educação básica no século xxi tendências e perspectivas · educação básica no brasil neste...

20
Impulso, Piracicaba, 16(40): 35-53, 2005 35 Educação Básica no Século XXI : tendências e perspectivas ELEMENTARY EDUCATION IN THE 21 ST CENTURY: TENDENCIES AND PERSPECTIVES Resumo Este artigo examina as tendências e perspectivas das políticas de educação básica no Brasil neste começo de século. Para tanto, parte-se de um balanço necessário das políticas educacionais implementadas na década de 90, destacando a transição às políticas “modernas”, o novo “ciclo” que se inicia com os ajustes neoliberais da economia e do Estado, a nova e contraditória LDB, a “política” de Fundos na Educação, ilustrada pelo Fundef, e as avaliações nacionais como estratégias de controle e de padronização das ações. São analisadas as contradições do governo Lula, que, dando continuidade às políticas anteriores, da economia à educação, apresenta poucos avanços e significativos limites, que podem ser ilustrados pela Proposta de Emenda Constitucional do Fundeb, em tramitação no Congresso Nacional. Na conclusão faz-se uma breve síntese dos principais traços dessas políticas, indicando-se suas principais tendências e perspectivas, e enfatiza-se a necessidade de manutenção da luta pela educação básica a que a população brasileira tem direito. Palavras-chave POLÍTICAS EDUCACIONAIS EDUCAÇÃO BÁSICA FUNDOS PÚBLICOS (FUNDEF FUNDEB). Abstract This article examines the tendencies and perspectives of the elementary education policies in Brazil in the beginning of this century. Therefore, we start from a necessary ponderation of the educational policies implemented in the 1990’s, emphasizing the transition to the “modern” policies, the new “cycle” that starts with the newliberal adjustments of the economy and the State, the new and contradictory LDB, the Education funds “policy”, illustrated by the fundef, and the national evaluations as control and standardizing strategies of actions. It is here analyzed the contradictions of the Lula government, that, continuing with the prior policies, from economy to education, presents few advances and meaningful limitations, that can be illustrated by the Proposal for a Constitutional Amendment of the Fundeb, in course in the National Congress. In the conclusion there is a brief synthesis of the basic lines of these policies, being indicated their main tendencies and perspectives, and it is emphasized the need to maintain the fight for elementary education that the Brazilian population has a right to. Keywords EDUCATIONAL POLICIES ELEMENTARY EDUCATION PUBLIC FOUNDS (FUNDEF FUNDEB). LISETE R. G. ARELARO Universidade de São Paulo ( USP) [email protected] impulso40.book Page 35 Monday, October 3, 2005 10:39 PM

Upload: trandiep

Post on 23-Nov-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Impulso, Piracicaba, 16(40): 35-53, 2005 35

Educação Básica no Século XXI: tendências e perspectivasELEMENTARY EDUCATION IN THE 21ST CENTURY: TENDENCIES AND PERSPECTIVES

Resumo Este artigo examina as tendências e perspectivas das políticas deeducação básica no Brasil neste começo de século. Para tanto, parte-se de umbalanço necessário das políticas educacionais implementadas na década de 90,destacando a transição às políticas “modernas”, o novo “ciclo” que se inicia comos ajustes neoliberais da economia e do Estado, a nova e contraditória LDB, a“política” de Fundos na Educação, ilustrada pelo Fundef, e as avaliações nacionaiscomo estratégias de controle e de padronização das ações. São analisadas ascontradições do governo Lula, que, dando continuidade às políticas anteriores, daeconomia à educação, apresenta poucos avanços e significativos limites, quepodem ser ilustrados pela Proposta de Emenda Constitucional do Fundeb, emtramitação no Congresso Nacional. Na conclusão faz-se uma breve síntese dosprincipais traços dessas políticas, indicando-se suas principais tendências eperspectivas, e enfatiza-se a necessidade de manutenção da luta pela educaçãobásica a que a população brasileira tem direito.

Palavras-chave POLÍTICAS EDUCACIONAIS – EDUCAÇÃO BÁSICA – FUNDOSPÚBLICOS (FUNDEF – FUNDEB).

Abstract This article examines the tendencies and perspectives of the elementaryeducation policies in Brazil in the beginning of this century. Therefore, we startfrom a necessary ponderation of the educational policies implemented in the1990’s, emphasizing the transition to the “modern” policies, the new “cycle” thatstarts with the newliberal adjustments of the economy and the State, the new andcontradictory LDB, the Education funds “policy”, illustrated by the fundef, andthe national evaluations as control and standardizing strategies of actions. It ishere analyzed the contradictions of the Lula government, that, continuing withthe prior policies, from economy to education, presents few advances andmeaningful limitations, that can be illustrated by the Proposal for a ConstitutionalAmendment of the Fundeb, in course in the National Congress. In theconclusion there is a brief synthesis of the basic lines of these policies, beingindicated their main tendencies and perspectives, and it is emphasized the needto maintain the fight for elementary education that the Brazilian population hasa right to.

Keywords EDUCATIONAL POLICIES – ELEMENTARY EDUCATION – PUBLICFOUNDS (FUNDEF – FUNDEB).

LISETE R. G. ARELAROUniversidade de São Paulo (USP)

[email protected]

impulso40.book Page 35 Monday, October 3, 2005 10:39 PM

36 Impulso, Piracicaba, 16(40): 35-53, 2005

CONSIDERAÇÕES INICIAIS: POLÍTICAS EDUCACIONAIS DA DÉCADA DE 1990

ualquer avaliação da educação básica, no Brasil des-se início de século, impõe que se retorne ao inícioda década de 1990, pelo menos por duas razões.Uma delas foi o deslocamento radical da respon-sabilidade de efetivação de quase todas as políticaspúblicas da União e dos Estados para os municí-pios, com base na Constituição Federal de 1988.A outra diz respeito aos compromissos assumidos

pelo País, em 1990, com a comunidade internacional, mediante a assina-tura da Declaração Mundial sobre Educação para Todos, na Conferênciarealizada em Jontiem, na Tailândia, sob o patrocínio da Unesco, doUnicef, do Fundo das Nações para Atividades da População (UNFPA), doBanco Mundial e do PNUD, em especial para ter acesso privilegiado aosrecursos financeiros do Banco Mundial.

Naquela ocasião, o Brasil foi considerado um dos sete países em pio-res condições educacionais, em virtude dos dados estatísticos apresenta-dos: baixo índice de escolarização básica na faixa etária de sete a 14 anos,baixo índice de matrículas no ensino médio, alta taxa de evasão e repetên-cia escolar em todos os níveis de ensino, baixo nível de matrícula no en-sino superior, atendimento pouco expressivo na pré-escola e alta taxa deanalfabetismo, com baixa escolaridade de jovens e adultos, considerada afaixa de idade de 15 anos e mais.

Era presidente eleito do Brasil Fernando Collor de Mello, jovempolítico alagoano de discurso populista em defesa dos “descamisados”,mas com tradição de apoio a usineiros – o primeiro presidente escolhidopor eleições diretas, depois de 21 anos de ditadura militar e cinco de go-verno eleito indiretamente. Preferido pela burguesia, e com o apoio damídia, enfrentou como adversário, em 1989, Luiz Inácio “Lula” da Silva,atual presidente da República – este, naquele momento, pouco confiávelpara as elites, por conta de seus compromissos de classe e de apresentarum programa de governo mais radical que o de Collor, com pouca flexi-bilidade a alianças político-partidárias de espectro mais amplo.

Logo, em nome da “modernidade”, Collor propôs programa ousa-do de privatização, gerando em curto prazo atos legais e ações que pri-vilegiavam, especialmente, o capital estrangeiro. Instalava-se no País o pe-ríodo conhecido como “neoliberal”, em situação histórica um pouco par-ticular. É que, diferentemente da Europa e dos países que haviam se de-senvolvido na lógica do Welfare State, do tipo social democrata,1 o Brasilestava saindo de uma longa ditadura e, no processo de redemocratizaçãosocial – com todas as limitações permitidas pela transição pacífica –, o de-sejo maior da população era (re)construí-lo com base em um programade investimento em direitos sociais e a redução de desigualdades que“rompesse” com o quadro de miséria social.

1 Cf. DRAIBE, 1990.

QQQQ

impulso40.book Page 36 Monday, October 3, 2005 10:39 PM

Impulso, Piracicaba, 16(40): 35-53, 2005 37

O processo da Constituinte havia mostra-do o movimento de reagrupamento social que vi-nha acontecendo e a urgência de atendimento àsreivindicações populares. Esse era o “clima” local– quase de euforia democrática – e, em razão disso,as mudanças de rumo e de convicções político-econômicas, que, no início dos anos 1980, jácomeçavam a atingir o modelo capitalista da Eu-ropa e dos Estados Unidos, passaram desaperce-bidas no Brasil, momentaneamente.

Collor de Mello “seqüestrou” a poupançados brasileiros logo no início de 1990, alegando anecessidade de reunir a maior quantidade de re-cursos financeiros disponíveis para construir umoutro Brasil. “Chega de carroças, estamos naépoca dos supersônicos”, dizia ele, defendendo aimplementação imediata de processos tecnológi-cos avançados na indústria, na agricultura e nocomércio. Mas, na metade de seu governo, sofreuimpeachment – o primeiro da história republicanabrasileira –, não em função da opção de projetode política econômica, que exigia a “entrega doPaís aos especuladores”, mas “por falta de dis-crição”, por deixar didaticamente claras as vanta-gens e benesses do poder e dos poderosos, paraos quais tudo (sempre) era justo e lícito. Nãoteve limites e, na política, isso pode ser fatal.

Na educação, o esperado confirmou-se: umgoverno sem programas audaciosos, sem preten-são de efetuar modificações significativas, pelomenos num primeiro momento. Um Plano deAlfabetização e Cidadania foi anunciado – o últi-mo substantivo colocado às pressas –, uma vez queo ano de 1990 havia sido declarado Ano Interna-cional da Alfabetização. Mas isso não significarianenhuma priorização de investimentos financei-ros ou movimentação social pela “erradicação doanalfabetismo”, conforme proposto na Consti-tuição Federal. Ao contrário: bastavam os espetá-culos e instalaram-se rotinas de “subidas da ram-pa do Planalto”, com um ou outro personagemnacional que fortalecesse o imaginário popular.

Apesar de o Censo Demográfico Brasilei-ro, realizado tradicionalmente de dez em dezanos, não ter ocorrido em 1990, e sim um anomais tarde, por falta de apoio governamental a

esse tipo de pesquisa – alegou-se “falta de verbas” –,constatou-se que o sistema nacional de coleta dedados educacionais não era eficiente. Com a aju-da de especialistas internacionais, iniciou-se, en-tão, a organização do Sistema Nacional de Avalia-ção do Ensino Básico (SAEB), primeiro esboçohistórico do que viriam a se constituir as avalia-ções nacionais sobre qualidade do ensino.

O primeiro levantamento (ou “ciclo”) doSAEB realizou-se em 1990, quando se garantiuque os estudos do rendimento escolar não pre-tendiam avaliar os alunos, mas “detectar os pro-blemas de ensino-aprendizagem existentes, ascircunstâncias (de gestão, de competência docen-te, de alternativas curriculares) em que são obti-dos melhores resultados e as áreas em que é ne-cessária uma intervenção dirigida para melhorescondições de ensino”.2

Um importante ato legal, aprovado nessegoverno, ainda sob a influência dos ideais expres-sos na Constituição Federal recém-promulgada,foi o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA– lei n.º 8.069, de 13/jul./90). A votação na Câ-mara Federal foi antecedida por passeata históricado Movimento de Meninos e Meninas de Rua ede ativistas dos diversos movimentos de assistên-cia social e educacional em defesa de crianças eadolescentes abandonados ou em situação de ris-co, em especial a Pastoral do Menor, ligada àConfederação Nacional dos Bispos do Brasil(CNBB). Considerou-se esse estatuto muito“avançado” para o País e havia descrença sobre apossibilidade de efetiva implantação dos Conse-lhos Tutelares ali previstos, definidos como ór-gãos autônomos e não jurisdicionais, e eleição di-reta de seus membros, escolhidos pela comuni-dade local em votação universal e secreta.AINDA UM GOVERNO DE TRANSIÇÃO ÀS POLÍTICAS “MODERNAS”

Em substituição a Collor de Mello, assu-miu a presidência da República Itamar Franco,político mineiro mais experiente, com posiçõespolíticas e “estilo” diferentes dos de seu antecessor.As privatizações de empresas estatais, se não sus-

2 Cf. BRASIL, 1995b, p. 15.

impulso40.book Page 37 Monday, October 3, 2005 10:39 PM

38 Impulso, Piracicaba, 16(40): 35-53, 2005

pensas, tiveram seu ritmo diminuído e, na educa-ção, com Murilo Avellar Hingel nesse ministério,iniciou-se uma fase de discussões coletivas, comaudiência das entidades científicas, associações deeducadores e sindicatos de trabalhadores de edu-cação para a elaboração do Plano Decenal de“Educação para Todos”, a fim de cumprir o com-promisso internacional assumido em Jontiem eainda não viabilizado.

Um projeto de Lei de Diretrizes e Bases daEducação já vinha sendo discutido na Câmarados Deputados, redigido, fundamentalmente,por representantes de entidades participantes doFórum Nacional em Defesa da Escola Pública –criado durante a Constituinte – e aceito por umgrupo de deputados de oposição como projeto-base para discussão com a sociedade civil. Nessaocasião, a Confederação Nacional dos Trabalha-dores em Educação (CNTE) propôs – como con-dição para participar dos debates para elaboraçãodo Plano Decenal – que a discussão acerca de umpiso nacional profissional unificado tivesse prio-ridade. Iniciaram-se, assim, estudos para viabili-zar uma proposta que também fosse aceita pelaUnião Nacional de Dirigentes Municipais deEducação (Undime) e pelo Conselho Nacionalde Secretários de Estado da Educação (Consed),pois esses dirigentes é que teriam de criar as con-dições para a proposta da CNTE, uma vez vitorio-sa, ser implementada.

Em meados de 1993 foi assinado um termode compromisso do governo federal com aCNTE, comprometendo-se o ministro da Educa-ção e do Desporto a colocar como prioridadedesse plano decenal a valorização dos profissio-nais de educação, contemplando o piso nacionalunificado para a categoria – 300 reais era o valordo piso sugerido na ocasião –, proposta de car-reira com valorização salarial por tempo de exer-cício e mérito (cursos realizados) e melhoria dascondições de trabalho. A jornada docente de 40horas, em uma única escola, com previsão de ho-ras atividades – 20 horas com alunos e 20 horascom atividades diversificadas – seria consideradameta a ser alcançada, naquela década, nas redespúblicas, por Estados e municípios.

A educação infantil – definida, então, cons-titucionalmente, como de zero a seis anos – foireconceituada, em face dos novos estudos sobreo desenvolvimento infantil, com a contribuiçãoda sociolingüística e da psicolingüística, pelasquais se confirmou cientificamente que a criançaaprende e se alfabetiza desde que nasce, e não so-mente aos sete anos de idade, quando a maioriaentra para a “escola”. Essa nova concepção da in-fância ganhou espaço na mídia, surgindo novas ecriativas propostas educativas e fortalecendo-securva ascendente de expansão quantitativa doatendimento infantil, com especial ênfase à faixaetária de zero a três anos, até então pouco valo-rizada do ponto de vista educacional.

Em relação à educação de jovens e adultos,estabeleceu-se processo semelhante. O MEC no-meou uma comissão nacional com representan-tes de diferentes setores sociais, buscando resta-belecer a alfabetização como prioridade de gover-no3 e discutindo que processos pedagógicos seri-am mais significativos para essa população. Issogerou uma troca de experiências e de dia-gnósticos em nível nacional, promovendo a cria-ção de Fóruns Estaduais em Defesa da Educaçãode Jovens e Adultos, organização independentedo governo e em funcionamento ainda nos diasde hoje.

No final de 1994, o governo Itamar/Hingel, em razão de denúncias de “venda de pa-receres” autorizando a criação de escolas de ensi-no superior, apresentou medida provisória extin-guindo sumariamente o Conselho Federal deEducação (CFE) e o mandato de seus membros.Além de aniquilar o órgão máximo da educaçãono País, a quem competia autorizar os referidoscursos – todos agora suspensos –, criava em seulugar um novo fórum: o Conselho Nacional deEducação (CNE), denominação presente no pro-

3 Destaque-se que o educador Paulo Freire havia participado dogoverno Luiza Erundina, em São Paulo (1989-1992), como secretáriomunicipal de Educação, tendo viabilizado muitas experiências pedagó-gicas, bem como motivando grupos populares a participar da educaçãode adultos, com propostas inovadoras, incentivando-os, inclusive, afazer parte mais sistematicamente do recém-criado Movimento deAlfabetização (Mova). Isso possibilitou, aos setores populares que tra-balhavam com educação, oportunidades de troca de experiências e demobilizações pelas suas reivindicações.

impulso40.book Page 38 Monday, October 3, 2005 10:39 PM

Impulso, Piracicaba, 16(40): 35-53, 2005 39

jeto de LDB já em ampla discussão nacional, defi-nido de forma dúbia quanto à sua autonomia.

Não há dados para que se possa afirmar quea extinção do CFE, órgão com relativa autonomia,fizesse parte da nova concepção sobre a funçãodo governo federal na coordenação exclusiva dasdiretrizes da política educacional. Mas a manu-tenção de “vácuo” político na definição mais ob-jetiva do novo conselho e a não designação denovos conselheiros com perfis mais “agressivos”na defesa das escolas públicas, nesse final de go-verno, permitem supor que os empresários daeducação continuavam dominando o órgão –como sempre acontecera – e que as representa-ções de setores mais democráticos, com livreindicação de representantes – também historica-mente alijados – não teriam, ainda, vez e voz.O NEOLIBERALISMO SE INSTALA: UM NOVO “CICLO” SE INICIA

Foi, no entanto, no primeiro governo deFernando Henrique Cardoso (FHC – 1995-1998),ex-ministro das Relações Exteriores e ex-ministroda Fazenda, do governo anterior, que o choque“neoliberal” se fez sentir. FHC foi eleito presiden-te por aliança de seu partido, o Partido da SocialDemocracia Brasileira (PSDB), com o Partido daFrente Liberal (PFL), adversário histórico de lutase convicções, tendo como vice o senador MarcoMaciel, tradicional representante desse partido naRegião Nordeste.

O novo governo, em curtíssimo prazo, as-sumiria proposta ortodoxa em relação à políticaeconômica, em que a estabilidade monetária seriao valor maior. Apesar de o real ter sido criado nomandato anterior, em julho de 1994, foi esse go-verno que capitalizou a eufórica e efêmera ilusãode novo padrão internacional de consumo “paratodos”, representada pelo lançamento da nota deum real equivalente a um dólar. Essa falsa corres-pondência econômica custaria aos cofres públi-cos e aos brasileiros o ônus de milhões de dólares,transformados em “dívida pública”.

Nesse governo, também, as empresas esta-tais – em especial as mais lucrativas – foram su-mariamente privatizadas. Acompanhou essasações o discurso da necessidade urgente de refor-

ma do Estado, a fim de torná-lo mais ágil, maiseficiente e poder realizar sua verdadeira “missão”de coordenação e planejamento, o que exigia ain-da torná-lo de tamanho “menor”. Ou seja, emnome da modernização da gestão pública e dasuperação de uma atuação burocrática e tecnocrá-tica do Estado – o que era inegável, historicamen-te –, introduz-se a concepção de Estado mínimo,da sua não intervenção no mercado, por meio desua desregulação e desregulamentação, da dimi-nuição dos serviços e funções públicas estatais edas privatizações. Tal discurso, em processo dehegemonização no mundo ocidental, passa a serpautado, de maneira explícita e didática, diaria-mente, pela mídia falada, escrita e televisiva.

Importa destacar que essa concepção incor-pora a avaliação de que o gasto social é o grandevilão e o responsável maior pela crise econômicae do Estado, o que exigiria, em conseqüência, arevisão, superação ou substituição do Estado-providência. Em outras palavras, o reconheci-mento da falência de um determinado padrão deação econômica e social do Estado capitalista nãosignificaria, no Brasil, dez anos depois da subs-tituição do governo militar pelo civil de cunhosocial-democrata, a necessidade de gestação deum “moderno” Estado, que pudesse, com oapoio das novas forças sociais e com dinâmicasainda não experimentadas, disputar a opção depolíticas sociais de tipo universalista. A opção dogoverno seria pela adesão simplista às políticassociais seletivas e focalizadas, já em desenvolvi-mento em outros países da América Latina – en-tre eles, o Chile era sempre o exemplo citadocomo o mais bem-sucedido –, justificadas e in-centivadas pelos diagnósticos “científicos” e“neutros” de órgãos internacionais, em especial oBanco Mundial.

A transposição de teses semelhantes à áreada educação foi quase automática. Apresentadacomo um dos cinco “dedos” da mão do presiden-te, ela seria prioridade de governo. A divulgaçãodos “péssimos” resultados do setor educacional,mediante dados estatísticos internacionalmentecomparados, ganhou tratamento especial na mí-dia, exigindo, portanto, medidas urgentes e rigo-

impulso40.book Page 39 Monday, October 3, 2005 10:39 PM

40 Impulso, Piracicaba, 16(40): 35-53, 2005

rosas. Essa batalha teria como aliados três atos le-gais: a emenda constitucional n.º 14/96, a lei n.º9.424/96 – que a regulamentou – e a Lei de Di-retrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – lein.º 9.394/96), todas aprovadas no final de 1996.Como medidas mais gerais, aprovaram-se tam-bém nessa gestão duas reformas essenciais para amudança de referenciais até então aceitos: a pri-meira, sobre a reforma do Estado, e a segunda,acerca da Previdência Social, pelas emendas cons-titucionais n.ºs 19 e 20, de junho e dezembro de1998, respectivamente. Elas dão base legal à novaidéia de Estado e de sua função pública no País.

A emenda constitucional n.º 14 (EC 14),além de reescrever o capítulo III, da educação, daConstituição Federal, alterando dispositivos dosartigos 205, 208, 211 e 60 (este das disposiçõestransitórias), criou o Fundo de Manutenção eDesenvolvimento do Ensino Fundamental e Va-lorização do Magistério (Fundef). Com base nes-se fundo, 15% dos principais impostos que com-põem, no mínimo, os 25% dos recursos vincula-dos à educação de Estados e municípios passarama destinar-se exclusivamente ao ensino funda-mental “regular”. Essa política – pretendidacomo “revolucionária” na educação – introduziuduas inovações. A primeira foi a “focalização” noatendimento educacional, estabelecendo comoprioridade maior o ensino fundamental e, nesse,exclusivamente, a faixa etária considerada “regu-lar” – de 7 a 14 anos. A segunda significou umamudança radical no sistema de financiamento pú-blico, introduzindo o critério de remuneração es-tadual (compensação financeira) pelo número deatendimentos realizados, computados pelo Cen-so Escolar, sempre do ano anterior, e o sistema defundos, de natureza contábil, incorporando emconta única os recursos de municípios e Estados.

Cabe refletir sobre dois aspectos dessas“inovações” introduzidas. Um deles diz respeitoa uma cínica desresponsabilização quanto à edu-cação, por parte da União, uma vez que – passan-do por cima do pacto federativo – estabeleceuuma subvinculação dos recursos públicos da edu-cação exclusivamente para duas das três esferaspúblicas, reduzindo-lhe substantivamente o com-

promisso com o ensino fundamental. O outro éque, na regulamentação do Fundef (lei n.º 9.424/96), excluem-se os alunos dos cursos de educaçãode jovens e adultos, mesmo os dos cursospresenciais, da possibilidade de utilizar recursosdesse fundo, ainda que essa exclusão traduzaindiscutível e autoritária inconstitucionalidade.Tais inovações evidentemente não são gratuitas,nem casuais. Traduzem prioridades de políticas ecompromissos de gestão. Destaque-se que asações de inconstitucionalidade, propostas em fe-vereiro de 1997 por entidades nacionais e parti-dos da oposição, até hoje não foram julgadasquanto ao mérito.

Já na discussão do projeto de emenda cons-titucional (PEC 233), que originou a EC 14, oExecutivo havia encaminhado proposta de exclu-são do direito à educação infantil para todas ascrianças pequenas, tentando estabelecer seletivi-dade de atendimento na faixa etária de zero a trêsanos, restringindo-o somente às crianças “po-bres”. Houve grande mobilização das entidadescontra essa inclusão seletiva, que reduzia os direi-tos das crianças. Na ocasião, essa foi a única alte-ração vitoriosa da PEC original obtida pelas enti-dades, em especial a União Nacional dos Diri-gentes Municipais de Educação (Undime), a As-sociação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisaem Educação (Anped) e os defensores dos direi-tos da criança. De lá para cá, as tentativas de re-dução do direito educacional das crianças peque-nas, em especial as do primeiro ciclo, têm sidoconstantes, uma vez que o atendimento perma-nece mínimo, não tendo sido atendidos sequer10% da demanda existente.

O Censo Escolar de 20044 comprova quecerca de mil dos 5.562 municípios no Brasil nãooferecem qualquer vaga pública de creche. Essagrave constatação tem sido, também, motivaçãopara a criação e a manutenção de Fóruns Esta-duais de Educação Infantil,5 que passaram a in-fluenciar o Congresso Nacional e o Executivo nadefinição de políticas para a infância ou no impe-

4 Cf. “Censo Escolar – dados preliminares”, BRASIL, 2004.5 Hoje em dia, a representação nacional que agrega esses fóruns estadu-ais constitui o Inter-Fóruns.

impulso40.book Page 40 Monday, October 3, 2005 10:39 PM

Impulso, Piracicaba, 16(40): 35-53, 2005 41

dimento da adoção de políticas compensatóriasinadequadas para essa faixa etária.FUNDEF, UMA PECULIAR POLÍTICA DE FUNDOS NA EDUCAÇÃO

Tomando-se por base estudos e pesquisas,6pode-se constatar que o objetivo maior do Fun-def não era viabilizar a universalização do ensinofundamental, mas, simplesmente, realizar a des-concentração estadual do atendimento desse ní-vel de ensino. Em 1998, seu primeiro ano de im-plantação, o número de alunos matriculados noensino fundamental “regular” no País foi 35,8 mi-lhões dos quais 32,4 milhões atendidos pela esfe-ra pública – cerca de 91%. Esse número perma-neceria constante. Em 2003, o total de matrículas,no mesmo ensino fundamental, foi de 34,4 mi-lhões, sendo o atendimento público da ordem de31,1 milhões de matrículas.7 A redução do aten-dimento, no primeiro caso, foi de cerca de 1,5 mi-lhão e, no segundo, de aproximadamente 1,2 mi-lhão, o que indica que o percentual atendido já noprimeiro ano do Fundef era considerado satisfa-tório, não sendo necessário grande empenho paraque a curva de atendimento decrescesse.

Com exceção do ano de 1999, em que onúmero de atendimentos no ensino fundamental“regular” foi superior em cerca de 250 mil matrí-culas, em todos os anos posteriores ele revelou-sedecrescente. Mesmo assim, os meios de comuni-cação divulgaram, durante todo o período dosdois governos FHC, constante ampliação do aten-dimento escolar, criando certa euforia sobre esse“novo” patamar, que colocaria o Brasil com índi-ces próximos dos internacionais desejáveis.

A consulta aos dados estatísticos oficiaismostra também que 12 dos 27 Estados possuíam,ainda em 2003, desproporção acentuada de aten-dimento escolar, pois a população matriculadanas 5.ªs às 8.ªs séries era aproximadamente 50%menor do total das crianças matriculadas nas 1.ªs

às 4.ªs séries iniciais, em especial nos Estados comatendimento do ensino fundamental quase total-mente municipalizado.

Por outro lado, se o atendimento municipaldo ensino fundamental girava em torno de 42%em 1998 (cerca de 15 milhões, dos quase 36 mi-lhões matriculados), cinco anos depois ele já ti-nha aumentado para 52%, ou seja, cerca de 18milhões dos 34,4 milhões de alunos atendidosnesse nível de ensino. A municipalização do aten-dimento, consideradas as séries iniciais, é aindamais eloqüente, pois, em 2003, já representava72,3% do atendimento público, ao passo que, em1998, correspondia ainda a 46,8%, com claraconcentração municipalizada na Região Nordeste.

O aumento da municipalização em mais de25%, já no sexto ano do Fundef, é elucidativo doobjetivo real da sua implantação. Para além dodiscurso da universalização do atendimento doensino fundamental, e da justiça social que a novadistribuição dos recursos, em nível estadual,provocaria, a mudança significativa do mante-nedor público – do Estado para os municípios –mostra-se a mais evidente.

É também verdade que a lógica interna docálculo do “gasto mínimo” por aluno, trazidopelo Fundef, revela-se perversa. Isso porque, namedida em que um dos entes públicos envolvidos(Estados ou municípios ou ambos) resolvessepromover um atendimento escolar mais ousado,viabilizando a universalização do ensino funda-mental “regular” da 1.ª à 8.ª série, em especial nosEstados mais pobres, nos quais a complementa-ção federal deveria estar presente, esse “valor”anual aluno atendido poderia decrescer, ao invésde ser aumentado.

Adotada essa lógica estatístico-financeira,fica evidente que a expansão não pode ser consi-derada prioritária, mas, ao contrário, fundamentaa suspeita de que o número de alunos já matricu-lados nos sistemas públicos de ensino era tidocomo desejável para o padrão nacional e a suaeventual ampliação, “desequilibradora” do com-petente modelo proposto.

Inacreditável é que esse valor anual, decre-tado por ato do governo federal, considerados os

6 Cf. relatórios das pesquisas: Acompanhamento da Implantação doFundef no Estado de São Paulo, em 24 municípios – 1999-2002(CEPPPE/FEUSP/FAPESP); e Impactos da Implantação do Fundef noBrasil – 2000-2002 (ANPAE/Anped/Fundação Ford), em 12 Estadosbrasileiros.7 Cf. “Resultados Finais do Censo Escolar de 2003”, elaborado peloINEP/MEC, Brasília/DF disponível no site: <www.mec.gov.br/esta-tísticas educacionais>.

impulso40.book Page 41 Monday, October 3, 2005 10:39 PM

42 Impulso, Piracicaba, 16(40): 35-53, 2005

critérios expressos na lei n.º 9.424, em nenhumano dos dois governos FHC foi cumprido. Aliás,nem nos primeiros três anos do governo Lula elefoi atualizado. A alegação federal para o não cum-primento da principal “revolução” educacionaldo século XX – como definida pelos própriosproponentes – era a falta de disponibilidade fi-nanceira, tendo em vista a necessidade – inadiávele intransferível – do pagamento da dívida e deserviços da dívida. Em 1997, o valor estabelecidofoi de 300 reais e, no final de 2002, não havia che-gado sequer ao valor de 500 reais, acumulandomais de 100% de defasagem em relação ao esti-mado pela sistemática legal de cálculo.

Os dados financeiros e os estudos disponí-veis, levando em conta o “efetivamente gasto” apartir de 1994, mais os oito anos dos governosFHC, e a previsão orçamentária da União para2003, em relação aos recursos orçados para a ma-nutenção e o desenvolvimento do ensino (MDE),permitem afirmar que as “perdas” – recursos nãoaplicados – da área educacional representaramcerca de 20 bilhões de reais.8 Nesses anos todos,desde 1994, sistematicamente cerca de 20% dosrecursos arrecadados pela União foram “tirados”das áreas sociais, mediante diferentes artifíciosempregados pela área financeira para o não inves-timento nas políticas sociais.

Primeiro, criou-se o Fundo Social deEmergência (FSE), em 1994, quando a precária si-tuação da saúde pública foi vista como “calami-tosa” e urgentes providências se faziam necessá-rias. Passados três anos, o ministro da FazendaPedro Malan admitiu que não tinha havido con-dições conjunturais à destinação dos recursos doFSE exclusivamente para a saúde, pois o não pa-gamento dos serviços da dívida poderia exercerforte pressão inflacionária, comprometendo a tãodesejada estabilidade monetária. Propôs-se novaemenda constitucional para o Fundo de Estabili-dade Fiscal (FEF) – agora com o nome adequadoaos seus fins –, mantendo-se o mesmo propósito:

exclusão de 20% dos impostos arrecadados pelaUnião para essa prioridade econômica.

Três anos mais tarde, em 2000, pela emendaconstitucional 27, com a mesma justificativa emetodologia, criou-se, legalmente, a possibilidadede desvinculação dos mesmos 20% dos impostosarrecadados pela União – daquela data em diante,e com autorização prevista até 2007, ficaria co-nhecida como Desvinculação dos Recursos daUnião (DRU) –, que, há uma década, oneram aspolíticas sociais, sem compensações financeiras.

Esse mapeamento do quadro econômico-financeiro é fundamental nessa reflexão sobre aspolíticas educacionais implementadas no perío-do, pois nos dá as “pistas” necessárias para umamelhor compreensão das tendências e perspecti-vas – positivas e negativas – no novo século.Além disso, delimita a nossa possibilidade de“manobra” financeira no campo específico daeducação.UMA NOVA E CONTRADITÓRIA LDB É APROVADA

A aprovação da nova Lei de Diretrizes eBases (LDB), promulgada em 20/dez./96, tam-bém obedeceu a uma estratégia peculiar. Fora dis-cutida desde o final de 1988, durante sete anos,quase ininterruptamente e de maneira pública.Apesar das divergências entre os diferentes gru-pos, a partir de 1996, iniciados os debates sobre aPEC 233 e o Fundef, saiu de cena aquele projetode lei – era como se LDB, Fundef e EC 14 fossempropostas distintas.

Os debates sobre a regulamentação doFundef, sobre a forma dos repasses da União esobre o quantum de recursos financeiros seriadisposto pelo governo federal, ocupavam tempo eempenho dos sindicatos e entidades nacionais – jáque esse era o único “dinheiro novo” disponívelpara o novo fundo. No período recorde de iníciode outubro a começo de dezembro de 1996, emque a LDB, “atualizada” pelo governo, voltou àCâmara Federal para ser “aprovada”, seu deputa-do relator, José Jorge (PFL/PE) – na verdade, relatorde toda a legislação educacional do primeiro go-verno FHC –, viajou para os EUA e, no seu retor-no, “lembrou” que havia deixado parecer pronto

8 Consulte-se o Relatório do Grupo de Trabalho sobre Financiamentoda Educação, Anexo 2, constante da RBPE n.º 200/201/202, v. 82,INEP/MEC, jan./fev. – 2001, publicada em set./03, p. 135.

impulso40.book Page 42 Monday, October 3, 2005 10:39 PM

Impulso, Piracicaba, 16(40): 35-53, 2005 43

na gaveta de sua mesa, propondo votação em ple-nário, por suposto consenso já “alinhavado”.

Foi com esse “novo” estilo – sem discussãocom as entidades, sindicatos ou representantesdo próprio Legislativo, mas com o compromissode as bancadas aliadas aprovarem o texto do Exe-cutivo sem alterações substantivas – que se votoua LDB, em tramitação quase tão rápida quanto aLDB dos militares, como ficou conhecida a lei n.º5.692/71. Duas únicas alterações foram aceitaspelo relator: a organização do ensino fundamen-tal não permaneceria dividida exclusivamente emdois ciclos (ele concordou em retirar a palavradois) e os cursos de especialização não teriamcorrespondência com os de mestrado e doutora-do, como reivindicava influente proprietário deuma grande empresa universitária privada.

Evidentemente, as fortes contradições en-tre o texto da lei e suas disposições transitóriasnão foram sequer levantadas em plenário – espe-cialmente quanto à indução da municipalizaçãodo ensino fundamental. Analise-se o item I, do§ 3.º, do art. 87 das disposições transitórias, com-parando-se com o disposto no item II, do art. 10,da LDB, e com os §§ 2.º e 3.º, do art. 211, daConstituição Federal. Os dois primeiros disposi-tivos legais estabelecem, de forma inequívoca, afunção concorrente de municípios e Estados naoferta do ensino fundamental. No entanto, nasdisposições transitórias, o Executivo resolveu“determinar” que essa função seria “supletiva”aos Estados e à União, ao dispor que “Cadamunicípio e, supletivamente, o Estado e a União,deverá: I – matricular todos os educandos a partirdos sete anos de idade e, facultativamente, a par-tir dos seis anos, no ensino fundamental”.9

Ora, se todos os municípios tivessem cum-prido tal determinação, entre 2004 e 2005 todasas crianças e adolescentes seriam atendidos ape-nas por essa instância, em especial as séries ini-ciais, e não de modo concorrente, como determi-na a Constituição Federal. O art. 10 da LDB, poroutro lado, propõe formas de colaboração entre

municípios e Estados, em que fica claro não haveruma única maneira de colaboração entre as esfe-ras públicas, nem de oferta do ensino fundamen-tal. Estados e municípios podem, sempre que de-sejarem, ofertar escolas fundamentais de oito sé-ries, por exemplo, entre outras alternativas.

A LDB vai além, propondo, pelo menos,dois critérios para uma adequada distribuiçãoproporcional de responsabilidades: a população aser atendida e os recursos disponíveis em cadauma dessas esferas do poder público. Poderia su-gerir, também, um terceiro ou quarto critério,uma vez que a lei não os limita ou impede: porexemplo, a tradição cultural de cada sistema deensino na comunidade ou a vontade política deum novo governo eleito, que queira “experimen-tar” outras possibilidades de oferta.

Como se isso não bastasse, o § 4.º do art.75 nega, novamente, o direito de Estados e muni-cípios de estabelecer condições de colaboraçãodiversas da “planejada” e “exigida” pelo Executi-vo. Senão, vejamos: “A ação supletiva e redistri-butiva não poderá ser exercida em favor do Dis-trito Federal, dos Estados e dos municípios se es-tes oferecerem vagas, na área de ensino de suaresponsabilidade, (...) em número inferior à suacapacidade de atendimento”.10

Não por outra razão os estudos indepen-dentes – aqueles não produzidos por encomendado Executivo – demonstram não só que a muni-cipalização ou “prefeiturização” do ensino funda-mental, no caso, era o aspecto nodal da propostado Fundef, como também que a segunda parte dacomprida denominação desse fundo – a valoriza-ção do magistério – só teria chance de ser cum-prida quanto a algumas poucas e não onerosasreivindicações desses profissionais.

A formação do magistério em nível supe-rior, por exemplo, se, por um lado, traduzia anti-ga reivindicação do magistério das séries iniciais,por outro, certamente o prazo estabelecido na leinunca foi por ele pretendido. Qualquer professo-ra ou sindicato sabe que esse “apressamento” naformação, inclusive com impedimento de ingres-

9 Lei Federal nº 9.394/96 "Estabelece as Diretrizes e Bases da EducaçãoNacional e dá outras providências" – cf. art. 11 e 87 (grifos acrescidos). 10 Ibid. (grifos acrescidos).

impulso40.book Page 43 Monday, October 3, 2005 10:39 PM

44 Impulso, Piracicaba, 16(40): 35-53, 2005

so na carreira docente, estaria necessariamentevinculado à desqualificação de seu processo deformação teórico-profissional.

Outra escandalosa contradição entre o cor-po da lei (art. 62) e suas disposições transitórias(§ 4.º, do art. 87) é esse impedimento de ingressodocente na carreira ao não portador de diplomade ensino superior. Isso porque o primeiro artigoexige somente formação em nível médio para adocência na educação infantil e nas séries iniciaisdo ensino fundamental, desmentindo a segundaproposição. Mas, mesmo o CNE tendo esclareci-do corretamente, em parecer, os direitos dos pro-fissionais do magistério, não tomou a iniciativade pedir ou encaminhar proposta de revisão daLDB quanto a esses aspectos contraditórios.

Em relação à formação superior, não foi ne-cessário esperar muito tempo: num período cur-to, o CNE passou a aprovar propostas de forma-ção de professores das redes públicas, com dura-ção de dois anos até o máximo de dois anos emeio, alegando que a “valorização” da prática se-ria traduzida em “horas virtuais” de formação.Além disso, esses cursos poderiam ser realizadosna dupla modalidade – presencial e a distância –,com a adoção de “tutores”, ou seja, professoresorientadores “de estudos” que assumem papelpolivalente no conhecimento científico, artístico,tecnológico ou literário, predefinido.

Ainda para viabilizar essa “formação emserviço”, que ao mesmo tempo titula garantindodiploma de nível superior, a LDB determinou –sempre nas disposições transitórias e novamenteno art. 87 (item III) – que os municípios deveriam“realizar programas de capacitação para todos osprofessores em exercício, utilizando também,para isso, os recursos da educação a distância”.11

“Supletivamente”, essa tarefa seria responsabili-dade dos Estados e da União, no entanto, não sãoessas as esferas públicas que possuem e mantêmas universidades públicas? Por que a LDB não pre-viu que essa responsabilidade “concorrente” ca-beria prioritariamente às instâncias com melhorescondições – e dever histórico – de realizá-la? Que

condições de sustentar a negociação e a elabora-ção de programas diferenciados de formação te-riam os municípios – em especial os pequenos,maioria quase absoluta no Brasil?

A desejada inauguração da privatização eterceirização dessas formações, por dentro dospróprios sistemas públicos de ensino, parece tersido o objetivo “oculto”. A exigência legal da bre-vidade no prazo fatal para essas formações as tor-naria particularmente atraentes para as agênciasprivadas, já que sublocam serviços sem grandesexigências prévias e, portanto, poderiam estarpresentes, com oferta de cursos presenciais e adistância “em qualquer parte do País”, rapida-mente.

Mas essa prioridade de formação “rápida”em nível superior não parou aí. A lei n.º 9.424,que regulamentou o Fundef, autorizou que, peloprazo de cinco anos, os sistemas públicos pudes-sem “descontar” parte dos 60% vinculados ao pa-gamento dos professores em exercício, em cursosde formação. Apesar da EC 14 determinar que os60% seriam destinados, exclusivamente, para pa-gamento dos “professores em efetivo exercí-cio”,12 a lei n.º 9.424 traduziu, como sinônimos,“professores” e “profissionais do magistério”(art. 7.º) e nenhum sindicato nacional reclamouda ampliação conceitual indevida, que geraria –como o fez – o uso das mesmas verbas para di-ferentes profissionais, reduzindo-se, evidente-mente, as possibilidades de aumento ou valoriza-ção salarial daquela categoria.

Ainda sobre os salários dos professores,cabe destacar – e os estudos já mencionados con-firmam – que, com exceção da categoria trabalha-dora escrava,13 identificada em cerca de 458municípios das Regiões Norte e Nordeste, ondeo “salário” apontado variava de 30 a 60 reais men-sais – para um salário mínimo nacional de 120reais, em 1998 –, não houve aumento salarial real

11 Ibid., art. 87, item III (grifos acrescidos).

12 Nos termos do § 5.º, da nova redação dada pela EC 14 ao art. 60, doato das disposições transitórias, da Constituição Federal de 1988.13 Estamos considerando na categoria trabalhadora escrava a profes-sora das séries iniciais – somente elas – não concursada, em geral sem aformação escolar mínima exigida, nem vínculo contratual legalizadocom as prefeituras, e que recebia cerca de meio salário mínimo – oumenos de um salário mínimo.

impulso40.book Page 44 Monday, October 3, 2005 10:39 PM

Impulso, Piracicaba, 16(40): 35-53, 2005 45

para nenhuma função do magistério, depois dessadata. No máximo, foram possíveis as atualizaçõesmonetárias.

Esse quadro agrava-se nos municípios deporte médio e grande, com sistema municipal deensino consistente, direitos trabalhistas mínimosconquistados e estatutos do magistério em vigor– concursos públicos para provimento dos cargos,jornadas de trabalho com previsão de atividadespedagógicas para além das horas com alunos, car-reira com previsão de ascensão por mérito, noqual os cursos realizados eram variável impor-tante, possibilidade de afastamento, remuneradoou não, para freqüentar cursos de pós-graduaçãoetc. –, pois neles o “congelamento” salarial foi, econtinua sendo, um impasse.

Eventualmente, se houver “sobra” de al-gum recurso da verba do Fundef, ela é distribuídasob a forma de “gratificação” extra, mas sem con-dições de ser incorporada nos salários-base. Emrazão disso, a variável qualidade de ensino, tendocomo pressuposto a dedicação da professora aum só posto de trabalho, fica cada vez mais dis-tante, pois, atualmente, para receber o mesmo sa-lário – em termos de valor aquisitivo –, ela precisaaumentar para dez ou 12 horas a sua jornada diá-ria de trabalho, antes realizada, no máximo, emseis a oito horas/dia.

No entanto, não houve constrangimentoaté hoje por parte da União, nem ela se sentiuobrigada a completar os recursos destinados aoFundef. Nem mesmo em relação ao art. 74 daLDB, que exige que a União em colaboração comos outros entes públicos, estabeleça “padrão mí-nimo de oportunidades educacionais para o ensi-no fundamental, baseado no custo mínimo poraluno, capaz de assegurar ensino de qualidade”, aesfera federal deu andamento conseqüente. Ouseja, o cálculo do gasto-aluno14 anual, previstopelo Fundef e estimado pelo governo federal, emnenhum momento incorporou qualquer das va-

riáveis viabilizadoras de um “ensino de qualida-de” ou “as variações regionais” que interferem nocusto dos insumos, conforme recomenda, expli-citamente, o parágrafo único desse mesmo artigo.Ao contrário, para muitos municípios e Estados,a forma de fazer valer “mais” os recursos do Fun-def foi aumentar o número de alunos nas salas deaula, mantendo-se o mesmo número de profes-sores.

A única diferenciação adotada, assim mes-mo só em 2000, foi o percentual de 5% a maispara as turmas de 5.ª a 8.ª séries. Para o ensino ru-ral, embora prevista diferenciação de cálculo nalei a essa modalidade de ensino, ela não foi ado-tada. Em relação ao ensino especial, executou-sea mesma percentagem de diferenciação de 5%,sendo a única diferença quanto ao ensino funda-mental regular a aplicação em qualquer “série”, enão só nas finais.

Essas duas “ausências” de intervenção nadisputa política por mais verbas para a educaçãoexplicitam, objetivamente, as novas propostas deatuação e de concepção de gestão pública a seremapresentadas, de ora em diante, como exigência“natural” de racionalidade do sistema. AVALIAÇÕES NACIONAIS COMO ESTRATÉGIAS DE CONTROLE E DE PADRONIZAÇÃO DAS AÇÕES

Outro aspecto fundamental para o balançodas políticas educacionais da década de 1990 é amudança do papel da avaliação como critério dedesempenho das atividades dos sistemas educa-cionais. Historicamente considerada como mo-mento privilegiado do processo ensino-aprendi-zagem desenvolvido pelo professor em sala deaula e, por isso mesmo, contínuo e cumulativo,“com prevalência dos aspectos qualitativos sobreos quantitativos e dos resultados ao longo do pe-ríodo sobre os de eventuais provas finais”, nostermos da LDB, letra “a”, V, do art. 24, a modali-dade exames nacionais, sob a coordenação exclu-siva do Ministério de Educação (MEC), assumeversão definitiva.

Os exames nacionais, destinados a avaliar a“qualidade” do ensino fundamental – já testadosem 1993 – são sistematizados e entram para o ca-lendário anual do MEC com o apelido de Sistema

14 A denominação correta é gasto-aluno, e não custo-aluno, pelo fato deo governo federal calcular esse valor anual somente sobre os recursosdisponíveis no orçamento. Não houve propostas, nos últimos oitoanos, para a incorporação do cálculo de custo-aluno como disponibili-dade financeira necessária, a fim de atuar com este outro patamar depossibilidades.

impulso40.book Page 45 Monday, October 3, 2005 10:39 PM

46 Impulso, Piracicaba, 16(40): 35-53, 2005

de Avaliação do Ensino Básico (SAEB), envolven-do as escolas públicas de todo o território nacio-nal. Já em 1995, o ensino médio e as escolas pri-vadas passam a participar, pela primeira vez, dosexames do SAEB e os 27 Estados da Federação“aderiram” a eles. Adotaram-se, desde então,técnicas mais apuradas de aferição de desempe-nho, com a construção de “escalas de habilida-des”. Introduziram-se, também, instrumentos delevantamento de dados sobre as característicassocioeconômicas e culturais dos alunos, bemcomo sobre seus hábitos de estudos.

E, com exceção da educação infantil, ne-nhuma das etapas da educação básica e da supe-rior fica sem a interferência do processo de ava-liação nacional aplicado por empresa “de notóriosaber comprovado”.15 Para o ensino médio, nãosó se adotam os exames nacionais, mas esses – di-ferentes do SAEB – introduzem modificação con-siderada essencial para o sucesso e continuidadedo processo. Não se verifica, nesse caso, se e quaisconteúdos curriculares foram aprendidos pelosalunos, mas, por meio do Exame Nacional doEnsino Médio (ENEM), divulga-se que a aquisiçãode “habilidades e competências” será dimensio-nada. Evidentemente, o acesso aos resultadosdesses exames por futuros empregadores garanteque o trabalho das áreas de “recursos humanos”seja aliviado, pois, se a empresa pretende admitirum vendedor, por exemplo, bastará consultar se ojovem pretendente atingiu escore significativo na“habilidade oral” das provas do ENEM.

Porém, o objetivo de tão alto investimentocientífico e financeiro não se esgota na simplesverificação da qualidade do ensino brasileiro, poiseste “sistema nacional de avaliação” – previsto naLDB em substituição a um “sistema nacional deeducação”, desejado pelos educadores – traziadois outros desdobramentos: a necessidade depropostas nacionais (únicas?) de currículos e a

“domesticação” dos professores para aceitá-las.Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs),conjunto de sugestões metodológicas de ensinoelaboradas pelo MEC e divulgadas em 1997, forampropostos como orientadores de toda a ação do-cente, apesar das críticas de educadores e espe-cialistas sobre a inconveniência de elaborar um“programa único” para um país continente. Osparâmetros destinados ao ensino fundamentaltêm, na sua versão final, perto de mil páginas!Não se conhecem, no mundo ocidental, parâme-tros tão longos e detalhados como esses.

A Constituição Federal propõe, correta-mente, que se estabeleçam “conteúdos mínimos”para o ensino fundamental, de maneira a assegu-rar formação básica comum aos brasileiros (art.210), não “compêndios” ou guias curricularespara os professores adotarem em sala de aula. Noentanto, para que os exames propostos pelo MECpossam ter conseqüências de âmbito nacionalnos diferentes sistemas de ensino, “parâmetros”nacionais – na verdade, programas – foram prescri-tos. E que resultados pedagógicas o MEC esperavadessas “sugestões” nacionais, no cotidiano esco-lar? Que os professores de cada escola as adotas-sem como proposta pedagógica deles, pois issolegitimaria os exames nacionais, cujos conteúdosapóiam-se nesses parâmetros nacionais.

Mas como, por tradição, os professores são“rebeldes” em relação a decisões de cúpulas go-vernamentais – que, ignorando a cultura histórico-pedagógica, impõem “pacotes” educacionais hálongo tempo – e, em razão disso, poderiam nãoadotar “espontaneamente” os referidos progra-mas, providências complementares foram adota-das pelo governo federal. Em 1998, último ano daprimeira gestão FHC, foram aprovadas duas ECs –19 e 20 –, com graves conseqüências para o fun-cionalismo público. A primeira, de 4 de junho,modificou princípios e normas da administraçãopública, numa semi-reforma do Estado brasileiromais adequada às propostas neoliberais; a segun-da, de 15 de dezembro, alterou o sistema de pre-vidência social, particularmente no que se refereàs garantias de isonomia entre pessoal civil da ati-

15 Contratou-se, inicialmente, a Fundação Carlos Chagas (FCC) pararealizar e aplicar os exames do SAEB, ENEM e Provão; num segundomomento, eles foram feitos mediante consórcio estabelecido entre aFCC e a Fundação Cesgranrio; e, atualmente, somente essa segundatem sido a vencedora das licitações, com custos estimados entre 40 e60 milhões de reais cada um. Para esse fim, não há falta de recursosfinanceiros.

impulso40.book Page 46 Monday, October 3, 2005 10:39 PM

Impulso, Piracicaba, 16(40): 35-53, 2005 47

va e aposentados e entre os Poderes Executivo,Legislativo e Judiciário.

A EC 19 – da lavra do ex-ministro da Ad-ministração e Reforma Administrativa (MARE),Luis Carlos Bresser Pereira – é o primeiro docu-mento legal a expressar, radicalmente, a reconcei-tuação das atividades essenciais do Estado, defen-dendo a concepção de público não-estatal, umavez que a atividade, sendo de interesse público,não precisaria ser realizada necessariamente peloEstado. Nessa concepção, os únicos funcionáriospúblicos considerados “essenciais” são os vincu-lados às auditorias e às polícias.16 Os “serviços”públicos oferecidos pela educação e pela saúdepodem, a partir dessa data, ser oferecidos poragentes “privados”.

Na área educacional, a proposta para atua-lizar esses funcionários à “nova” realidade, “acor-dando-os” desse comportamento letárgico que a“inoperante” administração pública lhes propicia-va, se concretiza a partir de intervenção em duasvertentes: responsabilizar cada profissional deeducação – e, portanto, todos os profissionais –pelos resultados educacionais alcançados pela suaunidade escolar e “reconhecer” esses resultadospor meio do pagamento de gratificações, propor-cional ao êxito ou sucesso da ação “coletiva” em-preendida. Em outras palavras, de ora em diante,os exames nacionais unificados – ou, quiçá, esta-duais – constituem o principal critério de avalia-ção do desempenho do professor e do especialis-ta de educação e os respectivos aumentos salariais– quando concedidos – devem estar relacionadose ser proporcionais ao “produto” alcançado.

Nesse sistema – e é isso o que significa umsistema nacional de avaliação –, os PCNs ganhamimportância inesperada, pois devem ser adotadoscom a maior fidelidade possível, se a escola nãoquiser ver seus “prêmios” e outros incentivos so-ciais distribuídos a outros funcionários mais“competentes” ou dóceis. Nesse sentido, as orien-tações e “sugestões” contidas nos PCNs, divulga-

das como já “testadas” num universo grande de“complexas e múltiplas situações educativas”,correspondem sempre a um diagnóstico mais ob-jetivo e “científico” – porque padronizado – dasdificuldades educacionais e das “melhores” alter-nativas para superá-las, complexidade que os pro-fessores, nas salas de aula ou nos sindicatos, nãotêm condições de contestar.

Qual a atitude esperada, então? Que osPCNs sirvam de guias “criativos” para os profes-sores – sempre “mal formados” – organizaremsuas aulas, de modo a garantir o “sucesso” de to-dos os seus alunos. E se não der certo essa solu-ção? A “culpa” será do professor que – portadorde “incompetência” quase atávica – não conse-guiu entender ou praticar, eficazmente, as suges-tões oferecidas. Aprender, em conseqüência,como fazer, independentemente do por que fazer,passa a ser prioritário para a sobrevivência doprofessor nas avaliações de desempenho.O SEGUNDO GOVERNO FHC: AS (MESMAS) POLÍTICAS E PRIORIDADES

Fernando Henrique foi reeleito para um se-gundo mandato (1999/2002) e, na educação,manteve-se o mesmo ministro, fato raro e inéditona história governamental federal. No ano de1999, continuou a febre “legisferante” caracterís-tica desse governo: não ficaria nível ou modalida-de de ensino que não fosse “regulamentada” porele, por meio do CNE. As aprovações de diretri-zes nacionais curriculares e das diretrizes “opera-cionais” se sucederam. Entre as principais regula-mentações, a educação de jovens e adultos (EJA)teve suas diretrizes curriculares aprovadas em2000; a educação profissional de nível médio, em1999, 2000 e 2001; a educação no campo, em2001 e 2002; as escolas indígenas, em 1999; a edu-cação infantil, em 1998, 1999 e 2000; a educaçãoespecial, em 2001; os ensinos fundamental e mé-dio, em 1998; e a formação de professores para aeducação básica, em 1999 e 2000.

Evidentemente essas legislações não foramaprovadas de forma “tranqüila”, pois traduzem asmais diversas visões e perspectivas do País e daeducação. As referentes à formação de professoressão um bom exemplo, pois geraram manifesta-

16 O art. 24 da EC 19, ao dar nova redação ao art. 241 da CF/88, autoriza“a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência totalou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continui-dade dos serviços transferidos” (grifos acrescidos).

impulso40.book Page 47 Monday, October 3, 2005 10:39 PM

48 Impulso, Piracicaba, 16(40): 35-53, 2005

ções das principais instituições e entidades cientí-ficas e educacionais, bem como de universidadespúblicas e privadas, preocupadas com a tendênciade “simplificação” da formação dos professores,concretizada pela redução tanto do período deformação – às vezes, até em dois anos! – quantoda carga horária destinada aos fundamentos daeducação em benefício das metodologias de en-sino. Fato mais grave se deu quando da aprovaçãode projetos especiais de formação de professoresna modalidade semipresencial ou a distância.

Em maio de 2000, foi aprovada a lei com-plementar (LC) 101, conhecida como Lei da Res-ponsabilidade Fiscal (LRF), cujo conteúdo podeser considerado ainda desconhecido pelos profis-sionais de educação. Essa LC “criminaliza” apolítica, transformando aparentemente em atoasséptico as imposições destinadas a “conter” osdirigentes municipais e estaduais que ousarempriorizar as políticas sociais em detrimento da es-tabilização econômica. É nesse ato legal, também,que se consumou a permissão de utilização de, nomáximo, 60% dos recursos orçamentários paraos gastos com pessoal. Tal restrição – com gravesconseqüências para a expansão das políticas so-ciais – praticamente “congelou” o aparelho de Es-tado ao seu tamanho de 2000.

O sistema social teria poucas condições deexpansão, desenhando-se, como tendência, aoferta de serviços públicos focalizada nos sujeitosmais pobres, com pouca ou nenhuma condiçãode automanutenção. Os salários dos funcionáriospúblicos sofreriam, dali para frente, a restriçãopercentual imposta, pois só se aumentaria o nú-mero de funcionários e serviços existentes commaciço investimento em tecnologia ou com claracontenção salarial. Caso um prefeito – “amigo”das políticas sociais – tentasse resistir ao cerco,seria punido administrativa e criminalmente nostermos da lei. Não por acaso, os dados esta-tísticos indicam, nesse período, “estabilidade”dos dados de atendimento nas áreas sociais ou,em outras palavras, tendências de congelamentono atendimento.

Em 2001, sempre surpreendendo os educa-dores, o ministro da Educação fez malabarismos

e conseguiu que o Plano Nacional de Educação(PNE) elaborado pelo governo17 fosse votado noperíodo de férias escolares dos professores brasi-leiros. Assim, no mês de janeiro de 2001, com re-latoria do deputado Nelson Marchezan (PSDB/RS), o PNE foi aprovado pela Câmara Federal,tendo passagem simbólica pelo Senado, pois suatramitação revelou-se – como todos os principaisatos legais de FHC – sumaríssima. Sob n.º 10.172,o PNE se tornou lei. Porém, o presidente da Re-pública vetou nove artigos do projeto aprovado,todos os que possuíam alguma implicação finan-ceira – mesmo de pequena monta –, levando odeputado Marchezan a se sentir “traído” pelo seugoverno e a manifestar-se contrário aos vetospresidenciais. Mesmo assim, o governo não secomoveu, não permitindo que os vetos ao PNEfossem colocados em plenário. Até hoje, aliás, es-ses vetos nunca foram submetidos ao plenário doCongresso Nacional.GOVERNO LULA E SUAS CONTRADIÇÕES: TENDÊNCIAS E PERSPECTIVAS PARA O SÉCULO XXI

Luiz Inácio Lula da Silva, líder sindical emetalúrgico, ex-presidente do Sindicato dosMetalúrgicos do ABC – um dos mais ativos sin-dicatos do País – e fundador do Partido dos Tra-balhadores (PT), elegeu-se presidente da Repúbli-ca com mais de 50 milhões de votos, no segundoturno, ultrapassando, por significativa margem devotos, seu adversário José Serra (PSDB/SP). Ven-ceu as eleições em coligação com o Partido Libe-ral (PL), que tem o vice da chapa, e com o apoiodo Partido Comunista do Brasil (PC do B) e doPartido Socialista Brasileiro (PSB).

Na ausência de decisão política na imple-mentação de novo modelo de política econômica,radicalmente alternativo ao existente no País, e depropostas de gestão pública que produzissemações vivificadoras na burocracia central esterili-zada, o governo Lula – depois da festa da posse,em que a população saudou, de forma participa-tiva e comovente, como nunca se vira no Planal-

17 Existiam no Congresso Nacional dois planos em análise: o dogoverno e o da “sociedade brasileira”, de autoria de um grupo de edu-cadores – estimados em 6 mil – do Fórum Nacional em Defesa daEscola Pública, que realizou dois Congressos Nacionais de Educação(Coned), com o objetivo de elaborar coletivamente esse PNE.

impulso40.book Page 48 Monday, October 3, 2005 10:39 PM

Impulso, Piracicaba, 16(40): 35-53, 2005 49

to, seu chefe de Estado, de origem popular – temsurpreendido pela repetição dos mesmos argu-mentos e práticas do governo anterior.

Seu primeiro projeto importante – a Refor-ma da Previdência –, compromisso do governoanterior com agências internacionais, encontrouna gestão Lula condições excepcionais de legiti-midade, que permitiriam completar ações que oanterior não tinha tido força política para fazê-lo.É difícil imaginar momento tão delicado, do pon-to de vista político, como o dos protestos nacio-nais de funcionários públicos vindos de todos oscantos do País, em Brasília. Lula e o PT represen-tavam a esperança e o desafio histórico para aAmérica Latina, até então sem lideranças e movi-mentos sociais capazes de motivar o enfrenta-mento, de forma coletiva, dos sucessivos ataquese investidas dos setores conservadores.

A necessidade de manutenção de superávitspara o pagamento dos juros e serviços da dívidaexterna aprisiona a economia e gera a mesma pa-ralisia do governo anterior, exatamente pela faltade recursos disponíveis para as políticas sociais.Na educação, nomeou-se para ministro o sena-dor Cristóvam Buarque, ex-reitor da Universida-de de Brasília e ex-governador do Distrito Fede-ral. Engenheiro de muitas idéias, mas personalis-ta, compôs sua equipe praticamente com os quehaviam trabalhado com ele no governo do Dis-trito Federal. Iniciou a gestão, convidando aUnião Nacional dos Estudantes (UNE) para con-versar e visitou os estudantes na sua sede, o quenunca antes acontecera. Apontou inovações, masnão conseguiu traduzir, em seu breve mandato, oacúmulo do próprio PT na área educacional, man-tendo a política do PSDB em muitos dos novosprojetos.

Cristóvam Buarque chegou a propor a cria-ção de “redes de formação” permanente para osprofessores, para, em seguida, defender processode “certificação da competência” deles a ser com-provada por exames nacionais, periódicos, e des-tinados a todos os professores das redes públicasdo Brasil! A CNTE protestou e a reunião nacionalpara aprovação dos “conteúdos” principais desseprocesso de formação e de certificação expôs a

polêmica, com a palavra de ordem “Formar, sim;certificar, não”, propondo sua suspensão comoforma de “reaproximar” o governo dos sindicatosnacionais.

O projeto-bomba seguinte foi o bolsa-infância, destinado a oferecer uma bolsa – tão pe-quena, que recebeu dos educadores, e dos pró-prios petistas, o apelido de bolsa-pochete – no va-lor de 50 reais mensais, para que as mães pobresficassem em casa, com seus filhos, evitando – oureduzindo – a pressão pela criação de creches emperíodo integral. Tal projeto previa também a en-trega de um “kit pedagógico”, com previsão detreinamentos para que as mães pudessem “utilizá-lo” corretamente e brincassem, “de maneira peda-gógica”, com seus filhos. Anunciado com certaexpectativa positiva na mídia, o movimentoInter-Fóruns – reunião dos Fóruns Estaduais emDefesa da Educação Infantil – organizou-se rapi-damente e em nível nacional, solicitando ao mi-nistro o abandono do projeto, por contrariar osprincípios do direito à educação infantil.

Além da criação de um grupo de trabalhointerministerial para a reforma do ensino supe-rior, o ministro da Educação criou o projeto BrasilAlfabetizado, em substituição ao da Alfabetiza-ção Solidária, do governo anterior. Manteve, mes-mo assim, a maior percentagem de recursos nasmãos da mesma ONG, a Alfabetização Solidária,naquele momento ainda dirigida pela ex-primeiradama, a socióloga Ruth Cardoso. Somente no fi-nal do segundo ano de governo, com novo mi-nistro, a prioridade às entidades oficiais – muni-cípios e Estados – foi retomada. O Projeto BrasilAlfabetizado, pretensioso nos objetivos, nãoconseguiu a adesão esperada da sociedade, man-tendo-se como mais um dos que não disputaram,com o vigor necessário, a prioridade de alfabeti-zação urgente e competente dos brasileiros. Já oMova Brasil – proposto por Paulo Freire, em1989 – e considerado programa prioritário nacampanha eleitoral, não ganhou espaço no gover-no petista, nem com o primeiro nem com o se-gundo ministro da Educação.

Os estudos referentes ao novo Fundo deManutenção e Desenvolvimento da Educação

impulso40.book Page 49 Monday, October 3, 2005 10:39 PM

50 Impulso, Piracicaba, 16(40): 35-53, 2005

Básica e Valorização do Magistério (Fundeb) –previsto inclusive no programa de governo –, emsubstituição ao atual Fundef, cuja vigência cessaem 2006, e agora abrangendo toda a educaçãobásica (educação infantil + ensino fundamental+ ensino médio) e suas diversas modalidades, nãoavançaram significativamente, de modo que elenão seria definido no primeiro ano de governo.

Em relação ao sistema de avaliação implan-tado, há esforços no sentido de reformulá-lo – eaté, de suspendê-lo –, mas o receio de protestosgeneralizados acaba inibindo essas iniciativas emuito pouco se altera do “desenho” anterior.Pode-se afirmar inclusive que alguns membrosdo governo petista defendem com maior vigor egosto as propostas anteriores; assim, o SAEB, nes-se terceiro ano do governo Lula, abriu mão da es-colha das escolas por amostragem, assumindoque os exames abrangerão o conjunto das escolasfundamentais públicas brasileiras. Ora, exceto aFundação Cesgranrio, que ganha bastante dinhei-ro com esses exames, não se conhece outra van-tagem (pedagógica) para a atual opção, pois o en-volvimento de todas as escolas implica e motiva oranqueamento entre elas, o que, do ponto de vistaeducacional, é desaconselhável.

Nem mesmo a promessa de realizar de for-ma democrática, já no primeiro ano de mandato,uma Conferência Nacional de Educação foi cum-prida, frustrando petistas e educadores sobre umpossível encontro nacional para discussão e esta-belecimento de uma agenda política orientadoradas ações do governo, dos movimentos sociais edo Legislativo.

Cristóvam Buarque foi substituído porTarso Genro, ex-prefeito de Porto Alegre e ex-deputado federal, pouco conhecedor da áreaeducacional, mas considerado homem “de ação”,com acesso fácil ao presidente da República.Estabeleceu três projetos prioritários para a suaPasta: o Universidade para Todos (ProUni), que,na ocasião, ninguém sabia de que se tratava, aReforma do Ensino Superior e a aprovação donovo Fundo para Financiamento da EducaçãoBásica (Fundeb).

Novas surpresas. O primeiro projeto doministro recém-empossado foi a oferta de bolsaspara alunos “pobres” em cursos superiores priva-dos – felicidade geral dos empresários da educa-ção. De grande apelo social e fortemente popu-lista, tal projeto libera, num primeiro momento,escolas filantrópicas e comunitárias, e, num se-gundo, quem quiser aderir (portanto, também asescolas privadas), do pagamento de percentualque deveriam investir em ações sociais, a fim defazerem jus à própria denominação de comunitá-rias ou filantrópicas. Concede, assim, privilégios aqualquer escola, sem outras exigências, além damatrícula dos bolsistas. Tudo isso, em defesa dademocratização do ensino superior brasileiro!

A segunda prioridade – a Reforma do En-sino Superior –, que já está na sua segunda versão,apresenta como ponto positivo a instalação depermanentes debates, em muitos pontos do País,com a expectativa de, na proposta final, as suges-tões da comunidade científica e universitária se-rem levadas em conta. Aqui não se discutirãoseus méritos eventuais, já que esse assunto estásendo estudado mais profundamente por outrosespecialistas.

Por fim, o projeto de emenda constitucio-nal (PEC) que altera o atual Fundef, substituindo-o pelo Fundeb, divulgado recentemente,18 frus-trou educadores e políticos, pois, embora manti-do o nome educação básica, exclui as crianças dezero a três anos de idade da possibilidade desse fi-nanciamento. O PEC prevê a utilização de 80%dos 25% dos recursos vinculados à educação paraa composição do Fundeb. O governo propõe du-ração de 14 anos para o novo fundo: consideran-do-se sua aprovação ainda em 2005, sua vigênciateria início em 2006 e vigoraria até 2019. Assimcomo o Fundef, o novo fundo foi criado pelaalteração do art. 60 do ato das disposições tran-sitórias da Constituição Federal, e não pelo corpodesta, como expresso no primeiro projeto do go-verno. Do mesmo modo que o Fundef, são des-tinados 60% do total de recursos para o paga-

18 O PEC que cria o Fundeb foi entregue pelo ministro da Educação aoCongresso Nacional, em 14/jun./05 (n.º 415/2005).

impulso40.book Page 50 Monday, October 3, 2005 10:39 PM

Impulso, Piracicaba, 16(40): 35-53, 2005 51

mento de profissionais do magistério da educa-ção básica em efetivo exercício, e não mais 80%,como propôs a CNTE, o que não nos permite pre-ver possibilidades de aumentos ou ganhos sala-riais a curto e médio prazos.

O PEC propõe, também, uma implantaçãogradativa desse fundo, prevendo-se quatro anospara a sua completa inserção. Nesse período detransição, tanto os recursos financeiros a seremalocados quanto o número de alunos a ser com-putado teriam quatro anos para chegar aos 100%.Desse modo, no primeiro ano, seriam computa-dos todos os alunos do ensino fundamental –hoje em dia, no Fundef – acrescidos de 25% dealunos da pré-escola, do ensino médio e da edu-cação de jovens e adultos; no segundo ano, essepercentual subiria para 50%, ou seja, todos os doensino fundamental, acrescidos de 50% do totalde alunos apurados no ensino médio, na educa-ção de jovens e adultos e na pré-escola; no tercei-ro ano, o percentual se elevaria para 75%, e, noquarto, atingiria a totalidade dos alunos da edu-cação básica – não incluídas nesses totais as crian-ças matriculadas em creches ou na faixa etária dezero a três anos.

Prevê-se, ainda, complementação pela Uniãona mesma sistemática atual do Fundef, ou seja, aUnião só irá complementar aqueles fundos esta-duais em que o valor nacional não for atingido.Na mesma lógica, os recursos do Fundeb são es-timados tendo como pressuposto que nenhumente público ousará ampliar, significativamente, onúmero de alunos atendidos atualmente. Casoisso aconteça, poderá provocar redução do valorgasto-aluno/ano, na medida em que os recursossão os mesmos, atendendo o mesmo número dealunos ou menos. Se um número determinado demunicípios, por exemplo, reduzir o atendimentoescolar, naquele Estado o valor gasto-aluno serámaior. Se, ao contrário, esses mesmos municípiosresolverem atender todos os cidadãos “de baixaescolaridade”, o valor unitário será reduzido.

Os impostos que compõem a “cesta” Fun-deb são os mesmos do Fundef, acrescidos do Im-posto sobre Transmissões Causa Mortis e Doa-ções (ITCMD), do Imposto sobre Propriedade de

Veículos Automotores (IPVA), do Imposto sobrea Renda e Proventos incidentes sobre rendimen-tos pagos pelos municípios e Estados e ainda aquota parte de 50% do Imposto Territorial Ruraldevida aos municípios (ITR), com pouco impactosobre o total de recursos.

Os recursos do salário-educação utilizadosdesde a sua criação, em 1964, exclusivamente parao ensino fundamental – regular e de educação dejovens e adultos – passam a atender toda a educa-ção básica, sendo que na regulamentação apresen-tada (PL que deverá substituir a lei n.º 9.424/96,que regulamentou o Fundef), o MEC se apropriade mais 10% desse total. O parágrafo único, doart. 25 do PL que acompanha a regulamentaçãodo PEC propõe que, além de 1% pago ao Institu-to Nacional de Seguro Social (INSS) pelo trabalhode recolhimento dessa contribuição social, o MECficará, do total arrecadado, com 10% para a“complementação” da União do Fundeb. Depoisdisso é que o FNDE calculará as respectivas quotasde um terço para a União (de novo!), correspon-dente à quota federal, na qual está prevista atua-ção “compensatória” para a redução de disparida-des regionais. Os outros dois terços – correspon-dentes à quota estadual – do montante de recursosserão distribuídos, em cada Estado, proporcio-nalmente ao número de alunos matriculados naeducação básica, nas redes públicas de ensino, deacordo com os dados do Censo Escolar do Mi-nistério da Educação, sempre do ano anterior.

O número de alunos do ensino público fun-damental, considerado o Censo Escolar de 2004,é de 30,7 milhões e o governo pretende, em 2009,quarto ano de vigência do novo fundo, atingir ototal de 47,2 milhões de alunos. Evidencia-se quenão está previsto crescimento de qualquer umadas redes, pois esse número corresponde ao total dealunos atendidos hoje em dia na educação básica.

A segunda decepção da proposta de lei queregulamenta o Fundeb é que os fatores de dife-renciação (item II, do art. 8.º) não estão explícitos,conforme reivindicação das entidades nacionais,pois são esses coeficientes que definirão, na práti-ca, os níveis ou modalidades de ensino a serem be-neficiados, financeiramente, com o novo fundo.

impulso40.book Page 51 Monday, October 3, 2005 10:39 PM

52 Impulso, Piracicaba, 16(40): 35-53, 2005

Surpreende também no PEC – razão pela qual osmunicípios devem ficar atentos – a possibilidadede inclusão do ensino médio “profissionalizan-te”, situação anteriormente negociada pelo Con-selho Nacional de Secretários de Estado da Edu-cação (Consed) como “moeda de troca”, aindaque indevida, pela eventual não inclusão da cre-che, risco estimado desde os primeiros momen-tos da discussão do novo fundo. A inclusão damodalidade ensino médio integrado à educaçãoprofissional traduz, certamente, negociações nãotransparentes sobre a prevalência dos Estados noestabelecimento de prioridades e de diferenciaçãode coeficientes.

É sabido que em negociações nacionais, osEstados, por sua maior força política e de pressão– até porque são somente 27 –, sempre se saemmelhor que os municípios. No caso do Fundeb,a urgência da aprovação advém muito mais dapressão por parte dos Estados, que municipaliza-ram quase todo o ensino fundamental, do quedos municípios, que nem poderão contar – con-siderada a atual proposta de PEC – com novoaporte de recursos financeiros. Interessante con-siderar, também sobre o Fundeb, as propostas deextensão do ensino fundamental de oito paranove anos, sem que sejam antecedidas de dia-gnósticos objetivos sobre as possibilidades de Es-tados e municípios atenderem crianças menores,em salas do ensino fundamental, sem acomoda-ções adequadas ou compatíveis com as atividadespedagógicas exigidas para essa faixa etária.

A pergunta a ser feita é: se o setor públiconão tem condições financeiras, ou “tira o corpofora”, quem o MEC propõe para atender as crian-ças pequenas, hoje em dia por ele excluídas da di-visão “Robin Hood” do Fundeb? Por que o MECdecidiu optar pelos jovens do ensino médiocomo prioridade de seu atendimento, e não pelascriancinhas indefesas, “futuro do Brasil”? Por quelança – no dia da entrega do PEC do Fundeb – umprograma de bolsas de estudo a alunos do ensinosuperior privado, no valor de 300 reais mensais,para que eles possam continuar seus estudos – demédia ou baixa qualidade – em período integral,ao passo que as crianças não conseguem ter asse-

gurado o seu direito constitucional de educaçãoinfantil desde o nascimento? E como pode o MECpropor “escolas de fábricas” – proposta “requen-tada” dos anos 1970, quando a profissionalização“básica” era bancada com recursos das indústrias,futura empregadora dessa mão de obra –, preven-do a oferta de “bolsinhas” de 150 reais mensais,recurso não dispensável em face do valor do gasto-aluno, pago pelo Fundef até a presente data?

O excesso de “bolsas” que vêm sendo ofe-recidas pelo governo Lula parece traduzir umapreferência pela assistência social ou pela “solida-riedade” diante da desigualdade social e poderá seconstituir um indicador de tendência do séculoque se inicia. Aceitar as limitações financeiras,sem a apresentação de contrapropostas que “me-xam” estruturalmente com as proposições neoli-berais, sugerindo novos rumos econômicos e po-líticos para a alteração dessa situação, traduz umaanomia inconcebível das “esquerdas”.

Admitida essa “opção” assistencialista, de-senha-se nova tendência, em que a busca por re-cursos da e na comunidade passa a significar umavariável fundamental na manutenção das políticaspúblicas, pois, só será possível admitir expansãodo atendimento, se e quando a “comunidade”conseguir novos investimentos para a sua ma-nutenção. Isso traduz a inclinação – da qual oFundeb não é exceção – à reorientação do gasto so-cial, dirigindo-o às camadas mais pobres da po-pulação e aí melhorando sua eficiência, sem ne-cessariamente aumentar as despesas. Tais propen-sões combinam projetos orientados para a “foca-lização” e a “seletividade” nas políticas sociais.

No entanto, para nós da América Latina,importa combater uma outra tendência – cadavez mais presente –, que traduz a concepção con-servadora na admissão de que a situação atual jánão pode ser mais estruturalmente alterada, estan-do já decididamente superadas as políticas sociaisde atendimento a pobres e ricos, de forma eqüi-tativa. Isso porque os mais ricos teriam se orga-nizado e se “protegido” num sistema de políticassociais de razoável (ou alto) padrão de qualidade,restando aos mais pobres, no máximo, a auto-organização em cooperativas ou ONGs, para as

impulso40.book Page 52 Monday, October 3, 2005 10:39 PM

Impulso, Piracicaba, 16(40): 35-53, 2005 53

quais o Estado desenvolverá políticas sociais de ca-ráter exclusivamente assistencialista, com claro di-recionamento aos chamados grupos sociais de risco.

A sociedade brasileira, porém, testemunhaa coexistência de instituições legais “vivas” – de-fensoras e asseguradoras de direitos no cotidianoselvagem da sobrevivência capitalista, nas áreas dasaúde, educação, cultura e assistência social –com grupos que mantêm e incentivam diferentesformas de ação coletiva como estratégia de for-mação e atuação político-social. São conselhos,grêmios, organizações sociais, sindicatos, grupos

culturais etc., possibilitando a elaboração de pro-gramas mais “ousados” de organização do siste-ma social, com base em um projeto nacionalfundado no conceito de políticas sociais de cará-ter universalista, contraposto ao modelo deglobalização atual. Nos termos de Milton Santos,tal projeto, “partindo das realidades e das neces-sidades de cada nação, deve não só entendê-las,como também constituir uma promessa dereformulação da própria ordem mundial”.19

Referências BibliográficasBRASIL. Ministério da Educação. Legislação. Emendas constitucionais (EC) n.ºs 14, 19, 20 e 27; Leis n.os 9.394/96 e

9.424/96; e proposta de EC do Fundeb e projeto de lei que o regulamenta (<www.portal.mec.gov.br/seb>). Acesso: 18/mar./05.

______. Ministério da Educação e do Desporto. “Resultados Finais do Censo Escolar de 2003”. In: Censos Escolares.INEP, Brasília, 2004 (<www.mec.gov.br/estatísticaseducacionais>). Acesso 14/out./04.

______. Ministério da Educação. Censos Escolares. INEP, Brasília, 2004 (<www.portal.mec.gov.br>). Acesso: 17/mar./05.

______. Ministério da Educação e do Desporto. Desenvolvimento da Educação no Brasil, Brasília, 1996.

______. Ministério da Educação e do Desporto. Planejamento Político-Estratégico – 1995/1998, Brasília, maio/1995a.

______. Ministério da Educação e do Desporto. Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB/INEP),Brasília, 1995b, 35p.

______. Ministério da Educação e do Desporto. Educação para Todos – a Conferência de Nova Delhi, Brasília, 1994.

BRESSER PEREIRA, L.C. “A Reforma do Estado nos anos 90: lógica e mecanismo de controle”. Cadernos do MARE, v. 1,Brasília, 1997.

DRAIBE, S.M. “As políticas sociais brasileiras: diagnósticos e perspectivas”. In: Prioridades e Perspectivas de PolíticasPúblicas para a Década de 90. IPEA/IPLAN, Brasília, mar./1990.

HABERMAS, J. “A nova intransparência”. Novos Estudos CEBRAP, v. 18, São Paulo, set./1987.

KRUPPA, S.M.P. “O Banco Mundial e as políticas públicas de educação nos anos 90”. 2000, 201p. Tese de Douto-rado, FEUSP, São Paulo.

SANTOS, M. Por uma outra Globalização – do pensamento único à consciência universal. 10.ª ed. Rio de Janeiro/SãoPaulo: Record, 2003.

VIANNA JR, A. (org.). “A estratégia dos bancos multilaterais para o Brasil: análise crítica e documentos inéditos”.Rede Brasil (sobre Instituições Financeiras Multilaterais), Brasília, mar./1998.

WORLD Bank. Education Sector Strategy. Washington DC, 1999.

Dados da autora

Professora na Faculdade de Educação daUniversidade de São Paulo (USP)

Recebimento: 26/mar./05Aprovado: 3/jun./05

19 SANTOS, 2003, p. 74-75.

impulso40.book Page 53 Monday, October 3, 2005 10:39 PM

54 Impulso, Piracicaba, 16(40): 35-53, 2005

impulso40.book Page 54 Monday, October 3, 2005 10:39 PM