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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE ECONOMIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ECONOMIA POLÍTICA INTERNACIONAL ELEMENTOS PARA UMA ABORDAGEM ARISTOTÉLICA DA TEORIA POLÍTICA INTERNACIONAL MÁRIO MOTTA DE ALMEIDA MAXIMO RIO DE JANEIRO 2016

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIROINSTITUTO DE ECONOMIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ECONOMIA POLTICA INTERNACIONAL

    ELEMENTOS PARA UMA ABORDAGEM ARISTOTLICA DA TEORIAPOLTICA INTERNACIONAL

    MRIO MOTTA DE ALMEIDA MAXIMO

    RIO DE JANEIRO2016

  • MARIO MOTTA DE ALMEIDA MAXIMO

    ELEMENTOS PARA UMA ABORDAGEM ARISTOTLICA DA TEORIAPOLTICA INTERNACIONAL

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduaoem Economia Poltica Internacional do Institutode Economia da Universidade Federal do Rio deJaneiro, como requisito parcial para a obtenodo ttulo de Doutor em Economia PolticaInternacional.

    Orientador: Prof. Dr. Jos Lus Fiori

    RIO DE JANEIRO2016

  • FICHA CATALOGRFICA

    M464 Maximo, Mrio Motta de Almeida. Elementos para uma abordagem aristotlica da teoria poltica internacional /

    Mrio Motta de Almeida Maximo. 2016. 172 f. ; 31 cm.

    Orientador: Jos Lus Fiori. Tese (Doutorado) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Economia, Programa de Ps-Graduao em Economia Poltica Internacional, 2016. Referncias: f. 163-172.

    1. Poltica Internacional. 2. Teoria poltica. 3. Aristteles, 384-322 a.C. - Filosofia. 4. tica e poltica. I. Fiori, Jos Lus, orient. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Economia. III. Ttulo.

    CDD 327.1

  • AGRADECIMENTOS

    Todo trabalho fruto de um esforo colaborativo. Eu gostaria de agradecer ao meu orientador

    Jos Lus Fiori pelo estmulo e confiana. Suas ideias representam fonte constante de

    inspirao e aprendizado. Agradeo a Juliana Nascimento por suas inestimveis contribuies

    ao texto e por insistir na importncia da clareza conceitual. A Clarice Vieira pelos dilogos

    ricos e pelo companheirismo.

    Agradeo a Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de nvel superior CAPES, da qual

    fui bolsista. Agradeo-a tambm pelo acervo de peridicos disponibilizados por meio do

    Portal Peridicos CAPES. A Stanford Encyclopedia of Philosophy pelo acervo abrangente e

    de alta qualidade disponibilizado gratuitamente e que foi importante na elaborao da

    pesquisa.

    Agradeo aos amigos do grupo de filosofia e da Hora do Play! por compartilharem o amor

    pelo pensamento. Por fim, gostaria de agradecer a minha famlia pelo carinho, em especial, ao

    meu pai (in memoriam).

  • Nihil est difficlius quam bene imperare.

    Nada mais difcil do que governar bem.

    [Historia Augusta, Vita Aureliani]

  • RESUMO

    A teoria poltica internacional frequentemente dominada pelo debate entre o liberalismo e orealismo. Nosso objetivo propor uma abordagem distinta inspirada na filosofia prticaaristotlica. Essa proposta realizada atravs de um dilogo crtico com as principaiscorrentes tericas da poltica internacional. O trabalho organizado em torno da diferena,que argumentamos haver, entre poder e poltica, e suas expresses no ambiente internacional.Essa diferena avaliada atravs da relao dessas categorias com o fim a que se propem,o que, numa concepo aristotlica, conecta-se com uma teoria moral. Assim, a tese nega, porum lado, a teoria moral liberal e, por outro, o ceticismo realista quanto existncia de umatica internacional. Propomos no lugar a tica da virtude aristotlica. Afirma-se, em especial,que a categoria da razo prtica (phrnesis) nos ajuda a entender o papel central damoralidade na existncia e no uso do poder, assim como na construo de um espao derelaes possveis entre os Estados.

    Palavras-chave: Aristteles. Teoria Poltica. Poder. Cosmopolitismo. Comunitarismo.

    Direitos Humanos. tica da Virtude.

  • ABSTRACT

    The international political theory is often dominated by the debate between liberalism andrealism. Our goal is to argue for a different approach inspired by the Aristotelian practicalphilosophy. This proposal is carried out through a critical dialogue with the main theoreticalschools of international politics. I argue for a difference between power and politics and Iorganize the work around this difference. Then I evaluate these categories to the internationalenvironment. Power and politics are understood in relation to the end each one proposes. InAristotelian terms, these concepts conect with a moral theory. Thus, the thesis denies, in onehand, the liberal moral theory, and in other hand, the realistic skepticism about the existenceof an international ethics. I propose instead the Aristotelian virtue ethics. It is stated inparticular that the practical reason category (phrnesis) helps us to understand the central roleof morality in the existence and use of power, as well as the construction of a space ofpossible relations between states.

    Keywords: Aristotle. Political Theory. Power. Cosmopolitanism. Communitarianism. HumanRights. Virtue Ethics.

  • LISTA DE ABREVIATURAS

    UN United NationsDUDH Declarao Universal dos Direitos HumanosUNESCO United Nations Educational, Scientific and Cultural OrganizationOIC Organization of Islamic CooperationEN Ethica NicomacheaPol. The Politics

  • SUMRIO

    INTRODUO 10CAPTULO I SOBRE A DIFERENA ENTRE PODER E POLTICA 16

    I.1 A origem do poder real 16I.2 A origem e a importncia da poltica 25I.3 A necessidade do poder e da poltica 35

    CAPTULO II PODER INTERNACIONAL 42II.1 A autodeterminao dos povos 42II.2 A anarquia do sistema internacional 46II.3 O neorrealismo e a segurana nacional 49II.4 O neorrealismo e o instrumentalismo metodolgico 54II.5 O realismo clssico e o comportamento dos Estados 64II.6 O realismo clssico de Hans Morgenthau 74

    CAPTULO III POLTICA INTERNACIONAL 83III.1 As dimenses da poltica 83III.2 A postura cosmopolita 92III.3 A crtica comunitarista 101

    III.3.1 Identificao 104III.3.2 Obrigaes especiais 106

    III.4 Contribuies para o debate entre cosmopolitismo e comunitarismo 111CAPTULO IV TICA INTERNACIONAL 116

    IV.1 Observaes iniciais 116IV.2 Os direitos humanos 123IV.3 tica da virtude 134

    IV.3.1 Contraste geral entre a tica deontolgica e a tica da virtude 134IV.3.2 Contrastes especficos para os problemas internacionais 142

    CONCLUSO 153REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 163

  • INTRODUO

    A realizao dessa pesquisa foi motivada, em especial, por trs perguntas: Existe

    alguma moralidade1 nas relaes de poder?, Qual a diferena entre a relao poltica

    interna a uma comunidade e externa a ela?, Como podemos pensar a tica num mundo

    diverso e multicultural?.

    No objetivo da tese apresentar uma resposta completa para essas perguntas. Nosso

    objetivo apresentar um tipo de abordagem, uma forma de olhar para o fenmeno

    internacional. Essa abordagem que propomos tem inspirao na filosofia aristotlica. Isso no

    quer dizer que Aristteles (384322 AEC2) uma autoridade que vamos seguir ou que nossa

    investigao se limitar a seu sistema filosfico. Significa, sim, que vamos buscar em

    Aristteles conceitos-chave que possam nos ajudar a investigar e analisar essas indagaes.

    Nesse sentido, a proposta da tese uma abordagem a partir dos argumentos de Aristteles.

    O referencial aristotlico se justifica, de nossa perspectiva, dada a sua viso da cincia

    poltica como uma cincia moral, necessariamente preocupada com a qualidade de vida dos

    seres humanos. Tratando-se das relaes internacionais, essa nos parece ser uma preocupao

    ainda mais central, dado que essa rea investiga, por exemplo, as razes para a guerra e para a

    paz. A separao entre a moral e poltica, to caracterstica do pensamento moderno, algo

    incompreensvel na filosofia aristotlica. Nosso objetivo justamente resgatar as razes do

    filsofo para a relao to estreita entre os dois campos.

    possvel perceber um crescimento das preocupaes ticas em teoria poltica

    internacional a partir da dcada de 1980 (HOOVER, 2015). O problema, de nosso ponto de

    vista, que as discusses morais em nvel global so frequentemente dominadas pela teoria

    1 Durante todo o trabalho utilizaremos os termos moral e tica como sinnimos. In the ancient scheme'ethics' or meant the philosophical study of human moral character, good and bad, and of thedeterminative function in structuring a person's life that their character was assumed to have (). In fact, thealternative term 'moral philosophy' itself has its origin in Cicero's decision (in the first century BCE) torender the Greek with his own coinage, moralis, meaning in Latin essentially the same thing: thephilosophical study of moral character. (COOPER, 2012, p. 3, grifos originais).

    2 AEC significa Antes da Era Comum e EC significa Era Comum. So verses seculares para osusuais AC e AD.

    10

  • poltica liberal, especialmente com relao influncia da teoria moral de Kant. Assim, a tese

    pretende se inserir nas preocupaes ticas internacionais, mas no pelo vis liberal-kantiano,

    e sim pela tradio aristotlica. Esse mesmo movimento de retomada da filosofia prtica

    aristotlica pode ser encontrado em vrios autores, no que ficou conhecido em teoria poltica

    internacional como practice turn (BROWN, 2012). O nome faz referncia categoria da

    razo prtica (phrnesis), conceito absolutamente central na teoria moral-poltica

    aristotlica.

    O mesmo tipo de dilogo crtico com a escola liberal feito com a escola realista, em

    suas diversas vertentes. No caso do realismo, a discusso se concentra na natureza prpria da

    poltica e do poder. Nosso ponto de partida justamente a investigao terica da categoria

    poder da forma como Aristteles a caracteriza. Vale dizer que nossa investigao teve incio

    na tentativa de realizar uma crtica conceitual teoria do Poder Global, uma teoria que

    enfoca o fluxo e a fora expansiva do poder (FIORI, 2007). Por mais que a tese tenha se

    desenvolvido para um dilogo mais amplo com a teoria poltica internacional, durante todo o

    percurso manteve-se o esforo de crtica teoria do Poder Global, em especial na tentativa

    de afirmar, contrapondo-se a esta, uma finalidade e um limite para o poder.

    A hiptese que orienta a tese o que denominamos de hiptese da busca pelo bem.

    Podemos defini-la assim: Os agentes, sejam eles Estados, organizaes ou indivduos,

    possuem finalidades, que podem ser traduzidas, de uma forma ou de outra, como um bem.

    Assim, a ao humana racional entendida como teleolgica. Esse tipo de interpretao por

    vezes denominada como princpio da perfeio ou, simplesmente, perfeccionismo:

    Speaking generally, perfectionist writers advance an objective account of the good and then

    develop an account of ethics and/or politics that is informed by this account of the good.

    (WALL, 2012, p. 1). A tese insere-se nessa interpretao. Para os nossos propsitos, esse bem

    final ao qual as aes humanas aspiram pode ser definido como a felicidade (eudaimonia).

    Essa felicidade, entretanto, no equivale somente a uma sensao de bem-estar, mas algo

    que se refere a uma vida digna, agraciada, uma vida que pessoas racionais gostariam de viver.

    Essa posio teleolgica que estamos endossando significa a afirmao de uma

    finalidade natural para os seres humanos. Essa posio passvel de uma srie de crticas e a

    11

  • tese margear algumas delas. Entretanto, de forma geral, essa posio teleolgica ser

    assumida como uma hiptese. Por mais que o sistema aristotlico oferea argumentos de por

    que a teoria moral-poltica orientada desta forma, no objetivo da tese entrar neste terreno.

    Essa uma discusso que nos afastaria do tema da teoria poltica internacional. Para ns, a

    busca pelo bem funciona como uma hiptese a partir da qual organizamos a discusso sobre o

    poder e a poltica internacionais que nos propomos a fazer.

    Essa hiptese da busca pelo bem est alinhada com o renascimento da teoria moral

    aristotlica na literatura contempornea. A partir do artigo seminal da filsofa britnica

    Gertrude Anscombe (1958), vrios filsofos se empenharam em desenvolver uma verso

    moderna para a teoria moral aristotlica. Essa verso contempornea da teoria recebeu o nome

    de Virtue Ethics. Como resultado, vrios acadmicos passaram a utilizar as concepes

    associadas abordagem da tica da virtude em suas respectivas reas de atuao. Na mesma

    linha dessa tese, Ainley (2010) e Gaskarth (2011), por exemplo, aplicaram a tica da virtude

    para os problemas internacionais, com especial foco na questo da atribuio de

    responsabilidade dos agentes. Assim, a tese parte da hiptese da busca pelo bem, e da teoria

    moral da tica da virtude associada a ela, para construir uma interpretao a respeito do poder

    e da poltica em mbito global.

    Da mesma forma, trabalhamos com a noo, derivada de nossa hiptese, de que a

    finalidade do Estado promover o bem pblico. Para nossos propsitos, Estado ou nao

    podem ser definidos como qualquer comunidade poltica. Assim, a tese faz referncia a

    conceitos como Estado, nao e comunidade indiscriminadamente. Esses conceitos se

    referem, segundo nossa hiptese e classificao, a agremiaes humanas que visam o bem

    coletivo. Quando nos referirmos ao mbito internacional, estamos tratando, portanto, do

    conjunto abstrato de comunidades polticas distintas, sem fazer referncia a um perodo

    histrico especfico. Algumas inseres na histria so pontualmente utilizadas, mas suas

    aparies so limitadas e explicitamente marcadas. Essa postura se justifica pelo carter mais

    abstrato deste trabalho. Estamos interessados na essncia prpria do poder e da poltica

    internacionais e a relao dessas categorias com a moral.

    12

  • Nossa metodologia consiste basicamente na investigao terica das principais

    proposies de cada escola. Percorremos os argumentos e contra-argumentos e nos

    esforamos para oferecer snteses. Assim, fazemos um dilogo crtico, como apontado acima,

    com as duas principais tradies da teoria poltica internacional: o liberalismo e o realismo.

    Nosso mtodo considerar da forma mais precisa e generosa possvel os argumentos de cada

    escola e tentar analis-los criticamente a partir de uma perspectiva aristotlica. Nosso objetivo

    investigar teoricamente as relaes entre poder, poltica e moral no ambiente internacional e

    propor possveis solues para algumas aporias que identificamos na tradio liberal e

    realista.

    Esse dilogo crtico ser feito, de forma geral, nos captulos I e II, com o realismo, e

    nos captulos III e IV, com o liberalismo. No captulo I, investigaremos o significado de poder

    e poltica, no nvel mais abstrato possvel, e a partir dos conceitos aristotlicos. Nosso

    objetivo neste captulo encontrar as diferenas entre essas duas categorias, poder e poltica,

    e estabelecer qual o grau de necessidade e/ou arbitrariedade em cada uma delas.

    Iniciaremos tambm o tratamento dessas relaes a partir de nossa hiptese de trabalho, da

    busca pelo bem, e o vnculo do poder e da poltica com a teoria moral.

    No segundo captulo, faremos uma investigao especfica da relao de poder em

    nvel internacional e abriremos um dilogo mais direto com a escola realista. Dadas as

    profundas diferenas que existem entre as duas verses do realismo, trataremos primeiro dos

    neorrealistas e depois dos realistas clssicos. Investigaremos conceitos fundamentais como

    anarquia internacional, segurana nacional e medo permanente. Ainda, apresentaremos

    os argumentos para a relao profunda e indissocivel entre a moral e a poltica e sobre por

    que no possvel descrever o funcionamento do sistema internacional de forma

    independente de uma teoria sobre a inteno e o comportamento dos agentes.

    No terceiro captulo, faremos o mesmo tipo de investigao especfica para a relao

    poltica internacional. Nesse estgio, o dilogo com o que chamamos de postura

    cosmopolita. O foco desse captulo quanto possibilidade e desejabilidade de um governo

    mundial. Da mesma forma que nos captulos anteriores, apresentaremos as respostas

    aristotlicas para essas perguntas. No desenvolvimento da crtica postura cosmopolita,

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  • utilizaremos um contraste com a tradio comunitarista. Por fim, argumentaremos que a

    abordagem aristotlica no apenas crtica postura cosmopolita, da mesma forma que o

    comunitarismo, mas pode ser entendida como uma espcie de sntese entre as duas tradies.

    No quarto e ltimo captulo, abordaremos diretamente o tema da tica internacional.

    Nesse ponto, nosso dilogo crtico com o sistema dos direitos humanos, entendidos como

    uma teoria moral. O objetivo do captulo contrastar uma tica internacional baseada no

    conceito de virtude aristotlico com a doutrina dos direitos humanos. Faremos esse contraste

    em duas etapas: primeiro, num nvel mais geral e abstrato, comparando as duas teorias

    morais; e em seguida, num nvel mais especfico, tratando de problemas internacionais

    especficos, como bens externos, coero e punio internacional, demanda de grupos

    vulnerveis e multiculturalismo. Para concluir, temos uma seo final com uma sntese de

    cada captulo e as principais concluses do trabalho.

    Antes, porm, de iniciarmos com o primeiro captulo, gostaramos de apresentar

    algumas observaes sobre os textos utilizados, especialmente com relao aos aspectos da

    traduo e da citao.

    ***

    A traduo de textos clssicos frequentemente alvo de profundas controvrsias. No

    interesse da tese entrar neste debate e, portanto, optamos por manter as citaes dos autores

    em ingls em vez de traduzi-las para o portugus. As citaes em portugus ocorrem apenas

    nos casos em que o portugus a lngua original ou quando s tivemos acesso ao texto

    atravs da traduo em portugus. As citaes em ingls foram mantidas e, para as obras

    escritas originalmente em outra lngua, como o alemo e o grego, foram utilizadas tradues

    para o ingls. No caso da obra aristotlica, absolutamente central para a tese, utilizamos a

    traduo de Roger Crisp (2014) da tica a Nicmaco e a traduo de Carnes Lord (2013) da

    Poltica, ambos para o ingls.

    14

  • Com relao ao formato das citaes, para Aristteles utilizamos o padro conhecido

    como nmeros de Bekker. Trata-se da forma padro de referncia s obras aristotlicas. A

    numerao de Bekker baseada no nmero da pgina, na coluna (a ou b), e na linha da

    famosa edio de Immanuel Bekker publicada em 1831. EN refere-se tica a Nicmaco.

    Pol refere-se Poltica. O primeiro nmero aps a a abreviao da obra, em romano, refere-

    se ao livro, e o segundo nmero, em arbico, refere-se ao captulo. Similarmente, as citaes

    de Plato seguem o padro estabelecido no Renascimento por Stephanus (1578). Para as

    citaes obra de Kant, utilizamos o padro estabelecido pela edio Kant's gesammelte

    Schriften (1904), no qual o primeiro nmero refere-se ao volume desta edio e o segundo

    nmero refere-se pgina. Para History of the Peloponesian War, de Tucdides, seguimos o

    formato padro (Oxford, 1696) do nmero do livro seguido do nmero do captulo. O mesmo

    formato, nmero do livro e nmero do captulo, utilizado nas citaes s Meditations, de

    Marco Aurlio, seguindo o padro que remonta edio de Thomas Gataker (1652).

    As citaes dos autores clssicos que no possuem um padro estabelecido, como o

    caso de Hobbes, por exemplo, foram realizadas da seguinte forma: nome da obra, captulo e

    pargrafo. Demos preferncia por essa forma de citao porque muitas dessas obras foram

    consultadas em formato eletrnico e comum que nesse formato no haja paginao. Para os

    demais livros e artigos foi utilizado o formato tradicional estabelecido pela Associao

    Brasileira de Normas Tcnicas (ABNT).

    15

  • CAPTULO I SOBRE A DIFERENA ENTRE PODER E POLTICA

    Neste captulo faremos uma anlise conceitual do poder e da poltica a partir do

    sistema aristotlico, com o objetivo de demarcar o significado dessas categorias. Nos

    prximos captulos desenvolveremos esses conceitos para o mbito internacional.

    I.1 A origem do poder real3

    Aristteles identifica a origem do poder na autoridade do pai, derivada da sua posio

    de administrao da famlia. Essa uma espcie de poder real, porque se baseia numa

    diferena substancial entre os dois polos: nesse caso, o pai de um lado, o patriarca, o

    mandante; e a famlia de outro, submissa e servil. Dessa forma, Aristteles sugere que ns

    entendamos o poder como sendo uma relao social entre aqueles que so hierarquicamente

    desiguais, um superior e um inferior. No toa que o poder entendido dessa forma est

    associado com o despotismo4, com a autoridade inquestionvel, com a palavra de mando que

    ltima e absoluta.

    Dentro dessa esfera originria, a famlia, Aristteles identifica trs reais relaes de

    poder: o senhor e o escravo, o marido e a mulher, o pai e o filho. Em busca de compreender

    melhor a natureza do poder, vejamos cada uma destas relaes com maior cuidado, a comear

    pela primeira. A escravido se justifica, na viso aristotlica, pela existncia de um tipo de

    indivduo who participates in reason only to the extent of perceiving it, but does not have it.

    (Pol. I.5 .1254b22-23). Em outras palavras, they are in this state if their work is the use of

    the body, and if this is the best that can come from them. (Pol. I.5 .1254b17-18). Ora, essas

    pessoas, classificadas por Aristteles como escravos naturais, no so capazes de governar a si

    mesmas e devem se submeter obedincia de algum que possa fazer uso pleno da razo.

    Assim se estabelece a relao de poder entre senhor e escravo.

    Se algum tem dvidas de que o pensamento capaz de progredir, basta verificar a

    superao que a filosofia poltica moderna realizou diante desta posio aristotlica. Ao ponto

    3 O termo real est sendo usado no sentido daquilo que prprio realidade, aquilo que concreto. 4 Dspota tem origem no grego despots. o chefe de famlia, aquele que organiza o lar (oiks). Est

    associada com dominus do latim, que significa algo como o senhor da casa (domus).

    16

  • de ns, modernos, considerarmos com desgosto e repulsa qualquer tentativa de legitimar a

    escravido. Entretanto, antes de observarmos as crticas s afirmaes de Aristteles, vamos

    olhar com maior cuidado a sua posio.

    O interessante que a discusso a respeito da escravido comea com o tema

    econmico: precisamos de nossos objetos de primeira necessidade e, portanto, algum precisa

    produzi-los. Em outras palavras, Aristteles deixa muitssimo claro que o trabalho fundante

    da sociedade, for without the necessary things it is impossible either to live or to live well.

    (Pol. I.4 .1253b25-26). Assim, a escravido uma relao de poder necessria porque o

    senhor depende do trabalho do escravo, enquanto o escravo depende da razo e da capacidade

    de deliberao do senhor. A existncia desta relao portanto benfica para os dois lados.

    There is thus a certain advantage and even a friendship of slave and master for one another

    () (Pol. I.6 .1255b13-14).

    Aqui talvez seja um bom momento para retirar uma incompreenso comum a respeito

    da defesa aristotlica da escravido. Muitos o acusam por terem em mente o lado violento e

    agressivo da escravido, principalmente nas diversas narrativas e experincias histricas.

    Porm, no disto que se trata, dado que o prprio Aristteles condena qualquer tipo de

    violncia ou escravido imposta fora das condies entendidas por ele mesmo como naturais.

    No est em questo, portanto, violncia ou maus-tratos, pois a escravido que Aristteles

    reconhece como legtima aquela em que o escravo aceita sua condio por entender que vive

    melhor sob o governo do amo, enquanto o amo o trata com respeito e o governa visando o

    bem do prprio escravo.

    A partir da anlise da escravido, ns podemos dar um passo atrs e posicionar o

    nosso olhar para o poder em si mesmo, para a relao em geral, e no mais para uma de suas

    formas particulares. Assim, buscamos caractersticas que lhe so essenciais, procuramos a sua

    natureza. Se observarmos a concepo aristotlica do poder enquanto poder, podemos

    identificar trs caractersticas fundamentais.

    Em primeiro lugar, h uma parte que manda e uma parte que obedece, derivado do

    fato de que uma delas superior e outra inferior. Segundo, o polo que manda o faz de forma

    17

  • autoritria e desptica, no consultando quele que obedece. Terceiro, o poder nasce da

    diferena, da desigualdade. importante guardar essas trs caractersticas essenciais porque

    Aristteles far uso delas para contrastar com a relao poltica e justamente nisto que

    estamos interessados. Porm, antes, vale notar que na viso do autor cada uma destas trs

    caractersticas possui uma verso natural, correta, justa e legtima; e outra verso deturpada,

    corrompida, degenerada e ilegtima.

    No primeiro caso, o poder se sustenta numa superioridade que existe de fato e esta

    superioridade diz respeito ao uso da razo. Veja que como implicao disto ns temos que

    uma relao de poder baseada na fora uma relao ilegtima e deturpada. Existiria de fato

    uma superioridade, mas a mesma est sustentada no motivo errado. Da mesma forma,

    poderamos pensar num caso onde nem sequer h nenhuma superioridade, de nenhuma

    natureza, e ainda assim um dos polos convence o outro de que existe uma suposta hierarquia,

    mas ela apenas falsa e ilusria.

    No segundo caso, aquele que governa o faz em nome daquele que governado, e no

    apenas para o seu prprio benefcio. Da mesma maneira que o pastor leva as ovelhas para o

    bem do prprio rebanho5. Assim o sendo, uma relao de poder onde o polo governante olha

    apenas para os seus interesses distorcida e equivocada. Por ltimo, o poder nasce de uma

    desigualdade e uma diferena especfica, leia-se, desconformidade quanto s capacidades

    intelectivas. Da mesma forma que no primeiro caso, o poder pode se originar por motivos

    errados e ser, portanto, na viso aristotlica, uma relao corrompida e injusta.

    Aqui comum apresentar um contraste com a filosofia poltica moderna e a ruptura

    representada por Maquiavel. Segundo o autor italiano, no h essas classificaes para as

    relaes de poder: de um lado a verso corrompida, de outro a verso legtima e correta. O

    que h so relaes de poder, sem estas inflexes morais, porque, na verdade, o prprio

    poder que legitima o seu exerccio: So if a leader does what it takes to win power and keep

    it, his methods will always be reckoned honourable and widely praised. The crowd is won

    over by appearances and final results. And the world is all crowd. (MAQUIAVEL, The

    Prince XVIII. 6). importante que se diga, entretanto, que a despeito de Maquiavel romper

    5 Analogia utilizada por Plato no primeiro livro d'A Repblica para refutar o sofista Trasmaco.

    18

  • a ligao entre poltica e tica presente em toda a tradio aristotlica, esse mesmo tipo de

    raciocnio j estava presente no movimento grego conhecido como Sofista. Plato atribui a

    mesma ideia ao sofista Trasmaco n'A Repblica6 e ao sofista Clicles no Grgias7.

    Contudo, Aristteles, seguindo os passos de seu mestre Plato, tem a pretenso de

    demonstrar que esta uma viso equivocada da natureza do poder. Segundo os dois filsofos,

    toda ao humana tem por objetivo um bem. Assim o sendo, o poder, por constituir relaes

    entre os homens, tem uma finalidade que est associada com alguma noo do bem, do

    contrrio, por que algum o perseguiria? Portanto, o uso do poder pode ter por objetivo a

    expanso do territrio, a acumulao de riquezas ou a simples construo de uma ponte. Em

    todos os casos, esses fins so entendidos como benficos, positivos e valiosos. Se esse

    raciocnio faz algum sentido, os filsofos argumentaro, o poder no pode legitimar a si

    mesmo, pois ele apenas uma capacidade e devemos julg-lo e analis-lo de acordo com o

    fim a que ele se prope.

    Se retomarmos, ento, a diviso apresentada por Aristteles quanto natureza do

    poder, perceberemos que, em sua viso, o poder correto e justo se ele bem utilizado; do

    contrrio, pode-se afirmar a sua corrupo e degenerescncia. Da mesma forma, a existncia

    de um polo superior e um inferior e a origem desta desigualdade esto vinculados real

    capacidade de escolher e perseguir o bem adequado. Assim, por exemplo, o pai

    legitimamente superior ao filho porque pode escolher efetivamente o que melhor para ele e

    esta sua condio tem origem numa desigualdade objetiva e evidente, dado a diferena que a

    idade faz no uso das capacidades intelectivas.

    Obviamente o argumento s vlido se aceitarmos a premissa de que h um bem

    adequado a ser perseguido, de que h finalidades que so corretas e justas, enquanto outras

    so erradas. Se nos mantivermos cticos quanto a esse ponto e afirmarmos que todos os

    objetivos so igualmente vlidos, imediatamente concluiremos que todas as relaes de poder

    tambm so igualmente vlidas. Podemos dizer, em conjunto com Protgoras, talvez o mais

    famoso dos sofistas, que a virtude aquilo que nos vantajoso. Em outras palavras, no h

    virtude que seja objetiva, que independa de nossa vontade ou desejo. Vamos manter,

    6 Ver o Livro Primeiro d'A Repblica.7 Ver a ltima parte do dilogo Grgias.

    19

  • entretanto, essa posio ctica de lado e assumir a busca pelo bem como uma hiptese

    explicativa da ao dos agentes.

    Dito isto acerca da natureza do poder, ns podemos retornar primeira forma que

    ele assume na investigao aristotlica: a escravido. Assim, o poder do senhor s legtimo e

    efetivo se for baseado numa diferena intelectual real com relao ao escravo, leia-se, o

    primeiro possui razo e o segundo, no. A crtica mais importante e imediata que podemos

    fazer negar a existncia desta diferena. Em outras palavras, negar a existncia de

    indivduos who are as different from other men as the soul from the body or man from

    beast. (Pol. I.5 .1254b15-16).

    Se no h essa inferioridade, se no h essa diferena, a relao de poder desaparece.

    No entanto, precisamos tomar cuidado com a afirmao de igualdade entre os homens. O

    problema desta assertiva a verso que ela assumiu na filosofia poltica iluminista,

    principalmente com os chamados contratualistas8. Nesta teorizao, a igualdade aparece como

    absoluta, na ideia que ficou conhecida na literatura como tbula rasa. Trata-se de afirmar que

    os indivduos so como folhas de papel em branco, iguais em suas capacidades e

    potencialidades. Portanto, a nica coisa que responde por suas diferenas de talento e

    caractersticas so as oportunidades que tiveram e suas respectivas histrias de

    desenvolvimento, ou seja, suas experincias.

    A concepo dos indivduos como tbula rasa possui um conjunto de problemas

    tericos, sendo particularmente difcil concili-la, por exemplo, com os conhecimentos

    desenvolvidos por reas como a biologia e a gentica. Afinal, muito difcil argumentar a

    favor desta igualdade absoluta quando temos caractersticas to marcantes inscritas em nossos

    prprios genes9. Essas diferenas so ainda mais perturbadoras quando tratam da capacidade

    de autocontrole dos indivduos ou, at mesmo, de alguma espcie de diferena moral.

    Podemos citar ainda diferenas quanto sade, ou para voltarmos quilo que essencial para

    Aristteles, quanto ao uso da prpria razo.

    8 Estamos entendendo como contratualistas os autores que buscam num acordo entre os indivduos a origemda sociedade. Hobbes, Locke e Rosseau so os exemplos mais eminentes.

    9 Para mais informaes sobre esse ponto, ver Pinker (2002).

    20

  • Desta forma, configura-se um verdadeiro dilema: por um lado, negamos a Aristteles a

    existncia de indivduos inferiores porque no participam plenamente da razo, mas ao

    mesmo tempo no parece fazer sentido a afirmao de que todos os homens so iguais. Uma

    possvel soluo seria dizer que os homens so diferentes, mas esta diferena no implica

    numa relao hierrquica. Ou seja, a diferena no deve ser confundida com superioridade.

    Mas essa posio no se sustenta realmente, porque, diante de uma perspectiva tica que

    coloca o conceito de virtude no centro de suas preocupaes, como a de Aristteles, as

    diferenas entre os indivduos se traduzem imediatamente em condies de superioridade.

    A soluo para esse dilema est na percepo de que a natureza humana muito mais

    contnua do que supunha Aristteles. Por mais que possamos admitir que existam diferenas

    significativas entre os seres humanos, isso no significa que essas diferenas sejam suficientes

    para explicar uma relao de submisso. Para que essa relao fosse natural, deveria haver

    uma distino gritante entre os indivduos e, por mais que possa haver alguma diferena, ela

    certamente no dessa magnitude. Nesse ponto destoamos de Aristteles, porque sabemos

    que a natureza humana no apresenta descontinuidades como as que o filsofo afirma.

    Assim, estabelecemos que a primeira forma de poder analisada, entre o senhor e o

    escravo, no existe por natureza, como pensava Aristteles. Se passarmos para a segunda

    forma de poder, considerada na obra aristotlica como originria e necessria a relao entre

    o marido e a esposa veremos que nossas objees igualmente se aplicam, mesmo que o

    argumento aristotlico para esta forma de poder seja ligeiramente distinto do apresentado na

    anterior. Para Aristteles, o escravo no possui a faculdade da deliberao, enquanto a mulher

    a possui, porm de forma fraca. Neste caso, entretanto, as diferenas quanto ao uso da razo

    so muito mais questionveis do que as diferenas entre os indivduos de forma geral,

    permitindo que ns rejeitemos qualquer distino qualitativa entre os gneros, da mesma

    forma como Plato fez n'A Repblica10. Negamos, portanto, que a natureza tenha feito seres

    para obedecer, como Aristteles imaginava.

    Mais interessante o terceiro caso, a relao entre pai e filho, a nica forma original

    de poder real que parece se impor de maneira absoluta. Sendo o pai mais velho do que o filho

    10 Ver o Livro Quinto d'A Repblica.

    21

  • e por governar a favor do bem do filho, seu poder real. Como escreve Aristteles: For the

    begetter is ruler on the basis of both affection and age, which is the very mark of kingly rule.

    (Pol. I.12 .1259b10-11). Por isso a figura do pai aparece quando se quer estabelecer uma

    autoridade real, isto , prpria da natureza, da forma como as coisas se apresentam na

    realidade. Zeus o pai dos deuses, nos diz Homero. O Rei o pai dos sditos e assim por

    diante.

    No entanto, ns podemos questionar, do mesmo modo que fizemos com as outras

    duas, tambm esta forma de poder. No parece necessrio que o pai queira o bem do filho. Ele

    pode odi-lo, por exemplo. No h nada que obrigue o pai a governar com amor. Porm, essa

    objeo facilmente descartada se lembrarmos que, se for esse o caso, a relao de poder

    torna-se corrompida e deturpada. No h mais uma autoridade real, porque um dos pontos

    essenciais para essa relao justamente que o polo governante vise o bem do polo

    governado. Aristteles diria que no h um poder verdadeiro, o que existe vcio e perverso.

    Uma objeo mais importante, na mesma linha das que apontamos quando tratamos

    das relaes entre senhor-escravo e marido-mulher, quanto s diferenas entre pai e filho. O

    pai realmente mais velho do que o filho, mas isso no significa que seja mais sbio ou mais

    virtuoso do que ele. Se houver uma relao de igualdade entre pai e filho, essa autoridade real

    tambm desaparece. Tendo desfeito as outras duas, no nos sobraria relao de poder real

    dentre as originrias identificadas por Aristteles. A consequncia disso estonteante.

    Significa que no haveria nenhuma relao de poder que tenha seu fundamento fora do

    prprio exerccio do poder. Significa que a origem do poder seria acidental e arbitrria.

    Significa que o poder perderia o seu fundamento. Ningum governaria por natureza ou por

    mrito e, no fundo, quando desvelssemos sua origem, o poder se manifestaria como sendo

    somente astcia e manipulao. O governante no seria ningum, no sentido de que poderia

    ser qualquer um em seu lugar. Essas concluses representariam o fracasso da filosofia poltica

    clssica e no exagero afirmar que este problema est no centro das preocupaes modernas.

    Voltaremos a esse ponto importantssimo, da possvel arbitrariedade do poder, na

    ltima seo deste captulo. Por ora, gostaramos de retornar construo aristotlica e

    examinar com mais cuidado a terceira relao fundante do poder, a relao de pai e filho. No

    22

  • parece ser absurdo afirmar que existe de fato uma diferena objetiva entre pai e filho,

    considerando o segundo em seu perodo de infncia e juventude. Como diz Aristteles, a

    razo na criana incompleta (Pol. I.13). No por acaso usamos expresses como

    imaturidade e aprendizado para descrever o processo de desenvolvimento de um jovem.

    Parece clara e evidente a diferena entre crianas e adultos quanto ao uso da razo e de suas

    faculdades intelectivas e, a partir disso, h uma relao de poder real e efetiva, nos termos que

    Aristteles as classifica. Mesmo que os filhos sejam criados de forma comunitria (ou pelo

    Estado, por exemplo), a relao de poder permanece, porque o Estado ou a comunidade

    ocupariam o papel de pai nesse sistema. Assim, h pelo menos uma relao de poder real e

    objetiva, a partir da qual podemos entender os fundamentos da relao de poder em geral.

    Propomos, ento, que outras relaes de poder reais sejam entendidas como analogias

    a uma relao entre pai e filho. Essas outras relaes seriam formas distintas do mesmo

    fenmeno e, portanto, carregariam a mesma natureza da dualidade entre pai e filho. Podemos

    compreend-las pela similaridade que apresentam com a relao fundante. Um exemplo a

    relao entre uma pessoa doente cuja capacidade mental esteja comprometida e outra que lhe

    deseja o bem e que possua a razo e o julgamento em pleno funcionamento. Teramos aqui

    uma situao similar, de poder real, porque o doente, assim como o filho, no possui a

    faculdade mental completa (saudvel) e no pode tomar decises por si, enquanto a pessoa

    saudvel, aqui no papel de pai, pode e ir faz-lo, porque pressupomos que ela lhe quer o

    bem.

    importante ressaltar que a filosofia poltica liberal em sua obsesso pela igualdade

    dos indivduos tem deixado escapar algumas diferenas que Aristteles sublinha como bvias

    e naturais, tal como as do pai em relao ao filho. No necessrio opor valores aqui. No

    preciso dizer que a filosofia poltica clssica trabalhava com ideias de nobreza e elevao

    (superioridade) e os modernos as abandonaram, por mais que essa descrio seja possvel de

    ser feita. O ponto que podemos entender a igualdade de uma outra forma, e Aristteles

    muito relevante nesse sentido. Ao ignorar diferenas objetivas e transform-las em diferenas

    subjetivas, o liberalismo esconde seus problemas tericos disfarando-os de uma falsa

    igualdade.

    23

  • O melhor exemplo disso talvez seja a crtica marxista quanto ao constrangimento ao

    trabalho. Ao dizer que as pessoas so livres para vender sua fora de trabalho, o liberalismo

    esconde o fato de que as pessoas no possuem uma escolha real, porque suas condies

    materiais objetivas no so iguais. Dessa maneira, um alto executivo talvez seja livre para

    escolher entre trabalho e lazer, como descreve a teoria econmica, mas um trabalhador que

    luta por sua sobrevivncia no pode faz-lo. Ele no se depara verdadeiramente com uma

    escolha, dado que h condies objetivas em sua vida que o impelem ao trabalho. Assim, h

    uma diferena real e importante entre os dois indivduos.

    O liberalismo recai constantemente no mesmo problema. Se observarmos a teoria

    liberal para a relao entre os Estados, por exemplo, nos confrontaremos com a mesma

    questo. O liberalismo ignora condies reais e objetivas que constrangem as aes dos

    Estados, e comete o erro de trat-los igualmente. Retornaremos a esse ponto com maior

    cuidado ao longo da tese, por ora suficiente dizer que os conceitos de igualdade e liberdade

    do liberalismo poltico e econmico apresentam diversos problemas. Estamos considerando

    esse ponto nesse momento apenas para destacar que a noo de poder real aristotlica se perde

    na tradio poltica liberal. No fundo, o projeto liberal trata de uma sociedade sem poder onde

    o Estado apenas um escritrio que administra os negcios comuns.

    Ao definir as caractersticas essenciais para o poder, Aristteles demonstra que estas

    relaes no apenas so naturais e necessrias, como tambm so benficas para a sociedade.

    Ao contrastar com relaes de poder falsas e degeneradas, Aristteles mostra como estas

    podem ser prejudiciais e, na verdade, como so frgeis, pois no se sustentam num

    fundamento real. claro que, como vimos, toda a exposio que fizemos quanto ao poder

    criticvel por seu aspecto fortemente ligado tica e ontologia. Em outras palavras, se nos

    mantivermos cticos com relao existncia das condies que Aristteles estabelece para a

    existncia desse poder real, afirmaremos que no existe tal relao como ele a descreve. A

    esse desafio teremos que retornar diversas vezes, devido ao grau de complexidade que ele

    apresenta. Se deixarmos por um momento o ceticismo de lado, entretanto, concluiremos que

    existem relaes de poder que beneficiam os dois polos devido a uma diferena essencial que

    permite que o polo dominante governe adequadamente o polo dominado.

    24

  • Importante perceber que, para Aristteles, nada disso se refere poltica e esfera

    pblica, onde as relaes ocorrem entre iguais e a natureza do envolvimento completamente

    distinta. No toa que ele busca a origem das relaes de poder reais no mbito da famlia,

    ou seja, no ambiente privado e entre desiguais. Esse ambiente privado no deve ser entendido

    como oposto ao Estado. Esse um ponto muito importante, pois comum interpretar o

    Estado como sinnimo da esfera pblica e como antagonista da esfera privada. No assim

    que o pensamento clssico, em especial Aristteles, enxergava a questo poltica. Na prxima

    seo veremos com mais detalhes essa questo.

    Quanto origem do poder, podemos afirmar que a construo aristotlica nos ajuda a

    entender o fenmeno. Pelo que foi exposto, conclumos que poder no sinnimo de

    arbitrariedade ou capricho. Poder no se confunde com fora ou reputao. Para Aristteles, a

    realidade do poder no est associada com o seu exerccio. Podemos contrastar sua viso com

    a de Hobbes, que, no Leviat, nos diz: () whatever quality makes a man beloved, or feared

    of many; or the reputation of such quality, is Power; because it is a means to have the

    assistance, and service of many. (HOBBES, Leviathan X. 7). Para Aristteles, a relao de

    poder s real se ela se baseia numa diferena genuna quanto ao uso da razo que a

    fundamente e, alm disso, se est associada com uma finalidade justa. Poder no se manifesta

    por causa de aparncia, reputao ou fora, para citar apenas alguns exemplos da lista

    hobbesiana. Sem um fundamento externo para o poder, a chamada escola realista encontrar

    dificuldades para sustentar sua posio. Voltaremos a essas dificuldades na ltima seo deste

    primeiro captulo, porm antes precisamos investigar a natureza da poltica para completar o

    nosso quadro terico, da mesma forma como fizemos com o poder.

    I.2 A origem e a importncia da poltica

    Os homens no vivem em famlias isoladas, em domnios particulares com um chefe

    desptico no topo. Os homens se relacionam para alm de seu espao privado e, quando o

    fazem, exercem o que Aristteles chama de poltica. Isso significa que a poltica o que se faz

    na plis, ou seja, no espao pblico, no ambiente conjunto, naquilo que compartilhado e

    comunicado. Assim, Aristteles possivelmente o primeiro pensador a distinguir

    rigorosamente o poder, exercido no espao privado, na famlia, pela figura do pai, da

    25

  • relao poltica, que ocorre no espao pblico, na cidade, entre cidados. Por isso, Aristteles

    afirma que, num imprio, por exemplo, no existe poltica propriamente, o que existe um rei

    (equivalente figura do pai) que governa sobre seus sditos (anlogos a filhos). Isso

    uma relao de poder e no uma relao poltica. A poltica uma relao que ocorre entre

    iguais onde as decises so tomadas conjuntamente ou alternadamente, porm nunca de forma

    unilateral e autoritria.

    Outra caracterstica importante que a relao poltica busca o interesse em geral,

    enquanto a relao de poder trata de um interesse especfico. Por isso, quando aqueles que

    participam do poder poltico visam o interesse particular, eles esto deturpando a poltica,

    esto transformando-a numa relao de poder, assumindo papel de senhor e no de

    cidado. H uma usurpao do espao pblico. It is evident, then, that those regimes which

    look to the common advantage are correct regimes according to what is unqualifiedly just,

    while those which look only to the advantage of the rulers are errant, and are all deviations

    from the correct regimes (Pol. III.6 .1279a19-22). Como dissemos anteriormente, isso no

    significa que o senhor no possa observar o interesse do dominado, mas o faz de forma

    secundria e especfica. A diferena da poltica que o seu olhar no interesse coletivo,

    conjunto, e no no interesse de um ou de outro.

    Entretanto, o que garante que haja um interesse comum? Por que os cidados

    legislariam ou julgariam em vista dele e no buscando sua prpria vontade? O prprio

    conceito de interesse em geral visto com estranheza, dado que os interesses esto

    normalmente associados a indivduos particulares. Essa concepo muito comum na

    modernidade e frequentemente est associada com alguma espcie de individualismo

    metodolgico. Dito de outra forma, essa viso afirma que so indivduos que possuem

    interesses, e no grupos, instituies ou pases. Ento, por exemplo, muitos olham com

    desconfiana para a expresso interesse nacional, porque ela apresentaria uma contradio,

    afinal a nao no pode ter interesses, quem os tem so os seus cidados. No entanto, esta

    uma viso que no se sustenta realmente, uma vez que um conjunto identificvel de

    indivduos pode ter posies e interesses que no se traduzem apenas como agregao de suas

    respectivas vontades particulares. As decises e os interesses do grupo podem inclusive ser

    26

  • contraditrias com os desejos dos indivduos que formam o grupo11.

    Esse resultado demonstra que possvel falar em interesse comum ou interesse

    nacional. Porm, Aristteles introduz uma interpretao que ainda mais fundamental. No

    se trata apenas de observar que o agregado, enquanto unidade inteligvel prpria, no pode ser

    reduzido ao particular. necessrio perceber tambm que, quando discutimos os homens e

    sua vida poltica, a cidade (a plis) vem antes dos indivduos. Agora, preciso compreender

    com cuidado o que isso significa, porque esse ponto absolutamente essencial para se

    compreender a origem e a natureza da poltica no pensamento aristotlico. Dizer que a cidade

    vem antes dos indivduos no significa dizer que aquela seja mais importante do que estes ou,

    ainda, que o Estado possa intervir da forma como quiser na vida dos seus cidados. Significa

    compreender que o indivduo s existe enquanto parte do todo maior que ele, no apenas

    porque no se basta a si mesmo, isto , depende dos outros para viver, como tambm porque

    s possui sentido e se define como parcela do conjunto a qual pertence. Como diz Aristteles:

    The city is thus prior by nature to the household and to each of us. For the whole must of

    necessity be prior to the part. (Pol. I.2 .1253a19-21).

    importante sublinhar que, quando Aristteles fala de natureza, ele no est se

    referindo a algo externo e diferente dos homens. No se trata de natureza como um conceito

    em oposio civilizao. preciso entender natureza como realidade, como o cosmos,

    como o conjunto de todas as coisas que existem. Dito isso, talvez uma analogia possa nos

    ajudar a entender o porqu de o todo ser, necessariamente, anterior s partes. O prprio

    Aristteles nos oferece uma comparao: () if the hole body is destroyed there will not be

    a foot or a hand, unless in the sense that the term is similar (as when one speaks of a hand

    made of stone), but the thing itself will be defective. (Pol. I.2 .1253a22-24). Em outras

    palavras, se tentarmos compreender o que uma mo (parte) sem antes entendermos o que

    um corpo (todo), no seremos capazes de compreender nem uma coisa nem a outra. Isto

    porque, para compreendermos o que uma mo, necessrio observar a funo que ela

    11 O filsofo americano John Searle (2002) nos oferece um exemplo ilustrativo de como aes coletivas nopodem ser entendidas como um somatrio de aes individuais. Considere um grupo de pessoas numpiquenique e repentinamente comea a chover. Todos correm para um abrigo tentando fugir da chuva. Agoraconsidere um outro cenrio, em que os mesmos indivduos no mesmo parque, porm como membros de umgrupo de danas, realizam uma performance artstica em que correm todos para o abrigo durante a chuva. Osomatrio das aes individuais nos dois casos o mesmo, porm representam resultados radicalmentediferentes, decorrentes do fato de que no segundo cenrio h um grupo que, para todos os efeitos relevantes,possui uma inteno prpria.

    27

  • exerce e, para tanto, preciso entender como ela se insere nas atividades do corpo.

    Portanto, o todo sempre anterior s partes.

    Isso nos conduz terceira caracterstica fundamental e originria da poltica, dentro do

    arcabouo aristotlico. Vale lembrar que a primeira propriedade, como vimos, que a poltica

    exercida entre iguais, enquanto a segunda afirma que a poltica busca o interesse em geral e

    no o particular. A terceira que a poltica o espao da liberdade humana. A esfera privada,

    o campo do poder, o lugar das necessidades e carncias. Segundo Aristteles, os homens se

    renem no lar porque precisam cuidar de suas necessidades materiais, porque preciso

    trabalho para produzir os objetos necessrios vida. Disto trata a economia. Os homens so

    compelidos a cuidar das exigncias para a sobrevivncia e, nesse sentido, no h liberdade.

    Para os clssicos (no apenas para Aristteles), o conceito de liberdade est estreitamente

    relacionado com o conceito de autonomia. Ser livre poder dispor de si mesmo. Como

    estabelecemos anteriormente, nenhum indivduo pode faz-lo isoladamente e, portanto,

    associa-se com outros e forma um lar ou um povoado. A funo desta unidade familiar

    enfrentar a condio humana de privao e necessidade. A poltica surge no momento em

    que h excedente e possvel criar um espao de liberdade que permita o florescimento

    humano. Por se basear na falta e na mngua, o poder se manifesta em relaes de obrigao e

    dever, o senhor precisa do escravo tanto quanto o escravo precisa do senhor.

    Para Aristteles, a poltica , portanto, dilogo. E isso s possvel se j estiverem

    superadas as condies materiais que atendam s necessidades do corpo; em outras palavras,

    se houver liberdade. Assim, se, por um lado, para que haja poltica, preciso que os cidados

    sejam efetivamente livres, autnomos, por outro lado, a existncia desse espao pblico que

    permite a realizao desta liberdade. nesse dilogo poltico que se pode observar e escolher

    entre a, b e c, ao passo que, no ambiente privado, no h escolhas de fato. preciso comer, se

    vestir, habitar, manter a sade, etc. Na poltica os homens podem almejar a vida feliz, podem

    exercer sua virtude, como dizem Plato e os Pitagricos, podem buscar a semelhana com os

    deuses, at o ponto em que lhes possvel.

    Por isso Aristteles faz questo de separar a finalidade para a qual surge o povoado e a

    finalidade de ser da cidade, da plis. O primeiro serve para garantir as condies materiais da

    28

  • vida e, a segunda, para buscar a eudaimonia12. It reaches a level of full self-sufficiency, so to

    speak; and while coming into being for the sake of living, it exists for the sake of living well.

    (Pol. I.2 .1252b30-31). Assim, podemos notar, por exemplo, seguindo o pensamento

    aristotlico, que a economia moderna possui um problema profundo, porque nela a liberdade

    entendida dentro do espao privado, no particular e pessoal. Dessa maneira, h um

    entendimento de que a liberdade se manifesta no ato do consumo, na escolha entre bens, na

    composio de uma cesta de demanda, o que , segundo Aristteles, uma completa

    incompreenso do que significa liberdade e economia. No ambiente privado, econmico, o

    que existe so nossos desejos, o que incompatvel com o conceito de liberdade clssico.

    Essa liberdade somente se manifesta quando no estamos compelidos por nossas vontades e

    necessidades, no ambiente propriamente poltico.

    No entanto, essa viso aristotlica tem um problema imediato o qual no podemos

    deixar de mencionar. Segundo o que foi dito, a poltica s pode ser exercida por homens

    livres, e a liberdade entendida como autonomia, exige que esses homens no exeram nenhum

    ofcio. Those who perform necessary services for one person are slaves; those who do so for

    the community are workers and laborers. (Pol. III.5 .1278a11-12). Assim sendo, no podem

    ser cidados livres. A questo aqui no uma repulsa a priori ao trabalho, ao esforo e ao

    labor. A viso aristotlica no se traduz, necessariamente, numa virtude aristocrtica. Se a

    pessoa trabalhasse para si mesma, por exemplo, no haveria esse problema. O ponto quanto

    liberdade e autonomia. O problema ser forado ao trabalho, ser obrigado a trabalhar para

    viver. Aristteles no aceitaria que se chamasse de livre quem necessita trabalhar para outrem

    para viver, afinal essa pessoa depende de um senhor (no caso de uma relao escravocrata),

    ou do mercado (no caso de um arteso), ou ainda, de um patro (no caso do trabalho

    assalariado). No livre porque no tem autoridade sobre sua prpria vida, e, se no livre,

    no pode ser cidado, no pode participar da poltica.

    Podemos ilustrar essa preocupao aristotlica com um exemplo simples. Imaginemos

    um trabalhador do setor de automveis e digamos que ele possui participao poltica nas

    decises de sua cidade. Digamos tambm que o prximo ponto da pauta so irregularidades

    cometidas pela indstria de automveis onde ele trabalha, cuja punio seria o encerramento

    12 costume traduzir a palavra grega eudaimonia como felicidade, mas preciso guardar o sentido de prsperoe abenoado do termo.

    29

  • de suas atividades. O trabalhador em questo claramente no est em posio de zelar pelo

    interesse comum, dado que sua existncia material depende do seu trabalho e, portanto, seus

    votos e decises sero para defender o interesse da indstria de automveis, interesses esses

    que so particulares e no gerais. Veja o exemplo que o prprio Aristteles cita: In Thebes

    there used to be a law that one who had not abstained from the market for ten years could not

    take part in office. (Pol. III.5 .1278a26-27).

    Apesar do argumento aristotlico ser interessante, o problema aparece quando

    percebemos que, por um lado, negamos firmemente a possibilidade da escravido e, por outro,

    concordamos que trabalhadores assalariados ou artesos no so livres, mas gostaramos que

    o fossem. Em outras palavras, reconhecemos que o trabalho indispensvel vida humana,

    para a garantia das necessidades materiais, porm gostaramos que todos participassem da

    vida poltica e, seguindo os princpios aristotlicos, deveramos dizer, que ningum deveria

    trabalhar. Uma contradio se anuncia e, novamente, possvel enxergar a ressonncia desse

    problema nas discusses modernas da economia poltica.

    Deixaremos esse problema de lado, pois tratar dele nos afastaria de nosso tema de

    interesse. Suporemos, para nossos propsitos, que o problema econmico est de alguma

    forma resolvido. Faamos essa suposio para que possamos investigar a origem e a natureza

    da poltica. Sistematicamente, podemos observar que Aristteles define trs caractersticas

    essenciais para a poltica e as suas respectivas diferenas para o poder.

    (i) A poltica ocorre entre iguais, enquanto o poder se manifesta quando h importantes

    desigualdades. Em outras palavras, a poltica uma relao de amizade, ao passo que o poder

    uma relao de mando.

    (ii) A poltica visa o interesse comum, zela pela vontade do todo, enquanto o poder

    busca o interesse particular, especfico (mesmo que esse seja do polo dominado, como

    tratamos anteriormente).

    (iii) A poltica se exerce pelo dilogo livre, entre cidados livres, isto , num espao

    que no constrangido pela necessidade e pela carncia, ao passo que o poder se impe com a

    30

  • palavra-ordem, que visa atender vontades e desejos (frutos da necessidade e da carncia).

    A seguinte passagem da filsofa Hannah Arendt descreve bem esse contraste:

    A polis diferenciava-se da famlia pelo fato de somente conhecer iguais, aopasso que a famlia era o centro da mais severa desigualdade. Ser livresignificava ao mesmo tempo no estar sujeito s necessidades da vida nemao comando do outro e tambm no comandar. No significava domnio,como tambm no significava submisso. Assim, dentro da esfera da famlia,a liberdade no existia, pois o chefe da famlia, seu dominante, s eraconsiderado livre na medida em que tinha a faculdade de deixar o lar eingressar na esfera poltica, onde todos eram iguais. (ARENDT, 2001, p.41,grifos originais)

    Os pontos (i) e (iii) so condies para a existncia da poltica. O que significa dizer

    que, se eles no estiverem presentes, a poltica desaparece. O ponto (ii), por outro lado,

    representa a finalidade da poltica, seu tlos. Esse segundo ponto especialmente importante

    porque nele que Aristteles identifica a diferena entre as constituies (no sentido de

    organizaes polticas) verdadeiras e corretas e suas verses deformadas. Da mesma forma

    que as relaes de poder apresentavam verses retas e corrompidas, a poltica tambm tem

    suas boas constituies e suas contrapartes deturpadas. Assim, as formas polticas que

    buscarem o interesse em geral, que procurarem a boa vida, so formas corretas, enquanto

    aquelas que visarem os interesses daqueles que governam, so verses pervertidas. Da mesma

    maneira que as relaes de poder apresentavam trs formas originais senhor-escravo,

    marido-mulher e pai-filho das quais todas as outras so variaes, as relaes polticas

    tambm se exprimem atravs de trs formas essenciais, das quais as demais so variaes.

    So elas: a monarquia, a aristocracia e a repblica13.

    conhecida a vasta pesquisa realizada por Aristteles e seus discpulos na compilao

    e organizao das diversas constituies das cidades-estados gregas14. Ao ler A Poltica,

    comum constatar esse conhecimento enciclopdico de Aristteles, que a todo momento

    menciona como so as leis em Esparta, em Cartago ou Creta. Dessa vasta pesquisa,

    13 A palavra que Aristteles usa Politeia. O que um tanto confuso, porque a mesma palavra utilizada paradescrever o processo poltico em geral. Diversos tradutores optam por traduzir de variadas maneiras.Optamos por usar a palavra de origem latina Repblica.

    14 Segundo Diogenes Laercius, Aristteles e seus estudantes coletaram 158 constituies de cidades-estados.Infelizmente, apenas a constituio de Atenas conseguiu chegar aos dias correntes.

    31

  • Aristteles conclui que todas as constituies podem ser classificadas como parte de um dos

    trs tipos fundamentais. A diferena entre as formas originais se d pelo nmero de cidados

    que governam. A monarquia o governo de um, a aristocracia o governo de alguns e a

    repblica o governo de todos os cidados. importante sublinhar que essas trs formas

    compartilham todas as caractersticas que discutimos como fundamentais para a poltica e,

    portanto, so expresses do mesmo fenmeno, que a poltica.

    A pergunta que cabe fazer por que a poltica possui essas trs formas. Por que no

    outras? Ou, ento, por que no possui somente uma nica forma? A resposta de Aristteles

    de que pode haver desigualdade significativa entre os cidados, principalmente no que tange

    virtude, e, para haver poltica, necessrio que haja igualdade (primeira caracterstica que

    citamos). Assim sendo, preciso reconhecer o governo daqueles cidados que forem mais

    virtuosos. Isso porque apenas cidados virtuosos podem reconhecer e buscar o interesse em

    geral, podem de fato agir politicamente, enquanto aqueles que no so virtuosos no sabem

    nem sequer identificar qual o bem comum e so compelidos a todo o momento por seus

    desejos pessoais.

    As circunstncias, ento, definem qual dos trs tipos de governo o mais adequado.

    Para o caso onde um homem se destaca entre os demais, a monarquia a constituio mais

    apropriada. Da mesma forma, quando um grupo de indivduos se distingue por sua excelncia,

    temos a aristocracia, e, finalmente, quando todos os cidados juntos so superiores a qualquer

    faco ou indivduo, a repblica o governo a ser estabelecido. preciso que se diga

    novamente que essa eminncia s verdadeira enquanto superioridade moral, no se trata de

    reconhecer nada alm disso como fundamento para determinada forma de governo. O prprio

    Aristteles menciona a confuso que alguns fazem nesse ponto, ao apresentarem alegaes

    que no se sustentam para o direito de governar. Those who claim to merit rule on account of

    wealth could be held to have no argument of justice at all, and similarly with those claiming

    to merit rule on the basis of family. (Pol. III.13 .1283b15-17).

    Existe, todavia, uma contradio nessa exposio do pensamento aristotlico que

    chama a ateno. A primeira forma de governo, a monarquia, no atende primeira

    caracterstica que definimos como sendo essencial para a poltica, ou seja, que a relao

    32

  • poltica seja um dilogo entre iguais. No faz sentido, sendo a monarquia o governo de um s,

    que seja efetivamente um dilogo entre iguais, dado que temos um nico indivduo. Assim, a

    rigor, a monarquia apenas uma relao de poder e no pode ser classificada como um

    governo poltico. O prprio Aristteles parece reconhecer essa dificuldade ao colocar a

    monarquia como um regime prprio para um deus, utilizando inclusive a figura de Zeus para

    descrev-la (Pol. III.13 .1284b26-34). Assim, como se o filsofo nos dissesse que a

    monarquia no prpria do mundo dos homens, no exatamente uma forma de poltica, e

    sim uma forma de submisso.

    H um certo incmodo em reconhecer indivduos que sejam superiores quanto

    virtude. Como mencionamos na primeira parte deste captulo, a filosofia poltica liberal se

    funda mesmo na negao deste princpio e tenta estabelecer outra origem e fundamentao

    para a poltica. Vale dizer, entretanto, que Aristteles bastante simptico ideia de que o

    conjunto total de cidados apresenta qualidades admirveis, enquanto unidos em torno do

    interesse comum, e que, portanto, supera a aristocracia e a monarquia quanto formao de

    um governo virtuoso. Esse um ponto delicado, dado que no parece de imediato que, diante

    do critrio da virtude, a maioria possa ser melhor do que grupos menores. Aristteles

    apresenta alguns argumentos para defender essa viso e afirmar que, de forma geral, a

    repblica o melhor dos governos. A exposio desses argumentos, entretanto, nos levaria

    para uma discusso muito especfica sobre as formas de governo. Assim, vamos nos limitar a

    dizer que, a despeito de partir de uma fundamentao poltica muito distinta daquela dos

    modernos, Aristteles conclui que o melhor governo o governo de todos os cidados, a

    repblica. Mesmo que sua viso de cidados exclua os escravos, as mulheres, as crianas e os

    trabalhadores (artesos e mercenrios), como discutimos ao longo do presente captulo.

    Resta-nos mencionar as constituies deformadas, aquelas onde quem governa busca

    seu prprio interesse e no o bem comum. So elas: a tirania, a oligarquia e a democracia.

    Tyranny is monarchy with a view to the advantage of the monarch, oligarchy rule with a

    view to the advantage of the well off, democracy rule with a view to the advantage of those

    who are poor; none of them is with a view to the common gain. (Pol. III.7 .1279b5-10).

    Assim, Aristteles identifica a maioria com os pobres e a minoria com os ricos, e observa uma

    fonte de conflito nessa diviso, porque os ricos podem governar s para si, enquanto os

    33

  • pobres podem voltar tudo para os seus desejos e paixes. Aristteles v as duas formas como

    deturpadas, porque no visam o bem em geral. Vale notar, contudo, que a fonte da deturpao

    pode estar justamente na desigualdade de riquezas e propriedades. Esse um ponto que

    Aristteles discute com muito cuidado.

    Segundo o filsofo, aqueles que nascem em condio de muita abundncia so

    normalmente arrogantes, indisciplinados e desprezam os demais cidados, mais pobres que

    eles, enquanto aqueles que nascem em misria e penria so bajuladores, invejam a riqueza e

    so incapazes de apreciar o valor da poltica. Na viso aristotlica, ambos os grupos so

    perigosos ao Estado. O primeiro d origem s oligarquias e o segundo s democracias.

    A configurao ideal para evitar essas constituies deturpadas a predominncia de

    uma condio mdia. Na ausncia de uma desigualdade de riquezas e propriedades

    significativa, esses cidados podem encontrar mais facilmente a virtude uns nos outros, que

    o que realmente importa. Thus it is the greatest good fortune for those who are engaged in

    politics to have a middling and sufficient property, because where some possess very many

    things and others nothing, either rule of the people in its extreme form must come into being

    () (Pol. IV.11 .1295b40-1296a2). Os excessos s fazem prejudicar a busca pela felicidade

    em geral, e as desigualdades econmicas s fazem deturpar relaes que, de outra forma,

    seriam de uma amizade genuna.

    A tirania, por sua vez, representa o mais deplorvel dos governos e, do ponto de vista

    terico, no muito interessante15. Trata-se do exerccio arbitrrio do poder por um homem

    vicioso que, ao tentar satisfazer seus desejos, submete todos os demais. A figura do tirano,

    entretanto, nos interessa porque conversa facilmente com a crtica de Maquiavel, ou seja, a

    ideia de que a poltica no est fundamentada na tica nem na razo. No est fundamentada,

    na verdade, em lugar algum, que no seja a fora do prncipe e, portanto, confunde-se com o

    poder, com o arbtrio. Em outras palavras, poderamos acusar de imaginria e idealizada a

    descrio que Aristteles faz da poltica como amizade entre os cidados. Poderamos dizer,

    em conjunto com Maquiavel, que tal relao poltica no existe. Diramos tambm que quem

    15 De fato Aristteles dedica somente um pequeno captulo para o assunto, o dcimo captulo do quarto livro d'A Poltica, onde diz: It remains for us to speak about tyranny; not that there is room for much argumentabout it () (Pol. IV.10 .1295a1-2).

    34

  • exerce o poder e se deixa pautar por esses princpios, persegue uma razo que no est l e

    invariavelmente perder a posio de poder que conquistou ou recebeu.

    Essa interpretao, marcada na figura de Maquiavel, faz com que desaparea a

    diviso entre boas e ms constituies, da mesma forma como desaparece uma finalidade

    objetiva para o Estado. No se trata mais de buscar a vida feliz para os seus cidados, pois no

    h mais um conceito moral que se sustente objetivamente. No h o tal processo poltico

    como descrito por Aristteles, o que existe so conflitos de interesses particulares. A poltica

    no nada mais do que exerccio de poder. Porm, se o poder, como vimos anteriormente, no

    possui um fundamento externo, objetivo, sendo apenas sustentado na sua prpria ao, como

    podemos entend-lo? Ele se apresenta como algo evasivo, transitrio e fugaz. Isso significa

    que o poder no necessrio, no sentido de no decorrer de uma determinao externa a ele

    prprio. Na prxima seo, investigaremos com maior detalhe esse tipo de necessidade e

    fundamentao e observaremos as consideraes aristotlicas sobre o assunto.

    I.3 A necessidade do poder e da poltica

    O filsofo Blaise Pascal, no seu primeiro discurso sobre a condio dos grandes

    (1670), usa um conto para revelar a natureza acidental e arbitrria do poder. Imagine um

    nufrago que cai numa ilha cujos habitantes encontram-se em tristeza, pois seu rei est

    desaparecido. Por acaso, o homem que naufragou possui grande semelhana, tanto

    fisicamente quanto em personalidade, com o rei desaparecido. As pessoas da ilha, ento, o

    tomam como o prprio rei e, mesmo que inicialmente relutante, o nufrago aceita a sua boa

    fortuna. O que essa histria conta? Para Pascal, ns no possumos posies de poder,

    riquezas, ou o que quer que seja, por meio de mrito, virtude, razo ou natureza. Estamos

    todos na mesma situao do nufrago. H um acaso, um golpe de sorte, uma casualidade

    profunda no poder. No h fundamento ontolgico algum para esta relao, e por isso que,

    constantemente, governos e governantes precisam ocultar a origem de sua legitimidade, por

    que de fato no h nenhuma.

    O poder vive por esconder-se, seja calando aqueles que insistem em question-lo, seja

    criando imagens e smbolos que ocultam o vazio de sua fundao. Se sua origem elusiva for

    35

  • revelada, o poder tende a desmoronar. isso que fazem as revolues, desvelam a origem

    incua do poder e desnudam o fato de que qualquer um pode reclamar o trono. por isso que

    Pascal conclui que o nico poder verdadeiro e real o poder divino. Apenas Deus Rei. O

    poder dos homens no possui razo de ser, iluso e signo. O governante humano governa

    por acaso, por fortuna e nada mais. Mesmo que o ceticismo quanto a um fundamento para o

    poder no incorpore a concluso de Pascal, de que Deus o nico poder verdadeiro, ele no

    pode deixar de vislumbrar o significado do vazio deixado. Dizer que o poder acidental o

    mesmo que dizer que toda ao humana arbitrria, o que significa dizer que as relaes

    sociais e polticas so apenas desejos particulares, vontades despticas e autoritrias.

    O ctico poderia contornar esse resultado afirmando que, apesar do poder no ter outro

    fundamento alm dele prprio, os homens podem concordar em construir regras e instituies

    coletivamente, diminuindo assim a ao discricionria individual. Dessa maneira, aqueles que

    exercem o poder tambm precisam seguir leis, mas no que essas leis sejam externas ao

    prprio poder. Na verdade, elas foram criadas por outros homens (do passado ou no) que

    tambm detm poder, e justamente esse poder que sustenta essas leis. Assim, leis e

    instituies dependem do poder, mas tambm ajudam a condicion-lo. No entanto, como em

    seu fundamento, essas leis e instituies s existem porque h uma autoridade que as garanta,

    elas podem ser alteradas a qualquer momento com o surgimento de um novo poder.

    Nessa leitura, a poltica se torna uma construo histrica e social, dos homens para os

    homens. Trata-se de dizer que a prpria sociedade e no algo externo a ela (como Deus ou a

    Razo) que estabelece o governo, suas leis e suas instituies. Essa leitura muito associada

    com Maquiavel, mas j pode ser encontrada, como mencionamos na primeira parte desse

    captulo, nos sofistas da Grcia clssica. Assim, as pessoas tentam encontrar consensos, em

    vez de meramente se submeter a um governo desptico e autoritrio. Em outras palavras,

    tentam contornar o exerccio do poder direto. No toa que os sofistas floresceram na

    Atenas democrtica, pois eles representavam uma afirmao a favor do debate e da discusso.

    por isso tambm que os sofistas defendiam o uso da retrica, afinal, se no h

    palavra sagrada ou razo objetiva que nos guie, o uso da persuaso e do convencimento so

    fundamentais para direcionar a assembleia para um lado ou para o outro. Dito de outra forma,

    36

  • o poder continua como sendo o nico fundamento de si mesmo, mas ele se manifesta na fala,

    no discurso e na discusso contenciosa. Podemos entender isso de forma ampla, como, por

    exemplo, quando os representantes diplomticos dos pases modernos se renem na

    Organizao Mundial do Comrcio para debater se a tarifa alfandegria deveria ser x ou y. O

    que est em jogo, no fundo, no qual a melhor tarifa alfandegria ou qual a tarifa

    correta, e sim qual discurso consegue convencer os demais, por fora, persuaso ou

    negociao.

    Essa , em linhas gerais, uma descrio da posio ctica ao poder natural. A crtica

    que se pode fazer a essa posio a seguinte. Sem nenhum fundamento externo e objetivo

    para o poder, todos os resultados histrico-sociais so igualmente vlidos. Talvez a

    investigao em torno da escravido possa esclarecer a crtica. Se olharmos para a histria e

    observarmos o processo da escravido, podemos nos fazer as seguintes perguntas: A

    escravido legtima? correta? Uma primeira resposta seria simplesmente desconstruir a

    pergunta, isto , dizer que devemos olhar para a histria sem julgamentos de valores, sem

    avaliaes normativas. Porm, essa no propriamente uma resposta, e se quisermos insistir

    na pergunta por um instante, podemos responder que a escravido era legtima no passado,

    dado que os homens da poca assim acordaram, enquanto nos dias presentes ela deixa de ser,

    pois ns no reconhecemos mais sua legitimidade. O problema desta resposta que ela nos

    fora a dizer que no havia nada de errado com a escravido no passado, era to somente a

    maneira como as coisas ocorriam. por isso que buscamos um terceiro tipo de resposta, qual

    seja, se a escravido vlida em si mesma. Essa postura se justifica porque sabemos que a

    histria se move e as pessoas mudam de opinio e, no futuro, elas podem concordar

    novamente que a escravido algo legtimo. Aceitar de novo esse consenso, no entanto, nos

    parece algo absurdo.

    por isso que Aristteles, ao se perguntar se a escravido legtima, no segue apenas

    o consenso de seu tempo. Ele procura responder teoricamente a questo, investiga a sua

    natureza e suas causas. comum a acusao de que Aristteles era a favor da escravido

    simplesmente porque esta era a opinio corrente em sua poca, mas essa no uma viso

    adequada. Em primeiro lugar, porque o prprio Aristteles tinha conhecimento e menciona

    detalhadamente a posio contrria escravido (Pol. I.6). Ento, ele certamente sabia que

    37

  • negar a escravido era uma opo. Em segundo lugar, e mais importante, ele d voz aos dois

    lados da questo e procura entender o fundamento do fenmeno, antes de concluir a sua

    posio, como ns vimos na primeira parte deste captulo. por isso que seu tratado sobre o

    assunto continua sendo to relevante para entendermos a natureza do poder e da poltica.

    Se seguirmos esse raciocnio, concluiremos que, de fato, o poder possui um

    fundamento externo e objetivo, leia-se, a razo prtica. O poder real est baseado numa

    diferena efetiva quanto ao bom uso da parte prtica da razo. Nesse sentido, o poder

    necessrio, porque ele no depende de um acidente ou da boa fortuna. Se quisermos voltar ao

    conto de Pascal, poderamos dizer que, caso o nufrago no possusse uma razo prtica

    superior aos seus sditos, ele no teria um poder real, tornando-se assim um tirano ou tendo

    seu governo derrubado pelos habitantes da ilha. Assim, podemos concluir que o poder possui

    um fundamento real (razo prtica) e uma relao necessria, conforme a descrio que

    fizemos no incio deste captulo atravs da analogia com a relao entre pai e filho.

    O problema maior aparece quando perguntamos quanto necessidade da poltica, no

    sentido em que Aristteles a entende. Afinal, se h diferenas objetivas quanto ao uso da

    razo, como pode haver um dilogo entre iguais? Aqui precisamos lembrar que, para

    Aristteles, as diferenas quanto ao uso da razo prtica no esto em toda parte. Isso se

    relaciona com a prpria natureza da razo prtica, que investigaremos com mais cuidado no

    captulo sobre a tica. Por ora, suficiente dizer que, entre os cidados livres, reina uma

    igualdade deliberativa, pelo menos potencialmente, e ela pode ser atualizada se tivermos um

    adequado processo de formao destes cidados. por isso que Aristteles dedica o stimo e

    oitavo livros inteiros d'A Poltica para tratar desse processo ideal de formao dos cidados

    livres. Dito de outra forma, as diferenas reais esto no mbito da famlia (seja numa

    estrutura tradicional, seja numa colnia, num povoado, ou num imprio) e so elas que

    fundamentam o poder, enquanto, entre os cidados livres e iguais, surge a relao

    propriamente poltica.

    Agora precisamos observar uma grande dificuldade que se impe. Veja que, se os

    cidados livres buscam um bem, como o prprio Aristteles afirma na primeira linha d'A

    Poltica, como pode haver um verdadeiro dilogo entre eles? Isto , por que a poltica no se

    38

  • reduz a uma questo tcnica? Por que ainda h multiplicidade se concordamos que h um bem

    a ser perseguido? Talvez aqui esteja a principal divergncia entre Plato e Aristteles quanto

    natureza e necessidade da poltica. Plato transforma a poltica, entendida aqui como

    deliberao das questes humanas, num conhecimento equivalente geometria. Sua ideia de

    um bem universal lhe permite igualar todas as atividades humanas dentro do mesmo campo

    de investigao teortica, de conhecimento. Assim, o poltico excelente um filsofo, da

    mesma forma como um gemetra excelente tambm um filsofo. Nos dois casos o filsofo

    conhece o bem universal e pode aplic-lo em diversas atividades particulares.

    Aristteles desconstri a ideia de um bem universal. Para ele o conceito no ajuda a

    entender nada de significativo. There is also a difficulty in seeing how a weaver or carpenter

    will be helped in practising his skill by knowing this good-in-itself, or how someone who has

    contemplated the Form itself will be a better doctor or general. (EN. I.6 .1097a8-10). Dessa

    maneira, quando Aristteles fala do bem que o alvo da poltica, da vida coletiva humana, ele

    no est falando de um bem em geral, transcendente, e sim de um bem particular, isto ,

    prprio de uma determinada circunstncia. Judgement is concerned not with what is eternal

    and unchanging, nor with what comer into being, but with what someone might puzzle and

    deliberate about. (EN. VI.10 .1143a3-5). Assim, Aristteles contrasta a virtude tpica da

    razo prtica (phrnesis) com a virtude tpica da razo terica (sopha). A primeira consiste

    em deliberar corretamente a respeito da vida do homem, enquanto a segunda trata do

    conhecimento a respeito dos princpios, a apreenso das causas. preciso sublinhar que, para

    Aristteles, a razo terica superior razo prtica, porque a primeira diz respeito s

    questes imutveis e elevadas, ao passo que a segunda cuida dos assuntos dos homens, que

    so de natureza transitria e possvel.

    por isso que, ao olhar para a repblica platnica, Aristteles rejeita a ideia de uma

    unidade perfeita para o Estado. O desejo platnico de que todas as decises polticas sejam

    deduzidas da sua ideia de um bem universal, , de fato, na viso aristotlica, a morte da

    prpria poltica. Isso porque a poltica platnica anula a diversidade, dado que todos

    compartilham e vivem segundo o mesmo plano social. Ao desejar uma unidade e uma

    harmonia perfeita entre os indivduos e a sociedade como um todo, Plato acaba por destruir

    os dois, desprovendo-os de sua prpria identidade em nome de uma identidade terceira.

    39

  • preciso entender, diz Aristteles, que a poltica o lugar do florescimento humano e no deve

    ser confundida com, por exemplo, um exrcito onde a unidade absoluta desejvel.

    Aristteles faz a analogia com uma substncia diluda em uma grande quantidade de gua,

    que, ao se integrar na composio, seu sabor desaparece. Da mesma forma, as

    individualidades inseridas num Estado unitrio se dissolvem e desaparecem. (Pol. II.4 .

    1262b15-20).

    O projeto platnico um projeto de dissoluo da poltica, atravs do desaparecimento

    das decises, porque derivam de um conhecimento necessrio e universal. Para Aristteles,

    por outro lado, poltica justamente deciso, deliberao, ponderao e prtica. O problema

    que Aristteles enfrenta, portanto, como a cidade pode manter sua unidade diante desta

    multiplicidade que so os indivduos. Se a cidade uma multido como pode no se

    apartar? Se no admite a unidade, como pode manter sua existncia? A resposta de Aristteles

    a amizade entre os cidados livres. a amizade entre eles, a despeito de suas diferenas, que

    constri e mantm a comunidade. For we suppose affection to be the greatest of good things

    for cities, for in this way they would least of all engage in factional conflict. (Pol. II.4 .

    1262b8-10). Diante de situaes incertas, tpicas do mundo turbulento dos homens, nas quais

    cada cidado livre decidiria legitimamente por fazer algo diferente, a amizade se manifesta

    como fundamental para manter a coeso do Estado.

    justamente nesse ponto que Aristteles encontra mais razes para criticar o projeto

    platnico. Segundo Aristteles, os cidados tambm no possuem uma relao de amizade na

    Repblica de Plato. uma cidade seca, sem vida, obcecada em atingir a unidade mxima e

    no a felicidade dos seus cidados. Nem sequer os governantes, os chamados guardies, so

    felizes. But if the guardians are not happy, which others are? For the artisans and the

    multitude of the vulgar surely are not, at any rate. (Pol. II.5 .1264b23-25). Isso representa,

    para Aristteles, o fracasso do projeto socrtico/platnico, pois o mais importante para avaliar

    um regime se o mesmo cumpre sua funo, leia-se, permitir o florescimento humano, uma

    vida feliz.

    Assim, escreve Aristteles numa passagem que resume com preciso sua divergncia

    com seu mestre:

    40

  • The cause of Socrate's going astray one should consider to be theincorrectness of his basic premise. Both the household and the city should beone in a sense, but not in every sense. On the one hand, as the city proceedsin this direction, it will at some point cease to be a city; on the other hand,while remaining a city, it will be a worse city the closer it comes to not beinga city. (Pol. II.5 .1263b30-35)

    Dessa maneira, Aristteles tenta resolver o conflito interno do Estado. Por um lado, o

    Estado quer expandir sua presena sobre os indivduos (ou classes de indivduos) e, por outro,

    esses prprios querem manter suas individualidades e diferenas (interesses particulares) e se

    opem ao movimento expansivo do Estado. A soluo, segundo Aristteles, reside na

    conteno dos movimentos exageradamente unificadores do Estado, ao mesmo tempo em que

    se tenha efetivamente uma comunidade16, e no apenas interesses individuais que

    eventualmente se encontram, sendo possvel na existncia de amizade entre os homens. Essa

    amizade construda por muitas vias, incluindo: a educao, a filosofia, a cultura e etc. No

    vamos investigar a construo da poltica interna a um Estado, dado que nosso objetivo

    encaminhar a discusso para o ambiente internacional. Antes, porm, de seguir com a

    discusso do poder e da poltica internacionais, gostaramos de oferecer uma sntese do que

    foi discutido neste captulo.

    Para Aristteles as relaes de poder so necessrias porque elas decorrem das

    necessidades e carncias da vida humana, entretanto, no se deve confundir poder real com

    qualquer relao de discricionariedade. As relaes reais de poder possuem por fundamento

    uma diferena qualitativa quanto ao uso da razo. Por outro lado, a poltica nasce, no da

    necessidade material (mesmo que dependa de sua superao), mas da potencialidade humana

    de ter uma vida feliz. A poltica portanto o lugar em que cidados livres podem efetivamente

    exercer sua liberdade. A poltica necessria porque o mundo humano no determinado, no

    imutvel e, portanto, h escolhas possveis do que fazer, de como agir. No possvel

    deduzir o que melhor para o homem a partir de ideias universais, de alguma forma ns