em direcção a uma estética industrial: zeitwill ou vontade de
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EM DIRECÇÃO A UMA ESTÉTICA INDUSTRIALArte e técnica: objeto de uso e objeto artísticoDesde as origens da produção que não se distinguiam os critérios de
funcionalidade dos critérios de arte. A distinção entre o belo e o útil
é própria da Idade Moderna quando se conceptualiza a relação
entre razão científica e razão artística. É no Renascimento que se con-
ceptualiza a relação entre Razão científica e Razão artística. Mas é
no século XVII que a distância entre a linguagem formal das gentes
cultas e a das classes inferiores se institucionaliza com a criação das
Academias, os organismos que vão estabelecer as regras do jogo
das então designadas “Belas-Artes”. Distinguindo-se as maiores e as
menores, cavando-se o impasse entre o belo e o útil.
Opondo criatividade ao gesto mecânico, Alberti pratica a divisão
do trabalho. Nas suas construções, que são puros objectos arquitec-
tónicos, “participa” apenas uma única mente criadora: o artista. Ao
contrário, a realização das catedrais medievais exigiu que na sua
construção se associassem não só os mais diversos artesãos como
toda a comunidade. Do mesmo modo, no mundo grego ou romano
o objecto artístico integrava-se no processo global da produção arte-
sanal. Não se distinguia o objecto de uso do objecto artístico.
Este conceito amplo de produção faz-nos recordar as palavras
de Maiakowsky quando, no quadro das vanguardas soviéticas, dizia
a propósito do trabalho que ele certamente classificava como a
tarefa revolucionária dessa mesma vanguarda: “Todo este trabalho
não tem para nós uma finalidade estética. É o laboratório que per-
mite exprimir, da melhor maneira, os factos do nosso tempo. Não
somos sacerdotes criadores, mas operários que executam uma orde-
nação social”.3
De facto, esta dicotomia arte/técnica, belo/útil, reflectia igual-
mente a oposição entre dois valores: o individual, condensado na
60 ANA TOSTÕES
Em direcção a uma estética industrial:Zeitwill ou vontade de modernidade
O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo (...)
Só que há pouca gente para dar por isso (...)
Óhóhóh, o vento lá fora
Álvaro de Campos, Poesia Completa, Ática, Lisboa
1 GIEDION, Sigfried, Bauen in Frankreich, bauen in eisen, bauen in beton, Klinkhardt & Biermann, Leipzig, 1928.2 PIZZA, António, “La Industria y su aportación a la arquitectura moderna”, en Arquitectura e Indústria Modernas 1900-1965, Actas Segundoseminario DOCOMOMO Ibérico, Sevilla, 1999.3 SETA, Cesare de, “O Objecto”, en Enciclopédia Einaudi, vol 3, IN-CM, Lisboa, 1984.
A matriz mecanicista e de um modo lato o universo industrial têm sido
reconhecidos pela historiografia como fonte inspiradora não só de for-
mas mas sobretudo de conceitos e princípios projectuais que estiveram
na génese da arquitectura do Movimento Moderno.1 Espírito da época
industrial, estética da máquina e um novo programa a que era neces-
sário dar resposta, o industrial, tendem a conformar uma articulação
entre arte e técnica como uma“nova unidade”. Neste ensaio procuro
estabelecer essa relação e analisar como a arquitectura moderna por-
tuguesa se baseou nos novos materiais e programas, com destaque para
o industrial.
Se a máquina –e a sua estética– alimentaram um pensamento racio-
nal apostado na eficácia de um princípio de funcionamento, o pro-
grama da indústria –que afinal conformava a acção dessa máquina,
dos homens que a alimentavam e dos espaços que a organizavam–
constituíu por excelência o campo experimental não só de uma con-
cepção espacial inovadora mas também do risco que representava uti-
lizar novos materiais e estruturas. Primeiro o ferro e depois o betão
armado e o aço, materiais surgidos justamente das necessidades de
espaço dessa nova actividade, a indústria. E, com o recurso a também
novos elementos estruturais acompanhado de uma inovadora con-
cepção dos interiores. Por isso, se pode afirmar que a partir do século
XX se estabeleceram relações fundamentais entre “o mundo das fábri-
cas e as expressões de uma nova arquitectura”.2
Depois de justificada a tarefa de levantamento e a análise das cons-
truções industriais e do pano de fundo social e cultural que as suportou
no quadro das atribuições do DOCOMOMO Ibérico importa começar
por clarificar em que medida o paradigma mecânico se converteu em
signo de modernidade e por essa via, em indicação metafórica quer
da organização espacial, quer da iconografia do construído, quer da
atitude projectual .
* IST-UTL, investigadora do ICIST
*
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tradição da grande arte de vocação elitista; e o universal, de que o
progresso era porta-voz, através de uma crescente industrialização
dirigida para uma massificação social no que ao consumo também
dizia respeito.
Neste quadro importa referir a definição que Diderot fez da
relação entre arte e utilidade social para explicar a dicotomia entre
as artes maiores e as artes mecânicas, estabelecendo um ponto de
situação “iluminado” que anunciava as transformações e invenções
prodigiosas e reflectia os avanços realizados entretanto no universo
das ciências exactas: “Se puserem numa balança, de um lado a uti-
lidade real das ciências mais sublimes, das artes mais nobres, e do
outro a utilidade das artes mecânicas, verão que os valores atingidos
não foram estabelecidos segundo critérios que tivessem em conta os
respectivos méritos, porque os homens empenhados em fazer-nos crer
que somos mais felizes conseguiram sempre mais louvores do que
aqueles que se esforçaram para que o fôssemos de facto”.4
Com o aparecimento da máquina, ou mais exactamente da téc-
nica com as suas possibilidades de reprodutibilidade mecânica e
industrial, estabeleceram-se novas relações na civilização contem-
porânea entre as artes e as actividades técnicas. A relação arte/téc-
nica parecia então opôr sentimento e razão, e nesse sentido separar
função técnica da função estética. Partindo do princípio que no
mundo moderno da mecanização é muito mais difícil sentir do que
pensar,5 Sigfried Giedion procurou resolver a questão entre razão e
sentimento.
Essa ideia de oposição irremediável entre arte e indústria, nascida
em meados do século XIX apenas prolongava uma sensibilidade, uma
susceptibilidade romântica que não abandonou o homem ociden-
tal até hoje confundindo “arte com a natureza e [reduzindo] a téc-
nica à mecanização”.6 Encarando a arte simultaneamente como
modo de compreensão e modo de acção, a arte só podia ser con-
siderada com uma função social fundamental. E é justamente por
isso que ela passa a englobar todas as disciplinas (da pintura à arqui-
tectura, da escultura aos objectos utilitários) no quadro de um desen-
volvimento do maquinismo e da industrialização que, conjugados
com os progressos nas ciências aplicadas, conduziram a uma trans-
formação completa do mundo. Como refere José-Augusto França,
“a grande glória da arquitectura do ferro” foi alcançada pela torre
de 300 m construída por Gustave Eiffel (1832-1923) para a exposição
universal de 1889 em Paris. Tornada emblema da própria cidade, o
facto da sua elegância formal depender da própria construção
“numa afirmação ao mesmo tempo gratuita e utilitária”,7 confirmava
a possibilidade do uso estético dos dados do progresso, no caso das
novas potencialidades do uso do ferro. Após a apoteose da máquina
com a exposição parisiense,8 os engenheiros arrogam-se o título de
criadores de beleza, ou melhor, “a palavra desaparece do vocabu-
lário deles para ser substituída pela de utilidade”.9 Como escrevia Paul
Souriau em 1904, “Qualquer coisa pode considerar-se perfeita quando
está conforme a sua utilidade”, porque na sua beauté rationelle “não
[podia] haver conflito entre o belo e o útil. O objecto adquire a sua
beleza no momento em que a sua forma é a expressão manifesta da
sua função”.10
É neste quadro que a procura de uma arquitectura moderna, ou
melhor de uma arquitectura “para o nosso tempo”, para usar a feliz
metamorfose que Otto Wagner realizou de “moderno” para “nosso
tempo” entre 1896 e 1914,11 tende a perseguir a ideia resultante da
articulação Arte e Técnica, considerando-se justamente que “não
pode ser belo aquilo que não é útil”.12 Foi Gropius que enunciou cerca
de três décadas depois, com objectividade germânica, este binó-
mio como condição da reposição da unidade perdida, declarando
“Arte e Técnica: uma nova unidade!”.13 Com o objectivo de ligar a
tradição artística de uma obra total na esteira das Arts and Crafts,
4 DIDEROT, Denis, “Art”, en Encyclopédie, ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, par une societé de gens de lettres. Misen ordre et publié par M. Diderot (…) et quand à la Partie Mathématique, par M. d’Alembert (…), Briasson, David, Le Breton, Durand, Paris, 1751, SETA, Cesare de, “O Objecto”, op. cit., pág. 99.5 GIEDION, Sigfried, Arquitectura e Comunidade, Livros do Brasil, Lisboa, 1955.6 FRANÇA, José-Augusto, “prefácio”, en FRANCASTEL, Pierre, Arte e Técnica, Livros do Brasil, Lisboa, 1963 [1956].7 FRANÇA, José-Augusto, História da Arte Ocidental, pág.116, Horizonte, Lisboa, 1987.8 De todo o conjunto erguido destacava-se a Tour Eiffel, tornada ícone da modernidade no seu desafio da técnica, mas também monumentoeuropeu surgido no seio da cultura francesa, surgia como uma confirmação de que o futuro estava no velho continente. A magnífica Galleriedes Machines assinalava as potencialidades de articulação espacial com o novo material, ferro, a vencer um inusitado vão livre sem recurso aapoios verticais intermédios. 9 SOURIAU, Paul, La Beauté rationelle, Paris, 1904, citado por FRANCASTEL, Pierre, Arte e Técnica, op. cit., pág. 44.10 idem, pág. 45.11 É sintomático o facto de Moderne Architektur ter sido editado quatro vezes em 1896, 1898, 1902 e 1914, esta útima com uma mudançasignificativa de nome. Die Baukunst unserer Zeit, WAGNER, Otto, La Arquitectura de nuestro tiempo, Croquis, Barcelona, 1993 [1896].12 WAGNER, Otto, La Arquitectura de nuestro tiempo, op. cit.13 GROPIUS, Walter, 1923, in CONRADS, Ulrich, Programmes et manifestes de l’architectura du xxème siècle, Ed. de La Villette, Paris, 1991 [1970].
Ferramentas Ponte romanaAlcântaraFoto: Ana Tostões
Vaso grecoFoto: Ana Tostões
Máquina, en Adrian Forty, Objects of desire, London, Thamesand Hudson, 1995
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assim se demarcando da prática ecléctica e estilística das Beaux-
Arts, fazia justamente a ponte com a tradição racionalista helvética,
de que Hannes Meyer ou Hans Schmidt seriam porta-voz no seu
esforço radical de subtrair o discurso estético da construção.14
Assim se propunha ultrapassar a crise aberta em meados de sete-
centos, quando os valores de eficácia da engenharia pareciam ter
condenado irremediavelmente o conceito de belo a ficar separado
do útil. E a arquitectura como arte, reduzida entretanto a sinónimo
de forma e ornamento, tinha passado a opôr-se à técnica, instru-
mento de progresso e nessa medida de bem-estar da civilização.
O impasse entre o belo e o útil começava a esbater-se e a per-
der eficácia justamente no momento em que a revolução industrial
transforma em perspectiva real a produção e reprodução de mate-
riais, sistemas, objectos. Se no final do século XIX, William Morris (1834-
1896) era capaz de defender o conceito da unidade das artes atra-
vés da arquitectura,15 duas décadas depois De Stijl no seu manifesto
ampliava os factores desta função, entendida no sentido matemá-
tico declarando: “testámos a arquitectura como a unidade plástica
das artes, da indústria e da técnica e estabelecemos que esta for-
mação conduzirá à criação de um novo estilo”.16
No pós-guerra a questão começa a ser actualizada através de
uma valorização das formas decorrentes dos programas industriais,
isto é, aquelas que não resultam directamente da arquitectura da
grande composição e que estimulam imagens valorizadoras da estru-
tura portante. A influência germânica tornava-se referência, se pen-
sarmos nas obras pioneiras de Behrens, a sua AEG de 1903, ou mesmo
na fábrica Fagus realizada pelo jovem Gropius com um experimen-
talismo que será a base da sua evolução posterior.
Depois da descoberta do edifício funcional modelar, o silo ame-
ricano para cereais amplamente difundido em fotografia a partir dos
anos dez,17 Le Corbusier retomava estas imagens na revista L’Esprit
nouveau, relevando claramente a forma e denunciando a importãn-
coa do material. A tarefa do arquitecto moderno parecia consistir
em deixar descobertos os valores integrais de beleza da construção
e dos materiais.18 Essa imanente beleza da forma-construção e o entu-
siasmo pelo sentido do utilitário19 reconhece-se quando Le Corbusier
afirmou que “a casa é uma máquina de habitar”.20 Não só procla-
mou um princípio estético, como reconheceu, na sua admiração pela
engenharia,21 a integração indispensável dos sistemas na construção
moderna. Desde a canalização à electrificação, da iluminação ao
aquecimento, lâmpadas, radiadores, tomadas e grelhas tornaram-
se aparatos não só visíveis mas sobretudo assumidos como protago-
nistas de uma estética moderna.
Esta revolução no domínio da construção, conquistado como
fenómeno da modernidade para o campo da arquitectura,
começava inclusivamente a contaminar a área clássica da história
da arte, estimulando jovens historiadores a abraçarem uma historio-
grafia apostada num presente-futuro, entre crítica, divulgação e mani-
festo. Giedion, formado na escola Vienense de Jakob Burckhardt e
Heinrich Wöllflin, coloca esse enfoque na sua primeira obra Bauen in
frankreich. Oito décadas separam a construção do Palácio de Cris-
tal do aparecimento da obra de Giedion que exalta a inovação das
construções dos engenheiros, isto é das construções industriais. De
facto é entre 1851 e 1928 que se constitui o período onde tem lugar
o debate sobre o uso arquitectónico do ferro. Giedion propõe justa-
mente uma leitura onde o material tem um papel central na perio-
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14 GUBLER, Jacques , «le belezza del cemento armato », in “Cemento armato : ideologie e forme da Hennebique a Hilberseimer”, inRassegna pág. 86, Milano, Anno XIV, 49/1, Marzo 1992.15 “Penso que só por conveniência se separa a pintura e a escultura das artes aplicadas: porque o sinónimo de arte aplicada é a arquitec-tura (…) O produto completo da arte aplicada, a verdadeira unidade da arte é um edifício com todos os seus ornamentos e acessórios”, inMORRIS, William, The Arts and Crafts today, 1889, Cf. por SETA, Cesare de, op. cit., pág. 112.16 « De Stijl » Manifeste V:- [ ]+=R4, Paris, 1923, in CONRADS, Ulrich, Programmes et Manifestes de l’Architecture du XXème Siècle, Ed. de LaVillette, Paris,1991 [ed.original alemã 1970].17 Reproduzida entre outros em Jahrbuch des Deutschen Werkbundes, 1913; Le Corbusier, Vers une Architecture, 1923 ; Werner Lindner,Industriebau, 1923 ; Adolph Behne, Zweckbau, 1925.18 NEUMEYER, Fritz, Mies van der Rohe: La Palabra sin artifício, reflexiones sobre arquitectura, pág. 234, El Croquis, Madrid, 1995.19 GEORGIADIS, Sokratis, “introduction”, in GIEDION, Sigfried, Bauen in Frankreich, Bauen in Eisen, bauen in Eisenbeton, op. cit, pág. 22.20 LE CORBUSIER, Vers une Architecture, Flammarion, Paris, 1995 [1923].21 Le Corbusier na sua apologia dos engenheiros refere: “sãos e viris, activos e úteis, morais e alegres, em face dos arquitectos“desencatados e desocupados...os arquitectos hoje não realizam mais formas simples. Operando a partir do cálculo, os engenheiros usamas formas geométricas, satisfazendo os nossos olhas pela geometria e o nosso espírito pela matemática; as suas obras estão no caminho dagrande arte”. Le Corbusier fez muito pelo reconhecimento da estética do engenheiro revelando a “harmonia de um silo, de um paquete,de um avião, de um automóvel: “As criações da técnica maquinista são organismos que tendem à pureza e que estão submetidos àsmesmas regras evolutivas dos objectosda natureza que suscitam a nosas admiração. A harmonia está nas obras que saem do atelier ou dafábrica. Não é Arte, não é a Sixtina, nem o Eréction; são as obras quotidianas de todo o universo que trabalha com consciência,inteligência, precisão, com imaginação, audácia e rigor”. Cf Vers une Architecture, [1923].
Fábrica AEG, 1908BerlínPeter BehrensFoto: Ana Tostões
Silo americano reproduzido entre outros em Jahrbuch desDeutschen Werkbundes, 1913; Le Corbusier, Vers uneArchitecture, 1923 ; Werner Lindner, Industriebau, 1923 ; AdolphBehne, Zweckbau, 1925.
Elevador de StªJusta, 1901Lisboa Archivo Fotográfico Municipal-CML
Sistema Hennebique, in Rassegna, Milano, Anno XIV, 49/1, Marzo 1992
Galerie des Machines, in Sigfried Giedion,Bauen in Frankreich,1928
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dização histórica da arquitectura moderna. Analisando a revolução
operada pelo ferro, insiste na passagem de um modo de construir
para outro, traduzindo-se na evolução em direcção ao betão
armado: o material do século XX, apresentado como matéria funda-
mental da nova arquitectura. Recorrendo à noção de experiência,
propõe uma nova metáfora para a invenção arquitectónica. A arqui-
tectura, a partir do momento que decorre de um processo experi-
mental, pode aproximar-se não só do progresso das técnicas, mas
também do trilho das ciências.22 Insistindo sobre o primado do mate-
rial sobre a forma, não hesita em colocar o betão armado como o
motor da revolução estética.
A cultura do progresso, e nessa medida da máquina, tinha em
vista melhorar, tornar mais racional, eficiente, legível e agradável o
ambiente da vida quotidiana. Em simultâneo lançava-se uma com-
ponente eminentemente política porque se ocupava exclusivamente
do objecto para as massas. Gropius vai ser o protagonista desta nova
civilização de objectos: da colher à cidade.23 O salto qualitativo pro-
vocado pelo seu contributo fez com que a atenção aos mecanismos
industriais de produção de objectos se estendesse à construção civil
e ao urbanismo. Retomando a ideia exposta em “Arte e Técnica, uma
nova unidade”, podemos afirmar que a articulação da tradição das
Arts and Crafts com o contributo da Werkbund encontram na teoria
e na prática projectual de Gropius um momento de síntese.
Entretanto em 1908 o historiador da arte Wilhelm Worringer recon-
hecia que a arte já não representava a natureza, já não era, nem
pretendia ser uma segunda natureza, finalmente já não retirava os
seus valores da referente natureza. Na sua obra denominada Abs-
traction und Einfuhlung 24 o valor que Worringer dava à abstracção
teria grande influência nos arquitectos de entre as guerras, e parti-
cularmente nas vanguardas estéticas que explodiram na Europa. As
vanguardas vão trabalhar no sentido de demonstrar que a natureza
já não tinha uso como categoria organizativa no pensamento artís-
tico e arquitectónico. Partindo desse princípio de tábula rasa a fonte
substitutiva só podia estar no novo universo criado a partir da revo-
lução industrial. Por isso se pode dizer que as vanguardas se empen-
haram na tarefa de negar todos os aspectos da natureza, conside-
rados antes imutáveis. Usando como suporte os novos dados desco-
bertos pela ciência e as novas possibilidades da técnica, o mundo
industrial articulava a radicalização da noção de modernidade.
Máquina e modernidade: a produção em serie e os seus efeitosA modernidade tem sido definida como as experiências vitais com-
partilhadas por homens e mulheres de todo o mundo.25 Vitais, porque
convocam a experiência do tempo e do espaço. Uma relação no
espaço-tempo e uma percepção do espaço e do tempo transfor-
mados pela velocidade. A transformação pressupõe a introdução
de um conceito novo, o da velocidade, inebriante e imparável.
Sendo a máquina o protagonista desta alteração possível no espaço-
tempo.26 Ser moderno, é encontrar-se num ambiente que promete
aventura, poder, alegria, evolução, autotransformação e transfor-
mação das coisas em redor. Ser moderno, é fazer parte de um uni-
verso em que “tudo o que é sólido se dissolve no ar”.
Esta vida moderna radica em diversas fonte, das quais a mais
importante é certamente a industrialização da produção como fac-
tor de transformação do conhecimento científico em tecnologia. De
tal modo, que os novos ambientes humanos se afirmam na relação
directa da destruição dos antigos. Goethe no seu Fausto revelou
impiedosamente essa crueza: reconhecido como expressão da pro-
cura espiritual moderna atinge a sua realização e simultâneamente
a sua derrocada na transformação material da vida moderna. E é
certamente a industrialização que funciona como factor de acele-
ração do ritmo de vida, como geradora de novas formas de poder
institucional e de novas formas de luta de classes. Por seu turno a
explosão demográfica afecta milhões de deslocados empurrando-
os em direcção a novas vidas, conduzindo a um rápido e catastró-
fico crescimento urbano. Neste quadro, os sistemas de comunicação
de massas envolvem indivíduos e sociedades, ao mesmo tempo que
movimentos sociais de massas lutam paradoxalmente por obter algum
controle sobre as suas vidas. Finalmente um mercado de sentido capi-
talista mundial, flutuante, em permanente expansão, dirige e mani-
pula pessoas e instituições.
Eis o paradoxo moderno: algo que se quer agarrar mas que pas-
sou a estar em permanente transformação. A ideia que Marx já tinha
conceptualizado na poderosa imagem que literalmente e em todos
os sentidos objectivava a desagregação da matéria, do referente
mundo material, usando uma metáfora que buscava nas ciências
mais exactas a força da sua imagem para contrapor o sentido de
puro e impuro: “tudo o que é sólido se dissolve no ar, tudo o que é
sagrado será profanado”.27
As polarizações básicas manifestam-se no início do século XX com
as vanguardas, claramente com os futuristas, defensores apaixonados
da modernidade no desejo de fundir as suas energias com a tecnolo-
gia. O seu acrítico namoro com as máquinas conjugado com um pro-
fundo distanciamento da humanidade ressurgiria depois da I Guerra
Mundial nas formas retiradas da estética da máquina e na tecnocrá-
tica e funcional construção da Arquitectura do Movimento Moderno.
Importa recordar que no século anterior, e por isso justamente
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22 COHEN, Jean-Louis , “Avant-propos”, in GIEDION, Sigfried, Construire en France, construire en fer, construire en béton, pág. XI, Ed. de LaVillette, Paris, 2000.23 Referência ao discurso de Mies van Der Rohe no aniversário de Gropius “A bauhaus é uma ideia”, Cf. NEUMEYER, Fritz, Mies van der Rohe,Réflexions sur l’Art de bâtir, Paris, Moniteur, 1996.24 Que me atrevo a traduzir por “Abstracção e Empatia”. Significativamente a versão francesa mantém o conceito, um pouco intraduzível, nalíngua original. Cf. WORRINGER, Wilhelm, Abstraction et Einfuhlung, Kkincksieck, Paris, 1986 [ed. Original alemã 1908].25 BERMAN, Marshall, Tudo o que é sólido se dissolve no ar, a aventura da modernidade, pág.105, Edições 70, Lisboa, 1990 [1981].26 Em 1908 O matemático alemão Hermann Minkowsky revelava a sua teoria de espaço-tempo quadrimensional que Giedion virá adesignarcomo “revolução óptica”. Cf. GIEDION, Sigfried, Space, Time and Architecture, The Growth of a new tradition, Harvard, 1941.27 “Alles Ständische und stehende verkampft, alles heilige wird entweist”, Cf. MARX, Karl , Manifestes der Kommunistischen Partei, Leipzig, 1973[1848] ; É este o tema, da visão diluidora e da sua dialética, que Marshall Berman usa como metáfora da modernidade, traduzindo por “All thatis solid melts in air, all that is holy is profaned”, cf. BERMAN, Marshall, Tudo o que é sólido se dissolve no ar, a aventura da modernidade, pág. 105,Edições 70, Lisboa, 1990 [1981].
Lisboa Filme, in AA.VV., Lisboa Filme. Um Sonho Vencido, Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 1987
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num contexto dominado pelo romantismo oitocentista, certas ideias
expostas na literatura moderna afectaram a cultura em geral.28
A primeira ideia absorvida respeita ao conceito de belo,
avançando-se a ideia de que arte e fealdade não são exactamente
incompatíveis. A aceitação deste fenómeno vai estimular a acei-
tação de novas formas, tendencialmente abstractas. Mas mais do
que isso vai abrir o campo para a exploração dos estímulos plásticos
e cinéticos emanados do mundo da técnica numa época de cres-
cente afirmação da máquina.
A segunda ideia podemos designá-la por um desejo de sinceri-
dade. É certamente a influência literária mais subtil e talvez a mais
penetrante. Conduz-nos à noção de verdade, e por essa via à pro-
cura de objectividade, figura adoptada pelos arquitectos modernos.
E, transformada quantas vezes na ideia de funcionalismo, isto é, o que
objectivamente responde à função desejada. Finalmente a sinceri-
dade como valor moral exerceu uma influência directa sobre o modo
de encarar a arte e a técnica, integrando-se como factor da con-
cepção arquitectónica através da ideia de que a construção deve-
ria expressar “sinceramente” a sua estrutura. Os materiais não deve-
riam portanto ser camuflados, mas assumidos na sua integridade, o
que conduziu lentamente primeiro e depois de modo amplo a assu-
mir a crueza, ou se se preferir a verdade dos materiais, abrindo
caminho para descobrir a potência plástica da arquitectura indus-
trial vista como acto de inovação capaz de ela própria poder con-
tribuir para alimentar a própria sobrevivência do processo moderno.
Em terceiro lugar, decorrendo directamente das duas questões
anteriores abria-se o campo ao materialismo, e com ele ao raciona-
lismo e ao funcionalismo. Racionalmente a forma podia finalmente
ser entendida como expressão da construção. A arquitectura
moderna concentra-se na expressão da construção e é também
nessa medida que luta contra o ornamento. Funcionalmente a uni-
formização resultava da lógica optimização dos recursos quer ao nível
da concepção espacial como da eleição de materiais, ou da
escolha dos sistemas e tecnologias para responder com eficácia à
questão colocada, em que o programa industrial constitui matriz
incontornável.
ARQUITECTURA MODERNA E INDÚSTRIA EM PORTUGALExperimentação de materiais e estructurasA afirmação e desenvolvimento da arquitectura moderna portuguesa
faz-se ao ritmo da industrialização e da relação directa estabelecida
com a produção dos novos materiais de construção. No início de
novecentos a cultura portuguesa, como aliás de um modo geral todo
a cultura ocidental, debatia-se entre um desejo de modernização,
que se apoiava numa crença optimista nas potencialidades da
máquina, e uma nostalgia de passado ameaçado que desprezava
esse presente em acelerada mutação. O mundo da construção e da
cidade reflectiam de algum modo a dicotomia desse momento de
transição, em que os valores artísticos da arquitectura eram con-
frontados com a eficácia da engenharia e as possibilidades dos novos
materiais. Por outras palavras, a engenharia insinuava-se como a
“nova arquitectura”.29 Ou melhor, no momento em que “a indústria
substituía a arte”,30 tendia a cristalizar-se o debate arte-técnica. E
assim se separando em campos opostos o secular percurso comum
da arquitectura e da engenharia.
Este afastamento disciplinar que demarcava a eficácia estrutu-
ral do engenheiro da habilidade artística do arquitecto tinha a sua
correspondência no fenómeno epocal e revivalista romântico que
dissociava construção e fachada, verdade do material e ornamento
apenso. E, como se verá, a construção encarada como uma com-
posição em partes separadas e aparentemente autónomas que
caracterizou o ecletismo de final de oitocentos não foi só caracterís-
tico da “grande” arquitectura porque as próprias construções ditas
“ulilitárias” integraram igualmente essa dicotomia.
O Elevador de Santa Justa, em Lisboa, projectado pelo engen-
heiro Raoul Mesnier du Ponsard em 1900 e inaugurado no ano
seguinte constitui a obra paradigmática do novo século. Utilizando,
inicialmente, a energia de uma máquina de vapor celebrava as uto-
pias urbanas finisseculares materializadas atravès das inovações da
técnica. Estabelecendo uma comunicação entre a Baixa e o Carmo
assinalava-se escultoricamente na sua verticalidade como elemento
inovador da cidade, afinal a torre possível da marcação do progresso.
O ferro como novo material de construção era utilizado sem disfarce,
mas expresso paradoxalmente numa linguagem revivalista gótica
que buscava a sua adequação a um tempo e a uma mentalidade
que era ainda de oitocentos.
Desde meados de oitocentos que o ferro constituía uma inovação
aplicada à construção das novas infraestruturas viárias. Empregue ini-
cialmente no quadro da implementação dos caminhos de ferro e uti-
lizado pela primeira vez entre nós na ponte de Xabregas (1854), as
possibilidades estruturais do material ficariam ligadas duas décadas
depois às pontes D. Maria (1877) e D. Luís (1888) sobre o Douro, ex-
libris não só portuenses mas de amplitude internacional como modelo
de resolução de grandes e profundos vãos.31 A revelação mediática
no ferro como material de construção ocorreu entre nós justamente
no Porto por ocasião da exposição Universal de 1865 que justificou o
Palácio de Cristal portuense.32
Diversas experiências com estruturas metálicas para além de reve-
larem actualizadas possibilidades técnicas assinalavam transfor-
mações na conjuntura social que exprimiam o silogismo: programas
novos-materiais novos. Contudo, o academismo e a expressão de
uma tradição construtiva feita gramática compositiva que domina-
vam a prática da arquitectura impediam culturalmente a assunção
clara da verdade estrutural. Acantonados nos princípios clássicos, os
64
28 COLLINS, Peter, Los Ideales de la Arquitectura Moderna; su evolución (1750-1950), Gustavo Gili, Barcelona, 1998 [1968].29 Sobre esta questão veja-se a discussão ocorrida no seio da cultura arquitectónica alemã ao longo de oitocentos, com destaquepara as posições de Gottfried Semper. Cf. GEORGIADIS, Sokratis, “Introduction”, in GIEDION, Sigfried, Bauen is Frankreich, Bauen inEisen, bauen in beton, Getty Center, Santa Monica, 1995 [1928].30 FRANCASTEL, Pierre, Arte e Técnica, Lisboa, 1963 [1956].31 FRAMPTON, Keneth, História Crítica da Arquitectua Moderna, pág. 35, Gustavo Gili, Barcelona, 1987.32 Construído entre 1861 e 1865, apresentava uma cúpula de ferro e vidro a toda a extensão do edifício com uma altura de cerca de18,90 m, Cf. Arquitectura de Engenheiros, séculos XIX e XX, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1980.
Arsenal Alfeite, in Arquitectos, nº3, 1938
Fábrica LusitanaPorto
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arquitectos posicionaram-se do lado da resistência à inovação.33 Na
verdade, a adesão à lógica da máquina e a uma racionalidade
construtiva decorrente da aplicação dos novos materiais, foi reser-
vada inicialmente a edifícios de carácter eminentemente utilitário de
que a Fábrica de Moagem de Trigo do Caramujo (Almada, 1898)
constitui paradigma em Portugal porque se trata da primeira cons-
trução em betão erguida entre nós.
A construção deste programa industrial foi realizado entre 1897 e
1898, aplicando o sistema Hennebique quando o betão armado era
ainda uma novidade em Portugal34 e segundo alguns autores mesmo
no estrangeiro.35 A escolha deste sistema poderá relacionar-se direc-
tamente com os riscos das construções tradicionais, nomeadamente
a sua fragilidade ao fogo, sentidos pelos industriais. Mas, muito para
além disso o sistema patenteado por Hennebique com os seus repre-
sentantes em Portugal, permitia uma concepção estrutural de gran-
des espaços apenas pontuados pela rede de finos pilares que se con-
jugavam com lajes armadas capazes de suportar grandes sobrecar-
gas, solução que respondia claramente aos requisitos funcionais de
uma grande laboração industrial. Para além disso, era ainda possível
encontrar soluções inovadoras que aliavam a funcionalidade á téc-
nica construtiva e à manutenção do edifício: por exemplo a cober-
tura em terraço adoptada servia simultaneamente de reservatório
de água (com capacidade para 20 m3), de isolamento térmico36 e
atrevemo-nos a pensar que também funcionando como neutraliza-
dor das dilatações provocadas ao material pelas diferenças de tem-
peratura. Contudo, apesar das grandes inovações construtivas, a
resolução da fachada, executada tradicionalmente com enchimento
de tijolo, acabaria por expressar um desenho também ele tradicio-
nalmente “clássico” para este grande edifício de seis andares e que
interiormente apresentava vãos livres rectangulares entre pilares de
3,00 m por 5,35 m.
Nesse mesmo ano 1898 o novíssimo material –que em menos de
duas décadas viria a substituir completamente o ferro usado estrutu-
ralmente– betão armado era utilizado pela primeira vez na cons-
trução de uma grande obra pública: o edifício da Escola Médica de
Lisboa onde foi usado na execução do tecto do átrio e pavimento
do respectivo piso superior que foi relizado com o sistema Cottancin.
A utilização das potencialidades do novo material, o betão armado,
não é, mais uma vez, assumida arquitectónicamente.
Até 1910 há notícias de uma construção intensa em betão
armado, particularmente pelos concessionários Hennebique, supor-
tada pela matéria-prima fornecida pela primeira fábrica de cimento
artificial “Portland” em Alhandra que funciona a partir de 1894.37 Entre-
tanto em Lisboa fundava-se o Instituto Superior Técnico (à Boavista)
e no Porto criava-se o “Laboratório de Resistência de Materiais” no
quadro da mesma Universidade o que denunciava um crescente
entendimento científico da questão que passava do quadro de
empresário-construtores, ao universo científico da engenharia. A
invenção de fórmulas matemáticas, os cálculos e a experimentação
de ruptura permitem introduzir o betão armado no ensino da cons-
trução. Tornado sistema o betão armado podia definir-se segundo
normas legais de segurança. E em 1912 iniciava-se iniciava-se a cons-
trução de um programa industrial totalmente desenvolvido em betão
armado: a Fábrica de cerveja Portugália em Lisboa de antónio Rodri-
gues da Silva Júnior.
A cronologia justifica claramente a importância do ano 1918, no
imediato pós-guerra, com a publicação do primeiro regulamento do
betão armado, inspirado no francês e no alemão, e também com o
projecto do engenheiro Osório de Rocha e Mello para a criação da
Fábrica de Cimento Henrique Sommer, a Empresa de Cimentos de
Leiria, que hoje conhecemos como Cimenteira Liz. Cinco anos mais
tarde, em 1923, inaugurava-se o primeiro forno rotativo moderno com
uma capacidade para 220 t por dia.38
65
33 HENRIQUES da SILVA, Raquel, Arquitectos e Engenheiros: a função de construir, texto proferido na Sessão inaugural da Licenciatura deArquitectura do Instituto Superior Técnico em Dezembro de 1998.34 CARVALHO QUINTELA, António de, “Contribuição para a História do Betão Armado em Portugal: Primeiras Obras”, Revista Portuguesa deEngenharia de Estruturas nº 30, pág. 10, Lisboa, Janeiro de 1990.35 SANTOS SEGURADO, E. dos, Cimento Armado, Biblioteca de Formação profissional, Lisboa, Aillaud e Bertrand, s/d. António de CarvalhoQuintela situa a edição da obra cerca de 1920 justificando o facto de incluir o regulamento de betão armado de 1918 e do exemplarnetrado na Biblioteca do IST ter dado entrada em 1923, Cf. CARVALHO QUINTELA, António de, op. cit., pág. 15.36 Ver SANTOS, António Maria A., “Betão Armado e Indústria”, in Arquitectura e Industria Modernas 1900-1965, Sevilla, Docomomo Ibérico,1999, pág. 26; Para o Estudo da Arquitectura Industrial na região de Lisboa (1846-1918), Lisboa, Dissertação de Mestrado em História da ArteContemporânea, Universidade Nova de Lisboa-FCSH, 1996.37 VISEU, Joaquim C.S., História do betão Armado em Portugal, pág. 53, ATIC, Lisboa, 1993.38 BRANDÃO DE BRITO, José Maria, HEITOR Manuel, ROLLO, Maria Fernanda, (Coord.), Engenho e Obra, Dom Quixote, Lisboa, 2002.
Algarve ExportadorMatosinhos Foto: Deolinda Folgado/IPPAR
Fábrica LusitanaPorto
Rainha do SadoMatosinhosFoto: Deolinda Folgado/IPPAR
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Betão armado e efémero modernismoDe facto, a partir de meados dos anos vinte surge o primeiro ciclo do
betão armado que coincide com o ciclo da arquitectura modernista
apoiado já nas possibilidades estruturais e plásticas do betão armado.
E assim rompendo claramente com os sistemas oitocentistas. Por isso se
pode afirmar que, após um período de “cristalização artística” e resistên-
cia ás inovações tecnológicas, os arquitectos descobrem o betão armado
depois dos engenheiros. A confissão do facto, ou a consciência deste
atraso, constituirá a pedra de toque de um debate apaixonado que
envolverá a vanguarda europeia dos anos vinte: Gropius, Le Corbusier e
sobretudo Sigfried Giedion reconhecem e exaltam a “estética do engen-
heiro”.39 Mas é sobretudo Auguste Perret que desenvolve desde os pri-
meiros anos do século uma obra que postula a emergência de uma esté-
tica a partir do uso do novo material. Por outras palavras, Perret formula
a sua doutrina arquitectónica baseada na ideia de que o betão armado
possui uma qualidade estética própria.40
Neste processo, o novo gosto geometrizado Art Déco evolui no
sentido de um despojamento formal, apoiado conscientemente na
valorizacão plástica da técnica, que constituirá a base de trabalho
do nosso modernismo experimental. Apoiados no cálculo e nas inves-
tigações de arrojados engenheiros, como Bellard da Fonseca, Espre-
gueira Mendes, Arantes e Oliveira, entre outros, o novo sistema cons-
trutivo baseado no betão armado começava gradualmente a ser
assumido pelos arquitectos que o passavam a reconhecer como feito
cultural significativo. Isto é, assiste-se ao progressivo desenvolvimento
da ideia de tecnologia como padrão cultural, atribuindo-se á racio-
nalidade da construção o papel eminente de “gramática” da lin-
guagem que se procura: coberturas em terraço, grandes vãos com
extensos envidraçados, gosto pelas superfícies rebocadas e lisas e
pelos volumes cúbicos e puros. Assim se constituindo como elemento
“modelador” da forma e nessa medida dotado de uma autonomia
estética própria.
A leitura de uma das mais singulares obras do primeiro moder-
nismo, a casa da Moeda projectada em 1931 pelo arquitecto Jorge
Segurado (1898-1990) e pelo engenheiro Espregueira Mendes,41 é
reveladora da evolução da década dos anos trinta e das situações
levantadas no decorrer da obra pela procura de um racionalismo
construtivo e de um funcionalismo programático. Trata-se de uma
construção singular a vários níveis: pelo programa misto que integra
o edifício da administração com desejado carácter de representação
e o corpo de oficinas que programaticamente se aproxima do carác-
ter utilitário; pelo empenho construtivo que uma obra desta importân-
cia reclamou; finalmente pelo facto de revelar pioneiramente uma
abordagem inovadora que se afastava do quadro ortodoxo definido
pelo Movimento Moderno de estilo internacional, assim se aproxi-
mando das experiências holandesas desenvolvidas em contextos não
radicais e menos divulgadas no nosso país.
O conjunto edificado redesenha a forma rectangular do quar-
teirão aberto no interior formando um extenso pátio. O edifício da
administração forma o topo norte ligando-se aos três corpos em U
das oficinas através de dois corpos de passagem elevados sobre pilo-
tis. A cobertura em terraço que remata todo o conjunto é ocasiona-
lemnte substituída em certas zonas fabris por uma cobertura em shed
permitindo a entrada directa da luz norte, mas também por áreas de
terraço preenchidas pelo tijolo de vidro cilindrico, de utilização tâo
comum nas obras modernistas dos anos trinta.
Na defesa do projecto contra os detractores da arquitectura
moderna42 o arquitecto reivindicou o “paradigma racional e a neces-
sidade de o edifício responder á funcionalidade interior” que aca-
bou por ser aceite dado o carácter industrial do programa. Admi-
tindo-se então que “os grandes panos de parede, a proporção larga
das janelas, a lisura da composição, são tudo feições adequadas aos
edifícios fabris”.43 Marcação de um paradigma de qualidade na cons-
trução, revela o amadurecimento do expressionismo do autor na arti-
culação dos vários volumes que formam o quarteirão, assumidos com
presença e funções diferentes e onde se destacam as duas entra-
das: monumentalizante no edifício da administração e, articulada
com outra liberdade, a entrada reentrante do corpo de gaveto das
oficinas jogando com o relógio, o baixo-relevo, e o revestimento tex-
turado dos tijolos esmaltados de verde dos panos entre pilares.
No quadro industrial ainda decorrente dessa encomenda pública,
o Arsenal do Alfeite projectado pelos irmãos Rebelo de Andrade
revela a importância dada à indústria naval agora com carácter
representação. O carácter representativo é aliás um dos temas reco-
rrentes também no programa industrial como é o caso da Firma
Comercial Lusitana, um enorme espaço de produção textil construído
66
39 Veja-se por exemplo, GIEDION, Sigfried, Bauen in Frankreich, bauen in eisen, bauen in beton, op. cit.,40 Cf. Edifício da rua Franklin em Paris (1903) à Igreja de Notre-Dame de Raincy (1924), a primeira obra de grande escala onde era possíveladmirar o betão em todo o seu esplendor e beleza, ver COLLINS, Peter, Le Splendeur du béton, Hazan, Paris, 1995.41 Que já havia surpreendido com o projecto estrutural da Estação Sul e Sueste em Lisboa projectado pelo arquitecto Cottinelli Telmo, Cf.TOSTÕES, Ana, “Arquitectura da primeira metade do Século XX”, in PEREIRA, Paulo (Dir.), História da Arte Portuguesa, Círculo de Leitores,Lisboa, 1995.42 A este propósito veja-se por exemplo RIBEIRO COLAÇO, António, quando denunciava “os caixotes de Moscovo, de Munique, de toda aparte menos de Portugal”, in Arquitectura Portuguesa nº38, Lisboa, maio de 1938.43 Parecer do Conselho Central de Obras Públicas, Dezembro 1938.
Fábrica de fiação e tecidosVizelain Fábrica de Fiação e Tecidos,Comemoração 150 anos, CâmaraMunicipal de Santo Tirso
Armazens frigiríficos do bacalhauFoto: Deolinda Folgado/IPPAR
Fábrica MartiniVictor Palla e Bento de AlmeidaBinário nª1, Lisboa, Abril 1958
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no Porto com a crueza da arquitectura industrial onde é aposta um
pano de fachada de desenho classizante. Em Lisboa, o edifício do
Diário de Notícias, uma indústria gráfica erguida na principal avenida
da capital, assume-se pelo contrário como paradigma urbano da
modernidade. Também o novo programa da indústria do cinema se
define de acordo com a expressão modernista decorrente da utili-
zação do betão armado.
No Porto, foi a encomenda privada que estimulou a emergência
de obras descomprometidas com os códigos da monumentalidade
que caracterizavam a obra pública. Se a Garagem do Jornal O
Comércio do Porto (1928) de Rogério de Azevedo combina um pro-
grama inédito de garagem e escritórios é justamente no programa
industrial da Lota de Pescado de Massarelos que Januário Godinho
desenvolve a sua primeira obra de grande força expressiva conden-
sando influências múltiplas (desde o expressionismo holandês ao neo-
plasticismo) e onde são as exigências funcionais que determinam a
relação entre a espacialidade interna e o sistema estrutural. Em Mato-
sinhos, a indústria conserveira, com destaque para o Algarve expor-
tador de António Varela ou para o conjunto das conserveiras Rainha
do Sado, constitui exemplo de uma construção de grande escala,
despojada, utilizando uma longa cobertura em shed e referenciada
linguísticamente a um gosto modernista. Ainda no Porto, o jovem Keil
do Amaral desenha para um estreito lote da rua dos Clérigos as novas
instalações do Instituto Pasteur actualizando ineditamente uma
expressão claramente urbana.
Para além destes programas industriais de vocação eminente-
mente funcional a habitação constituíu igualmente matéria de expe-
rimentação. Quer na surpreendente Casa de Serralves desenhada
em 1931 para o Conde de Vizela pelo veterano Marques da Silva,
que introduz os códigos das Arts Déco temperando-os com um prag-
matismo construtivo que lhe permite ultrapassar o sentido gráfico e
os aspectos mais decorativos do movimento francês, pela escala e
pela pujança tectónica adoptadas. A referência linguística será aliás
estendida à frente da Fábrica de Fiação e Tecidos Vizela, do mesmo
encomendador, abrigando um extenso dispositivo de indústria têxtil
situado na região do rio Ave.
Este primeiro ciclo do betão decorre sob um dos aspectos do
quadro estabelecido pelo programa moderno que confiava na equi-
valência entre o processo técnico e o processo formal como modo
de superar o estilo. Contudo, justificado por factores económicos,
adoptava-se ainda recorrentemente uma construção mista, em que
o betão armado era sobretudo utilizado nos elementos horizontais,
nas lajes, recorrendo-se ainda nos suportes verticais a paredes por-
tantes de alvenaria onde se integravam vigas de betão armado para
realizar aberturas mais amplas. Finalmente, quer a formação da pri-
meira geração modernista no gosto das Beaux-Arts, quer a prepon-
derância de uma encomenda dirigida para um programa da obra
pública, focado numa monumentalidade capaz de simbolizar o
regime, concorriam para fragilizar a aplicação dos pressupostos glo-
bais do Movimento Moderno no seu empenho em dar uma resposta
ampla ao desafio colocado pela modernidade.
Afinal qual era o desafio que a modernidade podia colocar num
país como o nosso, assente numa sociedade retrógrada e numa cul-
tura marcadamente reaccionária que reflectia uma política econó-
mica assente numa estagnante e forte componente rural? Sem um
efectivo desenvolvimento industrial, condição das transformações
bruscas do processo de modernização, os esforços desenvolvimentis-
tas de um engenheiro, Duarte Pacheco, não ultrapassavam a reforma
de umas obras públicas e o planeamento de uma capital do Império.
Quando Salazar respondia aos industriais reunidos no seu I Congresso
em lisboa, em 1933: “Segui com o maior interesse as teses apresenta-
das (…) Há certamente, entre elas algumas que podem chamar-se
ambiciosas, programas vastos de mais para um futuro imediato, que
passam além das possibilidades do momento (…)”44 Por outras palav-
ras, se o país não se modernizava, como podia a arquitectura fazê-lo
ou o urbanismo responder a problemas não colocados.
Por outro lado, um gosto eclético e a sensibilidade naturalista cul-
turalmente dominantes, conjugadas com as condições materiais do
país, impediram que a máquina fosse entendida como elemento axial
da revolução estética e social45. Finalmente a formação Beaux Arts
atraiçoava os arquitectos modernistas quer nos partidos adoptados,
recorrendo sistematicamente a uma simetria compositiva, mas que
também se mostravam inacapazes de lidar com uma implantação
topográfica de um modo natural ou orgânico. Confirmando o mal
endémico formativo e geracional de que “desenhar sobre a pran-
cheta era implantar o edifício sobre o terreno”.46
O modernismo, que enquadrou o primeiro ciclo do betão entre
nós, foi um estilo que concorreu para suportar a novidade imagética
67
44 Oliveira salazar, “A acção governativa e a produção industrial”, Discursos, vol.I, 1928-1934, 4ªed., Coimbra, 1961. Cit. ROLLO, Maria Fernanda,“Engenharia e história: percursos cruzados”, in BRANDÃO DE BRITO, José Maria, HEITOR Manuel, ROLLO, Maria Fernanda, (Coord.), Engenho e Obra, op.cit.45 Se quisermos, Alberto Caeiro conhecia o Portugal profundo e por isso era capaz de responder com singela sabedoria ao espírito do tempo e da terra.Enquanto que na sua admiração pelos prodígios exaltantes da máquina o engenheiro Álvaro de Campos só podia ter sido contaminado pelo vírus doprogresso no universo anglosaxónico, em Glasgow, onde hipoteticamente estudou. 46 RAMOS, Carlos, Palestra dedicada a todos os alunos da escola de Belas-Artes de Lisboa, 1935.
Saída de trabalhadores da Fábrica Mundet & Cª, Seixal, 1953 Ecomuseo Municipal do Seixal/CDI-Mundet inBRANDÃO DE BRITO, José Maria, HEITOR Manuel,ROLLO, Maria Fernanda, (coord.), Engenho e Obra,Dom Quixote, Lisboa, 2002
Soda Póvoa. Póvoa de Santa Iria Foto: Santos de Almeida, Arquivo deFotografia de Lisboa-CPF/MCen BRANDÃO DE BRITO, José Maria, HEITORManuel, ROLLO, Maria Fernanda, (coord.),Engenho e Obra, Dom Quixote, Lisboa, 2002
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desejada pelo Estado Novo na sua fase de implantação e marcou o
tempo das grandes obras públicas do regime, nesse paradoxo de
monumentalidade programática que atraiçoou qualquer veleidade
de uma modernidade radical que pudesse buscar a sua filiação no
Movimento Moderno canonizado ortodoxamente pela historiogra-
fia. Não foi um método de trabalho ou uma teoria projectual. Foi
sim, mais um estilo, o modernista. Baseado numa forma que tendia
para a abstracção decorrente da utilização de volumes puros que
o betão armado agenciava a partir das lajes de cobertura em
terraço ou de grandes vãos abertos e preenchidos com a trans-
parência de longas superfícies de vidro. Cristino da Silva que mar-
cou com o seu Cine-teatro Capitólio o momento de ruptura nos
códigos formais afirmaria prosaicamente que “a arquitectura
moderna surgiu por causa dos novos materiais”. A forma, transfor-
mada técnicamente em verdade construtiva, justificava-se a partir
da função, num binómio tornado condição de racionalidade.
Invoca-se a funcionalidade como razão da utilidade dos usos, da
finalidade das coisas, da objectividade do que é essencial. Era jus-
tamente na questão da funcionalidade interna que os autores se
refugiavam frequentemente para justificar os partidos adoptados.
Se as grandes obras públicas colocavam em evidência tanto as
componentes técnico-construtivas dessas obras como a comple-
mentaridade disciplinar entre engenheiros das várias especialidades
e arquitectos de que o processo das Gares ou da Casa da Moeda
constituem um modelo, é no quadro de uma iniciativa privada e nal-
guns programas industriais ou lúdicos que se assume o rasgo experi-
mental de que a Garagem do Comércio do Porto ou a Lota do Pes-
cado de Massarelos constituem eloquentes exemplos.
A utilização do betão estende-se ao edifício corrente com Cas-
siano Branco a agenciar uma profunda renovação nas fachadas,
enquanto que a organização do fogo mantinha esquemas distribu-
tivos herdados de finais de oitocentos.
Sem bases teóricas consistentes, sem o apoio de uma crítica efi-
caz, a que se acrescentava uma formação revivalista e eclética,
assente na componente artística das Beaux-Arts oitocentista, a
geração modernista dos anos vinte-trinta facilmente tornou possível
o seu próprio recuo historicista e tradicionalista que passou a domi-
nar a sua produção a partir dos anos quarenta. E assim negando o
postulado moderno de que a determinante técnica levaria à erradi-
cação do estilo. Muitas das obras historicistas, modelarmente refe-
renciadas à Praça do Areeiro do mesmo Cristino da Silva, são a con-
firmação da utilização de uma sofisticada estrutura de betão armado
mascarada exteriormente por uma fachada historicista e orna-
mentada, renegando o principio da verdade dos materiais. Esta
situação reflectia aliás o processo que acompanhou a ascensão
das ditaduras europeias e que ficou bem patente em 1937 na Expo-
sição Internacional de Paris. E que, entre nós, teria três anos depois
paralelo “imperial” com a celebração política e ideológica que a
Exposição dos Centenários significou. O próprio programa industrial
se adaptou a esta imagem de regime patente sobretudo nos gran-
des empreendimentos da capital: Armazéns Frigoríficos do bacal-
hau, standard Eléctrica, A Nacional ou na Fábrica de Cabos Eléc-
tricos Diogo de Ávila.
Industrialização e modernizaçãoA situação de pós-guerra tende a conformar a ruptura moderna
entendida como o momento de fazer contas com a modernidade,
de dar atenção ao interrompido projecto moderno. As premissas do
movimento moderno, referenciadas claramente a Le Corbusier e,
ainda por essa via, à potencial vitalidade da moderna arquitectura
brasileira,47 adoptam-se de um modo ético e ideologicamente con-
victo que integrava o valor de uma função social. É o tempo da con-
testação ao regime no contexto do Congresso heróico dos arqui-
tectos, o I Congresso Nacional de Arquitectura realizado em 1948.
Nesse momento de viragem na reconquista da liberdade de
expressão dos arquitectos e simultâneamente do espaço para afir-
mar a inevitabilidade da arquitectura moderna, os arquitectos recla-
mam a industrialização e a sua participação na resolução do pro-
blema da habitação sem constrangimentos nem obrigatoriedades
de estilo. Reconhecendo que o “apetrechamento industrial do País
está apenas no seu início”, Arménio Losa que já tinha construído a
Fábrica das Sedas confrontando-se com o programa industrial afir-
maria justamente que “o apetrechamento técnico e industrial
impõem a profunda e consciente análise de todo o território para
68
47 Divulgada entre nós a partir da edição: GOODWIN, Philip , Brasil Builds, MOMA, New York, 1943
Nitratos Portugal, grupo Sacor, 1956 Foto: Alstomin BRANDÃO DE BRITO, José Maria,HEITOR Manuel, ROLLO, MariaFernanda, (coord.), Engenho e Obra, Dom Quixote, Lisboa.
Secil, escola primáriaArquivo Keil do Amaral
OlivaLinha do montagem das máquinasde costura Archivo Olivacast-Fundição Ferrosa, SA, in BRANDÃO DE BRITO, José Maria,HEITOR Manuel, ROLLO, MariaFernanda, (coord.), Engenho eObra, Dom Quixote, Lisboa, 2002
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melhor arrumação das indústrias, e das populações que fará deslo-
car ou concentrar. Impõem que se explorem as riquezas do país, se
aproveitem todos os recursos naturais”.48 Reivindica-se a intervenção
a uma outra escala que não a do edifício isolado, isto é, o direito à
escala da cidade. Citou-se Le Corbusier e a utopia da sua Ville
Radieuse. E, recorrentemente a Carta de Atenas49 como dogma
urbanístico para situar a urgência de uma nova racionalidade urba-
nística e arquitectónica, com o sentido de manifesto e ortodoxia
que comportam.50
O pós-guerra marca o fim do ciclo das obras públicas e o início de
uma nova etapa na política económica do Estado Novo. Se o pri-
meiro, que designámos também como o primeiro período do ciclo
do betão, foi dominado pela figura tutelar de Duarte Pacheco, a
segunda etape que em paralelismo usamos a imagem do segundo
período do ciclo do betão seria referida à influência de Ferreira Dias.51
Este segundo ciclo caracteriza-se pela alteração profunda nas estru-
turas da economia pautada pelo arranque da electrificação e da
moderna industrialização do país a partir do final dos anos quarenta.52
Os grandes objectivos da política económica são enquadrados nos
então chamados “planos de fomento” que procuravam, de acordo
com as tendências gerais do capitalismo europeu fortemente influen-
ciados pelo processo de “americanização”53, criar as condições para
um crescimento do sector industrial nacional.
De facto, a partir do pós-guerra, o protagonismo de Ferreira Dias
com a publicação de Linha de Rumo54 confirmando as teses já
expressas ao longo dos anos trinta, exorta a economia portuguesa
para a necessidade de industrialização. Em 1945, a lei 200555 consti-
tuíu o instrumento jurídico para o “fomento” e “reorganização indus-
trial”, podendo ser considerada “o único verdadeiro projecto de
industrialização formulado durante toda a a vigência do Estado
Novo”56 onde se apontava claramente para uma visão “neofisiocrá-
tica” transformadora do país baseada na industrialização. Defen-
dendo a distribuição da energia eléctrica como “uma obra de
fomento ”contribui para uma nova estratégia do regime. É o
momento de valorizar as obras industriais e de electrificação para
onde são preferencialmente canalizados os investimentos públicos.
As grandes infraestruturas fundamentais ao desenvolvimento
industrial tomavam o lugar ocupado nos anos trinta pela edificação
das obras públicas que passam agora a um plano secundário. Basta
recordar que no I Plano de Fomento (1953-1958) a dotação orça-
mental era clara na revelação das grandes estratégias do regime,
com a atribuição de 34,6 % para obras de infra-estruturas e 32,1 %
para transportes e comunicações,57 situação prolongada no quadro
do II Plano de Fomento (1959-1964).
O processo de industrialização então desencadeado vai enqua-
drar uma profissionalização crescente do sector da construção em
que a criação do Laboratório Nacional de Engenharia Civil consti-
tui o sinal mais claro. Ao longo do que podemos designar por
segundo ciclo do betão armado58 a tentativa de desenvolvimento
de sectores básicos levará a dar prioridade à infra-estrutura produ-
tiva: das barragens às estradas, dos portos aos viadutos, dos aero-
portos aos silos.
A lei da electrificação definiu as grandes obras do regime con-
centradas nas “obras de arte” da engenharia de estruturas, com des-
taque inaugural para as barragens. E todas as infraestruturas de apoio
onde os arquitectos são chamados a conceber as novas implan-
tações fazendo “as cidades para os homens” estendendo o ideário
moderno ao nordeste transmontano no quadro do aproveitamento
hidroelétrico do Douro Internacional liderado pelo engenheiro Arsé-
nio Nunes e pontuado pelos arquitectos Archer de Carvalho, Nunes
de Almeida e Rogério Ramos. Confirmando a potência criadora da
nova geração que então se definia, aí se ensaiaram novidades pro-
gramáticas, investigação de soluções espaciais baseadas na célula
mínima assimiladas à resolução de organigramas como expressão
matemática. Blocos repetidos, levantados em pilotis sobre platafor-
mas verdes de nível confirmam a obsessão pela repetibilidade modu-
lar mas também pela preocupação higienista com o sol e o espaço
verde abstracto.
Anos antes a HICA-Hidroeléctrica do Cávado (HICA) iniciava o
processo de aproveitamento hidroeléctrico do rio Cávado e do seu
afluente Rabagão tendo Januário Godinho ficado responsável pela
arquitectura de todo o complexo em estreita colaboração com os
Serviços Técnicos da Hica. Inaugurava-se um novo ciclo de colabo-
ração entre áreas disciplinares complementares na esteira da arti-
culação da unidade procurada pelo Movimento Moderno entre o
binómio arte-técnica. Para o transporte da electricidade foi criada a
Companhia Nacional de Electricidade59 com o objectivo de gerir a
rede eléctrica nacional tendo sido chamados dois arquitectos, Januá-
rio Godinho e Keil do Amaral, que fizeram, respectivamente no norte
e no sul, a “arquitectura” da Companhia.
Também a metalurgia e a metalomecânica, sector chave do
desenvolvimento económico e industrial, viveu por essa altura uma
expansão conjuntural com a inauguração das instalações da Oliva,
iniciando o fabrico de precisão em série e dando lugar a um actua-
lizado complexo industrial projectado pelo grupo de arquitectos ARS.
Em 1957, as comunicações apresentadas no II Congresso da
Indústria Portuguesa davam conta da situação criada integrando
como um dos temas em debate a questão da “Investigação Tecno-
lógica e Económica e a Indústria”. Apresentava-se como condição
para o desenvolvimento da investigação “o reconhecimento de que
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48 LOSA, Arménio, “A arquitectura e as novas fábricas”, I Congresso Nacional de Arquitectura, promovido pelo Sindicato Nacional deArquitectos com o Patrocínio do Governo, Maio/Junho 1948.49 O documento colectivo elaborado no quadro deste IV CIAM, que ficou conhecido como a Carta de Atenas, acabaria por serpublicado dez anos depois por Le Corbusier, LE CORBUSIER, La Charte d’Athènes, travaux du 4ème CIAM, Plon, Paris, 1943. O seu impactofoi enorme, tendo sido traduzido em oito línguas. A tradução para português foi publicada na revista Arquitectura, Lisboa, 2ª série, nº 20 a27, 1948. Refira-se que as teorias da Ville Radieuse Corbusiana foram divulgadas em Portugal primeiro por Nuno Teotónio Pereira naspáginas da revista Técnica- “A Arquitectura e a Engenharia na Construção”, Técnica nº 138, Instituto Superior Técnico, Lisboa, Maio 1942;“As Necessidades Colectivas e a Engenharia”, Idem, nº 142, Dezembro 1943 e nº 143, Janeiro de 1944.50 Ver TOSTÕES, Ana, Os Verdes Anos na Arquitectura Portuguesa dos Anos 50, FAUP, Porto, 1997.51 PORTAS, Nuno , “O Ciclo do betão em Portugal”, Arquitectura de Engenheiros, Lisboa, FCG, 1980.52 ROLLO, Maria Fernanda, “A Industrialização e os seus impasses”, in MATTOSO, José (Dir.), História de Portugal, Sétimo Volume, pág. 450,Lisboa, Círculo de Leitores, 1994.53 A este propósito ver o número temático dedicado ao pós-guerra na Europa e à influência do Plano Marshall em diversos países, comdestaque para o excelente artigo sobre o processo Italiano. Cf. “The Reconstruction in Europe after Worl War”, Rassegna, Milano, ano XV,54/2, June 1993.54 FERREIRA DIAS, J. N., Linha de Rumo, notas de economia portuguesa, Liv. Clássica Ed., Lisboa, 1945.55 Lei nº 2005 de 14 de Março de 1945.56 BRANDÃO DE BRITO, José Maria, A Industrialização Portuguesa no pós-guerra (1948-1965), op. cit, pág. 320.57 O I Plano de Fomento apontava como principais objectivos: o fomento da agricultura; aumento da produção de energia hidráulica;conclusão das indústrias de base já em curso; instalação da siderurgia; desenvolvimento das vias de comunicação e meios de transporte;desenvolvimento da refinação do petróleo, da produção de adubos e da marinha mercante, ver ROLLO, Maria Fernanda, op.cit., pág. 45558 TOSTÕES, Ana, Cultura e Tecnologia da Arquitectura Moderna Portuguesa, Dissertação de Doutoramento, IST, Lisboa, 2002.59 A Companhia Nacional de Electricidade (CNE) foi constituída por escritura pública em 14 de Abril de 1947, tendo por objectivo “oestabelecimento e a exploração de linhas de transporte e subestações destinadas ao fornecimento de energia eléctrica aosconcessionários da grande distribuição, aos consumidores cujo abastecimento directo se justifique nos termos da base XIII da Lei nº2002,bem como à ligação dos sistemas do Cávado e do Zêzere, entre si e com os sistemas existentes”. Cf. ROLLO, Maria Fernanda, BRANDÃO DEBRITO, José Maria, “Ferreira Dias e a constituição da Companhia Nacional de Electricidade”, in Análise Social nº 136-137, pág. 343, 1996.
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a melhoria das condições de vida do Homem está directamente
dependente da ciência e da Técnica”. Apontava-se a necessidade
de banir a “ideia da virtude da ignorância” e a necessidade de gene-
ralizar “o reconhecimento da virtude do saber”.60
Tempo de ruptura, encara-se a mudança do mundo atravès da
arquitectura e da mediação dos benefícios da máquina. Afirma-se
uma produção referenciada à arquitectura internacional que busca
a sua essência num determinismo técnico decorrente dos sistemas
de industrialização, baseados na virtude da repetitividade e na
crença no mundo industrial. A matriz mecanicista da ideologia
moderna alimenta uma arquitectura de vocação política vinculada
ao sistema económico no pressuposto da racionalização e da stan-
dartização. Assume-se a sinceridade máxima da construção a partir
do “módulo”. O sistema construtivo funciona como inspirador con-
ceptual e mote regrador da arquitectura. A estrutura torna-se soli-
dária da organização funcional e espacial. A utilização do betão ao
longo da primeira metade dos anos 50 generalizava-se numa cons-
trução porticada conjugando suportes verticais e lajes tornadas cada
vez mais leves com a introdução de elementos cerâmicos a defini-
rem rígidas modulações que eram encaradas plasticamente pelos
arquitectos como estímulo compositivo. Período de grande riqueza
plástica e gráfica o aprofundamento da renovada expressão do
moderno sob influência brasileira conjuga-se com o universo tecno-
lógico da proposta corbusiana.
A racionalidade da construção funciona como lógica estrutu-
rante da arquitectura e da cidade. As escalas contaminam-se cum-
prindo o desiderato moderno do projecto global. Os projectos adqui-
rem um crescente detalhe de pormenorização revelador da intensi-
dade colocada na concepção. A modulação estrutural e constru-
tiva é assumida plásticamente na imagem exterior das construções
e legitimado como alibi formal.
Graças ao sistema de construção porticada as fachadas perde-
ram a função de suporte sendo compostas modularmente com
recurso a diversos dispositivos funcionais que são usados plastica-
mente: as grelhas de protecção da luminosidade ou de camuflagem
das áreas de serviço, ou os processos de iluminação zenital dos gra-
neds complexos industriais.
Entretanto publicavam-se entre nós tabelas e ábacos como as
do engenheiro Fernando Vasco Costa61 e em obras de carácter
excepcional, como foi a do aproveitamento Hidroeléctrico do
Cávado (HICA) iniciada em 1947 foi já usado o computador para os
cálculos62 de estruturas complexas como barragens abóbada ou pon-
tes suspensas. Na arquitectura, o betão armado proporcionou cres-
centemente, graças também ao empenho técnico de muitos engen-
heiros e construtores, a realização de construções cada vez mais
ousadas de que podemos destacar o silo de sulfato de amónio
erguido no grande complexo da CUF ou a monumental Aciairia da
Siderurgia Nacional construída totalmente a partir de peças de betão
pré-moldado.
Os anos sessenta marcam o início da ruptura e de uma crescente
“modernização” apoiada numa matriz industrial: o território trans-
forma-se com os grandes empreendimentos e a escala de inter-
venção a altera-se. O “moderno” pela via imagética do Estilo Inter-
nacional tende a banalizar-se. Uma construção apostada numa alta
tecnologia tende a ser experimentada nos grandes edifícios de ser-
viços surgindo os primeiros grandes edifícios em altura como é o caso
do Sheraton-Imaviz em Lisboa de Fernando Silva. É também por essa
altura que se experimenta um sistema de pre-fabricação a grande
escala aplicado auma urbanização privada (Stº. António dos Cava-
leiros, nos subúrbios de Lisboa). É a época da “profissionalização”, da
formação das grandes empresas de projectos e gestão de obra
como a Firma Gefel que chamará a si a construção das grandes cen-
trais cervejeiras: Unicer e Centralcer na metrópole e a Cuca em
Angola. Com o final da década e a abertura “marcelista” a um capi-
tal cada vez mais liberalizado surgem obras que ultrapassam crono-
logicamente o nosso inquérito e que apenas confirmam a abertura
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60 ROCHA, Manuel, “A Investigação e a Indústria”, Comunicações apresentadas ao II Congresso da Indústria Portuguesa, pág. 10,Ministério das Obras Públicas-Laboratório Nacional de Engenharia Civil, Lisboa, 1957.61 VASCO COSTA, Fernando, “Tabelas para o Cálculo do betão Armado”, in Técnica, Lisboa, 194.62 Segundo refere Joaquim Vizeu, foi usada um IBM 704. Ver CORREIA de SOUSA, António, O Computador Científico 704 da IBM, CATEC(Centro de Aperfeiçoamento Técnico dos Engenheiros da Hidroeléctrica do Cávado), Porto, 196.
Siderurgia Nacional Arquivo da Siderurgia NacionalFoto: Henrique Ruas/IPPAR
Caves José Maria FonsecaFoto: Deolinda Folgado/IPPAR
CUF, construção armazém fosforite, 1907 BarreiroÀquatro, Projectos de Engenharia SA,in BRANDÃO DE BRITO, José Maria, HEITORManuel, ROLLO, Maria Fernanda, (coord.),Engenho e Obra, Dom Quixote, Lisboa, 2002
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do programa industrial a soluções inovadoras e qualificadas como é
o caso da JM Fonseca em Azeitão, de Raul Ceregeiro e Gomes da
Silva (1968-1969), ou da Kodak Portuguesa com projecto americano
adaptado pela Profabril.
A concepção das implantações industriais como uma arquitec-
tura da relação precisa entre homens, máquinas e espaços seria
ainda objecto de uma concepção maior concebida no quadro do
Complexo Industrial de Sines (1971) a fundação da nova cidade de
Santo André. Pensada como uma área concentrada de indústrias
base com a petroquímica surgia como um novo marco na tardia
industrialização portuguesa.
Modelo cultural industrial e arquitectura do Movimento Moderno Modelo cultural industrial e arquitectura do Movimento Moderno cons-
tituem finalmente memória histórica e simbólica de uma quimera, a
quimera contemporânea. Que também era a vontade de mudar e
transformar o mundo. E é seguramente esta questão que diferencia
a arquitectura do Movimento Moderno. Isto é, o facto de ter assu-
mido quase como manifesto essa tarefa, reclamando a capacidade
dos arquitectos de construírem um mundo melhor. De facto a felici-
dade como mito ou invenção contemporânea constitui uma das
metas e obsessões dos seres humanos que a modernidade conver-
teu em exigência. Decorrente do fenómeno crescente de laicização
da sociedade moderna, a modernidade com a sua vitória sobre os
deuses, que o suporte da máquina apoiou, não podia deixar de exi-
gir prometer a felicidade na terra.
No século XX os caminhos laicos em direcção a um final feliz alter-
nam entre momentos em que a felicidade aparece como uma con-
quista colectiva (não era esta a mística da revolução?) e os momen-
tos hedonistas de retorno aos valores da felicidade privada.
E aqui se coloca de algum modo a questão pessimista de que a
arquitectura tentou responder ao caos urbano e não antecipar com
as suas formas novas um mundo novo. Como justamente observou
Argan, Gropius apenas quis responder, com pragmatismo e funcio-
nalidade, ao caos do mundo. E por momentos terá tido a ilusão que
o arquitecto seria capaz de o transformar.63 A história das marcas da
industrialização é também essa memória simbólica e tragicamente
potente.
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63 ARGAN, Giulio Carlo , Gropius et le Bauhaus, Denöel/Gontier, Paris, 1979 [ed. original italiana, 1951].
KodakFoto: Deolinda Folgado/IPPAR
Consórcio laneiro de PortugalArchivo Nuno Teotónio Pereira
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