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MARCELLO SALVAGGIO Einherjar 1

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Page 1: Einherjar - Visionvox · 2017. 12. 18. · novamente a arma, que possuía uma lâmina com reflexos dourados. E após sua demonstração de coragem e força espiritual, com o treinamento

MARCELLO SALVAGGIO

Einherjar

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Nesta obra, o contexto em que me baseei para criar todo um novo mundo ficcional foi o da mitologia nórdico-germânica, ao qual incorporei elementos de minha própria imaginação e outras influências. A trama claramente não se passa em nosso universo, embora possam ser encontradas algumas correspondências, mas em uma realidade paralela na qual os deuses de Asgard atuam, com destaque para as valquírias, que recolhem os mortos honrados, os einherjar, e os levam ao reino de Odin, onde deverão treinar para a grande batalha do final dos tempos: o Ragnarok.

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Um sonho de gelo

Um sonho de inverno. Debaixo do céu nublado, homens de armaduras brancas, vestidas sob casacos espessos, capas de pele às suas costas, percorriam uma floresta de árvores sem folhas e rio congelado. Não fosse por eles, montados em cavalos lanosos que impunham um trote forte sobre a neve quebradiça, aquele ambiente não apresentaria qualquer som. Os pequenos ratos peludos, camuflados no branco, não faziam o menor barulho, ocultando-se de seus igualmente silenciosos predadores, raposas de agilidade letal. Enganava-se no entanto quem pensasse que esta fosse uma região paralisada pelo frio: não muito além tinham início os perigos, entre monstros e bárbaros que precisavam ser contidos pela grande muralha que separava o reino de Barda da extensão gelada conhecida como Deserto da Morte Branca. A barreira fora construída com rochas pesadas e se prolongava por quilômetros, contando com diversas torres de vigia, espalhadas ao longo de seu extenso topo, e alojamentos que abrigavam seus soldados, uma minoria de voluntários e “não tão voluntários” do exército do país e uma maioria de degredados, entre opositores, delinquentes e órfãos de diferentes tipos de transgressores da lei. Tinham como responsabilidades patrulhar constantemente nas cercanias do muro, revezando-se em turnos, e combater as ameaças à segurança do reino, entre estas alguns primitivos povos saqueadores (que num passado anterior à construção da barreira chegaram a depredar a capital), ogros, trolls. raros dragões das montanhas, que costumavam ser hostis aos humanos e ter o desagradável hábito de provocar incêndios de porte considerável nos vilarejos e cidades, e as ainda mais raras

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aparições de jotuns e gigantes de Muspell. “Hoje de manhã a Mirna disse que vai fazer porco assado. Faz muito tempo que não como um bom pedaço. Só de pensar me dá água na boca! Alguém se lembra de quando foi a última vez?”, indagou de repente Arden, que naquele grupo de homens era um dos mais jovens, loiro de cabelos avoados, estatura média e olhar disperso. Um ladrão precoce que vivera por muito tempo nas ruas, tendo iniciado sua carreira furtando alimentos e roupas das tendas das feiras de sua cidade natal, chegara ao seu auge no roubo à carruagem que levava preciosos tapetes do rei, junto com os comparsas que formara, alguns até mais velhos, mas não tão hábeis. Contudo, pouco depois fora capturado e degredado, só não sendo executado como seus colaboradores (quem cometia crimes contra a família real quase nunca escapava da decapitação ou da forca) graças à intervenção de um dos secretários do soberano. Como isso fora possível? Simplesmente porque aquele homem, já um idoso, e de um coração extraordinário, conhecia-o desde os tempos de trombadinha. Quando quase fora roubado, o pequeno Arden enfiando uma de suas mãozinhas lépidas em um de seus bolsos, conseguindo segurar seu pulso a tempo, ao invés de se enfurecer e lhe dar uma boa surra, limitara-se à pergunta: “Por que você não pediu?”, e foram se conhecendo melhor, a empatia mútua, o nobre secretário se divertindo com a fala enrolada e cheia de gírias do garoto, sendo que ambos adoravam carne de porco e sopa quente com legumes. Até pensara em adotá-lo, porém sua esposa se opusera de forma tão veemente, insistindo que seus filhos legítimos não poderiam dividir espaço com um ladrãozinho, que não conseguira concretizar sua vontade. Como compensação, alfabetizara-o nos fundos da taverna de um amigo (a princípio desconfiado: “não gosto daquele moleque. Será que ele não vai me roubar?”)

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e dava-lhe dinheiro sempre que podia. “Espero que agora se emende. Antes lhe dava algumas moedas suficientes para passar um mês bem e lá estava você assaltando as pessoas de novo. Que esse susto sirva para que enfim mude.”, dissera-lhe na noite de despedida, antes de enfiá-lo na carruagem obscura que o levaria à muralha. “Secretário Jurgens, o senhor não sabe como é a vida nas ruas! Eu não tinha onde dormir, e as noites são frias. Acabava gastando tudo me hospedando numa dessas espeluncas de filhos da puta que cobram os olhos da cara! E depois eu que sou ladrão! Mas agradeço muito ao senhor, nunca vou me esquecer de todo o bem que me fez, e principalmente por estar salvando a minha pele.” “Ainda acredito em você. Acho que pode se tornar um homem de bem.” “Eu não teria tanta fé em mim. E dizem que a barreira é um inferno. Que futuro posso ter lá? Vou passar o resto da vida lutando contra trolls, ogros e outras aberrações. Nada de mulheres bonitas, vinho e colchões macios, como sempre sonhei...” “Arden...” “Mas o que importa é que estou vivo!”, abraçara o seu salvador com toda a intensidade de seu peito e com um largo sorriso em seu rosto, em vívido contraste com a expressão nitidamente entristecida de seu interlocutor, que sabia que nunca mais iria ver seu filhote espiritual das ruas. “Só não chore, velho. Quem sabe algum dia volto...O senhor é o meu pai. Assim que considero.” “È impossível que volte. Se tentar fugir por lá, então meu esforço terá sido em vão. Ou morrerá no Deserto da Morte Branca, ou pelas mãos de seus companheiros em campo aberto, ou se for capturado por eles terá uma morte terrivelmente lenta,

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trancafiado em uma sela suja, fria e úmida, onde morrerá de fome.” “Deixe de ser agourento, secretário. Onde já se viu ficar elencando todas as mortes possíveis?” “Quanto mais tempo se tem, mais mortes se conhecem. Apesar da nossa particular ser sempre um mistério.” “Ainda vou viver muito! E eu poderia fugir hoje mesmo, no meio do caminho...” “Ouse fazer isso e logo haverá por todo o reino um retrato falado seu a cada esquina. Mesmo que deixe crescer essa sua barba rala, será capturado cedo ou tarde.” “Estava só brincando, velho! Agora é melhor eu ir...”, não demonstrara tristeza a fim de não deixar ainda mais abatido o homem que mais adorava, porém no caminho para a muralha derramara diversas lágrimas, que congelaram em seu sonho. Ao despertar, com o frio que fazia, acreditara estar realmente com o choro solidificado, passando as mãos pelo rosto que abruptamente se aquecera. De volta ao presente, veio a primeira resposta por sua observação sobre o porco de Mirna: “Acho que há mais de dois meses. É difícil mandarem algum porco pra cá. Só porcos humanos!”, exclamou e riu Johnsen, um veterano, com seus quarenta anos, barba grossa já grisalha e cabelos outrora muito negros que agora rareavam. Chegara ainda criança à muralha. “A única porquinha que andei comendo ultimamente foi a própria Mirna!” “Não seja mentiroso, seu ladrãozinho sujo! Um garota tão doce nunca iria querer nada de uma aberração juvenil como você!” “O gostinho dela é bem adocicado mesmo!”, referiam-se a uma das mulheres da barreira, uma loirinha rechonchuda e gentil, que era uma excelente cozinheira. Mulheres eram

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praticamente proibidas de desenvolver atividades guerreiras em Barda (a não ser que de forma marginal, como algumas mercenárias), por isso as que se encontravam na muralha faziam as funções de cuidar das vestimentas dos homens, de alimentá-los, de arrumar seus aposentos, e algumas chegavam a lhes conceder algo mais. Poucos os casais que se formavam, e entre estes nada de casamentos formais, mais comum o sexo sem compromisso. Eram, em sua maioria, órfãs de marginais, além de ex-prostitutas, mas havia até algumas de origens mais elevadas, deserdadas por seus pais em razão de alguma conduta considerada imprópria. “Dá pra vocês pararem de latir?”, requisitou o que ia à frente. Tratava-se de um brutamontes que chegava a quase dois metros de altura, cabelos escuros curtos, olhos porém celestes, em suas costas um dos artefatos mágicos presentes na muralha, uma espada de duas mãos que diziam ter pertencido a um gigante de Muspell, capaz de transformar o ar à sua volta em chamas. Sua bainha e sua empunhadura, em diversas tonalidades de vermelho, estavam repletas de detalhes que aludiam a dragões e salamandras. Contudo, só podia ser manuseada por alguém com um físico (pelo peso, a maior arma presente na muralha) e um espírito fortíssimos: muitos já haviam tentado usá-la e terminado consumidos pelas próprias chamas que tinham evocado. Em tempos mais recentes Fairhar fora o único a não virar cinzas assim que a desembainhara, todos os seus companheiros se afastando, com um misto de temor e maravilhamento, quando um círculo de labaredas se formara à sua volta, sem tocar seu corpo. O guerreiro se sentira por bons instantes como se estivesse flutuando à vontade sobre um vulcão ativo, o magma feroz obedecendo-o ainda que às vezes demonstrando alguma relutância com borbulhos altivos. Não era de agradecer aos deuses, porém o fizera antes de embainhar

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novamente a arma, que possuía uma lâmina com reflexos dourados. E após sua demonstração de coragem e força espiritual, com o treinamento continuado adquirira com ela uma destreza da qual não se tinha registro. “Que é isso, capitão?! A gente não pode mais brincar?”, objetou Arden. “Brinquem quando estivermos de volta. Não é a hora. Temos que prestar atenção ao nosso redor. Distraídos do jeito que estão, se tornam alvos fáceis para uma flecha no pescoço.”, não quer Fairhar fosse severo e carrancudo o tempo todo; adorava brincadeiras maliciosas, bolinava as moças, zombava dos amigos, principalmente quando estava com a cara cheia de cerveja, vinho ou mulso (um vinho forte com mel). Mas procurava separar bem os momentos, vivendo-os com propriedade, considerando o tempo algo precioso e, quando vidas corriam perigo, o que sabia não ser circunstancial por aquelas bandas, cobrava atenção, tanto de si mesmo quanto dos que estavam por perto. “Com dor na goela não quero mesmo ficar, ou não vou poder comer um belo pedaço de lombo!” “Se continuar como está, o lombo que vou comer vai ser o seu.” “Está mesmo bravo hoje, capitão!”, ao que o líder não respondeu mais, Johnsen cochichando algo com outro patrulheiro, e em seguida o silêncio compenetrado tornou a reinar. Além dos momentos de seriedade, quando liderava sua tropa, e de descontração, nas horas em que comia e bebia junto com os companheiros, Fairhar se via obrigado a enfrentar seus piores inimigos, a melancolia e a fúria motivadas pela tristeza e pelos ressentimentos em sua alma, nos instantes em que ficava sozinho, como à noite na hora de dormir. Geralmente demorava

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para pegar no sono, e não eram raros os pesadelos, alguns se repetindo, em um destes se vendo deitado sobre o gelo, quando aparecia um corvo branco de bico vermelho; impotente, não podia se mexer e nem gritar no instante em que o pássaro lúgubre principiava a bicar sua carne, com força e insistência, até alcançar órgãos e ossos. O animal ia ficando negro à medida que a atormentação aumentava. Ao despertar, sentia fortes dores onde fora “bicado”. Noutras vezes, via-se perseguido por manadas de lobos ferozes, e eram lobos do Deserto da Morte Branca, que tinham o dobro do tamanho dos do resto de Midgard, completamente desarmado e ainda ferido e exausto, como se tivesse acabado de enfrentar a mais sangrenta batalha e sido o único sobrevivente, atirado às feras pelos bárbaros que os haviam vencido. Como capitão, possuía um quarto só para si, mas às vezes pensava que gostaria de dividi-lo com algum de seus amigos, depois se recriminando por isso: “Tenho que parar de ser um moleque chorão e medroso. Não tenho mais idade pra isso.” Na vigília, compensava seus medos com a coragem para enfrentá-los; nas vivências oníricas, não conseguia manifestar a força e a valentia que possuía quando estava acordado. Sua depressão, por sua vez, tinha fases agudas, chegando a se sentir tentado a pegar sua espada e se auto-incinerar, porém por algum motivo respeitava demais a lâmina flamífera, e esta a ele, para colocar a ideia em prática. Já pensara também em usar uma faca e cortar sua garganta, porém nunca concretizava nada disso, ainda mais por concluir que se cometesse tal delito consigo próprio desceria à escuridão de Nifelheim, destino dos suicidas, ao passo que seus entes queridos deviam estar num lugar bem melhor, quiçá próximos da fonte de Urd. Seguia-se a ira, socava as paredes, grunhia palavrões e maldizia seu

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presente e seu passado, sem esperanças para o futuro. Ao se lembrar de seus pesadelos, ficava ainda mais enfurecido. Aos seus sete anos de idade, seus pais, um casal de comerciantes que perdera seu negócio por não conseguir pagar os impostos exorbitantes que o rei estava cobrando, se uniram a um grupo de contestação, formado basicamente por membros estudados e reflexivos da pequena burguesia, além de alguns militares descontentes, e participaram de um atentado à vida do monarca. Durante uma apresentação teatral que o soberano estava acompanhando, o homem encarregado de acertar-lhe uma flecha com uma besta acabou tremendo, errando, e seguiu-se um tremendo tumulto. O indivíduo, um guarda do palácio que se cansara das seguidas humilhações que sofrera, mas que não tinha coragem suficiente para colocar em ato sua raiva, tentou fugir, mas terminou capturado, levado às masmorras, torturado e denunciou todos os seus comparsas, sob a condição que ao contrário destes não seria executado. “Pena que não me vejo obrigado a cumprir promessas a vermes. Só cumpro o que digo a homens de verdade, que não rastejam pela própria vida, que possuem moral suficiente para não temer o inferno.”, seu desespero queimou seu peito ao ouvir as palavras do rei Harald, que era um sujeito de extrema frieza. Nunca fora visto rindo ou sorrindo. Nos tempos atuais ainda corpulento e ereto com quase oitenta anos, andava com seu manto vermelho, brincos de ouro e anéis com rubis; a barba e os cabelos brancos eram volumosos, e preferia que seus servos se alternassem segurando sua coroa sobre sua cabeça quando estava em seu trono, depositando-a sobre o assento real quando se ausentava, nunca colocando-a sobre si. Matara sua primeira esposa por suspeitas de adultério e não se casara novamente. Como não tivera filhos, a discussão sobre a sucessão entre os nobres era frequente, mas escondida e

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cochichada, obscura, nunca intensa e clara, pois Harald contava com espiões e sicários muito bem pagos espalhados pelo país, sustentados pelos impostos pesados que impunha aos cidadãos; bastava a suspeita de conspiração recair sobre qualquer indivíduo e este seria sorrateiramente assassinado. Sua única demonstração de sensibilidade consistia no fato de gostar de teatro, as peças em Barda, sempre montadas a céu aberto, sendo espetáculos musicais de diferentes gêneros, contando com bardos e coros, as épicas as que mais agradavam ao rei, que na época em que os pais de Fairhar foram pegos ainda mostrava cabelos loiros e por vezes fazia a barba, seus olhos azuis, com menos olheiras e rugas em volta, igualmente cruéis. O maior sofrimento do homem que agora manuseava uma espada que provavelmente pertencera a um gigante do fogo consistia em não se lembrar mais dos rostos de seu pai e de sua mãe, que vira sendo levados vendados ao patíbulo assim como seus companheiros de rebelião. Haviam tentado fugir, porém fora tarde demais, capturados pela milícia paralela do rei já fora da capital. Talvez por ter visto as cabeças saltando e rolando depois dos golpes de machado, inclusive a do dedo-duro, seu subconsciente fizera questão de apagar todas as faces. E sua frustração mais fremente era a de não ter como vingá-los e a seu irmão menor, Torsten, que também fora enviado à barreira só que não sobrevivera aos primeiros anos. “Você tem que ser forte! Não pode esmorecer e se esconder. Temos que fazer como se os nossos pais ainda estivessem vivos e pudessem sentir orgulho da gente.”, dizia ao irmãozinho quando estava com doze anos, e o outro com dez, chorando e tentando fugir quando os garotos maiores o humilhavam. Quando os instrutores estavam dormindo ou em patrulha, alguns moleques se juntavam e davam uma cossa nos dois irmãos, só que enquanto Fairhar tentava se defender, Torsten

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não conseguia reagir, apanhando passivamente. Passou a se alimentar mal, sua tristeza talvez não fosse maior do que a do mais velho, só que não tinha a mesma resistência, e por isso acabou morrendo após contrair uma violenta doença respiratória. O caçula também fora obrigado a testemunhar a execução dos pais antes de serem degredados para a muralha, dizendo pouco antes de morrer, suas mãos geladas já quase sem carne entre as mãos quentes de Fairhar, que estes estavam vindo recebê-lo em um lindo jardim. Depois expirou de olhos bem abertos. O mais velho não chorou, ainda mais porque por perto iam chegando outros meninos, alguns rindo, dizendo que eram dois fracotes e que ele seria o próximo, só parando depois de receberem uma bronca de um rapaz de cabelos bem pretos, um patrulheiro havia pouco formado na época, mas que era muito respeitado pelos menores: Johnsen. “Vocês não têm vergonha? Esse é um caso de morte. Não temos que derramar lágrimas pelas mortes dos nossos companheiros, não podemos nos deixar levar pelo apego e pelo sentimentalismo, já que temos que estar prontos para perder todos, mas o extremo oposto é outro equívoco: devemos ser amigos, estar prontos para defender as costas do outro; somos irmãos aqui. Do mesmo modo que esses dois eram unidos pelo sangue, nós somos por laços de alma, almas que temos que lutar para que permaneçam em maior número possível por aqui.”, discursara, para depois dispensar os moleques e falar com Fairhar, sentando-se ao seu lado, notando a expressão carregada, pronta para explodir, repleta de ódio e tristeza. Surpreendeu ao apoiar sua mão no ombro tenso do garoto. “Agora você pode chorar um pouco. Comigo não precisa se segurar mais. Só que se conscientize: vai ser a última vez. Ninguém mais vai permitir isso. Portanto, solte agora tudo o

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que tem guardado. É o fim da sua infância. Aqui temos que nos tornar adultos antes se quisermos sobreviver, o que não foi o caso do seu irmão.” “Mas por que ninguém faz nada? Falei pra vários instrutores que estavam maltratando eu e o Torsten, e tudo o que eles sempre fizeram foi dizer que iam ver isso depois, ou alguns davam as costas e não falavam nada! Não fizeram nada e o meu irmão morreu.” “Seu irmão preferiu morrer a crescer, tem que entender isso. Não viu sentido em crescer sem os seus pais por perto. Ou sem perceber acabou acreditando que, não tendo mais pais, não iria crescer. Sobre os instrutores, precisa se lembrar que a maioria deles também já sofreu muito, e se tornaram um tanto frios, fora que alguns são mesmo delinquentes. Você precisa entender, garoto, que os que são enviados pra cá são marginais e não monges. E os que não são bandidos são pessoas duras, que sabem que é preciso endurecer pra sobreviver aqui. Só os fortes continuam vivendo na muralha. Não adiantaria nada o seu irmão crescer protegidinho, pra depois morrer com o crânio esmagado enfrentando o primeiro troll que aparecesse. Pelo menos agora ele morreu imaculado, veja por esse lado. Não deve ter caído em Nifelheim, e sim sido acolhido no paraíso de Urd, onde devem estar também as almas dos seus pais. No Valhala ele não seria admitido no futuro, se continuasse tão frágil. Na verdade, não é por ele que você precisa chorar, e sim por você mesmo. Faça isso, antes que seja tarde.”, e ia se levantar e sair, porém Fairhar o segurou: “O que foi?” “Obrigado.” “Não foi nada. Vou te confessar uma coisa: também tinha um irmão.” “E o que aconteceu com ele?” “Também cheguei aqui pequeno, e sofri no começo, mas fui

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firme o bastante pra suportar as porradas. O meu irmão, que era mais velho, me protegia, mas fiz questão de logo ficar como ele, e passamos a brigar juntos de verdade. Não demorou pra todos respeitarem a gente. Pena que ele acabou morrendo em uma missão...”, na ocasião Johnsen não se estendera e Fairhar o respeitara, não narrando a morte de seu vigoroso irmão Vinnill, que quando o vira no chão prestes a ter a cabeça esmagada pela clava dura e espinhosa de um ogro, três metros e meio de altura, tez áspera e pálida revestida pela pele de um urso, sem cabelos, apenas uma imunda barba cinzenta, e garras e dentes afiados, pusera-se à frente e encarara o inimigo, sucumbindo mesmo após vencer a luta com a ajuda de outro soldado e do próprio Johnsen, que se reerguera, em decorrência de ferimentos graves. Anos depois, ainda tinha sonhos com seu irmão, que não costumavam ser assustadores, apenas incômodos. Em um, vira-se numa cela fechada, com ele cabisbaixo, acorrentado, de repente erguendo a cabeça e, sem dizer nada, esboçando um sorriso bondoso; em outro, que considerara um pouco bizarro, havia um cavalo com apenas duas pernas, que tentava ficar de pé e não conseguia, despencando no gelo, Vinnill ao fundo, como uma sombra debaixo de um pinheiro coberto de neve; num terceiro, uma caverna que parecia pura escuridão, até um olho se abrir, depois centenas de outros, olhos vivos nas paredes, e ao olhar atentamente o irmão aparecia no fundo de cada um deles; nada de palavras em nenhuma das ocasiões, bem que tentava falar, mas não conseguia, e despertava balbuciando algumas frases confusas. “Vocês ouviram isso?”, voltando à patrulha na floresta, um dos homens indagou. “O quê?”, outro não escutara nada. “Parece um canto. Bem distante, mas audível. E é uma voz

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feminina.” “Pára de viajar. Você não escutou nada, é a sua imaginação.” “Não, ele está certo. Também ouvi alguma coisa, e tenho uma boa audição, disso posso me gabar!”, replicou Arden. “O que acha, capitão?” “Vamos parar um pouco. Temos que localizar de onde isso vem.”, Fairhar estancou, e ao seu movimento todos os outros pararam também. “Agora consegui escutar. É feminino, mas não é de nenhuma das nossas mulheres. Não nos interessa. Deve ser o canto de alguma mulher bárbara querendo nos atrair para uma armadilha.”, objetou mais um entre os guerreiros. “Nenhuma bárbara possui uma voz tão melodiosa. Prestem atenção.”, disse Johnsen. “O que acham que pode ser? Uma fada do gelo?”, perguntou o primeiro que falara a respeito da voz melíflua. “Hahaha! Não me diga que acredita nessas coisas, Jarstein!”, zombou o segundo. “Você ainda é novo aqui, não tem nem ideia do que o Deserto da Morte Branca e as montanhas desta região abrigam. Não seja soberbo.”, veio então uma firme e súbita, embora calma, recriminação de Fairhar. “Mas capitão, o senhor acredita em fadas do gelo?? Lidamos com ogros, dragões, trolls...Mas fadas? Este lugar não abriga nenhum ser agradável e pouco agressivo.” “Segundo os relatos, elas não são agressivas. Mas quem disse que são boas? Pelo que se fala, muitas são traiçoeiras. Atraem os homens com seu canto e depois devoram suas almas.” “Se isso é verdade, por que parece que quer nos levar ao encontro de uma??” “Você tem medo de morrer? Se tem, acabo com você aqui e agora. Não quero covardes na minha tropa.”

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“Sendo capitão ou não, veterano aqui ou não, ninguém me chama de covarde.”, Aggar avançou de peito aberto e olhar feroz, sem medo de ficar face a face com um homem que era capaz de usar a espada de um gigante de Muspell. Era um outro grandalhão, de barba e cabelos profundamente negros, especialista no manuseio de uma enorme acha, que fora recentemente enviado à muralha por fazer parte de um grupo de salteadores, único sobrevivente entre os que foram derrotados pelos soldados do reino, após jogar no báratro de Hel uma quantidade considerável de adversários. Fora levado à capital acorrentado. “Tenta acabar com a minha raça. Pode ser que eu acabe com a sua antes.”, e após estas palavras Arden esboçou um sorriso, como que se divertindo com a situação, enquanto Johnsen demonstrava uma falsa indiferença, tranquilo porém atento, e os demais pareciam preocupados. “Não precisa se ofender. Se está me encarando, é sinal que não é mesmo um covarde. Vou explicar: se a fada do gelo for hostil, devemos enfrentá-la de qualquer forma, pois é um inimigo que mais cedo ou mais tarde teríamos que eliminar; melhor fazer isso o quanto antes. Se for pacífica, existe a possibilidade de nos presentear com algo de valor, algum artefato mágico talvez, que pode ser muito útil para nós, assim como é esta espada que carrego. A probabilidade dela não ser perigosa é pequena, mas existe, e se for uma ameaça, vamos logo nos livrar dela.” “Mas por que ela nos daria algo de valor?” “Se está cantando, e o canto dela está ficando cada vez mais audível, é porque ou quer nos matar, ou quer nos presentear. No segundo caso, estaria fazendo isso porque ainda somos menos piores do que ogros ou trolls. Talvez ela esteja até pedindo ajuda...” “Eu confiaria na intuição do capitão. Desde que conheço esse

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cara, ele deu pouquíssimos foras.”, interveio Arden. Aggar e Fairhar ainda se encararam por mais alguns segundos, até o primeiro terminar desistindo do confronto e retrocedendo; o segundo aparentava estar muito tranquilo e seguro. O ex-salteador reconheceu que o outro tinha uma postura realmente digna de um líder, e refletiu que se o confrontasse seria derrotado mesmo se seu comandante usasse uma espada não-mágica. Seguiram adiante, e o canto, executado em uma língua desconhecida, foi ficando cada vez mais alto e...Mais acelerado e desesperado. A afinação não fora perdida; todavia a melodia se tornara tortuosa, dúbia, agônica; Fairhar refletiu: “Tudo indica que ela notou a nossa presença e está pedindo ajuda. Se for uma armadilha, vai se arrepender, uma maldita devoradora de almas a menos no nosso mundo!”, nunca se encontrara com uma fada do gelo, mas não duvidava dos relatos a respeito, e a perspectiva do primeiro encontro o deixava ansioso. Ainda mais que segundo as lendas eram extremamente belas, e o guerreiro da muralha, aventureiro e curioso, era dos que não resistiam à beleza feminina. No momento, a queridinha dos seus olhos era Brenda, que chegara a ser uma refinada cortesã, a preferida dos nobres da capital, acabando degredada por causar um considerável escândalo quando seus amantes, em sua maioria casados e respeitados pais de família, foram descobertos. Era pequena e macia, os cabelos castanhos ondulados e os olhos azuis, em tempos recentes se dedicando apenas a Fairhar, com ele se sentindo preenchida, compreendida; conquanto não fosse homem de conversar muito, entendiam-se perfeitamente nos gestos, olhares e no contato da pele com a pele, apreciando calma e ardentemente o sabor e a textura dos lábios firmes do guerreiro, que por sua vez vinha tendo contato com outras

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mulheres; porém não lhe fizera promessas de fidelidade, não era de se apegar. Nisso se diferenciava no presente de Arden, que estava envolvido com Mirna da forma mais sincera e apimentada; inclusive fora da cama brincavam bastante: ele a beliscava ou dava tapinhas em suas nádegas ou apalpava-as quando a pegava distraída cozinhando ou arrumando os quartos. A jovem fingia ficar brava e as briguinhas que saíam eram de um carinho provocativo. Brincavam de pega-pega e esconde-esconde; encontrando um ao outro ou não, divertiam-se no instante e na sequência. Johnsen, por fim, ainda sofria pela perda da única mulher que amara em toda a sua vida, uma jovem estrangeira de pele escura e olhos claros, chamada Sonia, que ao chegar em Barda, fugindo de seu país por razões que não chegaria a revelar, fora acolhida na casa de artesãos de coração caloroso, impondo a si própria a condição de fazer o serviço doméstico. Contara-lhe quase toda a sua história anterior à sua chegada na muralha, que se devera a um cobrador de impostos que, ao entrar na casa do casal, a vira e a cobiçara. Rejeitado, denunciara-a a inspetores do governo sob a alegação que tentara seduzir a ele, um homem casado, e que era uma feiticeira suja, conhecedora de artes sombrias de povos do sul, que se permanecesse por mais tempo na cidade corromperia todos os homens honestos. Sonia bem que pensara em fugir, porém os artesãos a dissuadiram a ficar, afirmando que o cobrador era só um falastrão, que não iria se expor para causar mal a alguém; tarde demais: e uma vez detida, na disputa de palavra contra palavra, a de um súdito do rei de Barda pesava muito mais, adicionando-se o fato que contava com um bom número de amigos influentes em pequenas causas. Deportada para a barreira porque na época estavam

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precisando de mulheres por lá, escapando assim da execução, conhecera Johnsen, no início receosa e muda com todos os homens, conquanto os obedecesse, com ele conseguindo trocar as primeiras palavras com um indivíduo do sexo masculino em muito tempo; não resistira a rir de suas brincadeiras amenas e, não vendo más intenções, as coisas fluíram naturalmente. Já estava mais solta, amiga também de Fairhar, que ficava feliz ao ver o companheiro assoviando pelos cantos, na época em que contraiu uma violenta doença que a fazia cuspir quantidades assustadoras de sangue. Os médicos, todos os presentes na barreira também oficiais do exército de Barda, não conseguiram salvá-la apesar dos esforços; os recursos escassos e o ambiente gelado cruel, era difícil resistir a qualquer adoecimento mais intenso por ali. Era preciso ser muito forte. Para Johnsen, fora sua maior derrota desde a perda de Vinnill, com a diferença que nunca sonhara com Sonia. “Ela tenta me deixar em paz, é uma fada benfazeja; eu que não consigo.”, costumava refletir, e agora estavam chegando perto de uma fada de verdade... Verdadeira também parecia ser a fúria dos trolls selvagens que atacavam o espírito etéreo; estes eram de uma espécie bem comum na região, dotados de uma musculatura poderosa, com seus três metros de altura em média, braços compridos, a pelugem negra e espessa por sobre a pele branca, dura e áspera que se revelava em alguns trechos, como nas pálpebras e nos dedos das mãos e dos pés; a face apresentava um focinho grosso e enrugado, seus dentes não tão afiados mas compactos e fortes o bastante para esmigalhar ossos humanos. Alguns usavam armas toscas, como clavas, pedregulhos e pedaços de troncos de árvore. A fada apenas se defendia, envolvida por uma proteção mágica, uma esfera azul semi-transparente em constante

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rotação, que empurrava ou mesmo derrubava os agressores, repelindo os objetos atirados em sua direção. Contudo, a donzela feérica dava a impressão de estar exausta, um esforço tremendo sendo necessário para manter aquele campo de força; evidente que não duraria muito mais, sua cabeça baixando, seu canto esmorecendo até cessar por completo. A safira em sua tiara emitia uma claridade inconstante, assim como seus olhos cerúleos abriam e fechavam; o mundo devia estar perdendo consistência à sua frente, a neve ao seu redor evaporando e nem chão nem água permanecendo embaixo, abrindo-se o abismo da ausência: foi dessa forma que Fairhar interpretou sua condição ao vê-la, impondo sua potência para saltar sobre o precipício sem cair, levitando sobre este, conduzido por asas de fogo. Tanto os cabelos como as asas da fada eram de pura luz nívea; mas sua túnica, cada vez mais material, ia sendo rasgada, talvez por se tratar de um ser sutil, que não suportava mais os ataques furiosos que lhe estavam sendo lançados. Conduzidos por seu capitão, os guerreiros da muralha agiram, Arden demonstrando o quanto era preciso ao alternar entre os lançamentos das facas em sua cintura e os disparos com sua besta. Nem as flechas e nem as lâminas curtas eram fatais para os trolls, mas os distraíram, permitindo, após atingi-los em pontos críticos, como olhos, pescoço ou orelhas, os golpes letais das espadas de Fairhar e Johnsen ou da acha de Aggar, entre outros. No entanto era um grupo numeroso, resistente e de excepcional força física. O guerreiro da lâmina de Muspell incendiou alguns, o fogo sem dúvidas o que mais prejudicava criaturas habituadas apenas ao frio, mas não podia dar conta de todos. Pancadas brutas foram derrubando cavaleiros, arrebentando-lhes os crânios quando demoravam a se reerguer

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após suas quedas, e o pior aconteceu: outros inimigos começaram a aparecer, provavelmente atraídos pelos guinchos de seus irmãos e pelo odor para eles inebriante de sangue humano. A luta se tornou mais cruenta, e Aggar caindo e terminando seus dias sob o espancamento de um círculo de trolls foi uma cena emblemática; Fairhar a seguir eliminou os oponentes, porém a face do companheiro, moída, sequer era mais reconhecível. No auge da batalha, já bastante desgastado e perdendo pouco a pouco seus reflexos e o equilíbrio corporal, Johnsen viu a figura de Sonia observando-o à distância: estava imóvel; séria; e a distração lhe custou a cabeça, apagando-se no gelo após um violento golpe na nuca. Arden, rápido no galope e ríspido nos tiros, viu sua munição acabar, obrigado a desembainhar sua espada. Quando já restavam poucos trolls, uma ponta de esperança brilhou, pensou que conseguiria, que dentro de breve reencontraria Mirna; um sorriso voltava a raiar em seu rosto, só que justamente no último embate sua arma se partiu no choque com o braço duro de um troll, um pedaço da lâmina ficando neste, que, furioso, saltou sobre o cavaleiro e, depois de derrubá-lo, esmagou-o no solo com suas próprias mãos. Homens e trolls assim foram caindo, até só restar Fairhar, sua armadura, seu rosto e seus cabelos salpicados de sangue, ofegante e ferido, apoiando-se em sua espada para persistir de pé entre os cadáveres. Era o único que continuava a respirar entre os que haviam lutado. Pensou que não ouviria mais a voz de Johnsen, nem as brincadeiras de Arden, nem seria mais desafiado por Aggar. A tristeza e a fúria se mesclaram naqueles instantes, sem que a segunda conseguisse lhe dar alguma energia. Olhou para a fada, que agora parecia perfeita e intacta,

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sem o menor sinal de cansaço e sem ferimentos, e não soube o que sentir, enquanto ela se aproximava. Poderia curá-lo, cessar com os sangramentos? “Você gostaria de uma recompensa, não é, valente guerreiro?” “Não sei. Não sei mais...Do que gostaria.” “Todos os seus companheiros estão mortos. Só me resta lamentar...”, ela suspendeu a fala por alguns segundos; fechou os olhos; ele não tinha forças para intervir. Retomou: “Lamentar pela fraqueza deles.”, tais palavras fizeram com que o fragilizado sobrevivente arregalasse os olhos. “Você é o único homem digno que encontrei aqui, o único que serve para me saciar...”, então a mudança na expressão da fada, que vinha sendo gradual, se completou: seu rosto se tornou sombrio e túrgido de crueldade, e lâminas que pareciam de cristal surgiram de seu corpo e perfuraram a armadura de Fairhar, cravando-se na carne do capitão. Não tivera como se defender. O belíssimo e terrível espírito sugou seu sangue, e teria sugado sua alma e tornado-a sua escrava, integrante de um cortejo de sombras de ira contida, que explodia quando entravam nos corpos de criaturas magicamente vulneráveis, como por exemplo a maior parte das espécies de trolls. Fazia isso para se alimentar da carne e do sangue de homens fortes, o que lhe proporcionava um prazer sem igual. A alma de Fairhar só se salvou graças à intervenção de uma presença superior, que desceu feito um meteorito azul-incandescente de bordas douradas fúlgidas, desintegrando os cadáveres e sobrepondo sua luz à da traiçoeira fada, cujas lâminas terminaram virando pó. “Os seus dias de impunidade terminaram, espírito degenerado que deveria seguir os desígnios da natureza.”, um corvo passou por ali, de imediato transformando-se em um cisne, penas deste tipo de pássaro adornando o elmo da emissária dos Céus que

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acabara de chegar, revestida por uma armadura em prata, azul e ouro, os cabelos de um loiro argênteo, mesma cor de seus olhos, os traços delicados de seu rosto em contraste com sua voz de autoridade possante. “Uma das recrutadoras de espíritos perdedores...”, a criatura ardilosa sabia não ter para onde nem como fugir; qualquer tentativa de vencer o combate também seria vã. Seu consolo consistiu em lançar uma provocação altiva. “É um equívoco pensar que apenas recrutamos os que morrem em batalha. Na verdade, colhemos todos os espíritos guerreiros, independentemente de como faleceram. Mas de qualquer forma nenhum deles é um perdedor, são todos vencedores ao serem escolhidos por Odin, triunfando sobre as correntes de Nifelheim. Ao contrário de você, que hoje será enviada para lá com desonra.”, a fada convocou seus ventos, mas a valquíria, flutuando com serenidade, não se se mostrou minimamente afetada pelo ciclone que se formou e desembainhou sua espada de empunhadura alada, extraindo-a da bainha repleta de símbolos rúnicos; feixes de luz cortante, da mesma coloração prateada da lâmina, se espalharam e fizeram a inimiga em pedaços para em seguida reduzi-la a grânulos de gelo.

Um amplo prado de folhas altas, suavemente balançadas pelo vento, assim como as flores de pétalas violetas. Ao fundo, colinas verdejantes sob um sol ameno. Foi neste cenário, sentindo um perfume suave, que Fairhar despertou e se levantou, pasmo por sentir novamente seu corpo, seus olhos piscando, seu nariz inspirando e expirando, suas mãos quentes, seus dedos se movendo; lambeu seus beiços, e não estava com o hálito de sangue dos instantes finais da batalha contra os trolls, pelo contrário. “Mas o que aconteceu? Estou morto?

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Imaginava algo bem mais etéreo. Estou sentindo minha pele, minha carne...Ou será que é só uma ilusão? Aqui não parece ser Nifelheim, pelas descrições que ouvi; é acolhedor demais. Será que tudo não passou de um sonho? Não parece um sonho...Será que aqui é Asgard?? Se for assim, quer dizer que fui escolhido. Caí em batalha, portanto sou um dos escolhidos de Odin! Mas não vejo ninguém aqui...”, foi quando ouviu passos; ao se voltar, deu de cara com a valquíria. Temor, respeito, fascínio, raiva e luxúria, bem mesclados, envolveram sua alma. “Seja bem-vindo. O meu nome é Brunhild. Você foi selecionado como um dos einherjar do grande Odin, o rei dos deuses.” “Então é isso mesmo. E você deve ser uma das valquírias.” “Sim, sou.” “Você é mesmo muito bonita, como dizem nas lendas. Pena que estou morto! Hmpf...”, deixou seus lábios desenharem um sorriso discretamente amargo. “Imagino que esteja pensando em quem deixou para trás. Mas agora não é o momento. Um destino de batalhas e glória, se for o que esperamos de você, o aguarda. O passado é pálido, opaco, e basta sua vontade para superá-lo.” “Na verdade, não deixei quase nada e nem ninguém pra trás. Só lamento pela Brenda.” “Quanto menos ficou em Midgard, melhor.” “Mas o que aconteceu afinal? E onde estão os outros?” “A fada do gelo que você pensavam que estavam salvando na verdade era um espírito elemental degenerado. Estimulada por um envolvimento que teve com seres baixos a serviço de Hel, a rainha do inferno, há alguns anos devorou a carne e bebeu o sangue de sua primeira vítima humana, escravizando a seguir sua alma. Fadas não precisam se alimentar, para elas basta respirar ar puro, mas a partir daí esta se perdeu em um vício

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imundo, e para abater suas presas deixou de agir sozinha, usando as almas que ficavam em seu poder para possuir corpos de trolls, ogros ou feras. Nestes espíritos instigava a extrema ira, que não tinham como liberar enquanto estavam presos, e por isso soltavam toda a carga nos corpos possuídos. Logo ela passou a ficar mais exigente, julgando a carne dos homens fortes, que resistiam mais, muito mais saborosa, e os pequenos exércitos brutos que manipulava serviam assim para testar quem valia a pena e quem não. Do seu grupo, queria somente a sua carne. Porém eu a impedi que sugasse seu espírito e a eliminei.” “Quer dizer então que ela não estava em perigo coisa nenhuma! Quis atrair guerreiros, homens supostamente fortes, e conseguiu. Caí mesmo numa armadilha de fada...” “Que lhe sirva de lição para sempre desconfiar de seres feéricos e de aparência encantadora.” “Se é assim, devo desconfiar de você também.” “Quanto aos seus companheiros, alguns foram escolhidos por mim, outros não estavam aptos.”, ignorou o comentário do guerreiro. “Quem você escolheu? E falando sério agora...Antes de mais nada, como posso confiar em você de verdade? Como posso saber que não é outra armadilha, alguma ilusão? Talvez você seja a fada e tenha prendido o meu espírito, me fazendo pensar que estou em Asgard e se passando por valquíria.” “Você terá provas suficientes ao longo do caminho. E verá seus amigos em breve.” “Não quero saber de promessas. E a minha espada?” “Abaixe um pouco a cabeça e olhe para o seu lado direito.”, foi o que ele fez, e viu a espada flamígera no solo, próxima dos seus pés. “Ela não estava aqui antes.”

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“É uma espada muito boa. Merece ser reaproveitada. Por isso eu a trouxe. Se ainda tem dúvidas a meu respeito, por que não começa testando-a em mim?”, diante desta pergunta, Fairhar encarou a valquíria e hesitou; suas mãos tremeram um pouco antes de se abaixar e recuperar a arma, sempre sem tirar os olhos da guerreira de Odin. “E então?”, insistiu, ao não obter resposta. O novo einherjar tomou coragem e desembainhou a lâmina, atacando com esta e com o fogaréu que envolveu seu corpo; sentiu que estava mais forte do que nunca; suas chamas muito mais poderosas do que antes. No entanto, se apagaram a um simples sopro de Brunhild, que impediu que ferissem a natureza; e a espada escorregou das mãos de seu manuseador, que despencou vergonhosamente, com o rosto na terra, aos pés da valquíria. “Não se preocupe. Não vou pisotear sua cabeça.”, ela tornou a falar, brincando sem sorrir, e Fairhar reergueu os olhos vagarosamente. À vista da donzela celestial encarando-o de cima para baixo (sendo que de pé ele era bem mais alto do que ela), produziu-se uma agradável submissão. Tentou conter o sentimento que se seguiu, de solene reverência, respirando fundo ao se levantar, parando de encará-la. “Parece que agora está convencido.” “Ainda não sei...”, entrementes, sofreu um novo baque quando viu se aproximarem outros três indivíduos, reconhecendo-os de imediato; se um não lhe inspirava assim tanta felicidade, com os outros dois era diferente. A melancolia que mostrara vontade de se manifestar foi dissipada e, aberto ao seu modo, recebeu-os com abraços curtos e um firme aperto de mão: ali estavam Aggar, Arden e Johnsen. “Até que enfim você acordou, capitão! Mas por outro lado foi bom ter demorado um pouco mais. Deu tempo pra aprontarmos

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a nossa surpresa.”, disse o ex-ladrão. “Deve ser porque ele morreu por último.”, interveio Aggar. “Mas perdoo esse desgraçado dorminhoco! A intuição dele não estava totalmente errada, recebemos um prêmio, e melhor do que qualquer artefato mágico.”, encarou o homem da espada de Muspell com intensidade. “Se eu tivesse caído em Nifelheim, te odiaria pela eternidade. Mas como morremos e viemos parar em Asgard, só tenho que te agradecer! Mil vezes melhor do que aquela vida de merda na muralha! Está provado que pra agradar os deuses não precisa ser cordeirinho! E quando eles estão satisfeitos conosco, morrer não é nem um pouco ruim.” “Há quanto tempo que vocês estão aqui?”, inquiriu Fairhar. “O tempo neste lugar é diferente. Se fosse o mesmo de Midgard, diria que estamos aqui há duas horas. E passamos esse tempo conversando com Brunhild. Ela nos explicou sobre o que ocorreu e um pouco a respeito de Asgard. Muitas coisas que pensávamos ser de um jeito são de outro. Depois, pedimos para esperar por você, para irmos todos juntos ao Valhala. E ela deixou que fizéssemos essa brincadeira, não aparecendo logo de cara.”, explanou Johnsen. “Não imaginei que valquírias tivessem senso de humor.”, perdera a atenção da enviada de Odin e, quando foi procurá-la com o olhar, a donzela armada desaparecera. “Mas agora onde será que ela foi parar??” “Disse que depois que nos encontrássemos ia nos deixar conversando por alguns instantes.” “Ela parece ser muito gente fina.”, opinou Arden. “Pensava do mesmo jeito do capitão, que as valquírias fossem todas duronas, pra não dizer meio masculinas...” “Que ela demonstre sensibilidade não significa que não seja exigente. Acho que está apenas sendo compreensiva enquanto nos adaptamos a Asgard.”

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“Talvez você tenha razão mesmo. Mas pode ser também que tivemos sorte e que ela seja a mais boazinha das valquírias.” “Não vejo a hora é de conhecer Thor e Odin. Confio mais nos grandes deuses.”, opinou Aggar. “Sinceramente, acho que só podemos confiar em nós mesmos.”, comentou Fairhar, e olhou para cima, mas não para o céu de nuvens brancas e sol suave daquela região de Asgard, e sim em direção a algo que sentia porém não enxergava. De fato, invisível, Brunhild continuava por perto, levitando sobre seus novos einherjar, e seu semblante parecia calmo e atento ao notar que o guerreiro percebera sua presença mesmo sem vê-la.

Olhos no nevoeiro

Olhos vivos. A velha Groa era uma das mais respeitadas volvas de todos os mundos. Naquele momento se achava em um labirinto obscuro de árvores, dirigindo-se para o centro da floresta noturna. Portava um cajado, de madeira perfumada, cravejado com runas gravadas em pedras de diferentes tipos e cores, no topo deste esculpida uma cabeça de águia, porém não o usava para apoiar seu corpo, que apesar da idade avançada, mais de cem anos, seguia firme e ereto, suas pernas de experiência vigorosa às vezes visíveis quando sua túnica negra e esfarrapada era sacudida pelo vento, além de em razão das falhas que a veste apresentava. As funções do bastão eram mágicas, assim como todo seu corpo estava voltado à prática da magia, cada passo que dava com os pés brancos, descalços e enrugados feito com plena consciência, absorvendo a energia da terra que os recebia. Seus olhos faiscavam em um verde enigmático que com frequência escurecia, seu pequeno nariz

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apresentava duas verrugas na ponta, uma apenas no término do queixo, sua boca ainda contava com todos os seus dentes, o pescoço era forte, com as veias bem visíveis, e os cabelos brancos longos e selvagens. No núcleo que alcançou, estavam reunidas em volta de uma fogueira (fazia frio, apesar de não haver neve), vestindo mantos azuis, marrons e negros em diferentes condições, com os capuzes jogados para trás, outras bruxas, todas mais jovens, das aprendizes de quinze anos à sua amiga Valga, que fora sua discípula e que beirava os oitenta anos, no entanto aparentando no máximo sessenta se comparada à maior parte das mulheres, a mais magra e alta, em torno de seu pescoço uma espécie de xale colorido bordado com motivos rúnicos. Não disseram nada a princípio, apenas olharam para a veterana, de repente Valga liberando um poderoso canto em falsete, ao qual foram se juntando as demais. As chamas deram a impressão de se agitar; um vento forte se manifestou, uma coruja foi vista em uma árvore e escutaram-se uivos de lobos e passos na grama. Groa olhou para o alto, em direção à lua minguante meio que espremida na teia de galhos. O coro foi se extinguindo aos poucos, voz por voz abandonando a melodia, a última a da condutora da cerimônia de recepção, que então por fim se dirigiu falando à grande volva, os sons da natureza cessando ao mesmo tempo: “Que bom que veio, minha mãe e mestra.”, aproximou-se e pegou as mãos da mais idosa, que tornou a abaixar a visão e a encarou nos olhos. “Nosso ritual não seria completo sem a sua presença.” “Sei muito bem disso. Mas vejo que desconfiou. Como pôde achar que deixaria nossa querida Grëdir dar à luz sem minha benção? Você ainda tem muito o que aprender.”, o comentário rouco de Groa não impediu contudo que a experiente aluna sorrisse.

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Grëdir era uma jovem volva de cabelos loiros cacheados, que logo recebeu um beijo na testa, seguido do abraço da grande vidente, que ao que parecia nunca sorrira, pelo menos não em público. Iriam lançar um galdr coletivo, um extraordinário encantamento que permitiria que o bebê da jovem se tornasse um herói guerreiro, caso fosse homem, ou uma bruxa de extraordinários dotes, se mulher. Os galdr, em especial quando feitos por várias bruxas reunidas, produziam efeitos poderosíssimos, que iam desde o que estavam pretendendo realizar a decidir o resultado de uma batalha e provocar tempestades que poderiam afundar uma frota inteira. Um galdr individual, em comparação, provocaria no máximo o afundamento de um navio e a morte ou a sobrevivência dos membros de um grupo limitado de indivíduos que tomasse parte de um combate entre exércitos. Os efeitos eram produzidos graças ao auxílio dos espíritos da natureza, que, embora nem todas as volvas os vissem, todas as que deixavam de ser meras aprendizes eram capazes de sentir. Conjuravam-se, em ocasiões mais importantes, como as que envolviam um nascimento, as bençãos e maldições dos deuses (no caso de uma grávida que se tornasse inimiga de uma volva por algum motivo sério ou por culpa de um homem, esta ao ser amaldiçoada perderia o filho ou a filha que estivesse aguardando e se tornaria estéril). “Que a grande Freya ilumine os caminhos desta criança.”, Groa disse ao colocar suas mãos no ventre de Grëdir; um ritual individual faria da criança um homem valente ou uma mulher de notável inteligência, mas não mais do que isso. Citar Freya já significava o princípio da evocação, e por isso as volvas deram início a um novo canto, desta vez com palavras que chamavam a deusa, apenas a mais velha e a jovem grávida em silêncio, a primeira sem retirar suas mãos da

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barriga a ser abençoada, movendo-as com suavidade sobre esta, a segunda começando a sentir um estranho torpor e a fechar os olhos. As volvas, também conhecidas como seidkonas, tinham diferentes origens e posições nas sociedades em que viviam (havendo as que se retiravam e passavam a viver como eremitas e viajantes), iniciadas por suas predecessoras de acordo com o que estas viam nelas e não por questões humanas e materiais. Uma vez descoberta a alma de uma provável volva, esta passava por diversos testes e podia aceitar ou não o chamado, durante as primeiras provas ainda havendo a possibilidade de voltar atrás e desistir. Podiam manter secretas as práticas mágicas e continuar na sociedade com suas atividades mundanas, apenas não devendo transcurar, depois de iniciadas, suas responsabilidades para com os outros planos da existência e com as demais irmãs. Outras escolhiam se retirar e não fazer mais parte da civilização. Enquanto Grëdir era de família nobre, Groa nascera camponesa, seu potencial descoberto em uma manhã em que estava recolhendo rosas, que haviam despontado próximas de uma gruta onde vivia uma velha decrépita. Ainda era uma menina, e estava aproveitando a primavera, indo todos os dias atrás das flores e colocando-as em sua cesta, quando viu a bruxa, terrivelmente enrugada, os cabelos sujos e desgrenhados, cega de um olho, seminua, o corpo esquelético repleto de cicatrizes e manchas; uma visão horrenda, mas a menina só largou a cestinha, não conseguiu fugir. Suas pernas gelaram e não paravam de tremer. Pensou que se tratasse de uma bruxa maligna, das que seus pais faziam questão de dizer para manter distância, pois segundo eles estas se alimentavam de crianças. No entanto, a bruxa se aproximou devagar e seu sorriso,

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apesar da boca suja e desdentada que emitia um hálito tremendamente desagradável, era de uma ternura e um carinho tamanhos que a garotinha perdeu todo o medo, entregando-se por completo, sem racionalizar, à existência luminosa que existia dentro da casca pútrida. Desde aquele dia, nunca mais veria sua mestra, a grande Thorbjorg, como uma velha horrível, e sim com uma belíssima donzela, e nem sentiria o odor desagradável que os outros comentavam dela. No presente, Groa vivia na única casa ainda habitada em um vilarejo fantasma, que no entanto não tinha mais sequer fantasmas, pois expulsara todas as almas penadas daquela região árida, os ventos que sopravam ali sempre carregados de pó. Recebera meses antes, pela boca de um corvo, a carta enviada por Valga, que lhe avisara que Grëdir, que a velha conhecia desde criança e que considerava uma neta querida, agora carregava uma semente em seu ventre. O local e o dia do encontro estavam marcados e a experiente bruxa sabia exatamente quanto iria demorar a chegar, não partindo antes do necessário. As volvas podiam cobrar caro por seus feitiços e previsões; porém Groa se negava a vender seu dom a um alto preço e assim prostituí-lo, apenas aceitando algumas moedas para ter o que comer e beber. Recebia com frequência visitantes ansiosos por seus conselhos, pendurado em sua morada, após partir para o ritual de benção ao bebê de Grëdir, o aviso que estava em uma importante viagem e que só voltaria dentro de alguns meses. Ia pouco a cidades grandes, detestando locais com muitas pessoas, só indo à mais próxima para comprar mantimentos, em seguida retornando à sua residência, não atendendo ninguém fora dela, inclusive porque esta já fora imantada por sua vontade e carregada com sua energia, o que potencializava os efeitos de seu trabalho.

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Entre as que cantavam, uma acariciava seu colar de pérolas enquanto liberava a voz; outra espalhava pela terra o pó de um saquinho que carregara em seu cinto; uma terceira jogava ao fogo pedaços de carne seca. Quando Groa começou a cantar que toda a energia do ambiente se modificou: a voz da velha não parecia pertencer a ela, de uma potência aterradora; os lobos não apenas foram ouvidos como desta vez vistos, circundando as praticantes, que não os temiam de forma nenhuma, pelo contrário, os recebiam com júbilo. Grëdir perdeu a consciência, acolhida pelos braços da velha, que enfim tirou suas mãos da barriga da jovem; os que andavam na terra e na grama se revelaram, a princípio como olhos luminosos despontando na escuridão, depois claramente visíveis a quase todas, como pequenas sombras pelas que tinham a visão espiritual menos desenvolvida, coboldes tímidos que aos poucos foram se soltando, cantando e dançando. A princípio sérios, não demoraram a sorrir. Vestiam capuchos, alguns discretos, marrons e pretos, outros de cores vivas; seus rostos eram como de velhos, só que em vez de pele e carne seu material semelhante a uma casca de árvore, e suas barbas, cabelos e bigodes eram vegetais, de folhas ou raízes. Uma parte trazia consigo pequenos cajados e varinhas. Os maiores chegavam aos joelhos das mulheres. Groa sabia estes serem não os coboldes domésticos, que muitas bruxas tinham por perto para auxiliá-las em suas atividades, trazendo água, cortando lenha, ajudando na limpeza do lar (todas atividades que ela preferia fazer sozinha, mantendo seu corpo em forma), e sim os pequenos membros do cortejo de Freya, que estava para chegar. Não teve como não se lembrar da experiência mais extraordinária que tivera em seu passado, quando despertara todo o seu poder latente, poucos dias antes de sua mestra partir

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para o outro mundo; na ocasião, numa época em que era loira e mais robusta, o rosto redondo e a expressão sempre compenetrada, depois de uma cerimônia de sexo ritual com Baugi, o único indivíduo do sexo masculino que fora assumido como discípulo por sua instrutora, que viria a se tornar um seidmadr (um homem treinado pelas volvas em seu método mágico, o seidr, e que desenvolvia as mesmas habilidades destas, raros pois só eram admitidos os que possuíam uma tremenda energia sexual mas não a dispersavam em pensamentos e atividades luxuriosas), o intercurso interrompido após uma hora sem que nenhum dos dois chegasse ao ápice, fora-lhe entregue um chá, composto a partir de diferentes ervas, de coloração escura e amargo, que produzia diversos efeitos psíquicos, aumentados segundo se dizia pela atividade sexual sacralizada, mas que não devia ser ingerido por não-iniciadas e não-iniciados, correndo-se o risco da loucura. Não demorou para Groa, esparramada nua na grama de uma planície, seu corpo mais quente do que nunca, velada por seu companheiro e por sua mestra, que ficaram por perto durante seu êxtase, ao olhar para o céu de lua cheia, começar sua viagem. Naquele tempo era apaixonada por Baugi, que era da sua mesma altura, porém o considerava muito mais elegante ao andar e falar, mais magro, os cabelos loiros volumosos e revoltos, a barba bem-feita, os olhos um par de astros azuis; mas se esquecera até mesmo dele quando seu espírito migrara para o alto. Subira com seu Fylgia, seu corpo astral, graças ao qual agora poderia enxergar uma realidade invisível para a maioria esmagadora dos mortais. A percepção se expandiu, e uma flor multicolorida encobriu a lua, abrindo-se nas trevas, aos poucos as pétalas mostrando nervuras, que uma vez que rasgaram os limites aos quais

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estavam restritas se transformaram em galhos. A flor revelou ser na verdade uma árvore, que era por si um universo: Yggdrasil. A volva se projetara abruptamente para fora deste, a árvore que compreendia diversos mundos dominando uma ilha suspensa na escuridão informe de Ginnungagap, o abismo primordial sem fundo. Acima de Yggdrasil, uma nuvem de luz, que gerara os sóis e as luas dos diferentes mundos e que continuava a dar vida a estrelas que depois se afastavam, fazia às vezes cair chuva e orvalho; ora sobrevoando seus arredores, ora pousando na copa, ficava um imenso animal místico, uma águia de penas flamíferas e olhos e bico dourados, que se alimentava da claridade da nuvem. Pouco abaixo existia Asgard, o mundo dos deuses, com seus dois sóis. Naquela terra de maravilhas celestiais, a visão da volva encontrou primeiro o Vingolf. Tratava-se de um palácio reservado às reuniões das divindades femininas, postado sobre uma montanha de ventos em constante movimento; mantinha-se ali, sem solidez onde se firmar, por meio do poder misterioso da magia. Parecia feito de um vidro forte, sua coloração não estática, mudando diariamente, conquanto em tons de harmonia. Uma música sublime pairava por seus salões. Não havia um trono central no Vingolf. As deusas se reuniam em diferentes assentos vítreos. Naquele momento estavam por lá Frija, Skadi e Sif. A primeira, esposa de Odin e rainha dos deuses, dera com o marido continuidade à família divina de Aesir, ao passo que Skadi e Njord haviam sido os primeiros deuses Vanir. Alta e majestosa, de cabelos loiros lisos que percorriam quase a totalidade da extensão de suas costas, trajada com um longo vestido branco e com penas de falcão e gavião respectivamente à esquerda e à direita de seu diadema, em cujo centro estava

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esculpida a imagem de uma roda, a consorte do rei de Asgard trazia em sua cintura um molho de chaves, empregadas em sua refinada magia. Tinha também um palácio particular no mundo dos deuses, o Fensalir, que ficava no centro de um pântano de aparência hostil, semi-oculto no núcleo de uma gigantesca flor semelhante a um lótus. Por fora, estava coberto de lodo e vegetação pantanosa, enquanto por dentro surpreendia em cada detalhe, com cachoeiras internas que pareciam ser de ouro líquido, taças de ouro que podiam ser retiradas de dentro dos caldeirões de hidromel, bastando se pensar nelas para usá-las, além de assentos flutuantes sobre águas cristalinas onde cada mergulho dado proporcionava um êxtase distinto. Frija com frequência tinha visões do futuro, mas, ao contrário de outras videntes, humanas e divinas, preferia manter seu silêncio a relatar o que via, represando sua angústia e seu medo, como na ocasião em que vislumbrara seu marido gravemente ferido em uma batalha futura contra Fenrir, o lobo demoníaco; carregava uma tênue esperança que suas premonições negativas não fossem se confirmar se não falasse sobre elas, como se travar o verbo pudesse bloquear também os acontecimentos, porém até então só lhe restava se surpreender com considerável temor a cada vez que o que parecia matéria de sonho se tornava fato. Era uma deusa reservada, e seu marido aprendera a respeitar este seu modo de ser. Embora não revelasse o conteúdo de suas visões, a única com a qual se abria sobre seus receios e aflições relacionadas era Fulla, uma de suas três filhas que cuidavam do Fensalir; as outras duas eram Hlin e Gna. Tinha tanta confiança em Fulla que lhe permitia ser a guardiã de suas chaves mágicas quando não podia levá-las consigo, mantendo-as em uma caixa de madeira de freixo. Tratava-se de uma deusa de trejeitos contidos e rosto cheio, usava uma tiara

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dourada que às vezes se confundia com seus cabelos e não podia ser subestimada em batalha, especialista na magia do canto e da voz. Para a mãe cantava somente para acalmá-la e ajudá-la a dormir, proporcionando-lhe sonhos tranquilos. Tivera um envolvimento com Freyr no passado, restando para ambos uma calorosa amizade e uma numerosa prole. Hlin tinha cabelos ruivos que lembravam mais rosas do que chamas; de semblante delicado e personalidade serena e compassiva, de dentro do Fensalir escutava os lamentos e as tristezas dos homens, aos quais enviava com sua intenção bons sonhos e pensamentos de esperança para apaziguar seus corações. Contudo, na guerra devia ser respeitada e até mesmo temida, hábil o bastante com sua lança para perfurar até os pensamentos dos que eram mais fracos do que ela e enlouquecê-los. Gna, de cabelos esmeraldinos, gostava de andar pelos arredores do Fensalir com seu cavalo dourado Hofvarpnir, que como Slepnir possuía oito patas e podia andar sobre o ar e as águas, só não podendo entrar no mundo dos mortos, tendo pavor de Nifelheim, e sendo um pouco menos veloz do que o corcel de Odin. Já apostara corrida equestre com seu pai diversas vezes e sempre perdera, embora por uma pequena diferença. Às vezes era encarregada por Frija de cumprir certas missões externas, deixando o palácio. Skadi, por sua vez, apesar de ser a matriarca dos Vanir, não aparentava menos juventude do que suas filhas, com uma face de inefáveis encantos, os olhos da coloração de um céu ensolarado, os cabelos loiros longos lisos na frente e enrolados atrás e um corpo de caçadora; passava de fato a maior parte do seu tempo nas montanhas de Asgard, onde se dedicava à caça, manuseando sua lança e seu arco, no qual se materializavam flechas do material que desejava. Contudo, nenhum animal

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permanecia morto quando atingido por suas armas; revivia segundos depois, mais forte e sadio. A deusa o abençoava a seguir, e sua prática servia como um treinamento para os confrontos contra gigantes e demônios. Ao contrário do que certos homens acreditavam, não possuía nenhum parentesco com jotuns, lendas sendo criadas a respeito por já ter tido uma boa relação com alguns, como Tjazi. No entanto, esta fora rompida após o gigante elaborar uma trapaça com Loki para obter Idun, pela qual se apaixonara. Quando contemplava o céu, Skadi às vezes se entregava de tal forma que se percebia como se fosse o próprio, sentindo em si as nuvens e os pássaros; não por acaso Ondurdis, “donzela dos céus”, era um de seus epítetos. Tinha uma postura altiva, um semblante tranquilo e confiante, de sorrisos seguros, seus passos eram de alguém que sabia sempre onde queria chegar, e suas roupas, embora fossem geralmente trajes de caçadora, possuíam diversos ornamentos e aspectos sofisticados, ao passo que Sif, a esposa de Thor e irmã de Freya, parecia mais introspectiva, às vezes melancólica e se vestia com simplicidade, conquanto seus cabelos de tranças douradas e seu cinto de ouro repleto de pedras preciosas reluzissem de tal forma, não só para os olhos, como para o espírito, que era impossível para quem os visse cogitar que alguém que não fosse uma grande deusa pudesse possuí-los. Quando Sif desejava, podia fazer brotar uma farta vegetação em campos desertos à sua passagem; na neve, conseguia fazer surgir as flores mais delicadas, e que durassem por um longo tempo; ao fazer amor com Thor, era frequente raios de prosperidade raramente visíveis aos homens descerem até Midgard e contribuírem para acelerar o amadurecimento dos grãos e intensificar a fartura das colheitas; se uma família estivesse em desavença quando caísse em suas terras um destes

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raios de amor, as discussões chegariam a um fim, os desentendimentos seriam solucionados e os irmãos ou pai e filho chegariam ao abraço, marido e mulher reencontrando em seu leito sua paz. Já nos dias em que Sif chorava, o que costumava acontecer por preocupação ou saudades de Thor, caía em Ljosalfheim uma chuva dourada, que os elfos da luz agradeciam porque as árvores começavam a dar frutos maiores e mais saborosos. No trato pessoal, a esposa de Thor era talvez a mais meiga e amável das deusas de Asgard. Em suas passagens por Midgard, por vezes tomava a forma de uma humilde camponesa e admirava junto com os agricultores as centáureas azuis e violetas que fazia surgir nos trigais sem que eles percebessem. Afora isso, era excelente cozinheira, seu pão o melhor de todos os mundos, e como guerreira, ainda que detestasse a guerra, lutando apenas para se defender ou defender quem amava ou quem fosse vítima de injustiças que testemunhasse, não deixava nada a dever à sua mãe ou à sua irmã. Asgard estava ligado aos planos inferiores pela ponte Bifrost, que se assemelhava a um arco-íris, formada por feixes luminosos e por uma rica pedraria. Em destaque no seu término, já na entrada do reino divino, Himinbjorg, o castelo de Heimdall, o guardião de Asgard, no qual este deus vivia junto com seus guerreiros. Tratava-se de uma construção negra e sombria se vista de frente e branca e rutilante atrás, diferenciando-se consideravelmente do resto da ponte. Possuía nove torres pontiagudas e por suas muralhas se espalhavam arqueiros vigilantes. Embaixo de Asgard, Alfheim, o mundo dos elfos, caracterizado por grandes florestas, algumas escuras, outras nebulosas, outras luminosas; suas montanhas transmitiam uma intensa aura de mistério.

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Alfheim, que se dividia em Ljosalfheim (o reino dos elfos da luz, regido pelo deus Freyr) e Svartalfheim (o reino dos elfos negros), ficava sobre Midgard, a terra do meio, mundo onde viviam homens, anões (também conhecidos como gnomos, que costumavam viver muito mais do que os seres humanos, alguns passando dos sete séculos) e eventualmente seres de outros planos da árvore; era o andar mais acessível, ligado a Asgard por uma das ramificações de Bifrost (que porém somente os dotados de capacidades mágicas poderiam ver e percorrer), ao mundo dos elfos por portais nos céus, a Jotunheim descendo-se o Deserto da Morte Branca, e a Muspelheim e Nifelheim através de passagens localizadas nas profundezas, em grutas subterrâneas. Contudo, os deuses cuidavam de proteger os homens e os demais habitantes de Midgard de invasões dos planos inferiores, poucos gigantes e demônios conseguindo ascender e ameaçar as civilizações humanas. Jotunheim, o mundo dos gigantes da neve, estava imediatamente sob Midgard; e descendo-se mais que se via o andar dividido (de forma muito mais rígida do que ocorria no plano élfico) entre Muspelheim, ou Muspell, terra de lava e chamas eternas, lar dos gigantes do fogo, e Nifelheim, o mundo dos mortos decaídos e dos demônios, governado pela temível Hel, separado de seu vizinho por nuvens geladas que matavam no ato os seres hostis que tentassem atravessá-las, congelando-os de dentro para fora. Hel não tinha o menor interesse em tentar a conquista de Muspell; inclusive temia aquele mundo quente demais, povoado por gigantes estranhos, de natureza distinta da dos jotuns, que lhe eram mais afins. A base da Árvore era maior do que qualquer um dos mundos, em parte envolvida pelos domínios do sábio Mimir, em parte pelo paraíso de Urd. Na grama desta última região, um local idílico, pastava a cabra Heidin, amada pelas nornas, de

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dimensões comparáveis às de um rinoceronte. A chuva e o orvalho do alto chegavam até aqui, recebidos pela fonte Urd, belíssimo monumento de um ouro esverdeado, repleto de esculturas retratando deuses, valquírias e outros seres, além de abrigar um par de cisnes que não estavam lá por acaso, um negro e um branco; as substâncias do firmamento não só se fundiam às suas águas como eram trabalhadas pelos movimentos circulares dos dois pássaros mágicos, transmutadas em hidromel, um delicioso líquido cor de fogo expelido pela boca de uma escultura em forma de dragão, regando as terras circundantes, espalhando-se em veios espontâneos até perto de Yggdrasil, porém não chegando até ela; por isso, entre outras razões, se fazia necessária a existência das nornas, que recolhiam certas quantidades de hidromel e regavam a árvore, fortalecendo-a. Um ser inteligente, Yggdrasil podia gerar vidas, mas não seria capaz de preservá-las sem a energia que transferia para o ar após absorver e reelaborar o hidromel. No princípio dos tempos, próxima à Árvore primeiro surgira a fonte, na época com só uma escultura, a do dragão, criada por uma inteligência superior que Yggdrasil interpretou como sendo a Consciência Suprema, a sábia origem de todas as coisas, que lhe deixou também os cisnes; e só depois de compreender a função da fonte como a sua própria que teria gerado a primeira norna. As três juntas viriam a se tornar as responsáveis, entre outras coisas, pela preservação da existência dos seres criados em seu universo. Sem elas, Yggdrasil ainda sobreviveria, alimentada pela chuva e pelo orvalho, mas todas as criaturas por ela geradas, as distribuídas em seu tronco e as próximas deste, pereceriam. Tudo voltaria a ser como era antes da fonte, a grande árvore isolada no centro de um interminável deserto. As nornas nasceram vegetais, a partir do solo, gradativamente

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metamorfoseando-se em entes humanoides. A primeira, Urd, batizada com o mesmo nome da fonte, veio à luz já idosa; tinha a aparência de uma senhora pacata, alta e de voz mansa, os cabelos brancos curtos aloirados, as mãos leves, as rugas de seu rosto tranquilas, trajando em geral vestidos longos de cores claras que recobriam seus pés. Nasceu sabendo o que precisaria fazer, encarregando-se de cuidar da fonte e do paraíso subsequente, que passaria a receber as almas dos justos de Midgard que não possuíssem um espírito forte e guerreiro, isso depois que os mundos já estivessem formados. Assumiu a tarefa de educar essas pessoas, preparando-as para as encarnações seguintes e procurando fazer com que se perdoassem pelos erros que haviam cometido em suas vidas mais recentes, a fim de terem um renascimento favorável. Como não poderia dar conta sozinha do trabalho que se acumulava quando Midgard passou a fervilhar, surgiu Verdandi, que se tornou a responsável por auxiliar almas desta mesma espécie quando ainda encarnadas. Sua aparência era a de uma mulher loira e atlética, de longos cabelos lisos, no auge de sua forma física, os olhos púrpuras. Costumava usar uma armadura violeta de retoques dourados, seu elmo e seus sapatos metálicos apresentando pequenas asas nas laterais; era uma guerreira, que saía com frequência do jardim, ao contrário de Urd, que nunca saía, e assim como Skuld, a terceira a nascer e que se tornou a encarregada do treinamento e da direção das valquírias, além de encaminhar os espíritos para seus novos corpos quando fossem reencarnar e combater periodicamente criaturas infernais que ameaçassem Midgard. Apesar dos olhos e cabelos escuros, negros como sua armadura de resto idêntica à de Verdandi, sua tez era pálida ao extremo; e quando andava entre os homens se ocultava sob um capuz que cobria seu rosto com uma sombra. Diferentemente de Verdandi, não gostava de

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lidar com os humanos, tratando-os com distância, só nutrindo alguma simpatia pelas volvas. Em um pergaminho, anotava os nomes dos que contrariavam os deuses, punindo-os severamente e com gosto. Encarregadas portanto de cuidar das almas de todos os seres vivos que fossem reencarnar, não existindo esperanças para os que caíssem no inferno de Hel, onde degenerariam mais a cada noite, não havendo como retornar a Midgard, as nornas ganharam como presente de Odin, que quisera contar com seus favores sem precisar agir pela força, e obtivera êxito em seu objetivo, um tempo considerável depois de seus nascimentos, algumas auxiliares: as dises, filhas de Freyr e Fulla, que às vezes agiam como suas secretárias e que lhes preparavam e serviam comida, em outras ocasiões realizando funções mais diretas sob suas ordens. Tinham aparências de donzelas claras, trajadas em bege, branco ou amarelo suave, só não eram guerreiras, ramo que competia às valquírias, que também interagiam frequentemente com as nornas. As dises se identificavam mais com Urd, suas relações amenas e cordiais com Verdandi e temendo a rigorosa Skuld. Das três, apenas Urd sabia como tivera início o reinado de Odin, e de suas primeiras batalhas, contudo mantinha absoluto sigilo a respeito, pois não desejava interferir na ordem das coisas. Associada pelas bruxas ao Passado, enquanto Verdandi e Skuld se enquadravam respectivamente com o presente e o futuro, sabia que na realidade, além do passado condicionar o futuro, o que há de ocorrer molda o que já foi. Via isso na sua relação de Skuld, ora sendo como uma professora, mãe ou irmã mais velha, ora aprendendo com a caçula. “O tempo é, como a grande Árvore da raiz à copa, uma unidade.”, costumava dizer. Por fim, sob a base de Yggdrasil, na profundidade da terra, roendo suas três grossas raízes (que no entanto se

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reconstituíam), em um ambiente de úmida escuridão, encontrava-se aprisionado pela magia dos deuses o dragão Nidhogg, que a vidente não conseguiu enxergar com precisão, vendo de relance somente a sombra do monstro, pois se permanecesse por um tempo mais longo próxima daquela criatura seu corpo astral teria sido destroçado, o que desencadearia não só sua morte física como o despedaçamento de sua identidade por éons inteiros. Catapultada de volta para cima, viu o esquilo marrom Ratatosk percorrendo o tronco, incrivelmente rápido. Tinha o tamanho de um homem adulto e a percebeu, mas não chegaram a se comunicar, a bruxa retornando para dentro do mundo, para os céus de onde partira, onde começou a escutar um estrépito metálico de armas e armaduras se aproximando. Ficou boquiaberta quando viu do que efetivamente se tratava: vinha em alta velocidade um verdadeiro exército celestial, compreendendo por que, ao testemunhar a diversidade de cores e a riqueza luminosa das túnicas e couraças, se dizia que as auroras coloridas nas regiões geladas de extremo branco eram produzidas pelas valquírias quando estas avançavam em conjunto. Não conseguiu distinguir individualidades, era um grupo compacto, homogêneo em sua potência, acompanhado por relâmpagos poderosos. Viu por um instante algumas das armaduras cobertas de sangue, depois este desaparecendo e todas tornando a ressoar límpidas, faíscas escapando de suas lanças e espadas; a Vitória irradiava de seus peitorais. Estavam montadas em cavalos esplêndidos, a não ser uma, sobre um lobo tão grande quanto um cavalo; voavam pelos ares de forma impetuosa. Lamentavelmente para ela, não conseguiu ver muito mais, despencando de maneira abrupta de volta ao corpo. Talvez, refletiu em seu retorno, quente, suada e um pouco tonta, já vira demais para uma humana que ainda não fora

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admitida entre os deuses. Ao se reerguer, a princípio com cautela, mas sem recorrer a ajudas externas, recobrou com mais rapidez do que o esperado o equilíbrio físico; notou então em seu interior, e irradiando à sua volta, uma força que não tinha antes, um poder palpável. Chegou a ver pequenas chispas saindo de suas mãos. Baugi se aproximara e acenara afirmativamente com a cabeça; Groa não sorrira e nem chorara, mas estava explodindo de felicidade por dentro. Thorbjorg desaparecera, o que significava um parabéns: com essa atitude demonstrava que a considerava a partir daquela noite uma volva madura, independente, livre para seguir seu próprio caminho. Quando se reencontrassem, seria como irmãs. Pena que fora a última vez que a vira encarnada, o que provavelmente seria o mesmo caminho em breve de sua relação com Grëdir, abençoando-lhe a criança antes de partir em definitivo, seu sorriso e suas lágrimas não saindo, assim como ocorrera outrora, agradecendo por tudo mais do que fizera na ocasião: a Odin; às valquírias; e a Freya, que acabava de chegar. Os coboldes se agiram no verde, e onde este não havia nasceu, pelas rochas e nos galhos e troncos; fadas surgiram para se desmancharem em um pólen cristalino que fez brotarem diferentes cores e flores; os pássaros cresceram, inclusive em canto. A deusa desceu de sua carruagem de ouro e pedras preciosas, cujo cocheiro era uma criatura escura e de semblante bondoso e sorridente, toda recoberta de pêlos, um misto de homem e felino, felinos que eram os dois animais que puxavam o carro, duas linces silenciosas do tamanho de leões e de pelugens refulgentes, tais quais os cabelos de sua senhora, cujos olhos não permaneciam restritos ao seu rosto perfeito, expandindo-se num brilho cerúleo; um colar de ouro e pedras flamejantes de maravilhosa feitura, que sob um olhar atento

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refletiam o brilho das almas dos indivíduos, envolvia seu pescoço magnificamente esculpido; e sua veste justa em verde-dourado com partes metálicas realçava a beleza das formas de seu corpo. O colar era o sagrado Brisingamen; e a história de como fora obtido era sem dúvida bastante curiosa. Na ocasião, havia três anões amigos chamados Alfrik, Berling e Grer, que eram especialistas em produzir as mais refinadas joias. Por isso Freya fora até eles para lhes encomendar um novo colar. Contudo, o trio muito esperto, disseram que só fariam a peça se a deusa passasse uma noite com cada um deles. Acreditaram assim tê-la colocado numa posição de terrível desconforto, da qual não teria como escapar se desejasse realmente ter o colar. Já possuíam um vasto tesouro, guardado em uma gruta por um gigante de pedra que haviam formado com sua magia (e que a princípio parecia só uma grande rocha, que despertava, criando braços, pernas e cabeça quando alguém manifestasse a intenção de roubar), por isso não tinham qualquer interesse em um pagamento material por parte dela. “Esses anões se acham muito espertos. Pois vou pregar uma peça neles.”, foi o que disse Freya a Odin na oportunidade, enquanto passeavam sobre a ponte Bifrost. O rei dos deuses estava montado em Slepnir, seu corcel de oito patas que não só andava sobre solos firmes como podia planar pelos ares, à sua passagem caindo cristais de orvalho nos vales, galopar sobre as águas e circular livremente no mundo dos mortos. Com diferentes runas escritas em seus dentes, quando calmo era prateado e sua aura irradiava serenidade e leveza; quando precisava sair em disparada, envolvido por emoções fortes, tornava-se rubro, sua crina dando a impressão de ser feita de chamas, assim como seus olhos perdiam as pupilas argênteas e se tornavam puros focos de fogo dourado.

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“Veja bem o que faz, Freya. Loki veio me dizer que você iria realmente se deitar com eles e fiquei alarmado com isso.” “Loki é um falastrão.”, que naquela época ainda estava à solta. “Claro que uma deusa como eu nunca iria para a cama com anões.”, Freya já tivera casos amorosos com diversos deuses, porém jamais com seres inferiores na hierarquia da vida; amava os homens, os gnomos, os elfos e todos os seres da natureza, porém na sua visão cada um tinha o seu lugar, temerosa também de engravidar e gerar alguma aberração. “Que honra para nós. A mais bela das deusas nos conceder noites extasiantes de amor!”, Alfrik, que tinha um imenso nariz, que coçava o tempo todo, era o mais falante dos três; com poucos cabelos, mas vaidoso, usava uma touca com cabelos artificiais em sua cabeça. O mais entusiasmado no entanto era certamente Berling, que nem conseguia falar, pois seria o primeiro a passar a noite com Freya; preferia coçar os dedos grossos e peludos dos pés (andava sempre descalço), ao passo que Grer, com sua barba marrom que ia até os pés, era o mais mal-humorado, descontando sua ira por ser o último do trio moendo as pedras que via pela frente com suas mãos extremamente fortes; quando seus nervos passavam dos limites, chamava com um assovio Thorfinn, seu urso marrom, e montava sobre este; saía então correndo pela floresta, o vento acalmando-o, enquanto o grande animal aguardava sua recompensa em peixes ou mel. Quando Freya veio pelas primeiras duas vezes, preferindo nem vê-la junto com seus irmãos, Grer de fato saiu de casa, ardendo de desejo, sendo até grosseiro ao mal cumprimentá-la antes de ir embora. Quando sua noite chegou, agarrou-a com força na cama; brasas ansiosas de prazer queimavam em seus lábios quando se beijavam; ao lambê-la por inteiro, sentia em sua pele um gosto doce; seu toque e sua penetração a

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prensavam com ímpeto. Contudo, aquela obviamente não era a verdadeira Freya, e sim uma ilusão criada pela deusa. Depois que obteve o Brisingamen, não iria simplesmente deixar que os três anões saíssem por aí se vangloriando de ter experimentado noites de paixão com a mais deslumbrante das deusas: tornou a enviar seu holograma carnal. “Grande Freya!”, Alfrik a recebeu com entusiasmo. “Quanto prazer em vê-la aqui.”, colocou considerável ênfase na palavra. “Veio para fazer outro pedido? Ou gostou de mais alguma coisa que podemos lhe oferecer além de colares ou anéis?”, ao que a deusa replicou com um sorriso vistoso: “Vocês talvez confiem demais em seus próprios olhos. Mas acho que isso não é inesperado em se tratando de seres tão ligados à densidade da matéria. Só não é admissível que sejam insolentes com os deuses e nos imponham exigências.”, e a falsa Freya se metamorfoseou em uma velha horrenda e suja, que escancarou sua veste, revelando toda a imundície de suas partes íntimas, pelas quais inclusive passeavam algumas larvas: inspirara-se parcialmente no visual de Elli, a deusa da velhice. “Esta é a minha verdadeira forma! E agora? Ainda me desejam?”, e liberou uma gargalhada com sua boca de dentes podres. O ansioso Berling vomitou após ser beijado à força pela horrenda figura, que se multiplicou; Grer chamou por seu urso, que não veio, e desta vez foi “ela” que se impôs sobre ele na cama, onde se manifestaram até espinhos e pregos; o falante Alfrik recebeu um beijo do qual não pôde se desgrudar por horas, todo o fedor da criatura entrando por suas largas narinas. Dessa forma Freya se divertiu bastante, e os três anões nunca mais ousaram encará-la, ao serem recebidos em Asgard (por seus méritos como artesãos e ferreiros) tratando-a sempre com extremo respeito, cabisbaixos e falando baixinho. Ficaram os

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três por muito tempo sem querer saber de mulheres. Freya, contudo, não cultivava ressentimentos; por isso os perdoou e os agradeceu sinceramente pela beleza e pelas propriedades mágicas do colar. No Folkvangr, que possuía proporções próximas às do Valhala, onde recebia os einherjar do sexo feminino, o Brisingamen reluzia com ainda maior intensidade; e por ali, o palácio de ouro esverdeado e torres que lembravam imensas árvores ficando no alto de uma larga e imponente montanha rochosa, o interior do templo não era pura arquitetura e escultura: se o Valhala estava cheio de espadas, lanças e escudos, as paredes, o teto e o chão do Folkvangr tinham vegetação viva. O trono de Freya, além das pedras preciosas, contava com um musgo luminoso e flores de inúmeras espécies. Voltando ao presente em Midgard, grandiosa foi a bênção sobre a criança que iria nascer, um sol que se espalhou pela floresta, um único Olho Vivo suficiente para dissipar o nevoeiro. Groa se recordaria de tudo isso, no futuro próximo, ao rever o sorriso da deusa no abandono definitivo de sua carne: coberta de luz, agora era a vez da sua morte ser abençoada. “Vim levá-la comigo. Deixei as valquírias descansarem por hoje.”, a voz de Freya era uma chuva sutil caindo sobre os campos, seguida do surgimento de um arco-íris. A volva permaneceu incrédula por alguns segundos, depois questionou seu merecimento, para enfim concluir que se fora escolhida por uma das maiores deusas de Asgard não importava se merecia ou não; ocorrera: e não iria recusar. Pegou o pomo de ouro da árvore que surgiu à sua frente e desapareceu enquanto um jardim se abria, sua alegria sem riso subindo com a revoada de borboletas e colibris, deixando abaixo de si, para trás, uma outra deusa, esta quase estática:

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tratava-se de Elli, ali sentada sobre uma cadeira rangente. Freya encarou esta divindade tão temida que era praticamente seu oposto, rouca, grisalha e enrugada, cinzenta em seus trajes, descalça e seca em ossos ásperos, dolorida com sua corcova, os olhos quase cerrados, e a abandonou após lhe lançar um sorriso sutil.

Havia anos que Baugi não possuía um endereço fixo, peregrinando pelo mundo. Nesse período, adquirira uma aprendiz. Tudo tivera início quando chegara a um vilarejo e descobrira que este vinha sofrendo com os ataques de uma criatura das trevas. Primeiro ouvira uma conversa na taverna onde parara para comer e tomar um pouco de cerveja: “É horrível. Esse monstro não tem dó nem de crianças! Outro dia encontraram o corpo de uma menina...Sabe a filha dos Escher? Estava toda rasgada, com as tripas pra fora.” “Se eu pudesse, ia-me embora daqui. Não sei como ainda aparecem forasteiros malucos. Como tem gente que gosta de procurar encrenca!” “A maioria não sabe que isso está acontecendo. Não tem nem ideia. Acham que esta é uma aldeia pacata.” Quando todos os clientes já haviam saído, Baugi, que principiara a decidir que ajudaria a gente inocente daquele povoado, resolveu se informar com o taverneiro, que lhe deu algumas explicações: “Essa aberração só ataca de noite, quando está tudo escuro. Uma vez um grupo se juntou com tochas, arados, facas e paus, mas a maior parte morreu nessa luta, os que sobreviveram saíram bem machucados, e só por pouco tempo o desgraçado fugiu pra floresta. Logo as mortes sangrentas típicas da passagem dele recomeçaram.” “Como têm certeza que é mesmo ele e não algum assassino louco tentando se aproveitar da situação?”

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“Pelas marcas de dentes e garras, somadas à inteligência nas execuções, às vezes até deixando mensagens com o sangue das vítimas nas paredes das casas. Essa coisa sabe escrever, coisa que a maioria aqui não sabe. Mas por que você está tão curioso? Recomendo que parta daqui o quanto antes.” “Ainda tenho bastante trabalho aqui.”, e se retirou. O dono do estabelecimento evidentemente não compreendeu a atitude do seidmadr, que à noite não foi para a hospedaria onde alugara um quarto, mas permaneceu em concentração junto a uma estátua em mau estado do fundador lendário da aldeia, originalmente um homem rústico e robusto com uma pele de urso passando sobre a cabeça (agora nem mais cabeça tinha), recolhendo-se embaixo desta por sentir nas proximidades uma forte energia maligna. O monstro devia estar por perto. E refletiu como os deuses eram sábios, conduzindo-o não por acaso àquele vilarejo, onde deveria ajudar as pessoas e dar continuidade ao seu aprendizado. Contudo, de repente notou ao seu lado outro indivíduo, que chegara sem se fazer notar. Impressionantes sua discrição e seu silêncio, ainda mais quando notou que era um pequeno encapuzado, e não um anão: uma criança. “Olá.”, falou com simplicidade, ao perceber que estava sendo fitada. “O que está fazendo aqui? Não deveria estar em casa a essa hora?”, inquiriu o bruxo. “Você também. O que está fazendo na escuridão da rua? Estão todos dormindo.”, não conseguiu definir pela voz se era um menino ou uma menina. “O que acha que estou fazendo?” “Caçando um demônio.” “Como é?” “O senhor ouviu.”

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“E por que acha isso?” “Sonhei que chegaria um bruxo muito forte pra matar o demônio que mora nesse vilarejo. E ele mataria o monstro perto dessa estátua. Às vezes tenho sonhos que viram verdade...Mas nenhum foi como esse. Por isso toda noite venho aqui. Quero ver isso acontecer. Fora que estou com medo de ficar em casa.” “E posso saber por quê?” “Desde que os meus pais morreram, o meu irmão mais velho cuida de mim. Só que ele não tem tido paciência e me bate muito. Na verdade, ele era bom e carinhoso. Só que mudou muito de uns tempos pra cá. Desde que o demônio voltou da floresta.” “O que você teve pode ter sido só um sonho, que alimenta as suas esperanças, tanto as ocultas como as manifestas. Na sua mente, eliminar o demônio é melhorar seu irmão.” “Não foi só um sonho.” “Como se chama?” “Atla.”, não conseguia ver direito o rosto da criança nas trevas, ainda não sabia seu sexo, o nome era neutro no dialeto da região, mas isso não importava: Atla irradiava uma aura incomum; seus sonhos premonitórios deviam ser portanto reais; possuía um extraordinário potencial para a bruxaria. “Você devia estar em casa. Te procurei em todos os lugares, sua vadiazinha.”, uma terceira voz acabou surpreendendo os dois, desconhecida para Baugi e familiar para a menina; pelo tratamento, em termos nada elogiosos, já se podia saber que era uma garota. “Se você continuar desse jeito comigo, vou embora pra sempre.” “Não vai...Não vai não. Não tem pra onde ir.”, o rosto encoberto pelas sombras devia estar exibindo um sorriso de

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escárnio. E fora outra presença muito discreta a se aproximar, só que o seidmadr sentiu que traiçoeira, gulosa e cruel ao extremo. “Atla...Esse não é o seu irmão.”, acabou intervindo. “Quem é esse aí?”, indagou o rapaz. “Bem que imaginei.”, e a criança falou e correu, o bruxo se levantando para lidar com o demônio; Baugi pôde facilmente deduzir que o monstro se apoderara do corpo do irmão da pequena Atla, decidindo agir com mais cautela e esperteza, imiscuindo-se aos aldeões depois que fora repelido e provavelmente ferido, embora não com gravidade, por estes. Dentes aguçados brilharam na escuridão. E uma luz surgiu, manifestando-se circularmente em volta do seidmadr, marcas de runas brilhando nos espaços do chão. Uma tristeza percorreu a alma de Baugi porque percebeu que não conseguiria salvar o garoto, que devia estar com dezessete ou dezoito anos. O monstro liberou sua força e a cabeça do possuído estourou, enquanto uma fumaça pesada se espalhava pelo ambiente; uma mão de garras afiadas saiu pelo abdômen; outra pelo peito; e rasgando o corpo do rapaz como um felino selvagem que rasga uma caixa para sair desta, a criatura se manifestou. A princípio não tinha mais do que um metro de altura, mas o bruxo sabia que esta era uma forma provisória; provavelmente diminuíra ainda mais de tamanho quando entrara naquele corpo. Tanto que foi crescendo, até chegar aos dois metros e meio, os braços pesados e musculosos alcançando o chão, mãos de três dedos grosseiros, assim como os pés, uma cauda grossa e espinhenta, uma crista nas costas, uma face de olhos amarelos arregalados com pupilas negras afiadas, sua boca com três fileiras de dentes, orifícios estreitos para o olfato e a audição, o crânio pontiagudo. Sabia que não poderia atacar o seidmadr enquanto este se encontrasse em seu círculo, por isso tentou

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desestabilizá-lo com as palavras para fazê-lo sair ou para romper seu equilíbrio interior, o que quebraria o circuito mágico: “Vocês feiticeiros não são nada fora dos seus círculos. Por que não sai pra me enfrentar de peito aberto? Até a gentalha dessa aldeia é mais corajosa do que você. Seu covarde! Sei muitas coisas sobre você, muito mais do que imagina.”, ao que Baugi o ignorou, fechou os olhos e buscou concentrar sua audição em suas palavras internas, uma invocação aos poderes da natureza. Ventos poderosos se manifestaram à sua volta e na sequência foram direcionados apenas à criatura de Nifelheim, no início produzindo cortes superficiais em sua pele dura, gradativamente tornando-os profundos, e quando esta tentou fugir, foi estraçalhada. Seus urros ecoaram pelo vilarejo, e apavoraram os aldeões, alguns só saindo uma hora depois que o silêncio passara a ser dominante. Poucos conseguiriam voltar a dormir. Evocando os poderes do fogo, Baugi, que como se podia perceber era excelente em magia elemental ofensiva (cujo início do aprendizado se dava por meio de pedras com as runas propícias gravadas e imantadas, com a prática o mago deixando para trás estes pequenos instrumentos de canalização e “gravando” as runas em seu próprio espírito), fez desaparecer os restos do demônio, incinerando-os e evaporando seu sangue azul-escuro. Partiu do vilarejo, porém notando durante o caminho que estava sendo seguido: “Sei que você está aí. Não adianta se esconder atrás das pedras e das árvores. Os seus passos são muito silenciosos, parabéns por isso, mas posso sentir sua presença, a sua energia. Não se engana um seidmadr. Apareça. Atla.”, e de fato era a menina, agora com o capuz para trás. “Não tenho mais família. Não tenho mais nada. Só me resta o senhor.” “Não acredito nisso. Volte para casa, Atla. Estou certo que

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alguém na aldeia sentirá falta de você. Alguém certamente irá cuidar de você. Vi algumas senhoras de bom coração.”, ao mesmo tempo que dizia isso, estava testando-a. Potencial para se tornar uma volva ela certamente possuía, porém talento puro nunca seria o bastante. Precisava demonstrar sede de conhecimento e vontade de seguir adiante por um caminho cheio de pedras, de enfrentar um destino repleto de provas, de desafiar e contestar seu próprio mestre. Não deveria partir por mero desamparo. “Sei que talvez lá posso ter alguém pra me ajudar. Mas agora eu preferiria morar até sozinha, se não puder ir com o senhor.” “Não confia em mais ninguém, apenas em mim. Não é verdade?” “Se aquela coisa entrou no corpo do meu irmão, outra coisa pode fazer o mesmo daqui a alguns anos até em mim. Não confio em mim mesma; não ainda. Preciso de alguém pra me treinar, me ensinar; quero aprender a me defender; e quero aprender como ajudar as pessoas. Não quero que muitas outras pessoas passem pelo que passei. Quero proteger as crianças.” “Você é uma criança.” “Mas um dia não vou ser mais. E vou poder ajudar.” “Se quiser vir comigo, não será fácil. Às vezes passo dias sem comer, ou me alimentando só de raízes e folhas que encontro pelo caminho. Será necessário ficar na floresta em muitas ocasiões, ou dentro de uma caverna gelada, sentindo frio e não podendo dormir profundamente, sendo preciso manter uma certa vigilância, como fazem os animais selvagens. Terá que encarar fantasmas e demônios, e não poderá simplesmente fugir, porque se fizer a atingirão pelas costas, ou a alcançarão e será de qualquer forma o seu fim.” “Não vou ter medo.” “Não minta. Todos nós temos medo. Você teve medo do

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demônio que possuiu o seu irmão.” “Isso é porque ainda sou fraca. Não tenho medo do futuro. Tenho medo do passado e o meu presente é medo. Se o senhor me aceitar, tenho certeza que não vou fugir mais.” “Os piores fantasmas e demônios são os internos, que se enraízam em nosso passado. Você terá algum dia que encarar sua própria sombra, e será a pior noite que já experimentou.” “Sei que posso morrer, que ter sonhos que acontecem não é tudo. Mas todos nós vamos morrer algum dia. Não vou morrer fugindo; vou morrer de frente.” “Há mortes piores do que a morte física. Há a loucura: a morte em vida; e entre o louco e o visionário a linha de separação é tênue, perigosa, estendendo-se sobre um abismo.” “Quando ia todas as noites pra debaixo da estátua, não era só pra ver o bruxo matar o demônio. Era também porque eu queria ir embora com o bruxo. E num sonho que tive depois, não te contei ainda, ele me levava sim. Me vi subindo uma montanha, e ele, que é você, segurando a minha mão.”, e Baugi refletiu que, no caminho que escolhera trilhar, seria impossível ter filhos, algo que o atraíra desde sua juventude, afinal não via sentido em possuir uma família para deixá-la em segundo plano em relação à magia; órfão na época que conhecera Thorbjorg, e fora filho único (não sabia dizer se situação pior do que a de Atla, que acabara com um “irmão-demônio”), não tinha a menor intenção de se fixar, e uma esposa fatalmente se enfadaria com suas viagens de assistência e suas peregrinações iniciáticas, sem contar que seria um pai distante; por vezes se recriminava ao invejar simples camponeses que via felizes caminhando com seus rebentos. Sonhava ter um filho ou uma filha, ou ambos, para lhes transmitir o que aprendera, para que levassem adiante o trabalho que não poderia exercer eternamente no mundo dos homens, além de encontrar dessa

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forma um alívio para sua solidão, para as saudades que sentia de sua mestra e de suas irmãs de seidr, em especial Groa. Próximo dos quarenta anos, esta seria sua oportunidade, tendo ao seu lado uma filha não de sangue mas de alma. Aceitou portanto a pequena Atla, certo de que fazia isso não para sanar suas carências, e sim porque ela tinha uma capacidade real para se tornar uma das maiores xamãs que já vira. Acostumado a sustentar somente a si próprio, foi-se habituando a trabalhar em dobro, o que porém não durou muito, logo a garota se esforçando para ajudá-lo de todas as formas que podia. Atla cresceu sob um preceptor carinhoso e ao mesmo tempo rígido, sem abraços e quase sem toques, o amor de pai manifestado através de sorrisos breves e sinceros, de palavras simples contendo felicitações e ternura e dos esforços para permitir que se tornasse uma mulher saudável e uma volva de primeira linha, com frequência se alimentando menos para dar a maior parte a ela (sem que ela soubesse), e sendo exigente nos estudos e práticas. “Você falhou de novo.”, disse-lhe numa de suas iniciações, em que precisava passar por três noites seguidas sem dormir para ingerir ao nascer do sol uma complexa poção de ervas que deveria ser tomada quente. “Não acredito nisso! Faltou tão pouco dessa vez!”, já adolescente, Atla, cabelos loiros enrolados, olhos da cor de uma lagoa congelada, a pele rosada e o corpo longilíneo, falhara em sua quarta tentativa ao adormecer no meio da terceira noite. “O importante é não desistir. Vamos tentar de novo.”, claro e paciente, Baugi nunca demonstrava perder a calma, enquanto a persistência era uma virtude da jovem, que procurava encobrir com sua Vontade as pegadas que seus erros deixavam. Depois da culpa e da raiva por ter falhado, vinha uma ira positiva,

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construtiva, que mantinha sob seu controle para continuar a avançar. Suas paradas em cidades maiores eram períodos de descanso da atividade espiritual, o que Baugi também julgava importante e necessário para a saúde do corpo e da mente. “Tudo em excesso é prejudicial. E precisamos viver um pouco na matéria e cuidar dela, afinal se estamos aqui não é por acaso.”, aproveitavam esses dias para trabalhar com artesanato, desenvolvendo a criatividade e a agilidade mental que seriam necessárias em experiências extra-sensoriais, vendendo algumas peças, como pequenas esculturas em madeira, entre guerreiros montados em dragões e miniaturas de barcos, e permanecendo com as que teriam funções mágicas, como amuletos rúnicos. Geralmente Baugi tinha amigos e conhecidos nestas cidades, para os quais já realizara bem-sucedidos feitiços de prosperidade, além de consultas e advertências para as possibilidades que o futuro oferecia, não cobrando nada a princípio, apenas pedindo para que lhe dessem hospitalidade e ferramentas de trabalho quando retornasse; isso era o mínimo que recebia. Um de seus amigos, o comerciante bonachão Olaf Slunsson, dono da taverna Barba Vermelha (entre outros negócios em sua cidade), ofereceu numa das noites em que o seidmadr ficou em sua casa um excepcional jantar-festa-surpresa, em homenagem também à jovem aprendiz: “Essa garota é muito magrinha! Está precisando comer direito! O que você dá pra ela, só raízes amargas?? Mulher tem que ter carne!”, de voz rouca e potente, bradou com uma grande caneca de cerveja em mãos diante da pasma Atla, que nunca se divertira tanto como naquela noite, assim como comeu como jamais comera, grandes sanduíches com carne de vaca ou carneiro, além de queijos, leite e frutas, e dançou com vários amigos e filhos de amigos de Slunsson. Isso a princípio

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desagradou Baugi, que porém, depois de uma hora ou pouco menos, até chegou a sorrir, refletindo que não precisava desconfiar e temer, afinal formara uma filha responsável, e era justo que tanto ela como ele se divertissem um pouco. Bebeu mulso e comeu pães de mel, o que havia tempo que não fazia. A maior parte do tempo de suas vidas, entrementes, continuou sendo dedicada às práticas místicas; e, aos poucos, os voos de Atla para além de seu invólucro carnal começaram a ser bem-sucedidos. Entrou em êxtase ao com uma existência de águia sobrevoar as copas de árvores cobertas de neve no inverno, ou ao integrar-se a um bando de lobos, estes percebendo com certa estranheza uma integrante que não podia ser tocada. Observou primitivos caçadores de bisões, alces, mamutes, mastodontes e rinocerontes lanosos, que se abasteciam por longos períodos com as carnes destes animais. Desceu então, numa noite em que as trevas não paravam de se adensar, engolindo as chamas da fogueira, às profundezas de Nifelheim, passando entre as névoas frias e os ardis dos fantasmas, fitada por espectros e demônios que sabia que a viam mas que não podiam tocá-la. Percebeu que estava protegida. Por quem? Não tinha uma visão precisa a esse respeito. Ouvira de Baugi que divindades menores ou mesmo espíritos da natureza e de volvas e bruxos do passado escolhiam como função aconselhar, defender e guiar aprendizes de magia, em geral sem se deixarem perceber, sem revelarem suas identidades. Refletiu que gostaria de fazer esse trabalho depois que seu espírito deixasse em definitivo sua carne, se isso era realmente possível; caso fosse mas quando chegasse a hora não estivesse moralmente preparada, que conseguisse uma reencarnação favorável; só não se tornara volva para virar uma sombra entre as brumas e pântanos obscuros de Hel. Trazer água a um deserto: os anos transcorreram e, em suas

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peregrinações, Baugi e sua pupila alcançaram terras distantes ao sul, nos domínios da seca. A essa altura o seidmadr se tornara um velho, cobrindo sempre a cabeça onde os cabelos já rareavam com o capuz de seu manto azul, comumente protegendo seu cocuruto do frio ou, naquela região, do sol constante e inclemente. Ao chegarem ali, prometeram à população dos vilarejos ressequidos que iriam provocar chuva. E de fato realizaram um bem-sucedido ritual convocando os espíritos do ar e das águas. Mais madura, Atla fizera seus próprios trajes de volva: um manto negro bordado com pedras, um capuz forrado de pele de raposa, luvas e botas de pele de lince e um colar de lápis-lazúli em volta do pescoço; em sua bolsa de couro, pirografada com símbolos tradicionais, carregava ervas, uma adaga consagrada, talismãs rúnicos e outros objetos de poder; em seu cajado, diversos adereços pendurados que aludiam a diferentes tipos de animais. Mesmo sob o calor forte, não abria mão das vestimentas magicamente imantadas, que atraíam os elementais com mais facilidade, procurando se isolar da temperatura externa por meio de sua concentração e da respiração. Lembrava-se de quando matara os animais para obter suas peles; em todas as ocasiões, após capturá-los por meio de armadilhas, matara-os com golpes secos de sua adaga, sem causar sofrimento excessivo, e oferecera suas almas a Freya, que as encaminharia rumo a um destino luminoso; na sequência, pedira a Odin a consagração de suas peles e a bênção sobre as carnes, alimentando-se destas e derramando o sangue na terra num breve ritual de fertilidade. Tudo como fora instruída pelo experiente seidmadr, que de animal em suas vestes tinha o capuz forrado com a pele de um castor e as botas de pele de gato-do-mato. Os procedimentos vinham das mestras das mestras de Thorbjorg, conquanto durante sua juventude e no auge de sua idade adulta o bruxo

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tivesse renegado os capuzes, preferindo sua basta cabeleira, que infelizmente para ele se fora... As gotas não caíram no mesmo dia em que o pedido, cantado com autoridade, foi feito aos deuses; porém na manhã seguinte nuvens carregadas chegaram. Baugi viu os espíritos dos elementos, vindos do leste e do oeste, se agitarem nos céus com um furor a cada minuto mais impetuoso. Os nativos, de peles escuras ou bronzeadas ou tostadas pelo sol, voltaram a pegar com alegria suas bacias e seus baldes. Contudo, as águas estrangeiras não demoraram a evaporar; as poças secaram novamente; e antes de se retirarem, os elementais nas nuvens advertiram os xamãs: “Há algo a mais nas profundezas; prestem bastante atenção.” Avisados, os dois mergulharam com seus corpos astrais na terra rachada, encontrando no interior desta um dragão. Era este o responsável por absorver toda a umidade dos arredores, alimentando-se sem que as pessoas percebessem até da vitalidade do sangue humano, que puxava por meio de seu olhar. Não à toa a mortalidade dos recém-nascidos, a despeito dos numerosos nascimentos, estar tão elevada; e onde a criatura se encontrava, a aparência era de um espaço rochoso, amplo e úmido, onde escorriam córregos subterrâneos e caíam gotículas das estalagmites. As nuvens convocadas por Baugi e Atla só haviam chegado porque eram magia; as naturais o dragão absorvia antes, por meio de sua respiração. Tratava-se de um monstro astuto e perigoso, com uma vontade poderosa que ignorava as distâncias. Seu corpo se assemelhava ao de uma serpente molenga, de escamas úmidas e brilhantes; não precisava se locomover fisicamente, seu trabalho mental era o bastante; suas asas membranosas não serviam para voar; seus olhos eram inteira e intensamente rubros. Media entre vinte e trinta metros e Atla conseguiu discernir algumas faces humanas

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em suas escamas: os rostos de suas vítimas diretas e indiretas. Assim que se dispuseram a enfrentá-lo, ele percebeu suas presenças e o chifre no centro de seu crânio e o espigão na ponta de sua cauda emitiram um brilho fugaz. Continuou sem se mover, e não iria fugir, quando seus oponentes voltaram a seus corpos físicos, firmando-se com seus cajados e clamando pelo auxílio dos elementais dos quatro cantos. Só que a terra começou a tremer; haviam mexido com um inimigo além de suas forças, que arrebentou o solo e impediu que círculos mágicos fossem formados. A terra os engoliu, e teria devorado toda a população dos arredores, após o seidmadr e a volva terminarem esmagados pelas rochas que se fecharam sobre ambos, se uma lança não tivesse se cravado bem entre os olhos da besta, cujo chifre se partiu na sequência do choque. Mesmo sem seus olhos serem atingidos de forma direta, a visão do dragão foi embaçando e este logo ficou cego. Iria se mover? Uma névoa se espalhava à sua volta, enquanto suas águas evaporavam. Quem estava provocando aquilo? Não podia ser obra dos dois bruxos, que tratara de eliminar. Ao perceber que toda a umidade o deixava, se agitou apavorado; sentiu suas narinas ressecarem; e os rostos desapareceram de suas escamas e se transferiram para a neblina ao redor, entre estes agora também os de Atla e Baugi, dirigidos por um poder superior. Manifestou-se a que lançara a haste letal, revestida por uma armadura cinza-prateada como esta, pousando devagar após algum tempo levitando sobre restos d'água, que evaporaram por completo assim que os pés chegaram; a capa em suas costas estava imóvel, apaziguada como seu semblante, sério e sereno; possuía um rosto levemente arredondado, os olhos incrivelmente azuis, os cabelos dourados lisos, os lábios grossos, o nariz arrebitado; seu elmo alado não ocultava sua origem: uma valquíria. Assim como os xamãs não haviam sido

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páreo para o réptil repugnante, este não era um adversário à altura da enviada de Odin, que sem lhe dirigir uma única palavra, estendendo adiante a mão direita, fez com que morresse seco. Após o terremoto que ocorrera, rapidamente detido, os habitantes da região se viram portanto agraciados com uma chuva extraordinária, fruto de toda a umidade que subira de volta, e que durou alguns dias. Não houve mais seca nos anos seguintes, ainda mais porque o povo passou a ser precavido e a não apenas consumir como guardar água nos meses de boa pluviosidade. Aquela área recuperou a saúde, alternando-se de forma previsível os períodos de estiagem e de chuva; Atla e Baugi seriam lembrados para sempre como benfeitores generosos que não faziam a mínima questão de reconhecimento, tanto que haviam desaparecido após cumprirem seu trabalho, suas histórias narradas e transformadas ao longo das gerações, servindo de bom exemplo às crianças. Atla que se viu repentinamente criança, tal qual de volta a um velho sonho, com a figura de seu irmão sorrindo pouco adiante. Só que quando ia tocá-lo, começando pelas pontas de seus dedos, ele se desvaneceu, sua imagem foi se desfazendo nevoenta, surgindo em seu lugar a valquíria. “Não tenha medo.”, sob estas palavras, a volva tornou a ser adulta. “Sou Mist, uma enviada do senhor dos deuses, Odin. Sua alma serve aos nossos propósitos.” “Uma valquíria? Já vi seu nome nos Eddas. Mist...Mas vocês não escolhem apenas guerreiros?” “Escolhemos os que têm espírito guerreiro. Você se enquadra nessa categoria, assim como seu preceptor.”, e veio vindo, destacando-se das brumas do cenário malformado, um rejuvenescido Baugi. Na verdade, não estava sozinho: como se

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fossem os dois olhos recém-abertos do rosto nebuloso de um gigante cinzento, chegavam o seidmadr e sua companheira Groa, que Atla não chegara a conhecer. “Quem diria! Agora posso apresentar vocês, as duas mulheres mais importantes da minha vida, uma à outra.”, disse o xamã. “Me trocou por uma mais nova e mais magra, isso era esperado.”, com acidez, sem sorrisos, a experiente volva manifestou seu bom humor. “Agora vocês têm a mesma idade. Atla, esta é Groa...” “Ah, então é você...É muito famosa, e Baugi me falou bastante a seu respeito.”, disse Atla. “Falou mal, aposto.” “Rejuvenesceu, mas está mais ranzinza do que nunca. Menos mal que não nos vimos enquanto esteve velha.”, brincou o bruxo. “Apesar que aparência não é nada, continua com muitos anos encorrugidos nas costas.” “Vocês já parecem bem. Eu ainda estou um pouco desorientada.”, confessou a bruxa menos experiente, olhando de soslaio para a silenciosa Mist, que se mantinha um pouco à parte mas sem sair de cena, ao passo que os novos einherjar se confraternizavam, com o reencontro entre mestre e discípula. “Você demorou mais tempo para voltar a si. Groa chegou em Asgard antes de nós dois, e foi quem me recepcionou.” “Isso quer dizer que você já esteve no Valhala! Mas quanto tempo transcorreu?” “Não faço a menor ideia. Lá é sempre dia e não precisamos dormir, bastando relaxar um pouco para recuperar a força. O que sei é que seu espírito sofreu mais danos do que o meu depois que fomos derrotados por aquele dragão, deve se lembrar dele, e permaneceu se recuperando até hoje, enquanto eu logo fiquei consciente. Quando Mist percebeu que despertaria, me avisou e nos trouxe para recebê-la, para que

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alguém familiar, não só no sentido de nos conhecermos, mas também no aspecto de nós três trilharmos a senda do seidr, a fizesse sentir segura e tornasse toda a situação mais palatável.” “Mas que lugar enevoado é este? Não deve ser Nifelheim. Não faz frio. É ameno” “É o local para onde trago almas feridas que tenho a intenção de recuperar, por saber o potencial que possuem.”, interveio a valquíria. “Trata-se do Altiplano das Brumas de Asgard. Nasci neste lugar, aprendendo a dominar as névoas da cura e as névoas da morte, as da ilusão e as da revelação.”, Atla olhou ao seu redor e notou outros indivíduos, homens e mulheres, adormecidos sentados, deitados ou de pé, espíritos em recuperação, envolvidos por brumas esverdeadas. Quando a xamã no entanto se aproximou de seu mestre e tentou lhe dar um abraço, tomou um susto ao atravessá-lo; Baugi sorriu, pois esperava o que ocorrera e aproveitava para brincar um pouco, enquanto a discípula seguiu perplexa. A valquíria explicou: “Os einherjar ganham novos corpos, tão físicos quanto os que possuíam na Terra, só que muito mais fortes e resistentes. Baugi e Groa já possuem novos corpos. Não se preocupe: você terá o seu.” Uma expressão confusa dominou o rosto da alma de Atla, que foi se dissipando, sua essência ascendendo com a precisão de um nevoeiro; Baugi sentiu gotas de orvalho em sua face; os lábios de Groa se ergueram suavemente por dois segundos, e tornaram a baixar. Mist e os einherjar partiram em um vento ansiado.

Brisa

Atrás do vento. Era onde se dizia que ficava Alisha, que não

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gostava de correr, mas na primavera passava o tempo olhando para as borboletas. Não que houvesse tanto verde; o vilarejo era tímido, acanhado: mas a menina sabia aproveitá-lo. Era diferente do pai, que suava cuidando da vaca, e da mãe, que plantava o que podia. Acabaram secando. A filha, no inverno, pegava a neve e a levava até a fogueira; gostava de vê-la derretendo. O vento passava; e Alisha, com seus olhos arregalados, via a poeira. Havia dias em que seus cachos pareciam enrolar mais. Uma tia sua costumava lhe puxar as orelhas quando a percebia alheia demais, tirando os pés da terra, parecendo sem objetivo, e sem pensar, “menina de cabeça de vento” (isso que não pensava mesmo); a pequena ouvia: e fugia. Seu pai às vezes tinha a impressão que o fundo dos seus olhos era azul e sua pupila branca e não o contrário. Ela apontava para o alto; e como era difícil um dia de sol brilhando no céu! O verão chegava e ia embora. Quando subia no murinho para olhar as formigas passando, balançava devagar. Mas só falava ali sozinha nos meses de folhas caídas, gritando uma porção de palavras que não existiam numa ocasião em que viu um corvo, única vez que ficou alterada. O pássaro preto foi embora logo. “Ela me vê.”, suas frases eram curtas; e comumente careciam de fundamentos na realidade. “Quem te vê, a sua mãe?”, perguntava a avó, enxergando apenas o óbvio até quando este era absurdo. “A minha mãe é muito curta. Quem me vê é uma moça arco-íris.”, com Alisha não se conseguia prolongar uma conversa, muito menos discutir. Seu pai começava a ficar preocupado com o seu futuro, porque a menina dava a impressão de não ter inteligência para nada. Além de sua mulher não ter lhe dado o varão desejado, que o ajudaria a carregar pesos e a caçar, dera-lhe uma criatura pequena e estranha, que provavelmente ninguém iria querer desposar.

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Contudo, surpreendeu-se um dia ao vê-la, toda calma, colocando os pratos na mesa, sem ninguém lhe pedir de nada, a mesa de jantar que na visão dela não terminava, entrava no ar, e para dentro do ar era para onde ia o vento. Como era muito diminuta, levava um banquinho de um lado para o outro e subia e descia deste a fim de realizar seu trabalho. Surpresos com a atitude e com o sossego com o qual cada gesto era executado, os pais não intervieram. Sujava pouco os pratos de barro e as tigelas de madeira, e as mãos de dedos finos, que condiziam com seu corpo magricela, ficavam sujas só nas pontas, descascando as carnes, arranhando as frutas. Naquele povoado pouca gente possuía facas, só se tinha sempre colher para a sopa, que era geralmente mais de água e pedra; tranquila, cada gole era um dedinho, e se esquentava. À noite, dizia que as estrelas haviam sumido quando era lua cheia; qualquer outra fase da lua era motivo para dizer que as estrelas estavam se mexendo. Sua mãe nem comentava nada. Mas chegaria a ter medo, assombrada, quando Alisha dissera que um filhote de vaca iria chegar para brincar com ela, não havendo nenhum bovino macho na aldeia, e pouco depois, questão de uma hora, apareceu um bezerro perdido, magro e faminto, porém ainda vivo. O pai afirmou que era coincidência. A avó que os deuses deviam gostar dela. A tia perguntou à irmã se por acaso Alisha não era na verdade filha de algum elfo passageiro. Só a menina que não se importou e seguiu. Um dia, parada, quebrou o silêncio que vinha sentindo e declarou que queria um cachorro. Não veio cachorro nenhum: só que chegou um lobo, do qual todos tiveram medo. O lobo que não teve medo de Alisha, e viraram amigos. Com uma certeza simples, ela punha as mãos nas orelhas dele e alisava

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sua cabeça. Um lobo perdido ou fugido de seu bando, que passou a ajudar o vilarejo, trazendo constantemente novas caças, como pássaros e roedores, para dividir com as pessoas, que não vinham achando nada na floresta. A menina que ia ficando mais longe; ouvindo o vento, montava no lobo, sumia da vista dos pais e demorava a voltar da floresta, isso quando seu amigo não ia caçar, só passear. Terminaram encontrando um cervo ferido, que seu lobo quis atacar. Deu-lhe entretanto uma boa bronca; aquilo não era coisa de se fazer com um animal tão bonito e ainda por cima machucado; deixou sua fera domada para trás. O veado a princípio pareceu receoso, mas não podia fugir, suas pernas estavam feridas, com um osso até parecendo quebrado. Alisha o acarinhou, disse-lhe palavras plenas, e prodigiosamente onde havia ferimentos graves o sangue foi coagulando, assim como o majestoso animal de súbito se levantou. Porém não fugiu. Voltou junto com a menina e o lobo para o vilarejo, suas pernas curadas. Alisha contou sua história e o povo não chegou a duvidar, afinal estavam acontecendo coisas incríveis em volta dela; só que não parecia haver como acreditar, até que a avó da criança adoeceu seriamente. “Eu vou.”, a menina só disse isso, próxima do leito da senhora, que no dia seguinte sarou. Um milagre! Estava provado que a pequena possuía mesmo o dom da cura. “Outras vidas.”, respondia quando lhe perguntavam como fazia. Ninguém entendia, mas aceitavam. “Não me arrependo de nada.”, completava. E não demorou para que novos prodígios acontecessem, como com um homem encontrado quase morto na floresta, dizendo que fora atacado por um urso, Alisha colocando suas mãos nele, que em pouco tempo já respirava bem e suas cicatrizes brilhavam. Um outro, fazia décadas que preso em sua cadeira, depois de

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receber um olhar seu se levantou e andou, cambaleando, quase chegando a cair, mas andou, e se firmaria com o passar dos dias; e mais um, quase cego, tornou a enxergar com clareza depois que ela lhe disse: “Houve.” Numa manhã, depois de ter chovido fraco à noite e durante toda a madrugada, viu um grande arco-íris; o maior e mais belo que já vira. Quando ficou diante deste, com todas as suas cores, nada mais importava. Seu coração continuando a bater de forma bem pausada, apontou e disse: “Subiu. Subi.”, e o pai, que estava perto, indagou: “Por que você não fala normal, como as outras crianças?”, ao que ela é claro não respondeu, perdendo-se na sequência em uma mentira triste. Não queria saber; queria viver. À noite, quis que chovesse de novo; mas só chorou. E nada de arco-íris no dia seguinte. Resolveu ir à lagoa próxima da aldeia. Gostava dali no verão e na primavera, quando havia flores e não estava tudo congelado. Ao ver seu reflexo, pensou em tocar a si mesma; mas não chegou a enfiar a mão na água. Fez isso dias depois; e não gostou muito: era água fria. Velhos dias se passaram, fazendo novas curas, conversando com vários animais; só que andava triste. E continuou indo à lagoa, acabando por enfiar não só os dedos como todo o resto do corpo ao ver, refletido junto com ela, o arco-íris daquela vez. “Eir ficará satisfeita. Eis a einherjar de cura que vínhamos procurando.”, Brunhild disse a Verdandi enquanto o corpo da menina se aprofundava. As duas, por trás dos ventos, estavam observando Alisha havia meses. A norna, sempre bastante discreta, replicou: “Está sendo sábia. A maioria no seu lugar só veria nela uma criança tonta, de mente torta. Você conseguiu enxergar o núcleo dela. O lugar de alguém como ela não é mesmo com

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Urd; essa menina já viveu vidas demais, e se lembra de todas ao modo dela. Salvará muitos guerreiros em momentos decisivos”, foi assim que, apesar do corpo afundar, a alma da menina se elevou, sentindo-se ascender, e não descer, e ficando face a face com a valquíria, que não era seu reflexo. “Estamos no mesmo plano.”, Brunhild a fitou com profundidade. “Moça arco-íris...”, atrás da donzela armada de Odin, a pequena já via a ponte Bifrost. O lobo e o cervo permaneceram juntos em silêncio até sua ama chegar em Asgard, de mãos dadas com a guerreira celestial.

Cinzas

O silêncio na corte de Windsor era apenas aparente, pois as mentes dos nobres estavam borbulhando entre exclamações e resmungos de revolta e indignação. Nunca algo parecido ocorrera: um mercenário acabava de ser condecorado como lorde protetor do reino; e, o pior, um amarelo, com o nome simples e curto de Jin. Chegara ao ocidente vestindo uma túnica negra envelhecida, com uma faixa vermelha na cintura, outros poucos trajes idênticos ou muito semelhantes em sua bagagem (que também continha alguns pacotinhos com ervas), e trazendo suas duas armas, uma taijijian, espada longa de ponta afiada e corte dos dois lados, pendurados no ponto extremo da empunhadura fios amarelos, e a segunda um dao, uma espécie de sabre, fios rubros ao término do punho. O bracelete de ouro com a figura gravada de um dragão serpentino lung estava encoberto pela manga da roupa. Mal alcançava um e setenta de altura, os cabelos lisos e

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compridos geralmente mantinha presos em um rabo de cavalo, e em Windsor fora a primeira vez que conseguira ser recebido por um monarca ocidental, com o objetivo de lhe falar sobre sua experiência militar nas distantes terras de Chan, ou do Catai, nome pelo qual sua nação era conhecida entre os brancos, e oferecer seus serviços. Em ocasiões anteriores, as reações haviam sido diversas, porém sempre negativas: vetado de sequer se aproximar do castelo real de Tardgaard; ao insistir um pouco mais com os guardas do palácio de Eldodr, tivera que entrar em confronto físico, derrotando dois homens e sendo forçado a escapar pelo rio saltando da ponte da cidade quando o número de adversários se tornou impossível de lidar; no reino montanhoso de Dispan, mal se aproximara e fora recebido com flechas. “Tenho mais idade do que aparento, majestade. Passei dos quarenta! Mas graças ao tai chi e a uma vida movimentada, meu corpo continua em plena forma. Nasci em uma família nobre, e cheguei a ser ministro da guerra em meu país, mas nunca me acomodei. Sei que só me recebeu porque a situação de Windsor está crítica, me informei a respeito antes de me apresentar, conversei com o povo, não tenho preconceitos e falo com qualquer tipo de pessoa, e posso lhe garantir que possuo experiência para lidar tanto com os bandidos que estão infestando suas estradas como para derrotar as tropas de Wessex.”, falava do reino rival. Não era no entanto o sotaque peculiar, com dificuldades nítidas na pronúncia de algumas palavras, que incomodava o rei Wilhelm; o sorriso sereno e constante, somado ao tom de voz macio, ainda não convencia o desconfiado soberano, de pele e cabelos muito claros, alto e robusto, que constantemente mexia em seu bigode; vez ou outra, os olhos do oriental iam parar no brasão atrás do trono e o wyvern representado, amarelo de garras agressivas em suas

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duas patas e espinhos na cauda que pareciam perfurar o fundo esbranquiçado, dava-lhe um pressentimento de vitória. “Se era tão bem sucedido em sua terra, por que veio se arriscar aqui? Não me diga que é por sede de aventuras, ou porque quer fazer fortuna: no primeiro caso, seria um tolo temerário que não merece a minha consideração; no segundo, estaria mentindo, pois um nobre não precisa de ouro estrangeiro. Responda-me.” “Suas palavras não me intimidam nem um pouco, majestade. Não menti, e nem sou um reles aventureiro. A verdade é que tudo ruiu depois que houve um golpe de estado, e um clã inimigo de minha família tomou o poder, impondo um regime autoritário. Nossos bens foram confiscados, meus irmãos executados, sobrinhos meus aprisionados, e me vi obrigado a fugir.” “Fugiu? Não pretendo receber covardes em meu reino. Já estou cheio deles por aqui.” “Não fugi para nunca mais retornar. Pretendo juntar recursos e companheiros no ocidente. Algum dia, voltarei e reconquistarei o meu lar.” “Estas palavras me agradam mais. Mas não se apresse em tomar conclusões: você me ajudando aqui, isso não quer dizer que vou ajudá-lo em sua terra.” “Estou ciente disso.” “Vou pagá-lo de acordo com os seus êxitos, se os tiver. Se não os tiver, será banido deste reino.” “Palavras justas, majestade.” “Mais justas, impossível. Sendo bem-sucedido aqui em Windsor, a recompensa virá através de ótimos pagamentos. Caso regresse ao Catai para libertá-lo dos seus inimigos, provavelmente não terá de mim homens, por mais grato que eu fique, mas poderá usar o meu ouro para contratar outros

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mercenários.” “Por que vossa majestade diz provavelmente?” “Porque nunca se sabe o futuro...”, e de fato ninguém teria esperado tanto sucesso por parte do oriental... Os bandoleiros andavam cada vez mais ousados, e um grupo destes chegou a investir de surpresa contra um acampamento recém-montado por jovens soldados, que a princípio entraram em panico; em sua primeira missão, Jin estava tomando chá verde, sem exibir a menor preocupação, quando um dos cavaleiros veio desesperado avisá-lo do ataque: “Estão nos atacando! Ao que parece, querem roubar nossas armas e armaduras!” “É mesmo?”, a demonstração de total indiferença, com um gole calmo, depois outro, primeiro deixou embasbacado o rapaz, na sequência vindo a indignação; pensou: “Esse bárbaro! Só está desse jeito porque não tem aqui nem mulher e nem filhos, não tem com o que se preocupar! Acho que vou matar esse mercenário imundo, e nos livramos de mais um comandante charlatão imposto!”, chegara até a levar a mão ao punho da espada para desembainhá-la, porém algo o deteve; olhou bem para Jin, que não o encarava, e raciocinou em seguida, tudo em questão de segundos: “Ele não tem medo de morrer. Tudo bem que não tenha família neste reino, mas com a própria vida deveria estar preocupado. Os bandidos podem matá-lo, eu posso matá-lo...Mas ele está tranquilo. Está seguro de si! Tem certeza de que na verdade NINGUÉM aqui pode matá-lo. Incrível...” “Pois o melhor guerreiro é o que vence a batalha antes de precisar desembainhar sua espada. Nesse caso, sua arma nunca será roubada.”, a voz do oriental tornou a se manifestar, quebrando o silêncio verbal e o ruído mental que tinham se estabelecido por instantes que haviam aparentado uma duração

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muito maior do que a real; e este se levantou vagarosamente, antes de terminar seu chá, apoiando a xícara na mesinha rústica próxima da cadeira onde estivera sentado. O soldado olhou para o resto de líquido balançando e sentiu como ele próprio balançava, enquanto o mercenário saía de sua tenda com toda a placidez e firmeza. Sua calma terminaria contagiando não só o jovem em questão como os demais, que passaram a observá-lo admirados com sua maneira de lutar, precisa, ágil e plástica, o pânico se esvaindo mais rapidamente do que o esperado e a vitória sendo obtida. Fora a primeira de muitas que se seguiram, conseguindo, após décadas de tentativas frustradas conduzidas por diferentes lideres militares nativos, expulsar as tropas de Wessex da estratégica fortaleza de Stingland e de seus arredores, na fronteira com um terceiro reino, cujo comércio com Windsor ficara bloqueado pelos inimigos. Uma área comercial importante acabava de ser portanto recuperada, e como se não bastasse Jin comandara a resistência de diversas cidades e vilarejos nos confins com o país inimigo; contando com o apoio dos populares, espalhara armadilhas e homens bem armados nos pontos menos previsíveis. Seu sucesso defensivo garantiu-lhe o título de lorde protetor, que jamais fora dado a um estrangeiro. E uma das mais indignadas ali era a caçula entre as duas princesas, que o fixava com ódio quando o tinha de costas, sorrindo-lhe dissimuladamente nos momentos frontais; a outra sequer o via, seus olhos de mar parado mais cravados no chão. Embora não fossem gêmeas, por volta de cinco anos a separá-las, fisicamente eram quase idênticas, ambas louras e claras, apreciando as pérolas e os trajes brancos. Contudo, a mais jovem, Gwynefar, pouco mais magra e menor, não se contentava sequer com o luxo, ao passo que Elaine, a mais

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velha, achava que tinha demais do que não necessitava e de menos do que queria. Amava sir Thomas, o noivo de sua irmã, por sinal o único amigo que Jin fizera na corte, um homem refinado, de cabelos castanhos lisos sempre perfeitamente penteados, o bigode bem aparado, longilíneo e elegante nos gestos, aficionado por poesia; naquele momento todo trajado de negro, com uma discreta gola rendada, de cor marrom, como era moda entre os nobres de Windsor, por vezes discutira com o oriental sobre códigos de honra na guerra, pois não admitia a vitória a qualquer custo e sob qualquer meio. “Com a minha experiência, aprendi que não há vitórias desonrosas ou sujas. Na guerra, ou se vence ou se morre. Se não ocorre a morte do corpo, em caso de derrota a consequência tende a ser o aprisionamento, e com isso a morte da alma. Sei que quero permanecer vivo.”, dissera-lhe o mercenário. “Ainda sou da opinião que uma morte honrada é preferível a uma vida vergonhosa, e que a verdadeira nobreza independe do nascimento. Não há meia-moral; ou se é honrado, ou se é imoral.” “Deve me considerar então uma fera cruel, sem qualquer freio.” “Sei reconhecer um homem nobre por trás das palavras, sir Jin.” “Pense como preferir. Seja como for, vou rebater os seus argumentos. Em primeiro lugar, toda honra na guerra é falsa e hipócrita. Atente, não estou dizendo que você é, porque acredita sinceramente no que alega, percebo isso, mas os valores nobres em si não são compatíveis com a guerra, que é sempre assassinato, às vezes até massacre, é um ser humano executando outro com o aval de terceiros. Nenhum poema épico em tons gloriosos pode mudar essa realidade. Em

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segundo lugar, nossa condição natural não é a vida, e sim a morte. Temos que valorizar ao máximo este presente que nos é oferecido, independentemente de outras pessoas nos acharem dignos ou indignos. Na realidade, não há morte honrada; há apenas morte, e em seguida escuridão. Não acredito no Valhala de vocês. Na minha visão, é apenas uma maneira de forçá-los a lutar até a morte, refreando os impulsos de covardia e deslealdade porque Odin não admitiria os torpes.” “Acha que depois da morte tudo está acabado?” “Na minha terra natal, dizem que apenas aqueles que fazem algo de relevante na vida, isso aos olhos do Céu, não do ponto de vista humano, o que é bastante obscuro, se tornam imortais, após ingerirem um elixir mágico. Mas acho que isso não passa de superstição, de qualquer forma. Tanto antes da vida como depois dela só há trevas; temos à nossa disposição um curto intervalo de luz.”, discussão que lembrara a Thomas um trecho de um poema que recitara a Elaine: “Tão logo nascemos já estamos morrendo. Sopram ventos de folhas secas. Flores encarnadas desabrocham ao poente. Um sol de inverno.”, como Gwynefar detestava poesia, lia para sua irmã nos jardins do castelo. A caçula inclusive já os vira juntos, mas nunca demonstrara qualquer ciúme, certa de que o cavaleiro era um homem incapaz de enganar. Uma camareira certa ocasião lhe sugerira que Elaine era apaixonada por seu noivo, e Gwynefar caíra na gargalhada e lhe replicara cheia de mofa: “Você é uma alcoviteira ridícula! A minha irmã pode até gostar dele, sua besta, mas não passa de uma pata choca, só serve pra ouvir aqueles versinhos detestáveis que ele tanto gosta. Nunca vai ser uma rival pra mim. Eu não tenho nenhuma rival!” Elaine, que das duas era a que mais sentia falta dos conselhos da falecida mãe, já fora casada, um matrimônio arranjado como todos os outros na corte de Windsor, mas que terminara

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precocemente com a morte de seu marido, um duque trinta anos mais velho, primo do rei, que sucumbira durante uma batalha contra tropas de Wessex, atingido por uma flecha no peito seguida de outra no pescoço. O pai agora procurava para a filha de volta a seu castelo um novo esposo, porém, apesar da constante aparição de pretendentes, não encontrara ainda algum que julgasse apropriado. Ela, por sua vez, às vezes se culpava por não sentir nada pela morte do marido, nem um mínimo de luto, pois até quando tentara amá-lo ele fora um homem distante e inclusive violento; nunca conversava, limitando-se a exigir comida e sexo: deitar-se com ele todas as noites era o pior dos suplícios. Profundamente diferente de Thomas, pelo qual era apaixonada desde os treze anos, mas o rei considerava que entre o marido e a mulher deveria existir uma diferença etária maior do que a que havia entre os dois, pelo menos cinco anos a mais em relação a esta...E Elaine nunca se declarara. Vivia solitária e melancólica, ao contrário da irmã, que nunca estava sozinha. Aparentemente meiga e doce com Thomas, só evidenciando seu tédio quando ele mencionava algo sobre poesia, de dia atormentava suas criadas, torturando-as ao pedir que fossem buscar nos vários cantos do castelo diferentes vestidos, espartilhos e joias, que provava e trocava constantemente; poucos notavam os olhares que recebia, nas horas em que circulava pelos corredores e jardins, de sir Bodor...Na realidade, apenas uma pessoa percebia o que existia entre os dois: Urdi, o bobo. Bodor não tinha origens nobres, seus pais biológicos desconhecidos, porém fora adotado por um conde e sua esposa, que, após anos tentando ter filhos sem sucesso, não resistiram ao bebê que fora deixado em sua porta, considerado um milagre, um presente dos deuses, provavelmente da grande Freya; entrementes, pelo fato de seus pais adotivos nunca terem

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ocultado a verdade, jamais fora totalmente aceito entre os fidalgos. Por mais que frequentasse a corte, sempre fora um “meio-nobre”, não se considerava uma existência plena, como se os deuses não tivessem definido seu papel no mundo, nem camponês, nem burgues e nem nobre, e por isso detestava tanto seus pais biológicos, que não conhecia mas que o tinham abandonado, como seus agora falecidos pais adotivos e, se existissem mesmo, os próprios deuses. Todavia, conquanto fitado com desconfiança e algum desprezo nos salões, era considerado o maior guerreiro de Windsor, a começar por suas dimensões físicas: dois metros de altura, as espaldas largas, os braços e as pernas maciços e possantes. Conhecido também como “cavaleiro negro” pela cor de sua armadura e de sua montaria, implacável tanto com seu machado de dois gumes como com sua espada de duas mãos, sem nunca ser visto sorrindo, pálido e com algumas rugas precoces, os cabelos pretos compridos contrastando com os olhos de um azul claríssimo, só estava começando a ver seu reinado no campo de batalha ameaçado com a chegada de Jin, com o qual desde o início antipatizara e que passaria odiar ao vê-lo nomeado lorde protetor, posição da qual ele, apesar de tudo um legítimo windsoriano e um soldado de força descomunal, não fora considerado digno. E daí que aquele bárbaro era um estrategista brilhante? Ao lhe chegar aos ouvidos que o oriental receberia tal encargo, deixou seu próprio quarto em pedaços, quebrou vasos e partiu ao meio uma mesa, só parando ao perceber a entrada da que o visitava quase todas as madrugadas. “Não se preocupe, meu querido. Vamos dar um jeito nisso.”, Gwynefar o acalmara, massageando-lhe as costas e o ego, deslizando por estas feito uma serpente lívida; muito pequena perto dele, ainda era considerada imaculada por seu pai, e só

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dormiria com Thomas após o casamento, porém já fora ardentemente preenchida diversas vezes por aquele gigante, que a fizera explodir em gozo e felicidade. Geralmente montava sobre ela e a submetia sem a menor dó, só evitando machucá-la, apenas na escuridão que antecedeu a nomeação de Jin precisando que ela o estimulasse. “Seu noivo também é culpado. Ele é muito tolerante com aquele bárbaro.”, sua voz era grave e rouca. “Do mesmo jeito que fiz o Thomas comer na minha mãozinha, vou furar os olhinhos puxados desse invasor. Mas vou precisar ser mais cuidadosa! Ele não é trouxa como o meu noivinho.” “Não me diga que pretende seduzi-lo...” “Está enciumado?” “Não tenho ciúmes do seu noivo. Mas não gosto de imaginar esse bárbaro tocando seu corpo.” “Está com medo que talvez eu troque de amante, não está? Seu bobinho...Com esse tamanho todo e tão inseguro!” “Você sabe que o que eu gostaria mesmo seria que fugíssemos daqui.” “Eu já te disse mil vezes que isso é ri-dí-cu-lo! Viver uma vida miserável com você sei lá onde? Nem pensar! Sou uma princesa, talvez uma futura rainha! Logo se vê que você vem de baixo.” “Você não ama ninguém. Você é fria.”, procurara conter sua raiva para não dizer coisas piores e não espancá-la, o que o levaria ao pior dos calabouços e depois de muitas torturas ao esquartejamento. Quando ela deixasse o quarto, permitiria que as lágrimas pelas humilhações escorressem e esmurraria a parede. “Vadia! Da próxima vez, arrombo essa vagabunda com tudo. Arrombo a princesinha e faço de idiota o rei e de corno o cavaleirosinho cheio de pompa e versinhos.”, pensou nas

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formas de sua vingança. “Hahahaha! Com você é bobo! É um bobo mesmo. Quem acredita em amor são os poetas e os babaquinhas que leem poesia. Eu gosto de você! Gosto do seu cheiro, da sua pele, dos seus beijos, do seu pau...Mas casar com você??? Casamento é coisa séria! Sir Bodor, sir Bodor...Você vai entender isso quando tiver uma doce esposa.” “Não vou me casar.” “É o que você pensa. Vai precisar de uma linda esposa. Mas do seu nível, não do meu. Entenda que amantes são livres; marido e mulher são instituições.” “E qual é o meu nível, pode me dizer? Na teoria, sou tão sir quanto seu noivo.” “Não uma princesa, disso pode ter certeza! Mas nada vai nos impedir, é óbvio, é claro, de continuarmos nos divertindo! Entendeu agora? Ou será que preciso soletrar?”, pela primeira vez chegou a pensar em dizer não a ela, em dispensá-la, desprezá-la; imaginou-a rastejando e pedindo perdão. Entretanto, ao deixar os sonhos e especular sobre a realidade, refletiu que ela simplesmente arrumaria outro amante, e talvez o desprezível oriental! O nojo que sentiu por Gwynefar acabou nem durando, logo estava com a princesa em seus braços, inebriado por seus beijos, por seu perfume, do lado de fora daqueles aposentos, ouvindo mais do que gemidos, somente o misterioso bobo.

O bufão não sabia cantar, mas era um excelente declamador, dono de uma voz hipnótica, que prendia a atenção da plateia. Além disso, conseguia impor sua dança, seus movimentos corporais dinâmicos e suas caretas, que em sua face pintada transmitiam diferentes máscaras, como se houvesse uma música de fundo, como que convencendo os espectadores da

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existência de uma pequena orquestra que acompanhava as imagens e sensações proporcionadas pelas narrativas. Não se limitava a fazer rir, por vezes trazendo histórias que incitavam o medo e a aflição, deixando todos ao seu redor em um silêncio horrível e incrivelmente tenso. Em seu traje xadrez repleto de penduricalhos prevaleciam o vermelho e o azul, sobre sua cabeça um multifacetado chapéu arlequinal, a apresentação da noite centrada na recitação do poema narrativo Hymirksonk, “a canção de Hymir”, da autoria de Goffren Sumbel, com base num conto tradicional, narrando como Thor, o deus das tempestades, fizera para conseguir o caldeirão do gigante Hymir para o banquete dos deuses. Windsor possuía uma literatura bastante rica, com diversas reelaborações de antigas lendas. A biblioteca do rei tinha inúmeras estantes repletas de livros, conquanto o monarca lesse muito pouco, bem menos do que seus secretários ou do que Thomas ou Elaine, que por sua vez preferia as declamações contidas de seu amado às efusões do bobo, talvez por motivos óbvios. “Há muito tempo, os deuses tinham acabado de vir da caçada ao cervo dos chifres de ouro e só faltava uma boa cerveja para o banquete que antecederia os rituais da Primavera. Balançaram seus amuletos e olharam no sangue do cervo sagrado, a ser sacrificado para Si Próprios, a fim de descobrirem onde poderia ser encontrada a bebida de melhor qualidade, a mais saborosa. Descobriram abundância nos caldeirões do gigante Aegir, que estava sentado em uma montanha, feliz como uma criança, logo abordado por Thor, que o encarou desafiadoramente e deu a ordem: 'queremos que prepare cerveja para nós, os deuses, com a mesma qualidade que a que estou vendo nestes caldeirões.' O jotun, aborrecido, redarguiu: 'fazemos esta cerveja apenas

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para nós mesmos, e para nosso próprio prazer.' O deus então ameaçou: 'se não nos atenderem, usarei meu martelo Mjolnir contra vocês.' Mas o gigante ainda não se convencera e respondeu: 'por que não pegam um pouco da cerveja que está aí disponível?' Ao que Thor replicou: 'queremos bebida fresca.', e a postura do marido de Sif irritava cada vez mais Aegir, que resolveu se vingar de alguma forma, pedindo que o levassem a Asgard, onde prepararia a cerveja, mas deixando claro que precisaria do maior de seus caldeirões para fazê-la para todos os deuses. Este estava guardado em uma caverna subterrânea, e Thor tentou levantá-lo do chão, mas não obteve sucesso. Foi pedida a ajuda a outros deuses, inclusive Tyr, e nada de se erguer o caldeirão. Quando estavam prestes a desistir, Odin lhes disse que vira um recipiente de idêntico tamanho mas consideravelmente mais leve em posse de Hymir, cujos domínios se achavam ao leste do Elivágar, um terrível rio venenoso. 'Você acha que nós conseguiremos esse caldeirão?', foi a pergunta do deus do trovão, ao que Odin respondeu: 'claro, meu amigo. Mas o trabalho de vocês precisará ser astucioso, conter um ardil, já que me parece que não pretendem lutar até a morte apenas por cerveja.', e Tyr e Thor partiram rumo àquelas terras hostis, onde primeiro deram de cara com a mãe de Hymir, uma velha giganta de novecentas cabeças, que apesar da aparência assustadora não era belicosa e ao vê-los chamou por outra jotun, esta de sobrancelhas alvas, toda em ouro, que perguntou o que desejavam. Ao saber que os dois deuses queriam o caldeirão de Hymir, do qual se revelou esposa, disse que seria muito difícil para seu marido cedê-lo. Adicionou: 'geralmente ele é grosseiro e mal-humorado com os forasteiros.' Levou-os à montanha onde viviam; Hymir ainda não estava.

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Quando o terrível gigante de coração frio chegou, após mais uma caçada, sua barba congelada, Thor e Tyr ficaram ainda mais apreensivos do que já estavam e se entreolharam. O cenário todo tilintava à sua passagem. 'Salve Hymir, o de pensamentos felizes!', disse Frilla, assim se chamava sua esposa, ao recebê-lo; e anunciou os dois visitantes: 'veja-os, estão sentados sob o frontão do salão. São dois grandes aesires.' Ao ouvir o nome dos aesires, o gigante se encheu de ódio e tudo o que havia por perto começou a se despedaçar e a rachar. Lembrou-se dos seus amigos jotuns que Thor já exterminara. Insultou e maldisse o arrogante Odin. Pilares despencaram. Thor e Tyr não tiveram escolha a não ser ficar de pé e avançar. O jotun contemplou seus inimigos, com especial ódio o esposo de Sif e tristeza das gigantas, que nunca deveria ter sido digno de pisar em seu recinto. Contudo, sua esposa o lembrou da lei da hospitalidade. Hymir cerrou os punhos, grunhiu, estalactites caíram; todavia, terminou por mandar seus servos anões pegarem três bois, que deveriam ter suas cabeças cortadas e ser assados para os forasteiros. Assim, o marido de Sif comeu dois bois inteiros, enquanto Tyr e Hymir dividiram o outro e ficaram de qualquer forma satisfeitos. Começaram a conversar, Frilla se retirou, e ainda nada de se falar sobre o caldeirão. Puseram-se a falar sobre caçadas e lutas contra monstros, como dragões, e o gigante anfitrião refletiu que talvez Thor não fosse tão ruim assim; talvez os outros jotuns que haviam sido mortos por ele o tinham provocado sem razão. Acabaram decidindo sair para pescar, sugestão do deus do trovão, que disse que iriam pescar porém não qualquer peixe, e sim a serpente-dragão Jormungand. Haviam vindo de tão longe

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não por qualquer razão; estavam sedentos por desafios. Hymir, enquanto Tyr encarava o outro deus com um semblante pasmo, respondeu que isso só seria possível se usassem como isca o imenso boi negro que ficava nas montanhas ao leste, porém sequer ele próprio conseguira abater este animal quando tentara. Partiram e, com considerável esforço, após escalarem aquelas alturas, juntos não só derrubaram o enorme animal como Thor lhe esmagou a cabeça com seu martelo. Cumprida esta etapa portanto, rumaram para a pescaria, e primeiro Hymir puxou duas baleias em seguida, sua isca sendo bois comuns. Tyr puxou outro enorme cetáceo. Já o esposo de Sif e matador de gigantes trouxe para cima a venenosa serpente-dragão graças à atração que o boi negro exercera, golpeando-lhe violentamente o alto da cabeça com seu Mjolnir. Nessa hora muitos monstros rugiram e cavernas ressoaram, a terra foi sacudida, isso até Jormungand ser jogada de volta ao oceano. O jotun não se mostrou satisfeito, pois perdera o precioso boi negro e o monstro não pudera ser mantido no barco; enquanto remavam no caminho de volta, não falou nada. Teria que se contentar com as baleias, e quando de volta à terra firme fez um desafio a Thor: 'Acho agora que eu que deveria ter puxado e tentado abater Jormungand.' 'Está duvidando da minha força?', o deus questionou. 'Para ser bem sincero, estou.', respondeu o gigante, desafiando então Thor a quebrar um cálice mágico que havia em sua residência. Uma vez de volta à morada de Hymir, o esposo de Sif tentou primeiro com as mãos, depois bateu o cálice contra as paredes; e nada. O jotun já começava a rir e a zombar do aesir, dizendo que já partira com facilidade cálices iguais com sua própria

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testa, sem perceber que dessa maneira dera a resposta ao rival: Thor quebrou o cálice na cabeça do gigante, que continuou inteira, mas este perdeu os sentidos. Era a oportunidade que tanto haviam aguardado para surpreender Hymir e pegar o caldeirão! Quando o estavam levando, ainda ficaram sem jeito ao verem a esposa do jotun, que porém lhes disse: 'Vocês perceberam que eu teria tentado impedi-los quando chegaram, e não quiseram lutar comigo, mas agora não vou fazer nada. Meu marido o provocou e duvidou do senhor, deus das tempestades, e nisso teve o que mereceu. Podem partir com o caldeirão.', que era bastante pesado, suas alças balançando ao ser carregado pelos deuses, mas mais leve do que o de Aegir. Ao acordar, Hymir ficou furioso, mas teve que reconhecer que agira errado e que fora tolo. Os deuses poderiam enfim tomar a cerveja preparada por Aegir!”, encerrada a recitação com muitos aplausos por todos o salão, o bobo se inclinou e agradeceu, deixando cair seu chapéu e ao se abaixar para recuperá-lo “escorregando” e despencando com uma cambalhota; ficou no chão por alguns segundos, batendo os dedos e fazendo caretas de desagrado: tudo teatro. Jin, distraído, mal viu alguém passar e colocar-lhe um bilhetinho num dos bolsos da estufada roupa de corte, sentindo apenas o contato de alguma mão; leu, ao abri-lo: “Encontre-me hoje ao cair da noite na fonte das ondinas. Uma admiradora.”, ainda que tivesse dificuldades para escrever com as runas windsorianas, compreendia facilmente textos curtos no alfabeto local. Olhou então à sua volta, porém com a discrição que precisava manter seria impossível localizar quem pretendia; a misteriosa admiradora já se fora ou se mesclara aos demais presentes. Quem poderia ser? Se fosse mesmo verdade, não alguma brincadeira de mau gosto, tinha quase certeza de que

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não se tratava de uma nobre, afinal as orgulhosas windsorianas mal o olhavam...Apesar que surpresas sempre ocorrem, e talvez sua donzela não quisesse demonstrar o interesse que nutria por um bárbaro em público. Mas se era assim, para manter um romance proibido, Jin certamente não iria querer nada; e se não fosse uma donzela e sim uma senhora casada? Nunca iria arriscar seu posto, o sucesso que alcançara, para sanar as carências emocionais e sexuais que certamente vinha sentindo, mas que continuaria a controlar por quanto tempo fosse necessário. Ainda que tivesse se tornado o lorde protetor do reino, isso não lhe dava um status real de nobre; o título era formal e militar, pois não possuía uma família em Windsor. Sequer era um homem branco! Refletiu que se a sua admiradora fosse alguma nobre certamente a rechaçaria, da forma mais polida e educada, afinal se não se apresentara, passando um bilhetinho, era porque desejava algo oculto, sorrateiro, o que ele não queria de forma nenhuma, estivesse casada ou não, porque se não estivesse logo teria algum noivo arranjado pela família. Nem pensar em ser amante, por isso torceu para que se tratasse de uma “mera” serviçal, que na circunstância do salão evidentemente não poderia se manifestar, mas que provavelmente lhe daria num futuro próximo carinho e atenção sem proibições e constrangimentos. A fonte das ondinas, uma das tantas nos jardins do castelo, tinha esse nome em razão da maior parte de suas esculturas, que representavam estes espíritos da natureza, afora uma menor parcela de representações de animais marinhos; ficou até um pouco aliviado quando viu quem o esperava: não era mesmo uma nobre; tratava-se de uma das criadas de Gwynefar, lembrando-se na hora que nos últimos dias recebera dela alguns olhares interessados; a jovem enrubescia e virava o

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rosto quando ele se voltava para ela, e só às vezes trocavam sorrisos curtos. “Olá...Então foi você que colocou esse bilhetinho no meu bolso?”, aproximou-se com uma expressão afável; procuraria ser o mais cuidadoso possível. “Não...Na verdade, foi uma amiga minha. Mas fui eu quem escrevi.”, esforçando-se para não gaguejar, dava mostras de ser extremamente tímida. Era uma jovem muito graciosa, de grandes olhos castanhos, o rosto com algumas sardas; seus cabelos loiros estavam em parte encobertos pelo lencinho branco que usava. Sentada à beira da fonte, movia sem parar as mãos sobre os joelhos quase grudados.”Espero que o senhor não tenha ficado aborrecido.” “Não, claro que não! Fiquei é lisonjeado com o convite. Sabe que há muito tempo que não tenho uma conversa solta com alguma moça? Tudo bem que o meu sotaque deve atrapalhar, não falo ainda perfeitamente o idioma de vocês, tenho algumas dificuldades, mas sinto falta de uma boa e doce companhia.” “O senhor fala bem melhor do que pensa.” “Será?” “As moças não te olham e não se aproximam por preconceito. Mas eu gosto muito do senhor. Ai, me desculpa falar assim!” “Não precisa se desculpar por nada.” “O senhor é diferente dos outros. Não sei bem como explicar, mas não é como esses nobres de nariz empinado, e nem é atrevido como os criados ou os homens do burgo.” “Como você se chama?”, e ela tossiu curto e para dentro, como que sem querer ser notada, antes de responder: “Victoria.” “Um nome inspirador.”, se encontrariam mais algumas vezes na fonte, até ele retirar seu lenço, acariciar seus cabelos dourados e ocorrer o primeiro beijo, bastante desajeitado,

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porque a moça ainda parecia tímida e demonstrava não ser muito experiente; os que vieram na sequência, no entanto, foram bem mais ardentes e decididos, o oriental assumindo as rédeas, tocando seu corpo com vigor, e aos poucos ela enfim se soltando. O lorde protetor pensou que seria o início de um longo e tórrido romance, ainda mais que Victoria lhe disse para que fosse até seu quarto numa certa madrugada: “Vou estar esperando por você, meu querido. A porta estará aberta.” Louco de paixão, não pensou duas vezes e dirigiu-se ao encontro na hora combinada. Entrou devagar, chamando-a pelo nome; a porta envelhecida e maltratada, diferente das dos aposentos dos nobres, rangeu; estava quase que totalmente escuro, a não ser por uma suave claridade lunar que entrava pela janela. Notando o volume do corpo de sua amada entre as cobertas, primeiro sentou-se na cama e logo depois começou a acariciar e beijar seus cabelos e seu pescoço, dizendo-lhe palavras carinhosas, tomando um susto quando de repente um grito agudo foi liberado, seguido de apavorantes palavras berradas que não partiam da boca de Victoria: “Socorro! Guardas! Me ajudem! Esse louco me arrastou até aqui e está querendo me violentar!”, era Gwynefar, que, para o espanto de Jin, saiu correndo da cama, seu traje, um de seus luxuosos vestidos, rasgado na parte de cima, um estrago plausível considerando-se a força de um homem que a quisesse possuir de qualquer forma. “Não...Só pode ter sido um terrível mal-entendido! Alteza!”, demorou demais para voltar a si e partir em seu encalço; quando se deu conta, ao sair do quarto da criada, estava cercado por guardas armados com lanças, espadas e alabardas. “Ele é indigno de ser o lorde protetor deste reino! Bastou ter um pouco mais de poder e quis me ter para ele! Um ato digno de um bárbaro, que é o que ele é! Bem que eu vinha notando

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que fazia tempo que esse monstro me olhava com desejo...Isso que o meu noivo lhe deu toda a confiança e o tratou como se fosse um de nós!”, atordoado com o que estava acontecendo, as palavras da princesa soando-lhe absurdas, ia tentar argumentar algo, porém um dos soldados lhe deu uma pancada por trás, outro colocou um dos pés calçados em metal nas suas costas e um terceiro ameaçou-lhe a cabeça com sua lança. O que parecia ser o comandante do grupo se pronunciou: “Acalmem-se! Ainda não podemos executá-lo. É preciso que o rei e sir Thomas saibam o que aconteceu, e então ele será levado a julgamento.” “É mesmo, capitão. Ele ainda precisa sofrer muito por ter tentado deflorar a nossa princesa e manchar a honra de Windsor. Um bárbaro, que recebemos como um irmão de armas, que inclusive liderou tropas nossas, e que foi condecorado por sua majestade!”, esbravejou outro soldado. “No fim das contas não passava de um mercenário. Mesmo que se tratasse de um gênio militar, o rei não devia ter confiado tanto nele.”, mais um guarda falou, logo recriminado por Gwynefar: “Cuidado com o que diz, soldado! O meu pai, ao confiar nesse sujeito, demonstrou toda a sua nobreza. Como ousa contestar uma decisão real?” “Perdão, alteza! Não pensei em contestar nada, somente expressei minha revolta para com esse indivíduo, que por pouco não fere o orgulho de nosso reino, que é a senhorita!” “Hmpf! Preste mais atenção às suas palavras! Dessa vez vou deixar passar, mas cuidado na próxima.” “Obrigado, vossa alteza...”, e o homem se inclinou um pouco a contragosto ante a mimada princesa. Pouco depois, encontraram Victoria amarrada e amordaçada em um canto de seu próprio quarto; a criada afirmou que Jin a

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golpeara de surpresa e a prendera antes de trazer Gwynefar, dizendo-lhe com todo o cinismo que logo arrastaria até ali a “princesinha”, para que esta provasse do leito e do leite de um plebeu. Uma terminologia grosseira, que fez o capitão da guarda do andar virar a cara. O grande erro do brilhante estrategista militar teria sido não saber controlar sua luxúria, cometendo o deslize de destampar a boca da princesa devido à ânsia de beijá-la. Ela acabara conseguindo se desvencilhar de seus braços e escapar. Outras versões sobre o que ocorrera surgiriam com o tempo. “Não acredito nisso, é impossível. Jin não faria isso. Não teria nenhum motivo! Além de ser um homem nobre, o conheço bem, não haveria a menor lógica em tentar estuprar uma princesa do reino! De qualquer forma ela o denunciaria, seria a palavra dela contra a dele, e ele cairia em desgraça! Isso não faz qualquer sentido.”, foram as palavras de Thomas ao receber de um dos soldados as notícias da detenção do ex-lorde protetor. “Ele é um bárbaro, meu senhor. Não é um de nós. É pouco mais do que um animal. E acontece de animais se mostrarem dóceis durante toda uma vida e subitamente terem um acesso de ira, atacando seus próprios donos. Deve ter acontecido isso quanto à sua luxúria, pois fazia tempo que não tinha em seus braços nenhuma mulher.” “Jin é um ser humano, não um animal.”, porém as opiniões de Thomas mudariam um pouco ao ver Gwynefar, que ao aparecer correu para chorar em seu peito, ainda com o vestido parcialmente rasgado e, o cavaleiro notou, algumas marcas de arranhões. “Pelos deuses...” “Você viu agora, Thomas, o que esse monstro me fez?? Não sei o que deu nele, mas esse demônio me atacou! Não consigo me esquecer de como foi, eu estava indo para o meu quarto, e o

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vi me encarando com os olhos cheios de ânsia carnal, eram vermelhos, como os de um servo de Hel! Fiquei paralisada, e não consegui reagir quando me agarrou e me carregou até o quarto da minha criada.” “Calma, minha querida...Calma. Tente ficar tranquila.”, e ao mesmo tempo que a consolava e a acariciava, pensou: “Será que algum demônio entrou no corpo de Jin? Ou tomou sua forma? Como isso pode ter acontecido???”, e o sentimento de um amigo ter tentado violentar a sua noiva principiou a corroê-lo, pela primeira vez o ódio lhe subindo ao rosto quando o reviu, jogado em uma das celas sujas nas masmorras do castelo, sem camisa, o torso repleto de hematomas pelas pancadas que recebera dos guardas já por ordem do rei Wilhelm, seu rosto inchado e contorcido pela dor. “Thomas...” “Jin...É imperdoável o que você fez. O que passou na sua cabeça quando decidiu fazer aquilo??” “Sou inocente.” “Como é?? Diz que é inocente??? Como tem coragem de dizer isso agora??? Gwynefar me contou tudo o que aconteceu, e sei que ela nunca mentiria para mim!” “Não sei por que, não consigo entender o que está acontecendo, mas ela está mentindo.” “Cale essa boca imunda! Você que é um falso, dissimulado, mentiroso!”, não resistiu, abriu a porta de barras metálicas da cela e entrou, sendo o seguinte a espancar o oriental. A dor foi intensa, os socos dados com as mãos revestidas por luvas de armadura. “Ela mente...” “Maldito! Por acaso andou se envolvendo em rituais de magia? É a única coisa que pode explicar o que aconteceu, você deve ter se descuidado e sido possuído por algum

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demônio!” “Não sei do que você está falando...As suas palavras estão confusas agora, parece que o windsoriano está cada vez mais estranho pra mim. Mas eu saliento: ela está mentindo, por algum motivo...”, e enquanto o cavaleiro surrava o desafortunado mercenário, Gwynefar celebrava seu triunfo com Bodor: “Tudo saiu conforme eu planejei! Hoje não podemos ficar muito juntos, logo o meu noivinho vai aparecer atrás de mim, fora o meu pai, mas não resisti...Precisava comemorar um pouco junto com você. Você gostou da forma como aconteceu, não foi? Deve ter adorado! Afinal não precisei seduzir aquele bárbaro. Apesar dele ser até bonitinho, com aqueles olhinhos puxados, teria sido perigoso demais. Em compensação, a Victoria fez um ótimo trabalho!” “Mas será que as joias que você deu vão ser suficientes pra manter ela calada?” “Acha que não pensei nisso, seu bobinho?” “Como assim?” “Mais cedo ou mais tarde, ela me chantagearia. Mas não quero preocupações desnecessárias, e ainda por cima vou recuperar as joias que dei pra ela!” “De que jeito?” “Não seja lento, Bodor! Ou esta se fazendo de bobo?” “Acho que estou começando a entender.” “Muito bom, é assim que tem que ser...”, alguns dias depois, Victoria desapareceu. Não foi mais encontrada em canto nenhum do castelo. Na verdade, seu corpo, ou melhor, suas cinzas, o que restara depois de ser executada e ter sua carne queimada por Bodor em pessoa, o único em quem Gwynefar confiava para um trabalho como aquele, já haviam sido jogadas num dos rios próximos.

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Julgado, Jin foi condenado à decapitação em praça pública. Parecia claro que chegara o seu fim, Thomas ainda indo chicoteá-lo e espancá-lo algumas vezes, exigindo que enquanto estivesse presente o amordaçassem. “Nunca mais vou querer ouvir a voz desse miserável.”, disse aos guardas. Antecedendo a pena capital, deveria permanecer preso por um mês, mantido nas piores condições; e uma semana antes do dia marcado para que fosse decapitado, o rei emitiu a ordem de castração. Contudo, escaparia a tempo, e não é claro por suas próprias forças...

Àquela altura Jin não sabia mais o que pensar. Teria se suicidado se tivesse tido uma espada à disposição. Se fora para morrer daquela forma, por que viera ao ocidente? Melhor teria sido morrer em sua terra natal, por uma causa de certo modo nobre, lutando contra os inimigos de sua família, do que condenado por um crime que não cometera. Ou cometera? Entre sonhos e pesadelos, sem conseguir mais distinguir com nitidez o paraíso do inferno, chegou a se questionar se realmente não tentara violentar a princesa. Sujo, rastejando no chão, se sentiu tomado por um desejo violento, abjeto; e, em seu ressentimento, perfurava e rasgava o peito de Thomas com uma lâmina aguda e serrilhada que não era a sua. Seria castrado, e na noite anterior à manhã que marcaria a perda de sua virilidade, seu fim definitivo se aproximando pouco a pouco, o processo que o antecedia lento e sinistro sob a sua perspectiva, percebeu-se mergulhar com clareza no ambíguo mundo onírico; sabia não estar mais em vigília, porém mantinha a consciência, caminhando por uma planície onde o solo começava a se desmontar em cubos de terra. Com dificuldades para se equilibrar, repentinamente alçou um vôo sem asas, nisso uma absoluta sensação de liberdade acariciando

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e expandindo seu peito, até a mão cinzenta e apodrecida, antes incógnita, de um gigante ainda invisível o puxar para baixo. Despencou em uma selva de dentes, onde foi trucidado por monstros pavorosos, famintos, ávidos de carne e sangue, que em condições normais nunca teria tido condições de imaginar. Quando o massacre cessou, os dentes foram se paralisando e se encravando na solidez; os rostos horrendos se esmagaram e se tornaram paredes. Estava de volta à sua cela, só que para a sua surpresa com a porta aberta. Só podia ser mesmo um devaneio. “Vamos rápido. Não temos muito tempo.”, chegou a levar um susto ao ouvir a voz de alguém que não vira; e esta pessoa lhe estendeu a mão. Homem? Mulher? Estava caído, e nas condições em que se achava só via uma mão humana diante de si. Não era a mão gigantesca e pútrida do monstro oculto, ao menos. Sem entender bem, agarrou-a, depois do toque sentindo que era masculina, e só então enxergou seu salvador: tinha quase certeza que jamais o vira; quase porque algo nos traços de sua face era familiar. Provavelmente, no entanto, isso se devia ao fato de ser um rosto bastante comum em Windsor, alongado, os lábios finos, os cabelos loiros curtos; de mais diferenciado apenas suas covinhas. Trajava uma túnica e uma calça grossas, marrons, com um capuz jogado para trás. Como estava sendo ajudado, não importava por quem e por que; deixou as perguntas para outra hora e saíram, gradativamente a noção de não se tratar de um sonho, e sim da realidade, ficando clara, embora a passagem de um plano para o outro tivesse se dado de forma imperceptível, a consciência se mantendo enquanto deslizava. “Vamos por aqui!”, foram por passagens inteiramente desconhecidas, todos os guardas pelo caminho adormecidos, até não haver mais nenhum; o desconhecido o puxava, conduzindo-o por escadarias e

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corredores secretos, obscuros; não enxergava quase nada, havia poucas tochas pelo caminho, não conseguindo entender como seu guia conseguia avançar com tamanha segurança. “Mas tanto não estou mais sonhando que essa escuridão está me dando sono...”, refletiu, e se tratava de um abatimento do corpo e das pálpebras que foi ficando cada vez mais difícil de conter, despertando porém súbita e completamente quando o outro lhe disse: “Pronto. Chegamos.”, claridade repentina: as várias tochas ao redor se acenderam, ofuscando a vista do fugitivo, e estavam agora diante de uma porta de madeira cravejada de pedras preciosas esculpidas com runas que não eram windsorianas; o desconhecido salvador disse algumas palavras numa língua misteriosa e esta se abriu. Jin o encarou com perplexidade. “Não se assuste. Sou um amigo, embora quase não nos conheçamos.” “Nunca vi o senhor em toda a minha vida.” “Não deveria ter tanta certeza disso. Mas vamos entrando! Agora está a salvo.”, deparou-se com um quarto bagunçado mas espaçoso, iluminado de forma discreta por pequenas lâmpadas a óleo; notou uma mesa com livros abertos e fechados, uma estante com outros, mais alguns caídos no chão, sobressaindo-se capas e páginas com inscrições e figuras mágicas como cruzes e pentáculos. Contudo, o que mais lhe chamou a atenção foi uma roupa, entre várias espalhadas pelo lugar, esta porém bem distinta por seu aspecto chamativo, multicolorida, enquanto as demais eram negras e marrons: um traje de bobo da corte que já vira diversas vezes. Após fitá-la fixamente, voltou-se para o mago, que sorriu de forma mansa e amistosa, e não tirou mais os olhos de seu rosto por um tempo considerável. “É como está pensando. Sou Urdi, o bobo.”, deixou de lado o sorriso depois destas palavras. “Só que sem a maquiagem que costumo usar lá em cima.”

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“Então você é um feiticeiro.” “Os feiticeiros conhecem os efeitos, porém não se empenham no estudo das causas. Sou alguém que investiga as leis da natureza sutil. Sou um mago.” “Mago ou feiticeiro, tanto faz. Por que me salvou? O que está pretendendo?” “Estou preocupado com o futuro de Windsor. Gwynefar é ardilosa e cruel, não pode se tornar rainha. Em breve, ela não hesitará em matar a própria irmã para se tornar a única herdeira do trono.” “Mas por que me salvou?” “Não consegue deduzir? Preciso que alguém me ajude a travar essa batalha. E, além disso, minha moral como mago não poderia permitir que um inocente fosse executado.” “Perdão por qualquer coisa, é que ainda estou um bocado atordoado. Mas agora começo a me lembrar...Há algum tempo, ouvi comentários sobre prisioneiros que vinham desaparecendo misteriosamente. Então era você?” “Sempre que possuo comprovações que uma detenção foi injusta, trato de libertar o pobre enclausurado; e depois o auxilio a fugir para bem longe. Mas o seu caso é diferente: não é um pobre coitado, e peço para que me ajude a enfrentar Gwynefar. Precisamos desmascará-la.” “Matá-la imagino que seria fácil para você.” “Mas não é dessa maneira que ajo. E ela precisa viver e sofrer para aprender com seus próprios erros. Deverá sentir na pele a dor que inflige e infligiu aos outros. Só assim poderá quem sabe escapar do inferno.” “Pelo que parece, quer salvar a alma dela junto com o reino.” “Assumi essa missão como parte de meu processo iniciático. Quanto mais almas um mago livra das garras de Hel, mais é visto com bons olhos pelos deuses.”

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“Entendo. Só que não vai ser uma tarefa fácil. Não sei se vou poder realmente ajudar.” “Vai sim. E mais do que imagina.” “Estou pensando aqui...Ela tramou contra mim, me tirou do caminho, da forma mais sórdida possível. Usou outra pessoa pra me envolver, e me atraiu pra armadilha que tinha armado. Pra ser sincero, a minha vontade maior é de cortar a garganta dela por tudo o que me fez passar. Também não perdoo a...Victoria.” “Quanto à criada, já está morta.” “O quê??” “Gwynefar pediu ao seu amante para que a assassinasse, a fim de silenciá-la com toda a segurança.” “Amante?? Mas que amante??” “Thomas nem imagina, mas está sendo enganado por ela com sir Bodor.” “Que desgraçada! Mas, pensando bem, até que aquele idiota merece.” “Não se deixe cegar pelo ressentimento. Como você agiria se sua mulher amada aparecesse dizendo que um amigo seu a violentou? Em quem acreditaria?” “Sei que na posição em que estou é fácil dizer, mas procuraria averiguar melhor as informações.” “Thomas não teria jamais tempo para averiguar, sob a pressão da noiva, que é uma das princesas, e do sogro, que é o próprio rei! Procure entender isso. Além do que, alguns indivíduos são mais suscetíveis ao aprisionamento da paixão e não devemos condená-los e sim compreendê-los e buscar libertá-los. Retirar alguém de uma prisão física, como foi no seu caso, é mais fácil do que livrar o indivíduo de um aprisionamento emocional. Preciso de você justamente para abrir os olhos de Thomas; pois, sem o apoio dele, será muito difícil, para não dizer

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impossível, desmascará-la.” “Ele me odeia agora, e não vai querer saber de me ouvir.” “Isso veremos.” “Urdi, não tenho a sua formação. Já aviso que é bom me vigiar de perto, ou vou estrangular aquela vadia disfarçada de princesa. Já conheci prostitutas mais nobres.” “Nasci aqui em Windsor, mas viajei muito. Estive até em seu país. Mas precisava retornar à minha terra natal para salvá-la da perdição, que vislumbrei primeiramente em alguns sonhos que tive, antes de conhecer Gwynefar de perto, e que me pareceram premonitórios. Aprendi, em meu caminho, a interpretar o simbolismo onírico, e magos são cosmopolitas, porém como alguém pode pensar em purificar o mundo se não consegue contribuir para a limpeza de seu próprio berço? Algum dia, se tudo der certo, você também voltará à sua terra para purificá-la; para isso, contudo, é melhor que não entre no caminho da vingança; se entrar nele, seu destino irá se distorcer e não poderei ajudá-lo a escapar de uma nova prisão, desta vez por um crime real.” “Como você chegou à corte?” “Nasci muito pobre, mas graças ao mestre que tive não morri na miséria. Ao longo da vida, fiz vários cursos de artes cênicas. E, pouco antes de você chegar, venci um concurso para ser o bufão do rei.” “Compreendo. Mas acho que vou precisar parar e pensar um pouco antes de começarmos a agir. Ainda preciso digerir tudo o que aconteceu.” “Digerir? Você deve estar é morto de fome! Emagreceu muito desde a última vez que o vi. Mas nas condições em que se encontrava na cela, isso era de se esperar.” “Admito, e peço desculpas se ouviu o meu estômago roncar.” “Claro que ouvi.”

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“E nem ofereceu nada?”, brincou. “Vou subir e pegar alguma coisa. Aqui só tenho pão velho.” “Pra começar, não vai nada mal! Já está de ótimo tamanho!” “Gostaria de oferecer algo melhor.” “Não precisa agora! Você é sério...” “O bobo é só um personagem.” “Bem que dizem que os palhaços costumam ser os mais tristes...” “O que me surpreende é que já me parece bem emocionalmente, de bom humor, depois de tudo o que enfrentou.” “Não sei se estou exatamente bem, mas um pouco feliz preciso ficar, afinal estou vivo! Escapei de uma execução, apesar de não saber se de forma definitiva.” “Isso vai depender de nós.”

Nomeado novo lorde protetor, Thomas enfrentava um período difícil. A confiança de muitos soldados dava mostras de ter decaído com a ruína de Jin e alternavam-se vitórias, derrotas e retiradas nas batalhas contra Wessex. Não querendo nem ouvir falar no nome do oriental, mandara punir dois homens que o haviam citado, escutando-os dizer que o mercenário fazia falta do ponto de vista bélico. Obrigara-os a realizar em dobro a carga de exercícios físicos diária. Apenas com Gwynefar que as coisas pareciam ir às mil maravilhas. Na intimidade, ela o fazia muito feliz, amorosa, boa ouvinte, e sempre pronta para lhe dar conselhos e esperanças. Por mais que sentisse desejo por ela, não conseguia compreender como um homem podia não controlar seus instintos mais baixos, deixando-se levar pela carne feito um animal selvagem; estava certo, ainda mais depois da inesperada fuga, que Jin era um desses terríveis e abomináveis feiticeiros

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do oriente. Confiara nele! E em troca recebera a pior traição que um amigo pode cometer, cobiçando e agredindo a mulher do outro, e ainda por cima a criatura mais pura que ele jamais conhecera. Nenhuma donzela era tão alva e doce quanto Gwynefar! Respeitava-a mais do que a qualquer outra pessoa, e por isso aguardaria o dia do casamento para consumar seu amor. Que fosse o momento mais sublime! Enquanto isso, os beijos mais tenros bastavam. Jin, em contraste, era o mais impuro de todos e devia ser o mesmo feiticeiro que vinha fazendo desaparecer outros prisioneiros. Provavelmente para usá-los depois em experiências assustadoras. Sua imaginação ia dando voltas por recantos obscuros, seu ódio persistia temperado por um certo medo, o temor de que o bruxo retornasse, quando numa manhã tímida e um pouco insossa recebeu um inesperado convite do bufão para que o acompanhasse até a floresta. “Mas para quê?” “Tenho algo muito importante para lhe mostrar, sir Thomas.” “Você parece sério hoje. Espero que não seja alguma troça infame.” “Garanto-lhe que não. É algo que diz respeito inclusive à princesa, à sua noiva.” “Que não esteja realmente brincando, Urdi. Se zombar dela, dependendo da brincadeira, se for ofensiva, a punição que irá receber será severa.” “Estou pronto para as consequências.”, e assim, mesmo estranhando a situação, o cavaleiro foi com o bobo, conduzido para dentro de uma caverna. “Até quando vamos andar?” “Estamos quase chegando”, quando alcançaram o lugar que Urdi pretendia, isso foi declarado: “É aqui.”, na parede frontal daquela seção da gruta, havia um grande espelho.

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“O que significa isso?”, ia dizer algo mais; entretanto, ficou parado e sua língua pareceu congelar ao ver Jin refletido no vidro. O oriental aparecera às suas costas. “Você...”, demorou para tornar a falar, ainda assim falando antes dos outros dois. “Sim, Thomas. Sou eu, Jin.” “Como teve o cinismo de me chamar aqui?? E vocês dois estão mancomunados? Seu bobo maldito...Ou por acaso você é uma ilusão, ou algum demônio disfarçado?”, puxou o bufão pela gola; logo porém o soltou. A fúria e as palavras altivas estavam não só acompanhadas como dominadas pelo medo; em vão procurava conter a tremedeira no corpo e na voz. “Fique calmo, Thomas. Nós não temos más intenções. E Urdi nunca as teve...” “Vou calar essa sua boca imunda pra sempre, mesmo que me custe a vida!”, desembainhou sua espada. “O espelho!”, entrementes, voltou sua atenção para o espelho logo que o bobo exclamou; e seu pescoço ficou travado, idem na sequência todo o resto de seu corpo, forçado por uma irresistível atração a não tirar mais os olhos daquele vidro. Não demorariam a surgir imagens, a princípio embaçadas e depois nítidas, das quais não pôde se separar mais; entrou num estado alterado no qual não enxergava nada mais à sua volta, esquecendo-se por completo de Urdi e Jin. “Ele vai apanhar muito.”, comentou o oriental. “Estou com pena dele.” “Não tenha pena. Nenhum ser humano é tão miserável a ponto de inspirar pena em seus semelhantes. Ele é um guerreiro, e conseguirá se reerguer.”, disse o mago, ao passo que Thomas ia vendo cenas, e ouvindo as conversas, do envolvimento entre sir Bodor e sua noiva. Começou a suar frio, os olhos vidrados. “Será que não está na hora de parar?”

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“Já disse para não ter pena. Mas é mesmo o suficiente.”, estalou os dedos da mão direita, e o cavaleiro voltou. “O que significou isso?...O que vocês estão fazendo comigo? Por quê?? Que trama é essa?? Que mal lhes fiz?...”, suas mãos amoleceram tanto que deixou cair sua espada. “Somos seus amigos. E queremos o seu bem, e o bem do reino.” “Não acredito em nada do que me fizeram ver. Vocês são só feiticeiros repugnantes! Sabem manipular ilusões, e estão mexendo com o meu maior medo para destruir a minha alma. Você, Jin, está tentando me colocar contra ela porque ela o rejeitou!” “Seria muito fácil cortarmos a sua cabeça e a da sua princesinha vadia se quiséssemos fazer isso. Você devia saber que na guerra gosto sempre do que é prático, direto, que não sou de rodeios! Pena que nunca me conheceu realmente e nem me considerou de verdade um amigo! Nunca confiou em mim! Deve ter sempre me considerado um bárbaro, por trás desse seu discursozinho bonito de honra e amizade! Não é por ela te enganar e te manipular que estou com pena de você agora...”, Jin se pronunciou com fervor, surpreendendo tanto Urdi, que pensara em interrompê-lo porém desistira no meio do caminho, não demonstrando nada em seu semblante, como Thomas. O oriental então se aproximou do pasmo cavaleiro e lhe deu um soco. “Esse foi um soco fraco, tanto que nem te derrubou. Não se compara com as surras que você me deu naquela prisão, não imagina como me senti! Há dores muito piores do que qualquer dor física.” Thomas então deu alguns passos para trás, levou as mãos aos cabelos, e não segurou mais o choro. Nessa hora Jin se aproximou outra vez, só que para abraçá-lo, e foi retribuído. “Meu amigo, perdão...Como pude duvidar de você?? Fui um

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idiota. Estava completamente iludido.” “Admito que fui duro, me desculpe também, mas era necessário.” “Você tem razão, há muitas dores piores do que qualquer dor física. O que estou sentindo agora é terrível, nenhuma palavra é capaz de expressar esse sofrimento. Preferiria até estar morto...” “Mas está vivo, e irá nos ajudar a salvar este reino, que sei que ama.”, Urdi interveio. “A nossa mente pode transformar paraísos em infernos, e da mesma forma os infernos em paraísos.” “Não há paraíso quando há ilusão. Eu estava inebriado.” “Esse é o efeito da paixão.” “Como ela pôde...Como pôde fazer o que fez com alguém que a amava mais do que qualquer outra coisa?!” “É aí que reside o erro. Não se deve amar alguém acima de todas as coisas. O amor a cada pessoa e a cada objeto que nos circunda pode ser diferente, único, mas a água que jorra da fonte deve ser distribuída na mesma quantidade para todos. É o sabor que muda.” “Agora eu a odeio, não imagina quanto...” “Enquanto a odiar, ainda estará apegado a ela. O ódio é o outro pólo da paixão. Você ainda não venceu a paixão.” “Está pensando em matá-la?”, indagou Jin. “Não sei...Não sei de mais nada!”, o noivo enganado passou as mãos pelo rosto úmido, bufou, e ficou de costas para os dois, novamente com os olhos no espelho. Não entraria mais em transe, mas precisava refletir, enquanto olhava para si mesmo. Jin e Urdi o respeitaram, permanecendo em silêncio.

“Será que ele descobriu? Como? Tratar de assuntos de guerra na floresta, ao entardecer...Por que não aqui no castelo? Não

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creio que seja para elaborar uma estratégia secreta. Ele nunca deu mostras de confiar em mim! Por mais que eu mate muito mais inimigos do que esses nobrezinhos puros, sei que no fundo o imbecil me despreza. Grande coisa! Na cama, sou eu que devoro a noiva dele. Mas acho que no mínimo deve estar desconfiado...Alguém andou soltando a língua. Será que foi uma dessas criadas fofoqueiras? Como poderia desconfiar ou saber de algo? Estamos sendo descuidados? Hoje não o vi; parece que sumiu de propósito, talvez esteja armando uma tocaia. Não vou dizer nada a Gwynefar, pode ser que seja só paranoia minha, que ele não tenha deixado de ser o trouxa que sempre foi. Fora que, pensando melhor, quiçá seja esta a oportunidade que tanto pedi aos deuses! Se tudo der certo, vou deixar de detestá-los por tudo o que passei. Tenho uma chance de ouro de acabar com o idiota, colocando a culpa em algum agente sorrateiro de Wessex. É isso! Gwynefar não vai saber de nada...Com ele fora do caminho, é minha chance para me casar com ela e enfim me tornar lorde protetor. Só que não irei sozinho; provavelmente, ele também não estará só.”, refletia Bodor, após receber logo pela manhã uma carta em que Thomas lhe pedia para que se encontrassem no bosque mais próximo do castelo ao entardecer; não especificava o motivo: assuntos de guerra. O desconfiado e cruel cavaleiro negro não iria mesmo sozinho: falou com um grupo de mercenários, que o acompanharia de perto e agiria se preciso: “Fiquem à espreita. Mas só intervenham se eu estiver em perigo de morte, o que não acredito que ocorra pelas virtudes dele, e sim pelo ataque traiçoeiro de eventuais aliados que possua. Serei desleal se ele for desleal. Se por hoje não passar de uma conversa, não se preocupem: de qualquer forma vou pagá-los bem, para que este seja o início de uma longa amizade entre nós.”

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Em paralelo, Thomas estava com Urdi e Jin na gruta em que descobrira a verdade, que tinha passagens secretas para os subterrâneos do castelo, onde o bobo se transformava em mago; conversavam a respeito do que poderia acontecer e sobre o que já ocorrera: “Nem falei com Elaine hoje. Ela que foi a mulher que me amou realmente, que não por acaso sempre gostou de me ouvir, enquanto Gwynefar despreza qualquer forma de lirismo...E eu sabia disso, mas abafei o problema, afinal estava louco por aquela serpente. Agora que me dou conta do quanto fui tolo!”, Thomas se lamentava. “Pare de reclamar e de se culpar.”, Jin replicou. “Sozinho, era muito difícil descobrir a verdade. E pare de falar como se fosse morrer hoje. Depois que vencer Bodor, irá desmascarar Gwynefar e poderá ficar com Elaine. Ela ainda é a mulher que te ama. Você vai ter tempo pra corrigir o seu erro.” “Agradeço o apoio de vocês e as virtudes reveladoras do espelho mágico de Urdi. Mas repito: não quero que interfiram no duelo. Quero derrotá-lo com minhas próprias mãos, mesmo sabendo que não se trata de um adversário qualquer.” “Já dissemos que não vamos nos meter.”, respondeu Jin; o mago olhou para o oriental de soslaio: já haviam entrado em acordo para interferir se o amigo ficasse em perigo. “Mas estou certo que ele vai desconfiar de algo e que não virá sozinho. Nesse caso, enquanto você fica com ele, nós cuidamos dos outros.” “Tem razão. Talvez aquele desgraçado traga alguns mercenários sujos.” “Cuidado com o preconceito. Também já fui um mercenário sujo...” “Perdão, Jin. Não falei por mal. Mas você sempre foi diferente dos outros guerreiros de aluguel que conheci.”

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“Está vem, entendo que esteja de cabeça quente. Mas, na hora da luta, não se deixe levar. A vitória vai ser do que conseguir manter a frieza, do que ficar mais longe da paixão.” “Espero que consiga.”, as horas passaram mais rapidamente do que o esperado e, no ponto marcado, Bodor apareceu, sem atrasos; Thomas já estava lá. Ambos armados e a cavalo, o lorde protetor usava uma armadura prateada de retoques brancos. Havia muitos olhos ao redor... “Ele não veio mesmo sozinho.”, Urdi, escondido atrás de algumas moitas junto com Jin, sentira as presenças perigosas. “Consegue ter uma ideia de quantos sejam?” “Bem mais do que nós, disso não tenho dúvidas.”, ao passo que se iniciava o confronto entre os cavaleiros: “E então, sir Thomas? Quais os assuntos de guerra que pretende tratar comigo? Espero que sejam relevantes, não vim até aqui perder tempo.” “É assim que fala com o lorde protetor do reino?” “Lordes protetores são seres humanos como outros quaisquer. Me lembro do que aconteceu com o último, aquele seu amigo...” “Vamos diretamente ao que interessa. Os assuntos de guerra a que me refiro são da guerra entre nós dois.” “Do que o senhor está falando, lorde protetor?” “Estou falando de Gwynefar.” “O que a princesa tem a ver comigo?” “Não se faça de tolo. E não ouse vir com ironias.” “O que lhe disseram? Aposto que aquelas criadas que falam demais abriram suas matracas para caluniar a mim e a sua alteza. Francamente, sir Thomas...Me surpreende que caia em boatos criados e estimulados por alcoviteiras. Pelo visto, o episódio com o antigo lorde protetor despertou no senhor um ciúme doentio. Desconfia agora de todos os homens da corte?”

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“Nenhuma criada precisou me envenenar. Vi com meus próprios olhos.” “Isso é impossível...”, surpreso com aquelas palavras, demorou um pouco para voltar a falar. “Não seja mentiroso.” “Você é que deveria parar de fingir e se portar como um cavaleiro de verdade! Ah...Tinha me esquecido que você foi adotado por uma família nobre! Parece que Gwynefar gosta de bárbaros e de homens rústicos.”, provocou; queria testar a reação de seu rival. “Posso não ser nobre de nascimento, mas sou windsoriano; não me compare àquele feiticeiro de olhos puxados. E se quer realmente saber a verdade, adoro comer a sua amada noivinha sempre que posso!”, não se segurou mais e desembainhou a espada em sua cintura, cujo punho e a guarda negros lembravam em conjunto a imagem de um demônio. “Como imaginava: joguei a isca e você mordeu! Que fique claro que não acho que você seja esse ser imundo pelas suas origens.”, Thomas desembainhou sua lâmina também. “Vamos decidir de uma vez por todas quem merece ser o lorde protetor deste reino e ficar com Gwynefar.” “Aquela mulher não é nenhum troféu. Se sobreviver, pode ficar com ela. Mas vou deixá-lo avisado: tenho quase certeza que, caso se torne o oficial, como eu era, ela não demorará a arrumar um novo amante.” “Cuspindo no prato que não comeu? Não sou fraco como você.”, suas provocações eram secas, sem rastros de sorriso. “Vou adorar cuspir no seu cadáver.”, fecharam seus elmos e partiram para o ataque; o ritmo inicial do duelo foi extremamente intenso, o ricochetear das espadas ecoando pela floresta. Acabaram, após um choque mais violento, despencando ambos de seus cavalos. “Admito que está me surpreendendo!”, todavia, no decorrer

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do confronto, a princípio equilibrado, Bodor começou a prevalecer, tanto em força como em velocidade e resistência. O pior acabou ocorrendo: um poderoso fendente e uma das mãos de Thomas foi cortada, sua espada caiu e seu fim pareceu iminente; o nobre cavaleiro urrou de desespero e dor. Jin, que tentara confiar na força do amigo até o último instante, se recriminou por não ter sido mais realista e interferido antes, de qualquer forma se lançando sobre o inimigo. Bodor, muito surpreso ao ver o ex-mercenário, conseguiu se desviar do ataque deste, que, sem suas armas orientais, usava uma espada bastarda, um tipo de arma à qual não estava habituado. Thomas ficou confuso, em dúvida se queria sobreviver naquelas condições, pensando, enquanto ia contendo seus urros, se deveria rechaçar Jin para morrer com um mínimo de honra. Entretanto, não havia tempo, e tudo se deu numa velocidade crescente a partir do momento em que as chamas evocadas por Urdi (que demorara um bocado, considerando-se o frenesi da luta, para realizar o feitiço, pois era novo em magias ofensivas) invadiram o campo de batalha e este gritou para que seus amigos escapassem, porém era tarde para isso e uma chuva de flechas atingiu o oriental pelas costas; ainda que com um só braço, o ex-noivo de Gwynefar recuperou sua espada e avançou contra o cavaleiro negro, por sua vez agredido pelas labaredas; mercenários com maças, lanças e espadas entraram na luta e o desastre só tendia a aumentar. “Imprudente!”, Urdi recriminou Jin por este ter agido por conta própria antes que o chamado aos espíritos do fogo fosse concluído, algumas pedras de runas gravadas em vermelho espalhadas pela terra; avisara-lhe que estudara e praticara muito no que dizia respeito à magia de ilusões, revelações e

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cura (tanto que tratara dos ferimentos e hematomas do oriental após salvá-lo da prisão), mas que ainda era inexperiente em ataques elementais. No calor da batalha, acabou não refletindo que se Jin não tivesse agido teria se dado precocemente o fim de Thomas; e caindo no medo, na ira e em pensamentos de impotência e incompetência, perdeu o controle sobre as salamandras. “Não, não, não!”, um inesperado incêndio se alastrou pela floresta, o mago um dos primeiros a ser devorado por suas próprias labaredas; Bodor, mesmo em chamas, conseguiu acabar com Thomas, pela primeira vez no duelo usando seu machado, até então preso em suas costas, decapitando-o pouco antes de sua consumição; Jin, cercado por mercenários e com flechas em suas costas, resistiu o quanto pôde, as dores insuportáveis em sua coluna impedindo-o de usar todo o seu potencial, sucumbindo com um derradeiro golpe na cabeça; mas dos inimigos, todos tentando fugir do fogo, somente um dos três arqueiros sobreviveria para contar o que vira, praticamente um pequeno Ragnarok.

Ao saberem das mortes de Thomas e Bodor, sem que o real motivo da rixa entre os dois viesse à tona, pois o arqueiro sobrevivente, um tipo com visão de águia mas meio surdo, não ouvira a conversa dos cavaleiros, as princesas mostraram reações distintas: Gwynefar manifestou toda a sua tristeza, chorando sobre o caixão do noivo e durante toda a cremação, que terminaria de consumir os restos já chamuscados, aliviada por sua infidelidade não ter sido descoberta, por continuar a ser considerada pura, não lamentando nem consigo mesma o fim de Bodor; Elaine não gritou e nem derramou lágrimas por fora, porém sua dor era tão grande e ainda foi crescendo sem parar que não resistiu e cometeu suicídio após alguns dias, cortando seus próprios pulsos. Uma tragédia para o reino; o caminho

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livre para Gwynefar, que talvez só precisaria convencer um futuro noivo não tão ingênuo quanto Thomas de que chegara a ser violentada pelo bárbaro, que este não se limitara à tentativa, e que não revelara isso para não causar desgostos a seu pai e evitar manchar a honra de Windsor...Tinha confiança que conseguiria comover qualquer um com seu discurso e suas lágrimas. O sumiço do bobo foi comentado e este considerado suspeito de algum misterioso envolvimento em tudo o que ocorrera; só que nada poderia ser comprovado, pois o corpo do mago, que não fora visto pelo arqueiro, acabara reduzido a cinzas. Jin era outro bastante comentado, considerado um perigosíssimo feiticeiro, talvez o que provocara o incêndio e o que manipulara as mentes dos cavaleiros, sem que estes percebessem, para fazer com que lutassem entre si, vingando-se de Thomas, o noivo do alvo de sua luxúria, e consequentemente de todo o reino; mas já encontrara seu merecido fim. O rei declarou que não queria mais mercenários em Windsor, expulsando todos os que restavam e declarando que se fosse para vencer a guerra contra Wessex, venceriam com suas próprias forças. Nada mais de estrangeiros, muito menos no comando dos cavaleiros do reino, por melhores estrategistas ou soldados que fossem, lamentando profundamente a perda de um guerreiro da alçada de Bodor, conquanto agora suspeitasse que este tramava contra Thomas para se tornar lorde protetor; o feiticeiro oriental devia ter se aproveitado desse desvio de caráter para manipulá-lo a partir das sombras. Algo que o intrigava, dos detalhes que ouvira do arqueiro, aos quais a maioria não prestava atenção, era o fato de Jin ter atacado Bodor para aparentemente salvar Thomas; seria porque, depois que o cavaleiro negro já o ferira, queria dar pessoalmente o

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último golpe? E o desafio para o duelo, pelo que o mercenário falara, partira do noivo de Gwynefar; isso se dera porque Thomas descobrira as ambições de Bodor? O branco e o negro se esvaíam; as brumas estavam cinzentas demais.

Thomas, Jin e Urdi caminhavam por um gramado negro. Um vento frio balançava as folhas de relva. O céu noturno apresentava muitas estrelas e uma lua imensa. Nenhum dos três exibia qualquer ferimento, aparentemente com as mesmas vestes dos momentos pouco anteriores às suas mortes. “Que lugar é esse? Não é possível que estejamos vivos.”, disse o oriental. “Mas estamos. Só é impossível que ainda estejamos em nossos antigos corpos.”, redarguiu o cavaleiro. “Então existe mesmo vida depois da morte. Se isso não for algum sonho, ou uma ilusão.” “Ilusão era o que vivíamos em Midgard.”, Urdi, até então o mais silencioso, resolveu falar. “Estamos prestes a conhecer um pouco da verdade sobre a vida.” “O que lhe garante isso?” “Conheço bem ilusões e miragens. E a maior de todas é sem dúvida a da vida mundana, que enreda alguns tão perfeitamente ao ponto de fazê-los achar que não existe nada além.” “A última coisa da qual me lembro é de estar lutando contra os homens de Bodor. E como estava sentindo dor! Mas tudo ficou escuro de repente, perdi a consciência, e quando acordei neste lugar não sentia mais nada de desagradável.” “Acho que foi parecido com todos nós.”, pararam, só que o mago logo avançou um pouco sozinho, quando perceberam alguém no horizonte. De súbito, essa pessoa distante emanou uma intensa luz prateada, que ofuscou a visão dos três, e quando se deram conta aparecera-lhes bem à frente: tratava-se

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de uma “mulher” muito alta e forte, com um físico comparável ao de Bodor, seu peito, seu abdome e partes de seus braços, ombros e de suas pernas musculosas revestidos por um metal platinado como seus cabelos e suas pupilas; em suas costas, uma espada de tipo montante. Chegara acompanhada de uma forte ventania e de uivos de lobos e latidos de cães, enquanto o solo dava a impressão de tremer. Seu semblante era severo. “Antes que me perguntem, o meu nome é Hrist. Sou uma enviada do grande Odin. Vocês foram escolhidos para servir no Valhala, mas ainda não estamos em Asgard.”, falou com sua voz trovejante. “Uma valquíria!”, exclamou Jin. “Então vocês existem. Isso é incrível! Mas irão recrutar alguém que não acreditava em vocês?” “A sua descrença não importou para nós e para Odin. Consideramos o seu valor.” “Fracassei como mago. A perda de controle sobre os elementais provocou minha própria morte. Obrigado pela nova oportunidade.”, Urdi agradeceu, inclinando-se levemente. “O fracasso e o triunfo em Midgard não são relevantes para nós, e sim seu potencial. A glória do mundo é como cinzas ao vento.” “Gostaria só de saber como ficaram as coisas em Windsor.”, interveio Thomas. “Vai saber.”, e a valquíria moveu seus braços e uma nova luz se manifestou, desta vez abrindo uma espécie de portal, do qual para a surpresa dos três emergiu o cavaleiro negro... “O que esse demônio faz aqui??!”, o ex-noivo de Gwynefar não conteve sua indignação. “Ele foi o responsável direto pelas nossas mortes!” “Se é assim, deveriam agradecê-lo.”, Hrist manifestou um sorriso dúbio. “Bodor, estes serão alguns de seus companheiros

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no Valhala. Acho que os conhece.” “Por que alguém como ele foi escolhido?...”, Thomas meneou a cabeça para os lados, incrédulo com o que via, encarando o cavaleiro negro, agora ambos sem armas; Bodor, sem desviar o olhar, nada dizia. Jin olhou para Urdi, que ficou cabisbaixo. “O que esse demônio faz aqui??””, repetiu. “Pela maneira como fala, se vê que não tem experiência com demônios...Pois este homem foi uma vítima das circunstâncias. Seu erro foi cair nos encantos da princesa Gwynefar, mas sofreu e lutou durante toda a vida; seu valor como guerreiro é inegável.” “Eu me nego a lutar ao lado dele. Prefiro ser jogado no inferno.” “Você não tem mesmo ideia de como são os domínios de Hel. Vou lhe dar uma pequena amostra.”, Hrist desembainhou sua espada e rasgou o solo com esta; os einherjar levaram um susto, mas ficaram a salvo do precipício que se abriu após um violento terremoto, a valquíria envolvendo-os com sua aura, que lhes permitiu levitar sobre o báratro; sem a ajuda da guerreira celestial, a atração para baixo seria irresistível e acabariam tragados, vendo os terríveis demônios grudados às paredes do abismo, alguns de braços compridos e garras e dentes afiadíssimos, outros lembrando asquerosos aracnídeos, que começaram a tentar subir, abaixo apenas ecos de desespero e perdição. Jin se lembrou da experiência que tivera na prisão, pouco antes de ser resgatado pelo mago, e deu graças aos deuses por não ter despencado de vez nos mundos inferiores; Urdi se sentiu invadido por uma tristeza sem limites; e os ressentimentos e arrependimentos corroeram os dois cavaleiros. “E então? Ainda prefere Nifelheim a conviver com seu rival?” Thomas olhou para Bodor, que desta vez virou o rosto. “Vou

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lutar por Odin, independentemente de quem esteja ao meu lado.”, o ex-noivo de Gwynefar se decidiu e, após um gesto contido da valquíria, a terra começou a se fechar novamente, apesar dos gritos, guinchos e das tentativas de subida e fuga das criaturas infernais, as mais teimosas e ousadas aprofundadas de vez por um cometa prateado que Hrist rapidamente moldou e atirou com suas mãos. Seguindo a uma explosão de luz, estavam de volta em solo firme, Thomas dando a impressão de ser o mais atordoado. “Tomou a decisão correta.”, disse a emissária de Odin; dias depois, em Windsor, Gwynefar estava nos jardins do castelo, segura consigo mesmo, sorrindo sem preocupações enquanto despetalava devagar uma flor. As mínimas saudades dos toques e beijos de Bodor já haviam se esvaído, pois encontrara um novo amante entre os membros da guarda. Contudo, de súbito escutou um uivo que lhe pareceu estranhamente próximo. Um lobo no castelo? Era impossível para qualquer animal entrar ali, a menos que tivesse sido trazido por alguém. Quem fora o imbecil que trouxera uma fera ao castelo? Preparou-se para sair do jardim, dar uma bronca na primeira pessoa que visse e falar até com seu pai, mas levou um susto e ficou imóvel quando viu diante de si o lobo rosnando. “Ah...”, seu coração acelerou e principiou a ofegar, depois soltando um grito e pedidos de socorro, retrocedendo lentamente, enquanto o animal avançava também devagar; para seu pavor, ninguém veio, o castelo parecia absurdamente deserto, e o pânico devorou seu peito antes de qualquer ataque da fera ao se dar conta que havia outros lobos à sua volta, mais e mais estavam aparecendo do nada, e um absurdamente grande, do tamanho de um cavalo. Liberou um último berro antes de ser atacada, os animais

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dando a impressão de fazerem a terra tremer quando dispararam, e estraçalhada; Hrist observava do alto e, no momento em que o espírito da princesa se separou de suas carnes rasgadas, fez com que este ascendesse e ficasse frente a frente não só com a própria valquíria como com as almas de Jin, Thomas e Bodor. Faltaram palavras à pasma Gwynefar. “Quando acharem seus restos, não saberão explicar quem ou o que a deixou nesse estado. Os meus lobos não pertencem a Midgard, por isso nunca serão encontrados, e não vão comer quase nada do seu corpo, porque detestam carne apodrecida.”, disse a valquíria. “Quem é você?...E por que eles estão com você?”, a indagação veio numa voz chorosa e apavorada. “Lamento por seu pai, que tem sido vítima de tantas desgraças por sua culpa. Quando ele morrer, depois de se acreditar amaldiçoado por tudo o que aconteceu às suas filhas, a disputa pelo trono será sangrenta, pois não possuirá nenhum herdeiro ou herdeira diretos. Você foi responsável pelas mortes de sua irmã e de três dos melhores guerreiros do reino. Wessex vencerá a guerra.” “Você é uma valquíria?...” “Sim. E, como pode ver, recrutei seu noivo, seu amante e aquele que você caluniou e jogou injustamente na prisão.” “Por favor, me perdoem...Estou arrependida por tudo! No fundo, fiz as coisas pensando no bem do reino! Me desculpem...Estou pedindo desculpas!” “Agora é tarde para pedir desculpas. E você nunca pensou no bem de Windsor. Pensava em se tornar rainha para o seu próprio bem.” “Por favor, valquíria...Interceda por mim junto a Odin.” “Você não tem um espírito guerreiro. É um espírito repleto de veneno e ardis. Não interessa a Odin. Se dará melhor com a

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rainha Hel.” “Não, não quero ir para o inferno!” “Você nem mesmo acreditava nos deuses. E o pior não está em não crer, já que Jin também não acreditava...” “Isso não é justo! Ninguém sabe como me sinto por dentro.” “Não se coloque como vítima. Se você possuísse alguma nobreza interna, os seus atos teriam sido minimamente compatíveis com ela.”, Thomas se manifestou pela primeira vez. “Thomas, você é uma pessoa nobre, um verdadeiro cavaleiro...Por favor, me ajude!” “Depois de tudo o que me fez, das mentiras, da traição, da manipulação, tem coragem de me pedir algo?” “Eu também duvidava da existência dos deuses, e dizia a mim mesmo que os odiava caso existissem. Ainda assim, eles reconheceram que tenho algum valor. Eu amava você...E por acaso você me deu algum valor?”, foi a vez de Bodor inquirir. “É fácil difamar alguém.”, Jin também interveio. “O difícil é criar laços de alma.” “Vocês agora ficam pagando de bonzinhos só porque foram escolhidos pelos deuses...Mas também aprontaram muito, mataram muitas pessoas, não são inocentes em nada!”, a princesa acabou esbravejando enquanto deixava algumas lágrimas escorrerem. “Acabou Gwynefar. Toda ação tem uma consequência. Lamento apenas por Windsor, que mereceria um destino melhor, mas agora luto por algo maior do que um reino humano: sou um soldado de Odin.”, e após estas palavras de Thomas mais uma vez a terra tremeu e o abismo se abriu, só que para tragar a princesa, que despencou aos gritos, que foram se tornando cada vez mais inumanos, puxada e arranhada pelos demônios. Quando o buraco se fechou, Thomas bufou e

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levantou a cabeça; Jin apoiou-lhe a mão no ombro: “Vamos ficar firmes. O caminho é longo e tem muitas pedras.” “Tenho que me desligar de uma vez de Windsor. O que me deixa mais tranquilo é saber que Elaine está bem.” “Logo iremos para o jardim de Urd.”, disse Hrist. “Obrigado...”, o cavaleiro agradeceu, desaparecendo dali junto com o oriental. Bodor que permaneceu com a valquíria. “Com certas coisas, ainda é difícil me conformar.”, disse o cavaleiro negro. Hrist lhe dirigiu um último olhar e o deixou só.

Honra em marcha

As três legiões de Publius Quintilius Varus não estavam acostumadas a regiões como aquela, de neblina, frio intenso e aparência sombria mesmo durante o dia, com o sol encoberto pelas altas copas dos carvalhos. De qualquer forma se viam obrigadas a avançar, a fim de cumprir sua missão, delegada pelo próprio imperador, que não admitia mais que os povos primitivos daquelas terras medonhas continuassem atrapalhando o Império Latino. Publius, cujos olhos afiados lembravam os de um falcão, sua expressão excessivamente segura por vezes deixando escapar uma inegável arrogância, nascera de uma família aristocrática, seu avô o célebre senador Sextus Quintilius Varus. Contudo, após a morte de Sextus, sua família enfrentara uma severa decadência, seus tios haviam contraído inúmeras dívidas, forçando seu pai Lucius Aemilius, o único dos irmãos com uma postura mais utilitarista e uma língua menos solta, a se casar com a filha do cônsul Gaius Claudius Marcellus, uma mulher

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pela qual não nutria a mínima paixão, mas que viria a se tornar a mãe de seu filho. Continuaria a manter casos com escravas, até Publius, filho único, estimulado indiretamente por sua mãe, que chorava sempre para o rapaz e lamentava seus sofrimentos, surpreendê-lo em uma noite, no leito com duas servas, apunhalando os três sem piedade. Sua mãe gritara e chorara aparentemente de desespero ao ver o marido morto com as concubinas, provavelmente lágrimas mais de alegria e de alívio, um pouco de tristeza apenas pelos resquícios de atração e afeto que nutria por Lucius. O assassinato fora imputado a um servo que Publius afirmara estar envolvido com uma das escravas, o que não era mentira, o crime considerado portanto passional. Posteriormente, após passar um tempo considerável no exército, retornando depois da morte de sua mãe, se casara com Vispania Marcella, uma jovem magriça e doente, mas que por pertencer a uma família em ótima situação na burocracia imperial o ajudara a alcançar um cargo de governador na província da Numídia, com quatro legiões sob seu comando. Lá sua esposa viera a falecer, sem resistir ao clima desértico da região. Após esse acontecimento, Publius acabaria por se tornar conhecido por seu governo inclemente, sem a mínima tolerância com os infratores das leis, e pelo aumento dos impostos; apesar de ser um homem que nunca se apaixonara, interessado unicamente em sua carreira política, nunca fora luxurioso como seu pai, e desenvolvera um carinho terno por Vispania, que, meiga e tranquila, amenizava sua amargura e a dureza de seu caráter. Jamais tivera amantes, pois não queria vê-la sofrer como seu pai fizera com sua mãe, e seus momentos domésticos eram de rara doçura e singeleza. Sabia que ela não possuía condições de lhe dar filhos, mas preferia assim, no fundo receando que fosse ter o mesmo destino de Lucius

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Aemilius; os deuses podiam ser implacáveis e as Fúrias talvez não perdoassem seu parricídio, apesar da pressão para que adotasse algum jovem que pudesse se tornar seu herdeiro. Não gostava nem de ver Marcella com seus acessos de tosse; imagine-se como se sentira ao vê-la morta! Impopular na Numídia, onde reprimiu uma série de revoltas a ferro e sangue, foi chamado de volta a Latina, capital do Império, substituído na árida província por um governador que não fosse odiado pela população, e que iria tentar introduzir uma política mais amena. Contudo, não recebeu recriminações, considerado pelo imperador o homem ideal para domesticar as terras geladas e bárbaras da Queruscia, cujas tribos violentas vinham constantemente atormentando a população na fronteira e com sua hostilidade atrapalhando os comerciantes latinos que tentavam chegar ao reino de Barda, com o qual o Império vinha pretendendo estabelecer relações mais próximas. A intenção oculta, na verdade, era conquistar todo o território querusco, seguindo-se uma política amigável com Barda, que quando baixasse a guarda seria atacado e conquistado, tornado mais uma província imperial. Os queruscos, conhecidos por seu físico possante, dariam ótimos escravos. Assim Varus fora enviado, cada uma de suas legiões com por volta de cinco mil homens, armados com gládios, lanças, amplos escudos para a defesa, além do pugio, punhal levado à cintura, e do pilo, dardo de madeira com ponta metálica, que servia para perfurar escudos; suas armaduras eram flexíveis e resistentes, montadas sobre túnicas de cor vermelha. O exército latino era conhecido por suas táticas e por sua disciplina, que haviam lhe proporcionado inúmeros triunfos a princípio considerados impossíveis, tanto por questões de inferioridade numérica como pelo fato de muitas batalhas

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ocorrerem em territórios desconhecidos e favoráveis aos nativos. A introdução de uma mentalidade vitoriosa e da consciência de cada um ser uma peça fundamental para o funcionamento do todo eram vitais no início da carreira militar, todos os homens entre dezesseis e quarenta anos obrigados a servir por ao menos dez anos, e quem possuísse ambições políticas precisava primeiro comprovar seu valor como soldado. Se declarado incapaz como soldado, o indivíduo podia ficar certo que não teria a mínima possibilidade de obter qualquer cargo público. A aprendizagem de aceitação da obediência aos superiores tinha suas raízes na ênfase na autoridade paterna, ao menos na teoria o pai de família sendo um autocrata absoluto, com direitos de vida e morte sobre os filhos (Publius era a prova viva que nem sempre as regras se seguem à risca...); calçar suas primeiras sandálias ferradas significava portanto para o soldado dar continuidade a essa postura de acatar sem questionar, o Estado substituindo a família, o general como figura paterna. Os castigos para os rebeldes e descuidados eram severos, e Varus já aplicara alguns, como da vez que mandara decapitar um centurião que descumprira uma ordem sua durante uma batalha. Também já ordenara açoitar três soldados por não usarem suas espadas da maneira determinada pelo regulamento. Os legionários treinavam com constância, focando-se tanto no manuseio de armas como em exercícios físicos como salto, corrida e levantamento de pesos, além da rotina cotidiana de marcha, formação e manobras. Publius era particularmente rígido: “meus treinamentos são batalhas sem sangue”, costumava dizer, mas também procurava incentivar seus homens, realizando breves discursos em seus acampamentos (nunca longas exposições que sabia serem para os senadores,

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não para soldados cansados), nos quais mencionava as possíveis recompensas com o fim da campanha. Afinal, a sombra da punição e o medo serviam para manter os soldados aquartelados, porém no campo de batalha o rendimento só seria perfeito com a perspectiva de prêmios e condecorações. Contudo, a maior honra em caso de êxito militar obviamente cabia sempre ao general; não por acaso Varus sonhava com o dia em que, com uma coroa de louros e em um carro puxado por quatro cavalos brancos, precedido por um esplêndido cortejo, teria seu desfile triunfal, que se encerraria com o solene sacrifício de imponentes touros ao deus Marte. Lambia os beiços só de pensar em tamanha glória, como se estivesse degustando a carne dos bovinos, porém a realidade ainda era dura: a luta contra os queruscos já persistia havia dois anos, para a surpresa dos latinos estes possuindo armas de ferro fortes e resistentes, e pareciam nunca se apavorar, não se rendendo e jamais escapando. “Eles acreditam que, quando têm uma morte gloriosa em batalha, suas almas são levadas por lindas donzelas revestidas por armaduras reluzentes a um palácio celestial de um deus que parece uma mescla dos nossos Júpiter e Marte, que também os auxilia em batalha, dando-lhes forças extras quando estão prestes a cair. É por isso que nunca cedem ou fogem.”, Publius fizera este comentário em sua tenda a um de seus tribunos, em mais uma noite gélida após uma laboriosa vitória, que custara a vida de um número maior de legionários do que o general esperara. “Foi o que entendi do que um deles disse, antes que se suicidasse, o único que falava algo de língua latina, ao que parece aprendida de um legionário que mantiveram cativo por algum tempo.”, de fato, os queruscos vencidos prestes a ser capturados haviam preferido o auto-sacrifício, clamando o nome do deus Wodan antes de cortarem suas próprias

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gargantas. “Pura superstição. Não passa de uma gentinha ignorante, general.” “Pode ser superstição. De qualquer forma, sabe que aprendi a admirá-los? Embora sejam toscos e terrivelmente brutos, mais parecidos com bestas do que conosco, são um dos poucos povos que consegue resistir ao nosso avanço. Às vezes até me sinto tentado a pensar que não se trata de uma mera lenda, que são realmente protegidos por algum deus ao mesmo tempo nobre e feroz e por donzelas guerreiras. Lembro-me de há algum tempo ter lido um velho relato dos helenos, que quando enfrentaram os nossos gládios pela primeira vez, ao verem os corpos de seus companheiros em pedaços, os braços, cabeças e ombros separados do resto, os estômagos abertos, entraram em pânico; já estes bárbaros não se assustam mesmo que estejam encurralados.” “É apenas uma mentalidade desenvolvida para resistir às condições da terra e do clima desta região. Se fossem mais moles, sucumbiriam facilmente ao gelo e aos lobos e ursos. Não há como compará-los com os helenos, que são de terras quentes, férteis, costeiras e já civilizadas. Cada povo desenvolve uma mitologia compatível com seu contexto concreto, e no caso dos queruscos ela serve para aliviar um pouco o peso da vida, projetando algo melhor após a morte. Uma espécie de consolo sobrenatural, pois ao contrário dos nossos legionários não têm condecorações e nem soldo a receber.” “Talvez você tenha razão, meu caro e incrédulo Plinius. Talvez...”, e coçara seu queixo destacado; seus cabelos já estavam grisalhos, porém mantinha seu físico em ótima forma, assim como seu olhar não perdera nada do vigor de outros tempos e ganhara em foco, perfeitamente alinhado com seu

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nariz aquilino; seu semblante era firme, com poucas rugas, e seus sorrisos contidos, compatíveis com sua personalidade amante do labor e da precisão, com alguma frequência beirando a rigidez excessiva. Dava muita importância à honra e ao autocontrole, da opinião que o que distinguia o homem dos animais seria a capacidade de refrear as paixões; não por acaso se preocupava com o que lhe parecia um processo de decadência moral por todo o Império, cujos cidadãos de fora do exército davam a impressão de compensar negativamente tudo o que era vetado nos acampamentos militares. Não faltavam orgias entre os senadores e altos funcionários da burocracia do Estado; nunca participara, mas sabia perfeitamente que aconteciam, e alguns não se limitavam a mulheres e outros homens como arrastavam animais e crianças para seus antros. Considerava o deus do vinho fascinante e divertido (e este uma bebida deliciosa e saudável se consumida de forma moderada), porém perigoso, acreditando Apolo ser o ideal para a sociedade, banquetes acompanhados de música e poesia preferíveis à eclosão exagerada dos prazeres, que enfraquecia as características viris do povo latino. Havia assim no Império uma dicotomia entre Marte, que dominava os que estavam envolvidos diretamente na guerra, e Baco, a maior influência divina sobre os demais cidadãos, Febo e seu equilíbrio esquecidos, assim como a sabedoria majestosa de Júpiter, a maioria dos imperadores se perdendo em luxos e suntuosidades vazias; talvez por isso fosse tão difícil vencer os queruscos, que não separavam vida e batalha: a vida para estes era uma constante luta pela sobrevivência. Não estabeleciam dicotomias, ao conhecê-los mais de perto descobrindo que sabiam dosar adequadamente o aspecto dionisíaco, em suas festas regadas a boas quantidades de cerveja, com o espírito marcial. Em seus embriagamentos, não demonstravam perder a

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noção da honra nem se desenfreavam nos impulsos, mantendo o respeito por suas famílias, valorizando suas uniões estáveis. Ao fazer amizade com o líder querusco Irmin, sobre o qual falaremos mais adiante, nunca veria em seu povo sinais de baderna e orgia, suas mulheres obedientes e pudicas, diferentemente da maior parte das latinas, sua mãe e sua falecida esposa exceções, pois a maioria enganava seus maridos sem a menor culpa e só queria saber de ouro e pedras preciosas. Apenas na batalha os queruscos se entregavam a um certo frenesi, nunca temendo a morte. Estava na hora dos latinos aprenderem um pouco com os povos que conquistavam, ao invés de contribuir para desvirtuá-los. Os helenos atribuíam a Baco, por eles conhecido como Dionísio, a invenção do teatro. O que os latinos haviam feito após sua conquista? Deixado de lado as contribuições mais sublimes e sofisticadas do nume para limitá-lo a um deus da bebedeira e do sexo. Os helenos quase não tinham mais teatros, suas comédias e tragédias não se comparavam às de outros tempos, e em Latina preferiam-se lutas de gladiadores a qualquer peça. Não podia permitir que algo semelhante ocorresse, com as devidas proporções, quando a Queruscia fosse conquistada. Naquela região selvagem não se podia falar de unidade política, pois os queruscos estavam divididos em inúmeras tribos. Porém dentro destas o espírito familiar era coeso, em contraste com o que ocorria no Império, que apesar de sua extensão territorial e da organização burocrática apresentava famílias em que a hipocrisia predominava. Em geral, a rigidez do pater familias era ludibriada pelas astúcias sorrateiras da esposa infiel e dos filhos que o detestavam, ao mesmo tempo que a moral exigida dos dependentes não costumava ser colocada em prática pelo própria chefe da família, que não

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servia como espelho ou modelo. Publius era um exemplo de filho que se revoltara, e exteriormente não se culpava nem um pouco por seu parricídio, porque ao contrário da maioria das mulheres latinas sua mãe fora uma mater honrada, que merecia ser respeitada, a execução de Lucius portanto uma questão de honra familiar. Contudo, às vezes pensava no escravo inocente imputado pelo crime, tentando se convencer que não tivera escolha, e que afinal escravos não passavam de “bestas pensantes”, pelas quais nutria menos afeto do que por seus cães, natural a condição de se sacrificarem ou serem sacrificados por seus donos, tendo pesadelos ora com o pai, ora com aquele homem (ou pseudo-homem, na sua visão), e ora com ambos, como uma vez em que sonhara estar andando pelas ruas de Latina à noite e, ao entrar em um beco obscuro, dera de cara com Lucius Aemilius, porém transfigurado em uma figura grotesca e demoníaca, os olhos arregalados de pupilas vermelhas, comendo a carne e bebendo o sangue do que fora considerado seu assassino, caído ainda vivo aos seus pés, apesar do estômago, do peito e dos braços abertos, frio e imóvel, com os olhos vidrados no sonhador. Acordara com o rosto gelado e o restante do corpo fervendo, banhando em suor. O general tinha o hábito de dormir pouco quando em campanha e preferia o presente ao passado; nisso, com empenho, conseguira fazer seu primeiro aliado em terras queruscas: o anteriormente mencionado Irmin, que por sua baixa estatura e pelo físico franzino não se enquadrava nos estereótipos que os latinos tinham dos homens da região; seu olhar de pupilas esmeraldinas parecia a Varus tão apaziguador que suas inquietudes evaporavam quando via o “bárbaro”, que irradiava uma tranquilidade constante, algo raríssimo em um guerreiro. Todavia, os cabelos ruivos revoltos, semelhantes a uma fogueira, lhe lembravam sempre que o relaxamento não

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devia ser confundido com preguiça e esmorecimento. Comandava seus homens com uma firmeza serena, sem precisar levantar a voz. As razões declaradas por aquela tribo da floresta de Osnabruck para se aliar com o Império contra outros queruscos eram basicamente duas. A primeira, alegada por Irmin, que fazia questão de sempre dizer a Publius que a Queruscia era uma abstração latina, cada tribo diferente da outra como os helenos diferiam dos latinos, por mais que venerassem os mesmos deuses sob diferentes nomes, se tratava do fato que outros grupos de “bárbaros” já haviam matado amigos e familiares seus, um inclusive tendo chegado a sequestrar Thusnelda, sua esposa, o resgaste custando muito sangue; seria extremamente difícil para sua tribo sozinha submeter as rivais, mas com o apoio latino via isso como algo provável e útil para ambos. Nisso vinha a segunda motivação da aliança: Irmin já estivera em territórios do Império, vendo de perto o progresso, como aquedutos, termas e estradas, o que desejava que fosse estendido para sua região, conquanto com o devido respeito pela floresta, as árvores veneradas pelos queruscos como um todo (isso certamente os acomunava); afora que Publius oferecera uma educação militar e uma carreira em Latina a seu filho e aos filhos de seus principais companheiros, declarando admirar as virtudes de sua tribo, muitas das quais poderiam ser exportadas para Latina, rendendo um valioso intercâmbio. “É muito bom que haja admiração mútua entre companheiros de guerra.”, disse Irmin, ao receber em mais uma oportunidade Varus em sua tenda, num final de tarde. Beberam juntos um pouco de cerveja, mas o principal esperaria o cair da noite, quando se reuniriam todos em volta das fogueiras, latinos e queruscos, para cantar e contar histórias e conversar sobre seus respectivos costumes. O líder da tribo aprendera a língua latina

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em suas viagens e a ensinara a vários de seus homens e à sua esposa, havendo dessa maneira menos ruído na comunicação do que seria o esperado, seguindo-se boas risadas aos poucos mal-entendidos que ocorriam. “Por que precisaremos ficar junto com aqueles bárbaros? Já não está estabelecida a aliança? Isso não basta?”, o general acabara escutando um dos centuriões comentar com outro, quando haviam acampado, duas noites antes do novo encontro com Irmin, vindos de outro fronte. “Por acaso ousa contestar as minhas decisões?”, e o comandante da centúria engolira a seco ao ser surpreendido pela voz de Publius. “Não, general...Perdão!”, procurara controlar o nervosismo e a gagueira decorrente. “Não se trata de nada disso! É apenas que gostaria de compreender melhor por que...O motivo do que o senhor afirmou que teremos que fazer, comendo e bebendo junto com aquela gente. Suas bebidas e seus alimentos poderiam inclusive estar envenenados!” “Não seja idiota. Em primeiro lugar, por que não me perguntou na hora em que expus qual seria o nosso próximo passo?” “Pensei que uma pergunta naquele momento soaria como se estivesse questionando suas ordens, e poderia confundir minha dúvida com insubordinação.” “Subestima a minha inteligência, Tarquinus. Deveria estar ciente de que sei perfeitamente distinguir dúvidas de desobediência. Isso quer dizer que acredita que um estulto, que não sabe sequer entender o que seus soldados dizem, possa chegar ao posto de general?” “Não! Claro que não. Por favor, general...Não me entenda mal.” “Você é um medroso, é isso o que você é. Mas não vou

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castigar a sua covardia hoje! Entenda isso como um ato de magnanimidade da minha parte, e quero que transmita o que vou lhe explicar a todos os demais soldados que tenham dúvidas a respeito e que são covardes como você. Para você ficou claro o porquê de irmos jantar com os queruscos, Cornelius?”, voltara-se para o outro centurião. “Se ficou, talvez eu possa poupar a minha saliva.” “Eu ia responder a Tarquinus o que compreendi quando o senhor apareceu. Espero não estar distante da verdade. O que me parece é que nossa aliança precisa ser sedimentada, e como os queruscos são um povo ignorante, sem escrita, o sucesso do acordo que iremos fazer com essa tribo depende da nossa palavra e da nossa cordialidade. Temos que nos mostrar amigáveis, para que confiem em nós.”, replicara Cornelius. “Simples, não? Você deveria saber, Tarquinus, que o sucesso de nosso império reside inclusive no fato de não oprimirmos e não marginalizarmos as populações que nos aceitam. Um dia, a sua província também foi uma terra selvagem. Você não nasceu em Latina, se não me engano.” “Não, senhor. Vim da Hispânia.”, respondera o cabisbaixo centurião. “Pois bem! Um dia, a Queruscia será uma província como a Hispânia. E os descendentes dessa tribo que vamos visitar serão cidadãos latinos, legionários, tribunos e também centuriões, talvez até generais! Será que agora está claro?”, aclarada a situação, muitos legionários acabaram deixando de lado o preconceito e se divertindo bastante com a tribo querusca quando todos ficaram reunidos na noite que daria solidez permanente à aliança, ao redor das fogueiras. A partir daquela lua cheia, segundo as palavras de Irmin (conhecido como Arminius entre os latinos), sua tribo passaria a marchar e acampar com as legiões e lutariam juntos contra os demais clãs

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da região. Publius não via a hora de contar em definitivo com as espadas daqueles homens a seu favor; aguçadas e de fácil manejo, embora fossem mais longas do que os gládios dos legionários, permitindo-lhes lutar muito bem à distância, pretendia levar ferreiros queruscos a Latina para que as produzissem na capital imperial. Interessava-se também pelos camartelos e machados e admirava-lhe o fato de não se importarem tanto com proteções, possuindo sim escudos, comumente de madeira e revestidos de couro, porém poucos os capacetes de metal e couro e mais raras ainda as couraças. Costumavam lutar vestidos com as mesmas capas de peles de animais seguras por broches por sobre as túnicas que usavam no dia a dia; suas calças justas eram de lã, presas por cintos que envolviam os quadris, protegendo contra o frio e contra atritos, seus calçados amarrados até os joelhos com tiras de couro. Sobre suas túnicas, as mulheres costumavam usar xales presos por fivelas ou broches; por baixo, camisas de linho com aberturas frontais até o peito. Seus cavalos, que tanto homens como mulheres montavam, eram grandes e brutos, nem um pouco amestrados. Os dois líderes haviam se conhecido durante uma batalha em que os legionários estavam combatendo um grupo de queruscos dos mais ferozes, em dificuldades ainda que com grande probabilidade fossem vencer. Inesperadamente, a tribo de Irmin irrompera, em uma cavalgada impetuosa; e atacara sem piedade os inimigos do exército de Varus, com seu comandante berrando claramente em língua latina: “Não se aflijam, latinos! Estamos ao lado de vocês!” “O general ouviu o que esse bárbaro disse?”, um dos tribunos perguntara a Publius, com uma certa perplexidade.

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“Escutei perfeitamente.” “E o que devemos fazer?” “Se ele quisesse nos agredir, já teria feito isso. E como fala nossa língua, deve ser um querusco latinizado. Vamos atacar apenas os bárbaros contra os quais estávamos lutando desde o início.”, e, apesar de alguns mal-entendidos, com homens de Irmin sendo feridos por legionários, ao término da batalha o líder querusco aceitara as desculpas de Publius e conversaram a sós, explanadas pela primeira vez algumas das rivalidades, birras e diferenças entre as tribos. “Esta é minha bela noiva! Está vindo comigo para cobrir os bancos. Estamos chegando ao nosso lar! Pode parecer que estou ansioso com o nosso matrimônio, mas é que longe de casa ninguém consegue descanso!”, de volta ao presente, eis a representação do Alvissmal, texto oral dialogado e cantado pertencente à tradição da tribo, transmitido dos pais para os filhos e filhas, memorizado por todas as crianças, ainda que somente os melhores no canto e na atuação cênica fossem apresentá-lo no futuro. Para homenagear seus hóspedes, Irmin preparara uma versão em língua latina e, apesar de alguns erros gramaticais e de certas traduções forçadas para manter o ritmo da música, produzida por tambores, flautas e diversos instrumentos de cordas, Publius reconheceu o bom trabalho, envolvente e agradável aos ouvidos. A história dizia respeito a como o deus do trovão, o grande Donar, pudera livrar sua filha de se casar com o anão Alviss, passando-se inicialmente por um andarilho ao encontrar “por acaso” os noivos em uma estrada à noite (segundo o folclore local, gnomos só podiam andar na superfície durante a noite, pois se tornavam figuras de pedra ao serem expostos à luz do sol) e perguntar-lhes quem era a moça e para onde iam. O anão

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tinha a primeira fala e o rapaz que o interpretava estava de joelhos, botas colocadas nestes, como se fosse muito mais baixo, seus pés cobertos por sua longa túnica, e usando uma divertida barba de palha. “Cobrir os bancos” era um costume querusco nos casamentos, os recém-casados cobrindo com panos alvos alguns bancos de madeira ao término da cerimônia, dando início à festa. Quando a celebração terminava, geralmente os panos estavam bem sujos... “Que tipo de criatura você é? Por que possui um nariz tão pálido? Por acaso passou a noite com os mortos?”, era a fala de Donar, representado por um homem corpulento e ruivo, que usava um elmo metálico com chifres. “Se não fosse tão pequeno, diria que é um troll do submundo! Você não nasceu para uma noiva tão formosa.” “Não se intrometa. Meu nome é Alviss, e tenho um reino sob as pedras! Vivo debaixo da terra. E, se quer saber, há uma promessa em jogo.” “Que tipo de promessa?” “Ela própria prometeu me desposar.” “Quebrarei essa promessa. Eu não estava presente quando ela foi prometida.” “Quem é você para dizer isso? Eu não o conheço! Como pode ter autoridade sobre esta donzela? Melhor que saia do meu caminho, se não quiser ter problemas. Dei anéis preciosos a ela, para que prometesse que se casaria comigo! E tenho testemunhas, como o deus Loki. Não me importo que você seja grande! Não é grande o suficiente para desafiar os deuses.” “Já que quer saber, vou lhe dizer quem sou! Sou Donar, filho de Wodan, e você não terá esta jovem por meu consentimento, pois sou o pai dela.” “Donar??? Não pode ser! O grandioso Donar, senhor das tempestades, diante de mim! Bem que desconfiei que tão bela

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donzela só poderia ser filha de um dos maiores deuses de Asgard! Mas não irei me apavorar. Nem mesmo o senhor irá me demover do que desejo. Nem mesmo o senhor poderá arrancar dos meus braços a minha doce amada!” “Tanto posso como farei!” “Logo terei seu consentimento e conseguirei sua aprovação. Não imagina como quero ter para mim esta linda moça branca como a neve. Antes se vá comigo do que permanecer solitária!” “Não penso assim. Só lhe concederei o amor de minha filha se puder me oferecer algo em troca. Quero que me diga tudo o que quero saber sobre todos os mundos. Me diga, Alviss! Acho que você sabe de muitas coisas! Reis anões costumam ser sábios. Como a Terra é chamada nos diferentes mundos?”, a jovem que representava a filha de Donar, ao lado do “anão”, não falava e nem cantava, mas era uma das moças mais belas e expressivas da tribo, provocando risos com suas caras e bocas, que acompanhavam as falas de Alviss, como quando admirava seus anéis, ao mesmo tempo que despertava olhares de volúpia principalmente por parte dos legionários. “É chamada de Jord pelos homens, Fold pelos deuses, Igroen pelos jotuns, Groandi pelos elfos!” “E como o Céu é chamado nos diferentes mundos? Diga-me, anão!” “É chamado de Himinn entre os homens, Hlynir pelos deuses, Uppheim pelos jotuns, Fagraefr pelos elfos!” “E como a lua é chamada, vista pelos filhos da Criação em todos os mundos?” “É chamada Mani entre os homens, Mylinn pelos deuses, Skyndi pelos jotuns e Artala pelos elfos! No inferno, parece que a chamam de Hverfanda Hvel.” “E o sol, como é chamado, visto pelos filhos da Criação em todos os mundos?”

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“É chamado Sunna pelos homens, Alskir pelos deuses, Eyglo pelos jotuns e Fagrahvel pelos elfos! No inferno, parece que o chamam de Dvalins Leika.”, e seguiram-se outras perguntas sobre diferentes denominações, até Donar declarar, finda a noite no poema dialogado: “Nunca havia visto tanto conhecimento em um único ser. Mas conhecimento não significa astúcia, e eu o enganei! Veja, Alviss: muito tempo se passou desde que nosso jogo teve início e o sol está nascendo!” “Não! Não é possível que tenha transcorrido tanto tempo!”, o homem que representava o gnomo começou a se retorcer, como se estivesse virando pedra. A jovem ao seu lado fazia caras e bocas de falso desespero, ora olhando para seu “noivo”, ora consolando-se com seus anéis, abrindo amplos sorrisos ao contemplá-los. “Tarde demais para se lamentar. Já é manhã.”, e a apresentação se encerrou com o cantor-ator que fazia Alviss paralisado, os olhos vidrados. Seguiram-se os assovios e gritos dos queruscos e os aplausos dos latinos, costume estranho a respeito do qual Irmin já avisara seus irmãos. Na sequência, o que encenava o papel de Donar pegou uma caneca cheia de cerveja e bebeu tudo numa golada só, liberando logo depois um urro e gargalhadas para comemorar o êxito na apresentação. O “anão” enfim ficou de pé, para dançar alegremente com sua “noiva”. “Foi divertido, não achou?”, o líder da tribo perguntou ao general latino. “Muito. Parece que até os meus homens mais duros estão mais soltos agora. Pelo visto, não teremos problemas em efetivarmos nossa aliança.”, replicou Publius, com um ar visivelmente satisfeito. “Tudo está correndo perfeitamente bem, meu amigo...”, não

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seria a única apresentação com música e poesia naquela noite: mais tarde, apresentou-se um bardo solitário, já consideravelmente idoso, com dificuldades para andar devido às dores nas juntas; todavia se transformava quando se sentava no banquinho que lhe era reservado, segurando com firmeza uma espécie de alaúde que lhe entregavam e tocando de forma magistral, ao passo que sua voz, ainda incrível, perfeitamente conservada, possuía tanto um grave como um agudo soberbos. Entoou uma tradicional canção escatológica (também vertida em língua latina) e, conquanto pouquíssimo conhecesse da mitologia dos queruscos, Publius compreendeu a essência do assunto e percebeu nos olhos do intérprete que, embora por curtos instantes, este encarnava um visionário; não pôde evitar de sentir um calafrio, ainda mais que o cantor pronunciava as palavras latinas com surpreendentes precisão e acuidade (o que não conseguia quando falava), e encaixara uma ótima tradução, que não prejudicava a melodia e ao mesmo tempo bastante correta, superior à que Irmin fizera do Alvissmal. “Onze eram os deuses Ases contados; pena por Baldr, que caiu na sepultura. Vali porém se mostrou digno de vingá-lo, destruindo o assassino de seu irmão! O pai de Baldr era o grande Wodan, que por sua vez criou o mundo a partir dos restos de Ymir. Haverá no entanto um dia em que o mundo que conhecemos deixará de existir! Quando esse tempo chegar, aquele que nasceu de nove donzelas tocará seu instrumento, despertando os heróis no saguão do rei dos deuses. Garm uivará alto, os grilhões se romperão e o lobo que Loki teve de Angurboda correrá livre! Não sei tudo, mas posso ver o destino dos deuses, o combate dos poderosos! Irmãos se confrontarão e sucumbirão juntos; o parentesco será maculado; a espada, o martelo e o machado farão os escudos em pedaços; Yggdrasil se abalará; alto rugirão

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os demônios, segurando-se nas grades enferrujadas dos portões do inferno, que serão derrubados; Garm uivará alto, os grilhões se romperão, e Fenrir tentará devorar os céus e a terra! Como esse monstro nasceu? Pois Loki assou e devorou Angurboda, sua própria consorte, a começar pelo coração; como ela estava grávida, ele deu à luz essa aberração! Contudo, o deus traiçoeiro não se arrepende e nem se arrependerá do que fez, sorrindo diante do mar que se agitará até os céus. As nuvens se quebrarão; e virão neve e ventos ferozes. Quem acabará com Loki? A esperança reside naquele que foi gerado pelo poder da terra, o milagre das nove, o mais forte de todos os espíritos da criação. Porém nem mesmo ele resistirá e para governar o mundo virá outro, no lugar de Wodan, que sucumbirá; o nome deste deus futuro não tenho entretanto como revelar, pois pouco posso ver além do tempo em que Wodan for se encontrar com o Lobo. O que sei é que ele se libertará de seus grilhões e correrá faminto!”, finda a canção, Publius comentou com Irmin: “Fascinante. Não só a maneira como seu músico executou a canção, que realmente me envolveu e me cativou, fazendo-me lembrar do lendário Orfeu, como o conteúdo dos versos. Nós latinos não temos esse conceito, de uma batalha final que decidirá os destinos do mundo. Há uma perspectiva de que o rei dos deuses, Júpiter, será um dia destronado, mas não sabemos como isso se dará e se envolverá a nós seres humanos ou apenas aos deuses. A passagem de um domínio ao outro talvez não seja tão sangrenta.” “Seu Júpiter, ao que me parece, é o nosso Wodan.” “Também encontrei algumas similaridades entre Donar, o senhor dos raios de vocês, e Júpiter. Mas, apesar das semelhanças, os deuses de vocês me parecem mortais, embora

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muito poderosos, pois um dia sucumbirão em definitivo, enquanto Saturno, que temos como o soberano anterior do cosmo, foi destronado, porém ainda vive; nossos deuses não são invencíveis, no entanto são certamente imortais. Contudo, independentemente do que pensamos sobre os deuses, e das interpretações que damos a eles e às suas funções, estamos cada vez mais próximos e nos entendendo melhor. Me perdoe apenas por um comentário que vou fazer, Irmin.” “Pedindo desculpas por antecipação?”, o líder querusco perguntou e sorriu. “É que não é que sua versão daquele poema dialogado tenha ficado ruim, mas a canção desse Orfeu de sua tribo respeitou mais o nosso idioma.” “Não vou me ofender por isso! Afinal Kalkris, nosso bardo, é um legítimo poeta, enquanto eu sou um amador. E devido à idade ele demonstrou dificuldades para aprender a língua latina, mas se esforçou e, embora não fale assim tão bem, precisando pensar muito para encontrar as palavras certas durante uma conversa, na música como sempre se transforma, parece que quando canta se lembra instantaneamente de todas as regras e conceitos do idioma e consegue usá-los a seu favor.” “Vocês são tidos por nós como um povo sem escrita. Isso é mesmo verdade?” “Temos o costume de passarmos nossas histórias tradicionais de geração em geração por via oral. Mas embora não tenhamos livros como vocês, possuímos sim letras, que gravamos em pequenas pedras e em pedaços de madeira, ao menos a minha tribo, não posso falar pelas outras que vagam por estas terras, e que insisto em dizer que não são todas iguais como vocês latinos persistem em pensar. São usadas por nossos oráculos para fazer previsões, para sinalizar determinados locais, e em

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contextos em que não podemos falar, como quando estamos próximos de um inimigo e, ainda ocultos, precisamos trocar impressões. A existência delas me facilitou um pouco o ensino da língua latina a meus irmãos. Como aprendi a ler e escrever com as letras de vocês em minhas viagens, gravei também todas elas em outras pedrinhas.”, e mandou trazer algumas das pedras, tanto com runas como com letras latinas; Varus foi tocando-as e contemplando-as com vívido interesse. “Em todas as coisas e situações há aspectos positivos e negativos. O que vejo de positivo em uma cultura oral forte como a de vocês é o fato que devem possuir todos uma excelente memória.” “Temos diversas técnicas, inclusive, para facilitar a memorização.” “Como imaginei. Nisso nós temos muito a aprender com vocês. Ficamos acomodados. Nos habituamos a consultar os livros o tempo todo.” “Está muito claro que nossos povos só têm a ganhar e a aprender mutuamente com esta interação.”, quem não sorria, apesar de estar ao lado de Irmin, passando uma impressão de desconforto, não disfarçando um semblante de nojo, que procurava dirigir para o solo, abaixando a cabeça, quando percebia olhares lúbricos vindos de legionários, era Thusnelda, a esposa do líder, longilínea e altiva, seus olhos de ametista e seus cabelos de ouro escorrido. Poucos dias depois, sem a presença de Thusnelda, as três legiões de Varus partiriam junto com os homens da tribo de Irmin, rumo ao confronto com o clã do perigoso e detestado Oderich, inimigo acérrimo dos colaboradores dos latinos. À frente, iam alguns arqueiros e seus auxiliares, que atuavam como exploradores, por mais que os nativos alegassem já conhecer muito bem o terreno; seguiam-nos por volta de cem

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ginetes e a primeira legião; na terceira linha, os responsáveis por montar os acampamentos e carregar as posses dos oficiais e do general; Publius vinha a seguir, com seus melhores cavaleiros, seus equites extraordinarii, ao seu lado Irmin e seus homens de confiança; atrás, quase a totalidade das outras duas legiões, predominantemente cavaleiros e arqueiros, e os carregadores das bagagens dos soldados; por fim, na retaguarda, haviam ficado legionários de infantaria e queruscos aliados. Cada legião tinha seu porta-estandarte, uma águia sobre um globo o símbolo da primeira, uma serpente enrolada em um bastão na bandeira da segunda, e um dragão cuspidor de fogo na da terceira, respectivamente em dourado, branco e preto, todos sobre um fundo vermelho, embaixo de cada qual o nome do imperador Octavius. Tudo parecia seguir de acordo com os planos, o avanço árduo já previsto; foram abrindo caminho por um pântano que ficou ainda mais desagradável quando uma chuva forte começou a cair, esta também previamente anunciada, pelos observadores de clima da tribo de Irmin. Outra chuva, esta que não estava calculada, de flechas, que se abateu repentinamente sobre os latinos na chegada a uma floresta espessa e escura... “Serão os homens de Oderich?”, indagou Publius; contudo, quem principiou a atacar o exército latino, junto com os inimigos recém-chegados, foram os próprios queruscos que estavam na retaguarda. “Isso é traição!”, gritou um dos centuriões. “Fomos enganados!” Tardio o espanto de Varus, seus equites atordoados pelo bombardeio de setas enquanto eram atacados pelos homens de Irmin; as flechas no entanto logo não viriam mais apenas das moitas nas elevações e das copas das árvores: os arqueiros latinos foram surpreendidos pelo avanço de uma cavalaria

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querusca que usava laços e também arcos potentes, cujas flechas tinham força suficiente para perfurar uma armadura a cem metros de distância. Uma das armaduras atravessadas foi justamente a de Publius, enquanto começava a enfrentar um dos capangas do líder tribal, atingido perto do pescoço e em seguida por um golpe de espada na cabeça desferido por seu “amigo”, que vinha de trás...Irmin não sorriu como costumava fazer ao abater seus oponentes em batalha, mas procurou afirmar mentalmente a si mesmo que fizera o certo, que o outro era um invasor imperialista, que ameaçava a autonomia e as tradições de sua tribo mais do que qualquer chefe de clã rival como Oderich, por mais “boa gente” que pudesse parecer. Uma parte dos legionários se agrupou na formação defensiva que encaixava seus escudos um no outro, formando um bloco maciço que impedia que fossem atingidos por armas de longo alcance; as flechas iam se fincando nos escudos: não chegavam a acertar os soldados. Foram sendo empurrados e encurralados, resistindo por um tempo considerável e voltando a lutar quando perceberam que a munição dos inimigos acabara; todavia, não esperavam que estes fossem receber reforços: era Thusnelda, não mera esposa do líder do clã, na verdade uma guerreira valorosa, liderando sobre seu cavalo em disparada, ao empregar toda a potência de sua voz, inúmeros guerreiros queruscos que, assim como os cavaleiros com arcos e os demais que haviam dado início ao ataque-surpresa contra os latinos, pertenciam a outro acampamento da tribo de Irmin, que fora mantido oculto aos invasores, aguardando que passassem por aquelas terras para atacá-los. A emboscada fora um sucesso; e um massacre se deu, os nativos tirando proveito do conhecimento da área, especialmente em dias de chuva, e do cansaço dos soldados do

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Império, que haviam acabado de atravessar um charco da região, tipo de território ao qual não estavam acostumados e que não era fácil de percorrer com seus equipamentos mais pesados do que os dos queruscos. Não pretendiam que sobrasse sequer um inimigo, após a vitória apoderando-se de todas as armas e pertences que permanecessem inteiros. Anos antes, Irmin não voltara sozinho de suas viagens, algo que não contara a Publius, mas com um sacerdote de Júpiter chamado Numenius, pois se dissera interessado em aprender sobre a religião e a cultura latinas; fora Numenius que ensinara por exemplo ao bardo Kalkris as melhores entonações e a pronúncia adequada das palavras do idioma. Fizera tudo isso por três abrangentes motivos: espírito aventureiro, curiosidade de conhecer um povo distante; desejo de civilizar os “bárbaros”; e pela amizade que acreditara já ter se formado com o líder da tribo. Não esperara ser apunhalado enquanto dormia após sua utilidade ter se esgotado. Não se tratava portanto da primeira vez que Irmin se desfazia de um “amigo” e de certo modo hóspede...

Um lobo vermelho corria pelas folhagens. O farfalhar vegetal, produzido pelo vento e pela perseguição, acompanhava a respiração ofegante do canídeo, que parecia exausto, com a língua para fora, mas que não interrompia seu passo veloz, às vezes dificultado pelas pedras ou pela lama. A chuva parara, mas deixara partes do solo amolecidas; era perigoso para a fuga quando as patas afundavam e corriam o risco de ficar presas no terreno pegajoso. Precisava escapar de qualquer forma, ou seria devorado pelos membros do bando rival, lobos cinzentos que já haviam abatido todos ou quase todos os lobos rubros. Os perseguidores não paravam de uivar e latir, seus dentes encharcados de sangue. O perseguido começou a pensar: “Vão

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me pegar de qualquer jeito.”; o mero instinto de sobrevivência aos poucos se tornara terror, e esse terror dera origem ao primeiro pensamento após um tempo indeterminado, longuíssimo na sensação, de entorpecimento do raciocínio. O lobo vermelho foi aos poucos se erguendo sobre as patas traseiras, e suas frontais foram perdendo as garras e os pêlos, adquirindo unhas. A partir das mãos recém-formadas, o processo se expandiu para o restante do corpo, o licantropo se transformando em homem; e era Publius, nu e apavorado, ao passo que os lobos cinzentos tomavam a aparência dos queruscos. O general latino se percebeu mais do que nunca como uma besta pensante e acuada, vindo-lhe à mente seu escravo que no passado terminara executado por um crime que não cometera; percebeu na pele que no medo e na vontade de viver todos os seres humanos deviam ser iguais: não era por ser um cidadão e general de um grande império que se tornava por isso automaticamente melhor do que os outros; sua pele podia ser perfurada e rasgada e seu sangue escorreria do mesmo modo. Não era um deus. Não era imortal e nem invulnerável. Levando as mãos à cintura, acabou descobrindo uma adaga. “Ainda me resta um mínimo de honra?”, questionou-se. “Não tenho outra escolha. Se perdi toda a honra, vou recuperar um pouco dela; se ainda tenho alguma, que seja um gesto que me permita um melhor destino no além-túmulo, que espero que exista. Não quero me apagar, não quero me extinguir! Grande Marte, acolha seu guerreiro!”, os uivos e latidos pararam; os ventos silenciaram; nenhum som ou movimento além da tremedeira do corpo suado de Varus, que, com os olhos arregalados, se preparava para cortar sua própria garganta ou perfurar seu peito. “Animais vivem, mas não têm honra. Vou provar a mim mesmo que não sou apenas um animal!”

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“Isso não será necessário.”, sua ação foi interrompida pela intervenção de uma imponente voz feminina; não conseguiu mais fazer nenhum gesto, apenas o tremor da carne se intensificou, e a adaga acabou caindo de sua mão. “Você já está morto.” “Quem é você?”, conseguiu indagar, ao passo que saía das sombras uma donzela alta e magra de longos cabelos ondulados castanhos, assim como seus olhos, o nariz comprido, seu semblante calmo, mas firme, revestida por uma armadura prateada com partes negras, como ombreiras e joelheiras, uma capa branca em suas costas. Sua espada negra apresentava um par de asas na empunhadura. “Sou uma enviada do grande Odin, ou Wodan, como conhecem meu senhor por estas bandas. Sou Guomondr, uma valquíria, uma encarregada de recolher os guerreiros valorosos para torná-los soldados de Asgard contra os gigantes e os demônios, que são inimigos tanto dos deuses quanto dos homens.” “Agora acho que começo a entender por que os queruscos resistem tanto ao avanço do Império. Estão mesmo protegidos por deuses muito poderosos.” “Nós não protegemos nenhum povo em particular. Todos são de igual modo importantes para nós. Se não venceram até hoje, foi por incompetência própria. Odin é também seu Júpiter, apesar de vocês terem feito confusões e distorções maiores do que os queruscos quando tentaram descobrir e compreender algo da natureza dos deuses.” “Ignorância humana à parte, isso tudo quer dizer portanto que fui escolhido...Que existe verdadeiramente um luminoso além-túmulo e que farei parte dele!”, à medida que o júbilo foi prevalecendo, a tremedeira parou e seus movimentos foram voltando ao normal.

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“Talvez o amanhã não seja assim tão luminoso. Mas você foi julgado merecedor de uma oportunidade, assim como alguns dos seus soldados.”, e para surpresa e maior alegria de Publius, seus homens foram ressurgindo das trevas das árvores e moitas noturnas, todos bem armados, assim como ele próprio recuperava sua espada e sua armadura. Cavaleiros, arqueiros e soldados seriam admitidos junto com seu comandante no Valhala. “O que está acontecendo aqui, general?”, indagou com assombro o centurião Cornelius; contudo, antes que Varus pudesse responder e tocá-los, todos desapareceram em um clarão branco emanado pela mão direita da valquíria. “Por que os fez desaparecer? Para onde os enviou?”, questionou Publius, a seguir a sós com a misteriosa divindade. “Receberão as explicações necessárias já em Asgard. É que ainda preciso conversar em particular com você.” “E por quê?” “Outras valquírias não costumam conversar muito com seus einherjar, mas sou da opinião que os guerreiros de Odin devem se sentir o melhor possível e confiar em seus companheiros, caso contrário se tornam presas fáceis para os nossos inimigos. Portanto, preciso ajudá-lo. Sinto que, apesar da sua felicidade ao rever seus homens, se tornou incapaz de confiar em qualquer guerreiro que não faça parte das suas legiões. No Valhala, precisará conviver com guerreiros de inúmeras origens.” “O que afinal ocorre no mundo dos deuses? Como é essa guerra contra os gigantes e demônios que você mencionou?” “Você terá tempo para aprender sobre isso. Antes, é necessário que compreenda o porquê de sua morte e aceitar as nuances da guerra.” “É que estou pensando que deveria ter ouvido melhor o que

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vários de meus legionários disseram. As advertências para não confiar nos bárbaros, a resistência ao estreitamento da aliança, a ficarmos muito próximos...Confiei demais no espírito honrado dos queruscos, achei que eles possuíssem o que nós latinos perdemos, confiei na amizade sincera de Irmin, e o que recebi em troca foi a morte. Agora considero todos os homens iguais na falta de honra e palavra! Claro que não me considero puro, afinal já provoquei a morte de um inocente...” “Só de um?” “É verdade, talvez tenham sido vários, quando fui governador e durante as nossas campanhas, inclusive crianças e velhos; mas digo conscientemente.” “Consciente ou inconsciente dos seus crimes, eles foram cometidos.” “O que quero dizer é que me convenci de vez que cada grupo humano luta somente por seus próprios interesses. Cada INDIVÍDUO, na realidade, é egoísta e defende apenas o que interessa a si próprio, inclusive só se insere dentro de um grupo quando este lhe oferece o máximo de proveito possível, ou quando é forçado, mas nesse último caso a relação é de peso, obrigação, temor e às vezes até um pouco de ódio. Não existem alianças honradas.” “Então como pode confiar nos seus legionários? Eles também lutavam por interesse, pelo soldo, pelos prêmios.” “Eles me temem, me respeitam. Nisso sem dúvida não há honra, mas há disciplina, e esta me permite confiar neles.” “Confia porque estão condicionados a obedecê-lo. Mas um dia poderia ocorrer um motim...” “Você se rebelaria contra Odin?” “Não tenho motivos para isso.” “Eles também não têm.” “Muito menos agora, passando a servir Asgard em lugar do

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Império.” “As compensações, imagino, serão muito maiores.” “Na minha opinião, isso é evidente. Mas fique preparado. Porque quando chegar a hora de Irmin e de sua esposa Thusnelda, eles também serão recrutados. Não sei se por mim, acho que não, mas serão.” “Isso não chega a me surpreender.”, o general latino disse, enquanto ficava cabisbaixo. “A lógica dos deuses não pode ser tão diferente assim da lógica humana. Um guerreiro astuto como Irmin deve ser muito valorizado por qualquer exército que pretende vencer uma guerra.” “Pode odiá-los, mas não tem real motivo para isso. Afinal, apesar de ter perdido a batalha, foi enviado para um destino superior ao que tinha em Midgard. Conviverá com os deuses e combaterá ao lado deles. Deve na verdade ficar grato aos queruscos. E não será o primeiro que levamos conosco que se verá obrigado a lutar junto com o que foi seu pior inimigo na vida na Terra.” “Isso me faz questionar se vale tanto a pena ficar junto aos deuses. Você mesma disse há pouco que talvez o amanhã não seja assim tão luminoso...” “Eu sou assim. Jogo água no fogo, coloco fogo na água, e gosto de adoçar o amargo! A verdade é que, embora em Asgard não haja apenas luz, há sem dúvida mais do que no inferno. E na guerra, você sabe disso, devemos ter uma mescla entre soldados que valorizem a honra e outros que valorizem a astúcia. Se houverem apenas astutos, as decorrências serão, entre outras, a desunião entre os membros, os enganos e as traições; se todos forem honrados, por tendência confiarão demais nos que devem ser encarados com desconfiança, e resistirão a estratégias mais utilitárias.” “Você é bem prática. Odin é dessa forma?”

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“Muito mais do que eu.”, a valquíria sorriu com discrição, e pouco depois partiram rumo a Asgard, montados em um cavalo branco de olhos prateados que, após deixar a escuridão para entrar em uma planície luminosa, foi ganhando cada vez mais velocidade, até abrir duas grandes asas laterais e levantar vôo; um agradável sopro de liberdade envolvia Varus, ao passo que em Latina, quando chegou a notícia da derrota de suas legiões, um inflamável ar de fúria penetrou nos pulmões do imperador Octavius, que deixou seu trono e chegou a dar um murro na parede, assustando Cassius Chaerea, um legionário atarracado e medroso, um pouco gago, talvez o mais fraco de todos os soldados, que acabara por ironia do destino sendo o único sobrevivente da batalha contra os queruscos. “Quintili Vare, legiones redde!”, ou seja, “Quintilius Varus, devolva minhas legiões!”, e meneava a cabeça para os lados, dando as costas para o assustado Cassius, que só não saía correndo dali porque sabia que isso iria piorar ainda mais a sua situação; evitava olhar para o sobrevivente porque, se o encarasse por muito tempo, se sentiria tentado a descontar neste toda sua raiva, ordenando que o jogassem aos leões. “O correto seria não haver sequer mais um único indivíduo vivo que tenha participado desta vergonha para o exército imperial!”, mas terminou não ordenando a execução de Chaerea; apenas ordenou ao legionário, pouco depois que este descrevera tudo o que ocorrera, que deixasse depressa o salão do trono, o que foi cumprido de imediato e com considerável alívio. “Mas isso não vai ficar assim.”, Octavius era um homem magro e seco, com um semblante naturalmente frio e orgulhoso; e, conquanto o projeto de conquistar a Queruscia fosse ser abortado, considerando-se que o custo de submeter a região seria alto demais pelo que ela tinha a oferecer, enviou,

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passadas as horas de maior ira, seu sobrinho Claudius Drusus a cargo de oito legiões, por volta de cinquenta mil homens, com Cassius Chaerea como guia, a fim de, ao reencontrar o local da ignominiosa batalha contra os queruscos, dar aos soldados mortos sepulturas dignas (afinal eram cidadãos latinos, por mais que tivessem fracassado), recuperar tudo o que fosse possível (em especial os estandartes das legiões da Publius, símbolos do orgulho do Império), e se fazer um esforço para capturar Irmin e sua esposa; a imagem de debilidade e derrota precisava ser a todo custo suprimida. Ao encontrarem os restos do exército de Varus, uma certa comiseração tomou conta dos homens de Drusus; e, além de ossos separados ou amontoados e de pedaços de armas e armaduras, depararam-se com membros de cavalos e cabeças humanas pendurados nas árvores e os sagrados estandartes rasgados... O general encarregado resolveu realizar um inflamado discurso, incitando seus legionários à vingança: hora de colocar a honra do Império em marcha.

O som do silêncio

“Será que foi uma boa decisão?”, Irmin, deitado, perguntou à esposa aconchegada em seu peito. “Você é o chefe, você é quem deveria saber.”, ela não costumava aliviar as coisas nem para o próprio marido nos momentos de aparente ternura... “Sei disso. Mas preciso confessar que estou ansioso pela resposta de Marbod. A contraofensiva do Império é inevitável. Se não nos unirmos temporariamente a outras tribos, seremos esmagados. As legiões de Varus não eram nada perto do

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potencial real que eles possuem.” “Marbod não era amigo do seu pai? Por que recusaria?” “Foram bons companheiros de luta, mas os tempos mudaram. Ouvi falar que agora que está velho decidiu manter sua tribo à parte das guerras, tanto que se retiraram para uma região onde os latinos ainda não pisaram.” “Se é assim, talvez a sua decisão de contatá-lo para uma aliança não tenha sido muito sensata como um todo. Só deve ter servido para cansar os homens que enviou. Por que ele sairia de uma zona de conforto?” “Se não sair, estará sendo individualista e mesquinho. Porque pela idade que tem, não verá o Império avançar até as terras dele e ficará seguro até morrer. Mas quando se passarem vinte, trinta anos, os filhos e netos dele terão que lidar com a realidade dos legionários marchando por lá, a expansão do Império não vai cessar se não tratarmos de pará-los. E por causa do comodismo imediatista, todos os descendentes dele vão morrer ou virar escravos, porque a essa altura não terão mais nenhuma outra tribo com a qual se aliar. Terão sido todas dizimadas. Temos que agir hoje! Não vou deixar pra amanhã. Se ele recusar a proposta, não vou lamentar a perda de um covarde, mas lamentarei o fato de não termos toda uma tribo pra lutar ao nosso lado. Se Marbod for um líder verdadeiro, saberá enxergar a situação a longo prazo.” “Tem razão, Irmin. É por essas coisas que você é o líder e eu nunca seria. Observo bem o espaço, mas sou descuidada com o tempo; me preocupo em sobreviver hoje.” “Deveria pensar mais nos filhos que vamos ter.”, sorriu enquanto acariciava-lhe os cabelos. “Ainda não os tivemos para eu pensar neles. Prefiro pensar só em nós dois por enquanto. Mas entendo que seja natural para um homem, ainda mais para um líder, refletir sobre seus

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herdeiros.” “Talvez tenha sido de mau gosto mandar a cabeça de Varus para Marbod...”, voltou atrás na conversa. “Mas a minha intenção foi demonstrar força, provar que não se trata de um pedido de desespero de uma tribo frágil qualquer, ansiosa por um apoio porque não se garante sozinha, e sim de uma proposta concreta de aliança na qual ambos possam ganhar, onde haja soma, pois fomos capazes de derrotar três legiões latinas!” “Você me falou sobre os pesadelos que vem tendo com Varus. Não haveria mais outra intenção ao enviar a cabeça dele para bem longe daqui?” “Está sugerindo que foi uma maneira de tentar exorcizar um fantasma?” “Não me conformo com isso...Mas apesar de você querer o Império longe das nossas terras, se afeiçoou àquele homem e se culpa até hoje pelo golpe de misericórdia que deu.” “Impérios são impérios, indivíduos são indivíduos. Tive que fazer o que fiz, e faria de novo, faria quantas vezes fossem necessárias! Mas nunca vou deixar de ser um traidor com relação a ele. Espero que os deuses me perdoem.” “Os deuses estão do nosso lado.” “Sempre ouvi dizer que, exceto Loki, os deuses abominam a traição.” “Na guerra tudo é válido para vencer. E se os outros deuses não aceitarem isso, então peçamos a ajuda de Loki apenas.” “Você é muito corajosa. Pelo visto encararia o próprio Donar pela nossa tribo! Não foi à toa que a escolhi como companheira.” De repente, um sininho tocou. Era o sinal que anunciava o pedido de permissão para entrar numa tenda, vindo provavelmente de um dos que estavam acordados como vigias

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àquela hora da noite, andando entre as fogueiras do acampamento. Todos os homens adultos em condições da tribo se revezavam nessa função durante o ano. “Irmin, peço permissão para entrar!” “O que você quer? Não pode dizer daí?”, o chefe respondeu também em voz alta. “Sou eu, Sherman.” “Ah, Sherman! Pelo que eu tinha calculado, achei que só voltaria depois de amanhã. Retornou antes do esperado. Aguarde um pouco, estou indo até você.”, não era um dos vigilantes; e sim um dos mensageiros que mandara tratar com Marbod. Sob o olhar felino e desconfiado da esposa, Irmin se levantou, colocou rapidamente um traje simples, uma capa e saiu. “Espero que esteja com boas notícias. Porque vir rápido pode tanto significar que a aliança foi aceita de imediato como que ele a recusou de imediato, sem nuances, sem lhes oferecer sequer uma cerveja.” “De fato, Irmin, ele não nos ofereceu nada.” “E onde estão os outros?” “Já foram descansar. Corremos um pouco para chegar o quanto antes.” “Pelo que está dizendo e pela sua expressão, imagino que a resposta do velho tenha sido negativa.” “Não posso mentir.”, a lua dava a impressão de um escorrimento frio e ambíguo. “Marbod se negou a ajudar em qualquer conflito contra os latinos, disse que permanecerá em seu território, mas nos convidou a visitá-lo e, se quisermos, ficar por lá. Afirmou querer distância da guerra, e que somos loucos de lutar contra o Império.” “Louco é ele, que se acovarda hoje. No futuro, todas estas terras ficarão sob o domínio do Império, e o que restará para nós será ou a escravidão ou, pior, o oblívio das nossas

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tradições. Mesmo que não sejamos obrigados a servir para sempre, que nos tornemos cidadãos latinos, não seremos de forma alguma livres, nos esqueceremos de nossas canções. Muitas vezes a loucura não consiste no combate celerado ou no grito, e sim nos braços cruzados e no leito confortável, onde nos entregamos a sonhos macios, não vendo o sicário que se aproxima no escuro.” “Quanto à cabeça de Varus, ele achou melhor queimá-la.” “Acho que nesse caso foi realmente a melhor decisão. E que a alma dele seja acolhida no Valhala.” “Um latino no Valhala?” “Claro, Sherman, por que não? Era um bom homem e um guerreiro de valor. Não acredito que os deuses façam distinções entre os povos. Mas é importante que os povos conservem suas tradições para que tenham o respeito dos deuses. Cada povo, cada tribo, recebeu dos Ases um legado, uma tradição, que é uma parte da sabedoria do grande Wodan; é assim que vejo. A tribo que não preserva seu legado cai portanto em desgraça, torna-se indigna, pois não soube manter o que lhe cabia, não exerceu sua responsabilidade.” “Compreendo, Irmin.”, e o chefe querusco voltou à sua tenda após autorizar o descanso do mensageiro, entregando-se aos carinhos de Thusnelda, silenciosos, reflexivos; ela pouco ouvira do que tinham conversado, mas não perguntou nada, pois pela expressão e pelo jeito de seu marido já sabia qual fora a resposta de Marbod. Quando Irmin ficou entre o sono e a vigília, visões do passado se mesclaram a imagens de sonho, ouvindo a gargalhada de Oderich, enquanto este incendiava com seu bando as árvores da floresta que as duas tribos rivais haviam disputado, e que o inimigo condenara à destruição por não poder tê-la para si. Seu pai vivera ali seus últimos instantes e fora nessa ocasião que

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Irmin se afirmara como legítimo sucessor do líder, conduzindo homens e mulheres na extinção do fogo. De barba e cabelos loiros espessos e sujos (dizia-se que jamais entrara em um rio ou lago), Oderich, com seus olhos azuis que enquanto cometia suas atrocidades davam a impressão de ficar vermelhos, encaixava-se verdadeiramente na pior descrição possível que os latinos pudessem fazer dos “bárbaros”. O pai de Irmin, então chefe da tribo, corajosamente confronta-o quando já não estava mais em seu auge, acabando com o peito perfurado pela espada do adversário, despencando sem vida na neve. Contudo, mais do que por todos os assassinatos cometidos, inclusive não tendo a menor piedade das mais indefesas crianças, era odiado por não respeitar as árvores e os animais, por não ter tido receio de queimar uma floresta inteira só porque a perdera para o grupo rival, por ser um hipócrita em sua veneração aos deuses, abominando qualquer forma de honra ou moral. Fora após o fatídico incêndio que o clã de Irmin migrara para Osnabruck, uma terra um pouco afastada das paragens que Oderich ocupava. Por falar no inimigo e em seu culto inculto às divindades, este se encontrava àquela hora com sua tribo dentro e nos arredores do templo de Tanfana, um dos nomes pelos quais Freya era conhecida na região, adicionados alguns elementos lunares. Fora construído por uma civilização já extinta, um dos únicos restos desta, à qual as tradições não atribuíam um nome, apenas alusões que fora completamente dizimada por um lendário povo-dragão, proveniente do Deserto da Morte Branca na época em que não existia a muralha de Barda, vencido somente por Wodan, Donar e outros deuses. Era uma construção de pedras azuladas que liberavam uma estranha poeira arenosa, que muitos queruscos consideravam sagrada, atribuindo-lhe poderes de cura quando misturada à água; estava coberta de

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musgos e suas colunas e sua cúpula eram arredondadas. Em seu interior, esculpidas nas paredes, figuras femininas de diferentes formas, provavelmente aludindo ao caráter multifacetado da deusa, a representação mais marcante uma em que aparecia com serpentes em mãos, ao lado de um pinheiro, uma águia passando acima, o que era interpretado como um oferecimento dos ofídios, símbolos da terra, ao pássaro, símbolo celestial: uma referência ao casamento de Tanfana com Wodan; por isso que era às vezes identificada também com Frija. A árvore, por sua vez, aludia a Yggdrasil. Os esposos de toda a Queruscia deviam, era recomendado pela tradição, visitar ao menos uma vez na vida o lugar e passar as mãos por aquela arte, pedindo as bençãos da deusa. Como estavam em um local sagrado, Oderich e os seus decidiram aproveitar o tempo e ficar o quanto pudessem todos, ou quase todos, acordados em volta das fogueiras, dançando, comendo, bebendo, fazendo orações e pedidos aos deuses e ouvindo as histórias do bardo. Entre estas, com os mais jovens particularmente atentos, uma garotinha chegando a beliscar o joelho do avô que começava a cochilar, uma sobre como Donar perdera e recuperara seu martelo: “O grandioso Donar acordou furioso, pois seu martelo desaparecera. Sua barba tremia, desta escapando raios, e seu cabelo se eriçava. Não podia mais conter os movimentos selvagens de seu corpo. Começou a procurar desesperadamente pelo Mjolnir, quando viu Loki e resolveu lhe falar: 'Ouça bem o que vou lhe dizer! Meu martelo foi roubado e ninguém sabe ainda em que lugar do céu ou da terra se encontra.' Loki decidiu ajudar o senhor da tempestade, e foram juntos para o belo lar de Freya, onde o deus dos truques pediu a ela: 'Empreste-me seu casaco de penas, para ajudar nosso irmão Donar a encontrar seu martelo.', ao que a deusa replicou:

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'Claro. Por essa razão eu o emprestaria a vocês mesmo que fosse feito de ouro ou prata', e então o casaco de penas zumbiu e Loki voou com ele, saindo de Asgard e chegando a Jotunheim, onde encontrou Trymr, senhor dos Tursar, sentado sobre um monte, trançando coleiras de ouro para seus cães cinzentos e aparando as crinas de seus cavalos, todos gigantescos. O jotun indagou: 'Como vão os Ases? O que faz aqui em Jotunheim?' Loki respondeu: 'Vão mal os Ases, pois foi roubado o martelo de Donar. Por acaso você sabe dele?' E Trymr logo admitiu, e ainda fez uma exigência: 'Está na pista certa. EU escondi o martelo de Donar oito léguas abaixo da Terra, em um ponto que apenas eu conheço. Ninguém o conseguirá de volta, a menos que tragam Freya, para que se torne minha esposa.' Loki como um falcão voltou à terra dos Ases, onde se reencontrou com Donar, que lhe falou com os pés firmes no solo, enquanto o deus mensageiro ainda se encontrava nos ares: 'Que novidades nos traz? Aposto que traz consigo também dificuldades. Diga-me enquanto ainda está no ar, pois até se sentar a história não estará mais fresca. Não quero saber de esquecimentos, distorções e mentiras', e Loki replicou: 'Tenho de fato novidades e dificuldades. Pois Trymr, o senhor dos Tursar, está com seu martelo, que ninguém conseguirá de volta, a não ser que levemos Freya até ele, para que a tome como esposa.' Donar foi até a deusa, e lhe ordenou: 'Freya, coloque a veste nupcial. Juntos iremos para Jotunheim' Freya ficou furiosa e bufou de raiva, os salões dos deuses tremeram, e a deusa replicou com revolta, negando-se a cumprir tal determinação: 'Serei considerada uma mulher vulgar se for dessa forma para Jotunheim com você!'

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Então os deuses se reuniram, debateram por um longo tempo, mas parecia impossível encontrar uma solução. Até que Heimdall, o mais branco dos deuses, que podia ver a grandes distâncias, falou: 'Coloquemos a veste nupcial e o colar Brisinga de Freya em Donar. Deixemos as chaves oscilarem nele, que suas pernas fiquem bem cobertas, pedras preciosas ornando seu peito, e que sua cabeça seja cuidadosamente escondida sob um capuz e seu rosto por um belo véu.' Donar, o poderoso, replicou: 'Se me vestir dessa forma, todos zombarão de mim, dirão que sou afeminado.' Loki, já despido do casaco de penas de Freya, procurou atuar no convencimento: 'E quem terá coragem de dizer isso? De frente, certamente não dirão nada. Se disserem por trás, não se importe, pois só estarão se mostrando baixos. Não diga mais nada e consiga seu martelo de volta, ou logo veremos os jotuns invadirem Asgard!' Feitos os preparativos, Donar partiu com junto com Loki, o solo se abrindo, o fogo chamuscando a terra e as montanhas rachando à medida que os dois Ases viajavam rumo a Jotunheim. Quando já estavam próximos, Trymr os viu, se entusiasmou, e disse a outros gigantes do gelo, ainda inertes àquela hora, pois era manhã bem cedo: 'Levantem-se, jotuns, e espalhem os bancos com palha! Estão trazendo Freya, a filha de Njord, para que seja minha noiva. Tragam as vacas de chifres dourados e os bois negros que pastam pelas minhas terras! Quero lhe mostrar meus tesouros, e lhe dizer que apenas ela me fazia falta!' Os Ases chegaram e, quando a noite veio, a cerveja foi trazida junto com o jantar de núpcias. O marido de Sif comeu um boi, oito salmões e bebeu três tonéis de hidromel. Trymr não resistiu e comentou: 'Nunca havia visto uma donzela com tanta fome e que consiga beber tanto sem ficar embriagada.'

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Loki procurou e encontrou as palavras adequadas para falar ao jotun: 'Freya jejuou por oito noites, tão loucamente ansiosa que estava por Jotunheim. Não pensava nem em comer, nem em beber, só em chegar aqui. Só se deu conta da fome e da sede quando nossa viagem terminou.' Trymr em seguida observou: 'Mas ela come de cabeça baixa. Não precisa ser tão tímida, está na hora de mostrar seu rosto, que por sinal já tive oportunidade de ver, foi quando me apaixonei!', e tentou puxar-lhe o véu, cobiçando um beijo, só que acabou dando um salto para trás, e comentando a seguir: 'Como são terríveis os olhos de Freya! Só consegui vê-los de relance, e o fogo parece queimar por eles! Mas por que estão assim? Não eram assim, que eu me lembre.' Não foi difícil para Loki explicar: 'Você nunca tinha visto os olhos dela de perto. Mas não se preocupe, irá se acostumar. Além disso, Freya não tem dormido. Já há oito noites que sofre de insônia, de tão ansiosa que estava para chegar nestas terras.', e o gigante sacudiu a cabeça, disse que não aguentava esperar mais pelo momento de tê-la em seus braços, que estava mais ansioso do que nunca, e ordenou aos seus servos para que trouxessem o fadado martelo Mjolnir para que abençoasse a união de ambos. Após isso ser feito, o martelo seria devolvido aos Ases. Contudo, ao tocar o joelho da suposta noiva com o Mjolnir, mal ouviu a gargalhada de Donar e já estava no chão, derrubado pela força do deus, que em seguida recuperou sua arma sagrada. O coração do senhor do trovão ria em seu peito, e primeiro ele matou o próprio Trymr, esmagando na sequência todos os parentes do jotun, inclusive sua velha irmã, que exigira um presente nupcial e acabou levando uma boa pancada em vez disso. Dessa forma, o filho de Wodan recuperou seu martelo.”, porém nem tudo poderia ser êxito, festa e alegria...

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O som das armas, cavalos e armaduras era de uma aproximação do grosso do exército latino, mas uma parte deste, formada por arqueiros e homens com lanças em trajes leves, tinha ido na frente e se encontrava escondida atrás das moitas e árvores do lugar havia um bom tempo, aguardando o melhor momento para atacar. Quando os disparos começaram, a tribo querusca levou um susto, e não demorou para toda a região do templo ficar cercada pelas legiões, alguns cavaleiros trazendo até tochas e incendiando não só as tendas dos bárbaros como não tendo piedade em atiçar fogo no templo da deusa. “Malditos latinos! Estão por todas as partes!”, Oderich e seus homens não estavam prontos, alguns até um pouco embriagados; o ataque foi muito rápido e não tiveram tempo para reagir: acabaram massacrados, o líder um dos poucos adultos a sobreviver. Oderich foi levado à tenda de Drusus, bastante ferido, seu torso nu riscado e salpicado de sangue; o semblante humilhado e exausto, mas furioso. “Disseram que este é o líder deles, general.”, um dos tribunos o apresentou, enquanto era seguro por dois legionários. “Mas não é Irmin. Não é a tribo de Irmin.”, Cassius Chaerea, sobrevivente da batalha de Osnabruck, estava ao lado de Drusus. “Irmin? Pouco entendo vocês falam do que...Mas nome Irmin entendo.”, Oderich tentou falar em língua latina. “Quem é você?”, indagou o general. “Sou Oderich. Se Irmin conhece, deve falado de mim ouvido ter.” “Claro que sim.”, Cassius tornou a intervir. “É o maior inimigo de Irmin. O que acha, general? Devemos deixá-lo vivo e usá-lo contra Irmin? Talvez seja uma boa estratégia.” “Não sei se isso seria bom.”, Claudius Drusus encarou o querusco com seus olhos ferinos. “Publius Varus tentou fazer

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acordos com esses bárbaros e você sabe perfeitamente qual foi o resultado. Não acredito que qualquer aliança com essa gente seja proveitosa para nós.” “Podemos mantê-lo vivo apenas como informante.” “Ele não deve saber tanto assim sobre a tribo rival, além de mal conseguir falar a nossa língua. Assim como o pegamos, pegaremos Irmin. Não vejo a menor necessidade de manter esse ogro vivo.” “O que vamos fazer então?” “Você não aprendeu ainda? Quer passar por outra vergonha como a que passou quando estava no exército de Varus?”, e voltou-se para o tribuno: “Matem todos os homens adultos que sobreviveram; os velhos também. Só quero vivas as crianças e as mulheres, cuja maioria levaremos para Latina para que se tornem escravas. Se houver alguma bela loira, tragam-na para mim. Quero a mais bonita.” “Você isso vai não fazer...Nossas mulheres é honradas! Livres é nossos filhos!”, Oderich começou a se agitar e a esbravejar, por mais fraco e cansado que estivesse fisicamente. “Você é um perdedor. Não há nada que possa fazer.”, Claudius se levantou de seu assento estofado em púrpura e carmesim. “Degolem essa aberração imunda. Como ele cheira mal!” “Lutar comigo! Covarde!” “Nunca perderia tempo lutando contra um porco como você.”, e Oderich foi arrastado para fora da tenda, insultando Drusus com os piores nomes que conhecia, dos poucos latinos que sabia aos mais pesados palavrões queruscos; não demorou para ser silenciado, sua garganta cortada, assim como as dos demais homens adultos ainda vivos por ali. “Estas terras são frias e inóspitas. Não nos servem. Mas vamos fazer com que vocês bárbaros fiquem bem quietinhos, vamos domesticá-los, animais indóceis! Nunca mais irão atrapalhar nossas relações com

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Barda. Para cada comerciante nosso de passagem que for assassinado, cem homens queruscos vão morrer. Para cada vilarejo de fronteira atacado, uma tribo inteira será exterminada.”, o duro general disse depois a um pequeno grupo de crianças e mulheres, a maioria destas as mais idosas, e as moças pouco atraentes ou adoentadas, que iria largar na floresta; se sobrevivessem, dariam o recado ao próximo clã que encontrassem. “Mas nós não atacamos nenhum vilarejo de vocês.”, disse uma avó, das raras a falar o idioma latino com alguma desenvoltura, seu netos apavorados grudados à sua saia. “Por acaso exterminamos a tribo inteira? Não matamos vocês mulheres e suas crianças! Esqueci de precisar mais um ponto: se legiões nossas forem abatidas nestas terras, vamos esmagar uma, duas ou três tribos, só não vamos executar as mulheres e crianças. Foi o que fizemos, não foi? Já o crime de assassinar civis do Império é mais grave do que matar soldados, que devem estar sempre prontos para morrer; por isso, se atacarem cidades ou aldeias, serão todos executados, mulheres e crianças inclusive.” “Mas não foi a nossa tribo que matou soldados de vocês!” “Não interessa! O que importa é que perdemos legiões nestas terras. Passe adiante esta mensagem à próxima tribo que encontrar, se encontrar, porque não sei se ficarão vivas, mas vou lhes dar essa chance: o fato de viver no mesmo território de uma tribo que é nossa inimiga, significa ser nossa inimiga também.”, e deu as costas ao choro e aos gemidos daquelas crianças e mulheres que considerava feias e decadentes para se dirigir de volta à sua tenda, onde uma arredia jovem querusca o esperava, ansioso para domá-la... No alto, sem poder ser vista por olhos físicos, seus corvos pousando nas árvores ou voando pelo lugar, eles em busca de

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cadáveres, ela em busca de almas, a valquíria Hlokk: de pele negra e cabelos e olhos prateados, em um traje preto com alguns traços e pingentes marrons e acobreados, botas escuras até a altura dos joelhos, parte das coxas à mostra, segurava em suas mãos, seus dedos indicadores com anéis platinados, uma esfera dinâmica ora celeste, ora azul-escura, ora lembrando um pedaço do espaço sideral, sua matéria de aparência gasosa em constante movimento; quando aparecia nesta a cabeça de um corvo com os olhos em brasa, muito rapidamente, as almas que a emissária de Odin iria levar ao Valhala eram sugadas para dentro. Puxou alguns dos homens do bando de Oderich, sem nenhum contato com eles, como era seu costume, de súbito interrompida por uma trava, incomodada por um chamado tortuoso e persistente, feito uma engrenagem emperrada: era o espírito do líder da tribo, que rastejava e grunhia, com um vórtice obscuro às suas costas que tentava sugá-lo, o bárbaro resistindo em desespero e ódio, agarrando-se a pedras e troncos de árvores. Começou a bradar: “Você é uma valquíria, não é? Por que está levando companheiros meus ao Valhala e não a mim? Fui o chefe desta tribo! O que você está fazendo é absurdo! Como pode levar os mais fracos e deixar quem é forte para trás?! Não quero ser tragado pelo inferno!” “Força bruta não é o bastante. Você não cumpre a maior parte dos requisitos necessários para se tornar um einherjar. Odin não o admitiria como companheiro de batalha.” “Isso não é justo!”, a força de atração do vórtice ia aumentando, acompanhada pelo início de um tufão no plano espiritual. “Não é você, humano, que deve determinar o que é justo e o que deixa de ser.” “Maldito então seja Wodan! Não passa de um fraco, com suas exigências ridículas, que privilegiam os mais débeis! Não é à

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toa que no final dos tempos será devorado pelo lobo Fenrir! E você, sua vadia celestial, deveria estar no inferno!” “Agora você foi longe demais, homem ignóbil.”, com o semblante impassível, Hlokk desembainhou sua fina espada prateada, que materializou pássaros ao seu redor a partir da luz emanada; estes pareciam feitos da mesma substância da lâmina e, com suas garras e bicos metálicos, avançaram contra Oderich e o estraçalharam. “Hel, esta alma lhe será entregue em pedaços.”, que foram engolidos pelo portal, que desapareceu, ao passo que os ventos cessavam.

Alguns dias se passaram, e uma das mulheres do bando de Oderich acabou sendo encontrada pelo clã de Irmin. Estava apavorada e não conseguia parar de chorar, sua roupa rasgada, seus joelhos feridos, suja de sangue e lama. Mínimas as diferenças dialetais entre uma tribo e outra, explicou o que acontecera, a derrota de sua tribo, a execução do líder e dos homens, expôs suas desventuras, a única sobrevivente de seu grupo, que sofrera com o ataque de um urso e de um bando de lobos, e passou o recado do general Drusus. “Precisaremos ficar muito atentos. É necessário redobrar o número de vigilantes à noite, e durante nossas festas infelizmente alguns não poderão participar, terão que ficar de vigias nas proximidades. Essas medidas devem durar pelo menos enquanto os latinos estiverem marchando com sede de vingança por estas terras.”, o líder disse na assembleia da tribo, da qual participavam todos os homens adultos, inclusive os muito anciãos, e uma mulher: Thusnelda. “Talvez seja o momento de considerarmos a fuga. Se a tribo de Oderich, que era aproximadamente do mesmo tamanho da nossa, foi esmagada com tanta facilidade pelas legiões do Império, devem ter vindo em muito maior número e mais bem

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armados desta vez.”, interveio um dos participantes. “Talvez seja o momento de considerar seriamente o convite de Marbod. Os latinos não irão até lá.”, disse um dos mais velhos. “Não sei se essa é a estratégia correta. Poderíamos cruzar com eles no caminho, e é melhor não subestimar esse tal de Drusus. Pelo que parece, ele irá até o inferno atrás das nossas cabeças, pela humilhação à qual os submetemos vencendo Varus.”, opinou um terceiro. “Exatamente. Além disso, só iremos adiar o problema. Se fugirmos, cedo ou tarde seremos alcançados. Podem me dizer que teremos tempo até lá para nos prepararmos para o embate decisivo, mas acho que quanto antes expulsarmos os latinos destas terras, melhor, pois caso contrário eles virão com exércitos cada vez mais poderosos.”, foram as palavras de Irmin, que fez questão de deixar clara sua posição: “Sou pela luta. Devemos permanecer aqui e cercar este lugar, preparar armadilhas, adestrar lobos, tomar todas as medidas cabíveis para nos defendermos com eficiência. Temos duas escolhas: a vitória ou a morte. A fuga cedo ou tarde nos conduzirá à morte.”, pouco depois, na tenda do casal-em-chefe, o marido ainda desabafou com sua esposa: “A morte de Oderich deixou no meu coração dois sentimentos ambíguos, fortemente contraditórios. Por um lado, me senti vingado pela morte do meu pai e pelo incêndio da floresta; por outro, frustrado por não ter sido eu a dar pessoalmente um fim no desgraçado. Fora que, apesar de tudo, ele era uma ameaça menor do que os latinos, que não tiveram respeito nem pelo templo de Tanfana.” “Você foi nobre ao dar novos trajes àquela mulher e ao aceitá-la em nossa tribo. O que importa é que você está vivo e não Oderich, que não valia nada. Não são relevantes as circunstâncias em que ele morreu, ou se era pior ou melhor do que os latinos. Relevante é você estar aqui, e seu pai já ter sido

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vingado pela justiça dos deuses. Imagine o que aconteceria se Oderich tivesse tido a oportunidade de colocar as mãos numa das nossas mulheres!”, Thusnelda replicou. “Degolaria qualquer uma sem a menor piedade. E não quero nem pensar no que faria com você...” “O desgraçado poderia até me matar depois, mas eu teria um punhal escondido para cortar algo que ele devia considerar muito precioso.” “Hahaha! É melhor deixarmos os mortos como ele bem mortos. Vamos parar de relembrar como era e o que fez. O mais sensato a se fazer é nunca mais tocar no nome dele. E o exemplo deve partir de mim.” “Concordo plenamente.”, algumas noites depois, em ocasião da celebração de um casamento, foi encenado, com Kalkris sendo o narrador, o tradicional poema Skirnismál, que era executado sempre que havia um matrimônio, em geral após o término da cerimônia. Thusnelda e Irmin, como os demais casais da tribo, costumavam ter boas recordações daqueles versos; viúvos e viúvas que dificilmente não iam às lágrimas ao ouvi-los. Começava pelo canto do narrador: “Freyr, filho de Njord, havia se sentado no trono de Wodan, na ausência temporária deste de Asgard, e visto todos os mundos. Olhou então para Jotunheim, e lá viu uma belíssima donzela saindo do salão de seu pai e indo para o jardim. Após perdê-la de vista, atrapalhado por uma desagradável névoa, caiu em depressão profunda. Njord e Skadi, mãe do deus, ao se darem conta daquela tristeza, pediram a Skirnir, servo e mensageiro tanto deles como do filho, para que fosse falar com Freyr.” “Levante-se agora e vá pedir a ele que fale. Pergunte-lhe com quem está aborrecido.”, a mulher, bastante alta, que representava Skadi, estava com o corpo quase todo coberto por uma túnica marrom, inclusive a cabeça sob um capuz, no rosto

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uma máscara escura com traços que aludiam à deusa das montanhas; segurando um arco, somente seus pés expostos, descalços, possuía uma voz muito possante. “Palavras ruins terei de seu filho se for até ele e lhe perguntar com quem está aborrecido.”, o que fazia Skirnir era um jovem loiro e esbelto, todo trajado de verde. “Apenas cumpra as nossas ordens.”, o que representava Njord era um cantor já veterano, de barba grisalha. “E Skirnir foi, pois não iria contrariar seus senhores. Disse ele a Freyr:”, o narrador introduziu mais uma cena; o que fazia a parte do deus Freyr era um rapaz de longos cabelos, loiros como sua barba não muito espessa, sentado sobre uma cadeira toda entalhada com detalhes que aludiam aos deuses de Asgard, que representava o trono de Wodan. “Diga-me meu senhor, o que desejo saber. Por que o senhor se senta sozinho, triste no salão, durante todos os dias e todas as noites? Na ausência de nosso rei Wodan, o senhor deveria estar dirigindo Asgard com o pulso firme que sabemos que possui.” “É porque o sol brilha todos os dias, mas não em meu coração.” “E por que não? Sei muito bem o quanto reluz o peito do senhor. Lembro de quando éramos mais jovens, em dias de outrora, e como podíamos confiar um no outro!” “É que no salão de Gymir vi uma linda donzela andar perante mim, e de lá os braços dela brilhavam mais do que o céu e o mar juntos. Essa donzela agora é amada por mim mais do que qualquer outra, e mais do que qualquer outro ser já a tenha amado.” “Me dê seu cavalo então, para que eu possa cortar a escuridão, chegar em Jotunheim e passar por cima do círculo de fogo. Precisarei porém de sua espada que se move sozinha, a fim de usá-la contra a tribo dos gigantes.”

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“Darei a você o cavalo e a espada se for sábio para dirigi-lo e empunhá-la.” O que representava Skirnir foi até o cavalo que fazia o papel do cavalo de Freyr e disse: “É escuro lá fora. Agora digo: deixe-me viajar acima das demoradas montanhas, e ambos voltaremos triunfantes para receber as graças de nosso senhor.” O narrador deu continuidade, a cavalgada discretamente encenada: “Skirnir cavalgou para Jotunheim, até que chegou nos domínios de Gymir, lá onde estavam os selvagens cães amarrados ao portão de entrada do palácio onde Gerd vivia.”, para representar os cães, esculturas de madeira de aparências ferozes e não os cachorros verdadeiros da tribo, que em sua maioria eram magros e sobretudo dóceis e nada disciplinados. “Desviou seu percurso para não entrar em conflito com as feras, perguntando para um gigante pastor que encontrou sentado sobre um monte:” “Diga-me, pastor que se senta sobre a montanha, que guarda os caminhos: como podemos chegar a falar com a jovem donzela longe dos cães nervosos de Gymir?” “Você quer se atar à morte ou é morto? Nunca conversará com a boa filha de Gymir.”, o que fazia o grande pastor era um sujeito bonachão de barba espessa e escura. “Melhor ser corajoso do que lamentar parado. Um dia minha vida foi gerada e uma longa existência foi oferecida a mim.” “Que barulho é esse, que ouço agora em nossos domínios? A terra parece que está tremendo.”, a voz natural mas não treinada de soprano pertencia à moça que representava Gerd; como recomendava a tradição, tratava-se da esposa do que representava Freyr. Ao seu lado, a que fazia uma criada da bela jotun: “Há um homem lá fora que desceu das costas de seu cavalo e o deixou no pasto.”, as duas ficavam atrás das esculturas de

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cães. “Convide-o para entrar em nosso salão e beber todo nosso hidromel. Embora eu tema que lá fora possa estar o matador de meu irmão.”, e continuou quando o mensageiro entrou, trazido pela serva, ultrapassados os cães: “Você é um elfo ou um deus? Por que veio só sobre o fogo selvagem e cortando as trevas para conhecer nosso salão?” “Não sou um elfo e nem um filho dos Ases, embora tenha vindo sozinho sobre o fogo violento. Tenho aqui onze maçãs de ouro, que darei a você, Gerd, a fim de iniciar um acordo de modo que você dirá a Freyr que ele é o homem mais amado que existe.”, as maçãs, ocas, haviam sido pintadas de amarelo. A polpa fora usada para se fazer um doce que seria servido após a encenação. “Nunca aceitarei suas onze maçãs de ouro para satisfazer o desejo de Freyr. Enquanto nossas vidas durarem, nós não viveremos juntos! Pois não sou do tipo de donzela que pode ser comprada por homem algum, mesmo que este seja um deus!” “Darei a você o anel que esteve na pira com o jovem filho de Wodan. Oito anéis de peso igual saem dele a cada nove noites.” “Não desejo o anel, embora ele tenha estado na pira com o jovem Baldr. Não sinto falta de ouro no salão de Gymir, pois compartilho da abundância de meu pai.” “Você vê esta espada afiada brilhante que tenho aqui em minhas mãos, donzela? Cortarei sua cabeça, a menos que concorde comigo.” “Ameaças nunca me forçaram a realizar o desejo de qualquer homem. Se meu pai encontrar você aqui, acabará por esmagá-lo. É melhor que se retire.” “Melhor é que não pense assim. Por esta lâmina, o velho jotun cairá. Quer ver seu pai morto? Melhor que aceite, donzela. Ou você e Gymir irão para Nifelheim, você se sentará para sempre

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no monte da águia, nunca mais poderá voltar ao seu lar, e a comida lhe será mais repugnante do que Jormungand é para os homens. Os fantasmas não tirarão os olhos de seu corpo. Loucura e lamentação; grilhões e impaciência; grande sofrimento e dupla aflição; inimigos a subjugarão através de dias escuros, e na corte da rainha dos mortos você rastejará sem esperanças de escolha. Terá lágrimas no lugar de riso; torturas no lugar de diversão; sem marido, sua mente será estúpida e sua agonia irá consumi-la. Andei pelos bosques, em florestas úmidas, para conseguir um talismã mágico que pudesse forçar a sua conversão. Não gostaria de usá-lo, mas me verei obrigado, já que não quero enviá-la para Nifelheim. Wodan logo estará furioso com você, Freyr a odiará, e você contrairá a fúria mágica dos deuses, caso não venha comigo.” “Não virei.” “Não diga isso! Não quero usar este talismã!” “Não o use então.” “Ouçam-me, gigantes! Ouçam-me, filhos dos deuses! Ouçam-me, homens e elfos! Proibirei a esta donzela a alegria e a companhia dos seres do sexo masculino! E seu pai logo a verá sob os portões da morte, onde o escravo lhe dará, abaixo das raízes das árvores, mijo de cabra para beber. Nunca mais tomará outra bebida, e isso é por seu próprio desejo, donzela. Esculpirei uma runa Turs, a torturadora de mulheres, para você! Mas saiba que posso retirar os traços da mesma maneira que posso introduzi-los, caso a necessidade surja.” “Nisso, Gerd mudou drasticamente de expressão!”, o narrador introduziu uma mudança: “Bem-vindo agora, jovem heroico! Sua coragem e sua determinação são realmente admiráveis. Só posso lhe dar agora as boas-vindas porque enfim me convenceu de algo que a princípio não me pareceu razoável. Tome este copo fresco de

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venerável hidromel, por mais que eu nunca tivesse pensado que deveria amar para sempre o filho de Njord e Skadi.” “Quero saber se cumpri minha incumbência antes de cavalgar de volta para Asgard. Quando você conhecerá num encontro o poderoso filho de Njord?” “Sabemos que há um silencioso bosque chamado Barri. Daqui a nove noites, lá entregarei meu amor a Freyr. Se ele for tão corajoso e tenaz quanto seu mensageiro, estou certa que me fará muito feliz.” “Então Skirnir cavalgou de volta ao lar. Freyr estava do lado de fora e falou com ele, perguntando por novidades:”, Kalkris cantou o desenvolvimento da ação. “Diga-me, querido Skirnir, antes que desarreie o cavalo, o que ganhou em Jotunheim; teria sido algo para o meu e seu prazer?” “Sabemos que há um silencioso bosque chamado Barri. Dentro de nove noites, será lá que Gerd dará seu amor ao senhor”. “Uma noite é longa. Duas ainda mais. Como suportarei três? O que dizer de nove?” “Mas espere, e terá a felicidade.”, e a encenação se encerrava com uma dança e um canto coral entre todos os cantores-atores e um beijo entre Freyr e Gerd. Thusnelda e Irmin decidiram seguir o ritmo e também se beijaram, primeiro com suavidade, depois intensamente.

As legiões de Drusus continuavam a avançar, só se detendo, mantendo-se em guarda e cautela, ao verem se manifestar na escuridão da floresta uma ambígua luz azul, que ora clareava, ora escurecia, cuja fonte misteriosa ainda não estava visível. “O que será isso, general?”, um dos cavaleiros de elite perguntou ao sobrinho do imperador.

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“Muito ouvi falar de fenômenos misteriosos que ocorrem nestas florestas, de duendes, fadas, sátiros, gigantes e outras criaturas estranhas. Mas geralmente esses seres e eventos fora da ordem natural das coisas são referidos por gente supersticiosa e ignorante. Nunca há relatos sérios a respeito. Você chegou a ver algo diferente e misterioso enquanto esteve aqui com Varus, Cassius?” “Nada senhor. Mas essa luz é verdadeiramente incomum.”, replicou a Drusus o sobrevivente à batalha contra a tribo de Irmin. “Incomum enquanto não descobrirmos sua causa, que deve ser algo simples e banal, como sempre.”, era muito distinta da claridade do fogo produzida pelas tochas que o exército imperial carregava consigo. O general mandou que alguns homens avançassem para fazer o reconhecimento, mas antes disso a luz brilhou com mais força e despontou o que a emanava: um indivíduo em uma armadura pesada de um negro profundo com detalhes prateados, que devia ter quase dois metros de altura; nenhuma abertura, nem para os olhos, nem para o nariz, nem para a boca, um elmo completamente cerrado; todavia, o misterioso sujeito avançava, uma presença fantasmagórica, indiferente às legiões. “O que é essa coisa?”, indagou um dos equites extraordinarii de Drusus. “Não parece ser hostil.”, respondeu outro. “Que calafrio!”, exclamou Cassius. “Vamos capturá-lo.”, disse o general. “O senhor tem certeza disso??? Não está nos ameaçando. Por que deveríamos incomodá-lo?” “Não seja medroso. Nunca fui de acreditar em feitiçaria, mas se esse homem for um feiticeiro real, talvez nos seja útil.” “Mas ele pode ser de alguma tribo querusca!”

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“Não me parece. Aqueles bárbaros não costumam usar armaduras pesadas e completas como esta, você sabe disso. E se por acaso for aliado dos queruscos, passará para o nosso lado.”, e seguindo as ordens do general, alguns legionários e cavaleiros cercaram o misterioso indivíduo, que só então parou. “Quem é o senhor? Diga-nos seu nome, a que país ou tribo pertence e para onde pretende ir.”, um dos centuriões apontou sua espada para o desconhecido. “Sou Endill, cavaleiro de Barda. Por favor, deixem-me seguir em frente.”, respondeu o homem trancafiado na armadura, com uma voz gutural metálica. “Ouvi que é um cavaleiro de Barda. Bem que imaginei que não fosse um desses brutos queruscos!”, Drusus, que já estava relativamente próximo, se aproximou mais. “Mas pela estranha luz que emana, não me parece um cavaleiro comum. E onde está seu cavalo? O que veio fazer por estas terras? Somos do Império Latino, e seria de nosso comum interesse submetermos estes bárbaros que atrapalham a livre circulação entre nossos territórios.” “Perdoe-me, senhor. Mas não sirvo mais o meu reino. Infelizmente. Estou numa missão solitária e devo seguir adiante.” “O que houve? Por acaso caiu em desgraça com seu soberano?” “Não. Minhas razões para deixar a corte de meu rei foram mais profundas.” “Você é evasivo. Está claro que não gosta de responder as perguntas que lhe faço; é vago nas respostas. Talvez seja melhor que lhe faça uma pergunta de cada vez. Para começar, uma curiosidade: onde aprendeu a falar tão bem a nossa língua?” “Já cheguei a realizar missões diplomáticas enquanto estive a

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serviço de meu rei.” “Interessante. Testem esse homem, soldados!”; os legionários sabiam perfeitamente o que essa frase significava: e avançaram com seus gládios contra o guerreiro solitário, que desembainhou a enorme espada que trazia em suas costas. Pelo tamanho da arma, pensaram que fosse lento e pouco ágil, mas com um único movimento cortou ao meio quatro soldados latinos. Na sequência, demonstrou além da força uma velocidade sobre-humana, movendo-se como um raio azul, derrubando cavaleiros e ferindo gravemente outros legionários, destruindo escudos e gládios, cortando-lhes pernas e braços; os arqueiros atiraram, mas as flechas retornavam para eles próprios e perfuravam seus pescoços, peitos e coxas. “Já chega! Basta!”, impressionado e assustado, Drusus deu a ordem para cessarem com o ataque. Concomitantemente, Endill parou de se mover de forma frenética e tornou a embainhar sua espada. “Esse homem não deve pertencer a este mundo.”, comentou um dos equites. “Diria que pertence às hostes de Plutão.” “Espero que tenham compreendido que precisam me deixar ir em frente.”, o cavaleiro voltou a falar. Ainda era impedido de avançar por uma barreira de soldados latinos, que tremiam, mas não os atacava porque já não era agredido. Pretendia seguir adiante de maneira pacífica. “Parece-me um guerreiro excepcional. Sobrenatural, na verdade. A primeira realidade sobrenatural que testemunho em toda a minha vida. Causou um considerável prejuízo às minhas legiões.”, disse o general. “Mas isso só me faz pensar, embora me amedronte um pouco, em tê-lo como aliado. Você não é um cavaleiro de Barda. Não pode ser só isso.” “Talvez eu deva dizer que fui um cavaleiro de Barda. Hoje não sei mais o que sou. Se fosse o senhor, ficaria longe de mim.

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Pode-se dizer que estou amaldiçoado pela deusa da morte.” “General...É melhor deixá-lo ir.”, Cassius sugeriu, tentando não gaguejar. “Lutaria com todo este exército se eu dissesse que pretendo forçá-lo a lutar ao meu lado?”, Drusus ignorou o apelo do soldado. “Talvez, todos juntos, conseguissem me destruir. Mas o senhor perderia mais da metade dos seus homens e provavelmente sua própria vida. Não acho que tenha algo a ganhar lutando comigo.” “Um homem que vale por meio exército! Não consigo acreditar nisso.” “Já fui um homem comum. Mas hoje sou um demônio. E para ser sincero, neste momento o senhor provocaria um motim entre seus homens se os forçasse a lutar comigo. Eles não parecem dispostos a me enfrentar depois que viram do que sou capaz. Quiçá alguns ficassem a seu favor, mas isso provocaria uma luta interna contra os demais. De qualquer forma, seria uma tragédia.” “Além de uma força sobre-humana, também possui uma inteligência acima da média. Você deve ser um desses feiticeiros que caíram nos ardis dos deuses mais traiçoeiros; afinal, apesar de muito esperto, ainda é humano. Pensei que essas histórias não passassem de lendas, porém vejo diante dos meus olhos, com espanto e maravilhamento, que se trata de algo real! Não pode imaginar como isso me deixa intrigado e fascinado, não é por acaso que desde primeiro o momento que o vi pensei em tê-lo ao meu lado! Gostaria de ouvir suas histórias...Não podemos fazer nada para ajudá-lo, para livrá-lo de sua maldição?” “Não há nada que possam fazer. Depende apenas de mim. E não consigo compreender essa felicidade que emana do senhor

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por estar diante de minha pessoa.” “É porque já cheguei a pensar que todos os deuses não passassem na verdade de meros mitos. Mas vejo que não! A sua presença para mim é uma revelação da existência do sagrado!” “Se o senhor pudesse se sentir como me sinto, minha tristeza, minha desgraça, pensaria que a existência dos deuses não é algo bom para o homem, e sim sua perdição, a perspectiva da eternidade do sofrimento, sem esperanças de descanso.” “Fique só mais um pouco, para nos contar sua história.” “Não lutarei jamais ao lado de vocês, que fique claro. E nem contra. Meus interesses atuais vão além deste mundo. Contudo, se quer tanto ouvir a minha infeliz história, ficarei mais um pouco, farei este esforço para não ser descortês.” “General, isso é absurdo! Por que devemos ficar mais tempo com esse monstro por perto? Deixe-o ir embora!”, protestou um equites. “Ele pode tornar a nos atacar de repente! É muita imprudência, muita temeridade, deixar este indivíduo aqui entre nós apenas para satisfazer uma curiosidade!”, Cassius expôs seu medo e suas objeções. “Essa aberração matou Gaius, Marcus e Livius!”, gritou um soldado. “Ele cortou o meu braço!”, berrou outro, que estava recebendo os devidos socorros, assim como outros legionários mutilados por Endill. “Idiotas, covardes, bestas irracionais! Ele só nos agrediu porque nós o atacamos antes! Somos nós os culpados, e eu assumo essa culpa!”, bradou Drusus. “Não se preocupem, não vou deixá-lo mais entre vocês! Armem o acampamento, vamos parar por aqui esta noite. Cavaleiro, siga-me. Vamos conversar à parte debaixo daquela árvore.” “General, isso é muito imprudente! Não pode ficar sozinho

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com esse...Homem.”, objetou Cassius. “Assumo meus próprios atos. Não se preocupem por mim. Tenho certeza que nada irá acontecer comigo.”, olhou para Endill, que obviamente não possuía nenhuma expressão; e enquanto o acampamento latino era armado e os mutilados tratados, os dois se afastavam. “Perdoe-me se o chamaram de monstro e aberração.” “Não me importo com isso. É o que realmente me tornei. E eu que me desculpo por ter matado e ferido alguns de seus homens.” “Eu que cometi o erro de querer testá-lo. Imaginei estar diante de algo sobrenatural, e era o que mais desejava, mas não consegui acreditar de imediato. Minha intuição, meu coração e minha razão estavam se contradizendo.”, e quando pararam debaixo de uma grande árvore fria, cujas folhas ficavam azuladas ao serem expostas à estranha luz de Endill, um pouco distantes dos soldados, o general perguntou: “Agora diga-me: o que é essa luz que sua armadura emana?” “Imagino que seja a luz de minha própria alma.”, retirou o capacete e Drusus levou o primeiro susto: o guerreiro misterioso não tinha cabeça. “Pode se aproximar.”, disse ao latino, e inclinou seu tronco. O general foi chegando devagar, e quando olhou para dentro da armadura viu que não havia ninguém no interior desta, apenas uma luz azul que não parava de irradiar. De perto e em imersão, não era uma claridade pacífica; daquela morte em vida, fazia-se escutar, não pelos ouvidos, uma impulsiva marcha de trovão.

“O grande deus Donar retornava do leste quando chegou a um canal. Do outro lado deste, encontrava-se um jovem gigante com seu barco. O deus do trovão o chamou: ‘Quem é você, que

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está do outro lado deste canal? Será que pode me ajudar?’, e o rapaz jotun respondeu com uma nova indagação: ‘Quem é o homem que me chama através das ondas?’ Donar replicou: ‘Gostaria que me levasse em seu barco! Ali-mentarei você pela manhã. Tenho um cesto nas minhas costas com as melhores iguarias. Antes de sair de casa, me saciei de arenque e bode, e já estou farto. Mas ainda carrego muita comi-da.’ O grande barqueiro respondeu, sua voz tão potente quanto a do deus: ‘Das façanhas das manhãs você se orgulha e se exalta ao recordá-las, mas na verdade não sabe de nada. As pessoas em sua casa estão muito abatidas, talvez sua mãe esteja morta!’ Donar reagiu a estas palavras com uma certa irritação: ‘Por que está me dizendo uma coisa que parece ser a mais grave que alguém possa ouvir? Por que se arrisca a dizer que minha mãe está morta?’ Veio a nova resposta do barqueiro: ‘Você está com as pernas nuas; carrega acessórios de mendigo; nem está usando calças! Deveria primeiramente se envergonhar dos seus trajes.’ Donar coçou a cabeça e disse: ‘O que você fala, a bem da ver-dade, não parece ter muito sentido. Dá a impressão que só quer me provocar. Traga logo este barco aqui e lhe mostrarei onde ancorar.’ O rapaz replicou: ‘Não sei se posso. O barco não é meu. Hil-dolfr é chamado aquele que me deu a custódia deste trabalho. Trata-se de um sábio guerreiro, que vive no canal Radsev. Ele me pediu para não atravessar ladrões, e pior ainda se forem la-drões de cavalos! Apenas bons homens passarão, e aqueles que, se não conheço, deverei avaliar. Diga-me o seu nome se quer atravessar o canal.’ Donar encheu os pulmões de ar e falou: ‘Direi não só meu nome como todo meu parentesco. Sou filho de Wodan, irmão

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de Meili e pai de Magni. Sou o deus todo poderoso da tempes-tade! É com Donar que você está conversando. Agora eu quero saber seu nome.’ O rapaz respondeu: ‘Sou chamado Harbardr, e raramente es-condo meu nome.’ Donar perguntou: ‘A menos que tenha uma razão forte, por que deveria esconder seu nome? Harbardr deu a resposta: ‘Quem possui o nome, possui a alma. E poucos são confiáveis. Nos iguais a você então, eu ja-mais confiaria. Soube qual sua identidade assim que o vi: por seu porte, por sua barba ruiva e pelo martelo que carrega; tudo isso apesar dos farrapos que veste, indignos de um dos Ases.’ O senhor do raio replicou: ‘Parece-me que está zombando de mim, jovem jotun. Não tenho ódio inerente à sua espécie, mas me parece que vocês não conseguem deixar de me detestar des-de o primeiro de seus irmãos que matei, mas que foi quem re-quisitou sua própria desgraça! Nada fiz gratuitamente! Não to-lero os que sem razão tentam zombar de mim!’ O barqueiro retorquiu: ‘Se pensa assim, venha me recompen-sar por minha zombaria. Nade até aqui. Ficarei à sua espera. Você não encontrará um adversário tão forte agora que Hrung-nir está morto.’ Donar manifestou alguma surpresa: ‘Ah, você sabe que en-frentei Hrungnir? Lembro-me daquele jotun, que tinha uma ca-beça de pedra! Mas eu o derrubei e ele morreu. O que você es-tava fazendo na época? Estava por perto?’, e o barqueiro res-pondeu: ‘Não. Apenas ouvi os relatos. Pois estive com Fjolvari por cinco invernos seguidos, em uma ilha chamada Algroen, onde nós combatemos, matamos e seduzimos donzelas! Foram tempos felizes!’ O deus da tempestade perguntou: ‘E como eram as mulheres que estavam com vocês?’

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Harbardr respondeu: ‘Aquelas moças seriam hoje felizes se ti-vessem sido dóceis. Seriam mulheres sábias, se tivessem sido fiéis. Enrolavam fios na areia e cavavam profundos vales na terra, mas fui mais esperto do que todas elas! Dormi com as sete irmãs, e tive muito prazer com todas.’ Donar comentou: ‘Pode se gabar o quanto quiser. Eu matei Thiasi, o poderoso jotun. Tirei os olhos do filho de Alvaldi, e os joguei para o alto, deixando que se fixassem no céu para tor-ná-lo mais brilhante.’ O barqueiro não deixou por menos: ‘Nem todos os feitos são de força. Sou hábil nos feitiços, e por meio de encantos de amor conquistei as belas feiticeiras que cavalgam os lobos no coração da noite. Algumas tinham maridos, mas isso não foi obstáculo para mim. Com uma poção, também levei o feroz Hlebard, que uma vez você enfrentou, à absoluta loucura. Isso porque ele tinha duvidado de minhas capacidades e de minha arte.’ O deus replicou: ‘Você é contraditório. Parece ser sórdido e rancoroso, mas não apenas comigo: também com os de sua própria estirpe. Se é assim, por que me detesta? Nada lhe fiz de mal.’, e o barqueiro retorquiu: ‘Você costuma deixar bem feri-dos, mas vivos, os piores de nós, como Hlebard, e mata os me-lhores. Alguém que faz isso quer que Jotunheim caia para sem-pre em desgraça. Ainda me pergunta por que o odeio?’ Donar procurou ignorar a provocação, e disse: ‘Apenas os melhores são dignos da morte, tanto que Wodan recruta os bra-vos que morrem em batalha. Mas admiro a lealdade e a solida-riedade mesmo entre os malvados. Recentemente, estive com-batendo no leste algumas jotuns malignas que andavam sobre as montanhas. Feiticeiras gigantescas! Mas eram leais umas com as outras, apesar de sua crueldade, tanto que em nenhum

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momento uma ameaçou fugir e deixar a outra me enfrentando sozinha.’ Harbardr disse então: ‘Não preciso do seu julgamento. Até poucos dias atrás, eu estava em Valland acompanhando e esti-mulando as batalhas. Incitei os príncipes locais a nunca aceita-rem a paz, porque esta amolece os homens.’ Donar em parte concordou: ‘Está claro que se tivesse poder para isso, você provocaria a discórdia e a guerra até mesmo en-tre os Ases.’ O pescador provocou: ‘Donar sempre se gaba de sua força, mas ficou apavorado com o terrível Fjalarr, nem ousando espir-rar ou tossir por medo que este o ouvisse! Imagine-se como fi-caria se Wodan o desafiasse, numa guerra entre os deuses! Você treme só de pensar nessa possibilidade, e que eu possa defla-grar um conflito em Asgard!’ Donar meneou a cabeça para os lados, discordando: ‘Você é um covarde, Harbardr! Vou atirá-lo em Nifelheim assim que atravessar o canal!” O jotun continuou a provocar: ‘Por que não cessa de falar e faz?’ Donar explicou: ‘Agora estou bastante cansado, pois me feri há pouco enfrentando os filhos de Svarangr, que me embosca-ram, atirando pedras em mim. De nada adiantou, pois foram derrotados.’, e Harbardr disse: ‘Você afirma que estava brigan-do. Enquanto isso, eu me achava com uma donzela de linho branco, com a qual tive um encontro secreto. Ela brilhava como o ouro e adorava o prazer, apesar de se debater muito. Pena não ter podido contar com a sua ajuda, mas de qualquer forma a segurei firme.’ O deus replicou: ‘Eu teria ajudado se tivesse sido possível es-tar por perto. Mas por que está falando agora como se gostasse de mim e quisesse minha presença e meu auxílio? Não me de-

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testa? Como pode se mostrar tão incoerente? Está parecendo um velho sapato de couro na primavera!’ Harbardr disse em seguida: ‘Eu o estou provocando porque você mente.’ Donar se indignou: ‘Quem disse que estou mentindo? Não me enerve mais! Não sou nenhum marinheiro mentiroso! Já enca-rei inúmeros monstros e perigos! Não imagina como foi difícil enfrentar as mulheres berserkers em Hlésey! Eram ferozes e in-controláveis!’ Harbardr comentou: ‘Pelo que me parece, você já matou mui-tas mulheres. Tem agido covardemente portanto.’ Donar começava a espumar violentamente pela boca: ‘Assim como as feiticeiras jotuns, as berserkers eram cruéis e desordei-ras. Esmagaram meu navio quando o coloquei na praia, me ameaçaram com clavas de ferro e afugentaram meus compa-nheiros. Elas procuraram por um fim terrível e o encontraram. Nunca matei inocentes. Ainda insiste em dizer que fui covarde? Ou que sou mentiroso?’ Harbardr riu: ‘Não é nem covarde e nem mentiroso, deus do trovão, sei disso! Vou lhe dizer a verdade: eu o estava testando, grande Donar!’ Donar não se convenceu: ‘Se é dessa forma, você é que é o maior dos mentirosos!’ O pescador objetou: ‘Não se trata de mentira, e sim de sabe-doria. Veja este anel! Tal como fazem os juízes quando estabe-lecem uma reconciliação, vou lhe dar este anel para que nossa paz seja selada. Vou jogá-lo para você!’ Donar discordou: ‘Não faça isso, pois ainda não estou con-vencido. As suas palavras arrogantes nesse jogo estúpido ainda ecoam em meus ouvidos e me incomodam.’ Harbardr replicou: ‘Eu as aprendi de homens muito velhos, que habitavam em casas nas colinas.’

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Donar continuou discordante: ‘Suspeito de que colinas esteja falando, mas isso não me importa. Só vou lhe dar um conselho: sua língua afiada lhe trará muitos problemas. Procure contê-la. E ainda vou atravessar as ondas, e lhe digo que se não fugir acabará uivando alto como um lobo, pois vou bater com meu martelo na sua cabeça.’ Harbardr não demonstrou o menor medo: ‘Não vou fugir. E lhe digo mais: Sif tem um amante em sua casa. Você deveria se encontrar com ele e lhe dar a devida lição. É nele que deve des-contar sua raiva e aplicar sua força, não em mim!’ Donar se indignava: ‘Você diz sempre o que parece o pior para mim! Não vou acreditar em você! Não passa de um gran-de mentiroso! Só me provoca e me testa! E não sei por qual ra-zão! Estou perdendo meu tempo aqui! Ainda ousa denegrir mi-nha esposa?’ Harbardr respondeu: ‘Realmente você está perdendo tempo. Estaria longe agora se estivesse viajando, ao invés de debater comigo’. O deus do trovão resmungou: ‘Se não tivesse tentado cortar caminho pedindo a sua ajuda, não estaria discutindo com você! Meu grande erro foi sucumbir à preguiça! Por mais cansado e ferido que estivesse, devia ter continuado a pé e, quando esti-vesse mais inteiro, o que não demoraria, porque me recupero rápido, começado a nadar. Você é um grande covarde, só sabe me atrasar e me irritar, falando da morte de minha mãe e da traição de minha esposa! Ao menos, se não vai mesmo me atra-vessar, me sugira ou me mostre um bom caminho.’ Harbardr replicou: ‘Mantenha seu percurso para a esquerda, até alcançar Verland. De lá o caminho para Bifrost é curto, bas-tará seguir para as montanhas depois da chuva.’ Donar ameaçou: ‘Da próxima vez que nos encontrarmos, você irá me pagar caro por tudo o que me fez passar hoje. Não pense

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que vou agradecê-lo por sua sugestão de caminho, que espero que não seja enganosa! De um jotun se pode sempre esperar o pior! Menos mal que Heimdall o impediria de subir até Asgard!’ Harbardr fez também sua ameaça: ‘Mas já sei o caminho. E um dia todos nós subiremos, todo o meu povo, e nem mesmo Heimdall poderá nos deter.’ O deus da tempestade insultou seu interlocutor antes de ir em-bora. Depois que Donar se foi, Harbardr sorriu, seu olho esquerdo brilhou, e desapareceu na densa névoa recém-formada.”, Kalk-ris se sentia cada vez mais cansado, mais espírito do que corpo, mas era o maior prazer de sua vida dar à sua grande família, que era sua tribo, momentos de humor, sabedoria e memória ao cantonarrar as histórias da tradição; temia que as dores que sen-tia em seu corpo fossem também as dores da floresta, que iria perder aqueles que sempre a haviam venerado, seus filhos e fi-lhas (com algumas exceções de filhos desnaturados como Ode-rich), as tribos da Queruscia, para o pragmatismo armado dos latinos, cuja interpretação dos deuses lhe parecia rasa e leviana, excetuando-se talvez alguns sacerdotes. Em sua tribo, ao con-trário, todos eram um pouco sacerdotes; e Irmin a única espe-rança de continuidade no mundo físico: se Irmin vencesse, o clã e suas tradições sobreviveriam a Kalkris; o medo do bardo, que acabara de apresentar o poema Harbardrogg (fazendo o narrador e a voz do barqueiro, mudando de tom ao alterná-las, enquanto a de Donar fora feita por um de seus aprendizes na arte), era que a tribo morresse junto com ele. Como estava ve-lho demais para sobreviver, deveria morrer sozinho, ou com um pequeno cortejo, que o escoltasse para a corte de Bragi.

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Rakni e Endill Steinsson formavam um dos casais mais admi-rados da aristocracia da capital de Barda, ele um dos homens de confiança do rei, considerado o melhor espadachim da corte, ela a única herdeira de sua rica família, não por acaso acostu-mada desde a tenra infância a muitos mimos, não aceitando ja-mais ser contrariada em seus desejos. A cerimônia nupcial com Endill fora uma das mais suntuosas e caras da história de Bar-da, contando com a presença da fina flor da nobreza e mesmo com os espinhos desta. A noiva convidara inclusive as que con-siderava suas rivais, para que invejassem seu esplêndido vesti-do branco, adornada com brincos, broches e anéis de ouro, as-sim como deviam se roer por seu belo noivo, na ocasião com um cinto de ouro incrustado com pedras preciosas. Endill era alto e majestoso, antes de seu casamento o solteiro mais cobi-çado de Barda, olhos azuis, cabelos loiros cacheados, compara-do ao deus Balder pelos rapsodos da corte. Rakni, por sua vez, era pequena e graciosa, os olhos cerúleos e os cabelos casta-nhos; chamava atenção por sua face expressiva, ainda que nem sempre verdadeira, nunca abrindo mão dos sorrisos em público, por mais que armasse seus escândalos privados com seus pais e seu companheiro. Endill costumava presenteá-la com as mais lindas joias e flo-res; contudo, ela não parecia suportar, entre outras coisas, suas ausências, provocadas pelas viagens que tinha que fazer quan-do o rei lhe ordenava uma missão fora de Barda. Certa vez, mandara um buquê de rosas contendo um bilhete que justifica-va sua partida por alguns dias e que, pouco abaixo, apresentava uma declaração de amor. Nada entretanto que a satisfizesse: seu único prazer na oportunidade consistira em jogar fora as flores e rasgar o bilhete. No retorno do marido, não perdera a ácida chance de lhe jogar na cara sua verdade: “Acha que vai me deixar satisfeita com um punhado de flores? Pensou que eu

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ficaria contente por se “lembrar” de mim com um bilhetinho? Nem veio se despedir!”, ao que o cavaleiro, bravo e forte nas batalhas, loquaz e persuasivo nas missões de diplomacia, mas frágil e impotente ante a lógica ilógica de sua esposa, tentou ar-gumentar: “Não tive como vir aqui antes de partir. O rei disse que a questão requeria a imediata partida da comitiva e precisei ir com os outros cavaleiros. Além de seu marido, sou um cava-leiro de Barda.” “Diz isso agora, mas antes de se casar comigo me falou que no seu coração o meu poder é muito maior do que o do rei.” “E é. Ele é seu território. Mas o coração e a necessidade, a responsabilidade, são territórios diferentes.” “Pelo visto, em você as terras do dever são maiores do que as terras do amor. Desse jeito, nosso casamento vai secar! Flores externas me importam bem menos do que as que cultivamos dentro de nós! E a missão mais nobre da vida de um cavaleiro deveria ser a de proteger sua amada!”, era o que dizia. “Não confunda a realidade com os poemas dos amores dos grandes heróis que os bardos contam. E eu a protejo! Como pode dizer que não?” “Um homem distante não pode proteger sua mulher.”, e a ab-raçou, nisso Rakni deixando escapar, sem que ele visse, um sorriso de brilho ladino; era do tipo que nunca estava satisfeita, mesmo quando ganhava anéis de ouro com grandes rubis, pre-senteá-la não passando de uma obrigação de seu marido. Toda-via, divertido era vê-lo desesperadamente carinhoso, o que se não a deixava plena ao menos tornava mais macia sua inquietu-de e aplacava por alguns instantes a sedenta crueldade de seu ser. Mesmo quando ele passava dias seguidos com ela, presente e dedicado, não abria mão de se queixar: ora por enfado, ora por suposto ciúme (dizia não suportar os olhares que outras damas

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lançavam sobre Endill e, por mais que o cavaleiro negasse que correspondera a qualquer uma delas, sua esposa não acreditava ou fingia não acreditar, e nisso se desencadeavam inúmeras bri-gas premeditas), ora para simplesmente provocá-lo ou irritá-lo. Claro que sabia perfeitamente diferenciar a realidade dos poe-mas heroicos dos cantautores cortesãos, porém o simples fato do marido frequentemente gaguejar para justificar sua obediên-cia ao rei a deixava segura que sua influência sobre ele não afrouxara nem um pouco desde o primeiro dia de noivado; nun-ca desejara que Endill fosse louco de contestar o soberano para ficar com ela, o que desencadearia a ruína para ambos; jamais desposaria um simples louco: casara-se com um apaixonado! E sugava-lhe a vida e a angústia para as fendas do ego. No entanto, como nem tudo são flores, e perfumes adocicados costumam esconder fortes venenos, uma tragédia se abateu sobre o casal justamente quando Endill confessara que não via a hora de ter um filho. Rakni negava estar pronta, mas não ne-gava seu desejo, as conversas sobre um filho, ou filhos, sempre instalando uma momentânea paz no casal, especialmente pelo fato dela esquecer todo o resto, que ficava minimizado, ao tra-tar desse assunto. Era mulher; queria ser mãe: seguir seu círcu-lo, interrompido pelo punhal do líder de um bando de ladrões que invadiu o casarão dos cônjuges Steinsson, rendendo os guardas e os servos, aproveitando-se da ausência de Endill, como de costume com seus afazeres no castelo real. O choque secou o cavaleiro quando este viu o corpo de sua esposa já sem vida espalhado no chão, o sangue acumulado numa poça pegajosa, os olhos arregalados e a tez de um palor muito além do doentio, que aos poucos tomaria conta também da face do marido. Os frutos apodrecidos do primeiro desespe-ro continham o veneno para o suicídio. Todavia, antes que co-metesse essa loucura, ouviu como um misterioso sussurro:

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“Consulte os livros do seu pai...Os livros de capa escura.”, olhou para trás e não viu ninguém: de fato não era a voz de ne-nhum criado que libertara. Livros de capa escura de seu pai? Não se lembrava de nenhum; não tinha nenhum. Os que possu-ía exibiam capas muito bem desenhadas e vivazes, ricamente coloridas. Com a desculpa de velar o corpo de sua mulher por pelo me-nos um dia e uma noite inteiros, Endill adiou a cremação, se-guindo uma estranha intuição, e pediu ao seu irmão caçula e à sua irmã mais velha para consultar os livros que o velho deixa-ra para os dois. Acabou que num baú empoeirado, esquecido por ela, achou diversos livros com capas bem similares, de cou-ro preto, cada qual com uma runa diferente como distinção: eram todos livros de magia, diferenciando-se por alguns temas ou enfoques específicos, como evocações de divindades, necro-mancia, interação com elementais e saídas do corpo físico. “Mas quem pode ter lhe sugerido isso? E por quê? É melhor não confiar em fantasias.”, a irmã, uma precavida viúva, acon-selhou-o ao saber da voz misteriosa, Só que independentemente de quem fosse o “fantasma” ou qualquer outro ser, o cavaleiro percebeu, em especial ao folhear e ler alguns trechos do volume sobre necromancia, que talvez tivesse encontrado a chave para obter uma vitória sobre a mor-te. Uma arte que os ignorantes, inclusive ele, ou desconheciam, ou temiam, ou amaldiçoavam; por qual razão afinal? Sempre considerara lendas fantasiosas as histórias de ressurreição e imortalidade que ouvira; mas por que não testar? Toda fantasia é absorvida pela morte; e absorvido pela paixão não iria se de-ter. Manteve o corpo, por mais tempo do que seria recomendado, em seu casarão, mesmo com o mau cheiro se espalhando, o fe-dor de cadáver, depois enfim cerrando o caixão, mas nada de

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cremá-la ainda, alegando querer velá-la por um mês, nesse pe-ríodo se enclausurando e não indo ao castelo. O rei acatou seu pedido por um ínterim de luto, em que passou a estudar magia por horas a fio, quase sem comer e beber. Ao comentário de uma criada que estava definhando, dispensou-a junto com to-dos os outros servos. Ficou sozinho na mansão, sem medo de furtos, pois naquele fatídico assalto haviam levado todos os seus objetos de maior valor, todas as joias de sua esposa, cujo corpo agora estava simples, sem nenhum adorno, somente com o cândido vestido nupcial. Se conseguisse ressuscitá-la, reli-gando o espírito à carne, como dizia o tratado, seria uma se-gunda boda, a definitiva, e partiriam juntos para bem longe. Es-tava disposto a tudo para voltar a tê-la ao seu lado. Num sonho que vivenciou, na verdade mais do que um sonho ou pesadelo, num estado entre o sono e a vigília, viu ao lado de sua cama uma velha decrépita, com poucos dentes na boca, que lhe disse: “Fui eu que falei dos livros secretos do seu pai. Você não sabia que ele se metia com magia, mas eu sim! Não vai me agradecer?”, acordou assustado, depois associando os traços da velha com os de sua falecida avó paterna, com a qual convivera apenas na infância. Lembrou-se que na época tinha medo da velha, certo que se tratava de uma bruxa! E se efetivamente fora, e a pessoa que ensinara a seu pai as artes ocultas, que por alguma razão ele se recusara a transmitir aos filhos? Ela fora cremada...Ao menos isso o que fora dito a Endill. Talvez esti-vesse viva, agindo com seu corpo astral para ajudar o neto; ou talvez a velha do pseudo-sonho nem fosse sua avó, e nesse caso só se dera uma errônea associação provocada por recordações e medos. Poderia ser tanto um espírito verdadeiro como um “es-pírito” pensado, ou seja uma projeção de sua mente, ansiosa para solucionar o problema; porém o que impedira seu suicídio

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não fora um sussurro interno, e sim uma voz com informações que não tinha como saber. Fosse como fosse, estivesse ou não correta a intuição infantil, iria parar de se perguntar e fazer: deixou de lado o que não era ato, espalhando as runas apropriadas e realizando o chamado a Hel, rainha dos mortos. Antes de convocá-la, passara dias to-mando apenas infusões de determinadas ervas, tidas como sa-gradas à deusa, e sem poder sair à luz do sol (o que já não vi-nha fazendo antes, apenas a obrigatoriedade ressaltada, portan-to essa fora a parte menos difícil da preparação). No momento, cobriu todas as janelas com cortinas pretas; nenhuma claridade externa deveria entrar, só uma vela acesa até que começasse a evocá-la, a chama apagada por seu sopro uma vez tudo pronto e posto. Nas trevas absolutas, as primeiras chamadas não surtiram qualquer efeito, até que um vento gélido se manifestou e, de re-pente, levando um susto, Endill distinguiu uma figura huma-noide de costas, em um manto negro como seus cabelos longos e lisos, por isso praticamente fundida às sombras. Sem estarda-lhaços, deduziu que se tratava da deusa sinistra, que lhe falou sem encará-lo: “O que quer de mim, sórdido humano? Por que me perturba?”, e como o tratado mágico recomendava ser o mais breve possível ao lidar com a senhora da morte, Endill foi direto: “Quero reviver minha esposa. Quero atar novamente sua alma ao seu corpo.” “Então foi só por isso que me convocou? Com tantas coisas maiores a pedir, como o conhecimento acerca da vida e da mor-te, pede-me para reanimar um cadáver? Por que eu abriria mão de uma alma que se encontra em meu poder? Ainda está em tempo para mudar seu pedido.”

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“Imagino que isso seja um teste para colocar à prova meu amor por Rakni. Segui todos os passos do ritual. Não cometi nenhum erro, estou certo disso.” “Amor...”, pronunciou com ironia e desdém. “Muito bem. Se está certo disso, vou fazer o que se encontra ao meu alcance.”, uma fumaça cinzenta se espalhou pelo lugar e, abruptamente, a porta do quarto se abriu e bateu com violência. Uma criatura ofegante acabava de entrar, como alguém que voltava à superfí-cie após quase se afogar. “Rakni!”, o cavaleiro exclamou; extasiado com o reencontro, não notara as mudanças no corpo da amada, além da evidente podridão, que não lhe importava, correndo para abraçá-la: os olhos dela estavam vermelhos em brasa; as unhas pareciam ter virado garras; e os dentes estavam mais afiados. “Os humanos subestimam a senhora da morte! Como se um livro qualquer pudesse me ditar o que devo ou não fazer! O que VOU fazer agora é lhe dar uma lição sobre o apego à carne!”, o corpo obscuro desapareceu com a entrada da discretíssima luz de fora, ficando somente a voz, ao passo que Endill era jogado no chão pela esposa-cadáver, repelido com uma violência abso-luta. Repentinamente, percebeu que não conseguia mais se mo-ver, e não tardou a passar da paralisia ao congelamento e por fim ao abandono do corpo inerte no chão. Sua consciência esta-va sendo separada de sua carne por uma poderosíssima força externa, e quando pôde voltar a se mover o peso era tremendo e não sentia outro odor que não do puro metal. Sua visão também estava modificada, captava tudo à sua volta, era circular, não li-mitada ao que havia à frente e ao parcial dos lados. Olhou en-tão para baixo, e viu seus pés calçados pelo metal; ao olhar para as mãos, luvas de armadura; e no impulso de retirar uma com a outra, descobriu que na verdade não tinha mais mão ne-nhuma.

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Assustou-se quando Rakni liberou um urro abrupto, o mesmo se dando com o antigo corpo do cavaleiro, que ficou de pé para seu espanto, também assumindo os olhos vermelhos do outro zumbi e as unhas e os dentes crescendo e se afiando. “Mas o que está acontecendo aqui?? Isto só pode ser um pesa-delo!” “Nada é mais certo do que a morte.”, ouviu a voz de Hel. “E nada é mais feio do que o apego. Selei sua alma em uma de suas armaduras, que também sofrerá mudanças e se adaptará à sua obtusidade, para puni-lo por seu apego e por sua estupi-dez.” “Não acredito que tenha feito isso...É um pesadelo! Ou uma horrível brincadeira de humor negro! A senhora não pode fazer isso!” “Não só posso como fiz.”, os dois zumbis ficaram à sua fren-te, encarando-o com aparente ódio, mas sem atacá-lo. “Você já não tem mais sentido nesta terra, mas só poderá deixá-la, e se reunir novamente com a sua esposa, que fique claro que no mundo inferior, em meu reino, quando destruir seus dois anti-gos corpos, que se tornaram zumbis sem almas, movimentados por sombras espectrais que manipulo, que são como fios para mim. Os fios de minhas marionetes!” “Portanto só poderei voltar a me encontrar com Rakni no in-ferno?” “Se a ama realmente, aceitará descer. Se for um covarde, per-manecerá eternamente neste mundo como um amaldiçoado, imortal, porém fraco, perseguido por terríveis fantasmas e de-mônios, que o deixarão surdo. Qual a sua escolha?”, não havia a menor necessidade de se pronunciar por uma escolha já feita: apesar da revolta, do incômodo do metal, e da vontade e de al-guns pedidos a Odin que tudo não passasse de um pesadelo, no fundo abafados clamores de arrependimento, não havia como

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correr para o meio. E, enquanto os zumbis fugiam, uma fulgu-rante claridade azul o preencheu, crescendo de dentro, dando-lhe poderes que nunca imaginara, que logo conseguiu sentir com seu coração. Tratava-se do potencial de sua alma afloran-do, despertado por Hel, que porém nunca o guiaria, inclusive já partira em definitivo, logo depois dos corpos que o cavaleiro agora deveria perseguir.

“E foi no encalço dos dois que cheguei aqui.”, terminou sua narração a Claudius Drusus. “Uma história na qual nunca teria acreditado se não o tivesse visto e conhecido.”, comentou o general latino. “A vida, para o bem ou para o mal, é mais do que os nossos olhos conseguem ver.” “Não tenho o direito de atrasá-lo mais, por mais que desejasse contar com a sua força. Muito bem, em parte estou satisfeito! Pode partir, Endill.” “Me dispus a descer ao abismo para tê-la de volta. Sei que não terei um amanhã luminoso, de qualquer forma. Mas se a luz a ela foi negada, se os deuses não a consideraram merece-dora de um melhor destino, talvez por sua futilidade e apego ao ouro e às pedras preciosas, não permitirei que sofra sozinha, e não a julgo por como agia.” “Nunca pensei que existisse um sentimento semelhante. Sou casado, mas confesso que jamais amei minha esposa. Tenho ca-rinho por ela, porém gosto de ter outras mulheres. Me acostu-mei a considerar os relacionamentos como comédias; é a pri-meira vez que me vejo diante de uma tragédia viva.” “Não sei se compreendo todos os seus termos; a língua latina possui algumas palavras que ainda me soam estranhas. Mas agradeço sinceramente por me ouvir. Não era meu intuito ao passar por aqui contar minha história a alguém, mas depois de

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narrá-la pela primeira e talvez última vez a outro ser humano, tenho a impressão que um pouco do meu peso se foi.”, e depois que Endill partiu, Drusus permaneceu por algum tempo com as suas reflexões antes de se juntar novamente aos seus soldados: “Nobreza verdadeira? Ainda não sei se me convenço. Mas ele se convenceu, e preferi deixá-lo com o que me parecem suas ilusões. Amor? Ao querer revivê-la, o apego à carne; a seguir, só teve duas dolorosas opções para escolher uma: maldição ou luta. A inteligência fez com que escolhesse a luta, confiando na vitória como todo bom guerreiro. No entanto, ele não mencio-nou o receio da derrota, do qual ninguém é livre em algum grau, por mais confiança que possua. O que lhe acontecerá se perder?”

Seguindo adiante, com sua velocidade e argúcia Endill termi-nou por alcançar os zumbis. Estes, apesar de seus corpos serem apodrecidos, possuíam uma força e uma resistência muito além da física. Inclusive manipulavam potências mágicas, empurran-do seu adversário com o vento quando estava prestes a atingi-los, materializando escudos, paredes e armas de pedra, gelo ou metal, e conjurando seres infernais. Demônios do fogo eram os preferidos para tentar derreter a armadura. O que evocaram na ocasião, em uma densa floresta da Que-ruscia, era bem mais alto do que o cavaleiro e vermelho, suas veias e artérias incandescentes aparecendo, sua cauda pesada, sua cabeça com dois chifres laterais voltados para baixo, os olhos queimados; não precisava enxergar: sentia, suas labare-das poupando as árvores, meticulosamente direcionadas contra Endill, que no decorrer do confronto, apagando algumas com sua peculiar claridade azul, conseguiu decapitar seu antigo cor-po. Contudo, por não sentir dor, não se dera conta que peque-nos mas cruéis espíritos das chamas haviam conseguido pene-

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trar na armadura, só percebendo que derretia pouco a pouco por estar a cada instante mais lento e pesado, puxado pela terra. Mesmo sem conseguir concluir as lutas anteriores contra os al-vos de sua perseguição, que costumavam cansá-lo e distraí-lo com os demônios e fugir, sempre vencera as criaturas infernais; só que este era o mais inteligente e habilidoso inimigo que já enfrentara: os zumbis, ao que parecia, haviam se aprimorado na arte evocatória; cada monstro conjurado parecia superior ao an-tecedente, numa perigosa progressão. E seu velho corpo se le-vantou, recolheu sua cabeça e a recolocou. Foi o confronto decisivo, o medo aumentando, e o terror sur-gindo e se agigantando na iminência da derrota e diante da perspectiva do desconhecido; para onde iria? Hel o puniria e o impediria de rever Rakni? Na proximidade da queda, a sensa-ção que fora enganado, que desde o começo não poderia ter vencido, os zumbis brincando com ele, fingindo-se mais fracos do que eram, para ao chegar o enfado lançarem a carta que pu-nha fim à partida. Lutou o quanto pôde, mas foi vencido.

“Hel, outra vez aprontando das suas.”, observando a batalha, estivera mais uma das valquírias, esta com os cabelos loiros presos em um rabo de cavalo, trajando uma longa túnica branca de mangas compridas, com partes metálicas protegendo as arti-culações, em seu pescoço uma gargantilha prateada contendo pedras com runas esculpidas. As pupilas dos seus olhos eram douradas, se chamava Reginleif, não era alta, e aparentemente não portava nenhuma arma, materializando ao levantar seu bra-ço esquerdo uma rebuscada lança com detalhes rúnicos. Antes de atirá-la, incendiou-a com chamas azuis, fazendo o mesmo com uma segunda que surgiu em sua mão direita. Quando os zumbis a viram, era tarde: foram atravessados e em seguida in-

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cinerados. O demônio a atacou na sequência, porém ela se mo-via numa velocidade consideravelmente superior, cortando-lhe a cabeça com a afiada espada de empunhadura com penas ce-lestes que surgiu em suas mãos. “Hora de despertar. Você foi escolhido para o Valhala.”, pouco depois, Reginleif acordava a consciência de Endill, em um ce-nário completamente escuro, de vozes e contornos. “Uma valquíria? Não, eu devo descer ao reino de Hel!” “Não diga besteiras. Você não sabe como é lá. Não é nenhum idílio que passaria com sua esposa em vida; não passariam de sombras. Hel o estava enganando desde o início.” “Você sabe de toda a minha história?” “Claro. Nós sabemos tudo sobre nossos einherjar. Analisamos vocês a fundo, e não recrutamos qualquer um.” “Se realmente sabe tudo sobre mim, deveria saber que, somb-ra ou não, quero estar com ela. Hel não me enganou.” “Não tente se iludir. O enganou sim, e de mais de uma manei-ra. Conheço-a bastante bem.” “Através do convívio entre os deuses?” “Hel não convive conosco em Asgard. E considero-a tão peri-gosa quanto Loki ou Surt. Há muito tempo, descumpri as de-signações de Odin e desci em Nifelheim para salvar e recrutar almas. Pretendia despertá-las; mas elas só queriam saber de me agredir, e nenhum dos meus poderes surtia efeito. Hel apareceu e quase me capturou, consegui fugir por um milagre. Depois Odin disse que tinha me dado forças extras para escapar, mas que justamente por ter visto tudo iria me castigar de forma exemplar. Uma valquíria nunca deve tentar transformar almas caídas de Nifelheim em einherjar, simplesmente porque é for-çar o impossível; a valquíria sente o legítimo einherjar e faz seu julgamento e sua escolha de maneira natural, espontânea e intuitivamente profunda, nunca sendo movida pela piedade, por

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emoções ou sentimentos. A escolha tem a ver com a essência maior de Odin; ele não precisa nos dar ordens e indicar os ei-nherjar com o dedo, raras vezes faz isso: sua Essência nos diri-ge o tempo todo; é por isso que algumas valquírias ao se apre-sentarem dizem 'Odin me enviou aqui', ou algo parecido, sem terem recebido uma ordem verbal. No fim das contas, à exce-ção de Thrud, fomos todas criadas por ele, que é um oceano, enquanto nós somos gotas que saíram da mesma água. Por ter agido errado, permaneci por dez dias e dez noites com a meta-de inferior do meu corpo mergulhada em um lago gelado no Deserto da Morte Branca, enquanto a superior ficava envolvida por correntes em brasa. Estava presa a uma geleira selada por um encanto de Odin, que nunca derreteria. Tenho até hoje as marcas das correntes nos meus braços.” “Não consigo vê-la direito. Mas seu relato é impressionante. Pensei que as valquírias fossem mais reservadas quanto a seus eventuais problemas.” “Algumas de nós são. Mas eu gosto dos humanos, de falar com a gente honrada de Midgard. E você virá comigo, Endill.” “Não pode me forçar.” “Pelo que parece, não entendeu por que realmente contei a minha história. Pense nas sombras que me agrediram e reflita.” “Se é mesmo inevitável, e tenho que abandonar Rakni, gosta-ria de fazer apenas um pedido.”, disse após algum silêncio, ao começar a ser arrastado por uma força maior, dando-se conta que não podia demorar para fazer sua opção. “O que seria?” “Não sei se vocês regeneram corpos antigos, ou se fazem cor-pos novos. Não quero algo semelhante ao meu corpo anterior: quero continuar sendo uma alma em uma armadura.” A valquíria ia fazer uma objeção e perguntas, mas, após uma respiração profunda, terminou aceitando: “Como quiser.”, e,

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numa ofuscante e repentina luminosidade, os dois desaparece-ram dali.

A vitória não se repetiu: Claudius Drusus, inimigo desde o iní-cio, não era Publius Varus; e após uma estratégia de promover uma sequência de batalhas breves, que foram minando a resis-tência da tribo querusca, os latinos, em muito maior número e mais bem preparados do que na ocasião anterior, conseguiram encurralar o bando de Irmin nos arredores do rio Eder. Inclusi-ve de barcos, arqueiros do Império não paravam de atirar. Ir-min, já bastante ferido e mancando, seu joelho direito perfura-do por uma flecha, teve no tribuno Iulius Caecina seu último adversário, enquanto procurava proteger Thusnelda, que agora estava grávida: “Você pode até me matar, mas deixa-a em paz! Permitam que as mulheres e as crianças vivam! Pelos deuses!” “Como se eu fosse deixar de lado a forma como você tratou as legiões de Varus, seu vil traidor. Cassius me contou que se fez passar por amigo e atacou pelas costas, sem nenhuma honra. Vamos tratar você e seu povo como merecem ser tratados. Pe-diram pelo que está acontecendo! Que a ira dos deuses caia sobre vocês!”, e pelo gládio de Caecina, homem de olhar pérfi-do e nariz aquilino, Irmin e Thusnelda, que com seu espírito guerreiro não suportou mais e resolveu intervir ao perceber que o marido enfrentava dificuldades, mesmo com sua condição fí-sica debilitada, sofrendo com cólicas, acabaram cedendo; cons-tantemente se sentindo prestes a vomitar, e desconcentrada, lenta e transpirando em excesso, teve seu ventre perfurado, a garganta do líder cortada em seguida. Drusus chegou bem depois, com um semblante melancólico, sendo-lhe mostrado o corpo rígido daquele que tantos proble-mas causara ao Império.

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“Parece que está terminado! Acho que enfim podemos voltar para Latina. Não aguento mais andar por essas florestas frias e pântanos. Não vejo a hora de tomar um pouco mais de sol, e de relaxar por algum tempo nas termas!”, exclamou Cassius, irra-diando satisfação e felicidade. O general não disse nada a princípio, olhando para o cadáver de Thusnelda ao lado; ignorou o supérstite das tropas de Varus e, quando conseguiu voltar a distender um sorriso, recebendo uma misteriosa e sombria inspiração, deu as costas aos corpos do casal e ordenou que fossem ambos esquartejados, apenas as cabeças mantidas inteiras, e estas e os pedaços expostos aos bárbaros que persistiam vivos, tanto homens como mulheres e crianças. Antes da partida, seriam tomadas as medidas necessá-rias, e em seu retorno ao coração do Império Claudius recebe-ria o apelido de Queruscus, em referência ao triunfo que obti-vera na sombria região, para a qual algum dia pretendia voltar...Sob qualquer ordem imperial, com o verdadeiro objeti-vo de procurar e encontrar sombras do divino como o cavaleiro Endill, o que não se via em uma cidade cética, marcial e prag-mática como Latina. Tentaria não desanimar.

“Meu filho...”, ao lado de uma fogueira aconchegante, apesar do frio ao redor, com seu esposo próximo, Thusnelda embalava uma criança recém-nascida; Irmin era só sorrisos: haviam ex-pulsado de vez os latinos da Queruscia, eram vitoriosos e li-vres! Mas onde estavam os outros? Da tribo, somente se ouvia e se via o casal, até que escutaram o som do instrumento de Kalkris. Entrementes, para o espanto dos dois, o bardo apare-ceu jovem, ruivo, os cabelos ondulados compridos, a expressão séria, mas não severa, e sim serena, caminhando perfeitamente, leve e sem nenhuma dor; só então despertaram de seu sonho, a fogueira se apagando e dando-se conta que haviam perecido. O

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bebê desapareceu. E para Thusnelda, abraçada pelo marido, restou o choro nada contido não pela perda de sua própria vida. Ao lado de Kalkris, delineou-se e impôs-se uma imponente fi-gura feminina: era Hlokk. Os soluços foram cessando; restaram só as lágrimas. Kalkris resolveu, talvez pela primeira vez desde que se conhecia como gente, se entregar ao silêncio numa imersão sem restrições. O bardo sempre amara festas, mas não as bebidas inebriantes, preferindo se inebriar com sua própria música, que lhe permitia um transe único, só usando a cerveja para, após aquecê-la um pouco, fazer gargarejos que acreditava serem benéficos para a garganta, cuspindo-a em seguida sem jamais engoli-la, provo-cando a revolta de um amigo beberrão que numa oportunidade testemunhara o “desperdício”. Solteiro e austero na vida pessoal, Kalkris vivera em Midgard e viveria em Asgard em função de sua voz; contudo, enquanto atrás se aproximavam, saindo das sombras das árvores, os de-mais membros da tribo que a valquíria recrutara, a única voz que conseguia e queria ouvir naquela hora, absolutamente bela e solitária, era a do silêncio.

O grito das flores

“Não vai pra lá.”, o menino apontava para a pracinha. “Por que não, querido?”, indagou a mãe. “É muito perigoso.” “Mas perigoso por quê? “Porque a morte está lá. A morte está parada na grama.”, e a mãe iria fazer uma nova pergunta, porém se deteve ao ver uma pomba morta estendida na relva. Calou-se por inteiro. Naquele instante, compreendeu o pensamento da criança, que pouco

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tempo depois a veria morrer diante de seus pequenos olhos, du-rante uma incursão de trolls à cidade-estado de Beltrane. Estes apareceram com fome e fúria, saqueando e incendiando as ca-sas; pertenciam a uma espécie bruta com por volta de três me-tros de altura, maciços, parecendo feitos de pedra, os braços e as pernas poderosos apesar das cabeças proporcionalmente di-minutas, assim como eram de tamanho reduzido os olhos as-sustados e os narizes, apenas as bocas relativamente grandes, possuindo orifícios ao invés de orelhas. Um entrou na casa da jovem viúva e a violentou sem hesitações, deixando o pequeno Borg chocado; afora a força e o peso esmagadores sobre a pob-re mulher, o membro desmesurado, ríspido e duro do gigante foi além de onde deveria e a rasgou por dentro. Não resistiu à hemorragia, o garoto ficando dessa forma órfão. Alguma fortuna posteriormente o agraciou ao ser adotado por um generoso casal de nobres que não vinha conseguindo ter va-rões, crescendo junto com a menina que era filha natural dos dois, um ano mais nova, a falante porém simpática Greta, que o recebeu a princípio com desconfiança, logo aceitando-o e, ao achá-lo quieto em demasia, incentivando-o a se soltar mais, sem nenhum sucesso mesmo com o passar dos anos. Como Beltrane vinha sendo constantemente atacada por bár-baros e trolls, a necessidade de mais guerreiros aumentava, e na falta de nascer um maior número de crianças do sexo masculi-no, as meninas também passaram a ser treinadas no manejo da espada e ensinadas a montar, os trajes de batalha gradativamen-te começando a conviver com os vestidos. O estranho e aterrorizante foi, ainda adolescentes, no primeiro confronto do qual participaram, contra uma tribo bárbara, ao ver sua irmã de criação com a vida ameaçada, Borg perder por completo toda a consciência de si, seus olhos se incendiando, sua boca salivando, seus dentes rangendo, e, assumindo uma

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força e uma velocidade sobre-humanas, matar com sua espada de duas mãos dezenas de bárbaros, mas não só...Sem distinguir amigos e inimigos, assassinou diversos companheiros, que ini-cialmente haviam sorrido diante de sua explosão, só parando e voltando devagar ao normal ao ouvir os apelos de Greta. Ao re-cobrar a consciência, estava todo dolorido e perplexo. Não ha-via dúvidas que se tornara um berserk, um guerreiro tremendo e ao mesmo tempo terrivelmente perigoso, que despertara seu espírito de fúria ao ver sob ameaça de morte um de seus entes mais queridos; a sombra do berserker devia ter permanecido dormente desde o cruel trauma da perda da mãe. Inicialmente preso, apesar dos protestos de Greta, foi liberta-do pelos sacerdotes de Odin, que queriam encontrar uma forma de usar o berserk, um fenômeno que não se verificava na cida-de havia quase cem anos segundo os registros, a favor de Bel-trane. “Mas o berserk não tem como principal característica ser jus-tamente algo incontrolável?”, indagou um dos sacerdotes; esta-vam reunidos em uma sala parcamente iluminada por pequenas velas, sentados em círculo sobre assentos rústicos de madeira; no chão, um desenho de Yggdrasil. “Talvez haja uma maneira de dirigir o espírito da ira. Como não descobrirmos esse método, julgamos o fenômeno incontro-lável.”, paramentados com túnicas negras do melhor tecido produzido na cidade, adornavam-se com cintos e diademas re-pletos de símbolos rúnicos. “O rapaz evidentemente não regula sua força. Nos treinos, mostra-se um soldado regular, comum, até fraco.” “Ele me disse que sonha com frequência com ursos e lobos. Deve haver um meio...Talvez esteja na natureza.”, que em Borg tinha a aparência de um bosque sem animais: estava claro que havia vida, porém esta dava a impressão de ser estática; uma

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brisa silenciosa deslizava em seu interior, produzindo um tími-do farfalhar. Não se via aquele rapaz sorrir ou chorar. Não pos-suía emoções? Se não tivesse nenhuma, se estivesse com o co-ração morto, não poderia jamais se tornar um berserk; o proble-ma residia na violência com que se manifestavam, apenas em condições extremas, a fúria incontrolável advinda de um cal-deirão de recordações. O processo se repetiu nas batalhas seguintes em que se envol-veu, cada vez mais sangue escorrendo sob seus pés, a voz de Greta, que se tornara magra e ágil, só não muito forte, com pre-ferência por manter curtos os cabelos loiros cacheados, a única capaz de pará-lo, porém não de imediato. Borg era alto e de aparência robusta, seus cabelos cor de fogo, porém em seu es-tado normal não sentia jamais calor e entusiasmo e não conse-guia golpear com todo seu vigor, como se os olhares alheios o segurassem, precisando “dormir” para se libertar das pesadas correntes do julgamento. Recentemente, ao voltar da condição de berserk, seus olhos recuperando o apagado castanho corri-queiro, via um urso furioso à sua frente por segundos, e em se-guida as pessoas à sua volta como lobos e cães, só depois como seres humanos. Contudo, não se sentia estimulado a contar o que ocorria a ninguém, muito menos a Greta e a seus pais ado-tivos. Não que não confiasse; o que parecia era que não queria envolvê-los e nem se envolver, por mais envolvido que já esti-vesse... Nas festas, mantinha-se à parte, só dançando com a irmã, e quando era puxado por ela; na verdade, tanto os homens como as mulheres tinham muito medo do berserk, que pudesse perder o controle abruptamente por qualquer contrariedade, e por isso não se aproximavam, nem para amizades, nem para flertes. “O meu irmão não é nenhum monstro!”, raras as vezes em que Greta não discutia com alguém por Borg, por mais que este não

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se incomodasse nem um pouco por ser um excluído; o pior era despertar ódio: entre os que o temiam, uma parte o detestava, não aceitando a desculpa da inconsciência para justificar as mortes de amigos e parentes por sua espada; queriam vê-lo pre-so ou morto, só não confessando isso abertamente por puro medo, torcendo para que um dia o berserk morresse em bata-lha. Com o transcorrer dos anos, no entanto, isso dava a impressão de ser extremamente improvável, e a possessão pelo espírito da fúria passou a ocorrer cada vez mais precocemente nos comba-tes e com maior ferocidade: bastava ver Greta começar a lutar. E as vitórias foram sendo obtidas mais rapidamente, o que cha-mou a atenção do rei de Beltrane, que pouco se importava com a perda de alguns súditos pelas mãos de outro. Convocaria os sacerdotes de Odin não para falar sobre um improvável contro-le do estado berserk de Borg... “Gostaria de mais de um berserker.”, ao escutarem estas pala-vras do soberano, que estava em trajes de forte coloração rubra como sua barba, sua coroa de ouro cheia de rubis, entreolha-ram-se receosos. “Se conseguíssemos mais guerreiros como ele, que não têm medo da morte em ocasiões extremas, que deixam explodir todo seu potencial, poderíamos sair dos precá-rios muros desta cidade e conquistar novos territórios. Não se trata de mero expansionismo, antes que se oponham ao que es-tou dizendo com a típica mentalidade fechada e apequenada que domina Beltrane desde que foi formada: resistimos até hoje, mas nossa muralha apresenta buracos cada vez maiores; se não formos atrás de recursos para restaurá-la, cairemos cedo ou tarde.” “Compreendemos sua preocupação, majestade. Mas além de não sabermos como transformar homens normais em ber-serkers, seria perigoso demais. Nada garante que os berserkers

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não poderiam parar de atacar o inimigo e passar a lutar entre si ou, pior, se voltar contra os súditos comuns e contra nós. Seria um desastre.” “Pelo que sei da história do rapaz, ele ficou assim depois que viu a mãe morrer diante de seus próprios olhos.” “Se reproduzíssemos algo do gênero, Odin nos amaldiçoaria para sempre. Além disso, não haveria garantias que fosse surgir um novo berserk.” “Vocês estão loucos ou são idiotas? Como podem pensar que eu desceria a esse ponto, com um experimento tão abominável?”, a reação do rei, que até se levantou de seu trono, levou os sacerdotes a recuarem. “Foi apenas um comentário. Não sou um monstro.”, e deu as costas a seu clero. “Perdão, majestade.” “Vão embora. E não quero vê-los tão cedo outra vez; só vol-tem em caso de questões de extrema urgência.”, o que os sacer-dotes não comentavam com o soberano era outro assunto, que na boca do povo estava tomando proporções maiores do que as esperadas, referente a uma jovem com uma história semelhante à de Borg, talvez até mais brutal, e que no campo de batalha vi-nha demonstrando quase a mesma importância, inclusive tendo sido das poucas a conseguir conter o berserk sozinha por algum tempo, numa oportunidade em que este começara a agredir seus companheiros de luta: como era mulher, o clero de Odin não queria que se tornasse célebre a ponto de ofuscar os guer-reiros devotos do rei dos deuses, e que contribuíam até moneta-riamente para o templo, ao passo que ela não professava nada; aliás, não conversava com ninguém, e se tratava de uma pessoa amaldiçoada por si mesma. Chamava-se Gudrun, e fazia tempo que mantinha oculta sua aparência: nas ruas, usava túnicas de tecido espesso, escuras, cobrindo a cabeça e o rosto com véus, apenas os olhos e o nariz visíveis; em combate, sua armadura

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verde de retoques rubros era pesada, as costas cobertas por uma capa, no capacete alguns furos para a respiração, somente o olhar exposto. Caso o elmo caísse, a insistência do véu; e sua espada apresentava no punho e na bainha intricadas estilizações de serpentes incendiadas. De sua família só restara um irmão, Theodor, que, após perder os movimentos das pernas em decor-rência de danos de batalha, passara a se dedicar à pintura, qua-se todos os seus quadros abstrações da figura de Gudrun, nunca retratos objetivos e realistas, pois por mais que fosse fascinado por ela respeitava sua decisão de nunca mais se deixar ver ao mundo exterior, sequer para ele, só retirando seu véu ao deitar em seu quarto trancado, do qual expulsara todos os espelhos. Falava com Theodor apenas quando ia comprar comida na feira ou encomendar ou arrumar uma roupa no alfaiate ou sapatos no sapateiro, dividindo as despesas entre os trocados que ele obti-nha por seus trabalhos (em geral pouco compreendidos) e o soldo que ela recebia por fazer parte das defesas de Beltrane. Seu sono era sempre sem sonhos, ao despertar dando de cara com um mundo em preto e branco, as cores voltando aos pou-cos, a vivacidade demorando ainda mais. Quando criança, não fora violentada por bárbaros ou trolls: estava brincando na frente de casa quando um sorridente des-conhecido a convidara a ir com ele para ver algumas bonecas mais bonitas, que eram frutos de seu trabalho, mostrando-lhe uma, de vestido macio e colorido, a cabecinha com cachos dou-rados que eram como os da menina; fora um momento de dis-tração da mãe, que estava preparando o jantar ao pôr do sol, Theodor ajudando-a na cozinha e beliscando o que podia, o pai não tendo ainda retornado do pátio do castelo do rei, onde trei-nava com outros soldados que não pertenciam à corte; e de fato o homem, calvo e magro, com uma cicatriz no queixo, era um artesão habilidoso, a pequena a princípio maravilhada com as

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bonecas expostas por sua casa, ele gentilmente dizendo que a presentearia com a que mais gostasse; a garotinha porém ficou um pouco assustada ao entrar em um aposento e vê-lo repleto de bonecas que eram idênticas a ela própria, inclusive com as roupinhas que costumava usar...O sujeito lhe confessou que fa-zia tempo que a observava e que se tratava de sua “modelo” fa-vorita. Gudrun começou a se sentir mal e seguindo uma vee-mente intuição quis e tentou ir embora. No entanto, ele a segu-rou e tampou sua boca, levando-a em seguida, enquanto ela se debatia, dizendo-lhe para ficar “boazinha”, ao porão da casa. Lá embaixo, na escuridão, outros homens espreitavam nas tre-vas; verdadeiras sombras, vultos famélicos que passaram a apalpá-la em todas as partes e direções. Tentou gritar, nenhum som saindo. E depois que a abominação se consumou, os ho-mens saindo em fila, o artesão da perversidade ameaçou a cri-ança apavorada, que tremia e gemia, humilhada num canto es-curo: “Se você abrir essa sua boquinha linda e suja, vai ter que engolir coisas bem piores do que o que a gente espirrou em você hoje...” A menina se calou por algum tempo. Todavia, a mãe notou mudanças em seu comportamento, não mais a garota vivaz que um dia fora, por demais calada e triste, o grito escapando com o encontro de todas as bonecas de criança amontoadas em seu armário, quebradas, rasgadas. Efetivamente, não a vira mais brincando. Quando mostrou à filha o que achara, Gudrun chorou, berrou e se negou a falar a respeito, correndo e refugiando-se em um canto no quarto dos pais, ao lado da cama, encolhendo-se; o encolhimento e a negação, acompanhados por tremores e ba-lançar de cabeça, continuaram mesmo com a mãe a tocar suas mãos e seus cabelos e proferir palavras de carinho, só decidin-do se abrir após a chegada do pai, que se mostrou perplexo ao

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encontrá-la naquela condição e, ao tentar tocar-lhe o rosto, ela o rechaçou. Theodor permanecia de sobrolho na porta, que foi fechada; o menino ficou de fora quando Gudrun começou a de-sabafar os horrores que sofrera aos pais. Seu pai, furioso, foi junto com companheiros seus atrás do ar-tesão, mas encontrou a casa completamente vazia, sem nenhu-ma boneca ao que parecia, tropeçando entretanto no sótão com uma sem cabeça com um vestidinho idêntico a um que sua fi-lha usava... Com o desaparecimento do único estuprador visível, os outros não haviam passado de sombras, e jamais poderia conhecer seus rostos, a perspectiva da vingança se tornou improvável para a jovem; mas o medo de um retorno e da punição prometi-da se ocorresse a delação, somado ao ódio e à angústia, a esti-mulou a treinar de maneira árdua para se defender. Ao ocorre-rem as mortes de seus pais, dela por doença, dele em batalha, seguindo-se o problema do irmão, questionou-se se o “mons-tro” poderia ser um feiticeiro, que a fazia “engolir” as desgra-ças e a solidão. Convenceu-se e condenou-se então a nunca mais ficar visível a outro ser humano, muitos na cidade conhecendo sua história e, justamente por isso, não se aproximando jamais; os velhos amigos de seu pai estavam loucos ou mortos. No leito de morte, sua mãe acariciara suas mãos; fora seu últi-mo gesto, e o último suspiro feminino visível para ambas.

Rugidos rasgavam o ar em uma sinistra masmorra; observa-dos por um homem pálido ao extremo, a despeito dos cabelos, das sobrancelhas e dos lábios vermelhos, os olhos negros como sua túnica, agitavam-se em espaços exíguos aberrações meio-humanas e meio-animais, homens-ursos, homens-lobos, ho-mens-felinos; não podiam tocar as paredes ou as grades: ao fa-

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zerem isso, eram atingidos por violentos choques que repercu-tiam em seus nervos, pois estas haviam sido imantadas por seu terrível “criador”, o esquálido semi-espectro que os observava, o conde Forsen, cujas terras faziam fronteira com os domínios de Beltrane. Era conhecido na cidade por enviar emissários seus para efetuar compras de cadáveres, oferecendo boas com-pensações aos mais pobres; muitos o temiam, imaginava-se que estivesse envolvido com necromancia e feitiçaria, e de fato es-tava, porém em algo muito pior do que se imaginava... Mandava recolher também os restos mortais dos bárbaros jo-gados na floresta mais próxima, e por meio de obscuros feitiços e rituais afrouxava os laços entre as almas de feras ainda vivas e seus corpos, arrancava-as e transferi-as aos cadáveres huma-nos, criando seus licantropos. Seus auxiliares eram seus pupi-los; só permitia que habitassem seu castelo os que se compro-metessem a segui-lo, e ainda assim, antes de dormir, trancava a porta e impunha sobre esta seus selos mágicos, isolando-se de toda interferência astral. Em seus sonhos, mergulhava em êxta-ses de morte e sangue; e, ao despertar, sua refeição matinal, como todas as demais, a mais leve a da noite, consistia em al-gum tipo de carne e vinho. A carne costumava ser bovina ou suína e servida quase crua, já tendo chegado a provar “adocica-das fatias e costelas de filhotes humanos”. Não se considerava todavia um vampiro, afinal nunca mordera ninguém vivo fora de sonhos... Costumava realizar sacrifícios a Hel, mas o Grande Sacrifício, que queria a todo custo ofertar à rainha do Submundo para lhe demonstrar sua gratidão pela sabedoria e pelos poderes que lhe dera, ainda não concretizara; este seria o massacre de uma cida-de inteira, entregando-a sem abrir exceções às garras da Morte. “Quando será o Grande Sacrifício, meu senhor? Será que ago-ra já pode nos dizer?”, durante um jantar, um dos discípulos, de

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cabeça raspada, alguns símbolos de Hel marcando a superfície que seria lisa, perguntou a seu mestre. “Parece-me que está bem ansioso.” “Como não ficar? Nossa rainha vai aparecer pessoalmente para receber a oferenda, não vai?” “É uma possibilidade. Mas devemos esperar um pouco mais. Acredito que na próxima lua cheia teremos licantropos sufici-entes, que inclusive ficarão mais fortes e violentos sob essa condição dos céus. Não se esqueça que há um berserk em Bel-trane. Esse tipo de guerreiro é perigoso e incompreensível.” “Devemos temê-lo?” “Claro que não. Mas uma certa cautela é necessária. Não so-mos como trolls e bárbaros. E que fiquem avisados, para que não criem expectativas em excesso: nossa rainha só se fará vi-sível se assim desejar.”, ao passo que em Beltrane, ignorando os planos de Forsen, Borg reagia com indiferença e Greta com rebeldia aos planos de casamento que seus pais estavam mon-tando para ambos: “Você não entende?? Não gosto dele, não sinto nada, é muito mais velho do que eu, e só de imaginar aquelas mãos cheias de rugas me tocando fico com calafrios!” “Também não sinto nada por ela. Mas talvez não seja tão ruim assim.” “Do modo como você está, não está nem um pouco preparado pra um casamento! Será que os nossos pais ficaram loucos??” “Eles acham que devemos ter filhos, uma vida normal, uma família, como todos. Apesar de eu saber que não sou normal, como você fez questão de sugerir.” “Ah, maninho...Desculpa! Não falei por mal, não queria te ofender ou te magoar. Mas essa força selvagem que te domina...Precisa aprender a controlar ela melhor antes de ter uma família. Fora que você não consegue manifestar sentimen-tos intensos, paixão, calor...”

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“Sei que não posso fazer ninguém feliz ainda. Mas meu lado berserk só se manifestou até hoje durante as batalhas. Nunca explodiu num ambiente doméstico.” “Sei disso, só que precisamos ter cuidado. Não vou estar mais por perto pra cuidar de você. Vou ter que me dedicar ao meu marido! É isso também que faz com que eu não queira me ca-sar. Não quero me separar de você.” “Eu também não gostaria que isso acontecesse.” “Mas é o que vai acontecer...”, Greta deixou escoar sua dor; todavia, nem seu casamento com um primo de seu pai, nem o de Borg com uma jovem nobre que não gostava nem de chegar perto do rapaz, por mais que os pais dela o exaltassem como um grande herói, viriam a se concretizar: numa noite de lua cheia, a imensa tocha branca e redonda dominando os céus, os monstros escalaram os muros de Beltrane, entre uivos, urros e rugidos; e como supremo oficiante, trazido pelos silfos que cor-rompera ou escravizara, Forsen vinha levitando. Os discípulos do conde atearam o caos por meio das chamas; os sacerdotes de Odin, percebendo o fogo, convocaram os ven-tos e a chuva para apagá-lo, porém terminaram surpreendidos em seu próprio templo por sorrateiros homens-dentes-de-sabre e mulheres-linces, suas costas rasgadas e perfuradas. Lobisomens e pseudo-ursos investiram contra os guerreiros que constituíam a força de defesa, não demorando para, ao en-contrar outros olhos ferozes, a fitarem sua irmã como uma pre-sa a abater, o berserk se manifestar. Diante da situação que se delineava, pela quantidade e pela força dos inimigos, desta vez Greta não o conteve em nenhum momento; e Gudrun veio, forte e silenciosa, para lutar ao seu lado com um bom número de soldados, deixando o berserk so-zinho com um outro grupo de oponentes. Era uma das virtudes

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da “guerreira trancada”, como alguns a chamavam, montar es-tratégias e colocá-las em ato sem dizer uma única palavra. Mesmo Borg sendo o que era, contudo, sua irmã não se sentia confortável ao deixá-lo lutando sem um aliado por perto; sentia como se o estivesse abandonando, por mais que ele fosse peri-goso e pudesse matar seus companheiros. Em seu instinto, pre-tendia sempre protegê-lo, o que parecia cada vez mais impossí-vel ao se ver cercada por seis licantropos. Com a ajuda de Gu-drun e de alguns homens, pôde abatê-los, mas foi ferida e sen-tiu de repente que queimava de dentro para fora, assim como os outros que se encontravam ao seu redor. As dores dos machu-cados da luta se amplificaram terrivelmente: um arranhão no braço era um fogo rasgando o tecido vital e se expandindo com violência a partir daquele ponto; Forsen empregava sua somb-ria feitiçaria e sorria: sua intenção era queimar tudo quando chegasse a hora, incluídos eventuais monstros sobreviventes, pelos quais não nutria o menor apreço; encerrada sua utilidade, não caberiam mais no mundo. De seus problemas, o maior parecia ser realmente o berserk, que resistiu às labaredas evocadas por um de seus pupilos e, grunhindo, decapitou o apavorado feiticeiro em seguida. As almas das bestas derrotadas uivavam e gemiam em fúria, medo e desespero, enquanto seus corpos vencidos voltavam a ser cadáveres, porém desta vez definitivamente inutilizáveis, decapitados e esquartejados, as cabeças e os membros perden-do de forma gradativa as aparências animalescas. Os espíritos atordoados das feras ainda serviam no entanto aos propósitos de Forsen, que, escutando-os bem, pôs em prática algo que ain-da não realizara: fixou-os todos no corpo de um único humano, de um de seus aprendizes, que fora abatido por um golpe de es-pada pelas costas dado por um cavaleiro; no ato a carne do in-divíduo começou a borbulhar, garras, dentes, pêlos e espinhos

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eclodindo; tornou-se uma fera pseudo-inteligente e faminta, com inúmeros atributos, cujos órgãos não resistiriam muito, mas o suficiente para enfim ferir Borg, que atacado ao mesmo tempo por outros feiticeiros enfim caiu, e sua queda era a que-da de Beltrane. Chamas violentas corroíam os soldados da ci-dade, e Forsen cerrou os punhos para comemorar seu triunfo. A maior frustração de Greta foi morrer sem conseguir ver mais seu irmão; Gudrun ainda resistiu por um tempo maior, ar-rastando seu peso e sua força, mas sua armadura fora perfura-da: impossível sobreviver. Entrementes, Hel não viria, pois não seria permitido que For-sen e seus pupilos continuassem levando a cabo tantas atroci-dades: “Devíamos ter trazido alguns einherjar.” “Os que estavam livres estão ainda muito crus. Seriam massa-crados.” “Não com a gente por perto.” “Não faria o menor sentido trazê-los, se nós seríamos obriga-das a realizar todo o trabalho.” “Quis dizer que a gente só iria interferir se eles estivessem muito enroscados!” “Melhor como está.”, uma era Orlun, valquíria de pele e olhos negros, cabelos curtos também escuros, revestida por uma ar-madura prateada, e preso às suas costas um grande arco de apa-rência orgânica, que parecia recoberto de pele e inclusive com veias, artérias e uma espécie de coração. “Tudo bem, tudo bem, senhora dever e seriedade! Mas o que importa é que vamos conseguir novos einherjar nessa cidade...E três deles parecem ser dos bons!”, Herja era a mais extrovertida das valquírias, quase sempre com um sorriso no rosto, ainda que não de alegria a todo instante, por vezes de mofa e ironia; bastante robusta, os cabelos loiros ondulados até

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os ombros, seus olhos azuis agitados e curiosos, sua armadura e sua espada eram azul-claras e, a despeito das diferenças, tinha uma relação muito próxima com Orlun. “Vamos parar de perder tempo...”, estavam do lado de fora, próximas do que restara das muralhas de Beltrane; Orlun pre-parava sua arma e, ao colocar a primeira flecha, entre as que estavam na aljava, de aparência também orgânica, uma boca de dentes afiados e língua agitada se abriu no arco: houve um gri-to com o disparo; e ao cair entre os licantropos e feiticeiros, aparentemente inócua, sem acertar ninguém, a seta se aprofun-dou no solo. Passados alguns segundos, brotou um feroz gigan-te de mãos que eram apenas garras, na área próxima de onde a flecha se enterrara, sua cabeça disforme, repleta de calombos, dentes que eram como facas, sem olhos, orelhas ou nariz; sua pele marrom coriácea se mostraria incrivelmente resistente, in-diferente ao fogo, às lâminas e a outras garras e dentes. O processo se repetiu, Orlun atirando mais flechas e gerando novas criaturas, vendo-as e dirigindo-as com sua mente, de olhos fechados, mantendo-se fisicamente à distância, ao passo que Herja entrou na cidade, combatendo com sua espada. “Não estrague minha oferenda, lacaia de Odin! Em nome da senhora dos mortos, irei bani-la de meu altar!”, Forsen, ainda sem perceber Orlun, acreditando que Herja fazia tudo sozinha, evocou uma tempestade concentrada contra esta: relâmpagos, vento e água em fúria, a valquíria agredida resistindo, ainda que empurrada e ranhuras surgindo em sua armadura; todavia o duelo não prosseguiu, de repente o ataque cessando, pois o fei-ticeiro pálido fora atingido por uma flecha, que entrou em seu peito; Forsen caiu e começou a se contorcer: seus órgãos esta-vam sendo mastigados e envenenados e seu sangue sugado, não demorando a um monstro ofídico sair de sua boca, quebrando

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seus maxilares; então já enfraquecido, foi devorado pela criatu-ra. “Orlun, sua intrometida! Eu ia dar conta dele sozinha. Como você gosta de cortar o meu barato!”, Herja protestou; a outra não respondeu. “O mestre está morto!”, gritou um dos discípulos sobreviven-tes do conde. “É impossível vencermos essas coisas! Vamos embora!”, os feiticeiros restantes tentaram fugir, mas terminaram golpeados antes pelas criaturas de Orlun ou pela espada de Herja, que ao espalhar sua aura de coloração celeste ia apagando as chamas e libertando as almas dos animais que haviam sido cruelmente envolvidos em tudo aquilo; poucos sobreviveriam em Beltrane para reconstruir a cidade, mas a ameaça de Forsen, que poderia crescer, e não apenas de um modo, fora varrida de Midgard.

Quando Borg despertou, Greta ainda estava adormecida, sur-preendendo-se ao vê-la abraçada a ele, murmurando o nome do irmão acompanhado de palavras ora carinhosas, ora raivosas e tristes, de indignação e inconformismo pelo medo de perdê-lo. Não deviam estar em batalha? Como tinham ido parar ali? A última recordação do guerreiro remontava à sensação de êxtase e asfixia que antecedia o estado berserk. Olhou ao seu redor e reconheceu outros soldados de Beltrane, inclusive lá estava Gudrun, de costas, mas o ambiente era completamente estranho e escuro, parecia um calabouço, com algumas goteiras. Teriam sido capturados pelo inimigo? A intenção do ataque que havi-am sofrido, pelo que Borg se lembrava, não dera mostras de ser de captura. Teriam sido salvos? Se sim, por quem? Intervenção divina? Isso estava parcialmente correto...

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Herja e Orlun abriram uma porta metálica e a luz entrou junto com as duas; a claridade despertou Greta, e se viram todos transportados para um amplo jardim de flores que pareciam grandes tulipas brancas. “Mas que lugar é esse? O que aconteceu?”, indagou a irmã do berserk, ainda um pouco atordoada de sono, enrubescendo ao se perceber tão colada ao rapaz. Desgrudaram-se um pouco e enfim ficaram de pé. “Sejam bem-vindos. E não se aflijam. Em breve estarão em Asgard, diante de Odin.”, Orlun foi a primeira a se pronunciar. “Odin, Asgard...Isso quer dizer que estamos mortos! Perde-mos a batalha! Beltrane então...”, o choque a ajudou a rapida-mente despertar. “Não se precipite. Sua cidade sofreu danos severos, mas per-siste. Agimos segundo a vontade de Odin e eliminamos o feiti-ceiro e sua corja. Agora rejubile-se por vir conosco.” “Então foi um bruxo maldito que atacou Beltrane! Aquelas aberrações...”, Greta parecia ser a mais disposta a falar ali, mesmo que em voz baixa e consigo mesma... “Os detalhes daremos depois.” “Porque a hora é de puxar o cavalo. Pena que o casal vai pre-cisar se separar...”, Herja se voltou para os irmãos, sorrindo de uma forma sarcástica que lhe era típica e prazerosa. Borg enca-rou Greta, os dois atraíram a atenção de todos os soldados por perto, e ela não se segurou e respondeu: “Não sei quem ou o que é você, se é uma valquíria como de-via ser ou não, porque não parece, mas em primeiro lugar não somos um casal! Ele é meu irmão! Entendeu?? Meu irmão! Em segundo, por que vamos precisar nos separar?” “O porquê vão saber depois, esquentadinha. Agora esse papo de irmãos comigo não cola. Ele não é seu irmão de sangue!” “Nós crescemos juntos!”

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“E daí? Você sabe que ele não é seu irmão.” “Você não é uma valquíria coisa nenhuma!” “Mais respeito por uma autoridade celestial!”, e os homens por perto desataram a rir, menos Borg, que permanecia com um jeito sóbrio e alheio. “Herja, por favor...”, Orlun interveio. “Já chega.”, e sob sua ordem, seu olhar e uma emanação vermelho sanguínea de sua aura, todos foram silenciando, inclusive Greta. “Essa sim impõe respeito.”, refletiu a moça. E Orlun emendou, dirigindo-se a Borg: “O relevante para você, guerreiro, é que no Valhala aprenderá muito mais sobre o estado berserk, e compreenderá melhor a si próprio e aos seus sentimentos. Deverá se tornar um dos berserkers de Odin, que são bem diferentes dos que existem em Midgard.” “Como eles são?”, o rapaz tomou coragem para inquirir. “Você verá.”, e, num vento, todos se foram, deixando as flores a sós.

Mãos divinas

“Aegir, ou Hler, que habitava a ilha de Hlésey, era um profun-do conhecedor de magia. E graças a esta sabedoria, conseguiu ascender a Asgard, onde foi recebido com alegria, os deuses manifestando sua hospitalidade com um banquete regado a boas doses de hidromel. Odin lhe abençoou suas espadas, tor-nando-as tão brilhantes quanto as dos guerreiros do Valhala, ta-manha a luz que irradiava destas que não se via necessidade de nenhuma outra iluminação enquanto estavam desembainhadas. Porém o que mais prazer deu a Hler foi ouvir as histórias de Bragi, começando pelo conto do rapto de Idun, que se iniciava quando Odin, Loki e Hoenir tinham ido andar pelas montanhas

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e desertos, a fim de conhecer de perto sua natureza e seus habi-tantes, e acabaram chegando a um vale onde viram um rebanho de bois e capturaram um para comer. Só que, por mais que ten-tassem, por melhor que fosse o fogo que acendessem, a carne do animal continuava crua. Escutaram então uma voz saindo do carvalho acima deles, que acusou Loki de não possuir dignidade suficiente para comer aquele boi, que pertencia a um rebanho sagrado. Quem falava era na verdade uma águia, que não era pequena, empoleirada naqueles galhos, e que disse que a carne só ficaria boa se a ali-mentassem com uma parte. Apesar de uma certa revolta do filho de Farbauti, os deuses consentiram. E o pássaro desceu da árvore e tomou para si as coxas do boi e seus ombros. Nisso porém Loki não se segurou, achou esse gesto um exagero, um roubo, e apanhou um bastão, brandiu-o com força e bateu com violência no corpo da águia, que assustada bateu suas asas e tentou voar em fuga. Só que o bastão ficou preso nas costas da águia e Loki, com a mão na outra extremidade, foi puxado junto. A águia voou tão alto que os pés de Loki batiam contra as montanhas, e o aesir berrou, pedindo que o pássaro pousasse, que tivesse piedade. No entan-to, a águia declarou que Loki não seria solto jamais, que a ofendera e que não seria perdoado, a menos que lhe prometesse induzir Idun para que deixasse Asgard com suas maçãs. O deus consentiu e o pássaro pousou calmamente, nada mais sendo contado até a ação voltar ao lar dos aesires. Loki cumpriria sua promessa, atraindo Idun para fora do país dos deuses, para um bosque onde disse que existiam maçãs ainda mais belas do que as suas. Instigada, e sem acreditar que aquilo seria possível, a bela deusa seguiu o traquino filho de Farbauti, ao chegar na floresta em questão sendo raptada por Tjazi, um jotun conhece-

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dor de truques de ilusionismo que voltava a se passar por águia, o mesmo que quase derrubara Loki. Com o desaparecimento de Idun, os aesires se tornaram todos decrépitos: a juventude partira como flores que são colhidas por mãos enrugadas; e precisaram se reunir em um conselho, onde foi indagado quem havia sido o último a estar com Idun. Loki acabou desmascarado por Heimdall, que o vira saindo com a bela deusa de Asgard, e após ser torturado e ameaçado de morte declarou que iria se redimir, que se encarregaria de buscar Idun em Jotunheim, bastando que para isso Freya lhe emprestasse seu manto de plumas de falcão. Uma vez conseguido este traje mágico, Loki voou para o país dos gigantes e lá viu Tjazi remando no mar. Devia estar pes-cando, enquanto Idun se achava sozinha, à beira da praia. Loki a transformou numa noz e a agarrou com suas garras, voando o mais depressa que pôde. Nisso porém, foi visto pelo jotun, a quem não podia enganar com ilusões. Este voltou a se transfor-mar em águia, perseguindo Loki. Os deuses, que acompanharam a perseguição do alto do trono de Odin, decidiram ir para fora de Asgard e ergueram, perto da entrada do Reino, uma montanha de gravetos. Esperaram Loki passar, para depois atearem fogo na madeira toda. Tjazi não conseguiu parar a tempo de evitar as chamas, e assim suas asas foram incendiadas. A águia caiu e os aesires a pegaram, dando-a à morte em seguida. Skadi, a filha de Tjazi, ficou com sede de vingança ao saber do fim que seu pai tivera, e montou-se com cota de malha, elmo e todas as suas armas de guerra rumo a Asgard. Thor a venceu em batalha, mas não a executou; os deuses não queriam matá-la, pois era nobre e inocente. Assim, ofereceram-lhe um marido entre eles, que porém teria de escolher apenas pelos pés, não vendo mais nada de seu futuro companheiro.

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Ela então optou pelos que lhe pareceram mais belos, acredi-tando serem os do esplendoroso Balder. Contudo, eram na ver-dade os do velho vanir Njord. Não muito satisfeita, Skadi disse aos deuses que queria, já que se veria obrigada a casar com um ancião, que a fizessem rir. Era extremamente séria, e nunca nenhum homem conseguira fazê-la rir. Loki, traquino como de costume, amarrou uma corda na barba de um bode e na outra extremidade seus próprios órgãos geni-tais; cada um passou a puxar em uma direção, e os dois berra-vam alto. Vendo aquela cena, Skadi não resistiu e caiu na gar-galhada, passando a fazer de vez parte dos deuses. Bragi então procedeu à sua segunda história, que partia de uma indagação: por que o ouro seria referido como cabelo de Sif? A expressão remontava a Loki, quando este por astuciosa traquinagem cortara todo o cabelo da esposa de Thor, após em-bebedá-la, enganando-a ao antes dizer que pretendia fazer o mais belo corte. Quando a consorte veio chorando lhe dizer o que ocorrera após se ver no espelho, o deus do trovão se enfureceu e teria quebrado todos os ossos de Loki se ele não tivesse jurado que os anões iriam fazer cabelos de ouro para Sif, e que depois es-tes iriam crescer como qualquer outro cabelo. O filho de Farbauti foi portanto até os filhos de Ivaldir, anões extremamente habilidosos, e estes produziram novos cabelos para Sif, assim como um dia haviam forjado a lança Gungnir e o anel Draupnir de Odin. Loki porém, não se dando por satisfeito (sempre precisava se divertir um pouco), provocou-os dizendo que não seriam capazes de fazer um tesouro igualmente bom para ele, que só se empenhavam quando algo era para Odin ou para Thor, e menosprezou as habilidades de Brokk e do irmão deste, Sindri, os melhores artesãos daquele

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povo. Cismados, os dois foram à forja e se puseram ao trabalho, perturbados no entanto pelos insetos voadores que Loki enviava, o tempo todo pousando sobre suas peles e distraindo-os. O desastre se deu quando um tentou esmagar uma mosca e acabou acertando com seu martelo o ombro do outro; seguiu-se uma briga, no meio desta um inseto de ferrão entrando e picando a pálpebra de Brokk. O sangue escorreu pelo olho do anão, que ficou furioso. Sindri procurou acalmá-lo, dizendo que desde que haviam começado a trabalhar para Loki, nada mais dava certo. Quando foram atrás do zombeteiro filho de Laufey, este já havia partido com os cabelos de Sif, e ainda roubara os sapatos capazes de correr sobre o ar e a água que tinham mantido guardados por anos, e que pretendiam entregar de presente a Odin. Estava feito: Loki usara Sif para sair ganhando mais uma vez! Já a terceira narração do deus da poesia disse respeito às peripécias de Thor. Uma luta difícil de travar era contra a serpente Midgard, ou Jormungand, que vinha matando os homens com seu olhar, mas que se escondia no fundo das águas sempre que o deus do trovão tentava golpeá-la. Irritado por não conseguir atingir o dragão das profundezas, foi para o leste matar alguns trolls, e Odin cavalgou sobre Slep-nir para alcançá-lo e auxiliá-lo, no caminho encontrando-se com o jotun Hrungnir, que lhe perguntou quem era, porque nunca vira aquele cavaleiro com elmo de ouro que passava sob-re o ar e as águas. O rei dos deuses disse que antes de revelar sua identidade gostaria de propor um desafio, provocando seu interlocutor ao declarar que não devia existir em Jotunheim um cavalo tão bom quanto o seu. Hrungnir respondeu que tinha o cavalo que

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dava os maiores saltos, chamado Gullfaxi, e que com este ven-ceria qualquer prova contra qualquer cavalo estrangeiro. Deixando a ajuda a Thor para depois, Odin e Slepnir competi-ram portanto contra Hrungnir e Gullfaxi. A corrida foi equilib-rada, e terminaram empatados, chegando juntos a Asgard. Foi nesta ocasião que o senhor dos aesires revelou quem era e con-vidou o jotun a beber com ele em seu palácio. Lástima que o gigante não possuía bons modos: ficou muito orgulhoso por ter tido uma competição parelha com Odin, e de-pois de bêbado começou a se jactar que arrancaria o Valhala de Asgard com suas próprias mãos e que mataria todos os deuses, menos Freya e Sif, que queria possuir. Thor, que conseguira se livrar sozinho dos trolls do leste, ao voltar para Asgard encontrou Hrungnir bebendo sem parar e fi-cou espantado com sua ousadia, perguntando a Freya o que um cão jotun como aquele estava fazendo nos domínios dos deuses e por que o servia junto com as valquírias. Hrungnir respondeu, encarando Thor de forma nada amigável, que estava a convite de Odin e sob sua proteção, porque com seu cavalo empatara numa corrida com o rei dos deuses monta-do em Slepnir. O deus dos relâmpagos, refletindo que, por mais que tivesse vontade, seria desonroso matar alguém desarmado e em estado de embriaguez, lhe perguntou se aceitaria um novo desafio. O gigante respondeu que adoraria lutar até a morte nas bordas do Abismo, porém precisaria antes se restabelecer do efeito da bebedeira e de seu escudo. Marcado o duelo, em seu retorno a Jotunheim Hrungnir nar-rou sua jornada para seus irmãos e convidou todos a acompa-nharem o combate dentro de poucos dias. Sendo o mais forte de todos os gigantes, seus compatriotas temeram que se acabas-se perecendo na luta ficariam vulneráveis diante dos aesires, mas não havia como retroceder e resolveram confiar naquele

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corajoso colosso, que se vencesse poderia antecipar o fim dos deuses e permitir a conquista de Asgard. O coração de Hrungnir era famoso por ser de pedra dura e com três pontas afiadas. Seu escudo também era de pedra, am-plo e pesado, e quando chegou o dia se postaram nas bordas do Abismo; um mínimo deslize e cairiam em Nifelheim. O gigante precisou controlar seu medo ao ouvir o estrondo dos trovões, e lutaram martelo contra punhos de rocha, relâmpagos contra es-cudo; a luta se prolongou por algum tempo, até a proteção do gigante se partir e o Mjolnir esmagar o crânio de Hrungnir, dei-xando-o em frangalhos. Assim o jotun não caíra precipício abaixo, mas fora vencido. E Thor levou embora inclusive o ca-valo Gullfaxi, que deu a seu filho Magni, para maior humilha-ção dos jotuns. Estes tentaram se vingar numa oportunidade em que Loki foi brincar com o manto de penas de Freya, esvoaçando por Jotu-nheim, e conseguiram capturá-lo, encerrando-o em um baú no qual ficou faminto por três meses, até os deuses se decidirem a resgatá-lo. Loki já provocara muitos desgostos aos aesires, por isso a demora e a hesitação, mas Odin concluiu que não deixa-va de ser um deles, apesar de seus erros, e enviou Thor, tido o melhor para lidar com os gigantes. Antes de chegar a Jotunheim, no entanto, o deus da tempesta-de foi advertido por uma volva que Geirrodr, o jotun que man-tinha Loki preso, era, apesar de fisicamente mais fraco do que Hrungnir, muito mais astuto e detentor de conhecimentos mági-cos. Por isso, para protegê-lo dos encantos do feiticeiro jotun, entregou-lhe um cinto, luvas de ferro e um cajado de proprie-dades místicas. Na tentativa de atravessar o rio Vimur, que antecedia o castelo onde Loki estava cativo, de fato a magia de Geirrodr o teria fei-to em pedaços, manipulando a fúria das águas; porém graças às

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luvas se sobrepôs à correnteza, suas mãos valendo por um sem-número de braços inteiros. E, uma vez na outra margem, o ca-jado dissipou os maus espíritos, afora o cinto imune a encanta-mentos de fortuna adversa e às tentativas de sedução das filhas do jotun, que haviam banhado seus lábios em veneno. Ao chegar no salão do feiticeiro, levantou-o pelo pescoço e deixou claro que desejava a restituição da liberdade de Loki. Geirrodr prometeu que o obedeceria, mas ao ser solto pegou uma barra de ferro que fez arder e a lançou contra o deus. No entanto, Thor conseguiu segurá-la graças às suas luvas e a atirou de volta, atravessando o inimigo e a parede que havia atrás. Ficou orgulhoso de suas mãos, que não moldavam apenas o seu destino, e com elas carregou Loki de volta para Asgard...”, Jan Huss era um andarilho e, embora não fosse um erudito, os encantos da cultura exerciam sobre ele um irresistí-vel fascínio. Andava sempre com uma pena, tinta e suas folhas de pergaminho, usando-as não só para as receitas de medicina, sua profissão, como para tomar nota do que via e ouvia de inte-ressante em diferentes regiões e registrar lendas e histórias tra-dicionais, como estas aqui transcritas, que considerava que guardavam uma sabedoria arcana, além da força poética, e que seria um desperdício que terminassem esquecidas. As que co-nhecera em outros reinos adaptara à língua de Barda, seu país nativo, onde agora coincidentemente tornara a residir, após muitas andanças mais afastadas, porém não na capital, para onde algum dia pretendia ir a fim de deixar seu trabalho na Bi-blioteca Real. Temia morrer antes disso, deixando um bilhete entre suas coisas que dizia que se alguém encontrasse seus per-gaminhos em que estavam transcritas as diferentes estórias que colhera, que os levasse pessoalmente à Biblioteca ou pedisse a alguém que os levasse, que por favor não fossem transcurados, pois não se tratava somente do labor de um homem, muito me-

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nos da vaidade deste, e sim de um tesouro do mundo; que res-peitassem a última vontade de um saudável curioso e amante dos costumes e das tradições orais! Loiro de cabelos longos e olhos esverdeados, alto e magro, ao exercer sua profissão não abria mão da túnica branca de reto-ques em esmeralda na gola e nas mangas que recebera de seu mestre, um elfo, que ao iniciá-lo, em um bosque no extremo leste de Barda, estabelecera como única condição que Huss se tornasse um médico itinerante, não privilegiando os doentes de nenhuma região específica de Midgard. Dessa forma, este ho-mem abrira mão de constituir família e de uma residência fixa, permanecendo por alguns meses nas casas que alugava em cada lugar; em compensação, haviam-lhe sido abertos os canais para a cura por meio da imposição de mãos e entregues valio-sos conhecimentos a respeito de plantas medicinais. O elfo, que jamais dera seu nome, e que dizia estar de passagem por Mid-gard, estabelecera com apurada clareza o que a transmissão da sabedoria médica élfica exigia: “Quando o vi procurando co-nhecimento sobre o Verde nesta floresta e li a sua alma, fiquei imensamente feliz por enfim encontrar neste plano um indiví-duo para o qual eu poderia ensinar as artes curativas de Alf-heim. Mas se mantenha ciente que a transmissão está longe do término: se por acaso degenerar e quebrar sua palavra, se des-cumprir seu juramento e passar a agir seguindo metas egoístas, eu sentirei isso, esteja onde estiver, e o encontrarei para encer-rar sua existência em Midgard. Sua alma, depois disso, será tra-gada pelo inferno entre os mais abjetos traidores e mentirosos. Você fez uma opção: lembre-se.”, mas tais palavras não chega-ram em nenhum momento a amedrontar Huss, que estava firme em seus propósitos e possuía um espírito verdadeiramente nob-re.

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Talvez sua única falha moral, e por isso a única culpa que car-regava, consistira no abandono de sua noiva: não tivera cora-gem de lhe contar cara a cara a verdade, que não poderia ja-mais se casar, pois os pais dela nunca aceitariam uma vida iti-nerante para a filha, e deixara uma carta explicando sua missão e suas razões. Jamais exigiria que fugisse com ele (o que pro-vavelmente de qualquer forma ela não faria...), assim dando início à vida peregrinante; quando um certo cansaço ou desâni-mo o fazia fraquejar em algum aspecto, se lembrava das difi-culdades de seu treinamento, dos jejuns e dos exercícios rígidos de concentração, aos quais se submetera no bosque para purifi-car seu corpo e sua alma, e recuperava as energias. Contudo, na cidade onde agora se encontrava, Skajbred, nos limites entre Barda e a Queruscia, tornara-se o alvo mais visa-do pelos curandeiros locais, do ponto de vista dos quais vinha “roubando” clientes. Alguns possuíam conhecimentos limita-dos, ao passo que outros eram claramente charlatões, que proli-feravam por aquelas bandas. Já enfrentara a oposição de gente do tipo em outros lugares, conseguindo ir embora a tempo de não cair em armadilhas. Só que os falsos curadores de Skajb-red, vendo as filas que se formavam em frente à casa onde atendia, os mais diversos males sanados de imediato ou em curtos períodos de tratamento considerando-se a gravidade de determinadas situações, agiram de maneira rápida e sorrateira, contratando um assassino de aluguel, um sicário que se faria passar por paciente. O que não contavam era que, assim que fi-cou a sós com o médico em seu consultório, este recebesse as seguintes palavras: “Você está mal. Mas não veio se cuidar. O que quer aqui?”, sensitivo, Huss percebera que, embora o sujeito estivesse são de corpo, sua alma estava apodrecida e doente, exalando um desagradável odor astral. O assassino ficou inseguro, gaguejou,

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tremeu; em muitos anos de crimes, era a primeira vez que lhe acontecia isso; mas terminou cumprindo sua missão: sentindo a agressividade, o médico recuou, porém não foi veloz nem hábil o suficiente para escapar de ser apunhalado. Invadido pelas do-res dos cortes e perfurações e por um frio repentino, por um gelo em seu peito, gritou, depois se conformando com a morte, que cedo ou tarde tinha que ter acabado dessa forma, em razão dos defeitos dos homens. Fora competente dentro de suas pos-sibilidades, fizera o que lhe fora pedido; pena por não poder salvar ainda mais vidas, porém as que salvara já o deixavam imensamente feliz: a mãe que precisava cuidar do filho peque-no; o filho que não queria deixar só o pai velho; o casal que não pretendia se separar precocemente...Sua missão fora curta, mas eficiente, surpreendendo-se, após cair, por poder poucos instantes depois se levantar, suas forças recobradas, sem qual-quer ferimento (curado?), vendo diante de si, em um prado de verde absoluto no que parecia ser uma montanha primaveril, outros montes ao seu redor, além do céu e das nuvens claras, uma donzela de longos cabelos cacheados ruivos, os olhos es-meraldas serenas, o nariz arrebitado, a expressão bondosa, em um traje verde-claro com poucas partes metálicas. “Uma valquíria...”, logo reconheceu. “Então, fui escolhido como einherjar. Mas não sou um guerreiro.” “Também precisamos de einherjar de cura. Sou Eir.”, ela res-pondeu, com uma voz adocicada. “Eir, a maior médica de Asgard, a valquíria que é também a divindade que patrocina e ampara todos os médicos? Então não é mesmo à toa.” “Está bem informado. Como pode perceber, seus estudos não foram em vão. Estamos em Lyfjaberg, a montanha da cura. Vou levá-lo ao meu palácio. E chegou a hora de saber que não nos conhecemos só agora...Eu o acompanho há um bom tempo.”

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“Imagino. Afinal rege as artes médicas.” “Não da maneira como você acredita. Há muito mais. Tenho inúmeras formas de atuação, que me diferenciam consideravel-mente de minhas irmãs. Uma delas é agir diretamente no mun-do dos homens, escolhendo em geral um indivíduo por geração para realizar um intenso trabalho de sanar feridas gritantes. Mesmo que o trabalho seja breve, sua importância reside numa qualidade superior e numa intensidade que poucos podem su-portar. Além de tudo, trata-se de um árduo e constante labor in-terno...”, e para a surpresa de Huss, a valquíria foi se metamor-foseando, ficou mais alta, suas orelhas se tornaram pontiagu-das, e assumiu a aparência de um elfo...Daquele elfo. “Foi essa a aparência que usei para iniciá-lo no Verde.”, palavra que re-percutiu num aconchegante calor em sua alma. “E será na mi-nha forma verdadeira que irei lhe transmitir os ensinamentos Reais...”, logo voltou à realidade de valquíria, porém muito mais esplendorosa do que antes, como plena alma de toda a sua montanha, preenchendo-a com os feixes que irradiavam da aura total. Foi nessa hora que Jan se lembrou de seu trabalho com a pena e os pergaminhos, com as histórias que tivera tanto trabalho para transcrever, e que queria preservar mesmo que os povos que as contavam deixassem de existir, tranquilizado sem a ne-cessidade de palavras quando Eir lhe mostrou, em sua luz, ao sentir e ouvir sua preocupação, imagens de Midgard: o einher-jar viu um de seus fiéis e queridos pacientes, que estavam orga-nizando uma cerimônia fúnebre digna (por isso mexiam em seus pertences, para se possível queimá-los junto com seu cor-po, não permitindo que caíssem em mãos sujas), encontrar o bi-lhete que deixara com as folhas; o homem até chorou, emocio-nado, e se decidiu a realizar a última vontade do herói (não de batalhas, mas sim de outro tipo de ação) que o curara, dirigin-

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do-se na manhã que se seguiu, com todos os manuscritos em mãos, rumo à capital. O bom médico agora podia se sentir efetivamente leve.

A mesma Skajbred, alguns dias após a partida de Huss, viu como se se abatesse sobre si um castigo divino, iniciando-se com uma epidemia de peste que nenhum curandeiro foi capaz de frear, e que se difundiu pelas cidades vizinhas, seguindo-se ataques de ogros, ogras e trolls em regiões já assoladas pela fome e pela doença. Nesse contexto, o rei decidiu enviar gru-pos de médicos e mercenários para socorrer as populações: Axel, Hansen e Elsa eram três deles. O primeiro, vaidoso e afeito a muitos gestos e caretas, gostava de louvar suas próprias proezas; mestiço, pois sua mãe viera de terras quentes ao sul, possuía a pele escura, os olhos azuis, uma estatura elevada e grande força física, trazendo consigo uma espada montante. O segundo, mais baixo e menos robusto, usava uma alabarda e uma armadura prateadas e seus cabelos eram loiros ondulados, diferentemente dos pretos e crespos do outro, em comum am-bos mantendo-os curtos, e seu semblante costumava ser um tanto tenso, aflito e preocupado; relevante dizer que eram ami-gos de longa data, mais recente o relacionamento que tinham com Elsa, ao redor da qual, com sua origem no centro de seu ventre (embora isso não se percebesse visualmente, era a área mais aquecida de seu corpo), havia uma misteriosa aura de fogo, que aprendera a conter, mas que sempre ficava um pouco visível, como um sutil contorno em vermelho-vivo. Apesar da impossibilidade de um contato físico prolongado com seus se-melhantes, pois tocá-la, mesmo com a chama apaziguada, era como aproximar gradativamente a mão de uma labareda até o ponto de colocá-la nesta, considerava-se abençoada. Em sua adolescência, época na qual esquecera sua infância, com amné-

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sia em relação às suas origens, fora criada por sua mãe adotiva, uma dócil viúva que a recebera já crescida dos braços de um desconhecido viajante encapuzado. Este apenas dissera tê-la encontrado inconsciente e maltrapilha no Deserto da Morte Branca (um milagre que seu corpo ainda estivesse relativamen-te quente) e que não podia cuidar dela no momento. Desmemo-riada, durante sua estadia por ali queimaria muitas amigas de sua mãe em ocasiões em que seu fogo interno se manifestaria exteriormente, embora a princípio nada grave e sua ocorrência ainda eventual; por dádiva dos deuses, as pessoas em seu vila-rejo eram muito bondosas e tolerantes, aceitando-a conquanto sem compreender por que um fenômeno tão estranho acontecia somente com a jovem. Mas mesmo elas terminaram se deixan-do vencer pelo medo e perderam a paciência quando toda a al-deia foi incendiada e a própria mãe da moça reduzida a cinzas após um acesso de raiva, do qual com o passar do tempo fizera questão de esquecer (o tolo de qualquer forma) motivo. Elsa não se perdoou por seu descontrole e não ficou aborrecida com a expulsão, passando a vagar sozinha por amplas extensões fri-as e secas, sem sequer neve, de árvores e arbustos semimortos: recordações do outono de sua vida. Em dias assim, ausentou-se todo o calor humano; porém o isolamento não foi em nada pacífico nem de recolhimento: não conseguia olhar para si mesma, as chamas crescendo sem ces-sar, os rastros de fogo se espalhando por onde passava, um ins-tante de distração bastando para levar um susto com uma árvo-re se incendiando ao seu lado, de modo incontrolável. Só con-seguiu parar de lançar labaredas percebidas e não percebidas ao encontrar, num final de tarde, uma caverna úmida; contudo, o alívio durou pouco, pois se sua aura exteriormente deu a im-pressão de estar adormecida, por dentro passou a queimá-la sem piedade, um ardor sem delimitações que se difundia por

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todas as suas partes. Começou a se debater, a se jogar contra as paredes, contra o chão, e mesmo que a saída da gruta estivesse aberta não conseguia se dirigir para lá; não podia fugir. O cre-púsculo aparentou uma interminável duração, os corvos se des-manchando em cinzas ao sol. “A sua mente...Observe-a. Fique atenta à sua volta. Esqueça o corpo.”, ouviu a voz antes de ver o corpo, aproximando-se, proveniente do fundo da escuridão, um velho de barba e cabe-los brancos longos, de estatura elevada embora curvado, apoi-ando-se em um cajado e, depois notou, caolho; seus trajes eram marrons, assim como seu largo e alto chapéu. Questionou: “Quem é você?”, ao que o desconhecido respondeu: “Não im-porta quem eu sou. Talvez eu sequer exista! Quem é você?” De início, Elsa se recusou a compreender o que o velho disse-ra; mas, com a passagem dos segundos, percebendo que não ti-nha escolha, principiou a observar sua atividade mental, discer-nindo as fagulhas que davam origem ao fogaréu: eram as me-nores centelhas as que mais ardiam. Então veio a noite; e o ca-lor se tornou tênue. “Tenho a vivência de muitas guerras. Vou lhe mostrar como se faz.”, e, por mais que a moça lhe perguntasse, o eremita não re-velou sua identidade, limitando-se a lhe repetir que talvez nem mesmo existisse. Tais palavras a deixavam perplexa, em alguns dias mais do que em outros, porém não podia fazer nada para desviá-lo de sua postura, por vezes se questionando se tudo à sua volta não passava de pura loucura, se ela própria não per-manecia na verdade inerte, seus olhos no nada, sua mente em falsas visões e existências; fato que com o idoso caolho apren-deu a conter seu fogo, domando-o no decorrer dos dias (pas-sando concomitantemente por um rigoroso treinamento físico, a fim de que mente e corpo entrassem em harmonia), até ele lhe dizer que estava pronta, mas que antes de restituí-la ao

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mundo precisava lhe mostrar algo: levou-a por uma passagem oculta, por percalços sem degraus nos quais os corredores se perdiam, e onde ao demorar Elsa sentiu medo de nunca mais retornar, de ter caído na armadilha de um demônio e estar sen-do arrastada, sem sentir, suavemente, para o gelo eterno de Ni-felheim; contudo, os temores se revelaram infundados ao al-cançarem um espaço onde havia pendurada uma majestosa lan-ça, pela qual a jovem sentiu instantâneo fascínio: o velho a pe-gou sorrindo, o único elemento claro na obscuridade à volta, e a ofereceu a Elsa com as mãos abertas: “Segure-a. É sua.”, com uma ponta afiada de cada lado, parecia ser banhada a ouro, cra-vejada de pedras preciosas que continham sinais rúnicos. Ela o encarou, séria, enquanto o sorriso do velho misterioso persistia, e só tocou a arma ao tirar os olhos dele. Após puxá-la para si e contemplá-la de perto, entretanto, vol-tou a fitá-lo, nesse instante reconhecendo a runa branca de Odin onde deveria haver o olho cego. Nisso, deixou cair a lan-ça e o metal ricochetear. O rei dos deuses assim se revelou, expondo a seguir as expli-cações das quais a jovem tanto necessitava: “Fui eu o encapu-çado que a deixou com sua mãe adotiva. E isso porque você é uma descendente do povo-dragão que um dia lutou contra nós, os deuses, sobre a qual senti a responsabilidade de manter meu olho a fim de torná-la nossa aliada, o que acarretará também numa espécie de redenção da alma coletiva de sua ascendência. Mas não são todos os descendentes dos homens-dragões que manifestam o poder ígneo que você irradia; na maioria aliás permanece adormecido! Por alguma razão que desconhecemos, o sangue dos seus antepassados pode não produzir nada em um eventual filho seu, despertando em um bisneto.”, e Elsa por fim recuperou memórias de sua infância e início de adolescência, da tribo bárbara onde nascera, seus pais tendo falecido precoce-

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mente, em razão de uma doença contagiosa, e suas manifesta-ções flamíferas súbitas não sendo toleradas pelos demais membros, que atribuíram aquilo a uma maldição demoníaca; por isso fora derrubada e abandonada por seus confrades, sozi-nha em pleno Deserto da Morte Branca. Odin, que já a vinha observando, resolvera intervir, ao descer descendo junto com ele, de céus mais próximos, fantásticos dragões: eram quatro, de escamas brancas e prateadas, os olhos de pupilas negras e fundos azuis, focinhos longos, amplas asas membranosas e caudas compridas; pousaram ao redor da jovem, cada uma das enormes criaturas podendo engoli-la em uma só bocada, mas se limitaram a permanecer em seus lugares, atentos tanto a ela como ao senhor dos aesires e a eventuais seres hostis em volta. Nenhum troll ousaria se aproximar no momento. Odin partiria com Elsa em seus braços, deixando os dragões para trás, entre o vento e a neve que começaram a cair, e anos depois, além da lança, a presentearia na fatídica caverna, antes de voltar a Asgard, com uma armadura anteriormente mimeti-zada às rochas, que ora parecia de pedra, ora de magma ardente e ativo quando a guerreira se inflamava. Assim que ela vestiu o traje, o deus desapareceu, de forma súbita; mas apesar da apa-rente tragicidade de sua vida, de todos os percalços e sofrimen-tos que enfrentara, considerou-se abençoada, como se conside-raria sempre dali em diante, e agradeceu. A mão do senhor de Asgard não agia por qualquer causa. Percebendo que a arma e a proteção entregues por Odin a aju-davam a canalizar melhor seu poder, cada vez mais sob seu controle, resolveu ganhar sua vida como mercenária, chamando a atenção dos que lutavam ao seu lado não só por suas capaci-dades incendiárias como por sua aparência exótica: de corpo atlético, seus cabelos, que costumava deixar curtos, eram de

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um ruivo vivo que não tinha semelhante, seus olhos de pupilas também vermelhas, a pele corada. Axel não foi o primeiro a se interessar pela moça, mas certa-mente se tratou do primeiro a ter coragem para cortejá-la, logo na primeira vez que trabalharam juntos. “Se quiser, pode tentar me tocar...”, Elsa lançou seu desafio, numa ocasião em que estavam em um acampamento, com mui-tos outros mercenários, e, como podemos imaginar, foi uma frustração para o rapaz, que não suportou dez segundos massa-geando as costas dela, na ocasião sem armadura, apenas em tra-jes de couro; a guerreira por fora permaneceu séria, rindo um pouco por dentro. Alguns dos curiosos que estavam acompa-nhando a cena, ao contrário, soltaram boas gargalhadas. “Podia ser menos esquentadinha. Você não consegue segurar isso?” “Já estou segurando. É o máximo que posso conter.”, não o considerou um idiota; apesar de não demonstrar, aparentando indiferença, com as pernas cruzadas e olhando para outro can-to, achou-o bastante divertido. “Gosto de mulheres quentes, mas aí já é demais. Você vai ser sempre proibida pra mim, pelo visto.” “Sou proibida para qualquer homem.”, frase que calou Axel; mas não havia tristeza nestas palavras, pois não tinha pensa-mentos e desejos libidinosos e lúbricos. Não sofria portanto por não poder beijar ou tocar por muito tempo outros seres huma-nos; quiçá isso se devesse à sua ascendência, desconhecendo por completo como devia ser a sexualidade do povo-dragão, se talvez apresentassem um único período de acasalamento duran-te toda a vida e o dela ainda não houvesse chegado. “Que mulher estranha! Tudo bem que todas as mulheres são um pouco esquisitas e incompreensíveis, mas essa é demais!”, Axel certa vez comentara com Hansen, que preferira não ver

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quando o amigo cortejara a moça, pela qual também se sentia atraído, mas sem a mínima coragem de tomar a iniciativa, desa-creditando completamente em suas possibilidades. Ao saber que ela era na verdade inacessível para todos, isso lhe trouxe algum conforto. Tímido, nunca declararia seus sentimentos a Elsa, que apesar de não se interessar pelo amor sentia fortemente a necessidade de amizades sinceras, de companheirismo, o que terminou en-contrando nos dois; passaram assim a trabalhar em trio, Axel interessado também em sua utilidade nas batalhas, ensinando-lhe, junto com o outro, as técnicas e estratégias de luta que co-nheciam. “Afinal, se o seu fogaréu falhar, você vai ter que se virar de algum outro jeito!”, e lidar com ogros e trolls não foi problema para eles em Skajbred, o maior dos trabalhos se dan-do com a aparição de um terrível jotun: “Essa coisa não devia estar aqui...”, lamentou um mercenário, meneando a cabeça para os lados. “Humanos!”, o gigante falou em seu tortuoso idioma, mas se pôde compreender, pela expressão de seu rosto, que com temí-vel desprezo. “Estou com muita fome, e preciso me saciar! Um, dois, três, quatro...Só não quero carne de velhos, costuma ser muito amarga! Mas vários dos que estão aqui parecem ser jovens, devem ter um sabor bem fresco! Apesar dos humanos serem criaturas ridículas, pretensiosas e mesquinhas, não co-nheço carne melhor.”, este era um dos mais primitivos habitan-tes de Jotunheim, que vinha espalhando morte e destruição des-de que pusera seus pés peludos e de dedos sujos em Midgard; com por volta de seis metros de altura, possuía uma barba gru-denta, repugnante, a pele esquálida manchada, e poucos dentes, porém afiados; cuspia muito e sua saliva grudenta escapava quando falava. Como já tinha uma pele bastante resistente e

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muitos pêlos para se proteger do frio, andava nu; armaduras e roupas incomodavam-no. Sua força bruta sem dúvidas condizia com sua bestialidade, manuseando uma clava repleta de espigões que partiu ao meio o primeiro guerreiro que atingiu. Axel, Hansen e Elsa procura-ram como de costume trabalhar em conjunto, armando rapida-mente uma estratégia: os dois atacaram pelas laterais, buscando perturbá-lo e feri-lo com a espada e a alabarda, logo contando com a ajuda de outros homens, enquanto ela, mais afastada, se concentrava discretamente, e, ao girar sua lança, em cada ponta surgiu uma bola de fogo. Quando ele se deu conta, as duas es-feras ígneas já haviam partido, atingindo-o em cheio no peito e incendiando seu corpo. “Malditos humanos! Ah, uma ratazana que sabe usar magia!”, ao descobrir a descendente do povo-dragão, que após a mani-festação de seu poder não podia mais esconder sua aura flamí-gera, partiu em fúria e velocidade para esmagá-la, sem se im-portar que estava pegando fogo e ignorando os pequenos cortes produzidos pelas armas dos que o atacavam. “Ele vai matar aquela mulher!”, gritou um mercenário. “Vocês não conhecem a Elsa...”, replicou Axel, Elsa atirando sua lança e cravando-a na clava do gigante, que explodiu. Na sequência, expandiu sua energia, imantando a espada e a ala-barda de seus amigos com forças ígneas; Hansen também ati-rou sua arma, que se fincou nas costas do jotun, o ardor passan-do a agir de dentro para fora. E a guerreira avivou à sua volta labaredas de função tanto defensiva como ofensiva. Axel o golpeou repetidas vezes nas pernas, desviando-se dos chutes, até, mesclando corte e derretimento dos ossos, conse-guir derrubar uma como faria com um tronco de árvore. A terra e o ar tremeram com a queda e o grito do colosso.

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“Desgraçados...Não pensem que acabou.”, o gigante fora ven-cido, queimaria até a morte, mas não pretendia despencar sozi-nho em Nifelheim: acumulou nos punhos toda a energia vital que lhe restava e esmurrou a terra, abrindo uma enorme fenda que, sem que houvesse meio ou tempo para fugir, engoliu a ele e Skajbred inteira, nem mesmo Elsa e seus companheiros po-dendo fazer nada para impedir seu despencar na escuridão de aparência absoluta. “Eles se saíram muito bem. Não eram ainda sequer einherjar, só humanos comuns, e conseguiram derrotar um jotun. Louvá-vel!”, levitando nas sombras, o que parecia ser uma mulher de rosto comprido, pálida, o nariz pontiagudo, os cabelos loiros presos beirando o branco, os lábios finos, os olhos azuis gran-des e arregalados, comentou com uma menina de cabeça baixa, os cabelos e o vestido vermelhos, seu rosto não se via, asas de cisne em suas costas; um corvo voava por perto. “Nossa, às ve-zes vocês falam demais, não param nem um segundo! Isso me incomoda, deviam saber disso.”, após um longo silêncio, aque-la que era uma valquíria, chamada Svipul, voltou a comentar; nas pupilas bipartidas de seus olhos, metade refletia a criança e o pássaro negro, a outra metade as almas dos três mercenários escolhidos; era uma das mais “diferentes” emissárias de Odin, capaz de mudar de forma, de produzir projeções e de multipli-car a estas e a si mesma ilusionisticamente. Costumava conver-sar com suas crias, não parecendo muito “normal” para a maior parte de suas irmãs...Todavia, Odin a respeitava e a considerava de vital importância como todas as demais, cada valquíria com sua precisa função espiritual, moral e de atuação em Midgard. Ao ficar farta de permanecer por ali, abriu um par de belas asas cândidas em suas costas e a menina e o corvo se desfize-ram, a primeira se desmanchando numa claridade rubra que foi se apagando até desaparecer, o segundo se imobilizando até se

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fundir às trevas, tornando-se indistinguível destas. Svipul fe-chou as pálpebras, respirou fundo e, ao levantar voo, o rastilho de luz se transformou em explosão e engoliu tudo o que não havia por perto. “Sou filha da Luz, sou a glória do Fogo!”, na ascensão para Asgard, Elsa, meio adormecida, meio desperta, enquanto seus dois companheiros estavam totalmente inconscientes, escutou reverberar em sua consciência um canto que nunca ouvira an-tes, em cujo refrão estas palavras se destacavam; seria uma an-tiga canção de seus ancestrais?

Partida ao lar

“O rei Hraudung, de Gamla, tinha dois filhos gêmeos, um de nome Agnar, enquanto o outro se chamava Geirrodr, ambos com quinze anos. Um dia, saíram para pescar sozinhos, com a autorização do pai, que era um apreciador da sabedoria prática, e que queria que seus rebentos aprendessem desde cedo a se-rem donos de si, independentes, para que no futuro pudessem governar o país com o conhecimento da experiência. Duro e exigente, Hraudung não deixava isso transparecer nos treinos com espadas, nos quais embora exigisse aplicação nunca era grosseiro e ríspido, permitindo tempo para descansar, conver-sar, enxugar o suor e beber um pouco de água; impunha a disci-plina que julgava necessária com uma certa sutileza, por meio de palavras firmes, conselhos precisos e por uma postura sem titubeios, que os garotos haviam aprendido a admirar. Os dois tinham partido em um barco simples com equipamen-tos para pegar peixes pequenos, nada muito ambicioso, porém uma tempestade repentina se abateu e foram em vão as tentati-vas de retornar para perto da costa; os ventos os empurraram

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para o meio do oceano e, após inúmeras turbulências, naufraga-ram em uma ilha. Lá, seus destinos se separaram, pois foram parar em praias diferentes. Agnar, ao seguir adiante, deparou-se com um simples vilarejo, onde, apavorado e esfomeado, rece-beu o pão e a hospitalidade de uma mulher de longos cabelos grisalhos, que após ouvi-lo lhe contou um pouco de sua própria história: “Há muito tempo perdi o meu marido e o meu filho, quando também saíram para pescar. Nada mais me restou, a não ser eu para mim mesma.”, enternecido pelas palavras e en-cantado com seu coração, o garoto acabaria ficando durante o inverno, período no qual, segundo o que aquela senhora lhe disse, seria temerário tentar retornar, por mais que estivesse preocupado com seu pai e o reino, pois era época de águas in-quietas, as serpentes marinhas e os krakens ansiosos para tira-rem proveito das tempestades devorando os viajantes do mar. E, sem resultados positivos nas tentativas de achar seu irmão, Agnar acreditou que Geirrodr estava morto. Contudo, o outro garoto fora na verdade acolhido na fazenda de um velho caolho e solitário, que lhe deu o que beber, comer e cama para dormir também durante o inverno. Também lhe contou um pouco de sua história: “Há muito tempo perdi minha mulher e minha filha, quando havia saído para pescar. Ao vol-tar com os peixes, encontrei os corpos delas mutilados; haviam sido assassinadas por ogros. Nada mais me restou, a não ser eu para mim mesmo.” Já nos dias próximos da primavera, Geirrodr se afastou um pouco da fazenda para caçar um cervo para aquele bondoso se-nhor, visto que andavam com escassez de carne; só que o ani-mal foi fugindo, e seu perseguidor demorando para atacá-lo com sua espada porque não queria correr o risco de errar o gol-pe e permitir que escapasse. Acabou sendo abatido antes por outro caçador, que tinha flechas. Geirrodr ficou então esperan-

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do que este se aproximasse, acompanhando a movimentação nas folhagens, e dependendo de como fosse iria lhe pedir uma parte do cervo. Grande sua surpresa ao reencontrar seu irmão! Abraçaram-se e choraram, comovidos com o reencontro; e de-pois um apresentou o outro para a senhora e o senhor, este últi-mo conseguindo um barco para que voltassem às suas terras. Quando os levaram à praia no dia da partida, o homem con-versou algo a sós com Geirrodr, que Agnar nem fez questão de perguntar sobre o que fosse, isso faria depois, eufórico que es-tava por poderem retornar juntos ao lar. Agradeceu à generosa mulher que o acolhera por toda uma estação, dando-lhe de co-mer e um teto para dormir, e disse que pretendia recompensá-la no futuro. Ao partirem, pegaram um vento favorável, característico da primavera, e chegaram ao porto de seu reino. Geirrodr se diri-giu à proa e saltou primeiro. Seu irmão o seguiu, na sequência os dois empurrando o barco de volta ao mar enquanto diziam: “Vá agora! Saia para o mar e seja levado por Smyl!”, a corren-teza levou de fato a embarcação, e em seu regresso à cidade fo-ram bem recebidos, conquanto Hraudung tivesse morrido. Ago-ra quem seria o rei? Sentiam-se ambos ainda muito jovens para assumir o trono. Ouviram que uma raposa prateada com apenas um olho fora vista nos aposentos de seu pai pouco antes de seu falecimento, desgostoso e de cama que ficara após o desapare-cimento dos filhos, como se não tivesse bastado a perda da rai-nha alguns anos antes. De todo modo, alguém precisava reinar. E para que não hou-vesse conflito com seu irmão, Agnar abdicou de qualquer direi-to ao trono e decidiu se retirar para a floresta, apesar dos pro-testos do próprio Geirrodr, que propôs que governassem juntos. Contudo, o outro gêmeo não acreditava que algo como um rei-

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no pudesse ser regido por duas cabeças, que correriam o risco de bater uma na outra, e assim partiu, sem deixar rastros. Os anos passaram. E Odin e Frigg, do grandioso trono Hlidsk-jálf, se sentaram para observar o que se passara com os dois desde a última vez que os tinham visto: na verdade, o rei e a rainha dos aesires eram o senhor caolho e a senhora que havi-am acolhido os gêmeos após o fatídico naufrágio; costumavam andar em Midgard às vezes, e cuidar dos jovens desamparados quando estes tinham potencialidades e possibilidades de supe-ração. Dessa maneira cada um havia, a seu modo, adotado um dos garotos. Acompanhando agora a situação do presente, o deus dos deu-ses falou: “Está vendo Agnar, seu filho adotivo? Enquanto ele se cerrou em uma caverna, Geirrodr, meu filho adotivo, é um poderoso rei.”, e Frigg respondeu: “Mais vale ser um eremita do que um rei mesquinho. Geirrodr se tornou tão miserável que seus convidados morrem de fome.” Odin objetou que isso era uma mentira, que sua esposa só queria forçosamente se mostrar como melhor educadora e for-jadora de almas virtuosas; fizeram uma aposta. Não era de fato verdade que Geirrodr fosse um rei mesquinho. Mas Frigg era esperta, e enviou sua assistente, Fulla, até o pre-ferido de Odin, a fim de lhe transmitir um estranho aviso: para que se prevenisse, e nenhum feiticeiro o encantasse. Advertiu-o que um estava chegando em suas terras e que poderia ser re-conhecido com alguma facilidade porque nenhum cão seria su-ficientemente valente e selvagem para ousar atacá-lo. O rei de Gamla perguntou àquela mulher misteriosa sua verdadeira identidade, mas Fulla desapareceu de seu salão da mesma for-ma que aparecera, como se tivesse se tratado de um sonho. O feiticeiro apareceu, as pessoas comentando que nem mesmo o cão mais feroz conhecido na cidade latira para ele, que todos

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silenciavam à passagem daquele velho, e Geirrodr mandou prendê-lo. Usava um manto azul e se chamava Grimnir, porém não disse mais nada a respeito de si mesmo, por mais perguntas que o rei lhe fizesse. Chegou a torturá-lo para fazê-lo falar, e o colocou entre duas fogueiras, onde o deixou por oito noites. Geirrodr tivera um filho, ainda uma criança, que batizara com o nome de Agnar em homenagem ao irmão. O menino foi até Grimnir, deu-lhe um chifre cheio de bebida e lhe disse que seu pai estava errado em torturá-lo, que isso não se fazia, e que sua expressão era a de um inocente. O menino parecia surpreen-dentemente maduro. O velho bebeu e o fogo próximo chamus-cou e queimou seu manto. Disse então: “Você é quente, fogo. Eu o conduzo para longe! Meu manto queimou antes de mim, e está chamuscado! Por oito noites me sentei entre as fogueiras, e nenhum homem me alimentou, apenas o jovem Agnar me trou-xe algo para beber! Geirrodr se tornou um homem mesquinho, e por isso não governará esta terra por muito tempo mais. Mes-mo os prisioneiros devem ser tratados com dignidade. E não havia motivo para eu me tornar um prisioneiro. Frigg estava certa. Odeio perder apostas, mas nesta fui vencido sem poder expor contestações. Salve, Agnar! É Odin que o saúda! O paga-mento que terá por esta bebida que me deu será maior do que jamais imaginou. Frikko recebeu Alfheim no início dos tempos como dádiva do dente, e você também receberá, ao cair de seu primeiro dente, um presente proporcional à grandeza de seu es-pírito. Vislumbrando seu futuro, percebo que seu destino além de Midgard é o de algum dia se juntar a mim no Valhala, onde mesmo que morra todos os dias voltará depois a viver. Você fi-cará maravilhado com o teto feito com cabos de lanças, escu-dos como telhas, e os bancos repletos de cotas de malha. Pode-rei levá-lo para conhecer também o Himinbjorg, o palácio onde Heimdall bebe seu hidromel, com sua própria corte de guerrei-

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ros, que escolhe a dedo para que protejam Bifrost dos ataques dos jotuns. No Folkvangr de Freya, se ela permitir que você en-tre, isso já não é mais da minha alçada, conhecerá fascinantes guerreiras, só cuidado para não se apaixonar, já que a vida de cada filho que adoto no Valhala é de dura preparação para a ba-talha final, quando deveremos vencer os demônios de Hel, os gigantes de Muspell e Jotunheim. Não há tempo para o amor, embora os beijos não sejam proibidos. Nunca proibimos as coi-sas boas em Asgard! Andhrímnir, por exemplo, é o melhor co-zinheiro que se possa conceber, e sempre que quiser ele cozi-nhará Saehriminir em seu caldeirão. Saehriminir é o javali da carne mais saborosa que existe, e os einherjar podem comê-lo sempre, sem se preocupar, pois ele sempre voltará à vida. Tal-vez algum dia eu o deixe até cavalgar junto comigo em meu Slepnir, bom Agnar, e poderemos percorrer todo o universo. Poderei levá-lo até as raízes de Yggdrasil, para que conheça o fundamento das coisas, e verá que são três, como três são as idades da vida humana, a sua ainda a primeira. Você conhecerá Ratatoskr, o esquilo que corre pelo tronco da Árvore. Ele ouve as palavras da águia que fica na copa e as traz para Nidhoggr, que fica embaixo, gerando a discórdia entre estas duas criatu-ras. A realidade é que mais serpentes se deitam abaixo de Ygg-drasil do que se possa imaginar! E algum dia teremos que com-batê-las. É por isso que preciso de homens de valor e coragem. Vocês terão a seu dispor, quando o crepúsculo pousar, o Skid-bladnir, o melhor dos navios de Frikko, e a bordo dele não pre-cisarão temer a fúria dos oceanos nos últimos dias. O que me diz de seu destino?”, o menino estava bastante surpreso, seu coração mais acelerado do que de costume; todavia seu sem-blante mantinha um aspecto sereno. Odin refletiu que não ha-veria melhor rei do que ele quando crescesse, pois sabia conter

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o ímpeto de suas emoções. As fogueiras se apagaram; o peque-no Agnar respondeu: “Aceito o que os deuses me ofertarem.” Odin sorriu e o abençoou: “Melhores palavras não poderia di-zer. Eu o bendigo sob todos os meus nomes! Eu que sou Grím-nir e Gangleri, Herjann e Hjálmberi, Tekkr e Tridi, Tudr e Udr, Helblindi e Hár, Sadr e Svipall, Sanngetall, Herteitr e Hnikarr, Bileygr, Báleygr, Bolverkr, Fjolnir, Grímr e Glapsvidr, Fjolsvi-dr, Sídhottr, Sídskeggr, Sigfodr, Hnikudr, Alfodr, Valfodr, Atrí-dr, Farmatyr e Yggr. Fui também chamado Jálk em Ásmundar, Kjalar quando puxei o Trenó, Vidurr nas batalhas, Óski e Ómi, Jafnhár e Biflindi, Gondlir e Harbardr entre os deuses, Svidurr em Sokkmímir. Quando vir seu pai, diga-lhe que ele ficou como bêbado sobre a ponte, que perdeu todas as bênçãos dos einherjar e a amizade de Odin. Diga-lhe para tomar cuidado com seus próprios amigos! Vejo a espada de um destes toda suja com o sangue de Geirrodr. Mas não se entristeça, pequeno, segure suas lágrimas, pois não há nada que possa ser feito. Conforme-se. As nornas já decidiram.” “Se não há nada que eu possa fazer para salvar o meu pai, en-tão por que me fala para lhe dizer que perdeu Sua sagrada pro-teção e para que tome cuidado com seus próprios amigos?” “Como não foi hospitaleiro comigo, o hóspede maltratado lhe dará o terror da morte.” Agnar correu para avisar seu pai que o “feiticeiro” era na verdade Odin. Este não acreditou, terminando seus dias num dos corredores do palácio real apunhalado pelo sicário de algum falso amigo, interessado em lhe usurpar o trono. O jovem príncipe teria tido o mesmo fim se o senhor de Asgard não interviesse, espalhando chamas por todo o castelo, as primeiras labaredas consumindo diretamente os conspiradores. Do incêndio, apenas o menino e sua mãe, a rainha Umla, escaparam vivos.

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Agnar viria a reinar por muitos anos no futuro, outro Agnar, o mais idoso, seu tio, saindo da floresta, avisado por um loquaz elfo viajante, apenas para acompanhar à distância, como um velho barbudo qualquer, a cremação do irmão, cujo cadáver não fora consumido pelas chamas de Yggr, e o início da reconstrução da que um dia fora a morada de Hraudung. Quando voltou à sua caverna, Frigg estava à sua espera.”, e assim se interrompia, no clássico livro Contos de Grimnir, uma das versões da história dos Agnar, o jovem considerado um dos grandes monarcas que Gamla tivera, seu período envolto em diversas lendas, alguns chegando a dizer que era na realidade filho de Odin. Agnar VI, o atual rei, não por acaso portava esse nome, ficando mais grato a seus pais a cada leitura que fazia a respeito de Agnar I, seidmadr dedicado aos deuses e autor de diversas obras morais e poemas, e Agnar II, que instaurara um período de paz e prosperidade, uma era dourada que permanecera na memória coletiva. Sentia-se lisonjeado por carregar o nome de figuras tão nobres da história de sua nação, pretendendo fazer jus a este. Pena que se encontrasse distante de seu lar: Gamla se juntara a outros dois países, Slavia e Kadra, contra o reino da ilha de Trekk, cujo príncipe caçula, Isak, fora à corte de Kadra em missão diplomática e se apaixonara e sequestrara a jovem esposa do soberano local, amigo de longa data de Agnar, ao passo que Dimitri, monarca de Slavia, era aliado de ambos, com um intenso comércio entre os três. Não houvera portanto outra escolha que não interceder em favor do que fora lesado, o que desembocara em guerra. Trekk resistira por cinco anos até cair. Contudo, o de Gamla fora o único dos reis a sobreviver. Dimitri caíra em combate, e o soberano de Kadra matara sua

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esposa, a principal causa explícita do conflito, e se suicidara em seguida. Tudo porque ouvira da moça que esta acabara se enamorando de seu raptor, não cedendo a seus pedidos de perdão. O principal motivo não declarado da guerra, por sua vez, havia sido o interesse tanto de Slavia como de Gamla nas minas de ouro e prata de Trekk, onde trabalhavam dezenas de anões, e que foram divididas entre o rei sobrevivente e os novos regentes das outras duas nações. Para administrá-las, permaneceram na ilha homens de confiança dos líderes. Suas famílias seriam posteriormente transladadas para lá, ao passo que a família real de Trekk fora passada a fio de espada e suas cidades destruídas, seus habitantes levados embora como escravos pelas frotas dos vencedores. No entanto, Agnar fazia questão de mantê-los em boas condições, pois em seus domínios mesmo os servos tinham direito a conforto quando não estavam trabalhando e a recompensas quando cumpriam bem suas tarefas. Tinha a certeza que indivíduos fracos, enraivecidos e ressentidos jamais ajudariam a construir nada, e sua mentalidade, de inteligente e estudado condutor de homens, era que um reino precisava ser construído e reconstruído constantemente se quisesse persistir e não ser tragado pela turbulência das águas e dos tentáculos da história. Ainda no mar, haviam sido calculados mais sete dias para que desembarcassem em Gamla, e nesse período já enfrentara algumas peripécias. Uma das mais marcantes se dera na passagem pelo estreito de Skagerakk, sobre o qual ouvira falar que sereias às vezes subiam em suas rochas. Na ida, não tinham se deparado com nada que lhes chamasse a atenção, mas na volta, de longe, um dos navegantes apontou e gritou: “Vejam, é uma sereia!”, e foram surgindo outras, uma atrás da outra, humanas na parte de cima de seus corpos, havendo

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loiras, ruivas, de cabelos negros, suas peles claras ou escuras, do mesmo modo seus olhos, dos mais variados tipos portanto, para todos os gostos, em comum a beleza que todas possuíam, porém a metade inferior era ou de peixe ou de cetáceo; não apresentavam pernas, apoiando-se nas pedras com suas caudas. À medida que a frota de Gamla se aproximava do estreito, uma calmaria mórbida tomava conta do mar. E como já ouvira falar do magnífico e letal canto das sereias, Agnar ordenou que seus homens tampassem os ouvidos com cera, enquanto ele próprio pediu para ser amarrado no mastro de seu navio, com a finalidade de ficar a salvo do perigo e ainda assim escutar a canção. “Venha conosco, grande rei...” “Venha para nós...” “Prazeres sem fim o aguardam...”, as traiçoeiras criaturas começaram a cantar na passagem dos barcos, e suas vozes eram tão maravilhosas que produziam até efeitos de instrumentos sem a necessidade de portá-los e usá-los. Dois temerários, que se haviam negado a colocar cera em seus ouvidos, acreditando que tudo não passasse de uma superstição, que as sereias fossem na verdade inofensivas, se jogaram nas águas, inebriados com o canto, e tentaram nadar até elas; no entanto, sentiram seus corpos de repente tão pesados que, mesmo sendo sujeitos muito fortes, guerreiros de primeiro nível, acabaram se afogando. Algumas sereias sorriam, dissimuladamente; outras eram explicitamente frias; em comum, o sereno desprezo pelos homens. Agnar, ao ser seduzido por aqueles vozes, gritou para que seus soldados o soltassem, mas os remadores fizeram os navios seguirem em frente, e quando toda a frota passou as sereias mergulharam novamente no mar.

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“Nunca vou me esquecer do que ouvi. Era magnífico e terrível.”, confessara depois aos seus homens. “E não lamento pelos dois que se atiraram no mar. Eram tolos. Não perdi ninguém valioso. A descrença sempre deve estar acompanhada de boas cordas! Mesmo que as sereias fossem mudas, eu não teria perdido nada por me fazer amarrar.” Em seu gabinete, costumava ler para tentar se desligar um pouco do mar, os Contos de Grimnir um dos livros que trouxera para Trekk, com a finalidade de manter seu espírito elevado durante o conflito, conduzindo-o a realizações superiores tanto externa quanto internamente, acima da crueldade e da mesquinhez habituais na guerra; tinha fé que Odin lhe concedera a vitória por ser um soberano justo, que se inspirava nos atos dos grandes heróis do passado, leal com seus soldados e sua família; jamais surrupiaria a companheira de outro homem. Por falar nisso, a leitura também lhe amenizava as saudades de sua esposa Berta, uma mulher alta e loira de traços finos e retos, que o cativara desde a primeira ocasião em que a vira, em uma festa no castelo do duque Svensson, pai da então jovem. Pedira-lhe uma dança, concedida com uma terna timidez, que a tornara ainda mais encantadora. Como naqueles dias andava secretamente apaixonada pelo filho mais velho do conde Nark, a princípio não lhe chamara a atenção, por mais que fosse o único rebento do rei e portanto seu futuro sucessor; foram as mãos vigorosas, a postura firme, a conversa agradável e a voz segura e refinada que pouco a pouco a conquistaram. E o duque, tendo em vista o interesse do príncipe, conversara com o pai do rapaz, na época o soberano de Gamla, e dessa forma o casamento fora acertado. Ao primogênito de Nark, que a cortejara mesmo já sendo noivo, por isso um amor que jamais teria se concretizado como ela desejara, restaram bodas

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cinzentas. Os olhos de Agnar incandesciam por dentro com sua verdade, eram carvões com brasas em seu interior, negros como seus cabelos e seu bigode; não usava barba. Sua pena, ao escrever, deixava rastros de um certo fogo, mas não pretendia um volume de memórias, era detalhista de outras formas, preferindo pensamentos e aforismos esporádicos que descreviam seu estado, suas sensações e reflexões, seus sentimentos, guardando seus manuscritos particulares em um pequeno baú que levava em todas as suas viagens. Havia também anotações de sonhos, as quais preferia que fossem queimadas após sua morte. Entre seus próprios aforismos, tinha alguns favoritos, como: “A riqueza é a fonte das discussões entre os parentes e a senda preferida das serpentes.”; “O homem sábio não fala do fundo do recinto.”; “A chuva é o pranto das nuvens, que deixa em ruínas as colheitas.”; “A alegria de um cavaleiro está numa jornada veloz.”; “No que a ocasião foge, o julgamento persiste.”; “A boca é uma dádiva para os homens sábios, uma maldição para os ignorantes e um instrumento de tortura para os ouvidos dos que são obrigados a escutar os idiotas.”; “A felicidade é uma boa casa onde o homem pode viver sem ansiedade.”; “O oceano é interminável para os homens que não o acolhem.”; “Os sonhos são faíscas da luz gloriosa do Criador.”, e dos sonhos anotados, alguns haviam sido particularmente intensos, sem sucesso na maior parte de suas tentativas de interpretação, as melhores a seu ver feitas por uma velha volva chamada Arga, que desaparecera de seu reino sem deixar rastros (especulavam que estivesse morta, sem qualquer evidência a respeito): “Auroques de grandes chifres me perseguindo; eram bestas selvagens. Mas acordei antes de ser pisoteado.”; “Passei por entre espinhos; uma floresta de

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espinhos. Não havia escape.”; “Estava atravessando estradas nas costas de um cavalo robusto. Foi um sonho longo, no qual o sol chegou a se pôr. Na escuridão, usei uma tocha, quando começou a cair granizo. Os ventos ficaram muito fortes e nisso acordei, com frio. Tinha esquecido aberta a janela dos meus aposentos.”; “Estava andando sobre um lago congelado, que ora parecia um assoalho de vidro, ora como se fosse feito de pedras preciosas; uma bela visão, quebrada pela irrupção de uma baleia.”; “O teixo é um guardião que alegra qualquer terra. Mas o que vi em meu sonho hoje estava morrendo.”; “Meus guerreiros estavam jogando alegremente no salão dos banquetes, quando feridas se abriram em suas peles sem qualquer motivo; fiquei assustado, despertando quando vi uma cobra se esgueirar no canto oposto.”; “Fiquei diante de um castor monstruoso, maior do que qualquer ser humano, comendo a carne de um porco que recém-abatera. O céu estava cinzento e ouvi um trovão. Ao me encostar em um carvalho, voltei a perceber minha cama.”, como não queria que descobrissem seus pontos fracos internos caso seus textos viessem à tona, nunca tomara nota das interpretações de Arga, procurando guardá-las em sua memória; seu pior pesadelo, vendo sua esposa morta, com o ventre rasgado, sangue por todos os lados, que o levara a acordar dando um grito e ofegando, fora o que tivera a explicação mais impactante e ao mesmo tempo mais evidente, mas que não quisera enxergar por si próprio, exposta pela velha: “A sua maior angústia, o seu maior desgosto, é ainda não ter tido filhos.”, e, além da vontade de se realizar por inteiro como homem, o que era considerado impossível na cultura de Gamla sem que se tornasse pai, pensava no que aconteceria se morresse sem deixar herdeiros. “Se a sua mulher ainda estiver viva até lá, ou ela será assassinada, ou se verá pressionada a se casar com outro. Pois

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não tem sangue real! Nisso, qualquer outro nobre considerará legítimo aspirar ao trono. Mesmo que seja uma filha, é preciso alguém com seu sangue, com o sangue da família real, que dê continuidade à dinastia...”, advertira sinistramente a volva, esboçando perspectivas sombrias, que o desagradavam profundamente. Precisava de qualquer forma retornar são e salvo para casa. Sua cidade era Upsala, capital de Gamla (reino que tinha inclusive domínios insulares, mas seu centro ficava no continente), cuja arquitetura dos templos e castelos era fortemente verticalizada, não por acaso a multiplicidade de torres de topos pontiagudos, como que apontando para Asgard. A decoração, que cobria as superfícies arquitetônicas como uma teia, procurava na maior parte das vezes ser fluida e ondulante, diferentes lendas retratadas no templo central, seu interior revestido inteiramente em ouro, como mais relevantes obras de arte e fé as enormes estátuas de Thor, Odin e Frikko (como era conhecido Freyr em Gamla) no salão principal. Mediam uma altura de dez homens, e nisso se pode imaginar as dimensões do recinto, perto do qual ficava uma imensa árvore com folhas amplamente esparramadas, verde tanto no verão como no inverno, indiferente ao gelo e ao granizo, dedicada a Freya porque se dizia que fora a própria deusa a plantá-la ali. Acima do frontão, ficava pendurada uma corrente de ouro cujo brilho era visto de longe, seus elos simbolizando a ligação entre os homens e os deuses. Venerava-se Thor não só como o deus das tempestades violentas, mas, em seu aspecto benigno, como o senhor das chuvas que permitiam uma boa colheita; Odin era o portador do fogo da sabedoria, uma chama sempre mantida acesa no olho aberto da estátua, e o que abençoava a guerra justa; Frikko trouxera aos mortais a paz e o prazer, concedendo a saúde aos

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animais e às plantas, assim como sua irmã Freya, e juntos eram os patronos dos matrimônios. Enquanto os destaques de Thor e Odin eram respectivamente o martelo e a lança, o de Frikko, que estava desarmado, era seu falo, que ficava bem exposto e descoberto. O maior de todos os festivais religiosos de Upsala ocorria nos primeiros nove dias de cada nono mês, alguns animais sacrificados pendurados de ponta-cabeça nas árvores mais próximas do templo central, um cavalo preparado durante todo o ano anterior, cuidado e alimentado como um rei, para ser o que ficaria na árvore de Freya. Tudo estava baseado em uma antiga lenda, segundo a qual Odin se pendurara de cabeça para baixo na Árvore Yggdrasil para obter a sabedoria das runas, e os rituais, que começavam de manhã cedo e terminavam ao pôr do sol, não se limitavam aos sacrifícios, incluídos nestes invocações e evocações de poderes divinos, orações, e música e danças, a parte celebrativa como encerramento, para se comemorar o êxito das práticas. Por mais de cinco anos afastados de seu lar, Agnar e seus homens não haviam podido portanto prestar suas maiores homenagens anuais aos deuses, procurando convencer-se que estes compreenderiam perfeitamente, afinal em terra estrangeira, distantes do templo, e sem as mulheres, teria sido impossível; como compensação, realizavam alguns sacrifícios pontuais, evocando devotamente as bençãos para a guerra e a sobrevivência no mar. “Dizem que esses ventos fortes vêm do bater das asas de Hraesvelgr, um jotun em forma de águia que se senta no fim do céu. Quando ele se enfurece, é o que ocorre.”, Agnar comentou na proa do navio com seu imediato, Garder, após ser chamado em seu gabinete, suas leituras interrompidas, em razão dos céus terem ficando cinzentos, de alguns relâmpagos vistos no

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horizonte e de uma ventania: sinais de tempestade. “Gostaria de conhecer tantas coisas quanto Vossa Majestade, que não é um rei apenas por direito. Agora precisamos mais uma vez de sua sabedoria...Há uma ilha pouco adiante; acha melhor pararmos por lá para aguardar que a tempestade passe?”, Garder era o homem no qual o rei de Gamla mais confiava, um sujeito pálido, de cabelos loiros crespos, a barba sempre torta e malfeita, mesmo nos dias de cavaleiro da corte, em que se preocupara muito mais com seus deveres do que com sua aparência; por diversas vezes fora advertido pela rainha inclusive por cheirar mal...E se desculpava, mas dificilmente se lembrava de tomar banho, sendo que dormia com seu cachorros, dos quais vinha sentindo uma tremenda saudade! Agnar já o aconselhara a equilibrar melhor o externo e o interno, falando com sutileza, apesar de sua autoridade como rei, porque o apreciava muito e não queria ofendê-lo ou magoá-lo; sabia ser um de seus melhores guerreiros no campo de batalha e sem dúvidas o mais fiel. Pouco antes de partir, de fato Garder melhorara um pouco na higiene, porém a guerra tratara de lhe devolver alguns dos antigos maus hábitos e ainda adicionara novos, com a única diferença da ausência dos cães. Contudo, não só na luta e no desleixo com o asseio do corpo que o imediato se distinguia: conhecia algo de feitiçaria, em especial sinais mágicos, como o Kaupaloki, que como já contara certa vez usara para fechar a venda de uma casa para seus pais. Na oportunidade, ninguém queria comprar a habitação por boatos que fosse mal-assombrada. Todavia, após desenhar o Kaupaloki, com uma vareta de madeira de faia em um discreto canto do jardim, apareceu um homem interessado que realizou a compra sem questionamentos. Na primeira vez que usara um sinal mágico, ficara receoso, com um pouco de medo, temendo a aproximação de espíritos

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malignos; afinal, aprendera-os por conta própria, sem um iniciador, a partir de um livro velho que pertencera à sua bisavô. Mas o sucesso na utilização o convenceu a repetir a dose várias vezes, aplicando por exemplo o Draumstafur para sonhar com o que desejava, entalhando-o em um pedaço de madeira de abeto e dormindo sobre este. Alguns de seus companheiros, como ele no passado, tinham medo até de ouvi-lo falar a respeito, porém fizera todos rirem, inclusive o rei, ao lhes contar que o sinal Feingur, se desenhado num pedaço de queijo dado a uma garota, faria com que ela ficasse grávida. “Esse nunca testei! Nunca quis ter um filho que fosse um queijinho!”, brincou Garder, adicionando em comentários posteriores, sérios, que os sinais só funcionavam com o acompanhamento da intenção firme de uma “alma de bruxo”: era assim que estava escrito no livro em que aprendera os feitiços, concluindo que mesmo sendo um guerreiro devia ter uma poderosa alma de bruxo! De volta ao presente, foi decidido, não só por Agnar como considerado o mais sensato por todos, parar na ilha que assomava. Estacionaram as naus, e a tempestade não vinha; as nuvens continuavam turvas e os ventos a soprar, mas nenhuma gota d'água caía e os raios deram uma trégua. De qualquer forma, armaram um acampamento; só voltariam a zarpar quando o céu ficasse limpo novamente. Reuniram-se em volta de uma fogueira e, no tédio, os homens pediram ao rei, que sabiam que trouxera alguns livros, que lhes narrasse uma história. A maioria ali não sabendo ler, ou capaz de ler somente textos simples, Agnar lhes concedeu o prazer de ouvir:

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“É preferível uma história que seja bastante divertida. Conhecem o Lokasenna?” “Já ouvi falar.”, respondeu um dos homens. “Sei que é um conto sobre Loki.” “Vou ler para vocês. Tenho certeza que vamos dar boas risadas! Só não podemos deixar que o clima de discórdia de Loki tome conta de nós!”, e riram um pouco, acompanhando seu rei, que em seguida começou a ler em voz alta: “Aegir, que alguns conhecem também como Gymir, havia preparado a melhor cerveja para os deuses. Odin e Frigg vieram para a festa. Thor ainda não comparecera porque estava voltando do leste. Sif, a companheira de Thor, viera junto com Bragi e sua esposa Idun, além de Tyr. Njord e Skadi haviam vindo com Frikko e Freya. Vidar se destacava entre os filhos de Odin. Loki chegou pouco depois de Byggvir e Beyla, os criados de Frikko. Para ajudar a servir a cerveja, Aegir contava com dois auxiliares, Fimafengr e Eldir. Usavam colares e anéis de ouro que pareciam luz condensada e foram elogiados pelos aesires. Só que Loki não suportou todos esses elogios e, corroído pela inveja, matou Fimafengr. Os deuses então sacudiram seus escudos, desembainharam suas espadas e decidiram puni-lo, colocando-o para fora da celebração. Deixaram-no na floresta e voltaram para beber. Só que Loki, teimoso, retornou para as proximidades; e, ao encontrar Eldir, que saíra para tomar um ar do lado de fora, pegou-o de surpresa e ameaçou-o com uma faca para que lhe contasse o que estavam dizendo lá dentro. O servo de Aegir respondeu: “Falam sobre armas, sobre proezas de guerra, e sobre você. Deve imaginar que com poucas palavras gentis.” Essa resposta deixou Loki profundamente insatisfeito, e ele

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disse: “Voltarei ao salão dos aesires para arruinar esse sumbel1. Trarei a eles ódio e mal, e irei mesclar esse veneno ao hidromel.” Eldir tentou contê-lo: “Você já foi expulso uma vez, por um assassinato sem motivo que cometeu. Me fez chorar pela morte de meu amigo. Tenha em mente que, se continuar agindo dessa forma, a sua cabeça será a próxima a rolar.”, e o filho de Laufey redarguiu: “Você não está em posição de fazer ameaças. A sua garganta está muito próxima da minha lâmina! Mas vou deixá-lo viver, pois seu sangue não me interessa. Estou interessado é no veneno dos aesires!”, e a passos largos se dirigiu para o salão, os deuses ficando em silêncio quando o reviram diante deles. Despejou com sua língua ferina: “Eu, Loki, vim com sede para este lugar, de uma viagem longa, e peço em nome das leis da hospitalidade que Aegir me conceda boas doses de cerveja e hidromel. Por que estão tão quietos e contidos, queridos deuses? O que os torna incapazes de falar? Vou escolher um assento para mim!” Bragi não conteve mais sua perplexa indignação: “Você não tem vergonha na cara? Foi expulso por nós pelo crime sem justificativas que cometeu. Como ousa retornar e ainda pedir um assento entre nós? Não possui um mínimo de honra? Não tem um espírito digno de um banquete como este.” Loki porém deu as costas ao poeta, voltando-se para Odin: “Você se lembra, Odin, de quando misturamos nosso sangue no início dos dias? Você disse que não provaria nunca uma cerveja que, quando eu estivesse presente, não fosse trazida para nós dois.” Nisso, Odin pediu a um de seus filhos: “Levante-se, Vidar. Deixe o pai do Lobo se sentar no sumbel, para que ele não fale mal de nós em voz alta em pleno salão de Aegir.”, e Vidar

1 Banquete ritual da tradição nórdico-germânica.

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obedeceu, se levantou, puxou um lugar e encheu a taça de Loki. Antes de beber, o traquino filho de Farbauti falou: “Salve os deuses! Salve as deusas! Todos e todas menos esse Bragi, que se diz o inspirador de toda a poesia e não passa de um falastrão!” Bragi, se sentindo ofendido, replicou: “Ao zombar de mim, só revela a sua ignorância na matéria dos versos. Mas paciência, não vou mais discutir, isso não leva a nada, e o próprio Odin já o readmitiu entre nós. Contudo, vai uma advertência: não zombe dos outros deuses, porque ao contrário de mim eles primam pelo uso não dos instrumentos musicais e da pena, e sim da espada.”, ao que Loki, já perfeitamente assentado, respondeu: “Conheço a sua categoria. E a pena pode ser mais perigosa do que a espada, desde que não seja muito mole, pois precisa ter firmeza para traçar os signos no papel. A sua acho que anda meio mole...Será isso reflexo de algo? Idun por acaso tem alguma queixa?” O bardo divino tentava se manter pelo menos exteriormente calmo, e disse: “Não envolva Idun nisso. Não coloque o belo nome dela na sua língua impura. Ah, para fazê-lo calar lhe daria meu cavalo, minhas riquezas e lhe ofereço meu bracelete! Assim não causará discórdia entre os deuses e nem perturbará as deusas.” Loki insistiu com suas provocações: “Não quero e nem preciso de nada seu. O seu bracelete deve ser muito frágil. Ao mínimo choque com qualquer lâmina, imagino que se parta. De todos os deuses, você é o com pior mira no arco. Espero que me perdoe pela dúvida: mas será que na hora decisiva, é capaz de acertar o alvo em Idun?” Bragi respondeu: “Só estou mantendo alguma cordialidade aqui porque Odin o admitiu de volta e não quero desrespeitar Aegir. Mas quando estivermos lá fora, você receberá uma boa

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lição.” Loki não pareceu assustado: “Bragi, você é só um ornamento de banco! Se está tão ofendido e se considera tão corajoso, vamos para fora agora e lute comigo!”, e nessa hora Idun interveio, falando com o poeta dos aesires: “Eu lhe peço, meu querido, para que pense em nossas crianças, em todos os nossos filhos queridos. Pare de trocar palavras ásperas com Loki no espaço de nosso anfitrião.” O filho de Farbauti muito esperara a oportunidade de atacar a linda deusa das maçãs douradas: “Cale-se, Idun! De todas as esposas, você é a mais temerária e imoral! Banhada, embrulhou em seus braços o assassino de seu próprio irmão! Não se lembra?” Idun replicou: “Não tenho a menor intenção de trocar ofensas com você, Loki. Procurei acalmar Bragi, que está bêbado de tanta cerveja que tomou. Não quero que vocês dois entrem em uma batalha sem sentido.” Freya interveio: “Já basta de dois aesires atacarem um ao outro com palavras ofensivas. Loki é conhecido como um brincalhão que detesta todos, o único que não chorou por Balder. Não devemos levá-lo a sério. È melhor não ouvi-lo, ignorá-lo.” Loki replicou em reação: “Silêncio, Freya! Agora devo dizer quem a iludiu em alegria! O garoto branco2 lhe deu um colar e você se deitou com ele por isso. Pode uma deusa vender seu corpo por tão pouco? Lembro-me daqueles anões também!” Odin procurou acalmar a deusa, que começava a esbravejar, e recriminou Loki: “Você só pode estar fora de si, louco por completo, para provocar a fúria de Freya. Ela é a deusa do amor, e pode torná-lo impotente caso se aborreça de verdade. Além disso, ela conhece as leis do destino, assim como eu.”

2 Heimdall.

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O traquino filho de Laufey não se intimidou nem com a voz de Odin: “Quieto, Odin! Com frequência você não concede a vitória para quem realmente a merece, mas para o mais estúpido e fraco dos homens! Manipula as valquírias de acordo com suas preferências estultas!” O rei dos deuses procurou se defender: “Se às vezes o mais fraco vence na terra pela astúcia, não é por minha vontade. Mas é por minha vontade que trago ao Valhala o forte e honrado que morre. Parece que quer me difamar, então acho adequado relembrar a ocasião em que você estava em Midgard dando leite como uma vaca, depois de gerar bebês. Isso não seria um tanto feminino para um deus como você, por mais que seja habilidoso para mudar de forma?” Loki soltou uma forte gargalhada: “Quem é você para me acusar de ser afeminado? Não foi você que na ilha de Sámsey ficou junto com as volvas, e se tornou como uma delas?” Frigg procurou defender seu marido: “Tudo o que Odin faz é para aumentar seu conhecimento.” Loki retrucou: “No meu caso é vício, no de Odin é virtude! Essa é boa! Fique quieta você também, Frigg, pois por trás de seu véu de perfeita esposa, sei que esconde muitos amantes que seu marido não pode nem remotamente imaginar! E não adianta me olhar desse jeito, Odin! Ninguém lhe pediu para perder um dos olhos.” Frigg respondeu: “Você é incapaz de qualquer bom sentimento. Não consegue pronunciar palavras gentis. Não me surpreende que procure me difamar para o meu marido.”, e Freya emendou: “Você está enlouquecido, Loki. Nem mesmo Frigg, a mais respeitável de nós, você é capaz de respeitar.” O filho de Farbauti retrucou: “Quem é você para falar sobre respeito, prostituta de todos os deuses?” Freya, percebendo que não adiantava se enfurecer, que isso

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divertia Loki e o tornava ainda mais atrevido, procurou retorquir com frieza: “As suas palavras imundas não me atingem. A sua língua é falsa e cheia de veneno. Não merece a minha raiva.” Loki insistiu: “Até com seu irmão você já se deitou! E todos aqui sabem disso!” Njord veio em defesa da filha: “Pior do que uma deusa ter um marido e um amante, é um aesir afeminado que até já gerou bebês.” Loki respondeu rindo: “Njord, você é capaz de defender até um incesto? Ah, me lembro de quando as filhas e os filhos de Hymir tomaram você por penico, e esvaziaram seus vasos em sua boca!” O deus das águas replicou: “Esses gigantes foram abatidos por Thor, já tiveram seu merecido castigo. E não preciso ter vergonha de nada, pois meu filho é um grande orgulho para todos os aesires e vanires, sem exceção.”, e Tyr emendou: “Frikko é o melhor cavaleiro de Asgard. Não entristece as donzelas e nem se envolve com as esposas dos homens. Liberta os oprimidos de suas correntes e inspira justiça nos senhores.” Loki voltou a falar: “Quieto, Tyr! Você não tem como defendê-lo do incesto cometido, e deveria ficar de boca fechada e se envergonhar por ter se tornado um maneta. Não foi capaz de resistir à boca de Fenrir!” Tyr se defendeu: “Posso ter perdido uma mão, mas Fenrir foi acorrentado. E quando chegar o Ragnarok, vou acabar com essa sua horrenda cria.” Loki continuou a ofender o deus: “Tyr, seu tolo! Sua esposa já teve um filho meu, e você não fez nada a respeito. Agora porque estamos todos reunidos, e todos os outros deuses presumidamente do seu lado, quer bancar o valente?” Nisso foi a vez de Frikko intervir e ameaçar o falastrão: “A

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menos que se cale, será a sua vez de ser acorrentado. Quer ter o mesmo destino daquele lobo infame?” O pai de Fenrir impôs seu rosto sobre o do vanir, sorrindo com olhos de fogo: “Você comprou a sua esposa com ouro. Nunca conseguiu conquistá-la pelo que é. E lhe digo: irá perder sua espada e, quando chegar o Ragnarok, não poderá se defender!” Byggvir, o elfo que servia Frikko, entrou em defesa de seu mestre: “Se eu fosse da linhagem dos aesires, se tivesse a força para tanto, esmagaria esse corvo maligno, romperia todos os seus membros, um a um.” Um prato cheio para a zombaria de Loki: “Quem é essa coisinha minúscula, esse vermezinho que rasteja fungando, que não consegui entender? Oh, ele fala! Ah, agora me lembro que já o vi tagarelando nos ouvidos de Frikko.” Seu interlocutor respondeu: “Eu me chamo Byggvir, e tanto os deuses como os homens dizem que sou muito rápido. Sou um filho de Alfheim, mas por minha dignidade fui admitido neste salão. Dignidade que você, mesmo sendo um aesir, parece não ter.” Loki esbravejou de repente: “Quieto, Byggvir! Você é só uma palha entre nós, que posso soprar quando bem entender! Vou torná-lo ainda mais rápido, fazendo com que voe pelos ares, com as perninhas balançando em desespero sobre o abismo!” Heimdall então disse: “Loki está bêbado e fora de si. Um homem nessas condições não deve ser levado a sério. Como ainda caímos em suas provocações?” O filho de Laufey respondeu: “Cale-se, garoto branco! Desde o princípio dos dias, uma vida horrível lhe foi destinada! Com a chuva em suas costas, ficará para sempre acordado, nunca saberá o que é um sonho, nunca poderá sonhar que está entre as tetas de Freya! Ah, perdão! Você já as chupou e apertou

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algumas vezes, é verdade!” Skadi replicou: “Você parece muito feliz hoje, Loki. Mas o seu rabo não abanará tão livre por muito tempo. Logo os deuses o amarrarão sobre as rochas com os intestinos gelados do seu filho.” Loki respondeu: “Isso seria pura ingratidão. Será que não se lembram que fui o principal dos artífices da vitória sobre Tjazi quando este ameaçou Asgard? Ou por acaso você me detesta por isso, filha de jotun?” Skadi disse: “Não o odeio por nada. E, acima disso, não tenho nenhuma vergonha por minhas origens. Não vai conseguir me ofender.” O deus que era como uma faísca instigadora de incêndios continuou a aprontar das suas: “É verdade! Você não pode me odiar! Lembro de quando me convidou a subir em sua cama! Foi uma noite incrivelmente ardente, inesquecível! Não se preocupe, Njord, cuidei muito bem de sua esposa enquanto você esteva ausente.” Sif, antes que o deus das águas se lançasse para tentar apagar Loki, se colocou entre ambos, enchendo uma taça de hidromel para o aesir atrevido: “Tome esta taça, Loki! Beba e aproveite. Veja como o trato bem! Sou a única dos aesires que nunca cometeu uma falta, não é verdade?” Loki, no entanto, não limitou sua língua a saborear a bebida: “Como quer que um bêbado minta? Você não é nada ingênua, como pôde acreditar que me calaria? Sei de todas as suas escapadas! Enquanto Thor sai para caçar certos gigantes, você abre a sua janela para receber outros!” Beyla, a esposa de Byggvir, que tinha como todos os elfos uma excepcional audição, percebeu uma mudança nos ares e comentou: “As montanhas tremem. Parece que Thor está chegando. Ele trará para nós descanso do que calunia os deuses

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e os homens.” Loki replicou: “Eu teria vergonha de ter alguém como você como esposa, Beyla. Está sempre molhada e suja! Fede demais para estar entre os aesires!” Foi quando Thor chegou, batendo com força os portões do salão de Aegir, e falou, impondo-se: “Cale-se, espírito miserável. Você que é o mais imundo de todos. Vou lhe torcer o pescoço e enviá-lo para a aniquilação. Não parará mais de despencar do precipício em que vou jogá-lo.” Loki pareceu não se intimidar: “Como você está ruidoso hoje! Vou querer ver essa valentia quando estiver diante do dragão venenoso. Um dia mesmo você terá que recolher seu orgulho, quando encontrar sua morte!” O deus das tempestades avançou, fazendo o salão tremer: “Continue dizendo essas coisas, e ofendendo a honra de Sif, e meu martelo Mjolnir irá esmagá-lo.” Loki, que na verdade temia apenas Thor entre todos os deuses, respondeu: “Pretendo ter uma vida longa, embora você me ameace com seu martelo. Eu só falei a verdade hoje! Desde quando ser sincero se tornou condenável? Talvez esta seja uma lição que preciso aprender: nem os deuses e nem os homens gostam de ouvir a verdade. Sou o deus da verdade!” Thor estava pronto para usar seu martelo: “Quando vai entender que chegou a hora de se calar?” E Loki enfim reconheceu: “Está certo. É melhor que agora eu vá. Minha cabeça dói só de olhar para o seu martelo. Deuses, fiquem com suas esposas devassas! E deusas, fiquem com seus maridos afeminados!”, e o deus dos trovões por pouco não o atingiu, o pai de Fenrir se transformando a tempo em uma águia e voando para bem longe. Depois disso, para não ser reconhecido tão cedo, se jogou no mar e se transformou num salmão.

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Contudo, mesmo assim os aesires o reconheceriam, o capturariam, e o deus traquino seria amarrado com os intestinos de seu próprio filho. Skadi pegou uma víbora e a colocou na boca de Loki, o veneno pingando para dentro desta. Sigyn, a esposa do deus ardiloso, se sentou próxima, segurando uma vasilha embaixo do veneno até os dias de hoje. Quando a vasilha fica cheia, ela joga o veneno acumulado fora, porém isso dá tempo para um pouco pingar em Loki e ele se debate tão terrivelmente que assim ocorrem os maremotos e terremotos em Midgard.”, encerrada a leitura, que fez muitos homens relaxarem, rirem e refletirem, alguns ainda se sentiam vítimas do tédio, e por isso, enquanto o céu não dava mostras de melhora, persistindo em sua carranca cinzenta, Garder resolveu propor: “Por que não damos uma volta? Talvez sejamos forçados a passar a noite nesta ilha. Enquanto o sono não vem, por que não sair da praia e explorá-la um pouco?” “Não sabemos onde estamos. Pode ser perigoso.”, replicou um dos homens ao olhar para a mata escura que se seguia às areias. “Não disse para você ir. Nenhum de nós é obrigado a nada. Falei no coletivo apenas para os valentes não se sentirem excluídos. Mas, se eu não tiver companhia, vou passear sozinho do mesmo jeito, desde é claro que seja autorizado por nosso rei.” “Não é uma questão de coragem ou covardia. Estou cansado. Muitos de nós estão cansados. Nossa viagem está sendo mais longa agora na volta do que na ida, talvez por termos perdido alguns homens, os que restaram precisando remar em dobro, e também porque nossos braços estão cansados depois da guerra.” “Não precisa apresentar toda a sua lista de queixumes! Ao

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contrário de mim, sua majestade é bem compreensiva! Se não quiser vir, fique e basta.” “Eu vou com o senhor.”, um soldado demonstrou estar curioso e não tão exausto; ou, por mais que o corpo estivesse, a mente e o espírito ansiavam por novas aventuras. “Também vou.”, seguiu-se um segundo, e logo mais outros, para a satisfação do imediato de Agnar, que se limitava a observar, nem severo e nem sorrindo, até decidir falar: “Vocês não só podem ir como irei com vocês. A única coisa que vou propor é que nos dividamos em dois grupos: o primeiro será liderado por mim, o segundo por Garder; um tomará o caminho da direita, o outro o da esquerda. Dessa forma, se um lado tiver algo interessante, às vezes estas ilhas escondem templos antigos com tesouros ocultos, o grupo bem-sucedido irá enviar um mensageiro ao outro. Quem quiser permanecer descansando aqui na praia, não há nenhum problema. Aguardem pacientemente nossa volta e recuperem suas forças para depois serem os primeiros no próximo turno para remar.”, justo, todos consideraram, e os dois grupos seguiram seus caminhos, o de Garder o primeiro a encontrar algo que chamou a atenção: um grandioso palácio de mármore no meio da selva. À primeira vista, parecia abandonado; nenhum sinal de vida humana. Devia ter pertencido a alguma antiga civilização. No entanto, descobriram a rodeá-lo dois leões machos, uma fêmea e dois lobos. O que fazer? Não pretendiam lutar contra os animais, mas talvez não teriam escolha. “Vamos avisar o rei agora?”, indagou um dos soldados; não haviam sido vistos pelas bestas, porque tinham ficado atrás de árvores, rochas e moitas. “Ainda é cedo. Primeiro vamos dar um jeito nessas feras.”, replicou Garder, e pediu para que preparassem suas lanças, machados, arcos e flechas, mas antes de qualquer ataque uma

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mulher despontou no pórtico do templo e falou com uma voz cheia de autoridade, audível a todos os homens ali presentes: “Esperem, aventureiros! Estes animais são inofensivos, foram há muito tempo amansados por minhas poções. Caso contrário, ficariam de tocaia para atacá-los de surpresa, não se mostrando dessa forma. Não machuquem seres inocentes, por mais que tenham a aparência de feras.”, e avançou, demonstrando que estava sendo sincera ao alisar a juba de um dos leões. Era uma mulher muito atraente, de aparência noturna, os cabelos negros lisos e compridos, a pele clara, os olhos violetas, o rosto de traços harmoniosos, trajando um longo vestido preto, portando alguns braceletes e anéis prateados. Sua expressão era serena, e seu colo delgado; seu olhar ia diretamente para onde estavam os forasteiros, mesmo com estes escondidos atrás das pedras e folhagens. “Como ela nos percebeu??”, indagou um dos homens, intrigado. “Você não a ouviu dizer que amansou as feras com poções? É uma feiticeira.”, respondeu outro. “Não acredito que isso seja verdade.” “Não parece ser mentira. Não é qualquer ser humano que pode acarinhar um leão macho adulto como ela está fazendo.” “Ela pode tê-los domesticado.” “É no mínimo estranho uma mulher bonita assim sozinha em uma ilha...” “Qual a diferença no fato dela ser bonita ou não?” “Se fosse feia, teria todos os motivos para se isolar!”, Garder interveio fazendo troça e foi avançando. “Comandante! Vai se mostrar a ela??” “Não adianta ficarmos nos escondendo. Ela já nos viu, de qualquer forma.”, parou por um momento e se voltou para falar com seu subordinado.

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“Não seria mais prudente avisar sua majestade antes de avançarmos?” “Não me parece que devamos ter medo dela. Não acredito que alguém que amansa animais seja capaz de feitiços maléficos.” “Ela pode mantê-los calmos por algum tempo, para soltá-los sobre nós quando estivermos desprevenidos. Feiticeiras são cheias de truques.” “É só não baixarmos a guarda.”, estava mais curioso do que nunca; tendo em mente seu relativo sucesso com pequenos feitiços, aprendidos por meios livrescos, sem alguém que lhe ensinasse, esperara por muitos anos para conhecer alguém que possuísse uma verdadeira sabedoria mágica. “Não é hora de temores infundados. Me parece que foi o destino que me trouxe aqui. As nornas teceram isso para mim! Não é por acaso que me senti impelido a entrar nessa mata desconhecida e selvagem. Vim aqui para conhecer aquela que irá me iniciar nas artes ocultas, finalmente!”, refletiu e avançou, dando as costas a seus homens, que não tiveram escolha a não ser segui-lo; ficou cara a cara com a desconhecida, os leões e lobos continuavam mansos feito cães e gatos domésticos, e esta lhes falou: “Sejam bem-vindos. Há muitos anos que não recebo nenhuma visita. O que os trouxe aqui, viajantes? Parecem guerreiros. Vieram de alguma batalha?” “De longos anos de guerra. Você é uma feiticeira?”, o imediato de Agnar foi direto ao ponto. “Estudo a fundo a natureza das coisas, não só os efeitos. O meu nome de batismo não importa mais. Meu nome iniciático, de segundo nascimento, é Ceridwen. Sou uma maga de terras distantes.” “O que faz aqui? Como veio parar neste lugar?” “É uma longuíssima história. Melhor lhes contar quando estiverem confortáveis e bem servidos. Vamos entrar no

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templo. Garanto que sou uma boa anfitriã.” “Será um prazer.” “O prazer é todo meu. E em você, que comanda este grupo, sinto uma aura diferenciada...” “Em que sentido?” “Tem uma aura, embora ainda indomada, instintiva, de bruxo.” “Você é mesmo uma maga de primeira linha! Mas não posso dizer que sou um bruxo de verdade. Você está certa, é só algo instintivo...Aprendi algumas coisas por conta própria, lendo.” “Cada um começa de uma forma. Venham, meus hóspedes.”, e assim conduziu o grupo de Garder, que ficara um pouco envaidecido pelo reconhecimento como bruxo, por mais que fosse algo ainda rudimentar. Apenas um dos homens permaneceu atrás; remoía desconfianças. Do lado de dentro, o templo não apresentava uma decoração rica, pelo contrário, mas suas paredes, chão e teto reluziam, muito limpos; levou-os a um salão de assentos estofados e ali ofereceu-lhes uma deliciosa cerveja escura. Não demorou para suas vozes ficarem tortuosas, seus reflexos debilitados e, antes que pudesse conversar a respeito de magia com Ceridwen, Garder percebeu que algo estranho acontecia: sua voz começou a se transformar em um grunhido e, ao se ver no único espelho do ambiente, enxergou no lugar de seu rosto, enquanto resistia para seu corpo não despencar, a face de um porco. “Mas o que você colocou nessa cerveja? Só pode ser uma brincadeira de mau gosto! Está nos fazendo alucinar...”, e mesmo com o som de suíno, Ceridwen, que agora sorria com certo cinismo, podia compreendê-lo; por isso respondeu: “Não é uma alucinação, querido. Vocês estão realmente se transformando em porcos.”, a metamorfose foi rápida: em pouco tempo ficaram de quatro e as mãos e pés se

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transformaram em patas. Armaduras e roupas se partiram e se rasgaram. A maga os conduziu e os fechou em seu chiqueiro, onde passaram a fungar e a comer os vegetais jogados ali. O que nem ela percebeu foi a discrição do único homem do grupo que permanecera cético, ficara do lado de fora e, após se dar conta que seus companheiros não voltavam mais, e não só, que haviam desaparecido, não escutando o mínimo sinal de suas vozes ao entrar no templo a passos de felino, correu para avisar Agnar. Ao se encontrar com o grupo do rei, narrou o que sabia, concluindo que a feiticeira fizera Garder e os outros de fato desaparecerem. “Isso não é nada bom.”, respondeu Agnar. “Vamos para lá agora, só não podemos nos deixar seduzir por ela, de forma nenhuma.” “È melhor não irmos, majestade. Vamos fugir.”, objetou o soldado. “O que você está dizendo? E deixar Garder e os outros para trás??” “Sei que preza muito todos os seus homens. Mas Garder também disse algo parecido, que bastaria não baixar a guarda, e pelo visto a baixou. Feiticeiras, ou magas, não importa como se definem, são muito perigosas! Por mais que nos esforcemos para não sermos cativados, acabamos seduzidos!” “Você não foi seduzido.” “Um em muitos escapa dos encantos mortais que elas possuem. Mas eu sou só um soldado, assim como os demais. Vossa Majestade, diferentemente, comanda um povo inteiro! Não podemos correr o risco de perdê-lo.” “Acho que está subestimando a força de meu espírito.” “Talvez eu mesmo não resista nesta segunda vez, majestade. E não estou sugerindo que o senhor seja fraco, é que é natural

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que elas se concentrem mais nos reis, nos líderes, nos homens notáveis, como ela fez com Garder, e nisso terminem por arrastá-los.” “Acho que sei por que Garder caiu. Sabemos que ele já se envolveu um pouco com magia. Deve ter se sentido fascinado, discernido a oportunidade de conhecer alguém que o ajudasse a se aprofundar nas artes mágicas. Já eu não tenho esse ponto fraco.” “Ela o tentará em outros.” “Saberei me livrar das tentações. E anuncio que me veio em mente uma mudança de planos: desta vez irei sozinho.”, as reações dos homens foram de espanto e indignação; opuseram-se de forma veemente à partida solitária de Agnar a princípio, mas como ele era o rei, não um mero comandante, tiveram que acatar a ordem, e o soberano de Gamla foi só ao templo misterioso. No caminho, um estranho temor gelou seu estômago; sentia-se como se estivesse se dirigindo para a morte, e refletia sobre como poderia enfrentar a perigosa maga e resistir a seus encantos. Procurou pensar em Berta e nos filhos que pretendia ter; imaginou um bebê no colo de sua esposa e outra criança no seu. Precisava voltar a seu lar. Chegando ao local, logo na entrada lá estava ela, a bruxa, tal como fora descrita, uma mulher de consideráveis atrativos, em um traje negro. “Será que estava me esperando?”, questionou em seu pensamento; aparentemente, Ceridwen só respirava e meditava, com as sobrancelhas cerradas. “Deve estar fingindo que não me viu e nem me sentiu. Não vou me esconder, já que não adianta...”, foi, os leões e lobos o ignoravam, e quando ao que parecia ela percebeu sua aproximação, abriu bem seus olhos penetrantes como jovens serpentes: “Que homem admirável! Parece não ter medo dos meus animais...Em muito tempo, é a primeira vez que isso acontece.”

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“Vou ser sincero, já que quero que você também seja comigo: só não tive medo dos seus animais porque um dos meus homens, que esteve aqui e voltou a mim, me avisou a respeito deles. Não tente me enganar, feiticeira. Onde estão meus outros companheiros?”, reunindo toda a sua coragem para encarar a bruxa, se aproximou e se impôs com o peito e os olhos firmes. “Não devo ter medo...Ela só deve saber manipular poções, e nada mais. Eles devem ter bebido algo e ficado alterados como estes animais. Só espero que não os tenha envenenado! Se possuísse a capacidade de me matar com uma magia destrutiva, evocando elementos perigosos, já poderia ter feito isso. Ou será que sente prazer em armar estratégias de aranha, preferindo tecer teias intricadas a usar seus poderes? Mulheres simples já podem ser perigosas, imagine-se uma maga...”, o rei de Gamla refletiu, enquanto Ceridwen não desviou seu olhar em nenhum momento, respondendo com serenidade: “Senhor, não sou uma reles feiticeira, mas vou tentar relevar o modo como está me tratando porque deve ter ocorrido um terrível mal-entendido. Por acaso está se referindo aos viajantes que estão descansando no interior do templo?”, e Agnar pensou: “Será que estou sendo precipitado? Talvez esteja cometendo um enorme equívoco, me deixando levar por um subordinado desconfiado e medroso. Ou ela pode estar tentando me seduzir...Nenhuma possibilidade deve ser descartada. Tudo deve ser medido.”, e disse: “Se estão mesmo apenas descansando, quero que me mostre eles.” “Claro, senhor. Apenas me siga.”, e foram para dentro do templo. Lá, quando chegaram a um confortável aposento com uma poltrona macia e uma bela mesa de prata, o discurso mudou um pouco: “Por que não se senta e aguarda enquanto os chamo? Posso também lhe servir uma taça da minha cerveja.” “Você disse que iria me levar até eles, que iria me mostrar que

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estão dormindo.” “Por que a pressa? Estou oferecendo minha hospitalidade ao senhor, do mesmo modo que a ofereci aos seus amigos. O senhor parece ser um grande guerreiro. Por acaso é o comandante deles?” “Vou lhe revelar tudo o que quiser sobre mim se me provar que estão todos sãos e salvos.”, só então notou que um dos lobos o seguira; estava ao seu lado, e chegou a esfregar a cabeça em sua perna. “Parece que Fulnir gostou de você.”, e Agnar não resistiu à amizade do animal, apesar do cheiro forte e um pouco desagradável, acariciando-o; refletiu na sequencia: “Acho que os deuses estão do meu lado. Já sei o que fazer.”, e falou: “Muito bem. Por este lobo, que está sendo um ótimo anfitrião, vou esperar aqui. Pode me trazer um pouco de cerveja. Mas quero que pelo menos um dos meus companheiros venha logo.” “O senhor tomou a melhor decisão. Sente-se e acalme-se. Logo verá que não aconteceu nada de ruim com seus amigos. Se eu fosse uma feiticeira maligna, um deles não teria voltado até o senhor...” “Ele voltou porque não entrou no templo com você. Ficou esperando do lado de fora, e nada dos demais retornarem.” “Vocês são todos muito apressados. Por que teriam que sair logo deste templo? Eles só beberam um pouco a mais, e por isso caíram no sono.” “Poderiam dormir em nosso acampamento.” “E se arriscarem cansados e aéreos em uma floresta desconhecida?” “Está bem, mulher. Você não me convence por completo, mas vou procurar ter alguma paciência.”, e se sentou enfim, afundando na poltrona; Fulnir continuou ao lado. Nisso, o lobo

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recebeu da maga um olhar que Agnar observou e que lhe pareceu ambíguo, dúbio, um pouco apreensivo. De todo modo ela se retirou, pouco depois retornando com a cerveja, que apoiou na mesa. “Tome e tente se acalmar. Um dos seus amigos já está vindo.” “Por que não veio ainda?” “Está se recompondo com calma.” “Está bem.”, e pegou a taça; Ceridwen sorriu, mas para a sua surpresa o rei de Gamla deu a cerveja de beber a Fulnir. “O que o senhor está fazendo? Dando uma cerveja de tão boa qualidade a um animal?” “Estou fazendo um teste. Parece que isso está incomodando você...”, fitou-a com densidade; pela primeira vez a maga engoliu a seco. “Espero que me desculpe por isso, Fulnir.”, e depois de tomar tudo, o lobo de repente começou a emitir alguns ruídos que não eram típicos de sua espécie; não demoraria para passar a se contorcer, seus uivos, latidos e ganidos foram se tornando grunhidos suínos, seus pêlos caíram, e acabou virando um porco. “Será que a senhora pode me dizer o que significa isso?” “Esperei muito tempo por isso...”, Ceridwen disse para si mesma, em voz muito baixa; seus olhos ficaram arregalados e vidrados. “Não tente me ludibriar!”, Agnar se lançou sobre ela, enquanto o pobre Fulnir, metamorfoseado em suíno, escapava; ao desembainhar sua espada, colocou a lâmina na garganta da bruxa. “Afinal o que foi que você fez com os meus companheiros?? Imagino que também os tenha transformado em porcos, ou em algum outro tipo de besta!” “Fique calmo, senhor...Fique calmo...” “Como pode me pedir para ficar calmo?!” “Posso fazer os seus amigos voltarem ao normal, não se

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preocupe.”, e os olhos da maga que primeiro foram se normalizando. “Assim como o senhor fez um teste com Fulnir, eu também estava em um teste.” “Não vou confiar mais em você. Seja rápida! Quero os meus companheiros de volta!”, contudo, por alguma razão, suas mãos tremiam; não queria matá-la, e não só porque provavelmente apenas ela tinha o antídoto contra sua bizarra poção. “Quando fui iniciada, a deusa Freya me mandou para cá. E me disse que minha iniciação só estaria terminada quando aparecesse um homem, ela disse que seria um rei, capaz de resistir a qualquer ardil ou jogo de sedução que eu fizesse, e que daria a minha poção misturada à cerveja a um dos meus lobos, que seria misteriosamente cativado com a sua presença. Como pode ver, tudo se confirmou.” “Então a sua iniciação deve terminar com a sua morte?” “Ela me disse que você tentaria me matar, mas não conseguiria. Porque temos um destino juntos!” “Não me venha com mais mentiras. Como posso acreditar em você???”, algo nele queria acreditar, mas sua razão o bloqueava. “O senhor não é um rei?” “Sendo uma maga, você deve ser capaz de ler pensamentos. Mesmo que tenha acertado nisso, de fato sou um rei, isso ainda não prova nada quanto ao seu caráter.” “Me dê uma chance, por favor! Deixe-me viver, e vou libertar os seus amigos! Vou arrancá-los da condição bestial a que ficaram reduzidos!” “Você vai me atacar de alguma forma se eu liberá-la.” “Há muito tempo, devido a crimes cometidos pela civilização que vivia aqui, que acabou destruindo a si mesma, este templo sendo das poucas coisas que restaram dela, Freya selou todo

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tipo de magia ofensiva nesta ilha. Não posso, portanto, evocar chamas ou algo parecido, se é o que está temendo. Afora o dom das línguas que Freya me deu, só posso trabalhar com a arte das poções, e me aprimorar nela. É para isso que estou aqui. O meu teste consistia em sobreviver neste lugar fazendo uso apenas de poções. A sua aparição seria o sinal de que adquiri a excelência na feitura delas.” “Mas se é assim, por que teve de fazer mal aos meus companheiros? Não acredito que em algum momento eles tenham ameaçado a sua sobrevivência!” “Isso ainda não ficou claro? Lógico que, para que reconhecesse o homem que Freya havia anunciado, eu teria que testar todos.” “Testes, testes, testes! Mas por que os deuses têm de agir dessa maneira??” “Para nos ajudar a amadurecer. Midgard é como um jardim para eles, e nós seus frutos. Mas não se preocupe mais! Agora não há mais razão para que os homens que ingeriram minhas poções metamórficas continuem nas condições em que se encontram. Vou curar todos!”, e então enfim ele decidiu poupar-lhe a vida. “Obrigada...”, ia perguntar seu nome, mas sua língua travou, limitando-a ao olhar fixo. “Agnar. Sou Agnar VI de Gamla.”, soube deduzir o que ela queria saber. “Realmente Freya pode ser uma deusa tranquina e perigosa...” “Por que está dizendo isso?”, indagou enquanto voltava a embainhar sua espada. “Pelo fato de ser tanto a deusa do amor como a da magia...” “É melhor que pare de me olhar dessa forma. Depois que fizer os meus companheiros voltarem ao normal, vamos embora desta ilha. Tenho um lar que me espera. Uma esposa e...” “Filhos?”

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“Não...Não cheguei a ter filhos! Mas isso não interessa a você.” “Perdoe-me, majestade. É dessa forma que devo tratá-lo, não é?” “Você não é minha súdita, pode me chamar como quiser, desde que não me falte com o mínimo de respeito. E o pior desrespeito que pode cometer comigo é manter meus homens da forma como estão. Todos eles são guerreiros de grande valor!” “O meu nome é Ceridwen. Vim de Irland, um reino a oeste que também é uma ilha...”, e logo chegou o momento: a maga acatou a situação, levou o rei de Gamla ao chiqueiro e lá abriu a portinhola e ficou entre os “animais”. Trouxera consigo um vidro com um líquido vermelho, que misturou à água. Ao ver seus companheiros naquela condição, Agnar teve dificuldades para reter o choro. Ceridwen sentiu isso e o olhou, mas ele desviou o rosto. Ao beberem, todos voltaram a ser humanos, ainda que atordoados; e então foi o rei que entrou no chiqueiro e abraçou um por um, conquanto o abraço mais caloroso e demorado tenha obviamente sido dado em Garder, a princípio tonto demais para qualquer coisa. No entanto, assim que recuperou a voz e as forças, bradou contra a maga com o apoio dos outros: “Essa bruxa maldita, que distorce as artes mágicas, que usa seu saber para o mal, merece ser passada a fio de espada por todos nós!”, e Ceridwen ficara cabisbaixa; estavam todos nus, mas já podiam recuperar suas armas e usá-las. “Garder, falando dessa forma, com essa expressão no seu rosto, você volta a me parecer um bicho ou algo pior. Tente raciocinar: por mais que ela tenha causado todo esse mal, sem ela vocês não voltariam ao normal.”, Agnar conteve seu imediato, e olhou para a maga, que nessa hora não o encarou.

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“O que aconteceu afinal? O que você fez para convencê-la a nos libertar?”, e, uma vez explicada toda a situação, Garder fez seu comentário: “Uma prova iniciática portanto. Mas que coisa é essa?...”, coçou o queixo e a testa. “Como pode perceber, amigo, a magia não é um caminho fácil. Se está disposto a aprender, terá que passar por muitas provas.”, Ceridwen tornou a levantar a cabeça. “Mas há muitos outros homens aqui nas mesmas condições em que nos encontrávamos?” “Logo libertarei todos. Alguns transformei em cabras, outros em bois ou cavalos...E também não vou deixar Fulnir como porco.” “Claro, não seria nada justo com ele. Eu me sentiria bastante culpado.”, disse Agnar. “A responsabilidade sempre seria minha. E gostaria de lhes pedir um favor, se não fosse demais...” “Iniciação...Eu não engulo muito essas coisas! Essa bruxa aprontou com a gente e agora se passa por boazinha? Ainda pede favor?? Isso não está passando dos limites, majestade?”, indagou um dos soldados. “Vamos ouvir o que ela tem a pedir.”, o rei de Gamla foi simples e direto; e o silêncio ressoou até Ceridwen tornar a se manifestar: “A verdade é que gostaria que levassem com vocês os homens que vou libertar. Mesmo que não sejam de Gamla, ao menos não estarão em um lugar tão isolado quanto este, e poderão encontrar novos rumos ou retomar caminhos que ficaram para trás.” “Não vejo o menor problema nisso. É bastante razoável.” “Mas será que vocês poderiam levar mais alguém além deles? Acho que isso ainda entraria no mesmo pedido...” “Não precisa fazer tantos rodeios. Já entendi que quer que a levemos embora daqui.”

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“Vossa majestade me faria esse favor?” “Por que não pede isso a Freya?”, inquiriu um dos homens que havia sido transformado em porco, visivelmente aborrecido; como a maioria ali, não queria a companhia daquela feiticeira em seu barco. “Entendo como se sentem. Se não quiser me levar em sua frota, compreenderei perfeitamente, majestade.” “Se sou rei, é porque devo tomar as decisões.”, Agnar foi encarando todos os presentes; todos os ensaios de protesto foram assim abafados. “E esta noite, quero descansar....Em meu acampamento.”, deixou claro, antes que ela fizesse algum convite. “Amanhã pela manhã, voltaremos aqui. E então você e os outros homens virão conosco. Se o tempo estiver bom, partiremos de imediato.” “Não tenho palavras para expressar a minha gratidão.” “Se está sendo sincera, fique então em silêncio. É melhor.”, e ela o obedeceu; nunca se negaria a obedecer um rei como aquele, um rei verdadeiro, não um mero boneco coroado. Curvou-se em respeito, e os homens de Gamla a deixaram. Quando a noite desceu em profundidade, teve alguns sonhos. No mais nítido e intenso entre estes, entrou na tenda de Agnar, nenhum guarda conseguindo vê-la, e fizeram amor de forma ardente, sem troca de palavras, apenas de toques e fluidos, a paixão a movimentar suas sombras; o rei de Gamla vivenciou o mesmo sonho...Incrivelmente real. Obra de magia? Não teve tempo porém de se culpar, ou de refletir como resistiria pelo resto da viagem, ou de se questionar se acabaria por não levá-la para não ser tentado, ou de pensar se ela não era realmente uma feiticeira maligna que o ludibriara. Algo na ilha começou a se mexer. Algo enorme. Algo da ilha? Ou talvez a própria ilha? O mar se agitou; os céus voltaram a emitir relâmpagos, vistos

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pelos vigias do acampamento de Gamla, e uma chuva forte principiou a cair. Chegara enfim a tempestade por tanto tempo anunciada? O que os que estavam na superfície não puderam ver foi a agitação dos cem tentáculos imensos que existiam debaixo da ilha. De cada uma das ventosas destes, escaparam dezenas de peixes. Um olho de pupila negra e branca, as veias vermelhas gritantes, se abriu sob as águas, na imensa cabeça que se ergueu. Após milhares, talvez milhões de anos em hibernação, aquele kraken despertava. Ele era a “ilha”, onde para os que estavam sobre “ela” a impressão foi que ocorria o pior dos terremotos. O templo de Ceridwen desabou, e foi o fim para o rei de Gamla e sua frota, despedaçada pelos tentáculos furiosos do monstro, faminto depois de acordar de seus milênios de sono. Escancarou sua enorme boca, que não possuía dentes, mas um tremendo poder de sucção, puxando para dentro de si tudo o que estava por perto no mar ou que caía neste, entre partes de navios, peixes, cetáceos, lobos, humanos e as plantas que haviam crescido sobre seu crânio e que agora se desenraizavam e despencavam. Teria continuado a promover desastres por muito tempo se de um dos raios, a princípio como uma donzela de pura eletricidade, aos poucos assumindo formas mais carnais, não tivesse se materializado aquela que fora encarregada de lhe dar um fim: eis Thrud, filha de Thor e Sif e também uma das valquírias de Odin, os cabelos vermelhos curtos, olhos que não tinham pupilas, apenas emanando luz, sua armadura negra com representações de relâmpagos lembrando um céu noturno em tempestade; sua espada, que surgiu em sua mão direita, também era feita de raios, indomável para qualquer outra deusa de Asgard (e mesmo para a maioria dos deuses). A luta foi feroz: o monstro marinho, que possuía uma elevada inteligência apesar de não parecer, elevou as ondas do oceano

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com sua vontade e lançou-as contra a valquíria, que voava sobre o mar, às suas costas surgindo asas de luz; aparentemente, Thrud foi tragada pela violência, engolida, após ser derrubada pelas ondas, pelos rodamoinhos que surgiram ao redor do kraken, provocados pelo agitar de seus tentáculos. No entanto, ela cedo reemergiu, disparando na vertical sem aparentar nenhum dano, e sua espada em nenhum momento se apagara; esta cresceu e se espalhou em centenas de relâmpagos, que atravessaram todo o colossal corpo da criatura e destruíram seu sistema nervoso. Thrud era muito alta para os padrões humanos, com mais de dois metros, mas um pequeno ponto luminoso se comparada às dimensões de seu oponente; todavia, o que haveria de prevalecer seria seu poder espiritual, não o tamanho físico, e o monstro terminou afundando sem vida nas profundezas, algo do que engolira sendo expelido e liberado para boiar na superfície. As almas de Agnar, Ceridwen, Garder e de alguns dos guerreiros de Gamla foram levadas pela valquíria, despertando no que parecia ser uma praia. “O que aconteceu?? Que lugar é esse??” “De repente tudo tremeu, e parece que o céu se fechou sobre nós.” “Como foi isso?? Eu apaguei!”, eram alguns dos comentários dos homens que iam acordando aos poucos, Garder atordoado e pasmo, evidenciando isso, Agnar na mesma condição, mas procurando disfarçar, mantendo a calma exterior porque devia ser sempre um exemplo de equilíbrio para os seus companheiros, seu olhar manifestando alguma surpresa ao ver a maga iniciada por Freya ali, de costas para ele, já se preparando para acusá-la de ter causado aquele tumulto, que só podia ser obra de bruxaria, afinal todas as tendas do acampamento haviam desaparecido, quando viu uma mulher

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enorme de armadura relampejante se aproximando... “Eu sou Thrud.”, a voz dela, que fazia lembrar o cair de alguns trovões, provocou o silêncio geral. Ceridwen se ajoelhou diante dela, pois pelo nome já sabia de quem se tratava, embora ainda não tivesse ideia do que acontecera, muito menos de estar morta. “Alguns de vocês ao que parece não se lembram do meu nome, que está nas Eddas, mas vou procurar simplificar as coisas: sou a filha de Thor e Sif. Sou uma valquíria. E vocês foram escolhidos como einherjar.”, por estas palavras houve um certo tumulto, os homens começaram a falar entre si, Garder encarou Agnar com perplexidade, e um soldado chegou a esbravejar: “Isso é uma farsa! Como podemos estar mortos?? A menos que seja uma obra dessa bruxa!”, e apontou para Ceridwen. Veio a resposta de Thrud: “Ela não tem nada a ver com isso. Vocês estavam numa ilha que na verdade era um kraken adormecido há muitos milênios. Nem mesmo Freya, que iniciou esta mulher, havia prestado atenção nesse detalhe. O monstro despertou e vocês morreram neste processo.”, o cético ainda não estava convencido e resolveu testar Thrud, desembainhando sua espada e atacando a valquíria. Um erro fatal duvidar de uma deusa daquele porte, que nem precisou de sua arma para punir o espírito rebelde: raios saíram de seus olhos e o fizeram desaparecer. “Klurr!”, gritou um dos amigos do que acabara de sumir. “Este tolo temerário manifestou muita coragem, mas também foi extremamente desrespeitoso. Por sua valentia, não o mandei para Nifelheim. Mas passará algum tempo fora do Valhala, vivenciando tormentos imaginários, para aprender a respeitar os deuses.”, e após tais palavras e a demonstração de poder da valquíria, todos se convenceram da verdade. Ceridwen se levantou, olhou em volta, evitando apenas olhar para Agnar, e comentou: “Ainda não estamos em Asgard, ou estamos?”

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A filha de Thor e Sif respondeu: “Esta é uma espécie de antessala, para conversarmos um pouco e lhes mostrar algumas coisas. Você foi abençoada por Freya e irá para o Folkvangr. Os demais serão encaminhados para o Valhala. Os esclarecimentos dizem respeito à dor que ainda sentem por deixarem em Midgard suas famílias, pela sensação de terem deixado algo inacabado. Posso sentir uma certa frustração vinda de vocês, mesmo salientando que devem se orgulhar e se sentir imensamente felizes pela oportunidade de terem sido escolhidos por Odin.” “Valquíria, estou preocupado com o destino do meu reino. O que será de Gamla agora que estou morto?', Agnar avançou; Ceridwen ainda não dirigia seu olhar para ele. Garder cruzou os braços e procurou prestar atenção. “Gamla seguirá seu próprio rumo, conquanto sob uma nova dinastia.”, ao ouvir isso, Agnar não escondeu a frustração e ficou cabisbaixo. “Vou lhe fazer algumas revelações.” “Que tipo de revelações?” “Mais do que apenas me ouvirem, é melhor que vejam!”,Thrud se transformou em pura claridade; e nessa luz os homens de Gamla puderam enxergar perfeitamente o que a valquíria disse: “Nos anos que vocês passaram em Trekk, muitas coisas mudaram em Gamla. Algumas de suas esposas adoeceram e faleceram, outras simplesmente não os esperaram, fugindo com outros homens ou colocando-os em seus próprios lares...”, cada um acompanhava as cenas que diziam respeito a si mesmo, um calafrio percorrendo Agnar, que teve seu maior temor confirmado ao ver Berta beijando e se deitando na cama com outro homem, que mesmo com Thrud sem dizer nada a respeito ele compreendeu que se tornaria o próximo rei de Gamla. Apesar da dor que sentiria pela morte do marido ao chegarem

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as notícias do naufrágio da frota, encontrados em uma busca alguns pedaços do navio do rei, seria para a rainha o sofrimento da perda de um amigo, tendo em vista que se apaixonara por este outro nobre, um conde que a assediara por dois anos desde a partida do soberano até conseguir o que queria; e viria um cruel alívio pelo fato de não precisar tê-lo como amante, e sim como novo marido. Agnar, que viu tudo, os tempos se cruzando, não se segurou mais e chorou, cerrando os punhos, sentindo-se traído, a raiva e uma profunda tristeza a corroê-lo. Quase caiu sozinho, encontrando apoio em Ceridwen, que o surpreendeu ao se aproximar e acariciá-lo pelas costas com ternura; ele então se virou e se olharam intensamente; ela enxugou suas lágrimas e se abraçaram. Cada um dos dedos da maga era como o tentáculo de um polvo, envolvendo devagar o coração do rei; e como os tentáculos de um kraken que afundava os fantasmas das famílias dos demais guerreiros, os que haviam tido esposas honradas ficaram cientes de que as reencontrariam algum dia no jardim de Urd, o mesmo ocorrendo com seus bons filhos e demais bons parentes (talvez alguns e algumas chegassem ao Valhala e ao Folkvangr), tragados pelo Abismo os espectros indignos, abrindo-se por fim a perspectiva de um novo lar. A missão de Thrud fora cumprida. Contudo, depois de levar os einherjar, a valquíria voltou para Midgard, pois ouvira o chamado de um mago. Na verdade, do mesmo mago de sempre...De Alviss, anão versado nos segredos dos elementos e das runas, que a evocava sempre pelo mesmo motivo fútil: “Como me deleita admirar sua beleza! Todas as minhas angústias desaparecem! Todos os meus medos se dissipam! Todos os meus problemas se tornam pequenos na perspectiva de sua grandeza!”, Alviss era um gnomo de longos bigodes, barba bipartida, cabelos alvoroçados, todo branco, naquele

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momento em seu círculo mágico, o quarto ao redor bastante bagunçado, com livros espalhados por todos os cantos, tanto que a valquíria até teve dificuldades para conseguir espaço e se manifestar ali; estava com um cajado em mãos, alguns braceletes nos braços, um cinto de ouro ricamente ornamentado que ele próprio forjara, e vestia uma túnica vermelha. “Outra vez me chamando sem a menor razão? Não vou atender mais os seus chamados. Dessa forma, quando precisar de mim por alguma razão séria, não virei e estará perdido.”, a valquíria tentou lhe dar uma bronca. “Não, não, sei que você sempre virá! Nunca irá me abandonar!”, apaixonara-se perdidamente desde que participara com outros magos de uma evocação a Thor, ocasião em que ela aparecera junto com seu pai, iluminando a escuridão da floresta; e, apesar da aparente severidade e das recriminações, percebia-se que Thrud tinha alguma afeição por ele, embora longe de ser uma paixão como a do gnomo...Alviss a divertia um pouco, aliviando-a mesmo que por curtos instantes de seus deveres. Se ele não fosse agradável para ela, simplesmente a filha de Thor e Sif não apareceria ou poderia até puni-lo severamente por sua ousadia. Apesar do jeito sério e duro, Thrud era sem dúvida uma das valquírias de maior coração. “Deixe-me ver de perto os seus olhos então, para que não continue dizendo que a chamei à toa.” “Se você visse os meus olhos em todo o fulgor que eles possuem, ficaria no mínimo cego.”, estava no momento com os olhos apagados, quase como os de um humano. “Isso seria horrível, pois não poderia mais vê-la.” “Vou deixá-lo por hoje. E lhe dar mais um voto de tolerância e confiança, apesar de sua ousadia.” “Sei que é uma deusa que aprecia sempre os corajosos, mesmo que às vezes sejam um pouco temerários. Ando

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estudando a respeito, e também tenho aprendido a ler os corações das pessoas. Embora você não seja exatamente uma pessoa...” “Continue se empenhando e praticando.”, Thrud desapareceu, dissipando-se na luz astral, e Alviss não viu seu sorriso de partida, mas conseguiu senti-lo.

Svafrlami

Svafrlami era um rei jovem e ambicioso, cujo olhar se carac-terizava por uma ânsia pelas conquistas futuras. Não gostava de perder tempo, austero em seus hábitos, preferindo leituras que lhe acrescentassem algo de relevante e engrandecedor a festas, diferentemente de como fora seu pai e da maioria dos nobres de sua corte. Devoto de Odin, já chegara a imitar o gesto de sa-crifício que se dizia que o grande deus fizera para obter a sabe-doria das runas, pendurando-se de cabeça para baixo no mais imponente carvalho de seu jardim; e permanecera nessa condi-ção por dois dias e duas noites, em meditação, contemplando a natureza interna e a externa, monitorado pela velhíssima volva que fora tutora tanto dele quanto de seu pai: Eikintjasna era in-crivelmente idosa, devia passar dos cento e vinte anos, mas ain-da andava relativamente bem com o auxílio de seu bastão, pos-suía plena lucidez em seu raciocínio e uma memória prodigio-sa, com frequência tecendo comparações com seu progenitor, o falecido rei Drottr, que se por um lado o deixavam lisonjeado por outro o irritavam, afinal não gostava de ouvir falar mal de seu pai: “Drottr era um porco preguiçoso! Só queria saber de comida e cerveja! Claro que tinha algumas virtudes, mas não se comparava a você, que é um aluno muito superior, tanto na ca-pacidade de concentração como no interesse em se instruir.

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Longe de ser perfeito, mas tem mais qualidades de rei do que ele tinha!”, raras vezes expunha sua insatisfação, já que era in-útil discutir com a bruxa, que no final sempre estava com a ra-zão; lembrava-se como se fosse ontem dela observando-o, sem pregar os olhos, por quase todo o tempo enquanto ficara pendu-rado na árvore por uma corda grossa. Aquela bruxa dormia? Ele se recordava de ter adormecido algumas vezes, em todas que reabria os olhos vendo-a embaixo de si ainda desperta, olhando para cima, sentada em uma pedra, em seus trajes mar-rons esfarrapados, o olhar alerta o centro espiritual de um rosto onde cada sulco, cada ruga, parecia conter em si dezenas de ru-nas. Seus cabelos ainda mostravam alguns incríveis fios escu-ros e, apesar de ultrapassar sua cintura por pouco, a impressão que o rei de Gandarki tinha era que era ela que o olhava cons-tantemente de cima para baixo, por vezes na própria iniciação do carvalho sentindo a sua situação se inverter, com a sensação que ela pairava no ar sobre tudo, o que não era de todo falso em termos de projeção da consciência, ao passo que ele sentia com pavor seu próprio despencar no chão. Não se tornara um mago, mas possuía grande fé nos deuses e vivenciara situações espiritualmente interessantes em especial naquela ocasião, em vários momentos em que caíra no sono não sendo despertado porque a volva sabia não se tratar de um mero cochilo: voara em seu corpo de sonho sobre a floresta, enxergando nas copas das árvores múltiplos brilhos multicolo-ridos, borboletas de luz e cristais e pequenos pássaros místicos espalhando ao bater de suas asas rastros de uma realidade mais sublime; no chão, vira a alegria dos duendes, os pequeninos, al-guns que lhe chamaram a atenção com cabeças de folhas e pés musguentos bem maiores do que o restante marrom e terroso de seus corpos, difundindo corpúsculos que pareciam um pó de esmeraldas, enquanto riam e brincavam. Ao voltar ao corpo, se

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lembrara de diversos detalhes da experiência, mas se lamentara por esquecer outros, como a música sutil que pairava na nature-za. Com relação ao seu contemplar interno, num determinado momento fora parar numa escuridão sem fim onde tivera a im-pressão de ficar por horas e horas, até que primeiro como uma faísca e aos poucos crescendo se manifestara uma luminosida-de terrivelmente gloriosa, que Eikintjasna explicou depois que devia ser sua centelha de vida eterna, concedida por Odin a to-dos os seres vivos, aliás a Essência, o ponto de partida de cada criatura, que devia passar por sucessivos renascimentos, do mi-neral ao vegetal, do vegetal ao animal, e do animal ao humano, para então seguir por três caminhos: Nifelheim para as almas medíocres e degeneradas; o esplêndido mas temporário jardim de Urd, e reencarnações posteriores em Midgard, para as boas almas; e Asgard para as melhores, aos grandes guerreiros reser-vado o Valhala. Ao menos era isso o que sua experiência indi-vidual e seus estudos já haviam lhe revelado sobre os planos espirituais. Eikintjasna ainda estava viva quando Svafrlami partiu para conquistar Lofar, país de anões, governado pelo rei Dvalin. E antes de seu pupilo e filho espiritual ir, advertira-o para tomar cuidado com suas ambições, que as armas dos anões, por mais belas e eficientes que fossem, podiam ter dois gumes. De todo modo o rei de Gandarki partiu, pois estava muito interessado justamente nas armas produzidas em Lofar, de propriedades lendárias; queria que todos os gnomos de lá trabalhassem para ele, e inclusive já fizera propostas para isso, oferecendo-lhes muito ouro e muita prata. Gandarki era um reino consideravel-mente rico, onde mesmo a população mais humilde tinha casas fortes e resistentes e com boas lareiras e poltronas para os me-ses de inverno rígido, que constituíam o período mais longo do ano e durante os quais não faltavam nevascas. Contudo, Dvalin

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e seus súditos eram extremamente orgulhosos e mandaram uma carta de resposta que dizia que já tinham ouro, prata e diaman-tes em suas minas (em maior número do que as de Gandarki, onde também não eram poucas, daí uma das razões da riqueza deste país, que também incluíam ações sensatas e bom planeja-mento ao longo de diferentes sucessões de reis) suficientes para construir cem palácios das dimensões do de Svafrlami, que por sinal apresentava paredes banhadas a ouro. Isso evidentemente se tratava de um exagero, mas servia para ressaltar que não vendiam (“prostituíam” a palavra usada na carta) os magníficos frutos de sua forja; eram além de tudo exímios guerreiros, e não queriam correr riscos: um outro reino não deveria possuir armas da mesma qualidade que as suas. Svafrlami, não satisfeito, resolveu, diante recusa de estabele-cer laços comerciais, deixar de lado as possibilidades pacíficas e declarou guerra a Lofar, marchando com seu exército para aquela região de montanhas íngremes e rochosas. Mas como vencê-los se tinham armas melhores, o conhecimento perfeito de seu território e se seus soldados possuíam uma força física surpreendente? Sucederam-se diversas derrotas, até o rei de Gandarki tomar a decisão de enviar um mensageiro para o rei-no de Prusha, onde já ouvira de sua mentora que havia na cida-de de Knittlingen uma espécie de escola de magos de excepcio-nal qualidade, de uma tradição distinta de seidr, na qual os ho-mens eram maioria, e onde os sacerdotes de diversos deuses costumavam fazer estudos sobre o ramo da magia ligado espe-cificamente a seu deus; a biblioteca deste colégio era imensa e muitos professores conhecedores profundos das qualidades e perigos envolvendo deuses como Thor, Freya e Tyr. Disse ao mensageiro: “Traga quantos forem necessários, preciso vencer essa guerra. Traga os melhores! Quero os mestres, não os alu-nos! E diga a eles que pagarei o quanto for preciso, desde que

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sejam realmente competentes. Não me importo de pagar caro!”, o enviado partiu e conseguiu localizar o colégio, retornando com apenas um, para a revolta de Svafrlami, que jogou no chão todos os papéis que estavam na mesa de sua tenda, em um ata-que de fúria. “Peço perdão, majestade. Ele foi o único que acei-tou vir.”, disse o mensageiro, um pouco trêmulo, enquanto o rei de Gandarki estava com seu rosto de nariz comprido e lábios finos completamente convulsionado, as pupilas castanhas de seus olhos dando a impressão de estarem vermelhas e prestes a explodir, seus cabelos castanhos longos e volumosos desgre-nhados em perdição; nem parecia o mesmo homem superior e confiante de elmo alado e armadura repleta de detalhes barro-cos que conduzia seu exército em seu magnífico cavalo branco, que no inverno dava a impressão de se fundir à neve. “Não se preocupem tanto. Eu sozinho sou mais do que o sufi-ciente.”, o mago, que estava atrás, ainda meio que nas sombras, tocou o ombro direito do mensageiro como para acalmá-lo e se adiantou: era um jovem de aparência comum, magro, com uma estatura mediana (diferentemente de Svafrlami, que passava de um e noventa), os cabelos loiros curtos, seu rosto com algo de infantil. Sabia falar o idioma de Gandarki, já que o aprendizado de diferentes línguas, para o estudo de certos livros na versão original ou dos que ainda não possuíam traduções (que poderi-am algum dia ser feitas por docentes ou discentes), era conside-rado extremamente importante entre os instrutores de magia de Prusha. “Eu disse para trazer um mestre, e você me traz uma criança?”, o soberano não pareceu se acalmar numa primeira olhada mais próxima ao recém-chegado. “Já estou com vinte e dois anos, majestade. E sou considerado um prodígio pelos meus instrutores. Pode não parecer, mas já deixei de ser aluno há muito tempo.”, e Svafrlami ia fazer for-

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tes objeções, mas se deteve ao prestar mais atenção no olhar daquele indivíduo, percebendo rapidamente que por trás do rosto de menino se ocultavam uma maturidade e uma ferocida-de muito maiores do que as suas próprias; chegou a ver chamas azuis nas pupilas do rapaz, e recuou, levemente assustado, mes-mo que não demonstrasse isso exteriormente. Suas experiênci-as com a velha volva haviam lhe dado alguma capacidade para distinguir um verdadeiro mago de um principiante, e provavel-mente, refletiu, o jovem o puxara para mais perto de seu espíri-to para lhe mostrar a verdade sobre si de forma muito mais efi-ciente do que seria por meio de palavras, isso num tempo cur-tíssimo. Não à toa que ele sorriu e se apresentou, com aparente simplicidade, impondo sua voz sobre a hesitação do rei: “O meu nome é Johann Sehnsucht. Trata-se de um imenso prazer estar aqui...”, sua túnica e a capa em suas costas eram negras, seu cinto parecendo uma corrente, com um diminuto pingente em forma de cabeça de corvo no centro. Seu maior trunfo aparente, que logo agiu em batalha, era seu imenso dragão de “estimação”, denominado Taranis: tinha con-trole absoluto sobre a mente daquela bela e poderosa criatura, de pele lisa azul-prateada, em cujos maxilares cabiam mais de dez humanos, e que ao invés de expelir labaredas pela boca como a maioria dos dragões conhecidos, lançava relâmpagos de seus olhos, afora seu simples toque eletrocutar. Com o poder de Taranis a seu favor, as derrotas de Gandarki cessaram, e os anões se viram encurralados. Ao tentarem ferir o dragão com suas armas, a eletricidade era conduzida pelo metal e, ao invés de machucá-lo, seus agressores levavam choques de alta volta-gem. Alviss, experiente mago anão a serviço do rei Dvalin, tentaria reverter o domínio de Johann sobre a besta eletrificada; mas já se dera conta que para isso precisaria vencer o rival...

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“Andei observando a situação, e prestando atenção em cada detalhe. Mesmo nas batalhas em que vocês não me viram, eu estava presente, invisível, examinando, estudando. Para domi-nar sozinho uma criatura daquele porte sem correr riscos dela se voltar contra quem tenta subjugá-la, nós magos sabemos que é necessária uma força mental, uma força do pensamento, um poder da Vontade, muito acima do comum. Só que descobri mais: que nunca vou conseguir quebrar de forma direta, apenas agindo com a minha mente sobre o dragão, num duelo psíqui-co, a imposição que testemunhei; no fim das contas afinal, ela é indireta, e são necessários por isso meios indiretos para vencê-la! Me explico: o desgraçado inseriu dentro do dragão elemen-tais naturais e artificiais carregados com a intenção dele, que grudaram no corpo etérico do animal, em seguida materializan-do-a dentro de seu organismo, formando algo semelhante a tu-mores. É assim que funciona a natureza: primeiro a ação ocorre no éter, e depois na matéria que conhecemos, que nada mais é do que uma condensação do éter. Tentei, e não consegui des-truir ou remover nada. Essas coisas se espalharam não só pelos dois cérebros, um na cabeça e o outro que fica na cauda, como por todo o restante do sistema nervoso. Para quebrar essas cou-raças, esses tumores psíquicos que têm como função distorcer a consciência do hospedeiro sem causar qualquer dano físico, é necessário derrotar quem os enviou ou também os criou, no caso dos artificiais. Num caminho, ele mesmo, depois de venci-do, sob a nossa pressão, removerá os parasitas, que só obede-cem as ordens dele; no outro, ele morre e, com o espírito sendo tragado pelo abismo de Nifelheim, suas criaturas serão destruí-das em consequência de seu desaparecimento deste plano, os espíritos da natureza manipulados e escravizados se libertarão e o dragão estará livre com eles.”, explicou, enquanto Dvalin. em seu trono adjacente à parede esculpido em rochas majoritaria-

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mente brancas, com algumas pontas amarelo-claras, passava as mãos por sua barba vermelha e comprida, que chegava até o meio de seu peito, e refletia. Seus olhos eram da mesma cor de fogo que seus cabelos e o restante de seus pêlos; sua armadura incandescente tinha uma aparência de recém-saída da forja, embora fizesse anos que a usava, já reparados os mínimos des-gastes que sofrera outrora. Era pouco mais alto do que seu ir-mão caçula, que estava de pé ao lado, o bom e corajoso Durin, ainda mais atarracado e robusto, em trajes verdes a não ser pe-las botas marrons, seu machado pendurado em sua cintura; seus olhos eram rubros como os do rei, porém munidos de um ímpe-to mais selvagem, pois bem ou mal Dvalin aprendera a ser poli-do em determinadas ocasiões devido a seu posto; sua barba e seus cabelos, mais curtos do que os do irmão, eram no entanto brancos. A coroa de Lofar, de ouro puro com algumas aberturas em volta do núcleo de rubis, não ficava na cabeça do soberano, e sim alguns metros acima do trono, suspensa feito um lustre. Isso se dava porque a tradição do reino dizia que, por mais dig-no, sábio e forte que fosse um monarca, jamais nenhum indiví-duo seria puro o suficiente para colocar as mãos na coroa, que pertencia ao espírito coletivo do povo de Lofar: o único que pudera tocá-la fora obviamente, em um passado remoto, seu próprio artesão. Uma lenda dizia que mesmo após o Ragnarok aquelas cavernas de pedra cândida permaneceriam intactas, acolhendo o único casal de gnomos a sobreviver à grande ca-tástrofe, destinado a reintroduzir a estirpe dos anões no mundo, e que reencontraria a esplêndida coroa, pairando no alto. “Será que podemos confiar em você? Se eu pudesse, eu mes-mo me livraria daquele monstro. Mas já tentei com o meu ma-chado, e quase morri quatro ou cinco vezes!”, o irmão do rei era impulsivo nas batalhas e desconfiado fora delas.

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“Compreendo o que está pensando, príncipe Durin. Sinto que não duvida da minha honestidade, e sim da minha capacidade. Vou ser sincero: tenho muito mais experiência do que esse tal de Johann. Só que ele tem mais talento natural.” “E o que vai prevalecer? O talento ou a experiência?”, inda-gou Dvalin. “Isso só vamos saber quando chegar a hora...”, os anões de Lofar haviam construído uma complexa civilização nas grutas das montanhas que eram seu lar, inclusive escavando no interi-or destas e esculpindo muito ao seu redor, suas pupilas capazes de enxergar na escuridão quase tão perfeitamente quanto os hu-manos à luz do sol, embora não se limitassem a ambientes fe-chados: tinham um ponto de fuga, uma cidade de muralhas al-vas construída em um vale verdejante, com belos lagos e córre-gos límpidos, cuja existência ninguém mais em Midgard co-nhecia, só acessível uma vez superado um intricado labirinto de base natural, mas que fora ampliado e complexificado pelo povo de Dvalin. Ao menos era nisso que acreditavam, que esta-vam a salvo ali, mas Johann pôde vê-los do alto, montado em seu dragão, e neste logo trouxe um número que julgou suficien-te de arqueiros e lançadores de tochas para que bombardeassem a inocente cidade branca dos gnomos, somando-se aos objetos os raios de Taranis e o próprio fogo que o mago sabia manipu-lar. Nunca tinham imaginado um ataque aéreo; e, poucos dias após a destruição do idílio de Lofar, as cavernas foram subme-tidas: alguns anões se suicidaram, preferindo a morte à rendi-ção e subsequente escravidão. Mas outros, menos obstinados, tiveram suas mentes dominadas por Johann, enquanto que um terceiro grupo traiu seu próprio povo, cedendo voluntariamente ao invasor, e uma quarta facção só aparentemente se rendeu, planejando uma futura vingança que deveria ser executada da forma mais fria. Os adeptos deste ponto de vista eram liderados

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por Dvalin e Alviss, ao passo que Durin teria se suicidado se não tivesse levado uma série de broncas e até uma surra do ir-mão, sendo convencido quase que “na marra”. “Nós temos que viver! Temos que continuar de pé! Algum dia, os nossos descendentes vão sobreviver ao Ragnarok e aju-dar a repovoar o mundo! Temos que ser dignos dos filhos dos nossos filhos!”, bradou o acorrentado rei ao príncipe; e Alviss escutava, pensando em Thrud, e se seria possível chamá-la para auxiliá-lo, terminando por concluir que as valquírias tinham outras atribuições que não interferir nos conflitos envolvendo poder e riquezas em Midgard; por mais amizade que lhe tives-se, não poderia fazer nada sem a ordem de Odin, ou correria o risco de ser punida. Talvez algum dia o recrutasse...Mas ainda era cedo para morrer. Em sua batalha contra Johann, haviam se enfrentado dentro de uma das cavernas, onde o dragão era grande demais para poder entrar; a princípio com homens de Gandarki e anões em volta, os que se achavam por perto acabaram rapidamente perdendo a consciência: um vapor sombrio e cinzento envolvera o cinica-mente sorridente adversário, induzindo o sono, ao passo que o anão, o único que resistia, se cercara dos elementais robustos que evocara e materializara, uns que pareciam ter músculos ter-rosos recobertos de musgos, apenas com boca, orifícios auricu-lares e nariz, sem olhos, orientando-se pelos odores, tato e sons, outros que eram pura pedra, tão fortes que arrebentavam as paredes com suma facilidade com seus socos; o problema era que não conseguiam acertar o terrível prodígio das artes ocultas de Knittlingen, que desaparecia e reaparecia o tempo todo. Aos poucos os defensores de Alviss começaram a se suti-lizar e a se desvanecer, ou a se desintegrar, enquanto este lutava contra um violento e ao mesmo tempo agradável e convidativo cansaço; terminara não conseguindo evitar de cair na realidade

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dos sonhos, e Johann prosseguira, pois tudo aquilo era para ele uma brincadeira, invadindo o universo onírico de seu oponente: “Você não acha que vai se livrar de mim com um cochilo, acha?”, inquirira da forma mais provocativa, seguindo-se uma gargalhada. Alviss, quando começara a sonhar após despencar da realidade da vigília, sentira-se em um mundo de nuvens, branco e celeste, macio e de extrema leveza, que terminaria se transformando no pior dos pesadelos com a presença do inimi-go. Devido à pressão desta, passara a cair sem parar, enquanto Johann não cessava de rir à sua volta e ia se deformando, fun-dindo-se ao cenário, que se tornara obscuro, feito uma gigan-tesca carranca demoníaca sem nenhum limite; ao acordar, sen-tindo no susto o baque da queda, percebera que haviam se pas-sado dois dias, sob correntes junto com os dois irmãos... “Agora vocês são meus. E vão fazer o que eu pedir, sem pro-testos. Como não quiseram aceitar de forma pacífica, será pela dor que irão aprender.”, Svafrlami procedeu à tortura por diver-sas vezes e manteve totalmente imobilizados os que ainda ame-açavam se suicidar, até que obteve garantias que não cometeri-am mais este ato, persuadidos por seu rei. Johann, pago com muito ouro e muita prata, que usaria em suas experiências alquímicas (o soberano de Gandarki chegara a ver um estranho livro que o mago carregava, repleto de ilus-trações enigmáticas, inúmeros desenhos da lua e do sol), voltou para Knittlingen uma vez cumprida sua missão. “A escravidão é inerente à natureza dos reinos, à vida dos po-vos. Não deve nunca ser encarada com vergonha: tanto vocês são dignos e necessários que uma antiga história diz que Odin afiou nove foices para um grupo de escravos, a fim de lhes fa-cilitar o trabalho. Vejam, só, Odin, o rei dos deuses, empenhan-do-se por meros escravos! Sinal que os considerava especiais...”, Dvalin pensou em cuspir no rosto do capitão do

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exército de Svafrlami que entrara onde estavam presos, em uma de suas queridas cavernas agora ocupada, para submetê-los às mais diversas provocações; entretanto, se conteve. Durin preferiu ficar de olhos fechados, para sequer ver o rosto do opressor infame, pois se o visse não se deteria. O tempo passou e seriam soltos das correntes visíveis, permanecendo as invisí-veis, passando a forjar diferentes armas para as tropas de Gan-darki, não havendo como negar a beleza da obra culminante, encomendada por Svafrlami para que apenas ele próprio a utili-zasse: a espada Tirfing, dourada e rubra, com uma aparência flamejante de fogo, que jamais poderia enferrujar e capaz de cortar qualquer pedra e qualquer metal. Uma arma imbatível. Contudo, não pretendiam deixar o rei gozar de uma imensa glória às custas de seus esforços físicos e mentais. Assim que a Tirfing ficara pronta, apenas Durin, Dvalin e Alviss presentes na forjaria apagada, o rei derrocado de Lofar levara a arma ao círculo místico que o mago traçara no chão negro e onde agora se encontrava, com os olhos vendados e as mãos estendidas, e depusera-a sobre estas; sob o olhar compenetrado e de ansieda-de contida do príncipe deposto, Alviss segurou-a com firmeza, desembainhou-a e, apenas com uma leve passagem da lâmina, cortou sem nenhuma dificuldade o tecido sobre sua vista. Em seguida, ergueu-a de frente, pouco acima de sua testa e, com os olhos bem abertos, proferiu as palavras necessárias, ao passo que as runas no interior do círculo começavam a emanar uma poderosa claridade azul que tomou conta do ambiente antes es-curo: “Ó deuses de Asgard, não permitam que nossos inimigos triunfem graças ao nosso árduo trabalho. Grande Odin, sangra-mos tanto em batalha por nada? Grande Freyr, permitirá que la-drões comam os frutos que plantamos com o suor de nossa fronte? Grande Tyr, nosso trabalho no calor da forja não pode ser em vão, que ele sirva para que possamos punir justamente

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os que nos querem como escravos. Somos os filhos gloriosos da Terra, não pobres servos cujo destino é a submissão humi-lhada. Uma coisa é nos submetermos aos deuses, aos nossos criadores, aos que nos deram a vida, que nos concederam a dá-diva da existência, a oportunidade de caminharmos em Mid-gard, de ouvir a natureza, outra completamente distinta é ser-mos submissos a criaturas egoístas e vis, que só pensam em si mesmas, que não possuem o menor interesse de amadurecer in-teriormente. É por isso que conjuramos vossa maldição! Amal-diçoem esta serpente de sangue! Por mais esplêndida e exce-lente que seja, todo o homem que a usar deverá ter vida curta depois que a possuir!”, ouviu-se um estrondo semelhante a um trovão, e os outros dois anões se assustaram; Alviss não. Uma figura, ainda que fosse obscura, se materializou na luminosida-de emanada pelo círculo, próxima do mago anão: usava um manto negro, seu rosto oculto sob um capuz sombrio; corajo-sos, Durin e Dvalin não recuaram, e enfrentaram o medo, pro-curando ver o rosto; mas a tentativa foi frustrada, só havia ali uma sombra, que porém não se tratava de um vazio, porque continha uma presença, e muito mais marcante do que a da maioria dos seres que já haviam conhecido. “Imagino que seja um enviado dos deuses. Veio a nosso pedido para trazer a mal-dição?”, inquiriu-lhe Alviss. “Sou um servo de Hel. Sua majestade escutou os seus apelos, resolveu atendê-los e por isso me enviou.”, apenas isso disse, e quando o mago tentou lhe perguntar mais, sentiu sua língua dormente; os outros dois ficaram paralisados, ao passo que ao tocar a lâmina desprendeu-se dos dedos da mão direita do sinis-tro visitante, de coloração azul pálida, uma fumaça cinzenta, que foi enegrecendo à medida que envolvia a espada. Caracte-res de maldição se cravaram no metal, que temporariamente fi-cou opaco; depois voltou ao normal, as letras desapareceram da

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vista comum e o emissário da rainha de Nifelheim se foi. Mis-são cumprida para os anões, conquanto Alviss tivesse ficado ofegante após o feiticeiro partir e sua língua ser liberada; Dva-lin e Durin recuperaram os movimentos e o segundo indagou, ainda amedrontado, embora não quisesse demonstrar, sua voz rouca e mais altissonante e impositiva do que nunca: “Será que podemos confiar em Hel? Ela não pode querer algo em troca depois? Você não a chamou, mas foi ela quem veio, e não Odin ou Freyr.” “Não se preocupem, não fizemos nenhum acordo. Eu mera-mente fiz um pedido e um dos deuses atendeu. Às vezes Hel é mal-entendida. É um trabalho difícil cuidar dos mortos de Nife-lheim, e ela é a única deusa que se capacitou para isso. Devido a seus aspectos sombrios, quase sempre nos esquecemos que Hel é uma deusa como todos os outros, só não vive em Asgard, e se tem legiões de demônios e feiticeiros a seu serviço, é por-que merece toda essa influência, foi ela que a conquistou. E o que ela quer é mais mortos, e será o que a Tirfing irá lhe dar. Não precisa de nossas almas, estamos de certa forma lhe pres-tando um favor.”, respondeu Alviss, e alguns meses depois Svafrlami saiu em uma nova campanha, levando consigo Durin e Dvalin como seus soldados, o que é claro era humilhante para os que haviam sido príncipe e rei de Lofar. A vontade de Durin era acertá-lo pelas costas com seu machado quando se distraís-se, mas sabia que isso faria com que fosse preso e executado, e não queria passar à história como o vilão e o ignominioso, dei-xando o rei de Gandarki como mártir. Procuraria ter paciência para que a Tirfing fizesse seu trabalho e a maldição se cumpris-se. A guerra era contra o rei Haddingus de Dharia, um reino que vinha se expandindo em direção ao sul, tomando conta de flo-restas quentes onde havia muito ouro nos rios, nas quais porém

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já vivia uma população nativa de pele escura, que quase não usava roupas, a não ser primitivas tangas; pintavam o corpo, nos guerreiros os traços mais belos e intricados, cada qual es-colhendo um animal de poder de sua preferência, que desenha-vam em suas costas. Todavia, apesar de valentes, preferindo a morte a se renderem, suas lanças e flechas de madeira não fo-ram páreo para os cavaleiros em armaduras e espadas proveni-entes de Dharia, que foram vencendo diversas batalhas e tor-nando escravos os vencidos sobreviventes. Haddingus não compreendia o que falavam, mas terminou descobrindo, por meio de seus espiões, que estavam longe de ser um povo unido, divididos em inúmeras tribos hostis entre si, algumas das quais tinham um desagradável costume: seus prisioneiros de guerra eram executados e devorados. Assavam suas carnes na fogueira ou serviam-nas em horrendas sopas, di-vidindo-as entre todos, inclusive as crianças e as mulheres. O que o rei de Dharia não sabia, e nem quis saber, era que os guerreiros daquela região desejavam esse destino, consideran-do vergonhoso o mero aprisionamento, e antes de serem execu-tados recebiam por trinta dias o melhor dos tratamentos, co-mendo o que queriam, deitando-se com a mulher que escolhi-am, até chegar o momento de cumprirem o papel reservado aos homens honrados. Ao comer a carne do adversário, a tribo ab-sorvia sua força e suas virtudes: as crianças se alimentavam para crescer física, moral e espiritualmente; os homens adultos para adquirirem mais força, virilidade e coragem; no caso das mulheres, que não podiam ser guerreiras, obtinham a determi-nação para guiarem seus lares; e os velhos ganhavam mais tem-po de vida e suas virtudes não decaíam. Só que Haddingus considerava tudo aquilo apenas como um canibalismo absurdamente bárbaro. E ao serem aprisionados e mantidos pelos homens de Dharia em condições sub-humanas,

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os nativos das florestas quentes só podiam se indignar e se re-voltar, tanto que insultavam seus captores, o que era compreen-dido pelas expressões faciais e pelos gestos, mesmo que as pa-lavras não pudessem ser entendidas: não estavam recebendo um tratamento digno de guerreiros, e não iriam se conformar tão cedo por serem reduzidos à condição de escravizados. Um cuspiu no próprio rei, que antes de limpar o rosto (o que faria com um pano, não sujando sua mão com a saliva de uma cria-tura a seu ver tão baixa) desembainhou sua espada e cortou a cabeça do rebelde. Os escravizados passaram a pensar que não por acaso aqueles invasores eram tão ignóbeis: limitavam-se a comer a carne de animais; ao não se nutrirem de outros guerreiros, suas virtudes se enfraqueciam cada vez mais, absorviam somente as caracte-rísticas dos bovinos, bodes e porcos dos quais se alimentavam. Ao chegar o dia do Froblot, o festival do deus Freyr, durante o qual costumavam sacrificar alguns animais, Haddingus resol-veu sacrificar uma considerável quantidade daquela gente no lugar dos bichos. Não imaginava que esta ação fosse desencadear o profundo desagrado do deus. Ao ser chamado, Freyr não se aproximou, observando tudo do alto das árvores ao pôr do sol. À medida que os corpos iam sendo decapitados e jogados nas fogueiras, só podia sentir asco; a fumaça proveniente da carne humana queimada incomodava-o terrivelmente. Não apreciava sacrifíci-os de nenhuma espécie, ao contrário do que muitas pessoas em Midgard pensavam, mas perdoava os sacrifícios de animais, cujas almas logo acolhia em seu peito, atribuindo-os à ignorân-cia; o que não poderia perdoar eram sacrifícios humanos, uma espécie assassinando indivíduos da mesma espécie e julgando que isso pudesse ter algo a ver com um deus como ele, que amava a vida acima de todas as coisas.

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Esplendoroso, os cabelos loiros lisos quase chegando até seus pés, seus olhos de um azul insondável, as orelhas pontiagudas assim como as de seus filhos, os elfos de Ljosalfheim, revesti-do por um manto azul-claro e dourado, permaneceu levitando por algum tempo, invisível aos olhos humanos, até desaparecer quando a noite chegou. Uma pergunta que muitos se faziam era: como ocorrera a cria-ção dos elfos da luz? Infinitas versões de mitos haviam sido criadas para explicar seu surgimento. A verdade era que Freyr decidira num dia, enquanto andava pelas florestas luminosas de Ljosalfheim, onde havia um sol perene, criar os elfos da luz, que em Asgard ficariam conhecidos também como os ljosalfar. Para isso, estendera seu braço direito, elevando sua mão para o alto, com a qual começara a capturar os raios do sol; estes, so-mados à sua luz interna, ao serem manipulados por suas mãos, foram sendo transformados em esferas douradas do tamanho de um palmo, que após caírem no solo da floresta aparentemente derreteram neste. Entretanto, à medida que as horas foram transcorrendo, Freyr sem se impacientar, começaram a surgir da terra milhares de seres semelhantes a seu criador, de peles e cabelos claros e orelhas pontiagudas, tanto do sexo feminino como do masculino. Eram os primeiros elfos, que não tardaram a reconhecer seu pai, diante do qual se ajoelharam. Desde então o deus vanir se tornara o rei de Ljosalfheim. Seus mais próximos ministros eram Dainn, extraordinário arqueiro de cabelos e olhos esverdeados, principal responsável pela defesa do reino, Skirnir, o mensageiro preferido do deus, que de tão rápido que corria chegava a se fundir ao vento, Byggvir, com seus cabelos e olhos dourados e sua armadura prateada, grande conselheiro e governante de Ljosalfheim quando seu divino rei precisava se ausentar, e Beyla, esposa de Byggvir, que dirigia a educação dos jovens elfos, seus cabelos

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tão claros e luminosos como o longo e evanescente vestido que costumava usar, uma de suas peculiaridades a dedicação à sua criação de abelhas, onde se produzia o mel mais apreciado pelos deuses. Os filhos de Freyr pareciam ser imunes à doença, à velhice e à morte natural; entrementes, se assassinados não tinham como evitar de ser sugados pelo báratro de Hel; e sua imunidade das questões acima dependia da vida de seu criador: caso o deus encontrasse a morte, passariam a sofrer com a velhice, por mais tarde que chegasse, poderiam ficar doentes, e seus dias ao sol teriam um fim. Mas nem mesmo os mais sábios elfos possuíam algum conhecimento acerca deste detalhe; afinal, Freyr não cogitava sua própria morte e nunca os informaria a esse respeito. Uma vez gerados, passaram por um crescimento inicial de sua população, mantendo-a bastante estável na etapa seguinte de seu desenvolvimento civilizacional; capazes de controlar a emissão de sua virilidade como desejavam, assim como os deuses, só tinham filhos de forma bem-planejada, em geral quando algum ou alguns dos seus perdiam a vida ou sumiam de Alfheim, costumando ir para Midgard. Tomavam o máximo de cuidado para não ultrapassar os limites quantitativos que poderiam causar danos à natureza, procurando levar uma vida regida pelo equilíbrio interno e pela harmonia com o universo. Loki, o traiçoeiro deus de cabelos ruivos e olhos de pupilas em brasas sinuosas e fundo incandescente, não fora percebido por Freyr enquanto este executava a criação dos ljosalfar; o filho de Njord e Skadi fora seguido, e Loki invadido por uma profunda inveja ao testemunhar o nascimento dos elfos. Concluíra a seguir que se Freyr conseguira criar seres tão extraordinários, por que ele não poderia? Distanciara-se do vanir e dirigira-se para Svartalfheim, a

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metade escura de Alfheim, onde a luz do sol daquele mundo pouquíssimo chegava, apenas em raras horas. Parou em uma floresta de árvores negras, tanto as folhas como os troncos, quase que fundida à noite; uma neblina obtusa e fria pairava pelo local, por onde perambulavam aranhas, ratos e répteis rastejantes, que começaram a se aproximar do deus. Loki olhou para a lua de Alfheim envolvida pelas brumas, só que ao invés de estender suas mãos para ela afundou-as diretamente no solo; arrancou boas quantidades de terra, enquanto sua aura vermelha ardia. Atirou a matéria do solo sobre os lagartos, os ratos e as serpentes, que ficaram paralisados; cuspiu na sequência sobre estas criaturas, sua saliva rubra logo crescendo e borbulhando; parecia que os animais atingidos iam ser derretidos, mais isso não aconteceu, na verdade começaram a aumentar de tamanho e a ficar de pé, as cobras adquirindo braços e pernas, aos poucos perdendo seus traços reptilianos para se tornarem mais semelhantes a Loki. Suas auras eram cinzentas, enevoadas, e dessa forma surgiram os primeiros elfos negros, os svartálfar, os de peles escamosas descendendo dos répteis, enquanto os de pele lisa e os peludos descendiam dos roedores. Com suas orelhas pontiagudas, eram como imitações dos elfos de Freyr, dos quais viriam a se tornar grandes inimigos, almejando a luminosidade de Ljosalfheim, que não os feria ou petrificava, diferentemente do que diziam certas lendas, pelo contrário: trazia-lhes grande prazer. Contudo, negavam-se a dividi-la, pois Loki infundira em seus corações que deveriam ser senhores absolutos de Alfheim, que eram uma estirpe superior; precisariam derrotar os elfos da luz, a escravidão o destino dos que sobrevivessem entre estes. Ele próprio, Loki, se encarregaria de Freyr. Este fora um dos acontecimentos, junto com o assassinato de Balder, que propiciara a queda do deus malicioso, que desejava

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nada menos do que o trono de Odin. Não conseguiu no entanto fazer seus filhos imortais: os elfos negros tinham vida longa e não adoeciam, mas envelheciam e faleciam de morte natural; por isso, distintamente dos ljosalfar, tinham certa ânsia em se reproduzir, tendo filhos sem se preocuparem com as circunstâncias que estes viriam a enfrentar, procurando superar os elfos da luz ao menos numericamente; em contraposição aos filhos de Freyr, não possuíam interesse em se harmonizar à natureza, dirigindo sua magia a se impor sobre esta, escravizando os espíritos elementais com os quais travavam contato. Na ausência de Loki, que consideravam o único deus digno de veneração, escolhiam seu rei com base no que era demonstrado em batalha; um posto temporário, para o qual estava reservado um trono esculpido em pedra cinzenta, visto que o trono definitivo, esculpido em um ébano gelado, reservava-se somente ao criador dos svartálfar quando este se libertasse do jugo dos aesires e vanires. De acordo a promessa de Loki, o comando dos mundos passaria então de Asgard para Alfheim, de onde segundo dissera aos elfos negros iria governar o universo. Entre os svartálfar, o rei poderia sempre ser contestado e desafiado; caso vencido em duelo, teria que ceder seu posto. Enxergavam tão bem na escuridão e nas névoas quanto os ljosalfar à luz do dia; e ambos possuíam tanto a visão como a audição e o olfato muito mais apurados do que os sentidos humanos. As águas escuras de Svartalfheim eram extremamente perigosas e por isso até os svartálfar as evitavam; seus rios e mares abrigavam diferentes espécies de feras e monstros aquáticos, cuja senhora era Ran, entidade cruel que provocava turbilhões, com apreço por afundar os navios que invadiam o

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seu território. Era gigantesca, quase das dimensões de um kraken, seu tronco antropomórfico, ainda que escamoso, seus cabelos como enguias elétricas, três fileiras de dentes afiados em sua boca central, e duas nas bocarras laterais que podia abrir sempre que desejasse, seus olhos de fundo esverdeado com pupilas negras espiraladas; já a parte inferior de seu corpo era como a de um imenso ofídio. Ran escondia-se apenas de Freyr, mantendo-se debaixo das águas quando este passava a bordo de seu navio, o Skidbladnir, obra de Ivaldir e seus filhos. Podia navegar tanto sobre as águas como sobre a terra e os ares, ultrapassando as fronteiras entre os mundos, grande o bastante para abrigar todos os deuses de Asgard e mais uma multidão de einherjar se estes desejassem viajar nele. Sempre que suas velas eram alçadas, um bom vento o seguia. Fora construído na mesma época da criação do javali Gullinbursti, o animal sagrado de Freyr, e por isso suas velas traziam a imagem deste. Gullinbursti resultara de uma aposta entre Brokk e Sindri, o segundo dizendo que seria capaz de produzir um extraordinário presente para o deus vanir a partir de uma pele de javali, que colocou na fornalha; em seguida, após chamar alguns elementais e atuar com sua intenção, banhou a pele queimada com ouro e esta foi sendo preenchida pelos espíritos, adquirindo volume, a uma certa altura estes se fundindo em seu interior e dando origem a uma nova vida unificada, à alma de Gullinbursti, que adquiriu ossos, carne e consciência na forma de um javali dourado de dimensões excepcionais, suas presas extremamente afiadas. O problema foi que os dois anões perderam o controle do animal, que os agrediu e fugiu. Podia correr não só sobre a terra como pelo ar e foi parado justamente por Freyr, avisado pelos gnomos a respeito de seu “presente”. Conseguiu localizá-lo com sua visão espiritual e, quando

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ficaram frente a frente, acalmá-lo com sua aura dourada; o javali bem que tentou atacar o deus, mas não conseguiu sequer tocá-lo, ao ser domesticado silenciando e recebendo as carícias de seu novo dono, que às vezes montava em suas costas e às vezes lhe pedia para que puxasse sua carruagem de ouro e folhas, presente posterior dos filhos de Ivaldir, com a qual gostava de passear acompanhado por sua esposa Gerd, que em sua origem não era uma deusa, nem aesir nem vanir, e sim uma elfa, portanto sua descendente e súdita, que costumava percorrer as florestas de Alfheim ao lado de linces-tigres, belos animais brancos de listras negras e caudas curtas, de dimensões pouco maiores do que os tigres de Midgard, e voar acima das montanhas enevoadas sobre os dragões prateados de seu mundo; domesticava qualquer animal com seu canto, ao mesmo tempo que era uma arqueira e uma espadachim de primeiro nível, acérrima e perigosa inimiga dos elfos negros. Sua vestimenta favorita, que recebera de seu consorte divino, constituía-se de saia curta, botas e colete metálicos por sobre uma calça e uma túnica de couro vegetal que protegiam seu corpo não só de ataques físicos como de diferentes ataques mágicos, pois estavam imantadas com poderosos encantos. Freyr se apaixonara como nunca lhe ocorrera antes ao vê-la pela primeira vez. E, apesar de ser um deus e rei de Ljosalfheim, seguiu as formalidades e foi até os pais da jovem elfa para pedir sua mão. Claro que estes encararam a ocasião como uma grande honra, afinal o reino dos elfos da luz enfim teria uma rainha, e seria sua filha, só que o filho de Skadi não desejava forçar nada, pretendendo que Gerd se casasse com ele por vontade e não por imposição. Ao saber da intenção do vanir, a elfa ficou perplexa. Sempre o vira como alguém muito superior e distante, jamais imaginara que pudesse lhe despertar algum interesse amoroso. Freyr se apresentou em sua casa na

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condição de pretendente, para que ela o conhecesse melhor, e levou-a até Asgard. Ficaram por algum tempo no reino dos deuses, ainda sem que a condição de noivos fosse oficializada, mas Gerd também se apaixonou pelo deus no decorrer da convivência e firmaram o compromisso na presença de Frija, que abençoou a união dos dois. No retorno para Ljosalfheim, celebraram o casamento no palácio real, de centenas de torres acúleas douradas apontando para o céu, no centro do amplo jardim onde, ao final da cerimônia, brotou um sem-número de flores multicoloridas. Os aesires e vanires também compareceram para o matrimônio e Odin trouxe para a noiva belíssimas joias e uma taça de hidromel, a bebida dos deuses, que fez de Gerd uma igual em relação aos senhores e senhoras de Asgard. Após se casarem, Freyr sabia que sua companheira jamais seria uma rainha estática e nem desejava isso, chegando a afirmar que sua beleza vinha também de seu espírito livre e aventureiro. Por isso permitiu que continuasse a circular sozinha pelas florestas e montanhas, na companhia dos seres da natureza. Como via tudo o que se passava por Ljosalfheim enquanto estava no trono de seu reino, um assento suspenso repleto de flores de luz, próximo de uma parede esmeraldina, cercado de espelhos de vidro esverdeado que refletiam os acontecimentos daquele mundo, acreditava que não precisava se preocupar. Contudo, durante um período em que precisou se ausentar em ocasião de uma assembleia dos deuses convocada por Odin, um grupo de elfos negros se aproveitou da situação e, aliado ao jotun Beli, um gigante encouraçado de pele azul, face enrugada e longos cabelos e barba vermelhos, cercou Gerd sozinha na floresta. “O que vocês querem?”, a jovem deusa indagou, não obtendo

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resposta; estava com um lince-tigre, que tentou protegê-la lançando-se sobre um dos elfos negros, porém foi abatido no ato, cortado ao meio pela espada serrilhada do jotun. Gerd, com sua agilidade e sua força, matou três elfos das sombras na luta, o primeiro atingindo-o em cheio no peito com uma de suas flechas, o segundo e o terceiro perfurando-lhes respectivamente a garganta e o abdome com sua espada aparentemente reta de lâmina fina, longa e ainda flexível, podendo se curvar e aumentar de tamanho indefinidamente, ao que parecia. Caiu diante de Beli, que possuía uma força e uma resistência avassaladoras: embora tenha conseguido perfurar-lhe a couraça, o golpe não foi fatal, e o gigante a deixou fora de combate após uma sequência de socos. “Agora chegou a hora de matá-la!”, disse um dos filhos de Loki sobreviventes, aprumando-se com sua espada; no entanto, foi detido pelo gigante, que quase esmagou seu braço. “Mas o que há?? Você não é nosso aliado?” “A nossa aliança termina aqui. Meu soberano a quer viva.”, replicou o jotun com sua voz grave e sombria. “Disse que ajudaria vocês a se livrarem dela para causar profundo pesar em Freyr, mas não disse que deixaria que a matassem. Ficarão livres dela em Alfheim porque vou levá-la para Jotunheim. Alguma objeção quanto a isso?” “Pensamos que também queria matá-la.” “O que nós jotuns ganharíamos com isso? Gymir, que é meu rei, a quer para ele. Fiquem certos que Freyr logo virá para Jotunheim atrás de sua esposa, e lá, em nossas terras, deverá perder sua vida. Mas é Freyr que meu soberano quer ver morto, não Gerd.” “Se é assim, nos damos por satisfeitos. Mesmo não sendo mais aliados, se vocês matarem Freyr, estarão nos prestando um grande favor.”, de qualquer forma não teriam coragem para

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se opor a Beli. Em seu retorno a Ljosalfheim, Freyr ficou desesperado ao saber que Gerd desaparecera. Logo recebeu uma mensagem de uma das nações de Jotunheim: esta chegou como um globo de luz branca e fria que percorreu toda a capital do reino dos elfos da luz e só parou diante do trono do vanir, abrindo-se e revelando a imagem de Gymir, rei de Aurboda, que afirmou ser o mandante do sequestro, tendo se apaixonado por Gerd após vê-la em seus sonhos visionários, e desafiando Freyr a vir recuperá-la. Era um gigante de pele cinzenta, cabelos vermelhos curtos como seus olhos, nariz grande e achatado, armadura e cinturão repletos de pedras preciosas. O vanir obviamente não se intimidou e reuniu um exército de elfos para marchar contra Aurboda, embarcando-o no Skidbladnir. Contou também com outra ajuda, inesperada ou nem tanto: “Como achou que podia partir dessa forma para uma guerra, sem nem mesmo me avisar? Minha sorte é que tenho muitos bons amigos entre os espíritos da natureza de Alfheim. E as más notícias chegaram aos meus ouvidos. Gerd também se tornou minha irmã, e não irei permitir que esta desfeita vá mais adiante.”, no meio da viagem, a princípio como um sol verde fúlgido, depois materializando-se com sua bela aparência costumeira, paralisando por alguns instantes o navio mágico, Freya apareceu a seu irmão. “Me desculpe, Freya. É que simplesmente quis agir o mais rápido possível para derrotar Gymir. Só de imaginar que ele pode estar tocando Gerd à força...” “Gerd não é nem um pouco indefesa. Certamente, se ele estiver tentando algo, ela deve estar se opondo com muita força. Só não podemos realmente esperar muito porque ele pode perder a paciência e se juntar com seus asseclas para assassiná-la, já que não conseguirá nunca possuí-la. Mas para

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me avisar teria bastado a sua intenção! Não teria sido necessária uma longa conversa.” “Não estava pensando em envolvê-la nisso.” “Mas agora já estou envolvida.”, assim, os filhos de Njord e Skadi seguiram juntos rumo a Jotunheim, mais especificamente para os domínios gelados de Aurboda, onde desceram do Skidbladnir, Freyr e Freya à frente do exército élfico na carruagem do deus puxada por Gullinbursti. A seguir, o navio místico foi transformado em pura luz, depois condensada na forma de um medalhão dourado, que o marido de Gerd pendurou em seu pescoço. Era mais uma das maravilhosas propriedades mágicas do Skidbladnir. O primeiro e maior enfrentamento no caminho para a capital do reino de Gymir se deu na floresta de Ividja, onde os troncos das árvores eram de uma madeira cinzenta e fria, de cristais suas folhas, de um peculiar gelo doce seus frutos. Uma forte nevasca caiu no dia em que veio o exército de Ljosalfheim, porém não se tratava de um fenômeno natural, e sim de uma tempestade trazida pelos gigantes que defendiam o local. Dainn empregou suas flechas, que se tornavam abruptamente raios de luz, não só perfurando como ateando chamas nos inimigos atingidos; Skirnir, ao se confundir com os ventos, criava tufões que retalhavam os adversários; Byggvir empregou sua espada contra um jotun de barba repleta de neve e clava extremamente pesada que esmagara outro elfo, conseguindo cortar a arma do oponente para depois cortar-lhe a garganta; Gullinbursti, após a carruagem divina ficar para trás, os irmãos vanires já tendo descido desta, chegou a derrotar dois gigantes com suas incríveis presas. Contudo, nenhum dos elfos e nem o javali sagrado seriam páreo para o senhor daquela floresta, que após liberar uma cortina de brumas gélidas de repente se fez visível, cada um de seus braços musculosos

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cinco vezes maior do que Freyr, suas mãos com garras frias, em seus ombros pêlos mais escuros do que sua pele, que era de intenso azul, de gelo a armadura que revestiu seu corpo, assim como as imensas lâminas que se ergueram à sua volta, algumas se curvando com surpreendente flexibilidade para atingir os elfos. Freya formou um campo de proteção quente e luminoso para defender seus aliados, enquanto Freyr avançou com sua espada dourada, destruindo com a lâmina desta, que se multiplicava em relâmpagos, as armas do inimigo, que no entanto demonstrou mais de seu poder antes que fosse atingido, paralisando o deus à sua frente com sua força mental. Suas veias de um sangue azul forte brilharam junto com seus olhos de puro azul sem pupilas; uma aura pesada e gelada irradiava em volta de seu crânio, onde não se viam cabelos e sim mais lâminas de gelo. Sua intenção era de não só imobilizar como de atirar longe o vanir, fazendo com que perdesse os sentidos; porém o deus resistiu e, também dando mostra de seus poderes, concentrou-se a tal ponto que uma vegetação vívida, luminosa e colorida, típica de Ljosalfheim, começou a brotar na floresta. O que o gigante não sabia era que o perfume das flores recém-nascidas, ao qual os elfos e os deuses eram imunes, produzia alucinações nos jotuns: para seu terror, viu as árvores à sua volta adquirirem vontade e movimento e passarem a atacá-lo; em seguida, gigantescos pássaros de penas cortantes e bicos afiados apareceram para agredi-lo. No plano concreto, começou a se contorcer, e com sua concentração perdida Freyr ficou livre para decapitá-lo. Entretanto, a morte do inimigo gerou efeitos colaterais: deu-se uma explosão gelada, que venceu parcialmente a barreira de Freya e chegou a congelar alguns elfos, ferindo outros; toda a vegetação que o filho de Skadi fizera crescer morreu instantaneamente. Ividja se tornou mais um deserto de gelo.

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Seguiram-se outras batalhas e vitórias contra grupos menores e mais fracos de jotuns, até a chegada às muralhas de Gymrheim, capital de Aurboda. Dezenas de monstros que lembravam enormes cães ferozes, maciços e de pelugem cinza espessa, com grandes corcovas em suas costas, eram os guardas externos. Gullinbursti se mostrou ansioso para confrontá-los, enquanto chamas azuis envolviam o alto dos muros. Contudo, Freya acariciou o javali, acalmando-o, e disse aos elfos que não seria necessário lutar com as bestas, avançando sozinha entre estas; ao vê-la, a fome que sentiam ficou mais evidente pela forma como salivavam. “Será mesmo que devemos permitir que a amada irmã de nosso soberano avance dessa forma, sozinha no meio de feras tão perigosas?”, inquiriu Byggvir “Não se preocupe. Você ainda não conhece os poderes de Freya. Devo deixar claro que se igualam aos meus.”, Freyr replicou e cruzou os braços, enquanto os monstros iam parando ao se aproximarem da deusa, alguns ganindo timidamente e deitando-se, outros permanecendo em pé com os olhos arregalados, invadidos e seduzidos por uma luz que nunca haviam visto igual. Os de espírito irremediavelmente agressivo passaram a morder a si mesmos. “Vamos em frente. Eles não são mais oposição para nós.”, anunciou Freya, porém Dainn objetou: “Obrigado por ter resolvido o problema com as bestas, poupando-nos de mais uma luta sangrenta, porém ainda há as labaredas no alto dos muros.” “Também posso cuidar disso.” Freya fechou os olhos e evocou os mais poderosos espíritos do ar que conhecia; dessa forma, um ciclone tão intenso se abateu sobre as muralhas de Gymrheim que não só as chamas em seu topo foram apagadas

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como estas desabaram. Como se tratavam de labaredas congelantes, alguns dos silfos aliados da deusa terminaram congelados ao fim do ataque, porém a seguir a filha de Njord os descongelou e os libertou. “Pronto. Nosso caminho agora está efetivamente livre. E o melhor é que Gymir e seus comparsas já devem ter percebido que chegamos e que não viemos para brincadeiras.”, Freya disse a seguir, e de fato todos os cidadãos da capital de Aurboda haviam sentido, em maior ou menor grau, o tufão convocado pela deusa; alguns, como os guardas na entrada da cidade, cujos sobreviventes à queda dos muros frontais foram os primeiros a ser abatidos pelos guerreiros elfos, tinham testemunhado de perto e com espanto o desabamento. Gymir, em seu castelo, guardava no entanto um trunfo: “Por mais poderosos que sejam, serão derrotados, pois Gerd já é minha. Tolos! A inteligência vencerá o poder e a arrogância; a astúcia irá desestabilizar quem se crê muito estável.”, a nobre elfa e esposa de Freyr tivera a mente invadida e dominada por Gymir; se comparado a outros jotuns, a força física do rei de Aurboda estava abaixo da média, porém seus poderes mentais eram excelsos. Por isso Gerd permanecia como um autômato ao seu lado, obediente a todas as suas ordens. Quando chegaram ao castelo, os elfos se encarregaram de enfrentar o grosso dos soldados jotuns, liderados por Beli, enquanto os irmãos vanires e Gullinbursti avançaram ao encontro de Gymir para libertar a consorte do rei de Ljosalfheim. Skirnir assumiu a responsabilidade do confronto direto contra o comandante dos jotuns, sua velocidade contra a força do oponente. A uma determinada altura da luta, o elfo conseguiu desmantelar a couraça de Beli e derrubar sua espada; contudo, cansado, foi capturado pelas mãos do gigante, que começou a espremê-lo. Seus ossos teriam se partido e teria sido

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feito em pedaços se a espada de Freyr, seguindo a vontade de seu soberano, que sentira o súdito e amigo em perigo, não tivesse retornado, como que manejada pelos ares, para perfurar o crânio do jotun e derreter seu cérebro com o calor de sua luz. Este era um dos segredos da arma do filho de Njord: movia-se de acordo com sua intenção, sem que precisasse empunhá-la. “Obrigado, meu senhor...”, o elfo agradeceu mentalmente a seguir, sua gratidão ouvida e sentida por Freyr, que não estava precisando de sua espada para junto com Freya se livrar dos gigantes que restavam em seu caminho, derrotando-os com o uso de magia elemental e com a ajuda do javali divino, cuja vida não se extinguiria por natureza enquanto seu senhor vivesse. Ao entrarem no salão real de Gymir, a esse ponto Freyr já com sua espada de volta às suas mãos, os irmãos vanires se depararam com Gerd sentada ao lado do rei de Aurboda, cada um ocupando um trono. Tinha a metade do tamanho do gigante, mas seu assento era bem mais alto, fazendo assim com que parecessem equiparados. “E agora, rei dos elfos da luz? O que tem a dizer? Gerd é rainha de Ljosalfheim ou rainha de Aurboda? Sua ou minha esposa? Talvez ela que deva decidir isso.”, disse o gigante. “O que você está dizendo não faz o menor sentido, jotun. Gerd me ama.”, foi a resposta de Freyr. Os deuses, possuidores do dom das línguas assim como os elfos (tanto os da luz como os negros; Loki também concedera tal dádiva a seus filhos), podiam compreender os idiomas dos jotuns e quaisquer outros que desejassem e se comunicar nestes. “Por que não escuta antes o que ela tem a dizer? Deveria respeitar a opinião dela, se a ama de verdade. Porque eu a amo...”, e beijou a elfa que se tornara deusa. “Amo meu senhor Gymir. Nunca mais me deitarei com

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qualquer outro.”, Gerd disse a seguir; Freyr, entrementes, não demonstrou nenhum espanto, replicando na sequência: “Está bem claro que você a enfeitiçou, bruxo jotun. Mas eu vou libertá-la desse encanto.” “Por que não aceita a verdade? A arrogância dos deuses é assim tão grande?”, inquiriu Gymir. “O verdadeiro guerreiro deve admitir sua derrota.” “Se pensou que me desequilibraria emocionalmente com um truque tão simples, estava muito enganado, feiticeiro leviano.” Todavia Gymir não perdeu sua confiança, que beirava a prepotência, e desafiou Freyr para um duelo. “Meu irmão não vai se rebaixar a duelar com você.”, Freya interveio. “Eu vou cuidar de você.” “Não me faça rir! Você pode ser uma divindade, mas ainda é uma fêmea. Não vai conseguir me derrotar. Vou dobrar sua mente como fiz com Gerd.”, o jotun provocou. “Duvido muito. Ao contrário de Gerd, sou uma deusa muito antiga, e com muito mais experiência na vida e na guerra do que você.”, e tanto os elfos que chegaram ao salão como Gullinbursti foram espectadores da vitória dos deuses: Freyr libertou o espírito de Gerd com sua concentração e seu amor, enquanto Freya fingia que sua mente estava sendo sobrepujada pela de Gymir; quando o gigante acreditou que a deusa se encontrava sob seu domínio, uma luz verde e incandescente penetrou em seu ser, rasgando sua alma em pedaços, e sua cabeça estourou. Ao término da guerra, os irmãos vanires estavam bastante desgastados, mas Freyr recuperou um pouco de suas forças ao receber o beijo de recompensa de Gerd, e Freya algo das suas ao testemunhar a felicidade do irmão. O sequestro da rainha dos elfos da luz originaria algumas dis-torções, como histórias que diziam que ela era uma jotun; na

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realidade, a esposa de Freyr sempre pertencera ao povo de Ljo-salfheim, do qual era sua esplendorosa senhora. Segundo a sabedoria de Bragi, homem que viria a se tornar o deus da poesia, admitido na luz de Asgard, as canções dos bar-dos que retratavam deuses, heróis e outros envolvidos em suas histórias podiam ser tanto interpretações do passado como do presente e do futuro. Quando não vinham da tradição, nomes e eventos passados, contemporâneos ou futuros poderiam ser captados por meio da inspiração poética, que paira para além da mente individual, na mente coletiva, que está acima do tem-po. As lendas dos povos seriam assim recriações, com maior ou menor adequação à realidade. Voltando contudo à nossa ação em Midgard, a desaprovação de Freyr salvaria a vida de Svafrlami: o deus sentenciara a morte de Haddingus, e por isso a maldição dos anões não se cumpriria ainda durante o conflito entre Dharia e Gandarki. Haddingus, de barba e cabelos loiros perfeitamente aparados, usando em sua testa um diadema de ouro com um diamante em seu centro, caiu em confronto direito não contra o outro rei, e sim ao subestimar Durin, que estava a pé, mas que lhe perfurou o crânio no ato, partindo ao meio o precioso ornamento, ao atingi-lo com seu machado, que disparara com uma velocidade tremenda; o lançamento fora potente e preciso, e o soberano de Dharia despencou de seu cavalo já sem vida. A morte de Haddingus desencadeou o caos em suas tropas, e dessa forma a batalha decisiva da guerra foi vencida. Durin foi condecorado por Svafrlami na própria corte de Gandarki, pois outros soldados haviam visto que fora ele que derrotara o co-mandante inimigo. No entanto, diferentemente de como seria ir de acordo com o protocolo, não disse nada ao receber a meda-lha de ouro que se dava no reino aos heróis de guerra; sequer uma palavra de agradecimento: apenas deu as costas e saiu. Al-

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guns cavaleiros pensaram em puni-lo severamente, porém o rei os deteve: “Não façam nada. Os costumes dele são outros. Po-demos considerá-lo um bárbaro, mas é um guerreiro extraordi-nário e foi um dos protagonistas da guerra. Deixem-no em paz.”, sua postura teria sido a mesma se tivesse visto o príncipe de Lofar esmagar a medalha de honra com sua pesada mão es-querda, com seus dedos grossos e peludos, para depois atirá-la no rio com desprezo? Talvez sim, talvez não; a resposta poderá ser encontrada adiante... “Não há honra em lutar como escravo!”, e Alviss tentou con-solar o velho amigo, mas este, chorando de raiva, só estaria sa-tisfeito quando Svafrlami estivesse morto. Dvalin parecia mais paciente, tentando manter a cabeça fria. A vingança chegaria no momento certo. Sem dúvida, o que os anões ignoravam, uma parte de Svafrla-mi já morrera quando, tempos atrás, ainda em seu retorno de Lofar, soubera que a alma de Eikintjasna partira de Midgard enquanto tentava derrotá-los. Desde então, tornara-se mais me-lancólico e indiferente, cada vez mais convencido de que não valia a pena se aborrecer por qualquer coisa e criar laços apa-rentemente firmes com as pessoas, que se desfaziam com a morte, a única existência estável no mundo. A Tirfing que o re-animara um pouco, que fizera com que na experiência da guer-ra, tanto na batalha propriamente dita como na expectativa do confronto, encontrasse momentos de êxtase. Mas deixara de lado suas leituras e não pensava sequer em desposar alguma moça e ter filhos: fora da esfera bélica nada mais o estimulava. Não tinha mais qualquer orientação espiritual, qualquer apoio de uma sabedoria superior. Por isso precisava continuar guerre-ando, agora não mais pelas razões de outrora...Toda conquista tão ansiada, ao se concretizar, revelava uma falta de essência, um caráter vão e transitório; muito do que obtivera para seu

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reino provavelmente não persistiria após a sua morte. Gandarki sofreria cedo ou tarde com as inevitáveis fases de decadência que todos os impérios enfrentam, e algum dia deixaria de exis-tir. “Velha maldita. O que você fez comigo?”, passara a ansiar, primeiro inconscientemente, depois conscientemente, por sua própria morte, que teria no entanto que se dar de forma grandi-osa, para que fosse digno do Valhala; Midgard era perda de tempo quando se podia lutar ao lado de Odin. Os anões não ha-viam percebido que sua vingança já estava acontecendo, em re-alidades mais sutis...A maldição não demoraria tanto assim para se materializar. Uma invasão bárbara atingiu Gandarki; e se tratava de um povo não só primitivo e hostil, que chegava sem medo às mura-lhas da capital do reino: cobertos de peles de ursos e lobos, pa-reciam mais feras selvagens, e se deixavam às vezes acompa-nhar por algumas destas; eram berserkers; um exército de ber-serkers, para o terror de todos. Ninguém ali sabia, mas haviam sofrido uma maldição divina: a princípio nômades comuns, que tinham percorrido inúmeras terras, originários da Queruscia, um de seus jovens, de nome Argantyr, filho mais velho e mais alto do líder Arngrim (sua es-tatura tão impressionante para um ser humano que alguns cogi-tavam que fosse na verdade o filho de algum jotun, que o chefe adotara após a morte precoce, e mantida sob segredo, do Ar-gantyr verdadeiro), assassinara um cervo vermelho abençoado por Freya, membro de uma espécie em extinção, ao qual a deu-sa atribuíra a missão de dar continuidade à sua linhagem. Ne-nhum homem poderia abatê-lo por estar com fome: instantane-amente qualquer faminto, ao fitar o animal, sentiria algo a opri-mi-lo que o afastaria, mas a deusa cometera o erro de não se prevenir contra a crueldade. Argantyr flechara o cervo por sim-

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ples capricho, para ver morte e sangue. Em decorrência disso, Freya, que sentira o crime como se fosse uma flecha em seu flanco direito, amaldiçoara toda a tribo do rapaz. Sem aparecer, sem anunciar a maldição, de qualquer forma esta fora imposta. E agora os integrantes do clã de Arngrim, que sempre afirmara detestar berserkers e todos aqueles que não tinham controle sobre si mesmos, se tornavam berserkers quando menos espe-ravam, tanto os homens como as mulheres, por vezes após dois ou três dias de paz, ao acreditarem ter se livrado do tormento. No estado de insanidade, seus ataques eram brutais e desordei-ros, chegavam a se agredir entre si, mas seus golpes costuma-vam ser fatais somente contra seus adversários, resistentes de-mais ao perderem os freios internos, com a explosão de sua for-ça arrancando troncos de árvores com as mãos nuas, parando espadas e rasgando escudos com os dentes, quebrando com fa-cilidade os pescoços de alguns animais ferozes, entre ursos, lo-bos, leões brancos e tigres-dentes-de-sabre, aliando-se a outros, que em certas ocasiões, também sem qualquer controle, com os olhos vermelhos sem pupilas, como que contagiados por aquela febre furiosa, se juntavam aos berserkers, também manifestan-do uma força muito maior do que a de animais comuns, suas garras e dentes perfurando o aço com suma facilidade. Ao voltar a si, Arngrim se culpava ao perceber que bebera o sangue até de crianças, por mais de uma vez “acordando” com um bebê morto em seus braços, que abrira com seus próprios dentes; além disso, já violentara de meninas a idosas. A vergo-nha que sentia era imensa. Não se considerava mais digno de colocar seus pés sobre a terra. Tratava-se de um colosso de guerreiro, tanto moral como fisi-camente, os cabelos vermelhos volumosos, os olhos em fogo vivo; não admitia falhas: e por isso não parava de se perguntar

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como permitira brechas para a invasão dos espíritos da fúria em sua tribo; o que desencadeara aquela pestilência anímica? Argantyr que parecia o único feliz com a situação. De cabelos um pouco mais escuros do que os do seu pai, como se fossem de um fogo mais calculista, menos selvagem, apresentava olhos mais fechados e um caráter oposto ao de Arngrim, dissimulado e cruel, incapaz de se recriminar por qualquer coisa. Não dizia, mas estava muito satisfeito por poder se tornar um berserk, e assim ter acesso ao máximo de poder que um ser humano po-deria alcançar, ao menos em sua concepção na época. Para defender sua capital, Svafrlami entrou em ação contra os berserkers; e a Tirfing mostrou ser uma espada verdadeiramen-te impressionante, conseguindo perfurar a carne de alguns, coi-sa que nenhuma outra arma de seu exército lograva, nem mes-mo o machado de Durin sendo muito eficiente. Impossível vencer sozinho: após perder o seu cavalo, encurra-lado por berserkers por todos os lados, o rei de Gandarki teve suas costas perfuradas pela mão esquerda do ensandecido Arn-grim; o braço transpassou o peito, e a espada, após cair no cam-po de batalha junto com seu possuidor, foi tomada pelo líder da tribo, que de repente, ao tocá-la, recobrou a consciência; como de costume, ficou se perguntando onde estava, que cidade era aquela, da qual se encontravam às portas, porém houve um de-talhe distinto em relação às experiências anteriores: a Tirfing o fascinou de imediato. Naquela batalha, Alviss, Dvalin, Durin e muitos outros gno-mos, usados por Svafrlami para ajudá-lo a expulsar os invaso-res, também sucumbiram; no mesmo dia portanto, realizaram-se a morte gloriosa desejada por Svafrlami e a vingança dos anões. O espírito de Alviss, ao deixar o corpo feito um turbilhão branco, testemunhou a queda de Gandarki para a tribo de Arn-

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grim; na sequência, foi absorvido por um vórtice dourado nos céus, que o levou a um campo ensolarado de flores e relva alta onde já estavam seus dois amigos, o rei e o príncipe de Lofar. “Que lugar será este?”, indagou Dvalin. “Eu só me lembro que estavam arrancando o couro da minha cabeça...”, Durin levou a mão direita à nuca ainda dolorida. “Devemos estar em Asgard. Tenho certeza que fomos escolhi-dos por Odin.”, a decepção de Alviss por não encontrar A val-quíria durou pouco, ao olhar ao seu redor logo Thrud aparecen-do, em uma discreta, na medida do possível, eclosão elétrica; os pequenos raios emanados por sua aura eram pacíficos, de di-fusa receptividade. “O que é isso??”, Durin, por força do hábito, procurou por seu machado, só que este não estava mais onde costumava estar... “Não se preocupem, é uma velha conhecida minha.”, Alviss não conteve seu sorriso. “Alviss de fato já me conhece, mas vocês ainda não. O meu nome é Thrud, e sou eu que irei conduzi-los ao Valhala. Sejam bem-vindos, guerreiros.”, pronunciou-se a valquíria. “Thrud? Esse não é o nome da filha de Thor?”, inquiriu Dvalin. “Sou eu mesma.” “Até que Alviss conseguiu uma amizade interessante...”, e seguiram adiante a pé por algum tempo, aquele campo se estendendo aparentemente sem fim, até que Durin, sentindo um pouco de cansaço nos pés, perguntou: “O Valhala fica tão longe assim? Por que temos que ir andando? Imagino que os deuses possuam meios melhores para viajar.” “Durin, não reclame...”, Dvalin aconselhou. “Mal chegou em Asgard e já reclamando?”, indagou Alviss, que estava absolutamente feliz e inebriado só por andar ao lado de Thrud; aquela caminhada poderia até durar pela eternidade

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que não protestaria. “É que fiquei cansado de repente. Acho que é porque acabamos de morrer numa batalha, ou será que vocês se esqueceram disso?”, o príncipe de Lofar continuava irritadiço. “Estamos andando porque temos mais alguém para encontrar. Aliás, lá está ele...”, Thrud apontou para um homem que vinha de longe. Não tinham ideia de quem se tratava, ainda indiscernível devido à distância. Pela estatura, sabiam que não era um de seus companheiros anões. “Não é possível!”, Dvalin meneou a cabeça para os lados ao reconhecê-lo. “Até aqui??”, Durin arregalou os olhos. Alviss ficou em silêncio, engolindo a seco, e seu semblante adquiriu uma abrupta seriedade, pela primeira vez não demonstrando satisfação ao lado de Thrud: era Svafrlami que chegava, com uma expressão tranquila. “Seja bem-vindo, Svafrlami. Eu sou Thrud, valquíria a serviço de sua majestade, Odin, o rei dos deuses.”, e fez uma pausa, antes de tornar a falar: “Todos vocês que estão aqui terão muito o que conversar. Mas adianto que as rusgas de Midgard deverão ficar para trás. Há uma causa maior pela qual lutar, que é a preparação para o Ragnarok, o confronto decisivo contra os jotuns e as forças de Hel e Loki. Não há tempo para desavenças pessoais, que precisam ser resolvidas o quanto antes.” “Mas esse sujeito não pode ser digno de entrar no Valhala! Ele escravizou nosso povo!”, bradou Durin. “Vocês perderam a guerra. E o destino do perdedor é sempre a morte ou a escravidão. Ele apenas jogou o jogo que todos os reis de Midgard jogam, e soube até um certo ponto tirar proveito das peças de seu tabuleiro. Só não contava com o ressentimento de vocês e a maldição que deixaram em seu plano de existência...”

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“Uma outra valquíria falou comigo há pouco, assim que cheguei, mas afirmou que não iria me levar ao Valhala porque eu deveria ir junto com vocês. Ela me explicou brevemente sobre a maldição da Tirfing. Mas que fique claro que não tenho nenhuma mágoa de vocês...Aquela espada me proporcionou bons momentos. De qualquer forma, eu já não via muito sentido mais nas batalhas em Midgard. Estava na hora de vir para Asgard.”, e o rei de Gandarki esboçou um sorriso que pareceu cínico para o príncipe e o rei de Lofar. “O que está dizendo?? Ficou louco por ter sido amaldiçoado e derrotado! Lembre-se que não nos venceu com suas próprias forças, e sim com a ajuda daquele mago e seu dragão!”, bradou Dvalin. “Você pode não guardar mágoas, mas nos desonrou e isso nunca esqueceremos, Odin queira ou não!” “Thrud tem razão.”, Alviss interveio. “Acalme-se, Dvalin. Claro que ele nunca será nosso amigo, não precisamos cultivar com ele uma relação próxima, porém não há mais necessidade de ódio. Nossa vingança já foi cumprida. Gandarki caiu nas mãos dos bárbaros, consegui ver isso assim que deixei o corpo, pouco antes de chegar aqui.” “Bem que percebi, no final da minha vida, que todas as glórias mundanas são passageiras, e que refleti que mesmo os impérios aparentemente mais sólidos estão destinados a ruir.”, Svafrlami comentou. “O verdadeiro combate se dá contra os inimigos dos deuses e da humanidade.” “Acho que não há problema em considerá-lo como um companheiro de armas, um outro entre os tantos soldados de Odin, assim como nós seremos.”, Alviss prosseguiu, meio que ignorando o comentário do outro. “Nunca poderei admiti-lo como meu companheiro de armas! Como vou confiar em alguém como ele, que certamente poderá me golpear pelas costas na primeira oportunidade?”, inquiriu

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Durin. “Mas era você quem se sentia tentado a atingi-lo por trás com seu machado.”, Thrud disse de repente palavras que calaram o anão. “Como ela sabe???”, indagou-se, e a resposta veio em sua mente: “Sei tudo sobre vocês, einherjar. E também posso ler seus pensamentos. Mas não se aflija, Durin: não faço isso por qualquer motivo e nem a qualquer hora.”, e o príncipe de Lofar não diria mais sequer uma palavra até chegar ao Valhala. “Seja como for, entendo que tivessem raiva ou mesmo ódio de mim...Que quisessem me ver morto experimentando o pior sofrimento. Mas a morte não é o fim. E, assim como a vida, ressentimentos antigos seguem adiante. Não vou lhes pedir desculpas por nada, até porque isso humilharia vocês, e não é meu objetivo humilhá-los. O dominado nem sempre se revolta contra o dominador, muitas vezes até o admira, o problema é que vocês estavam habituados a serem como eu: dominadores. Éramos iguais, e agora voltaremos a ser.” “Nunca seremos iguais a alguém como você.”, Dvalin ainda não se conformara. “Svafrlami é um devoto de Odin, e um guerreiro notável, que caiu com valentia no campo de batalha, assim como vocês. Portanto, é digno do Valhala. Nenhum de vocês é igual, mas todos são merecedores do destino que têm adiante.”, Thrud voltou a intervir. “Gostaria que me tirasse só uma dúvida, valquíria.”, o rei de Gandarki pediu a palavra. “Minha mentora, Eikintjasna, se encontra em Asgard?” “Sim, está no palácio de Freya. Poderá vê-la quando chegar a hora.” “Obrigado pela resposta. Não tenho pressa. Saber disso já é o suficiente, já me alivia” “Por enquanto, não irão se ver. E tanto você como ela terão

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novos mestres.”, pouco depois, no voo rumo ao Valhala, nas asas de ventos com chispas de eletricidade de Thrud, a valquíria travou com Alviss um diálogo mental que não era nada do que ele teria esperado com sua amada, dizendo respeito à Tirfing... Chegaria ao palácio dos einherjar um tanto sisudo e introspectivo, enquanto Dvalin não via a hora de, como diziam as tradições, lutar por dias e dias contra Svafrlami, massacrando-o por mais que ele fosse ressuscitar, sem medo e nem piedade, até o fim das eras.

Argantyr

I

Novo soberano de Gandarki, Arngrim descobriu, confirmando pela experiência o que vinha intuindo, que a Tirfing o ajudava a controlar seu estado berserk, permitindo que se tornasse de fato o rei, sem correr o risco de sofrer um ataque dos espíritos da fúria e matar todos os seus ministros. Aprendeu sozinho, observando a si mesmo e treinando, que não apenas a espada podia bloquear o estado de insanidade como permitir seu acesso à força de berserk sem que precisasse abdicar de sua consciência. Uma arma mágica perfeita! Confidenciou sua descoberta aos seus filhos; não poderia esperar que, por mais frio e violento que fosse Argantyr, que este, com o passar dos anos já com uma espessa barba ruiva, pudesse cobiçar a espada e seu novo trono. Viúvo, pois sua esposa falecera pouco depois de dar a luz a Hjovard, o caçula dos três irmãos, não tivera outras mulheres e por isso estava dormindo sozinho no amplo leito real quando o

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primogênito entrou, de madrugada, armado com uma espada afiada sob sua roupa. Os guardas o tinham deixado passar sem problemas, afinal era um dos novos príncipes, e alegara querer tratar de assuntos urgentes com seu pai, por mais que o horário fosse inusitado. Não encontrou portanto qualquer resistência. Arngrim caíra em um sono pesado (poderia se dizer que um sono amaldiçoado...) e terminou degolado por seu próprio filho. Argantyr tomou a Tirfing, e com esta impôs seu poder. Os que tentaram combatê-lo foram massacrados com facilidade. E quanto aos seus irmãos? Nisso entram outros detalhes: Wald, o do meio, ficou ao lado do parricida desde o início; não se importava nem um pouco com os caminhos de sua tribo e de Gandarki; não era mais um berserk, e sim algo muito pior. Sedento pela pura força, abdicara de sua humanidade pelo que julgava ser um poder individual além de qualquer perspectiva humana, distante dos mundos da política, próximo à natureza. Antes de saber sobre as virtudes da Tirfing, entrara na floresta à noite e, seguindo os procedimentos de um livro de magia que lera (tendo aprendido a ler, como alguns outros membros da tribo, em Gandarki, e ficado fascinado com o mundo dos livros a ponto de permanecer trancado por horas na biblioteca real), espalhara numa disposição circular pedaços de animais que matara, principalmente partes internas, vísceras, e chamara por Hel a fim de realizar um acordo. Seu objetivo era manter a consciência quando manifestasse seu espírito de berserk, algo do qual estranhamente tivera uma vez um vislumbre, por alguns segundos antes de voltar a si por completo, e fora um orgasmo incomparável, sem pensamento, que envolvera todas as partes de seu corpo. Queria viver aquela sensação de forma permanente. Ao chamar pela deusa dos mortos, oferecendo-lhe seus

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serviços e sua lealdade após seu desencarne em troca do que desejava, aparecera-lhe um emissário encapuçado sem rosto, num traje que se confundia com as trevas. Dissera-lhe: “Nossa rainha pode lhe dar muito mais. Pode torná-lo um ser muito superior a um berserk, harmonizado à onipresença da morte que paira na natureza. Sem a morte, não haveria vida, pois todos os seres precisam se alimentar para sobreviver. E para se alimentar, é necessário matar...”, Wald aceitara o acordo sem demora, a grande dualidade em seu ser expressada de um lado por sua inteligência e seu espírito curioso, e do outro por sua ansiedade animalesca. Criaturas rastejantes, ofídicas, mas que não eram exatamente cobras, de peles negras frias e úmidas, saíram das matas para devorar os pedaços de animais ali postos; e quando se foram, assim como o enviado da deusa dos mortos desaparecera, Wald começou a se transformar, crescendo em altura, dentes, garras, pêlos e músculos, transformando-se numa aberração de mente astuciosa e estômago faminto que tinha aspectos de urso, lobo, serpente, falcão e felino; um homem-besta assustador, dez vezes mais forte e perigoso do que qualquer berserk. Ficara imensamente feliz ao perceber a ampliação de seus sentidos, com um êxtase ferino a perpassar sua pele, sua vista amplificada ao ponto de enxergar os menores insetos do ambiente, sua audição e seu olfato apurados o bastante para escutar as batidas do coração de um veado que se encontrava distante alguns quilômetros, e sentir seu cheiro; correu para capturá-lo e devorá-lo, seu paladar renovado e selvagem lhe dando com aquela carne crua um prazer maior do que o que qualquer refeição anterior lhe proporcionara. E como era ágil e veloz! Alcançara o cervo sem a menor dificuldade, livrando-se de todos os obstáculos pelo caminho com seus incríveis reflexos e um corpo capaz de uma variedade de movimentos

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que nenhum animal lograria, afinal era a soma de diferentes espécies. O enviado de Hel ainda voltaria para lhe explicar que podia mudar de condição sempre que desejasse, e controlando transformações parciais, que fariam os outros pensarem que não passava de um berserk como o resto. Isso se cumpriu, nunca tendo virado o monstro na frente de qualquer conhecido (no campo de batalha, 10% de sua força era o suficiente, e nesse nível não se diferenciava de seus companheiros), fazendo isso sozinho na floresta, os que haviam visto aquela criatura não tendo sobrevivido para contar a história. No dia a dia, passava-se por um guerreiro de belo aspecto, pelo qual inúmeras mulheres suspiravam, e não só de longe; tinha diversas amantes, sem se apegar a nenhuma e fazendo com que todas se apegassem a ele, sua virilidade contendo doses de violência que as fascinava. Ao saber das virtudes da Tirfing, isso não lhe fizera a menor diferença, só considerara o pai temerário por revelar a verdade a Argantyr, do qual conhecia bastante bem a natureza, que admirava e respeitava; nunca condenaria o irmão por seu ato: além de se identificar em vários aspectos muito mais com Argantyr do que com o pai, julgara que Arngrim merecera o castigo de ser assassinado; um monarca não devia confiar em ninguém, precisava estar em guarda até contra os que possuíssem seu próprio sangue. Não cultivava a menor intenção de se tornar rei; no entanto, julgava conhecer as leis da política pelas leituras que realizara. Wald era portanto um notável aliado para Argantyr, ao passo que Hjovard ia além: sem as distrações que entretinham Wald (os livros e a floresta), passava a maior parte do seu tempo ao lado do primogênito, que via como um grande modelo a seguir, um herói lendário cuja existência tinha a oportunidade de

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testemunhar, comparável aos grandes guerreiros das canções que amava ouvir enquanto degustava uma carne bem preparada. “Transcorrerão anos, séculos, milênios; e os guerreiros marcharão do Valhala rumo à batalha do fim dos dias. Os que são inimigos podem não se suportar, mas cumprirão sua missão pela glória de Asgard e por dias enfim de harmonia, o mundo livre dos demônios, dos gigantes e dos espectros; um mundo livre do medo e da tirania do gelo e do fogo. Desaguarão sem encontrar nada que os contraste das quinhentas e quarenta portas de sua morada, oitocentos através de cada uma; no interior do palácio, os escudos dourados que formam o teto assumirão os rostos de cada herói, que ficarão portanto ali eternizados, mesmo que não possam mais retornar. Uma grande questão talvez fique a pairar: como viver em paz com os rivais, uma vez que tudo estiver terminado? A bem da verdade, não existirá a possibilidade de tédio e nem de fecho absoluto: se não ocorrer a morte heroica, e o consequente olvidar em um novo nascimento, não haverá outra opção a não ser continuar lutando e lutando, dentro dos limites do Valhala, onde nenhuma morte é possível!”, enquanto escutava o bardo cantar, deixava os pedaços de carne de rena se enroscarem em seus dentes, que dificilmente limpava, no máximo uma vez por mês; se Wald era um bruto por bizarro interesse, fascínio e transformação, Hjovard era um bruto por natureza, Argantyr podendo ser comparado a um leão, ao passo que seu caçula era mais um lobo feroz que seguia lealmente o líder do bando, mesmo que este tivesse matado o líder anterior. “Então Gangleri disse: 'Deve haver uma grande multidão no Valhala. Do meu ponto de vista, Odin é um comandante excepcional para conseguir manter sob controle um exército tão imenso. O que fazem os einherjar para se divertirem

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quando não estão bebendo?' Harr respondeu: “Todos os dias, depois que se vestem, colocam suas armaduras, empunham suas armas, combatem e põem um ao outro no chão. Este é seu jogo. Chegando a hora do desjejum matinal, sentam-se para comer e beber, como é dito. Todos os einherjar matam um ao outro no campo de Odin todos os dias!”, outra canção de mesma temática; e Hjovard pensava em como seria quando se tornasse um einherjar e realizasse as palavras do bardo...Em como devia ser grandioso seguir Odin e lutar por ele. “É triste ver daqui que estes são os meus filhos, que não os conhecia de verdade enquanto estive em Midgard. Só posso me lamentar profundamente. Cometi um grande erro ao confiar neles, mas se um pai não puder confiar nos próprios filhos, em quem poderá confiar?”, por falar nos einherjar, Arngrim, do outro lado, em um amplo salão negro translúcido, acompanhava no globo erguido ao centro, uma esfera luminosa de cristal azul, as ações de seus filhos após seu assassinato, além de ter ficado a par do pacto de Wald, a um certo ponto resolvendo cobrir o objeto revelador com a capa antes em suas costas para não ver mais nada. “Já chega. Já basta. É o suficiente.”, a bola de cristal continuou emitindo uma certa claridade, mesmo depois de encoberta, iluminando discretamente a valquíria Randgrid, uma donzela alta e esbelta, de cabelos castanhos compridos com uma franja sobre a fronte, os olhos de diminutas pupilas negras, que só cresciam quando estava furiosa, aparentemente muito calma, os lábios finos, a boca pequena e de pronúncia rápida: “Odin quis que visse a verdade para que daqui a alguns anos não ficasse nos perguntando 'por que eles não aparecem no Valhala', ou algo do tipo. Já está bem claro, Arngrim, que da forma como agem são indignos de pisar em Asgard. Serão tragados pela vontade de

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Hel quando for a hora.”, tinha um rosto comprido e sua armadura possuía partes negras e marrons, seus calçados metálicos pretos podendo manifestar espigões afiados nos momentos de luta. “Sou grato a Odin. Sempre imaginei que os deuses fossem assim: duros, porém sinceros. Lamento se já causei problemas e preocupações antes mesmo de chegar ao Valhala.” “Não se preocupe. Será muito bem recebido, e treinado para manter a lucidez no estado de berserk. A grande diferença entre os berserkers de Midgard e os treinados em Asgard é que os nossos são capazes de preservar a consciência e não correm o risco de atingirem seus próprios aliados, isso sem o auxílio de qualquer instrumento, como aquela espada amaldiçoada.” “Maldito o dia em que toquei aquela espada.” “Não amaldiçoe o seu destino nunca, pois, a despeito da Tirfing, Odin o escolheu. Esta é a maior glória que um homem pode conhecer, a maior dádiva que um guerreiro pode receber, não havendo maldição capaz de ofuscar esse brilho. Seja grato ao seu destino. Homens como você não morrem realmente em Midgard: passam de uma condição inferior para uma superior.” “Tem toda a razão, donzela. Não vou me lamentar mais.”, e assim Randgrid o levou para Asgard, após emanar de suas mãos uma intensa luz prateada de faíscas beges; aquela valquíria dava a impressão de ser extremamente serena e compreensiva, agradando-lhe conversar com os animais, da linguagem dos quais era profunda conhecedora. Desligou-se por algum tempo dos filhos de Arngrim, mas em uma de suas passagens por Midgard, enquanto observava as flores de uma floresta em Gamla, um pássaro pousou em seu ombro direito e ela logo sentiu que viera não para fazê-la escutar um canto gratuito, e sim para lhe passar novas informações, tendo em vista que o sensível animal se apavorara

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com os pensamentos e as emoções de um indivíduo entre os líderes do exército que recém-chegara ao reino: o terrível Wald. Cruéis e impiedosos na guerra, os irmãos haviam expandido seus domínios para além de Gandarki, estabelecendo um belicoso império, e ultrapassado as fronteiras de Gamla. Tinham se passado vários anos desde que o rei Agnar partira e agora o trono era ocupado pela rainha Berta e por seu segundo consorte, o conde Gherdor, um homem de natureza bastante astuciosa, seu caráter com alguns aspectos discutíveis, mas que conseguira manter o reino em paz e estável internamente desde que se unira de forma oficial à viúva. Tomara algumas medidas para agradar os camponeses, insatisfeitos durante o período ausente do reinado de Agnar, reduzindo as taxas locais e promovendo a instalação de acampamentos de cavaleiros para proteger as vilas, estas com alguma frequência saqueadas por bandoleiros e bárbaros nômades; no entanto, estes grupos de vigia de nada serviram ante o avanço das tropas de Gandarki, brutais no início de seu ataque. A salvação de Gamla talvez estivesse em Ingeborg, a jovem filha do casal real, que recém-completara dezesseis anos: loira como seus pais, de cabelos encaracolados e intensos olhos azuis, era mais bela do que sua mãe fora quando jovem; e quando os irmãos chegaram com seu exército às portas de Upsala, Gherdor tomou uma decisão que não foi nem um pouco do agrado de sua esposa: “Você não pode fazer isso. Não é justo, não é correto com ela! Como pode pensar em usá-la dessa forma??”, tornara-se uma mulher de traços melancólicos, amargos os sulcos em seu rosto, insatisfeita com os rumos que seu segundo matrimônio tomara; ao conhecer Gherdor mais a fundo, passara a sentir saudades de Agnar. No presente, seus únicos vapores de amor estavam reservados à sua filha. “O que você propõe que eu faça? Não há mais como salvar o

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reino por uma via direta e honrada. Fomos derrotados em todas as batalhas no interior. O que podemos fazer? Fugir para as ilhas? Os mensageiros que tentei enviar para Samso foram todos assassinados no caminho. Ao que parece, cercaram nossas estradas e nossas vias de escape para o mar. Seremos todos pegos e degolados se tentarmos escapar. Eles têm berserkers! Se não chegarmos a um acordo, vão arrasar a cidade e tomar o castelo. Claro que nenhum deles vai querer violentar você, mas vão violentar a Ingeborg! O que prefere? Que a sua filhinha seja estuprada, ou que entremos em acordo, ela se case civilizadamente com um desses bárbaros e salve o reino?” “Civilizadamente? Com bárbaros? Você entra em contradição o tempo todo, e não fale como se fosse só minha filha, ela é sua também, e você deveria ter carinho e se sentir responsável por ela.” “Tanto me sinto responsável que pretendo salvá-la de ser desonrada. E claro que tenho carinho por ela, mas o carinho nessas horas fica em segundo plano.” “Agnar teria tentado vencê-los a qualquer custo; elaboraria uma estratégia se têm guerreiros tão fortes assim.” “Não é hora de falar em defuntos!”, Gherdor saiu fechando com força a porta atrás de si; e em seguida entrou no quarto de Ingeborg sem qualquer cerimônia e primeiro puxou com violência a filha pelo pulso delicado; depois, diante da resistência da garota, deu-lhe alguns tapas que a fizeram ceder. “Pra onde o senhor está me levando?? E por que está agindo assim comigo??”, estava acostumada à grosseria verbal de seu pai, mas não à violência física. “Você não precisa saber agora.”, seu cenho estava turvo, seu bigode parecia em chamas como seus olhos; e, sentindo uma profunda hostilidade, o pai sem encará-la, ela resolveu

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silenciar. Gherdor a levou em seu cavalo como uma mercadoria para oferecer aos invasores e assim aplacá-los. Quando os dois exércitos ficaram frente à frente, não houve combate: logo na aproximação dos líderes, Hjovard se apaixonou perdidamente pela princesa. Gherdor propôs então o acordo: Hjovard poderia tê-la desde que respeitassem a soberania de Gamla, tremendo por dentro que os invasores percebessem seu medo e, convencidos da inferioridade do exército do reino, resolvessem ter tanto Ingeborg como Upsala, sem dar importância a formalidades e sem possibilidade de diplomacia. Procurou dissimular bem, mostrar-se firme, altivo e corajoso. Argantyr, percebendo a insegurança em suas rédeas, resolveu se divertir um pouco: “Se é assim, vamos fazer as coisas direito. Quero um casamento e tanto para o meu irmão! Ele tem esse direito! Vamos selar a paz, está bem. Mas quero a permissão formal de sua rainha para que ele se case com a moça. A benção da mãe é sempre fundamental!”, Ingeborg sentia nojo de Hjovard, mas ficou apavorada sobretudo com a malícia que irradiava dos olhos de Argantyr, uma crueldade que nunca vira semelhante, “perto dele o meu pai é um homem santo”; Gherdor refletindo: “Parece até que ele adivinhou que eu trouxe a menina à força e quer zombar de mim, da minha autoridade! Como se eu fosse inferior à Berta, como se ela fosse a rainha verdadeira e eu apenas um conde usurpador. Ele deve saber da história toda...”, de fato, Argantyr enxergara as marcas da violência do pai no braço delgado da filha, e tecera suas deduções; julgou Gherdor um covarde, e pretendia humilhá-lo além do que seria possível no campo de batalha. Wald, observando a situação, se limitava a sutilmente sorrir com escárnio, quase que sem se fazer notar. Ao chegar à corte, Argantyr se apresentou e surpreendeu Berta e chocou Gherdor ao propor que, depois do casamento entre

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Hjovard e Ingeborg, os reinos poderiam se fundir e ela poderia tê-lo como seu novo consorte. Gamla não precisaria se preocupar em se tornar uma província subalterna: pelo contrário, subjugaria Gandarki; Upsala seria a capital do novo império. Houve burburinho, e a rainha ficou por segundos em silêncio, estes que pareceram uma eternidade para Gherdor, que não conseguiu impor objeções, até seus gaguejos sendo fracos, migalhas de voz saindo. Berta então pediu um tempo para pensar. “O que você está dizendo? Não pode fazer isso comigo! Sou seu marido! Como pode cogitar pensar numa possibilidade dessas???”, nisso ele explodiu, e a rainha de Gamla respondeu não com palavras, mas com um profundo olhar de desprezo e ressentimento, diante de todos na corte; claro que não perdoara e jamais perdoaria o que seu marido fizera com Ingeborg. No entanto, toda a raiva que exalava se devia exclusivamente a isso? “Ele é um bárbaro! Não pode ser o novo rei de Gamla!”, eis a deixa que Argantyr aguardara: “Se sou um bárbaro para você, meu irmão também é. E está oferecendo a sua filha, mas não aceita que eu possa desejar a sua mulher.”, Argantyr falava surpreendentemente bem o idioma de Gamla, que estudara um pouco antes de invadir aquelas terras. “O nosso casamento pode ser anulado. Na condição em que Agnar me deixou, como sua viúva e rainha legítima, posso depor um consorte que mostre uma conduta imprópria, indigna de um rei, e substituí-lo por alguém mais honesto e de pulso mais firme.”, Berta disse friamente, para o espanto inclusive de Ingeborg, que nunca vira a mãe daquela forma e, apesar do que seu pai lhe fizera, ainda era seu pai. Argantyr soltou uma gargalhada e falou, com os olhos fixos no furioso porém apavorado e humilhado Gherdor: “Era só uma brincadeira! Estava querendo testar você! E pelo visto a sua esposa foi mais

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inteligente do que você...E entendeu o meu teste. Você nos considera um bando de bárbaros! E despreza a sua própria filha, ou não a ofereceria para nós por puro medo de conquistarmos este país à base da força. Não é digno dos súditos que tem!”, o filho primogênito de Arngrim desembainhou a Tirfing, que cada vez mais o tornava semelhante a um demônio, com intuições afiadas e poderes sobre-humanos, a maldição da espada afinada à terrível aura do guerreiro; nenhum soldado defenderia Gherdor naquele instante, pois também se sentiam humilhados, consideraram que os subestimara, que em nenhum momento acreditara que poderiam vencer o exército invasor, e o teriam deixado morrer, para só depois enfrentarem Argantyr, se Ingeborg não tivesse se interposto para salvá-lo; não poderia permitir que aquele homem maligno, demoníaco, assassinasse seu pai: “Parem com isso! Isso não é realmente necessário! Por que essa guerra? Por que derramar sangue de outros seres humanos? E o meu pai pode ter cometido vários erros, inclusive comigo, com vocês, os cavaleiros do reino, mas ele ainda é o rei, e continua sendo o meu pai! Mãe, a senhora tem que entender também...Se eu perdoo ele, você também tem que perdoar.”, só que no instante em que sua filha se voltou para sua amargurada esposa, Gherdor pensou que seria um momento de distração de Argantyr, acreditou que o líder invasor baixara a guarda, e empurrou Ingeborg e atacou: o que não podia imaginar era que o filho de Arngrim estivesse em estado berserk, este totalmente sob seu controle, os reflexos extremamente apurados, tanto que defendeu o golpe do rei de Gamla com facilidade; na sequência, a arma amaldiçoada começou a emanar uma aura obscura que impressionou e assustou todos os membros da corte, e que envolveu e paralisou Gherdor. Tratava-se de uma irradiação sobrenatural que o rei de Gandarki aprendera

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recentemente a manifestar e manipular, e desta vez não enfrentou oposição e nem teve dificuldades para decapitar seu adversário. Ingeborg gritou pelo horror, os cavaleiros de Gamla se perceberam impotentes para reagir, também paralisados por aquela energia sinistra, e Berta começou a passar mal, mas não chegou a desmaiar, segurando-se em seu trono, ouvindo a seguir a voz do inimigo: “Como sou um homem de honra, vou aceitar o tempo que me pediu para pensar. Vossa majestade se tornou viúva novamente, meu teste expirou, e não há mais empecilhos para nossa união. Que fique claro, não a amo e não a desejo, mas os melhores casamentos são aqueles que não contêm envolvidos os sentimentos e a paixão, que não passam de turbulências desnecessárias. Voltarei dentro de alguns dias. Enquanto isso, ficarei com meus irmãos e meus homens acampado do lado de fora dos muros desta cidade.”, ao embainhar novamente a Tirfing, a névoa escura que se formara se dissipou e todos foram recuperando aos poucos os movimentos e a saúde; entrementes, ninguém ousaria tentar atacar Argantyr, enquanto este dava as costas à rainha e se retirava junto com sua comitiva: era um monstro, e com monstros apenas um herói seria capaz de lidar. Não havia heróis por ali. Hjovard foi o último a sair, com o olhar fixo na princesa, que se negava a encará-lo, com a cabeça baixa, chorando ao lado do cadáver do pai. Argantyr não só aprendera a tirar proveito do poder da Tirfing como esta vinha mudando por si mesma, tornando-se mais perigosa: as mortes que provocava, os crimes contidos no sangue que ficava em sua lâmina, iam se somando à maldição e, ao contato com a crueldade do rei de Gandarki, produzindo efeitos que não haviam sido previstos pelos anões. Inclusive, afora controlar sua condição como berserk, superara seu pai ao

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começar a perceber que não apenas conseguia induzir ou bloquear o estado de fúria em seus homens como podia dirigi-los parcialmente: embora não se mantivessem conscientes como seu comandante, já era um progresso direcionarem sua ira somente para os inimigos, não mais trocando golpes entre si, e esta certamente era uma das principais razões da crescente superioridade de seu exército sobre as tropas de outros reinos conhecidos.

O castelo de Upsala parecia vazio para Ingeborg sem a presença de seu pai. A despeito de todos os defeitos de Gherdor, não iria superar tão cedo sua perda. Quando a mãe veio em seu quarto para consolá-la, a princípio não recebeu nenhum olhar, e sequer uma palavra, a filha sentada na cama, de costas. Temeu pelos sentimentos e pela reação da garota, que talvez estivesse revoltada contra ela, culpando-a em parte ou totalmente pela morte do pai. Berta iria tentar argumentar. “Ele morreu na minha frente...Bem na minha frente. Aquele monstro! Mas isso não vai ficar impune.”, no entanto, antes que a rainha dissesse algo (acabara de abrir a boca, porém, hesitante, demorara a falar), a princesa se antecipou, lamentando o que ocorrera e sedenta por vingança. Não tinha a menor intenção de tocar no assunto do relacionamento dos seus pais, e se sua mãe agira mal ou não; de todo modo, Berta não poderia ter feito nada para defendê-lo, mesmo que quisesse: Argantyr teria cometido o brutal assassinato de qualquer maneira. “Aquele monstro zombou de nós. Zombou da nossa família e de Gamla!”, seu pai errara feio ao oferecê-la a um bárbaro como Hjovard; e sua mãe talvez tivesse aproveitado a situação, havendo algo a mais por trás de seu ressentimento, não só o que Gherdor fizera à jovem, descontando todas as frustrações do casamento por meio de uma terrível vingança

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justificada por um motivo de certa forma nobre; mas eram seus pais: perdoaria sua mãe por eventuais falhas de caráter, decisões equivocadas ou egoísmo, do mesmo modo que teria perdoado seu pai por tudo, até por oferecê-la a Hjovard, mas jamais perdoaria aquele assassino. “O que poderíamos ter feito? E o que nos resta, a não ser elaborar uma estratégia, um plano sem pontos óbvios? Temos que encarar a realidade, minha filha: pela força não conseguiremos vencer. Argantyr possui uma espada diferente de todas as armas que já vi, que emana alguma espécie de poder mágico. Não podemos encará-lo de frente, e talvez tenhamos que aceitar o que estão nos propondo por enquanto; devemos agir com astúcia, para que consigamos pegá-los desprevenidos depois.”, replicou a rainha de Gamla. “Nós duas não podemos fazer nada, estou ciente disso. Principalmente porque nunca vou me deitar com aquela aberração. Seria pior do que ir para a cama com um urso selvagem. E muito menos a senhora deveria pensar em aceitar os desmandos daquele demônio assassino! Não podemos e não iremos ceder nem um pedrisco das nossas terras para aqueles berserkers. Tenho um plano, um trunfo que não irá permitir que nos rebaixemos.” “No que você está pensando, Ingeborg?” “A senhora se lembra de Hjalmar?” “Hjalmar? Esse nome não me é estranho...”, coçou a fronte. “Mas não consigo me lembrar de quem se trata.” “É um herói verdadeiro, o filho do barão de Samso. Se você o revisse, com certeza se lembraria. É um homem especial, que chama a atenção de todos por onde passa. Já frequentou algumas das nossas festas, e foi numa delas que eu o conheci. Cheguei a dançar com ele por mais de uma vez...”, falando em dança, Berta acabou se lembrando melancolicamente de como

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conhecera Agnar; lutou para afastar a recordação, em seguida vendo em sua mente, substituindo a si mesma e ao falecido marido, a filha e Hjalmar bailando ao som da música executada por três bardos. “Acho que agora estou conseguindo me lembrar. Não me diga que...” “Sim, mamãe. Eu me apaixonei por ele. E estou certa que ele também não me esqueceu. Hjalmar viria em breve para fazer o pedido de noivado ao papai.” “O filho do barão de Samso!”, após alguns segundos de silêncio, Berta de repente exclamou. “As mensagens do seu pai sobre a guerra não chegaram a eles, os homens de Argantyr mataram os nossos mensageiros, e por isso nenhum soldado de Samso veio defender Upsala. Agora estou me lembrando sim, cada vez melhor: Hjalmar é realmente famoso por vários feitos...Parece que uma faísca de esperança está fazendo a minha memória sobre ele, prejudicada por todas as tribulações, começar a voltar. Acho que ouvi dizer que Hjalmar até já derrotou um jotun, mas nisso não sei se acredito.” “Exageros à parte, ele virá nos salvar. Desta vez a mensagem que iremos enviar chegará. Podemos contar com Hjalmar.”, quando Argantyr retornou à corte, Hjovard ao seu lado, Berta disse que a princesa na verdade era noiva, nomeando o jovem herdeiro do barão da ilha de Samso. “Espero que Hjalmar realmente venha nos defender. Se for o que dizem dele, se faz jus à sua fama, virá e protegerá a minha filha. Acho que não vai se aborrecer por ter sido declarado noivo da princesa sem estar presente...Tomara que Ingeborg não tenha mentido, sido iludida ou se iludido!”, refletiu a rainha. “Então já é noivinha? Não ligo pra isso. Se esse tal de Hjalmar é um homem de verdade, vai aceitar a proposta que

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vou fazer. Como ainda não estão casados, estou livre pra desafiar o noivo ausente.”, disse Hjovard. “O que está planejando, meu irmão? Me parece excitado e ansioso.”, replicou Argantyr. “Vamos enviar uma carta pra esse sujeito, e marcar um duelo pela mão de Ingeborg. Que tal?” “Ótima ideia! Você poderá provar diante da princesa que é o homem mais forte, e que por isso a merece mais do que qualquer nobre acomodado. Vamos em frente.”, o cruel primogênito de Arngrim sorriu, e após conversar com o irmão na velha língua de sua tribo disse à rainha de Gamla o que pretendiam fazer. Berta respondeu: “Pelo que sei, Hjalmar não é um nobre como os outros, não é como os que estão aqui em Upsala. Trata-se de um verdadeiro guerreiro.” “Isso veremos! Duvido muito que se compare ao meu irmão.” “Pode deixar a carta sob minha responsabilidade. Temos muitos mensageiros, e eu me encarregarei pessoalmente de redigi-la e enviá-la.” “Talvez seja mesmo melhor assim. Ainda tenho algumas dificuldades para escrever no seu idioma. Confio na palavra de vossa majestade.” “Pode confiar. Não seria temerária a ponto de tentar enganar o senhor.” “Muito bom que pense assim. Os grandes governantes nunca subestimam os reis das outras nações!” “Só espero que desta vez nossos mensageiros possam retornar sãos e salvos. Têm acontecido alguns acidentes. E sabemos que Hjalmar não é um covarde.” “Vossa majestade é corajosa e ao mesmo tempo sabe medir as palavras...Mas não há com o que se preocupar agora.”, suspendeu qualquer sorriso e cravou um olhar firme nos olhos da rainha, que apesar do medo se segurou, não tremeu,

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provando que era realmente corajosa, e não os desviou nem por um instante, até o inimigo decidir se retirar; de alguma forma, estava começando a provocar em Argantyr algo que não desejava...Cativá-lo? Ainda era cedo para pensar nisso; mas ia se tornando admirável e atraente aos seus olhos. “Ou estamos perdidas, ou salvas. Não haverá meio-termo.”, pensou depois, ao ficar sozinha em seu trono.

Hjalmar era o filho do barão Dietmar de Samso, um dos domínios insulares de Gamla. Famoso por seus longos e lisos cabelos loiros, por seus olhos que espelhavam o mar da ilha e por sua armadura da cor do fogo, aprendera tudo o que sabia com o grande cavaleiro itinerante Halr Emmerich, que chegara à corte do barão quando o único rebento deste tinha apenas sete anos. Apesar de fisicamente pequeno e magro, Emmerich fora e ainda era um guerreiro de primeira linha, um exemplo por seus conhecimentos de esgrima e estratégia militar, por suas virtudes e, o que viria a ser o grande segredo dos dois, um mago de raras qualidades. Já estava numa idade bastante avançada quando se propusera a servir Dietmar como tutor de Hjalmar, em troca de uma estadia pacífica na ilha para o seu fim de vida, aparentemente cansado de viagens, a barba e os poucos cabelos que lhe restavam, em contraste com a espessa cabeleira ruiva que tivera um dia, caracterizados por uma intensa brancura. Rapidamente se tornou um segundo pai para o menino, revelando quando este completou quinze anos uma das visões que um dia tivera a seu respeito: “Não vim para esta ilha por um acaso ou apenas para descansar, por já estar farto de guerras. Vim porque preciso cumprir uma missão que me foi dada pelos deuses: vi você, que considero como meu filho, salvando Gamla de um demônio no futuro. Mas para que esta visão se cumpra, eu não

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posso me desviar! É por isso que vim treiná-lo, a fim de prepará-lo para o confronto com esse monstro!”, descoberta a verdade, o jovem aceitou seu destino; jamais duvidaria da palavra de seu instrutor, e foi assim que além da espada passou a se dedicar às leituras e práticas que lhe foram recomendadas, pois ficou de imediato ciente que não poderia vencer este terrível adversário vindouro sem um mínimo conhecimento mágico. Ao Emmerich adoecer, foi o último a segurar suas mãos antes do cavaleiro e visionário expirar, desejando-lhe uma gloriosa estadia no Valhala. Reteve suas lágrimas com firmeza, e contava vinte e dois anos quando apareceu na ilha um jotun chamado Grim, destes que eventualmente costumam escapar da terra dos gigantes e emergir em Midgard: seria o demônio que Emmerich mencionara? Sua intuição lhe respondeu que não, que o desafio maior ainda estava por vir, mas este primeiro grande confronto serviria para lhe mostrar na prática que precisava estar sempre alerta, e como o perigo real com o qual se veria obrigado a lidar significaria o término da fase de treinamento. Dietmar, desesperado com a presença do jotun, que segundo as descrições obtidas se vestia com trapos marrons, carregava consigo um imenso machado e tinha os cabelos e a barba longos e cinzentos como sua pele, medindo quase cinco metros de estatura, organizou seus vassalos e partiu com um pequeno exército para enfrentá-lo, ainda pensando em preservar o filho. Entrementes, não logrou achar o local onde o cruel monstro se escondia, apesar de seu tamanho parecendo extremamente esperto e habilidoso, surgindo de súbito para dizimar os vilarejos, devorando todos os mantimentos, assassinando os que tentavam enfrentá-lo e rindo da agonia das mulheres, velhos e crianças.

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Hjalmar crescera junto com Orvar, um agregado de seu pai, de origens desconhecidas, alguns diziam que filho de uma escrava do barão que de repente “desaparecera”, o menino surgindo pouco depois; nunca tivera boas relações com a falecida esposa de Dietmar, talvez por esta intuir que era fruto de uma infidelidade do marido, mas os garotos cresceram cultivando uma profunda amizade, e eram como irmãos, relação que se intensificara após a morte da mãe de Hjalmar. Por mais que não sofresse pela partida dela, sofrera pelo amigo, e consolara-o de todo coração. Diante da ameaça de Grim, os dois mergulharam juntos na floresta em busca do gigante. Podia-se dizer que tinham muita coragem, afinal dois homens de Midgard, teoricamente, nunca seriam páreo para um jotun, um membro de uma espécie que costumava se opor aos deuses. “Não devemos ter medo. Eles são fortes, mas não são invulneráveis. E os deuses nunca permitem que os mais poderosos subam ao mundo dos homens. Estou certo que esse tal de Grim está ao nosso alcance.”, Hjalmar disse ao irmão adotivo, que era bem diferente fisicamente falando: a pele morena, os cabelos escuros curtos, ondulados, os olhos da cor de um tronco de carvalho. Já espiritualmente, afinavam-se como ninguém, Orvar só um pouco menos paciente e desconhecendo as relações do amigo com a magia. Contudo, os magos sempre atraem a magia...E acabaram se deparando com um dos peculiares seres da floresta, um pequeno duende loiro, de botas, chapéu e penduricalhos verdes, os olhos proporcionalmente grandes demais se comparados aos de um ser humano. Estava tocando uma espécie de harpa em miniatura. “Veja lá, Hjalmar...Que espécie de criatura é aquela?”, mal chegava aos joelhos de Orvar; o azar para os dois pareceu

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residir justamente no fato de ter olhos enormes, com uma visão apurada o suficiente para enxergar os humanos a fitá-lo atrás das moitas. “A música era maravilhosa. Mas ele parou de tocar e está olhando na nossa direção. Parece que nos viu.”, o duende acabou demonstrando seu medo e decidiu fugir; no entanto, Hjalmar já percebera sua intenção, prendendo-o em uma armadilha: a criaturinha tropeçou abruptamente e não conseguiu mais se levantar, sentindo muita dor, acreditando ter quebrado uma de suas perninhas; a verdade era que, num plano de existência mais sutil, um triângulo de luz formado pela mente do discípulo de Emmerich restringira seus movimentos. A intenção do mago precisava ser forte e constante, a concentração firme, ou o pequeno se daria conta do encanto e escaparia. Não demorou para ambos se aproximarem. “Não tenha medo, amigo. Não queremos machucá-lo, pelo contrário: só tenho elogios a fazer à sua música.” “Os humanos costumam ser assim, primeiro assopram, depois batem! Maldita hora em que me descuidei e fui ficar visível! É que estava tentando atrair um dos meus amigos...” “Que amigo?” “Um anão forjador que mora aqui perto. Preciso conversar com ele urgentemente.” “E por quê?” “Assuntos particulares. Nós duendes temos fama de falar muito, sei disso! Porém não vou denunciar o meu amigo!” “Denunciar com relação ao quê?”, Orvar pareceu desconfiado de algo; e o duende teve muito mais medo dele do que de Hjalmar, que lhe pareceu de perto um bocado inocente e ingênuo. “Já disse que não vou falar nada! Bléh!”, e mostrou a língua ao guerreiro.

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“Mas que sujeitinho mais atrevido!” “Calma, Orvar. Perdendo a paciência, não vamos resolver nada.” “Estou quase certo, não sei por que, que esse duende e o anão de quem ele falou têm alguma coisa a ver com o gigante. Se não falar por bem, vou acabar fazendo ele falar por mal.” “Fique calmo. Vou dar um jeito nisso.”, Hjalmar era realmente ingênuo? Só o duende viu, mas os olhos do guerreiro deram a impressão de pegar fogo, e nessa hora o pequenino ficou apavorado, vendo a si mesmo envolvido pelas chamas, amarrado a uma fogueira; a ilusão foi tão real que fez com que ele soltasse um berro em sua imaginação, ouvindo a seguir a voz do filho de Dietmar em sua mente: “Esse vai ser o seu destino se continuar nos escondendo a verdade. Claro que nós não lhe faremos nenhum mal, mas acha que o jotun irá poupá-lo? Ele irá matar todos os que moram nesta ilha, sem exceções, inclusive seus amigos da floresta.” “Não tenho nada a ver com aquele monstro! Mas o meu amigo tem! Como podiam saber disso?! Vocês são dois bruxos...”, ainda imerso na ilusão, o duende respondeu no entanto não telepaticamente e sim verbalmente, vendo também Grim a assassinar com seu machado cervos e outros animais da floresta e derrubando árvores para fazer fogueiras para assar as carnes. “Não somos nada. É tudo pura intuição...” “O que você fez com ele?”, indagou Orvar. “Apenas um olhar mais firme e empostei a voz da forma adequada, sem perder o controle. Parece que a sua intuição estava mesmo correta, meu amigo.”, respondeu ao irmão adotivo. Em seguida, se voltou novamente para o duende, que regressou de forma repentina ao mundo real, para seu próprio alívio, suando e ofegante: “Qual a relação do seu amigo com

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Grim?” “Hjalmar é mesmo diferente de todos...Só pode estar destinado a ser um herói. Que efeito um simples olhar seu provocou no duende! Se não o conhecesse tão bem, pensaria estar com um seidmadr ao meu lado.”, refletiu Orvar, enquanto o espírito da floresta respondeu: “O gigante chegou aqui sem nenhuma arma. Mas o meu amigo Volundar está forjando machados para ele! Eu já o adverti, disse que fazendo isso está colocando em perigo a vida de todos nós, que seria melhor que fugisse da ilha, ao invés de ajudar o monstro! Mas o que Volundar tem de bom artista da forja tem de covarde! E continua por medo trabalhando para o jotun. Queria falar outra vez com ele, e insistir, incentivá-lo a escapar, além de dizer umas verdades, e por isso comecei a tocar a música preferida dele, mas vocês chegaram e nada do desgraçado!” “Ele não está aqui por acaso?”, inquiriu Hjalmar. “Não, não está! Eu juro! E por favor não o matem! É só um covarde inocente!” “Não vamos matá-lo. Não se preocupe.” “Quem é o covarde aqui?”, uma voz grave e um pouco rouca emergiu dentre as árvores; uma figura atarracada vinha se aproximando. “Volundar!”, o duende exclamou. “Ouvi você falando mal de mim, seu duende maldito, fracote folgado de uma figa...Mas tocou aquela música! Isso já é judiar demais do meu pobre coração.” “Então você é mesmo Volundar?”, indagou Orvar. “Não, sou Odin em pessoa...Claro que sou Volundar!”, o anão tinha beiços grossos, a barba e os cabelos cinzentos compridos e ondulados, a pele escura, muitos músculos e usava um pequeno chapéu metálico circular sobre sua cabeça. “Volundar, para ser justo você me parece corajoso, nem um

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pouco covarde. Por que está trabalhando para o jotun?”, indagou Hjalmar. “Não sou medroso, mas também não sou idiota. Sei que não sou páreo para aquele monstro. Estava é esperando alguém que fosse...”, e encarou o filho de Dietmar fixamente. “Você é.”, decretou antes do seu interlocutor dizer qualquer coisa, após pairar um silêncio tenso; desta vez Hjalmar engoliu a seco. “Venham comigo. Você também, seu duende moleirão!”, que por sua vez se deu conta, com surpresa mas grande satisfação (quando ia reclamar), que estava livre de toda dor e peso e que podia voltar a se mexer: “A minha perninha...A minha perninha está ótima!”, comemorou em felizes murmúrios gaguejantes, dando alguns saltinhos ao se reerguer; mas parou e silenciou diante da expressão séria de Volundar, e olhou com um ar enigmático para Hjalmar, que o libertara, mas que pareceu ignorá-lo. “Será mesmo que podemos confiar nesse anão?”, Orvar questionou, um tanto incomodado com a forma como Volundar lhe respondera no início do encontro. “Podemos sim.”, Hjalmar foi sintético, surpreendendo o amigo ao sequer olhá-lo de volta; agora os olhos do filho do barão de Samso apontavam apenas para o futuro, para seu destino, para o confronto com seu primeiro demônio; Orvar não ousou perguntar ou duvidar de mais nada. “Mas não tem perigo daquele gigante aparecer de repente?”, indagou o duende, que se chamava Nill. “Claro que não, idiota! Ele não sabe onde fica a minha melhor forjaria, que é para onde estou levando vocês. A que ele conhece é uma das piores, com os apetrechos mais velhos!”, adiante, entraram em uma caverna; e foram seguindo, nas aparências um lugar puramente natural, com algumas goteiras no alto que estavam irritando Nill, até o anão tocar uma parede

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obscura, esta se iluminar e uma passagem com uma escadaria descendente se abrir. O duende, após o susto inicial, ficou boquiaberto. “Por aqui. E não tenha medo, pequeno imbecil. A passagem vai se fechar quando passarmos. Se eu fosse um covarde como você, seu mentiroso de uma figa, dizia que eu sou, poderia ficar aqui escondido até o Ragnarok! Nem Loki e nem Surt iriam me achar aqui!”, na visão de Hjalmar, o mau humor de Volundar paradoxalmente beirava o bom humor; o guerreiro sorriu, e desceram. Lá embaixo, o espaço era surpreendentemente amplo, embora escuro, apenas duas tochas tímidas, em cantos opostos, para iluminar o ambiente; isso também porque o forno estava apagado. Viam-se vários instrumentos pendurados, entre os quais tenazes e martelos, próximos uma bigorna e recipientes contendo líquidos para arrefecimento. Contudo, o que chamou mais a atenção de Hjalmar foi uma porta de ferro que viu ao fundo, não se surpreendendo tanto quando o gnomo o chamou: “Agora você siga comigo. Tenho algo a lhe mostrar reservadamente naquele lugar.”, apontou para a porta. “Vocês outros esperem aqui.” “Por que não podemos ir junto?”, questionou Orvar, sem ocultar seu aborrecimento. “Isso é verdade! Essa descida aqui, apesar de meio assustadora, já me deu um bom material pra uma nova canção! Mas ainda não é o suficiente! Você não vai ser cruel comigo, Volundar, e me impedir de completar a história que eu estava criando...Preciso ver o que existe além daquela porta!”, Nill protestou. “Use a sua imaginação.”, foi seco com o duende, que por pouco não mordeu a língua. “Quanto a você, não está pronto para entrar lá.”, impôs palavras e um olhar carregados de severidade contra o guerreiro, que no entanto não parecia

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disposto a se render: “Acha que sou um qualquer? Se duvida do meu potencial e da minha força, por que não experimenta o fio da minha espada, anão grosseiro?” “Falando dessa forma, só consegue deixar cada vez mais clara, mais óbvia, a sua imaturidade.” “Orvar, não é o momento de discutir.”, Hjalmar interveio, segurando o braço do amigo quando este ia desembainhar sua espada. “Temos um problema muito maior pela frente, que é o gigante Grim. Se ficarmos aqui brigando, não iremos a lugar nenhum. Se por algum motivo Volundar simpatizou comigo, temos que usar isso a nosso favor e não contra nós.” “Não sabemos ainda se ele é mesmo um aliado ou se está nos conduzindo a uma armadilha. O duende teria sido um chamariz; não devemos nos deixar enganar pelo tamanho de certos seres, que podem ser profundamente ardilosos e traiçoeiros.”, objetou Orvar. “Ei! Se é assim, vocês humanos são o quê? Um bando de loucos maníacos por guerras? Eu até estava simpatizando com você, mas agora...”, Nill reclamou e fez uma careta de desagrado. “Claro! Na sala para onde estou levando o seu amigo, cabem não um mas dois jotuns!”, Volundar cruzou os braços e até soltou uma breve risada sarcástica. “Deixe de ser infantil, rapaz!” “É o bastante. Estou indo com você.”, e Hjalmar se colocou ao lado do gnomo, a despeito da expressão aborrecida de Orvar, que porém não iria dizer ou fazer mais nada em contrário. Nill deu as costas a todos e foi se sentar em uma cadeira à parte, onde se pôs a cantarolar baixinho. “Tomou a decisão correta.”, na salinha onde entraram, onde mal havia espaço para os dois, nenhum adorno, apenas uma espada prateada encravada na parede; sua empunhadura

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continha inúmeras inscrições e o desenho de um dragão, seu pomo bipartido entre duas pedras ovais, uma vermelha e a outra verde, não muito brilhantes. “Assim que arrancar esta espada da parede, ela será sua. E você conseguirá vencer o gigante, pois é uma arma que não só multiplica sua força física como sua força espiritual. O nome dela é Naglering, e se alguém que não souber lidar com forças mágicas tentar utilizá-la, será reduzido a cinzas. É por isso que trouxe você aqui, porque desde o primeiro instante em que o vi percebi o seu potencial e que possui a carga de treinamento adequada.” “Como essa arma foi feita?” “Por meio dos elementos que extraí de um meteorito incandescente que vi cair há muitos anos e que recolhi. O meteorito era tão quente, mas tão quente, que precisei espalhar sobre ele uma das minhas poções que apaga qualquer fogo para conseguir trazê-lo aqui. Só que, ao contrário do que pensei, o calor dele não se extinguiu em definitivo, apenas por algumas horas, logo voltando a incandescer terrivelmente. Me dei conta que estava diante de uma matéria magnífica, porém extremamente difícil de lidar. Uma vez pronta a espada, ela manteve as mesmas propriedades do meteorito do qual foi feita, sua lâmina podendo alcançar temperaturas assustadoras sem derreter. Enquanto está na parede, seu fogo está selado. Mas ao retirá-la, o guerreiro deve também ser um mago, porque o fogo então será liberado e sua mente deverá determinar sua intensidade. A sua intenção deve ser firme, não pode apresentar desvios. Alguns homens fortes que souberam sobre a Naglering já conseguiram arrancá-la, mas como não eram magos foram destruídos. Eu os deixei ir em frente para lhes ensinar que força não é tudo. Tolos ambiciosos! Devem estar se lamentando no reino de Hel, mas agora é tarde demais! Cada um é diretamente responsável pelo que faz e pelo que lhe

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ocorre! Nunca interfiro na estupidez alheia.” “E por que não usa a espada? Por que não tenta acabar com Grim?” “Já não lhe disse que não sou páreo para ele? Mesmo com a Naglering, ainda não teria força suficiente para vencê-lo sozinho. Sei medir um adversário. Já você é diferente...Devo salientar que, na verdade, qualquer mago pode utilizar a Naglering, mas não será um mago qualquer que extrairá dela o máximo de seu potencial.” “Fico lisonjeado por depositar tanta confiança em mim.” “Não fique. Porque para ter a espada, antes terá que me matar.” “O que está dizendo, senhor Volundar?”, após alguns segundos de silêncio em choque, Hjalmar indagou. “É isso mesmo! Terá que cortar a minha cabeça antes!” “Se os homens fortes que vieram aqui antes não fizeram isso, por que eu deveria?” “Porque eu sabia que fracassariam. Já você está destinado a ser o dono da Naglering, que só aceita os que têm espíritos inabaláveis, que não se deixam levar pelas emoções e pela compaixão barata.” “Isso não é possível...Não pode ser verdade. Tudo parecia estar tão bem encaminhado...”, passou as mãos pelo rosto e pelos cabelos e abaixou a cabeça, sem mais conseguir encarar o anão, que por sua vez abriu um largo e surpreendente sorriso. Após algum tempo de reflexão silenciosa, que o gnomo pareceu respeitar, o guerreiro tornou a olhá-lo de frente e deu sua resposta, com uma expressão claramente entristecida: “Não posso fazer isso. Não posso matar o senhor. Sinto muito, mas não estou preparado. Não sou melhor do que Orvar, ou do que os outros homens que já estiveram aqui. Tentarei vencer Grim de outra maneira. De qualquer forma, obrigado...”

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“Meus parabéns, você foi aprovado pela Naglering! Desta vez não me enganei!”, tais palavras deixaram perplexo Hjalmar, que já dera as costas para Volundar e se encaminhava melancolicamente para a saída da salinha. Parou. “É a segunda vez que aplico esse teste. Da primeira vez, tinha acreditado encontrar um grande mago e ele aceitou tentar me matar. Mas coloquei um segundo selo mágico na Naglering, que desaparecerá quando ela for sua, que reduz a cinzas todo aquele que tentar me agredir neste lugar.” “O senhor é mesmo incrível.”, Hjalmar demorou a replicar, mas em seguida se voltou novamente na direção do anão, se aproximou, desembainhou sua espada e aproximou sua lâmina do pescoço de Volundar, porém sem cultivar em nenhum momento uma postura ameaçadora, assim como o gnomo se mantinha tranquilo; nisso jogou a arma no chão. “É assim que se faz. Encare seus demônios internos e deixe para trás seu passado.”, quando se dirigiu para a Naglering e a puxou, não foi difícil retirá-la; as dificuldades começaram na sequência, após um reluzir discreto passar pela espada, veias e artérias de fogo se sobrepondo aos vasos sanguíneos naturais do guerreiro, que não poderia mais soltar a empunhadura mesmo que quisesse; de toda maneira não queria, e o calor abrasivo não se limitou ao interno, sentindo queimar tanto seus órgãos como sua pele e seus cabelos. Orvar já estava com uma expressão aflita, e reclamando sozinho por não poder entrar, observado de sobrolho pelo duende; quando ouviu o amigo gritar, era de certo modo a oportunidade sórdida que aguardara. “O que será que aquele anão está fazendo com Hjalmar? Bem que eu estava certo em não confiar!”, partiu ferozmente na atitude que acreditava ser em socorro de seu irmão de espírito, repelido entretanto por um fortíssimo vento faiscante, que o atirou contra a parede oposta, derrubando os instrumentos

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pendurados e dando um susto em Nill: “Não dava pra você ser um pouco menos barulhento??”, inquiriu num tom meio galhofeiro e meio sério. “Cale a boca. O seu amigo está usando alguma espécie de feitiçaria, e aprisionou Hjalmar com ele. Mas não vou recuar, muito menos desistir, se ele pensa que pode me deter com bruxaria. Não tenho medo de feiticeiros.”, entrementes, sua armadura parecia estar pesando mais do que nunca, um peso insuportável, insuperável, e caiu ao tentar se reerguer; além disso, seus braços e suas pernas ardiam. “Não seja teimoso. Conheço Volundar e sei que ele não é mau. O jeito como você foi jogado contra a parede me assustou um pouco, admito, mas eu confio nele, assim como você confia no seu amigo. Deve estar fazendo alguma coisa pra ajudar, talvez forjando uma arma mágica incrível!” “De que jeito? A forja dele está aqui.” “Não sabemos o que existe lá. E possivelmente a arma mágica, quando empunhada pela primeira vez, apresente alguns efeitos colaterais. Já ouvi histórias sobre isso...”, Nill não estava muito equivocado, ao passo que Hjalmar num dado momento conseguiu dominar o fogo: caíra de joelhos, que por sinal estavam ardendo, mas a exaustão persistiu por pouco tempo, logo substituída por uma força e um ímpeto repentinos, sobrenaturais; tornou a ficar de pé, sentindo-se terrivelmente vivo, e mordeu os dedos de suas mãos, agora percebendo que prevalecia sobre o calor, controlando uma explosão interna que mais ninguém percebia. Viu então atrás de Volundar um espírito feito de chamas, assemelhando-se ora a um homem, ora a um pássaro, cuja apresentação foi feita pelo gnomo: “Este é Logi, o senhor dos espíritos do fogo. Não o confunda com Loki! Trata-se de um sujeito silencioso, mas esperto: ficou perto de mim porque já sabe que sou tagarela e que iria

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explicar as coisas! Ele veio lhe dar os parabéns pela sua conquista.”, e de fato sem palavras, Logi se aproximou do guerreiro, tocou a Naglering e abençoou-a em conjunto com seu novo dono, antes de desaparecer emitindo uma ampla e ofuscante luz vermelha que durou alguns segundos e que até Orvar e Nill, do lado de fora, chegaram a perceber. Quando a porta foi aberta e Hjalmar saiu por ela, o anão logo atrás, o amigo, agora livre de qualquer peso, correu para revê-lo de perto e falar: “Graças aos deuses que você está bem! O que esse gnomo fez com você afinal? E o que foi aquela luz?” “Ele me deu o maior presente que um guerreiro poderia receber: uma espada mágica consagrada. Com ela, poderei vencer o jotun. Volundar nos guiará até ele.”, Orvar escutou perfeitamente poderei vencer e não poderemos vencer; deveria ter ficado feliz pelo amigo, e uma parte sua ficou, porém outra, sem trair as ambiguidades típicas do coração humano, sentiu pontas de inveja, raiva e tristeza. Lançou um olhar em parte envergonhado e em parte ainda mantendo uma certa altivez na direção do anão, que emitiu um grunhido e virou o rosto. Em geral não costumava admitir esse tipo de gesto de desprezo; mas entendeu as razões de Volundar e relevou tal atitude. Guiados à entrada da caverna onde Grim se encontrava, o gnomo disse ao guerreiro antes de partir: “Seja um só com a Naglering. Controle seus receios e seu medo, e ela não irá servir apenas para o ataque como para protegê-lo.” “Muito obrigado pela oportunidade de conhecê-lo...”, Hjalmar lhe estendeu a mão; o anão riu e, ao invés de apertá-la, deu um tapa com força na palma e se foi, ignorando os outros dois. “Que sujeito mais grosseiro. Espero que realmente não tenha nos enganado, entregando-nos uma falsa espada mágica.”, comentou Orvar, e o olhar do amigo desta vez foi de evidente desagrado e profunda desaprovação, enquanto fechava a mão

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que recebera o tapa e a levava à altura de seu coração. “Ainda desconfia?? Mas será o benedito! O que será que o Volundar precisaria fazer pra você confiar nele?? Você é muito chato mesmo, hein?”, Nill não resistiu a uma boa provocação, esperando a seguir um olhar e palavras ferinas, só que desta vez Orvar mudou de postura, meneando a cabeça para os lados, bufando e mostrando um sorriso desajeitado e de alguma aceitação para o duende. “Está certo! Muito bem, eu reconheço! Estava errado com relação àquele gnomo!”, e se aproximou de Hjalmar desta vez para lhe colocar a mão no ombro em um gesto forte e de confiança. “Não podemos nos aborrecer nem nos desentender e discutir agora. Vamos derrubar juntos esse gigante!”, juntos ecoou bem nos ouvidos de Hjalmar, que internamente também admitiu que errara em algo, ao sair vitorioso com a Naglering falando como se fosse lutar sozinho, como se seu amigo e irmão não estivesse presente. “Me desculpe, Orvar.”, pensou, não falando, mas voltou a manifestar um semblante favorável ao companheiro e se abraçaram. “Espera um pouco! Juntos você quer dizer vocês dois, né?”, indagou Nill. “Claro. Por que iríamos esperar algo de outra pessoa, e de você principalmente?” “Ufa! Já estava pensando que iam me obrigar a lutar!” “Não seríamos loucos a esse ponto; você só iria nos atrapalhar.” “Orvar, não seja tão duro com o nosso amigo. De alguma forma, ele nos ajudou.”, interveio Hjalmar. “Não sou tão moderado com as palavras e nem tenho um espírito tão bom quanto o seu, meu amigo.” “Não, não! Não precisam nem levantar dúvidas e argumentar! O senhor Orvar tem razão! Eu iria atrapalhar, pois não sou um

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guerreiro, mas de qualquer forma irei acompanhá-los.” “Para fazer o que, se não quer nos atrapalhar?” “Claro que para colher material para uma nova canção.”, replicou Hjalmar, sorridente. “O senhor já está começando a me conhecer e me entender!”, o duende respondeu, mas não teriam mais tempo para rir e relaxar, pois ouviram um urro vindo do fundo da gruta. “Ah, não...”, Nill ficou com as pernas bambas. “Não vamos mais adiar. Hora de entrar.” “Ele deve estar com fome...”, os guerreiros entraram primeiro; e mesmo com muito medo, o duende reuniu toda a sua curiosidade (com algumas pitadas de coragem) e entrou correndo a seguir: “Não me deixem pra trás, esperem por mim!” “Nill, não grite! Sem estardalhaços se quer nos acompanhar!”, recebeu uma bronca de Orvar. “Ah, me desculpe, senhor Orvar! Mas agora é o senhor que está gritando...” “Nill, por favor...”, o cortês pedido de Hjalmar na sequência foi o suficiente para silenciá-lo. “Não sei como você consegue manter a paciência com certas coisas...”, Orvar comentou baixo com o amigo depois. “É apenas uma questão de observação e tato.”, encontraram o gigante em uma ampla área escura, imediatamente agredidos; Orvar teria sido decapitado logo no início se não fosse um homem de excelentes reflexos, esquivando-se do grande machado de Grim, ainda que por muito pouco. “O que vocês querem?! Vão embora daqui, insetos!”, bradou o jotun. “Aaaaaaah!”, Nill disparou apavorado, escondendo-se atrás da primeira pedra maior que encontrou. Ficou provado que Orvar não era páreo para o gigante: sua

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espada se partiu após trocar alguns golpes com o machado do oponente e a batalha terminou ficando apenas com Hjalmar, que pediu para seu amigo se esconder. Quando escapou para perto de Nill, o sentimento de impotência e a humilhação como guerreiro foram minimizados pelo duende: “Não fique mal, senhor. Humanos não costumam mesmo ser adversários para jotuns. Só os grandes heróis. O senhor é sem dúvida um notável guerreiro, e resistiu o quanto pôde. Outros já estariam mortos.” “É verdade, você tem razão. E Hjalmar é um herói. Estamos acompanhando o nascimento de um novo herói...”, surpreendera-se com as palavras de Nill, que no fim das contas não era só um zombeteiro atrapalhado e medroso; tanto que demorara alguns segundos para responder, mas respondera. “E você tem o seu valor também, pequeno. Até que enfim descobri algum traço de alma de verdadeiro poeta na sua pessoa.” “Obrigado, pena que sou poeta e não profeta.”, o duende apenas sorriu, e não riu, porque a situação não era para risos: por mais forte e valente que Hjalmar fosse, se acabasse derrotado nunca se tornaria realmente um herói. A luta que ocorreu foi intensa, numa determinada altura o jotun, extremamente rápido e forte, encurralando o guerreiro e mostrando uma expressão de inabalável confiança e satisfação diante da aparente proximidade de sua vitória: Nill ficou quase sem ar; Orvar, desarmado, nada poderia fazer para ajudar seu irmão, porém se preciso entraria na luta de mãos nuas e morreriam juntos; não permitiria que Hjalmar fosse o único a partir para o Valhala. As faíscas que espirravam da Naglering não pareciam suficientes; um fogo muito maior se fazia necessário. E foi a persistência que o acendeu: Hjalmar já estava evocando Logi e pedindo o auxílio dos deuses havia algum tempo, de forma incessante, sem que resultados

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aparecessem, quando na iminência da derrota e da morte um raio cortante partiu de sua espada e atravessou o peito de Grim; o gigante, ao espirrar do sangue e na eclosão da dor, recuou e gritou; a Naglering foi envolvida por labaredas douradas, e nisso, no choque seguinte com o machado do jotun, a arma do inimigo desta vez levou a pior. “Não é possível! Como um mero humano...”, não teve tempo de completar a frase: Hjalmar, mais confiante do que nunca ao perceber que estava recebendo um auxílio mágico de forças superiores, saltou para decapitá-lo. Chegava ao fim a existência daquele impiedoso jotun, sua cabeça rolando com os olhos arregalados, e o resto de seu corpo despencando com o pescoço queimado. “Ele conseguiu!”, Nill comemorou saltando. “Temos um novo herói! E eu tenho uma nova canção!”, o alvoroço do duende, que começou a assoviar, contrastou com a discreta felicidade de Orvar, que recebeu em seus braços o exaurido companheiro, vitorioso na assustadora batalha. Após o novo abraço sorriram um para o outro, não precisando trocar palavras, e levaram a cabeça de Grim à corte do barão Dietmar, que ficou orgulhoso de seu filho e também de seu agregado. Receberam inúmeras honras, e este foi o primeiro dos feitos heroicos de Hjalmar, cuja fama se espalhou por Gamla e também por alguns reinos vizinhos. Os anos se passaram. E numa noite de tempestade chegou-lhe uma carta da rainha Berta. Recentemente vinha se lembrando muito da princesa Ingeborg; estava se preparando para a melhor maneira de realizar o pedido de noivado ao rei Gherdor, e refletiu que a jovem devia estar pensando no mesmo e que possivelmente comentara algo a respeito com sua mãe. Talvez o estivessem convidando para ficar por um período em Upsala. Por sua origem e seus feitos, era um ótimo partido, e sabia

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disso, só não podia ficar muito nervoso diante do rei e da rainha. Contudo, ao abrir e ler o conteúdo da carta, levou um susto e tanto ao saber da situação de Upsala, da morte do rei Gherdor, e que mensageiros não haviam chegado a Samso antes porque tinham sido assassinados no caminho por sicários de Argantyr. “Só o que me deixa menos aflita é que sei que o senhor virá, que não permitirá que Gamla se torne uma província secundária em um império bárbaro. Não faria sentido Samso se apartar neste momento, e se trata de uma oportunidade de ouro para expulsarmos estes invasores, caso Argantyr cumpra a palavra que está dando e retire suas tropas após seu irmão ser derrotado no duelo. Não podemos confiar plenamente na palavra de um bárbaro, isso é correto, e imagino que seria também a sua objeção, mas cumpre-nos mostrar que, embora não sejamos selvagens como eles, somos tão valorosos quanto. A civilização não nos amoleceu, e se tivermos que travar uma guerra sua presença é de todo modo de vital importância. O que é certo é que o senhor e minha filha só poderão consumar suas bodas e ter uma vida tranquila juntos quando Gamla for livre. Minhas saudações ao barão Dietmar.”, este era o final da carta, que Hjalmar fez questão de mostrar a seu amigo Orvar, pedindo-lhe seu parecer. “Parece que não temos escolha. Precisamos ir e lutar. O rei já está morto, mas há uma rainha e uma princesa a defender. Além disso, caso você se case com Ingeborg, Gamla terá o melhor rei possível quando a chama da rainha Berta se apagar.”, replicou-lhe seu irmão de criação. “Não estou nem de longe pensando nisso, não alimento nenhuma ambição de ser rei. Apenas pretendo salvar o reino e me casar com a moça que cativou meu coração.”

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“E ao que parece você cativou o dela. Nada melhor para uma nação do que um rei que seja seu herói e que ele e sua rainha estejam verdadeiramente enamorados. Você sabe que nem sempre é assim...Muitas vezes, há apenas conveniências; os dois cônjuges reais chegam a se detestar. Em outras oportunidades, só um ama, e esse é o caso mais perigoso: ao menos quando os dois se odeiam existe uma desconfiança mútua e as devidas precauções são tomadas; já quando somente um ama, arrisca ser traído, e a emboscada e o assassinato covarde são possibilidades concretas. Você é um sortudo, Hjalmar.” “Não sei se tenho tanta sorte assim. Vamos ver até enfrentar Hjovard.” “Você já venceu um jotun. Um bárbaro nunca será páreo para você.” “Não tenho tanta certeza. Estou com um pressentimento estranho...”, e se questionou: “Hjovard ou Argantyr? Será que algum deles é o demônio que está no meu destino, que devo destruir para salvar Gamla?” Antes de partirem para Upsala, Hjalmar falou com seu pai, o barão Dietmar, e lhe pediu alguns guerreiros. “Claro, meu filho! Você já salvou esta ilha uma vez, que direito teria de lhe negar soldados? E se é para salvar Gamla, e para o seu futuro, para que se case com a princesa, digo-lhe que pode levar quantos quiser. Deixe só alguns poucos para garantir o mínimo de proteção à ilha.”, apesar do avançar dos anos, Dietmar conservava uma boa aparência e um ótimo físico, pois se exercitava todos os dias, os cabelos loiros bipartidos já com diversos fios grisalhos, assim como sua barba. “Não se preocupe, papai. Não vou precisar de tantos homens. Só de alguns, para que caso Argantyr execute alguma manobra traiçoeira possamos escapar.”

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“Tenho certeza que você não precisará fugir. Você realmente não necessita de muitos homens! Já venceu um gigante e possui uma espada mágica! Mas tem razão em ser precavido. O erro de muitos heróis foi caírem na presunção, na soberba. Vejo que tenho um filho estrategista, uma qualidade indispensável para um futuro rei.” “Ainda não estou pensando nisso, meu pai. Antes preciso cumprir com a minha obrigação como guerreiro e impedir que Gamla caia em mãos estrangeiras.” “Tem toda a razão! Um objetivo de cada vez. Foque-se sempre no presente, só não se esqueça de também planejar o futuro.” “Não vou me esquecer.”, esboçou um sorriso, e abraçou o pai, agradecendo-lhe por todo o apoio. Quando foram, o barão observou do alto da muralha de seu castelo o grupo de Hjalmar que se afastava, confiante no potencial do filho, só com um leve aperto no peito que nenhum pai pode evitar enquanto contempla a partida de um filho. Fazendo-se visível apenas para Orvar e Hjalmar, que cavalgavam lado a lado, lá estava Nill, na traseira do cavalo do herói. Os dois amigos-irmãos conversariam baixo com a criatura mágica, aparentemente entre si. “Não achei que tivesse coragem de vir desta vez.”, Orvar disse ao duende. “Vocês sempre me dão inspirações pra boas histórias! E essa eu não poderia perder de jeito nenhum. Um duelo que vai passar pra história, o bárbaro invasor contra o herói de Samso pela mão da princesa Ingeborg! Talvez vejamos o surgimento de um novo rei! Imaginem só que canção!” “Se você continuar insistindo nisso de me instalar no trono com a rainha Berta ainda viva, vou fazer com que meu cavalo o derrube.”, Hjalmar brincou.

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“Você não faria isso! Afinal somos amigos! E você não é um sujeito cruel...” “Posso me tornar quando me torram a paciência. Não vou derrubar ninguém do trono de Gamla, mas derrubar você é fácil.” “Só estou querendo glorificar as suas gestas, louvar a grande alma que você é, Hjalmar!” “Que duende mais puxa-saco...”, comentou Orvar, sorrindo e meneando a cabeça para os lados. “Está bem, está bem, não vou mais me antecipar ao futuro! Mas que estou ansioso para cantar em versos o duelo e a vitória, isso não posso negar!” “Não devemos subestimar nosso adversário, seja ele qual for. Obviamente pretendo vencer, mas ainda é cedo para literalmente cantar vitória.”, replicou o filho de Dietmar. “Claro, por isso que estou ansioso aguardando!” “Aposto que está querendo que Hjalmar se torne rei para ganhar algumas mordomias...”, Orvar provocou. “Claro que não. O meu lar é a floresta. Mas adorarei fazer algumas visitas ao meu amigo, e contar a todos os meus irmãos que sou amigo do grande rei de Gamla!” “Nill, Nill...Já avisei você.”, Hjalmar emendou, e o caminho por Samso foi tranquilo, assim como a travessia pelo mar. Ao chegaram em Upsala, foram recebidos com alívio e esperança pela rainha Berta, que tinha ao seu lado sua filha. Ingeborg estava ansiosa para falar com o portador da espada Naglering e abraçá-lo, mas antes precisava aguardar o término da apresentação formal e da conversa de sua mãe com os cavaleiros, ajoelhados diante dela, com seus elmos em mãos. “Os senhores não imaginam a minha felicidade por tê-los aqui. É um alento saber que Samso enviou sua valiosa ajuda, e que tanto o senhor como o seu pai são homens de verdadeira

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honra, que estão dispostos a dar suas próprias vidas pelo bem do reino. Conheço casos de outras nações em que seus territórios insulares se acovardaram, permaneceram à parte, e depois se tornaram reinos independentes, aproveitando-se de situações críticas.” “Nunca cometeríamos tamanha traição, majestade. E além dos motivos que me ligam a esta casa e à minha honra, devo lutar pelo amor que tenho pela princesa. Espero que me perdoe se estiver sendo insolente.”, Ingeborg ruborizou e virou o rosto, evitando olhar para seu amado ou sua mãe. “De forma nenhuma. Isso só me deixa feliz e lisonjeada, que um homem como o senhor possa se interessar sinceramente por minha filha. Sei que vindo do senhor não se trata de uma ambição em relação ao trono.” “Pode ficar segura quanto a isso, majestade.” “Se fosse outro, eu hesitaria em conceder a mão de Ingeborg porque isso colocaria em risco a minha própria vida. Um homem violento e ambicioso não hesitaria em me envenenar, após se casar com ela, para se tornar rei. Mas já estou prevenida contra todos os tipos de ardis.”, e no dia seguinte foi a vez de Argantyr receber em seu acampamento um mensageiro com uma carta; nesta se definia o local do duelo entre Hjovard e o filho do barão Dietmar, que como os invasores sabiam já havia chegado: o rei de Gandarki e seu irmão não tinham visto a comitiva de Samso, mas alguns soldados seus sim. Hjalmar preferia ignorar o grande acampamento inimigo do lado de fora das muralhas de Upsala; Nill pensara em uma canção para descrever o horror das expressões dos bárbaros e as emoções violentas que exalavam, depois desistira; Orvar demonstrara uma ligeira preocupação em seu semblante. “O duelo será dentro de três dias, ao pôr do sol, em frente aos muros da cidade. Um sacerdote de Odin será o juiz. Como se

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houvesse a necessidade de um juiz para um duelo já decidido!”, em sua tenda, Argantyr riu enquanto expunha o conteúdo da carta a seu irmão, bebia uma taça cheia de vinho e comia pedaços de uma ave recém-assada. “Há boatos de que ele venceu um jotun chamado Grim, que aterrorizava as terras de Samso. Não deve ser um adversário qualquer.” “Você acredita nessas histórias, Hjovard? Está na cara que estão inventando essas coisas para nos assustar. Não consigo acreditar que está com medo!” “Não é medo.” “Você nunca falou desse jeito. E está aí, batendo os dedos na mesa, sem comer nada! Deixe de ser idiota! E se for o seu destino morrer nesse duelo, pelo menos coma e beba bem até lá, aproveite o tempo que lhe resta!”, e o cruel rei de Gandarki soltou uma gargalhada com a boca cheia. “Não é hora de caçoar, Argantyr. É que além dessas histórias que ouvi, que talvez sejam mera fanfarronice, ontem tive um sonho que me perturbou.” “Que sonho?” “Um corvo pousava na neve. E ele começou a bicar a neve. Depois de algum tempo, chegaram outros corvos, e descobriram um corpo embaixo do gelo. Esse corpo era o meu. Mas vi tudo de fora.” “Não vamos nos preocupar com sonhos. Já bastam nossos inimigos e o frio da noite. São apenas três dias. Depois que eles passarem, eu estarei no trono de Gamla, com você ao meu lado.” “Assim espero.”, nas noites que se seguiram, Hjovard não teve mais nenhum sonho, mas sempre acordava suando, com uma terrível angústia a oprimir-lhe o peito, como se tivesse escapado com dificuldades de um pesadelo persecutório do

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qual não se lembrava. “Que absurdo! Por que será que estou passando por isso?!”, questionava-se, indignado. Quando a tarde decisiva chegou, juntaram-se partes dos dois exércitos, de Gamla e de Gandarki, para escoltar os combatentes; junto com as tropas do reino local, vinha o sacerdote de Odin, trajado inteiramente em branco, tanto a túnica como suas botas e a capa nas costas, apenas sua espada com uma bainha com pedras coloridas. Consagrado ao rei dos deuses, um de seus olhos fora sacrificado durante sua iniciação e por isso aquela parte de seu rosto estava tampada. Sequer Argantyr poderia negar a ansiedade que sentia; o único que estava absolutamente tranquilo era Wald, ao lado do irmão mais velho, enquanto Hjovard ia à frente. No instante em que o bárbaro ficou cara a cara com o portador da Naglering, o sacerdote de Odin se interpôs entre os olhares, de intimidação feroz por parte do filho de Arngrim, de firmeza serena da parte do rebento do barão de Samso. Declarou o oficiante, enquanto desembainhava sua espada entre os dois: “Nosso senhor Odin abençoa este duelo, que decidirá o destino deste reino. Que seja uma batalha honrada! Os dois guerreiros não deverão em nenhum momento ser ajudados por seus companheiros, nenhuma interferência será permitida, e caso ocorra o que for beneficiado será declarado perdedor. Se Hjovard vencer, terá a mão da princesa Ingeborg; caso seja derrotado, terá que se retirar, assim como seu irmão Argantyr, com todo o exército de Gandarki, das terras de Gamla. Caso este acordo seja descumprido de alguma forma, Odin os amaldiçoará e amaldiçoará a todos os seus descendentes.”, ao ouvir estas palavras, Argantyr moveu seus lábios num sorriso contido, refletindo: “Odin está do lado dos fortes. Ele não se importa com palavrório, mas com atos.”, ao passo que Orvar esfregava as mãos, aflito, embora confiasse em seu melhor amigo, e Nill,

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oculto entre os soldados de Gamla, não queria de forma nenhuma compor uma canção triste que narrasse a morte de Hjalmar, por mais heroica e trágica que fosse. “Só nos resta rezar aos deuses por ele.”, disse a rainha à princesa; as duas haviam permanecido no castelo e não acompanhariam o embate, que teve início assim que o sacerdote de Odin se afastou e autorizou; Hjovard desembainhou sua espada e atacou primeiro, mas Hjalmar foi rápido na defesa. “Começou. Só espero que o final seja o esperado.”, Orvar juntou as mãos, pressionando os dedos uns contra os outros, e não as separaria até a conclusão do duelo. Honrado, o filho do barão de Samso não pretendia fazer uso de magia; queria vencer Hjovard apenas com suas habilidades como guerreiro. “Espíritos do fogo, não produzam chamas, apenas me deem coragem.”, disse a seus aliados invisíveis, enquanto trocava fendentes com seu adversário. A aflição no exército de Gamla era visível; já Wald roía suas unhas com um certo desdém. Os dois oponentes demonstraram equilíbrio no início, os choques de lâminas caracterizando a luta; contudo, no decorrer do embate, o filho de Arngrim começou a aparentar mais cansaço e, como lutavam sem elmos e sem escudos, somente suas armaduras e espada contra espada, golpe seguido de defesa ou esquiva, o risco era maior. Hjovard cometeu um deslize, abrindo uma brecha, e num contra-ataque do rival, que habilmente se esquivara de um de seus ataques, acabou sendo atingido em cheio no ombro direito; a dor foi tanta, a ombreira de sua armadura destruída, que não conseguiu mais segurar sua arma. Hjalmar apontou então sua lâmina para a garganta do oponente. Ao que tudo indicava, o duelo chegara ao seu término. E de fato o sacerdote de Odin decretou a vitória do

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filho de Dietmar, erguendo sua espada, a despeito do ódio e da dor que retorciam o semblante do derrotado naquele momento. Os soldados de Upsala ergueram seus braços e soltaram um brado de comemoração; Nill, exaltado, se pôs a saltar, entoando “viva, viva! Viva o nosso herói!”, já lhe vindo à mente os primeiros versos de sua canção heroica. Somente Hjalmar e Orvar podiam vê-lo e ouvi-lo; e o irmão de criação do vencedor era o único que permanecia frio, vendo que seu amigo ainda não saíra da mesma posição desde o final do combate e, ao dirigir seus olhos para Argantyr, percebeu a fúria na face do rei de Gandarki...Uma fúria que ia em direção a Hjovard, que, cabisbaixo, principiou a grunhir; disse algumas palavras, porém nenhuma compreensível. “Cuidado, afastem-se!”, foi a ordem de Hjalmar, o rosto de Hjovard, quando este tornou a levantar sua cabeça, se alterando e inchando, os olhos ficando vermelhos, a saliva escorrendo por sua boca, e de repente atacou a Naglering com seus dentes. “Ele entrou em estado berserk!”, após evitar o primeiro avanço, foi atingido de raspão por um soco, mesmo assim o suficiente para derrubá-lo, jogando-o com violência a uma certa distância. A força do adversário aumentara incrivelmente, tornando-se sobrenatural. Conseguiu não largar sua espada, e a essa altura não teria escolha a não ser usar magia, mas como o duelo em si já fora pelos ares, o ataque em estado berserk tendo se iniciado após Hjovard ser declarado perdedor, os guerreiros de Gamla resolveram intervir em favor seu herói, encarando a transformação e a agressão como uma afronta. Argantyr, deixando-se sorrir, fez um sinal para seus homens permanecerem onde estavam, ou teria início uma sangrenta batalha campal, como que seguro que as coisas continuavam sob controle e que era momento, na verdade, de se divertir. Wald até liberou um riso sardônico enquanto cruzava os

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braços. “Então eles têm mesmo berserkers, como eu tinha ouvido falar, e Hjovard é um deles!”, refletiu Orvar, que não interviera, Nill se agarrando à sua perna enquanto não parava de tremer e o guerreiro aparentemente ignorando-o. “Não interfiram! Afastem-se!”, eis o brado de Hjalmar ao se reerguer, mas segundos foram o bastante para seu rival despedaçar, com seus dentes e mãos de força descomunal, sem mais necessidade de qualquer espada, sem mais medo ou freios de qualquer tipo, os que o haviam atacado, assim como o sacerdote de Odin, que começara a pronunciar maldições do rei dos deuses contra o berserk, que infringira as regras do duelo e perdera todo o controle sobre si; o filho de Dietmar viu um urso rubro enfurecido na aura do filho de Arngrim, e Orvar, que não interferiria, reteve também os soldados próximos, pois confiava no amigo-irmão, que na verdade ainda não lutara a sério, não manifestando o poder da Naglering. Hjalmar sabia que só não poderia se permitir ser atingido em cheio em pontos vitais pelos golpes de Hjovard, naquele momento capaz de rasgar o metal como se fosse pepel; mas o berserk de qualquer modo não conseguiu tocá-lo quando o guerreiro-mago apontou a espada forjada por Volundar em sua direção e foi envolvido por um círculo mágico ígneo visível para todos; este não só repeliu o inimigo como chamas foram lançadas à frente, incendiando-lhe o corpo. Como a ira incomodava os elementais do fogo, as labaredas se tornaram ainda mais furiosas na carne do inimigo: quanto mais este se entregava ao estado berserk, maior era o dano; podia não sentir dor, mas estava sendo consumido por dentro e por fora, as chamas queimando sua pele e penetrando em seus órgãos para devorá-los. Os soldados de Gamla ficaram maravilhados ao verem a

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Naglering pela primeira vez manifestando sua verdadeira força, reputando todo o poder à arma mágica, sem se darem conta das reais capacidades de Hjalmar; Argantyr se mostrou surpreso: “Ele pode ter realmente vencido um jotun. Se foi invenção, foi algo embasado. Como poderia ser o confronto dessa espada com a minha?”, levou as mãos ao punho da Tirfing, mas, apesar da tentação, não a desembainhou, mesmo vendo seu irmão à beira da derrota definitiva, próximo do precipício da morte. Hjalmar acabou sendo clemente, abreviando o sofrimento do rival (na verdade mais uma agonia sua), que não lograva atingi-lo em nenhum de seus avanços, como um leão rechaçado pelo chicote do domador: saiu do círculo e lançou-se sobre seu corpo em chamas, esquivando-se de um último soco, e atravessou-lhe o peito. Após ter o coração já em brasa perfurado pela Naglering, Hjovard explodiu em pedaços queimados. O urso vermelho despencou e se dissolveu no pó. Do lado do vencedor, além do próprio apenas Nill enxergara, aterrorizado, aquela manifestação astral da fúria berserk. “Calma, pequeno. Já passou.”, desta vez Orvar foi bem gentil com o duende, que enfim se desgrudou de sua perna, e com o olhar atento em Argantyr se dirigiu rumo ao amigo. Evidente o cansaço de Hjalmar, ainda que apresentasse apenas um discreto ferimento no rosto, pelo golpe que passara de raspão. Alguns hematomas talvez por baixo da armadura. Apoiara-se na Naglering para não cair, logo recebendo o apoio de Orvar: “Obrigado, meu irmão...”, agradeceu por isso, enquanto os soldados restantes pareciam tristes e apreensivos, no primeiro caso devido à morte dos companheiros e no segundo em razão da incógnita representada pela postura do rei de Gandarki: se Hjovard se tornara um berserk, e descumprira as regras do duelo, agredindo o oponente após ter decretada sua derrota, e

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inclusive assassinando o juiz, o que lhes garantia que a luta não se prolongaria, que Argantyr não iria se aproveitar do enfraquecimento de Hjalmar para retirá-lo de seu caminho e usurpar o trono de Gamla? Que certeza tinham do cumprimento do que fora acordado? Não se podia confiar na palavra de berserkers. Houve um silêncio denso, que incomodava profundamente Nill; nenhuma música, nenhuma poesia, nenhuma inspiração seriam possíveis naqueles instantes. Argantyr comentou algo com Wald, que meneou a cabeça em aprovação e se retirou, na sequência o rei de Gandarki avançando sozinho, na direção de Hjalmar e Orvar, que não tiravam mais seus olhos do líder dos invasores. Ao parar, próximo de ambos, falou: “Pode não me agradar admitir isso, mas você, filho do barão de Samso, e talvez futuro rei destas terras, foi mais forte do que o meu irmão e mereceu a vitória. O acordo a ser levado em conta, caso Hjovard fosse derrotado, era a retirada de nossas tropas do território de Gamla. Como rei, esta seria minha chance de ouro para me livrar de um guerreiro como você, aproveitando-me do seu desgaste, e submeter este país ao meu império. No entanto, como homem, e homens são aqueles que cumprem a própria palavra, independentemente de tratados escritos, devo renunciar, temporariamente, ao trono de Gamla. Você venceu, Hjalmar de Samso! Meus parabéns!”, sorriu, e havia uma profunda ironia nas palmas solitárias que ressoaram por alguns segundos. Ninguém acompanhou o rei de Gandarki naquela “homenagem”. Todos tinham escutado o temporariamente. Argantyr emendou: “Se hoje este reino continua sendo livre e independente, é graças a você. Por outro lado, a existência de um homem da sua estirpe me incomoda, e você nunca será capaz de imaginar o quanto. Seu antagonismo em relação a mim servirá para manter viva minha sede de conquista, e um de

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nós dois no futuro terá de perecer para decidirmos de uma vez o destino deste reino, que agora desejo mais do que tudo, pois são as terras que os deuses escolheram para o seu nascimento e triunfo. Veremos dentro em breve, é o que espero, qual será o maior herói de nosso tempo: se eu, o conquistador de Gamla; ou você, o defensor de Gamla. Tenho só que controlar a minha ansiedade porque neste momento seria muito fácil para mim acabar com você. E sou da opinião que não vale a pena lutar contra um rival desgastado, é preciso lutar com honra. Eu não descansaria se não demonstrasse que sou efetivamente superior a você. Não poderia conviver com a sombra de tê-lo vencido sem que estivesse nas suas melhores condições. Portanto, claro que não vou dizer adeus...Até breve, Hjalmar de Samso!”, Argantyr deu as costas às tropas de Gamla e retornou às suas, sua capa sacudida pelo vento. Orvar naquele instante pensou se o melhor não seria atacar e perfurar as costas do inimigo, por mais desleal e traiçoeiro que fosse o ato, mas logo raciocinou melhor, concluindo que tal gesto impulsivo não daria um fim à guerra, pelo contrário: a morte do rei de Gandarki provocaria uma fúria desenfreada em seus soldados, e provavelmente teriam que lutar contra inúmeros berserkers, Hjalmar sem estar em suas melhores condições; poderiam ser derrotados na batalha e a guerra se prolongaria para dentro dos muros de Upsala. Não renunciou portanto ao vil assassinato pela desonra, pois se fosse necessário sacrificar sua reputação pelo bem de Gamla, se precisasse se tornar um covarde do ponto de vista da moral guerreira para dar um fim às ambições de Argantyr, o faria quase que sem titubear; desistiu por razões práticas imediatas. Além disso, seria realmente capaz de pegar o inimigo de surpresa e matá-lo? Ainda que estivesse de costas, Argantyr continuava alerta e atento a tudo à sua volta; e o amigo de Hjalmar se deu de repente conta que estava sendo

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fitado fixamente por alguém, seu olhar então se encontrando com a cínica expressão de Wald, que reaparecera em um ponto inesperado ao que tudo indicava apenas para intimidá-lo. Orvar chegou a ter uma visão, após as pupilas do irmão do rei de Gandarki entrarem nas suas, em que atacava Argantyr, mas este contra-atacava numa velocidade muito maior, girando o corpo e decapitando-o ao desembainhar a Tirfing feito um relâmpago negro. “Orvar?”, congelado pelo terror de ver sua própria cabeça rolar e parar na poeira após o desabamento de seu corpo, só voltou a si com um chamado de Hjalmar. “O que foi?”, o amigo notara algo de estranho. “Ah...”, Wald desaparecera; foi inútil procurá-lo com os olhos. “Não foi nada.” “Que foi alguma coisa, disso tenho certeza. Mas você está certo, poderemos conversar a respeito depois. Agora não é hora de falar sobre mais nada que envolva preocupações, tanto faz se particulares ou coletivas. Afinal, o que importa é que conseguimos impedir que Gamla caísse em mãos estrangeiras.” “Você conseguiu.” “Sem o seu apoio, eu nem estaria de pé agora.”, nisso sorriram um para o outro, ao passo que as tropas de Gandarki iam se retirando; logo desmontariam todo o seu acampamento, e Gamla teria paz, ao menos por algum tempo. Podiam não falar sobre nada que envolvesse preocupações, mas na mente de Hjalmar ao menos, as preocupações eram diversas. Estava certo agora que o demônio em seu destino para salvar Gamla era Argantyr; Hjovard fora apenas um dedo cortado. Refletiu. “Só que acho que ele sabe que ainda não pode me vencer com sua força atual quando eu me recuperar. É por isso, acredito, que não manteve seu acampamento aqui para me desafiar daqui a alguns dias ou semanas. Ele está partindo

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para treinar, para se preparar para me vencer de forma incontestável no futuro, sob a desculpa de fachada de ser um homem de honra, que cumpre sua palavra. Não posso me descuidar nos próximos anos. A batalha para a qual me preparei por toda a minha vida, e vou continuar me preparando para ela, ainda está por vir.”

Suntuosas foram as bodas de Hjalmar e Ingeborg, o vestido azul-claro da noiva repleto de bordados vistosos, anéis de ouro em seus dedos, e sobre sua cabeça uma coroa de flores de diferentes gêneros entre as que existiam em Gamla, seus sapatos de salto alto adornados por cristais; o noivo usava uma túnica branca de mangas longas com botões prateados, a calça e as botas negras; como oficiante do matrimônio, uma sacerdotisa de Frija (a sagrada esposa de Odin e protetora dos casamentos), em trajes brancos, seu cajado culminando na representação de uma roda. Após abençoar os esposos, e em especial o ventre da princesa, entregou-lhes as chaves de ouro da felicidade, duas para cada um, e todos os presentes aplaudiram. Para beber, havia cerveja e vinho; para comer, carnes de javali, cavalo, rena, auroque, mamute e de aves e peixes, além de pães, queijos e frutas; os doces eram à base de mel, e um dos criados do castelo, o encarregado de colocá-los na respectiva mesa, estranhou quando se deu conta que faltava um em relação ao que lhe fora anunciado. Contou várias vezes, e sempre resultava em um a menos. “Ruim de conta já vi que não estou. Mas não é possível que o cozinheiro tenha errado! Só o que pode ter acontecido é que, glutão como é, não resistiu e acabou comendo um dos próprios doces! Ah, só pode ter sido isso!”, não poderia imaginar que o verdadeiro responsável fora Nill, o doce desaparecendo aos poucos debaixo de uma das mesas, devorado impiedosamente por dentes invisíveis...

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Orvar, por sua vez, ao mesmo tempo que contemplava a felicidade do amigo, não conseguia deixar de fitar a princesa com olhos que iam além da mera admiração. Por vezes se recriminava e dizia a si mesmo que não era o correto, que não podia invejar Hjalmar e nem dirigir olhares cúpidos à princesa. Mas quando menos esperava estava outra vez encarando-a, e imaginando como seria tê-la em seus braços. Ingeborg, no entanto, não podia imaginar nem remotamente que isso se passava na mente do irmão de alma de seu recém-esposo. Nill que deu um susto no guerreiro: “Opa opa opa! Pra onde é que você está olhando?” “Mas que susto que você me pregou!”, Orvar tentou disfarçar o sobressalto, depois olhando à sua volta, não querendo que ninguém o visse tendo reações estranhas e falando sozinho como um louco; para sua sorte, não estava sendo notado, todas as atenções voltadas para o mais novo e nobre casal da corte de Upsala. O barão Dietmar, logicamente, viera de Samso para acompanhar a cerimônia e se encontrava ao lado de seu filho. Quanto a ele, Orvar, como seria quando fosse se casar? “O que está fazendo aqui, Nill?”, começou a conversar com o duende com a maior discrição possível, cochichando quase sem abrir a boca; era, claro, o único a vê-lo e ouvi-lo ali no momento. Menos mal que o espírito da floresta tinha uma audição muito superior à humana. “Como assim o que estou fazendo? Vim acompanhar o casamento do meu grande amigo, do grande herói e futuro rei de Gamla!” “Você sabe que Hjalmar não gosta que fiquem falando sobre ele ser rei.” “Eu sei, mas ele nem está ouvindo mesmo...O que eu vi foi você olhando de um jeito meio diferente pra princesa...” “Diferente em que sentido? Pare de fazer insinuações

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maliciosas, Nill.” “Eu não disse nada, você que está falando em malícia aqui.”, sentado sobre a mesa que fora reservada para o melhor amigo do noivo, fazia caretas que ironicamente imitavam olhares apaixonados, enquanto movia as mãozinhas com os dedos entrelaçados e balançava os pés. “Não vou discutir com você. Não posso agora. Ora essa, só me faltava mais isso...” “Não se preocupe, meu amigo. Não vou dizer nada. Entendo você. Afinal ninguém manda no coração e nem no desejo. O máximo que a gente pode fazer é manter o sentimento trancado, mesmo que ele fique dando socos na porta, e controlar o desejo. Não é só com vocês humanos que é assim, nós duendes passamos pela mesma situação às vezes. Sabia que uma vez me apaixonei pela noiva de um amigo meu?” “Pare de me provocar. E se está dizendo essas coisas para me consolar, agradeço as suas boas intenções, mas desista. Não preciso ser consolado. Mal conheço a princesa, como poderia me apaixonar por ela? Além disso, ela não é da minha alçada.” “E daí? O coração não liga pra essas coisas! O meu amigo também era mais importante pra floresta do que eu, e eu tinha visto a noiva dele poucas vezes antes de me apaixonar por ela. Como era linda...Toda gordinha e rosada!” “Como bom contador de histórias, você está inventando mais essa.” “Eu sempre me baseio na observação pra criar as minhas histórias. Elas nunca são totalmente inventadas.” “Nill, me deixe em paz. Ou vou ser obrigado a puxar a toalha da mesa e derrubar você.” “Você e o Hjalmar estão sempre querendo me derrubar de algum lugar. É feio gostar de querer ver duendes caindo, sabia? E dá azar!”

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Já mais adiante na festa, um sacerdote de Thor em trajes marrons, com um cinturão negro e um elmo alado, portando um martelo, que simbolizava o Mjolnir, deu a última benção ao casal antes que saíssem para os seus aposentos; com um leve toque do martelo sobre as mãos dos cônjuges, as dele segurando as dela, ao som de uma lenta canção que um bardo entoava em homenagem ao deus da força e do vigor, o oficiante disse que os filhos que os dois teriam contariam com a proteção de Thor, e que seriam quando crescessem grandes defensores das terras e das tradições de Gamla, no mínimo um menino para ser um guerreiro e uma menina para se tornar uma grande gestora do lar. Os beijos e carícias entre o casal deveriam ser trocados em privado, e se retiraram então, sob efusivos aplausos, após breves palavras de Hjalmar agradecendo pela presença e pela amizade de todos. A festa, entretanto, não acabara: as danças entre outros casais e entre os pares de solteiros e viúvos iriam ainda começar, como era costume após os recém-casados se retirarem para sua intimidade em todos os matrimônios de Gamla, e em todos os níveis da sociedade. O barão Dietmar convidou a rainha para dançar. Berta, surpresa num primeiro momento, aceitou em seguida, não tendo como não se lembrar de Agnar... Orvar convidou uma jovem dama, mais por cordialidade, após tê-la visto sozinha. Aproveitando a música alegre e movimentada, executada por um grupo de bardos, Nill ficou dançando entre os pares, divertindo-se conquanto não fosse seu gênero, sem ser visto, a não ser por Orvar, que segurou o riso para não ofender a moça, que poderia achar que estava rindo dela por ser coxa...

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II

Haviam se passado dois anos desde que Hjovard perdera a vida em seu duelo contra Hjalmar de Samso. Durante esse tempo, de volta à capital de seu império, Argantyr se casara com Feima, uma nobre de Gandarki, loira e tímida, de cabelos cacheados, sorriso manso e pouquíssimas palavras; a mulher ideal para ele, assim considerava, pois jamais a vira queixando-se; ouvia seus desabafos e recebia-o sempre disposta. Se era feliz? Talvez um pouco sim, um pouco não; de todo modo isso não importava para Argantyr, já que ele próprio andava infeliz, inquieto, insatisfeito consigo mesmo. Já não era de se importar com a satisfação alheia, e menos ainda estando insatisfeito, entediado com a vida pacífica que vinha levando. Por mais que treinasse, era muito diferente de estar em batalha; no treino, havia disciplina, força, concentração, mas não emoção. Contudo, só sairia outra vez em campanha quando tivesse a certeza que poderia vencer Hjalmar. Não para vingar seu irmão; por si mesmo. Não lhe interessava tentar outra conquista; não queria perder energia, enfrentar perigos e fazer esforços desnecessários que poderiam lhe custar uma derrota no futuro. Wald que conseguia ser livre e sair e desaparecer sozinho por dias ou semanas quando queria, embrenhando-se nas sombras das florestas e em suas próprias... Ao treinar com a Tirfing, Argantyr procurava se fundir à espada, e nisso incrementara a arte de espalhar sua aura violenta; no entanto, sempre pensava que o rival também devia estar treinando. Como ter a certeza que o superara? Por mais que se dedicasse, talvez o outro estivesse se dedicando mais; e havia dias em que ia além de seus próprios limites, tensionava seu corpo e sua mente, sentia muita dor por toda a sua carne, e feridas misteriosas surgiam em sua pele. Feima ajudava a tratá-

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las, sem dizer quase nada, a não ser algo como “você precisa se cuidar mais”, ao que ele nunca dava qualquer resposta. Certa tarde, estava mais uma vez em seu treinamento, e os pássaros que passassem perto do pátio onde realizava suas práticas precisavam de imediato voar para longe, ou corriam o sério risco de caírem mortos em contato com aquela emanação, quando um guarda do palácio bateu à porta metálica. Argantyr avisara para nunca ser importunado quando estivesse treinando com a Tirfing, e não respondeu a princípio, mas o homem insistiu. “O que há? Será que não deixei claro o bastante que não devem nunca me interromper? Nem a minha esposa pode me interromper quando estou aqui.” “Perdão, majestade. É que há dois estrangeiros às portas da cidade, fomos avisados por um dos vigias, e eles alegam que querem entrar para tratar de algo muito importante com vossa majestade.” “Comigo? Por acaso são mensageiros de algum outro reino?” “Eles insistem que só querem falar a respeito da missão que os trouxe com vossa majestade. Não dizem de onde são e nem quais os seus objetivos.” “Que estranho! A razão disso será reserva ou loucura? Se pretendem me colocar em alguma armadilha, não passam de loucos tolos.” “O homem que veio nos avisar disse que os dois alegam não ter pressa, tanto que montaram uma tenda do lado de fora da cidade, e que se parecem com sacerdotes, ou algo do gênero...”, só de ficar próximo da porta do espaço onde Argantyr treinava, o soldado começou a se sentir um pouco mal... “Sacerdotes...Talvez tenham vindo pedir algum templo aqui, se foram exilados. Nesse caso, talvez seja interessante deixar que entrem. Podem estar a par de segredos de sua nação que

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depois nós poderemos usar a nosso favor.” “O que disse, majestade?” “Está ficando surdo? Estou falando bem alto, para que até soldados estúpidos como você possam me ouvir bem e me entender! Eu já estou saindo. E envie a mensagem que os dois sejam escoltados até mim. Havendo uma mínima manifestação suspeita, joguem-nos no calabouço.”, antes do temido rei sair, o soldado já partira, com um forte enjoo, uma intensa dor de cabeça e o ouvido zumbindo; ao menos pudera compreender o que seu soberano dissera, apressando-se em se afastar daquela porta, com o transcorrer do tempo seu mal-estar passando aos poucos. Os dois desconhecidos eram um homem de estatura elevada, vestindo uma túnica longa que ia até os pés e um manto de gola alta vermelhos com detalhes em dourado que lembravam chamas, de cabelos curtos e cavanhaque pretos, sua pele morena, seu nariz e suas orelhas compridos, segurando um cajado com runas esculpidas em pedras cor de fogo, e uma jovem pálida de cabelos ruivos ondulados, trajada de branco, com pulseiras e anéis dourados onde estavam inscritas outras runas. O semblante do primeiro era confiante e tranquilo, seus olhos verde-claros, enquanto a expressão no rosto dela era de uma certa indiferença cínica, de um desdém altivo e enérgico, suas pupilas de um castanho raro, incandescente. “E então? Estou aqui aguardando o que vocês têm a me dizer. Espero que seja algo de real importância. Agora é tarde demais para pensarem no que vão falar, já tiveram tempo para isso, mas se queriam conversar comigo com tanta insistência é porque estão certos que vai me interessar. Em primeiro lugar, gostaria de saber os seus nomes e o que fazem.”, sentado em seu trono, Argantyr os recebeu. “Possuímos sim a certeza que o que temos a dizer é muito

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interessante e relevante para vossa majestade.”, Wagner, era esse o nome do homem, replicou, com sua voz rouca que parecia a de um velho. “Mas gostaríamos de privacidade.”, estavam cercados por guerreiros da corte de Gandarki. “O que vamos revelar requer um certo sigilo, diz respeito apenas a nós e a vossa majestade.” “Confio nos meus homens. Não precisa se preocupar. Diga o que tem a dizer.” “Admiro a confiança que possui, mas vossa majestade sabe perfeitamente que muitas cobras se arrastam em ambientes como este. Certas informações poderiam ser utilizadas contra vossa majestade, talvez. E, pelo que eu saiba, este trono não foi obtido da forma mais limpa...Pode voltar a acontecer algo semelhante.” “Insolente, o que está querendo insinuar?” “Majestade, esse sujeito está nos ofendendo, ofendendo a honra da guarda real de Gandarki.”, interveio um dos homens da escolta. “Não há motivos para exaltação! Minha intenção não é ofender ninguém! Só o que desejo é ficar a sós com sua majestade, pois os assuntos que tenho a tratar com ele envolvem questões que têm a ver com sua própria segurança!” “Esse indivíduo parece ser um baderneiro, um provocador. Melhor que o levemos para o calabouço.”, disse outro soldado, e começou um burburinho. “Eu não os autorizei a interferirem em minha conversa.”, Argantyr de repente silenciou todos os soldados. “Retirem-se. Vou ficar a sós com esses dois.”, e olhou para a jovem ruiva, contendo a seguir a volúpia em sua imaginação. Wagner lançou um sorriso sádico. “Mas majestade, como pode estar cedendo à vontade deles? E pode ser perigoso!”

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“Cale a boca, rato em armadura. Sei muito bem me defender. E não estou cedendo à vontade de ninguém. Só não tenho nada a temer. Saiam.”, e ficou de pé, encarando o comandante da guarda, que não retrocedeu fisicamente de imediato, mas acatou a ordem após alguns segundos. Agora enfim sozinhos com o monarca, Wagner se apresentou, inclinando-se levemente: “É uma honra estar na presença de vossa majestade. Sou Wagner, e esta é Phyria; somos sacerdotes de Loki.” “É a primeira vez que ouço falar de sacerdotes de Loki nestas terras. Não se trata de um deus muito venerado, que eu saiba.” “Infelizmente, os templos dedicados a Loki são sempre perseguidos; certas populações devotas de Thor, Odin e Heimdall chegam a apedrejá-los, e é por isso que alguns de nós, seus oficiantes, preferem ser nômades, sacerdotes itinerantes.” “Se fez tanta questão dos meus soldados ficarem do lado de fora, não deve ter sido para pedir um templo aqui...Se foi por isso, vou precisar ser duro com vocês, mesmo em se tratando de algo que fosse assustar um pouco os meus homens porque muitos não gostam sequer de ouvir o nome de Loki.” “Não é nada disso. Viemos aqui para falar sobre sua espada, majestade.”, pela primeira vez Phyria se expressou; sua voz era mais madura do que sua aparência sugeria. Argantyr a fitou dos pés à cabeça. “Nós somos muito sensíveis a diferentes tipos de energias espirituais. E pudemos sentir de muito longe que essa arma é amaldiçoada.” “Como é?? O que estão dizendo?? Que base têm para fazer uma afirmação como essa?”, inquiriu Argantyr. “Vossa majestade não percebeu? Não se dá conta do tipo de magia que essa espada exala? Foi a ruína de seu pai, assim como foi a do rei anterior de Gandarki, e será a de vossa

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majestade se continuar a usá-la sem conhecer suas reais propriedades.” “Se isso for verdade, como é que vocês sabem? Vocês parecem saber até sobre o meu pai...”, e sentiu um calafrio ao pensar mais a fundo em Arngrim. “Seremos sinceros: além da sensibilidade espiritual que possuímos, Loki às vezes consegue se comunicar conosco, e nos revela muitas coisas. Mesmo em seu aprisionamento, sequer Odin pode deter por completo sua mente, e impedi-lo de se comunicar com seus sacerdotes. É por isso que sabemos tanto. E vamos lhe revelar toda a verdade.”, foi Phyria que revelou toda a história da Tirfing a Argantyr: como fora forjada, a maldição dos anões, a morte de Svafrlami; emendou por fim: “Sendo uma arma mágica que faz com que a vida de seus donos seja breve, até que a de vossa majestade está durando muito.” “Refletindo bem, o que vocês dizem faz sentido, e acho que é por isso que tenho sofrido tanto nos treinamentos...” “O que tem acontecido?” “Sinto muita dor, e ferimentos surgem sem razões aparentes, sem causas físicas.” “Parece-me claro que a própria espada irá matá-lo caso não morra em batalha. Chegará um momento em que ela liberará uma carga de energia forte demais para que o corpo de vossa majestade consiga suportar. Mas isso não irá acontecer se aceitar nossa ajuda.”, Wagner tornou a se manifestar. “No que vocês podem me ajudar?” “Podemos remover a maldição. Ou melhor, Loki pode removê-la...” “Isso é mesmo possível?” “Por que eu mentiria? Por que teríamos viajado tanto?” “Para me fazer um favor tenho certeza que não. Para mim

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tanto faz receber a ajuda de Thor, de Freyr ou de Loki! Todos são deuses e, mesmo que Loki seja malvisto, conheço histórias em que ele é até companheiro de Odin. Só não posso morrer antes de me defrontar com Hjalmar de Samso e conquistar Gamla. Se esse confronto não acontecer, não acho que serei considerado digno de ser admitido no Valhala.” “Estou certo que o senhor já tem seu posto reservado no Valhala. Mas independentemente disso, é justo que almeje, como rei e como guerreiro, a concretização de todos os seus planos e metas em Midgard. Nós, além de remover a maldição, também podemos aumentar o poder da Tirfing, e em troca só queremos que vossa majestade lute.” “O que ganham com eu lutando?” “À medida que for promovendo guerras contra outras nações, surgirão mais e mais sacrifícios para oferecermos a Loki, que infelizmente está fraco e aprisionado, condenado em razão de um acidente envolvendo o esplendoroso Balder, e devido a um bloqueio mágico de Odin, que nesse caso agiu como um tirano, não pode ser libertado nem por jotuns, nem por elfos e nem por deuses.” “O que mortes em batalha têm a ver com a libertação de Loki? E o que acontecerá se ele for solto?” “Os espíritos dos que vossa majestade matar direta ou indiretamente, em todos os conflitos em que tomar parte ou que incitar, ficarão na lâmina da Tirfing, que se tornará cada vez mais incrível, acumulando as energias e as existências de muitos indivíduos por um certo período. Odin subestimou os humanos e os anões, e quando for a hora vossa majestade poderá ter a glória de cortar com a sua espada as correntes que prendem Loki, tornando-se o braço direito de nosso amado senhor, enquanto as almas antes na lâmina servirão para lhe restabelecer a vitalidade, debilitada pela serpente colocada

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sobre sua cabeça por Skadi, uma cobra abjeta que pinga veneno em sua boca. Mas não se preocupe: a Tirfing não perderá força após ceder os espíritos, pelo contrário, terá aprendido muito com eles, é uma arma diferente das outras, inteligente, e nosso deus quando estiver totalmente recuperado sem dúvidas a melhorará mais um pouco. Nós não temos outras ambições além de servir nosso deus; já vossa majestade poderá ser seu braço armado, e Loki lhe será eternamente grato, tornando-o o homem mais poderoso de Midgard.” “Vocês querem servi-lo apenas? Ganham o que com isso? Esclareçam. Quero compreender tudo porque não estou nem um pouco disposto a ser enganado.” “Sei que é difícil para um rei compreender a mente de um sacerdote. Mas só Loki é capaz de nos alçar a um estágio sublime em que nos elevamos acima de nós mesmos! Vossa majestade não conhece nossas histórias de vida, mas basta dizermos que devemos a continuidade de nossas existências a ele. Eu estava quase morto de fome e sede, e insatisfeito com os rumos de minha vida, com todas as escolas e mestres que frequentei, quando pela primeira vez senti a presença da mente de Loki...Que mesmo nas condições em que se encontra é o supremo bom humor! É a sabedoria mais elevada: a que provém do deleite e da alegria. É o que nos move, além da gratidão.” “Mas o que vai ocorrer ao mundo se Loki ficar livre? Se o próprio Odin o prendeu, não deve ter sido por uma banalidade. O que foi esse acidente com Balder?” “Quando Loki se libertar, o mundo será mais solto, mais leve, teremos batalhas grandiosas e menos restrições. Vossa majestade logo poderá contar com o auxílio da rainha do mundo dos mortos, Hel, que é filha de Loki, e de seus demônios e magos. Há muito tempo que ela almeja libertar seu

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pai, mas diretamente é impossível pois como deusa está bloqueada pela barreira de Odin. Quanto à história com Balder, é bastante longa, sendo que o que importa para vossa majestade é que o senhor colaborará para redimir Loki diante Odin, desfazendo os mal-entendidos, provando sua inocência; se Ele comete erros, é pelo transbordar de sua alegria, por brincar demais! Vossa majestade não irá perder seu posto no Valhala: conquistará um mais elevado, será querido por todos os deuses,..”, a conversa se estendeu por mais uma hora, e depois disso Argantyr reservou para os dois oficiantes de Loki um aposento no palácio, sem revelar a ninguém suas identidades, gerando uma série de comentários na corte, as especulações as mais variadas, de sacerdotes de Odin a feiticeiros das trevas. Ninguém falava no nome de Loki. “Nós conseguimos. Mas devemos ter paciência e ser cautelosos. Um passo de cada vez. O importante é que conseguimos dar o primeiro passo na caverna do urso que precisamos domar.”, foi o que Wagner comentou com Phyria quando ficaram sozinhos em seu novo quarto. “Aprendi com você a ser paciente. Durante a maior parte da minha existência, só queria saber de queimar, arder, consumir imediatamente tudo o que me desagradasse. Não era capaz de observar, de tecer raciocínios longos e complexos com base no que tinha visto, de manipular...Não passava de impulsos, de uma brasa ambulante. Hoje não: graças a você comecei a me tornar uma mulher, alguém que pode se orgulhar de ser o que é. Antes eu não tolerava nenhuma forma de orgulho, vocês humanos me pareciam insuportáveis! Agora consigo perceber o quanto é bom ter orgulho, ter confiança em mim mesma, ter a consciência de que posso possuir qualquer coisa que desejar.” “Agradeça principalmente a Loki. Toda a sabedoria e o poder que possuo vêm dele. Sem ele, nunca encontraria você, e

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mesmo que a encontrasse jamais seria capaz de domá-la.”, Phyria era na verdade um espírito do fogo, uma elemental das chamas, que Wagner convocara à beira de um vulcão, pedindo a Loki enquanto começava a levitar sobre a lava: “Tu que és a chama da vida, peço que me dê uma companheira, alguém que não só me dê prazer como me compreenda, que me ajude, que seja eternamente grata por tudo o que irei lhe proporcionar e leal ao meu coração. Não consegui encontrar as qualidades que procuro em nenhuma mulher que conheci. Imploro-te para que ilumines minha vida, para que me enchas de vigor e virilidade, e que eu possa achar aquela que irá me acolher em seus braços e dentro de si!”, um jato de magma subira, o sacerdote envolvido por um campo de proteção invisível que o rendia imune a todo calor; e pouco depois uma figura feminina de lava fervente se materializara diante de seus olhos. A princípio não trocaram qualquer palavra, e ela estava fechada; nenhum tipo de comunicação parecia possível. Quando a elemental submergira, retornando ao caldeirão vulcânico, Wagner ficara sem saber o que sentir ou pensar; Loki não lhe dera uma resposta clara; e todas as tentativas de obter algo nesse sentido foram inúteis. Teria que aceitar a vontade do deus. Tempos depois, já até quase se esquecera da aparência da elemental, questionando-se sobre o que a visão significara; mas numa noite gelada de lua minguante, em que as janelas do quarto da hospedaria onde se encontrava começaram a bater com força e insistência, após cair na cama sentindo muito medo, um pavor inexplicável, sem qualquer razão aparente, e de nada adiantava pensar em se levantar, refletir que fora um erro se deitar, um peso irracional oprimindo suas costas e seu peito, acabara, ao conseguir adormecer, sonhando com o espírito do magma do vulcão, ou ao menos era o que parecia:

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tratara-se de um sonho nítido, quente, mas só viria a se lembrar com precisão do nome que ela revelara: Phyria. Outras noites se seguiram, e os sonhos foram se tornando cada vez mais concretos, reais, ao ponto de numa noite, ao sonhar que tentava beijá-la, acordar com os lábios queimando. Ao olhar ao lado de sua cama, vira-a materializada; porém quando tentara tocá-la, seus dedos arderam e ela desaparecera. Numa tentativa de diálogo, sobraram ecos indecifráveis. Deduzira então que era de fato quem Loki considerara a mais apropriada para ser sua companheira; entre as mulheres, nenhuma se mostrara à altura: precisara buscá-la no mundo espiritual, na realidade mais sutil e ao mesmo tempo perigosa do elemento ígneo. Saber seu nome já era muito importante: na verdade o suficiente para trazê-la ao mundo humano, de acordo com práticas proibidas entre a maior parte dos magos, mas não para Wagner... Uma jovem camponesa ainda pura fora sua vítima: estava voltando para casa com seu pai, ele com um cesto cheio de frutos, ela recolhendo outros, sorrindo e dançando com a música da natureza. O coletor se sentira então, de súbito, atingido por um horrível mal-estar, por uma forte enxaqueca somada a uma intensa dor no estômago, e perdera os sentidos ali mesmo, entre as árvores. “Pai, acorda! O que você tem, paizinho?? Acorda!”, sem qualquer conhecimento de primeiros socorros, fizera-lhe uma massagem cardíaca um bocado nervosa e agitada antes de disparar em busca de ajuda; de todo modo, mesmo que tivesse conhecimentos médicos, nada poderia ter feito naquela situação: e terminara dando de cara com o sacerdote de Loki, na ocasião em trajes de camponês. “Não sei se o senhor é daqui, mas precisa me ajudar! O meu pai passou muito mal e

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caiu lá atrás, no meio das árvores! Podem até aparecer lobos depois; a gente precisa ir rápido ajudar! O senhor tem algum conhecimento de cura, ou sabe de alguém que tenha e não esteja longe?” Wagner já havia domado os leves toques de compaixão e os arrastos de piedade antes de aparecer diante dela: “Tenho conhecimento.”, e, sem esperar mais, destruindo quaisquer traços de hesitação, jogara sua mão direita com a palma estendida, que continha, precisamente mentalizado, um pentagrama do fogo dentro de um círculo, no qual estava disposto, pelas bordas, o nome de Phyria, sobre a testa da garota, que gritara ao sentir toda sua cabeça queimar a partir dali; os olhos da jovem se arregalaram, suas pupilas ficaram da cor do sangue e parecia até que as veias iam explodir, depois os fundos ficando inteiramente vermelhos. No momento em que pudera desgrudar sua testa da mão dele, após um rápido mas denso palavrório ritual, sua cabeça pendera para trás, a seguir despencando com o resto do corpo; Wagner ficara preocupado ao perceber que seu coração não batia e que também não respirava: “Será que ela não aguentou? Fiz tudo certo, de acordo com o tratado! Não posso ter me enganado sobre a pureza dela...Tenho é que ser paciente; o tempo requerido para a transferência não estava especificado, por mais que se quisesse passar, pelo que parecia, a impressão de ser algo instantâneo.”, a garota de fato estava morta, sua alma já deixara aquele corpo; só que um novo espírito viera para ocupá-lo: o de Phyria, que ao entrar ali, e ver o mundo ao seu redor com olhos de humana, estes aos poucos voltando ao normal, a uma aparente humanidade, e o sacerdote de Loki observando sua respiração e experimentando um grande alívio e uma imensa alegria, sentira num primeiro instante uma vontade de incendiar tudo à sua volta. Encarando Wagner com

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um semblante sério, terminara por não se conter: após seu primeiro sorriso dado entre os homens, fizera explodir as árvores, a grama, as flores, os frutos, o cesto inocente e até o corpo do pobre camponês viúvo; consumição pelas chamas. Apenas ela e seu novo amante eram imunes, beijando-o por fim no centro de um círculo de labaredas que se erguera. A mão direita do soturno sacerdote não parava de arder ao acariciar-lhe os cabelos, porém se tratava de um ardor prazeroso. “Você não precisou me domar. Nós nos tornamos um só.”, voltando ao presente no palácio de Argantyr, continuavam conversando. “Você sabe que tem a sua liberdade e a sua identidade.” “Continuo sendo lava e você é meu vulcão. Somos duas coisas e ao mesmo tempo uma só. Você me contém, é a minha montanha de segurança, e eu lhe dou o calor que precisa.”, não falava apenas no sentido figurado: desde que passara a desenvolver seu ofício com Loki, ainda em Prusha, após ter estudado por um curto período na escola de magos de Knittlingen (que abandonara, não se adaptando a seus métodos e regras), Wagner tinha ataques periódicos de frio extremo, todo seu corpo ficava gelado, seu sangue e seus ossos davam a impressão de congelar, tudo se tornava tenso e dolorido, e também por isso pedira uma companheira...Phyria era perfeita, aquecendo-o completamente nessas horas. Argantyr não tinha como saber o quanto os dois eram perigosos, e que a maldição da Tirfing não podia ser quebrada por Wagner, apenas contidos alguns efeitos colaterais mais evidentes, como as feridas que vinham surgindo; o sacerdote de Loki acreditava que seu deus poderia vencer a maldição, mas para isso teria que antes ser libertado: o próprio Wagner planejava se apropriar da Tirfing quando o momento propício chegasse; e uma vez que as correntes que prendiam Loki

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fossem partidas, não existiria mais qualquer risco. “Sabe de uma coisa? Gostaria que você tocasse o meu ventre agora...Sua mão está fria?” “Agora não.” “Está sim, um pouco.”, Phyria agarrou a mão esquerda de Wagner, colocando-a subitamente em sua barriga; no ato, o sacerdote sentiu uma diferença considerável de temperatura, mas se tratava de um calor muito forte até mesmo para ela, muito maior do que costumava apresentar naquela região do corpo, além de tudo pulsante, espalhando-se por seus dedos, que nem estavam frios como em outras ocasiões, até que não aguentou mais e retirou a mão bruscamente, sentindo-a quase queimar. “Mas o que significa isso??” “Você nem imagina?” “Não havia nada escrito no tratado a respeito disso, se é o que estou imaginando...” “Esses tratados de magia costumam ser muito incompletos, parciais por ignorância ou para esconderem as coisas do vulgo e deixarem o praticante descobrir as coisas por si mesmo. Deixe para trás os livros, meu querido....”, não foram necessárias mais palavras para que ficasse claro que Phyria estava esperando uma criança de Wagner; que tipo de menino ou menina poderia nascer da união de um homem com uma elemental do fogo, mesmo que esta se encontrasse em um corpo humano? Diante das dúvidas que surgiram, ele preferiu pensar que nasceria uma criatura superior, que unisse as qualidades das duas espécies...E que o iria ajudar muito no futuro a manter a ordem em Midgard. Loki se vingaria de Odin e conquistaria Asgard quando fosse libertado, ao passo que nada era mais lógico do que seu sumo-sacerdote reger o mundo dos homens...Ambições que só cresciam.

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“Mesmo que estejas distante, eu conjuro teu espírito, grande Loki, para que livres esta espada da maldição que a aflige! Ruge o rio de minha vontade para alcançá-lo, atravessando os vales venenosos repletos de punhais e facas, chegando ao montanhoso rochedo onde estás acorrentado, onde a teu lado se senta Sigyn, triste por teu destino, mas que mesmo assim não te abadona! Vinde a mim em espírito, filho de Farbauti, queime o mal que corrói esta lâmina, deixe a luz se espalhar, como farás em maior escala quando chegar o dia do Ragnarok! Vinde a mim, grande Loki...”, no pátio de treinamento de Argantyr, deu a mão direita a Phyria e continuou pronunciando palavras de conjuração ao deus; estavam de frente para o rei de Gandarki, a Tirfing entre este e os sacerdotes, os três no interior de um círculo mágico feito de um tecido vermelho, depois redesenhado simbolicamente com o cajado do sacerdote, que espalhou ali runas que aludiam a Loki e seus símbolos. Argantyr não podia negar a si que, como em poucas ocasiões em sua vida, estava com medo. Foi surpreendente quando um ponto luminoso rubro despontou no céu da noite, a princípio parecia uma estrela, mas que foi crescendo sem parar, até descer àquele espaço, a claridade vermelha ofuscando a vista do monarca, enquanto os olhos de Phyria e Wagner assumiam um rubor incandescente sem pupilas, que lhes permitia continuar enxergando perfeitamente mesmo na presença do espírito de Loki, que se manifestou perto do círculo na forma de um gigante de luz com cabelos de fogo, sua face não muito evidente, instável, mas pôde se definir num determinado momento um sorriso traquino, que Argantyr não conseguiu perceber e nem deveria; o sacerdote do deus emarginado liberou um riso de êxtase e assim que o rei voltou a enxergar já não havia mais nenhuma presença sobrenatural, restando um

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brilho violeta-escuro com alguns lampejos azuis e vermelhos em volta da espada. Argantyr se sentiu irremediavelmente atraído por essa aura, aproximando-se devagar, como se quisesse que seu encanto durasse o máximo possível, pois intuía que ao tocá-la o fascínio daria lugar à sede de banhá-la com o sangue daqueles que se opunham à sua autoridade e à sua força, em especial com o sangue de Hjalmar...Surpreendeu-se no entanto quando, ao segurar e levantar a Tirfing diante de sua face, um raio partiu da ponta da lâmina, passou entre os sacerdotes de Loki, que haviam soltado suas mãos e seus olhos voltado ao normal, e formou fora do círculo nuvens obscuras, meio negras, meio azuladas, que deram origem a um sombrio portal de formato triangular. “Mas o que é isso?...”, indagou o rei de Gandarki. “Agora, além da maldição ser retirada, o poder da espada aumentou. E Loki lhe deu o poder, majestade, para conjurar os espíritos das trevas. Hel, rainha do inferno e filha de Loki, já está a par da situação e passará a ajudá-lo, meu senhor, enviando suas forças sempre que precisar.”, replicou Wagner, o primeiro monstro a sair do portal um que parecia um leão vermelho, porém seu rosto, envolvido por uma juba espessa de coloração sangrenta, era similar a uma face humana, embora com quatro fileiras de dentes afiados e uma língua bipartida; em suas costas, abriram-se duas asas amplas que lembravam as de um dragão, antes camufladas à pele, e levantou voo, impressionando Argantyr, o medo se somando ao deleite, que não se encerrara agora que tinha a Tirfing mais uma vez em mãos, pelo contrário, só crescia, sem perder de vista a vontade de lutar e derramar o sangue dos que se opusessem à sua ambição. Ventos fortes agitaram a noite; o rei de Gandarki acreditou que tudo estivesse soprando a seu favor, e saíram do portal zumbis, esqueletos armados, homens-morcego,

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licantropos e outras criaturas degeneradas, sobre as quais já sabia que tinha toda a autoridade: ao erguer a Tirfing sobre sua cabeça, os monstros se prostraram. Não haveria mais a necessidade do círculo mágico para a proteção; Argantyr fora imantado com a força mental e espiritual necessária, tanto que saiu do círculo e nenhuma das aberrações o atacou; continuariam ao seu lado, e passariam a conviver com os soldados de Gandarki, obrigados a aceitá-las no castelo, por maiores que fossem o medo, a desconfiança e em alguns casos o nojo... Entre os seres enviados por Hel, algum destaque mereciam seus anões das sombras, de barbas imundas e enroscadas, tufos esparsos de cabelos sobre suas cabeças, suas peles cinzentas enrugadas, suas orelhas rasgadas, poucos e manchados seus dentes, seus lábios inchados, seus narizes longos demais ou achatados, suas mãos cada qual com quatro dedos geralmente grossos; cegos, todavia contavam com uma audição e um tato incrivelmente apurados, capazes de ouvir e sentir passos, ou o som de uma respiração, a quilômetros de distância. Seu olfato também era excepcional, superando o dos cães. Anões amaldiçoados por Odin e outros deuses por seu mau comportamento moral, tinham sido acolhidos pela rainha do mundo inferior, e o grupo que veio para Gandarki se propôs a realizar um trabalho que levou Argantyr a lhes disponibilizar a melhor forjaria da capital, expulsando desta os ferreiros que nela trabalhavam. Os que manifestaram uma oposição por demais veemente tiveram sua carne oferecida aos licantropos, para depois seu sangue ser sugado pelos homens-morcego, que possuíam de humano somente os pés, as pernas e os órgãos genitais. O trabalho era uma nova armadura para o rei, de um aço negro banhado com um pouco do sangue dos próprios anões,

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que obtiveram fazendo cortes em seus braços, e com o de um filhote de dragão de Nifelheim, que chegou todo torcido em si mesmo, ainda um recém-nascido, pouco mais do que um feto, do tamanho de um pequeno rato, de corpo cinza-escuro com alguns sulcos vermelhos em sua pele que pareciam veias de fogo, asas ainda embrionárias, em sua boca apenas dois dentes pontiagudos e seus olhos cerrados. Argantyr estava se tornando cada vez mais cruel, deliciando-se com o sacrifício da criaturinha, atravessada por uma adaga, após seu guincho de morte sua sombra sendo tragada de vez para o abismo. Assim que ficou pronta, a Tirfing foi colocada a seu lado a pedido dos anões, as vibrações da arma e da armadura se sincronizando; no momento em que a vestiu pela primeira vez, e segurando a espada, o rei de Gandarki se sentiu pronto para a destruição, ressoando seu triunfal brado interno. Wald ficou positivamente impressionado com o novo Argantyr que viu diante de si, agradecendo a Hel por fortalecer também seu irmão, cada vez mais satisfeito e se sentindo mais em casa com a presença das criaturas das trevas no castelo; começou a cogitar a possibilidade que num futuro não tão distante poderia manifestar toda a sua força nas batalhas e circular livremente na forma que julgava lhe permitir a expressão da essência de seu ser; não pretendia roubar o papel de herói do primogênito e nem se interessava por glórias e louvores: seu desejo era somente o de viver sem freios, sem restrições. Quem não estava nada feliz com o aprofundamento de Argantyr no mundo das trevas era Feima, procurando conter seu pavor com melancolia, antevendo algo de muito ruim pelo que andava vivenciando em seus pesadelos, que não apresentavam monstros como os que circulavam agora em volta do rei na vigília, mas sensações opressivas, muitas de queda, perseguição, sufocamento e de observação impotente,

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em que via o marido despencar no báratro ou ser apunhalado pelas costas e não podia fazer nada para impedir. A maior razão para seu terror se encontrava no que principiava a ganhar vida em seu ventre, entre enjoos, dores de cabeça e seios doloridos. Suas suspeitas iniciais haviam sido confirmadas pela velha serva Snot, que era como se fosse sua mãe, pois a criara após o falecimento precoce de sua mãe biológica, muito experiente em todas as questões relevantes da vida, e que fizera questão de trazer ao castelo real de Gandarki após se casar com o soberano: “Você está esperando uma menina.”, por mais que ainda não houvesse nenhuma barriga, Snot, seca, fria e ao mesmo tempo amorosa, nunca se equivocava nesses casos. Feima não era mesmo de falar muito, e Argantyr acabou partindo de Gandarki sem saber que sua esposa estava grávida; nisso que dera escolher uma mulher silenciosa demais. Na despedida, acariciara-lhe os cabelos e beijara-a com premência, recebendo dela um olhar profundo e indagador, ao qual não dera a mínima atenção; logo lhe dera as costas, deixando-a para trás, cabisbaixa entre as névoas de suas preocupações. Não quisera afligi-lo? Estava aflita porque temia que ele não retornasse? Ou temia que ele retornasse, só que não mais como um ser humano? Que pai sua filha teria, ou não teria? Problemas do silêncio, ao passo que Argantyr não sentia mais qualquer dor e nem lhe apareciam feridas; foi-se entusiasmado, escoltado por homens e monstros, e Wagner podia sorrir ao ver seus planos se realizando com extrema precisão: Loki iluminava seu caminho, guiava cada um de seus passos, conduzindo-o a um trono glorioso, de um dos lados o fogo estável da permanência de sua vida, do outro a centelha em constante crescimento de sua expansão.

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Argantyr decidiu começar seu ataque não por Upsala, mas por Samso. Sabia que Hjalmar não estava mais lá, a não ser que se encontrasse por visita, porém trataria de arrasar a ilha e, após se apossar dela, enviar uma mensagem ao príncipe de Gamla para que aceitasse seu desafio de confrontá-lo em sua terra natal, se quisesse recuperá-la. Caso não aceitasse (embora o rei de Gandarki tivesse certeza que ele iria aceitar, eventuais terceiros dificilmente iriam convencê-lo do contrário mesmo que fosse considerada uma luta de alto risco), aí sim a batalha iria se transferir para as proximidades da capital de Gamla, como fora anos antes. A diferença era que desta vez Argantyr estava mais forte e seguro, além de contar com um exército incrivelmente mais poderoso: junto a seus berserkers e a seu irmão Wald, os receosos mas obedientes soldados de Gandarki, os monstros enviados por Hel, e os dois sacerdotes de Loki, que logo na primeira batalha contra uma força de defesa da ilha, uma cavalaria com espadachins e arqueiros, mostraram sua utilidade, mantendo-se atrás das tropas e criando com suas orações ao deus embusteiro campos de força invisíveis e barreiras de fogo que repeliam ou derretiam as flechas. Os zumbis do exército de Argantyr só eram vencidos quando tinham suas cabeças cortadas e seus cérebros destruídos, mas os guerreiros de Samso dificilmente conseguiam decapitá-los e fazer o resto não parecia necessário; em geral apenas produziam ferimentos superficiais ou perfuravam seus peitos e suas costas, de nada servindo atingir corações que já não batiam, ou às vezes até peitos sem corações; o único órgão reativado por Hel era o cérebro em suas funções agressivas e no registro de técnicas de luta. Quando perdiam suas mãos, encaixavam-nas novamente, as carnes, veias e ossos com um rápido poder de reconstituição. E, embora não possuíssem mais

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a capacidade de pensar, lutavam com força e velocidade e analisavam instintivamente seus adversários e o campo de batalha, buscando exclusivamente a sobrevivência. Seus cérebros ainda resistiam separados dos corpos por alguns segundos e nesses instantes as cabeças podiam ser recolocadas e os zumbis reavivados, como faziam os feiticeiros de Hel, com suas orações à rainha dos mortos fazendo com que levitassem e se encaixassem novamente, para o desespero dos homens de Samso. Estes bruxos, encapuzados com os rostos encobertos pela escuridão, apenas eventualmente faíscas azuis como olhos nas trevas, surpreenderam Argantyr em sua primeira aparição, mas depois passaram a tomar parte de todas as batalhas, juntando-se contudo ao exército de Gandarki somente nos momentos de confronto, desaparecendo nas horas de descanso. No decorrer dos dias, Argantyr foi vencendo todos os combates, o que gerou desespero no barão Dietmar. Dos mensageiros destinados a Upsala, nenhum conseguiu atingir seu objetivo, interceptados no caminho por homens-morcego, que haviam se espalhado por Samso e se lançavam sobre as costas dos viajantes para lhes sugar todo o sangue após derrubá-los, sentindo com seus peculiares radares os que estavam se encaminhando para deixar a ilha. Não demorou e os vales, lagos, córregos e florestas de Samso ficaram repletos de homens e cavalos mortos, alguns boiando sobre as águas, outros estendidos no solo, outros ainda pendurados nas árvores, entre esfolados, retalhados e parcialmente devorados. Diversos soldados de Gandarki começaram a descarregar sua tensão, provocada também pelo medo e pela desconfiança que nutriam em relação a seus próprios aliados, violentando as mulheres e assassinando-as a seguir; os velhos eram sumariamente executados e as crianças aprisionadas.

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Muitos vilarejos foram incendiados e reduzidos praticamente a cinzas; e uma vez que o castelo de Dietmar ficou circundado pelas tropas de Argantyr, o rei de Gandarki deteve o ataque por alguns dias por pura provocação, para aumentar a angústia e o terror do barão, intimidando-o com seu acampamento de homens e monstros. Dietmar já havia perdido as esperanças; se Hjalmar ainda não viera, era porque os mensageiros deviam ter fracassado. A invasão se deu numa noite de lua cheia, situação em que os licantropos ficavam mais fortes e ágeis do que de costume, e estes junto com os berserkers, um grupo de assalto liderado por Wald, escalaram os muros do castelo, as flechas e os dardos atirados em suas direções desviados pelas preces de Wagner e Phyria, os poucos que os acertaram atingindo-os nos braços e nas coxas, onde a dor era mínima e os ferimentos insignificantes para eles. Um lobisomem negro e faminto de braços poderosos, mais similares aos de um gorila, e ainda por cima com enormes garras, foi o primeiro a saltar para o corredor da muralha, onde teve início o terrível massacre. Os uivos dos licantropos e o riso de Wald começaram a ser ouvidos por toda a aterrorizada população do castelo. Dietmar, que saiu de sua residência para liderar seus melhores soldados, já recebera relatos a respeito do novo exército de Argantyr, porém a princípio duvidara de algumas descrições, pensando que os licantropos, por exemplo, fossem berserkers, cujas aparências e atos terríveis teriam assustado tanto as pessoas a ponto de confundi-los com monstros. Quanto aos homens-morcego, aos zumbis e aos esqueletos armados, seriam mais exageros provocados pelo terror. No entanto, ao se deparar com os lobisomens nos muros do castelo, começou a se dar conta que a realidade podia ser mais cruel do que a

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fantasia... Abatidos os arqueiros, besteiros e a maior parte dos demais vigilantes da muralha, os homens-morcego começaram a voar para dentro da fortaleza, e Wald desceu pelas paredes feito um macaco feroz, protegido, assim como os licantropos e berserkers que foram fazendo o mesmo, por seus aliados alados e por feiticeiros de Hel, que despontavam repentinamente das sombras para lançar feitiços de sono e fogo sobre as forças de defesa. Um, que parecia o mais perigoso, disparava enormes esferas de chamas que explodiam as catapultas e balistas de Samso. Uma vez chegando onde pretendia, Wald derrubou com facilidade os soldados que protegiam a alavanca que fazia funcionar a ponte levadiça e em seguida a fez descer: o ataque chegara ao ponto culminante, com Argantyr e o grosso de suas tropas entrando de frente; o obstáculo do fosso estava superado de vez. A batalha se prolongou por mais uma hora e meia. Dietmar e Argantyr cruzaram seus olhares e o barão de Samso, guerreiro experiente, mas já não mais em sua melhor forma, ficou paralisado de medo por alguns segundos; quando o rei de Gandarki se encheu de ímpeto e veio cavalgando em sua direção, viu-se obrigado a tomar coragem para a luta, embora sem qualquer expectativa de vitória. “Hjalmar, estou certo que você me vingará. Cumpri o meu papel no mundo, e parto com a esperança de que você irá fazer muito mais do que tudo o que eu já imaginei realizar, libertando Samso e salvando Upsala. Onde quer que esteja, gostaria que escutasse meu adeus...”, os cavaleiros se cruzaram entre as chamas, Dietmar mais lento tendo seu peito perfurado pela Tirfing e seu corpo despencando já sem vida no chão. Encontrado ao término da batalha, que se concluiu com a óbvia vitória dos invasores, estava pútrido, o

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rosto disforme, após seu capacete ser retirado, como resultado dos fluidos amaldiçoados. Em Upsala, Hjalmar não dormiu bem naquela noite, seu sono entrecortado, atormentado por constantes pesadelos curtos e sem persistência na memória, perturbando também o sono de Ingeborg. Na noite seguinte, até parecia estar dormindo bem, para o alívio de sua esposa, que ficara preocupada com o que ocorrera na madrugada anterior, ela por sua vez sem conseguir adormecer, quando de repente ele acordou com um urro. “Pelos deuses, Hjalmar! O que foi?” “Tive um pesadelo horrível. Horrível demais...” “Mas o que foi afinal??” “Diferentemente dos de ontem, foi longo, denso e me lembro perfeitamente do que vi e senti. Estava lutando contra um monstro, um demônio vermelho com uma armadura de aço negro, que usava uma espada também negra; por mais que me esforçasse, ele era muito mais forte do que eu. Acabei batendo o pé num cadáver estendido no chão. E, quando me dei conta, vi que era o corpo do meu pai! Apesar do rosto estar todo marcado e deformado, os traços eram os dele, sem nenhuma dúvida! Fora que era como se a presença persistisse de alguma forma, o fantasma dele...” “Não se preocupe, querido. Foi só um pesadelo...”, acariciou-lhe os ombros e os cabelos. “Eu não sei. Fiquei muito preocupado. Talvez precise dar uma passada em Samso. Fiquei preocupado com o meu velho.” “Se está te afligindo, vá. Mas tenho certeza que não aconteceu nada.” “O seu otimismo me consola. Mas a minha intuição me diz que algo aconteceu ou vai acontecer.”, Hjalmar acabou não podendo partir de Upsala devido ao falecimento repentino da rainha Berta, naquela manhã encontrada, por um de seus

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criados, sem vida em sua cama; ofereceu-lhe suas frutas matutinas, chamou-a repetidas vezes e só depois disso, após lhe examinar o peito e perceber que o coração não batia, decidiu chamar os médicos da corte. Nada pôde ser feito. Berta já partira. Ao menos, Ingeborg notou, enquanto enxugava devagar seu choro tímido, apresentava em seu rosto uma expressão tranquila, como de quem continuava a dormir experimentando um sonho bom, fresca, nada cadavérica. Talvez, antes de seu coração parar de bater, estivesse sonhando que reencontrara Agnar... Recebeu suas respectivas honras fúnebres, seu corpo colocado em um caixão repleto de flores, que foi posto em um barco, e então o fogo ateado a este, que seria reduzido a cinzas no mar, em um ritual tradicional entre os nobres de Gamla, realizado ao pôr do sol. “Será que não foi antevendo a morte da minha mãe que você teve aquele pesadelo?”, a nova rainha, que seria coroada formalmente logo na noite seguinte, indagou ao seu marido enquanto acompanhavam a partida de Berta “Tenho certeza que não.”, respondeu aquele que viria a se tornar o novo rei de Gamla. “Não senti nada trevoso, sombrio e violento em volta da morte da sua mãe. Ela pareceu ter partido serena, como alguém que cumpriu a sua missão.” “Isso é verdade. Mas não fique tão aflito e preocupado.” “É difícil. Agora vou me tornar rei e as responsabilidades serão outras. Não posso deixar Upsala simplesmente para ir ver o meu pai. Vou ter que mandar um mensageiro.” “Você pode ir. Fico aqui enquanto isso. Orvar também vai me ajudar.” “Seria ridículo, vergonhoso, um rei deixar sua capital imediatamente depois de assumir o trono.” “Ridículo é um rei desequilibrado em suas preocupações.

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Upsala está segura por enquanto. Você pode ir. Samso também é parte de Gamla, e um rei deve cuidar de todas as províncias e cidades, não só da capital.” “Em parte você tem razão, em parte eu tenho.” “Você é um herói, o povo não vai desconfiar de você.” “Vou ficar e mandar um mensageiro.” “Está bem, novo rei teimoso...”, Hjalmar permanecera em Upsala com a benção de seu pai, que infelizmente não o veria rei como tanto desejara. Deu-se a coroação, Nill deixando suas lágrimas descerem enquanto acompanhava a cerimônia invisível a todos, o herói de Samso recebendo sua coroa (de ouro incrustada com pedras escuras) das mãos do mais velho sacerdote de Odin do reino e a esposa recebendo a sua (de prata com rica pedraria clara) da mais veneranda sacerdotisa de Frija, seus delicados cabelos cingidos com perfeição. Mais alguns dias se passaram e, antes que o novo soberano enviasse um mensageiro de Upsala para Samso, um proveniente da ilha apareceu. A notícia da chegada de um homem de sua terra natal, trazendo quiçá quais notícias, pareceu ao filho de Dietmar um presságio sinistro. “Argantyr tomou Samso. Nós lutamos o quanto pudemos, mas não havia como vencer. Ele não é mais o mesmo de antes...”, o rosto daquele homem, um experiente conselheiro do barão, velho conhecido de Hjalmar e Orvar, que o receberam calorosamente, embora com assombro pela condição em que o viram, estava repleto de cicatrizes, assim como seus braços, e vez ou outra se tremia; pela sua expressão, parecia o tempo todo assustado, como se estivesse constantemente diante da visão da morte de sua família. “Em que sentido não é mais o mesmo?”, indagou Orvar, presente no salão real ao lado dos dois novos soberanos do reino.

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“O seu exército não é mais formado apenas por seres humanos. Berserkers, bem ou mal, ainda são seres humanos. A grande diferença é que agora uma quantidade assombrosa de monstros o segue, entre vampiros, licantropos, mortos-vivos e outras aberrações impossíveis de descrever! Eles nos impuseram o maior massacre que já testemunhei: agora se veem corpos por todos os lados em Samso; acredito que sou o último adulto vivo, não sei se há mais, mas não vi mais nenhum, e as crianças que sobreviveram estão sendo mantidas em condições sub-humanas. É o puro horror. E antes que pensem que é o trauma da destruição e da violência que me faz ver monstros, deixo bem claro que homens como eu e o barão duvidávamos da existência desses seres nas fileiras de Argantyr, o que chegava a nós por relatos, e depois vimos que era tudo verdade.” “Não duvido do seu relato, Tegn. Sei que é um homem sincero, confiável e que não se assusta com qualquer coisa, pois já presenciou muitas guerras. Então quer dizer que Argantyr só poupou a sua vida para enviá-lo para me avisar que ele está me esperando em Samso?”, indagou Hjalmar. “Exato, majestade. Outros homens se negaram, disseram que não permitiriam que vossa majestade, que então ainda pensávamos que continuasse sendo príncipe, e não rei, pois a notícia da morte da rainha Berta não chegou em Samso, caísse em uma armadilha de Argantyr. Como punição, foram torturados até a morte. Também fui torturado, e não tinha mais razões para sobreviver, pois minha gentil esposa e meus filhos foram assassinados, por isso estava cedendo amigavelmente à morte, como minha única esperança de reencontrar a felicidade, porém depois refleti melhor, cheguei à conclusão que não poderia trair a confiança do barão e a mim mesmo, com todos os serviços prestados a Samso durante estes anos!

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Não trabalhei tanto em vão! E as mortes da minha mulher e dos meus filhos não poderiam deixar de ser vingadas! Nem a morte do barão! Percebi que ainda havia uma derradeira possibilidade de salvar Samso, que vossa majestade não estaria caindo em uma armadilha ao voltar à nossa ilha! Estavam subestimando a sua força! Vossa majestade irá voltar a Samso para vencer, derrotará todos os monstros e nossos esforços não terão sido inúteis. A nossa honra está em jogo, e acredito que vossa majestade pode vencer, que não estou cometendo nenhuma espécie de traição ao incentivá-lo a recuperar nossa amada terra.” “Você tem toda a razão. Esperá-los aqui não traria nenhuma vantagem para nós, só iria expor mais uma população a um desgaste desnecessário. Já bastou o sofrimento do povo de Samso. Não quero uma nova carnificina em Upsala.”, Hjalmar, até então sentado em seu trono ao lado de Ingeborg, se levantou e começou a andar lentamente pelo salão. “Fico muito feliz ao ouvir estas palavras. Ao se preocupar com seu povo, demonstra que está mesmo pronto para ser rei.”, e ninguém ousou dizer mais nada enquanto o novo soberano caminhava devagar, em seus passos manifestando sua dor em um ritmo cadenciado; parou de frente à parede, com o rosto bem próximo desta; ficou imóvel, de costas para todos, sem chorar, em um silêncio que calou sobre si mesmo. Enquanto Orvar ficava cabisbaixo, cerrou seus punhos; Ingeborg tentou falar algo, mas não conseguiu. Hjalmar teve uma visão: com borboletas de fogo pairando sobre um precipício desolado; próximos dali, em um vermelho agressivo, picos ásperos de degraus escarpados; era flagrante a fragilidade do céu amarelo esbranquiçado. Contudo, seu olhar não permaneceu na área inicial, foi descendo aos poucos, mergulhando nas trevas, e quando se deu conta, no fundo de tudo, as borboletas o haviam

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seguido, pontos luminosos vermelhos que cresceram e se abriram, e não estavam sozinhas: pouco à frente, avistou uma extensão rochosa sendo mastigada por chamas que iniciaram tímidas, e depois cresceram; não demorou e, observando melhor, reconheceu que aquela formação se parecia muito com um corpo humano estendido; e o rosto era o do seu pai, o barão Dietmar, como se tivesse sido esculpido com perfeição. As pupilas pareciam o último elemento de pedra ainda fria; antes que também fossem consumidas, deixou-se derreter nelas, passando a uma outra cena, onde quem ocupava a posição central desta vez era o velho Emmerich, vestido em trapos de pó, caminhando em meio a uma terrível ventania gélida. O experiente mago segurava uma pá, e ao parar de repente por alguma razão escolheu aquela parte da terra e se pôs a cavar com ímpeto, sem se importar com os ventos; contudo, foi ficando cansado, a velhice ia se evidenciando no sangue entre as rugas das mãos, e passou a levantar mais gemidos do que solo. Foi todavia surpreendente quando se voltou para Hjalmar, até ali mero espectador, e disse, com um sorriso simples e ao mesmo tempo forte e desafiador, dando um susto no filho de Dietmar: “Chegou a hora de você cumprir a sua missão. Estou cavando a cova para o demônio. Mas você precisa matá-lo antes. Não precisa me ajudar a cavar nada...Apenas não deixe este velho cavar em vão. Traga o cadáver do monstro até aqui.”, após estas palavras do espírito de Emmerich, o novo rei de Gamla voltou à realidade concreta; tanto fazia se fora realmente a alma do velho cavaleiro que falara ou se se tratara de uma representação fruto das memórias, de imagens subconscientes e de conceitos de Hjalmar: de todo modo uma parte ou totalidade do mago-guerreiro estivera presente e o auxiliara.

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Encerrada a experiência, tornou a encarar seus interlocutores; e falou com firmeza, sentindo-se muito maior, quase como se um deus da sabedoria estivesse abrangendo sua fala, um pouco como observador de si próprio, seus lábios com uma autonomia estranhamente confiante, ao passo que Orvar voltava a erguer sua cabeça: “Se estou pronto para ser rei? Se estou neste posto, simplesmente DEVO estar pronto. É a minha obrigação, do mesmo modo que um pastor deve conduzir seus animais, não plantar tristezas, que vão germinar imobilidade; da mesma forma que um agricultor precisa semear suas melhores sementes, não pastorear angústias, que nos colocam a perder em uma floresta solitária na qual medos e inseguranças são pássaros que passam derrubando a neve nas árvores. Não devemos nos assustar e fugir, e sim recolher a neve, enxergando nela o brilho da vida; então os pássaros irão nos respeitar, recolher suas asas, e isso significará a morte dos nossos inimigos; tomaremos seu desfiladeiro, e o rasgão estará congelado, se não suicidar suas águas.” “Palavras fortes e surpreendentes, que vossa majestade engendrou de sua reflexão silenciosa para dar a melhor resposta.”, comentou Tegn. “Embora eu não tenha certeza se compreendi tudo, acredito que tenha compreendido a essência do discurso.” “Logo estaremos em Samso. E lá o discurso das espadas que será necessário.”, replicou Hjalmar, fitado fixamente por Ingeborg, que depois, na intimidade do casal, perguntou a seu marido: “Hoje no salão, enquanto você estava olhando para a parede, alguma coisa aconteceu, não foi?” “Sim. Tive uma experiência visionária. Digamos que um sonho a olhos abertos, em que estive diante de outra alusão à morte do meu pai, como os pesadelos que vinha tendo. Agora eles estão todos explicados. E também recebi uma ajuda de um

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espírito superior, do homem que me fez o que sou, que foi meu segundo pai: Halr Emmerich.” “Você já me contou que ele foi seu instrutor, seu tutor, durante um bom período.”, só não dissera nada à esposa a respeito de magia. “Isso mesmo. Era um homem excepcional. Ou melhor, ainda é; estou certo que as palavras que disse sobre ser rei, sobre estar pronto para o posto, foram mais dele do que minhas. Na verdade, eu mais pronunciei, ou li um texto invisível. Enquanto falava, sentia como se alguém estivesse falando por mim e eu acompanhando, aprendendo. Pode ter sido só uma impressão, como pode não ter sido...” “Você também não deve se subestimar.” “Não é essa a questão. De todo modo, talvez não tenha sido mesmo Emmerich a me ajudar de forma direta desta vez, mas ele já me auxiliou muito direta e indiretamente...Se foi uma ajuda indireta agora, foi porque, quando ele ainda andava pelo nosso mundo, me falou uma vez sobre todos nós possuirmos um aspecto divino, além do humano; quiçá eu tenha acessado o meu aspecto divino por um instante, associando-o à imagem dele, porque foi a pessoa mais sábia que já conheci. Como o aspecto divino pode ser experienciado ilusoriamente como se fosse algo separado, dada a condição medíocre em que nos encontramos no dia a dia, posso ter ficado com essa impressão que outro movia a minha boca por mim, enquanto aprendia de mim mesmo.” “Parece um pouco complicado, mas acho que entendi. Só não posso dizer que estou tranquila, tendo ou não uma essência tão sublime em meu espírito...O fato é que ainda estamos presos neste mundo, e não temos mais nossos pais por perto.” “Realmente a situação apresenta pontos delicados. Mas o meu pai deve estar no Valhala, esperando por mim, e a sua mãe deve

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ter sido muito bem recebida no palácio de Freya.” “Escuta bem uma coisa: o seu pai ainda vai te esperar por um bom tempo no Valhala se depender de mim!” “Não dirigimos as nornas...” “Claro que não, mas sei que vai voltar de Samso com a ilha reconquistada e Argantyr vencido. E quero que você tenha a mesma convicção.” “Ele é o demônio do meu destino. Tenho que vencê-lo de qualquer forma.”, Hjalmar falou num tom mais baixo. “O que você disse?” “Ahn? Ah, nada...” “Você falou sobre um demônio. Isso ouvi.” “Argantyr é o demônio que matou meu pai, e que cheguei a ver como tal num dos pesadelos que tive. Quis dizer que é ele que tenho que vencer a todo custo...”, ainda que desconfiada que o esposo lhe escondia algo, Ingeborg não fez mais perguntas; ela que em breve sentiria a necessidade de lhe esconder algo...

III

Os fenômenos da manhã começaram a chamá-lo: o assovio dos pássaros; o farfalhar nas folhagens; na sombra da árvore, chamado para fora de si, abriu os olhos devagar e viu o sol que nascia, os raios que se espreguiçavam ao entrar na floresta, à distância se erguendo em seu despertar o paciente e imponente rei da luz. Hosvir chegou a ver, em sua imaginação, um gigante dourado que se levantava bocejando, seus pêlos que caiam se transformando em réstias de claridade. A primavera por ali durava muito pouco, por isso era preciso aproveitá-la bem, admirar os esquilos, nem todos capazes de sobreviver no rigoroso inverno. Por outro lado, relutara em fechar seus olhos

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para a realidade do sonho para abri-los para a realidade concreta (se uma realidade era mais leve e sutil, não se tornava por isso mentira; pelo contrário: o que era interno ou espiritual poderia lhe dizer muito mais do que o mundo físico); às vezes se imaginava com quatro olhos, dois para enxergar a natureza visível e dois para serem usados durante o sono, para a natureza interior e para a natureza invisível. Vinha experimentando sonhos lúcidos, e o último que vivenciara fora um no qual se sentira voando, pairando sobre o mar, das montanhas ao mar, e mesmo estando no alto podia enxergar os peixes com rara perfeição, melhor do que se estivesse próximo deles na matéria. Pouco depois de começar a escutar os sons da manhã, ainda dentro do sonho, plenamente consciente de si mesmo, de seu vôo, uma claridade intrusa e excessiva principiara a penetrar em seu espaço onírico; era a invasão do mundo concreto, os olhos da natureza exterior pedindo para serem abertos porque queriam contemplá-la. Sua relutância inicial foi sendo dobrada, a terra o atraiu, e ao despertar de seu sonho seu desagrado acabou vencido de vez quando ficou novamente maravilhado com a beleza singela da floresta; quando pensava que se cansara de admirar as árvores, as folhas, as flores, a grama e os animais, a natureza chegava outra vez, feito uma brisa, e permitia uma inspiração saborosa sempre renovada; não havia como resistir. Aquele bosque era sagrado à deusa Skadi, da qual Hosvir era um devoto sacerdote e que emprestava seu nome à cadeia de montanhas próxima, a maior de Gamla; estava cumprindo um período de austeridades, alimentando-se do que colhia e de pequenos animais, sempre pedindo a permissão e as bênçãos da deusa para caçar. Era um rapaz por volta dos vinte e cinco anos, de pele rosada, olhos azuis como o céu de seus melhores sonhos e cabelos precocemente brancos, cândidos como a neve

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para dizer a verdade, e por ali circulava em trajes de caçador, trazendo consigo um punhal e um arco com uma aljava e flechas. Sabia quanto tempo se passara pois contava cada dia, tendo de tomar o caminho de volta para Upsala quando o prazo estabelecido pelo patriarca de seu templo se cumprisse (e que só deveria ser quebrado em caso de extrema emergência, como um grande perigo inesperado); transcorria a maior parte do tempo procurando observar a natureza com a mente em silêncio ou realizando orações à sua deusa, tanto sentado como em caminhadas pela floresta ou nas cavernas da região. Com palavras pronunciadas ou mentais, ou meramente com sua intenção, devia constantemente pedir as bençãos de Skadi e se sentir uno com a fauna e a flora. Novas noites se passaram, e quase que pedia à deusa para que se aconchegassem e permanecessem por mais tempo, para que pudesse sonhar mais, e seus sonhos fossem mais longos e proveitosos; chegou a ter um, o mais difícil de abandonar, em que se encontrava em uma espécie de ciranda, e voltara a ser um menino, a seu lado outros sacerdotes que haviam começado no ofício por volta da mesma época, todos pequenos, ao fundo um duende tocando sua flauta e outro deixando sua voz deslizar em uma alegre cantiga. Na manhã seguinte, depois que a noite infelizmente precisara se despedir, foi lavar seu rosto na lagoa, como costumava fazer cedo todos os dias, quando percebeu pelo reflexo que não estava sozinho; não demonstrou contudo o leve susto que tomara, sem arregalar os olhos e sem sobressaltos, voltando-se para encarar de frente a criatura recém-chegada. “Olá. Não se preocupe, amigo. Estava apenas lavando o meu rosto. Não sei se pode me compreender, espero que sim, pois minha intenção não é aborrecê-lo ou incomodá-lo se este é seu

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território. Mas não havíamos ainda nos visto e já estive aqui algumas vezes.”, apesar da criatura ser estranha, não sentiu medo; não só por esta não ser nada assustadora, afinal as aparências podiam enganar, mas porque não exalava qualquer intenção hostil: era simples, e ela sim estava com medo, embora não do sacerdote: “Sim, eu entendo o que você diz, jovem. E estou aqui para lhe pedir ajuda, e para que peça mais ajuda a quem mais puder, pois em breve, se as coisas continuarem como estão, esta terra estará ameaçada de ser completamente destruída.” “Por que está dizendo isso?” “Estive em Samso recentemente, para visitar alguns amigos meus. Por isso que você nunca me viu, embora este seja o meu lago! Eu estava de viagem. E não são todas as pessoas que me veem, aliás muito poucas, apenas as que têm muito mais bondade do que maldade no coração. Por isso senti que podia lhe pedir ajuda! De todo modo, o que importa é que estive em Samso...E lá os demônios tomaram conta da ilha! A ilha foi ocupada e destroçada por monstros! Os meus amigos estão apavorados! Os demônios não os veem, por isso não podem matá-los diretamente, mas os assassinam indiretamente, pois nós vamos nos apagando, vamos deixando de existir, quando as florestas onde vivemos são destruídas, e quando os lagos que amamos ficam sujos de sangue. Algo precisa ser feito para impedir que os monstros de Hel e Loki tomem conta de Gamla!”, as revelações daquele wassermann, um benfazejo espírito elemental, chocaram Hosvir; a criatura de fala rouca e apressada media por volta de um metro e cinquenta, sua pele verde e escamosa, o nariz comprido e curvo, a boca pequena sem dentes, os olhos semicerrados, os cabelos grisalhos longos, suas mãos de quatro dedos, seus pés mais parecendo nadadeiras, a cauda fina com a ponta voltada para cima, e

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usava sobre a cabeça um chapeuzinho vermelho. “Fique calmo, bom espírito. Não sei o que pode estar acontecendo em Samso, mas me parece que está falando sério, por isso vou procurar investigar e ajudar dentro das minhas possibilidades.” “Estou falando sério, seríssimo! Mais sério impossível!” “Insisto, procure ficar tranquilo. Vou inclusive abreviar o período em que ficaria nesta floresta e voltar para Upsala. Falarei com os outros sacerdotes e com o patriarca a respeito, embora esteja quase certo que se a situação é tão grave eles já devem estar a par de tudo.” “Muito obrigado, meu jovem! Eu não posso fazer mais do que falar! Sou um espírito pacífico, e andei por algum tempo sem conseguir encontrar alguém que pudesse me ver e me ouvir. Quem diria que iria encontrar quem eu procurava quando já estava desistindo, bem em frente ao meu lar! Muitíssimo obrigado!”, e quando os olhos do wassermann se arregalaram, revelando grandes pupilas negras no fundo verde-água, a criatura sofreu uma metamorfose, crescendo vertiginosamente para cima, seus braços se expandindo, assim como sua cauda se alongando, seu pescoço aumentando, tornando-se um estranho ser alto, muito magro e incrivelmente flexível; seus cabelos se tornaram verde-claros e numa eclosão de alegria saltou para a água, atravessando-a sem causar nenhuma manifestação na superfície, nem um jorro, sequer uma pequena onda, despedindo-se do surpreso sacerdote com um aceno quando já estava ali dentro, ainda visível para ele, como um habitante de um espelho, logo desaparecendo. “Ainda preciso aprender bastante sobre os espíritos da natureza.”, refletiu Hosvir, chegando em alguns dias em Upsala e ficando a par da situação somente pela voz do patriarca. “Quer dizer então que nosso novo rei está partindo para

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recuperar Samso, que caiu nas mãos de Argantyr, mas que desta vez não possui um exército meramente humano...O que aquele filho da natureza me disse, agora faz todo o sentido.”, comentou com o velho Lutr, o respeitado patriarca do templo de Skadi em Upsala. O ambiente, onde prevaleciam tons de branco, apresentava diversas colunas de mármore, em seus capitéis esculpidas diferentes representações da deusa, em veste de caçadora ou no mar entre as criaturas marinhas, com saudade das montanhas. Cândido e com uma aparência um pouco rústica, fazendo lembrar uma montanha coberta de neve, era o trono onde se sentava o patriarca, um homem já sem cabelos, de face cansada, sua barba espessa e alva, sua pele marcada por inúmeras rugas, o único ali considerado digno de um traje inteiramente branco e de uma espécie de mitra da mesma coloração, que simbolizava a coroa de Skadi como rainha e senhora dos montes, enquanto os demais sacerdotes utilizavam vestes com capuzes azuis-escuras e negras, neste último caso os aprendizes, fase que Hosvir superara havia dois anos. “Nunca devemos transcurar as vozes da natureza que vibra fora de nós, da vida que dança e se espalha. Mas ultimamente ando ouvindo mais as vozes da natureza que salta dentro de mim, embora eu esteja muito velho, doente, e não tenha o mínimo vigor físico para pular pelos bosques como um jovem cervo de Skadi! Já tive minha época, por isso não devo me lamentar! Agora chegou o seu tempo, meu filho...E a hora para provar que minhas vozes internas não estão erradas.” “O que está querendo dizer, grande patriarca?” “Por muitos anos procurei um sucessor. Pelas regras do templo, caso o patriarca morra sem antes conseguir escolher um sucessor, este deve ser eleito entre os sacerdotes. Mas isso sempre me preocupou...Vocês são em maioria jovens, não têm

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maturidade e experiência para decidirem qual de vocês é o mais preparado para a função. Por muito tempo temi que morresse sem encontrar alguém à altura para seguir com a responsabilidade maior sobre o templo, até que me dei conta, analisando cada um de vocês, me esforçando para não ser injusto, para tomar a melhor decisão por todos, que você é definitivamente o único que está pronto. E percebi isso ainda melhor depois que retornou da natureza. Me desculpe por ter pedido aos outros para que não respondessem todas as suas perguntas assim que chegasse e o deixassem fechado e isolado até que o chamasse para falar comigo. Precisei refletir bem. Tudo foi necessário. Quando chega a idade, as decisões por impulso devem ser evitadas a todo custo.” “Patriarca...” “Não faça objeções! Sei que há sacerdotes menos jovens, de quarenta, cinquenta anos; mas eu estou com quase cem anos! Perto de mim, todos não passam de crianças! E você, apesar de ter a metade da idade dos menos inexperientes, tem a mente e o coração prontos para o trabalho que precisará realizar. Só que antes...” “Antes o quê, patriarca?” “Antes precisará passar por uma derradeira prova, que lhe permitirá dar um salto interno extraordinário e há de demonstrar que estou correto. Já fiz meu testamento, hoje pela manhã, e escrevi que caso eu venha a morrer em breve e você não voltar, Hreimr, aquele gritão, que fala alto demais mas tem um grande coração e é bastante persistente, ficará em meu lugar; mas se você retornar, ocupará o meu posto. Teoricamente será o mais jovem patriarca que este templo já teve, mas andei examinando outras vidas suas no espelho de Skadi, e sei que é um espírito de uma nobreza muito antiga, na verdade...”, referia-se a um espelho mágico, que se dizia que fora

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abençoado pela própria deusa em tempos imemoriais, com uma moldura dourada encimada por dois grandes olhos, que apenas os patriarcas podiam e conseguiam usar; caso alguém não consagrado tentasse enxergar através dele as maravilhas pretendidas, veria os piores horrores que possam ser imaginados e ficaria louco. Costumava ficar encoberto por um pano branco, no aposento do patriarca. Não era preciso nenhum treinamento específico para ver o que se queria através dele, apenas ser o legítimo patriarca, e se habituar à sua utilização, claro que jamais por razões egoístas, somente para o bem do templo. “Não sei se estou entendendo bem. O que o senhor está querendo dizer é que...” “Você vai partir com Hjalmar e suas forças, e auxiliá-lo a vencer aquele demônio, Argantyr. Se eu já tiver sido chamado pelos deuses a essa altura, caso você retorne vitorioso será o novo patriarca; caso contrário, Hreimr ocupará o posto. Espero sinceramente que você volte, meu filho...Os deuses que me perdoem, mas que eles sejam um pouco pacientes antes de acolhê-lo em Asgard!”, Hosvir pensou então em dizer que era demais para ele, que ainda se considerava muito inexperiente e imaturo, mas uma segurança súbita fez seu peito crescer e, levantando a cabeça que ficara cabisbaixa por poucos segundos, o que saiu foi um firme agradecimento: “Muito obrigado pela confiança, patriarca.” “Não há de quê.”, o velho replicou com um sorriso repleto de simplicidade; de seus filhos espirituais, embora amasse todos, aquele rapaz era o mais querido e nele depositava o maior apreço. Ainda se lembrava perfeitamente de quando Hosvir chegara, ainda bebê, abandonado por alguém, se pai, mãe ou outro não se sabia, na porta do templo em uma noite gelada de inverno; um cálido e agitado presente dos deuses, que aquecera

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seu coração tão vivido, que então voltara a se encantar: ao retirá-lo das cobertas no cesto, entre seus braços, no aconchego de seu peito, o pequeno rapidamente parara de chorar.

Procurou se ajeitar sobre a cama, remexendo sua magreza. “Tente ficar calmo, senhor. Ficar agitado agora não irá ajudar em nada.”, ela queria mantê-lo tranquilo: tratava-se da esbelta Svanni, olhos negros como seus cabelos lisos, em sua testa uma tira prateada com uma runa lunar, o rosto alongado, os lábios finos e delicados condizendo com sua voz adocicada, sua pele bem branca; vestia a túnica esverdeada de mangas compridas que caracterizava as sacerdotisas de Eir em Upsala, que eram sobretudo médicas com amplos conhecimentos e uma formação moral irretocável. Estava cuidando de um dos doentes alojados no templo: nem sempre era possível haver apenas um por quarto, mas naqueles dias estavam até com dois aposentos vagos. Teimoso, o senhor Tronubeina gostava de esticar suas pernas, porém estas se achavam extremamente rígidas e doloridas, o que tornava isso impossível no momento. Ao menos sua consciência era plena: já estivera muito pior, a febre a lhe açoitar a noção de si mesmo, com fortes tonturas distorcendo-lhe a percepção do espaço, brincando com o que era direita e o que era esquerda, o que era acima e o que era abaixo, chegando quase a se sentir andando no céu, sua saúde um bobo da corte multicolorido trôpego, barulhento e sem respeito por nada e nem ninguém. Svanni dava especial valor à respiração: incentivava-o a inspirar com profundidade e a prestar atenção ao expirar, mesmo que às vezes fosse difícil exigir que se concentrasse, que não ficasse o tempo todo se agitando ou se queixando de forma grosseira; mas era uma moça paciente, e tranquilizava-o sempre que depositava com brandura uma de suas mãos sobre

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suas costelas; com um toque simples e estável, deixando ali sua mão, estas subiam e desciam com mais gentileza, e a vida se aprumava sem mais revoltas e exaltações, ao menos não exteriores. “O mais triste é como gosto dessa sua ternura.” “E por que isso seria triste, senhor Tronubeina?” “Porque sinto que você é muito parecida comigo. E eu não deveria ser dessa forma...” “Como assim?” “Um homem não pode ser só ternura, tem que ser força! No meu quarteirão, o meu apelido é senhor Ergi3. Sou um desviado!” “Ah...Agora acho que entendi. Mas não se sinta mal, por favor. Aqui nada disso é relevante. O importante é o senhor se curar.” “Na idade em que estou, já devia ter tido filhos, família; mas essa maldita e avassaladora ternura me persegue! Gosto de estar com as mulheres, desde pequeno gostava de estar com as meninas, de brincar com elas; sempre fui muito inquieto, pode não parecer que tenho essa sensibilidade delicada, e você me vê de um jeito que pareço até agressivo! Mas é uma agressividade sem força, é uma falsa virilidade, tanto que você me dobra, e não pela sua presença, porque a presença das mulheres em si não é o que me faz querer estar perto delas, ao contrário do que acontece com homens de verdade, e sim porque sinto em você, e em todas as mulheres, o que tenho por dentro de melhor, mas que não é algo apropriado para um homem. Nunca quis tocar nenhuma mulher...Intimamente. Só quero vocês perto de mim, para dividir as impressões em comum sobre o mundo e os homens. Mas nunca estive com nenhum homem...Não em contato mais próximo! Mas os

3 No nórdico antigo, o termo ergi denotava efeminação.

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observo, e gosto de falar sobre eles.” “O senhor parece confuso.” “Pelo contrário, estou muito lúcido agora. Mais lúcido do que nunca.”, levantou o braço, mas precisaria de força para sustentar aquela tremedeira torta, não conseguindo mantê-lo erguido. Svanni não disse mais nada por dois minutos ou pouco mais, e nem ele, restando um silêncio enrolado, mentalmente balbuciante. Quando Tronubeina enfim desenterrou sua voz, com a impressão que transcorrera muito mais tempo do que realmente passara, foi para dizer: “Obrigado pela sua ternura...Obrigado por me tocar.”, agradava-lhe receber das mulheres os toques singelos, sem malícia. “Não sei por que, mas tenho a impressão que o senhor sente muita falta da sua mãe.” “Quem diria, não é? Um homem de idade avançada como eu...Mas é verdade, não me esqueço dela. Acho que por causa dela que fiquei doente.”, semanas transcorrendo, ao testemunhar seu progresso, tanto em seus atos e palavras como em sua saúde física, quase pronto para deixar o templo, embora Svanni pretendesse continuar a visitá-lo em casa algumas vezes, e ele já fizera o convite, a sacerdotisa foi passando a se sentir um pouco sua mãe, mesmo sendo consideravelmente mais jovem, grávida de uma inaudita esperança. Ao ser anunciada a partida do rei e do grosso do exército de Gamla para reconquistar Samso, algumas forças de defesa permanecendo em Upsala para proteger a capital em caso de um ataque-surpresa de algum inimigo oculto ou do próprio Argantyr (ainda que Hjalmar duvidasse que seu inimigo declarado fosse fazer algo do gênero, seus conselheiros lhe disseram que era melhor ser precavido em todos os aspectos), as sacerdotisas de Eir foram convocadas a participar da campanha como forças de apoio médico. Nem todas partiriam,

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porém se reuniram justamente para decidirem quais. No salão principal do templo havia uma estátua de Eir no centro, com por volta de três metros de altura, um mármore esverdeado seu material, assim como o que predominava no ambiente ao redor, a não ser nos olhos de rubi da deusa, que segurava um cajado com uma serpente enroscada, seus cabelos esculpidos de forma a passarem a impressão de serem bravios e vívidos; a reunião se deu em volta da escultura, todas de pé, a magna-sacerdotisa Erna na posição central, bem debaixo da mão da deusa que segurava com firmeza o bastão sagrado. Tratava-se de uma mulher de semblante ameno e confiável, os olhos e os cabelos castanhos, curtos, na faixa dos sessenta anos. Em sua túnica estava bordada no peito uma runa de Eir, e ao lado uma de Frija, pois como líder das sacerdotisas era também a mãe adotiva de todas as outras, portanto uma devota não só da valquíria da cura como da deusa-símbolo da maternidade, sempre a mais velha a ser colocada no posto. Ao ser anunciada como uma das que partiriam com as forças do rei, Svanni ficou receosa de expor uma objeção, mas teve de fazê-lo, afinal se não a expusesse ficaria com o problema e a culpa a continuamente mordiscar os ouvidos de sua mente: “Senhora e mãe,”, era o modo mais polido para interpelar a magna-sacerdotisa. “É uma grande honra para mim partir para desenvolver o trabalho de ajudar nossos guerreiros e tratar os feridos de guerra, impedindo assim muitas mortes. Todavia, há uma questão que me aflige.” “O que seria, minha filha? Sinta-se à vontade para desabafar. Estou aqui para ouvi-la e procurar entendê-la.”, replicou Erna. “É que estou cuidando de um homem, e ele está quase pronto para deixar o templo. Como posso abandoná-lo já numa fase avançada do tratamento e partir?” “Está falando do senhor Tronubeina, não é?”

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“Sim, ele mesmo. Que bom que a senhora está a par.” “Estou perfeitamente a par de todos os doentes que se encontram neste templo, querida. Não pense que os relatórios que vocês deixam nos aposentos deles a cada semana são uma mera questão burocrática e formal. Eu os leio e, sempre que posso, fico com os doentes.”, Svanni gostava de redigi-los no penúltimo dia do prazo semanal, antes de dormir, à luz de velas, em seu quarto. Não era do seu agrado escrever de dia. Os textos eram escritos com penas de ganso sobre pergaminhos. “O caso do senhor Tronubeina está quase resolvido e não se preocupe, cuidarei dele enquanto você não estiver aqui. Quando voltar, ele já estará em casa e você poderá visitá-lo. As sacerdotisas que decidi não enviar são aquelas que estão com os casos mais graves, que ainda requerem uma atenção próxima e demorada. Por isso não se culpe por nada e vá tranquila.” “Muito obrigada, mãe.”, inclinou-se levemente antes de se aproximar para beijar-lhe as mãos, que tinham cada qual em seu dedo anular um anel de ouro; Erna sorriu de forma benevolente, e poucos dias depois Svanni estava entre os soldados, sentindo-se bastante desajeitada no meio de tantos homens, procurando paz e abrigo entre suas irmãs sempre que podia. As sacerdotisas de Eir tinham pouquíssimo contato com o sexo masculino, a não ser com os doentes que tratavam, e Svanni em particular era bastante desajeitada e envergonhada com os soldados no dia a dia. Só ficava mais solta com os homens ao fazer seu trabalho; nisso sua timidez desaparecia rapidamente. Assim como suas companheiras, de diferentes origens sociais, não havendo nenhuma restrição a esse respeito, fizera um voto de castidade ao ingressar na ordem, o que no caso dela se dera após uma série de sonhos, ainda na infância, em que se vira já adulta fazendo curativos em feridos e

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impondo suas mãos sobre diversos tipos de doentes; como na realidade, a imposição liberava uma aconchegante aura verde. Ao ouvir falar dos monstros do exército de Argantyr, ficou receosa; não podia negar o medo, afinal nunca encarara uma situação como aquela, em que teria que pela primeira vez usar a espada; as sacerdotisas de Eir aprendiam também a se defender, manuseando espadas e bastões, além de desenvolverem uma boa magia defensiva, mas treinar era diferente de estar num campo de batalha. A cada parada do exército, se juntavam em volta da fogueira que faziam (cada grupo tinha a responsabilidade de montar a sua) para desabafar seus medos antes de dormir; assim acreditavam evitar pesadelos, e Svanni acabou percebendo que de todas era a menos apavorada. Numa das noites, sentiu um olhar direcionado para seu grupo, que suas irmãs não notaram de tão entretidas que deviam estar com seus medos; descobriu logo de quem se tratava: reconheceu um sacerdote de Skadi, que ao perceber que fora descoberto de imediato virou o rosto e as costas. “Era só curiosidade...”, encolheu os ombros e sorriu para si mesma; algo natural, pensou, afinal os devotos de Skadi também eram castos e tinham pouquíssimo contato com mulheres, o que talvez para os homens fosse pior. Ao menos entre as tropas de Hjalmar, não parecia haver com o que se preocupar... Quem se preocupava com o rei, já longe dali, em Upsala, era Ingeborg. “Você tem que voltar. Você precisa voltar de qualquer jeito, Hjalmar. Porque o que carrego agora comigo também é seu, é nosso tesouro, e seu prêmio de guerra para depois que voltar vitorioso, tendo salvo Gamla do demônio que a ameaça. Volte, por favor...”, a angústia da rainha se justificava plenamente,

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pois fora antes da partida do marido, após experienciar estranhos enjoos e tonturas, até a magna-sacerdotisa de Eir, que, após colocar a mão em seu ventre, não só sentira de imediato como vira ali uma criança em formação, envolvida pelo líquido amniótico. E seria um menino. “Eu já esperava por isso. E a senhora não pode imaginar como estou feliz com a notícia, ao mesmo tempo que estou triste.” “Triste por que, majestade?”, questionou Erna. "Porque Hjalmar, que também iria ficar muito feliz com essa criança, com seu pequeno príncipe, não poderá saber sobre ele agora.” “E por que não?” “Sei que não deveria esconder nada do meu marido, que é também o rei, e talvez a senhora possa me censurar por isso, mas procure me entender: não quero que ele se preocupe; quero que se concentre na guerra, e assim poderá vencê-la e voltar o quanto antes para os meus braços e para o nosso filho. Se souber da minha gravidez, é capaz de ficar ansioso, preocupado comigo e com o bebê, e disso aquele maldito Argantyr pode tirar proveito.” “O que diz faz sentido, majestade. E é uma atitude nobre de sua parte, pois é difícil evitar de sair bradando aos quatro ventos uma alegria como esta. Eu não tive oportunidade de ser mãe, ou melhor, não de ser mãe de sangue, de carregar uma filha em meu ventre...Mas imagino como deva ser. E não deve ser nada fácil segurar essa novidade tão relevante para o homem que ama e para o povo de Gamla. Por outro lado, se vossa majestade contasse, o jovem príncipe daria um novo alento à população, tão assutada com a perspectiva do ataque de Argantyr; e a notícia do filho poderia fazer um efeito contrário ao que vossa majestade disse, dar forças a mais ao rei para vencer, fornecer um novo estímulo, um motivo a mais

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para que retorne vitorioso.” “Sei disso. Pesei várias possibilidades quando comecei a pensar que estaria grávida. Há mais um porém: se Argantyr descobrir que carrego o novo príncipe de Gamla em mim, ele pode enviar algum sicário para nos matar.” “Não sei se ele faria isso. Apesar de tudo, Argantyr parece mais interessado em antes de qualquer coisa resolver seu confronto particular com sua majestade Hjalmar. E quer vencê-lo na plenitude das forças, provando dessa forma que é superior, um herói superior; não quer enfrentar nosso rei abalado.” “O que a senhora diz faz sim sentido. Mas...Acho que já tomei a minha decisão. Vou preservar meu marido. Não vou lhe dar mais nenhuma preocupação. Ele terá a maior das surpresas quando voltar.” “Não acho que sua decisão esteja equivocada, majestade. Apenas apresentei outros cenários possíveis.” “Claro, Erna. Não se preocupe. Entendi perfeitamente e a agradeço por tudo.”

Faltava pouco para chegarem à cidade de Brudr, de onde zarpariam para Samso. Brudr já fora denominada a “noiva” de Upsala pelo fato de, estando próxima à capital, ser o principal porto de Gamla, importante tanto por receber diversos produtos das ilhas, vital por isso para o comércio, como para a proteção do núcleo do reino, contando com a maior e mais bem equipada frota defensiva, relevante para bloquear ataques pelo mar. Usariam alguns dos navios da cidade, os melhores do país, e contariam com alguns de seus homens, muito experientes naquelas águas, que poderiam apresentar novas hostilidades, para se dirigirem para Samso.

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Contudo, na planície que antecedia Brudr, a tarde já chegava ao fim e a noite se avolumava quando foi avistado, descendo junto com a escuridão, um enorme dragão azul-prateado. Seria uma fera hostil? Ou era melhor aguardar antes de agredi-lo, o que talvez provocaria um estrago maior? Uma criatura como aquela não seria fácil de abater, e certamente causaria algumas perdas, que poderiam significar dificuldades ou mesmo a derrota ante forças mais numerosas de Argantyr. Por outro lado, se o dragão atacasse de repente, poderia ser tarde demais, e teriam perdido a oportunidade de se defender e perder menos homens. Hjalmar decidiu pelo aparentemente mais arriscado: não provocar a besta; sequer fazer movimentos; e só quando o dragão pousou, próximo às tropas, que notaram que havia um homem sobre este, muito diminuto entre suas asas. Todavia, o rei de Gamla sentiu que quem era maior ali mágica e espiritualmente era este indivíduo, dominando a fera com uma mente poderosíssima: um mago de primeira categoria, sem dúvidas. O que desejava do exército de Gamla? Fato que desceu do dragão, após este se abaixar, e lhe fez uma carícia em seu imenso crânio, audível a seguir um guincho meio que de carinho e meio que de protesto, justificado pelo afastamento do dono, que começou a andar na direção de Hjalmar: Orvar e outros guerreiros se juntaram em volta do rei, que no entanto fez um sinal para que se afastassem: “Não se preocupem. Ele não me parece hostil. Podem deixar que cuido disso.” “Cuidado, Hjalmar.”, seu amigo-irmão, o único ali que o chamava pelo nome, o advertiu. “Esse homem pode ser muito perigoso. Não é qualquer um que controla um dragão como esse.” “Acha que não sei disso?”, confiante, o rei de Gamla se adiantou: ficou frente a frente com o outro indivíduo, um homem magro, de altura mediana, cabelos loiros curtos e

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óculos grandes, nos quais mexia com alguma constância; havia um ar lúdico em sua expressão, bem diferente da responsável sisudez do monarca. Assim que se encararam de perto e Hjalmar aprofundou seu olhar nos olhos dele, notou como se fossem duas chamas azuis ali refulgindo; havia um grande poder queimando: mas não se intimidou: “Quem é você?” “O meu nome é Johann Sehnsucht. Trata-se de um imenso prazer estar aqui, diante de vossa majestade, o novo rei de Gamla, que sei que é também um herói de qualidades extraordinárias!”, pronunciou-se, enquanto fazia uma reverência para Hjalmar; usava uma túnica e uma capa escuras e empunhava um cetro negro que culminava em um globo repleto de pedras preciosas. “Poupe-me de adulações. Sei o que sou, reconheço o meu valor, e não preciso de ninguém que me diga isso. Mas não sei quem você é, não conheço seu valor, e portanto preciso que se apresente melhor, e diga mais do que apenas seu nome.” “Claro, majestade! Sou um mago do colégio de Knittlingen, do reino de Prusha, e estou em uma jornada iniciática. Vim até aqui porque soube da situação de Samso, e é verdadeiramente trágica! Nós magos não podemos permitir que semelhantes coisas aconteçam em nosso mundo, Hel não pode transformar tudo em Nifelheim, que os monstros e os mortos fiquem em seu lugar! E é por isso que estou aqui: cheguei à conclusão que, para que o processo de iniciação em que estou se conclua, devo ajudar vossa majestade a livrar Samso das trevas. Devo combater o mal e ajudar um reino nobre como Gamla! Dessa forma, minha magia irá crescer, assim como meu caráter adquirirá uma nova solidez, uma nova maturidade. Vossa majestade me aceita em seu exército?” “Não o conheço ainda, como posso confiar em você?” “Vossa majestade também é um mago...Acha que não posso

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sentir isso?”, disse em voz bem baixa, abrindo um sorriso cínico; nenhum soldado, mesmo os do grupo de Orvar, o mais próximo do rei, conseguiu ouvir. “Não sei por que, mas não estou simpatizando com você. Desconfio que seja do tipo de mago que mexe com forças muito perigosas. Talvez não seja muito diferente de Argantyr, em índole. Como soube da situação de Samso?” “Peço sempre que meu espelho mágico me mostre o que é útil para meu crescimento. Quanto ao que denomina “forças perigosas”, eu trabalho com alquimia, e de fato é uma prática bastante controversa, mas saiba que não quero me tornar um fazedor de ouro! Não tenho o menor interesse nisso!” “E o que pretende ganhar me ajudando, além do seu crescimento interno? Sei que não quer apenas isso.” “Vossa majestade é mesmo um mago de grande sensibilidade! Não me decepciona nem um pouco! Só o que desejaria é um pouco do ouro de seu reino...O quanto puder me pagar, ficarei satisfeito.” “Você quer ouro então...” “Exato. Para trabalhar com ele, não para produzi-lo.” “Não entendo nada de alquimia, por isso não posso julgar a sua prática, mas pela forma como trata esse seu dragão, talvez esteja me equivocando ao julgá-lo mal-intencionado. Você dominou a mente dele, e não aprovo esse tipo de imposição, mas o trata com carinho. Se fosse puramente maligno, provavelmente não agiria dessa forma, o trataria como mero escravo. Talvez tenha me precipitado ao pensar que fosse igual a Argantyr.” “Não sou mesmo igual àquele demônio! E posso lhe assegurar uma coisa, majestade: mesmo sendo um grande mago, as suas forças hoje são inferiores às de Argantyr; pode parecer duro, ou arrogância minha, mas será impossível vencer sem que eu e

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Taranis, meu amado dragão do relâmpago, ajudemos seus guerreiros.” “Não acha que está nos subestimando?” “Vossa majestade que talvez esteja subestimando Argantyr. Ele progrediu muito nestes anos! A Tirfing, a espada em seu poder, adquiriu uma força muito maior sob sua posse; e além de contar com uma quantidade incrível de monstros e de ter aprendido a controlar seus berserkers, ele possui dois sacerdotes de Loki a seu favor, que são os que trouxeram estes demônios ao nosso mundo e querem, inclusive, libertar Loki. Isso seria uma catástrofe sem precedentes!” “Como pode saber disso tudo??” “Já lhe disse! Vossa majestade, não encare isso como provocação, mas precisaria utilizar mais seu espelho mágico, se o tem. Porém entendo que possui muitos afazeres como rei, enquanto eu sou apenas um simples estudioso de magia e alquimia, sem responsabilidades com um povo inteiro.” “Confesso que estou um pouco surpreso.” “Comigo ou com a nova força de Argantyr?” “Com as duas coisas. Devo reconhecer que como mago você é superior a mim." “Mas não tenho uma espada como a do senhor...” “O pior é que sinto que não está mentindo, pelo menos não sobre Argantyr. Acho que serei obrigado a aceitar a sua ajuda.” “Não irá se arrepender, majestade. Eu garanto!” “Talvez eu me arrependa, e esteja criando um futuro inimigo pior do que Argantyr. Mas cada coisa de uma vez...Cada adversário de uma vez.” “Nunca serei seu adversário, majestade! Não tenho interesse em reinos mundanos.” “Seja como for, vamos trabalhar juntos por algum tempo.”, respondeu após alguns segundos reflexivos de silêncio, em que

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olhou um pouco para os céus, e um pouco encarou o mago; ignorou a provocação contida nos reinos mundanos. Johann, sorrindo, estendeu-lhe a mão após receber a resposta. Hjalmar hesitou por algum tempo, mas acabou por apertá-la. “Se algo me acontecer, exija de todo modo seu pagamento. Logo chegaremos em Brudr. Vou redigir e deixar lá, no notário, um documento de oficialização do nosso acordo, com os valores em ouro que considero justos.” “Confio em sua palavra, majestade. Sei que não é traiçoeiro e mesquinho. Não pode imaginar como estou emocionado! Agora somos irmãos de guerra!”, ao que o rei de Gamla não respondeu, virando o rosto, dando as costas para o mago e comunicando a seguir a seus soldados que Johann era o mais novo integrante das tropas de Gamla que iriam enfrentar Argantyr. Mais tarde, a sós com Orvar, já em Brudr, onde pararam para passar a noite (e também para que o acordo com o mago fosse formalizado, o tabelião sendo chamado e reabrindo quando já era tarde só para atender o rei), alojando-se nos navios em que iriam zarpar pela manhã (exceto Johann, que iria em Taranis, que ao passar sobre a cidade provocou um tremendo alvoroço entre o habitantes a princípio, mas Hjalmar logo tratou de tranquilizá-los, e a criatura foi descansar seu enorme corpanzil na praia), o irmão de criação do rei de Gamla não se furtou de opinar: “Não acho que esse homem seja confiável.” “Você desconfiava de Volundar, se lembra?” “Meu papel é ser sempre o chato, desconfiar, e você quase nunca segue o que eu digo, mas sempre me ouve.” “Claro, preciso ouvi-lo. Sempre é necessário ouvir uma opinião oposta à que se tem, ainda mais de alguém próximo e confiável. Isso ajuda as decisões a serem mais firmes, medidos os pontos fracos.”

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“Esse Johann é diferente de Volundar, isso você há de concordar comigo.” “Claro. E não discordo de você nem no ponto em que diz que ele não é confiável. Ele não é mesmo. É perigoso. Mas não acho que vá nos fazer nada.” “O que garante isso? O ouro?” “Também, mas não só. Ele não tem mesmo o menor interesse em ameaçar Gamla. E alguém como ele quer sossego para realizar suas próprias experiências. Se Argantyr crescer demais, pode chegar a ameaçar Prusha com seus monstros, e poderia ser tarde demais para ser detido, ainda mais se Loki se soltar da prisão que os deuses lhe impuseram.” “Por mais que esses tais sacerdotes de Loki, pelo que Johann disse, sejam perigosos, não acho que possam quebrar uma prisão espiritual imposta por Odin, Skadi e outros deuses.”, enquanto formalizavam o acordo, o rei-mago e o mago de Knittlingen haviam conversado mais a respeito. “Isso não sabemos. Odin pode ter subestimado a nós, humanos. Nem mesmo os deuses estão livres de erros...”, na ida para Samso, nenhum encontro com monstros marinhos e nem tempestades; o mar parecia até tranquilo demais. Só que quando começaram a ficar mais próximos da ilha, uma neblina apareceu, a princípio tênue, adensando-se de vez na praia de Samso, onde já não era quase possível distinguir o dia da noite. Notaram também que, além da névoa, o mar ali estava mais escuro e a temperatura era gelada. “Como isso aqui está diferente...Não parece a mesma ilha em que nascemos.”, Hjalmar comentou amargamente com seu amigo. “É verdade.”, Orvar não conseguiu dizer mais nada, invadido por uma forte melancolia, perseguido por uma sensação que talvez fosse um dos últimos dias de sua vida, se não o último. Precisava estar preparado para a morte, seja a sua, seja para

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aceitar a morte de seus companheiros. Ancoraram os navios e, ao avançarem, iam penetrar na floresta, na entrada da qual duas sombras os aguardavam; não eram porém inimigos: lá estavam Volundar, o anão, o forjador da Naglering, a pé, armado com um machado curto de dois gumes e com uma corrente amarrada à sua cintura, e o pequeno Nill, que tomara coragem para se fazer visível a todos, montado em um pônei. “Vocês aqui...”, disse Hjalmar, admirado. “Por que a surpresa? Achou que íamos nos acovardar e deixar que a nossa ilha fosse dominada por monstros? Eu já andei lutando com algumas dessas aberrações, mas reconheço, sozinho nunca iria dar conta de todas essas coisas! Se for para morrer, morrerei de forma útil, não num sacrifício louco!”, replicou Volundar. “E você? Não me diga que também quer ajudar a salvar Samso...”, Orvar não perdeu a oportunidade de cutucar Nill. “Deve estar aqui pra conseguir inspiração pra mais uma canção épica.” “Na verdade, eu nem sei direito o que estou fazendo aqui. Acho que estou aqui porque o senhor Volundar me obrigou! Porque não tenho força pra lutar, e nem sei se vou conseguir compor uma canção com tantos monstros por aí. Já vi algumas caras, são tão feias que vão bloquear toda a minha inspiração!”, pelo seu semblante, via-se que o duende estava mesmo com muito medo. “Deixe de ser molenga, seu duende safado! Você conhece alguns bons truques e pode ser útil sim senhor!”, Volundar deu um tapa nas costas de Nill, que quase caiu de seu pônei. “Nobres guerreiros e guerreiras...”, Hjalmar se voltou então para seu exército, que parara com a parada de seu rei e comandante, apenas Orvar seguindo adiante, sempre ao lado do

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soberano: “Creio que vocês não conhecem esses dois, mas foi graças a eles que pude vencer o jotun chamado Grim e salvar Samso pela primeira vez. O duende chama-se Nill, e foi quem conduziu a mim e a Orvar a este grande artista das armas, que é Volundar, o forjador da Naglering!”, falou com toda a potência de seus pulmões, para que mesmo os que estavam no fundo pudessem escutar. Os que ainda assim tiveram dificuldades para ouvir foram informados pelos que estavam à frente. O olhar de Hosvir para o duende e o gnomo era de profundo encanto. “Se esse anão é o forjador da espada mágica do nosso rei, que bom que veio até nós, talvez tenha outras para nos fornecer!”, um soldado exclamou. “Deixe de ser idiota! Acha que armas mágicas são assim, fáceis de fazer, e que saem de um forno como quem tira um bolo?”, outro contestou. “Não quis dizer isso! Mas se não for para nos dar novas armas, por que ele viria?” “Você não raciocina? Anões também são bons guerreiros e ele vive nesta ilha, pelo que parece. Com certeza veio nos ajudar! E não podemos subestimar isso. Meu avô uma vez me contou de lutas que teve ao lado de um anão, que era um sujeito incrível...”, e muitas outras conversas paralelas começaram. “Ei, ei! Eu queria me manter discreto! Não precisava dizer que forjei a Naglering!”, Volundar “protestou” contra a homenagem, mas no fundo estava adorando. “Você não merece nenhuma discrição.”, Hjalmar respondeu com um sorriso jocoso. “Até eu fiquei um pouco encabulado...”, Nill passou a mão por sua cabeça e soltou um risinho. “Porque você reconheceu que eu tenho uma parcela em tudo o que aconteceu. De certa forma, também sou um herói!”

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“Menos, Nill...Bem menos.”, Orvar provocou o duende. “Nunca fiz pouco caso do seu valor.”, o rei de Gamla respondeu ao pequeno. “Talvez você seja um herói relutante, mas não deixa de ser um herói.” “Herói relutante?”, indagou Nill. “Ele quis dizer que você é um medroso, um covarde, um fujão falador, mas apesar disso tem o seu valor.”, o forjador da Naglering respondeu. “Estou começando a simpatizar com você, Volundar.”, Orvar comentou e Hjalmar soltou uma boa risada, até o anão liberando um riso breve, apenas Nill cruzando os braços e fazendo uma careta de desagrado. Contudo, Volundar sentiu um súbito peso espinhoso em seus ombros, seu olhar a seguir caindo em Johann, que estava um pouco atrás das tropas, ao lado de seu dragão, os dois em uma postura aparentemente pacífica, agora no solo. “Quem é aquele ali?”, não poderia deixar de perguntar. “È Johann Sehnsucht, um mago de Prusha.”, de imediato o rei de Gamla respondeu. “Algum problema com ele?” “Todos. Você não se deu conta de nada?” “Sei que ele não é cem por cento confiável. Mas por enquanto é um aliado valioso.” “Eu já adverti Hjalmar sobre ele.”, Orvar interveio. “Orvar não confiou nem em você, Volundar...” “Só que dessa vez ele tem razão. Esse homem é um mago incrível, mas ao mesmo tempo muito perigoso. Se ele se voltar contra nós depois de estarmos feridos, será o nosso fim.”, disse o anão. “Não acredito que isso vá acontecer. O que você sente com exatidão?” “Por mais que ele saiba disfarçar bem, tanto que não o percebi enquanto sentia todo o seu exército se aproximando da ilha, há

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um horror absoluto em volta do coração dele. Algo que o torna muito pior do que Argantyr.” “Por enquanto, vamos tentar aceitá-lo do nosso lado. Depois vamos ver o que faremos.” “Depois pode ser tarde demais, Hjalmar.” “Procure confiar em mim e na Naglering.” “Um grande problema dos heróis é esse: sempre confiam excessivamente em si mesmos!”, não discutiram mais; era hora de voltar a avançar, enquanto Nill não tivera a mínima coragem de olhar para Johann, que por sua vez demonstrava absoluta tranquilidade, como se não tivesse escutado nada do que haviam conversado sobre ele...

Mover-se nos estreitos espaços da floresta de Samso era impossível para Taranis; por isso a sobrevoava, acompanhando as tropas, enquanto Johann seguia com os guerreiros abaixo. Contudo, a distância não o impedia de continuar, com sua mente poderosa, comandando o dragão, que por sua vez não só podia enxergar cada detalhe do que ocorria abaixo com sua visão extremamente aguçada e dinâmica, que lhe permitia escolher entre um foco mais geral e outro mais preciso, como era capaz de ver através dos objetos, as árvores não sendo portanto obstáculos para que se quisesse percebesse em minúcias cada indivíduo que avançava abaixo, isso além de sentir o calor que seus corpos emanavam. Depois, quando saíssem da floresta para uma área mais livre e ampla, teria sua obediência recompensada pelas carícias de Johann, o único ali capaz de tocá-lo; qualquer outro seria eletrocutado. A meta era ultrapassar aquela floresta e se aproximar da área na qual se encontrava o antigo castelo do barão, onde Argantyr devia estar esperando. Hjalmar pensou que era provável que já os tivesse sentido, e de fato o rei de Gandarki havia pouco que

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se levantara do assento que fora de Dietmar e desembainhara a Tirfing à frente de seu rosto. “Está chegando a hora!”, e a confirmação veio pelos lábios de Wagner, que entrou no salão para avisá-lo: “Majestade, eles chegaram. Como devemos recepcioná-los?”; um sorriso sombrio, em ressonância com o semblante cínico do sacerdote de Loki, se formou no rosto de Argantyr. Algum tempo depois, na floresta teve início o primeiro ataque dos monstros... “Parece que os nossos anfitriões chegaram! Ou pelo menos a criadagem deles! Não vamos decepcioná-los, faço questão de ser um hóspede bem barulhento!”, disse Volundar, lançando-se com seu machado contra um grupo de zumbis, não parecendo nem um pouco receoso, antes mesmo de Hjalmar levantar sua espada e ordenar o avanço de seus soldados; Orvar foi outro entre os primeiros a partir para o ataque, dizendo ao amigo: “É melhor você se poupar para Argantyr.”, ao que o rei de Gamla respondeu: “De forma nenhuma. Tenho energia de sobra para dar conta rapidamente dessas aberrações.”, e desembainhou sua espada, espalhando labaredas que atingiram em cheio dois licantropos que vinham em sua direção, e que de imediato recuaram, com seus pêlos incendiados. No alto, Taranis recebeu a ordem de Johann e assustou um pouco os soldados de Gamla quando começou a bombardear com relâmpagos os inimigos, entre estes homens-morcego e lobisomens, após seus olhos brilharem. “Não temam. Taranis é muito preciso, não vai acertar nenhum de vocês.”, o mago deixou claro ao telepaticamente avisar a todos ao mesmo tempo, ao passo que Svanni, junto com as demais sacerdotisas de Eir, se concentrava em erguer campos de proteção para si e para os guerreiros. Só pegariam suas espadas em último caso, enquanto Hosvir, ao baixar seu capuz sobre seu rosto, desapareceu, surpreendendo Nill: “Então não sou só eu que

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consigo ficar invisível aqui! Que cara esperto!”, e fez o que pretendia, desaparecendo da vista de todos junto com seu pônei. Das criaturas das trevas em evidência naquela leva, uma se destacou, demonstrando estar bem acima das demais: um demônio de pele negra e lisa, de musculatura imponente, por volta dos três metros de altura, com dois grandes chifres polidos nas laterais da cabeça, seu rosto comprido de narinas achatadas, orifícios auriculares mínimos, olhos oblongos de fundo negro e pupilas brancas e boca que parecia pequena, mas que ao se abrir para estraçalhar e devorar carne humana se revelava enorme, contendo quatro fileiras de dentes que pareciam facas de aço negro e uma língua bifurcada; como arma, manuseava uma foice violenta e locomovia-se com extrema velocidade, esquivando-se até mesmo de eventuais raios de Taranis. Com facilidade, fazia os guerreiros de Gamla em pedaços, e os ferimentos causados pelas espadas em sua pele eram mínimos, não passavam de arranhões superficiais. Como Hjalmar estava ocupado enfrentando licantropos primeiro junto com Orvar e logo também com Volundar, que já havia se livrado dos zumbis, cortando e esmagando suas cabeças, esta era uma luta para Johann: o mago se aproximou e, a despeito da rapidez e da força do inimigo, não demonstrou medo e não se esquivou para evitar seu ataque, permanecendo imóvel; o primeiro golpe, para a surpresa de Nill, que estava observando a situação escondido e invisível atrás de uma moita, por algum motivo se cravou na terra, a lâmina próxima dos pés de Johann. O mago sorriu de forma provocativa; e o duende testemunhou boquiaberto todos os ataques seguintes do monstro falharem, alguns passando rentes ao rosto ou a outras partes do corpo do mago, só que nenhum o atingia. “Quieto! Se não vou te largar e te deixar visível!”, Nill deu uma bronca no

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pônei quando este ameaçou relinchar, ao passo que o demônio, que não era estúpido, parou de atacar, abaixou a foice e encarou Johann. “Você pode ter criado uma barreira que bloqueia e desvia ataques físicos, humano. Mas se pensa que não passo de força bruta, está muito enganado.”, a criatura falou em um idioma desconhecido, distorcido, de sons agressivos, mas cujo conteúdo o mago compreendeu perfeitamente; na sequência fechou os olhos, largou a arma, uma aura vermelha turva o envolveu e deu início a uma sombria verbalização invocatória: a aura logo cresceu, e Johann ainda parecia tranquilo quando buracos incandescentes se abriram no ar e se transformaram em esferas ígneas atiradas em sua direção. Houve uma explosão, e aparentemente o mago foi atingido e reduzido a cinzas, desaparecendo na fumaça. Convicto que vencera o humano arrogante, que confiara em demasia em si mesmo, o demônio se abaixou para pegar de volta sua foice e já ia se dirigir para a área onde Hjalmar estava lutando, com o objetivo de pegar a cabeça do rei de Gamla; no entanto, repentinos feixes cortantes de luz irromperam da fumaça que ainda persistia e o acertaram pelas costas, produzindo sulcos fundos em sua carne de uma forma que nunca lhe ocorrera antes: não só o sangue escorria como aquilo lhe queimava terrivelmente. “Há um presunçoso aqui. E a certeza que tenho é que não sou eu.”, Johann estava intacto; sua barreira mágica devia ser muito mais resistente do que o servo de Hel imaginara, e quando este se voltou em sua direção o atacou de frente, de cada uma das pedras do cetro em sua mão esquerda saindo um raio de luz cortante. Sorriu, divertindo-se sadicamente com os cortes produzidos na pele do demônio, que começou a urrar de dor e ódio. Divertia-o sobretudo regular a intensidade das lâminas de luz, para que a morte de seu inimigo fosse lenta e sofrida.

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Mas acabou sendo rápida: um indivíduo encapuzado pareceu se materializar subitamente, escalando as costas do monstro, e encravou-lhe no crânio sua espada, atravessando do topo da cabeça à base do queixo. Johann não se abalou, nem se incomodou, e recolheu seu cetro. O inimigo não emitiu mais nenhum som, despencando de vez sem vida. “Um ótimo golpe, sacerdote invisível. Reconheço que é uma boa estratégia sumir e aparecer de repente nas costas dos adversários quando estão distraídos. Eu também poderia fazer isso, só não acho muito leal.”, o encapuçado era Hosvir, que ignorou a provocação e voltou a desaparecer. “Olha só! Apesar de ficar invisível, ele até que é forte e corajoso. Talvez eu possa compor uns versos sobre ele. Dá também pra misturar com umas coisas sobre mim...Ou fazer de conta que ele sou eu, e eu ele, e passar tudo isso por escrito! Ele não é rei, nem famoso, nem parece que quer ser, tanto que cobre a cabeça; não tem nada de ruim se daqui a algumas gerações acharem que eu que fiz essas coisas que ele faz, e vou ficar como herói: Nill, o duende encapuzado! Ninguém vai saber de nada mesmo...”, o sacerdote de Skadi começava a despertar alguma admiração em Nill. Contudo, pouco depois que o rapaz se foi, Johann ficou repentinamente sério; não se tratava de nada relacionado a Hosvir: a mudança de estado se devia à percepção que tivera de uma força superior que estaria dirigindo a maior parte daquelas criaturas, e que não se achava muito longe; o demônio que acabara de ser derrubado não era o inimigo mais perigoso que estava na floresta. Concentrou-se e pôde localizá-lo: encontrava-se em uma caverna relativamente próxima, para onde se dirigiu sozinho. “Pra onde será que esse cara está indo? Não consigo confiar muito nele também. Acho que vou atrás...”, o duende achou

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que se sentiria mais útil fazendo isso, e foi... No interior da gruta, depois de uma caminhada inicial por um corredor rochoso comum, depararam-se um cenário aterrador: Johann, que chegou primeiro, parou, mas sem demonstrar espanto, apenas observando atentamente, enquanto Nill no ato ficou apavorado, acabou gritando e se fez visível; em um amplo salão natural, o sangue pingava dos corpos pendurados, esfolados, perfurados por adagas, mordidos apenas em algumas partes, havendo no chão outros esquartejados e membros mastigados, além das poças sangrentas, das quais começaram a emergir enormes moscas vermelhas. “Você não devia ter me seguido, pequenino. Agora é melhor que galope para bem longe com o seu pônei.”, disse Johann, que desde o início percebera que fora seguido, sem se importar; e não fora só o duende: um guerreiro das tropas de Gamla também viera, curioso com o que o mago poderia estar fazendo ou planejando fazer. “Intrometidos e inúteis. O que poderia ser pior?”, indagou-se Johann, eliminando os primeiros insetos sanguinolentos com disparos de fogo lançados por sua mão direita. Mas pareciam não ter fim, até que descobriu ser mais eficiente evaporar todo aquele sangue com o calor emanado por sua fronte. As moscas pararam de surgir, até serem todas extintas, porém permaneceu um cheiro terrivelmente desagradável, os restos dos mortos ficando ressecados. Havia não só de seres humanos, como de animais, entre cães, gatos e cavalos. “O que significa esta barbárie? Quem fez isso?”, adiantou-se e perguntou o soldado. “Você me seguiu porque não confia em mim, e agora me faz perguntas?” “Perdão, senhor mago. É que pelo que entendi, o senhor é um mercenário, e não costumo confiar muito em mercenários.

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Sempre penso que podem nos trair, ou fazer corpo mole.” “Não sou um mercenário. O ouro que peço é para os meus experimentos alquímicos, não para despesas com futilidades. Mas entendo o seu ponto de vista e por isso o desculpo, embora imagino que não tenha a mínima ideia do que seja alquimia.” “Realmente não tenho.” “Vamos deixar isso pra lá!”, voltou a sorrir. “Respondendo ás suas perguntas, isto aqui foi um massacre, pelo que pude analisar e compreender, de pessoas e animais que eram parte da população nativa da ilha. E quem o perpetrou é o demônio que está no fundo desta caverna, e que é quem, seguindo as recomendações dos sacerdotes de Loki, está comandando á distância os monstros desta floresta.” “Agora entendo. E o senhor entrou aqui para combatê-lo?” “Exatamente...”, e deu as costas ao guerreiro após lhe desferir um olhar de desdém, como para dizer “você é fraco demais para esta luta, melhor que vá embora e não atrapalhe.” O homem se sentiu ultrajado com aquela postura, só não avançando contra o mago porque, além de não querer ir contra o código de honra do exército de Gamla, que não admitia brigas internas, nem mesmo contra mercenários, os infratores suscetíveis às piores punições, sabia que não poderia vencê-lo; acabaria reduzido a pó como as moscas monstruosas que haviam tentado atacá-lo, o que seria uma humilhação ainda maior. “Mais a fundo eu não vou de jeito nenhum...Já entendi tudo e deixo as coisas com você!”, exclamou Nill, atraindo o olhar do guerreiro antes de disparar para fora da caverna. “Este não deve ser mesmo o lugar mais confortável para um duende.”, refletiu o homem, que insistiu em seguir Johann, que parou por alguns segundos para se livrar de um demônio peludo cuja cabeça parecia a de um mastodonte, decapitando-o

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com as lâminas de luz de seu cetro. Pouparam as palavras ao avançarem, na obscura profundidade da caverna por fim encontrando o inimigo principal: um gigante esquelético, sentado sobre um frio assento de pedra, a pele verde esquálida, nenhum pêlo ou cabelo, as mãos e os pés de quatro dedos, sem polegar; apesar do aparente pacifismo, da tranquilidade visível, para além disso emanava o puro terror de uma fome que não poderia ser aplacada. Olhou para os dois com seus olhos azuis sem pupilas e emitiu um rosnado feroz, exibindo sua boca com duas línguas e dentes afiados, salivando sem o menor controle; levantou-se, e sua saliva, ao pingar no chão, se mostrava corrosiva. Moscas cinzentas foram surgindo ao seu redor a partir de larvas sangrentas que se materializavam; movia-se de modo similar ao de um gorila, só que muito mais rápido, e não foi possível vê-lo quando despontou atrás do guerreiro de Gamla e mordeu-lhe com toda a força o ombro direito, arrancando-lhe inclusive um pedaço de sua armadura. Johann tentou atingi-lo com as lâminas de luz do cetro, mas fracassou, o inimigo desaparecendo e reaparecendo em seguida à sua frente, perfurando-lhe o abdômen com uma de suas mãos. “Você é muito mais forte e rápido do que o seu aprendiz. Ele era o seu aprendiz, não era, aquele chifrudo com a foice? Mas você também não pode me vencer...”, sem metade do ombro, o guerreiro ficou impressionado ao ver que Johann ainda conseguia falar, mesmo com a barriga perfurada, sorrindo enquanto o sangue escorria de sua boca. Uma aura verde intensamente luminosa envolveu o mago, concentrou-se em seu abdômen, e dali o demônio não conseguiu mais retirar sua mão, por mais que se esforçasse; estava preso, e uma luz dourada brilhou na testa de Johann, que fechou os olhos, e depois outra surgiu na sua, um fio conectando os dois pontos. O braço do

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adversário começou a se desintegrar, enquanto a barriga do mago se reconstituía, voltava a ficar intacta, a não ser pelo buraco feito no tecido da roupa, e um pesadelo teve início na mente do demônio; pode-se sim falar em pesadelos para os demônios, os de humilhação e esmagamento de seus egos. A criatura levou a mão que lhe restava à cabeça, que começou a doer da forma mais intensa. Via a si mesmo rendido aos pés de Johann, acorrentado, escravizado, e prestes a ser submetido aos mesmos tormentos que costumava aplicar em suas vítimas. Já perdera toda a noção dos que devia estar dirigindo e comandando no campo de batalha quando as torturas tiveram início, e de nada adiantava clamar por piedade. “Pronto. Já podemos ir embora.”, foi o que o mago disse ao reabrir os olhos. “Como assim?? Ele ainda está vivo!” “Mas nunca mais vai perturbar alguém. Vai ser prisioneiro pra sempre da terrível ilusão, que não é tão ilusão assim, se pensarmos bem, de estar submetido a mim, enquanto lhe aplico alguns bons castigos! A única esperança dele é que alguém que o encontre aqui se apiede e resolva decapitá-lo, ou que a ilha afunde. Assim vai morrer em paz, mas eu não quero que ele morra em paz...”, as palavras de Johann, ditas sempre com um sorriso, deixaram talvez o soldado mais assustado do que o próprio demônio o deixara. ”O que foi? Vai ficar aí parado? Posso ajudar a curar esse ombro...”

A batalha naquela floresta foi apenas a primeira das que se seguiriam na ilha de Samso. A planície a seguir abrigava muitos outros perigos. Em condições normais, teriam alcançado o castelo em aproximadamente dois dias, mas a previsão era que levariam por volta de uma semana em razão dos inimigos que se interpunham, precisando de paradas e de

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descanso para que o rendimento contra a força principal de Argantyr, que devia estar na velha morada de Dietmar, fosse o melhor possível. Na planície, depararam-se a uma determinada altura com um exército impressionante, com centenas de soldados que marchavam, só que muitos sem nenhuma carne, esqueletos armados e sob armaduras, e outros com pouca ou apodrecida, tropas de zumbis empalidecidos mais fortes e resistentes do que os que haviam encarado entre as árvores, além de homens-morcego e trolls de ambos os sexos, de pelugens negras ou amarronzadas, olhos brancos ou pretos sem pupilas, orelhas minúsculas, largas ou compridas e pontiagudas, variações de acordo com a raça à qual pertenciam, corpos musculosos, maciços, dentes semelhantes a punhais, com capacetes toscos e portando clavas ou achas, entre os dois e três metros de estatura, em comum suas mentes sob o controle espacialmente distante de Wagner. Pela quantidade, era inevitável aquelas criaturas darem bastante trabalho, mas nada que causasse mais medo do que o normal entre os soldados, até aparecerem dois trolls excepcionalmente maiores, que passavam dos seis metros de altura; em armaduras douradas e repletas de espigões, um portava uma espada de lâmina curva e o outro uma maça pesada, compatível com seu gigantismo; e o pior: surgiu um demônio com nove braços armados com lâminas letais, protegido por uma couraça plúmbea, em seu rosto seu nariz se curvando até a boca, duas grandes argolas douradas em suas orelhas, a pele num tom de vermelho aberrante que anunciava ira e violência, seus cabelos pretos mantidos presos em um rabo de cavalo; media por volta de quatro metros de estatura. O céu, coberto de nuvens escuras naquela tarde, parecia antecipar uma tempestade, só que não caía sequer uma gota de chuva. Taranis ajudou muito desde o início, provocando a descida de

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relâmpagos que fulminavam no ato dezenas de esqueletos e mortos-vivos, reduzindo-os a pó; eventualmente Johann se juntava a seu dragão para acompanhar os raios com uma onda congelante, assim queimando alguns inimigos e transformando outros em estátuas de gelo. Mas o mago também se afastava com frequência de seu ajudante e trabalhava com o elemento oposto, fazendo-se envolver por uma aura ígnea ao mesmo tempo ofensiva e defensiva, que emanava de sua testa e cobria todo seu corpo, ao mover sua mão direita lançando bolas de fogo que não erravam seus alvos, atingindo em cheio os homens-morcego que vinham do alto. Hjalmar, ao observá-lo, e se lembrar do que ouvira de companheiros seus a respeito dele, como o guerreiro que o vira em ação contra o demônio da caverna, além de Nill, ficava cada vez mais convicto que tomara a decisão correta ao incluí-lo em suas tropas: “Sem um mago dessa qualidade, as batalhas estariam custando muito mais vidas. Só espero mesmo que ele não venha a se tornar um inimigo no futuro...”, refletiu. O primeiro enfrentamento mais duro para o rei de Gamla se deu quando foi atacado pelo demônio de nove braços, que lançou em sua direção uma rocha imensa, sem se preocupar minimamente com seus próprios aliados, esmagando alguns mortos-vivos depois que o guerreiro-mago se esquivou, infelizmente sem conseguir salvar seus soldados que estavam próximos. “Venha, homenzinho! Venha me enfrentar!”, o monstro o provocou, fincando seus pés no chão e gerando um terremoto que Hjalmar teve uma certa dificuldade para aplacar com toda sua concentração. O inimigo partiu na sequência para retalhar o herói com suas espadas como fizera com outros guerreiros durante a batalha, depois mastigando seus membros ainda cheios de sangue fresco, ávido por ossos e carnes. A Naglering,

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tomada pelo fogo e pela luz, que acabou repelindo a criatura, ofuscando-lhe a vista, Volundar com alguma preocupação acompanhando o confronto com algumas olhadelas enquanto empregava seu machado contra os inimigos, pela primeira vez fazendo uso da corrente em sua cintura quando foi atacado por um dos enormes trolls de armaduras douradas. Não se tratava de uma corrente qualquer: era uma corrente mágica, que só ficara pronta poucos dias antes da chegada das forças de Gamla, e embora não fosse uma arma tão excepcional quanto a Naglering, ainda era superior a todas as outras armas no campo à exceção da espada do rei de Gamla e do cetro de Johann. Esquivou-se dos primeiros golpes, que se o atingissem seriam fatais, para depois amarrar o braço da mão que utilizava a maça quando o gigante abriu uma brecha. Ao puxar com vigor e precisão, não para arrastar-lhe o corpo, arrancou-lhe o braço, sua força deixando embasbacados não só seu oponente como todos os aliados que estavam próximos, como Orvar (a verdade era que, por mais que Volundar fosse realmente forte, a corrente aumentava sua força uma centena de vezes, só não pudendo ser usada em excesso, ou o próprio corpo do anão sofreria efeitos colaterais); a seguir, executou rapidamente um espetacular lançamento de machado, que cegou o monstro, cujos urros de dor, raiva e desespero se tornaram ainda mais fortes. Para finalizá-lo, usou mais uma vez sua corrente, que além de tudo era maior do que aparentava, prendendo-lhe e apertando-lhe o pescoço até conduzi-lo à morte. Concomitantemente, o outro troll de armadura dourada passou a divertir Johann, tentando acertá-lo sem êxito com sua espada de lâmina curva; as fragrâncias das flores que surgiam em volta pareciam não surtir efeito contra o gigante que, com um nariz muito pequeno, talvez mostrasse que seu olfato não era um de seus pontos fracos. que não adiantava tentar introduzir

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perfumes inebriantes ou venenosos; também não dava a mínima para a beleza que o mago, experto em todos os elementos, gerara nos arredores; pisoteava as pétalas e destruía qualquer floração. Contudo, na realidade as fragrâncias não continham quaisquer segundas intenções: eram uma mera provocação... “Você não tem o menor bom gosto e nem respeito pela natureza, criatura bruta. Será punido por isso...”, brotou então do solo, após um intenso mas rápido tremor, uma grande e agressiva entidade vegetal de tentáculos grossos e espinhosos, que os movia com fúria. Não adiantava nada cortá-los, pois cresciam outros em substituição; seria preciso queimá-los, e foi o que aparentemente o troll fez quando já estava sendo amarrado e espetado em todas as direções, após perder sua arma, convocando um incêndio em volta de seu corpo. “Ora, ora...Mas esse tipo de monstro costuma ser só força bruta! Não pode usar magia! Você acha que me engana, Wagner?”, dirigiu-se verbal e mentalmente ao sacerdote de Loki, que estava supervisionando o confronto e tentara ajudar seu subordinado; no entanto, Johann materializou uma semente escura em sua mão livre e os espíritos do vento sob seu comando a levaram e a jogaram num dos olhos do gigante. O “cisco” logo desapareceu e o monstro, livre após a criatura evocada por Johann ser destruída, tentou esmagar o mago com toda sua ira, mas parou com a mão próxima deste, paralisado; a planta que crescia em seu interior afetava todo seu sistema nervoso e, depois que galhos e flores começaram a sair por sua pele, despencou sem vida. “Maldito Johann! Quem poderia imaginar que ele estaria aqui?”, concentrado de pé em um dos aposentos do castelo que fora do barão Dietmar, com os olhos bem cerrados, o sacerdote de Loki perguntou para si mesmo; Phyria, que estava ao seu

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lado, escutou, mas sabia que não era o momento de responder. “Deve ter recebido uma boa quantidade de ouro, como sempre! Mas você não vai me atrapalhar, seu soprador barato!”, haviam se conhecido no período em que Wagner estivera no colégio. “Já sei o que vou fazer agora...”, o sacerdote de Loki pôde sorrir porque ainda tinha uma notável carta na manga: resolveu despertar o dragão vermelho que ocultara nas montanhas próximas para utilizá-lo em uma ocasião mais crítica: “Acorde, Hrilya...Acorde!”, pretendia acabar com Johann o quanto antes; não podia permitir que chegasse ao castelo, colocando em risco seus planos. “Você tem certeza do que está fazendo, Wagner?”, ao ouvir aquele chamado, Phyria não teve como evitar de questioná-lo, pois conhecia bem aquele dragão; porém agora o feiticeiro, que abriu os olhos, suas pupilas em puro fogo num transe incandescente, não a ouviria de nenhuma maneira. “Acorde, Hrilya...”, e o dragão abriu seu olho, sua pupila um carvão candente boiando sobre a lava borbulhante; escancarou suas asas, guinchando em fúria, e em poucos minutos chegou ao campo de batalha. “Pelos deuses, o que é aquilo?”, inquiriu Orvar, impressionado, assim como outros guerreiros, com o dragão rubro. “Hahaha! Wagner, você é ridículo! Taranis, chegou a sua hora de brilhar...”, Johann estava confiante; Hrilya tinha aproximadamente as mesmas dimensões do outro dragão e, lançando fogo de sua boca e fumaça de suas narinas, começou seu ataque com um voo rasante, consumindo alguns soldados de Gamla em seu caminho, seu alvo sendo o mago de Prusha. Entretanto, Taranis se lançou violentamente contra o dragão flamígero, protegendo seu sorridente dono absolutamente no controle da situação; e foi arrastando-o, levantando-o e

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empurrando-o, com sua força física e com sua poderosa energia, de volta para as montanhas da ilha, distantes o suficiente para não haver nenhuma ameaça possível ao mago. Naquelas alturas, entre o gelo e a neve, puderam travar sua batalha de fogo e eletricidade. A vitória, para o desespero de Wagner, foi de Taranis, o imenso corpo chamuscado de seu oponente, enquanto ao outro as labaredas nada afetaram, despencando e provocando uma violenta avalanche. Aproximadamente ao mesmo tempo, o demônio que tivera nove braços estava agora desesperado porque só lhe restava mais um: todos os outros haviam sido cortados pela Naglering; e o longo e cansativo duelo, que exigira muito da paciência e da agilidade de Hjalmar, chegou de uma vez ao fim quando o herói de Samso deu um grande salto impulsionado pelos elementais do ar e cravou sua espada incandescente no peito do inimigo, despencando a seguir junto com este, na verdade sobre este, vivo, ao passo que o demônio estava morto. A batalha parecia ter alcançado seu término; entrementes, Johann olhou para o alto, ciente de que ainda faltava algo, sentindo uma pressão nos céus, e sorriu enquanto ajeitava seus óculos: “Estou chegando, Wagner!”, lançou a provocação mental e um feixe de luz dourada subiu de sua testa para o céu, atingindo as nuvens carregadas; contudo, ao invés de desfazê-las, estas escureceram ainda mais e assumiram uma feição humana, na qual era evidente uma fúria violenta...Era o semblante do sacerdote de Loki. “Olhem lá em cima! Um rosto se formou nas nuvens!”, exclamou um dos guerreiros. “Que energia pesada!”, comentou Svanni, a que resistiu melhor entre as sacerdotisas de Eir, que começaram a passar bastante mal. Hosvir também olhou para cima e enxergou perfeitamente os relâmpagos que desceram para atingir o

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mago, que ergueu seu cajado, desviou os raios e levitou para o alto, rumo às nuvens, que teria que desmanchar para afastar de vez o inimigo; as enormes “sobrancelhas” se enrijeceram, a face de Wagner cobrindo todo o céu da batalha, e o mago pôde contar com um auxílio valioso com a volta de Taranis: não precisaria mais de nenhum esforço para se manter no ar, montando nas costas da dragão, e uniu seu fogo, seu ar e seu gelo à eletricidade da criatura contra os ventos e os relâmpagos do inimigo, os elementais a serviço dos dois magos se confrontando nos ares. Aquelas nuvens se mostravam mais resistentes do que nuvens normais, mantidas em coesão pela vontade firme do adversário. Quando começou a perceber que estava perdendo, o sacerdote de Loki tentou no desespero bombardear as tropas de Gamla com uma tempestade, incluindo granizo e relâmpagos violentos. Subestimou Hjalmar, que ao soltar um berro ergueu a Naglering, e nisso um feixe de um fogo incomum subiu e penetrou na região de nuvens que seria o cenho do mago; ocorreu uma explosão dourada que ofuscou até a vista de Johann. Em decorrência desta, a magia foi desfeita, e o céu ficou limpo em um belo pôr do sol. Nessa hora Nill reapareceu, sorrindo antes de levar de Volundar, que logo o encontrou, um tapa na nuca que o derrubou de seu pônei.

Nas florestas do reino de Bern vivia um dragão verde cujas chamas prateadas não queimavam os corpos, e sim as almas, enlouquecendo-as, fazendo com que se sentissem por todo o tempo em um inferno ardente, enquanto seus corpos despencavam intactos, embora sem vida. Aprisionava os espíritos em seu interior, e estes em convulsão, girando em desespero sem parar, queimando, haviam inconscientemente

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dado início à abertura de um portal para Nifelheim, Quando fosse o momento, se transformariam num fogo que consumiria o próprio dragão e rasgaria o espaço para abrir uma fenda entre Midgard e o reino de Hel. No entanto, havia naquela região na época um cavaleiro-mago chamado Dietrich, que por meio de suas visões ficara a par de toda a situação e tomou para si a responsabilidade de libertar os espíritos e eliminar a besta antes que esta se sacrificasse para sua senhora no mundo inferior. Tratava-se de um guerreiro alto e imponente, de olhos azuis intensos, cabelos ruivos longos e lisos, tez clara e viva e armadura cor de chamas. Olhava para a frente, convicto, suas costas cobertas por uma capa branca, portando consigo uma espada de duas mãos de empunhadura alada inteiramente em consonância com sua veste, um rubi reluzindo em seu núcleo, uma lâmina que nunca enferrujava. Com esta emanando labaredas fulvas, na luta atingiu o corpanzil do dragão; e não precisou acertá-lo mais de uma vez, este foi perdendo as forças, ao passo que o cavaleiro se esquivava, pois as chamas o devoravam de dentro para fora e traziam luz às almas aprisionadas. A um certo ponto, seu ventre se abriu e os espíritos começaram a escapar pelos ares, porém o monstro ainda fez um derradeiro esforço, manteve alguns cativos, fundiu-os e transformou-os em um espalho, que apareceu no sangue escuro que escorreu de seu corpo após sua morte. Dietrich pegou o espelho, ainda sem compreender sua natureza, imaginando que fosse talvez um presente de Odin para recompensá-lo por seu trabalho. Iria estudá-lo de perto. Acreditara ter libertado todas as almas e afastado a ameaça; em todo caso, consultaria Teoderich, seu mentor, a respeito do artefato de moldura branca. Voltou a seu cavalo, que o

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aguardava do lado de fora da caverna onde enfrentara o dragão, e partiu. Contudo, em seu retorno ao castelo real de Bern, onde vivia junto com Teoderich, ambos a serviço da rainha Helga, não mostrou o espelho a seu mestre, trancando-se em seus aposentos, arrastado por uma terrível e irresistível atração de permanecer contemplando-o sem nada mais fazer. Permaneceu assim por dias, sem se dar conta, enxergando o que aquele vidro quis lhe mostrar, não seu reflexo, e sim cenas de violência, egoísmo e destruição, inclusive relacionadas ao passado de Bern; sua ira foi crescendo, seu espírito se turvou, sua mente queimou em indignação, e o auge do processo se deu no momento em que um par de demônios de pele vermelha e mantos negros saíram do espelho e lhe fizeram uma proposta: usar sua força para restabelecer a ordem em Midgard, destruindo os reinos degenerados e unificando toda a terra sob um único novo reino; apenas os merecedores sobreviveriam, e ele próprio seria o soberano absoluto, o regente da justiça. Os demônios, que Dietrich ameaçou fazer em pedaços, convenceram-no a poupá-los apresentando-se como criaturas arrependidas que haviam despencado no inferno por seus erros e que viam nele agora sua única possibilidade de resgate, o que seria impossível em um mundo que já não admitia mais regeneração. Seriam seus seguidores leais, porque era o único com poder para realizar a grande transmutação das cinzas que sobrariam da necessária destruição. Dietrich tentou convencer Teoderich a ficar do seu lado, mas após a negativa do velho mentor, assassinou-o sem hesitação. Começava a se transformar, em sua ânsia de purificar o mundo seus olhos assumindo um fundo vermelho, e pouco depois de matar seu mestre fez o mesmo com sua rainha e tomou o trono. Bern empreendeu uma série de guerras contra outros reinos, e

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internamente ninguém ousava questionar o usurpador de forma aberta; os que tentaram caíram sob sua lâmina e seus corpos foram reduzidos a cinzas. Além disso, não havia quem não temesse os dois sombrios acompanhantes de Dietrich, os estranhos encapuzados de pele rubra e horrivelmente enrugada. A história conta que muitos reinos se uniram em uma coalizão e, diversos magos, cavaleiros e guerreiros-magos lutando em conjunto, a vitória contra as forças de Bern foi obtida e Dietrich e seus sombrios aliados sucumbiram. No entanto, o fantasma do outrora grande guerreiro e mago continuou a ser visto por muito tempo no território de Bern e mesmo em outras terras; quando deixou de aparecer, foi “substituído” por um espectro talvez mais aterrador, de um cavaleiro cujo elmo lembrava perfeitamente uma caveira, assim como sua armadura aludia a ossos, com partes vermelhas, fazendo recordar um grande e pesado esqueleto ensanguentado, seu cavalo negro seguindo o mesmo tipo de revestimento. Alguns chegaram a dizer que era o espírito de Dietrich sedento por vingança contra todos os habitantes de Midgard, após definitivamente se vender à rainha de Nifelheim, aguardando o Ragnarok para retornar ao mundo; mas não existiam provas concretas para se afirmar isso.

O que dizer do guerreiro que se encontrou de madrugada com Wagner, em uma das salas de jantar do castelo do barão, em um horário em que a maioria (pelo menos considerando-se os humanos) estava dormindo? O sacerdote de Loki viera com uma vela em um pires, depositando-o tranquilamente sobre a mesa, sentando-se devagar; o capacete do outro, que se manteve de pé, era uma caveira metálica cerrada, e toda sua armadura condizia com as lendas sobre o espectro de Bern. “É uma honra tê-lo entre nossas forças. Nunca imaginei que

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algum dia lutaria ao lado de um herói lendário como o senhor. Dou graças à Tirfing por ter permitido que se manifestasse novamente entre os vivos! É mesmo uma espada magnífica. E fico feliz que tenhamos interesses em comum...” “Não me considero um herói há muito tempo. O tempo dos heróis, na verdade, está terminado.”, a voz grave e com um sotaque peculiar saía pela boca imóvel do crânio. “Sou apenas mais um soldado, que após passar tanto tempo em Nifelheim, entre as trevas, as névoas e os fantasmas, se deu conta que os seres que chamamos de monstros ou demônios não são no íntimo piores do que nós. Faz-se necessária uma nova ordem tanto para purificar os homens como as demais criaturas, que se forem dignas, independentemente de suas aparências, também merecerão participar do convívio pacífico que se estabelecerá sob uma única bandeira e um único deus. Os deuses de Asgard são traiçoeiros e se divertem com o sangue derramado entre os outros seres; não desejam a paz e a unificação de Midgard; é por isso que vou lutar para libertar Loki, pai de minha rainha, que trará uma luz renovada a este mundo, e talvez seja inclusive capaz de despertar os demônios para uma realidade maior. Antes, no entanto, é necessário que se lute, pois sem luta, sem conflito, não há aprendizado e crescimento, não há compreensão do que se pode e do que não se pode fazer, e sem sentir a dor da derrota é impossível valorizar a vitória. Em Nifelheim, tive que abrir mão de ser rei; mas compreendi a validade em voltar a ser cavaleiro. Sou grato à imperatriz Hel por ter me tornado algo mais do que um reles fantasma após a minha derrota aqui em Midgard.” “Não lamente o passado, grande Dietrich de Bern. Ela lhe deu esta oportunidade de redenção para que possamos libertar Loki. É o objetivo em comum de todos nós.” “Exato, senhor Wagner. E o combate agora é vital. Mas Hel e

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Loki não são como os deuses de Asgard, que estimulam conflitos contínuos que não levam a lugar algum, que criam apenas separação e ódio, nos quais sim aprendemos algo, mas que não trazem nunca uma paz estável; nós buscamos a batalha que dará um fim a tudo. Nós cresceremos na guerra, mas quando já tivermos crescido, basta de guerra; não faz o menor sentido lutar por lutar; chegará o momento de admirarmos nossas cicatrizes, não mais de buscar novas cicatrizes. Quando Midgard for efetivamente um único reino, sob Loki, os deuses enfim nos respeitarão. No passado, quis ser o rei de todas as terras em que podemos pisar; mas depois percebi que é melhor ser um soldado firme, que não tem dúvidas de sua missão, que descobriu que além da morte física reside a verdadeira essência humana, que é a de servir à morte; a morte há de trazer paz à vida, permitindo que esta seja valorizada. Parece um pensamento contraditório, mas não é.” “Estou totalmente de acordo. É magnífico o que o senhor diz!”, estar diante de Dietrich, o cavaleiro-morte, como agora preferia ser chamado, deu novas forças a Wagner, que se enraivecera consideravelmente após a última derrota que as tropas de Argantyr haviam sofrido, e que ele pessoalmente sofrera, sua magia das nuvens desfeita por Johann e Hjalmar. Por mais que Phyria tivesse tentado acalmá-lo, com seu calor e suas carícias, não conseguira. Dietrich de Bern só lutaria quando o exército de Gamla chegasse próximo do castelo; até lá, aconteceram outras batalhas, e no decorrer destas os envolvidos dos dois lados foram se aproximando, ainda que de formas bem diferentes. Se entre Wagner e o cavaleiro-morte não poderia existir o que chamamos de amizade, apenas uma proximidade como entre uma fogueira e um homem procurando se aquecer, entre Svanni e Hosvir tudo começara com olhares mais ou menos distantes,

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tímidos, desajeitados e inconfessados; as primeiras palavras só foram trocadas após uma batalha em que ela e algumas de suas companheiras se viram encurraladas por um demônio alto e maciço que parecia feito de pedra azul, a não ser por algumas veias externas de lava que escorriam em seu corpo, assim como seus olhos eram pura brasa; usava um pesado martelo de cabo longo, feito de um metal de aparência desgastada, e ao bater no solo, quando não conseguia atingir ninguém, provocava rachaduras que respigavam magma. Como os guerreiros e magos das forças de Gamla pareciam todos naqueles instantes ocupados enfrentando outros inimigos, as sacerdotisas de Eir tiveram que se virar sozinhas contra aquela criatura. Já haviam derrotado juntas dois licantropos e um demônio menor, mas estavam ficando cansadas e este era muito resistente, as laminas de suas espadas não parecendo causar qualquer dano. Uma das moças, a mais dispersa e amedrontada, acabou sendo atingida fatalmente; e este poderia ter sido o destino das demais, afinal até sua líder, Svanni, perdeu o equilíbrio emocional e seu campo de proteção enfraqueceu; sua sorte foi que subitamente quatro indivíduos encapuzados, ainda sem conseguir ver os rostos, apareceram cercando o monstro, e um a segurou pelo pulso e lhe disse para não cometer a besteira de atacar sem pensar. O demônio agrediu um, mas quando pareceu que este seria golpeado em cheio, desapareceu feito um fantasma; os outros permaneceram: era um jogo de ilusões. O que estava atrás do inimigo fez uma oração em voz muito baixa, quase um murmúrio, de todo modo atraindo a atenção deste, que tornou a atacar; outra réplica! Um novo encapuzado apareceu, um pouco mais afastado, e estava com a corda de seu arco marrom reluzente estendida e sua flecha pronta, seu alvo já perfeitamente na mira: o tiro foi

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poderoso, e não só transpassou como arrebentou a cabeça da criatura, deixando as sacerdotisas boquiabertas. Nessa hora Svanni viu seu rosto, e os rostos de todas as cópias: era o jovem sacerdote de Skadi. “Não sei como agradecer.”, disse-lhe, tomando coragem para ir até a fogueira onde ele estava, na noite que seguiu a esta batalha, isso após cumprir seu dever de atender diversos feridos. “Desculpe-me por incomodá-lo, estou um pouco receosa por ter vindo até aqui. Mas se não fosse pelo senhor, é provável que estaríamos todas mortas agora...Eu já havia me perdido. A vida de Fljod não pode ser recuperada, mas ao menos preservamos as nossas. Agradeço em nome de todas nós.”, ficou cabisbaixa, remexendo os dedos. “Não precisa ter receio de nada. Homens e mulheres, somos todos irmãos e irmãs atualmente, companheiros e companheiras de luta.”, Hosvir, que estava sentado, decidiu se levantar. “Além disso, nós dois especificamente precisamos nos entender bem porque somos sacerdotes em uma missão sagrada.” “O senhor tem razão. E saiba que fiquei admirada com sua habilidade guerreira e sua capacidade de produzir réplicas de si mesmo, inclusive a que me segurou, me impedindo de atacar aquele demônio de forma precipitada; parecia palpável, não uma simples ilusão.”, timidamente, tornou a erguer a cabeça, embora ainda evitando encará-lo. “Aprendi muito no templo de Skadi, principalmente com o grande patriarca. Graças a um treinamento bem-feito, me tornei um especialista na técnica das cópias e, modéstia à parte, devem ser poucos os magos que me igualam nela. Consigo produzir ilusões não meramente visuais, mas que envolvem todos os sentidos, como o tato e a audição, por isso você sentiu o toque e ouviu a voz. Só não posso fazer isso a todo o

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momento, é cansativo, exige uma atenção firme em vários locais ao mesmo tempo.” “É impressionante. E a flecha que usou...” “Algumas das minhas flechas são comuns, mas outras foram abençoadas pelo patriarca. Estas são as mais poderosas, só as emprego contra inimigos realmente perigosos. Você teve o privilégio de ver uma delas em ação.” “Fico lisonjeada com isso tudo.”, acabariam por desenvolver uma certa amizade, embora ela fosse continuar a passar mais tempo com as demais sacerdotisas e só eventualmente se vissem, com discrição para não gerar fofocas injustificadas, afinal ambos tinham votos de castidade a zelar; ao menos a curiosidade mútua começava a ser minimamente satisfeita.

Nas proximidades do castelo de Dietmar, era a hora da batalha decisiva. Hjalmar iria conseguir recuperá-lo? Enfim, desde que o exército de Gamla desembarcara em Samso, Argantyr em pessoa iria lutar, assim como seu irmão Wald, que estava faminto, guardara seu estômago para a ocasião. mas não demonstravam ansiedade. No início do combate, o sol opaco no alto entre brumas frias, não parecia evidente que a luta individual entre os reis de Gamla e Gandarki iria acontecer, os exércitos se lançando vertiginosamente um contra o outro; no entanto, todos sabiam que cedo ou tarde seria impossível evitar o duelo, que ocorreria no momento preciso: primeiro, os dois dariam cada um mostras de sua própria força, como no caso de Hjalmar enfrentando a criatura infernal cujo corpo se assemelhava ao de um leão vermelho, alado, e com um rosto similar a uma face humana, conquanto com traços demoníacos; a participação desse monstro se iniciara arrancando a carne e destruindo com seus dentes as armaduras de soldados de Gamla, além de ser capaz

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de expelir por sua boca uma fumaça vermelha que queimava tudo o que havia pela frente. Todavia, não foi adversário para Hjalmar, que ao mover a Naglering com vigor emanou lâminas de uma luz ardente que lhe cortaram as asas; o inimigo despencou e, quando ficou no chão, o rei de Gamla rapidamente tratou de subir em seu corpanzil e cortar-lhe a garganta. Orvar ficava a cada confronto mais impressionado com seu amigo-irmão de infância, ao testemunhar o quanto este progredira e como ficara distante até mesmo dos guerreiros humanos acima da média; não podia mais sequer invejá-lo, pois seria quase como invejar um deus, o que não fazia o menor sentido. “Que tal nos divertirmos um pouco?”, de repente, acabou ficando cara a cara com Wald, com o qual começou a trocar golpes de espada; o irmão de Argantyr só queria brincar... O rei de Gandarki, por sua vez, provava sua força ainda sem sair de seu cavalo, ao contrário de Hjalmar, que já deixara seu animal dileto e lhe pedira para partir; ao erguer a Tirfing, a aura negra-violeta que espalhava ia corroendo as armaduras e as peles de seus oponentes. “Impressionante! Até que enfim um rival à minha altura desde que cheguei aqui!”, a luta que estava ocorrendo mais perto do castelo era a entre Dietrich e Johann, que estava montado em Taranis; relâmpagos haviam descido do alto, fulminando todos os trolls e demônios dos arredores, mas o cavaleiro com o capacete que imitava uma caveira permanecera intacto, e ainda contra-atacara, a onda de energia transparente que emanara de si, praticamente imperceptível, quase derrubando o adversário do dragão; a seguir, protegera-se de um ataque muito mais potente do que o anterior, centenas de raios procurando atingi-lo, criando um campo de força ao seu redor após desenhar com

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sua espada um círculo mágico no ar. “Que tal me dizer o seu nome? Seria uma pena que você morresse sem que eu soubesse o nome de um adversário tão forte e valoroso.”, Johann buscou estabelecer uma comunicação telepática com seu adversário. “Eu já morri uma vez. Isso não vai acontecer novamente. A morte que ocorrerá aqui será a sua.” “Você não me parece alguma espécie de zumbi.” “Sou Dietrich de Bern. E pensei que só voltaria a este mundo no dia do Ragnarok. Mas a espada Tirfing, que esta nas mãos do rei Argantyr, me deu uma chance de reemergir, assim como está permitindo que outros soldados da imperatriz de Nifelheim aqui se manifestem.” “Dietrich de Bern! Então está explicado por que estou tendo dificuldades com você. Já li um pouco a seu respeito, e sei que foi um grande cavaleiro e mago, mas que acabou sendo vencido por uma coalizão que impediu a realização de sua meta de unificar Midgard.” “Fico lisonjeado por saber que os séculos passaram, mas que o meu nome não foi esquecido.” “E você ainda tem a mesma meta atualmente? Por que está lutando ao lado de Argantyr?” “Argantyr é apenas um meio. E não luto mais para ser o rei do mundo; estou lutando para libertar Loki, para antecipar o Ragnarok, surpreendendo os deuses, que nos tratam como simples peças de seu tabuleiro.” “Então você está do lado de Wagner...” “E você pretende nos impedir?” “Não exatamente. Estou aqui pelo ouro que o rei de Gamla prometeu me dar...E pelo aprendizado. Na verdade, não tenho nada pessoal contra Loki, contra Hel e contra seus demônios; posso até simpatizar com todos eles, desde que não se coloquem em meu caminho.”

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“Sinto que o seu caminho, os seus planos, são ainda mais ambiciosos do que os que eu tive um dia. Você não quer que Loki seja libertado porque não deseja neste mundo a existência de alguém que lhe seja muito superior.” “Não sei se Loki é superior a mim, mas não quero ninguém que me incomode, pelo menos não por enquanto. Talvez algum dia eu mude de ideia! Isso enquanto você talvez odeie os deuses porque eles não querem a paz em Midgard, a paz que o seu Ragnarok antecipado supostamente traria, querem o equilíbrio entre a luz e as trevas; mas a meta verdadeira da existência de um ser humano é se tornar um deus! Na posição em que se encontram, não acho que façam mal; agem de acordo com o que seu poder lhes permite. Estão certos! Você já deve ter ouvido falar em alquimia...” “A Pedra dos Sábios e o elixir da longa vida. Sim, ouvi falar dessas coisas.” “Pois então! Acredito que a única forma de escapar dos justos desmandos dos deuses seja obtendo os tesouros da alquimia; por meio deles, e só através deles, um humano pode se tornar um deus e ser realmente livre! Que sentido faz libertar Loki agora? Se for para libertá-lo, que eu faça isso, quando já tiver me alçado à altura de um deus! Então até mesmo Loki será grato a mim e me servirá. Não me verei obrigado a enfrentá-lo para estabelecer meu domínio sobre Midgard e sobre os outros mundos; terei um valioso aliado.” “Como eu intuí: você vai além da minha própria ambição de outrora; cogitava unificar Midgard, ser o rei deste mundo, mas nunca cogitei ser um deus.” “Perdeu também porque pensava pequeno, e o pior é que tenha se apequenado ainda mais! Agora já sei seu nome...E será uma honra dar um fim definitivo em vossa majestade!”, raios e gelo começaram a cair violentamente sobre Dietrich; no

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entanto, o cavaleiro-morte não se intimidou e, num salto com seu cavalo que foi mais um voo sem asas, partiu para o contra-ataque. Johann manipulou os ventos, porém seu inimigo passou incólume pela tempestade e chegou até Taranis, cravando sua espada no coração da besta. O mago não podia acreditar no que estava acontecendo: todos puderam testemunhar a queda do dragão; e alguns dos soldados de Gamla e Gandarki, afora as criaturas das trevas, que estavam mais próximos, não tiveram tempo de escapar, esmagados pelo imenso corpo de Taranis. Johann se teletransportara a tempo e não caíra junto; reapareceu ofegante e com uma expressão apreensiva à frente do inimigo. Alguns berserkers tentaram interferir no confronto entre os dois, mas foram reduzidos a cinzas pelas chamas vorazes que o mago espalhou ao seu redor, voltando a sorrir em seguida. “Nunca pensei que Taranis pudesse ser derrubado com um único golpe. Talvez eu esteja diante de um adversário que não possa vencer, mas isso me estimula...”, falou. “Se não pode me vencer, isso quer dizer que se encontra muito distante de ser um deus.” “Isso é covardia! Você já viveu muito mais do que eu. O nível de experiência não se compara! Já devo ter tido diversas encarnações, mas não me lembro de nenhuma delas!” “Se conseguisse o elixir da longa vida, poderia viver bem em Midgard por muito tempo, e adquirir uma imensa sabedoria a respeito de nosso esplêndido mundo. Se você soubesse como é ser um espectro em Nifelheim, nunca acharia pouco ser um homem em Midgard.” “Com o elixir, talvez eu possa viver eternamente, como os deuses, bastando repetir a dose com alguma periodicidade.” “Disso é difícil ter certeza. Mas infelizmente para você acredito que sua vida não irá passar de hoje. Talvez Hel lhe dê

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uma nova chance para redimensionar suas ambições.” “Ao contrário de você, não estou disposto a nenhuma espécie de pacto ou acordo. Eu comando! Nunca obedeço! Não sou um reles soldado!”, ficaram se encarando em silêncio por alguns segundos; depois, envolvidos por globos luminosos, avermelhado o de Dietrich e dourado o de Johann, ergueram-se nos ares e sumiram; ao que parecia, haviam entrado em acordo para travarem seu confronto em uma área mais afastada, sem ninguém que os atrapalhasse. “Ótimo! Ele conseguiu tirar Johann de perto. Agora vamos ao prato principal.”, em um salão escuro, junto com Phyria dentro de um círculo mágico traçado com sangue, que continha diversos símbolos rúnicos relacionados a Loki, Wagner observava tudo o que ocorria através do espelho mágico na parede à frente, cuja moldura parecia feita de carne e ossos humanos. De fato estava para se dar o momento culminante da guerra, que todos aguardavam desde que chegara a notícia que Samso fora tomada e devastada: Argantyr e Hjalmar se encontravam cara a cara. Volundar se juntara a Orvar em seu confronto contra Wald; e sua corrente parecia ter prendido os braços do inimigo, mas este conseguiu se libertar com facilidade. Antes que o artífice da Naglering atacasse novamente, indignado por ter falhado na primeira tentativa, Wald o deteve ao falar: “Espere, anão valente! Vamos olhar um pouco ao nosso redor! Parece que os dois heróis desta guerra estão enfim prestes a se confrontar.”, e não só os dois pararam; Orvar, que recuara um pouco para talvez desferir algum ataque-surpresa contra Wald quando Volundar conseguisse distraí-lo mais, também. “Eles vão lutar! Hjalmar e Argantyr!”, o irmão de criação do rei de Gamla escutara a voz de Nill, e o gnomo da corrente mágica também

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acabou ouvindo. Todos os soldados dos dois exércitos foram parando; até mesmo os demônios e berserkers que ainda restavam silenciaram. “Vou para perto do meu irmão. Recomendo que também deem apoio ao seu amigo.”, Wald se afastou, e nenhum dos dois o impediu; seguiram o que ele dissera, aproximando-se de Hjalmar. Hosvir ficou visível ao lado de Svanni; podiam ver o rei de Gamla de costas. Argantyr, ainda em seu cavalo, deixou escapar um sorriso ácido e desceu. Logo voltou a ficar sério, assim como seu rival estava. Permaneceram por mais alguns segundos numa batalha do olhar, um em frente ao outro, suas espadas em repouso, porém prontas para um feroz e imediato despertar. Volundar e Orvar se posicionaram atrás de Hjalmar; Wald atrás do rei de Gandarki. “Afastem-se.”, os dois disseram quase que ao mesmo tempo. “Como preferir, meu irmão.”, sorridente, Wald se afastou; já Orvar e o anão não disseram nada, simplesmente recuaram em silêncio. O silêncio absoluto tomava conta dos dois exércitos; apenas UMA luta deveria acontecer naquele momento. “É muito diferente da outra vez. As proporções são outras. Só espero que o resultado não seja diferente...”, refletiu Orvar, com uma aflição intensa que fazia seu estômago arder. “Halr Emmerich, meu mestre! Tudo o que o senhor me ensinou será posto à prova neste duelo. Hei de vencer o demônio que ameaça Gamla!”, e Hjalmar esvaziou sua mente, procurando se concentrar totalmente em seu adversário. “Eu sou o herói desta era.”, disse Argantyr, e se lançaram simultaneamente um contra o outro, todo o silêncio rompido por suas duas vozes em seu grito inicial de batalha; a Naglering

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e a Tirfing se chocaram e faíscas violetas e rubras encontraram a liberdade desejada. “Vamos lá, Naglering!”, obviamente Volundar torcia por sua espada. Após trocarem alguns golpes, pararam, mas não retrocederam; nenhum dos dois parecia cansado. Argantyr disse: “Lute a sério. Não me subestime, ou vai se arrepender.” “O mesmo para você.”, retomaram o duelo, e após uma série de fendentes se teve a impressão que Hjalmar estava em leve desvantagem, mais se defendendo do que atacando ou contra-atacando; não iriam mais se limitar à luta de espadachins: o rei de Gamla se fez envolver por uma aura vigorosa de labaredas, e na sequência, freando seu avanço, ou teria ido diretamente de encontro às chamas, Argantyr segurou a Tirfing com firmeza e deixou que se expandisse a partir dela uma fumaça escura, que pareceu entusiasmar os demônios e os berserkers, cujo ímpeto no entanto foi contido pela intenção do rei de Gandarki, que os paralisou. “Que energia ruim!”, Nill protestou contra a emanação da espada amaldiçoada, perdendo a concentração ao passar mal e não conseguindo mais se manter invisível, aparecendo ao lado de Orvar, que estava por demais preocupado com o duelo dos reis para olhar para o duende. Cada um dos dois tomou a mesma decisão: lançar só mais um ataque, com toda a energia que possuíam; assim iriam realmente medir suas forças. Por mais que Hjalmar não tivesse o mesmo tipo de ego de Argantyr, também tinha o seu; em seu íntimo, almejava não apenas salvar Gamla como ser o melhor guerreiro. Soltaram seus últimos urros de batalha e mais uma vez se atiraram um contra o outro. O fogo de Hjalmar pareceu engolir a fumaça de Argantyr; mas uma aura violeta-escura emanada

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pelo rei de Gandarki apagou as chamas antes de se dissipar. Acabaram dando seus derradeiros golpes simultaneamente: a Naglering perfurou o peito de Argantyr, enquanto a Tirfing se fincara num dos ombros de Hjalmar. “Por todos os deuses!”, exclamou Volundar, boquiaberto, enquanto Wald não parecia nem um pouco satisfeito por sua expressão. Orvar não sabia se já devia comemorar. Nill estava com as mãos unidas à frente de sua pequena boca. Argantyr estava morrendo; mas antes de partir, com um semblante de ódio, tristeza e revolta, concluiu seu golpe, empregando suas derradeiras forças para afundar a Tirfing na carne de Hjalmar e cortar-lhe o braço esquerdo. Para o rei de Gamla, que cravara a Naglering usando as duas mãos, restou somente a direita para segurar sua espada; e foi com esta que a retirou do peito do rival, que enfim despencou sem vida. “Obrigado, meus amigos. Obrigado por tudo. Gamla está salva...”, contudo, estas foram as últimas palavras de Hjalmar: o veneno espiritual da espada Tirfing, seguindo a violenta e ressentida intenção de Argantyr, já se espalhara por seu corpo; seu braço esquerdo já caíra...Foi a vez de despencar inteiro. Orvar ficou em choque; Nill começou a chorar; Volundar também não conteve algumas lágrimas feridas, apesar de seus olhos duros; Wald voltava a sorrir. “Nada como dois heróis!”, vendo tudo de onde se encontrava, Wagner exclamou com ironia. “Gamla está salva? Ora, essa! Parece que além de ter sido um excelente guerreiro, o falecido rei de vocês tinha muito bom humor! Uma pena que todos os esforços dele, no fim das contas, tenham sido em vão.”, uma outra ironia mordaz veio da boca de Wald, que não permitiu a Orvar, Volundar e Nill muito tempo para lamentarem a perda do herói de Samso. “Saibam que sou muito diferente de Argantyr! Eu o admirava, mas não

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dou a menor importância para honra, orgulho, ser covarde contra adversários já cansados e outras baboseiras! Vocês vão ter que me vencer se não quiserem que eu, como novo rei de Gandarki, torne Upsala e o resto de Gamla igual a Samso!”, relâmpagos vermelhos começaram a estourar em volta do irmão de Argantyr, acompanhados por um forte tremor de terra; os demônios e monstros atrás se agitaram, mas ainda não voltaram a atacar; teve início a transformação de Wald, que, sorrindo em um êxtase de sangue, suas veias crescendo em ebulição junto com seus músculos, que arrebentaram sua armadura, ia revelar o que realmente se tornara, impondo a todos ao seu redor que não tomassem nenhuma atitude enquanto não estivesse pronto, sua vontade exercendo uma extraordinária pressão. “Mas o que é isso?...”, indagou-se o perplexo Orvar, incrédulo com o fato de que já lutara contra aquela coisa enquanto esta ocultara todo o seu potencial; Volundar engoliu a seco; Nill não conseguiu mais parar de gritar de terror, até ter sua boca tapada pelo anão; o gigantesco homem-besta se ergueu, sentindo-se terrivelmente poderoso, e quando o terremoto parou abriu seu peito e liberou um rugido, que saiu de sua garganta junto com uivos, autorizando todos os seus aliados a atacarem; sentia os odores de cada um de seus oponentes em detalhes, e não se incomodava nem um pouco com o cheiro forte generalizado de suor e sangue, pelo contrário, queria bebê-los, enxergando um minúsculo inseto em fuga: nem a este poupou, fazendo com que despencasse seco, suas diminutas asas endurecidas, após um único olhar brusco de fogo. “Insetos...Para mim aqui são todos insetos!”, disse com arrogância, saltando à frente de Orvar, que ficou paralisado de medo; Volundar que o salvou, lançando sua corrente e amarrando-a ao antebraço direito de Wald. “Acha que pode me

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deter com isso? Não seja ridículo!”, o anão puxou com força, mas seu oponente não sofreu qualquer dano, pelo contrário: a corrente mágica que se partiu, para o pasmo do forjador da Naglering. “Acabou, pequenino!”, com um único movimento de seu braço, rasgou Volundar ao meio com suas garras; parecia tudo perdido. Todavia, Hosvir não iria permitir que o homem que fora o braço-direito do rei de Gamla morresse em vão a seguir: criou um falso Orvar para “lutar” com Wald, inclusive imitando o cheiro do original, ao passo que puxava o verdadeiro consigo. “Quem é você?”, indagou o amigo-irmão de Hjalmar, aos poucos saindo do choque do pavor e voltando a si na fuga. “Sou um sacerdote de Skadi! E não posso permitir que guerreiros valorosos morram sem lutar como podem, paralisados pelo terror! Por isso o salvei!”, tornara a si e ao outro temporariamente invisíveis, enquanto o puxava e corriam. “Muito obrigado, mas acho que é impossível que consigamos vencer aquele monstro. Não posso acreditar que aquilo era um ser humano! Como pode existir um demônio como esse?” “Não é hora de buscarmos explicações e nem de cogitar derrota ou vitória. Vamos simplesmente lutar! Você já está pronto novamente!”, tornaram-se visíveis, Hosvir se lançando com sua espada contra um licantropo e cortando-lhe a garganta. Orvar se viu obrigado a seguir o exemplo do companheiro de batalha, por mais difícil que fosse recuperar a destreza em seus movimentos àquela altura... Haviam se distanciado de Wald, que se dera conta do Orvar falso quando, após “vencê-lo”, este desaparecera sem rastros de sangue. Hosvir e o verdadeiro Orvar se aproximaram do grupo de sacerdotisas de Eir; a aura de cura que estas intuitivamente irradiavam foi aos poucos recuperando o vigor do irmão de

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criação de Hjalmar, que estava enfrentando imensas dificuldades para arrancar de sua mente as imagens relacionadas às mortes do melhor amigo e de Volundar. Logo Wald, depois de massacrar um grupo de soldados de Gamla, rastreou seu cheiro: “Não pense que vai me escapar! Você tentou me enganar, companheiro de Hjalmar de Samso, mas não vai conseguir fugir de mim!”, a voz bestial trovejou pelo campo de batalha; não havia como Orvar não ouvi-la e não sentir o hálito da morte. Por outro lado, os berserkers do exército de Gandarki, sem a condução de Argantyr, a Tirfing caída no solo junto com o corpo do falecido rei, voltaram a seu estado “normal”, sem qualquer direcionamento, inclusive se agredindo entre si, e alguns saltaram atacando Wald. “O que vocês estão fazendo? Seus idiotas! Não me atrapalhem!”, rapidamente, com suas garras e dentes, destroçou muitos berserkers. “Eu não sou como o meu irmão! E não tenho a menor tolerância com imbecis!”, não demonstrava o mínimo interesse na Tirfing; e após um salto súbito de impressionante extensão, pousou à frente de Hosvir e Orvar, que haviam acabado de vencer um homem-morcego, e próximo das sacerdotisas. O sacerdote de Skadi multiplicou os presentes e pareceu atacar junto com o irmão de criação de Hjalmar. “Agora entendo...Foi você que me enganou antes! Mas isso não vai continuar, seu pequeno rato traiçoeiro!”, muito veloz, conseguiu se defender de todos os ataques dos dois e ainda contra-atacar, com suas garras atingindo as várias cópias de Orvar e também o original, transpassando sua armadura, ferindo-o na perna direita e derrubando-o; só não logrou, depois de se livrar dos falsos, acertar o verdadeiro Hosvir, que apareceu atrás e atirou uma das flechas abençoadas pelo patriarca; esta se cravou no ombro esquerdo de Wald; quando

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este se voltou, disparou mais outra, que se fincou no pescoço do monstro. A princípio este não demonstrou nenhum abalo, encarando o sacerdote com uma expressão de desdém sarcástico: “O que foi? Está querendo me fazer cócegas?”, contudo, de repente os dois pontos atingidos começaram a arder, o que foi se intensificando com as orações das sacerdotisas de Eir, comandadas por Svanni. A aura verde-dourada a envolvê-las logo se expandiu: os seres das trevas mais afastados procuraram manter a distância dali; os que estavam no caminho e não tinham força suficiente para resistir foram corroídos; Wald, ao ser tocado por aquela irradiação, sentiu muita dor e um fogo entrando em seus ossos principalmente por onde estavam as flechas, arrancando-as com algum esforço. Hosvir começou a ficar confiante, só que nessa hora o inimigo mostrou que ainda tinha bastante poder, fazendo explodir após um urro uma aura vermelha com relâmpagos desta cor, de certa forma como no início da transformação, só que com mais força, o que lhe permitiu sorrir selvagemente e entrar num êxtase violento, ignorando por completo a dor. Os raios romperam o campo energético das sacerdotisas e as fulminaram, uma a uma, inclusive Svanni. Da esperança ao pânico num tempo tão curto, o sacerdote de Skadi foi a vítima seguinte, atingido em cheio por um relâmpago que atirou longe seu corpo chamuscado, seu arco e suas flechas abandonados no chão para o escárnio dos demônios... A dor nos pontos atingidos logo cessou, os ferimentos cicatrizaram em segundos e Wald se pôs a gargalhar; o que eram humanos e demônios diante dele? Alimento e servos, respectivamente; ninguém mais iria detê-lo, Orvar sem conseguir voltar a ficar de pé. Foi quando Nill reapareceu, para cuidar de sua perna, que não

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parava de sangrar. “O que você está fazendo aqui? Vá embora, Nill! Fuja! Nós perdemos! Não temos mais esperanças! Salve-se você, pelo menos!” “O que o senhor está dizendo? Nem parece o senhor. que nunca foi de se importar tanto assim com a minha vida...Nessa situação, não vai adiantar nada eu fugir! Se esse monstro vencer a batalha, estaremos todos perdidos! Gamla não resistirá! O mundo estará acabado!”, e começou a irradiar uma energia de cura para a pena ferida. “O senhor precisa se recuperar e lutar! É a nossa última esperança!” “O que eu posso fazer? Eu não sou Hjalmar!” “O senhor é Orvar de Samso! Tenha confiança em si mesmo!” “Obrigado pelo apoio, Nill. Mas certos milagres não acontecem.” “Ele já está aqui...”, de fato, Wald estava bem atrás do guerreiro caído e do duende, sorrindo sadicamente; não iria incinerá-los com algum relâmpago: pretendia torturá-los com calma... “Acabou. É o nosso fim.” “Espero que Odin me admita no Valhala para cantar para os guerreiros e as valquírias.” “Fuja, ainda é tempo.” “Não. Não vou fugir.”, o duende persistiu, ainda que trêmulo, e Orvar, esboçando um sorriso melancólico, replicou: “Estou orgulhoso de você, meu pequeno amigo. Vamos à nossa última luta. Você me deu novas forças.”, ainda que com dificuldades, seu ferimento fora parcialmente curado por Nill e conseguiu se reerguer. Ficaram os dois de frente para o enorme inimigo. “Muito bem. Estava esperando você se levantar. Ou não teria graça furar a sua perna outra vez...” Ao passo que, observando Wald e a batalha como um todo, no

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alto do castelo que fora de Dietmar, estavam alguns feiticeiros enviados por Hel, em trajes negros, por baixo de seus capuzes nenhum rosto visível, somente escuridão; não viam naquele momento necessidade de interferir na luta, satisfeitos com o andamento desta e com o fato do irmão de Argantyr ter enfim resolvido manifestar seu potencial pleno diante de todos; esperavam agora a difusão de um reino de morte e horror. Paralelamente, a Tirfing não fora esquecida: e um ambicioso demônio de baixa categoria se aproximara dela; contudo, uma sombra repentina de algo que aparentemente não tinha qualquer materialidade envolveu a espada e repeliu a criatura, que nessa hora sentiu fortes dores e ouviu uma sinistra e impositiva voz rouca gritar em seus ouvidos “esta arma não é para um verme como você, fique longe!”; assim o demônio se afastou, enquanto a Tirfing desaparecia, reaparecendo nas mãos de Wagner, chamas negras se manifestando ao redor do círculo mágico onde o feiticeiro se encontrava, e neste fogo uma multidão de rostos. “O senhor terá uma nova vitalidade, senhor Loki! Um novo vigor! E virá para reinar sobre nós! Eu, seu humilde servo, serei seu braço direito!”, a espada emitia uma forte luz violeta de sua lâmina. “Eis o nosso momento!”, e teve início o ritual para a libertação do filho de Farbauti, com o sacerdote e Phyria começando a visualizar as correntes que prendiam seu amado deus e a pronunciar as necessárias palavras sagradas: “Iremos juntos cruzar a ponte Bifrost! Triunfaremos sobre Heimdall! E os mundos sustentados por Yggdrasil serão seus. No princípio de tudo, havia o gigante Ymir; não existiam terra, areia ou água; os oceanos e as montanhas não haviam surgido; nem o sol e a lua; nem as estrelas; apenas o Abismo, sem folhas e frutos. Odin e seus irmãos, que ao derrotarem Ymir, que os havia gerado, mas que era um tirano, que fizeram a terra, o céu e o sol, permitindo que

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este brilhasse nos salões de pedras e que a relva começasse a crescer no solo. Surgiu Midgard, este solo abençoado! Odin e seus irmãos tiveram filhos, e os deuses se impuseram em seus assentos sagrados, cada um teve garantido seu trono, inclusive o senhor, grande Loki! Foram dados os nomes à manhã, ao entardecer, à noite, às coisas, aos animais, aos anões das moradas rochosas, aos elfos e aos homens! E o senhor participou de tudo, ajudando a inflamar a vida nos corpos com o fogo de seu sopro. Altares e templos foram edificados; forjas acendidas; tesouros e utensílios forjados; só ainda não havia a necessidade de armas, quando do gelo e do fogo surgiram os jotuns e os gigantes de Muspell. Nisso os deuses precisaram produzir as primeiras armas, para enfrentar seus novos inimigos, que tiveram inveja de Asgard e planejaram tomar os palácios dos aesires! Contudo, nem todos os gigantes eram cruéis, havia entre as jotuns algumas graciosas, e foi através de uma destas que o senhor teve Hel, Fenrir e tantas outras criaturas de incrível poder! A morte dos homens e dos animais se fazia necessária para a continuidade da vida, para que Midgard não se tornasse um mundo sem espaço e sem ar, e é por isso que a rainha de Nifelheim foi um presente para todos nós, um presente que porém não é compreendido, e é por tal razão que muitos a insultam e a vilipendiam, como fazem com o senhor, pois não entendem sua importância e o sentido das trevas, que são decorrência natural da manifestação da luz. Hel, rogo por sua proteção neste momento! Sei da importância de Nifelheim, e que mesmo os mundos mais sombrios fazem parte de Yggdrasil, a grande e extraordinária árvore do alto da qual cai o orvalho que fertiliza todas as terras! Sem a morte, as almas não teriam necessidade do destino; e as nornas limitariam suas funções a regar a raiz de Yggdrasil, o que seria muito pouco, conquanto um trabalho imensamente nobre e

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necessário! Porém estas donzelas de esplendorosa sabedoria realizam muito mais: decidem as leis, registram os caminhos em chapas de madeira, tecem os fios de duração das existências terrenas. Elas também se lembram de quando Gullveig foi espetada com lanças e queimada por três vezes, porém por três vezes renasceu, e ainda vive! Elas sabem que, assim como Gullveig, o senhor há de se reerguer, há de renascer das cinzas de sua humilhação! Odin se tornou um tirano como Ymir! E assim como Ymir caiu, chegará o momento de Odin ceder seu lugar. Gullveig sabia responder a qualquer coisa que lhe era indagada, sua magia era superior à de qualquer outra volva, brincava com as mentes, e sua capacidade profética lhe permitia ser amada pelas noivas malignas que ansiavam a morte de seus maridos, do mesmo modo que nós hoje ansiamos pela morte de Odin! E por saber que ele, o rei dos aesires, um dia viria a ser derrotado, os deuses lhe teceram uma armadilha, convidando-a para um banquete onde ao invés de preencher seu ventre com alimentos o perfuraram com suas lanças cruéis! O ar ficou envenenado, a maldade parecia ter triunfado mesmo entre aqueles que deveriam ser exemplo de virtudes, e é por isso que Gullveig sobreviveu, o destino não quis que ela fosse vítima da tirania de Odin, e lhe provou que nem mesmo ele é onipotente, que mesmo o maior dos aesires deve se curvar ao que as nornas registram. O fio da vida de Gullveig ainda não podia ser cortado! Era preciso mostrar aos deuses que não podiam fazer o que bem entendiam, e que o fato de serem deuses não os autorizava a realizar qualquer ignomínia. Contudo, parece que Odin ainda não aprendeu: pois sabendo que seu destino é morrer entre as mandíbulas de Fenrir, agora deseja Thor como seu sucessor, e por isso aprisionou o senhor, grande Loki, acusando-o pela morte de Balder; mas o senhor é o legítimo herdeiro do trono de Asgard, enquanto Thor irá

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morrer lutando contra a serpente Jormungand! De nada adiantará para ele usar seu martelo, se alimentar de furiosa raiva! O rival do senhor será na verdade Heimdall, que oculta seu chifre debaixo do céu brilhante, preparando-se para tocá-lo quando chegar o Ragnarok, o conflito final entre deuses, elfos, homens, gigantes, anões, demônios e dragões, cujo resultado já está determinado pelo destino, e sabemos que por mais que Odin tente, não conseguirá impedir o seu triunfo definitivo, filho de Farbauti! De nada adianta vencer batalhas, se é a guerra o que importa. A morte de Balder foi um terrível e lamentável acidente, Hodr brincando com o que não deveria brincar, com o único dardo que poderia ser letal ao deus da beleza pura e do resplendor; inconsequente foi em sua cegueira, e acabou por fazer com que o grande Loki fosse acusado, não apenas por ser o que estimula o riso e a diversão, às vezes com aparente crueldade, embora jamais com injustiça, como porque Odin sabe que o senhor será o futuro rei dos deuses! Se ele não puder continuar, se tiver que de qualquer forma cair diante do lobo Fenrir, que Thor o suceda. Mas de nada adianta lutar para tentar mudar o destino! E os deuses precisão compreender que é a luz que brilha nas trevas a que é necessária para renovar o mundo. O choro de Frija não me comove! Maldade foi quando amarram no senhor as correntes de batalha, e colocaram a serpente para pingar veneno em sua garganta; o senhor é tão digno quanto Balder, mas ninguém chora pelo seu tormento, pela tortura à qual ainda é submetido, mas da qual logo estará livre! E se para triunfar ao seu lado tivermos que conviver em suas tropas com os revoltados, os homens mentirosos e os cães assassinos, isso não importa, aceitaremos qualquer condição, pois no fim tudo será lavado com sangue, os injustos de qualquer forma perecerão, e Odin de todos é o mais mentiroso e o maior dos assassinos.

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Aceitamos Nidhogg, que sob a raiz da Árvore chupa os homens mortos; aceitamos o Lobo que rasga os homens em pedaços; aceitamos Garm, que se alimenta vorazmente da carne dos tolos, e que fará com que a casa dos deuses se tinja de vermelho escarlate. Quando chegar esse tempo, o sol se tornará negro e virá um grande inverno, que durará mais do que qualquer inverno jamais durou; o sangue das batalhas respingará na neve; ouvir-se-á o último canto do galo rubro Fjallar, ao mesmo tempo que se escutará o do galo fuliginoso de Hel; os dois morrerão na mesma hora, e Surt marchará para fora de Muspell junto com seu povo para se juntar a nós! Irmãos combaterão entre si e matarão uns aos outros; as mães assassinarão os filhos, as que estarão grávidas fazendo isso já em seus ventres, apenas ao pensar com ódio nos inocentes que não poderão nascer; os pais serão levados à ruína por suas esposas infiéis e seus filhos larápios; as mulheres honradas serão abandonadas pelos maridos; o tempo será do machado, da espada e da prostituição; escudos serão partidos; será o tempo do lobo, da serpente, do vento; nenhum homem poupará o outro; não haverá compaixão; nenhum rastro de piedade ou de entendimento. Yggdrasil irá tremer, o velho freixo gemerá, e todos se amedrontarão quando de Nifelheim começarem a emergir os monstros que não temeremos, que serão nossos aliados na derrubada do tirano. Jotunheim será sacudido; os portões rochosos dos anões irão ruir; com os escudos erguidos, os gigantes do gelo irão marchar para conquistar Asgard, habituados com o frio do inverno que parecerá perene, e irão se juntar a nós, aclamando o novo rei! Jormungand irá se retorcer, agitando as ondas; as águas esquálidas irão urrar. Com os cadáveres em seus dentes, Nidhogg estará livre para confrontar a Águia! O povo de Muspell viajará em nosso navio, o sol a brilhar na espada de Surt; acompanhando o estrondo das pedras

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rachadas pelo fogo, o céu irá se partir. O término do reinado de Odin então irá chegar, o amado de Frija caindo nos dentes de Fenrir, e Freyr caindo sob a espada de Surt. Garm irá latir muito, antes de devorar Tyr. Quando Vidar cortar o Lobo com sua espada até o coração e vingar seu pai, já será tarde demais para os aesires, o grande Loki já se encontrará no trono após abater Heimdall, e os que lhe foram leais sobreviverão ao fogo que Surt irá espalhar para purificar o mundo. Todas as pessoas já terão deixado suas casas e Thor já terá enfrentado Jormungand, após esmagá-la dando nove passos e despencando vítima do veneno. Nem mesmo o deus do trovão poderá resistir! A terra irá afundar no mar, as estrelas mudarão de lugar, vapores se elevarão com chamas ardentes! Contudo, quando tudo isso terminar, a terra emergirá do mar novamente verde, a águia poderá voar livre e segura sobre as montanhas, não haverá mais raios a quebrar os céus, e o sol voltará a nascer, com o inverno que parecia eterno chegando ao fim. Nas ruínas do Valhala, o senhor Loki irá se reunir conosco; a rainha Hel e alguns jotuns e gigantes do fogo estarão presentes, e poderemos relembrar os mais importantes eventos e feitos heroicos, além de começar a organizar a nova idade do ouro e da alegria. Os íntegros e vitoriosos desfrutarão da eterna felicidade em um salão luxuoso muito superior ao Valhala; Loki se fundirá ao destino, será ele próprio o destino, as nornas lhe concederão a maior das dádivas por ter libertado todos os mundos da tirania, e o Poderoso terá o poder para julgar o baixo e o forte, o fraco e o alto; veremos Nidhogg voando, a carregar os mortos ignominiosos em suas asas, acima do campo, e afundar depois na terra. Isso tudo há de ocorrer! Mas, para que ocorra, antes é preciso que o senhor esteja livre...”, Wagner enfim ficou em silêncio e ergueu a Tirfing; seus olhos, assim como os de Phyria, estavam tomados pelo fogo; chamas

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violetas, negras e de um rubor violento incendiavam o ambiente, algumas entrando no círculo mágico e rodeando e tocando os dois oficiantes sem chamuscá-los. A concretização da intenção do feiticeiro, que paradoxalmente estava com o corpo gelado, a não ser por seus olhos, parecia muito próxima. Contudo, um terror abrupto oprimiu o peito de Wagner; uma pancada pareceu atingir sua cabeça; curvou-se após receber o golpe, enquanto Phyria se voltava, enfurecida, para o invasor, ou invasora, que surgiu em um relâmpago prateado, isolando-se entre as labaredas; logo ficou clara sua figura: uma donzela alta de rosto brilhante, seus olhos de um azul profundo, os cabelos cacheados longos e negros como sua túnica com partes metálicas e as três pedras que davam a impressão de representar olhos em sua tiara dourada. Seu semblante era límpido, tranquilo, pleno em confiança e firmeza de espírito. “É uma das prostitutas assassinas de Odin. Maldito tirano! Mas se pensa que pode nos deter com tão pouco, está muito enganado! Deveria ter vindo em pessoa, não enviado uma dessas pseudo-deusas vadias que passam a maior parte do tempo lambendo seu falo e os dos guerreiros do Valhala! Isso é o que são suas queridas filhas!”, Wagner esbravejou com ira e sarcasmo. “As suas ofensas não me atingem e também são baixas demais para atingir Odin. Você terá o que merece hoje, vil feiticeiro de Loki. Suas ambições já foram longe demais.”, e materializou em sua mão direita uma lança negra de ponta dourada, enquanto as pedras-olhos em sua tiara começavam a reluzir. “Eu diria é que você que foi longe demais!”, as chamas de Wagner e Phyria atacaram a valquíria, não conseguindo tocá-la porque já se achava no interior de um círculo de proteção; só lograram envolvê-la. “Estamos em um impasse! Se nós não

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podemos atingir você, você também não pode nos atingir. Só que quando Loki estiver livre, o seu círculo mágico não será de nenhuma serventia!” “Vocês não conseguirão libertar Loki. Eu conto com a proteção de Odin, que é o maior de todos os deuses. Já vocês não podem contar com a proteção de Loki, que está preso e selado.”, Sigrun, era este o nome desta valquíria, atirou sua lança, que se multiplicou, transformando-se em relâmpagos que foram engolindo o fogo ao redor e penetraram no círculo onde estavam Wagner e Phyria, para o espanto de ambos; a proteção mágica foi quebrada, e os dois atingidos pelos raios. Ainda procuraram resistir, fazendo surgir novas labaredas a partir de suas auras; mas no choque de suas energias com a da valquíria, enquanto tudo em volta começou a tremer, rachar e cair, Sigrun levou a melhor, materializou uma espada, de empunhadura negra e lâmina dourada, e lançou-se como um feixe de luz na direção do sacerdote de Loki, cravando aquela arma em seu coração; os olhos de Wagner se apagaram, enquanto seu corpo queimava internamente. Depois de alguns segundos, surgiram labaredas douradas que o consumiram, sua vida extinguindo-se junto com seus gritos. Incendiando-se, Phyria utilizou suas últimas forças para tentar vingar a morte de seu amante, mas foi decapitada pela valquíria e seu corpo despencou junto com a Tirfing, que sobrevivera intacta às chamas de Sigrun, em uma fenda que se abriu. O castelo de Dietmar estava ruindo, e a valquíria fez uso da energia que lhe restava para se teletransportar dali e escapar do desabamento, pois embora relativamente breve a batalha fora intensa, exigira uma entrega máxima, e as pedras que caíam estavam carregadas com o peso da magia das trevas. A mesma magia que permitira a Wald exercer sua crueldade com uma força muito maior do que a que seria a natural...

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Entretanto, Sigrun não fora a única valquíria a se manifestar em Samso: antes do castelo começar a desabar, Orvar e Nill foram salvos do pior por um raio branco que descera do céu como se estivesse sendo expulso do sol e da lua para se cravar no coração do irmão de Argantyr, adensando-se na forma de uma longa lança prateada de duas pontas, que o atravessara; uma ponta se fincara no solo atrás do monstro, enquanto a outra saíra por seu peito. O urro dado por Wald, que perdera um tempo considerável “brincando” com o duende e o guerreiro, tarde quando enfim se decidira a matá-los, fora comparável ao uivo de um lobo subitamente atingido pela flecha de um caçador; e, sem conseguir mover os braços para tentar retirá-la, vira surgir, atrás dos que teriam sido suas duas vítimas, alguém que parecia ser uma jovem alta em uma armadura negra polida, seus cabelos platinados lisos, longos e escorridos e seus olhos de um pretume profundo. Ao lado desta, uma sombra, que ao se definir revelara ser idêntica à outra guerreira: ambas possuíam expressões gélidas. Orvar e Nill, sentindo suas presenças, não tiveram coragem de se voltar para fitá-las, esta tentação no duende só sendo mais fraca do que seu medo. Aquelas eram as assim denominadas “valquírias gêmeas”: Skogul e Geirskogul. “Você, cujo pai é Arngrim, um dos einherjar agraciados por Odin, nosso senhor, abdicou de sua natureza humana e se tornou um monstro. Dessa forma, não poderá jamais receber a benção de se tornar um einherjar. E não podemos amaldiçoá-lo porque já está amaldiçoado. Viemos aqui para recolher os que são verdadeiramente nobres de espírito e aniquilá-lo.”, dissera Skogul, ao passo que sua irmã formara em suas mãos uma esfera azul luminosa, a qual, após puxar para si alguns ventos e sugar raios de luz, começara a manifestar em sua superfície os rostos de Hjalmar, Svanni, Hosvir, Volundar e outros guerreiros

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valorosos que haviam caído naquela batalha. “Vadias malditas, vocês não podem fazer isso comigo...”, apesar da lança fincada e de estar paralisado, Wald ainda vivia. “Vocês dois, afastem-se.”, aparentemente, Skogul era a única que falava, dirigindo-se a Orvar e Nill, que enfim a fitaram; a princípio, o irmão de criação de Hjalmar se sentira humilhado, afinal ela parecia uma mulher. Depois, refletira que não era uma simples mulher guerreira, que como valquíria se tratava de uma divindade, que seguia as ordens de Odin, que a Ele devia seu poder e que portanto não fazia o menor sentido se opor a ela, ainda mais depois que os salvara. Correra então junto com o duende, enquanto os feiticeiros encapuzados de Hel se teletransportaram até ali para enfrentar as duas, um destes desmaterializando a lança cravada no irmão de Argantyr, que levara a mão ao peito que não parava de sangrar e arder, e se ajoelhara; recuperando os seus movimentos, estava queimando de ódio, e não pouparia esforços para destruí-las e desafiar Odin. Os bruxos em trajes pretos manifestaram chamas escuras ao seu redor e fizeram surgir em suas mãos espadas de bainhas negras e lâminas compridas de um violeta apagado. Entrementes, as valquírias gêmeas não os temiam, e nem a qualquer monstro ainda presente no campo de batalha: mantendo os semblantes frios, manuseando novas lanças prateadas, estas de lâminas curvas, retalharam com uma incrível velocidade seus inimigos, movendo-se em todas as direções, as vestes dos magos das trevas rasgadas e destas saindo fantasmas de um azul incandescente que logo se extinguiam em pavor e desespero; o fogo sombrio dos feiticeiros não as afetava. Wald, mesmo ferido, se reerguera; mas não fora páreo para as duas, suas garras se limitando a arranhar as armaduras negras,

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feito em pedaços por um ciclone cortante de prata e ébano, idêntico destino reservado aos últimos berserkers de Gandarki e aos demônios restantes que tentaram agredi-las.

Johann e Dietrich eram mestres no controle dos elementos e a batalha mágica que travavam aparentemente não poderia ser mais equilibrada: quando a terra tremia e lhe eram atiradas rochas, o mago de Prusha levitava e se esquivava no ar; quando lançava um tufão sobre o cavaleiro-morte, este fazia o fogo engolir o vento; ao tentar incinerar seu oponente, suas chamas eram porém apagadas por eclosões de água; rajadas congelantes terminavam em vapor de ambos os lados; e quando Johann resolveu atirar seu melhor relâmpago, o adversário, que não desmontava de seu cavalo, não só não sofreu danos com a eletricidade como a distribuiu por seu corpo e pelo corpo de seu animal, que não devia ser um animal qualquer, para depois concentrá-la na ponta de sua espada, devolvendo o raio para o mago, que se desviou por pouco. “É impressionante! Admito que não sei como poderei vencê-lo.”, Johann confessou, descabelado e um pouco ofegante, ao pararem um de frente para o outro, os pés do mago e os cascos do cavalo de Dietrich sobre um solo frio e desgastado, de aparência infértil, enquanto soprava um vento gélido. Haviam decidido dar uma pausa no duelo? “Você possui capacidades admiráveis para alguém tão jovem. Mas lamento dizer que o vencerei.” “Não seria nenhuma vergonha acabar derrotado por Dietrich de Bern. Afinal, pelo que a lenda diz, foram necessários vários magos e guerreiros atuando juntos para vencê-lo. Pessoalmente, pude comprovar que certas lendas tendem a ter mais do que um simples fundo de verdade.” “Agora diz isso, mas antes se mostrava muito orgulhoso.”

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“Algo que faz diferença entre nós é o fato de eu estar cansado e você não se cansar.” “Posso sim me desgastar. Mas o seu corpo é frágil, muitas vezes menos resistente do que o veículo de manifestação que possuo hoje, e que devo à imperatriz Hel.” “Entristece-me pensar que alguém como você não passe de um mero servo.” “Percebeu o quanto se encontra distante de um deus?”, o equilíbrio naquele confronto, na realidade, não fora tão grande quanto aparentara... “Percebi. E isso me dá ainda mais gana de me tornar um...” “Não sei por que, mas começo a simpatizar com você.” “Sou irresistível!” “Eu deveria matá-lo e encerrar suas ambições, mas...” “Mas o quê?” “Parece que estou começando a ficar curioso para ver até onde pode ir. Seria um desperdício matar alguém como você...Que talvez se torne muito importante para a humanidade no futuro. Talvez você amadureça...Já que Wagner fracassou completamente.” “Você também sentiu?” “Sim, e foram as valquírias de Odin. Acabaram também com Wald, e Argantyr caiu lutando contra Hjalmar. Um matou o outro no duelo.” “Será que elas vão vir atrás de nós?” “Acredito que não. De todo modo, acho que vou me retirar.” “Por que não tenta você libertar Loki? É um mago superior a Wagner! E não tenho mais como impedi-lo...” “Ele tinha uma devoção que não possuo, e este não é o momento. Você se deu conta perfeitamente que as circunstâncias não são mais favoráveis. Em Nifelheim, aprendi um pouco sobre paciência.”

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“Isso quer dizer que você está me dando uma chance para eu me aprimorar e vencê-lo no futuro?” “Não sei se precisaremos lutar novamente. Acho mais provável que estaremos do mesmo lado.”, e o cavaleiro deu as costas para seu oponente. “Bem-dito!” “No entanto, isso dependerá de você. A imperatriz talvez me recrimine pelo que estou fazendo e dizendo, mas espero que conquiste a Pedra dos Sábios.”, sem necessidade de trote ou galope, Dietrich foi envolvido por uma névoa escura e desapareceu de perto de Johann. Apesar da derrota, não havia amargura no rosto fascinado do mago, cujo sorriso se expandia na mesma medida que suas ambições.

Uma esfera de luz azul com lampejos prateados envolvia Hjalmar, que se sentia sereno e leve, como se estivesse em um sonho suave e agradável, do qual não pretendia acordar tão cedo; as memórias de sua esposa e de seus amigos eram vagas, e não turvavam sua tranquilidade, como se não precisasse se preocupar, com a eternidade à disposição para reencontrá-los. Não sentia fome, sede ou cansaço; estava apenas relaxado, profundamente relaxado, ao passo que Volundar se encontrava aceso, os olhos faiscando em ansiedade, no interior de uma esfera transparente flutuante que parecia feita de vidro vermelho, ambos a pairar sobre as nuvens; tomara consciência de sua morte e imaginava que estivesse indo para Asgard, mas não podia deixar de ficar apreensivo com o destino de Samso. Não conseguia se desligar dos que haviam permanecido, como Orvar e Nill, seu pequeno amigo. Hjalmar acreditara ter livrado Gamla do perigo de Argantyr, e isso o anestesiara, cumprida enfim a missão que por tanto tempo fora a meta central de sua existência; já o gnomo, que

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não tinha uma missão heroica, estava preocupado também com a Naglering. As duas esferas seguiam adiante nos céus, e ao lado vinham outras, esverdeadas, onde se achavam as sacerdotisas de Eir, entre estas Svanni, e uma azul-escura, que recebia os olhares da moça, em que se encontrava Hosvir, encapuzado, sem olhar para trás nem para os lados. Um jardim flutuante ficou visível após um tempo de percurso que variou para cada um, breve para Hjalmar, interminável para Volundar, cansativo para Svanni, ambíguo para Hosvir, que não iria retornar para o templo de Skadi para receber as bençãos do patriarca, mas que talvez iria conhecer pessoalmente a deusa e outros numes de Asgard, já que lhe parecia evidente que não estava descendo para Nifelheim. A morte poderia ser então uma honra maior do que se tornar um novo patriarca. Quando pousaram no jardim, de flores altas de cabos de um verde tenso e pétalas de coloração anil, as esferas das sacerdotisas se desfizeram em uma poeira esverdeada brilhante; a de Volundar se dissipou em chamas breves; a de Hosvir simplesmente desapareceu; e Hjalmar, incendiado por um forte clarão interno, arregalou os olhos diante do céu ensolarado e do perfume das flores. A valquíria Eir os esperava. “Sejam bem-vindos, todos e todas vocês. Hjalmar, o herói de Samso! Volundar, o forjador da Naglering! Hosvir, um valente sacerdote cheio de fé! E minhas queridas sacerdotisas...”, que de imediato, ao ficarem frente a frente com sua deusa de devoção, se ajoelharam em reverência. “Não precisam me prestar homenagem.”, ficou de joelhos junto com todas e fitou fundo nos olhos de Svanni. “Me deixarão muito mais satisfeita realizando todo o trabalho que lhes indicarei, que já lhes aviso que não será pouco! Quanto a

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vocês, guerreiros, serão encaminhados para o Valhala.” Foi quando uma dúvida abrupta atingiu o espírito de Hjalmar, que rapidamente indagou, antes que o medo o obscurecesse: “Eu realmente venci Argantyr, ou por acaso fui derrotado? Tenho certeza que o atingi no coração e que ele caiu morto...Ou foi uma ilusão que eu mesmo criei para ocultar de minha própria alma o meu fracasso?” “Fique tranquilo. Por que duvidar agora, se há pouco estava seguro? Não se deixe afligir por espectros. Na verdade, você morreu em decorrência do veneno espiritual da Tirfing, a espada de Argantyr, mas venceu o duelo, embora se tivesse continuado vivo teria que viver com apenas um braço. Melhor que tenha vindo para cá, e se tornado um einherjar. Sua missão para Gamla e Midgard terminou. Seu trabalho agora será com Odin.”, replicou a valquíria. “Mas Argantyr não era o único inimigo.”, interveio Hosvir. “Ele tem razão! Wald enlouqueceu e se tornou um monstro! E quanto àquele feiticeiro que queria libertar Loki??”, emendou Volundar. “Não precisam ficar preocupados. Odin se deu conta da gravidade da situação e enviou algumas de minhas irmãs, Skogul, Geirskogul e Sigrun, para cuidarem de Wald e dos seguidores de Loki e Hel. Eles já estão mortos, assim como todos os monstros foram abatidos. O exército de Gamla pode se considerar vitorioso e abençoado pelos deuses.”, Eir respondeu com sua costumeira serenidade. “É isso mesmo. E você venceu, Hjalmar! Venceu o demônio e veio se juntar a mim!” “Que estranho...Estou com a impressão que conheço essa voz de algum lugar, mas tenho quase certeza que nunca a ouvi.”, o herói de Samso comentou a respeito da repentina intervenção anterior.

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“É uma boa surpresa.”, Eir sorriu. “Isso porque você só escutou a minha voz quando eu já estava velho. Mas aqui não temos idade! Somos eternamente jovens!”, vinha vindo um homem magro e de pouca estatura, a barba e os cabelos ruivos longos, em trajes de guerreiro que pareciam feitos de um couro vermelho. “Não acredito, agora estou reconhecendo essa presença...” “Sou eu, meu garoto!”, era a cura que Eir trouxera para que Hjalmar não se lamentasse de saudades de Ingeborg e Orvar, ao menos não de imediato: tratava-se de Halr Emmerich, o mentor do filho de Dietmar, rejuvenescido, que afinal era mais um einherjar. “Hora de subirmos juntos ao Valhala!”, os dois foram então andando um na direção do outro até um abraço firme, sem lágrimas; Hosvir lançou um olhar para Svanni, que naquelas circunstâncias achou melhor respeitar sua deusa e não pensar em mais nada além de como iria trabalhar ao lado dela. A valquíria percebeu o fio brilhante que havia se formado entre os dois e não se importou. Antes de levar suas sacerdotisas para o seu palácio e transportar os quatro para o Valhala, ainda lhes esclareceria um pouco mais sobre a situação de Gamla.

Do exército que Hjalmar conduzira à ilha de Samso, restavam poucos sobreviventes. O mais notável destes era sem dúvida Orvar, irmão de criação do falecido rei. “O que vai fazer, comandante?”, indagou um dos guerreiros de sua tropa, entre as ruínas, os pedaços de armas e armaduras e os cadáveres espalhados de homens e seres diversos. “Você ainda pergunta? Claro que vou levar o corpo de Hjalmar para a rainha.”, não haveria fraqueza que o impedisse de levar consigo o corpo do melhor amigo. “E quanto à Naglering?” “Não...Acho melhor não.”

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“Mas por que não?” “Esta espada pertencia só ao meu irmão, e a ninguém mais foi dado o direito divino de empunhá-la. Algo me diz que não sou digno de sequer olhá-la. Não sou capaz de matar um gigante, e nem venceria Argantyr, por isso nunca poderia tocar a Naglering. Nem eu e nem nenhum de nós. Correríamos o risco de ser punidos pelos deuses. Acabaríamos reduzidos a cinzas. Vamos deixá-la aqui como a arma mágica ainda viva que é, e que impedirá o surgimento de novos demônios. Se Volundar estivesse vivo, poderia levá-la com ele; seria o único com esse direito. Mas como também se foi, só nos resta deixar a Naglering na terra como uma semente de esperança.” “Acredita que Samso poderá ser repovoada?”, indagou outro soldado. “Isso dependerá não de nós, mas do que a rainha decidir.” “Mas toda essa guerra então foi em vão?” “É claro que não, não seja estulto. Nós salvamos Gamla, conduzidos por Hjalmar e com a ajuda dos deuses. Ele era muito querido por Odin, e a essa altura deve estar no Valhala; não foi à toa que as valquírias vieram em nosso socorro. Mas talvez Samso deva permanecer como está, como um enorme mausoléu natural para todos os guerreiros que pereceram aqui, como uma homenagem para Volundar, para o barão Dietmar, que foi como um pai para mim, e para tantos outros. Argantyr e seus monstros prejudicaram demais está ilha; melhor deixá-la para os animais e para as almas dos que lutaram por ela, a fim de que ninguém mais venha aqui realizar qualquer ambição, que ninguém mais derrame sangue nesta terra que se tornou sagrada! Dependeremos da decisão da rainha, mas minha intuição diz que ela concordará comigo. Esta ilha deveria ficar conhecida como Ilha das valquírias.” “Pensando bem, o que o senhor diz é verdade.”, o difícil,

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Orvar refletiu, seria comunicar a Ingeborg a morte de Hjalmar; levantou a cabeça aos céus pedindo inspiração para encontrar as palavras adequadas, distribuindo-as nos instantes corretos. Nill, observando-o a uma certa distância, iria ficar alguns dias sem conseguir tocar e cantar. A Naglering foi de fato deixada no terreno pelos guerreiros que partiram. No entanto, uma sombra feminina se aproximou dela quando não havia mais ninguém: era Sigrun. O que a valquíria pretendia com a arma mágica forjada por Volundar? Devolvê-la ao herói no Valhala? Talvez ainda fosse cedo para a Naglering deixar Midgard...E assim a apanhou, não para usá-la, isso estava evidente em seu semblante: mas para guardá-la.

Um poço que parecia não guardar nenhuma esperança; nenhuma expectativa; nenhum movimento; escuridão: só não estava vazio, pois havia ali um corpo sem cabeça despencado, e próxima a este uma espada... A Tirfing! E o corpo era o da decapitada Phyria. Contudo, quando da lâmina começou a emanar uma névoa violeta-escura, o cadáver deu uma impressão que se mexera. Um borbulho mole se manifestou na barriga do corpo de Phyria. E começaram a ser ouvidos estranhos sons, entre gemidos e murmúrios lúgubres, incompreensíveis e abafados. De repente, algo passou a fazer força para se parir, já que para a mãe era àquela altura impossível executar qualquer movimento. O cadáver principiou a ser aberto; algo abria espaço e queria sair à força. Primeiro apareceram os braços, muito finos, do mesmo modo os dedos compridos das mãozinhas, embora dotados de uma força surpreendente; depois a cabeça, o crânio encharcado de sangue, escancarando os olhos de pupilas vermelhas que pareceram rasgar o fundo branco com o grito

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estridente que se seguiu. O corpo de aparência raquítica do ser que emergiu não era decididamente o de um bebê saudável, e só remotamente parecia humano, a pele azul-escura rutilante, com uma cauda de ponta em espiral. Parecia terrivelmente assustado, e após o primeiro berro gemeu sons que deviam ter algum sentido em volta do corpo da mãe, arrastando-se até o pescoço, como se estivesse procurando-lhe o rosto. Como não havia mais cabeça nenhuma, morria ali a possibilidade de encontrar a face da mãe. Inegáveis o alto nível de inteligência da criaturinha, incrivelmente expressiva, e sua tremenda vontade de viver; lutaria incansavelmente por sua sobrevivência naquele buraco sob as ruínas do castelo do barão Dietmar e, quando retornasse para a superfície, levaria a cabo sua vingança. Por incrível que pudesse parecer, trazia todas as emoções da mãe, e as lembranças iam aflorando com rapidez, nascendo já com um imenso ódio pelas valquírias e consequentemente por Odin. Sob aquela casca frágil, jaziam capacidades e poderes excepcionais; todavia, não conseguiria compreender tão cedo seu potencial em totalidade, e por isso sentia medo, arrastando-se até a Tirfing ao se dar conta que sua mãe não poderia lhe oferecer nada, muito menos o calor que necessitava. Tremendo de frio, grudou-se à espada amaldiçoada, levando um susto quando ouviu uma voz em sua cabeça: “Vamos ajudá-lo a sobreviver, pequeno.”, uma voz feminina que soaria assustadora para muitos, mas que para ele pareceu mais uma carícia de mãe; uma mãe sombria...“Você saberá usar todo o potencial desta espada. Superará Argantyr, e superará seu pai. Só peço que não tema.”, uma aparição foi tomando corpo, começando pelo traje, um longo vestido negro que encobria os pés, e pelas mãos, uma branca de unhas vermelhas, ainda o sangue vivo visível nas veias, a outra apodrecida. Só depois o recém-nascido viu a cabeça surgir,

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talvez pelo trauma da mãe, os cabelos lisos e belos da cor da noite, metade do rosto o de uma linda donzela pálida, seu olho com uma ofuscante pupila verde, a outra metade horrivelmente pútrida; os dentes perfeitos de um lado, enquanto estragados e com a gengiva inchada aparecente do outro. O olho da parte cadavérica estava apagado, sem qualquer brilho; devia ser cega daquele lado. O odor que emitia também era dual: o podre e o fétido conviviam com uma fragrância sublime, ora se mesclando, ora nitidamente separados. O filho de Wagner e Phyria, ao vê-la, não sentiu medo, pelo contrário: desenhou-se em seu rosto uma primeira esperança; apenas o cheiro ambíguo o incomodava um pouco. “Não se aflija. Serei a mãe que você não pode ter. Vou lhe dar tudo o que posso dar, e treiná-lo da melhor maneira para que vingue seus pais, que sei que é o que deseja. Em troca, só lhe peço sua lealdade, para que eu possa trazer a este mundo aquele que seus pais quiseram trazer. Você concretizará o sonho deles, que não posso ajudar mais, infelizmente, porque foram mortos por uma valquíria. Até mesmo eu devo me ater a certas leis. Os que são mortos por deuses estão condenados a serem sombras para sempre. Mas você os vingará, em meu nome, em nome de Hel, imperatriz de Nifelheim.”, a senhora da morte sorriu, e o estranho bebê arregalou os olhos diante de uma lua pálida que viu atrás, e de um cenário de puro gelo surgindo ao seu redor, com uma fonte congelada ao centro. Hel se aproximou e se abaixou para tocar-lhe o crânio; nessa hora, o pequenino tremeu de um frio indescritível. A rainha do inferno logo desapareceu, surgindo em volta feiticeiros de capuzes jogados para trás, em trajes negros, suas cabeças todas idênticas: a pele esquálida, os olhos sem brilho, nenhum cabelo e nem barba. Em suas mãos, usavam anéis de prata, alguns portando espadas. Um destes cortou o espaço e abriu-se um

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portal, de onde começaram a sair demônios dos mais diferentes tipos. O treinamento do filho de Wagner e Phyria, que não notou entre os espíritos infernais uma minúscula faísca incandescente, já iria começar.

Nill deixara Samso para sempre. E, após alguns dias de silêncio lutuoso, passou a vagar pelas florestas de Gamla e de reinos vizinhos cantando para outros espíritos da natureza as gestas heroicas de Hjalmar, Volundar e Orvar, além de cantigas melancólicas que lamentavam o destino de Samso. “Incrível que você tenha vivido tudo isso, e estado com esses heróis.”, disse-lhe uma vez uma fadinha que cabia na mão de uma criança, de asas que pareciam de cristal e rosto de um brilho e uma delicadeza inefáveis. “É a pura verdade.” “Sei disso, sinto isso. A sua voz canta o que vem do seu coração, que registrou cada detalhe do que você viveu. Dá pra perceber que é um canto de recordação, apesar de ser um canto um pouco triste, carregado com a saudade de algo que não vai voltar tão cedo.” “É verdade, e pior que não volta mesmo. O senhor Orvar ainda está vivo, mas por enquanto prefiro deixá-lo em paz.” “Não fale desse jeito, estou certa que ele adoraria rever você. E não se lamente pelo passado. Rejubile-se porque a sua música, a sua poesia, eternizam esse passado. O que passou não volta, isso é natural. Mas você ainda pode viver novas aventuras.” “Não sei se quero. Depois dessas, acho que me dou por satisfeito.” “Será? Sinto que não é bem assim...” “É ruim ter amigos que se metem em guerras. Por mais emocionante que seja, e renda grandes poemas, eles sempre

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morrem logo.” “Você pode fazer, pensar e sentir o que quiser, Nill. Nunca se esqueça disso.”, e a pequenina fada desapareceu em um rastro de pó de estrelas, deixando o duende sozinho no olho da floresta.

Maldições e bençãos

I

O quarto que fora de sua mãe, a falecida rainha, estava decorado com o que ela mais amara em vida. Mandara recolocar todos os móveis antigos, mesmo os mais desgastados, que haviam sido relegados ao porão do palácio. Depois da morte de Feima, seu aposento permanecera fechado por meses. Ao ser reaberto, fora esvaziado, mantido somente um retrato pintado por um arista da corte e posto um diminuto altar sobre o qual ficava um pequeno baú com suas cinzas, ao lado do qual Hervor, a jovem nova rainha, que pedira que os restos da mãe fossem conservados, deixava sempre algum vaso de rosas, das quais cuidava enquanto durassem, afinal eram as flores favoritas da mãe. Agora, passados vinte e três anos da morte de Argantyr e seis desde que Feima se fora, que percebia o quanto fora acertada sua decisão de preservar as cinzas; mais adiante mostraremos por que. Havia dois meses que começara a dirigir a restauração do mobiliário, recuperando os pertences em bom estado que após a reabertura do quarto haviam passado a parentes de graus mais ou menos próximos. Fora conseguindo convencer todos a lhe devolverem os objetos, alegando que se dera conta do valor

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sentimental de cada um deles. Iriam fazer companhia ao baú, ao retrato e às flores. Em Gandarki, a maioria comentava com apreço e admiração o afeto e o respeito que Hervor ainda possuía por sua mãe, demonstrando ser uma pessoa profundamente leal a quem fosse o foco de seu amor, uma característica que portanto a ajudava a construir uma imagem honrada e de governante confiável, gentil como também se mostrava com seus súditos; outros julgavam aquela postura exagerada, e que revelava um apego prejudicial para o amadurecimento da jovem rainha, os mais supersticiosos acreditando que isso traria azar, com a aproximação do fantasma de Feima, que por sua vez estava associada a Argantyr, rei que em sua ambição desproporcionada compactuara com as trevas, ofendera os deuses e conduzira o reino a uma desastrosa derrota. Pouquíssimos no entanto agouravam Hervor explicitamente, o voto de confiança era quase geral, pois vinha se mostrando uma soberana exemplar. Apesar da pouca idade, com todas as suspeitas que recaíam sobre seus ombros ao assumir o trono, revelara ser firme sem precisar ser violenta como seu pai, sempre disposta a aceitar os conselhos dos mais experientes, embora dificilmente não tivesse alguma opinião própria e bem embasada sobre qualquer assunto. Também não se deixava enganar com facilidade, muito bem instruída nos ardis da corte por sua mãe e pela velha Snot, que morrera pouco antes de Feima. Contudo, não só na política se tornara hábil: fizera questão de ser treinada desde os doze anos pelos melhores soldados de Gandarki; sua mãe a aconselhara a esse respeito e tentara limitar seu desenvolvimento marcial, mas quando Hervor desejava algo (desde cedo fora assim) não havia meio de pará-la.

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Feima sempre repudiara a possibilidade de um segundo casamento, por mais que tivessem existido pretendentes insidiosos e uma pressão sutil na corte. Portanto, como Hervor não tinha e nem teria um irmão, a então princesa pretendera preencher consigo mesma, sem perder sua feminilidade, parte do vazio do aspecto masculino deixado em seu núcleo familiar pela morte do pai, vazio que se prolongaria em seu trono, pois não confiava o suficiente em nenhum homem para dividi-lo. Os temores da corte e do povo que se tornasse uma versão feminina do belicoso Argantyr, alimentados pelo gosto que se dizia que ela tinha por exemplo pela esgrima e por montar a cavalo, aparentemente se revelaram infundados, pois não empreendera nenhuma guerra desde que se tornara rainha; sequer ameaçara dar início a qualquer campanha militar, zelando somente pela segurança das fronteiras do reino. Passava com alguma frequência pelas fortalezas de fronteira, para a felicidade dos soldados que trabalhavam nestas, que adoravam suas visitas, não só pelo caráter que demonstrava como porque diziam que “embelezava” e “iluminava” aqueles ambientes tão duros e em perene apreensão. Só nunca escondera para sua mãe e para Snot, quando ainda eram vivas, o desejo de algum dia atacar Gamla depois que assumisse o trono; e detestava que falassem mal de seu pai, que desrespeitassem sua memória, só não demonstrando sua indignação, não fazendo escândalos, simplesmente procurando argumentar em sua defesa, com qualquer que fosse o interlocutor, depois explodindo sozinha, indo fazer em pedaços algum boneco com sua espada. Como sua mãe e a que fora praticamente sua avó haviam partido, não tinha mais com quem desabafar sobre seus planos de conquista e vingança, os violentos golpes nos bonecos passando a ocorrer também para descarregar a energia que

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ficava acumulada por ter de conter a língua sobre isso; mas não desistiria nunca de se vingar dos que julgava serem os assassinos e os descendentes dos assassinos de seu pai. Apenas não era apressada. Argantyr a seu ver fora um homem justo, que desejara conduzir Gandarki a uma glória maior, difamado por cometer alguns erros, como se tivesse sido o único ser humano a errar. “Ele era um guerreiro nato. Seu grande erro foi se envolver com a magia, sem ser um seidmadr ou um bom sacerdote. Acabou se deixando seduzir por aquele homem terrível...O sacerdote de Loki. Essa foi a ruína do seu pai. Se ele não tivesse se deixado fascinar pelos demônios, por aqueles monstros que me apavoravam, talvez teria vencido Hjalmar de Samso e estaria até hoje conosco.”, fora o que lhe dissera uma vez sua mãe; e, de alguma maneira seguindo as palavras de Feima, Hervor não cometeu o mesmo erro de Argantyr: envolveu-se com magia, mas com plena consciência, sem se deixar manipular por ninguém; detestava Hel, Loki e seus demônios acima de tudo, e pretendia se tornar uma maga na plenitude do termo. Chegamos ao seu verdadeiro objetivo na redecoração do antigo quarto de Feima: não se tratava de algo motivado pelo respeito filial (ao menos não do modo como as pessoas estavam compreendendo) ou pela tentativa de manter intacta a memória da mãe; estava seguindo as instruções de um antigo grimório para evocar os espíritos de seus pais. Começaria pela falecida rainha, que por ter convivido com ela por anos e morrido numa data mais próxima seria um trabalho mais simples; depois passaria a Argantyr. Pretendia evocar Feima porque não admitia que a morte fosse uma barreira intransponível; a magia, que vinha estudando com extrema discrição desde os quinze anos, devia lhe oferecer a

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quebra de todos os confins e separações, permitindo-lhe voltar a desabafar com a mãe e ouvir seus conselhos; e, ao evocar o pai, queria enfim conhecê-lo e escutar toda sua história de sua própria boca, para poder assim defendê-lo melhor contra os difamadores e não repetir os mesmos erros na futura tentativa de conquista de Gamla. Sabia que o filho de Hjalmar de Samso ocupava agora, em Upsala, o trono daquele reino; vingaria o pai cravando sua espada no peito do rapaz. Feima enquanto viva não aprovara a vontade da filha de empreender uma nova guerra contra Gamla depois que assumisse o trono; mas ao mesmo tempo não se preocupava verdadeiramente porque não levava suas palavras sobre isso tão a sério, considerava-as mais expressão de um capricho que com o tempo seria deixado de lado. Estava no entanto equivocada nesse aspecto: a maior razão de viver de Hervor era conquistar Gamla, concretizar o que seu pai idealizara. “Para que pensar numa coisa dessas? Para haver mais derramamento de sangue?”, a nova rainha às vezes ouvia estas questões na voz da antiga em sua mente; não se importava: iria prudentemente seguir adiante, mesmo que o espírito de Feima lhe dissesse para desistir porque os deuses lhe haviam revelado que a nova campanha resultaria em um novo fracasso. Poderia de qualquer forma ser um teste dos deuses para colocar à prova sua determinação e sua valentia, e ainda que fosse realmente perder não seria jamais condenada por pusilanimidade, falta de coragem e desistência na defesa da honra de sua família e de seu reino. Poderia até vir a ser a primeira mulher a ser admitida no Valhala... Hervor, que fisicamente era uma mulher alta, de cabelos cacheados loiros com uma tonalidade arruivada e grandes olhos castanho-claros, definitivamente não se caracterizava pelo

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apequenamento espiritual. Na evocação que pretendia realizar (e que exigira antes de qualquer preparativo um considerável tempo de reflexão, pesando longamente todos os prós e possíveis contras, pensando se seria mesmo o melhor a fazer), a velha nova decoração era apenas o primeiro passo; quando o quarto ficou pronto, passou a se fechar lá todos os fins de tarde, durante três meses, no mesmo horário, com apenas uma vela, colocada atrás de si, ficando até a hora do jantar diante do retrato da mãe, em silêncio; a seguir, perfumava o ambiente com incenso e abençoava as cinzas em nome de Odin e Frija, o que facilitaria a materialização, saindo depois devagar. O dia fixado para a evocação foi o do aniversário de Feima, que devia ser encarado como o dia de uma verdadeira festa, Hervor chegando a preparar os biscoitos favoritos de sua mãe. No horário do almoço, fez no quarto da falecida uma refeição composta apenas por vinho, pão e duas maçãs; não usara em nenhuma ocasião anterior a toalha branca sobre a qual se alimentou, e deixou ali uma cestinha com os biscoitos, além de uma taça com um pouco de vinho. Tudo em profundo silêncio, diante do retrato. Na hora costumeira, assim que entrou no quarto e trancou a porta, com apenas uma vela branca em mãos e vestindo uma alva túnica-ritual que confeccionara especificamente para a oportunidade, na qual as runas de diversos deuses estavam bordadas em dourado atrás, e o nome de sua mãe à frente, e que iria queimar ao fim da cerimônia, realizou uma primeira prece em que pedia proteção aos deuses e às almas dos magos nobres de outrora: “Nenhum ser inferior irá atrapalhar esta evocação. Que todos os espíritos da natureza me obedeçam, ficando sob meu pé direito e minha mão esquerda; glória, sabedoria e eternidade, nornas que tecem os destinos, toquem

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meus ombros e dirijam-me no caminho da vitória; que a justiça seja o equilíbrio e o esplendor de minha existência; das raízes de Yggdrasil quero ser conduzida a seu topo, como um dragão ascendente; gnomos sábios e justos, firmem-me na pedra da Verdade. Freya, peço que me preencha de amor; Odin, pai dos deuses, me ajude a descobrir o que Sou e o que Serei; Thor, proteja-me com seu martelo Mjolnir, que nenhum demônio possa se acercar de mim e me enganar tomando as vestes de minha querida mãe; Tyr, seja a minha força e combata por mim em nome da honra de Asgard; Freyr, seja meu irmão em nome das virtudes que unem todos os seres e ilumine-me com seus esplendores e a amizade dos elfos; Idun, purifique minhas intenções; Bragi, permita que minhas palavras sejam as mais adequadas e que eu jamais provoque a ira dos deuses; que a vida gire e resplandeça à minha frente, permitindo que a luz se condense em carne.”, e após mais algumas palavras desta vez apagou a vela, silenciando por aproximadamente um quarto de hora diante do retrato. Depois disso, começou a falar à mãe como se ela estivesse presente: “Mamãe, que bom que você está aqui. Não imagina as saudades que senti, e do quanto ainda preciso dos seus conselhos e da sua companhia. Não é tudo que se pode falar com as pessoas. Só com a senhora eu me sinto totalmente à vontade.”, ainda sem ver nada e nem ninguém, sentiu-se estranha e um pouco tola no começo da evocação, quando de repente uma chama azul tornou a acender a vela. “Mamãe?”, indagou ao ver aquele fogo que não queimava se expandir até se tornar uma luz pura e fria; ficou imóvel: estava acontecendo como o grimório dissera. Entretanto, ficou assustada e surpresa quando viu se formarem e se materializarem na claridade não uma e sim três figuras, que não tinham nada que ver com sua mãe, nem sequer com seu pai; eram pequenas, troncudas, e depois percebeu que

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masculinas: anões. “Quem são vocês? Por acaso são gnomos enviados pelos deuses para me dar proteção e me auxiliar no meu ritual?”, procurou se manter tranquila, sem medo, contendo seu receio, apesar de agora as coisas estarem ocorrendo diferentemente do que o livro dissera, afinal os espíritos protetores enviados pelos deuses deviam ser muito discretos, não aparecendo dessa forma na luz astral, como se fossem os alvos da evocação. “Exijo que me deem seus nomes.”, seguiu a recomendação do grimório para caso ocorressem aparições inesperadas, pois seres astrais não podiam, segundo estava escrito, mentir sobre seus nomes; e ter o nome de um ser astral significava ter poder sobre ele. “Não precisa ficar receosa, jovem rainha. Nós viemos em nome dos deuses, só não para auxiliá-la no que está pretendendo, e sim para lhe dar uma missão maior do que poderia imaginar, por ordem direta de Odin. Caso a cumpra, terá um grande futuro em Asgard. O meu nome é Alviss, e estes são Dvalin e Durin, que um dia foram respectivamente o rei e o príncipe do reino de Lofar. Somos os forjadores da Tirfing.” “Do que vocês estão falando?” “Logo vossa majestade irá entender. Para começarmos, não se preocupe com sua mãe, ela está muito bem no paraíso de Urd, e a Tirfing é a espada que o seu pai usou na tentativa de conquistar Gamla.”, e os anões narraram então toda a história da espada amaldiçoada, desde o reino de Svafrlami, dando muitos detalhes sobre a história de Argantyr, a respeito dos quais a filha quis esclarecer diversas dúvidas, concluindo-se com o que seria o trabalho que Hervor deveria levar a cabo: “Muitos pensaram que a Tirfing nunca mais seria usada, que ficaria para sempre esquecida debaixo das ruínas do castelo do barão Dietmar após a derrota de Wagner e Phyria; no entanto, um terrível demônio surgiu justamente no buraco onde a

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espada caiu após a violenta luta entre Sigrun e os dois sacerdotes de Loki. Passaram-se os anos e, sob a liderança dessa criatura, que se apoderou da Tirfing, Samso se tornou um lugar amaldiçoado, povoado apenas por monstros e zumbis. O que as pessoas não sabem é que isso não se limitará à ilha se a situação continuar como está, as criaturas das trevas se preparando, sob o comando oculto de Hel, que é uma espécie de mãe para esse demônio que está com a Tirfing, para invadir e conquistar Midgard em breve. A única maneira de impedir isso, e encerrar o ciclo da Tirfing, ao qual infelizmente fomos nós que demos início, é não só matar o demônio como destruir a espada. Eis o que os deuses querem que vossa majestade faça: e como foram habitantes de Midgard que forjaram a Tirfing, é preciso que outros habitantes de Midgard a destruam. O aprendizado é para nós. Não se aflija, pois não estará sozinha. Os companheiros apropriados irão se aproximar de vossa majestade, e juntos entrarão em Samso para vencer.” “Se tudo isso for verdade, a minha vitória é certa, afinal o destino de todos os que possuem a Tirfing é não viver muito com ela. Esse demônio já viveu o bastante...” “Para um demônio, os efeitos colaterais são bem menores. Quanto mais cruel for o dono da Tirfing, a maldição terá menos poder sobre ele. Foi o que descobrimos com os deuses; nós mesmos sabíamos pouco sobre as consequências do que estávamos fazendo na época que a forjamos. Mas mesmo que a derrota desse monstro já esteja escrita, o que não pode acontecer é vossa majestade ser seduzida pelo fascínio da Tirfing. Se a pegar para si, é certo que sua vida será muito breve.” “Não sou nenhuma tola, ainda mais que foi a espada de vocês que arruinou a vida do meu pai. Nunca a desejaria.” “É fácil falar. E o seu pai não era nenhum homem santo! Ele

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teve o que procurou.”, despejou Durin. “Você não tem o direito de falar assim do meu pai.” “Durin, por favor.”, Alviss procurou contemporizar. “Jovem rainha Hervor, confiaremos portanto esta missão ao seu nobre espírito.” “Ainda não disse que aceitei.” “Mas sabemos que aceitará. Vossa majestade não permitirá que Midgard caia sob o domínio de Hel, e está ciente que os deuses não interferirão tão cedo para que homens, gnomos e todos os seres que habitam este mundo se deem conta dos equívocos em suas posturas e condutas. Também poderá, ao conquistar Samso, resgatar a honra de seu pai, de sua família.” “Hmpf...”, Durin grunhiu, enquanto Dvalin riu e lhe deu um tapa nas costas. “Odin só lhe pede uma coisa: para que renuncie à conquista de Gamla.” “Mas você acabou de falar que poderei conquistar Samso.”, objetou Hervor. “Samso não pertence mais a nenhum reino, e vossa majestade a conquistará dos demônios, será portanto uma heroína de Midgard. Já uma guerra com Gamla, compreenda, só espalhará mais sangue humano em vão; vossa majestade não será uma heroína, e sim será considerada uma jovem princesa caprichosa, imatura e imprudente, que nunca se tornou realmente rainha, que assumiu o trono de forma precoce, quando ainda não era hora.” “Não acredito nisso. Odin deve estar testando minha persistência, a fé em meus ideais. Não desistiria da minha vingança contra os descendentes de Hjalmar mesmo que fosse minha mãe a insistir nisso!” “Entenda, moça, que não foi Hjalmar que procurou guerrear contra Gandarki, e sim Argantyr que empreendeu uma guerra

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contra Gamla.”, interveio Dvalin. “E na primeira vez em que seu pai atacou Gamla, o rei sequer era Hjalmar, e sim Gherdor. A sua vingança não faz sentido.” “Como não faz sentido? Foi Hjalmar quem matou o meu pai e meu tio Hjovard.” “Como se eles não tivessem procurado suas próprias mortes! Entendo que para você seja difícil admitir a verdade agora, mas pense. Não precisa demonizar o seu pai, mas ele não foi um deus acima de qualquer defeito.” “Claro, sei que meu pai tinha defeitos, e que cometeu erros. Só, como o senhor meio que disse, não gosto que o citem como um demônio. Ele era um ser humano. Falho, com defeitos mas também virtudes.”, sua voz foi abaixando de volume, assim como ficou levemente cabisbaixa, demonstrando seu entristecimento. “Você não deve se abater. Eu também fui rei, e o que tenho a lhe dizer é que não abandone seu ideal de limpar o nome e a honra do seu pai e da sua família, mas faça isso de uma forma que seja benéfica para todos em Midgard. Uma guerra contra Gamla é inútil! Concentre-se em vencer o demônio de Samso, e será abençoada por Odin.”, ao que Hervor não respondeu, e Alviss concluiu a visita dos anões da seguinte forma: “Bem, acho que vossa majestade precisa de um tempo sozinha para refletir e digerir a situação. Vamos deixá-la um pouco em paz. Odin não tomaria uma decisão equivocada ao escolhê-la; Ele sabe que vossa majestade amadurecerá em seu caminho. Chegou a hora de partirmos.”, Alviss fechou os olhos e juntou as mãos, parecendo que fazia uma prece; Durin cruzou os braços; e Dvalin acenou para a jovem rainha, antes dos três se dissiparem fundindo-se à luz astral, que desapareceu a seguir. A decisão de Hervor, que reergueu a cabeça com uma expressão determinada ao ficar em silêncio no escuro, já estava

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tomada.

O problema fundamental residia no como. Como justificar para a corte e a população uma campanha em Samso? Mais uma vez Samso... Pensou por alguns dias, ao tomar coragem reunindo seus conselheiros durante um jantar e realizando o seguinte discurso, que continha tanto mentiras como verdades: “Vocês talvez não imaginassem isso, mas tenho informantes espalhados por este palácio, por todo o reino e também em nações estrangeiras. Sei que há muitos que me subestimam, por eu ser jovem e por ser mulher, mas li muito e também aprendi bastante com os conselhos de minha mãe, o suficiente para não confiar cegamente em ninguém e me precaver contra todos. Espero que não se sintam ofendidos, mas garanto que não tenho olhos para suas atividades particulares, apenas procuro me manter vigilante e informada.”, procurou ignorar o burburinho subsequente, prosseguiu, e, com a sua fala, este foi silenciando de forma natural. “Esses espiões são de diferentes origens, alguns são mercenários, outros não, e mantenho um certo número em Gamla. Um deles veio me falar sobre a situação de Samso, ilha que um dia meu pai ocupou, que foi seu túmulo e que posteriormente, devo lhes deixar bem claro, pois é o motivo desta convocação, se tornou a morada de um exército de criaturas das trevas, um espaço intermediário entre Midgard e Nifelheim onde cada vez mais demônios estão despontando e se reunindo. Durante todos estes anos, desde a morte do meu pai, Samso permaneceu em silêncio; mas um dos homens foi até a ilha, munindo-se de toda a coragem, e percebeu que os seres que lá se encontram estão elaborando planos e acumulando forças e recursos para em breve nos atacarem, e então não será apenas Gamla que sofrerá, mas todo

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o mundo, inclusive Gandarki. O homem que entrou lá é um mago, um seidmadr...”, ao elaborar sua história, Hervor visualizava Alviss. “Ele é muito experiente em compreender os ardis dos servos de Hel, e se mostrou preocupado com o que viu, ouviu e sentiu. Estão preparando uma guerra terrível contra todos nós, contra todos os seres humanos.” “E o que vossa majestade está sugerindo? Para confiarmos cegamente na palavra desse sujeito e entrarmos nessa ilha? E se ele for um espião de Gamla? E se estiver mancomunado com esses monstros, se é que eles existem?”, indagou um dos nobres. “Eles existem, isso eu garanto.”, replicou, enquanto pensava: “Sabia que não ia ser fácil...”, e deu continuidade: “Sei que existem porque são uma consequência dos erros do meu pai no passado. É muito doloroso para mim reconhecer isso, mas é uma verdade que tenho que admitir: meu pai cometeu um imenso equívoco ao se envolver com a magia das trevas, seguindo Wagner e Phyria, os sacerdotes de Loki, trazendo ao nosso mundo criaturas que não pertencem a ele. Não conheci Wagner pessoalmente, tudo o que sei é pelo que li e pelo que minha mãe me contou, mas alguns dos senhores o conheceram, e viram de perto os monstros que surgiram em decorrência da obscura proximidade dele com o meu pai. Ele pretendia libertar Loki e tinha o apoio de feiticeiros de Hel. Como podem duvidar do que estou dizendo, se o que está acontecendo em Samso poderia ter ocorrido em Gandarki?” “Sua majestade tem razão.”, interveio outro nobre. “Eu me lembro de quando Argantyr se perdeu em suas ambições e compactuou com as trevas. Lembro-me perfeitamente das aberrações que começaram a perambular por este palácio. Não gostaria que isso se repetisse nunca mais.” “Se deixarmos Samso como está, algo muito pior pode

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ocorrer. Temos sim que ir até lá e cortar o mal pela raiz, não deixar um único demônio vivo, porque ao que parece foram os sobreviventes da guerra de mais de vinte anos atrás que plantaram a semente da árvore amaldiçoada, que poderá matar a todos nós no futuro com frutas, folhas e flores envenenadas. Além disso, esta será uma campanha para lavar a honra de Gandarki, que de certa forma é responsável por esses monstros; não posso permitir que o nome de Gandarki fique na lama, assim como o do meu pai, que por mais erros que tenha cometido só desejava o melhor para este reino, alçá-lo à posição de maior império que já existiu sobre a face de Midgard. Seus sonhos de grandeza lhe custaram caro, e por isso não cabe a nós julgá-lo e condená-lo, ele já pagou por isso; o que devemos fazer é eliminar todos os rastros de seus erros, destruir qualquer possibilidade que associem o nome de Gandarki à feitiçaria, à baixa magia. É nossa obrigação moral limpar Samso e salvar Midgard. Talvez nem seremos lembrados por isso...Mas mais valerá para nós, internamente, nos tornarmos um império maior em virtudes e valor espiritual do que qualquer império meramente territorial tenha sido. Impérios e reinos passam; mas nossa riqueza espiritual permanecerá para sempre nos registros dos deuses.” “Palavras certamente muito nobres, amada rainha. Eu não vou me opor a uma campanha em Samso, vossa majestade certamente sabe o que faz, parece estar muito mais bem informada do que nós.”, interveio um velho nobre extremamente magro e seco, com um semblante de rato, que fora um dos maiores aduladores de Argantyr no passado, ignorado por este (e por isso, entre outras razões, na verdade sempre odiara o antigo rei). Hervor o tolerava por ser dos poucos que sempre defendia seu falecido pai, embora notasse uma considerável dose de falsidade em seu tom e uma energia

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pessoal de baixa qualidade, e por seus conhecimentos de história, um excelente professor nessa matéria. “Mas como presumo que irá conduzir pessoalmente as tropas, o trono de Gandarki ficará completamente vago. Na outra ocasião em que o rei partiu para a conquista de Samso, no caso seu venerável pai, sua mãe permaneceu aqui, além de vossa majestade então como herdeira. Agora ficaremos sem rei, sem rainha e sem princesa! Devo aconselhá-la que este é um cenário propício para um golpe.” “Sei aonde está querendo chegar. Acha que devo deixar um regente de confiança enquanto estiver ausente. Não se preocupe, farei isso.”, a jovem rainha respondeu, e refletiu que só faltava aquele indivíduo replicar: “Lembre-se bem de mim ao tomar sua decisão!”, mas ele só disse: “Sempre admirei sua sabedoria e sua prudência. Vossa majestade é a prova viva que pouca idade não quer dizer impulsividade, nescidade e ingenuidade.”, seu sorriso discreto estava carregado de falsidade; mas Hervor não se intimidou: também abriu um modesto sorriso falso. As cobras iriam se agitar; muitos desejariam sua morte em Samso para depois se digladiarem pelo poder à vontade; sabia disso tudo, e pensaria, observaria e analisaria muito bem (inclusive utilizando sua sensibilidade espiritual, que crescia a cada dia graças à prática mágica) antes de escolher entre os nobres qual deles lhe parecia o mais ponderado e com menos características e sugestões que indicassem uma personalidade manipulatória e traiçoeira. Mentira sobre o “mago-espião” em Samso...Mas tinha de fato diversos informantes espalhados pelo palácio, pelo reino e em territórios estrangeiros, que sempre que possível encontrava principalmente nas fortalezas de fronteira, raras vezes os encontros se dando no castelo real. De todo modo, a discrição dos demônios de Samso devia ser

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mesmo muito grande, e o plano que estavam arquitetando o pior possível, para nada ter acontecido em Gamla, para não ter havido sequer uma ocorrência de ataque de algum monstro; ou teria sido informada. A menos que a corte de Gamla estivesse escondendo muito bem a situação da ilha de seu próprio povo. Seu informante também poderia ter passado para o lado do filho de Hjalmar...Tudo estava sujeito às suas dúvidas. Só não duvidava que precisava agir, e que não teria tempo para evocar Alviss ou algum deus para se informar mais e melhor.

Os preparativos para a partida, que duraram um bom tempo, consistiram em reunir um número considerável de soldados bem treinados, alguns dos homens das fortalezas fronteiriças sendo convocados. Lutar contra demônios e feiticeiros das sombras requeria a formação de um exército poderoso. Para evitar de colocar em risco a segurança interna, facilitando as coisas para eventuais invasores com o enfraquecimento das defesas do reino, que se voltara para o ataque, a contratação de mercenários foi necessária, anúncios voltados para estes espalhados por todo o território de Gandarki. Contudo, como Hervor tinha receio de escroques e espiões, precisavam passar por uma entrevista com a rainha, que os observava não só superficialmente como fazendo uso da Percepção que vinha desenvolvendo por meio da magia. Concentrada em seu trono, todos os dias antes de iniciar as entrevistas fazia uma meditação preliminar, realizando exercícios de respiração, visualização (no caso de runas divinas) e procurando esvaziar a mente para maximizar sua sensibilidade e intentar pela proteção dos deuses para que fizesse as escolhas corretas. Após uma tarde em que dez mercenários haviam sido recusados seguidamente, alguns por lhe parecerem aventureiros gratuitos, outros por terem atitudes e posturas suspeitas, fez

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entrar os três restantes de uma vez só. Para a sua própria surpresa, esperando que estava trambiqueiros, delinquentes, loucos ou tolos, estes a impressionaram vivamente ao primeiro olhar, sentindo que irradiavam um poder raro: dois eram irmãos gêmeos, trajados com armaduras negro-prateadas, em suas costas espadas de duas mãos cujas empunhaduras possuíam o formato de asas, cada qual com um rubi no centro, nestas e na bainha o preto também se mesclando ao prata; eram bem altos, passando de um e noventa de estatura, os cabelos pretos ondulados e longos, os de um dos irmãos um pouco mais, os olhos de um negro avassalador, embora tivessem a pele bastante clara, seus narizes aquilinos. A outra parecia uma mulher guerreira com uma face que irradiava um brilho incomum, que a maioria das pessoas não seria capaz de perceber, mas que Hervor, iniciada na magia, podia notar; seus olhos eram de um azul incrivelmente intenso, e seus cabelos negros se prolongavam em belos cachos; em sua tiara dourada, havia três pedras preciosas que pareciam representar a visão comum e a visão espiritual, por ali a jovem rainha concluindo, somando-se isso à observação de sua energia e presença, que só poderia se tratar de uma maga. Usava uma armadura de aparência bem mais simples do que a dos gêmeos. “Sejam bem-vindos à minha corte.”, disse, depois que os três se ajoelharam em reverência; tinham uma postura completamente distinta em relação a todos os mercenários que entrevistara antes, mesmo os de inegáveis qualidades guerreiras. “E podem ficar de pé. Quero conversar com vocês de igual para igual. Porque de alguma forma sinto que somos iguais.”, e também se levantou de seu trono. “Vossa majestade possui uma percepção apurada. Não sabemos se isso nos surpreende ou não; mas de fato um mago sempre reconhece outro.”, disse um dos gêmeos, com um

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sotaque estrangeiro um pouco carregado. “Digam-me quem são vocês e quais seus propósitos aqui. Sinto que não são mal-intencionados, mas é necessário conversarmos um pouco.” “Sou Jarl, e este é meu irmão Konr. Somos de famílias guerreiras de Wessex, mas o caminho da magia nos fascinou e deixamos nosso reino há alguns anos, tanto porque queríamos conhecer o mundo e aprimorar nossos conhecimentos, quanto porque nossa situação por lá se tornou delicada, já que uma família rival assumiu o poder. Em nossas peregrinações, chegamos em Gandarki há mais ou menos um ano a fim de estudar o caso Argantyr; temos interesse na história dos feitos de seu pai, e nas consequências destes. Quando soubemos que estava organizando uma campanha rumo a Samso, e da situação da ilha, logo pensamos em nos engajar. Pelo que parece, ele tinha em mãos uma espada amaldiçoada, forjada por anões, que pertenceu primeiramente ao rei anterior ao seu avô.” “Vocês estão muito bem informados.” “Então vossa majestade também está a par da história da Tirfing.”, interveio Konr. “Estou indo para Samso justamente para destruir essa espada, que caiu nas mãos de um terrível demônio a serviço de Hel.” “Vossa majestade é mesmo uma iniciada de primeira linha.” “Diria mais que sou uma iniciante. Pelo visto, vocês estão aqui não pelo pagamento que tenho a oferecer, mas pelo conhecimento e pela experiência que uma empreitada como a que estou organizando pode proporcionar, por mais perigosa que seja.” “Nem o mago e nem o guerreiro crescem se não enfrentam perigos e desafios. Já que a Tirfing ainda existe, queremos vê-la antes que seja destruída.”

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“Desde que não a queiram para vocês, por mim não há nenhum problema. E quanto a você?”, inquiriu à guerreira. “Sei que compreendeu toda a nossa conversa, pois também é uma maga. Do que está atrás?” “Estou em busca do mesmo que estes dois irmãos, de vivência e aprendizado.” “Só isso?” “Não acho que seja pouco, majestade.” “Realmente não é. Mas sinto que há algo mais em você. Só não consigo desvendar ainda o que seja...” “Garanto que não tenho o menor interesse nas forças das trevas.” “Isso posso perceber claramente. Mas sinto também que está me escondendo algo.” “Se não quiser me aceitar em suas tropas, procurarei compreender.” “Você deve ter uma razão muito forte para agir dessa forma. E respeito o seu sigilo. Como sinto que a sua energia é boa, vou aprová-la. Pelo poder que irradia, estou certa que nos será muito útil.” “O que posso dizer é que tenho fortes razões para combater todos os filhos e seguidores de Hel, e que não desejo de nenhuma forma que o mundo vire um prolongamento de Nifelheim.” “Só uma curiosidade, majestade...”, Konr interveio novamente. “Pois diga.”, Hervor estava pronta para responder. “Irmão...”, o tom de Jarl ao pronunciar apenas esta palavra foi de advertência. “Não se preocupe, Jarl. Se sua majestade não quiser responder, ela pode optar pelo silêncio.”, respondeu um gêmeo ao outro, depois tornando a se voltar para a rainha: “Como

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vossa majestade soube que a Tirfing não foi destruída na guerra entre Gandarki e Gamla, em que seu pai pereceu? Foi por meio de alguma evocação de espíritos superiores, não foi? Um simples informante não seria capaz de ir tão longe, e de lhe falar sobre o demônio que está liderando os monstros de Samso...”, tais palavras de Konr despertaram um estranho olhar na maga-guerreira ao lado. “Como já sabem sobre a Tirfing, posso responder que sim: foi por meio de uma evocação que soube qual o destino da espada que um dia foi do meu pai. Mas ainda é cedo para lhes dizer quem me informou.” “Saber o como já é um bom começo. Estou certo que aprenderemos muito com vossa majestade.” “Espero também aprender com vocês.”, e refletiu: “Que estranho! Mal fui apresentada a esses três, mas logo de início já me passaram muito mais confiança do que qualquer pessoa daqui de Gandarki, mesmo considerando os meus informantes. Talvez eu já os conheça de outras vidas, sejam amigos que tive no passado...Além do fato de serem magos que irradiam energias pessoais muito superiores às de todos os que já conheci, muito menos impuras. Muito limpa, diria excepcionalmente, a dessa mulher misteriosa...Mas não posso baixar a guarda.”, e voltou a falar, após um silêncio que todos ali perceberam que fora investigativo: “Vocês já podem sair. Estão aprovados.”, e, antes de partirem de Gandarki, a rainha escolheria, após muito ponderar e analisar, o homem que ficaria como regente, um velho e respeitável nobre de nome Drengr, um cavaleiro aposentado, que viria a ficar surpreso com a indicação; a escolha se deveria sobretudo ao fato de ser humilde, bom gestor em sua família e por não possuir maiores aspirações, com seus oitenta anos e filhos e netos entre os que iriam para Samso.

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As bases estavam sendo estabelecidas.

Logo depois de serem aprovados pela rainha e de saírem do palácio real, os gêmeos seguiram para uma das tavernas da capital de Gandarki. Antes de tomarem rumos distintos da misteriosa maga-guerreira, que não dera seu nome, e aparentemente Hervor não julgara esse detalhe importante, Konr não disfarçara seu olhar cúpido na direção dela, que o ignorara solenemente e fora por outro caminho, sem que trocassem qualquer palavra e sem olhá-lo em retorno. Jarl meneou a cabeça para os lados ao testemunhar a evidente decepção no rosto de seu irmão quando ela desapareceu de suas vistas. “O que foi? Nem vem com bronca...”, disse Konr ao encarar o semblante sério do irmão a seguir. “Já me cansei de lhe dizer para ser mais moderado com as mulheres, e para não se frustrar terrivelmente quando uma não se interessa por você. Eu ia simplesmente ficar em silêncio.” “O seu silêncio é mais barulhento do que a sua fala. Você pode falar pouco, mas PENSA...Como pensa! Pensa e pesa. Acha que não ouço o seu pensamento irritante?” “Não me vejo assim; os seus conceitos que podem produzir certas larvas. E você já é suficientemente treinado para conseguir se isolar de qualquer vibração que o perturbe.” “Se eu quiser é fácil mesmo, mas às vezes tenho preguiça, admito. É mais fácil ler a receita do que fazer o bolo. Com relação às mulheres, você pode ser mais na sua, mas nós sabemos que a vida é curta e eu aproveito ela da minha maneira! Quando ficarmos velhos, nenhuma dessas mulheres jovens e bonitas vai ter mais olhos pra nós. Um dia, posso até me aquietar e me arrumar com uma, mas até lá vou me divertindo! Quando nenhuma jovem me quiser mais, fico com

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uma velhota como eu vou ser.” “O seu pensamento nesse aspecto é muito pobre e superficial para um mago.” “Você fala como se magos não fossem seres humanos! Do mesmo modo que quero conhecer muitos mundos e seres, quero conhecer muitas mulheres, e sinceramente não entendo quando uma me ignora, como essa maga que entrou com nós dois no salão da rainha Hervor. Uma rainha que por sinal não é de se jogar fora!” “Konr, é melhor você moderar o seu apetite pelo menos com relação a elas. Pode ser perigoso.” “Deixe de ser medroso! Se elas me quiserem, qual o problema? E daí que uma é a rainha de Gandarki e a outra uma maga poderosa? Não tenho medo de nenhuma das duas, e não sou egoísta, se quiser deixo uma delas pra você. Algum dia você vai ter que se esquecer da Heloise.” “Nunca vou me esquecer dela. Talvez venha a ter algum outro envolvimento, mas o amor é um sentimento que não se sepulta com o corpo do ente amado. Você diz essas coisas porque não sabe o que é o amor.” “Ela pode ter morrido, mas você está muito vivo, e tem o direito de ser feliz. Eu lhe digo uma coisa, meu irmão: você precisa entender que há muitas formas diferentes de amar; e há o amor por uma pessoa e o amor pela vida; você escolheu o amor por uma pessoa, eu escolhi o amor pela vida; mas nada impede alguém de amar as duas coisas. Talvez algum dia eu venha a amar alguém como você ama a Heloise, mas não vou perder meu amor pela vida. Já você precisa amar a vida do mesmo jeito que ama a sua falecida noiva.” “As suas palavras têm alguma sabedoria, mas também veleidade.” “Vamos deixar de conversa, Jarl! Melhor tomarmos algumas!

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Quero esquecer daquela mulher e do gelo que ela me deu, apesar que vai ser difícil, ainda mais porque vai lutar do nosso lado...”, e envolveu carinhosamente o pescoço do irmão com um de seus braços. “Konr, Konr...”, apesar de incrivelmente distintos por dentro, os dois eram inseparáveis, e dificilmente Jarl se irritava de verdade com o outro; já a recíproca ocorria com alguma frequência, porque Konr não suportava o ascetismo do irmão e era bastante explosivo. Na taverna, por mais aplausos, assovios e sorrisos que concedesse para as dançarinas, Konr não conseguia olvidar os olhos da maga misteriosa. Jarl, sempre discreto, bebendo uma quantidade muito pequena de cerveja, com o mesmo chifre depois de uma hora, enquanto seu irmão já tinha tomado três, sabia que para o outro só haveria um meio para aliviar a raiva e a frustração: passar a noite com uma das dançarinas. E foi o que ocorreu: uma destas, chamada Ysja, se insinuou com mais energia para o guerreiro e este não titubeou em se levantar e dançar com ela, ficando completamente de costas para o seu irmão, que de cara não simpatizou com a moça, que embora fosse bonita lhe pareceu bastante vulgar; enquanto dançavam, aproveitaram para combinar o que fariam pelo resto da noite. Assim, na hospedaria, Jarl teve dificuldades para dormir no chão enquanto Konr possuía Ysja na única cama; não que fosse tão ruim assim dormir no chão, já dormira em locais muito piores, ao menos ali não havia ratos ou baratas; o problema maior foi que durante todo o ato sexual Ysja se mostrou excessivamente escandalosa, entre gritos agudos, urros, gemidos prolongados e gargalhadas. Escutou até quando ela tentou falar em voz baixa: “O seu irmão não quer mesmo participar? Vocês são grandes, mas eu aguento sim os dois.”

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“Por acaso eu não estou satisfazendo você, sua vadia?”, Konr a pegou pelos cabelos, com força, mas sem qualquer fúria, pelo contrário: seu sorriso lúbrico exalava uma virilidade segura e tranquila. “Não é nada disso, meu bárbaro.”, a dançarina, que revelara ser uma jovem viúva pobre que às vezes se prostituía para se manter, visto que a taverna a pagava mal pela dança, não cobrara no entanto nada do bárbaro, que chamava assim não com desprezo, e sim com fascínio. “É só que não gosto de ver homens bonitos assim tristes. O seu irmão parece ser muito triste.” “É melhor deixar ele em paz. Ele já amou muito uma mulher, e ainda não se esqueceu dela.” “Coitadinho! Por acaso ele pegou ela com outro e fez alguma besteira, é por isso que vocês vieram parar por aqui?” “Não é nada disso, sua idiota. Ela morreu. Durante a guerra que parece que não tem fim entre o nosso reino e um outro, o reino de Windsor. Chegou a ser sequestrada pelos nossos inimigos e, como não cumprimos certas exigências deles, decapitaram a pobre coitada.” “Ah, sinto muito...Pelos deuses, que história triste! Admiro demais homens como o seu irmão, que preservam o amor até depois da morte.” “Bem diferente de uma vadia como você, não é?” “Você não me conhece pra me julgar. Eu era muito infeliz com o meu marido.” “Sei, sei...Vai ver foi ele que te pegou com outro na cama, só que a besteira dele foi se matar.” “Não fala desse jeito!” “Falo porque sei que você gosta. Tanto que está se excitando...” “Você não vale nada! Como pode? Dois irmãos idênticos de

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rosto, e tão diferentes um do outro. São como a água e o hidromel!” “E o que você prefere?” “Pra falar a verdade, gosto dos dois. De homens apaixonados como o seu irmão, e de homens apaixonantes como você.” “Vagabunda...”, um tipo de palavra que Jarl, que acabara ouvindo toda a conversa, nunca usaria de maneira lúdica; era mesmo muito diferente do seu irmão: isso no entanto não o impedia de amá-lo de forma profunda, e acreditava que a recíproca fosse tremendamente verdadeira.

Na noite que antecedeu a partida das forças de Gandarki para Samso, Hervor resolveu tomar coragem e, usando um capuz e um véu, saiu na noite da capital, com o objetivo de consultar alguém que havia anos que pretendia conhecer, mas que na hora em que parecia convicta de ir até ela, terminava desistindo. Sempre fora uma autodidata em magia, procurara se esquivar e desconfiar de pretensos mestres e mestras, mas a velha Edda era das que tinham uma fama imaculada, que se não a deixava desconfiada certamente a assustava um pouco. Vidente de extraordinária qualidade, aquela volva poderia ler um futuro sombrio, ao menos para Midgard; mas mesmo que fosse escolhida pelos deuses, Hervor não pretendia simplesmente se isolar em Asgard após uma morte heroica e deixar as pessoas comuns de lado, munindo-se de toda a coragem para saber quais os augúrios da missão em Samso. Havia pouco movimento nas ruas àquela hora. A agitação se concentrava nas ruas com tavernas. Seguiu por um beco deserto, dirigindo-se a uma das modestas casas que havia neste. Bateu devagar duas vezes e uma velha encurvada, com a cabeça envolta por um lenço, em trajes escuros, segurando um pequeno prato com uma vela, abriu; seu olhar era de profundo

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entendimento. “Estava esperando por vossa majestade. Entre.”, logo no início, a comprovação do poder da volva: já sabia perfeitamente quem era sua visitante, aliás já a aguardava; Hervor não viu mais sentido em manter o capuz e o véu, retirou-os e entrou. “Sente-se.”, indicou uma mesa de madeira muito velha com duas cadeiras apenas. A rainha sabia que ali não daria nenhuma ordem e se sentou. “Vou pegar algo para comermos enquanto conversamos. Estava preparando o meu jantar e sei que vossa majestade também não jantou hoje.”, a vidente mais uma vez acertara: devido à ansiedade, Hervor não se alimentara à noite. Ficou aguardando, sem dizer nada, completamente sujeita à vontade da idosa, cuja moradia era extremamente humilde; além daquele espaço, que tinha afora a mesa um cama e uma roca de fiar, havia a pequena cozinha, de onde a senhora veio depois de algum tempo com uma bandeja com três pequenas tigelas de sopa, três colheres (tudo em madeira) e um pedaço de pão, grande e grosso, com alguns farelos espalhadas. Na sopa havia legumes e pedaços da carne de um bezerro cozido. Por que três recipientes e três colheres?A resposta chegou com o surgimento de outra pessoa ali, uma jovem de pele escura e cabelos negros crespos, que devia ser originária de algum reino do sul, e que veio da cozinha pouco depois da volva; seus braços apresentavam queimaduras e vinha trazendo um banquinho para se sentar. “Não se assuste com Pir, ela é minha aprendiz, e também ajuda no nosso sustento, já que vivo de fazer roupas e não de previsões, o que é muito mais honrado do meu ponto de vista.”, disse a velha, sentando-se sem dificuldades e sem reclamar de qualquer dor; apesar da idade avançada (diziam que passava dos cem anos), nunca se queixava do dia e possuía uma saúde

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de aço. “A história de Pir é bem curiosa, ela veio do sul quente, e quando a encontrei estava totalmente abandonada e perdida, seus pés sujos de barro e já com as queimaduras que está vendo; os pais dela estavam vindo tentar a sorte em Gandarki, pois o reino onde nasceram sofre com um sol inclemente que produz uma seca sem fim, mas acabaram assassinados por bandoleiros.” “Tudo o que espero é que esteja se sentindo bem em Gandarki.”, a rainha olhou para Pir, que abaixou os olhos e a cabeça. “Perdoe a timidez de Pir, majestade. Ela não é mal-educada e nem arrogante, mas já sofreu tanto nesta vida que desconfia de tudo e de todos, menos de mim, já que consegui conquistar sua confiança com o tempo.” “Eu a entendo.” “Imagino que sim, afinal vossa majestade desconfia até de si mesma. Mas não tenha receios e coma. Minha sopa não está envenenada, já que não tenho pretensões ao trono, e nem é tão ruim.”, apesar da expressão da volva ser séria, até carrancuda, mostrava possuir um bom humor, que não necessitava de sorrisos. Foi a primeira a colocar a colher na sopa, sendo seguida por Pir. “A senhora sabe que não é nada disso, não tenho qualquer restrição à comida que a senhora preparou; não sou como a maioria das damas orgulhosas da corte. Mas é que não vim aqui exatamente para jantar.” “É melhor comer se não quiser me ofender. E conversar de barriga vazia nunca é bom.” “Está bem, senhora.”, acabou provando a sopa, que tinha um sabor rústico, mas bastante agradável. E de súbito, ao se ver refletida no líquido, teve início um estranho transe, em que foi catapultada para fora de seu corpo físico e desvencilhada do

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presente; foi parar na observação do que parecia ser outra vida, em que se viu como uma mulher diferente, em um longo vestido branco e celeste, de um temperamento mais ingênuo e delicado, era o que podia sentir, acompanhando o homem que devia ser seu marido enquanto este mergulhava o filho recém-nascido em uma fonte de água batismal, pedindo a benção dos deuses e das deusas, especialmente do grande Thor, em um ritual de Ausa Vatni ao ar livre; o ambiente era verdejante e perfumado, com muitas flores, e fazia um sol ameno. O pescoço desta outra Hervor era muito branco, mais puro do que a neve, embora seus cabelos fossem negros; as sobrancelhas louras do pai brilhavam. E o menino, que não parava de sorrir, iria ganhar seu nome. Depois a cena mudou, e se viu fazendo amor com esse homem; seus seios estavam iluminados: e se enchiam de uma luz ainda maior quando eram tocados por ele. Havia no ar um delicioso perfume de rosas. “Todos nós já vivemos inúmeras vidas.”, tão repentinamente quanto entrara em transe, a velha a trouxe de volta com sua voz. “E além disso há alguns sábios que dizem que continuamos tendo outras vidas, simultâneas à atual, em mundos que desconhecemos em absoluto. Talvez existam outras árvores Yggdrasil, e um outro Midgard! Mas não devemos nos confundir e nos apavorar, e sim agradecer à Vida por Ela ser grande, e por tudo o que nos oferece. Não devemos nunca desconfiar da Vida, embora possamos desconfiar dos seres vivos.” “O que foi que aconteceu, senhora?” “Uma gota de sabedoria a tocou. Não se aflija. Quanto a seu futuro, que sei que está ávida para conhecer, só lhe digo para não ter medo, para seguir em frente e cumprir a missão que lhe foi dada pelos deuses. Todo o resto virá como consequência.”

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“Mas...Mesmo que eu cumpra a minha missão, vou sobreviver? Poderei voltar?” “O medo da morte é natural, faz parte do animal que vive em nós, que luta constantemente pela sobrevivência. Mas a morte na verdade é uma porta para uma nova existência, que para os justos é muito mais luminosa do que esta terra gris. Com relação a voltar, há outros reinos além dos que existem em Midgard, e que precisam de novas rainhas.” “Isso quer dizer que não vou sobreviver.” “Eu não disse isso. Mas você precisa estar firme e preparada para tudo. É ou não é uma verdadeira rainha?” “Não escolhi ser o que sou.” “Acha mesmo? Não seja ingênua, Hervor.” “A senhora fala de uma forma em que mesmo quando parece haver contradição na verdade não há.” “Isso faz parte da arte das volvas.” “Inclusive parou de me tratar por majestade. Melhor assim.”, e sorriu. “É bom vê-la sorrir dessa forma. É um sinal de aceitação.” “E a senhora, não sorri?” “Não preciso sorrir. Os modos de aceitar e compreender a Vida são sempre distintos.” “A senhora já deve saber que mexo com magia. Mas que nunca daria uma boa volva.” “Isso é verdade. Porque você nasceu para reinar, independentemente de onde estiver.” “Volvas não podem ser rainhas?” “Na minha opinião, não.” “E por que não?” “Porque a paz que buscamos é distinta da paz que uma rainha pode alcançar. Filha, você deve alcançar a paz na guerra, o que é uma tarefa muito mais difícil do que a minha aqui. Mas você

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conseguirá. Seja firme.” “Agora a senhora foi categórica, disse que conseguirei.” “Mas não falei nada sobre o como.” “Está bem. Vou tentar me ocupar apenas, não me preocupar.” “Como maga e rainha, é o melhor que pode fazer.”, e antes de sair, depois de terminar a sopa, Hervor agradeceu à volva, beijando-lhe as mãos enrugadas. No entanto, não seria a última visita da noite: depois que Pir foi deitar e adormeceu, a maga-guerreira que se alistara nas tropas de Gandarki que despontou misteriosa e sorrateiramente entre as sombras, sem entrar pela porta. Edda percebeu de imediato sua presença. “Então você vai mesmo ajudá-la...É uma ordem de Odin?” “Na verdade, fui eu que requisitei a Ele a permissão para participar desta empreitada. A intenção Dele era deixar os homens cuidarem dos homens, mas sentiu que eu estava com um peso no coração que precisava retirar.” “Entendo. Afinal nem você e nem Skogul e Geirskogul livraram aquela ilha do mal. Mas as duas, ao que parece, não manifestaram nenhum pesar.” “Somos irmãs, mas nem por isso somos iguais. Elas podem ser muito parecidas entre si...Mas eu sou diferente delas.” “Não posso lhe desejar boa sorte, afinal você sabe que não acredito em sorte.” “Eu muito menos.” “E o que acha do demônio que está com a Tirfing? Sente que é muito perigoso?” “A senhora consegue vê-lo?” “Já tentei. Mas tudo o que vislumbro é uma massa escura e amorfa, que emite raios violentos. É poderoso o bastante para se ocultar da minha visão conscientemente.” “E também da vida. O que consigo ver é um relâmpago

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vermelho de ódio. É sim muito perigoso. Por que acha que decidi não ir sozinha?” “Se até mesmo uma valquíria está insegura, posso imaginar...” “Hel possui filhos muito mais perigosos e violentos do que a humanidade consegue imaginar. Wagner e Phyria não passavam de crianças perto dessa criatura.” “Acha que ele também pretende libertar Loki?” “Tenho certeza disso.” “Algum dia isso irá acontecer. Só espero estar velha o suficiente para morrer antes do Ragnarok. Detesto catástrofes. Gente inocente sempre acaba sendo envolvida pela sujeira dos culpados.” “Aprecio a sinceridade da senhora. Mas não é algo que se possa escolher.”, esboçou um discreto sorriso; tratava-se da valquíria Sigrun, que voltaria a Samso mais de vinte anos após a queda de Argantyr. Seu trabalho, contudo, não se limitara a Gandarki...

II

Heidrek, filho de Hjalmar, se tornara o rei de Gamla após as mortes de Ingeborg, sua querida mãe, e de Orvar, que o criara como um pai, tendo se casado com a rainha dois anos após a queda do amigo no campo de batalha de Samso. Mas que não se pense que fora um casamento em que o desejo de Orvar por Ingeborg se consumara; decorrera na verdade de um pedido da rainha de Gamla: “Desde que Hjalmar partiu, estou me sentindo muito insegura. Tenho medo de tudo! Não sei se é porque agora sou mãe e preciso zelar não só por mim como pelo meu pequeno príncipe! Cada canto, cada sombra do castelo, me parece como se abrigasse um conspirador. Nós vencemos a guerra, mas parece que o mal não terminou com a

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derrota de Argantyr. Há algo ainda rondando. Por isso, meu amigo, em nome da sua amizade, e da irmandade que tinha com o meu marido, peço que se case comigo. Quero alguém do meu lado, que me dê proteção, que me ajude a governar, e você é a única pessoa em que posso confiar, que sei que nunca vai me apunhalar pelas costas e nem envenenar o meu filho.”, a princípio, Orvar ficara muito surpreso com o pedido, quando Heidrek ainda era um recém-nascido, mas o aceitara de imediato. Nunca cogitara ser rei; sua origem era duvidosa, não podia se considerar um nobre no sentido estrito do termo, por mais que tivesse frequentado diversas cortes. Por outro lado, se um sonho que nunca tivera estava se realizando, outro, que preferira reprimir, terminaria por se concretizar: teria Ingeborg como mulher. Entretanto, os anos foram transcorrendo e ficou cada vez mais claro que ela nunca o desejara e nem o desejaria para algo a mais do que como um irmão. Dormiam na mesma cama, porém ela jamais o tocara e muito menos ele tentara qualquer coisa, pois ainda a respeitava como a viúva de Hjalmar...De certo modo como a ainda efetiva esposa de Hjalmar. O amigo-irmão se fora, mas continuava vivo no coração da rainha e de alguma forma também no seu. Não podia trair a confiança dos dois. Não forçaria nada. Somente se ela permitisse se sentiria livre para amá-la. Mas se por um lado Orvar era compreensão, por outro era tristeza e uma certa fúria; um aspecto do falecido herói que cultivava em si era uma sombra, que o enraivecia por escurecer tudo o que dizia respeito à rainha, impedindo-o de realmente vê-la, seus olhares para ela mais um tato desejado e travado. Isso o levava a às vezes sair às escondidas do palácio, com uma armadura de cavaleiro comum, e ir à zona alegre de Upsala, onde ficara conhecido como o “cavaleiro mascarado”, pois

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nunca tirava a máscara negra que usava por debaixo do elmo ao tratar com os frequentadores e as profissionais do bairro. Não queria ser reconhecido de forma nenhuma. Caso o fosse, seria um escândalo tremendo, afinal ninguém sabia que ele e Ingeborg não tinham um casamento verdadeiro. Jamais beijava as prostitutas com as quais se relacionava; e muitas se excitavam mais do que o normal com a sua presença, estimuladas por um ar de mistério que não poderiam desvendar. Só uma, à qual recorrera em diversas ocasiões, tentara uma vez tirar sua máscara, levando por isso um tapa tão forte no rosto que a fizera cair da cama. “Nunca mais ouse fazer isso de novo. Nunca! Será que você me entendeu?”, a seguir a ameaçara, apertando-lhe com força as bochechas do rosto. Aquela violência, assim como a forma como fazia sexo com as meretrizes, que eventualmente ficavam com as nádegas roxas pelos tapas que levavam na região, servia para liberar um pouco de sua ira represada. “Mas por que todo esse mistério? Já é a sétima vez que você me tem, sinal que gostou de mim. Por que não pode se revelar? Pode confiar, odeio boataria! Nunca diria que te conheço fora daqui. Você não tem o rosto deformado, ou tem?” “Não tenho.” “Imagino que seja um desses nobres casados com uma linda e rica dama. Mas que na cama é uma frígida! Pode dizer a verdade!” “Se quer tanto saber, fique ciente que minha mulher não é frígida, ou melhor nem sei se é, já que nunca tive nada com ela.” “Como é que é? Então vocês brincam de irmãozinhos?” “É melhor você parar de me provocar.” “Agora entendo perfeitamente por que você vem aqui. Aposto que a fresquinha com quem você é casado ama algum mancebo

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por aí, e se casou contigo obrigada pelo pai. Deve te trair quase todos os dias. Mas se o pai dela te descobre aprontando, manda capar você, que deve ser de uma família nobre também, mas mais empobrecida, e por isso se sujeita a essa humilhação. Acertei tudo, não foi?” “Algumas coisas.” “Fala a verdade! Acertei tudo. E sei por que você gosta de mim, por que vem pro meu quarto mais do que vai pros das minhas colegas. É porque você sabe que adoro apanhar, gosto de homem que é homem, que é viril, de guerreiros de verdade, que se impõem, que cavalgam, não dos molengas, dos velhos frouxos que costumam vir aqui; você é dos bons! As outras meninas reclamam de você às vezes, sabia? Falam que é muito violento, apesar de gostarem do seu toque, do seu corpo...Só que todas, inclusive eu, gostariam muito de um beijo seu.” “Isso não vai acontecer.” “Eu te entendo, e te dou o maior apoio. Você não tem que aceitar desmandos de princesinha não. E em mim pode sempre bater à vontade, e me ameaçar também se quiser.” “Você é louca.” “Não sei se sou louca, mas nasci pra fazer o que faço.”, e levara na sequência mais um tapa no rosto, que deixara sua bochecha ainda mais vermelha do que já estava; seu sorriso a seguir se preenchera de excitação pervertida e escárnio. Ingeborg não imaginava que Orvar se relacionasse com prostitutas, mas especulava que em suas saídas do castelo fosse se encontrar com alguma mulher, o que era perfeitamente natural, afinal não era uma esposa de verdade. Entendia a situação. Só esperava que a discrição fosse mantida, que nada viesse a público. Acabara morrendo poucos meses antes de seu “marido”, com a esperança de encontrar Hjalmar do outro lado, seu coração

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parando enquanto sonhava; ao que aparentara, um fim tranquilo, nos braços do sono, enquanto Orvar terminara por contrair sífilis, doença que o levara à morte. A essa altura, Heidrek, que fisicamente se parecia bastante com o pai, apesar dos cabelos mais curtos e do olhar de crises melancólicas, já estava com vinte anos e, mais maduro do que a maior parte dos rapazes de sua idade, pronto para ser rei. Afinal, além das orientações de sua mãe, de seu padrasto e de outros guerreiros de Gamla, contara com uma outra ajuda... Ainda era uma criança quando pela primeira vez vira seu corpo de fora. Seu espírito, ou sua consciência, havia saído. Ficara no início apavorado, acreditando estar morto. Entretanto, uma belíssima voz feminina apaziguara seu medo: “Não fique assustado. Sou uma emissária dos deuses de Asgard, que têm para você uma missão, que não será cumprida nem hoje e nem amanhã, mas para a qual precisará iniciar um árduo treinamento desde já. Compreenda que você é muito mais velho do que imagina.”, era Sigrun, que o instruiria em magia durante anos, até que numa madrugada, enfim considerando-o pronto para o que precisava ser feito, chamara-o para encontrá-la na floresta. O jovem rei saíra cavalgando na escuridão, guiado por uma pequena esfera de luz azul, dentro da qual depois viria a perceber que havia uma minúscula fada branca de asinhas inquietas. Após atravessar um muro de mata espessa, a valquíria o esperava em uma área estranha, não apenas pela peculiar disposição das árvores, estas formando um círculo, como pelo ar pesado ao redor; sua respiração parecia dificultada por algo que não sabia explicar. Quando a fadinha se posicionou no meio, ao lado de Sigrun, ele viu um círculo mágico riscado na terra, dentro deste algumas runas. A emissária de Odin fechou os olhos e iniciou

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uma evocação. O cavaleiro ficou paralisado, enquanto surgia do solo um gigante de terra e rocha coberto de vegetação, com um único olho na testa, segurando uma clava de pedra. “Mas o que significa isso?”, indagou Heidrek, que se viu obrigado a lutar contra aquele monstro; nessa hora não entendeu os propósitos da valquíria, cogitou se fora enganado, trapaceado, se na verdade não era uma enviada de Asgard e sim uma aliada de Hel. Mas se assim fosse, por que perdera tempo treinando-o e não acabara logo com sua vida? Poder para isso estava demonstrando que possuía. Logo nos primeiros ataques do gigante, o cavalo escapou, derrubando o jovem rei; reerguendo-se rapidamente, ao desembainhar sua espada o rapaz evocou os espíritos do ar para incrementar sua velocidade e a capacidade de corte da lâmina. No entanto, o adversário parecia não sofrer dano algum. Usar os elementais da terra seria evidentemente inútil contra ele, e nisso chamou os espíritos das águas, porém não estava conseguindo criar e lançar as estacas de gelo que pretendia, estas derretendo de imediato. Depois que notou que havia uma espécie de campo de proteção mágica em volta do golem elemental. O fogo talvez venceria aquela barreira, pensou, e procurou imantar sua arma com os elementais das chamas. Contudo, evocara mais energia do que uma espada comum seria capaz de suportar, e a arma começou a derreter em suas mãos. Para seu desespero, se viu obrigada a largá-la e esta se transformou em uma poça de metal fundido. “Você ainda tem muito o que aprender. Mas não é justo que aprenda sem ter em mãos a arma apropriada.”, disse repentinamente a valquíria, da qual quase se esquecera, de tão compenetrado que estava em sua luta, lançando em sua direção

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uma espada prateada. Heidrek ficou surpreso, mas conseguiu velozmente agarrar e desembainhar a arma, com um único golpe curvo fazendo o primeiro corte no gigante, que soltou um urro e recuou. Entendendo o que Sigrun dissera, concentrou todo o fogo que podia na nova lâmina, esta se incandesceu, e no ataque seguinte, além dos fendentes da espada, o adversário teve que lidar com lâminas de luz e chamas; em alguns segundos, foi feito em pedaços. O jovem rei parou, enxugou o suor e tentou respirar fundo, apoiando-se em uma árvore, certo de que vencera; dera as costas para os restos de seu oponente, que então começaram a se reunir... “Heidrek, não se distraia!”, outra vez a voz de Sigrun, que lhe pregou um susto; o golem elemental se formara mais uma vez e o atacou com fúria redobrada, sua clava ainda inteira. Defendeu-se com a espada prateada que, magnífica, cortou a arma do gigante ao meio; a seguir, o jovem de Gamla precisou atacar com mais intensidade do que na ocasião anterior, pois o inimigo parecia ter ficado mais resistente. Ao despedaçá-lo pela segunda vez, não cometeu o mesmo erro e reduziu a cinzas cada fração com o fogo evocado. “Muito bem. Agora você conseguiu. E chegou a hora de saber qual é a sua missão de vida. Os deuses não teriam me permitido perder anos ensinando-o, quando poderia estar combatendo as hordas de Hel ou os jotuns e recolhendo novos heróis, se você fosse um rapazinho qualquer, sem capacidade para utilizar essa espada que agora tem em mãos. Você foi escolhido não por ser filho de Hjalmar, mas por suas próprias qualidades.” “Que espada é essa, Sigrun?” “É a Naglering, que foi de seu pai.”

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“Pelos deuses...Meu tio Orvar me disse que ela tinha se partido em Samso, depois que meu pai venceu Argantyr.” “Ele mentiu. E mentiu para que você não fosse atrás dessa arma, para que não voltasse a Samso. E ele agiu muito bem, sem perceber seguindo a vontade de Odin, pois a sua teria sido uma ida inútil, a Naglering já estava comigo, e Samso está repleta de demônios, diante dos quais você não duraria muito sozinho e sem uma arma como ela, que não foi levada ao Valhala, devolvida ao seu pai, porque ainda tem muita importância para Midgard. Percebi isso quando tive a intuição de levá-la comigo, o que me foi confirmado por Odin.” “Samso está repleta de demônios? Será que ouvi bem o que você disse?” “Está, ouviu perfeitamente. Gamla abandonou a ilha e, em decorrência dos atos de Argantyr e das ações de dois sacerdotes de Loki, dos quais você deve ter ouvido falar, se tornou um lugar intermediário entre Nifelheim e Midgard, tomado por um monstro que se apoderou da amaldiçoada espada Tirfing, que nem mesmo eu poderia vencer sozinha. É por isso que preciso da sua ajuda: e só você não bastará. Eis a sua missão: libertar Samso das garras da morte e do mal, que em breve poderá se espalhar por todo este mundo se nada for feito. Eles só não se deixaram descobrir até agora porque estão se preparando para uma grande investida. Os humanos que recentemente ousaram passar pela ilha foram mortos assim que puseram seus pés lá.” “Posso imaginar.” “O seu treinamento ainda não terminou. Ainda vou lhe ensinar algumas coisas, principalmente sobre a Naglering e a Tirfing, que será sua inimiga assim como foi de seu pai. Enquanto isso, prepare o exército de Gamla, e coloque anúncios para a contratação de mercenários. Homens apropriados para esta missão, e que não serão exatamente mercenários, virão. E num

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determinado momento eu irei partir, para auxiliar outra pessoa, que também terá um papel fundamental na libertação de Samso, e nós iremos nos reencontrar na ilha.”, ditas estas palavras, por volta de um ano transcorreu; Heidrek esclareceu a situação a seus conselheiros, declarou que fora visitado por uma emissária dos deuses e que esta lhe explicara os perigos que envolviam Samso. Alguns se mostraram céticos a princípio, mas para comprovar a visita o jovem rei lhes mostrou a Naglering. Um dos ministros mais velhos, que trabalhara com Hjalmar, reconheceu-a prontamente: “Só pode ser um milagre dos deuses! Vossa majestade não poderia mesmo estar mentindo, sendo filho de quem é!”, a espada mágica eliminou toda a descrença; e os homens apropriados para a campanha que iria se dar, anunciados pela valquíria, chegariam em breve.

Gotland era uma terra melancólica, fria e enevoada, de montanhas altas, florestas escuras e vales estreitos, sobre a qual reinava o rei Hygelac, um homem cuja altura verdadeiramente impressionava, passando dos dois metros, e um indivíduo bastante vaidoso, sua barba loira sempre bem aparada e seus cabelos muito bem cortados, no que se diferenciava da maior parte de seu povo, de gente muito simples. Na verdade não havia uma aristocracia propriamente dita em Gotland, que fora unificada apenas uma geração antes, pelo pai do atual monarca, antes uma região de tribos bastante conflituosas entre si. Hygelac que procurava se espelhar no que ouvira falar sobre os modos de vida dos soberanos de outros reinos, por vezes beirando o caricatural; afinal suas atitudes estavam fundamentadas em suposições e em leituras e viagens feitas por outros, já que não sabia ler nem escrever e nunca saíra de Gotland. Mandara forjar para si uma armadura e uma espada

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com emblemas de realeza, além de ordenar a feitura de uma capa com uma cruz de Thor, seu deus de devoção, e de uma coroa de ouro com joias que haviam pertencido a diferentes tribos. Ao menos era extremamente simpático para se conviver e conversar, muito bem humorado, adorando seus dois cães, canecas generosas de cerveja, mulheres desinibidas, visitas de menestréis, comida farta e bater com energia nas costas de seus camaradas; sem saber medir sua força, uma vez derrubara um de seus amigos no chão junto com a cerveja que este estava bebendo. Após algumas desculpas sem jeito, todos acabavam rindo, afinal sabiam que Hygelac não era e nem nunca seria um homem maldoso. Realizava com frequência banquetes com seus homens, caçadores e guerreiros, e dizia, quando bebia um pouco a mais, que um dia desbravariam novas terras e chegariam quem sabe a desafiar o grande reino de Barda, que poderiam conquistar com sua bravura e suas espadas. Contudo, também em razão de sua proximidade ao Deserto da Morte Branca, os homens que viviam em Gotland, considerados meros bárbaros em Barda, se viam obrigados a combater contra muitos oponentes não humanos. Talvez esta fosse uma das razões que tivesse obstaculado uma anterior unificação e o desenvolvimento de sua civilização. Havia pouco tempo que as tribos, antes nômades, tinham começado a formar vilarejos; e Gotha, a capital do agora reino, não poderia ainda ser chamada de cidade se comparada a Upsala ou às capitais de Gandarki e Barda. Seus rios eram habitados por grandes e perigosas serpentes aquáticas, que costumavam virar os barcos dos pescadores e devorá-los; em suas cavernas, era comum encontrar ogros, ogras e trolls, além de ursos de dimensões descomunais; quanto

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às florestas, além de animais ferozes se falava que abrigavam inúmeros fantasmas, inclusive lobos espectrais que entravam nos homens para circular pelo mundo, transformando-os em licantropos. Nas aldeias, eram raros os ataques de ogros e trolls. Mas ao se sair delas sozinho ou em grupos pequenos, mesmo que a distância percorrida não fosse tão grande, nunca se podia ter certeza de retornar vivo. Poucos portanto tinham o hábito de deixar os vilarejos sem que isso fosse feito em grandes grupos e entre homens fortes. Os fracos, os velhos, as mulheres e as crianças evitavam sair de qualquer forma. Apenas um jovem não tinha nenhum medo de deixar Gotha para trás, absolutamente só, para se aventurar nas cavernas e nas florestas: chamava-se Beowulf, tinha cabelos ruivos longos e olhos que eram como gélidas chamas azuis. Era pouco mais baixo do que Hygelac, mas conseguia mostrar uma musculatura ainda mais possante. Certa vez, retornara de um de seus passeios com um grande cinturão de ouro com esmeraldas; alegara tê-lo obtido em uma gruta em que combatera com seu machado contra dois ogros, vencendo-os e roubando o que devia ser seu tesouro. Como duvidaram de sua empreitada, na ocasião seguinte retornou da floresta com a cabeça peluda de um troll em mãos, e um capacete de aço decorado com penas de cisne que disse que pertencera à criatura. A expressão de desespero do troll, provavelmente de um segundo antes de ser decapitado, se evidenciava em seus olhos arregalados e em sua boca de dentes afiados escancarada. Tinha duas vezes o tamanho da cabeça do rei Hygelac, que gelou ao vê-la e ao perceber que havia alguém que certamente o superava em força. Pensou em desafiar Beowulf para algumas provas atléticas, mas depois pensando melhor voltou atrás e desistiu, admitindo para si próprio, em silêncio, sua

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inferioridade. Quanto às origens de Beowulf, eram misteriosas; alguns especulavam que só podia ser um filho indesejado de alguma deusa com um humano, ou de um deus com uma mulher mortal, que provavelmente não resistira ao parto de uma criatura sobre-humana. O casal que o criara não era formado por seus pais de sangue, pois fora ainda bebê deixado na porta dos dois. Porém haviam cuidado dele como se fosse seu filho verdadeiro, só vindo a saber da verdade em sua adolescência. Agora, aos vinte e três anos, seus pais adotivos tendo falecido havia um ano, vez ou outra se questionava sobre suas origens, o que lhe trazia uma certa tristeza. Talvez nunca descobrisse toda a verdade sobre si e nunca viesse a conhecer seus pais verdadeiros. Por isso saía de Gotha em busca de peripécias, que lhe davam emoção e alegria quando se sentia infeliz e entediado. Também gostava de ouvir as histórias que os menestréis cantavam, em especial as que falavam de semideuses, filhos de Odin e Thor com mortais, por exemplo, e as que envolviam combates entre heróis e monstros. Imaginava a si próprio no lugar desses heróis, derrotando seres como jotuns e dragões. Beowulf não era de falar muito; tanto que logo ficou conhecido entre seus amigos como “o silencioso”; e sua forma de combater espelhava seu modo de se portar: procurava realizar os movimentos mais precisos, contra oponentes de força também descomunal buscando manter uma postura firme de defesa e atacando quando o inimigo abria uma brecha, não desperdiçando seu fôlego e sua energia com golpes ao léu. Dizia-se que quebrava tudo o que tocava. E isso era em parte verdadeiro, tanto que sua mãe, sempre que lhe dava uma coisa, dizia antes para que segurasse devagar, com calma...E Beowulf era calmo no espírito, conquanto suas mãos de dedos pesados

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talvez não fossem tanto assim. Nas caçadas, era sempre quem assumia a frente, e numa ocasião impressionara a todos ao, após uma forte carreira, saltar sobre o dorso do mamute que estavam perseguindo, atravessando-lhe o crânio a seguir com a lança que manuseava. O paquiderme despencara sem vida e, como era costume em Gotland, onde se caçava apenas para sobreviver, agradeceram pelo alimento e oraram juntos para encomendar a alma do animal aos deuses vanires. “Foi menos sofrimento para ele dessa forma.”, Beowulf sabia que costumavam ser necessárias muitas lanças e inúmeros golpes para abater um mamute; abreviara a questão. Nenhum guerreiro de Gotland era capaz de saltar como ele saltava, nem tinham uma força e uma mira comparáveis, e sua destreza tanto com a lança, como com o arco e as flechas, como com machados e espadas, era insuperável. Ao passar pela floresta, amava tocar as árvores e sentir a energia da terra que subia pelas raízes. Reputava que a maior parte de sua força provinha de Jord, a mãe-terra, e sempre que corria, saltava e golpeava se visualizava envolvido por chamas intensamente rubras que aqueciam seu corpo e que dizia a si mesmo que vinham das entranhas da terra, que eram um pouco do calor da Mãe emprestado a ele. Talvez esta prática mágica intuitiva e aparentemente primitiva fosse realmente a fonte de suas capacidades sobre-humanas. Já tentara convencer seus companheiros que eram todos filhos da terra e que deviam ser capazes de visualizar e sentir o mesmo calor, mas só ele conseguia. Possivelmente porque os outros não tinham a mesma confiança que ele possuía em relação à mãe-natureza; e talvez tivesse tanta fé na deusa Jord porque não conhecia sua mãe de sangue. Isso o levava a pensar que os deuses eram sábios, que sempre

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as coisas ocorriam da melhor forma possível; não havia na realidade razão para se entristecer quanto às suas origens, afinal provavelmente “se eu conhecesse os meus pais verdadeiros, não teria a confiança que tenho nesta que é a mãe de todos; deve ser só por isso que sou mais forte: os outros são mais fracos porque conhecem seus pais, e dessa forma se desligaram da Mãe que dá abrigo e alimento a todos nós.”, não devia estar de todo errado, embora fosse inevitável ficar taciturno e a razão ser subjugada nos dias e noites mais gelados, o que combatia por meio das aventuras que a terra tinha a lhe oferecer. Como todo habitante de Gotland, por mais grato que fosse à mãe-natureza, sonhava com um solo e uma vida mais quentes; agradava-lhe sentir o seu coração e os dos demais guerreiros pulsando e se aquecendo em harmonia com as tochas dispostas pelo salão de Hygelac, o que o levava a imaginar todos reunidos em um belo jardim. Enquanto o sonho era irrealizável, esquentavam-se como podiam, comendo, bebendo e dançando. Os cachorros do rei, grandes e pretos, viviam rondando a grande mesa de madeira, aguardando os restos de carne; só que passar perto de Beowulf era perda de tempo para eles, só recebiam afagos, já que seus pratos terminavam sempre limpos. As mulheres cuidavam de servir os homens e só depois se serviam; e eram muitas as jovens interessadas em Beowulf, que se mantinha sempre quieto e discreto. Tanto sua força como a atração que despertava nas moças foram gerando inveja nos demais jovens; não por acaso alguns passaram a tentar envenenar o soberano a respeito do rapaz, dizendo-lhe que Beowulf cobiçava se tornar rei, já que Hygelac não tinha filhos, e que poderia tentar assassiná-lo a qualquer momento.

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Os argumentos dos invejosos começaram a se tornar convincentes aos seus ouvidos, até que o homem mais respeitado de Gotha, embora não fosse um guerreiro, passando a maior parte do tempo em sua casa, fechado e concentrado em suas sigilosas atividades, entre estas o treinamento de seu aprendiz, ou de portas abertas cuidando dos doentes que lhe apareciam, resolveu intervir, após notar o que estava ocorrendo: tratava-se do seidmadr Hersir, que foi falar em particular com o soberano. “Não se deixe enganar, Hygelac. Você não sabe ler as estrelas, e eu já li nelas que o destino de Beowulf é brilhante, mas que nada tem a ver com ser rei de Gotland.” “E você poderia me dizer que destino é esse?” “É o caminho dos heróis livres, que se tornam assunto para as canções dos bardos.” “Mas e eu? Será que nunca serei cantado pelos menestréis?” “Evidente que será. Mas os versos que cantam os reis heroicos são distintos dos que cantam os heróis livres.” “Acho que compreendi. E que tipo de atitude devo tomar com relação a esses invejosos que vieram me preocupar à toa e difamar um inocente como Beowulf, se é verdade o que você diz?”, às vezes queria duvidar dos seidmadr, mas não conseguia; tinha medo de magos e feiticeiros, e os olhos de Hersir eram negros e firmes demais. “Ignore-os. Não dirija a palavra a eles. Com o tempo compreenderão que vossa majestade é um homem que não se deixa levar por boatos e suposições.”, os cabelos loiros longos do xamã, que trazia sempre consigo seu cajado cujo topo estava esculpido de forma a imitar a cabeça de um dragão, começavam a apresentar os primeiros fios grisalhos. “Obrigado.”, e após o breve agradecimento, o seidmadr se retirou; nada de mal iria e nem poderia acontecer a Beowulf,

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que tinha em seu destino proteger os homens do mal.

Em uma noite de inverno das mais frias, um bardo desconhecido chegou em Gotha. Trazia consigo uma espécie de harpa, e era um homem alto e enrugado, com uma comprida barba cinzenta. Tinha claramente o ar de alguém que viajara por longas distâncias, e seus olhos de intenso verde pareciam ser os de um homem capaz de enxergar longe. Mesmo quando olhava para uma pessoa, dava a impressão que estivesse vendo além, talvez na profundidade da alma de seu interlocutor, como um falcão olhando para o horizonte. A túnica que usava era de um azul denso, somada a uma capa espessa de pele de animal, presa por um broche de ouro. Começou a tocar e cantar no meio da praça central da capital de Gotland, atraindo um número cada vez maior de pessoas, e ao vê-lo Beowulf pensou que lhe lembrava uma serpente, com seu pescoço comprido e flexível. O nariz também era alongado. O menestrel se sentara sobre um toco que um dia fora uma das maiores árvores da cidade, mas que tivera de ser abatida por estar no final de seu ciclo de vida e começar a ameaçar os moradores, e sua música fazia pensar no último canto de um pássaro solitário. Começou cantando, no que parecia ser um outro dialeto daquela região, mas bastante compreensível, sobre as florestas negras sem fim, sobre os oceanos aparentemente estáticos de neve e o brilho branco das montanhas, só passando a produzir calafrios em alguns de seus ouvintes ao dar início à imitação da fala dos espectros das grutas esquecidas, e ao se pronunciar sobre o medo que mesmo os guerreiros de sua terra tinham de monstros e demônios desconhecidos do restante do mundo. Cantou a respeito de dragões que não possuíam sangue, que ao serem cortados escorria de seus corpos um líquido tão frio

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que congelava qualquer coisa que tocasse, afora as perigosas sereias dos rochedos, que com seu canto atraíam os marinheiros incautos, dando a entender que conhecera o mar ou que ao menos vinha de um lugar com acesso próximo ao oceano fluido. Seu canto foi se tornando mais sombrio, e isso parecia cativar cada vez mais as pessoas em volta ao invés de espantá-las; passou então a se referir explicitamente ao país de onde provinha, onde reinava Hrothgar. A história que devia contar estava carregada com um forte tom de medo e tristeza; o semblante do menestrel se tornou turvo; em sua narração passou a falar do caos no reino de Dansk, que ficava em uma ilha separada de Gotland por uma certa extensão de deserto gelado, um pedaço de praia e um trecho de mar. O motivo do terror era uma besta demoníaca chamada Grendel, que havia vinte anos que pela primeira vez se manifestara, invadindo o palácio real enquanto quase todos dormiam. Assassinara os guardas e depois a maior parte dos adultos do sexo masculino no interior do castelo. Hrothgar fora um dos poucos sobreviventes e se tornara rei após a morte de seu irmão, que então ocupava o trono. Diversas tentativas foram feitas para acabar com Grendel, mas todas fracassaram. O monstro continuaria atacando, devastando vilarejos e cidades, e por duas vezes retornara ao palácio real, fazendo desta vez vítimas entre os infantes. Inúmeros guerreiros morreram lutando contra a criatura em seu pântano, e nisso a elite militar de Dansk fora abatida, deixando o país totalmente à mercê de Grendel e vulnerável a ataques de bárbaros e piratas. Restavam muitos velhos e poucas crianças, jovens e adultos do sexo masculino, entre estes em sua maioria os mais franzinos. O bardo cantou a dor de

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Hrothgar e o aperto no coração das mulheres do reino, entre irmãs, mães e viúvas. Grendel só parecia ter piedade do sexo feminino e, embora algumas moças já o tivessem encarado com terror e horror e percebido que as fitara com desejo, sempre se retirara sem tocá-las; algo continha seus instintos. Sua pele era tão resistente que nenhuma espada parecia surtir efeito; e enquanto ouvia o menestrel cantar sobre o monstro, os olhos de Beowulf começaram a brilhar, e sua respiração se tornava mais intensa. Quando indagado por alguém na multidão se sua história era verdadeira, se não se tratava de uma fábula, o bardo respondeu, falando devagar para ser melhor entendido e, inteligente, aprendendo rapidamente novas palavras do outro dialeto, que bem que teria desejado que fosse só uma história inventada, mas que era a mais pura verdade; deixara as terras de Dansk justamente a pedido de Hrothgar, para que buscasse ajuda com os vizinhos do continente. A essa altura seria melhor correr algum perigo com outros humanos, e arriscar a independência de Dansk, do que todos morrerem nas mãos de um demônio. Fora trazido por experientes marinheiros em um grande barco, que tinha ordens para permanecer próximo à praia, aguardando seu retorno com algum reforço por mais de um mês se preciso, e caminhara por cinco dias no gelo até chegar em Gotha; os mantimentos que carregara haviam terminado no terceiro dia, mas fizera um esforço a mais para não abandonar seu instrumento, que intuía que teria um papel precioso assim que chegasse num lugar habitado. Sua suposição fora comprovada: a atratividade da música, com as emoções que era capaz de despertar, contribuíra para aumentar a eficiência e o alcance de sua mensagem; caso simplesmente chegasse para falar com o rei, talvez demorasse a ser recebido, nem fosse recebido ou, pior ainda, terminasse aprisionado por pensarem que poderia

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ser um espião tecendo uma armadilha. Como menestrel, suspeitas que estivesse envolvido na política seriam colocadas em segundo plano, havendo imediata desconfiança somente quanto à veracidade de sua história, já que bardos costumavam ser bastante fantasiosos. Beowulf, sentindo suas veias ferverem diante da perspectiva de enfrentar um monstro como Grendel, deixou a multidão e foi até Hygelac. Ao chegar lá, outros guerreiros já estavam falando a respeito com o soberano, e alguns se afastaram no momento em que o rapaz entrou. Muitos ainda mostravam sérias desconfianças em relação à narrativa, não tendo tido paciência de ouvir até o ponto que Beowulf escutara. Quando o melhor guerreiro de Gotland se dirigiu ao rei e contou tudo o que ouvira, manifestando seu desejo de confrontar o demônio, alguns riram e disseram que só podia ser pura pretensão. “Quem você pensa que é? Mesmo que essa história seja real, que não seja uma armadilha desse tal Hrothgar para fazer escravos, o que garante que você iria conseguir vencer um demônio? Você pode se achar mais do que nós, mas continua sendo um ser humano.”, disse um dos que tinham inveja de Beowulf, com um ar de raivoso sarcasmo. “Não me considero mais do que ninguém. Mas também não me rebaixo da forma como vocês fazem consigo mesmos, limitando o que podem realizar. E não me trate com cinismo, Kleggi: da forma como se porta, mais parece uma mosca de cavalo.”, e tivera início uma discussão acalorada, muitos se pondo a falar ao mesmo tempo; Hygelac tentou colocar ordem, mas sequer ao rei estavam obedecendo, até que entrou Hersir. Na presença do seidmadr, não houve como deter o silêncio, este se impondo aos poucos. “Majestade, a história é verdadeira. E de nada adiantaria

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montar um grupo numeroso para ajudar Hrothgar contra um inimigo que não diz respeito apenas a Dansk, mas que é um inimigo de todos os homens, e que em breve poderá aparecer por aqui se nada for feito; à exceção de Beowulf, ninguém em Gotland conseguiria sequer arranhar Grendel. Deixo-o partir; e eu irei acompanhá-lo.”, as palavras do seidmadr geraram um burburinho na corte; Hygelac pediu silêncio, desta vez foi atendido, e replicou: “Mas Hersir, sem você aqui, quem cuidará dos doentes? Posso autorizar Beowulf, mas por que você precisa ir?” “Estou treinando um aprendiz, Drumbr, talvez vossa majestade o conheça. Preciso ir para fornecer para Beowulf a proteção dos deuses e instruí-lo em algumas coisas, a fim de que não se perca no caminho.” “Claro que me lembro de Drumbr, aquele rapaz que vivia subindo em árvores...Ele é mesmo o mais indicado para ser seu sucessor?” “Com toda a certeza. Ele ama a natureza mais do que a si mesmo.” “Às vezes é difícil confiar em você, Hersir. Mas, como nunca o que disse até hoje deu errado, me vejo obrigado a ceder mais vez.”, e, num tom mais solene e compenetrado, se voltou para Beowulf: “Parece que chegou a hora, meu rapaz, de colocar à prova toda a sua bravura e demonstrar que se encontra muito acima da inveja de alguns de seus conterrâneos.”, quando o rei disse isso, alguns ruborizaram, outros se retiraram aborrecidos, houve breves resmungos; de Hersir escapou um sorriso; os tolos estavam percebendo que definitivamente o soberano não cairia em sua tolice. “Os deuses lhe deram uma força de trinta homens ou mais; use-a para ajudar nosso vizinho. Precisamos também de reinos amigos, de futuros aliados, para mais adiante quem sabe eles nos ajudarem quando estivermos em perigo.

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Dansk teve sorte: somos honrados o suficiente para não nos aproveitarmos da situação. Outros os atacariam e ocupariam seu território aproveitando-se da fraqueza momentânea.” “O que por sinal seria uma grande estultice com um monstro como Grendel à solta. Os conquistadores seriam logo suas novas vítimas. Graças aos deuses que vossa majestade enxerga mais além.”, interveio Hersir, o único ali que podia interromper o rei sempre que desejasse; ainda assim, polidamente se desculpou: “Perdoe-me pela interrupção.” “Se é para uma interrupção elogiosa, por mim pode me interromper sempre quiser!”, e Hygelac soltou uma gargalhada. Concluiu então seu discurso a Beowulf dizendo ao rapaz para que não retornasse em caso de fracasso, por mais que parecesse bastante improvável escapar vivo de Grendel. O jovem garantiu que sairia vitorioso, e se ajoelhou para receber as bençãos do soberano, cujos cães começaram a uivar; estariam sentindo algo distinto pelas partidas de Beowulf e Hersir? O seidmadr os acariciou, enquanto os homens que haviam sobrado ao redor pareceram enfim ceder à situação e cumprimentaram o rapaz, se totalmente sinceros em seus bons votos isso seria difícil afirmar. Pouco depois, Beowulf e Hersir se apresentaram ao menestrel, dizendo que eram voluntários para ajudar seu país a se livrar de Grendel, e foram sete dias e sete noites de preparativos. O bardo a princípio ficou desconfiado, refletiu que seria ridículo irem apenas dois homens, um guerreiro e um seidmadr, e por isso procurou pesquisar a respeito dos dois. As histórias sobre Beowulf não o impressionaram; pensou que se tratassem de exageros. Sendo um contador de histórias, sabia perfeitamente o quanto as pessoas podiam fantasiar. Antes da partida, Hygelac encomendou dos melhores ferreiros de Gotha uma armadura e uma espada novas para o herói, afora

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duas lanças e um escudo; o bardo, que se chamava Leggjaldir, disse que não adiantava forjar armas para lidar contra Grendel, cuja pele era impenetrável. Seria realmente necessária a força pura de um herói que não dependesse de lâminas, e sutilmente tentava assim provocar Beowulf, que no entanto andava sorrindo mais do que de costume e nunca reagia a qualquer provocação ou insinuação maldosa e de dúvida às suas capacidades, passando assim no primeiro teste do menestrel, para o qual um candidato a herói devia ser antes de tudo tranquilo e confiante, não podendo ser destemperado a ponto de agredir física ou verbalmente o primeiro que duvidasse de sua força. Hersir, sentindo que Leggjaldir duvidava de Beowulf, incentivou o rapaz no final do sexto dia de preparação a competir nas provas atléticas que estavam ocorrendo havia três dias para trazerem as bençãos de Thor aos corajosos viajantes, que iriam combater um inimigo dos deuses e levar para outro país o nome de Gotland, esperava-se que com honra. “Mas os jogos estão sendo feitos para nós. Faz sentido eu participar?”, objetou o jovem. “Claro que faz. Estamos quase prontos para partir. Servirá como um treinamento e para que receba de forma mais direta as bençãos de Thor.”, replicou o seidmadr, convencendo-o; e nos jogos o bardo ficou impressionado ao acompanhar o desempenho de Beowulf, que venceu todas as provas de que tomou parte: de tiro ao alvo com arco e flechas; de lançamento do machado; de levantamento de pesos; de salto em altura; de salto em distância; e de corrida. De que se tratava de um homem acima da média, ao menos não tinha mais dúvidas. Em Dansk nunca vira alguém levantar tanto peso e nem atirar um machado tão longe, só tendo visto arqueiros equivalentes. Após partirem, demoraram para alcançar a praia bem menos

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tempo do que Leggjaldir levara para chegar em Gotha, pois usaram cavalos emprestados por Hygelac e sabiam onde deviam chegar; o bardo, que tinha uma ótima memória não só para decorar versos como para guardar caminhos, foi o guia dos outros dois. Ao chegarem ao barco, ficou evidente um certo ar de decepção entre os marinheiros, que esperavam mais homens, porém o menestrel lhes disse que ao menos um dos que viera, o mais jovem, era um guerreiro que valia por trinta cavaleiros comuns; e o outro era um bruxo conhecedor de diversos segredos. Assim, mesmo com a desconfiança e o ceticismo pairando, o barco zarpou; e era a primeira vez que Beowulf ouvia o som das ondas e sentia a respiração do mar e o gosto de sua água, tendo-a provado na praia antes de embarcar. “É realmente salgada!” “Achou que os viajantes mentissem sobre isso?” “Pra dizer a verdade, achei que fosse mentira. Sempre duvidei que a água do mar fosse cheia de sal. Por que teria de ser diferente da dos rios e lagos? Mas parece que os deuses quiseram que assim fosse...”, palavras que fizeram Hersir abrir um sorriso ameno; e pelo menos verbalmente os dois viajantes se entenderam bem com os nativos de Dansk, cujo idioma era muito próximo do que se falava em Gotha; não por acaso a canção de Leggjaldir na capital de Hygelac pudera ser compreendida, dúvidas e estranhamentos somente com relação a uma palavra ou outra. Conversando entre si, o bardo e o seidmadr chegaram a cogitar se o povo que ocupara as terras sobre as quais agora reinava Hrothgar poderia ter sua origem em alguma tribo das terras de Gotland que atravessara o mar. O menestrel disse que infelizmente nunca fora tradição de seu reino dar valor aos antepassados e registrar sua história. “E em

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Gotland, que é um reino novo, ainda não temos história e nem tradição.”, brincou Hersir, que sabia que isso não era verdade, afinal a história e as tradições sempre vão muito além do que aquilo que os povos costumam registrar por escrito. Hygelac e Beowulf eram analfabetos (Hersir e seu aprendiz sendo dos poucos letrados em Gotha), e nem por isso deixavam de ter memórias marcantes e belas histórias de vida para contar. Durante a viagem, o mar se mostrou calmo, muito mais do que Beowulf esperara, acostumado a ouvir canções sobre tempestades, krakens e outros monstros marinhos. Chegaram em Dansk após três dias e três noites, ao nascer do sol. O guerreiro fez questão de respirar profundamente para sentir a brisa fresca que passava por aquela “nova” terra; a Mãe, refletiu, era a mesma em qualquer lugar. “Até que você se saiu bem no mar. Outros cavaleiros desacostumados à nossa vida já passaram muito mal neste barco.”, um dos marinheiros comentou com o rapaz. “Acho que aprendi com a vida a aceitar o que a Mãe me oferece. Pode não parecer o melhor no momento, e eu posso reclamar, espernear, torcer o nariz, mas depois compreendo que era o caminho mais sábio.” “Entendo de que Mãe está falando. Está falando da deusa Jord. A deusa da terra.” “Exatamente. A que pariu todos nós.” “Olhando bem pra você agora, meu rapaz, acho que posso começar a ter fé.” “Por que diz isso?” “No começo, duvidei do que aquele bardo veio me contar sobre você. Mas estou percebendo que é bem diferente dos guerreiros com quem já convivi. A sua postura, as suas palavras, o seu olhar...É tudo diferente.” “Talvez seja porque eu acredite muito em mim e na Mãe de

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todos nós. É só por isso que pareço especial, mas vou envelhecer e sou mortal como qualquer outro ser humano.” “Será mesmo? Como pode ter certeza disso? Como pode estar certo que não veio de Asgard?” “É Midgard que eu amo. Não sei onde nasci, mas sei que cresci e que ainda hei de crescer mais aqui em Midgard.”, e olhou para o marinheiro e trocaram sorrisos. O mar fora um intervalo de paz e repouso; a verdade de Dansk estava em sua terra, não nas águas ao seu redor: assim que desceram à praia, as névoas locais deram a impressão de abrigarem rostos fantasmagóricos; Hersir os dispersou. Na floresta, morcegos maiores do que o normal e extremamente hostis, que não pareciam simples animais, atacaram o grupo; Beowulf fez alguns em pedaços com sua espada e aos poucos os restantes foram indo embora, deixando porém as marcas de seus dentes em três marinheiros, que contraíram uma febre violenta. Dois não resistiram e morreram; o terceiro pôde ser curado por Hersir. Ainda faltava para chegarem à capital do reino quando encontraram no caminho um idoso vestido em trapos; parecia uma espécie de eremita. Com olhos sem qualquer espécie de medo, questionou diretamente Beowulf: “Quem é você, estrangeiro? O que veio fazer aqui?” “Como sabe que sou estrangeiro?” “As almas dos que nascem aqui possuem uma marca característica. Não vi essa marca em você e nem naquele outro. E agora também pude notar que o seu modo de falar é distinto.” “De fato não sou daqui, mas garanto que sou um amigo. O meu nome é Beowulf, venho de Gotland, reino governado por Hygelac.” “Isso é bom, posso sentir suas boas intenções. E este que está

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próximo de você é um seidmadr...” “O meu nome é Hersir, e minha função aqui é ser o guardião espiritual de Beowulf.”, respondeu o xamã. “Agora o senhor poderia nos dizer quem é?” “Você deve ser o bardo que saiu da corte de Hrothgar em busca de ajuda.”, o desconhecido se voltou para Leggjaldir. “Sou eu mesmo. Você parece bem informado.”, replicou o menestrel. “Pelo fato de carregar um instrumento e estar na companhia de estrangeiros, seria mesmo difícil eu me equivocar. Parece que foi bem-sucedido em sua missão.” “E o senhor não vai responder a minha pergunta?”, Hersir insistiu, começando a notar algo de suspeito em volta daquele velho, um ar que não era o de um eremita sensitivo, por mais que quisesse aparentar ser um. “Sou alguém que não quer que vocês cheguem a Hrothgar. Sou um amigo de Grendel, sinto muito!”, de repente os olhos do velho se tornaram vermelhos, sem pupilas, e grandes asas membranosas dessa mesma cor se abriram em suas costas; garras cresceram em suas mãos e pés, sua pele ficou rubra, cresceu em altura e revelou-se como um assustador demônio, salivando de fome. “O plano original era para eu rasgá-los pelas costas, mas não aguentei esperar, estou faminto, e nenhum de vocês aqui tem força suficiente para me derrotar! Pude analisá-los de perto e percebi isso! Hahahaha! E ainda pretendiam desafiar o senhor Grendel?! Como puderam cogitar isso??”, sua voz, de baixa e rouca, se tornara alta e estridente; os marinheiros ficaram apavorados e começaram a correr para se esconder; Leggjaldir ficou paralisado. Hersir e Beowulf, que desceram de seus cavalos, pareciam tranquilos. “Traiçoeiro, mas nem tanto. Esse demônio não sabe que Beowulf só mostra o seu verdadeiro potencial quando está em

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ação.”, refletiu o seidmadr, na sequência fechando os olhos, concentrando-se e evocando a proteção dos espíritos da natureza para o guerreiro, que avançou com sua espada. O demônio se esquivou do primeiro golpe e liberou uma gargalhada, mas o segundo foi muito mais forte e rápido e, a lâmina imantada com um certo fogo, não só produziu um corte em seu peito como este começou a arder. “Covarde desgraçado! Lute sozinho!”, insultou Beowulf. “Hersir, me deixe lutar sozinho! Sou o bastante para essa criatura!”, o guerreiro pediu. “Está bem. Espíritos, podem recuar...”, o seidmadr acatou após observar mais alguns segundos de luta, percebendo que Beowulf estava ferindo o demônio sem ser ferido; os elementais ficaram limitados ao seu redor, feito fios de luz de diferentes cores. “Insolente! Acha mesmo que pode me vencer sem fazer uso de magia?”, a criatura infernal indagou. “Você precisa se decidir: acha que sou covarde ou que sou insolente? Eu acho que prefiro ser insolente!”, a criatura cuspiu em sua direção dardos venenosos, que após mais uma hábil esquiva do guerreiro acabaram atingindo um cervo que passava por perto e abatendo-o. A morte do animal inocente enfureceu Beowulf, que se lançou contra o inimigo com todas as suas forças pela primeira vez; este tentou proteger sua cabeça com o braço esquerdo, mas tanto seu braço foi cortado como terminou decapitado. Os marinheiros e o bardo ficaram boquiabertos. “Esta é a verdadeira força de Beowulf.”, Hersir disse satisfeito ao resto do grupo; ao menos a morte do cervo não ficaria em vão: o feiticeiro conseguiu evaporar o veneno do corpo do animal com a ajuda dos elementais do fogo e puderam se alimentar de sua carne.

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A previsão era que chegariam à capital do reino dentro de aproximadamente mais um dia, se não enfrentassem mais inesperados percalços perigosos.

A capital de Dansk estava desolada. Sob uma neblina fria, as casas fechadas, as barracas do mercado vazias em pleno dia; Beowulf olhou ao seu redor e o único movimento que percebeu foi o de um rato, esgueirando-se para dentro do buraco de uma das residências. Sentiu uma considerável tristeza por aquele povo, mesmo sem pertencer a ele. Ao chegarem ao castelo de Hrothgar, depararam-se com dois guardas de expressões assustadas, que evidentemente não eram guerreiros treinados, deviam ser populares quaisquer colocados na função por falta de homens com as qualificações necessárias. A princípio só viram Beowulf à frente e ficaram apavorados com a aproximação do desconhecido, suas pernas tremendo por mais que mantivessem suas lanças erguidas; no entanto, ao discernirem atrás os marinheiros, e reconhecerem Leggjaldir, um semblante de alívio enfim foi possível. “Que bom que nosso maior poeta foi bem-sucedido! Isso quer dizer que ao menos os deuses não estão contra nós!”, disse um dos guardas. “Claro que não. Não digam besteiras. E como está sua majestade?”, indagou o bardo. “Bastante preocupado. Mas vocês tendo voltado acreditamos que o coração dele se pacifique um pouco. Onde estão os outros reforços, além desse cavaleiro e desse homem que parece ser um seidmadr?”, o guarda tentou encontrar mais alguém atrás. “Não há mais. São apenas estes dois.” “O quê?? Deste modo, penso que nosso rei não ficará assim tão aliviado...”

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“Não se preocupe. Esse jovem cavaleiro se chama Beowulf, veio de Gotland, e vale por pelo menos trinta homens.”, o velho menestrel sorriu e procurou passar alguma tranquilidade, apoiando uma de suas mãos no ombro do soldado; na sequência, Hersir e Beowulf desmontaram, e puderam seguir adiante, até o salão do trono, onde Hrothgar estava. Encontraram o soberano de Dansk de pé, de costas para a entrada, seu manto com a insígnia de um leão branco parecendo desbotado; seus cabelos eram longos, castanho-claros, e ao lhe ser anunciada por um de seus criados a volta de Leggjaldir com ajuda, deixara-os entrar. Voltou-se ao ouvir os primeiros passos adentro, revelando um semblante desgastado, os olhos castanhos com grandes olheiras, sua barba apresentando falhas. “Sejam bem-vindos, forasteiros. Por outro lado, Leggjaldir, imaginava que voltaria com mais homens.”, disse o rei. “Foi tudo o que consegui, majestade. Mas garanto que ficará surpreso com as capacidades destes dois. Pude vê-los atuando na floresta, e no caminho encontramos um perigoso demônio, aliado de Grendel. Beowulf, que é este rapaz, o eliminou sem grandes dificuldades. Ele vale por muitos homens.” “Não duvido de sua palavra, meu amigo. É apenas que estou temeroso pelo destino de nosso reino e também não quero que um novo amigo nosso morra em vão, após as mortes de tantos velhos amigos. De onde veio, Beowulf?” “De Gotha, capital de Gotland, reino de Hygelac.”, replicou o rapaz. “Nossa terra também é fria e apresenta muitas névoas e perigos. Mais fiquei impressionado com a desolação que encontramos nesta cidade.” “Isso tudo foi obra de Grendel. A população está apavorada. Você ainda não o viu, por isso talvez esteja se sentindo tão confiante e com tanta coragem. Quando o vir, temo que toda

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esta valentia virá abaixo. Mesmo que já tenha derrotado um outro demônio na floresta, certamente este não se comparava a Grendel.” “Vossa majestade ainda não conhece Beowulf.”, interveio Hersir. “Em nossa cidade, sempre foi tido como o mais corajoso, o único que se aventurava nos lugares mais selvagens, que se apoderava de tesouros dos trolls das cavernas. Ele não irá decepcioná-lo.” “O senhor parece ser um seidmadr.” “Sou o guia espiritual de Beowulf. Vim para ajudá-lo a derrotar Grendel.” “Mas acho que vou conseguir sozinho.”, disse orgulhosamente o rapaz. “De qualquer forma estarei por perto.”, replicou o mago; Hrothgar sorriu depois de muito tempo, encantado com o jeito de Beowulf; pouco depois, o bardo os levou até seus aposentos, onde iriam ficar e descansar por um ou dois dias antes de enfrentar o monstro. Beowulf estava ansioso, queria agir o quanto antes, porém Hersir o conteve: “Você precisa estar inteiro. Nossa viagem foi cansativa. Não se precipite.”, no que o guerreiro terminou concordando, e dormiu pesado naquela noite. Mais um dia e uma outra noite se passaram, até que numa nova manhã os dois decidiram partir ao encontro de Grendel, no pântano onde este vivia. Guiados por Leggjaldir, a caminhada foi longa, até que chegaram ao lugar, onde havia grandes plantas escuras de caules moles e árvores de excepcional altura que impediam a visão do céu; pouquíssima claridade entrava, e às trevas se somavam a neblina e a lama. Estavam andando quando de súbito escutaram um movimento entre as matas úmidas e passos no lodo; o menestrel sentiu seu velho sangue gelar; já o de Beowulf fervia. Hersir redobrou sua

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atenção, e ouviram um grunhido que lembrava o de um porco, só que muito mais forte. Primeiro veio uma gigantesca sombra; só depois apareceu Grendel, um grande demônio, que devia medir entre três e quatro metros de estatura, a pele escamosa esverdeada, os cabelos negros como uma crina selvagem, os braços e as pernas de músculos poderosos, os olhos cor de âmbar com uma aparência cristalizada, escancarando ao mesmo tempo sua bocarra de dentes afiados e suas narinas dilatadas. “Cuidado! O hálito dele é extremamente perigoso!”, gritou o bardo, enquanto Beowulf sentia um misto de terror e excitação; Hersir formou uma barreira mágica ao redor dos três, que dispersou a fumaça cinzenta expelida pelo inimigo. Tratava-se de um gás terrivelmente venenoso, que mesmo sem tocar seus oponentes produziu nestes uma apavorante sensação de um sono que antecederia intermináveis pesadelos; se não podia matá-los de imediato, iria primeiro fazê-los dormir e deixá-los sofrer em delírios oníricos para depois executá-los. Beowulf, percebendo que iria cair, pediu toda a força que seria necessária a Jord, e muniu-se de toda a coragem de seu coração, e ainda requisitou um pouco a Thor, antes de se lançar contra o inimigo, saindo em velocidade do campo protetor de Hersir. “Beowulf!”, o seidmadr gritou por seu protegido; mas nada poderia fazer para detê-lo, o guerreiro prendendo sua respiração e começando a dispersar a fumaça com sua espada e seu ímpeto. Enquanto Leggjaldir desmaiava, Hersir fez o mesmo, parando de respirar por algum tempo, e ajudou o rapaz evocando os espíritos do ar; os ventos, acompanhando os golpes da lâmina, dissiparam gradativamente o venenoso hálito de Grendel. O demônio pareceu surpreso, logo sorrindo de forma sinistra,

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como que se sentindo excitado por ter diante de si oponentes humanos de algum valor, ao mesmo tempo que tinha certeza da vitória; naquele dia acordara enfadado, não disposto a perder tempo com fracos, mas já que alguém forte viera, iria se divertir um pouco: avançou com todo o seu corpo contra Beowulf, suas garras passando próximas da cabeça do rapaz, para a aflição de Hersir, que desta vez não precisou ouvi-lo dizer “não interfira!” ou algo do gênero, sentindo a intenção do jovem guerreiro antecipadamente; conformou-se em cuidar de Leggjaldir, procurando acordar o menestrel, que despencara em um pesadelo em que se via perseguido por uma matilha de cães monstruosos, que não paravam de salivar. No decorrer do confronto, percebendo que não conseguia ferir o adversário com sua espada, Beowulf largou a arma. “O que foi? Está desistindo da luta? Não lhe parece um pouco cedo para isso? Agora que eu estava me divertindo! Não pense que vou deixá-lo fugir, por mais veloz que seja!”, disse o inimigo. “E quem falou em fugir?”, até então, Beowulf demonstrara uma extraordinária agilidade, esquivando-se de quase todos os golpes do demônio; os poucos que o haviam atingido tinham destruído seu escudo (pressionando-o e fazendo-o em pedaços, a seguir o rapaz escapando), seu capacete (um golpe que o acertara de raspão, mas que fora o suficiente para jogar longe o elmo, que se partira no ar) e partes de sua armadura, ao passo que seus ataques não haviam causado qualquer dano à pele do monstro. Usou então pela primeira vez uma das lanças que trazia nas costas, aproveitando-se da confiante distração de seu oponente e atirando-a contra um de seus olhos, acertando-o em cheio. Grendel, surpreendido, urrou pela dor e ficou furioso, partindo com tudo contra seu pequeno adversário humano, que

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todavia manteve a frieza, evitou os ataques imediatamente seguintes e com sua outra lança conseguiu cegá-lo em definitivo. Nessa hora, Hersir ao seu lado de joelhos, o bardo começava a reabrir os olhos, e testemunhou junto com o seidmadr, aos poucos recuperando a nitidez de sua vista, a situação da luta e o aparentemente próximo triunfo de Beowulf; tiveram a sensação de um terremoto enquanto o demônio urrava e dava passos furiosos naquele solo. Sem armas, Beowulf agarrou um dos braços da criatura após um ataque cego e, deixando o menestrel boquiaberto, usou o máximo de sua força não só para segurá-lo como para arrancá-lo. Grendel, cujo sangue esguichou principalmente no herói, mas também no bardo e no seidmadr ao se espalhar pelo lugar, não teve outra alternativa a não ser fugir; sangrando e gemendo sem parar, desapareceu nas sombras. O guerreiro não tinha mais energias para segui-lo, e ficou preocupado, pensando se o monstro não iria se regenerar nos fundos do pântano e depois voltar, totalmente recuperado, para aterrorizar novamente o reino de Hrothgar. Contudo, Hersir se aproximou para tranquilizá-lo: “Grendel é um demônio agressivo e violento, com uma tremenda força, mas não possui capacidades de regeneração. Pude sentir isso. E ele está cego, fraco, e irá morrer em breve. Pode ter certeza.”, palavras tranquilizadoras para o guerreiro, que abraçou o bruxo que lera seu receio. Leggjaldir que estava um pouco sem coragem para se aproximar de Beowulf; considerava-o agora um herói como nunca imaginara, digno das maiores canções, e simultaneamente, vendo-o todo banhado com o sangue de Grendel, e levando-se em conta a forma como ocorrera a derrota do monstro, parecia-lhe um outro demônio. Talvez isso

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se devesse ao fato de ter recém-saído do pesadelo que lhe fora induzido pela fumaça expelida pela criatura infernal...Começou a tremer pelo frio interno. O braço de Grendel foi levado pelo cansado porém persistente herói para a corte de Hrothgar, como uma prova de seu triunfo. No caminho de volta, nenhuma palavra foi trocada entre os três.

No retorno à capital de Dansk, estava anoitecendo; algumas das portas das casas foram se abrindo devagar, rostos pouco a pouco sendo colocados para fora, em sua maioria ainda receosos. “Os estrangeiros voltaram com Leggjaldir! Estão sujos de sangue e o guerreiro está carregando um braço enorme!”, anunciou um garoto, que tivera coragem de sair, aos seus pais, que devagar se esgueiraram para fora de sua residência. Quando Beowulf chegou na entrada do castelo de Hrothgar, os guardas ficaram parados à frente, sem saber o que dizer. “O que há com vocês, homens? Não vão dizer nada, nem uma palavra de felicitação para o nosso herói? Este é um dos braços de Grendel.”, disse o bardo. “De Grendel! Não pode ser!” “Como podem ver, Beowulf conseguiu vencer. O monstro fugiu depois de sua derrota, mas a essa altura já deve estar morto, da forma como estava sangrando. Agora vamos ver o rei e falar com ele.” Já no salão do trono, o soberano de Dansk, como primeira reação, ao ver o braço de Grendel jogado no chão aos seus pés, passou as mãos por todo o seu rosto, esfregando principalmente seus olhos, e depois deu as costas aos três. “O que há, majestade?”, Hersir indagou. “Estou me lembrando de todos os que esse mostro matou, da

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fina flor dos guerreiros de Dansk. Beowulf, Gotland definitivamente é um reino de sorte por poder contar com você.”, enxugou o orvalho de seu sofrimento, que lhe escorrera, e na sequência se voltou para o rapaz, que sorriu com simplicidade. Seus olhos faiscavam com um orgulho de desbravador. “Vamos dar uma grande festa! Em sua homenagem, e também para homenagearmos os que se foram!” “Excelente ideia, meu senhor!”, comentou Leggjaldir. “Vou preparar as canções apropriadas para esta celebração. Quando planeja realizá-la?” “Para que vocês estejam descansados até lá, é melhor que seja na noite de amanhã. Mas o que é esse barulho?”, ouviram-se de repente passos, vozes, uma grande agitação, um tumulto, que parecia estar se aproximando; foi quando um dos guardas entrou no salão: “Perdão, majestade. Não há mais como contê-los. Nem nos vemos no direito de contê-los.” “Do que você está falando, rapaz?” “Da multidão. Todos querem ver e abraçar Beowulf. Já invadiram o castelo.”, e de súbito as pessoas irromperam no lugar, indo na direção do jovem guerreiro de Gotland para parabenizá-lo; Hrothgar, que não queria ser de forma nenhuma um soberano amargo, sorriu e não minimizou a felicidade de seu povo. Apenas procurou contê-los quando alguns começaram a chutar o braço de Grendel: “Por favor, não façam isso. O monstro já foi derrotado. De nada adianta alimentar mais ódio e raiva. Não vamos agir barbaramente.”, sob a voz do rei, os homens, em sua maioria idosos, se afastaram, persistindo na atitude apenas uma menina ruiva de cabelos desgrenhados, que sequer fora notada antes. Devia ter doze ou treze anos, não cessando com os chutes. “Garota, pare. É uma ordem.”, Hrothgar percebeu que precisava se impor com veemência, mas só quando algum adulto a puxou que a menina

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parou, para depois sair correndo, sem dirigir uma única palavra e sequer um olhar ao monarca, que inquiriu: “O que há com essa garota?” “Perdoe-a, majestade.”, respondeu um dos súditos. “O pai dela foi morto por Grendel e a mãe se suicidou em seguida. Agora eu, que sou seu tio, que estou cuidando dela.” “Ah, agora compreendo a razão de tanta revolta...Mas essa ira não vai trazer os pais dela de volta, assim como não trará os meus guerreiros...Os nossos guerreiros, os melhores de Dansk. Procure orientá-la.” “Estou fazendo o possível, majestade. Mas está bem difícil.”, pouco depois, Hrothgar anunciou a festividade a ser realizada na noite seguinte. Todos exultaram. As horas transcorreram rapidamente e ao ar livre, sob a lua cheia, a celebração contou com muita comida e fogueiras. Hrothgar, caminhando no meio de todos, parecia o mais feliz, refletindo que agora podia enfim tranquilizar seu coração e se casar. Só precisava encontrar a moça adequada para se tornar sua rainha. Enquanto Grendel estivera vivo não tivera paz, temendo que fosse em pouco tempo deixar uma nova esposa viúva. Contudo, terminada a festa, recebeu cedo na manhã seguinte, de volta a seu trono, um mensageiro de semblante transtornado, cujas pernas não paravam de tremer; balbuciava, apresentando tremenda dificuldade para falar. Beowulf estava presente, assim como Hersir. Estavam conversando com o soberano quando aquele homem chegara. “O que há com você? Fale de uma vez!”, inquiriu o rei. “O medo está escrito nos seus olhos. Mas que tipo de horror pode ser possível depois que Grendel foi derrotado? Não me diga que ele retornou e cometeu novas atrocidades, é impossível!” O mensageiro, que usava um pequeno chapéu marrom com a

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pena de um falcão, respirou fundo e se ajoelhou devagar diante de Hrothgar, respondendo-lhe: “As notícias que trago são verdadeiramente terríveis, meu senhor. Heorot, nossa segunda maior cidade, foi devastada por um outro monstro. E as cabeças de diversas mulheres, pelo que temos como evidências e pelo que nos contaram, foram arrancadas da pior forma; algumas tiveram até os lábios rasgados com violência.” “Isso que você está me dizendo é muito sério. Grendel era um demônio, mas respeitava as mulheres por algum motivo que desconhecemos. Já esta outra criatura não parece ter nenhuma restrição. Não há a possibilidade que seja Grendel, só que agora mais furioso, não poupando nada e nem ninguém ao seu redor?”, ao perguntar isso, olhou de soslaio para Hersir. “Não souberam nos dar uma descrição precisa, de tão apavorados que ficaram em Heorot. Mas um homem disse algo que nos chamou a atenção: que se trata de um demônio feminino.” Fazendo-se acompanhar por Beowulf e Hersir, Hrothgar partiu com sua carruagem rumo à outra cidade. O jovem guerreiro olhou algumas vezes para o seidmadr, que parecia apreensivo, mas este não lhe devolvia os olhares e nem trocaram palavras; o rapaz intuiu que o mago estava com medo de uma criatura mais perigosa do que Grendel, e ele próprio ficava arrepiado ao pensar nessa possibilidade, porém não só com temor, como também sentindo a excitação na perspectiva de um combate ainda mais duro; o caldeirão de suas emoções fervia. Ao chegarem em Heorot, mais uma vez um cenário de terror e desolação: as portas das casas fechadas; as famílias trancafiadas; as névoas exalando um cheiro forte de sangue; em pleno dia, uma escuridão sem traços de alegria; havia carroças carregadas com corpos para serem cremados, tanto de homens

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como de mulheres. O rei, que se mantivera em silêncio durante a viagem, fitado de uma maneira curiosa por Beowulf, que por algum motivo olhava principalmente para seu cinturão, cerrou os punhos e resolveu pedir a Hersir, após deixarem a carruagem e circularem um pouco a pé pelas ruas: “Será que você não consegue descobrir quem é esse demônio?” “Não sei se conseguirei, majestade, mas posso tentar. Para ter feito um estrago desses na cidade, deve ser uma grande presença demoníaca, teoricamente fácil de detectar pela quantidade de energia que emite. Mas esse tipo de criatura pode também ter habilidades de ocultamento, que lhe permitem esconder sua energia de acordo com sua vontade, para não ser encontrada por nenhum mago...A menos que seja muito confiante, subestime seus eventuais adversários e queira ser encontrada para se deleitar com a batalha.” “Antecipadamente já o agradeço, meu amigo.”, ao que o xamã fechou os olhos e começou a se concentrar; em algum tempo, seu espírito deixou seu corpo, acolhido nos braços de Beowulf, tomando a forma de uma águia de fogo e partindo. O guerreiro chegou a ver uma luz saindo da cabeça do seidmadr e se distanciando. “Há uma presença poderosa no pântano onde Grendel vivia. Mas não é mesmo ele.”, refletiu o seidmadr, a águia de olhos fúlgidos se encaminhando para lá e deparando-se com o cadáver do terrível monstro, sem um de seus braços; estava com os olhos arregalados e a boca escancarada, emitindo um odor terrivelmente desagradável até mesmo para quem se encontrava no plano astral; a notável presença desconhecida desaparecera abruptamente. Contudo, bastou o espírito alado do xamã pousar e se estabilizar por ali que uma explosão de energia maligna veio em sua direção, como se fossem braços negros escapando de uma poça de piche, procurando agarrá-lo

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e impedi-lo de voar novamente; ouviu gargalhadas de mulher. “É realmente um demônio feminino!”, exclamou, com enormes dificuldades para se desvencilhar daquela força, que antes se mostrara similar à de Grendel, agora se revelando muito maior. “Seja bem-vindo, seidmadr! Agora você já sabe quem eu sou!”, viu a criatura, que parecia uma giganta cinzenta de dezenas de braços e tentáculos negros; seus cabelos eram serpentes obscuras, e eventualmente apareciam em seu ventre os rostos de suas vítimas, cujos espíritos aprisionara, gritando por socorro, os semblantes de algumas se tornando disformes. Seus olhos eram brancos sem pupilas e seus traços pareciam até delicados quando a boca estava cerrada; ao abri-la, revelava dentes afiadíssimos. Se ficasse lá por muito mais tempo, Hersir corria o risco de ser capturado; como já descobrira o que pretendia, a criatura não fizera a mínima questão de lhe ocultar sua identidade, desfez sua forma de águia e tornou-se fios luminosos que escaparam rapidamente e retornaram ao corpo físico. O solavanco ao voltar, antes que reabrisse os olhos, deu um susto em Beowulf. “Está tudo bem, Hersir?”, indagou-lhe na sequência. “Já sabemos quem é nosso novo inimigo. É a mãe de Grendel, sedenta de vingança por seu filho.”, replicou o seidmadr, logo se voltando para Hrothgar. “Agora compreendo por que Grendel era quase que gentil com o sexo feminino, em se tratando de um demônio: ele nutria um profundo apreço pela mãe, era bastante apegado a ela, admirava-a, podemos até dizer que a amava.” “Quem diria que aquele monstro era um filhinho da mamãe...”, brincou Beowulf, mas os outros não riram e nem sorriram. O soberano de Dansk perguntou: “Demônios podem nutrir esse tipo de sentimento? Não imaginava que fosse

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possível.” “Mesmo os homens e as mulheres mais cruéis podem ter afeto por alguém em particular. O mesmo se aplica aos demônios.”, replicou o xamã. “Mas o que importa é que temos um inimigo mais perigoso para enfrentar, Beowulf. Ela nem precisou me dizer nada por meio de palavras, foi o suficiente sentir para entender que precisamos agir o quanto antes, ou ela irá arrasar cidade por cidade de Dansk, vilarejo por vilarejo, deixando por último a capital e o castelo de vossa majestade. Ela pretende torturá-lo com a morte de todos os seus súditos e matá-lo por último, transformando este país em um deserto de trevas e espectros.” “Não podemos permitir que nada disso ocorra. Eu não vou permitir. Hrothgar, poderia nos emprestar sua carruagem?”, pediu o jovem guerreiro. “Onde ela está? No mesmo pântano de Grendel?”, perguntou ao xamã. “Está lá sim. Pelo menos foi lá que a encontrei quando viajei em espírito.” “Posso sim lhes emprestar minha carruagem para que cheguem rapidamente. Mas gostaria de tê-la de volta, assim como meu cocheiro...”, respondeu o rei. “Claro, não iremos entrar no pântano com ela. A deixaremos estacionada por perto. E eu posso conduzi-la para que seu cocheiro, que é um inocente, não corra riscos.”, replicou Beowulf. “Ele pode ficar aqui.” “Nem sei como agradecê-los por tudo o que estão fazendo pelo meu reino.” “A estrela de Beowulf é a da proteção do mundo. Ele veio a Midgard consagrado pelos deuses para nos ajudar contra os demônios. Esse é o destino dele, majestade.”, foi a resposta de Hersir. “Quanto a mim, estou ligado a ele nessa missão, auxiliando-o a manter sua consciência em patamares elevados,

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para que não se deixe levar pelo orgulho. Muitos heróis já se perderam pelo orgulho!” “Você já acenou a isso. E confesso que fico maravilhado com a existência de espíritos tão nobres.” “Não entendo muito de destino. Deixo isso para Hersir. O que sei é que não tolero monstros que agem de forma impune, e que massacram pessoas completamente indefesas.”, disse o rapaz. “Só uma coisa antes de partir...” “O que seria, majestade?” “Quero lhe dar isto.”, retirou de seu cinturão uma espada de bainha e empunhadura douradas com imagens de dragões, estendendo-a para o rapaz. “Esta é a espada Hrunting, uma espada sagrada, que na realidade nunca utilizei, pois todas as vezes que tentei senti minha mão queimar. É o maior dos tesouros de Dansk, e poucos até hoje conseguiram usá-la. Foi forjada nos primórdios da formação do país por anões de uma terra distante, que viveram em nosso castelo por algum tempo e a deixaram para a casa real em sinal de agradecimento pela hospitalidade. Uma profecia obscura dizia que só o mais valente dos heróis a surgir no reino poderia utilizar todo o potencial da Hrunting, e que faria isso para destruir um grande mal. Você não nasceu aqui, mas como a palavra da profecia era surgir, e não nascer, e você de certa forma surgiu magicamente em Dansk, acredito que seja o homem da profecia.” “Estava mesmo prestando atenção nessa bela espada...” “Acha que não notei seus olhares?” “O senhor não a havia carregado consigo em nenhuma outra ocasião.” “Trouxe-a apenas hoje, para entregá-la a você.” “Apesar de tudo o que disse, ainda não sei se é correto eu empunhá-la...Será que os anões não a deixaram para alguém

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nativo? E se o grande herói de vocês ainda estiver por vir?” “Deixe de tolices, Beowulf. Pegue a espada. Hesitei em lhe dar esta arma contra Grendel, e se você tivesse perdido eu me culparia de uma forma horrível. Mas os deuses são sábios, e de alguma forma me sugeriram, acredito eu, que ela não seria necessária contra Grendel. Será necessária agora.”, então Beowulf abraçou o rei; depois se ajoelhou, beijou-lhe as mãos e ao se levantar recebeu enfim a espada, agradecendo em seguida com uma solene reverência. Contudo, seria necessário realizar o teste decisivo: Beowulf desembainhou a Hrunting. Nisso escaparam faíscas douradas em todas as direções; Hersir e Hrothgar se afastaram; e uma aura de ouro envolveu o guerreiro, que ergueu a lâmina ao alto, um pilar incandescente se formando desta rumo aos céus, desbravando as nuvens e névoas escuras e fazendo o sol raiar por ali depois de muito tempo. Pessoas foram se juntando à sua volta, até se formar uma pequena multidão; no início não sabiam quem era aquele jovem com porte de herói próximo ao rei, porém não demorou a se espalhar a voz que se tratava do homem que derrotara Grendel. Beowulf permaneceu em êxtase por poucos segundos, mas que para ele foram horas, sob o sorriso satisfeito de Hersir e algumas lágrimas escorrendo do rosto de Hrothgar, ao passo que o povo se maravilhava com os raios vivos da esperança.

Pouco depois que entraram no pântano, era princípio de noite, notaram uma movimentação de sombras e músculos escuros na mata. Manuseando a Hrunting, Beowulf sentiu o ataque antes que este ocorresse: uma espécie de mastim imenso, de pelugem negra, avançara silenciosamente; cortou-o ao meio com um movimento. Outros vieram, e tentaram morder Hersir, atingidos

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pelas chamas que este evocou; contudo, alguns persistiram mesmo com seus corpos pegando fogo, só então se pondo a ladrar, suas bocas ferozes salivando e fumegando. Beowulf os finalizou com a espada mágica de Dansk, que os retalhava emitindo feixes cortantes paralelos. Definitivamente não eram cachorros comuns, e sim demônios em forma de cães, seus olhos da cor de um céu noturno sem estrelas. Seus passos no solo não produziam qualquer som. Após se livrarem dos cães demoníacos, entraram em uma área lamacenta muito nebulosa onde se manifestou um relâmpago, a claridade abrupta riscando as brumas cinzentas, bem em frente aos olhos do guerreiro e do seidmadr; as névoas se foram, a lama embaixo dos pés de ambos principiou a borbulhar, vapores fétidos e sombrios emergiram e o movimento lento e sinuoso de algo teve início nas águas próximas; procuraram uma terra mais firme onde pisar e, quando a encontraram, avistaram em uma árvore inclinada de galhos tortos dois abutres empoleirados: tinham asas cor de sangue, pareciam gostar dos vapores emitidos e a um certo ponto passaram a voar em volta daquela área, circulando sem parar e grasnando sons que Hersir percebeu que eram na verdade palavras e até mesmo frases, conquanto distorcidas; num determinado momento conseguiu discernir com certa clareza: “Beowulf, Beowulf! Chegou a noite de sua morte!”; e depois o guerreiro também se deu conta. As duas aves de Nifelheim depois se foram, mas o movimento na água e na lama continuava; repentinamente, tentáculos apareceram e um tentou puxar o mago pelo cajado, enquanto outros eram como chicotes, procurando acertar o guerreiro em cheio. Só que Beowulf era rápido, e foi se esquivando e cortando todos os que o agrediram, enquanto o seidmadr reduziu a cinzas o que tentara arrastá-lo para dentro das águas

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trevosas. “Nunca irei perdoá-los! Malditos sejam os assassinos de meu filho! Tiveram a ousadia de matá-lo no lar de nossa família! Pois terão o que merecem!”, era a voz da mãe de Grendel, que convocara para o confronto inúmeros espíritos violentos. Formou para estes corpos de lama, terra, água e vegetais, fazendo com que investissem contra os dois invasores. Dessa forma, avançaram disformes gigantes de lodo, pesados golens de pedra e maleáveis colossos furiosos de água, que atacavam com bruscas ondas e jatos de alta pressão e depois tornavam a submergir, afora árvores e outras plantas que ganharam dentes de madeira em seus troncos, espinhos em seus galhos e cipós, ou seivas ácidas em suas folhas, além de toscas pernas para se locomoverem. “Ela é mesmo muito forte. Vou lhe dar a proteção necessária, Beowulf! Se conseguir localizá-la, não se preocupe comigo, cuidarei destas criaturas! Concentre-se nela!”, disse Hersir, que assim que percebera a evocação dos espíritos formara um poderoso campo de força ao redor de si e do guerreiro, empregando a totalidade de suas capacidades mágicas defensivas; no astral, viu-se, envolvendo o mago e o herói, um círculo mágico repleto de nomes de Odin. Os gigantes de lama, ao tentarem atravessá-lo, eram desmanchados, embora se recompusessem ao recuar; os jatos de água e as ondas eram desviadas; os monstros vegetais e de rocha se sentiam repelidos, e os braços e galhos de alguns chegaram a se partir. No entanto, Beowulf sabia que o seidmadr não iria suportar manter uma barreira tão eficiente por um tempo muito longo e precisava fazer sua parte. Concentrou-se, chegando a fechar os olhos por alguns segundos e a pedir ajuda à mãe-terra; ao reabri-los, sentiu onde a mãe de Grendel se escondia: o círculo mágico se duplicou,

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acompanhando seus pés e todo o seu corpo quando disparou e mergulhou na água. Um idêntico continuava aos pés de Hersir, que partiu para uma ofensiva simultânea, já que seria mais perigoso ficar apenas se defendendo: convocou os elementais do fogo, salamandras em brasa começando a aparecer pelo pântano e provocando terríveis dores, com a evaporação, nos espíritos que haviam adquirido corpos de água, ressecando e paralisando as criaturas de lama, explodindo algumas das de pedra e incendiando boa parte das de madeira. A luta do mago só não seria mais feroz do que a de Beowulf, que encontrou a mãe de Grendel no fundo do lago do pântano, guiado por sua intuição e, segundo acreditava e talvez fosse mesmo verdade, por Jord, a deusa da terra. O demônio empregou seus tentáculos para tentar prender ali o herói e afogá-lo. E mesmo com a Hrunting não foi fácil cortá-los, pois eram mais duros do que os que retalhara na superfície. Todavia, o guerreiro foi bravo e persistente, prendendo a respiração enquanto lutava. Peixes de dentes afiados e serpentes aquáticas de diferentes tamanhos tentaram atacá-lo, mas foram rechaçados pelo campo de proteção criado por Hersir; apenas a mãe de Grendel tinha força suficiente para transpassar a barreira mágica e agredi-lo. “Valquírias não podem entrar neste pântano, que é consagrado à minha mãe! Por isso, quando vocês morrerem, serão enviados diretamente para ela, para Hel, a senhora de Nifelheim, que irá puni-los da forma mais adequada.”, o demônio disse telepaticamente a Beowulf, que parecia estar principiando a ceder, puxado mais e mais para o fundo, para a satisfação da inimiga; entrementes, quando passou a ter uma visão que correspondia talvez ao outro mundo, a Nifelheim, vendo-se entre névoas repletas de rostos fantasmagóricos em um deserto gelado, contra-atacou com a Hrunting de uma forma que sua

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adversária não esperava, muito mais feixes dourados cortantes agindo paralelamente à lâmina, além de muito mais quentes e poderosos. O corpo da mãe de Grendel ficou instantaneamente em pedaços e Beowulf pôde escapar de volta para a superfície. Ao retornar, ofegante, procurando capturar todo o ar de que precisava, foi voltando devagar para o solo, deparando-se com um cenário destruído. Plantas queimadas, árvores caídas, pedras espalhadas, lama seca, água parada; Hersir estava vivo e consciente, mas exausto, a custo conseguindo se manter de pé, apoiado em seu cajado. “Parece que conseguimos, meu bom amigo.”, disse o rapaz, depois de algum tempo que se fitaram em silêncio, ambos bastante cansados. Contudo, o seidmadr impediu o guerreiro de abraçá-lo, colocando sua mão direita à frente. “O que foi?” “Ainda não é hora de comemorar. Ainda posso senti-la. Ela continua viva.”, e estava certo: o demônio tentacular emergiu violentamente do lago, deixando cair água e fúria sobre seus oponentes; estava repleta de feridas, cortes por todo o seu corpo: conseguira se reconstituir, embora imperfeitamente. “Malditos!”, seus olhos faiscaram em prata; e as serpentes que eram seus cabelos se prolongaram para atacar. Beowulf conseguia repeli-las, mas era difícil acertá-las; e a adversária deixou escapar um sorriso cruel, dizendo em seguida: “Você quase conseguiu, Beowulf. Quase...É uma pena, porque agora vou esmagar e devorar você. Não vou me contentar com a sua morte. Quero que sofra! Que sofra por tudo o que me fez sofrer, tanto por meu filho quanto por mim mesma!”; o clarão emitido pelos olhos do demônio cegou momentaneamente o guerreiro; Hersir, que fechara os olhos a tempo, escapara do efeito da claridade, e formou uma nova barreira mágica, que esperava que durasse até Beowulf recuperar sua visão. Não tinha muita força sobrando. Dois

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minutos seria o máximo que conseguiria suportar. “Ah, você outra vez...Bruxo desgraçado! Já me cansei dos seus feitiços!”, algumas serpentes foram feitas em pedaços ao tentarem ultrapassar o campo de força; os tentáculos não conseguiram passar; e Beowulf, mesmo sem ainda conseguir ver, refletiu que devia atacar de qualquer maneira, confiando em sua espada sagrada: ergueu a Hrunting, e conjurou os relâmpagos do céu; que o grande Thor o ajudasse. De fato raios desceram, atingindo a furiosa mãe de Grendel; com a vinda da luz do alto, o rapaz recuperou a visão. Beowulf lançou um urro, ao passo que Hersir caía de joelhos; não havia mais barreira mágica, o seidmadr não possuía mais energias. Sorte do guerreiro que não precisava mais de nenhuma proteção evocada pelo amigo: lançou-se sobre a oponente envolvido por uma aura de intensa eletricidade e desta vez não só a fez em pedaços como os relâmpagos reduziram cada fragmento a cinzas. “Maldito, seja mil vezes maldito!”, ainda se ouviu a voz da mãe de Grendel depois que ela foi desintegrada, tamanha a força de seu espírito; só que Beowulf tinha confiança que com os deuses ao seu lado, mantendo reta sua conduta, jamais qualquer maldição o atingiria. Voltou a despencar na água, desta vez não se aprofundando, logo pondo a cabeça para fora; não sorriu, comemorando interna e discretamente sua vitória. A água serviu para relaxá-lo, permanecendo nela por alguns segundos, boiando devagar, sem temor, antes de retornar à superfície, para perto de Hersir. Estendeu a mão ao amigo e ergueu-o. “Agora sim. Não há mais o mínimo sinal dela.”, disse o xamã, e puderam enfim sorrir e se abraçar.

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Desta vez a comemoração pela vitória se deu em Heorot, um grande banquete coletivo preparado em homenagem a Beowulf e Hersir, principalmente ao jovem, o seidmadr diminuindo seus méritos no triunfo sobre os demônios todas as vezes que era procurado. Houve bebida e comida pela noite toda, Beowulf passando contudo a maior parte do tempo numa postura reflexiva. Retornaria sim a Gotland, mas chegou à conclusão que sua vida não seria jamais a de permanecer estático em um só lugar: queria ver a alegria de um povo a cada vez que derrotasse um inimigo poderoso que o estivesse ameaçando; vagaria pelo mundo combatendo os demônios que se opusessem à felicidade das pessoas e mesmo os humanos que fizessem o mesmo. Ficaria pouco tempo em Gotha, apenas o suficiente para contar a Hygelac como fora a luta contra Grendel e sua mãe, para depois partir, ainda mais porque não queria alimentar a inveja que muitos homens em seu país natal nutriam em relação a ele, sobre a qual Hersir já procurara adverti-lo; isso o entristecia profundamente, mas não podia mandar no coração alheio e se algum dia sua terra precisasse estaria de qualquer forma pronto para socorrê-la, esperando que no futuro o compreendessem e o aceitassem plenamente. Só não queria partir sozinho... “A sua é uma estrela solitária, e ao mesmo tempo errante, que não foi feita para ficar parada em um único céu, mas para iluminar as noites de diversos céus, trazendo luz a diferentes povos. Eu o adverti a respeito dos invejosos de Gotha porque alguns poderiam até tentar assassiná-lo à traição; isso já ocorreu com outros heróis, e não seria justo que essa tragédia se repetisse. Por esses motivos que o apoio em sua decisão de partir como andarilho, ficando lisonjeado com seu convite para acompanhá-lo em sua jornada.”, disse o seidmadr quando ficaram a sós, sentados diante de uma fogueira. “Mas não sei se

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será possível.” “Não confio em ninguém como confio em você, Hersir. Confio mais em você do que em mim mesmo, pra ser sincero.” “Nisso você está errado; precisa confiar mais em si próprio do que em qualquer outro, Beowulf.” “Mas as suas palavras, as suas atitudes e a sua postura são uma luz que me guia na escuridão. Precisa me acompanhar para que eu não me perca no orgulho, como você já disse.” “Você amadureceu nestas batalhas contra Grendel e sua mãe. Não tem consciência do quanto. Talvez agora seja o momento de eu deixá-lo em paz.” “Mas ainda posso sucumbir. Posso ter amadurecido muito, mas já que tenho que confiar sobretudo em mim mesmo, na minha intuição, no meu coração, o que sinto é que ainda existe a possibilidade de eu me perder, e de me tornar orgulhoso à medida que for ajudando as pessoas. Preciso da sua voz, do seu apoio; assim como estou começando a achar que você também precisa de mim.” “Isso é interessante de ouvir. Por que eu precisaria de você?”, fez a pergunta sorrindo, esperando com uma singelez sincera a resposta do guerreiro, sem qualquer sinal de arrogância. “Pelo mesmo motivo que eu preciso de você. Você não permite que eu me perca; eu faço o mesmo em relação a você, ainda que sem a mesma consciência...Consciência que estou adquirindo aos poucos. Com as minhas ações e os meus gestos, o impeço de cair no isolamento do eremita, um isolamento que pode se tornar orgulhoso, fazendo com que se sinta acima de todas as outras pessoas, quando na verdade deve se sentir unido a elas, unido à natureza.” “Falou com sabedoria. Não tenho mais nada a lhe ensinar.” “Mesmo que não ensine, quero continuar aprendendo com você, da mesma forma que você aprenderá comigo. Vamos

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seguir juntos. Você é como se fosse meu irmão mais velho.”, Hersir ficou comovido com aquelas palavras, e terminou convencendo a si próprio que devia continuar ao lado de Beowulf, após pedir ao jovem companheiro um silêncio para refletir. Encerradas as celebrações, que se estenderam para a capital de Dansk, ficaram por mais um mês no reino; como não foi detectada mais nenhuma ameaça, chegou a hora de partir, para a tristeza de Hrothgar, que tentou convencê-los a ficar. Se permanecessem, ganhariam títulos de nobreza e teriam uma vida confortável pelo resto de seus dias. Contudo, no fundo já sabia que Beowulf não aceitaria aquela proposta. “Ficamos muito agradecidos e honrados com sua proposta, majestade. Mas Gotland aguarda nosso retorno; devemos satisfações ao nosso rei, Hygelac.” “E não é apenas por Gotland que está partindo, não é, Beowulf? Você é um homem de Midgard, do mundo inteiro, não pertence a somente um reino. Assim como Hersir.” “Vossa majestade é um homem sábio, e parece que conseguiu compreender minha verdadeira natureza.” “Sabia que meu convite terminaria numa tentativa frustrada! Mas o fiz para não ficar depois me remoendo que não tentei!” “Compreendo o seu ponto de vista, majestade. Quanto à Hrunting...”, ia retirar a espada de sua cintura para devolvê-la ao rei. “Não, de forma nenhuma!”, o soberano o deteve, adivinhando o que pretendia. “Você se tornou o legítimo possuidor desta espada. Tornou-se o herói de Dansk, nosso filho por adoção; sabemos que qualquer problema que tenhamos, virá assim que puder em nosso socorro. A Hrunting é sua por direito, Beowulf.” “Muito obrigado, majestade. Saiba que minha gratidão será

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eterna.”, Beowulf então agradeceu reverentemente, e junto com o seidmadr deixou a ilha, onde após a morte de Grendel e sua mãe não havia mais qualquer rastro de demônios. Partiram no mesmo navio que os trouxera, só que desta vez uma considerável quantidade de pessoas se dirigiu à praia para a despedida, os heróis levando consigo joias, armas e cavalos como presentes não só para si como para Hygelac, por cordialidade e em sinal de gratidão por este ter permitido que súditos seus viessem em socorro de Dansk. Hersir também levava uma carta de agradecimento do soberano da ilha ao monarca de Gotland, que ao chegarem foi lida por Leggjaldir de frente para o trono de Gotha. Hygelac ficou imensamente feliz, parabenizou o guerreiro e o seidmadr, e antes de ir embora o bardo prometeu a Beowulf que iria compor um longo poema heroico em sua homenagem e preservá-lo por escrito, seus aprendizes fazendo diversas cópias para que não fosse perdido e jamais se esquecessem de seus feitos. O rapaz agradeceu por tanta consideração. A partir destes eventos, estabeleceu-se entre Dansk e Gotland uma ótima relação; alguns meses depois, Hygelac iria em pessoa, acompanhado por homens de confiança, visitar a ilha e sedimentar uma aliança, um pacto de que uma nação defenderia a outra em caso de ameaça. Dansk estava se reconstruindo aos poucos, e a livre circulação dos indivíduos e o livre comércio entre os dois reinos foram autorizados. Leggjaldir passaria a voltar com frequência para Gotha para expor suas canções, assim como bardos de Gotland começaram a se apresentar na ilha; entretanto, justamente quando veio para apresentar a Beowulf seu poema épico pronto, narrando as gestas do herói e do mago em Dansk, suas lutas contra os demônios, soube de Hygelac que o guerreiro e Hersir haviam partido, para talvez não voltarem nunca mais para Gotha...

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“Imaginei que isso fosse acontecer mais cedo ou mais tarde. Mas podiam ter pelo menos esperado eu terminar o meu poema! Nunca fui lento para compor versos.”, protestou o bardo, um pouco em tom de mofa, um pouco falando sério, um tanto irônico, um tanto decepcionado. “Pelo visto, não tinham a menor curiosidade de ouvir o meu Beowulf.” “Não encaro dessa forma.”, respondeu o rei de Gotland. “Mas entendo que para os poetas o mundo gire em torno deles e de sua poesia.”, e soltou uma boa risada. “Acredito que eles estavam sim curiosos, mas tinham muito trabalho a fazer. A necessidade foi maior do que a curiosidade. Além do mais, talvez fossem ficar envergonhados com tantos louvores poéticos.” “E como foi que partiram? Gotha perdeu, além do melhor dos guerreiros, um grande seidmadr.” “Prefiro pensar que o mundo os ganhou, não que nós os perdemos. Com relação ao seidmadr de Gotha, Hersir ao menos não nos deixou na mão. Antes de partir, terminou o treinamento de seu discípulo, Drumbr, que agora já é um verdadeiro bruxo e podemos contar com ele. Beowulf só permaneceu aqui por todo esse tempo, depois que voltou de Dansk, porque ficou no aguardo que o treinamento de Drumbr terminasse. Não queria ir embora sem Hersir de forma nenhuma.” “A amizade entre os dois é algo incrível, que fiz questão de ressaltar em meu poema.”, que continuou sendo muito cantado mesmo após a morte de seu autor, tanto em Gotland como em Dansk. Anos se passaram e, no curso de suas viagens, Beowulf e Hersir chegaram em Upsala, onde depois de um tempo na cidade viram o anúncio do rei procurando por guerreiros para a empreitada na ilha de Samso, que estava tomada por demônios

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e que devia ser reconquistada por Gamla para o bem não só do reino como de todos em Midgard. Nada mais adequado para os dois, que a princípio se apresentaram como mercenários, embora não estivessem na missão pelo pagamento, do qual não necessitavam para sobreviver, pois sempre que ajudavam as pessoas costumavam ganhar presentes valiosos, que não pediam, mas também não recusavam; estes até então lhes tinham garantido o sustento, e pelo que ainda possuíam poderiam lhes garantir por um bom tempo. Na conversa com o rei Heidrek, que fazia questão de entrevistar cada guerreiro para não alistar os que lhe parecessem piores até do que os demônios, este ficou a par de suas aventuras, dos confrontos com Grendel e sua mãe, entre outros; era principalmente Hersir que falava, pois aprendera rapidamente a língua de Gamla, ao passo que Beowulf ainda lutava com as novas palavras. Sentindo que não mentiam em nada, o jovem soberano de Upsala expressou-se a seguir com satisfação: “É muito bom poder contar nas minhas tropas com homens que já têm experiência em combates contra demônios. Até agora vocês são os únicos nesse aspecto.”, e Beowulf e Hersir acabaram logo se tornando não só companheiros de luta como amigos de Heidrek, que passou a trocar conhecimentos mágicos com o seidmadr. Parecia até que se conheciam de outras vidas; e talvez realmente se conhecessem... Eis os homens apropriados que Sigrun lhe dissera que viriam; agora o exército de Gamla podia partir.

III

Nas águas próximas de Samso diversos confrontos foram

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travados pelas forças de Gamla, que partiram distribuídas em seis grandes navios. Evidente que o mar ao redor da ilha se tornara muito mais perigoso do que um dia fora e, segundo Hersir, “o demônio deve ter percebido a aproximação de homens hostis a ele. Não consigo sentir quase nada do que essa criatura emana, mas nas vezes em que me concentrei para captar algo, pude perceber a inteligência sórdida de uma mente alerta. Não sei se me equivoco, mas suspeito que esse monstro tenha consciência de tudo o que ocorre em Samso e nas áreas próximas.” O primeiro enfrentamento se dera contra serpentes marinhas entre os vinte e os cinquenta metros de extensão, que em plena tempestade no oceano atacaram os barcos, dificultando consideravelmente as manobras necessárias; os guerreiros e magos trataram de proteger os marinheiros especializados, mas alguns de todo modo terminaram sucumbindo. Algumas destas criaturas atacavam simplesmente com suas bocas de dentes afiados; outras lançavam cusparadas ácidas; e havia as que expeliam dardos venenosos. Com a ajuda dos espíritos dos ventos e das águas, Hersir e outros magos conseguiram dissipar as nuvens e primeiro acalmar e depois fazer a tempestade cessar. Heidrek incendiou-as com as labaredas que convocou com a Naglering e Beowulf as retalhava com a Hrunting e os feixes cortantes paralelos à lâmina de sua espada, chegando a se lançar corajosamente sobre uma, que parecia mais rápida e inteligente do que as demais, esquivando-se e escondendo-se embaixo d'água para depois voltar a atacar, agarrando-se à sua cabeça e atravessando-lhe o crânio antes que mergulhasse mais uma vez, saltando de volta ao convés em seguida. Sua forma de lutar impressionava e fascinava o rei de Gamla. Vencidas as serpentes, foi a vez do ataque de polvos

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gigantescos, que tentaram envolver e afundar os navios; para vencê-los, Hersir convocou uma chuva de “meteoros” incandescentes, na verdade elementais do fogo de grande poder. A queda destes chegou a assustar até Beowulf, para não falar dos homens de Gamla, que pensaram que o bruxo havia enlouquecido, cogitando que aquelas massas em brasa pudessem despencar nos conveses dos barcos, alguns ficando apavorados. Contudo, os “meteoros” em chamas foram diretamente para o mar, que começou a borbulhar, e dessa forma os polvos foram consumidos pela água fervente. “Você nos deu um susto e tanto! Parecia que aquelas bolas de fogo iam cair nas nossas cabeças ou abrir buracos nos navios e incendiá-los antes que afundassem! Sorte nossa que só nos renderam polvos ensopados até que apetitosos!”, Beowulf comentou jocosamente na noite que se seguiu à luta com aquelas criaturas; todos no convés riram, inclusive Heidrek, menos o próprio Hersir. “Vocês acham que sou alguma espécie de inconsequente? Ou que sou um seidmadr principiante? Até você, que me acompanhou em tantas batalhas, pensou que eu poderia fazer alguma besteira?”, indagou o mago, parecendo bastante perturbado com o incidente. “Calma, calma, meu amigo! É a primeira vez que o vejo tão aborrecido! Um seidmadr experiente como você não deveria ficar incomodado com as chacotas de alguns tolos!” “Me desculpe, Beowulf. É que me surpreende que você me subestime, que acreditasse que eu pudesse me equivocar de uma forma tão grosseira em uma evocação de batalha, a ponto de colocar em risco as vidas dos meus companheiros. Os outros posso compreender e perdoar, mas com relação a você é mais difícil.”, nisso ficaram em silêncio; as últimas faíscas de riso foram apagadas. Heidrek sentiu o desconforto alheio e também

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ficou desconfortável com a situação. “Me perdoe, meu velho.”, o vencedor de Grendel se aproximou do mago e deu-lhe um tapa carinhoso no ombro. “Por isso que às vezes prefiro ficar quieto, escolho o meu silêncio; detesto machucar quem eu gosto. E eu gosto muito de você!” “Também gosto de você, Beowulf. E sei que isso vai passar. Mas quero ficar um pouco sozinho hoje.”, e se levantou, afastando-se e indo meditar de olhos abertos de frente para as águas. A paz entre os dois só viria a ser selada ao término da batalha seguinte, já bem próximos da ilha. A princípio, um nevoeiro: e começaram a se materializar nos navios, como que paridos pelas brumas esbranquiçadas, licantropos pálidos, alguns muito altos e maciços, outros pequenos e magros, porém extremamente ágeis, manuseando espadas curvas, machados, lanças ou simplesmente fazendo uso de suas garras. Muitos homens perderam suas vidas nesse confronto, mas o pior estava por vir, quando uma vez vencidas as criaturas a neblina se dissipou e Samso ficou visível; o sinal da aguardada chegada gerou sorrisos e exclamações satisfeitas em quase toda a tripulação, só que das águas emergiu um imenso monstro, que rasgou um dos barcos ao meio e as chamas azuis que expelia de sua boca congelavam os corpos ao invés de incinerá-los: tratava-se de um dragão marinho de treze cabeças, cujas escamas refletiam os rostos desesperados ou já mortos de suas vítimas; além de viver embaixo d'água, era capaz de voar, dotado de extraordinárias asas membranosas que podia fechar e esconder sob sua pele ou escancarar, ao batê-las provocando uma assustadora e gélida ventania, que principiava a se transformar em tufão e a gerar torvelinhos no mar. O ciclone foi porém contido pela magia de Hersir, que, com o auxílio dos

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outros magos presentes nos navios, cada um dos quais era menor do que o monstro, convocou os espíritos do fogo apropriados, uma frota aérea que parecia de mariposas e pássaros flamígeros se lançando sobre o dragão. Cedo ficara claro para os magos que o ponto fraco do adversário era o elemento ígneo, mas, embora o bater de asas tivesse diminuído, estas de pronto atingidas pelos seres em brasa, e os ventos se apaziguado, os elementais foram sendo abatidos pouco a pouco, cristalizados por sua aura e suas labaredas congelantes ou apagados pelas ondas que levantava no mar. A evocação não era o suficiente para derrotar o monstro, por isso Beowulf e Heidrek agiram, o primeiro cortando as cabeças com os feixes que se multiplicavam a partir da lâmina de sua espada, e o segundo, ao perceber que estas renasciam, passando a incendiá-las com grandes ovoides de fogo que primeiro formava ao seu redor com a sua concentração e o poder da Naglering para depois lançá-los. Como supusera, uma vez incineradas, as cabeças não se reconstituíam mais. Quando a última cabeça foi reduzida a cinzas, o dragão despencou sem vida, causando um tumulto nas águas por alguns segundos. Uma vez que veio que a calmaria, a morte do inimigo confirmada, puderam voltar a respirar com relativa tranquilidade e rumar de vez para a ilha; só não houve comemoração porque um navio inteiro fora perdido neste último enfrentamento. Todavia, Hersir se aproximou de Beowulf, ambos cansados, e após receber um olhar ofegante e apreensivo do guerreiro abriu um sorriso e disse: “Essa foi bem difícil.” “Pois é!”, Beowulf respondeu, também se sentindo à vontade para sorrir. Na conversa que se seguiu, não tocaram no desentendimento

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que haviam tido; o mago preferiu deixar qualquer pequena mágoa de lado, assim como o guerreiro refletiu que não seria necessário pedir desculpas mais uma vez, porque já estava desculpado. Pedir perdão novamente só deixaria as coisas desnecessariamente pesadas. E o seidmadr pensou que o que ocorrera servira como lição, que pequenas coisas não deviam ter poder para riscar ou manchar uma amizade, uma irmandade melhor dizendo. Existiam muitas coisas importantes para se preocupar. O destino de Midgard talvez estivesse em jogo em Samso; não fazia sentido se ofender com tão pouco, podendo afetar posteriormente o desempenho do grupo contra os demônios, que seriam capazes de tirar proveito da situação. Se Thor perdoara Odin, segundo lera, depois deste fazê-lo acreditar por brincadeira que Sif o estava traindo, algo muito sério, por que ele não poderia perdoar Beowulf por impressões equivocadas, palavras mal-ditas e uma pequena broma? Todos têm o direito de alguma vez errar e dizer qualquer besteira; ele mesmo já dissera algumas, principalmente quando mais jovem. Heidrek ficou feliz e satisfeito ao perceber que haviam voltado ás boas. A guerra no solo de Samso ainda estava por vir e já haviam perdido mais do que desejavam antes de pisar nele; a união entre todos, por sua vez, não deveria de nenhuma maneira ser afetada e muito menos perdida.

Com as batalhas que ocorreram na ilha, o exército de Gamla foi diminuindo consideravelmente. Enfrentaram licantropos, homens-morcegos, zumbis, trolls, ogros, ogras, pequenos dragões negros com caudas venenosas de escorpiões, feiticeiros encapuzados das trevas, homens-ratos, homens-répteis e demônios de diferentes tipos, sempre os inimigos estando em forças de menor número, contudo letais e violentas. A cada

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vitória, muitos guerreiros e magos pereciam. Das tropas que haviam deixado Upsala, restava o equivalente do que estivera em três navios. A situação começava a fazer Heidrek cogitar a possibilidade do fracasso e o retorno à capital de seu reino antes que fosse tarde demais. “Não quero que todos morram sem que sequer tenhamos chegado ao demônio que se tornou o senhor absoluto da ilha. Ainda podemos voltar, nos restabelecer e treinar, além de conseguir mais homens, para depois retornar. Apesar que esses monstros parecem não ter fim, e se esperarmos muito e não os derrotarmos hoje talvez amanhã nenhum preparo nosso será suficiente. Se chegarem a ficar fortes e numerosos o suficiente para atacar Upsala ou qualquer outra cidade, nunca vou parar de me culpar. Acho que não tenho muitas escolhas. Resta-me ou morrer, ou acabar com isso. Sigrun...Por que não reaparece numa situação dessas? Por que não vem para me ajudar? Você não iria me abandonar...Por mais que eu saiba que não posso ser uma criança chorona. Como gostaria da sua força aqui comigo! Você disse que nos reencontraríamos aqui depois de você ajudar outra pessoa importante para o destino de Samso. Quem será essa pessoa? Deve estar vindo com ela...”, reflexões assim passavam pela mente do soberano de Gamla, que procurava não demonstrar sua apreensão, sua insegurança e suas inquietudes aos seus subordinados e companheiros; Hersir talvez fosse o único a percebê-las, procurando estudar e compreender aquele coração corajoso, mas também preocupado e ainda jovem, que tentava não se deixar levar por nenhuma forma de impulsividade. Em mais uma batalha, as forças de Gamla enfrentaram um grupo de inimigos entre os quais havia centenas de gigantes armados com foices, de olho único no centro de suas testas, sem pêlos, cabelos e muito menos usando armaduras, porém com peles amareladas e esverdeadas resistentes o bastante para

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não serem perfuradas com facilidade e nem sofrerem cortes profundos; apesar da tremenda força física que possuíam, não eram capazes de usar magia, porém contavam com o apoio de feiticeiros das sombras montados em enormes lagartos de Nifelheim. Os bruxos, em túnicas cinzentas, haviam jogado seus capuzes para trás, revelando seus rostos e cabelos azuis, poucos de cabeças raspadas; as bestas eram répteis que ao mudarem de cor, passando do verde-escuro ao vermelho, cuspiam assustadoras quantidades de substâncias venenosas, que começavam queimando a pele de suas vítimas para depois penetrarem em seus corpos e consumirem seus órgãos internos. Como se não bastasse, surgiram homens-répteis que eram também feiticeiros de alta periculosidade, montados em quimeras criadas por meio da necromancia e de outras artes sórdidas, constituídas por partes humanas e animais, em comum em todas estas aberrações as cabeças de homens e mulheres, às vezes mais de uma por corpo, tendo corpos de leões, tigres, crocodilos, cavalos, bodes e outros; os rostos eram apagados, mortos, sem qualquer expressão. Heidrek sabia o que podia gerar tais criaturas e nutria uma profunda repulsa pelo mau uso da magia, chegando a ter ódio frente tamanha baixeza, almas de seres humanos escravizadas em corpos de animais sacrificados aos demônios de Nifelheim. Por isso pela primeira vez Hersir o viu tomado por verdadeira ira, retalhando e incinerando seus inimigos com sua força aliada ao poder da Naglering, cortando até mesmo incêndios ao meio e passando entre estes antes de apagá-los, dissipando ventos, cessando de imediato com tremores de terra que os feiticeiros tentavam provocar apenas com a firmeza de seus passos, evaporando o gelo e a água lançados em sua direção. Beowulf, observando a forma como o rei de Gamla lutava, ia ficando cada vez mais cativado e sua admiração pelo rapaz

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aumentava, auxiliando-o no curso da batalha. Contudo, inimigos não paravam de chegar e mesmo os melhores magos e guerreiros se cansam. A luta parecia não ter fim, e num determinado momento Heidrek e um grupo de guerreiros, entre os quais estava o bravo herói de Dansk, se viram cercados por uma assombrosa quantidade de gigantes e bruxos; a chama do rei de Gamla já estava mais fraca, e até mesmo Beowulf, sujo do vinho de seu corpo, ofegava de uma forma como raras vezes ocorrera antes, ainda havendo muitos inimigos para abater. Outros soldados e magos, como Hersir, estavam ocupados em suas próprias lutas e não poderiam ajudar. O filho de Hjalmar nunca enfrentara uma situação tão crítica. Mas iria dar o seu máximo para não morrer ali, procurando se convencer que sua hora estava longe de chegar e instigar seus homens com palavras fortes, pois o esmorecimento de um ou dois já aumentaria em muito a vulnerabilidade da tropa. Encarou Beowulf, que lhe devolveu um firme olhar de confiança, e estavam prontos para retomar o combate, os inimigos em volta parecendo extremamente certos de seu triunfo, tanto que com expressões arrogantes e de sarcasmo haviam aguardado que tomassem a iniciativa. Entretanto, de súbito os joelhos de alguns gigantes explodiram e estes despencaram; houve um grande susto nas forças de Nifelheim, que aumentou quando outras explosões foram ocorrendo. As cabeças de dois feiticeiros explodiram e estes caíram mortos instantaneamente. “É vossa majestade que está fazendo isso?”, inquiriu Beowulf. “Não, não sou eu. Devo confessar que estou cansado demais para fazer algo parecido com o que está acontecendo agora.”, replicou Heidrek, cuja tropa estava positivamente surpresa. Hersir e os outros magos do exército tinham enfim conseguido

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ajudar? Aproveitaram a situação para voltar ao combate, descobrindo depois de algum tempo que o auxílio não viera de conhecidos: primeiro viram dois guerreiros em armaduras negro-prateadas, posteriormente surgindo um exército inteiro. “Quem será?”, perguntou-se Heidrek, de súbito seus olhos atraídos fortemente por uma guerreira. Esta o encarou de uma forma que ele não poderia se enganar; por isso, apesar dela estar usando um capacete, não demorou a reconhecê-la: “Sigrun!”, no que rapidamente, ao recobrar suas esperanças, suas forças redobraram: logo lutando lado a lado com a valquíria, o triunfo não poderia deixar de se dar. “Fique quieto. Nenhum deles sabe qual a minha verdadeira identidade e por enquanto não quero que saibam.”, comunicou-se telepaticamente com o jovem rei de Gamla. “E por que não? E quem são eles?” “Saberão quando for o momento. Este é o exército de Gandarki, liderado por Hervor, filha de Argantyr.”, à menção do nome de Argantyr, Sigrun sentiu o receio e a apreensão vindos de Heidrek. “Mas não precisa se preocupar. Enquanto eu estiver perto dela, nada de errado acontecerá entre vocês.” “Se o meu pai teve problemas com Argantyr, isso não quer dizer que terei com a filha dele. Pelo menos se depender de mim, não haverá nenhum problema. Quer dizer então que era ela a pessoa que você estava ajudando e que será importante na libertação de Samso?” “Exatamente.” “Por acaso ela não veio recuperar a Tirfing, que pertenceu ao pai dela?” “Ela veio para destruir a espada, seguindo os desígnios dos deuses, assim como você. E eu estou aqui para que ela não caia em tentação, mesmo sendo muito diferente de Argantyr, fique

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tranquilo quanto a isso. Vocês dois são necessários, porque caso um fracasse, o outro fará o que precisa ser feito.”, vendo Heidrek e a guerreira-maga misteriosa lutarem próximos um do outro, Hersir se perguntou se aquelas tropas eram alguma carta na manga que o rei de Gamla escondera até aquela altura, forças de alguma nação aliada a respeito das quais não falara com seus companheiros talvez por dúvida se viriam realmente ou porque sabia que iriam demorar. Contudo, também era possível que ele e a guerreira não se conhecessem, uma empatia se estabelecendo rapidamente entre os dois e nada mais natural do que humanos se unirem para lutar contra demônios. Do que não tinha dúvidas era do poder que Sigrun tinha dentro de si, claro que ainda sem saber que se tratava de uma valquíria, sentindo-o e vendo-o como uma esfera de um fogo azul incandescente, incontrastável, de uma bravura impetuosa que jamais testemunhara igual. Beowulf ficou admirado não só com a valquíria como com Hervor, ainda sem saber de quem se tratava, refletindo que nunca vira mulheres com tamanha destreza guerreira ao se certificar que eram realmente mulheres, sem deixar de notar a força dos gêmeos Konr e Jarl, que, afora serem mestres espadachins, manipulavam o elemento ígneo com tamanha habilidade que produziam “bombas” não só invisíveis como difíceis de perceber, mesmo que se utilizassem outros meios que não a visão física; graças a estas que tinham sido os primeiros do exército de Gandarki a agir e a ajudar a tropá em que estavam Heidrek e o herói de Gotland a sair de seu apuro. Uma vez vencida a batalha, os líderes dos dois exércitos e soberanos das duas nações se apresentaram um ao outro, apenas o rei de Gamla ciente de quem seria sua nova aliada, porém não iria revelar isso de forma nenhuma, percebendo os olhos de Sigrun sobre sua cabeça.

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“Sou Hervor, rainha de Gandarki.”, a filha de Argantyr retirara seu elmo. “Será que você pode me entender?” “Sou Heidrek, rei de Gamla.”, Heidrek aprendera o idioma de Gandarki, assim como muitos outros, não só por meio do aprendizado regular na corte como com Sigrun; estendeu sua mão direita para cumprimentá-la. “Trata-se de uma grande honra conhecê-la. O que a traz a estas terras?”, o fascínio exercido pela aparência de Hervor sobre a quase totalidade dos homens de Gamla se transformara em burburinho polêmico depois que ela revelara sua identidade, os que não haviam conseguido ouvir ou entender a princípio logo ficando cientes do que fora dito graças aos oficiais cultos que sabiam a língua de Gandarki. As informações correram, surgindo comentários de diversos gêneros, muitos alimentando consideráveis receios pelo fato de se tratar da filha de Argantyr. O aparente socorro poderia na verdade ter sido o prelúdio para uma nova batalha? No decorrer do diálogo entre os comandantes, os que compreendiam o idioma de Gandarki foram traduzindo o que se passava a outros (que não possuíam esse conhecimento), e assim todos iam ficando a par. “Pelos deuses, o filho de Hjalmar de Samso! Devia ter imaginado que só podia ser o exército dele...Que outro reino saberia algo sobre esta ilha e se interessaria por ela? Acho que eles devem estar conscientes da situação há bastante tempo, e se prepararam bem antes de vir.”, Hervor refletiu, ficando em silêncio por alguns segundos e demorando a apertar-lhe a mão, surpresa inclusive com a ótima pronúncia e a desenvoltura que o rei de Gamla demonstrara na linguagem formal de Gandarki, ao passo que ela se apresentara falando bem devagar, salientando seu nome e o nome de seu reino, e numa variante popular. “Tenho a mesma pergunta a fazer a vossa majestade.”, foi o que terminou replicando, com uma expressão fria mas não

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distante, ao corresponder ao cumprimento com os dedos gelados. “Perguntei antes, mas já que estou diante de uma dama, e que me prestou um grande auxílio nesta última batalha, vou ser o primeiro a responder e a esclarecer meus motivos. Em primeiro lugar, parece-me que estamos ambos a par que a ilha se tornou um antro de demônios; e como rei de Gamla, país ao qual Samso pertenceu no passado, seu último barão tendo sido meu avô Dietmar, me vi na obrigação de libertá-la.” “Apenas isso?” “Calma, majestade. Claro que não se trata apenas disso. Deve ter me escutado que este era apenas o primeiro ponto. Mas compreendo que esteja ansiosa para saber a verdade. Pois além de querer libertar Samso, tenho consciência que se não fizermos nada para abater os demônios que aqui se estabeleceram, não só Gamla como todos os reinos de Midgard ficarão sob uma séria ameaça.” “Vossa majestade se preocupa com outros reinos?”, encarou-o com ceticismo. “Busco a paz para Midgard, que todos os reinos se respeitem e possam conviver e crescer juntos, cada um respeitando a autonomia do outro. Simplesmente não haverá convivência se tudo for destruído pelos demônios.” “Compreendo.” “Tenho consciência das desavenças que nossas nações tiveram no passado, e acredito que vossa majestade também. Mas creio que seja possível o passado permanecer no passado, e ouvi dizer que vossa majestade é bastante diferente de seu pai.” “Por acaso plantou espiões em meu reino para me investigar?” “Não, majestade. Mas foi o que ouvi de viajantes.” “Se tiver espiões em Gandarki, não tenho porque condená-lo

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por isso. A desconfiança e a prevenção fazem parte da política. Confesso que tenho homens infiltrados em seu reino. Isso é perfeitamente natural, desde que não se ultrapassem certos limites.” “Que tipo de limites?” “Nunca mandaria assassinar vossa majestade pelas costas, por exemplo. Preferiria fazer isso de frente...”, houve agitação no exército de Gamla pouco após estas palavras. “Mas por enquanto não tenho motivos para isso. Foi apenas uma declaração sobre algo hipotético. Abomino traição e covardia.”, complementou, e um dos comandantes das forças de Heidrek ordenou silêncio aos soldados, que foram se calando. “Nisso vossa majestade puxou ao seu pai. Sei que Argantyr não quis enfrentar o meu pai quando ele estava exausto depois de lutar contra Hjovard, seu tio. Preferiu aguardar anos para encará-lo em uma luta em que ambos estivessem em boas condições.” “Meu pai era um homem honrado. Mas mesmo eu preciso admitir que ele cometeu alguns erros. Estou aqui para corrigir esses erros.” “Por acaso pretende recuperar a espada Tirfing, que foi de seu pai?” “Vossa majestade está a par da situação da Tirfing?”, e depois dessa pergunta houve um silêncio apreensivo, mas após olhar na direção de Sigrun e discernir nos olhos da valquíria um brilho de incentivo e aprovação, recebendo uma mensagem telepática intuitiva, sem necessidade de palavras, Heidrek respondeu: “Sei que a Tirfing não foi destruída e nem esquecida, que caiu nas mãos do maior dos demônios desta ilha. Estou aqui também para detê-lo e destruir a Tirfing.” “Entendo agora por que me perguntou se quero recuperar a Tirfing. Desconheço como ficou a par da verdade, não vou lhe

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fazer perguntas sobre isso porque também não quero falar como vim a saber o que sei, mas se eu tivesse vindo para recuperar a espada que foi do meu pai, de fato nos tornaríamos inimigos após vencer o maldito demônio.- E deixou de lado qualquer tom formal.- Você iria querer destruir a espada, e eu me apoderar dela...Nossa aliança seria marcada por muitas desconfianças, talvez sequer poderíamos nos aliar! Mas vou tranquilizá-lo: também quero destruir a Tirfing, uma espada amaldiçoada que terminou arruinando a vida do meu pai, que fez com que ele se envolvesse com o pior da magia, com feiticeiros das trevas, e transformasse esta ilha em parte do inferno. Vim aqui para limpar a memória dele e o nome da minha família, para quem sabe minimizar os efeitos dos delitos que ele cometeu e dar algum alívio à sua alma. Ele não era um homem covarde e desonrado; foi um homem que se deixou levar por tentações grandes demais, por idealismos que fizeram com que perdesse o senso da realidade e de sua condição humana. Vou abater todos os demônios que levaram Argantyr à perdição! Um por um! Não vou perdoar nenhum deles! Espero que compreenda o que vou dizer, mas o meu pai como guerreiro não devia nada ao seu.” “Isso é um ultraje!”, gritou de repente um dos soldados de Heidrek; Konr riu da situação, aquela reação indignada lhe soando e parecendo cômica mesmo sem conhecer o idioma de Gamla; Jarl lhe pediu para que se contivesse, mas o irmão mais extrovertido não obedeceu o outro. Houve um pequeno tumulto e Heidrek exigiu silêncio. Emendou a seguir: “Seja como for, somos humanos e somos fiéis aos deuses. Lutaremos juntos para livrar Midgard do mal. E espero que esta luta sirva para de alguma maneira unir nossos povos. Como já disse, tivemos desavenças outrora, Gamla e Gandarki guerrearam um contra o outro, nossos pais

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morreram lutando um contra o outro, criou-se uma rivalidade entre os reinos; mas o passado passou, nós não somos nossos pais, o contexto é outro, e poderemos construir um futuro distinto, em que haja paz. Tenho inclusive uma proposta a lhe fazer sobre Samso.” “Pode fazê-la.” “Depois que a libertarmos, sugiro que seja um território compartilhado entre nossos reinos, que simbolize uma nova condição entre as nações, uma nova realidade.” “Essa é uma proposta bastante ousada. Nunca tinha ouvido nada parecido.”, de fato Hervor fora pega de surpresa nisso; Sigrun esboçou um sorriso com uma ponta de bom orgulho: treinara bem o filho de Hjalmar. “Acredito que seja com propostas como essa que poderemos construir um futuro melhor, se não de paz absoluta ao menos de poucas guerras. E os espíritos dos nossos pais, independentemente do que cada um fez, dos erros e acertos que tiveram, poderão ficar em paz.” “Heidrek de Upsala...Ele é diferente do que eu esperava. E posso sentir que não está mentindo ou fingindo em nada! O pai dele morreu lutando contra o meu, mas não nutre nenhum ódio pelo meu pai e nem pretende se vingar me usando de alguma forma. Posso ter renunciado à conquista de Gamla, mas assim que soube a identidade dele me passou pela cabeça que devia acabar com ele, que depois de destruir a Tirfing deveria enfrentá-lo e matá-lo, vingando de vez o meu pai e os meus tios. Mas vendo o jeito como ele fala, a postura dele, parece que a minha sede de vingança e o meu fogo por um duelo estão começando a se esvair...E talvez eu possa aceitar essa proposta. Mas não, de qualquer forma preciso pensar e estudá-lo, não quero ser enganada de forma nenhuma! Ele também é um mago, sinto isso.”, refletiu a rainha de Gandarki, respondendo

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ao rei de Gamla: “Confesso que a sua proposta me surpreende. E lhe digo que preciso refletir a respeito. Acredito que ainda é cedo para estabelecermos uma aliança mais profunda e apagarmos o passado, mas o que lhe garanto é que ao menos para lutarmos contra o demônio que está com a Tirfing e seus lacaios nós estaremos juntos. Gandarki e Gamla lutarão lado a lado por Midgard. E nós venceremos esta guerra. Depois que ela terminar, pensaremos e conversaremos a respeito dos detalhes da vitória.” “Que assim seja feito, rainha de Gandarki.” “Muito obrigado, você parece ser mesmo um cavaleiro honrado e gentil. Acamparemos junto com vocês.”, não houve uma nova aproximação; Hervor deu as costas a Heidrek e voltou para perto de seus soldados. Contudo, um grande passo fora dado; um enorme passo: Sigrun sabia perfeitamente disso. As névoas se adensaram ao anoitecer. Os dois exércitos avançariam apenas o suficiente para se afastarem dos cadáveres e dos restos de cadáveres, montando suas tendas para beber, comer e repousar, os homens de Gamla ainda sem se aproximarem dos de Gandarki. A maior parte dos soldados de Heidrek acreditava que a aliança seria apenas momentânea, voltada ao enfrentamento das criaturas de Nifelheim como inimigo comum; depois, Gandarki e Gamla voltariam a ser inimigos. Nisso, a guerra hipotética se separava em duas versões: em uma, Hervor seria dissimulada, com um objetivo oculto semelhante ao de Argantyr, só se opondo aos demônios até conseguir a Tirfing, após isso procurando submetê-los a fim de usá-los contra Gamla; de acordo com a outra visão, Hervor seria uma guerreira honrada e sincera, sem qualquer interesse em magia negra e nos seres do inferno, não havendo como compará-la ao

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pai, procurando conquistar Gamla após a vitória sobre os demônios e a destruição da espada amaldiçoada pelo orgulho de seu reino. De todo modo, os dois grupos viam nos olhos da rainha de Gandarki um ressentimento, uma agressividade e uma sede de luta contra Gamla que não seria aplacada tão cedo, ao passo que uma minoria interpretava seus olhares e sua postura como consequências de uma mera desconfiança, em razão dos problemas ocorridos entre as duas nações no passado. Segundo a pequena facção mais otimista, Hervor terminaria adquirindo confiança em Heidrek e os dois selariam a paz e a amizade entre os reinos, sepultando de vez a violência de Argantyr, talvez até concretizando o projeto de compartilhamento da ilha de Samso. Logo na primeira noite da aliança, Sigrun desapareceu de sua tenda e reapareceu na de Heidrek, que já a estava aguardando após terem trocado breves mensagens telepáticas, sob uma tímida luz de vela; os guardas do lado de fora não notaram nenhum movimento suspeito e nem qualquer voz estranha, afinal a conversa se deu entre as mentes. A valquíria podia com facilidade se comunicar durante um longo tempo a considerável distância sem desgaste mental, mas o mesmo não se poderia dizer do rei de Gamla, para o qual, como humano, o esforço psíquico necessário era muito maior, ainda mais depois de batalhas exaustivas como a que recém-enfrentara. Próximos um do outro, ao menos não precisaria ficar visualizando o rosto de Sigrun e procurando sentir sua energia constantemente. “Hervor é uma maga de primeira linha, não é? Por acaso você a treinou também?” “Apenas para a primeira pergunta a resposta é sim.”, respondeu a valquíria. “Não tive como treiná-la, afinal enquanto ela crescia eu estava com você e, embora venha de Asgard, não posso estar em dois lugares ao mesmo tempo. Para

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ela, sou apenas uma maga-guerreira misteriosa, na qual não notou más intenções e muito menos interesse nas forças das trevas, com sérios motivos não revelados para se preocupar com os demônios e talvez detestá-los.” “Mas você na realidade não detesta nem mesmo as forças de Nifelheim...” “Em meu coração não há espaço para conflitos emocionais, para ódio ou amor. Limito-me a seguir as ordens de meu senhor Odin, a atuar no cumprimento de minha missão.” “Mas durante todo esse tempo de trabalho em Midgard, nunca chegou a desenvolver alguma simpatia por nós humanos?” “Simpatizar com os humanos poderia me levar a antipatizar com outras criaturas, e nisso surgiriam conflitos emocionais. Não foi para me questionar e debater sobre as coisas que fui criada.” “O que você acha de mim?” “Entendo que a curiosidade seja parte essencial da alma humana, que esteja para esta como os ossos estão para o corpo, pois se vocês não fossem curiosos, não iriam a lugar algum, permaneceriam absolutamente estáticos, acomodados; mas compreenda que existem seres que trabalham, que lutam, sem precisarem ser instigados por emoções ou pela curiosidade. Os animais são movidos pelos instintos; os humanos pelas emoções, pelos instintos e pela curiosidade; eu pelo meu dever, e isso me satisfaz.” “E quanto às outras valquírias?” “Cada valquíria foi criada de um modo. Por isso não posso falar por todas as minhas irmãs. Mas posso lhe garantir que são todas diferentes dos humanos.” “Confesso que você me intriga.” “E você, vou satisfazer um pouco da sua curiosidade, saiba que o considero um êxito em minha missão.”

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“Isso não seria alguma forma de empatia, de simpatia?” “Na minha visão, não. Mas interprete como quiser. Os humanos adoram interpretar, e criar símbolos sobre símbolos, depois se perguntando a respeito destes. Eu prefiro agir.” “Obrigado por tudo, Sigrun.”, conversaram só mais um pouco e a valquíria abriu um sorriso tênue antes de se fazer envolver por uma névoa azul e se transportar novamente à sua tenda. Seguiram-se não poucos dias e não poucas noites de luta, atacados com frequência depois que montavam acampamento para descansar, uma batalha após a outra, sem trégua; e no curso da guerra, iam sobrando cada vez menos sobreviventes, o que acabava por de alguma forma forçar a união dos que restavam. Os soldados de Gamla e Gandarki foram gradativamente se aproximando, assim como Beowulf e consequentemente Hersir se aproximaram dos gêmeos, o primeiro mais de Konr, o segundo mais de Jarl, aos poucos as barreiras linguísticas sendo superadas. Hervor e Heidrek, por sua vez, ambos jovens líderes admiráveis, começaram a perceber que tinham mais em comum do que imaginavam; em mais de uma ocasião, um protegeu as costas do outro enquanto lutavam. Sigrun chegou a observá-los enquanto enfrentavam um grupo de criaturas das trevas de corpos negros luzidios maciços e asas igualmente escuras mas opacas, suas cabeças lembrando crânios de corvos, assim como seus pés pareciam patas de pássaros; estes seres haviam massacrado um grande contingente de soldados, manuseando diferentes tipos de armas carregadas com magia elemental, como maças que lançavam espinhos de gelo, arcos que disparavam flechas de fogo e espadas que liberavam ventos paralelos cortantes, porém foram derrotados rapidamente pelo rei de Gamla e pela rainha de Gandarki, que lutando juntos, as costas dela como que

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encaixadas às dele, não precisavam olhar para trás e se preocupar com ataques traiçoeiros. Em outro confronto, enfrentaram em uma área arenosa monstros que se assemelhavam a gigantescos vermes, que ao emergirem das areias, depois de ondularem suavemente sob estas, puxavam com um incrível poder de sucção homens para dentro de suas bocas, onde eram triturados; depois, desapareciam debaixo da areia, onde mesmo para os magos parecia impossível encontrá-los, sendo bem mais inteligentes e hábeis do que aparentavam, longe de se tratarem de meras bestas selvagens. Apenas Hersir, concentrando-se e projetando seu corpo astral, conseguiu penetrar embaixo do solo e localizá-los: nisso, Heidrek cravou sua espada no chão, direcionando seu ataque para onde o espírito do xamã se achava, após este lhe dar um sinal por telepatia e a seguir retornar ao seu corpo físico, criando uma corrente de fogo que desceu, se expandiu, se transformou em um pilar e os atingiu, forçando-os a emergir novamente. Beowulf, Jarl e Konr cortaram alguns em pedaços e depois foram surgindo zumbis e soldados-esqueletos, ao que parecia evocados pela auras escuras que se formaram em volta dos “vermes”. Hervor disse para Heidrek se preocupar apenas em avançar junto com seus homens, e assim foi, enquanto ela e os seus soldados se encarregaram de cuidar da retaguarda. Dessa forma venceram mais uma difícil batalha. Quanto à batalha definitiva que deveria ser vencida, e que se fracassada colocaria toda a guerra a perder, descobriram, após visitarem as ruínas do que fora o castelo do barão Dietmar, perto das quais acamparam por sete dias, que o demônio que possuía a Tirfing se escondia nos subterrâneos da ilha, acessível por meio de um intricado labirinto de amplas grutas

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que existia na região. Após muitas tentativas em vão de todos os magos que lutavam pelos dois reinos para encontrar o covil do demônio, efetuadas ao longo de toda a campanha, ali Hersir obtivera o primeiro e definitivo êxito, talvez a proximidade das cavernas contribuindo para facilitar sua percepção; projetara-se com a aparência de uma águia e, após sobrevoar a área, resolvera entrar em uma das grutas. Passara à forma de uma serpente, fora descendo rastejando com extrema discrição e rapidez e ficara por alguns minutos na obscuridade, repentinamente catapultado de volta ao corpo físico depois de sentir uma energia incomparável, uma força maligna incomensurável que nunca presenciara antes. Retornara à sua carne tremendo e suando, terrivelmente quente e vermelho; Beowulf, com o qual dividia a tenda, ia sair para requisitar socorro, acreditando que o amigo estava passando mal porque adquirira alguma doença súbita, mas a febre se esvaíra antes do esperado e ao recuperar uma relativa estabilidade, voltando a falar e a se mover, o mago segurara seu companheiro de todas as viagens e lhe pedira as presenças adicionais apenas de Heidrek e de Hervor. Nada de algum dos curandeiros do acampamento. “Você tem certeza? Tem certeza que está bem? Mesmo sendo um seidmadr, não deixa de ser um ser humano e pode ficar doente. Não quer mesmo que eu chame outro bruxo?” “Não, Beowulf, não! Definitivamente não!” “Você está muito estranho, e parece nervoso. O que foi afinal?” “Consegui encontrá-lo...”, o guerreiro ia fazer mais uma pergunta, mas antes disso sentira um calafrio e um resquício da gigantesca sombra na aura do mago, atingido por uma repentina tontura e quase caindo para trás. “Pelos deuses!”, exclamou a seguir, gradativamente

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começando a compreender do que se tratava. “Agora chame os dois, por favor.”, e depois que Hervor e Heidrek vieram, revelara-lhes que enfim encontrara o Inimigo, que só podia ser Ele... Mais tarde, o rei de Gamla se reunira com Sigrun, pedindo-lhe uma confirmação. Não pretendia entrar nas grutas e arriscar as vidas de todos sem absoluta certeza. E se não passasse de um grande ardil do demônio, atraindo-os para uma armadilha letal? A valquíria se concentrara de pé na frente do jovem soberano e pouco depois emitira um gemido agudo e quase despencara para trás; Heidrek a segurara em seus braços para impedir sua queda. “Hersir está correto. É realmente Ele.”, Sigrun confirmara ao reabrir os olhos. “Está nos esperando, apegado às profundezas, cheio de arrogância.”

Nos dias em que ficaram por perto das ruínas do castelo do barão, não sofreram ataques. Uma vez descoberto o esconderijo do Adversário, deduziram que isso se devia ao fato dele estar aguardando-os com o máximo de suas forças nas profundezas cavernosas. Procuraram nesse curto período descansar e acumular energias. Heidrek foi sozinho, numa manhã, visitar as ruínas; contudo, a um certo ponto percebeu que estava sendo espreitado. Esquivou-se com destreza dos ataques que vieram em sua direção, esferas de fogo e eletricidade, a seguir defendendo os golpes de espada, demonstrando sua sensibilidade espiritual e seus reflexos apurados. Sorriu diante de sua oponente, que fez o mesmo na sequência, ao suspenderam o duelo: era Hervor. “Você não acha que é um ato temerário sair sozinho, no meio de uma guerra contra demônios e feiticeiros das trevas, para se meter em ruínas abandonadas?”

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“Talvez. Mas estava precisando ficar um pouco por aqui, sem mais ninguém, para tentar encontrar algum rastro espiritual do meu avô e do meu pai, que nunca cheguei a conhecer. Sei que esse ar que estou respirando não é o mesmo que eles respiraram, mas pelo menos parece um ar livre de qualquer cheiro de demônio.” “Também nunca vi o meu pai. Mas pelo menos você estava bem alerta...” “Apesar que logo percebi que não era um inimigo. A sua energia não me enganou. Está longe de ser hostil.” “Pelo visto, deve estar pensando que sou uma moça arteira.” “Estou. Ainda mais porque você atrapalhou o meu momento com os meus antepassados...” “Não pense que vou me desculpar por isso.” “Não vou pensar mesmo. Até porque seria completamente inútil.”, ele lhe deu as costas, e ela o seguiu; logo voltaram a conversar, e andaram um pouco juntos, até se sentarem em um ponto mais alto, onde ficaram em silêncio. Enquanto seus cabelos recebiam a brisa, Hervor olhou para Heidrek, que não a olhou em retorno, mesmo percebendo o olhar, e depois voltou a aparentemente fitar a paisagem adiante, quando na verdade seus olhos estavam direcionados para uma paisagem interna. “No que está pensando?”, o rei de Gamla tornou a falar, ainda sem encará-la. “Em muitas coisas.” “Que tipo de coisas?” “Por que o que eu penso ou deixo de pensar, as minhas preocupações e as preocupações com o meu reino, interessariam a você?” “Por acaso está com medo de morrer, Hervor?” “Isso não é algo que posso negar.” “Tente confiar em si mesma com energia, com determinação.

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Se fizer isso, e eu também confiar com firmeza em mim, conseguiremos vencer.” “E você confia tanto assim em si próprio?” “Nós vamos vencer.” “Falar é fácil!” “Tento minimizar as preocupações e me centrar nas ocupações. Sofrer por antecipação nos enfraquece.” “Mas e se vencermos, o que será realmente depois? O que haverá?” “Você está se preocupando, e com isso se desgastando. Já não bastam as preocupações imediatas com relação ao demônio? Por acaso já está preocupada comigo, em ter que me enfrentar?”, ela já estava olhando novamente para ele; e enfim Heidrek a encarou. “Você é bem esperto.” “Você também não é nenhuma tola.” “Tanto não sou que não pretendo mais me vingar de você.” “Se vingar de mim? E por que você pretenderia se vingar de mim? Nunca lhe fiz nada.” “Sabe do que estou falando. Na verdade, estaria vingando meu pai.” “Meu pai também foi morto pelo seu. Os dois morreram juntos. Nem por isso pensei alguma vez em me vingar fazendo algum mal à filha de Argantyr ou matando-a. E isso mesmo com toda a destruição que ele causou, e cujas consequências podemos ver de perto nesta ilha,” “As pessoas são diferentes. E não quero falar sobre o meu pai agora.” “Entendo, Hervor. E não a condeno por nada. Mas que bom que percebeu que não faria mais o menor sentido declararmos guerra um contra o outro. Basta de derramamentos de sangue de seres humanos contra outros seres humanos. Gamla e

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Gandarki irão por fim se dar as mãos.” “Não só Gamla e Gandarki.”, colocou sua mão sobre a dele; entrelaçaram seus dedos, fitando-se fixamente. “Será que estou sendo fraca?”, Hervor se questionou. “Será que está me manipulando? Me seduzindo para depois me apunhalar pelas costas? Não, parece estar sendo sincera...”, refletiu Heidrek. Levantaram-se com as mãos dadas, sem conseguirem desgrudar os olhos; mas em seguida separaram as mãos e se afastaram discretamente. “Acho que precisamos ir com calma.”, ela disse. “Você está se preocupando novamente.” “Como quer que eu haja? Não é nada fácil para mim...” “Tudo pode ser fácil quando realmente desejamos.” “Não é tão simples, Heidrek...” “Unificar as casas reais de Gamla e Gandarki seria o auge do processo de pacificação entre as duas nações.” “Já disse que acho melhor irmos com calma. Você tem muitos sonhos, compreendo que queira verdadeiramente um mundo de paz, a sua nobreza é real no sentido mais profundo do termo, os seus ideais são puros, mas entenda que a história não pode ser simplesmente apagada, o passado deixa marcas, e Gamla e Gandarki não são o mundo.” “Parece que nos complementamos muito bem. Eu lhe dou sonhos, você me desperta; você me dá terra, eu lhe dou o ar para que possa voar.”, e abruptamente Hervor o beijou; um longo beijo, logo se somando a este carícias e toques mútuos de inefável intensidade. A realidade estaria se tornando o brilhante sonho de Heidrek?

A luta nas cavernas foi uma empreitada das mais sangrentas, mais até do que guerreiros experientes como Beowulf, Jarl e

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Konr haviam esperado, a primeira meia hora adentro de um silêncio e um vazio intimidantes nas trevas, a pouca claridade à disposição fornecida por uma pequena fada de luz, inserida em um globo flutuante, que fora evocada por Hersir. Repentinamente viera o primeiro ataque dos monstros, homens-morcego excessivamente peludos e com garras muito maiores e mais fortes do que as daqueles que tinham conhecido até então, com capacidade para rasgar armaduras facilmente; em seguida, foi a vez de enfrentar, em uma área mais ampla, gigantes de pedra; e à medida que desciam as criaturas iam se tornando mais resistentes e violentas, necessárias paradas entre cada batalha para tratar os feridos, diversos guerreiros com os braços ensanguentados até os ombros, o número de mortos aumentando a cada combate. Haviam trazido uma boa quantidade de água e mantimentos, pois a extensão do labirinto de grutas era considerável e não tinham ideia de quando chegariam ao Demônio, guiados pela sensibilidade dos magos, em especial Hersir. Em uma das pausas, a maioria estava em silêncio, sentada, tomando água e dividindo pedaços de pão, quando um se levantou e foi andando em direção às sombras pouco adiante. Apenas Sigrun, entre quem observou o homem avançar, notou uma mosca indo à sua frente e abruptamente sumindo nas trevas. “Ei, Digraldi! Aonde você está indo? Não seja idiota, pode haver um buraco aí, ou algum monstro escondido!”, Beowulf procurou deter o homem, que era alto e muito robusto, de cabelos loiros curtos, o rosto bochechudo, que se tornara um de seus melhores companheiros entre os soldados de Gamla; mas diante dos dois não apareceu nem um monstro e nem um precipício; alguém, que parecia um ser humano, vinha gemendo da escuridão.

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“Por favor, me ajudem...” “Eu ouvi alguns passos, sempre tive uma boa audição, e também alguns lamentos. Não aguento ficar sentado quando escuto alguma coisa.”, explicou-se Digraldi. “Também tinha ouvido algo, mas achei que fosse só impressão minha.”, comentou outro soldado; e quem apareceu foi uma mulher jovem e bonita, de cabelos negros quase que indistinguíveis das sombras, assim como seus olhos, porém pálida, trajada em trapos. Repetia: “Por favor, me ajudem...” “Quem é você?”, Heidrek se levantara e veio em direção da moça, tomando sua iniciativa como líder. Hervor o seguiu. “Eu não sei...Não sei como vim parar aqui. Não sei onde estou.”, pôde notar a seguir que a moça apresentava em suas pernas, pescoço e braços feridas e hematomas. “Deve ser uma vítima dos demônios.”, disse Jarl, também se aproximando. “Provavelmente a sequestraram em algum lugar e a arrastaram até aqui, onde cometeram as piores atrocidades com ela.” “Mas não há mais seres humanos em Samso.”, observou Hervor. “Algum demônio voador, como desses homens-morcego, pode ter ido até uma ilha próxima e raptado essa jovem. Não é impossível.” “Realmente não é, apesar que essas criaturas de Samso não vinham parecendo dispostas a se expor em outras localidades.”, inesperado foi quando a jovem fechou os olhos e um sorriso cínico se desenhou em seu rosto; então começou a rir para dentro, e os que possuíam uma sensibilidade maior sentiram a energia maligna aumentar e saltaram para os lados ou se esquivaram, tentáculos afiados nascendo a partir das feridas da desconhecida, na verdade um demônio, e perfurando e matando instantaneamente Digraldi e outros soldados próximos. A

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seguir soltou sua estrondosa gargalhada e ovos úmidos esverdeados e molengos passaram a cair entre suas pernas e a logo se abrir, nascendo e crescendo com incrível rapidez demônios altos de órgãos internos expostos, braços longos dotados de enormes garras, que se prolongavam por muitos metros além do que se poderia imaginar, caudas musculosas com facilidade para estrangular e cabeças com cristas esburacadas na nuca que emitiam sons horrivelmente estridentes. Teve início um massacre, somente os guerreiros e magos de alto nível conseguindo derrotar aquelas criaturas, cujos órgãos expostos eram falsos pontos fracos, regenerando-se com extrema velocidade. Pereciam apenas quando suas cabeças eram seriamente atingidas, perfuradas, congeladas, cortadas ou explodidas. Hersir e Konr, mais afastados, atacaram com fogo, o irmão de Jarl usando suas bombas invisíveis, causando danos severos às aberrações que tinham nascido dos ovos, porém um campo de força poderoso parecia proteger a mulher-demônio, que não era atingida de nenhuma forma e que, subitamente, para a surpresa de todos, começou a se transformar em um homem; com traços muito semelhantes, só que as feridas e hematomas foram desaparecendo, seu corpo se tornou mais vigoroso e cresceu em altura. “Estava cansado de esperar por vocês. Pelo estrago que causaram, levaremos algum tempo para nos recuperarmos e concretizarmos nossos planos. Mas não pensem que puderam fazer mais do que adiar a catástrofe para todos os seres humanos.”, o tom cínico foi rapidamente se transformando num tom de ódio; o sorriso de ironia se esvaiu junto com a aparência feminina, e tanto Sigrun como Heidrek, Hersir e Hervor conseguiram perceber rapidamente de quem se tratava: “É ele! É o Demônio!”, foi a rainha de Gandarki que exclamou,

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tornando-se enfim visível na mão direita do Inimigo a espada Tirfing, que Sigrun de imediato reconheceu. Refletindo que seria a única capaz de romper o campo de proteção que envolvia o adversário, lançou-se com toda sua energia, materializando uma lança negro-dourada; contudo, ao tentar fazer com que esta transpassasse a barreira, primeiro faíscas e na sequência raios de um azul incandescente pulularam para os lados, atingindo os soldados de Gamla e Gandarki, para o desespero da valquíria, que se viu obrigada a recuar. O demônio permaneceu com uma expressão confiante, de raiva contida, e atacou com novos tentáculos que saíram de sua carne; estes podiam ser cortados, porém surgiam sempre novos, numa velocidade alucinante, que iria deixar até Sigrun, que materializou além da lança uma espada, exausta. Heidrek interveio para ajudá-la e chamou Beowulf, a Hrunting e a Naglering trabalhando juntas. Konr ficou excitado com o calor da batalha e o poder e as habilidades do Inimigo, que fora capaz de lhes pregar uma peça, ocultando toda sua energia maligna na forma feminina para depois fazê-la explodir; sua defesa também parecia impenetrável, e a Tirfing, assim que a viu pela primeira vez, lhe despertou um fascínio imediato. No avançar da luta, Hersir, Hervor, Konr e Jarl se focaram nos demônios auxiliares, enquanto Beowulf, Heidrek e Sigrun se concentravam no principal, que sem se mover um centímetro contra-atacava com relâmpagos negros que fulminavam no ato quem era atingido e ainda traziam as almas de suas vítimas para o centro de seu peito, como a valquíria podia ver. Os inimigos paridos pelos ovos terminaram sendo vencidos, mas a essa altura apenas os sete heróis continuavam vivos; o xamã, os gêmeos e a rainha de Gandarki enfim puderam contudo se voltar para o Demônio. Uma tragédia para os

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exércitos de Gamla e Gandarki, que não poderia de forma nenhuma terminar em derrota total; nisso Heidrek e Hervor procuraram fortalecer cada qual sua determinação, e também não queriam morrer porque sua união talvez fosse o exemplo fundamental para mudar o destino de seus reinos. Em um determinado momento, porém, esqueceram-se até de seus tronos; era o amor que nutriam um pelo outro o que mais importava: ele não podia cogitar sobreviver sem ela, e a recíproca era verdadeira; algo que surgira rapidamente, e entre sangue e armas, mas que se revelara tão intenso, não podia desaparecer também velozmente e entre sangue e armas, por mais intensa que fosse a luta contra o Demônio. Quando não conseguiam se esquivar, Heidrek recebia os raios em sua direção com a Naglering e Beowulf com Hrunting; escapavam assim da morte, enquanto Hervor, Jarl, Konr e Hersir precisavam ou se desviar ou criar barreiras mágicas com alguma força. Sigrun chegara a ser atingida por um dos relâmpagos, nisso seu elmo explodira, mas ao contrário dos guerreiros e magos humanos pudera se reerguer a seguir. “Ela não é uma mulher comum. O que será que ela é afinal?”, questionou-se a rainha de Gandarki, após testemunhar o que ocorrera. E foi Sigrun que telepaticamente pediu a todos para concentrarem suas energias em sua lança e em sua espada. Sentindo-se arrastados pela força da valquíria, ainda que sem saberem quem realmente era, a não ser Heidrek, que foi o primeiro a acatar sua ordem, seguiram o que ela dissera, Beowulf pedindo à mãe-terra toda a energia que esta poderia lhe dar, sua aura ascendendo com uma tremenda vermelhidão. Cruzando lança e espada e jogando-se contra o campo de força do adversário, desta vez conseguiu enfim transpassá-lo, o que fez o demônio pela primeira vez sair de sua posição, recuar

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e por fim saltar para trás para não ser atingido. “Já não bastou eu poupar o trabalho que vocês teriam percorrendo todo o labirinto...Ainda insistem em não querer uma morte rápida e com menos sofrimento? Pois que seja como quiserem! Irei lhes mostrar o verdadeiro terror.”, nisso todos se sentiram detidos por uma força maior, como se estivessem presos por correntes, inclusive a valquíria, e a caverna começou a tremer. “Será que ele vai fazer surgir outros monstros?”, questionou-se Hervor. “Essa minha aparência, e a anterior, são na verdade de almas que pude sugar para mim, que Hel, minha amada mãe, me deu de presente para que eu expandisse minha percepção e meus poderes. A cada espírito que devoro, absorvo também seus conhecimentos e suas habilidades. É uma pena que vocês não possam fazer isso...Nem mesmo você, recolhedora de almas, lacaia de Odin.”, voltou-se para Sigrun, e passou a assumir diferentes aparências, ao que parecia se divertindo com isso, principalmente as de diversos guerreiros e magos de Gamla que haviam acabado de morrer, e cujas almas puxara para seu peito, onde a valquíria conseguiu enxergar uma espécie de roda obscura, que girava sem parar, inúmeros rostos presos em seus raios. “Lacaia de Odin?? O que ele quer dizer com isso?”, indagou Hervor. “Heidrek, você pode dizer a verdade.”, Sigrun disse ao rei de Gamla. “Ahn, como assim?? O que vocês dois estão escondendo?” “Calma, Hervor. É que essa guerreira na verdade é a valquíria Sigrun. E ela me treinou desde que eu era uma criança...”, replicou o soberano de Gamla. Hervor se lembrou daquele nome e de seu encontro com os

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anões forjadores da Tirfing; Hersir pareceu o menos surpreso entre os seis. “Vou sugar a sua alma, valquíria...E então a extensão dos meus poderes se tornará inimaginavelmente maior. Vou me vingar do que você fez aos meus pais de sangue e fogo.”, o adversário voltou a falar, desfazendo-se de seus trapos; agora estava nu, possuía tanto a genitália masculina como a feminina, que estavam à mostra, e estabilizou-se na aparência de alguém que apenas Sigrun poderia reconhecer... “Eu tinha uma remota desconfiança, mas não queria acreditar que fosse você, que tivesse sobrevivido.”, replicou a valquíria, com aparente frieza. “Para não se culpar por ter falhado? Pois não só sobrevivi como minha amada mãe, a rainha de Nifelheim, que se tornou minha mãe porque você matou a mãe que me carregou no ventre, me deu a alma de meu pai para que eu pudesse conhecê-lo profundamente. No entanto, nunca pude lhe dar um abraço. Ele está dentro de mim, mas não está consciente, não posso conversar com ele...Enquanto que a alma da minha mãe de sangue e fogo, que era mais frágil, foi perdida e não pôde ser reencontrada de nenhum modo. Tudo por culpa sua.”, o adversário assumira a aparência de Wagner, o terrível sacerdote de Loki, e todos à sua volta ficaram com os corpos gelados. “Uma pena para você que acredito que a cerimônia de libertação estivesse já um pouco avançada e Loki tenha podido interceder, ainda que cruelmente aprisionado; uma fagulha Dele chegou até mim e me presenteou com esta magnífica habilidade de me apoderar das capacidades alheias, desde que absorva a alma. Estou certo que foi Loki que me concedeu este dom, pois ele é ainda mais poderoso do que Hel, sendo seu pai!” “Então quer dizer que estou diante de Sigrun...”, interveio

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Hervor, ignorando o demônio, voltando-se para a valquíria com um semblante de admiração. “Eu já estava começando a desconfiar que fosse mesmo uma deusa, não uma mulher. É uma grande honra lutar ao lado de quem derrotou Wagner e Phyria. E o que tenho a lhe dizer é que não me restam dúvidas que o que mais desejo no momento é dar um fim nesse monstro, nesse resquício daqueles feiticeiros malditos, que destruíram o meu pai, que o arrastaram definitivamente para o caminho errado, para o caminho das trevas. Jamais poderei perdoá-los, e por isso não vou poupar o filho da maldita união dos dois, que só pode ter sobrevivido por um ardil de Loki.”, encarou o Inimigo com intensa raiva. “A alma de Argantyr também está em meu poder, garota ingênua.”, o adversário assumiu a aparência de Argantyr. O frio se dissipou. “Ele está com a forma do seu pai agora.”, disse a valquíria. “Sim, é semelhante a alguns retratos que vi.”, replicou a rainha de Gandarki, sob um olhar preocupado de Heidrek. “Vou ter o prazer de sugar a sua alma assassinando-a com a espada que foi do seu pai e com a aparência do seu pai!”, bradou o adversário. “Não caia nas provocações dele, Hervor.”, Sigrun a advertiu ao sentir que a jovem estava ficando completamente desequilibrada emocionalmente. “Ele se tornou mesmo um demônio muito poderoso, alimentado pelo ódio, pela sede de vingança, pelo que Hel lhe inculcou, por essa capacidade de sugar almas que talvez lhe tenha sido realmente dada por Loki e incrementada pelo poder da Tirfing. Talvez eu tenha chegado tarde demais quando interrompi a cerimônia de Wagner e Phyria, e alguma centelha de Loki tenha se libertado e tocado o ventre de Phyria, protegendo o que estava dentro. Me equivoquei ao pensar que a criança impura, filha de um mago

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das trevas com um espírito da natureza degenerado, tivesse morrido junto com a mãe quando o corpo dela despencou com a Tirfing...Até leves suspeitas virem me açoitar quando soube desse demônio. Acho que cometi muitos erros, e Odin me permitiu descer para que eu pudesse compreendê-los, aprender e amadurecer. Se não tivesse me acomodado, poderia ter acabado com esse monstro quando ainda não passava de um feto, e já poderia ter destruído a Tirfing, ao invés de pensar que no buraco onde caíra ninguém iria encontrá-la. Se nós estamos aqui hoje sofrendo e ameaçados de morte, e se Midgard corre perigo, é na verdade tudo por minha culpa.”, e Heidrek viu uma sombra se abater sobre a cabisbaixa valquíria, enquanto o demônio abria um largo sorriso; agiu com sua voz antes que fosse tarde: “Não diga besteiras, Sigrun!”, e estas palavras deram um choque tanto em sua preceptora como em seu inimigo, paralisando a sombra. “Você pode ser uma deusa, uma filha de Odin, mas hoje me vejo no direito e no dever de lhe dar uma sonora bronca! Não diga esse tipo de coisa! Você não tem culpa pelo que aconteceu; claro que está aprendendo e amadurecendo, como todos nós, embora em outra medida por ser uma deusa, mas não pode se culpar de nenhuma forma! Odin é sábio, e não teria deixado as coisas acontecerem se não fosse pelo bem de Midgard. Por pior que a situação esteja, e apesar de tantas mortes, nossa vitória, tenho certeza, irá gerar mudanças em nosso mundo. Gamla e Gandarki enfim irão alcançar a paz! Eu e Hervor sequer teríamos nos conhecido, pelo menos não de perto, e provavelmente viríamos a ser inimigos, se não tivéssemos tido que lutar juntos. Nosso amor não teria surgido, não haveria uma nova esperança para nossos reinos; e Beowulf, Hersir, Jarl e Konr se tornaram amigos valiosos que conhecemos ao longo desta jornada: aprendemos muito entre nós. O que precisa acontecer, acontecerá, portanto

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não se lamente sobre o que poderia ter sido! Não devemos perder tempo com o passado. Vamos lutar para construir o futuro! Deixe os lamentos do passado com os demônios.”, e após toda sua fala, a valquíria reergueu a cabeça, aprumou a postura e lhe respondeu: “Obrigada, Heidrek. Estou muito orgulhosa de você. Talvez porque esteja começando a ficar mais parecida com os humanos...” “Belo discurso. Até não o ataquei enquanto falava porque senti curiosidade de ouvi-lo inteiro. Mas acham que isso poderá salvar suas vidas?”, indagou o inimigo, cuja aura ia agora se aquecendo e adquirindo uma feroz incandescência. “Você irá morrer sob a lâmina desta espada, assim como seu pai, filho de Hjalmar.”, e uma armadura negra, com diversos rostos em expressões de desespero espalhados por sua superfície, materializou-se para revestir seu corpo. “É preciso dar valor ao passado. Tanto que será a imagem do passado que irá dar um fim à sua vida e à da sua querida rainha.”, encarou Hervor. “Chega de falatório!”, percebendo que recuperara os movimentos, Konr moveu sua espada e inúmeros explosivos invisíveis foram lançados na direção do oponente; Jarl o acompanhou no contra-ataque, porém o demônio replicou: “Creem que podem me surpreender com um truque tão infantil? Posso ver perfeitamente o que vocês estão atirando na minha direção.”, e as bombas estouraram no ar, antes que conseguissem tocá-lo. “Desgraçado, por que não mostra a sua forma real? Pare de usar a aparência do meu pai!”, esbravejou Hervor. “Logo vou poder usar a sua, que é bem mais agradável aos olhos. Mas por enquanto me contento em usar a de um demônio humano...”, e empregando uma violenta telecinese a atirou contra uma parede, onde permaneceu, sentindo como se nas palmas de suas mãos tivessem sido fincados pregos

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ardentes. Heidrek e Beowulf precisaram dar seu máximo com suas espadas mágicas, e Hersir procurou lhes oferecer o apoio necessário, chamando os espíritos dos quatro elementos; os gêmeos e a valquíria também atacaram com suas armas. “Se ele pensa que vai me deter pela dor, está muito enganado!”, o esforço inicial da rainha de Gandarki para se soltar foi em vão; a pressa e a irritação de nada serviriam naquele momento. Percebendo isso, procurou portanto se tranquilizar, a despeito da luta feroz que os outros travavam, a Naglering e a Hrunting se chocando com a Tirfing, assim como as espadas dos gêmeos e a de Sigrun, que se alternava com sua lança, lâminas contra lâmina, o demônio incrivelmente ágil conseguindo dar conta de todos ao mesmo tempo. Evocou os elementais do ar, que aos poucos começaram a libertar suas mãos, nisso sentindo muita dor, mas procurando conter manifestações como gemidos e gritos para não chamar a atenção do inimigo. Ao conseguir se destacar da parede, aí sim pôde deixar explodir seu grito, recuperou sua espada caída no solo e no segundo seguinte foi catapultada adiante pelos espíritos aéreos, exatamente como lhes pedira por telepatia, pegando o adversário de surpresa, entrando na brecha que este abrira e cravando-lhe a lâmina em seu peito. Os dois despencaram juntos no ato. “Hervor conseguiu!”, Heidrek exclamou. No entanto, apesar da perfuração sofrida, o demônio ainda não estava morto, fixando seus olhos frios na rainha de Gandarki, que estava sobre ele e sentiu todo seu corpo gelar. Fitada pela face que fora de seu pai, caiu para o lado esquerdo. “Há alguma coisa errada! Ele ainda não está morto!”, exclamou Sigrun. “Hervor!”, o rei de Gamla veio em socorro de sua amada, que

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começou a tremer no chão, enquanto a valquíria, Beowulf, os gêmeos e os elementais de Hersir se lançavam sobre o demônio, que se reerguera, arrancando a espada da rainha de Gandarki e jogando-a longe. Agora parecia mais lento, atingido diversas vezes por seus oponentes. Sigrun conseguiu perfurar o flanco direito do monstro com sua lança; após dar um salto, Beowulf fincou-lhe a espada no crânio. Contudo, não logrou sua intenção de parti-lo em dois e, ao arrancá-la, o inimigo ainda não encontrara seu fim. “Estou ficando farto de vocês...”, houve uma explosão de violentas chamas negras; atingido em cheio, o herói de Gotland e Dansk, que estava de frente para o demônio, tentou resistir, mas nem mesmo a Hrunting foi suficiente para conter aquele ataque: assim, Beowulf teve seu corpo carbonizado. A valquíria conseguiu saltar a tempo, e não sofreu danos, Konr e Jarl tendo apenas seus elmos partidos e as ombreiras de suas armaduras desintegradas. Nos braços de Heidrek, Hervor parara de tremer e não estava mais respirando, ficando com os olhos vidrados; entrementes, o rei de Gamla tinha fé que ela sobreviveria e por isso protegeu-a quando labaredas vieram em sua direção, desviando-as ao mover a Naglering. Hersir que, chocado com a morte de Beowulf e vendo seus elementais fugirem apavorados, não se defendeu da forma adequada, atingido primeiro no rosto, urrando devido ao fogaréu que desceu em seguida até seu pescoço, seu peito e seu ventre; somente restou a parte inferior de seu corpo. “Isso não pode continuar! O órgão vital dele não deve estar no peito e nem na cabeça, mas precisamos encontrá-lo de qualquer maneira ou destruí-lo por inteiro!”, Sigrun cruzou sua espada e sua lança e ventos carregados de gelo vieram em socorro dos guerreiros sobreviventes, apagando gradativamente as chamas

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trevosas, ao passo que o demônio deixara para trás a aparência de Argantyr e enfim ao que parecia assumia sua verdadeira forma, beirando os quatro metros de altura, fazendo a caverna tremer ainda mais ao agitar suas asas, sua pele azul rutilante, em seus olhos dois rostos: Sigrun reconheceu um, era o de Wagner, que parecia adormecido, enquanto o outro tinha traços tanto do sacerdote de Loki como de sua consorte Phyria, apesar das veias saltadas lhe darem um semblante mais de criatura das trevas do que de ser humano, congelado em uma expressão de fúria. “O coração dela não está batendo. Ela também não está respirando! Já perdi homens demais, até Beowulf e Hersir, não posso perder Hervor também!”, Heidrek refletia inconformado, enquanto lágrimas começavam a escorrer por seu rosto. “Não adianta mais, majestade! O senhor já deve ter percebido como a vida do rosto dela se apagou. Ela se foi! Não adianta mais segurá-la!”, disse Jarl, ao lado do rei de Gamla, os dois permanecendo um pouco atrás enquanto Sigrun e Konr tornavam a atacar. Jarl estava tentando tecer algum plano e ao mesmo tempo reequilibrar Heidrek. “Não, Hervor ainda não está morta! Tenho fé que ela logo vai voltar a respirar, apesar do feitiço que esse monstro deve ter jogado nela!” “Compreendo perfeitamente como vossa majestade se sente! Agora não há tempo para explicar, mas posso lhe dizer que também já perdi a única mulher que amei em toda a minha vida e sei como isso é doloroso! Mas se morrermos todos aqui, será em vão. Não era isso o que sua majestade Hervor desejava.” “Eu não aceito...” “Fique calmo, meu senhor.” “Eu não aceito!”, e explodindo em fúria, desta vez Heidrek largou o corpo de sua amada para se lançar sobre o demônio,

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paralelas com a Naglering inúmeras lâminas de fogo, que provocaram cortes e queimaduras no inimigo e o forçaram a retroceder alguns passos. “´É assim que se faz!”, exclamou Konr. “Vocês não podem me vencer. Sou um ser completo para Midgard, acima de homens e mulheres, no nível da maioria dos deuses e dos maiores gigantes, abaixo apenas de Thor, Odin, Hel, Surt e Loki! Estou certo de que seja assim! Por isso, por mais que tentem, vocês só poderão me ferir, nunca atingir meu ponto vital, como você bem disse, prostituta de Odin!”, o demônio procurou mostrar segurança mesmo enquanto era perfurado pela lança de Sigrun, por lanças de gelo que a acompanhavam, e tinha seu braço esquerdo atingido pela espada de Konr e as feridas provocadas por Heidrek ainda ardiam. “Não importa que o seu ponto fraco esteja muito bem protegido e escondido, ou que você possa mudá-lo de lugar, talvez. Vou reduzir o seu corpo inteiro a cinzas!”, esbravejou o rei de Gamla. “Heidrek...”, e o jovem soberano se virou, reconhecendo a voz de Hervor. “Majestade, é uma armadilha!”, Jarl percebera o truque, mas não teve como impedir que um tentáculo afiado se aproveitasse da distração de Heidrek e lhe perfurasse o cérebro. A Naglering caiu segundos antes de seu dono. A alma de Hervor já fora absorvida pelo demônio, e este produzira uma alucinação auditiva que imitava a voz da rainha de Gandarki para enganar o rei apaixonado. Vendo seus companheiros perecerem um a um, Sigrun resolveu tomar uma decisão extrema, ainda mais após a morte de Heidrek, que lhe deixou um abalo que não queria admitir, mas que era impossível conter: usaria toda sua energia vital

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num derradeiro ataque. Não foi sequer preciso que pedisse para Konr se afastar, o mago-guerreiro se sentiu automaticamente repelido, e dezenas de lanças negro-douradas foram saindo da própria carne da valquíria para se cravarem no corpo do inimigo; e não só isso: depois que se fincaram nele, começaram a pegar fogo; e o demônio uivou de sofrimento enquanto era consumido pelas chamas vitais da valquíria, que por sua vez, após urrar quando tivera seu corpo perfurado por sua própria energia, até mesmo de seus olhos e de suas narinas saindo armas, seu belo rosto destruído, despencou para a frente sem vida. Jarl ficara boquiaberto; e estava apavorado com a perspectiva que o filho de Wagner e Phyria ainda pudesse sobreviver, enquanto em Konr o terror e a excitação se mesclavam. O demônio proferiu os piores insultos possíveis contra Odin e as valquírias, além de destilar seu ódio contra toda a humanidade, imobilizado por aquelas chamas místicas; no entanto, não resistiu por muito mais tempo e terminou sendo devorado, nada dele restando a não ser cinzas invisíveis ao olhar humano. Os guerreiros gêmeos seriam os únicos supérstites da segunda guerra de Samso?

“Irmão...”, foi a única palavra que Jarl conseguiu dizer naquele instante de vazio, entre cadáveres, cinzas e pedaços de cadáveres. Sentia-se paralisado, enquanto Konr ia andando na direção da espada Tirfing, que resistira ao fogo da vida da valquíria. “Mas que espada incrível. Achei que fosse virar pó ou pelo menos derreter. O demônio não existe mais, mas ela continua inteira, é impressionante. “Konr, não se deixe fascinar.” “Não consigo acreditar...”

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“Já que o rei Heidrek e a rainha Hervor estão mortos, cabe a nós concretizar esta missão e destruir a Tirfing.” “Nós não fizemos nenhuma promessa aos deuses. E eles não nos encarregaram de nada.” “Do que você está falando?” “Não éramos os heróis previstos. Não acha isso pouco caso?” “Não diga besteiras.” “Não é nenhuma besteira. Os deuses desde o início não se importavam conosco. Por que temos que nos importar com eles? Mas há um lado positivo nisso: não somos meros peões. Eu pelo menos não sou...” “Se empunhar a Tirfing, me verei obrigado a arrancá-la de você à força.” “Só isso?” “Irmão, compreenda os seus limites, por favor.” Konr lançou um olhar de cobiça para a espada amaldiçoada; não conseguiu mais retirá-lo, enquanto respondia a Jarl: “Hervor e Heidrek morreram sem deixar herdeiros. Podemos dividir os dois reinos entre nós. Posso ficar com Gandarki, e você com Gamla. Ou o contrário. O que acha?” “Acho que você está começando a delirar. Não diga esse tipo de coisa. Não nascemos para ser reis.” “Isso é o que você pensa! Eu penso diferente!”, e Konr agarrou a Tirfing; Jarl se esforçou para não entrar em choque, e ao sentir que seria atacado viu a Naglering à disposição e a tomou para si, defendendo-se do primeiro fendente desferido por seu próprio irmão. “Konr, por favor, recupere sua razão!” “Você é um fraco, que só sabe choramingar por uma defunta!”, o segundo golpe foi muito mais forte do que o primeiro, quase levando seu irmão à queda. “Preciso ficar calmo, não posso me deixar irritar pelas

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palavras dele, que está sendo possuído. Tenho que ter em mente que não é o meu irmão que está dizendo essas coisas. E mesmo que for, não importa! Preciso arrumar um modo de retirar a Tirfing de suas mãos!”, refletiu Jarl; materializava-se o duelo de seu pior pesadelo, mais uma vez a Naglering confrontando a Tirfing, só que era a primeira ocasião em que irmãos as empunhavam um contra o outro; uma dor avassaladora invadiu a alma de Jarl, enquanto Konr era tomado de excitação violenta. “Konr, acalme-se!” “Não preciso me acalmar, a menos que você aceite dividir Midgard comigo. Se não quiser dividir, com certeza não vai me atrapalhar, porque vou despachar você pra perto da sua querida Heloise! Não é isso o que você quer??” “Nós somos irmãos, é absurdo lutarmos um contra o outro!” “Absurdo é você não querer dividir o mundo comigo, preferir um cadáver a uma pele fresquinha, ou um fantasma a um colinho macio de princesa...”, era inútil tentar contê-lo com palavras: as pupilas de Konr haviam assumido uma vermelhidão sangrenta, as veias de seus olhos e de seu rosto saltavam, e Jarl deduziu que a espada amaldiçoada, com a carga acumulada de todos os seus usuários, se sobrepusera totalmente à mente e ao espírito de seu irmão. Logo recobrou a Hrunting, e passou a lutar com as duas esplêndidas espadas mágicas: pediu que as almas de Heidrek e Beowulf o ajudassem, já que não estava habituado a nenhuma das duas, e que se possível lhe permitissem encontrar um meio de vencer Konr sem matá-lo. “Você está com uma espada em cada mão. Será que assim vai conseguir me vencer?” “Se você morrer nesta luta, para mim será de qualquer forma uma derrota.”

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“E se você perder vai ser uma vergonha, só estará provada de vez a sua fraqueza.”, uma aura branca e dourada envolveu Jarl, enquanto outra, sombria, tomava conta de Konr; chamas de luz e trevas se confrontaram; e o tremor na gruta, que cessara desde a morte do demônio, não só voltou a se manifestar como sua intensidade foi crescendo. Na verdade, não se limitava mais àquele ambiente, nem ao conjunto de cavernas, tomando conta de toda a ilha; erupções de magma e água fervente foram se espalhando. Quando a Tirfing foi enfim destruída, sua lâmina se partindo ao receber um golpe simultâneo da Naglering e da Hrunting, metade de Samso foi pelos ares e a outra metade submergiu, de nada adiantando Jarl deter seu último ataque diante dos olhos assustados do irmão vencido, que talvez tivesse recobrado sua razão...

“Onde estou?”, questionou-se Jarl ao voltar a si; escutava o som de uma cascata. Reabriu devagar as pálpebras, olhou ao seu redor, e ao se levantar viu pássaros esverdeados aprumando-se entre as folhas quase douradas de uma árvore alta e frondosa; começaram a cantar assim que os fitou, como se tivessem aguardado sua atenção. Havia à sua frente um bosque idílico, e atrás a cachoeira. “Será que estou sonhando? Não parece um sonho, e também não aparenta ser uma projeção da consciência. Será possível que tenhamos sido transportados de Samso por meios mágicos? Onde foi parar Konr? A última lembrança que tenho é de quando detive a tempo meu ataque com as duas espadas, que teria sido fatal para ele. Depois disso, tive a impressão de um clarão, de uma explosão, e parece que desmaiei. As espadas se foram. Talvez eu esteja morto e aqui seja...” “Sim, estamos em Asgard.”, não chegou a tomar um susto,

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mas se surpreendeu quando alguém completou oralmente seu pensamento; e era uma voz feminina extremamente macia, calma e agradável. Só então viu a donzela, vestindo uma túnica celeste quase branca com partes metálicas prateadas, sentada sobre uma grande pedra, segurando uma espécie de pequena harpa; era esbelta, os cabelos loiros longos descendo em cachos, manifestava um estranho sorriso e estava com os olhos fechados. “Você...Deve ser uma valquíria.” “Brilhante dedução, einherjar.”, respondeu num tom de sutil ironia, enquanto começava a tocar tranquilamente. “Que fim levou o meu irmão?” “Mal chegou em Asgard e já começa com perguntas? Tenha paciência, guerreiro.”, e aquela enviada de Odin possuía uma voz que se tornava a cada instante mais melodiosa, dando a impressão de cantar mesmo enquanto se limitava a falar; suas palavras, que parecia fazer questão de serem poucas e precisas, não querendo desperdiçá-las, seguiam a cadência da música instrumental. “Se estou mesmo morto, não acredito que somente eu tenha sido escolhido para o Valhala. Onde estão o rei Heidrek, a rainha Hervor, ou o valente Beowulf? E este ainda não parece ser o Valhala. Pode me dizer simplesmente onde me encontro?” “Você não está em posição de fazer exigências, mas percebo que é teimoso. Fique tranquilo, pois a morte real não o atingiu. Sinto seu medo de ficar só, porém compreenda que o medo da solidão é uma fraqueza. Procure usufruir do momento ouvindo minha música, o canto dos pássaros e o som da cachoeira.” “Como posso ficar tranquilo e usufruir do instante se não sei onde estão os meus companheiros e o meu irmão? Não é por medo da solidão que desejo saber, e sim porque me preocupo

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com eles. Imagino que Odin deseje guerreiros nobres, que não pensam só em si próprios.” “Nisso você tem razão.”, a voz da valquíria já não parecia mais tão agradável para Jarl...Por mais bela que fosse, de que adiantava se não respondia suas questões? “Parece que não quer mesmo me responder nada. Mas não vou desistir tão fácil. Uma coisa que disse me pareceu estranha, me incomodou de verdade...Sobre a morte real não ter me atingido. O que quis dizer com isso? Por acaso essa tal morte real atingiu algum dos meus amigos?” “Muito perguntador para o meu gosto. Mas perspicaz, agora devo reconhecer. Enfim uma pergunta interessante para lhe responder.”, de repente a valquíria abriu os olhos e parou de tocar. Por que uma reação distinta? Jarl procurou observar atentamente: ela o estaria testando de alguma forma? De todo modo, não suspendeu o sorriso tênue, que parecia peculiarmente melancólico para o seu interlocutor. Agora que seus olhos de fulgor azul estavam visíveis, dava a impressão de devassar toda a alma do guerreiro com uma simplicidade e facilidade quase infantis. “Por que parou de tocar?” “Porque não é um tema que se preste à música. Há quem consiga, mas para mim é impossível colocar musicalidade em realidades frias, cruas, conciliar música e trevas.” “Compreendo.” “A morte real, ou definitiva, é a que atingiu Sigrun por exemplo. Apesar de imortais, nós valquírias não somos invulneráveis, e o mesmo se aplica aos demais deuses, aos elfos da luz, aos jotuns, a diversos monstros filhos de Loki e Hel, aos gigantes de Muspell e aos einherjar, estes últimos em suas novas vidas. Por isso, fique atento daqui por diante. Caso alguém nos mate, temos nossas almas sugadas pelo vórtice de

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Hel e nos tornamos meras sombras, fantasmas sem identidade em Nifelheim. Um destino cruel. Para os imortais, é mesmo melhor não morrer.” “Isso que você está me dizendo é muito importante. Quer dizer que esta nova vida é como uma segunda chance, mas não significa perenidade.” “Odin forma para seus escolhidos corpos gloriosos, mais fortes e resistentes do que os que possuíam em Midgard, a fim de abrigar suas almas. Mas esses corpos não são indestrutíveis e uma alma, por excelsa que seja, não pode viver duas vezes em Asgard, Jotunheim, Alfheim ou Muspellheim, e esta é uma lei que se impõe inclusive sobre os deuses. Somente Midgard, o jardim de Urd e os domínios de Hel aceitam almas velhas, mas em Nifelheim você já sabe em que condições. Por isso, até mesmo Odin, caso venha a morrer, não poderá voltar para Asgard e ficará preso em Nifelheim, como ocorreu ao seu luminoso filho Balder, assassinado por Loki. Os humanos com muitos erros acumulados e que não são grandes magos das trevas também caem em Nifelheim, onde se tornam irremediavelmente espectros sem real identidade. Só conseguem escapar eventualmente e chegar em Midgard como assombrações perdidas, permanecendo por algum tempo, mas sempre sem consciência, como sonâmbulos, e é por isso que os fantasmas que os humanos costumam perceber repetem um número limitado de ações e dizem sempre as mesmas coisas, reproduzindo o que faziam e pensavam em vida. No caso da magia negra, alguns bruxos conseguem evocar as sombras de Nifelheim para, por exemplo, ocupar cadáveres e esqueletos, produzindo zumbis e outras aberrações.” “Sobre esse tipo de magia eu já sabia, e também sobre os licantropos, quando os feiticeiros das trevas manipulam espíritos de feras para que possuam corpos humanos.”

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“É verdade, porém tanto os animais pacíficos como as pessoas virtuosas mas que não possuem um espírito guerreiro vão após sua morte para o paraíso de Urd, onde posteriormente têm a oportunidade de reencarnar em Midgard. As almas de animais aspiram à transformação que as tornará almas humanas, ao passo que as almas humanas obtêm uma nova chance para adquirirem a força que lhes faltou para que se juntassem aos deuses.” “Teoricamente, a alma de um deus não poderia ser libertada de Nifelheim por um mago ou por um outro deus e vir a ocupar um corpo humano em Midgard, que permite que almas antigas renasçam e circulem?” “Esta é uma boa pergunta, Jarl. Teoricamente, seria possível, mas por que então Odin já não teria feito isso para libertar Balder?” “Imagino que porque Hel procure manter muito bem aprisionadas as almas de seres poderosos, que sejam capazes de constituir uma ameaça.” “Exato. Odin já tentou evocar o espírito de Balder, mas foi em vão. Hel o mantém cativo, assim como as almas de einherjar e elfos da luz que caíram em batalha. Os elfos das sombras, por sua vez, têm vida longa, mas não são imunes à velhice e à morte natural.” “Agora compreendo...”, e ficou em silêncio, olhando para os pássaros nas árvores. “Você logo foi fazendo tantas perguntas...E agora se cala?”, a valquíria voltou a falar, levantando-se da pedra e indo em sua direção; uma das menores aves pousou no ombro direito de Jarl. “Você sabe o que compreendi e por que me calei. Eu e meu irmão compartilhamos nossos últimos instantes em Midgard; assim como viemos à luz no mesmo dia, deixamos o mundo

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humano no mesmo dia, na mesma hora. O ventre agora foi uma caverna. E eu mais uma vez vim à luz, mas ele infelizmente foi engolido pelas trevas. Konr não era um homem cruel, porém a maldição da espada Tirfing fez com que ele se perdesse. Era muito mal acumulado para um homem suportar. Não tinha como resistir.” “O meu nome é Hilda. E acho que mais alguém quer falar com você...”, a valquíria, sorrindo agora com menos ambiguidade e alguma ternura, enxugou a lágrima ardida que escorreu pelo rosto do guerreiro. Uma pessoa vinha do bosque. Não era Konr; Jarl logo percebeu que teria mesmo que se conformar, pois todas as suas deduções estavam corretas. Mas o rosto luminoso de Hervor surgiu para lhe dar esperança. “Não desanime, Jarl. Meu pai também não está no Valhala, é claro. Você perdeu seu irmão, eu perdi o meu pai. Mas Beowulf, Hersir e Heidrek estão aqui em Asgard.” “Majestade...”, o guerreiro balbuciou. “Não me chame mais dessa forma. Agora nós somos todos irmãos em uma nova família: a família dos einherjar.” “Estas sim são palavras dignas de uma rainha.”, comentou Hilda a seguir e, após envolver os dois em um manto de luz, fê-los desaparecer.

Heidrek sabia que fora levado para um encontro no alto daquele monte enevoado. Mas precisou andar por um bom tempo até se deparar com um homem de costas, em trajes cinzentos, que devia ser quem o aguardava. Deduziu qual fosse sua identidade antes que se voltasse; os cabelos ondulados estavam brancos: já que lhe haviam dito que era um velho conhecido, só podia ser uma pessoa...Seu palpite estava

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correto: era Orvar, que ao virar em sua direção rejuvenesceu, seu cabelo escurecendo, rumo ao abraço com seu filho adotivo. “Estou orgulhoso de você. Soube como foi sua luta em Samso.” “De que adianta se não venci, se não consegui salvar Samso? Hilda me disse que Sigrun se sacrificou e o demônio encerrou seus dias em Midgard, mas a ilha não existe mais. Que tipo de vitória foi essa?” “A vitória possível. Seu pai também não conseguiu sobreviver depois de vencer Argantyr. Falando nele, há mais alguém que quer ver você...”, após o velho amigo, um encontro previsto, embora não tivesse sido anunciado pela valquíria quando ela o conduzira até ali: Orvar abriu espaço, e alguém em uma armadura rubra e dourada veio se aproximando... “Filho. Enfim nos encontramos.”, foram as primeiras palavras de Hjalmar ao encarar Heidrek quando parou de avançar, ainda um pouco afastado do filho. Mas após pronunciá-las, o herói tornou a andar e abraçou seu fruto com Ingeborg, Heidrek a princípio tímido, sem muita reação, o abraço por isso unilateral até o rapaz se soltar e tocar as costas de seu pai, alguns fios de choro escorrendo de seus olhos. Nessa hora Hervor e Jarl emergiram de outro canto das névoas, acompanhados por Hilda; a filha de Argantyr só lamentou não poder ter o mesmo encontro com seu pai, mas estava feliz por seu amado, ao passo que o mago-guerreiro não teve como não recordar seu irmão, chegando de relance a ver seu rosto nas brumas, em um segundo este se dissolvendo. “Parece que está feliz, Heidrek. E para que fique ainda mais feliz, vou lhe dizer mais uma coisa: seu pai, você e Orvar terão muito tempo juntos de hoje em diante, pois serão companheiros no Valhala. Só há dois aspectos negativos para você...Pois

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recuperei a Naglering, mas ela retornará ao seu pai, que é o dono original; assim como a Hrunting continuará sendo companheira de Beowulf. Apenas demônios roubam espadas mágicas; os heróis as conquistam e depois disso só podem no máximo emprestá-las, como a Naglering foi a você.”, disse Hilda ao se aproximar. “Nada mais justo. A Naglering só pode realmente pertencer ao meu pai.”, replicou Heidrek; e após o silêncio que se seguiu, indagou: “Mas qual seria o outro aspecto presumidamente negativo da minha estadia no Valhala? Estou preocupado com o futuro de Gamla. É algo que diz respeito ao reino?” “Meus parabéns! Você é atento, o que é fundamental para um einherjar. Por outro lado, ainda é apegado a Midgard. Não importa se foi rei: precisa se desligar do seu antigo reino, porque de agora em diante servirá apenas Odin. Poderá até ter que lutar contra gente de seu país, se estiverem contra Odin. Não é a Gamla que quero me referir. “O que seria então?” “Você não desconfia?”, e nisso seus olhos por algum motivo caíram sobre Hervor. “Ótimo, fez bem em olhar para ela.”, emendou a valquíria. “Porque não poderá vê-la com muita constância. Não que tenham que se separar em definitivo, não há a menor necessidade de despedidas dramáticas, mas estarão bastante ocupados treinando cada qual em seu respectivo novo lar. As einherjar não ficam no Valhala, e sim no Folkvangr, o palácio de Freya.”, e os dois, enquanto se olharam com os outros à sua volta, procuraram ocultar qualquer sinal de tristeza e abatimento; contudo, Hilda lhes deu um alento: “Vamos deixá-los um pouco a sós. Depois eu e uma irmã minha viremos buscá-los.”, brumas mais densas envolveram a valquíria, Hjalmar, Orvar e Jarl, fazendo-os desaparecer. A seguir, para a surpresa do casal, toda a neblina se dissipou

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abruptamente, aquela montanha se tornou um lugar ensolarado, a grama verde-dourada sob seus pés ficando enfim bem visível, e uma entre as tantas esplêndidas paisagens de Asgard se desvelou para ambos. Em silêncio, aconchegaram-se então um ao outro; e sentiram.

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