edição 404 - de 25 de novembro a 1º de dezembro de 2010

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www.brasildefato.com.br Uma visão popular do Brasil e do mundo Circulação Nacional R$ 2,80 São Paulo, de 25 de novembro a 1º de dezembro de 2010 Ano 8 • Número 404 ISSN 1978-5134 Palestinos lutam para cultivar suas próprias terras Todo ano, entre outubro e novembro, milhares de agricultores palestinos tra- vam mais uma luta para poder colher as azeitonas de suas próprias terras, tomadas por Israel. Para ajudar na tarefa, contam todo ano com a solidarie- dade internacional, que este ano teve a presença do MST. Págs. 10 e 11 Filme do diretor iraquia- no-italiano Haider Rashid retrata a invasão estadu- nidense no Oriente Médio pela perspectiva da segunda geração de árabes exilados na Europa. Produção fala da paz que não existe, nem no Iraque nem em quem foi forçado a deixar seu país, conta Rashid. Pág. 8 Impactos dos megaeventos esportivos Sob o domínio do dólar A chamada “guerra cambial” trouxe à tona mais um estágio da crise econômica internacional. Os desdobramentos da injeção de centenas de bilhões de dólares na economia e a pressão sobre o câmbio chinês revelam como os EUA ainda mantêm a hegemonia política e econômica no mundo. Págs. 2 e 9 A guerra do Iraque pelo olhar dos exilados Nas últimas semanas, o Rio de Janeiro passou a sen- tir na pele os impactos da escolha da cidade e do Brasil como sede, respectivamen- te, das Olimpíadas de 2016 e da Copa do Mundo de 2014. Milhares de famílias estão ameaçadas de remoção para dar lugar às obras para os eventos. Pág. 7 Igor Fuser Retórica hipócrita Nenhum tema da agenda internacional se presta a tanta hipocrisia quanto os direitos humanos. Essa expressão ingressou no discurso diplomático na década de 1970, como uma arma retórica no contexto da Guerra Fria. Pág. 3 Silvia Ribeiro Mudança climática De 29 de novembro a 10 de dezembro estará reunida em Cancún (México) a 16ª Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas. A crise é grave e muito está em jogo no mundo real. Pág. 12 João Brant Por mais vozes Quem ousa levantar sua voz em favor da regulação dos meios de comunicação é tachado pela grande mídia como “censor”. Por trás dessa campanha difamatória está o medo da oligarquia midiática de perder seus privilégios. Pág. 3 Estados disputam royalties do petróleo A luta contra a homofobia Pág. 6 A luta contra a homofobia Pág. 6 Págs. 4 e 5 Estados disputam royalties do petróleo Págs. 4 e 5 Reprodução Pete Souza/White House Ricardo Stuckert/PR

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Uma visão popular do Brasil e do mundo

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Page 1: Edição 404 - de 25 de novembro a 1º de dezembro de 2010

www.brasildefato.com.br

Uma visão popular do Brasil e do mundoCirculação Nacional R$ 2,80

São Paulo, de 25 de novembro a 1º de dezembro de 2010Ano 8 • Número 404

ISSN 1978-5134

Palestinoslutam paracultivar suaspróprias terras

Todo ano, entre outubro e novembro, milhares de agricultores palestinos tra-vam mais uma luta para poder colher as azeitonas de suas próprias terras, tomadas por Israel. Para ajudar na tarefa, contam todo ano com a solidarie-dade internacional, que este ano teve a presença do MST. Págs. 10 e 11

Filme do diretor iraquia-no-italiano Haider Rashid retrata a invasão estadu-nidense no Oriente Médio pela perspectiva da segunda geração de árabes exilados na Europa. Produção fala da paz que não existe, nem no Iraque nem em quem foi forçado a deixar seu país, conta Rashid. Pág. 8

Impactos dosmegaeventosesportivos

Sob o domínio do dólar

A chamada “guerra cambial” trouxe à tona mais um estágio da crise econômica internacional. Os desdobramentos da injeção de centenas de bilhões de dólares na economia e a pressão sobre o câmbio chinês revelam como os EUA ainda mantêm a hegemonia política e econômica no mundo. Págs. 2 e 9

A guerra doIraque pelo olhar dos exilados

Nas últimas semanas, o Rio de Janeiro passou a sen-tir na pele os impactos da escolha da cidade e do Brasil como sede, respectivamen-te, das Olimpíadas de 2016 e da Copa do Mundo de 2014. Milhares de famílias estão ameaçadas de remoção para dar lugar às obras para os eventos. Pág. 7

Igor Fuser

Retórica hipócritaNenhum tema da agenda internacional se presta a tanta hipocrisia quanto os direitos humanos. Essa expressão ingressou no discurso diplomático na década de 1970, como uma arma retórica no contexto da Guerra Fria. Pág. 3

Silvia Ribeiro

Mudança climáticaDe 29 de novembro a 10 de dezembro estará reunida em Cancún (México) a 16ª Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas. A crise é grave e muito está em jogo no mundo real. Pág. 12

João Brant

Por mais vozesQuem ousa levantar sua voz em favor da regulação dos meios de comunicação é tachado pela grande mídia como “censor”. Por trás dessa campanha difamatória está o medo da oligarquia midiática de perder seus privilégios. Pág. 3

Estados disputam royalties do petróleo

A luta contra a homofobia Pág. 6A luta contra a homofobia Pág. 6

Págs. 4 e 5

Estados disputam royalties do petróleo Págs. 4 e 5

Reprodução

Pete Souza/White House

Ricardo Stuckert/PR

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O que houve na França vai mudar a nossa dança?

VEM DE LONGE a advertência pa-ra estarmos atentos aos sinais dos tempos. O próprio Mestre interpe-lava o povo, que se mostrava capaz de fazer a “previsão do tempo”, mas não se dava conta dos “sinais do Reino”, como lembram as litur-gias do Advento.

Quem se caracterizou pela insis-tência em valorizar os “sinais dos tempos” foi o Papa João 23. Com sua coragem e confi ança em Deus, conseguiu despertar o povo para sustentar o clima favorável às gran-des propostas que o Concílio iria fazer para a renovação da Igreja.

Agora, parece que se arma de novo o tempo. Há sintomas de transformações profundas em cur-so. Precisamos estar atentos para entender o que está se passando, para não sermos surpreendidos por acontecimentos que não esta-vam em nossos cálculos.

A própria natureza parece emitir sinais de alerta cada dia mais cla-ros e insistentes. Neste contexto chega em boa hora a Campanha da Fraternidade que vai ecoar as contorções da natureza que “geme em dores de parto”, como diz São Paulo em sua carta aos Romanos, frase que servirá de lema para a Campanha.

O sistema econômico mundial, apesar de todo o seu cuidado em tranquilizar os mercados, para o bom funcionamento dos negócios, não consegue disfarçar os temores da reincidência dos mesmos sinto-mas da crise que já deixou muita gente na miséria.

O desafi o maior, na interpretação verdadeira dos sinais dos tempos, é compreender a causa dos fatos que acabam acontecendo. Eles nos surpreendem, porque não entende-mos o que está na sua raiz.

As mudanças religiosas costu-mam ser as mais inquietantes, por-que mexem com costumes arraiga-

dos na cultura do povo. Nestes dias apreciamos um cenário pelo menos curioso. Ao mesmo tempo em que os novos cardeais desfi lavam suas reluzentes vestimentas verme-lhas, o Papa falava da camisinha, enquanto era anunciado o novo sínodo para 2012 sobre a Nova Evangelização e a transmissão da fé cristã.

Aí dá para identifi car sinais de tempos passados, que se revestem do seu anacronismo, pelo qual, às avessas, também podem apontar para o futuro. Em todo o caso, no meio deste cenário, é legítimo se perguntar para onde caminha a Igreja, que sinais nos falam do seu futuro.

Ao anunciar o tema do próximo sínodo, é possível decifrar a angús-tia da Igreja diante de sintomas preocupantes. Em recente pesquisa feita na França, tomando a popu-lação dos dezoito aos trinta anos, só três por cento dizem ter uma vinculação religiosa clara. Na idade

crucial para a defi nição da vida, noventa e sete por cento dos jovens franceses não levam em conta a religião.

Este é um evidente sinal dos tempos, que está na base da pro-posta do próximo sínodo. Que está acontecendo com o Evangelho de Cristo, que já não motiva mais os jovens a tomá-lo como referência para sua vida?

Não é por acaso que o próximo sínodo vai falar da “transmissão da fé”. Este assunto defi ne melhor a angústia da Igreja. Ela já não conta com a força da tradição para transmitir a fé. A própria cultura se encarregava de transmitir às novas gerações os valores evangélicos.

Agora a cultura não serve mais de veículo para transportá-la. A Igreja precisa encontrar outros meios. De um momento para ou-tro, países que tinham fama de baluartes do Evangelho se tornam hostis a ele, ou simplesmente o ig-noram. Não querem, em todo o ca-so, assumir nenhuma identifi cação com qualquer expressão religiosa. É sintomática a insistência da co-munidade europeia em não colo-car, na sua constituição, nenhuma referência às “raízes cristãs de sua cultura”.

Vivemos um tempo que caminha para a plena separação entre a esfera religiosa e a sociedade civil. Isto pode ser muito bom para uma nova evangelização, que já não vai mais contar com a bengala do favo-recimento estatal para convencer as consciências a aderirem a fé.

Isto aumenta o desafi o de inter-pretar corretamente os sinais dos tempos, que nos alertam para as mudanças profundas que vêm che-gando.

Dom Demétrio Valentini é bispo de Jales (SP) e presidente da

Cáritas Brasileira.

debate Dom Demétrio Valentini

Sinais dos tempos

crônica Luiz Ricardo Leitão

DE PARIS a Berlim, de Lisboa a Dublin, de Vilnius a Bucareste, de Londres a Roma. As manifestações e as greves multiplicam-se.

A cada dia, fi ca mais evidente que estamos assistindo a uma segunda etapa da crise do capitalismo. Os acontecimentos europeus, com a falência da dívida pública da Grécia e de outros países, deixam claro que seguiremos enfrentando uma crise profunda e prolongada.

Como já afi rmamos em outros momentos, estamos diante de uma crise de superprodução. Na essência, trata-se da tendência do capitalismo de produzir um desenfreado au-mento da capacidade produtiva em busca de lucro, ultrapassando seus próprios limites e engendrando, contraditoriamente, o declínio da taxa de lucro, implicando na dimi-nuição do ritmo de acumulação, no desemprego dos trabalhadores e na própria destruição e desvalorização de capital como remédio.

Os remédios tradicionais vão rapi-damente revelando-se insufi cientes. Os estados mobilizaram seus bancos centrais, normalmente responsáveis pela reserva de liquidez no movi-mento de pagamentos entre os ban-cos comerciais, para criar créditos e dispor de sufi ciente liquidez mone-tária. Isso já não basta. Num primei-ro momento, os recursos fi nanceiros dos bancos centrais substituíram o

gigantesco ganho dos bancos. Mas esse dinheiro não pode substituir o dinheiro dos bancos enquanto meio de pagamento entre eles. Além disso, tanto capital fi ctício não pode fazer grande coisa no sentido da produção. Não existia tanto dinheiro nos cofres para enfrentar uma crise de proporções crescentes.

Acrescentemos, ainda, um agra-vante. No caso europeu, existe um único banco central continental, que defi ne a política monetária para um conjunto muito desigual de tesouros nacionais. Esse é o cenário dos atu-ais movimentos especulativos que se voltam para as economias mais frágeis do continente europeu, como Grécia, Irlanda e Portugal. Como o euro é a moeda comum da Comuni-dade Europeia, não pode ocorrer a bancarrota de um Estado membro: ela provocaria um efeito dominó – a queda do primeiro país seria acom-panhada pela queda de outros. Isso explica a reação da Comunidade Europeia ao garantir um enorme crédito para a Grécia. Então, é hora de defi nir quem vai pagar a conta. Os governos promovem arrocho de gastos sociais e atacam as regras previdenciárias.

É neste momento crucial que ocorre o fracasso da reunião do G 20! O fi asco pode ser medido pelo vago comunicado fi nal dos presi-dentes das 20 principais potencias

econômicas. Entre as poucas ações anunciadas, está a criação de um sistema para detectar desequilíbrios fi nanceiros e cambiais a cargo do FMI, com critérios que serão defi -nidos em 2011. Nenhum dos parti-cipantes guarda qualquer ilusão de que os Estados Unidos se subme-teriam a uma autoridade externa,

mesmo sendo os controladores do FMI. Os mesmos representantes do governo estadunidense, que haviam se comprometido, na reunião pre-paratória dos ministros de fi nanças – duas semanas antes do acordo dos presidentes –, a não tomar qualquer medida que alimentasse a guerra cambial, tiveram a desfaçatez de anunciar o gigantesco pacote de 600 bilhões que desvaloriza o dólar.

Desaparecem as ilusõesOs EUA, donos do maior defi cit

comercial e da maior dívida externa do planeta, já não conseguem mais agir em defesa dos interesses do sistema capitalista no seu conjunto, utilizando sua posição como maior economia do mundo – e donos do dólar – para favorecer apenas os interesses dos seus próprios capita-listas e enfrentar a crise da sua eco-nomia interna em prejuízo de todos os outros países do mundo.

Ressurgem, na agenda política, as pressões capitalistas para que os estados reduzam seus gastos sociais e aumentem a exploração sobre os trabalhadores. Volta a entrar em ce-na a receita neoliberal: diminuição dos salários e dos benefícios para os trabalhadores, cortes de gastos pú-blicos, aumento dos juros.

O Brasil contornou razoavelmente os impactos da primeira onda da crise. Os bancos brasileiros não es-

tavam tão dependentes do capital fi ctício, especulativo, como estavam os bancos dos EUA e de outros paí-ses centrais do sistema capitalista. Por outro lado, o capital fi nanceiro internacional aplicado na bolsa e em ações de empresas no Brasil não fugiu (como aconteceu em diversos outros países). Ao contrário. Pelas dimensões do país, pela natureza do governo e o potencial de retorno dos investimentos, muitos viram o Brasil como um porto seguro para seu capital fi nanceiro. Além disso, o Estado brasileiro e o governo federal atuaram com muita agilidade, apli-cando medidas de política econômi-ca que representaram um colchão de proteção às empresas capitalistas dos setores mais dinâmicos da eco-nomia.

A grande interrogação, neste mo-mento, é a capacidade de enfrentar essa segunda etapa. Como reagirá o novo governo, o de Dilma Roussef?

As pressões da burguesia serão imensas. A grande mídia já começa a pautar os velhos analistas do recei-tuário neoliberal: redução de gastos públicos, reforma previdenciária, redução de direitos trabalhistas. O mesmo discurso com os mesmos argumentos.

Novamente, torna-se urgente uni-fi car as forças populares em torno de um programa de medidas da classe trabalhadora para enfrentar a crise.

de 25 de novembro a 1º de dezembro de 20102editorial

Gama

O sítio pós-moderno de LobatoMUITA GENTE BOA já se pronunciou sobre o episódio, mas este cronis-ta também se julga no direito de meter sua colher no tacho da saudosa Tia Nastácia, depois que o Conselho Nacional de Educação emitiu seu parecer sobre as inúmeras passagens repletas de “preconceitos, estereó-tipos ou doutrinações” nas páginas do clássico Caçadas de Pedrinho, que o genial Monteiro Lobato publicou em 1933. Não pretendo aqui arguir as intenções do CNE em zelar por uma formação “politicamente correta” dos nossos infantes... Limito-me apenas a consignar o quanto de hipocri-sia avulta na notícia: afi nal de contas, a julgar pelo que (não) se aprende nos bancos escolares, a turma do Sítio do pica-pau amarelo nunca foi ou será um entrave à educação no Brasil.

Se os ilustres conselheiros olvidassem o Olimpo da retórica e aterris-sassem nas salas de aula de Bruzundanga, suas preocupações, decerto, seriam bem mais elementares. Primeiro, conviria enfrentar o óbvio: por que nossas crianças não leem nem um livro por bimestre na maioria das escolas brasileiras? Aliás, há outro mote ainda mais incômodo: por que tantos alunos das redes estaduais de ensino ainda permanecem meses sem aulas de Português (e várias outras disciplinas!), literalmente bestan-do em sala ou zanzando sem ter o que fazer nos tristes pátios escolares, como ocorre em São Paulo (sob o governo dos cultos tucanos) em pleno 2010?

Não seria tampouco inconveniente indagar se, com seus parcos salá-rios, nossos professores, exaustos de tanto trabalhar, ainda têm tempo de ler algum livro ou jornal. Por isso, suspeito que o CNE esteja a promover um maremoto no deserto... De resto, torço para que o tsunami de Brasília logo se converta em inofensiva marola; do contrário, se prevalecer a reco-mendação ofi cial de que entrem no índex (!) “todas as obras literárias que se encontrem em situação semelhante”, em breve já não será possível ler boa parte dos clássicos das letras universais.

De fato, sequer a Bíblia Sagrada (com suas violentas querelas fami-liares, episódios de explícita “submissão” da mulher e cenas impróprias para menores, de que Sodoma e Gomorra são apenas um leve aperitivo) passaria pelo crivo severo do Conselho. E o que dizer dos “contos da caro-chinha”, em que lobos assanhadíssimos devoram indefesas vovozinhas? Durante muito tempo não faltaram educadores a considerá-los “cruéis” ou “irreais”, ignorando que as narrativas de encantamento são a fórmula com a qual a criança aprende a lidar com um mundo real e imerso em ambivalências, em que se mesclam, sem o menor pudor, amor, bondade, destruição e selvageria.

Quanto a Lobato, deixemos o criador do Jeca Tatu em paz. A crítica tachou-o de “anacrônico” ou “antimoderno”, por fi xar-se no caboclo ingê-nuo e desvalido da roça, sem perceber que o Jeca, conforme anotou Wil-son Martins, era o primeiro “antimito do nacionalismo baboso”, um sím-bolo daquela literatura desmistifi cante, mas nacionalista, que passaria à história com o nome de Modernismo. É claro que ele não exibia a lucidez política do fi el amigo Lima Barreto, que, em resenha a Urupês, não se contentou em denunciar o atraso das relações sociais no campo, diagnos-ticando com rara argúcia a questão espacial no país: “O problema é de natureza econômica e social. Precisamos combater o regime capitalista na agricultura, dividir a propriedade agrícola, dar a propriedade da terra ao que efetivamente cava a terra e planta e não ao doutor vagabundo e para-sita, que vive na ‘Casa Grande’ ou no Rio ou em São Paulo.”

Emília e sua turma, por sua vez, também merecem respeito. Mis-turando os mais saborosos ingredientes da cultura universal (desde a reinvenção de Júlio Verne e sua viagem à Lua, até a recriação da mitolo-gia grega), a galera do Sítio ensinou-nos que, para viajar no tempo e no espaço, carece apenas de liberar o imaginário com o pó de pirlimpimpim, um produto mágico daquela boneca de pano que a negra Nastácia pôs no mundo. Já hoje, nos sítios pós-modernos da sociedade capitalista de consumo, onde não se cultiva a imaginação, nem a utopia, qual será a ‘viagem’ que os pós da nova era propiciam?

Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de O campo e a cidade na

literatura brasileira e Lima Barreto: o rebelde imprescindível.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio

Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Edilson Dias Moura• Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – [email protected] • Gráfi ca: FolhaGráfi ca • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou [email protected] • Para anunciar: (11) 2131-0800

A grande mídia já começa a pautar os velhos analistas do receituário neoliberal: redução de gastos públicos, reforma previdenciária, redução de direitos trabalhistas. O mesmo discurso com os mesmos argumentos

... Qual será a “viagem” que os pós da nova era propiciam?

O sistema econômico mundial não consegue disfarçar os temores da reincidência dos mesmos sintomas da crise que já deixou muita gente na miséria

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de 25 de novembro a 1º de dezembro de 2010

sive o Brasil – retira do bolso do colete a carta infalível dos direitos humanos.

É assim que, de repente, os jornais brasileiros pas-sam a se mostrar muito preocupados com a situação das mulheres iranianas. Pouco importa que, em outros países do Oriente Médio, a discriminação contra a mu-lher seja muito mais intensa do que no Irã. Na Arábia Saudita, por exemplo, só os homens têm o direito de vo-to nas eleições, e nos lugares públicos existem entradas separadas de acordo com o gênero, tal como ocorria no apartheid sul-africano em relação aos grupos raciais. O silêncio da mídia sobre o tema se explica: a monarquia saudita é uma submissa aliada dos EUA.

Se o próximo governo brasileiro acatar as pressões da oposição conservadora para se manifestar toda vez que se cometerem violações aos direitos, deveria come-çar pela denúncia daquele país que, com seus ataques militares sistemáticos contra populações civis, a práti-ca de torturas em prisões clandestinas espalhadas pe-lo mundo e as atrocidades contra imigrantes ilegais em sua própria fronteira, se tornou merecedor do desonro-so título de vilão humanitário número 1 – os EUA.

A hipocrisiaNENHUM TEMA da agenda internacional se presta a tanta hipocrisia quanto os direitos humanos. Essa ex-pressão ingressou no discurso diplomático na década de 1970, como uma arma retórica no contexto da Guer-ra Fria. Os Estados Unidos denunciavam o bloco lidera-do pela União Soviética por perseguir dissidentes polí-ticos, ao mesmo tempo em que davam respaldo a regi-mes genocidas na América Latina e no Sudeste Asiático. O governo estadunidense, tão ágil em condenar os abu-sos de seus rivais, era cúmplice de atrocidades infi ni-tamente mais graves, cometidas pelos seus aliados, co-mo o assassinato de mais de 20 mil argentinos pelo re-gime militar.

Esse truque de retórica volta a ser empregado toda vez que, em qualquer parte do mundo, algum país se re-bela contra os ditames de Washington. É o caso do Irã. Para justifi car as sanções contra o regime iraniano, os EUA usam todo tipo de pretexto, desde o apoio ao terro-rismo islâmico até o suposto plano de fabricar a bomba atômica. Quando essas denúncias se esvaziam, até pela sua total falta de fundamento, o império estadunidense – e seus porta-vozes na mídia do mundo inteiro, inclu-

Ueslei Marcelino/Folhapressinstantâneo frases soltas

Igor Fuser

manha, todos eles têm leis e normas que abordam três aspectos principais: limites à concentração, ocupação do espectro e conteúdo veiculado.

Mas regulação de conteúdo não é censura? Não, são análises com objetivos completamente distintos. Na re-gulação, busca-se garantir os direitos dos espectadores contra violações de direitos humanos, contra manipula-ções e abusos de poder e em busca de pluralidade e di-versidade. Portanto, buscam-se mais vozes, não menos. Além disso, toda e qualquer análise regulatória deve ser feita depois de a programação ser exibida, e não antes.

Fica claro, então, que a regulação não inibe a liberda-de de expressão. Ao contrário, ela garante que a liber-dade seja um direito de todos, e não apenas dos donos de meios de comunicação, que usam sua liberdade pa-ra censurar fatos e vozes. Neste momento de transição no governo federal, os setores, de fato, comprometidos com a democracia precisam assumir a defesa da liber-dade de expressão para todos e todas: com regulação e sem censura.

Mais e diferentes vozes QUEM OUSA LEVANTAR sua voz em favor da regu-lação dos meios de comunicação é tachado pela gran-de mídia com alcunhas pouco simpáticas como “cen-sor” ou “liberticida”. Por trás dessa campanha difama-tória está o medo de perder privilégios que são refl exos de um dos mais desregrados sistemas de comunicação do mundo.

O Brasil não estimula a diversidade e pluralidade de ideias e pontos de vista. Permite monopólios e oligo-pólios – embora tenha uma Constituição que teorica-mente os impeça –, é leniente com manifestações racis-tas, sexistas e homofóbicas e favorece a concentração da produção no Rio e em São Paulo. Em nome de uma concepção distorcida de liberdade de expressão, man-tém-se a liberdade aprisionada por poucos.

No Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação So-cial – fi zemos uma pesquisa sobre órgãos reguladores em dez países e fi cou claro que a maioria dos países de-mocráticos regula seus meios de comunicação. França, Portugal, Reino Unido, Argentina, Estados Unidos, Ale-

João Brant

Desalento – Torcedor do Goiás esconde o rosto apos a derrota para o Santos por 4 a 1 no Serra Dourada. A equipe goiana esta rebaixada para a Série B do Campeonato Brasileiro de 2011

comentários do leitor

Racismo na PUC - IA aluna racista que proferiu tan-

tas palavras estúpidas à colega deve-ria ser expulsa da universidade, bem no último ano, antes de se formar. Ou, no mínimo, tinha que retratar-se publicamente. Ademais, a universi-dade deveria tomar para si a respon-sabilidade e punir essas pessoas. Se-ria triste perceber que a opressora, mesmo depois de constranger a cole-ga, viesse a receber o diploma.

Marcelo Penna – por correio eletrônico

Racismo na PUC - IIIrmã Meire, tenho esperança e fé

de que sua luz vai irradiar a tal pon-to que ofuscara brilhantemente esses “bacharéis” do direito. Faça aconte-

cer mulher!!! Sua família superará estas agressões, assim como espe-ro que sejam devidamente apuradas pela instituição sob pena de ser tida como conivente com a intolerância. Você tem o orgulho negro caracterís-tico e não será esses “pobres de espí-rito” que o demolirão. Muito axé!!!

Wilson Batista – por correio eletrônico

Racismo na PUC - IIISó numa sociedade e num siste-

ma que dependem da desigualdade, como o capitalismo, o racismo, e to-dos os ismos, faz sentido. É uma ati-tude mental e ideológica. Não dá pra discutir o racismo sem desvinculá-lo da questão econômica, da produ-ção histórica capitalista. A agressora

tem em mente uma série de ofensas de ordem racial, mas que só produz sentido mencionando a condição de pobre do outro.

Dylan Durte – por correio eletrônico

Cólera no HaitiNão tem medida a estupidez de

quem promove e de quem aprova a farra que a corrupção faz com o gas-to de recursos fabulosos em festa, enquanto pessoas sofrem por falta destes recursos.

José Mário Ferraz – por correio eletrônico

Cartas devem ser enviadas para o endereço da redação ou através do correio eletrômico [email protected]

3

A Guarda Civil Metropolitana agiu de maneira violenta, atacando pessoas pacífi cas que estavam acampadas, debaixo de chuva, com bombas de gás lacrimogênio, gás de pimenta e espancamentos com cassetete

Osmar Borges , coordenador da Frente de Luta por Moradia (FLM), referindo-se à expulsão de cerca de 600 famílias sem-teto que estavam acampadas na praça General Craveiro Lopes, em frente à Câmara Municipal de São Paulo (SP), segundo a Agência Brasil de Fato.

Devemos reconhecer, compatriotas latino-americanos: os EUA ganhou de nós em Honduras, consolidou o golpe de Estado. O império norte-americano ganhou de nós, mas também os povos da América ganhamos na Venezuela, Bolívia e Equador

Evo Morales, presidente da Bolívia, na inauguração da Conferência de Ministros de Defesa

das Américas, realizado na cidade boliviana de Santa Cruz. Um dos participantes do evento foi o

secretário de Defesa dos EUA, Robert Gates.

Eu não tenho nada contra você, mas parece que você é pedófi lo. Você poderia se justifi car?

Nicolas Sarkozy, presidente da França, em resposta a um repórter que lhe questionava sobre acusações de corrupção, insinuando que está sendo acusado sem provas, segundo o Opera Mundi.

Obviamente que a gente olha a colonização do Brasil e compara com a colonização de qualquer país do mundo, e a gente pode ter alguma crítica a Portugal. Mas a gente tem que dizer, foi com os portugueses que aprendemos a fazer tudo que fi zemos em paz

Lula, em cerimônia de comemoração dos 98 anos da câmara portuguesa, em São Paulo,

22 de novembro.

A tortura que nós (juízes) tratamos é mais abrangente. Não é apenas aquela tortura do espancamento e da agressão em si. Quando uma cadeia está superlotada ou a água é disponibilizada apenas duas horas por dia, isso confi gura tortura

Márcio Fraga, juiz auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), durante o 1º Seminário sobre Tortura e Violência, em Brasília, 22 de novembro.

O presidente francês Nicolas Sarkozy

Ricardo Stuckert/PR

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brasilde 25 de novembro a 1º de dezembro de 20106

Obra polêmicaA construção do trem-bala que

ligará Campinas-São Paulo-Rio de Janeiro deverá custar aos cofres públicos, no mínimo, R$ 25 bilhões. A linha deverá estar concluída até 2016 e será explorada por empresa privada mediante concessão de 40 anos. A passagem mais barata (clas-se econômica) no trecho São Pau-lo-Rio está estimada em R$ 200. A única dúvida é se haverá público com poder aquisitivo sufi ciente para sustentar esse trem.

Mais mortesAs autoridades continuam indi-

ferentes ao genocídio dos povos indígenas no Brasil. Desde outubro, foram registradas pelo menos 13 mortes nas comunidades indígenas do Vale do Javari no Amazonas, onde as crianças estão sofrendo de diarreia e vômito sem que se saiba qual o motivo. Há alguns dias, mor-reu o jovem professor voluntário Makokoah Kanamary, da aldeia Es-tirão do Pedra. Até quando

Avanço popularCuba intensifi ca a partir de 1º

de dezembro o amplo processo de debate – popular, com a partici-pação de operários, camponeses e estudantes – sobre as reformas propostas no documento “Projeto de Diretrizes da Política Econômica e Social”, que será, posteriormente, analisado e aprovado no 6º Con-gresso do Partido Comunista de Cuba. As mudanças já estão aconte-cendo, mas sem abandonar a opção pelo socialismo.

Escola fascistaDocumento dirigido aos pre-

sidentes da Colômbia, Chile e El Salvador, assinado por milhares de latino-americanos, solicita o fechamento e o não envio de mili-tares para treinamento na Escola das Américas, unidade fundada em 1946 pelos Estados Unidos para for-mar “quadros” do imperialismo na América Latina. Mais do que nunca, as forças armadas do continente precisam de diretrizes democráticas e populares.

Exército aliadoNa comemoração do bicentenário

de criação do Exército da Bolívia, seu comandante nacional, general Antonio Cueto, declarou: “Nos decla-ramos anti-imperialistas, porque na Bolívia não deve existir nenhum po-der externo que se imponha, quere-mos e devemos atuar com soberania e viver com dignidade. Também nos declaramos anticapitalistas, porque este sistema está destruindo a mãe terra”. Que o exemplo frutifi que!

Direitos violados O Conselho de Defesa dos Direitos

Humanos, órgão do Ministério da Justiça, fi cou de aprovar o relatório fi nal da comissão especial criada para analisar os casos de violação dos direitos humanos em 74 pro-jetos de hidrelétricas, conforme denúncia feita pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) em 2006. Espera-se que a deliberação fi nal resulte em medidas concretas para reparar os danos causados. Sem mais demora!

AutorregulaçãoO Conselho de Autorregulamenta-

ção Publicitária decidiu arquivar o pedido de suspensão da publicidade do brinquedo “Roma Tático Móvel”, que imita o “caveirão” da PM do Rio de Janeiro, um carro de guerra uti-lizado para intimidar as populações faveladas. O Conar nunca vai contra os interesses das empresas privadas de comunicação e de publicidade. A chamada “autorregulamentação” não passa de uma piada!

Festa lucrativaCresce a cada dia o número de

consultorias especializadas na orientação de investidores nos mais variados tipos de negócios relacio-nados com a Copa do Mundo de Futebol (2014) e com as Olimpíadas (2016), especialmente no que diz respeito aos benefícios fi scais. A Re-ceita Federal estima que a renúncia fi scal (isenção de impostos) com essas obras deve chegar a R$ 340 milhões. Mais um megaevento do capitalismo!

Esquema mafi osoA polícia da Itália apreendeu,

dia 15 de novembro, o maior car-regamento de cocaína dos últimos 20 anos – uma tonelada da droga dentro de um contêiner embarcado no porto de Santos, no Brasil. Ao mesmo tempo, é voz corrente que boa parte do contrabando que entra no país passa também pelo porto de Santos. Afi nal, não é hora de o Brasil saber ao certo quem manda nesse porto.

fatos em focoHamilton Octavio de Souza

Patrícia Benvenutida Redação

FOI EM UMA escola pública de Taboão da Serra (SP) que Pierre Freitaz, então com 13 anos, foi vítima de homofobia pela primeira vez. As agressões vieram, inicialmente, na forma de piadas. “Nun-ca gostei de ser amigo dos meninos, eu andava mais com as meninas. Eu não gostava de jogar futebol, e aí começou”.

As “brincadeiras” aumentaram, e os meninos passaram a cobrar “pedágio” para deixá-lo entrar na escola. Com me-do, Pierre pagava, até avisar que não en-tregaria mais o dinheiro. As ameaças se concretizaram. “Vieram com empur-rões, a violência foi crescendo até que quebraram o meu braço”.

A humilhação seguinte partiu da pró-pria escola. Durante uma reunião entre seus pais e os familiares de seus agres-sores, a diretoria deu a entender, segun-do Pierre, que a agressão havia ocorri-do devido sua opção sexual. “Disseram que aquilo [agressão] aconteceu comigo porque eu era gay. Quiseram dizer que eles [meninos] estavam certos e eu erra-do”, relembra.

A história de Pierre, que hoje é co-ordenador do Grupo de Jovens Ativis-tas da Associação da Parada do Orgu-lho GLBT de São Paulo, aconteceu há cerca de dez anos. A violência contra os homossexuais, porém, continua atu-al. Na madrugada do dia 14 de novem-bro, em São Paulo (SP), cinco jovens de classe média (quatro deles menores de idade) xingaram e atacaram três pesso-as com socos, chutes e golpes com lâm-padas fl uorescentes na Avenida Paulis-ta. Na delegacia, eles foram identifi ca-dos por um lavador de carros, que con-tou ter sido agredido e assaltado pelo mesmo grupo.

Os quatro menores – três de 16 anos e um de 17 – chegaram a passar a noi-te em uma unidade da Fundação Casa, mas foram liberados no dia seguinte. O estudante Jonathan Lauton Domin-gues, de 19 anos, foi preso em fl agrante, mas responderá em liberdade pelos cri-mes de lesão corporal, roubo e formação de quadrilha.

Já no Rio de Janeiro (RJ), também no dia 14, um estudante de 19 anos foi ba-leado depois da 15ª Parada do Orgulho Gay em Copacabana. De acordo com a vítima, um grupo de homossexuais esta-va no Parque Garota de Ipanema quando foram abordados por militares que hosti-lizaram os jovens. O 3º sargento do Exér-cito Ivanildo Ulisses Gervásio confessou ter atirado no estudante. Além dele, ou-tros dois militares são acusados de par-ticipar do crime. O delegado Fernando Veloso, da 14ª Delegacia de Polícia (Le-blon), que investiga o caso, afi rmou que a motivação das agressões foi a homo-fobia.

“Esses casos não são soltos. A gente não percebe, mas isso é corriqueiro. E na periferia e no interior [dos estados] ainda é mais difícil, onde as pessoas são mais conservadoras”, assegura Pierre.

MackenzieO repúdio contra as agressões homo-

fóbicas aumentaram a partir do dia 16, quando começou a circular na internet o “Manifesto Presbiteriano sobre a Lei da Homofobia”, divulgado no portal da Uni-versidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo. O texto, assinado pelo chan-celer da instituição, Augustus Nicode-mus Gomes Lopes, critica o projeto de lei da câmara, (PLC) 122/2006, que propõe a criminalização da homofobia.

O texto diz que a Igreja Presbiteriana é contra a lei “por entender que ensinar e pregar contra a prática do homossexua-lismo não é homofobia”. O manifesto in-forma, ainda, que “a Igreja Presbiteria-na do Brasil reafi rma seu direito de ex-pressar-se, em público e em privado, so-bre todo e qualquer comportamento hu-mano, no cumprimento de sua missão de anunciar o Evangelho, conclamando a todos ao arrependimento e à fé em Je-sus Cristo”.

O texto foi retirado do ar e, em nota, a assessoria de imprensa da instituição afi rmou que o pronunciamento sobre o PL 122 foi feito em 2007 e é da Igreja Presbiteriana do Brasil, Associada Vita-lícia do Mackenzie. Além disso, de acor-do com a nota, “o Mackenzie se posicio-

Lei anti-homofobia é uma resposta à onda do ódioDIVERSIDADE Pesquisa mostra que, a cada 2 dias, um homossexual é assassinado no Brasil

na contra qualquer tipo de violência e discriminação feitas ao ser humano, co-mo também se posiciona contra qual-quer tentativa de se tolher a liberdade de consciência e de expressão garantidas pela Constituição”.

As situações causaram revolta na co-munidade LGBT que, no dia 24, promo-ve uma manifestação em frente à Uni-versidade Mackenzie, a fi m de protestar contra o manifesto. “Estamos indigna-dos e queremos ações”, afi rma o presi-dente da Associação Brasileira de Lésbi-cas, Gays, Bissexuais, Travestis e Tran-sexuais (ABGLT), Toni Reis.

LegislaçãoUma das ações mais imediatas, se-

gundo o presidente da ABGLT, é pre-cisamente o encaminhamento do PLC 122. Aprovado no Congresso Nacional, o projeto de lei visa à alteração da lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, caracte-rizando como crime “a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, reli-gião, origem, condição de pessoa idosa ou com defi ciência, gênero, sexo, orien-tação sexual ou identidade de gênero”. O autor do delito, assim, fi caria sujeito às penas defi nidas em lei – como reclu-são por até cinco anos.

Reis salienta que a lei será um avan-ço para a população LGBT que ainda não conta com uma legislação específi ca pa-ra proteger os seus direitos. “Assim co-mo existe a lei que criminaliza o racismo, queremos uma lei que criminalize a ho-mofobia”, explica.

Para a autora do projeto, a professora e ex-deputada pelo PT Iara Bernardi, os crimes recentes mostram a urgência da aprovação do PLC 122 que, segundo ela, se trata de um complemento a uma lei já existente. “É uma legislação que abran-ge outras formas de discriminação, co-mo [a discriminação] contra os nordes-tinos. Acrescentamos ali esse ponto, o da discriminação contra os homossexu-ais”, reitera.

SenadoIara destaca que o projeto foi aprovado

por unanimidade na Câmara, onde hou-ve uma ampla discussão com a comuni-dade LGBT e esferas do governo, como o Ministério da Justiça. O próximo passo, agora, é a aprovação no Senado, conside-rado um campo mais difícil devido a su-as forças conservadoras. Para a professo-ra, no entanto, a eleição de fi guras mais progressistas para a Casa pode agilizar os trabalhos. “Espero que, com a mudan-ça no Senado, a lei possa ser aprovada”, sustenta.

O maior desafi o para a comunidade LGBT, entretanto, será superar a oposi-ção de setores religiosos conservadores. Para Reis, a interferência religiosa fi cou evidente durante o segundo turno das eleições deste ano, quando alguns grupos exigiram que os presidenciáveis se mani-festassem contrários ao aborto e à união civil dos homossexuais. “Nossa reivindi-cação não é o casamento religioso, mas a união civil. Dizem que nós queremos destruir as famílias. De jeito nenhum, e pelo contrário: queremos construir a nossa família, do nosso jeito”, afi rma.

Atualmente, segundo Reis, 53 países no mundo possuem legislações específi -cas contra a homofobia – vários deles na América Latina, como Uruguai, Argenti-na, Colômbia e México, que conseguiram diminuir seus índices de violência.

Já no Brasil, os entraves à aprovação da lei, para Iara, só demonstram o atra-so do país no combate à homofobia. “Es-se é um tema que nem se debate mais em outros países, como na Europa. As agres-sões acontecem, mas se sabe que são cri-mes. O Brasil ainda está muito atrasado em relação a isso”, critica.

Uma pesquisa do Grupo Gay da Bahia (GGB) mostra que, a cada dois dias, um homossexual é assassinado no Brasil. Só em 2009, de acordo com a entidade, pe-lo menos 198 homossexuais foram mor-tos, um número 55% maior do que o re-gistrado em 2008.

Na página www.naohomofobia.com.br/home/index.php, da Campanha Não Ho-mofobia!, é possível aderir a um abaixo-assinado pela aprovação do PLC 122.

53 países no mundo possuem

legislações específi cas contra a homofobia

“Assim como existe a lei

que criminaliza o racismo,

queremos uma lei que

criminalize a homofobia”

“Dizem que nós queremos destruir as

famílias. De jeito nenhum, e pelo contrário:

queremos construir a nossa família”

Manifestação contra a homofobia realizado na avenida Paulista, em São Paulo, dia 21 de novembro

Edson Silva/Folhapress

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brasil 7

CARLOS NOBRE, pesquisador do INPE e membro do IPCC da ONU que produz informes sobre o aque-cimento global, chamou a atenção em seminário realizado em Brasí-lia para o ceticismo com que o tema foi recebido e para o caráter da ci-ência que estuda mudanças climá-ticas. E, mesmo diante do ceticismo e das incertezas, Nobre apresentou informações consistentes a respeito do aquecimento global. Para o pes-quisador, o ceticismo com que o te-ma foi inicialmente recebido, foi o mesmo com relação à questão am-biental quando o tema deixou os gabinetes de entidades de defesa da natureza, como o Sierra Club e a União Internacional de Conserva-ção da Natureza (UICN), e passou a ganhar as ruas com o movimento da contracultura nos anos 1960. A partir dali não se tratava mais sim-plesmente de convencer governos a criar parques e outras unidades de conservação, mas de debater as im-plicações que um determinado esti-lo de vida estava produzindo sobre os recursos naturais do planeta.

Desde o início, o novo ambienta-lismo que saía das ruas se mostrou preocupado com a pobreza e a mi-séria reinante na África, na Ásia, na América Latina e no Caribe fazen-

do duras críticas ao desperdício do consumismo e dos gastos militares, numa clara crítica às sociedades dos países centrais. Vance Packard, em seu livro Sociedade do desperdício , reuniu vários exemplos do modo como o capitalismo produzia obso-letismo planejado, tal e qual Marx havia falado de obsoletismo moral. O ceticismo foi enorme. Afi nal, co-mo se ousava questionar o estilo de vida que se apresentava como sen-do a expressão do progresso e que se vendia ao mundo como “modelo de desenvolvimento”?

Os grandes magnatas da Fiat, da Olivetti, da IBM e da Remington Rand, entre outras grandes corpo-rações, trataram de se reunir no Cube de Roma e fi nanciaram o MIT que produziu o célebre “Os limites do crescimento”, documento que preparou a 1ª conferência mundial de meio ambiente da ONU, em Es-tocolmo, em 1972.

Desde então começa uma luta tensa e intensa entre o ambientalis-mo que se mantém como movimen-to social e ao lado das lutas sociais por justiça social e um ambientalis-mo que pouco a pouco vai se consti-tuindo através de organizações ne-ogovernamentais. Dessa reunião de Estocolmo surge a recomenda-

ção para que nas relações multilate-rais entre os estados se inclua uma agenda ambiental e, com isso, se re-força o processo de institucionaliza-ção do movimento ambientalista e o processo que procura desqualifi -car os que se mantém junto às lutas populares na luta por uma socieda-de mais justa e ecologicamente res-ponsável.

Hoje sabemos, conforme nos in-forma a ONU, que os 20% mais ri-cos do planeta consomem 84% da matéria e energia transformada anualmente e que os 80% mais po-bres só são responsáveis pelo con-sumo de 16%! Assim, vai por terra o mito malthusiano de que é o cresci-mento demográfi co que estaria co-locando o planeta em risco, haja vista ser a pegada ecológica dos ri-cos o maior problema. E a questão se complexifi ca ainda mais quando observamos que temos mais ricos e classes médias com esse padrão de consumo ditado pelo 1º mundo no 3º mundo do que no 1º mundo. É o que podemos constatar com as in-formações insuspeitas do cientista social egípcio Samir Amin. Ele nos informa que, considerando o uni-verso somente da população urba-na do mundo, temos 330 milhões vivendo como classes médias e ricas

nos países do centro e 390 milhões como classes médias e ricas nos paí-ses da periferia! Enfi m, temos maisricos e classes médias na população urbana nos países da periferia do que nos países do centro! Hoje sa-bemos que 53% da população mun-dial é urbana e que 70% dos urba-nos do mundo estão no 3º mundo.

Enfi m, nos desruralizamos e nos suburbanizamos. Hoje temos mais gente exposta às catástrofes natu-rais (vulcões, furacões, terremotos, deslizamentos de encostas, enchen-tes) nas cidades do que jamais tive-mos em toda a história da humani-dade na cidade e no campo! Des-truímos o planeta nos últimos 40 anos mais do que em quaisquer ou-tros 40 anos da história! No Brasil, por exemplo, basta ver o que fi ze-mos dos nossos cerrados (savanas) e da nossa Amazônia nesse período! Destruímos mais nossa casa comum quando mais falamos em salvá-la.

Não há mais lugar para pensar o ambientalismo e o desenvolvimen-to. É de outras categorias que ca-recemos. É preciso descolonizar o pensamento e pararmos de querer ser de 1º mundo. É de outros mun-dos que carecemos! Um mundo on-de caibam muitos mundos, como os zapatistas sugerem.

Meio ambiente e desenvolvimento Carlos Walter Porto-Gonçalves

É preciso descolonizar o pensamento e pararmos de querer ser de 1º mundo. É de outros mundos que carecemos! Um mundo onde caibam muitos mundos, como os zapatistas sugerem

Leandro Uchoasdo Rio de Janeiro (RJ)

A ABALADA autoestima do brasileiro comum fi cou fortalecida de uns tempos pra cá. Em poucos anos, as duas prin-cipais competições esportivas do mun-do foram reservadas ao país, que sedia-rá a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, este, no Rio de Ja-neiro.

Assim que recebeu a condição de se-de, analistas esportivos e políticos con-cluíram: o Brasil é a bola da vez. Está na moda. De outro lado, alguns urbanistas e estudiosos começaram imediatamen-te a se preocupar. A escolha do país pa-ra sediar megaeventos esportivos teria o potencial de trazer problemas urbanos de diversas ordens, especialmente na área de moradia.

Nas últimas semanas, o Rio de Janei-ro passou a sentir na pele os impactos urbanos de que já vinham sendo alerta-dos desde 2009. Há cerca de um mês, a comunidade Metrô-Mangueira, uma das ameaçadas de remoção para a rea-lização das competições, foi surpreendi-da com a presença do Estado.

Na área, próxima ao Maracanã, pro-jeta-se a construção de um estaciona-mento para o estádio, exigência da Fe-deração Internacional de Futebol (FI-FA). Os moradores se mobilizaram con-tra a ação da polícia, que foi prorrogada. Atualmente, há denúncias de que algu-mas lideranças teriam sido cooptadas, e a mobilização se fragilizou. Os morado-res já estão aceitando as saídas mais co-muns, que são o pagamento de aluguel social e os abrigos.

SemináriosAtentos, porém frágeis perante os pro-

jetos anunciados, a academia e os movi-mentos sociais começam a se organizar. Entre os dias 8 e 10 de novembro, no Rio de Janeiro e em São Paulo, dois grandes eventos discutiram os impactos urbanos de tais acontecimentos esportivos.

Na capital fl uminense, o seminário “Mediação de Confl itos Urbanos e os Instrumentos dos Planos Diretores na Perspectiva da Exigibilidade do Direi-to à Cidade” teve tais impactos como te-ma principal. Na maior cidade do Bra-sil, com a presença de intelectuais de di-versos países, organizou-se o seminário “Impactos Urbanos e Violações de Di-reitos Humanos em Megaeventos Es-portivos”.

As conclusões, em ambos, foram mui-to semelhantes: milhares de famílias es-tão ameaçadas de remoção nas cidades sede da Copa, dezenas de alterações ur-banas questionáveis acontecerão, e o di-álogo dos movimentos com a sociedade, encantada com as competições, é mui-to difícil.

Cinco megaeventosNo Rio de Janeiro, os palestrantes aler-

taram que nunca um único país sediou as duas principais competições esportivas do planeta em tão pouco tempo, o que pode causar problemas. Também lem-braram que a cidade sediará três outros eventos muito importantes nos próximos anos: ela receberá os Jogos Mundiais Mi-litares em 2011, enquanto todo o país se-diará, ainda, a Copa das Confederações, em 2013, e a Copa América em 2015.

O professor Luís Mário Behnken, inte-grante da Rede de Megaeventos Esporti-vos do Rio de Janeiro (Reme), listou to-dos os problemas ocorridos durante a or-ganização do Pan-Americano de 2007. Três comunidades que escaparam de re-moção na época estão novamente em ris-co agora. Entre elas, a Vila Autódromo. “A mesma turma que fez os jogos Pan-Americanos, e que mentiu muito, é a que está envolvida com a Copa. O que pode-mos esperar?”, disse.

Segundo Luís César de Queiroz, profes-sor titular do Instituto de Pesquisa e Pla-nejamento Urbano e Regional (Ippur) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o Brasil atrai esses investimen-tos porque seu modelo macroeconômico permite. A ausência de fronteiras para a entrada de capitais atrai o mercado, e o dinheiro se materializa. O setor fi nancei-ro seria o maior benefi ciado. O país ga-nha pouco ou nada, segundo ele.

Entidades “incontestáveis”Em São Paulo, o seminário foi organi-

zado especialmente pela relatora especial da ONU para o direito à moradia, Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Ar-quitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).

No evento, comparou-se a situação das cidades que sediam essas competições com a dos Estados de exceção – tudo se-ria permitido, mesmo à margem da lei, para o sucesso dos megaeventos. A FIFA e o Comitê Olímpico Internacional (COI) funcionariam como entidades ultrapo-derosas, cujas determinações não pode-riam ser contestadas. A Constituição e o Estatuto das Cidades importam pouco.

O escocês John Horne, professor da University of Central Lancashire, ponde-rou que a sociedade tem uma relação afe-tiva com os eventos, que mescla o amor pelo esporte com certo patriotismo. Sen-te orgulho de sediar os jogos e não dá ou-vido aos protestos.

do Rio de Janeiro (RJ)

Em 9 de novembro, a Vila Taboinha acor-dou de um jeito diferente. Na entrada da comunidade, cerca de dez ofi ciais de justi-ça, 30 policiais militares, bombeiros e assis-tentes sociais faziam uma inesperada visi-ta. Traziam uma ordem de despejo à comu-nidade, para aproximadamente duas cente-nas de casas.

Surpresos, por jamais terem sido adverti-dos da possibilidade de remoção, os mora-dores se reuniram rapidamente. Líderes de movimentos e representantes de mandatos parlamentares foram chamados. Por meio da mobilização, que durou cerca de sete ho-ras, a comunidade localizada em Vargem Grande, na Barra da Tijuca, conseguiu adiar a decisão por quinze dias. Os moradores re-sistiram a bombas de gás pimenta e tiveram que assistir à marcação de suas casas.

A ordem de despejo coube à juíza Érica Batista de Castro. A Debret S/A Constru-ções, proprietária da área juntamente com outros dez sócios, requisitou a posse do ter-reno. Seriam donos das terras desde 1978.

Nos documentos, há indícios claros de que, nestes 32 anos, o terreno não cum-priu função social, e o IPTU (Imposto sobre

Varrendo os pobres do mapaNa Vila Taboinha, na Barra da Tijuca, as remoções começam sem aviso prévio e com pouco espaço para diálogo. Comunidades da região organizam resistência

a Propriedade Predial e Territorial Urbana) jamais foi pago. Não é difícil entender o in-teresse repentino da empresa. A região teria sofrido uma valorização de mais de 1.000% após a aprovação de uma polêmica lei na Câmara dos Vereadores. A Lei Comple-mentar 104/2009 (PEU Vargens), que tra-mitou em tempo recorde, fl exibiliza as re-gras de construção na região. Com legisla-ção menos rigorosa, as construtoras fi cam liberadas para construir espigões nas ter-ras; e há menos rigor para as obras de pre-paração para as megacompetições. Comen-ta-se, sem provas concretas, que alguns ve-readores teriam recebido até R$ 100 mil pa-ra aprovar a lei.

MobilizaçãoApenas três dias depois, enquanto boa

parte dos moradores estava trabalhando, os visitantes voltaram. Derrubaram seis casas que ainda estavam em construção e marca-ram outras para além do lote designado pa-ra remoção. Sob regime de urgência, os mo-radores marcaram uma reunião para três dias depois, no feriado de 15 de novembro. Mais de 300 pessoas compareceram à as-sembleia, que contou com representantes de diversos movimentos sociais.

Como estratégia, os moradores recor-reriam à Defensoria Pública e à Pastoral de Favelas e organizariam um grande ato. “Enquanto o processo não for julgado, não podemos ceder. É importante que ninguém aceite o aluguel social”, alertou a presidenta da associação de moradores, Alessandra da Silva. O benefício é comum em negociações de remoção. Quando a Prefeitura cumpre o compromisso, costuma pagar, no máximo, três parcelas de valores próximos a R$ 400. Para fi ns de comparação, uma área razoa-velmente próxima à região teria sido vendi-da por cerca de R$ 50 milhões, segundo o geógrafo Jorge Borges. (LU)

No pódio, os negóciosMEGAEVENTOS Dois seminários, no Rio de Janeiro e em São Paulo, discutiram os impactos urbanos e sociais da realização da Copa e das Olimpíadas no Brasil. Na capital fl uminense, começam as remoções

1.000% foi a valorização do terreno onde está a comunidade Vila Taboinha

no Rio de Janeiro

de 25 de novembro a 1º de dezembro de 2010

Moradores da Vila Taboinha e os “visitantes” inesperados

Patrick Granja

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culturade 25 de novembro a 1º de dezembro de 20108

Aleksander Aguilar

UM FILME SOBRE a guerra no Iraque que não mostra o Iraque. Mostra, con-tudo, uma guerra, sem combates béli-cos, ainda assim tão violenta quanto es-tes: o sonho por um país perdido e irre-cuperável.

Lançado este ano no Oriente Médio e na Europa, Tangled up in blue (Enrola-do na fossa, em tradução literal) abor-da temas tão latentes quanto globaliza-dos com uma peculiaridade que come-ça pela sua própria nacionalidade: o fi l-me é a primeira co-produção cinemato-gráfi ca Ocidente-Oriente Médio, entre Itália e Iraque, mas inteiramente roda-da em Londres.

O primeiro longa-metragem do jo-vem diretor iraquiano-italiano Haider Rashid, de 25 anos, está em fase fi nal de negociações para ser exibido nos ci-nemas brasileiros em 2011, após haver ganhado o prêmio de melhor fi lme nos prestigiosos festivais internacionais de médio porte Gulf Film Festival (Dubai, Emirados Árabes), I´ve Seen Film Festi-val (Milão, Itália) e Cinema Digital Seul Film Festival (Seul, Coréia do Sul).

O fi lme, cujo script também foi escri-to por Rashid, estará disponível a par-tir de fevereiro na internet e no website da produtora www.tangledfi lm.com. O rápido reconhecimento da produção se explica em parte pela sutil profundida-de com que explora, através da singular ótica de um artista de dupla nacionalida-de (fi lho de pai iraquiano e de mãe italia-na), alguns dos mais relevantes assuntos da atualidade: imigração forçada; confl i-tos e diferenças culturais entre Ociden-te e o Oriente Médio; vida em metrópo-les cosmopolitas; e exílio. Tangled up in blue vem se tornando um símbolo para os iraquianos exilados.

Não há paz para um país perdidoEm entrevista exclusiva para o Brasil

de Fato, Rashid explica que Tangled up in blue, porém, não é simplesmente ou-tro trabalho sobre os exilados e/ou refu-giados iraquianos e a crise humanitária – resultado das várias décadas de ema-ranhados confl itos militares e étnico-re-ligiosos no conturbado mundo árabe que permeia de forma quase mítica e infesta-da de ignorância o imaginário ocidental. “É um fi lme que fala sobre a paz que não existe, nem no Iraque nem dentro dos in-divíduos que foram forçados a deixar o país; sobre aqueles que nunca deixaram o Iraque por inteiro e acabaram por pas-sar esse sentimento de ‘permanente bus-ca pela pátria-mãe perdida’ para seus fi -lhos, a segunda geração de exilados”, analisa.

Tangled up in blue, cujo título é uma referência direta a uma conhecida can-ção de Bob Dylan, passa numa Londres austera e ao mesmo tempo caótica. Na metrópole, o fi lho de um mundialmen-te famoso escritor iraquiano tenta lidar com as repercussões do seu assassinato, lutando com a sua consciência ao plane-jar publicar um livro que explora a fama do seu pai e duelando com o amor não-correspondido pela sua melhor amiga.

“Cresci num ambiente confortável, mas fruto dessa bizarra combinação iraquia-na-italiana que desde criança me desper-tou o interesse por integração e mistu-ra de culturas em que o tema exílio sem-pre esteve presente. Um país que se per-de para os pais é um sonho para os seus fi lhos. Enquanto fazíamos o fi lme, perce-bi que ele apresenta uma forte afi rmação sócio-política: ser forçado a deixar o seu próprio país é uma das piores coisas que podem acontecer com alguém”, descre-ve Haider.

O Iraque é o segundo maior país de origem de refugiados no mundo. Segun-do as Nações Unidas, aproximadamen-te 2,2 milhões de iraquianos deixaram o país desde a invasão dos Estados Unidos em 2003, mas o número de refugiados é ainda maior quando se leva em conta as consequências da guerra contra o Irã (1980-1988) e a Guerra do Golfo (1990-1991). No Brasil, porém, dos atualmen-te 4.294 refugiados registrados, apenas 199 são iraquianos, conforme as estatís-ticas do Comitê Nacional para Refugia-

dos, órgão vinculado ao Ministério da Justiça (Conare), divulgadas no dia 15 de junho. Ainda assim, o Brasil é lar para o maior numero de descendentes de ára-bes – particularmente palestinos e liba-neses – fora do mundo árabe, num nú-mero estimado em aproximadamente dez milhões de pessoas de segunda e ter-ceira gerações.

Nesse sentido, Tangled up in blue é conscientemente inserido no seu tem-po e simultaneamente busca decifrá-lo e apresentá-lo. É uma leitura honesta, só-bria e original sobre dilemas sociológicos – e as esperadas consequências psicoló-gicas individuais – tão contemporâneos que ainda mal são percebidos no com-plexo processo de conformar e/ou con-ceituar uma sociedade internacional. “É um fi lme sobre o desconforto do desloca-mento que se utiliza de um estilo original para abordar o tema. Eu nunca quis gra-var no Iraque, mesmo que muitos insis-tissem que eu deveria. Eu preferi que a guerra fosse sentida, não vivida”, descre-ve Rashid, que não nega – ao contrário, quase faz questão em destacar – que o fi l-me tem muito da sua história pessoal.

Muçulmano não, comunista!Haider Rashid nasceu em Florença, na

Itália, onde seu pai, Erfan Rashid, um destacado jornalista e ativista político iraquiano, instalou-se depois de haver si-do forçado a sair do país nos anos 1980, durante a guerra contra o Irã no regime de Saddam Hussein.

Graduado em teatro na Academia de Artes de Bagdá, hoje Erfan, aos 58 anos, é consultor em diversos festivais e even-

tos culturais na Itália e no mundo árabe e já trabalhou para diversas mídias in-ternacionais, como France 24 e Deuts-che Welle. Atualmente é também o cor-respondente na Itália do jornal libanês Al Hayat – o maior e mais lido periódico árabe no mundo ocidental.

“Quando as pessoas perguntam para o meu pai se ele é muçulmano, ele respon-de: sou comunista”, conta Haider. Erfan foi ainda um conhecido crítico do regi-me de Saddam que hoje denuncia o ris-co do Iraque se tornar uma cópia do Irã fundamentalista. Em entrevista à revis-ta eletrônica italiana ResetDoc, Erfan alerta para a infl uência nociva do Irã no Iraque, que tem sido ampliada desde a invasão estadunidense em 2003. Na sua opinião, caso o Iraque siga controlado pelas milícias ou partidos xiitas, haveria uma “fundamentalização” do país, for-çando premissas religiosas em lugar de programas políticos. Erfan nunca voltou ao Iraque desde seu exílio, há 30 anos, e pensa em fazê-lo pela primeira vez em 2011. “Nossa preocupação com a segu-rança é séria, principalmente com a pos-sibilidade de sequestros”, alarma-se o fi -lho Haider.

Sem aprofundar-se na avaliação da retirada das tropas dos Estados Uni-dos do país – embora afi rmando que a saída gradual é melhor que uma abrup-ta –, o diretor (“não sou um analista político”), assim como seu pai, defende que o futuro do Iraque se relaciona com a extirpação do fator religioso das rela-ções de poder do país. “O governo ira-niano está fi nanciando xiitas e fazendo uso de um oportunismo sinistro desse caos. O país não é unido, e todo o pe-tróleo que possa ter não será sufi ciente para arrumar o Estado enquanto os ira-quianos matarem a si mesmos por con-ta da religião”, opina.

O Iraque é um tema cada vez mais presente na agenda do cinema interna-cional, e há duas tendências principais quando se retrata a questão. A primei-ra são os fi lmes feitos por profi ssionais não-iraquianos, que geralmente abor-dam a volatilidade política do país, mas tratando do tema fi lmando em outros lu-gares. Essas produções têm permitido uma maior atenção para os dilemas de diferentes ordens causados pelas inces-santes guerras no país, mas costumam estar permeada de estereótipos, onde o mais recente exemplo é o fi lme Guerra ao Terror (rodado na Jordânia) vence-dor da última edição do prêmio Oscar.

A segunda são as produções de cineas-tas iraquianos residentes no país que, no entanto, por não possuírem uma indús-tria cinematográfi ca local, enfrentam es-

cassez de recursos e de estrutura. Ainda assim, a perspectiva árabe do tema é es-sencial e única, e há uma forte presen-ça de novos profi ssionais. O trabalho de Haider Rashid situa-se exatamente na fronteira dessas tendências. Ele se con-sidera uma espécie de imigrante na Itá-lia apesar de nunca haver estado no Ira-que e tem recebido grande atenção e crí-tica da mídia iraquiana. “Creio que rece-bemos uma resposta positiva em função da maneira como abordamos a questão. No mundo árabe, essa maneira de falar da guerra, a partir da visão dos fi lhos dos exilados, é totalmente inesperada. No Iraque, eu sou considerado um iraquia-no mesmo sem nunca ter estado lá, por-que sou fi lho de um”.

“Bagdá é inferno”O fi lme é dedicado a um amigo da sua

família. O jornalista Kamel Shiaa Ab-dallah, um notório intelectual, assassi-nado em 2008, em Bagdá, logo após ter regressado ao país depois de décadas de exílio. Kamel havia sido designado con-selheiro no Ministério de Cultura do Ira-que, como coordenador do Comitê de Proteção do Patrimônio Cultural do país na Unesco.

Rashid denuncia os constantes ataques à intelectualidade acadêmica e artística do país. “Há inúmeros casos de pessoas da cultura e da ciência que foram assas-sinadas por conta de suas ideias”, apon-ta. Essa situação é a responsável para que o fi lme, paradoxalmente, ainda não tenha tido exibição no Iraque. “De fato, nos preocupamos com o fator segurança. Mas ao que tudo indica poderemos exi-bi-lo em breve em Bagdá”, revela Rashid. Em março de 2011, o diretor viajará pela primeira vez ao Iraque, junto ao seu pai.

Bagdá, explica Rashid, é uma cidade mítica para o mundo árabe. “Meu pai e seus amigos viviam falando da cida-de, de quão linda era Bagdá. Mas a reali-dade é que aquela cidade agora só existe na imaginação deles. Passaram 30 anos sonhando com isso, e de repente tudo o que você conheceu antes não existe mais. Como o próprio personagem do fi lme afi rma: Bagdá é inferno”.

Aquela Bagdá já não existe. Agora res-ta o sonho do país perdido, vivido pelos fi lhos dos exilados, a segunda geração; que luta para deixar a memória presen-te na eterna busca pela pátria-mãe atra-vés da arte.

Aleksander Aguilar é jornalista emestre em Estudos Internacionais.

(www.deiticos.blogspot.com)

Iraque: guerra por fora, queima por dentro

CINEMA Diretor iraquiano-italiano retrata confl ito no Oriente Médio pela perspectiva de árabes exilados na Europa

“Ser forçado a deixar o seu próprio país é uma das piores coisas que podem acontecer com alguém”

“Eu nunca quis gravar no

Iraque, mesmo que muitos

insistissem que eu deveria”

“O governo iraniano está fi nanciando

xiitas e fazendo uso de um

oportunismo sinistro desse caos”

“No mundo árabe, essa maneira de falar da guerra, a partir da visão dos fi lhos dos exilados, é totalmente inesperada”

Cena do fi lme Tangled up in blue

O diretor iraquiano-italiano Haider Rashid

Divulgação

Divulgação

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internacional de 25 de novembro a 1º de dezembro de 2010 9

Eduardo Sales de Lima da Redação

A “GUERRA CAMBIAL”, protagoniza-da por Estados Unidos e China, trouxe à tona mais um capítulo dos desdobra-mentos do processo da crise econômi-ca internacional desencadeada a partir do segundo semestre de 2008. Sua atu-al fase desvelou ainda mais a hegemo-nia política e econômica estadunidense no mundo.

Vejamos. O banco central estaduni-dense, o Federal Reserve (Fed), injetou, no começo de novembro, cerca de 600 bilhões de dólares na economia através da compra de títulos públicos de longo prazo. A intenção é reduzir ainda mais as taxas de juros cobradas em hipotecas e outras dívidas. Assim, ao facilitar em-préstimos, as pessoas seriam estimula-das a gastar mais e, por consequência, as empresas teriam incentivo para con-tratar mais.

Porém, esse “mar de dólares” vem provocando sua desvalorização pelo mundo afora. O que quer dizer que o outro objetivo levado a cabo pelo gover-no de Barack Hussein Obama, o de esti-mular uma agressiva política de expor-tação, também tem surtido efeito. “Em última instância, a estratégia dos esta-dunidenses é procurar reduzir seu defi -cit comercial, que hoje é muito elevado”, explica o presidente do Conselho Regio-nal de Economia (Corecom-RJ), Paulo Passarinho.

A crise foi compartilhada. O setor ex-portador de muitos países, sobretudo dos emergentes, fi cou prejudicado. O aumento da circulação de dólares nesses países barateou a moeda estadunidense e sobrevalorizou as moedas locais, pre-judicando as vendas ao exterior.

A estratégia do FED elucida ainda mais a atual fase do sistema econômi-co em que vivemos. “Na sua marcha, o capitalismo não tem nenhum pudor em queimar parte de seu próprio corpo, pa-ra depois crescer de outra maneira, mais concentrado, mais fi nanceirizado, e is-so, evidentemente, vai deixando as mar-gens de manobra cada vez mais estrei-tas”, explica Paulo Passarinho.

TensãoEstreitas, mas possíveis. O governo

estadunidense, num comportamento ainda mais agressivo, não se contentou em desvalorizar o dólar e transportar sua crise para o resto do mundo. Ago-ra, o país, para além do viés econômi-co, lançou mão de seu poder político e iniciou uma forte pressão sobre a China para que o país asiático permita uma so-brevalorização de sua moeda, o iuan.

Emerge, aqui, o cerne da chamada “guerra cambial”. Isso porque, grosso modo, com o iuan valorizado, a China perderia, sobremaneira, a força de suas exportações, visto que o baixo preço de seus produtos é um dos principais trun-fos para a entrada de grandes divisas no país asiático.

Desde julho de 2008, a taxa de câm-bio da moeda chinesa é praticamente fi xa em relação ao dólar, com uma va-riação máxima de 0,5%. “O iuan cola-do ao dólar mantém a competitividade das exportações chinesas. O problema é que essa guerra comercial acaba nos re-velando de forma dramática esse pro-cesso de desvalorização de moedas por meio do qual, a rigor, a China, que quer manter sua posição competitiva no mer-cado internacional, procura não deixar sua moeda se descolar do dólar”, explica Paulo Passarinho, lembrando que paí-ses como o Brasil, com câmbio fl utuan-

A locomotiva e seu “vagão de luxo”ECONOMIA Crise compartilhada e “guerra cambial” desvelam a ainda forte hegemonia do dólar

te, foram consideravelmente prejudica-dos no comércio exterior.

Em artigo, o economista Michael Hu-dson, da Universidade do Missouri, sa-lienta que pequenas revalorizações do iuan não seriam a solução que o gover-no dos Estados Unidos pedem, a menos que a revalorização fosse “enorme” – em torno de 40%.

Vagão de luxoApesar da difi culdade que o governo

dos Estados Unidos tem em fi nanciar o defi cit público com recursos de investi-dores internos e dos bancos centrais dos países superavitários, a atual “tensão cambial” tem mostrado como a econo-mia mundial ainda é e será, por um bom tempo, regido pelo dólar, pelo menos de acordo com Reinaldo Gonçalves, profes-sor de economia da Universidade Fede-ral do Rio de Janeiro (UFRJ).

O lastro dos Estados Unidos é sua he-gemonia no mundo. A China ainda é uma vagão de primeira classe. O Brasil é um vagão de 5ª classe, e os Estados Uni-dos ainda são a locomotiva”, explica. Pa-ra ele, ainda levará muito tempo para o dólar deixar de ser a moeda referência para as trocas comerciais.

Justamente por causa da força de em-presas estadunidenses e do peso do dó-lar, “não é completamente incongruen-te para os interesses dos Estados Unidos essa situação chinesa, porque os chine-ses, com sua situação superavitária, aju-dam a fi nanciar o defi cit estadunidense, na medida em que são os principais de-tentores dos títulos do país”, explica Paulo Passarinho.

A interdependência sino-estaduni-dense é mais intrínseca que isso. “Es-sa simbiose entre a economia estaduni-dense e a economia chinesa existe tam-bém no campo produtivo; boa parte das exportações chinesas são de produtos de empresas estadunidenses instaladas dentro da China”, destaca Passarinho.

Segundo ele, grande parte do setor de bens de consumo duráveis com origem

nos Estados Unidos se transferiu para a China. “Hoje, existe uma quantidade formidável de empresas estadunidenses que se benefi ciam da política com o iuan desvalorizado”, conta. Por isso, segundo ele, “a situação é muito mais complexa do que se imagina à primeira vista”.

HegemoniaAlém dos benefícios a empresas esta-

dunidenses no território chinês, como a Microsoft, por exemplo, salta aos olhos os limites econômicos que o governo es-tadunidense impõe ao capital chinês, desvelando a ainda forte hegemonia po-lítica que os Estados Unidos detêm so-bre o país asiático e o resto do mundo.

Michael Hudson explica que a eco-nomia estadunidense, credora de paí-ses estrangeiros, insiste em que eles pa-guem pelas suas dívidas externas e de-fi cits comerciais em curso por meio da abertura dos seus mercados e até mes-mo por meio da venda da sua infraes-trutura pública chave, indústrias, direi-tos minerais e elevadas encomendas a investidores estadunidenses. Mas o go-verno dos EUA tem impedido países es-trangeiros de fazerem o mesmo com o seu próprio país.

Crédito ao imperialismo

Pompeu Fabra (Barcelona), problemas muito maiores estão para vir dos Esta-dos bálticos (Lituânia, Letônia e Estô-nia), da Hungria e de outras economias pós-soviéticas.

Segundo ele, durante uma década, es-ses países fi nanciaram os seus defi cits es-truturais de comércio com a tomada de empréstimos de divisas estrangeiras pa-ra alimentar uma bolha imobiliária. “Es-sa entrada de divisas estrangeiras (de bancos austríacos para a Hungria e Ro-mênia, de bancos suecos para os Estados bálticos) infl acionou os preços dos seus edifícios de habitação e escritórios”, es-creve, em artigo.

Navarro afi rma que as bolhas imobiliá-rias estouraram e que não há mais como ocorrer empréstimos estrangeiros, vis-to que “os sistemas bancários da Suécia e da Áustria confrontam-se com incum-primentos generalizados”. (ESL, com agências)

da Redação

O destino do euro está em risco. Quem disse isso foi o ministro das Finanças da Alemanha, Wolfgang Schaeuble, no dia 23 de novembro. A afi rmação elucida que tanto a Alemanha quanto a França – principais países da Zona do Euro, e que, comumente, comandam o setor econô-mico dos países mais periféricos – , des-ta vez, se aproximam mais de uma postu-ra de defesa do que de auxílio, pois a cri-se se espalha com consistência por todo a União Europeia.

Como havia lembrado o economista Reinaldo Gonçalves, em entrevista ao IHU- Instituto Humanitas Unisinos, o problema das graves crises localizadas em países de pouca importância econô-mica (como Grécia, Portugal e Irlanda) é que o mercado fi ca operando num con-texto de maior incerteza frente aos cená-rios futuros de intervenção para enfren-tar tais crises.

Mais problemasO protagonista da vez é a Irlanda, que

espera receber dezenas de bilhões de eu-ros em empréstimos. As ações de um dos seus principais bancos, o Banco da Irlan-da, caíram 36% no dia 22 de novembro. Mas, de acordo com o sociólogo e econo-mista Vicenç Navarro, da Universidade

O protagonista da vez é a Irlanda, que espera receber dezenas de bilhões de euros em empréstimos

Euro em riscoSegundo economista, problemas maiores surgirão na Hungria e nos Estados bálticos

0,5%é a variação máxima do

iuan em relação ao dólar, desde julho de 2008

“O lastro dos Estados Unidos é sua hegemonia no mundo. A China ainda é uma vagão de primeira classe”

“Hoje, existe uma quantidade formidável de empresas estadunidenses que se benefi ciam da política do iuan desvalorizado”

Assim, segundo Hudson, o fato de aChina não poder comprar companhias-chave estadunidenses é, em grande me-dida, responsável pela situação assimé-trica entre os dois países: enquanto in-vestidores estadunidenses ganham 20%ao ano com a taxa de juros ao comprarativos na China, o ganho dos investido-res chineses, ao “reciclarem” estes dóla-res para Washington, é de apenas 1%.Como os chineses precisam se livrardesses dólares em excesso comprandotítulos estadunidenses, as perdas emmuitos investimentos do setor privadodos Estados Unidos fi cam reduzidas.

da Redação

A compra de títulos públicos estaduni-denses por diversos bancos centrais pelo mundo afora, “reciclando” seus dólares, permite aos Estados Unidos fi nanciarem suas despesas militares e, também, o seu defi cit orçamental interno (em grande medida, de caráter militar), desde a dé-cada de 1950. Isso é o que revela o econo-mista Michael Hudson, da Universidade do Missouri, em um recente artigo. Irô-nico, ele pontua que, dessa forma, tanto países da Europa quanto da Ásia acabam por fi nanciar a presença de bases milita-res estadunidenses em torno de si mes-mos. (ESL)

Reprodução

Pete Souza/White House

Barack Obama caminha ao lado do presidente Hu Jintao em visita a Pequim, capital chinesa

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internacionalde 25 de novembro a 1º de dezembro de 201010

Dafne Meloda Redação

“VOCÊ ESTÁ com medo?”, pergunta o palestino que dirige o carro em direção a uma casa cercada por uma colônia israe-lense. Diante da negativa, ele ri e comple-ta: “pois eu estou, tenho a impressão de que a gente vai cair dentro da colônia”.

No banco de trás, outro companhei-ro palestino procura tranquilizar o da frente. “Já vim aqui, conheço o dono da casa, pode ir em frente, mas nada de fo-tos”, diz, apontando a torre de seguran-ça na entrada da colônia, a poucos me-tros de nós. “Você está com dois palesti-nos e tudo o que eles querem é uma des-culpa para atirar”.

Na entrada da casa, somos atendidos por um senhor com cerca de 70 anos, ro-busto, pele queimada de sol, cara de pou-cos amigos.* Os três palestinos conver-sam, em árabe, por longos minutos. Lo-go, vem a tradução: “Ele disse que te re-cebe com prazer na casa dele, mas que nada de entrevistas, fotos, nada. Não quer que você coloque o nome dele, o lugar onde está a casa, nada”. Por quê? Pergunto, insistente.

Ainda com cara de poucos amigos, ele responde: “Você não é a primeira e nem a última gringa que vem escrever sobre a minha história. Mas vocês vêm aqui, escrevem, voltam para seus países e eu continuo aqui nesta situação”, resume. Antes mesmo de a reportagem aceitar as condições, o senhor dispara a falar e se aproxima da grande janela da sala em que estamos, afastando a cortina. O vidro está todo quebrado, com diversos bura-cos provocados por disparos de armas de fogo e outros maiores feitos por pedras.

O senhor nos vai guiando pelo lado de fora casa, mostrando as pedras – gran-

Sombra sobre as oliveirasPALESTINA Todos os anos, de outubro a novembro, milhares de agricultores palestinos lutam para realizar a colheita de azeitonas em terras roubadas por Israel

des, na maioria. Ele explica que todos os dias elas são disparadas em direção a sua casa, onde vive com sua esposa e dois fi -lhos pequenos. “Meus fi lhos não podem sair para brincar do lado de fora”, diz, com a indignação já tomando todo o es-paço da desconfi ança inicial.

RouboEle nos leva a um terreno ao lado da ca-

sa, onde plantou grandes árvores ao re-dor, formando uma espécie de muro de proteção. Conta que comprou a casa e as terras ao redor dela antes de 1967, ano em que Israel invadiu a Cisjordânia, na Guerra dos Seis Dias.

Israel tentou comprar a casa, mas ele se nega a vender e a sair dali. Ao lado de-la, foi construída uma colônia que pra-ticamente cerca todas suas laterais es-querda e superior. O senhor explica que as pedras e tiros vêm dos próprios colo-nos, que agem com a conivência dos sol-dados que fazem a guarda da colônia.

No terreno lateral, ele cultiva batatas, ameixa, amêndoas e outras frutas. Na parte de baixo do terreno, à vista da torre militar, possui alguma oliveiras e, quan-

Na pequena cidade de Ni’lin, por exem-plo, próxima à Ramallah (capital admi-nistrativa da Cisjordânia), uma colônia foi construída exatamente entre as ca-sas e as plantações de oliveiras, o que, na prática, impede que os agricultores pos-sam ir trabalhar e realizar a colheita em suas próprias terras. A destruição desses plantios, com uso de fogo ou máquinas, também é um recurso bastante usado pe-lo exército israelense.

ResistênciaA colheita de azeitonas ocorre entre

outubro e novembro de cada ano. Pa-ra os agricultores palestinos, ser capaz de conseguir chegar até essas oliveiras e fazer a colheita se transformou em uma luta e também em um símbolo de resis-tência. A atividade é parte importantedo patrimônio e tradição da Palestina.

Como o Estado israelense costuma re-primir brutalmente os agricultores, háalguns anos algumas organizações dedireitos humanos e que aglutinam agri-cultores palestinos têm promovido bri-gadas internacionais com voluntários dediversos países. Isso porque, com a pre-sença estrangeira, o Exército israelen-se tende a diminuir o nível de violênciaempregada. Neste ano, a Via Campesi-na Brasil, representada pelo Movimen-to dos Trabalhadores Rurais Sem Ter-ra (MST), se fez presente com dois in-tegrantes. “A colheita de azeitonas des-te ano foi uma das mais violentas, poismuitos colonos de Israel atacaram cam-poneses palestinos, impedindo a colhei-ta de suas plantações. Houve mortes emuita gente ferida”, relata Ivori Moraes. (Leia entrevista na página 11).

Somente no fi nal de outubro, quatro organizações israelenses de direitos hu-manos – Associação de Direitos Civis de Israel (Acri, sigla em inglês), B’Tselem, Rabinos pelos Diretos Humanos e Yesh Din, em um relatório conjunto – denun-ciaram 35 casos de vandalismo em plan-tações de oliveiras de palestinos, por par-te de colonos judeus. O relatório ainda afi rma que a maioria das ocorrências foi registrada, mas que quase nada foi feito pelas autoridades israelenses para averi-guar os fatos.

* depoimento dado durante viagem da repórter à Palestina,

em junho deste ano

do desce para trabalhar nessas terras, da torre vêm ameaças de tiro. “Eles gritam que se eu não sair, eles vão atirar. Não li-go, continuo lá trabalhando. Que atirem. Desta terra, eu só vou sair morto.”

Essa história não é única. Onde fo-ram construídas colônias, que já ocupam quase metade de toda área da Cisjordâ-nia, foram roubadas as terras de quem estava ali antes: os palestinos. As pro-priedades também foram confi scadas para a construção de estradas de circula-ção exclusiva dos israelenses, que ligam as colônias às grandes cidades israelen-ses e outros estabelecimentos, como ba-ses militares.

“Você não é a primeira e nem a última gringa que vem escrever sobre a minha história. Mas vocês vêm aqui, escrevem, voltam para seus países e eu continuo aqui nesta situação”

Apesar da repressão brutal, palestinos realizam a colheita das azeitonas

Ivori Moraes

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Ivori Moraes

da Redação

OS MILITANTES do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) Ivori Moraes e Deusamar Sales estive-ram por 15 dias na Palestina, onde parti-ciparam do Fórum Mundial de Educação e da colheita de azeitonas. Em entrevista ao Brasil de Fato, Ivori conta como foi a experiência de conhecer a realidade e a luta do povo palestino.

Brasil de Fato – Vocês foram ajudar os agricultores na colheita das oliveiras. Qual a importância da solidariedade internacional do MST/Via Campesina? Ivori Moraes – Estivemos em contato com dirigentes e famílias camponesas de duas organizações. Uma delas é a União de Comitês de Trabalho Agrícola (UA-WC, na sigla em inglês), que tem 450 co-mitês de base que lutam pela terra – que é tomada à força pelo Exército para im-plantar colônias de Israel –, pelo acesso à água e pela soberania alimentar. Bus-cam os mesmos objetivos da Via Cam-pesina, com as especifi cidades da Pales-tina. Também tivemos um intercâmbio com a União de Agricultores da Pales-tina, que tem 75 entidades organizadas e 16 associações agrícolas. Participamos do fi nal da colheita das azeitonas, que é um dos principais cultivos dessas famí-lias. Na Palestina, existem mil quilôme-tros quadrados com plantações de olivei-ras. Nos últimos dez anos, alegando “ra-zões de segurança”, o Estado de Israel ar-rancou mais de cinco mil árvores para a expansão das colônias, a construção do “muro do apartheid” e a implantação de estradas para os judeus.

A colheita deste ano foi uma das mais violentas, pois muitos colonos judeus atacaram camponeses palestinos, im-pedindo a colheita de suas plantações. Houve mortes e muita gente ferida. Ou

“Nos últimos dez anos, Israelarrancou mais de cinco mil árvores” ENTREVISTA Integrantes do MST que participaram da colheita de azeitonas neste ano relatam a realidade dos camponeses palestinos

seja, além da ação do Exército, que bar-ra o acesso às plantações por qualquer motivo, alegando questão de seguran-ça, agora a disputa é para acabar com a principal atividade agrícola das famílias palestinas e implantar os sistemas pro-dutivos do agronegócio sob o controle das empresas transnacionais e israelen-ses. Participamos de alguns dias de co-lheita de azeitonas junto com as famí-lias, pois a presença de pessoas de dele-gações internacionais signifi ca uma for-ma de solidariedade e também de defesa para as comunidades camponesas, prin-cipalmente nos lugares mais afastados e nas proximidades do muro ou das colô-nias de Israel.

É possível estabelecer alguma relação com o problema dos sem-terras aqui no Brasil?

Se fi zermos uma comparação com a luta dos sem-terras no Brasil, perce-be-se que os temas são comuns: ter-ra, água, soberania alimentar, contro-le das sementes. Infelizmente, frutos do mesmo sistema de concentração. Nos-so Brasil, que possui muito mais recur-sos naturais, tem também famílias sem acesso às condições necessárias para vi-ver e produzir no campo. Mas nem dá para comparar nossa situação política e organizativa com o grau de repressão e de isolamento em que trabalham e lu-tam as famílias palestinas. Cabe a nós fortalecer nossas organizações, pois as garras do imperialismo estão fi ncadas de formas diferentes em todo o plane-ta. As nossas ações locais precisam estar articuladas com as lutas dos trabalhado-res (as) de forma global.

Vocês também participaram do Fórum Mundial de Educação. Qual a importância de realizá-lo na Palestina?

O Fórum Mundial da Educação acon-teceu de 28 a 31 de outubro deste ano,

com o lema: “Educação para a mudan-ça”. Foi um marco importante na resis-tência palestina, no sentido de fortale-cer a solidariedade internacional, en-quanto compromisso de classe, no com-bate ao imperialismo e na reafi rmação da soberania dos povos. Basicamente, os debates desse fórum foram em tor-no do papel da educação nesse contex-to e da reafi rmação das potencialidades dos processos educativos, quando estes estão vinculados à luta pela transforma-ção social. Mas o evento teve inúmeras difi culdades para acontecer, devido ao cerco permanente de Israel. Um dos fa-tos graves foi a prisão de um dos mem-bros do Secretariado do Fórum Social Mundial e da Comissão organizadora desse fórum, Ameer Makhoul, que ocor-reu no dia 6 de maio. Ele foi preso em sua casa, às três da madrugada, com ba-se na Lei de Segurança, sob acusação de espionagem, e foi mantido isolado por 12 dias e forçado a confi ssões pela inteli-gência israelense. Assim como os outros presos políticos mantidos em prisões de Israel, que são aproximadamente 6.850 pessoas, Ameer foi julgado por uma cor-te secreta e será condenado a uma pena de sete a dez anos de prisão.

Como o fórum contribuiu para a luta do povo palestino?

Diante desta situação tão grave, acredi-to que o Fórum da Educação teve um pa-pel importante para que as ações de soli-dariedade ou de boicotes, que devem ser implementadas internacionalmente, ga-nhem força. Quem conseguiu chegar até as atividades do fórum sentiu na pele o que o povo palestino vive todo dia. Des-sa forma, teremos que debater em nos-sos movimentos como fazer algo concre-to para fortalecer a resistência daque-le povo, como a campanha pela liberta-ção de presos políticos, por exemplo. As pessoas precisam saber o que está acon-tecendo na Palestina, e é preciso articu-lar as ações internacionais, pelo menos as que tenha mais unidade, como as de defesa dos direitos humanos básicos, que os presos políticos de lá não têm. Não dá para fi car debatendo possibilidades de transformação social em um fórum sem tratar de ações concretas para que as lideranças que conduziam os proces-sos organizativos na Palestina possam ao menos ter o direito de se comunicar com os seus familiares e seu povo. Nesse sen-tido, achamos que o fórum cumpriu um papel muito importante. (DM)

Terra, água e soberania alimentar são alguns pontos comuns com a luta dos sem-terra no Brasil

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Janaina Stronzake eIker Zirion

HOJE EM DIA, e de acordo com a versão que nos é imposta sobre o que é a Áfri-ca, pode parecer que ela se acabou, que se trata de um continente pobre e doente, com milhões de refugiados, homens ar-mados sobre jipes, mulheres carregando seus fi lhos nas costas.

Contudo, a realidade não é assim. Mui-to pelo contrário: a África é rica. A Áfri-ca é verde. A África é, hoje, muito atra-tiva para interesses capitalistas, tanto de estados ocidentais como das empresas transnacionais.

Um exemplo é o que ocorre na Repú-blica Democrática do Congo (RDC, tam-bém conhecida como Congo-Kinsha-sa), em cujo território há grande quan-tidade de recursos naturais – a segunda maior fl oresta tropical do mundo, depois da Amazônica – e minerais – diamante, ouro, cobre, nióbio, coltan etc.

Localizada no centro do continente africano e com um tamanho quase igual aos estados do Amazonas e do Pará jun-tos, a RDC segue sofrendo as consequên-cias de um confl ito que, em grande medi-da, nasceu e se alimenta do interesse que suas riquezas despertam em países e em-presas estrangeiras.

Contexto sociopolíticoA RDC é uma república cujo atual pre-

sidente, Joseph Kabila, foi eleito em 2006, em eleições consideradas demo-cráticas por observadores internacio-nais. Todavia, as acusações de corrup-ção, repressão de opositores(as) e vio-lação de direitos humanos por parte de diferentes instâncias do Estado têm si-do recorrentes em uma estrutura admi-nistrativa que, por outro lado, tampouco pode satisfazer os serviços básicos da po-pulação.

A saúde e a educação, especialmente, dentro de um claro processo de privati-zação, são, desde há anos, excessivamen-te caras e, portanto, de difícil acesso para grande parte da população.

Por outro lado, a falta de acesso à água potável, as infraestruturas precárias e, especialmente, a insegurança generaliza-da – mais grave na parte leste – permi-tem que a RDC, apesar de suas imensas riquezas, se encontre, em 2010, na po-sição 168 no Índice de Desenvolvimen-to Humano (IDH) anualmente elabora-

A “maldição” de ser rico

do pelo Programa das Nações Unidas pa-ra o Desenvolvimento (Pnud).

Entre 1998 e 2003, a RDC sofreu com uma das guerras mais mortais do século 20, na qual perderam a vida mais de cin-co milhões de pessoas. Ainda que a paz tenha sido assinada em 2003, os confl i-tos matavam cerca de 45 mil pessoas a cada mês até 2008 – ano até quando se têm dados.

O problema da terraAproximadamente 80% da população

da RDC vivem do que produz no campo, e sua vulnerabilidade é elevada porque o campesinato se vê submetido a contínu-as pressões. Por um lado, em determina-das zonas do país, especialmente no les-te, a pressão demográfi ca sobre a terra é enorme. Em um processo relativamente recente, grandes extensões de terra per-manecem sem ser cultivadas, nas mãos de grandes comerciantes, enquanto a maioria da população mal tem terra pa-ra plantar para comer.

Por outro lado, a Lei Agrícola (Code Agricole) que está sendo debatida nes-te momento pelo Parlamento congolês prioriza o latifúndio, a produção inten-siva e para exportação, desconsiderando as necessidades ou a defesa dos direitos das campesinas e campesinos.

Um exemplo desse tipo de política vin-cula diretamente o país centro-africano com Brasil. O Ministério de Agricultura da RDC assinou, em 2008, um convênio

Essa guerra tem o triste recorde de ser o confl ito armado mais mortal des-de a Segunda Guerra Mundial: o núme-ro de vítimas diretas ou indiretas, desde 1998, é superior a cinco milhões de pes-soas. Mesmo que a paz tenha sido assina-da em 2003, a violência e a instabilidade permanecem até hoje, com muitos gru-pos armados ativos no leste do país.

No âmbito local, os diferentes atores armados encontram nos recursos natu-rais uma subvenção permanente para su-as atividades e sempre tentaram se legiti-marem amparados em diferenças étnicas que são no mínimo discutíveis.

Intervenções Em nível regional, os países vizinhos

intervieram durante muitos anos na RDC. E continuam intervindo hoje. Es-pecialmente alguns grupos de Uganda e Ruanda se enriqueceram muito com a exploração ilegal das riquezas do les-te do Congo-Kinshasa e não duvidaram em apoiar diferentes grupos armados em seu território.

Ainda hoje, parece que a maioria do trá-fi co ilegal de matérias-primas congolesas que chegam ao mercado internacional se realiza através de Ruanda. Curiosamente, e apesar de não existir coltan no território ruandês, este país é um dos principais ex-portadores mundiais do minério.

Finalmente, todas as matérias-primas que saem da RDC se dirigem ilegalmen-te, através dos mercados internacionais, a nossas casas. O papel de certos esta-dos e, sobretudo, certas empresas trans-nacionais no confl ito e na exploração das matérias-primas congoleses é tão evi-dente que foi denunciado repetidamen-te por informes da ONU.

Entre os países com maiores interesses econômicos e geoestratégicos na zona, estão a Bélgica (a antiga metrópole co-lonialista), França (que interveio na re-gião repetidas vezes), e EUA e Inglaterra, que são, atualmente, os principais apoia-dores do regime ruandês. Quanto às em-presas estrangeiras e transnacionais, as de telecomunicações e de exploração mi-neira, por exemplo, obtêm grandes lu-cros com a atual insegurança.

Enquanto isso, nós, cidadãs e cidadãos a pé, entramos no jogo, trocando de ce-lular a cada poucos meses, sem nos per-guntar de onde estão vindo as matérias-primas para sua fabricação.

Janaina Stronzake é historiadora e integrante do MST; Iker Zirion é pesquisador

e professor da Universidad del País Basco. Morou na República Democratica do

Congo em 2008.

CONGO-KINSHASA O país sofre as consequências de um confl ito que se alimenta do interesse que suas riquezas despertam

com a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária).

A então ministra de Comércio e Consu-mo do Congo-Kinshasa, Jeanne Dambe-dzet, expressou sua esperança de que o aumento da produção de cana-de-açúcar e dendê seria estratégico para seu país. No entanto, se tomamos em conta que a produção de cana tem um papel estraté-gico muito mais importante para a pro-dução de etanol do que para a de alimen-tos, esse tipo de acordo pode ser um pro-blema a mais para o povo congolês.

MinériosO leste da RDC armazena em seu solo e

subsolo uma considerável quantidade de matérias-primas: ouro, diamante, ma-deira, cobre e, sobretudo, coltan, um ma-terial supercondutor muito utilizado nos aparelhos eletrônicos – telefones celula-res, iPod, mp3, computadores portáteis, playstations etc. Calcula-se que nessa re-gião se encontra 80% das reservas mun-diais desse mineral estratégico.

Sem nenhuma dúvida, a incidência dos recursos naturais e minerais no confl ito é evidente, ao contrário da usual explica-ção étnica que agrada aos grandes meios de comunicação.

Ainda que durante a época em que o ditador Mobutu presidia o país (1965-1997) houvessem enfrentamentos e con-fl itos, a pior parte se inicia a partir de 1996, quando uma aliança de grupos ar-mados nacionais, apoiados por países vi-zinhos, enfrentou o governo e chegou ao poder um ano depois. Posteriormente, entre 1998 e 2003, teve lugar uma guer-ra na qual participaram, além de mui-tos grupos armados congoleses, vários estados vizinhos, como Ruanda, Burun-di, Uganda, Angola e República Centro-Africana.

Grandes extensões de terra permanecem sem ser cultivadas, nas mãos de grandes comerciantes, enquanto a maioria da população mal tem terra para plantar para comer

A saúde e a educação, especialmente, dentro de um claro processo de privatização, são,

desde há anos, excessivamente caras

DE 29 DE NOVEMBRO a 10 de de-zembro estará reunida em Cancún (México) a 16ª Conferência das Par-tes da Convenção Marco das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 16). A crise climática é grave e muito está em jogo no mundo real.

Em que pese isto, os governos mais poderosos – que são os conta-minantes e carregam a maior dívida climática –, com a colaboração dos anfi triões, decidiram de antemão que Cancún será só uma parada, on-de não haverá fracassos, porque não tentarão um novo acordo global. Es-ta declaração de uns poucos funcio-na como profecia auto-cumprida, já que as decisões se tomam por con-senso. Outra vez, como fi zeram em Copenhague, se propõe sequestrar toda esta Convenção da ONU, para conseguir o que querem suas trans-nacionais, ainda que a crise climáti-ca piore.

Que não haja acordo global, vincu-lante, de reduções reais de emissões – não através de soluções falsas co-mo mercados de carbono ou novas tecnologias – facilita que sigam ca-valgando no espúrio entendimento de Copenhague, que não é parte da ONU e cujos compromissos voluntá-rios levariam a um aumento da tem-peratura de três a quatro graus em média, um cenário de catástrofe pre-meditada para muitos países do Sul.

Mas há alguns temas – de enor-me relevância por suas nefastas con-sequências – sobre os quais a máfi a climática quer conseguir acordos em

Cancún. Os principais são: a privati-zação do ar, através da privatização das fl orestas em todo o planeta com os programas REDD+; a criação de um mecanismo fi nanceiro que po-deria signifi car instaurar uma nova era de Programas de Ajuste Climá-tico (parafraseando os programas de ajuste estrutural do FMI e Banco Mundial); e a criação de um Comitê de Tecnologias para a mudança cli-mática, tema opaco que pode escon-der a promoção de tecnologias mui-to danosas, como cultivos transgêni-cos, geoengenharia e outras aventu-ras tecnológicas com fortes impactos ambientais e sociais, além de funcio-nar como agência de proteção de pa-tentes das transnacionais.

Também há a proposta para in-cluir os solos e a agricultura em mer-cados de carbono, um novo ataque à agricultura camponesa, essencial para alimentar o mundo e para res-friar o planeta.

Mas o mais grave na COP 16 é a tentativa de mundializar os progra-mas REDD+ (Redução de Emissões Globais por Desmatamento e Degra-dação das fl orestas), que é uma dos maiores assaltos globais aos bens co-muns de comunidades e povos indí-genas e camponesas. REDD+ é uma moeda que com uma cara premia aos grandes desmatadores (se deixam de pé 10¨% do que cortam), e com a ou-tra cara compra comunidades fl ores-tais, com o pagamento por serviços ambientais de absorção de carbono em suas fl orestas. Ainda que conser-

vem seus títulos de propriedade, RE-DD+ signifi ca uma expropriação dos territórios, porque os povos já não podem decidir sobre eles.

Programas de serviços ambientais fl orestais já existiam em vários paí-ses. Há história de comunidades de-salojadas de seus territórios a par-tir disso. Porém, as fl orestas não são aceitas dentro da Convenção das Mudanças Climáticas como válidas para gerar certifi cados de redução ou bônus de carbono, porque é im-possível medir com exatidão quanto CO² realmente diminuem.

O que se pretende na COP 16 é que, através dos programas REDD+, se validem globalmente as fl orestas como geradoras de bônus de carbo-no. Se isso for aprovado, colocarão todas as fl orestas do mundo como mercado para os especuladores.

É um banquete para um mercado deprimido pela crise fi nanceira: o que se paga para as comunidades é uma mínima fração do valor de re-venda desses direitos de absorção de carbono a outras empresas e especu-ladores. As empresas mais sujas, as que geram mais gases de efeito estu-fa, com REDD+, podem seguir con-taminando, alegando que há fl ores-tas que estão absorvendo suas emis-sões e aumentando seus lucros com a revenda dos bônus.

O problema para este negócio é que as fl orestas estão habitadas, em todo o mundo, por comunidades in-dígenas. Por isso, as empresas, jun-to com ONGs conservacionistas e

governos, estão ensaiando vender REDD+ como benefício e reconhe-cimento às comunidades fl orestais, quando na realidade trata-se de um despejo em grande escala.

Sem dúvida, as comunidades indí-genas e camponesas têm um papel fundamental para equilibrar o cli-ma. Justamente por isso não podem fi car à mercê do mercado especulati-vo das transnacionais ou da caridade das ONGs. Devem ser apoiadas e re-conhecidas na íntegra de seus direi-tos, não em transnacionais comer-ciais nem como cartas no jogo de po-líticos de ONGs. Falar de REDD+ sem intervenção do mercado ou sem direitos indígenas, como tratam de manobrar alguns para justifi car seu envolvimento, é também uma ar-madilha. Se tratam de direitos, não podem ser programas, nem condi-cionados a certifi cação externa nem em mecanismos desenhados para o mercado, como é o REDD+.

Finalmente, a cereja envenenada do bolo: em REDD+ a medição do carbono se fará com uma combina-ção de tecnologia de satélites e infra-vermelhos, e levantamentos minu-ciosos em territórios (geopirataria avançada). Além de alienar o territó-rio, permite vigiar como nunca antes aos indígenas. Não surpreende que o governo de Chiapas tenha fi rma-do com Arnold Schwarzenegger, go-vernador da Califórnia, para avançar em programas REDD+ na Selva La-candona, onde seguem resistindo as comunidades zapatistas.

O que está em jogo em Cancún Silvia Ribeiro

As empresas, junto com ONGs conservacionistas e governos, estão ensaiando vender REDD+ como benefício e reconhecimento às comunidades fl orestais, quando na realidade trata-se de um despejo em grande escala

Apesar de suas riquezas, a RDC se encontra na posição 168 no Índice de Desenvolvimento Humano

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