em direcção a uma estética industrial: zeitwill ou vontade de

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EM DIRECÇÃO A UMA ESTÉTICA INDUSTRIAL Arte e técnica: objeto de uso e objeto artístico Desde as origens da produção que não se distinguiam os critérios de funcionalidade dos critérios de arte. A distinção entre o belo e o útil é própria da Idade Moderna quando se conceptualiza a relação entre razão científica e razão artística. É no Renascimento que se con- ceptualiza a relação entre Razão científica e Razão artística. Mas é no século XVII que a distância entre a linguagem formal das gentes cultas e a das classes inferiores se institucionaliza com a criação das Academias, os organismos que vão estabelecer as regras do jogo das então designadas “Belas-Artes”. Distinguindo-se as maiores e as menores, cavando-se o impasse entre o belo e o útil. Opondo criatividade ao gesto mecânico, Alberti pratica a divisão do trabalho. Nas suas construções, que são puros objectos arquitec- tónicos, “participa” apenas uma única mente criadora: o artista. Ao contrário, a realização das catedrais medievais exigiu que na sua construção se associassem não só os mais diversos artesãos como toda a comunidade. Do mesmo modo, no mundo grego ou romano o objecto artístico integrava-se no processo global da produção arte- sanal. Não se distinguia o objecto de uso do objecto artístico. Este conceito amplo de produção faz-nos recordar as palavras de Maiakowsky quando, no quadro das vanguardas soviéticas, dizia a propósito do trabalho que ele certamente classificava como a tarefa revolucionária dessa mesma vanguarda: “Todo este trabalho não tem para nós uma finalidade estética. É o laboratório que per- mite exprimir, da melhor maneira, os factos do nosso tempo. Não somos sacerdotes criadores, mas operários que executam uma orde- nação social”. 3 De facto, esta dicotomia arte/técnica, belo/útil, reflectia igual- mente a oposição entre dois valores: o individual, condensado na 60 ANA TOSTÕES Em direcção a uma estética industrial: Zeitwill ou vontade de modernidade O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo (...) Só que há pouca gente para dar por isso (...) Óhóhóh, o vento lá fora Álvaro de Campos, Poesia Completa, Ática, Lisboa 1 GIEDION, Sigfried, Bauen in Frankreich, bauen in eisen, bauen in beton, Klinkhardt & Biermann, Leipzig, 1928. 2 PIZZA, António, “La Industria y su aportación a la arquitectura moderna”, en Arquitectura e Indústria Modernas 1900-1965, Actas Segundo seminario DOCOMOMO Ibérico, Sevilla, 1999. 3 SETA, Cesare de, “O Objecto”, en Enciclopédia Einaudi, vol 3, IN-CM, Lisboa, 1984. A matriz mecanicista e de um modo lato o universo industrial têm sido reconhecidos pela historiografia como fonte inspiradora não só de for- mas mas sobretudo de conceitos e princípios projectuais que estiveram na génese da arquitectura do Movimento Moderno. 1 Espírito da época industrial, estética da máquina e um novo programa a que era neces- sário dar resposta, o industrial, tendem a conformar uma articulação entre arte e técnica como uma“nova unidade”. Neste ensaio procuro estabelecer essa relação e analisar como a arquitectura moderna por- tuguesa se baseou nos novos materiais e programas, com destaque para o industrial. Se a máquina –e a sua estética– alimentaram um pensamento racio- nal apostado na eficácia de um princípio de funcionamento, o pro- grama da indústria –que afinal conformava a acção dessa máquina, dos homens que a alimentavam e dos espaços que a organizavam– constituíu por excelência o campo experimental não só de uma con- cepção espacial inovadora mas também do risco que representava uti- lizar novos materiais e estruturas. Primeiro o ferro e depois o betão armado e o aço, materiais surgidos justamente das necessidades de espaço dessa nova actividade, a indústria. E, com o recurso a também novos elementos estruturais acompanhado de uma inovadora con- cepção dos interiores. Por isso, se pode afirmar que a partir do século XX se estabeleceram relações fundamentais entre “o mundo das fábri- cas e as expressões de uma nova arquitectura”. 2 Depois de justificada a tarefa de levantamento e a análise das cons- truções industriais e do pano de fundo social e cultural que as suportou no quadro das atribuições do DOCOMOMO Ibérico importa começar por clarificar em que medida o paradigma mecânico se converteu em signo de modernidade e por essa via, em indicação metafórica quer da organização espacial, quer da iconografia do construído, quer da atitude projectual . * IST-UTL, investigadora do ICIST * 001>093_docoP 15/7/04 19:39 Página 60

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Page 1: Em direcção a uma estética industrial: Zeitwill ou vontade de

EM DIRECÇÃO A UMA ESTÉTICA INDUSTRIALArte e técnica: objeto de uso e objeto artísticoDesde as origens da produção que não se distinguiam os critérios de

funcionalidade dos critérios de arte. A distinção entre o belo e o útil

é própria da Idade Moderna quando se conceptualiza a relação

entre razão científica e razão artística. É no Renascimento que se con-

ceptualiza a relação entre Razão científica e Razão artística. Mas é

no século XVII que a distância entre a linguagem formal das gentes

cultas e a das classes inferiores se institucionaliza com a criação das

Academias, os organismos que vão estabelecer as regras do jogo

das então designadas “Belas-Artes”. Distinguindo-se as maiores e as

menores, cavando-se o impasse entre o belo e o útil.

Opondo criatividade ao gesto mecânico, Alberti pratica a divisão

do trabalho. Nas suas construções, que são puros objectos arquitec-

tónicos, “participa” apenas uma única mente criadora: o artista. Ao

contrário, a realização das catedrais medievais exigiu que na sua

construção se associassem não só os mais diversos artesãos como

toda a comunidade. Do mesmo modo, no mundo grego ou romano

o objecto artístico integrava-se no processo global da produção arte-

sanal. Não se distinguia o objecto de uso do objecto artístico.

Este conceito amplo de produção faz-nos recordar as palavras

de Maiakowsky quando, no quadro das vanguardas soviéticas, dizia

a propósito do trabalho que ele certamente classificava como a

tarefa revolucionária dessa mesma vanguarda: “Todo este trabalho

não tem para nós uma finalidade estética. É o laboratório que per-

mite exprimir, da melhor maneira, os factos do nosso tempo. Não

somos sacerdotes criadores, mas operários que executam uma orde-

nação social”.3

De facto, esta dicotomia arte/técnica, belo/útil, reflectia igual-

mente a oposição entre dois valores: o individual, condensado na

60 ANA TOSTÕES

Em direcção a uma estética industrial:Zeitwill ou vontade de modernidade

O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo (...)

Só que há pouca gente para dar por isso (...)

Óhóhóh, o vento lá fora

Álvaro de Campos, Poesia Completa, Ática, Lisboa

1 GIEDION, Sigfried, Bauen in Frankreich, bauen in eisen, bauen in beton, Klinkhardt & Biermann, Leipzig, 1928.2 PIZZA, António, “La Industria y su aportación a la arquitectura moderna”, en Arquitectura e Indústria Modernas 1900-1965, Actas Segundoseminario DOCOMOMO Ibérico, Sevilla, 1999.3 SETA, Cesare de, “O Objecto”, en Enciclopédia Einaudi, vol 3, IN-CM, Lisboa, 1984.

A matriz mecanicista e de um modo lato o universo industrial têm sido

reconhecidos pela historiografia como fonte inspiradora não só de for-

mas mas sobretudo de conceitos e princípios projectuais que estiveram

na génese da arquitectura do Movimento Moderno.1 Espírito da época

industrial, estética da máquina e um novo programa a que era neces-

sário dar resposta, o industrial, tendem a conformar uma articulação

entre arte e técnica como uma“nova unidade”. Neste ensaio procuro

estabelecer essa relação e analisar como a arquitectura moderna por-

tuguesa se baseou nos novos materiais e programas, com destaque para

o industrial.

Se a máquina –e a sua estética– alimentaram um pensamento racio-

nal apostado na eficácia de um princípio de funcionamento, o pro-

grama da indústria –que afinal conformava a acção dessa máquina,

dos homens que a alimentavam e dos espaços que a organizavam–

constituíu por excelência o campo experimental não só de uma con-

cepção espacial inovadora mas também do risco que representava uti-

lizar novos materiais e estruturas. Primeiro o ferro e depois o betão

armado e o aço, materiais surgidos justamente das necessidades de

espaço dessa nova actividade, a indústria. E, com o recurso a também

novos elementos estruturais acompanhado de uma inovadora con-

cepção dos interiores. Por isso, se pode afirmar que a partir do século

XX se estabeleceram relações fundamentais entre “o mundo das fábri-

cas e as expressões de uma nova arquitectura”.2

Depois de justificada a tarefa de levantamento e a análise das cons-

truções industriais e do pano de fundo social e cultural que as suportou

no quadro das atribuições do DOCOMOMO Ibérico importa começar

por clarificar em que medida o paradigma mecânico se converteu em

signo de modernidade e por essa via, em indicação metafórica quer

da organização espacial, quer da iconografia do construído, quer da

atitude projectual .

* IST-UTL, investigadora do ICIST

*

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tradição da grande arte de vocação elitista; e o universal, de que o

progresso era porta-voz, através de uma crescente industrialização

dirigida para uma massificação social no que ao consumo também

dizia respeito.

Neste quadro importa referir a definição que Diderot fez da

relação entre arte e utilidade social para explicar a dicotomia entre

as artes maiores e as artes mecânicas, estabelecendo um ponto de

situação “iluminado” que anunciava as transformações e invenções

prodigiosas e reflectia os avanços realizados entretanto no universo

das ciências exactas: “Se puserem numa balança, de um lado a uti-

lidade real das ciências mais sublimes, das artes mais nobres, e do

outro a utilidade das artes mecânicas, verão que os valores atingidos

não foram estabelecidos segundo critérios que tivessem em conta os

respectivos méritos, porque os homens empenhados em fazer-nos crer

que somos mais felizes conseguiram sempre mais louvores do que

aqueles que se esforçaram para que o fôssemos de facto”.4

Com o aparecimento da máquina, ou mais exactamente da téc-

nica com as suas possibilidades de reprodutibilidade mecânica e

industrial, estabeleceram-se novas relações na civilização contem-

porânea entre as artes e as actividades técnicas. A relação arte/téc-

nica parecia então opôr sentimento e razão, e nesse sentido separar

função técnica da função estética. Partindo do princípio que no

mundo moderno da mecanização é muito mais difícil sentir do que

pensar,5 Sigfried Giedion procurou resolver a questão entre razão e

sentimento.

Essa ideia de oposição irremediável entre arte e indústria, nascida

em meados do século XIX apenas prolongava uma sensibilidade, uma

susceptibilidade romântica que não abandonou o homem ociden-

tal até hoje confundindo “arte com a natureza e [reduzindo] a téc-

nica à mecanização”.6 Encarando a arte simultaneamente como

modo de compreensão e modo de acção, a arte só podia ser con-

siderada com uma função social fundamental. E é justamente por

isso que ela passa a englobar todas as disciplinas (da pintura à arqui-

tectura, da escultura aos objectos utilitários) no quadro de um desen-

volvimento do maquinismo e da industrialização que, conjugados

com os progressos nas ciências aplicadas, conduziram a uma trans-

formação completa do mundo. Como refere José-Augusto França,

“a grande glória da arquitectura do ferro” foi alcançada pela torre

de 300 m construída por Gustave Eiffel (1832-1923) para a exposição

universal de 1889 em Paris. Tornada emblema da própria cidade, o

facto da sua elegância formal depender da própria construção

“numa afirmação ao mesmo tempo gratuita e utilitária”,7 confirmava

a possibilidade do uso estético dos dados do progresso, no caso das

novas potencialidades do uso do ferro. Após a apoteose da máquina

com a exposição parisiense,8 os engenheiros arrogam-se o título de

criadores de beleza, ou melhor, “a palavra desaparece do vocabu-

lário deles para ser substituída pela de utilidade”.9 Como escrevia Paul

Souriau em 1904, “Qualquer coisa pode considerar-se perfeita quando

está conforme a sua utilidade”, porque na sua beauté rationelle “não

[podia] haver conflito entre o belo e o útil. O objecto adquire a sua

beleza no momento em que a sua forma é a expressão manifesta da

sua função”.10

É neste quadro que a procura de uma arquitectura moderna, ou

melhor de uma arquitectura “para o nosso tempo”, para usar a feliz

metamorfose que Otto Wagner realizou de “moderno” para “nosso

tempo” entre 1896 e 1914,11 tende a perseguir a ideia resultante da

articulação Arte e Técnica, considerando-se justamente que “não

pode ser belo aquilo que não é útil”.12 Foi Gropius que enunciou cerca

de três décadas depois, com objectividade germânica, este binó-

mio como condição da reposição da unidade perdida, declarando

“Arte e Técnica: uma nova unidade!”.13 Com o objectivo de ligar a

tradição artística de uma obra total na esteira das Arts and Crafts,

4 DIDEROT, Denis, “Art”, en Encyclopédie, ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, par une societé de gens de lettres. Misen ordre et publié par M. Diderot (…) et quand à la Partie Mathématique, par M. d’Alembert (…), Briasson, David, Le Breton, Durand, Paris, 1751, SETA, Cesare de, “O Objecto”, op. cit., pág. 99.5 GIEDION, Sigfried, Arquitectura e Comunidade, Livros do Brasil, Lisboa, 1955.6 FRANÇA, José-Augusto, “prefácio”, en FRANCASTEL, Pierre, Arte e Técnica, Livros do Brasil, Lisboa, 1963 [1956].7 FRANÇA, José-Augusto, História da Arte Ocidental, pág.116, Horizonte, Lisboa, 1987.8 De todo o conjunto erguido destacava-se a Tour Eiffel, tornada ícone da modernidade no seu desafio da técnica, mas também monumentoeuropeu surgido no seio da cultura francesa, surgia como uma confirmação de que o futuro estava no velho continente. A magnífica Galleriedes Machines assinalava as potencialidades de articulação espacial com o novo material, ferro, a vencer um inusitado vão livre sem recurso aapoios verticais intermédios. 9 SOURIAU, Paul, La Beauté rationelle, Paris, 1904, citado por FRANCASTEL, Pierre, Arte e Técnica, op. cit., pág. 44.10 idem, pág. 45.11 É sintomático o facto de Moderne Architektur ter sido editado quatro vezes em 1896, 1898, 1902 e 1914, esta útima com uma mudançasignificativa de nome. Die Baukunst unserer Zeit, WAGNER, Otto, La Arquitectura de nuestro tiempo, Croquis, Barcelona, 1993 [1896].12 WAGNER, Otto, La Arquitectura de nuestro tiempo, op. cit.13 GROPIUS, Walter, 1923, in CONRADS, Ulrich, Programmes et manifestes de l’architectura du xxème siècle, Ed. de La Villette, Paris, 1991 [1970].

Ferramentas Ponte romanaAlcântaraFoto: Ana Tostões

Vaso grecoFoto: Ana Tostões

Máquina, en Adrian Forty, Objects of desire, London, Thamesand Hudson, 1995

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Page 3: Em direcção a uma estética industrial: Zeitwill ou vontade de

assim se demarcando da prática ecléctica e estilística das Beaux-

Arts, fazia justamente a ponte com a tradição racionalista helvética,

de que Hannes Meyer ou Hans Schmidt seriam porta-voz no seu

esforço radical de subtrair o discurso estético da construção.14

Assim se propunha ultrapassar a crise aberta em meados de sete-

centos, quando os valores de eficácia da engenharia pareciam ter

condenado irremediavelmente o conceito de belo a ficar separado

do útil. E a arquitectura como arte, reduzida entretanto a sinónimo

de forma e ornamento, tinha passado a opôr-se à técnica, instru-

mento de progresso e nessa medida de bem-estar da civilização.

O impasse entre o belo e o útil começava a esbater-se e a per-

der eficácia justamente no momento em que a revolução industrial

transforma em perspectiva real a produção e reprodução de mate-

riais, sistemas, objectos. Se no final do século XIX, William Morris (1834-

1896) era capaz de defender o conceito da unidade das artes atra-

vés da arquitectura,15 duas décadas depois De Stijl no seu manifesto

ampliava os factores desta função, entendida no sentido matemá-

tico declarando: “testámos a arquitectura como a unidade plástica

das artes, da indústria e da técnica e estabelecemos que esta for-

mação conduzirá à criação de um novo estilo”.16

No pós-guerra a questão começa a ser actualizada através de

uma valorização das formas decorrentes dos programas industriais,

isto é, aquelas que não resultam directamente da arquitectura da

grande composição e que estimulam imagens valorizadoras da estru-

tura portante. A influência germânica tornava-se referência, se pen-

sarmos nas obras pioneiras de Behrens, a sua AEG de 1903, ou mesmo

na fábrica Fagus realizada pelo jovem Gropius com um experimen-

talismo que será a base da sua evolução posterior.

Depois da descoberta do edifício funcional modelar, o silo ame-

ricano para cereais amplamente difundido em fotografia a partir dos

anos dez,17 Le Corbusier retomava estas imagens na revista L’Esprit

nouveau, relevando claramente a forma e denunciando a importãn-

coa do material. A tarefa do arquitecto moderno parecia consistir

em deixar descobertos os valores integrais de beleza da construção

e dos materiais.18 Essa imanente beleza da forma-construção e o entu-

siasmo pelo sentido do utilitário19 reconhece-se quando Le Corbusier

afirmou que “a casa é uma máquina de habitar”.20 Não só procla-

mou um princípio estético, como reconheceu, na sua admiração pela

engenharia,21 a integração indispensável dos sistemas na construção

moderna. Desde a canalização à electrificação, da iluminação ao

aquecimento, lâmpadas, radiadores, tomadas e grelhas tornaram-

se aparatos não só visíveis mas sobretudo assumidos como protago-

nistas de uma estética moderna.

Esta revolução no domínio da construção, conquistado como

fenómeno da modernidade para o campo da arquitectura,

começava inclusivamente a contaminar a área clássica da história

da arte, estimulando jovens historiadores a abraçarem uma historio-

grafia apostada num presente-futuro, entre crítica, divulgação e mani-

festo. Giedion, formado na escola Vienense de Jakob Burckhardt e

Heinrich Wöllflin, coloca esse enfoque na sua primeira obra Bauen in

frankreich. Oito décadas separam a construção do Palácio de Cris-

tal do aparecimento da obra de Giedion que exalta a inovação das

construções dos engenheiros, isto é das construções industriais. De

facto é entre 1851 e 1928 que se constitui o período onde tem lugar

o debate sobre o uso arquitectónico do ferro. Giedion propõe justa-

mente uma leitura onde o material tem um papel central na perio-

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14 GUBLER, Jacques , «le belezza del cemento armato », in “Cemento armato : ideologie e forme da Hennebique a Hilberseimer”, inRassegna pág. 86, Milano, Anno XIV, 49/1, Marzo 1992.15 “Penso que só por conveniência se separa a pintura e a escultura das artes aplicadas: porque o sinónimo de arte aplicada é a arquitec-tura (…) O produto completo da arte aplicada, a verdadeira unidade da arte é um edifício com todos os seus ornamentos e acessórios”, inMORRIS, William, The Arts and Crafts today, 1889, Cf. por SETA, Cesare de, op. cit., pág. 112.16 « De Stijl » Manifeste V:- [ ]+=R4, Paris, 1923, in CONRADS, Ulrich, Programmes et Manifestes de l’Architecture du XXème Siècle, Ed. de LaVillette, Paris,1991 [ed.original alemã 1970].17 Reproduzida entre outros em Jahrbuch des Deutschen Werkbundes, 1913; Le Corbusier, Vers une Architecture, 1923 ; Werner Lindner,Industriebau, 1923 ; Adolph Behne, Zweckbau, 1925.18 NEUMEYER, Fritz, Mies van der Rohe: La Palabra sin artifício, reflexiones sobre arquitectura, pág. 234, El Croquis, Madrid, 1995.19 GEORGIADIS, Sokratis, “introduction”, in GIEDION, Sigfried, Bauen in Frankreich, Bauen in Eisen, bauen in Eisenbeton, op. cit, pág. 22.20 LE CORBUSIER, Vers une Architecture, Flammarion, Paris, 1995 [1923].21 Le Corbusier na sua apologia dos engenheiros refere: “sãos e viris, activos e úteis, morais e alegres, em face dos arquitectos“desencatados e desocupados...os arquitectos hoje não realizam mais formas simples. Operando a partir do cálculo, os engenheiros usamas formas geométricas, satisfazendo os nossos olhas pela geometria e o nosso espírito pela matemática; as suas obras estão no caminho dagrande arte”. Le Corbusier fez muito pelo reconhecimento da estética do engenheiro revelando a “harmonia de um silo, de um paquete,de um avião, de um automóvel: “As criações da técnica maquinista são organismos que tendem à pureza e que estão submetidos àsmesmas regras evolutivas dos objectosda natureza que suscitam a nosas admiração. A harmonia está nas obras que saem do atelier ou dafábrica. Não é Arte, não é a Sixtina, nem o Eréction; são as obras quotidianas de todo o universo que trabalha com consciência,inteligência, precisão, com imaginação, audácia e rigor”. Cf Vers une Architecture, [1923].

Fábrica AEG, 1908BerlínPeter BehrensFoto: Ana Tostões

Silo americano reproduzido entre outros em Jahrbuch desDeutschen Werkbundes, 1913; Le Corbusier, Vers uneArchitecture, 1923 ; Werner Lindner, Industriebau, 1923 ; AdolphBehne, Zweckbau, 1925.

Elevador de StªJusta, 1901Lisboa Archivo Fotográfico Municipal-CML

Sistema Hennebique, in Rassegna, Milano, Anno XIV, 49/1, Marzo 1992

Galerie des Machines, in Sigfried Giedion,Bauen in Frankreich,1928

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Page 4: Em direcção a uma estética industrial: Zeitwill ou vontade de

dização histórica da arquitectura moderna. Analisando a revolução

operada pelo ferro, insiste na passagem de um modo de construir

para outro, traduzindo-se na evolução em direcção ao betão

armado: o material do século XX, apresentado como matéria funda-

mental da nova arquitectura. Recorrendo à noção de experiência,

propõe uma nova metáfora para a invenção arquitectónica. A arqui-

tectura, a partir do momento que decorre de um processo experi-

mental, pode aproximar-se não só do progresso das técnicas, mas

também do trilho das ciências.22 Insistindo sobre o primado do mate-

rial sobre a forma, não hesita em colocar o betão armado como o

motor da revolução estética.

A cultura do progresso, e nessa medida da máquina, tinha em

vista melhorar, tornar mais racional, eficiente, legível e agradável o

ambiente da vida quotidiana. Em simultâneo lançava-se uma com-

ponente eminentemente política porque se ocupava exclusivamente

do objecto para as massas. Gropius vai ser o protagonista desta nova

civilização de objectos: da colher à cidade.23 O salto qualitativo pro-

vocado pelo seu contributo fez com que a atenção aos mecanismos

industriais de produção de objectos se estendesse à construção civil

e ao urbanismo. Retomando a ideia exposta em “Arte e Técnica, uma

nova unidade”, podemos afirmar que a articulação da tradição das

Arts and Crafts com o contributo da Werkbund encontram na teoria

e na prática projectual de Gropius um momento de síntese.

Entretanto em 1908 o historiador da arte Wilhelm Worringer recon-

hecia que a arte já não representava a natureza, já não era, nem

pretendia ser uma segunda natureza, finalmente já não retirava os

seus valores da referente natureza. Na sua obra denominada Abs-

traction und Einfuhlung 24 o valor que Worringer dava à abstracção

teria grande influência nos arquitectos de entre as guerras, e parti-

cularmente nas vanguardas estéticas que explodiram na Europa. As

vanguardas vão trabalhar no sentido de demonstrar que a natureza

já não tinha uso como categoria organizativa no pensamento artís-

tico e arquitectónico. Partindo desse princípio de tábula rasa a fonte

substitutiva só podia estar no novo universo criado a partir da revo-

lução industrial. Por isso se pode dizer que as vanguardas se empen-

haram na tarefa de negar todos os aspectos da natureza, conside-

rados antes imutáveis. Usando como suporte os novos dados desco-

bertos pela ciência e as novas possibilidades da técnica, o mundo

industrial articulava a radicalização da noção de modernidade.

Máquina e modernidade: a produção em serie e os seus efeitosA modernidade tem sido definida como as experiências vitais com-

partilhadas por homens e mulheres de todo o mundo.25 Vitais, porque

convocam a experiência do tempo e do espaço. Uma relação no

espaço-tempo e uma percepção do espaço e do tempo transfor-

mados pela velocidade. A transformação pressupõe a introdução

de um conceito novo, o da velocidade, inebriante e imparável.

Sendo a máquina o protagonista desta alteração possível no espaço-

tempo.26 Ser moderno, é encontrar-se num ambiente que promete

aventura, poder, alegria, evolução, autotransformação e transfor-

mação das coisas em redor. Ser moderno, é fazer parte de um uni-

verso em que “tudo o que é sólido se dissolve no ar”.

Esta vida moderna radica em diversas fonte, das quais a mais

importante é certamente a industrialização da produção como fac-

tor de transformação do conhecimento científico em tecnologia. De

tal modo, que os novos ambientes humanos se afirmam na relação

directa da destruição dos antigos. Goethe no seu Fausto revelou

impiedosamente essa crueza: reconhecido como expressão da pro-

cura espiritual moderna atinge a sua realização e simultâneamente

a sua derrocada na transformação material da vida moderna. E é

certamente a industrialização que funciona como factor de acele-

ração do ritmo de vida, como geradora de novas formas de poder

institucional e de novas formas de luta de classes. Por seu turno a

explosão demográfica afecta milhões de deslocados empurrando-

os em direcção a novas vidas, conduzindo a um rápido e catastró-

fico crescimento urbano. Neste quadro, os sistemas de comunicação

de massas envolvem indivíduos e sociedades, ao mesmo tempo que

movimentos sociais de massas lutam paradoxalmente por obter algum

controle sobre as suas vidas. Finalmente um mercado de sentido capi-

talista mundial, flutuante, em permanente expansão, dirige e mani-

pula pessoas e instituições.

Eis o paradoxo moderno: algo que se quer agarrar mas que pas-

sou a estar em permanente transformação. A ideia que Marx já tinha

conceptualizado na poderosa imagem que literalmente e em todos

os sentidos objectivava a desagregação da matéria, do referente

mundo material, usando uma metáfora que buscava nas ciências

mais exactas a força da sua imagem para contrapor o sentido de

puro e impuro: “tudo o que é sólido se dissolve no ar, tudo o que é

sagrado será profanado”.27

As polarizações básicas manifestam-se no início do século XX com

as vanguardas, claramente com os futuristas, defensores apaixonados

da modernidade no desejo de fundir as suas energias com a tecnolo-

gia. O seu acrítico namoro com as máquinas conjugado com um pro-

fundo distanciamento da humanidade ressurgiria depois da I Guerra

Mundial nas formas retiradas da estética da máquina e na tecnocrá-

tica e funcional construção da Arquitectura do Movimento Moderno.

Importa recordar que no século anterior, e por isso justamente

63

22 COHEN, Jean-Louis , “Avant-propos”, in GIEDION, Sigfried, Construire en France, construire en fer, construire en béton, pág. XI, Ed. de LaVillette, Paris, 2000.23 Referência ao discurso de Mies van Der Rohe no aniversário de Gropius “A bauhaus é uma ideia”, Cf. NEUMEYER, Fritz, Mies van der Rohe,Réflexions sur l’Art de bâtir, Paris, Moniteur, 1996.24 Que me atrevo a traduzir por “Abstracção e Empatia”. Significativamente a versão francesa mantém o conceito, um pouco intraduzível, nalíngua original. Cf. WORRINGER, Wilhelm, Abstraction et Einfuhlung, Kkincksieck, Paris, 1986 [ed. Original alemã 1908].25 BERMAN, Marshall, Tudo o que é sólido se dissolve no ar, a aventura da modernidade, pág.105, Edições 70, Lisboa, 1990 [1981].26 Em 1908 O matemático alemão Hermann Minkowsky revelava a sua teoria de espaço-tempo quadrimensional que Giedion virá adesignarcomo “revolução óptica”. Cf. GIEDION, Sigfried, Space, Time and Architecture, The Growth of a new tradition, Harvard, 1941.27 “Alles Ständische und stehende verkampft, alles heilige wird entweist”, Cf. MARX, Karl , Manifestes der Kommunistischen Partei, Leipzig, 1973[1848] ; É este o tema, da visão diluidora e da sua dialética, que Marshall Berman usa como metáfora da modernidade, traduzindo por “All thatis solid melts in air, all that is holy is profaned”, cf. BERMAN, Marshall, Tudo o que é sólido se dissolve no ar, a aventura da modernidade, pág. 105,Edições 70, Lisboa, 1990 [1981].

Lisboa Filme, in AA.VV., Lisboa Filme. Um Sonho Vencido, Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 1987

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Page 5: Em direcção a uma estética industrial: Zeitwill ou vontade de

num contexto dominado pelo romantismo oitocentista, certas ideias

expostas na literatura moderna afectaram a cultura em geral.28

A primeira ideia absorvida respeita ao conceito de belo,

avançando-se a ideia de que arte e fealdade não são exactamente

incompatíveis. A aceitação deste fenómeno vai estimular a acei-

tação de novas formas, tendencialmente abstractas. Mas mais do

que isso vai abrir o campo para a exploração dos estímulos plásticos

e cinéticos emanados do mundo da técnica numa época de cres-

cente afirmação da máquina.

A segunda ideia podemos designá-la por um desejo de sinceri-

dade. É certamente a influência literária mais subtil e talvez a mais

penetrante. Conduz-nos à noção de verdade, e por essa via à pro-

cura de objectividade, figura adoptada pelos arquitectos modernos.

E, transformada quantas vezes na ideia de funcionalismo, isto é, o que

objectivamente responde à função desejada. Finalmente a sinceri-

dade como valor moral exerceu uma influência directa sobre o modo

de encarar a arte e a técnica, integrando-se como factor da con-

cepção arquitectónica através da ideia de que a construção deve-

ria expressar “sinceramente” a sua estrutura. Os materiais não deve-

riam portanto ser camuflados, mas assumidos na sua integridade, o

que conduziu lentamente primeiro e depois de modo amplo a assu-

mir a crueza, ou se se preferir a verdade dos materiais, abrindo

caminho para descobrir a potência plástica da arquitectura indus-

trial vista como acto de inovação capaz de ela própria poder con-

tribuir para alimentar a própria sobrevivência do processo moderno.

Em terceiro lugar, decorrendo directamente das duas questões

anteriores abria-se o campo ao materialismo, e com ele ao raciona-

lismo e ao funcionalismo. Racionalmente a forma podia finalmente

ser entendida como expressão da construção. A arquitectura

moderna concentra-se na expressão da construção e é também

nessa medida que luta contra o ornamento. Funcionalmente a uni-

formização resultava da lógica optimização dos recursos quer ao nível

da concepção espacial como da eleição de materiais, ou da

escolha dos sistemas e tecnologias para responder com eficácia à

questão colocada, em que o programa industrial constitui matriz

incontornável.

ARQUITECTURA MODERNA E INDÚSTRIA EM PORTUGALExperimentação de materiais e estructurasA afirmação e desenvolvimento da arquitectura moderna portuguesa

faz-se ao ritmo da industrialização e da relação directa estabelecida

com a produção dos novos materiais de construção. No início de

novecentos a cultura portuguesa, como aliás de um modo geral todo

a cultura ocidental, debatia-se entre um desejo de modernização,

que se apoiava numa crença optimista nas potencialidades da

máquina, e uma nostalgia de passado ameaçado que desprezava

esse presente em acelerada mutação. O mundo da construção e da

cidade reflectiam de algum modo a dicotomia desse momento de

transição, em que os valores artísticos da arquitectura eram con-

frontados com a eficácia da engenharia e as possibilidades dos novos

materiais. Por outras palavras, a engenharia insinuava-se como a

“nova arquitectura”.29 Ou melhor, no momento em que “a indústria

substituía a arte”,30 tendia a cristalizar-se o debate arte-técnica. E

assim se separando em campos opostos o secular percurso comum

da arquitectura e da engenharia.

Este afastamento disciplinar que demarcava a eficácia estrutu-

ral do engenheiro da habilidade artística do arquitecto tinha a sua

correspondência no fenómeno epocal e revivalista romântico que

dissociava construção e fachada, verdade do material e ornamento

apenso. E, como se verá, a construção encarada como uma com-

posição em partes separadas e aparentemente autónomas que

caracterizou o ecletismo de final de oitocentos não foi só caracterís-

tico da “grande” arquitectura porque as próprias construções ditas

“ulilitárias” integraram igualmente essa dicotomia.

O Elevador de Santa Justa, em Lisboa, projectado pelo engen-

heiro Raoul Mesnier du Ponsard em 1900 e inaugurado no ano

seguinte constitui a obra paradigmática do novo século. Utilizando,

inicialmente, a energia de uma máquina de vapor celebrava as uto-

pias urbanas finisseculares materializadas atravès das inovações da

técnica. Estabelecendo uma comunicação entre a Baixa e o Carmo

assinalava-se escultoricamente na sua verticalidade como elemento

inovador da cidade, afinal a torre possível da marcação do progresso.

O ferro como novo material de construção era utilizado sem disfarce,

mas expresso paradoxalmente numa linguagem revivalista gótica

que buscava a sua adequação a um tempo e a uma mentalidade

que era ainda de oitocentos.

Desde meados de oitocentos que o ferro constituía uma inovação

aplicada à construção das novas infraestruturas viárias. Empregue ini-

cialmente no quadro da implementação dos caminhos de ferro e uti-

lizado pela primeira vez entre nós na ponte de Xabregas (1854), as

possibilidades estruturais do material ficariam ligadas duas décadas

depois às pontes D. Maria (1877) e D. Luís (1888) sobre o Douro, ex-

libris não só portuenses mas de amplitude internacional como modelo

de resolução de grandes e profundos vãos.31 A revelação mediática

no ferro como material de construção ocorreu entre nós justamente

no Porto por ocasião da exposição Universal de 1865 que justificou o

Palácio de Cristal portuense.32

Diversas experiências com estruturas metálicas para além de reve-

larem actualizadas possibilidades técnicas assinalavam transfor-

mações na conjuntura social que exprimiam o silogismo: programas

novos-materiais novos. Contudo, o academismo e a expressão de

uma tradição construtiva feita gramática compositiva que domina-

vam a prática da arquitectura impediam culturalmente a assunção

clara da verdade estrutural. Acantonados nos princípios clássicos, os

64

28 COLLINS, Peter, Los Ideales de la Arquitectura Moderna; su evolución (1750-1950), Gustavo Gili, Barcelona, 1998 [1968].29 Sobre esta questão veja-se a discussão ocorrida no seio da cultura arquitectónica alemã ao longo de oitocentos, com destaquepara as posições de Gottfried Semper. Cf. GEORGIADIS, Sokratis, “Introduction”, in GIEDION, Sigfried, Bauen is Frankreich, Bauen inEisen, bauen in beton, Getty Center, Santa Monica, 1995 [1928].30 FRANCASTEL, Pierre, Arte e Técnica, Lisboa, 1963 [1956].31 FRAMPTON, Keneth, História Crítica da Arquitectua Moderna, pág. 35, Gustavo Gili, Barcelona, 1987.32 Construído entre 1861 e 1865, apresentava uma cúpula de ferro e vidro a toda a extensão do edifício com uma altura de cerca de18,90 m, Cf. Arquitectura de Engenheiros, séculos XIX e XX, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1980.

Arsenal Alfeite, in Arquitectos, nº3, 1938

Fábrica LusitanaPorto

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Page 6: Em direcção a uma estética industrial: Zeitwill ou vontade de

arquitectos posicionaram-se do lado da resistência à inovação.33 Na

verdade, a adesão à lógica da máquina e a uma racionalidade

construtiva decorrente da aplicação dos novos materiais, foi reser-

vada inicialmente a edifícios de carácter eminentemente utilitário de

que a Fábrica de Moagem de Trigo do Caramujo (Almada, 1898)

constitui paradigma em Portugal porque se trata da primeira cons-

trução em betão erguida entre nós.

A construção deste programa industrial foi realizado entre 1897 e

1898, aplicando o sistema Hennebique quando o betão armado era

ainda uma novidade em Portugal34 e segundo alguns autores mesmo

no estrangeiro.35 A escolha deste sistema poderá relacionar-se direc-

tamente com os riscos das construções tradicionais, nomeadamente

a sua fragilidade ao fogo, sentidos pelos industriais. Mas, muito para

além disso o sistema patenteado por Hennebique com os seus repre-

sentantes em Portugal, permitia uma concepção estrutural de gran-

des espaços apenas pontuados pela rede de finos pilares que se con-

jugavam com lajes armadas capazes de suportar grandes sobrecar-

gas, solução que respondia claramente aos requisitos funcionais de

uma grande laboração industrial. Para além disso, era ainda possível

encontrar soluções inovadoras que aliavam a funcionalidade á téc-

nica construtiva e à manutenção do edifício: por exemplo a cober-

tura em terraço adoptada servia simultaneamente de reservatório

de água (com capacidade para 20 m3), de isolamento térmico36 e

atrevemo-nos a pensar que também funcionando como neutraliza-

dor das dilatações provocadas ao material pelas diferenças de tem-

peratura. Contudo, apesar das grandes inovações construtivas, a

resolução da fachada, executada tradicionalmente com enchimento

de tijolo, acabaria por expressar um desenho também ele tradicio-

nalmente “clássico” para este grande edifício de seis andares e que

interiormente apresentava vãos livres rectangulares entre pilares de

3,00 m por 5,35 m.

Nesse mesmo ano 1898 o novíssimo material –que em menos de

duas décadas viria a substituir completamente o ferro usado estrutu-

ralmente– betão armado era utilizado pela primeira vez na cons-

trução de uma grande obra pública: o edifício da Escola Médica de

Lisboa onde foi usado na execução do tecto do átrio e pavimento

do respectivo piso superior que foi relizado com o sistema Cottancin.

A utilização das potencialidades do novo material, o betão armado,

não é, mais uma vez, assumida arquitectónicamente.

Até 1910 há notícias de uma construção intensa em betão

armado, particularmente pelos concessionários Hennebique, supor-

tada pela matéria-prima fornecida pela primeira fábrica de cimento

artificial “Portland” em Alhandra que funciona a partir de 1894.37 Entre-

tanto em Lisboa fundava-se o Instituto Superior Técnico (à Boavista)

e no Porto criava-se o “Laboratório de Resistência de Materiais” no

quadro da mesma Universidade o que denunciava um crescente

entendimento científico da questão que passava do quadro de

empresário-construtores, ao universo científico da engenharia. A

invenção de fórmulas matemáticas, os cálculos e a experimentação

de ruptura permitem introduzir o betão armado no ensino da cons-

trução. Tornado sistema o betão armado podia definir-se segundo

normas legais de segurança. E em 1912 iniciava-se iniciava-se a cons-

trução de um programa industrial totalmente desenvolvido em betão

armado: a Fábrica de cerveja Portugália em Lisboa de antónio Rodri-

gues da Silva Júnior.

A cronologia justifica claramente a importância do ano 1918, no

imediato pós-guerra, com a publicação do primeiro regulamento do

betão armado, inspirado no francês e no alemão, e também com o

projecto do engenheiro Osório de Rocha e Mello para a criação da

Fábrica de Cimento Henrique Sommer, a Empresa de Cimentos de

Leiria, que hoje conhecemos como Cimenteira Liz. Cinco anos mais

tarde, em 1923, inaugurava-se o primeiro forno rotativo moderno com

uma capacidade para 220 t por dia.38

65

33 HENRIQUES da SILVA, Raquel, Arquitectos e Engenheiros: a função de construir, texto proferido na Sessão inaugural da Licenciatura deArquitectura do Instituto Superior Técnico em Dezembro de 1998.34 CARVALHO QUINTELA, António de, “Contribuição para a História do Betão Armado em Portugal: Primeiras Obras”, Revista Portuguesa deEngenharia de Estruturas nº 30, pág. 10, Lisboa, Janeiro de 1990.35 SANTOS SEGURADO, E. dos, Cimento Armado, Biblioteca de Formação profissional, Lisboa, Aillaud e Bertrand, s/d. António de CarvalhoQuintela situa a edição da obra cerca de 1920 justificando o facto de incluir o regulamento de betão armado de 1918 e do exemplarnetrado na Biblioteca do IST ter dado entrada em 1923, Cf. CARVALHO QUINTELA, António de, op. cit., pág. 15.36 Ver SANTOS, António Maria A., “Betão Armado e Indústria”, in Arquitectura e Industria Modernas 1900-1965, Sevilla, Docomomo Ibérico,1999, pág. 26; Para o Estudo da Arquitectura Industrial na região de Lisboa (1846-1918), Lisboa, Dissertação de Mestrado em História da ArteContemporânea, Universidade Nova de Lisboa-FCSH, 1996.37 VISEU, Joaquim C.S., História do betão Armado em Portugal, pág. 53, ATIC, Lisboa, 1993.38 BRANDÃO DE BRITO, José Maria, HEITOR Manuel, ROLLO, Maria Fernanda, (Coord.), Engenho e Obra, Dom Quixote, Lisboa, 2002.

Algarve ExportadorMatosinhos Foto: Deolinda Folgado/IPPAR

Fábrica LusitanaPorto

Rainha do SadoMatosinhosFoto: Deolinda Folgado/IPPAR

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Page 7: Em direcção a uma estética industrial: Zeitwill ou vontade de

Betão armado e efémero modernismoDe facto, a partir de meados dos anos vinte surge o primeiro ciclo do

betão armado que coincide com o ciclo da arquitectura modernista

apoiado já nas possibilidades estruturais e plásticas do betão armado.

E assim rompendo claramente com os sistemas oitocentistas. Por isso se

pode afirmar que, após um período de “cristalização artística” e resistên-

cia ás inovações tecnológicas, os arquitectos descobrem o betão armado

depois dos engenheiros. A confissão do facto, ou a consciência deste

atraso, constituirá a pedra de toque de um debate apaixonado que

envolverá a vanguarda europeia dos anos vinte: Gropius, Le Corbusier e

sobretudo Sigfried Giedion reconhecem e exaltam a “estética do engen-

heiro”.39 Mas é sobretudo Auguste Perret que desenvolve desde os pri-

meiros anos do século uma obra que postula a emergência de uma esté-

tica a partir do uso do novo material. Por outras palavras, Perret formula

a sua doutrina arquitectónica baseada na ideia de que o betão armado

possui uma qualidade estética própria.40

Neste processo, o novo gosto geometrizado Art Déco evolui no

sentido de um despojamento formal, apoiado conscientemente na

valorizacão plástica da técnica, que constituirá a base de trabalho

do nosso modernismo experimental. Apoiados no cálculo e nas inves-

tigações de arrojados engenheiros, como Bellard da Fonseca, Espre-

gueira Mendes, Arantes e Oliveira, entre outros, o novo sistema cons-

trutivo baseado no betão armado começava gradualmente a ser

assumido pelos arquitectos que o passavam a reconhecer como feito

cultural significativo. Isto é, assiste-se ao progressivo desenvolvimento

da ideia de tecnologia como padrão cultural, atribuindo-se á racio-

nalidade da construção o papel eminente de “gramática” da lin-

guagem que se procura: coberturas em terraço, grandes vãos com

extensos envidraçados, gosto pelas superfícies rebocadas e lisas e

pelos volumes cúbicos e puros. Assim se constituindo como elemento

“modelador” da forma e nessa medida dotado de uma autonomia

estética própria.

A leitura de uma das mais singulares obras do primeiro moder-

nismo, a casa da Moeda projectada em 1931 pelo arquitecto Jorge

Segurado (1898-1990) e pelo engenheiro Espregueira Mendes,41 é

reveladora da evolução da década dos anos trinta e das situações

levantadas no decorrer da obra pela procura de um racionalismo

construtivo e de um funcionalismo programático. Trata-se de uma

construção singular a vários níveis: pelo programa misto que integra

o edifício da administração com desejado carácter de representação

e o corpo de oficinas que programaticamente se aproxima do carác-

ter utilitário; pelo empenho construtivo que uma obra desta importân-

cia reclamou; finalmente pelo facto de revelar pioneiramente uma

abordagem inovadora que se afastava do quadro ortodoxo definido

pelo Movimento Moderno de estilo internacional, assim se aproxi-

mando das experiências holandesas desenvolvidas em contextos não

radicais e menos divulgadas no nosso país.

O conjunto edificado redesenha a forma rectangular do quar-

teirão aberto no interior formando um extenso pátio. O edifício da

administração forma o topo norte ligando-se aos três corpos em U

das oficinas através de dois corpos de passagem elevados sobre pilo-

tis. A cobertura em terraço que remata todo o conjunto é ocasiona-

lemnte substituída em certas zonas fabris por uma cobertura em shed

permitindo a entrada directa da luz norte, mas também por áreas de

terraço preenchidas pelo tijolo de vidro cilindrico, de utilização tâo

comum nas obras modernistas dos anos trinta.

Na defesa do projecto contra os detractores da arquitectura

moderna42 o arquitecto reivindicou o “paradigma racional e a neces-

sidade de o edifício responder á funcionalidade interior” que aca-

bou por ser aceite dado o carácter industrial do programa. Admi-

tindo-se então que “os grandes panos de parede, a proporção larga

das janelas, a lisura da composição, são tudo feições adequadas aos

edifícios fabris”.43 Marcação de um paradigma de qualidade na cons-

trução, revela o amadurecimento do expressionismo do autor na arti-

culação dos vários volumes que formam o quarteirão, assumidos com

presença e funções diferentes e onde se destacam as duas entra-

das: monumentalizante no edifício da administração e, articulada

com outra liberdade, a entrada reentrante do corpo de gaveto das

oficinas jogando com o relógio, o baixo-relevo, e o revestimento tex-

turado dos tijolos esmaltados de verde dos panos entre pilares.

No quadro industrial ainda decorrente dessa encomenda pública,

o Arsenal do Alfeite projectado pelos irmãos Rebelo de Andrade

revela a importância dada à indústria naval agora com carácter

representação. O carácter representativo é aliás um dos temas reco-

rrentes também no programa industrial como é o caso da Firma

Comercial Lusitana, um enorme espaço de produção textil construído

66

39 Veja-se por exemplo, GIEDION, Sigfried, Bauen in Frankreich, bauen in eisen, bauen in beton, op. cit.,40 Cf. Edifício da rua Franklin em Paris (1903) à Igreja de Notre-Dame de Raincy (1924), a primeira obra de grande escala onde era possíveladmirar o betão em todo o seu esplendor e beleza, ver COLLINS, Peter, Le Splendeur du béton, Hazan, Paris, 1995.41 Que já havia surpreendido com o projecto estrutural da Estação Sul e Sueste em Lisboa projectado pelo arquitecto Cottinelli Telmo, Cf.TOSTÕES, Ana, “Arquitectura da primeira metade do Século XX”, in PEREIRA, Paulo (Dir.), História da Arte Portuguesa, Círculo de Leitores,Lisboa, 1995.42 A este propósito veja-se por exemplo RIBEIRO COLAÇO, António, quando denunciava “os caixotes de Moscovo, de Munique, de toda aparte menos de Portugal”, in Arquitectura Portuguesa nº38, Lisboa, maio de 1938.43 Parecer do Conselho Central de Obras Públicas, Dezembro 1938.

Fábrica de fiação e tecidosVizelain Fábrica de Fiação e Tecidos,Comemoração 150 anos, CâmaraMunicipal de Santo Tirso

Armazens frigiríficos do bacalhauFoto: Deolinda Folgado/IPPAR

Fábrica MartiniVictor Palla e Bento de AlmeidaBinário nª1, Lisboa, Abril 1958

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Page 8: Em direcção a uma estética industrial: Zeitwill ou vontade de

no Porto com a crueza da arquitectura industrial onde é aposta um

pano de fachada de desenho classizante. Em Lisboa, o edifício do

Diário de Notícias, uma indústria gráfica erguida na principal avenida

da capital, assume-se pelo contrário como paradigma urbano da

modernidade. Também o novo programa da indústria do cinema se

define de acordo com a expressão modernista decorrente da utili-

zação do betão armado.

No Porto, foi a encomenda privada que estimulou a emergência

de obras descomprometidas com os códigos da monumentalidade

que caracterizavam a obra pública. Se a Garagem do Jornal O

Comércio do Porto (1928) de Rogério de Azevedo combina um pro-

grama inédito de garagem e escritórios é justamente no programa

industrial da Lota de Pescado de Massarelos que Januário Godinho

desenvolve a sua primeira obra de grande força expressiva conden-

sando influências múltiplas (desde o expressionismo holandês ao neo-

plasticismo) e onde são as exigências funcionais que determinam a

relação entre a espacialidade interna e o sistema estrutural. Em Mato-

sinhos, a indústria conserveira, com destaque para o Algarve expor-

tador de António Varela ou para o conjunto das conserveiras Rainha

do Sado, constitui exemplo de uma construção de grande escala,

despojada, utilizando uma longa cobertura em shed e referenciada

linguísticamente a um gosto modernista. Ainda no Porto, o jovem Keil

do Amaral desenha para um estreito lote da rua dos Clérigos as novas

instalações do Instituto Pasteur actualizando ineditamente uma

expressão claramente urbana.

Para além destes programas industriais de vocação eminente-

mente funcional a habitação constituíu igualmente matéria de expe-

rimentação. Quer na surpreendente Casa de Serralves desenhada

em 1931 para o Conde de Vizela pelo veterano Marques da Silva,

que introduz os códigos das Arts Déco temperando-os com um prag-

matismo construtivo que lhe permite ultrapassar o sentido gráfico e

os aspectos mais decorativos do movimento francês, pela escala e

pela pujança tectónica adoptadas. A referência linguística será aliás

estendida à frente da Fábrica de Fiação e Tecidos Vizela, do mesmo

encomendador, abrigando um extenso dispositivo de indústria têxtil

situado na região do rio Ave.

Este primeiro ciclo do betão decorre sob um dos aspectos do

quadro estabelecido pelo programa moderno que confiava na equi-

valência entre o processo técnico e o processo formal como modo

de superar o estilo. Contudo, justificado por factores económicos,

adoptava-se ainda recorrentemente uma construção mista, em que

o betão armado era sobretudo utilizado nos elementos horizontais,

nas lajes, recorrendo-se ainda nos suportes verticais a paredes por-

tantes de alvenaria onde se integravam vigas de betão armado para

realizar aberturas mais amplas. Finalmente, quer a formação da pri-

meira geração modernista no gosto das Beaux-Arts, quer a prepon-

derância de uma encomenda dirigida para um programa da obra

pública, focado numa monumentalidade capaz de simbolizar o

regime, concorriam para fragilizar a aplicação dos pressupostos glo-

bais do Movimento Moderno no seu empenho em dar uma resposta

ampla ao desafio colocado pela modernidade.

Afinal qual era o desafio que a modernidade podia colocar num

país como o nosso, assente numa sociedade retrógrada e numa cul-

tura marcadamente reaccionária que reflectia uma política econó-

mica assente numa estagnante e forte componente rural? Sem um

efectivo desenvolvimento industrial, condição das transformações

bruscas do processo de modernização, os esforços desenvolvimentis-

tas de um engenheiro, Duarte Pacheco, não ultrapassavam a reforma

de umas obras públicas e o planeamento de uma capital do Império.

Quando Salazar respondia aos industriais reunidos no seu I Congresso

em lisboa, em 1933: “Segui com o maior interesse as teses apresenta-

das (…) Há certamente, entre elas algumas que podem chamar-se

ambiciosas, programas vastos de mais para um futuro imediato, que

passam além das possibilidades do momento (…)”44 Por outras palav-

ras, se o país não se modernizava, como podia a arquitectura fazê-lo

ou o urbanismo responder a problemas não colocados.

Por outro lado, um gosto eclético e a sensibilidade naturalista cul-

turalmente dominantes, conjugadas com as condições materiais do

país, impediram que a máquina fosse entendida como elemento axial

da revolução estética e social45. Finalmente a formação Beaux Arts

atraiçoava os arquitectos modernistas quer nos partidos adoptados,

recorrendo sistematicamente a uma simetria compositiva, mas que

também se mostravam inacapazes de lidar com uma implantação

topográfica de um modo natural ou orgânico. Confirmando o mal

endémico formativo e geracional de que “desenhar sobre a pran-

cheta era implantar o edifício sobre o terreno”.46

O modernismo, que enquadrou o primeiro ciclo do betão entre

nós, foi um estilo que concorreu para suportar a novidade imagética

67

44 Oliveira salazar, “A acção governativa e a produção industrial”, Discursos, vol.I, 1928-1934, 4ªed., Coimbra, 1961. Cit. ROLLO, Maria Fernanda,“Engenharia e história: percursos cruzados”, in BRANDÃO DE BRITO, José Maria, HEITOR Manuel, ROLLO, Maria Fernanda, (Coord.), Engenho e Obra, op.cit.45 Se quisermos, Alberto Caeiro conhecia o Portugal profundo e por isso era capaz de responder com singela sabedoria ao espírito do tempo e da terra.Enquanto que na sua admiração pelos prodígios exaltantes da máquina o engenheiro Álvaro de Campos só podia ter sido contaminado pelo vírus doprogresso no universo anglosaxónico, em Glasgow, onde hipoteticamente estudou. 46 RAMOS, Carlos, Palestra dedicada a todos os alunos da escola de Belas-Artes de Lisboa, 1935.

Saída de trabalhadores da Fábrica Mundet & Cª, Seixal, 1953 Ecomuseo Municipal do Seixal/CDI-Mundet inBRANDÃO DE BRITO, José Maria, HEITOR Manuel,ROLLO, Maria Fernanda, (coord.), Engenho e Obra,Dom Quixote, Lisboa, 2002

Soda Póvoa. Póvoa de Santa Iria Foto: Santos de Almeida, Arquivo deFotografia de Lisboa-CPF/MCen BRANDÃO DE BRITO, José Maria, HEITORManuel, ROLLO, Maria Fernanda, (coord.),Engenho e Obra, Dom Quixote, Lisboa, 2002

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Page 9: Em direcção a uma estética industrial: Zeitwill ou vontade de

desejada pelo Estado Novo na sua fase de implantação e marcou o

tempo das grandes obras públicas do regime, nesse paradoxo de

monumentalidade programática que atraiçoou qualquer veleidade

de uma modernidade radical que pudesse buscar a sua filiação no

Movimento Moderno canonizado ortodoxamente pela historiogra-

fia. Não foi um método de trabalho ou uma teoria projectual. Foi

sim, mais um estilo, o modernista. Baseado numa forma que tendia

para a abstracção decorrente da utilização de volumes puros que

o betão armado agenciava a partir das lajes de cobertura em

terraço ou de grandes vãos abertos e preenchidos com a trans-

parência de longas superfícies de vidro. Cristino da Silva que mar-

cou com o seu Cine-teatro Capitólio o momento de ruptura nos

códigos formais afirmaria prosaicamente que “a arquitectura

moderna surgiu por causa dos novos materiais”. A forma, transfor-

mada técnicamente em verdade construtiva, justificava-se a partir

da função, num binómio tornado condição de racionalidade.

Invoca-se a funcionalidade como razão da utilidade dos usos, da

finalidade das coisas, da objectividade do que é essencial. Era jus-

tamente na questão da funcionalidade interna que os autores se

refugiavam frequentemente para justificar os partidos adoptados.

Se as grandes obras públicas colocavam em evidência tanto as

componentes técnico-construtivas dessas obras como a comple-

mentaridade disciplinar entre engenheiros das várias especialidades

e arquitectos de que o processo das Gares ou da Casa da Moeda

constituem um modelo, é no quadro de uma iniciativa privada e nal-

guns programas industriais ou lúdicos que se assume o rasgo experi-

mental de que a Garagem do Comércio do Porto ou a Lota do Pes-

cado de Massarelos constituem eloquentes exemplos.

A utilização do betão estende-se ao edifício corrente com Cas-

siano Branco a agenciar uma profunda renovação nas fachadas,

enquanto que a organização do fogo mantinha esquemas distribu-

tivos herdados de finais de oitocentos.

Sem bases teóricas consistentes, sem o apoio de uma crítica efi-

caz, a que se acrescentava uma formação revivalista e eclética,

assente na componente artística das Beaux-Arts oitocentista, a

geração modernista dos anos vinte-trinta facilmente tornou possível

o seu próprio recuo historicista e tradicionalista que passou a domi-

nar a sua produção a partir dos anos quarenta. E assim negando o

postulado moderno de que a determinante técnica levaria à erradi-

cação do estilo. Muitas das obras historicistas, modelarmente refe-

renciadas à Praça do Areeiro do mesmo Cristino da Silva, são a con-

firmação da utilização de uma sofisticada estrutura de betão armado

mascarada exteriormente por uma fachada historicista e orna-

mentada, renegando o principio da verdade dos materiais. Esta

situação reflectia aliás o processo que acompanhou a ascensão

das ditaduras europeias e que ficou bem patente em 1937 na Expo-

sição Internacional de Paris. E que, entre nós, teria três anos depois

paralelo “imperial” com a celebração política e ideológica que a

Exposição dos Centenários significou. O próprio programa industrial

se adaptou a esta imagem de regime patente sobretudo nos gran-

des empreendimentos da capital: Armazéns Frigoríficos do bacal-

hau, standard Eléctrica, A Nacional ou na Fábrica de Cabos Eléc-

tricos Diogo de Ávila.

Industrialização e modernizaçãoA situação de pós-guerra tende a conformar a ruptura moderna

entendida como o momento de fazer contas com a modernidade,

de dar atenção ao interrompido projecto moderno. As premissas do

movimento moderno, referenciadas claramente a Le Corbusier e,

ainda por essa via, à potencial vitalidade da moderna arquitectura

brasileira,47 adoptam-se de um modo ético e ideologicamente con-

victo que integrava o valor de uma função social. É o tempo da con-

testação ao regime no contexto do Congresso heróico dos arqui-

tectos, o I Congresso Nacional de Arquitectura realizado em 1948.

Nesse momento de viragem na reconquista da liberdade de

expressão dos arquitectos e simultâneamente do espaço para afir-

mar a inevitabilidade da arquitectura moderna, os arquitectos recla-

mam a industrialização e a sua participação na resolução do pro-

blema da habitação sem constrangimentos nem obrigatoriedades

de estilo. Reconhecendo que o “apetrechamento industrial do País

está apenas no seu início”, Arménio Losa que já tinha construído a

Fábrica das Sedas confrontando-se com o programa industrial afir-

maria justamente que “o apetrechamento técnico e industrial

impõem a profunda e consciente análise de todo o território para

68

47 Divulgada entre nós a partir da edição: GOODWIN, Philip , Brasil Builds, MOMA, New York, 1943

Nitratos Portugal, grupo Sacor, 1956 Foto: Alstomin BRANDÃO DE BRITO, José Maria,HEITOR Manuel, ROLLO, MariaFernanda, (coord.), Engenho e Obra, Dom Quixote, Lisboa.

Secil, escola primáriaArquivo Keil do Amaral

OlivaLinha do montagem das máquinasde costura Archivo Olivacast-Fundição Ferrosa, SA, in BRANDÃO DE BRITO, José Maria,HEITOR Manuel, ROLLO, MariaFernanda, (coord.), Engenho eObra, Dom Quixote, Lisboa, 2002

001>093_docoP 15/7/04 19:39 Página 68

Page 10: Em direcção a uma estética industrial: Zeitwill ou vontade de

melhor arrumação das indústrias, e das populações que fará deslo-

car ou concentrar. Impõem que se explorem as riquezas do país, se

aproveitem todos os recursos naturais”.48 Reivindica-se a intervenção

a uma outra escala que não a do edifício isolado, isto é, o direito à

escala da cidade. Citou-se Le Corbusier e a utopia da sua Ville

Radieuse. E, recorrentemente a Carta de Atenas49 como dogma

urbanístico para situar a urgência de uma nova racionalidade urba-

nística e arquitectónica, com o sentido de manifesto e ortodoxia

que comportam.50

O pós-guerra marca o fim do ciclo das obras públicas e o início de

uma nova etapa na política económica do Estado Novo. Se o pri-

meiro, que designámos também como o primeiro período do ciclo

do betão, foi dominado pela figura tutelar de Duarte Pacheco, a

segunda etape que em paralelismo usamos a imagem do segundo

período do ciclo do betão seria referida à influência de Ferreira Dias.51

Este segundo ciclo caracteriza-se pela alteração profunda nas estru-

turas da economia pautada pelo arranque da electrificação e da

moderna industrialização do país a partir do final dos anos quarenta.52

Os grandes objectivos da política económica são enquadrados nos

então chamados “planos de fomento” que procuravam, de acordo

com as tendências gerais do capitalismo europeu fortemente influen-

ciados pelo processo de “americanização”53, criar as condições para

um crescimento do sector industrial nacional.

De facto, a partir do pós-guerra, o protagonismo de Ferreira Dias

com a publicação de Linha de Rumo54 confirmando as teses já

expressas ao longo dos anos trinta, exorta a economia portuguesa

para a necessidade de industrialização. Em 1945, a lei 200555 consti-

tuíu o instrumento jurídico para o “fomento” e “reorganização indus-

trial”, podendo ser considerada “o único verdadeiro projecto de

industrialização formulado durante toda a a vigência do Estado

Novo”56 onde se apontava claramente para uma visão “neofisiocrá-

tica” transformadora do país baseada na industrialização. Defen-

dendo a distribuição da energia eléctrica como “uma obra de

fomento ”contribui para uma nova estratégia do regime. É o

momento de valorizar as obras industriais e de electrificação para

onde são preferencialmente canalizados os investimentos públicos.

As grandes infraestruturas fundamentais ao desenvolvimento

industrial tomavam o lugar ocupado nos anos trinta pela edificação

das obras públicas que passam agora a um plano secundário. Basta

recordar que no I Plano de Fomento (1953-1958) a dotação orça-

mental era clara na revelação das grandes estratégias do regime,

com a atribuição de 34,6 % para obras de infra-estruturas e 32,1 %

para transportes e comunicações,57 situação prolongada no quadro

do II Plano de Fomento (1959-1964).

O processo de industrialização então desencadeado vai enqua-

drar uma profissionalização crescente do sector da construção em

que a criação do Laboratório Nacional de Engenharia Civil consti-

tui o sinal mais claro. Ao longo do que podemos designar por

segundo ciclo do betão armado58 a tentativa de desenvolvimento

de sectores básicos levará a dar prioridade à infra-estrutura produ-

tiva: das barragens às estradas, dos portos aos viadutos, dos aero-

portos aos silos.

A lei da electrificação definiu as grandes obras do regime con-

centradas nas “obras de arte” da engenharia de estruturas, com des-

taque inaugural para as barragens. E todas as infraestruturas de apoio

onde os arquitectos são chamados a conceber as novas implan-

tações fazendo “as cidades para os homens” estendendo o ideário

moderno ao nordeste transmontano no quadro do aproveitamento

hidroelétrico do Douro Internacional liderado pelo engenheiro Arsé-

nio Nunes e pontuado pelos arquitectos Archer de Carvalho, Nunes

de Almeida e Rogério Ramos. Confirmando a potência criadora da

nova geração que então se definia, aí se ensaiaram novidades pro-

gramáticas, investigação de soluções espaciais baseadas na célula

mínima assimiladas à resolução de organigramas como expressão

matemática. Blocos repetidos, levantados em pilotis sobre platafor-

mas verdes de nível confirmam a obsessão pela repetibilidade modu-

lar mas também pela preocupação higienista com o sol e o espaço

verde abstracto.

Anos antes a HICA-Hidroeléctrica do Cávado (HICA) iniciava o

processo de aproveitamento hidroeléctrico do rio Cávado e do seu

afluente Rabagão tendo Januário Godinho ficado responsável pela

arquitectura de todo o complexo em estreita colaboração com os

Serviços Técnicos da Hica. Inaugurava-se um novo ciclo de colabo-

ração entre áreas disciplinares complementares na esteira da arti-

culação da unidade procurada pelo Movimento Moderno entre o

binómio arte-técnica. Para o transporte da electricidade foi criada a

Companhia Nacional de Electricidade59 com o objectivo de gerir a

rede eléctrica nacional tendo sido chamados dois arquitectos, Januá-

rio Godinho e Keil do Amaral, que fizeram, respectivamente no norte

e no sul, a “arquitectura” da Companhia.

Também a metalurgia e a metalomecânica, sector chave do

desenvolvimento económico e industrial, viveu por essa altura uma

expansão conjuntural com a inauguração das instalações da Oliva,

iniciando o fabrico de precisão em série e dando lugar a um actua-

lizado complexo industrial projectado pelo grupo de arquitectos ARS.

Em 1957, as comunicações apresentadas no II Congresso da

Indústria Portuguesa davam conta da situação criada integrando

como um dos temas em debate a questão da “Investigação Tecno-

lógica e Económica e a Indústria”. Apresentava-se como condição

para o desenvolvimento da investigação “o reconhecimento de que

69

48 LOSA, Arménio, “A arquitectura e as novas fábricas”, I Congresso Nacional de Arquitectura, promovido pelo Sindicato Nacional deArquitectos com o Patrocínio do Governo, Maio/Junho 1948.49 O documento colectivo elaborado no quadro deste IV CIAM, que ficou conhecido como a Carta de Atenas, acabaria por serpublicado dez anos depois por Le Corbusier, LE CORBUSIER, La Charte d’Athènes, travaux du 4ème CIAM, Plon, Paris, 1943. O seu impactofoi enorme, tendo sido traduzido em oito línguas. A tradução para português foi publicada na revista Arquitectura, Lisboa, 2ª série, nº 20 a27, 1948. Refira-se que as teorias da Ville Radieuse Corbusiana foram divulgadas em Portugal primeiro por Nuno Teotónio Pereira naspáginas da revista Técnica- “A Arquitectura e a Engenharia na Construção”, Técnica nº 138, Instituto Superior Técnico, Lisboa, Maio 1942;“As Necessidades Colectivas e a Engenharia”, Idem, nº 142, Dezembro 1943 e nº 143, Janeiro de 1944.50 Ver TOSTÕES, Ana, Os Verdes Anos na Arquitectura Portuguesa dos Anos 50, FAUP, Porto, 1997.51 PORTAS, Nuno , “O Ciclo do betão em Portugal”, Arquitectura de Engenheiros, Lisboa, FCG, 1980.52 ROLLO, Maria Fernanda, “A Industrialização e os seus impasses”, in MATTOSO, José (Dir.), História de Portugal, Sétimo Volume, pág. 450,Lisboa, Círculo de Leitores, 1994.53 A este propósito ver o número temático dedicado ao pós-guerra na Europa e à influência do Plano Marshall em diversos países, comdestaque para o excelente artigo sobre o processo Italiano. Cf. “The Reconstruction in Europe after Worl War”, Rassegna, Milano, ano XV,54/2, June 1993.54 FERREIRA DIAS, J. N., Linha de Rumo, notas de economia portuguesa, Liv. Clássica Ed., Lisboa, 1945.55 Lei nº 2005 de 14 de Março de 1945.56 BRANDÃO DE BRITO, José Maria, A Industrialização Portuguesa no pós-guerra (1948-1965), op. cit, pág. 320.57 O I Plano de Fomento apontava como principais objectivos: o fomento da agricultura; aumento da produção de energia hidráulica;conclusão das indústrias de base já em curso; instalação da siderurgia; desenvolvimento das vias de comunicação e meios de transporte;desenvolvimento da refinação do petróleo, da produção de adubos e da marinha mercante, ver ROLLO, Maria Fernanda, op.cit., pág. 45558 TOSTÕES, Ana, Cultura e Tecnologia da Arquitectura Moderna Portuguesa, Dissertação de Doutoramento, IST, Lisboa, 2002.59 A Companhia Nacional de Electricidade (CNE) foi constituída por escritura pública em 14 de Abril de 1947, tendo por objectivo “oestabelecimento e a exploração de linhas de transporte e subestações destinadas ao fornecimento de energia eléctrica aosconcessionários da grande distribuição, aos consumidores cujo abastecimento directo se justifique nos termos da base XIII da Lei nº2002,bem como à ligação dos sistemas do Cávado e do Zêzere, entre si e com os sistemas existentes”. Cf. ROLLO, Maria Fernanda, BRANDÃO DEBRITO, José Maria, “Ferreira Dias e a constituição da Companhia Nacional de Electricidade”, in Análise Social nº 136-137, pág. 343, 1996.

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Page 11: Em direcção a uma estética industrial: Zeitwill ou vontade de

a melhoria das condições de vida do Homem está directamente

dependente da ciência e da Técnica”. Apontava-se a necessidade

de banir a “ideia da virtude da ignorância” e a necessidade de gene-

ralizar “o reconhecimento da virtude do saber”.60

Tempo de ruptura, encara-se a mudança do mundo atravès da

arquitectura e da mediação dos benefícios da máquina. Afirma-se

uma produção referenciada à arquitectura internacional que busca

a sua essência num determinismo técnico decorrente dos sistemas

de industrialização, baseados na virtude da repetitividade e na

crença no mundo industrial. A matriz mecanicista da ideologia

moderna alimenta uma arquitectura de vocação política vinculada

ao sistema económico no pressuposto da racionalização e da stan-

dartização. Assume-se a sinceridade máxima da construção a partir

do “módulo”. O sistema construtivo funciona como inspirador con-

ceptual e mote regrador da arquitectura. A estrutura torna-se soli-

dária da organização funcional e espacial. A utilização do betão ao

longo da primeira metade dos anos 50 generalizava-se numa cons-

trução porticada conjugando suportes verticais e lajes tornadas cada

vez mais leves com a introdução de elementos cerâmicos a defini-

rem rígidas modulações que eram encaradas plasticamente pelos

arquitectos como estímulo compositivo. Período de grande riqueza

plástica e gráfica o aprofundamento da renovada expressão do

moderno sob influência brasileira conjuga-se com o universo tecno-

lógico da proposta corbusiana.

A racionalidade da construção funciona como lógica estrutu-

rante da arquitectura e da cidade. As escalas contaminam-se cum-

prindo o desiderato moderno do projecto global. Os projectos adqui-

rem um crescente detalhe de pormenorização revelador da intensi-

dade colocada na concepção. A modulação estrutural e constru-

tiva é assumida plásticamente na imagem exterior das construções

e legitimado como alibi formal.

Graças ao sistema de construção porticada as fachadas perde-

ram a função de suporte sendo compostas modularmente com

recurso a diversos dispositivos funcionais que são usados plastica-

mente: as grelhas de protecção da luminosidade ou de camuflagem

das áreas de serviço, ou os processos de iluminação zenital dos gra-

neds complexos industriais.

Entretanto publicavam-se entre nós tabelas e ábacos como as

do engenheiro Fernando Vasco Costa61 e em obras de carácter

excepcional, como foi a do aproveitamento Hidroeléctrico do

Cávado (HICA) iniciada em 1947 foi já usado o computador para os

cálculos62 de estruturas complexas como barragens abóbada ou pon-

tes suspensas. Na arquitectura, o betão armado proporcionou cres-

centemente, graças também ao empenho técnico de muitos engen-

heiros e construtores, a realização de construções cada vez mais

ousadas de que podemos destacar o silo de sulfato de amónio

erguido no grande complexo da CUF ou a monumental Aciairia da

Siderurgia Nacional construída totalmente a partir de peças de betão

pré-moldado.

Os anos sessenta marcam o início da ruptura e de uma crescente

“modernização” apoiada numa matriz industrial: o território trans-

forma-se com os grandes empreendimentos e a escala de inter-

venção a altera-se. O “moderno” pela via imagética do Estilo Inter-

nacional tende a banalizar-se. Uma construção apostada numa alta

tecnologia tende a ser experimentada nos grandes edifícios de ser-

viços surgindo os primeiros grandes edifícios em altura como é o caso

do Sheraton-Imaviz em Lisboa de Fernando Silva. É também por essa

altura que se experimenta um sistema de pre-fabricação a grande

escala aplicado auma urbanização privada (Stº. António dos Cava-

leiros, nos subúrbios de Lisboa). É a época da “profissionalização”, da

formação das grandes empresas de projectos e gestão de obra

como a Firma Gefel que chamará a si a construção das grandes cen-

trais cervejeiras: Unicer e Centralcer na metrópole e a Cuca em

Angola. Com o final da década e a abertura “marcelista” a um capi-

tal cada vez mais liberalizado surgem obras que ultrapassam crono-

logicamente o nosso inquérito e que apenas confirmam a abertura

70

60 ROCHA, Manuel, “A Investigação e a Indústria”, Comunicações apresentadas ao II Congresso da Indústria Portuguesa, pág. 10,Ministério das Obras Públicas-Laboratório Nacional de Engenharia Civil, Lisboa, 1957.61 VASCO COSTA, Fernando, “Tabelas para o Cálculo do betão Armado”, in Técnica, Lisboa, 194.62 Segundo refere Joaquim Vizeu, foi usada um IBM 704. Ver CORREIA de SOUSA, António, O Computador Científico 704 da IBM, CATEC(Centro de Aperfeiçoamento Técnico dos Engenheiros da Hidroeléctrica do Cávado), Porto, 196.

Siderurgia Nacional Arquivo da Siderurgia NacionalFoto: Henrique Ruas/IPPAR

Caves José Maria FonsecaFoto: Deolinda Folgado/IPPAR

CUF, construção armazém fosforite, 1907 BarreiroÀquatro, Projectos de Engenharia SA,in BRANDÃO DE BRITO, José Maria, HEITORManuel, ROLLO, Maria Fernanda, (coord.),Engenho e Obra, Dom Quixote, Lisboa, 2002

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Page 12: Em direcção a uma estética industrial: Zeitwill ou vontade de

do programa industrial a soluções inovadoras e qualificadas como é

o caso da JM Fonseca em Azeitão, de Raul Ceregeiro e Gomes da

Silva (1968-1969), ou da Kodak Portuguesa com projecto americano

adaptado pela Profabril.

A concepção das implantações industriais como uma arquitec-

tura da relação precisa entre homens, máquinas e espaços seria

ainda objecto de uma concepção maior concebida no quadro do

Complexo Industrial de Sines (1971) a fundação da nova cidade de

Santo André. Pensada como uma área concentrada de indústrias

base com a petroquímica surgia como um novo marco na tardia

industrialização portuguesa.

Modelo cultural industrial e arquitectura do Movimento Moderno Modelo cultural industrial e arquitectura do Movimento Moderno cons-

tituem finalmente memória histórica e simbólica de uma quimera, a

quimera contemporânea. Que também era a vontade de mudar e

transformar o mundo. E é seguramente esta questão que diferencia

a arquitectura do Movimento Moderno. Isto é, o facto de ter assu-

mido quase como manifesto essa tarefa, reclamando a capacidade

dos arquitectos de construírem um mundo melhor. De facto a felici-

dade como mito ou invenção contemporânea constitui uma das

metas e obsessões dos seres humanos que a modernidade conver-

teu em exigência. Decorrente do fenómeno crescente de laicização

da sociedade moderna, a modernidade com a sua vitória sobre os

deuses, que o suporte da máquina apoiou, não podia deixar de exi-

gir prometer a felicidade na terra.

No século XX os caminhos laicos em direcção a um final feliz alter-

nam entre momentos em que a felicidade aparece como uma con-

quista colectiva (não era esta a mística da revolução?) e os momen-

tos hedonistas de retorno aos valores da felicidade privada.

E aqui se coloca de algum modo a questão pessimista de que a

arquitectura tentou responder ao caos urbano e não antecipar com

as suas formas novas um mundo novo. Como justamente observou

Argan, Gropius apenas quis responder, com pragmatismo e funcio-

nalidade, ao caos do mundo. E por momentos terá tido a ilusão que

o arquitecto seria capaz de o transformar.63 A história das marcas da

industrialização é também essa memória simbólica e tragicamente

potente.

71

63 ARGAN, Giulio Carlo , Gropius et le Bauhaus, Denöel/Gontier, Paris, 1979 [ed. original italiana, 1951].

KodakFoto: Deolinda Folgado/IPPAR

Consórcio laneiro de PortugalArchivo Nuno Teotónio Pereira

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