnecessaacuterias que ameaccedilavam a harmonia social Logo esse indiacutecio pode ter sido um dos fatores para um novo tipo de organizaccedilatildeo poliacutetica que estimula a agoniacutestica ateacute mesmo no campo verbal De qualquer modo o poder da palavra como algumas praacuteticas sobretudo religiosas se mantiveram mesmo depois da queda da monarquia micecircnica Para mais informaccedilotildees vide o IV capiacutetulo (O universo espiritual da polis) do seguinte livro VERNANT Jean-Pierre ldquoAs origens do pensamento gregordquo Trad Isis Borges B da Fonseca 11 ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2000
78
44 Mito e religiatildeo
Segundo o cientista poliacutetico francecircs Durkheim (DURKHEIM1912) as mais
elementares construccedilotildees mitoloacutegicas satildeo produtos que recobrem um fundo de
crenccedilas que constitui a base que auxiliou a edificaccedilatildeo dos mais diversos sistemas
religiosos na antiguidade No caso grego haacute uma enorme dificuldade de
entendermos essa questatildeo com o nosso olhar que eacute marcado pela nossa tradiccedilatildeo
judaico-cristatilde Eacute inegaacutevel que a experiecircncia mito-poeacutetica esteja intimamente
relacionada com a religiatildeo mas o nosso grande problema eacute aceitar uma ordem de
valor na qual o mito estaria subordinado a ele com esse uacutenico propoacutesito O primeiro
ldquoespantordquo que todos os antigos apontam para o despertar humano e que culminou
no nascimento da proacutepria Filosofia tambeacutem pode ter sido a origem dessa separaccedilatildeo
entre duas instacircncias que teria sido responsaacutevel pela origem da Religiatildeo Nesse
caso a linha entre Religiatildeo e Filosofia eacute mais tecircnue do que podemos imaginar De
qualquer modo um ponto que todos os helenistas - independentemente de suas
teorias - estatildeo de acordo eacute no caso grego a experiecircncia mito-poeacutetica estaacute totalmente
relacionada com essas criaccedilotildees do pensamento humano que surgiram frente agrave
complexidade e grandiosidade da Phyacutesis Desse modo nos deparamos com mais
uma evidecircncia que reforccedila a tese apresentada por Naddaff anteriormente Pois o
domiacutenio do sagrado como um segredo insondaacutevel foi o objeto de desejo tanto dos
aedos e quanto dos primeiros filoacutesofos Cada um a seu modo se colocaram como os
responsaacuteveis por determinar esse limite entre o mundo dos mortais e imortais
Logo a tradiccedilatildeo miacutetica natildeo pode ser interpretada apenas associada agraves praacuteticas
religiosas primitivas Por tanto se faz necessaacuteria uma abordagem que possa
contemplar esse outro aspecto que apresentamos a partir de uma nova perspectiva
que estabeleccedila o seu lugar de valor como uma consistente praacutetica sapiencial343 que
343 Vide os fragmentos da poesia cosmoloacutegica mais antiga de Orfeu Museo e Epimecircnides curiosamente esses trecircs satildeo considerados na antiguidade como filoacutesofos e poetas Para os dois primeiros em alguns fragmentos encontramos o termo aedos (ἀοιδός) para classificaacute-los Esse eacute um importante indiacutecio que aponta a relaccedilatildeo entre a praacutetica sapiencial primitiva e a poesia oral O ponto em comum entre esses aspectos que podemos provisoriamente destacar eacute o papel desempenhado pela muacutesica que flutua entre o caraacuteter miacutestico e filosoacutefico Posteriormente pretendemos expor algumas consideraccedilotildees sobre esse ponto No caso de Epimecircnides que fecha essa
79
foi responsaacutevel por ampliar o processo de subjetividade coletiva helecircnica durante
esse momento histoacuterico Mesmo com essas ressalvas temos a consciecircncia de que
haacute ainda uma forte resistecircncia pela tradiccedilatildeo de especialistas que estudam essa
questatildeo pois muitos pesquisadores hesitam em aceitar uma nova abordagem que
tente encontrar a razatildeo do uso do conteuacutedo mito-poeacutetico em outras esferas da
sociedade grega A nossa intenccedilatildeo eacute de explorar essa via que foi esquecida para
uma atualizaccedilatildeo exegeacutetica em torno dessas questotildees que ainda carecem de razoaacuteveis
esclarecimentos
No caso da religiatildeo esse problema ainda eacute mais complexo pois mesmo com
a queda da realeza micecircnica e do periacuteodo de laicizaccedilatildeo344 que ganhou espaccedilo na
constituiccedilatildeo das primeiras polis com o advento da Democracia na Greacutecia o
fenocircmeno religioso ainda exercia uma profunda influecircncia na mentalidade coletiva
helecircnica345 Contudo haacute uma pergunta que precisa ser respondida como esse fato
foi possiacutevel A uacutenica teoria que poderiacuteamos utilizar para nos aproximar de uma
hipoacutetese aceitaacutevel seria uma concepccedilatildeo de religiatildeo que natildeo fosse imutaacutevel e
acompanhasse as diversas transformaccedilotildees soacutecio-poliacuteticas que ocorreram na Greacutecia
E nessa direccedilatildeo temos uma importante pista que talvez possa nos ajudar a
compreender esse problema Para Louis Gernet (GERNET 1968) por exemplo o
culto dionisiacuteaco346 parece ter sido uma praacutetica que natildeo pertencia a religiatildeo oficial e
triacuteade de filoacutesofos poetas miacutesticos vale lembrar uma impressionante histoacuteria que se encontra no livro de Dioacutegenes de Laeacutercio sobre a vida de Soacutelon (DL livro I) no qual narra que o poeta miacutestico foi chamado para extirpar uma terriacutevel praga em solo ateniense Independentemente do grau de veracidade o detalhe que destacamos eacute a sua atuaccedilatildeo desses saacutebios no campo social que se coaduna com o papel desempenhado pelos antigos aedos na antiga realeza micecircnica Para mais informaccedilotildees recomendamos a leitura do primeiro capiacutetulo do seguinte livro DIELS Hermann e KRANZ Walther ldquoI Presocraticirdquo 3a ed Trad Giovanni Reale et al Milano Bompiani 2006 344 Ou processo de desconstruccedilatildeo da religiatildeo vigente Eacute notoacuterio que mesmo com o surgimento do regime democraacutetico houve uma abertura e transformaccedilatildeo dos antigos ritos pois eles nunca deixaram de existir na mentalidade grega Talvez fosse necessaacuterio reformular essa questatildeo a partir do sincretismo que eacute um traccedilo marcante da proacutepria formaccedilatildeo cultural grega que dialoga com a esfera poliacutetica eacutetica educativa e juriacutedica helecircnica 345 Haja vista os inuacutemeros processos de impiedade que foi noticiado em diversos relatos antigos Os filoacutesofos sofistas e poliacuteticos eram as figuras que mais sofriam em decorrecircncia desse problema Curiosamente o periacuteodo que esses intelectuais foram mais perseguidos foi o democraacutetico Logo eacute importante levar esse detalhe em consideraccedilatildeo na interpretaccedilatildeo dos diaacutelogos de Platatildeo sobretudo quando o filoacutesofo-poeta tece as suas duras criacuteticas ao regime democraacutetico (Vide a Repuacuteblica e as Leis) que foi responsaacutevel por condenar agrave morte o seu mestre Soacutecrates A necessidade de uma grande reforma poliacutetica e pedagoacutegica em Atenas surgiu da anaacutelise histoacuterica das organizaccedilotildees poliacuteticas gregas 346 E aqui poderiacuteamos citar o exemplo da religiatildeo oacuterfica e da confraria pitagoacuterica
80
tradicional da antiga aristocracia grega347 Sendo de origem oriental e campesina
posteriormente foi absorvido para o seio dos rituais tradicionais controlados pela
aristocracia para fins administrativos Esse detalhe natildeo pode ser ignorado pois
revela o caraacuteter plaacutestico das praacuteticas religiosas helecircnicas Eacute provaacutevel que esse tipo
de fenocircmeno fosse moldado a partir de fortes pressotildees sociais e poliacuteticas de origem
interna e externa por toda extensatildeo territorial grega348 Curiosamente a experiecircncia
miacutetica tambeacutem parece ter sofrido diversas transformaccedilotildees para atender outras
demandas que surgiram no interior da vida helecircnica Por conseguinte eacute possiacutevel
que haja relaccedilatildeo entre esses indiacutecios mas essa pesquisa nos faria tomar um caminho
que nos distanciaria demais do presente objetivo349
De qualquer modo eacute importante ressaltar que para alguns antropoacutelogos como
Leacutevi-Strauss (STRAUSS 1964) o mito eacute um termocircmetro que podemos utilizar para
medir essas mudanccedilas que acompanharam a histoacuteria e o processo subjetivo coletivo
de qualquer povo Eacute notoacuterio que a formaccedilatildeo cultural helecircnica foi marcada por outros
povos egressos mais antigos como os grupos eacutetnicos da Europa e da Aacutesia que
ficaram conhecidos como indo-europeus Logo para se fazer um estudo minucioso
347 Segundo Louis Gernet o ritual dionisiacuteaco natildeo estaacute em hipoacutetese alguma relacionado com a realeza e nem com o antepassado das famiacutelias nobres ou com a formaccedilatildeo das cidades apoacutes o decliacutenio da realeza micecircnica Essa praacutetica religiosa teve origem entre os primeiros agricultores que viviam distante do palaacutecio e da parte territorial mais nobre da Greacutecia A Anthesteria (Ἀνθεστήρια Anthestếria de ἄνθος anthos flor portanto a festa das flores) eacute uma antiga festividade grega celebrada em honra do deus Dioniacutesio Esse evento de origem camponesa estaacute entre as mais tiacutepicas que foram preservadas na antiguidade e que aparece no calendaacuterio de Atenas e vaacuterias outras cidades Elas acontecem do deacutecimo primeiro ao deacutecimo terceiro dia do mecircs de anestesia o oitavo mecircs do calendaacuterio aacutetico (o uacuteltimo mecircs do ano antes de 1ordm de marccedilo comeccedilando o ano novo e o periacuteodo de guerra) correspondendo no calendaacuterio gregoriano no final de fevereiro e no iniacutecio de marccedilo Essas caracteriacutesticas alimentam a hipoacutetese da influecircncia estrangeira que foi essencial para o sincretismo grego desde o periacuteodo arcaico Para mais informaccedilotildees vide o seguinte livro LOUIS Gernet et ANDREacute Boulanger ldquoLe Geacutenie grec dans la religionrdquo Paris Albin Michel 1970 348 De modo anacrocircnico podemos pensar como ocorreu essa mudanccedila A expansatildeo do cristianismo que aconteceu entre o seacuteculo I e III em Roma que antes era uma cultura pagatilde foi posteriormente aceita como uma religiatildeo oficial atraveacutes de um decreto assinado pelo imperador Constantino Talvez algo similar possa ter acontecido entre os gregos antes da intervenccedilatildeo de Soacutelon Nesse sentido eacute bem provaacutevel que a religiatildeo dionisiacuteaca tenha sido assimilada como uma expressatildeo legiacutetima do estado Mesmo sendo uma divindade antagonista de Apolo Dioniacutesio representa uma forccedila de purificaccedilatildeo que era benfazeja para o cultivo agraacuterio das classes mais baixas Assim podemos concluir que a antiga organizaccedilatildeo poliacutetica administrada pela classe aristocraacutetica sentiu a necessidade de promover essa abertura por algum tipo de crise ou pressatildeo social Eacute importante ressalta por uacuteltimo que por causa do abastecimento agriacutecola oferecido por esses trabalhadores mais humildes a nobreza tenha recuado Para mais informaccedilotildees vide o primeiro capiacutetulo do seguinte livro GERNET Louis ldquoAnthropologie de la Gregravece antiquerdquo preacuteface de Jean-Pierre Vernant Paris Flammarion 1982 349 Para mais informaccedilatildeo sobre essa questatildeo vide os seguintes livros DETIENNE Marcel ldquoA invenccedilatildeo da mitologiardquo Brasiacutelia EDUNB Rio de Janeiro Joseacute Olympio 1992 E VERNANT J P ldquoMito e sociedade na Greacutecia Antigardquo 2ordf ed Rio de Janeiro Joseacute Olympio 1999
81
sobre esse problema seria necessaacuterio analisar esses aspectos em outras culturas orais
antigas a partir de suas respectivas praacuteticas linguiacutesticas350 poliacuteticas religiosas e
artiacutesticas que estejam relacionadas ao uso da mitologia para esses fins Como foi
ressaltado por noacutes anteriormente no iniacutecio desse presente capiacutetulo a tradiccedilatildeo mito-
poeacutetica natildeo pode ser considerada como uma instacircncia independente ou estanque
(GRIMAL 1987) pois ela acompanha todo o processo de desenvolvimento
humano nos seus mais diferentes contextos de atuaccedilatildeo que atravessa desde da
origem da Religiatildeo ateacute as primeiras praacuteticas sapienciais que foram importantes para
o desenvolvimento da Linguagem Educaccedilatildeo Direito Literatura Arte e Filosofia
no mundo antigo
45 Mito e a voz
Haacute vaacuterios sentidos para esse termo o emprego mais antigo que encontramos
estaacute na poesia homeacuterica como expusemos anteriormente351 e ele estaacute associado ao
nosso ato de fala O mito eacute a palavra que designa o pensamento que se exprime
atraveacutes da liacutengua de modo literal e natural352 Como uma histoacuteria espontacircnea e
350 Sobre esse ponto recomendamos a leitura do seguinte livro BENVENISTE E ldquoLe vocabulaire des institutions indo-europeacuteennes 1 Eacuteconomie parenteacute socieacuteteacute 2 Pouvoir droit religionrdquo Paris Eacuteditions de Minuit 1969 351 Vide Homero Iliacuteada (livro II v 489) 352 Esse eacute o seu sentido originaacuterio que encontramos no dicionaacuterio Lydell amp Scott microῦθος ὁ palavra fala freq em Hom e outros Poetas em sg e pl πος καὶ microῦθος Od 11561 opp ἔργον microύθων τε ῥητῆρ ἔmicroεναι πρηκτῆρά τε ἔργων Il 9443 cf 19242 esp mera palavra microύθοισιν opp ἔγχεϊ 18252 ἔργῳ κοὐκέτι microύθῳ A Pr 1080 (anap) Etc - em relaccedilotildees especiais 2 discurso puacuteblico micro Odνδρεσσι microελήσει Od 1358 microύθοισιν σκολιοῖς Hes Op 194 microύθου ἐπισχεσίη a apresentaccedilatildeo de um fundamento Od 2171 πρὶν ἂν ἀmicroφοῖν micro ἀκούσῃς οὐκ ἂν δικάσαις Ar V 725 microύθοισι κεκάσθαι para ter habilidade na fala Od 7157 3 conversa principalmente em pl 4214 239 etc 4 coisa disse fato mateacuteria microῦθον δέ τοι οὐκ ἐπικεύσω ib 744 τὸν ὄντα micro Enguia 346 ameaccedila comando ἠπείλησεν microῦθον Il 1388 cf 25 1683 cobrar missatildeo 9625 conselho conselho 7358 5 coisa pensamento palavra natildeo dita propoacutesito design 1545 (pl) microύθων οὓς microνηστῆρες ἐνὶ φρεσὶ βυσσοδόmicroευον Od 4676 cf 777 ἔχετ ἐν φρεσὶ microῦθον 15445 5χε σιγῇ micro ἐπίτρεψον δὲ θεοῖσι 19502 cf 11442 mateacuteria θεοῖσι microῦθον ἐπιτρέψαι 22289 microῦθον microυθείσθην τοῦ εἵνεκα λαὸν ἄγειραν o motivo 3140 6 dizendo κατὰ τὸν ἡmicroέτερον micro Pl Epin 980a οὐκ ἐmicroὸς ὁ micro ἀλλ E Fr 484 cf Pl Smp 177a Ligue Lav 56 Ph 1601 Plu 2661a viu proveacuterbio τριγέρων micro τάδε φωνεῖ A Ch 314 (anap) 7 conversa de homens boato ἀγγελίαν τὰν ὁ microέγας micro Sέξει S Aj 226 (lyr) Cf 188 (lyr Pl) E IA 72 relatoacuterio mensagem S Tr 67 (pl) E Ion 1340 II conto histoacuteria narrativa Od 394 4324 S Ant 11 etc em Hom como o λόγος posterior sem distinccedilatildeo de verdadeiro ou falso micro παιδός ou sobre ele Od 11492 na Trageacutedia Ἀκούσει microῦθον ἐν βραχεῖ λόγῳ(χρόνῳ cod M) A Pers 713 microύθων τῶν Λιβυστικῶν Id Pe 1391 em Prosa τὸν εἰκότα micro a mesma histoacuteria como lihood pl Ti 29d prov Μ πώλετο seja de uma histoacuteria que nunca chega ao fim ou de um contado para aqueles que natildeo ouvem Cratin 59 Crates Com 21 pl Th 164d cf R 621b Lg 645b Phlb 14a micro ἐσώθη esse eacute o fim da histoacuteria Phot 2 ficccedilatildeo (opp Λόγος verdade histoacuterica) Pi O 129 (pl) N 723 (pl) Pl Phd 61b Prt 320c 324d etc 3 geralmente ficccedilatildeo micro
82
orgacircnica que natildeo tem a necessidade de verificaccedilatildeo factual353 pois dentro dessa
especiacutefica conjuntura oral o criteacuterio de verdade estava totalmente subordinado agrave
memoacuteria que era validada atraveacutes do desempenho persuasivo do aedo ao revelar
para o mundo a palavra ambiacutegua dos deuses e a accedilatildeo do homem nobre que tinha
alcanccedilado o seu respeito atraveacutes de suas conquistas no campo de batalha atraveacutes da
eacutepica homeacuterica354 Dentro desse contexto esses dois traccedilos eram relacionaacuteveis a
partir do horizonte divino que era o paracircmetro fundamental para a construccedilatildeo
mimeacutetica do horizonte humano355 A expressatildeo dessa ldquoverdaderdquo pode ser obtida
atraveacutes de vaacuterias perspectivas Uma delas que gostariacuteamos de salientar pode ser
fornecida atraveacutes dos jogos Oliacutempicos que nasceu a partir do mito de Heacuteracles356
Phδιοι Phld Po 55 lenda mito Hdt 245 pl R 330d Lg 636c etc ὶ περὶ θεῶν micro Epicur Ep 3p65 U τοὺς micro τοὺς ἐπιχωρίους γέγραφεν SIG 3827 (Delos iii aC) 4 professada obra de ficccedilatildeo histoacuteria infantil faacutebula Pl R 377a das faacutebulas de Esopo Arist Mete 356 b11 5 enredo de uma comeacutedia ou trageacutedia Id Po 1449b5 1450a4 1451a16 III = στάσις Panyas em CollAlex p249 vl em Batr 135 cf microυθιήτης 353 Eacute importante ressaltar que durante o periacuteodo preacute-homeacuterico o poeta ou aedo era o paracircmetro para a noccedilatildeo de verdade que estava associada ao sentido de ldquonatildeo esquecimentordquo Para mais informaccedilotildees vide o segundo capiacutetulo do seguinte livro DETIENNE Marcel ldquoOs mestres da verdade na Greacutecia Arcaicardquo Trad Andreacutea Daher Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988 Cap II (A memoacuteria do Poeta) pag 15 354 Vide Iliacuteada (Livro IX 443 ndash 455) ldquoOacute luminoso Aquiles se de fato tens o retorno na mente se das naus velozes natildeo queres afastar o fogo vorador possuiacutedo de ira como poderei quedar-me sem ti abandonado Peleu domador-de-corceacuteis quando haacute tempo da Ftia te mandou a Agamecircmnon enviou-me contigo eras muito jovem inexperiente ainda da guerra crua e dos debates da aacutegora onde os nobres formam-se Por isso me mandou para que te fizesse na oratoacuteria eminente eficiente nas obras Sem ti natildeo ficaria filho mesmo que um deus desvestir do meu corpo a senescecircncia prometesse e a flor dos anos restituir-me quando deixei - mulheres lindas - a Heacutelade fugindo de meu pai o Ormeniacuteade Amintor com o qual brigara disputando-lhe a platino loura pulcra amante por ele em desfavor da esposa preferida Rogara-me minha matildee que a outra eu possuiacutesse insuflando oacutedio ao velho Coisa que fiz obedecendo Deu-se conta o pairdquo Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos 355 Nas Leis (livro IV 716 c) Platatildeo parte dessa mesma constataccedilatildeo que tambeacutem pode ser encontrada em outras obras como Timeu no qual apresenta uma relaccedilatildeo proporcional entre o homem cidade e cosmos A figura do demiurgo eacute um espelho para o homem pois nessa idealizaccedilatildeo eacute possiacutevel estabelecer a construccedilatildeo de um caminho seguro para encontrar a plenitude existencial tatildeo almejada Curiosamente eacute possiacutevel perceber que esse artificie divino carrega traccedilos humanos (Timeu - 37 c7) que fazem jus aquela passagem biacuteblica encontrada no livro do Gecircnesis (126) que afirma que o homem eacute feito agrave imagem e semelhanccedila de Deus Nesse sentido o filoacutesofo poeta parece retomar e reformular esse ideal da sua linhagem nobre que surgiu antes mesmo do periacuteodo preacute-homeacuterico De um modo geral o seu pensamento sempre dialogou com a tradiccedilatildeo Eacute importante ressaltar que mesmo em sua uacuteltima fase de vida Platatildeo nunca deixou de demonstrar o seu profundo respeito pela tradiccedilatildeo poeacutetica homeacuterica As suas criacuteticas agrave poesia satildeo formuladas a partir do efeito colateral que ela produziu durante o surgimento da Democracia atraveacutes de Simocircnides de Ceos e do surgimento do movimento pedagoacutegico sofiacutestico 356 Eacute importante salientar que para muitos estudiosos havia uma atividade na civilizaccedilatildeo minoica que eacute muito similar aos jogos oliacutempicos pois ela combinava esporte danccedila e atletismo como parte de suas cerimocircnias religiosas puacuteblicas Aleacutem de outros elementos que pretendemos apresentar em momento oportuno como a proacutepria origem mito de Heacuteracles e da sua importacircncia no periacuteodo eacutepico eacute provaacutevel que essas atividades se perpetuaram atraveacutes da tradiccedilatildeo oral apoacutes a queda da civilizaccedilatildeo micecircnica durante o periacuteodo das trevas dos povos remanescentes que ajudaram a formar posteriormente a cultura grega Para mais informaccedilotildees sobre esse ponto gostariacuteamos de recomendar
83
Esse festival foi criado para prestigiar os deuses atraveacutes do ritual que exalta a
lembranccedila dos grandes heroacuteis miacuteticos357 e manter acesa a beleza das accedilotildees desses
homens superiores em astuacutecia inteligecircncia forccedila e coragem Os poetas tinham o
dever de imortalizaacute-los atraveacutes dessas virtudes cardeais Enquanto Homero canta
os feitos de seus heroacuteis a poesia de Piacutendaro de Tebas homenageava a vitoacuteria dos
grandes competidores358 Assim como a poesia esse certame era responsaacutevel por
delimitar a fronteira entre o espaccedilo humano e divino e o espanto359 primordial que
elevou o espiacuterito humano atraveacutes da accedilatildeo bela que construiu uma forma de
afirmaccedilatildeo existencial a partir do reconhecimento da nossa mortalidade A
excelecircncia360 e a sabedoria praacutetica361 eram os traccedilos de uma pedagogia362 que tinha
como objetivo fornecer ao indiviacuteduo os meios para alcanccedilar a sua plenitude
existencial363 atraveacutes do respeito e desenvolvimento de suas aptidotildees que deveriam
estar agrave serviccedilo do bem maacuteximo da comunidade364 Essa bela accedilatildeo deveria ser
alcanccedilada no acircmbito da guerra poliacutetica assembleias e nos jogos O ideal de beleza 365 e coragem366 estavam inseridos em todas essas expressotildees da cultura helecircnica
Foi a partir dessa noccedilatildeo que surgiu a possibilidade da construccedilatildeo de uma moral que
pudesse realizar em grau maacuteximo a harmonia entre o mundo humano e o cosmos
divino E para a execuccedilatildeo desse objetivo encontramos uma coleccedilatildeo de mitos em
torno da figura de Heacuteracles367 As narrativas que envolvem o seu nome eacute sem duacutevida
alguma um dos legados da tradiccedilatildeo mito-poeacutetica de maior repercussatildeo e atuaccedilatildeo
no mundo antigo Basta lembrar que aventuras protagonizadas pelo heroacutei perdurou
a leitura dos seguintes livros RIVER C ldquoThe Minoans and Mycenaeans the history of the civilizations that first developed ancient greek culturerdquo Ed by Charles River 2016 E EVANS Arthur The Minoan and Mycenaean Element in Hellenic Life Annual Report of the Smithsonian Institution 1912-1913 in Washington DC Government Printing Office 1914 357 Nesse ponto podemos sublinhar a importacircncia do mito para o nascimento da competiccedilatildeo oliacutempica 358 Vide as odes oliacutempicas de Piacutendaro 359 Θαύmicroα thaacuteuma 360 Αρετές areteacutes 361 Φρόνησις phroacutenesis Vide a Eacutetica a Nicocircmaco (Livro I 1214- a33-b35) 362 Παιδεία paideacuteia 363 Eὐδαιmicroονία eudaimonia 364 Κοινωνία koinonia 365 Kαλός καγαθός kaloacutes kagathoacutes 366 Ανδρείαandreia 367 Vide a obra de Diodoro de Siciacutelia Biblioteca histoacutericardquo livro IV ndash 8 Nesse livro haacute uma compilaccedilatildeo sobre os principais mitos desse importante heroacutei grego que no periacuteodo latino ficou conhecido sob a alcunha de Heacutercules No item sobre a relaccedilatildeo entre mito e epos pretendemos apresentar mais algumas consideraccedilotildees sobre a importacircncia dessa temaacutetica para a cultura helecircnica na antiguidade