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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM CIÊNCIAS SOCIAIS
EDGAR EDNADYGARRA LEITE ELEGÂNCIA
QUANDO A MÍDIA VIRA ESCÂNDALO: A COBERTURA DOS CASOS ALCENI
GUERRA E IBSEN PINHEIRO (1991-1993)
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
SÃO PAULO
2013
2
EDGAR EDNADYGARRA LEITE ELEGANCIA
QUANDO A MÍDIA VIRA ESCÂNDALO: A COBERTURA DOS CASOS ALCENI
GUERRA E IBSEN PINHEIRO (1991-1993)
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo,
como exigência para obtenção do grau de Mestre em
Ciências Sociais.
Orientadora: Profª. Vera Chaia
SÃO PAULO
2013
3
Banca Examinadora
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4
AGRADECIMENTOS
Para desenvolver essa dissertação foi necessário um importante trabalho de pesquisa.
Desta forma não poderia deixar de fazer agradecimentos a quem contribuiu para que esse
trabalho fosse concluído. Começo pelos funcionários da Biblioteca do Centro Cultural de São
Paulo que disponibilizaram cópias das Revistas Veja e IstoÉ. Ao Arquivo do Estado. Foi por
meio deste órgão que todas as fotocópias dos Jornais O Estado de S. Paulo e Folha de S.
Paulo, sobre os casos Alceni Guerra e Ibsen Pinheiro, foram adquiridas.
É importante também fazer agradecimento especial ao Arquivo da Câmara Federal, em
Brasília, que encaminhou por e-mail as páginas microfilmadas do Jornal Correio Braziliense.
A Capes pela bolsa de estudos e à PUC-SP por acreditar neste trabalho.
Considerando esta dissertação de mestrado como resultado de uma caminhada
importante em minha carreira acadêmica, agradeço, particularmente, minha orientadora
professora-doutora Vera Chaia - mulher de muita paciência - pela direta contribuição na
construção deste trabalho, os professores Carlos Melo e Carmen Junqueira pelas observações
feitas no exame de qualificação e que foram seguidas por este “escudeiro” no decorrer da
pesquisa.
Tenho de reconhecer também o apoio e incentivo de minha esposa, a experiente e
competente jornalista, Cristina Gomes, pela compreensão nos momentos em que tive de me
dedicar aos estudos, enquanto ela cuidava de nossos filhos Sofia e Tomas. Ao meu pai
Samuel de Souza Elegância (in memoriam), grande incentivador da carreira acadêmica, e a
minha mãe Francisca de Fátima Leite Elegância. Não poderia deixar de agradecer a jornalista
Gabriele Doro que me ajudou na revisão do texto. Estou muito agradecido a todos.
5
RESUMO
Esta dissertação tem como objeto de estudo a cobertura dos jornais impressos Correio
Braziliense, Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, além da Revista Veja, sobre os
escândalos políticos ocorridos no início da década de 1990. O primeiro, em 1991, contra o
então ministro da Saúde, Alceni Guerra, na gestão do presidente Fernando Collor e o segundo
contra o deputado federal Ibsen Pinheiro, em 1993.
O trabalho busca verificar o comportamento destes meios de comunicação e qual a
tendência nas coberturas. Nesses episódios, os políticos em questão levaram, por parte da
imprensa, a classificação de corruptos e tiveram suas reputações abaladas.
Palavras-chave: grande imprensa, escândalo, manipulação e política.
6
ABSTRACT
This dissertation has as object of study the coverage of printed newspapers Correio
Braziliense, Folha de S. Paulo and O Estado de S. Paulo, Veja magazine, about the political
scandals that occurred in the early 1990. The first, in 1991, against the then Health Minister,
Alceni Guerra, managing President Fernando Collor and the second against the federal
representative Ibsen Pinheiro, in 1993.
The work seeks to verify the behavior of these media and what the trend in toppings.
In these episodes, the politicians in question carried by the press the corrupt rating and had
their reputations shattered.
Keywords: mainstream press, scandal, manipulation and politic.
7
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS .............................................................................................................4
RESUMO ..................................................................................................................................5
ABSTRACT...............................................................................................................................6
1. INTRODUÇÃO ..................................................................................................................10
1.1. BUSCA PELA IMPARCIALIDADE................................................................................13
1.2 .IMPERFEIÇÕES HISTÓRICAS.......................................................................................14
1.3. ASSIS CHATEAUBRIAND.............................................................................................16
1.4. PASQUINS........................................................................................................................18
1.5. A MÍDIA COMO APARELHO PRIVADO DE HEGEMONIA......................................24
1.6. OBJETOS DA ANÁLISE..................................................................................................26
2. ESTRUTURA METODOLÓGICA...................................................................................27
2.1 JUSTIFICATIVA PARA A ESCOLHA DAS FONTES ..................................................30
2.2. QUEM É QUEM NAS FONTES ESCOLHIDAS ........................................................... 33
2.3. PERÍODO DOS RECORTES........................................................................................... 36
3. DEFINIÇÃO DE ESCÂNDALO NA PERSPECTIVA DE JONH B.
THOMPSON...........................................................................................................................37
CAPÍTULO 1 – PERÍODO HISTÓRICO DOS ESCÂNDALOS......................................44
1.1. GOVERNO COLLOR E A CRISE POLÍTICA................................................................44
1.2. LUIS COSTA PINTO........................................................................................................54
CAPÍTULO 2 – CASO ALCENI GUERRA.........................................................................56
2.1. ALCENI GUERRA E O SONHO DE SER MINISTRO..................................................56
2.2. A SUPOSTA COMPRA SUPERFATURADA DE BICICLETAS POR ALCENI
GUERRA .................................................................................................................................57
2.3. FATOS POLÍTICOS E O PAPEL EXERCIDO PELA MÍDIA........................................64
2.4. APELIDOS, CHARGES E FOTOS...................................................................................67
8
2.5. SEM MEDO DE ACUSAR, A PROFECIA DA NOTÍCIA .............................................70
2.6. VEJA „EMBARCA‟ NAS ACUSAÇÕES DO CORREIO ..............................................72
2.7. COBERTURA MAIS MODERADA DO ESTADÃO, MAS NÃO MENOS
PREJUDICIAL ........................................................................................................................77
2.8. POR QUE A FOLHA NÃO POUPOU O MINISTRO DE COLLOR? ...........................82
2.9. AS REPORTAGENS ACUSATÓRIAS ...........................................................................86
2.10. A IMPRENSA FECHA OS OLHOS PARA AS EXPLICAÇÕES DE ALCENI
...................................................................................................................................................93
CAPÍTULO 3 – CASO IBSEN PINHEIRO ........................................................................96
3.1. IBSEN PINHEIRO E A MÁFIA DOS ANÕES DO ORÇAMENTO ..............................96
3.2. IBSEN: REVISTA VEJA .................................................................................................98
3.3. A VIDA „ESPARTANA‟ DE IBSEN .............................................................................105
3.4. IBSEN TEM POUCO ESPAÇO NA MÍDIA..................................................................107
3.5. CPI DO ORÇAMENTO VIRA A CPI DO IBSEN ........................................................108
3.6. A DESCOBERTA DE UM ERRO: A IMPRENSA „VIRA‟ ESCÂNDALO POLÍTICO
.................................................................................................................................................108
3.6.1. CINEMA ......................................................................................................................111
3.7. DENÚNCIAS QUE SE ENFRAQUECEM ....................................................................113
3.8. QUEM REPRESENTA A OPINIÃO PÚBLICA? .........................................................117
3.9. O TROFÉU DE „CORRUPTOLOGIA‟ .........................................................................119
3.10. A CASSAÇÃO DE IBSEN, TROFÉU DA MÍDIA......................................................120
3.11. A VERDADE APARECE 11 ANOS DEPOIS .............................................................120
3.12. PEDIDO DE DESCULPAS. MAS, TARDE... .............................................................122
3.13. UMA CARTA REVELADORA ...................................................................................124
3.14. DISPUTA EDITORIAL ENTRE AS REVISTAS........................................................133
3.15. PARA VEJA, ERRO NÃO FOI PROPOSITAL. FOI VIRTUDE DE CHECAGEM
RIGOROSA ...........................................................................................................................135
3.16. JORNALISTA CASSADO E CONDENADO ............................................................136
3.17. O QUE FALARAM ESTADÃO, FOLHA E CORREIO SOBRE IBSEN ...................139
3.18. A COBERTURA DO ESTADÃO CONTRA „OURIBSEN‟ .......................................141
3.19. A COBERTURA DA FOLHA NO CASO IBSEN PINHEIRO ...................................147
3.20. A COBERTURA DO CORREIO BRAZILIENSE NO CASO IBSEN
PINHEIRO..............................................................................................................................151
9
3.21. NA COBERTURA DO CORREIO, CASO SAI DA ESFERA POLÍTICA PARA A
POLICIAL..............................................................................................................................158
3.22. A POLÍTICA É INSTÁVEL E SEMPRE TRÁGICA ..................................................161
CAPÍTULO 4 – “AGENDA OCULTA”: COMPORTAMENTO DA MÍDIA E AS
ALTERNATIVAS DE CONTROLE DEMOCRÁTICO..................................................165
4.1. CONSELHOS DE ÉTICA E 0800...................................................................................165
4.2. ACCOUNTABILITY PARA OS ÓRGÃOS DE IMPRENSA .......................................168
4.3. LIBERDADE DE IMPRENSA NÃO É LIBERDADE DA IMPRENSA ......................170
4.4. A IMPRENSA DE „RABO PRESO‟ COM QUEM? .....................................................173
4.5. A IMPRENSA ALTERNATIVA ...................................................................................173
4.6. A NECESSIDADE DE DEMOCRATIZAÇÃO DA MÍDIA .........................................177
4.7. A NECESSIDADE DE MUDAR TODO O SISTEMA .................................................181
4.8. SUGESTÕES DE DEMOCRATIZAÇÃO DA MÍDIA .................................................182
4.9. DIPLOMA E LEI DE IMPRENSA ................................................................................184
4.10. PORQUE REGULAMENTAR A MÍDIA? FATOS POLÍTICOS QUE ENVOLVEM A
IMPRENSA TRANSFORMANDO-A EM ESCÂNDALO POLÍTICO................................184
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................193
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...............................................................................198
10
1. INTRODUÇÃO
―O que o povo quer, esta casa acaba querendo‖. Esta foi a ‗célebre‘ frase pronunciada
por Ibsen Pinheiro, deputado federal e presidente da Câmara dos Deputados, em 1992.
Referia-se à abertura do processo de cassação contra o então presidente Fernando Collor de
Mello. Eleito em dezembro de 1989, Collor de Mello obteve cerca de 35 milhões de votos.
Era o primeiro presidente a conquistar o voto popular, com base na Constituição
democrática de 1988. Havia quase trinta anos que o eleitorado brasileiro elegera diretamente o
seu presidente pela última vez, em 1960. Parecia, enfim, efetivada a demanda central da
campanha Diretas Já e do movimento pela democratização do País.
Mas, em maio de 1992, Collor foi acusado por seu irmão Pedro Collor de associação
em esquema de corrupção gerenciado pelo tesoureiro de sua campanha eleitoral. Em seguida,
formou-se uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). Em setembro daquele mesmo ano,
a Câmara dos Deputados autorizou, por ampla maioria, a abertura do processo de
impeachment em meio a uma onda de manifestações populares que demandavam do
Congresso. Foi diante de todo esse contexto que Ibsen pronunciou a frase acima.
Não seria tarefa fácil comandar um processo de cassação contra um presidente eleito
por voto democrático com qualidades e circunstâncias que o levaram ao posto mais alto do
País. Para Carlos Melo, autor do livro ―Collor – O Ator e Suas Circunstâncias‖, Collor tinha
um perfeito sentido do timing jornalístico e, portanto, político1.
Melo lembra também que Collor possuía habilidade de comunicação com o povo, ―o
tino para se apropriar do discurso da modernidade econômica‖ – que pedia há tempos por um
líder que o encampasse - e aquilo que o pensador florentino Maquiavel chamava de fortuna ou
simplesmente sorte.
Ele chama de ―Fenômeno Collor‖, o processo que levou Fernando Collor de Mello à
Presidência da República e ao impeachment. ―A trajetória meteórica e o balanço do processo
de transformações que promoveu têm dado ao ex-presidente aura de fenômeno particular e
excentricidade política‖2.
1 Jornal O Estado de S. Paulo, edição 29 de setembro de 2012.
2 MELO, Carlos Alberto Furtado de. Collor: O ator e suas circunstâncias. São Paulo: Editora Novo Conceito,
2007, p. 5.
11
A explicação deste fenômeno é feita por Melo em sete capítulos de seu livro. No
primeiro, por exemplo, trata da questão do ―populismo‖ 3 exercido por Collor.
Para ele, a retórica populista e o aproveitamento das brechas do sistema político, de
modo a permitir a expressão de personalismos, voltam à cena com frequência.
O discurso anunciando soluções mágicas vinculadas à vontade política exclusiva do
governante – desvinculado da negociação e do acerto de contas entre os diferentes
interesses da sociedade – permanece ainda hoje. Mesmo a aparente sensação de
confronto com a elite é recorrente nos arroubos da retórica populista. Salvadores da
Pátria surgem afirmando que resolverão problemas com ―uma única bala‖, como
―um ippon‖, expulsando ―a corja que vilipendia o povo e o País‖, como se expressou
Fernando Collor em várias oportunidades. A vinculação do populismo à demagogia
não está incorreta. O fenômeno, porém, é mais complexo4.
E mais: Melo, em seu livro, afirma que
a ascensão de Fernando Collor à Presidência da República do Brasil foi resultado de
uma rara habilidade em compreender e aproveitar as circunstâncias gerais do País e
do mundo com a capacidade de enfrentar os desafios com que o ator político
normalmente se depara. Sua queda pode ser entendida como a falta da exata
compreensão sobre o modo e as características do funcionamento do sistema político
do Brasil, onde apenas os milhões de votos e a popularidade conquistada na eleição
– e na empolgação dos primeiros meses de mandato – não bastam. Esta habilidade
para o jogo eleitoral e esta falta de compreensão das regras do poder, simultâneas,
podem ser melhor avaliadas na análise da biografia do ator.5
Por toda a importância política da presidência de Fernando Collor, Ibsen Pinheiro teve
seu momento de glória ao presidir a sessão da Câmara dos Deputados que aprovou o
impeachment do ex-presidente, em 28 de agosto de 1992. Além disso, teve ampla exposição
na mídia.
O parlamentar do PMDB gaúcho, também jornalista e promotor aposentado, era tido
como reserva moral do Legislativo. Seu nome chegou a ser cogitado como potencial
candidato à Presidência da República nas eleições de 1994.
Mas, em setembro de 1993, a Revista Veja revelou um escândalo político que ficou
conhecido como "Máfia dos Anões do Orçamento" - congressistas se envolveram em fraudes
com recursos do Orçamento da União até serem descobertos e investigados.
3 O próprio autor diz que o conceito é controverso. Diz que há muita confusão a esse respeito. Afirma ainda que
o termo tem sido utilizado também como categoria científica nas ciências sociais, também como uma forma de
desqualificação de adversários nas disputas políticas. Além disso, afirma o autor, tem servido para designar
práticas de governo consideradas pouco responsáveis do ponto de vista da saúde das finanças públicas e do zelo
orçamentário. Mas, Melo esclarece que um político populista não significa, necessariamente, um governante
populista. 4 MELO, 2007, p. 30.
5 Ibid., p. 91.
12
Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) foi instalada na Câmara e, depois de
dois meses de trabalho, as investigações associaram o nome de Ibsen Pinheiro. Uma foto do
presidente da Câmara em companhia de alguns dos "anões" investigados, considerada prova
de crime de formação de quadrilha, e uma movimentação financeira de mil dólares
transformou-se em uma megaoperação de 1 milhão de dólares. Descobriu-se depois que essa
contabilidade estava equivocada. Comprovou-se, muito mais tarde, que Ibsen era inocente.
Em 11 de novembro de 1993, a manchete de capa da Veja ―Até tu, Ibsen?" sustentava
as acusações. No ano seguinte, o deputado teve seu mandato cassado pela Câmara.
Terminava, pelo menos naquele momento, a imagem de ‗homem público honesto‘ que
acompanhava o deputado. Era mais um caso de escândalo político, no início dos anos de
1990, em pleno governo Collor.
Mas, esse não foi o único. Aliás, o primeiro aconteceu dois anos antes. Alceni Guerra
foi deputado federal e ministro da Saúde durante o governo Collor. Teve sua vida marcada
pelo ―escândalo das bicicletas‖. O motivo: teria comprado 500 bicicletas e muitos guarda-
chuvas que seriam distribuídos aos agentes de saúde em campanha contra a dengue no
nordeste. Foi o suficiente para ser acusado de superfaturamento na compra das bicicletas.
Reportagens e charges serviram para ridicularizá-lo e forçando-o para que pedisse demissão.
Na época, em 1991, o procurador-geral da República, Aristides Junqueira, refez as
investigações e informou ao ministro que nada foi encontrado que caracterizasse corrupção.
Guerra foi inocentado e voltou para a política, mas não conseguiu se recuperar dos danos
morais causados pelas notícias.
Os jornais Correio Braziliense, O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo, além da
Revista Veja, exploraram os escândalos nos seus noticiários. Aliás, Vera Chaia afirma que
―uma das características da comunicação midiática é a possibilidade de divulgar e de
circular informações referentes a um determinado escândalo numa esfera que
transcende o tempo e o espaço da sua ocorrência‖. O escândalo pode se espalhar
rapidamente e de maneira incontrolável, sendo difícil reverter o processo, tanto que
uma das consequências imediatas do escândalo político é o prejuízo que traz à
reputação dos indivíduos envolvidos, portanto esse é um risco que sempre está
presente quando um escândalo irrompe. Thompson considera que a reputação possui
um 'symbolic power', pois é um recurso que os indivíduos podem acumular, cultivar
e proteger6.
6 CHAIA, Vera; TEIXEIRA, Marco Antônio. Democracia e escândalos Políticos. Revista São Paulo em
Perspectiva. vol.15, nº.4. São Paulo: Fundação Seade, outubro - dezembro de 2001.
13
Ibsen Pinheiro e Alceni Guerra foram injustiçados pela grande imprensa? Ou a mídia apenas
teve seu papel central: o de informar.
Esse interesse foi demonstrado na divulgação dos dois episódios, com os órgãos de
imprensa em questão, utilizando todas as suas ferramentas de divulgação: títulos-manchetes,
charges, chamadas de capa, etc. Ibsen e Alceni vão dizer no decorrer deste trabalho que o
comportamento da mídia foi exagerado e parcial. O certo é que, mesmo tarde, uma parte dos
meios de comunicação reconheceu, sobretudo, a Revista Veja, que houve ‗erro‘, um certo
exagero (essa „confissão‟ será vista no decorrer desse trabalho), mas nenhum veículo
acredita na suposta parcialidade nas coberturas.
1.1. Busca pela imparcialidade
A imparcialidade é perseguida por todas as principais publicações. Esse princípio
clássico do jornalismo tem como pressuposto o poder da verdade, dos fatos para esclarecer os
cidadãos, conforme Moretzsohn7.
No Brasil, nenhum jornal tem seu posicionamento ―político-partidário‖ declarado. É
em torno da suposta imparcialidade que se busca construir as coberturas jornalísticas.
A tese de mestrado ―A cobertura da Revista Veja no primeiro mandato do presidente
Lula‖ de Fábio Jammal Makhoul é importante para entender um pouco do posicionamento da
mídia. Ele diz que com a profissionalização dos jornalistas, ao longo dos séculos XIX e XX,
foram estabelecidos valores como a objetividade, a independência, a verdade, além de normas
que constroem os contornos de representações profissionais bem definidos do ―bom‖ ou
―mau‖ jornalista.
Makhoul utiliza o pensamento de Nelson Traquina para dizer que a ideologia
jornalística e a sociedade forneceram igualmente o ethos - que define membros da
comunidade jornalística - que o papel social é de informar os cidadãos e proteger a sociedade
de eventuais abusos de poder, ou seja, ser um contrapoder8.
7 MORETZSOHN, Sylvia. A velocidade como fetiche – o discurso jornalístico na era do "tempo real". Trabalho
de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2000. 8 MAKHOUL, Fábio Jammal. A cobertura da Revista Veja no primeiro mandato do presidente Lula. Trabalho
de Mestrado em Ciências Sociais (Política). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica - PUC, 2009.
14
Mas, para Juremir Machado Silva, ―o pensamento do jornalista é humano e funciona a
partir de uma bagagem cultural e ideológica‖9. Ele diz que isenção nada mais é do que ―o
nome que se dá a opinião que recebe o apoio de um grupo em condição de fazer valer as suas
ideias em determinada situação‖10
. Assim, se Ibsen e Alceni vão reclamar da parcialidade da
mídia é possível entender que ―abusos‖ ocorram nas coberturas.
1.2. Imperfeições históricas
As ‗imperfeições‘ da mídia são históricas. A imprensa brasileira, segundo Nelson
Sodré, ―nasceu com o capitalismo e acompanhou o seu desenvolvimento‖11
. Ele, de antemão,
revela um enquadramento materialista à história da imprensa.
Para Sodré, a infraestrutura capitalista determinou e condicionou a gênese e evolução
dos jornais, no Brasil. Ele revela que o surgimento e o desenvolvimento da imprensa
resultaram da ―necessidade social‖ da burguesia mercantil em possuir dispositivos técnicos de
disseminação ideológica, crescentemente potentes e aprimorados, que facultassem a sua
―ascensão‖ à categoria de classe dominante e a prevalência indefinida do seu domínio12
.
Para Jorge Pedro Sousa, em ―As histórias da imprensa de Nelson Werneck Sodré e de
José Manuel Tangarrinha: uma comparação‖13
, o próprio conceito de liberdade de imprensa é
encarado por Sodré14
como um conceito burguês surgido para subtrair ao Estado e à
aristocracia, em benefício da burguesia mercantil, o controle sobre a imprensa, em um
contexto de luta de classes.
O livro de Sodré é dividido em seis capítulos - dedicados à imprensa colonial, à
imprensa da independência, ao pasquim, à imprensa, no Império, à grande imprensa e à crise
da imprensa - onde é possível verificar a imprensa de ontem e de hoje. Ele revela, por
exemplo, que a Independência do Brasil trouxe ao invés da liberdade de imprensa, a
continuação da censura e da repressão. ―É na medida em que compreendem a necessidade de
9 SILVA, Juremir Machado. A miséria do Jornalismo Brasileiro: as (in) certezas da mídia. Petrópolis: Vozes,
2000, p.24. 10
Silva, 2000, p.35. 11
SODRÉ, Nelson Werneck. A história da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1999, p. X. 12
Ibid, p. 2-3, 5-6 et passim. 13
SOUSA, Jorge Pedro. As histórias da imprensa de Nelson Werneck Sodré e José Manuel Tangarrinha: uma
comparação. Trabalho baseado numa comunicação ao XXXIII Congresso Brasileiro de Ciências da
Comunicação, Fundação para a Ciência e Tecnologia, 2011. 14
SODRÉ, op. cit., p. 2.
15
limitar a Independência que os representantes da classe dominante colonial opõem restrições à
liberdade de imprensa‖15
.
Em um dos capítulos do livro, Sodré fala dos pasquins. A situação política pós-
Independência vivia uma certa turbulência. São criticadas as reações conservadoras e os
subsequentes atentados contra a liberdade de imprensa. Aliás, o autor sugere que a própria
abdicação de D. Pedro I resultou mais da ―separação entre o imperador e largas camadas da
população‖16
do que de uma necessidade de regressar a Portugal para resolver os problemas
criados pelo seu irmão, D. Miguel, que tinha instituído um regime absolutista e despótico e
destronado a rainha legítima, Dona Maria, filha de D. Pedro.
De acordo com Jorge Pedro Sousa, são os períodos de avanço liberal que, segundo
Sodré, permitiram o surgimento do pasquim, ―imprensa peculiar, cujos traços de grandeza e
autenticidade são normalmente apresentados como impuros‖17
.
Sousa lembra que o autor realça o papel de periódicos doutrinários já anteriormente
referidos, como o Revérbero ou o Malagueta, mas também o surgimento de novos jornais
combativos, um pouco por todo o Brasil, como o Aurora Fluminense (1827), de Evaristo da
Veiga e José Apolinário, O Compilador Mineiro (1823), A Sentinela de Serro (1830), O Farol
Paulistano (1827) e O Observador Constitucional (1829).
É lembrado também por Sousa que formalmente os jornais panfletários de
periodicidade incerta tinham poucas páginas e viviam, principalmente, de artigos.
No quinto capítulo de seu livro, Sodré, por sua vez, fala sobre a ―grande imprensa‖, ou
imprensa industrial de massas, que surgiu no Brasil já no período republicano, se
beneficiando da revolução tecnológica (rotativas, zincografia, telefone, telégrafo,
fotografia...), do clima econômico e da ascensão da burguesia comercial e mercantil.
A imprensa industrial brasileira foi, porém, em vários casos, mais um produto da
reconversão de jornais existentes do que de novos projetos. Aliás, na primeira fase
da República, de acordo com Sodré, não surgiram muitos jornais novos. Só em 1891
apareceria o Jornal do Brasil, ―montado como uma empresa, com estrutura sólida.
Vinha para durar‖18
.
A imprensa da época também refletiu as tensões e o combate político.
Surgiu também o folhetinismo, aliás, não foi alheio à valorização dos escritores de
jornal. O próprio anúncio publicitário evoluiu e tornou-se mais literário, graças à colaboração
15
SODRÉ, 1999, p. 42 e p. 45. 16
Ibid., p. 86. 17
SOUSA, 2011, p. 85. 18
SODRÉ, op. cit., p. 257.
16
de escritores famosos, ou até mais persuasivo, devido ao recurso aos testemunhos de
personalidades famosas que apregoavam as virtudes de um produto ou serviço.
As agências publicitárias fariam, aliás, na mesma época, a sua estreia no Brasil. No
entanto, a mistura entre jornalismo e literatura também teve consequências menos agradáveis.
―O noticiário era redigido de forma difícil, empolada‖19
.
Gradualmente, a grande imprensa tornou-se menos literária20
, até porque surgiu uma
imprensa especificamente literária, apesar dos folhetins, que eram uma mais-valia para os
periódicos generalistas se manterem em lugar de destaque nas páginas dos grandes jornais21
.
Ainda assim, conforme revela Sodré22
, jornalistas escritores como Lima Barreto ou mesmo
Monteiro Lobato (este de forma esporádica) e políticos jornalistas como Rui Barbosa, ao
mesmo tempo em que faziam análises e opinavam nas páginas dos jornais, sobre política
nacional, mas também sobre a situação internacional – por exemplo, sobre a I Guerra Mundial
– tinham liberdade para dotar os seus textos de elevação estilística.
De acordo com Sodré23
, na década de 20, o jornalismo brasileiro já era decididamente
um negócio industrial e a imprensa artesanal não era mais do que um arcaísmo. Mas isso não
evitou que, por vezes, a imprensa industrial não tivesse lançado sobre si mesma o opróbrio de
dar voz às campanhas difamatórias de determinados políticos, como a que afetou aquele que
viria ser o Presidente Artur Bernardes quando era candidato, devido à publicação de cartas
falsas por alguns jornais.
Aliás, embora industriais, vários dos grandes jornais tornaram-se vozes partidárias,
quase repetindo uma situação comum na fase da imprensa artesanal, pelo que, devido à
inconstância da turbulenta situação política, aos golpes e contragolpes, e mesmo às revoltas
militares, não raras vezes tornaram-se vítimas de censura, de julgamentos arbitrários por
abuso de liberdade de imprensa, de proibições de circulação, de ataques às instalações e de
variadíssimos outros constrangimentos.
1.3. Assis Chateaubriand
19
SODRÉ, 1999, p. 283. 20
Ibid., p. 323. 21
Ibid., 288-305. 22
Ibid., p. 341-342. 23
Ibid., p. 355-389.
17
Entra também em cena outro personagem fundamental para a imprensa brasileira –
Assis Chateaubriand. Em 1924, com o controle de O Jornal, Chateaubriand começou a
construir aquele que viria a ser o maior grupo de comunicação do Brasil: Os Diários
Associados, também responsável pela introdução da televisão no País. O grupo reuniu
periódicos como o Diário de Pernambuco, o Jornal do Comércio e o Diário da Noite.
Controverso, inimigo de personagens como Rui Barbosa, acusado de chantagear
empresas para obter publicidade para os seus jornais, Chateaubriand também manteve,
segundo Sodré24
, uma polêmica, mas lucrativa, amizade com o presidente Getúlio Vargas, que
transbordou, aliás, para as páginas dos seus jornais, em benefício mútuo.
Chateaubriand é considerado o magnata das comunicações como o personagem Kane
do filme ―Citizen Kane‖. O filme do diretor e ator norte-americano Orson Wells (1941) foi
baseado em fatos reais, pois conta a vida do magnata norte-americano da comunicação
Willian Randolph Hearst, herdeiro de um grande jornal.
Ele foi comandante das comunicações no período de trinta anos (1930 a 1960). Em
1950, Chateaubriand inaugurou a primeira emissora de TV intitulada TV Tupi. Na política,
foi senador da República num período de cinco anos, homem que causou muita emoção, tanto
negativa como positiva, foi, portanto, amado e odiado. É também responsável pela fundação
do Museu de Arte de São Paulo, o Masp (1947) da Avenida Paulista.
A concentração, segundo Sodré25
, dá aos conglomerados mediáticos um grande poder,
mal usado: a época é das grandes corporações que manipulam a opinião, conduzem as
preferências, mobilizam os sentimentos. Campanhas gigantescas, preparadas
meticulosamente, arrasam reputações, impõem notoriedades, derrubam governos.
No livro de Ana Luiza Martins e Tania Regina de Luca ―História da Imprensa no
Brasil‖, Chateaubriand é lembrando também como o jornalista que chantageava empresários
para conseguir anúncios.
Fernando Moraes conta em seu livro ―Chatô, o Rei do Brasil‖, histórias envolvendo as
táticas de Chatô para conseguir anúncios e transpor os limites entre o Clero e o Estado, jargão
jornalístico para atingir a fronteira entre o editorial e o publicitário.
Num Brasil pré-isqueiro Bic, Chateaubriand, ao notar que os fabricantes de fósforos
não anunciavam nos Associados, mandou comprar várias caixas do produto e
obrigou a redação, do editor à telefonista, a contar os palitos das caixas que
anunciavam conter 50. Constatado que só havia 45, começou a calcular o rombo que
os fabricantes causavam ao bolso do consumidor, anunciando em manchete de
24
SODRÉ, 1999, p. 393. 25
Ibid., p. 388-389.
18
primeira página: ―Fósforos sobem de 20 para 30 centavos‖. Prosseguiu com as
reportagens. Comparou que os fósforos subtraídos ao povo pelos fabricantes dariam
quatro voltas na Terra26
.
1.4. Pasquins
Tese de mestrado, de autoria de Rodrigo Cardoso Soares de Araújo, cujo título
―Pasquins: submundo da imprensa na Corte Imperial (1880 – 1883)‖27
, traz contribuição
sobre a história da imprensa, principalmente dos pasquins.
Já o estudo produzido por Leandro Marlon Barbosa Assis28
mostra a tendência dos
meios de comunicação em que ele conta episódios sofridos por D. Pedro I no século XIX.
Em sua tese ―O papel da imprensa na formação do ideário republicano‖ (1808-1889),
ele diz que nos finais dos anos de 1820 elevaram-se o número de periódicos (jornais) contra a
figura imperial de D. Pedro I.
Leandro Marlon e afirma que assumir uma opinião favorável pela defesa da República
era um tanto quanto complicado, visto que, era um crime previsto pelo Código Criminal, de
1830, e também pelo Código de Processo, de 183229
.
Percebe-se então, como forma de fugir da legislação que perseguia os defensores do
ideário republicano, a transcrição de artigos de outros períodos e o mais comum: o uso de
vocábulos ambíguos durante o período imperial – o que pode ser visto claramente com o
jornal O Repúblico que será tratado posteriormente.
Durante o Segundo Reinado de um modo específico, sendo potencializada pela doença
de D. Pedro II, multiplicavam-se charges e caricaturas que divulgavam o estado doentio do
imperador e as notícias de seu possível comportamento em reuniões. Segundo Assis, essa
nova forma de apresentação periódica fazia com que um maior número de pessoas tivesse
contato com os jornais, tirando, assim, o caráter sacro da figura real.
26
MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tania Regina (org.). A História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto,
2008. , p. 183. 27
ARAÚJO, Rodrigo Cardoso Soares de. Pasquins: submundo da imprensa na Corte Imperial (1880 – 1883).
Trabalho de Mestrado em História, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Rio de Janeiro: Universidade
Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, 2009. 28
ASSIS, Leandro Marlon Barbosa. O papel da imprensa na formação do ideário republicano (1808-1889). CA
História – Caderno Acadêmico de História. Revista Discente de História. 2011. Vol. II, nº 2. 29
Interessante é notar o que diz a lei de 20 de setembro de 1830 sobre a ―liberdade da imprensa‖. ―Abusam do
direito de comunicar os seus pensamentos os que por impresso de qualquer natureza emitirem: 1°. Ataques
dirigidos a destruir o Sistema Monárquico Representativo, abraçado e jurado pela Nação e seu Chefe. 2°.
Provocações dirigidas a excitar rebelião contra a Pessoa do Imperador e seus direitos ao Trono (Coleção de leis
do Império do Brasil, 1830)‖.
19
―Houve uma maior aproximação com uma linguagem cientificista, que levava a ideia
de República para o campo do progresso e do futuro. Porém, tamanhos avanços se deram por
uma reestruturação de todo o vocabulário, pensamento e tradição liberal‖30
. Assis
complementa o pensamento de Melo. ―Isso faz com que o espaço público possa puxar para si
essas ‗questões‘ políticas, onde o principal agente é o povo, perdendo um pouco sua
importância na década de 1880‖31
.
A dissertação de mestrado ―Pasquins: submundo da imprensa na Corte Imperial (1880
– 1883)‖ traz uma importante contribuição sobre o tema deste capítulo: mostrar as velhas
práticas da imprensa que não são de agora. Existem, no Brasil, desde a época do Império.
É um estudo aprofundado sobre os pasquins32
– os periódicos que difamavam. O termo
ainda pode ser empregado a alguma tipo de sátira. Assim, os pasquins ‗usaram e abusaram‘
das notícias tendenciosas na época imperial. Evidentemente, que aqui não se entra no mérito
sobre a inocência ou não da família real nos episódios.
O trabalho aponta que o grupo de periódicos classificados como pasquins, em
princípios da década de 1880, obviamente compartilhava semelhanças. O programa desses
periódicos – ainda que muitas vezes acabasse não sendo seguido, ou o fosse apenas de forma
parcial e deformada – enunciava o intuito de se combater os ―vícios‖ políticos e morais da
sociedade. Segundo ele, o alvo deles era bem variado; combatiam-se desde ―problemas‖
sociais como o jogo, a prostituição e similares perturbações públicas, até a política do governo
e de seus agentes.
Atuando na esfera pública esses pasquins invadiam a esfera privada, expondo
aspectos ou acontecimentos negativos da vida de indivíduos. Os pasquins não
poupavam ninguém de ofensas e exposições ao ridículo, mesmo D. Pedro II, o
Presidente do Conselho de Ministros, os ministros e o Chefe de Polícia da Corte –
todos eram atacados com vigor. Apresentavam a seus leitores uma linguagem
diferente da utilizada pelo resto da imprensa da época e carregada de ironia e sátira.
Eram publicados num pequeno formato com quatro páginas, sendo vendidos a 40
réis. Ainda que tivessem objetivos diferentes, a forma de atuação pouco variava. A
fórmula composta por intrigas e difamações, por via de linguagem virulenta,
agradava ao público leitor da Corte Imperial e, obviamente, viabilizava o
empreendimento econômico. Afinal de contas, apesar dos pasquins surgidos na
década de 1880 almejarem intervir politicamente na sociedade, também se tratava de
uma forma de ganhar dinheiro. E, para a maioria dos pasquins, este era o objetivo
primeiro. Quase todos os autores destes periódicos diziam ter surgido do povo, como
era de se esperar levando-se em conta a retórica da época. Além da noção de povo
ser muito fluida, ela não indica claramente quem eram estes pasquineiros. Membros
30
MELO, 2007, p. 11. 31
ASSIS, 2011. 32
A designação ―pasquim‖ dada a certo tipo específico de imprensa é objeto de ampla discussão entre esses
periódicos. Pasquim, na época, era um termo pejorativo: era aquele que difamava. A expressão ―imprensa
pequena‖, também utilizado à época, à primeira vista pode parecer mais adequada, pela aparente imparcialidade
que ela indica. (ARAÚJO, 2009, p. 12).
20
da camada média urbana, tipógrafos e jornalistas pouco prestigiados estavam por
detrás destes periódicos publicados33
.
É interessante observar que já naquela época, ―no fio da balança entre a aceitação
pública ou seu repúdio, não raras vezes violentas, as discussões quanto à liberdade de
imprensa acompanham o surgimento dos pasquins‖.
Outros autores como Barbosa Lima Sobrinho trouxeram discussão sobre esse fato
histórico da época. No ensaio ―O problema da imprensa‖34
, ele traz informações sobre a
legislação referente à imprensa e suas limitações.
Só para se ter uma ideia, a imprensa, do começo da década de 1880, que cometia
abusos, respondia aos artigos dispostos no Código Criminal de 1830 e o desenvolvimento da
práxis judicial ficou determinado a partir do Código de Processo Criminal de 1832.
De acordo com a dissertação de Araújo, com uma lei aprovada em 3 de dezembro de
1841 extinguiu o júri de acusação, determinado por este Código, e relegou suas funções aos
juízes de direito.
Ainda segundo Araújo, Lima Sobrinho analisa alguns projetos não aprovados que
propuseram reformas na atuação da imprensa. E mais: em 1869, Manuel Pinto de Souza
Dantas, o senador Dantas, apresentou um projeto que previa a obrigação de assinar todas as
publicações da imprensa, com exceção daquelas que tivessem denúncias ou queixas contra as
autoridades do governo.
Já em 1871, o deputado Heráclito Gama pretendia a não aceitação de
responsabilidades que não a do autor signatário para qualquer escrito publicado na
imprensa, segundo Soares. Por fim, o deputado Morais e Silva, em 1875, propunha
que o impressor fosse indiciado como responsável, independente de qualquer
assinatura. Nesta mesma obra, Lima Sobrinho ainda fornece uma importante
contribuição para o entendimento dos meios pelos quais os pasquineiros tentavam
esquivar-se da Justiça. Analisando os ―testas de ferros‖ – homens de frente no
conflito entre pasquins e autoridades judiciais – vemos que a atuação destes
indivíduos na imprensa, facilitada pela extinção do júri de acusação em 1841, era
prática corrente, tanto nos pasquins quanto na ―grande imprensa‖35
.
Outro importante trabalho que também aborda com propriedade a imprensa da época
do império também foi citado na dissertação de Araújo. Trata-se da mais recente biografia
lançada sobre a vida de D. Pedro II, por José Murilo de Carvalho36
. Ele menciona os ataques
feitos pelo jornalista pasquineiro Apulco de Castro ao imperador. ―Para criticar o reinado de
33
ARAÚJO, 2009, p. 12. 34
SOBRINHO, Barbosa Lima. O problema da imprensa. São Paulo: EDUSP, 1997. 35
ARAÚJO, op. cit., p. 13. 36
CARVALHO, José Murilo de. D. Pedro II. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
21
D. Pedro II e a própria Monarquia, o pasquineiro não hesitava em fazer acusações à vida
privada do imperador e em ridicularizá-lo de todas as formas possíveis, chegando até mesmo
a acusá-lo de trair sua esposa com a Condessa de Barral‖37
.
Na época, entre todos os jornais pasquineiros mais sensacionalistas, na opinião de
Araújo, o Corsário era o mais ‗bandido‘.
No trabalho de dissertação sobre os pasquins, ele afirma que o Corsário surge em dois
de outubro de 1880, com uma linguagem mesclava ironia e sátira aos mais veementes ataques
ao governo, à polícia da Corte Imperial e ao próprio regime imperial.
O Corsário, sem dúvida, foi o pasquim que atingiu maior popularidade entre os anos
de 1880 e 1883. O mais famoso e o ―mais bandido‖ dos pasquins, segundo ele.
Só para dar um exemplo o pasquim trazia a seguinte chamada abaixo, conforme
trabalho de Araújo.
―A imprensa é a artilharia do pensamento‖, dizia o Corsário em sua quarta edição, a
13 de outubro de 1880. Vale acrescentar que para ele não faltava munição. Atacava
em suas colunas o imperador, o presidente do Conselho de Ministros, os Ministros e
o Chefe de Polícia com virulência poucas vezes vistas na imprensa do Brasil
Império. Sem deixar, por outro lado, de tratar de setores ―menos prestigiados‖ da
sociedade, tais como prostitutas, seus agenciadores – os ―cafténs‖ –, bêbados,
viciados em jogos e donos de casas de tavolagem, entre outros. Importante observar
que o tom usado pelo Corsário nos seus ataques a esses dois grupos sociais distintos
não variava muito de um para o outro. Já em seu número de lançamento, seu
programa anunciava essa característica, em meio a um texto rebuscado pela retórica
preponderante na imprensa da época: depois do descalabro enraizado que germina
assombrosamente na nossa sociedade, correndo a escala social sem distinção de
classes; depois do horror ao trabalho, causa mais poderosa para o enobrecimento do
homem e exaltação do País, depois que vimos uma multidão de indivíduos
constituídos em piratas, fazendo presas por todos os modos, no intuito de fazer
fortuna, ou de viver no ócio, ou mesmo levados por maus instintos – resolvemos de
alguma sorte concorrer para o extermínio de tão prejudiciais párias38
.
Ficções também eram criadas no pasquim Corsário. Araújo diz que merece atenção
especial a divertida coluna intitulada ―cartas ao vovô‖, publicada ao longo do ano de 1883.
Segundo ele, nela o Corsário apresentava-se em primeira pessoa, como sendo um indivíduo
de certo status: o neto do imperador D. Pedro II. Carregada de ironia, a narrativa empregada
na série tratava o imperador de forma jocosa, chamando-o de ―vovozinho‖ e se identificando
como seu ―netinho‖. De acordo com Araújo, o pretenso parentesco permitia uma maior
intimidade ao lidar com o imperador. Questionando a participação dele em uma exposição
pedagógica realizada naquele ano, seu ―neto‖ afirmava:
37
ARAÚJO, 2009, p. 18. 38
Ibid., p. 51.
22
Vovô, você é um idiota, é um tolo, perdoe ao seu neto se usa desta linguagem tão
franca, você é um desfrutável porque sendo, como se diz um sábio, concorre com a
sua presença e o seu rico dinheiro para essas coisas. Vovô, das duas, três: ou você é
um sábio ou é um burro; nós, no entanto, vamos pela segunda hipótese. (...) Ora,
vovô, não continue a envergonhar seu neto, que lhe estima, como um verdadeiro
amigo das vísceras. Nesta mesma edição o Corsário apresentava uma pretensa,
obviamente falsa, carta em resposta de D. Pedro II, endereçada a seu netinho. Nela,
o imperador pondera abertamente, por se tratar de uma carta de foro íntimo, sobre as
dificuldades que vem encontrando em seu reinado. ―Acho-me bastante aborrecido
com o diabo desta coroa, que pesa-me mais do que a consciência de uma condenada.
Tenho tentado passar este trambolho para tua tia Isabel, mas ela, menina esperta, não
quer aceitar (...). As ―cartas ao vovô‖ tinham como principal artifício lúdico fazer
parecer ridícula a figura de D. Pedro II. Avacalhado três vezes por semana por um
neto bastardo, esse sujeito beirando a casa dos sessenta anos e exercendo o alto
cargo que lhe cabia, dava-se ao desesperado papel de desabafar com uma criança
que não lhe tinha o menor respeito39
.
Houve também na época do Império outras características exploradas pelo pasquim
Corsário: a exploração da intimidade de pessoas influentes da Corte, ou mesmo simplesmente
a difamação. De acordo com o trabalho de Araújo, essas características utilizadas rendiam
boas tiragens ao Corsário. De acordo com ele, é enorme a lista de pessoas públicas atacadas
nele pelas mais diferentes razões, mesmo por motivos falseados, esdrúxulos, ou até mesmo
sem motivo algum, apenas com o intuito de criar polêmica. São frequentes, por exemplo, os
ataques à personalidades públicas ligadas à literatura, como Machado de Assis e o historiador
Capistrano de Abreu. Este último foi ridicularizado pelo Corsário, sobretudo no ano de 1883,
quando teve seu nome estampado em praticamente todas as edições.
Araújo classifica a ―cultura da violência‖ que estaria presente no universo pasquineiro
pela palavra impressa.
(...) em ameaças ou injúrias, ou ainda, propagandeando a violência, construíam
simbolicamente um submundo das letras. Distante do prestígio que cercava os
jornalistas das redações da Rua do Ouvidor, frequentadores dos refinados cafés; os
pasquineiros, com suas redações sediadas nas ruas de menor importância do centro
da cidade, eram vistos como indivíduos que por meios escusos ―ganhavam‖ a vida.
Quando um pasquim tratava de si mesmo – era comum as narrativas aparecerem na
primeira pessoa do singular, sobretudo, os artigos mais importantes escritos pelos
proprietários – vimos que retoricamente apresentavam-se como um órgão do povo,
ou de moralização, crítica, censura, etc. Buscavam legitimação pública justificando-
se como um ―bem social‖. De fato, os pasquins exerciam pragmaticamente um
serviço à sociedade com a publicação de diversas denúncias de crimes ou
reclamações de indivíduos, muitas vezes, gratuitamente. A publicação de
reclamações ou denúncias da população manteve permanência como prática da
imprensa da cidade. Quase duas décadas depois, o Jornal do Brasil sistematizaria tal
prática com a criação da coluna ―queixas do povo‖ (...)40
.
39
ARAÚJO, 2009, p. 54. 40
Ibid., p. 133.
23
Ele conta que alguns fatores, entretanto, depunham contra a construção desta imagem
positiva que os pasquins se imputavam.
Ao mesmo tempo em que elevavam uma pretensa importância a sua diferenciada
atividade jornalística, tinham no estabelecimento de polêmicas uma de suas
características mais marcantes. Nestes debates travados entre os pasquins, a imagem
forjada do ―outro‖ era sempre desfavorável. Assim, o público que acompanhasse
estas polêmicas vislumbrava outras imagens daqueles ―benfeitores‖. Além das
diversas críticas feitas com o intuito de se denegrir seus adversários, apelando para
fatores raciais ou morais, os pasquineiros acusavam-se mutuamente de praticarem a
chantagem e a extorsão como meios de obter benefícios pecuniários. Uma parcela
considerável das agressões de que os pasquineiros sofreram foram motivadas pela
―escandalosa chantagem‖ que alguns deles praticavam. Coletivamente, em debate
impresso, construíam um universo onde sua atividade social ou mesmo política era
ofuscada pela ambição econômica que os levava à prática de atos ilegais41
.
Segundo Araújo, ―no rastro das polêmicas travadas entre os diferentes pasquins foi
possível perceber esta outra maneira que os pasquineiros utilizavam para tornar suas empresas
lucrativas, além das vendas, anúncios e artigos publicados a pedidos: a extorsão42
sobre
indivíduos que eram ameaçados de difamação ou mesmo daqueles que eram surpreendidos já
com seus nomes estampados nos diferentes pasquins. Afinal de contas, não pretendiam apenas
tomar papel ativo na política pública, mas também almejavam a viabilidade econômica destes
empreendimentos‖.
De acordo com ele, duas eram as maneiras de executar o golpe.
Numa, os indivíduos atacados nas páginas dos diferentes pasquins eram procurados
e lhes era exigida certa quantia a fim de que não se publicasse mais artigos
difamando-os. Ou ainda, as vítimas poderiam ser procuradas antes da publicação de
qualquer artigo. Cabia a ela tomar a decisão de pagar ou não. Contudo, o preço
muitas vezes era caro, já que os pasquins não conheciam limites para a injúria e a
difamação. Obviamente, a prática da extorsão não era assumida por nenhum
pasquineiro, ainda que as acusações despontassem de todos os lados.
A fonte da qual nos valemos nesta investigação do submundo das letras na Corte
Imperial são os próprios pasquins. Mesmo sem possibilidades documentais de
completar, por inteiro, o quebra-cabeça complexo desta prática, uma certeza é
possível ter: a extorsão, ou a ―chantagem‖ como diziam, era prática comum no
submundo dos pasquins. Sendo mesmo notória como afirmava o Corsário: ―É sabido
que a chantagem é escandalosamente exercida no Rio de Janeiro, pelos donos de uns
jornais que por aí se publicam‖. Todos os pasquins que chegaram a atingir alguma
popularidade e regularidade em suas publicações costumavam exibir em sua
primeira página em letras destacadas dizeres que pretendiam alertar o público contra
a atuação desses chantagistas. Raimundo Magalhães Júnior, em seu estudo sobre a
vida de Apulco de Castro, recorrendo a análise dos pasquins que o Corsário debatia
com frequência já havia vislumbrado a prática da extorsão neste meio. Não
41
ARAÚJO, 2009, p. 133. 42
Aqui vale uma pequena referência ao jornalista Assis Chateaubriand. Sua biografia é sempre lembrada com
esse tipo de prática: o de chantagear empresários para conseguir anúncios e prestígio.
24
prosseguindo sua investigação por este rumo, apenas apontava para esse fato,
também vendo nestes alertas indícios de que se praticava a extorsão43
.
A análise feita nesse trabalho dá uma pista de que, as práticas exercidas pela grande
imprensa nesse século XXI lembram muito – para não dizer que são iguais – as adotadas no
período imperial, sobretudo, pelos pasquins.
1.5. A mídia como aparelho privado de hegemonia
Abrindo aqui um parênteses, o escritor Antônio Gramsci44
destrinchou o papel da
imprensa como aparelho privado de hegemonia45
. Para ele, a grande mídia reproduz discursos
hegemônicos. Gramsci acredita que a infraestrutura (forças produtivas e de relações
econômicas) não é o único fator decisivo para manter o ‗pensamento dominante‘. O aparelho
ideológico também tem papel fundamental.
Gramsci entendia que a superestrutura ideológica é o principal fator de produção de
consenso das massas – o que faz com que todos pensem da mesma maneira – sem
questionamentos. Não é preciso utilizar a força, a violência, ‗matar‘ alguém para que uma
classe se mantenha no poder. Basta utilizar o consenso, que se fabrica por meio dos aparelhos
privados de hegemonia, como são os meios de comunicação de massa. São eles que dão
visibilidade para acontecimentos, interpretações e ideias que dão sustentação ideológica para
a classe dominante. Gramsci entende que o aparelho responsável por esse consenso engloba
escolas, além da mídia, igrejas e sindicatos.
Para aprofundar ainda mais o tema e tentar descobrir como funcionam os aparelhos
privados de hegemonia e a produção do consenso ‗forjado‘, é preciso, abordar, os conceitos
gramscinianos de Estado e sociedade civil sob a perspectiva de Álvaro Bianchi46
.
Gramsci fala de um Estado diferente dos jusnaturalistas – contratualistas que
propunham que o Estado existe para colocar ordem - desenvolvido por Thomas Hobbes e
Jonh Locke, o homem como inimigo do homem. Para os jusnaturalistas, não se pode viver em
sociedade, a menos que seja firmado um contrato social.
43
ARAÚJO, 2009, p. 133. 44
Antonio Gramsci, intelectual italiano e fundador do Partido Comunista Italiano, é ‗fundador‘ do conceito de
hegemonia. 45
Gramsci introduziu em suas obras o conceito de hegemonia - a capacidade que as classes dominantes têm de
manter o poder utilizando o poder ideológico e não somente a coerção. 46
BIANCHI, Álvaro. O laboratório de Gramsci-Filosofia, História e Política. São Paulo: Alameda, 2008, p.
173-198.
25
Quando se rompe esse contrato, há castigos de toda ordem imprimidos pelo Leviatã –
um ser supremo com poderes para aplicar coerção – neste caso o Estado.
Para Marx, por exemplo, a divisão de classes era o motivo pelo qual existia a
necessidade de um Estado. Quando a sociedade se iguala, o Estado teria de desaparecer. Em
Marx percebe-se a separação entre Estado e sociedade.
É importante observar que desde Maquiavel até Hobbes, de Locke, Rousseau até
Marx, o Estado vem sendo interpretado das mais diversas maneiras. É, entretanto, em Marx,
que o Estado perde sua áurea de superioridade entre os homens. Marx também fala das
estruturas que são as relações econômicas de dominação do Estado.
Já Gramsci fala das superestruturas, aprofunda e amplia o conceito de Marx sobre o
Estado. Para Gramsci, além das relações econômicas, existem as relações político-ideológicas
(que vão formar o consenso). Portanto, ele desenvolve uma visão mais profunda e complexa
sobre a sociedade e o Estado.
Para Gramsci, o Estado não é apenas força. É força e consenso. Ou seja, apesar de
estar a serviço de uma classe dominante ele não se mantém apenas pela força e pela coerção
legal; sua dominação é bem mais sutil e eficaz. Não precisa de camisa de força ou de
aplicações punitivas para conseguir fazer com que todos tenham um mesmo comportamento e
uma maneira igual de pensar. Será por meio de diversos meios (inclusive os de
comunicações) e sistemas, de entidades que aparentemente estão fora da estrutura estatal
coercitiva, que o Estado se mantém e se reproduz como instrumento de uma classe, também
construindo o consenso no seio da sociedade. Tudo muito sutilmente.
Afinal é preciso parecer que as ações vão contemplar toda uma sociedade. Veja o que
diz Bianchi na perspectiva de Gramsci sobre o Estado hegemônico. ―O Estado é concebido
como organismo próprio de um grupo, destinado a criar as condições favoráveis à máxima
expansão do próprio grupo‖47
. Mas atenção: ―essa expansão, para ser eficazmente levada a
cabo, não poderia aparecer como a realização dos interesses exclusivos dos grupos
diretamente beneficiados. Ela deve apresentar como uma expansão universal – expressão de
toda a sociedade – por meio da incorporação à vida estatal das reivindicações e interesses dos
grupos subalternos, subtraindo-os de sua lógica própria e enquadrando-os na ordem vigente.
Incorporação essa que é o resultado contraditório de lutas permanentes e da formação de
equilíbrios instáveis e de arranjos de força entre as classes‖48
. Quem já não ouviu
47
BIANCHI, 2007, p. 175-176. 48
BIANCHI, loc. cit..
26
recentemente, um importante meio de comunicação reproduzir o seguinte slogan: ―a rádio que
briga por você!‖. Nesse caso, você quem?
É a pura reprodução de um consenso dominante. Gramsci, portanto, tem conceito
ampliado de Estado. Segundo Bianchi, é a expressão no terreno das superestruturas, de uma
determinada forma de organização social da produção. Articulação entre economia e política.
O Estado é concebido como organismo próprio de um grupo destinado a criar condições
favoráveis à máxima expansão do próprio grupo, como já foi enfatizado na página anterior.
Mas, essa tentativa deve ser ‗camuflada‘ como se fosse universal para expansão de toda a
sociedade. É a formação do consenso forjado. Então Estado, para Grasmci, é sociedade
política e sociedade civil porque cria condições para expandir um grupo dominante e, ao
mesmo tempo, se apresenta como aquele que atende a todos.
―O termo hegemonia, apesar de ter sido usado anteriormente por Lênin, traz uma
dupla interpretação: a primeira, teria o significado de dominação; a segunda, um
significado de liderança tendo implícita alguma noção de consentimento. É nesta
segunda definição que este termo assume um papel de destaque na elaboração de
todo o quadro teórico gramsciano. É interpretando como se dá a dominação da
burguesia na Itália, e utilizando Maquiavel e Pareto, sobre seus conceitos de Estado
como força e consentimento, que o conceito de hegemonia em Gramsci assume
papel fundamentador na sua concepção de Estado‖49
.
Segundo Rêgo, é em uma carta à sua cunhada Tatiana Schucht, de dezembro de 1931
que Gramsci expõe de forma resumida seu novo conceito de Estado ampliado.
―Eu amplio muito a noção de intelectual e não me limito à noção corrente que se
refere aos grandes intelectuais. Esse estudo leva também a certas determinações do
conceito de Estado, que habitualmente é entendido como sociedade política (ou
ditadura, ou aparelho coercitivo para adequar a massa popular a um tipo de produção
e a economia a um dado momento); e não como equilíbrio entre a sociedade política
e sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social sobre a inteira sociedade
nacional, exercidas através de organizações ditas privadas, como a igreja, os
sindicatos, as escolas, etc.)‖50
.
1.6. Objetos de Análise
Essa dissertação tem como objetivo analisar a cobertura jornalística de escândalos
políticos por parte da Revista Veja, dos jornais Correio Braziliense, Folha de S. Paulo e O
49
RÊGO, João. Reflexões sobre a teoria ampliada do Estado em Gramsci. Site João Rego: Ditos & Escritos. 5
de abril de 1991. (http://www.joaorego.com/3-politica%20/%20reflexoes-sobre-a-teoria-ampliada-do-estado-em-
gramsci/), 2012. 50
Ibid.
27
Estado de S.Paulo. Nesse caso, a análise será feita das reportagens publicadas da acusação de
corrupção contra o então ministro da Saúde, Alceni Guerra, em 1991, e contra o então
deputado Ibsen Pinheiro, em 1993. Aquele é um momento de redemocratização do País após
o fim do regime militar.
Como afirma Perseu Abramo e Eugenio Bucci, autores estudados nesse trabalho, a
imprensa faz a sua verdade. Essa verdade, muitas vezes, é irreal. Assim, com consciência de
que a manipulação existe, e que a grande imprensa toma posições políticas pode-se afirmar
que a influência da mídia pode alterar a ―história‖.
2. ESTRUTURA METODOLÓGICA
Discute-se muito o papel da imprensa, como ela influencia, pauta a agenda política,
mantém relação de controle do poder e, em grande parte das vezes, atua distante do real
interesse público. Em determinados momentos fala em nome da democracia para estabelecer
suas posições e defender, na maioria das vezes, os seus próprios interesses. A grande mídia
pode ser a instituição capaz de intermediar relações sociais e políticas. Afinal ela quer
investigar. Às vezes, se intitula do lado da sociedade, a guardiã. Luiz Martins da Silva, entre
tantos outros autores, afirma que
com ou sem nova Lei de Imprensa, o jornalismo brasileiro terá de abandonar uma
certa Idade do Ouro, um estágio primitivo caracterizado pela boa preguiça, em troca
de novos hábitos, o principal deles, a apuração. Até recentemente, predominava a
impunidade e a certeza de que nada aconteceria aos detratores, mesmo porque não
havia uma cultura de reação e de proteção às vítimas, nem a atuação de mecanismos
de crítica, fiscalização e controle, a exemplo dos observatórios e institutos de
imprensa, duas das modalidades dos chamados ―cães-de-guarda‖ da imprensa, uma
cultura que começa a se formar no Brasil. (...) A pressa na investigação ou a total
ausência desse procedimento têm imposto à imprensa brasileira dois tipos de
prejuízo, que se alternam, ou se somam: perda de credibilidade e de recursos
financeiros. Mesmo que se valha de fontes de fé pública e mesmo que venha a
estabelecer uma rigorosa conduta na checagem das informações, mesmo assim, a
imprensa brasileira está fadada a uma grande vulnerabilidade, graças a dois fatores:
a inexistência de um teto para as penas pecuniárias em casos de prejuízo moral e a
facilidade com que este delito pode ser tipificado, dada a amplitude subjetiva com
que se pode caracterizá-lo51
.
51
SILVA, Luiz Martins. Imprensa, danos morais e indenizações. Trabalho Acadêmico. Compós, Porto Alegre:
Projeto SOS Imprensa, 2000.
28
Para tentar abordar todas essas questões, é preciso buscar respostas. É a Ciência a
única capaz de dar a resposta aos anseios da pesquisa. Para isso, foi preciso buscar
paradigmas-modelos para se chegar perto ou até o resultado esperado. ―A ciência normal
implica tentativas detalhadas de articular um paradigma com objetivo de melhorar a
correspondência entre ele e a natureza‖.52
Thomas Kuhn dizia que a ciência normal é uma atividade de resolução de problemas
governada pelas regras de um paradigma.
Um problema de pesquisa supõe que informações suplementares podem ser obtidas a
fim de cercá-lo, compreendê-lo, resolvê-lo ou eventualmente contribuir para a sua
resolução53
.
A pesquisa é qualitativa54
. Também foi utilizada a técnica da análise do discurso55
analisando, no caso do discurso propriamente dito, formas de fala e textos dos personagens
estudados. Neste caso, o material utilizado são revistas e jornais como será descrito mais à
frente. Dentro da análise do discurso é feito então estudo de caso.
A análise documental são recortes de reportagens de jornais e revistas. Houve a
opção por fazer entrevistas com jornalistas. Pelo menos uma dezena delas foi feita. Os
documentos obtidos por meio do material documental também foram utilizados.
Com as revistas e os jornais foi preciso fazer uma análise de conteúdo das capas das
mídias já citadas (por serem a primeira e principal forma de atrair o leitor); avaliação de fotos,
títulos (palavras escolhidas) e ilustrações/artes, reportagens (toda a diagramação e
―distribuição‖ das informações) com títulos, linhas-finas (subtítulos), fotos (e suas respectivas
legendas), e ênfases das matérias com o espaço destinado às publicações das acusações e da
defesa.
52
CHALMERS, Alan F. O que é Ciência, Afinal?. Tradução Raul Fiker. Editora Brasiliense, 1993, p. 108. 53
LAVILLE, Christian; DIONNE, Jean. A Construção do Saber – Manual de metodologia da pesquisa em
ciências humanas. Porto Alegre: Editora UMFG,1999. 54
As investigações qualitativas, por sua diversidade e flexibilidade, não admitem regras precisas, aplicáveis a
uma ampla gama de casos. Além disso, as pesquisas qualitativas diferem bastante quanto ao grau de estruturação
prévia, isto é, quanto aos aspectos que podem ser definidos já no projeto (MAZZOTTI, Alda Judith Alves;
GEWANDSZNAJDER, Fernando; O Método nas Ciências Naturais e Sociais – Pesquisa Quantitativa e
Qualitativa. São Paulo: Editora Pioneira, 1999, p. 147). 55
Nome dado a uma variedade de diferentes enfoques no estudo de textos, desenvolvida a partir de diferentes
tradições teóricas e diversos tratamentos em diferentes disciplinas. (GILL, Rosalind. Análise do Discurso, em
Pesquisa Quantitativa com texto, imagem e som. Um Manuel prático. Tradução de Pedrinho A. Guareschi. 2ª ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2003).
29
Nessa dissertação, optou-se por não fazer análise dos editoriais56
de jornais e revistas
em estudo que trataram dos assuntos em questão, apesar de serem reconhecidamente
importantes para se entender a posição ideológica da grande mídia.
A razão principal é que editoriais divulgados foram – em número de publicação -
infinitamente inferiores em relação às reportagens, tanto pelos jornais como pelas revistas que
trataram do assunto. Não houve uma periodicidade de editoriais como as reportagens
publicadas todos os dias sobre os fatos desse estudo de caso em questão.
Por outro lado, as matérias publicadas tornam-se objetos com mais sustentabilidade
para as análises, uma vez que nos editoriais estão as opiniões – consideradas mais difíceis de
serem manipuladas por tratar-se de opiniões individuais, posições do veículo de comunicação.
Foi importante também fazer uma revisão da bibliografia para descobrir que, dentro
das Ciências Sociais/Políticas, o tema ‗controle da mídia‘ pouco ou quase não é estudado. Ou
se fala da política analisada em si. Ou se fala da mídia, mas sobre o comportamento de um
periódico em determinada cobertura política.
Para desenvolvimento da dissertação também foi preciso buscar trabalhos no
Departamento de História. A dissertação de mestrado de Rodrigo Cardoso Soares de Araújo,
em ―Pasquins: submundo da imprensa na Corte Imperial (1880-1883)‖ foi utilizada como
suporte para o contexto histórico do trabalho (já mostrado na introdução dessa pesquisa).
Diante do material teórico foi possível estruturar a pesquisa em quatro capítulos
(incluindo as considerações finais). Um dos capítulos traz discussões críticas sobre a
liberdade de imprensa e a falta de controle democrático sobre ela, além de sugestões para
‗democratizar‘ a informação. Também se trata da seguinte questão: a imprensa pode virar
escândalo, ser o próprio escândalo? Para isso, foi preciso buscar reportagem da Revista Carta
Capital que tenta mostrar a falta de transparência da Revista Veja em envolvimento com
bicheiro.
56
José Marcos de Melo diz que nas sociedades capitalistas, o editorial reflete não exatamente a opinião dos seus
proprietários nominais mas o consenso das opiniões que emanam dos diferentes núcleos que participam da
propriedade da organização. Além dos acionistas majoritários, há financiadores que subsidiam a operação das
empresas, existem anunciantes que carreiam recursos regulares para os cofres da organização através da compra
de espaço, além de braços do aparelho burocrático do Estado que exerce grande influência sobre o processo
jornalístico pelos controles que exerce no âmbito fiscal, previdenciário, financeiro. (...) o editorial afigura-se
como um espaço de contradições. Seu discurso constitui uma teia de articulações políticas e por isso representa
um exercício permanente de equilíbrio semântico. Sua vocação é a de apreender e conciliar os diferentes
interesses que perpassam sua operação cotidiana. Mas se o editorial expressa essa opinião das forças que mantêm
a instituição jornalística, torna-se necessário indagar para quem se dirige em sua argumentação. A resposta
poderia ser tranquila: a opinião contida no editorial constitui um indicador que pretende orientar a opinião
pública (...). (MELO, José Marcos. A Opinião do Jornalismo Brasileiro. 2ª ed. revisada. Petrópolis: Vozes, 1994,
p. 96).
30
Havia uma possibilidade de se estudar, além dos escândalos de Alceni Guerra e Ibsen
Pinheiro (anos 90), mais dois episódios ocorridos em 2011, sobre o envolvimento de casos de
corrupção dos ex-ministros Antônio Palocci (Casa Civil) e Orlando Silva (Esportes). No
entanto, em função de o trabalho de mestrado ficar muito extenso optou-se por suprimir esses
dois escândalos que poderão ser estudados em uma futura tese de doutorado.
Pergunta problema: Qual foi o comportamento da grande imprensa na cobertura
dos escândalos políticos de Alceni Guerra e Ibsen Pinheiro?
2.1. Justificativa para a escolha das fontes
Por que escolher os jornais Correio Braziliense, Folha de S. Paulo, O Estado de S.
Paulo e as Revistas Veja e IstoÉ (essa última só como suporte) para delinear as análises deste
trabalho abordando a cobertura política da imprensa escrita nos casos Alceni Guerra e Ibsen
Pinheiro?
O Correio Braziliense por ter sido o primeiro jornal a publicar a denúncia contra
Alceni. Veja por ter feito uma edição histórica e até hoje comentada nos bastidores políticos
de Brasília (Congresso Nacional) sobre o caso Ibsen. Além disso, todos os periódicos em
questão fazem parte da grande imprensa57
no Brasil.
E, sobretudo, mantém mesmo que de forma muitas vezes subliminar, posturas
ideológicas por serem empresas privadas. Para Bernardo Kucinski, Folha e O Estado, por
exemplo, são grandes jornais do País por causa de suas iniciativas de definir as agendas de
discussões58
.
Ele, no entanto, diz que a estrutura do mercado dos jornais brasileiros é imagem
reflexa da estrutura da propriedade agrária, na qual, em cada macrorregião, poder e prestígio
são disputados (...)59
.
Kucinski destaca mais:
57
Ana Lúcia Martins e Tânia Regina de Luca afirmam que a expressão ‗grande imprensa‘, apesar de consagrada,
é bastante vaga e imprecisa, além de adquirir sentidos e significados peculiares em função do momento histórico
em que é empregada. De forma genérica designa o conjunto de títulos que, num dado contexto, compõe a porção
mais significativa dos periódicos em termos de circulação, perenidade, aparelhamento técnico, organizacional e
financeiro (MARTINS; LUCA, 2008, p. 149). 58
KUCINSKI, Bernardo. A síndrome da antena parabólica: ética no jornalismo brasileiro. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 1998, p. 24. 59
Ibid., p. 25.
31
Os jornais são geridos hedonisticamente como uma grande propriedade familiar, na
qual o gozo pelo exercício do poder é tão importante quanto o lucro capitalista.
Mantêm-se os métodos, valores e mentalidade dos mandatários iniciais da
colonização brasileira. (...) Na escala de valores do jornalista anglo-saxônico,
predominam os valores da verdade, imparcialidade e objetividade. Isso não significa
que sejam efetivamente fiéis à verdade, e sempre objetivos, mesmo porque essas
categorias são discutíveis no processo jornalístico, necessariamente subjetivo. Mas
significa que esses valores vão constituir a ideologia e o referencial do jornalismo
anglo-saxônico da verdade, omissão e parcialidade60
.
Jornais e revistas são empresas privadas e, como qualquer outra empresa privada,
buscam lucro. Ainda de acordo com Kucinski, no panorama da mídia brasileira, as revistas
semanais emergem como principais usinas ideológicas61
dos conceitos e preconceitos da
classe média. Essa tendência teria ocorrido com Veja na cobertura dos escândalos em
questão?
Em contraste com a debilidade relativa de nosso mercado jornalístico, em
comparação com os Estados Unidos e Europa, Veja está entre as maiores revistas
semanais do mundo. São três as condições que qualificam a importância dessas
revistas na esfera pública do Brasil, especialmente a líder delas, Veja: a circulação
relativamente alta e de caráter nacional – cerca de 1,1 milhão de exemplares no caso
de Veja -, sendo cada exemplar lido, em média, por quatro pessoas; IstoÉ tem mais
de 330 mil exemplares de circulação e Época, em poucos meses, já chegava aos 350
mil exemplares; b) a durabilidade desse tipo de mídia, que depois de lida vai para as
salas de estar dos médicos e dentistas, e para as bibliotecas das escolas, onde são
usadas por meses em trabalhos escolares; c) uma vitalidade econômica que torna
relativamente imunes às pressões dos governos. No processo de imposição do
consenso, essas revistas têm exercido um papel fundamentalmente ideológico,
captando, reprocessando e realimentando os temores das classes médias. São muito
ligadas a seu público, que nesse caso não é formado pelos próprios protagonistas das
notícias e sim por uma classe média em constante processo de mutação, ora
enriquecendo, ora empobrecendo, conforme o andar das crises econômicas.
Portanto, uma classe média mais sensível e nervosa do que a classe média norte-
americana. Veja foi fundamental na disseminação do medo da classe média ante
uma possível vitória de Lula. Foi também fundamental no processo de impeachment
de Collor, que cometeu o crime capital de ter confiscado as poupanças dessa mesma
classe média. Na queda de Collor, o processo foi conduzido mesmo pelas revistas
semanais Veja e IstoÉ. As histórias de Veja, fortemente editadas, já refletem todo
um exercício de compactação do eu a classe média pensa, ou do que seus editores
julgam que é o pensamento convencional da classe média. Eugênio Bucci relaciona
esta operação de Veja como uma usina ideológica, na forma de uma ―linha de
montagem‖62
.
Em relação aos jornais utilizados como base de estudos desse trabalho, o mesmo
autor traz em sua obra informações importantes a respeito das posições e trajetórias dos
60
KUCINSKI, 1998, p. 28-29. 61
Usinas ideológicas no sentido de formar opinião. De produzir conjunto de ideias ou pensamentos de uma
pessoa ou grupo. O autor, quando diz usina ideológicas, quer enfatizar a importância desses meios de
comunicação para a nossa sociedade e como pode trazer influências para o bem ou para o mal. 62
KUCINSKI, op. cit., p. 33-34.
32
periódicos. O trabalho também optou por mostrar um pouco das tendências e posicionamentos
desse meios de comunicação com objetivo de verificar no final se houve ou não na prática
uma cobertura tendenciosa dos dois escândalos em estudo. A Folha de S. Paulo, por exemplo,
é hoje o jornal mais lido63
.
Completa-se assim a hegemonia desse diário que passou a substituir O Estado de S.
Paulo também no campo das relações afetivas entre a grande imprensa e seus leitores.
Na opinião de Francisco Fonseca, ao analisar os editoriais da Folha de S. Paulo, sobre
o Plano Cruzado na década de 90, por exemplo, descobre-se ou fica patente quais inspirações
político-ideológicas o jornal explicitamente se aproxima: o ―nacional desenvolvimentista‖,
inspirado, por sua vez, aparentemente na social-democracia européia64
. Além disso, há uma
preocupação da Folha de S. Paulo com a reprodução capitalista da sociedade65
.
Sobre o Jornal O Estado de S. Paulo, o mesmo autor afirma que o periódico se
caracteriza por defender posições liberal-conservadoras e tradicionalistas.
Sua existência secular fez que sua visão de mundo tenha-se tornado amálgama, uma
vez que seu perfilhamento à doutrina liberal convive com a defesa renitente da
ordem, da autoridade, da hierarquia social e também da reação à mobilização
popular e aos direitos sociais. (...) A transição para a democracia encontra em O
Estado de S. Paulo um jornal ambíguo – postura típica em sua atuação histórica -,
pois seu apoio à democracia possui vigoroso caráter conservador. Em outras
palavras, à demanda pelo retorno às liberdades clássicas, vinculadas ao
reordenamento jurídico do Estado de Direito, em que se destaca a liberdade de
expressão, corresponde uma forte ligação às Forças Armadas e uma certa aversão ao
conflito. Trata-se, portanto do apoio a uma democracia restrita66
.
63
A Folha lidera em número de leitores de jornal na Grande São Paulo, revela uma pesquisa realizada pelo
Instituto Ipsos Marplan. De acordo com a pesquisa, relativa ao primeiro semestre de 2012, a Folha conta com
1,567 milhão de leitores diários nesta área. O jornal O Estado de S. Paulo vem em segundo, com 1,277 milhão
de leitores. Os dados integram uma pesquisa domiciliar feita diariamente pelo instituto e que mede hábitos não
apenas de consumo de mídia, mas também de outros bens de consumo e serviços. As informações foram
colhidas no primeiro semestre, com 29 mil pessoas ouvidas em 13 mercados. Os 13 mercados incluem Brasília,
regiões metropolitanas de Belo Horizonte, Salvador, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Recife, Curitiba,
Florianópolis, Fortaleza, Vitória, Goiânia e São Paulo e mais o interior de São Paulo. De acordo com o instituto,
esses mercados recebem 86% dos investimentos publicitários. Em todo o País, a penetração dos jornais
corresponde a 43% da população com dez anos ou mais. As regiões metropolitanas onde o hábito de leitura de
jornais é mais difundido são Porto Alegre (74%) e Belo Horizonte (64%). Em São Paulo, a penetração dos
jornais é maior no interior (48%) do que na capital (37%) O número de leitores supera o da circulação dos
veículos uma vez que o jornal costuma ser compartilhado por diferentes pessoas em uma mesma residência. Pelo
IVC, instituto que mede a circulação dos veículos, a tiragem média diária da Folha em todo o País, em 2012, foi
de 297,2 mil exemplares. 64
FONSECA, Francisco. O Consenso Forjado: A grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no
Brasil. São Paulo: Editora Hucitec, 2005, p. 154. 65
Ibid., p.165. 66
Ibid., p. 154.
33
Há tendências também em Veja. Aliás, por ser a mais antiga e de maior tiragem (cerca
de 1 milhão de exemplares a cada semana – conforme já explicitado neste trabalho), a revista
é a principal publicação do Grupo Abril, conforme destaca Venceslau Alves de Souza:
Produzida pela Editora Abril, Veja não somente faz parte do Grupo Abril, um dos
maiores conglomerados de comunicação da América Latina que atua de forma
integrada em várias mídias, mas é ainda o semanário mais comprado no País e um
dos mais lidos no mundo. No Brasil, raramente um jornal ultrapassa a casa de 1
milhão de exemplares; só a semanal Veja consegue isso, com uma circulação paga
de 1,2 milhões (sic) – a quarta maior circulação do planeta e terceira maior em
páginas de publicidade (ênfases do autor)67
.
Desde sua criação, o grupo está presente nas principais transformações da sociedade
brasileira.
(...) O Grupo Abril manteve sempre relações umbilicais com o poder.
Personalidades políticas das mais variadas facções encontram em seus produtos –
estes entendidos aqui como aparição nas páginas de suas revistas, de Veja em
particular, TV, etc – grande oportunidade para manipulá-las como trampolim
político a cargos mais elevados ou à aquisição estratégica de status. Ao longo dos
anos, esta relação tem premiado o Grupo Abril, mais particularmente a revista Veja,
com um prestígio recíproco, raro na cena nacional. Aí reside um dos motivos (...) de
atribuirmos tanta erudição a este semanário. (ênfases do autor)‖68
.
Não há dúvida que a revista segue tendência de uma postura radical em defesa do livre
mercado e de grupos/partidos políticos alinhados à ideologia neoliberal.
2.2. Quem é quem nas fontes escolhidas
Veja: é uma revista semanal publicada pela Editora Abril. Sua primeira edição foi
publicada em 1968. Foi criada pelos jornalistas Victor Civita e Mino Carta. Com uma tiragem
superior a um milhão de exemplares, segundo a própria Editora Abril, Veja é a revista de
maior circulação no Brasil e se declara a quarta maior revista semanal do mundo, superada
apenas pelas americanas Time, Newsweek e U.S. News & Report.
Em 25 de abril de 1992 a revista publicou uma entrevista exclusiva com Pedro Collor
de Mello (irmão do então presidente Fernando Collor de Mello), em que o entrevistado
67
SOUZA, Venceslau Alves de. A defesa incondicional do liberalismo em VEJA: O que poderia representar tal
apologia para a modernidade brasileira?. Artigo científico. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica (PUC),
p. 64-65. 68
Ibid., p. 65-66.
34
denunciava irregularidades de desvio de dinheiro público em uma suposta parceria com Paulo
César Farias. Essa entrevista desencadeou uma série de novas denúncias e investigações
culminando com o impeachment e a renúncia do presidente.
É notável, entretanto, a participação da revista na eleição de Collor, com reportagens
acusadas de parciais, como a que trazia à capa uma foto de Collor com a legenda "O Caçador
de Marajás". A posição de Veja foi alvo de críticas, entre os quais os jornalistas Luis Nassif,
em seção especial de seu blog e o próprio Mino Carta, em diversas edições de sua revista,
Carta Capital, concorrente da própria Veja. Ambos travam disputas judiciais com a revista e
seus colunistas em relação às acusações feitas, por ambas as partes.
IstoÉ: A revista é publicada pela Editora Três. É considerada uma das quatro
principais revistas semanais a circularem no Brasil, ao lado de Veja, Época e Carta Capital -
Veja (em 1968), IstoÉ (em 1976) e Carta Capital (em 1994) foram lançadas pelo jornalista
italiano Mino Carta.
Correio Braziliense: É um jornal de Brasília, fundado no dia 21 de abril de 1960 por
Assis Chateaubriand, juntamente com a inauguração da cidade e a da TV Brasília. O nome
veio do histórico Correio Braziliense ou Armazém Literário, editado em Londres a partir de
1808, por Hipólito José da Costa.
O Correio Braziliense ou Armazém Literário é considerado o primeiro jornal brasileiro
e circulou de 1 de junho de 1808 a 1 de dezembro de 1822, contando 175 números, agrupados
em 29 volumes, editados durante 14 anos e 7 meses, ininterruptamente, com marcante
pontualidade.
Folha de S.Paulo - É um jornal editado na cidade de São Paulo. É o jornal de maior
circulação do Brasil, segundo dados do Instituto Verificador de Circulação (IVC). Ao lado de
O Estado de S.Paulo e o Globo, a Folha é um dos jornais mais influentes do País. Fundado
em 19 de fevereiro de 1921, com o nome original de Folha da Noite por Olival Costa e Pedro
Cunha, o jornal foi comprado na década de 60 pelos empresários Octavio Frias de Oliveira e
Carlos Caldeira Filho, quando o mesmo foi rebatizado.
Em 1930 apoiou a eleição de Júlio Prestes à presidência da República, sendo por isto
depredrada e fechada (na época se dizia empastelada) em 24 de outubro de 1930, quando a
35
Revolução de 1930 saiu vitoriosa. Nesta época, a Folha contava com o consagrado
caricaturista Lelis Viana, o Juca Pato. personagem que sempre criticava a Aliança Liberal de
Getúlio Vargas. A Folha voltou a funcionar, em 1931, com novos donos e nova linha editorial
voltada para o apoio da agricultura.
A ascensão de uma redação renovada e engajada, com a presença de nomes
consagrados como os de Cláudio Abramo, Bóris Casoy, Clóvis Rossi e Jânio de Freitas
acabou mudando a linha editorial do jornal que na década de 1980 ficou marcado pelo apoio
imediato com constantes matérias cobrindo o movimento das Diretas Já. A reforma gráfica
em meados da década de 1990, o lançamento de brindes como o Atlas da Folha e dicionários
reforçaram a liderança.
O Estado de S.Paulo – Foi fundado, baseando-se nos ideais de um grupo de
republicanos, em 4 de janeiro de 1875. Nesta época, o jornal se chamava A Província de São
Paulo e foi o pioneiro em venda avulsa no País, fato pelo qual foi ridicularizado pela
concorrência (Correio Paulistano, O Ipiranga e Diário de S. Paulo). Curiosamente, a venda
avulsa foi impulsionada pelo imigrante francês Bernard Gregoire que saía às ruas montado
num cavalo e tocando uma corneta para chamar a atenção do público — e que, décadas
depois, viraria o próprio símbolo do jornal — aumentou a tiragem do jornal.
O termo "Província" foi conservado até 31 de dezembro de 1889, um mês após a
queda da Monarquia e instituição da República no Brasil. Embora tivesse apoiado a troca de
regime, o jornal se mostrou independente de qualquer partido político, recusando-se a servir
aos interesses do ascendente Partido Republicano Paulista.
Ao final do século XIX, o Estado já era o maior jornal de São Paulo, superando em
muito o Correio Paulistano. Propriedade exclusiva da família Mesquita a partir de 1902, o
Estado apoiou a causa aliada na Primeira Guerra Mundial, sofrendo represália da comunidade
alemã na cidade, que retira todos os anúncios do jornal. Mesmo assim, Mesquita mantém a
posição de seu diário.
Durante a guerra, passa a circular a edição vespertina do jornal, conhecida como
"Estadinho", dirigida pelo então jovem Júlio de Mesquita Filho. Em 1924, o Estado foi
impedido de circular pela primeira vez, após a derrota do levante tenentista que sacudiu a
cidade. Julio Mesquita, que tentara intermediar um diálogo entre os revoltosos e o governo,
foi preso e enviado ao Rio de Janeiro, sendo libertado pouco depois.
Com a morte do velho diretor em 1927, seu filho Julio de Mesquita Filho assumiu a
redação com o irmão Francisco, este à frente da parte financeira do jornal.
36
Logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, o Estado viu enorme progresso com o
aumento da tiragem e de seu prestígio nacional. Na década de 1950 foi construída uma nova
sede, o edifício da rua Major Quedinho, que ainda abrigaria o Hotel Jaraguá. Foi a fase em
que a editoria de Internacional, comandada pelo jornalista Giannino Carta e por Ruy
Mesquita, passou a ser considerada a mais completa do jornalismo brasileiro.
O Estado, desse período até a década de 1970, ostentou em sua primeira página quase
que exclusivamente o noticiário internacional. A partir da década de 1970, o jornal endividou-
se para a construção de sua nova sede na Marginal Tietê e passou por severa crise financeira,
disputando o mercado com o novo padrão de jornalismo representado pela Folha de S.Paulo.
Em 1986, o Estado contratou o jornalista Augusto Nunes para assumir o posto de
diretor de redação. Ele renovou o noticiário do jornal e empreendeu uma série de reformas
gráficas, que redundariam na adoção, em 1991, de cores no jornal e de edições diárias, até
então o Estado não circulava às segundas-feiras e dias seguintes a feriados. Em 1996, Julio de
Mesquita Neto morreu e o jornal passou a ser dirigido por seu irmão Ruy Mesquita até então
diretor do extinto Jornal da Tarde, pertencente ao Grupo Estado. Atualmente, o jornal é o
quarto em circulação no Brasil, com uma média diária de 250 mil exemplares em dezembro
de 2007, e o primeiro na Grande São Paulo, com média diária de 159,9 mil exemplares.
2.3. Período dos recortes
No caso da denúncia contra o então ministro Alceni Guerra, o período de estudo e
análise das reportagens vai de 4 de dezembro de 1991 a 23 de janeiro de 1992. Esse é o
período do surgimento das denúncias até elas serem praticamente esquecidas pela grande
mídia, após a renúncia de Alceni do cargo desaparecendo do noticiário diário.
A justificativa da escolha dos jornais Correio Braziliense, O Estado de S. Paulo,
Folha de S. Paulo e Revista Veja para objeto de estudo se dá por alguns motivos.
O jornal brasiliense foi o primeiro a estampar em sua capa a denúncia contra o
ministro. Os outros dois jornais paulistas são considerados os maiores do País e também
seguiram na cobertura após o ‗furo‘ do Correio. A Revista Veja também publicou reportagens
sobre o episódio e ‗massacrou‘ o ministro em suas páginas. É a maior revista do País.
37
As denúncias contra Ibsen Pinheiro surgiram na mídia no dia 8 de novembro de
1993. Nos jornais paulistas foram publicadas primeiramente no Jornal O Estado de S. Paulo e
depois na Folha de S. Paulo.
O Correio Braziliense também trouxe a cobertura por semanas. No dia 17 de
novembro, a Revista Veja publicou reportagem que pode ter influenciado o Congresso
Nacional a cassar o mandato do parlamentar. O título ―Até tu Ibsen?‖, trazia a interrogação
associando Ibsen a um ato de corrupção inesperado, uma vez que ele tinha feito um
excepcional trabalho na CPI que cassou o mandato do presidente Fernando Collor de Mello à
época. E, por que o trabalho dá mais ênfase à reportagem de Veja, especificamente no caso
Ibsen, inserindo-se numa abordagem mais ampla? A resposta é básica. Veja, realmente, não
foi a única a publicar a denúncia e nem a primeira. Mas, a sua liderança69
impõe o ônus de ser
o caso mais exemplar, sobretudo nos erros – reconhecidamente cometidos e tornados públicos
por outra revista a IstoÉ, como veremos no transcorrer da análise.
No caso da denúncia contra Ibsen Pinheiro, torna-se imprescindível analisar também
a revista IstoÉ, como auxílio ao trabalho. Será ela, quem vai trazer a publicação de um artigo
do jornalista Luís Costa Pinto, que foi editor e chefe da sucursal de Veja no Recife e em
Brasília, repórter de jornais O Globo e da Folha de S. Paulo, editor da Revista Época e editor-
executivo do Correio Braziliense, apontando como ocorreu o erro publicado pela Veja contra
Ibsen.
O artigo foi descoberto pelo jornalista da IstoÉ, Weiller Diniz, e faz revelações
importantes sobre o que realmente aconteceu na redação de Veja para que a capa ―Até tu
Ibsen?‖ fosse publicada. Portanto, na edição do dia 18 de agosto, IstoÉ traz reportagem com o
seguinte título de capa ―Massacrado‖ e revela como o ―mau jornalismo transformou US$ 1
mil em US$ 1 milhão e levou à cassação de um forte candidato a presidente do Brasil‖70
.
3. DEFINIÇÃO DE ESCÂNDALO NA PERSPECTIVA DE JOHN B.
THOMPSON
69
Principal publicação do Grupo Editorial Abril, a Revista Veja é líder de mercado, com tiragem média semanal
de 1,117 milhão exemplares (1999), respondendo, sozinha, por 8,2% da tiragem dos 129 títulos de revistas em
circulação no Brasil – 13.607 mil. No segmento de revistas de ―interesse geral e atualidades‖, Veja amplia ainda
mais sua liderança, com tiragem superior a soma de suas principais concorrentes: Época, da Editora Globo, com
486 mil exemplares por semana, e IstoÉ, da Editora Três, 354 mil exemplares por semana. (Mídia Dados –
Grupo de Mídia de São Paulo: www.gm.org.br). Veja é distribuída através de assinaturas (83%) e venda em
bancas (17%). (Meio&Mensagem: www.mem.com.br) 70
IstoÉ. Massacrado. 18 de agosto de 1991.
38
Trazer uma definição sobre escândalo será fundamental para a pesquisa. No
Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, por exemplo, escândalo é a causa ou resultado de
um erro ou pecado. Indignação provocada por mau exemplo. É um tumulto ou escarcéu. É um
caso em que, geralmente, personalidades conhecidas são criticadas ou acusadas pública e
persistentemente em razão de algum ato que fere as normas de conduta moral ou legalmente
vigentes. O vocábulo escândalo deriva do grego skandalon, que significa obstáculo.
John B. Thompson, elaborou uma teoria importante sobre escândalo. Em seu livro
―O escândalo político – poder e visibilidade na era da mídia‖ – ele trata o escândalo como
algo midiático que é revelado pela imprensa.
Escândalo é uma palavra que aparece frequentemente na imprensa e flui sem esforço
quando falamos, contudo, com muitas das palavras que usamos, suas origens são
obscuras e seu significado difícil de especificar. Como fariam muitos jornalistas, se
perguntados para apresentar uma definição de escândalo ou delinear as
características do fenômeno cuja existência eles afirmam revelar, eles que são tão
rápidos em apregoar um escândalo? Quantos leitores, ou espectadores, que são
bombardeados por um incessante fluxo de revelações escandalosas, poderiam, se
perguntados, explicar o que torna um acontecimento escândalo, ou o que distingue
revelações, que são escandalosas daquelas que não o são?71
O próprio Thompson reconhece que o conceito é de definição complicada. No
entanto, a palavra possui uma história longa, que pode se retraçada ao pensamento grego,
latino e judaico-cristão inicial72
. Em termos de suas origens etimológicas, a palavra significa
―queda moral ou uma pedra de tropeço‖.
No mundo político contemporâneo, diria que o escândalo surge quando se descobre
atos de corrupção (no sentido mais popular da palavra). Segundo Thompson, embora o
escândalo implique alguma forma de transgressão, fica evidente a qualquer observador que
existe grande diversidade e variabilidade cultural nos tipos de valores, normas e códigos
morais que são importantes: o que seria uma atividade escandalosa em um contexto –
digamos, aventuras extraconjugais entre membros da elite política73
.
Ele diz também que os escândalos são, muitas vezes, acontecimentos confusos não
apenas porque os valores e normas são comumente contestados, mas também porque no
desdobramento subsequente das ações e falas que forma um escândalo específico, uma
multiplicidade de valores e normas pode estar implicada74
.
71
THOMPSON, John B. O escândalo político – Poder e visibilidade na era da mídia. Petrópolis: Editora Vozes,
2002, p.38. 72
THOMPSON, loc. cit. 73
Ibid., p. 41. 74
Ibid., p. 43.
39
Qual seria um dos motivos que leva a imprensa a se interessar por escândalos
políticos? As notícias ‗escandalosas‘, envolvendo políticos, trazem grande repercussão. O
problema maior é que muitas vezes a divulgação desmedida, sem critérios e sem apuração
profunda, pode provocar danos, muitas vezes, irreparáveis para os acusados em questão.
As acusações contra o então ministro da Saúde do governo Fernando Collor, Alceni
Guerra, e, na época, o deputado federal Ibsen Pinheiro, responsável pela CPI que cassou o
mandato do então presidente da República, podem reforçar essa hipótese. E o que é preciso
para que um fato político possa se tornar escândalo? ―Para se tornar um escândalo, uma ação
ou acontecimento devem ser tornar conhecidos de outros, ou outras pessoas, devem acreditar
firme e plausivelmente que existam (na prática, a maioria dos escândalos implica uma
miscelânea de atos e suposições com mais ou menos fundamentos)‖ 75
.
A cobertura dos escândalos torna-se ―espetáculos da mídia‖. Não se trata somente de
investigar como ‗papel de mero fiscal dos atos políticos‘, em busca de um denominador
comum, mas de transformar os acontecimentos em uma trama novelesca com começo, meio e
sem muita importância para o fim.
O escândalo passou para a imprensa como um produto vendável76
. A afirmação pode
soar como uma crítica ao trabalho de apuração das notícias políticas feita por alguns órgãos de
comunicação. Pode ser. Mas é importante analisar a postura da mídia. Tentar descobrir se ela
exagera, comete falta de critério para compor o enredo de uma notícia, que é distribuída ao
público/leitor como produto vendável, mas sem qualquer tipo de controle de qualidade. É a
falta de um ―Procon‖. ―Se a notícia é de fato, uma mercadoria, o de um tipo especial e como
tal necessita ser tratada de uma forma igualmente especial, tanto em vista as inúmeras
consequência que pode acarretar consequências que assumem cada mais dimensões
planetárias‖77
.
Esse interesse na divulgação dos escândalos políticos também foi observado por Vera
Chaia. ―(...) Também não se pode deixar de considerar que existe um interesse comercial na
divulgação dos escândalos, já que esse fenômeno vende‖78
.
75
THOMPSON, 2002, p. 45. 76
Produto vendável aqui no sentido de proporcionar interesse ao leitor ou ao expectador que acompanha os
noticiários. Nesse caso, não se trata de anúncios e sim do material jornalístico produzido. Os autores utilizados
nesse contexto (Vera Chaia e John B. Thompson) vão tratar de notícia como mercadoria no sentido de trazer
interesse. O contexto aqui é que quanto mais ‗sensacionalista‘ a notícia, mais interesse ela trará para o leitor. E,
conforme a perspectiva de Thompson, os escândalos políticos trazem grande interesse do público. 77
FONSECA, Francisco. Mídia e democracia: falsas confluências. Revista de Sociologia e Política. nº 22,
junho/2004, p. 15. 78
CHAIA, Vera; TEIXEIRA, Marco Antonio. Democracia e Escândalos Políticos. Revista São Paulo em
Perspectiva, vol. 15, nº 4, São Paulo: Fundação Seade, outubro - dezembro 2001.
40
Vera Chaia, na verdade, estava se inspirando em Thompson que analisa a questão:
Como se deu essa conexão entre escândalo e mídia? Que há no escândalo que se
presta a uma exibição na/e através da mídia, e o que há nela que facilite a ocorrência
do escândalo? Há certamente, uma estreita afinidade entre escândalo e mídia que foi
explorado pelos provedores da palavra impressa desde a era dos panfletos e dos
libelos: o escândalo vende79
.
E qual seria o problema de a imprensa se interessar em divulgar esses escândalos?
Nenhum, se não fosse pelo ‗massacre‘ em algumas coberturas, a falta de critério de apuração,
a pré-condenação de atores políticos sem a presunção da inocência.
Muitas vezes deliberadamente pode existir ‗uma linha de montagem dos escândalos‘.
Mário Rosa diz que:
(...) um engenheiro que cometa um erro grave numa construção corre o risco de ver
seu nome estampado nos jornais e sua reputação arruinada. Um médico que
prejudique um paciente pode virar notícia e ter de fechar o consultório. Um
restaurante que desrespeite normas sanitárias será exposto à execração e ficará sem
clientes. Uma das lógicas que move a imprensa ao noticiar esses fatos é não apenas
denunciar o erro, mas, sobretudo, coibir outros no futuro. Entende-se que a
exposição pública de erros profissionais e falhas de conduta funciona como uma
espécie de punição, desestimulando futuras incorreções e beneficiando assim o
interesse público. Jornalistas que cometem erros, todavia, estão quase sempre
imunes a esse risco: não correm o risco de serem expostos publicamente. No
máximo são demitidos, num comportamento que se assemelha ao de outros grupos
muitas vezes acusados de corporativistas (... )‖80.
Veja o que diz outro importante jornalista acostumado a coberturas políticas. ―A
pressa em perseguir os furos, o receio de que a concorrência se antecipasse estimulou o estilo
de ‗atire primeiro, pergunte depois‖ 81
.
A última característica do escândalo tem a ver com as reputações dos indivíduos
implicados. Sendo que os escândalos envolvem a revelação de atividades até então
encobertas, transgridem determinados valores ou normas e cuja revelação provoca um
discurso infamante de vários tipos, eles podem prejudicar seriamente (e muitas vezes de fato
prejudicam) a reputação dos indivíduos cujas ações se colocam no centro do escândalo... Mas
o prejuízo ou a perda de reputação é um risco que está sempre presente quando um escândalo
surge e se desdobra82
.
79
THOMPSON, 2002, p. 59. 80
ROSA, Mario. A era do escândalo: lições, relatos e bastidores de que viveu as grandes crises de imagem. 4ª
edição. São Paulo: Geração Editorial, 2007, p. 451 - 452. 81
NASSIF, Luís. O jornalismo dos anos 90. Editora Futura, 2003, p.31. 82
THOMPSON, op. cit., p. 49.
41
Quando um escândalo vem à luz, ele pode se espalhar rápido e incontrolavelmente
porque os atos de fala e as imagens que o sustentam podem ser transmitidos a longas
distâncias instantaneamente (ou de maneira praticamente instantânea) e porque as redes de
comunicação são tão ramificadas e complexas que é extremamente difícil conter revelações
prejudiciais83
.
Apesar de erros cometidos pela mídia, Thompson deixa clara sua posição de não
crucificar os jornalistas e os meios de comunicação em sua luta diária por tornar públicos os
escândalos políticos.
Para ele:
―as consequências de um escândalo político não são necessariamente deletérias.
Jornalistas sempre contribuem para a vida pública ao investigar e revelar casos de
corrupção e abuso de poder. Criticar isso é ignorar o importante papel que certos
escândalos tiveram para estimular o debate sobre os padrões de conduta na vida
pública‖84
.
Thompson lembra que a liberdade de imprensa deve ser contrabalançada com a
responsabilidade de não se expor a vida privada de uma pessoa à execração pública, se isso
nada vai acrescentar ao debate político.
Para ele, é importante distinguir a importância política de escândalos financeiros e de
poder da insignificância de escândalos sexuais, por exemplo. Enquanto os primeiros podem
oferecer uma valiosa contribuição para a discussão pública sobre o poder, é bem menos claro
se os segundos têm algo a oferecer. ―O tempo da mídia só existe na mídia: uma sucessão de
presentes, o ―presentismo‖... Essa voracidade pela última notícia cria grandes dificuldades
para quem está no olho do furacão‖85
.
Não há dúvida que na opinião pública já se instalou um clima de expectativa para
saber o desfecho dos escândalos. Os atores políticos envolvidos parecem estar, cada vez mais,
envolvidos ‗num mar de lamas‘. E novos fatos, referendados e divulgados pela imprensa,
complicam ainda mais a situação dos acusados. Transformam-se numa ―bola de neve‖. Ao
fim, tanto a imprensa como a população querem respostas para os escândalos: a punição. Para
garantir o sucesso da empreitada, capitaneada pelo poder midiático, os meios de comunicação
– responsáveis pela cobertura dos atos políticos - lançam mão de todos os recursos
83
THOMPSON, 2002, p. 49. 84
THOMPSON, loc. cit. 85
ROSA, 2007, p. 42.
42
disponíveis no espectro da linguagem jornalística, desde os mais elementares até os mais
sofisticados elementos retóricos, estéticos e visuais, como charges e outros meios.
―Nesses casos mais complexos, o desdobramento do escândalo se torna um jogo de
gato e rato em que, depois de cada negação, as apostas vão ficando mais altas, e onde as
transgressões de segunda ordem podem assumir importância bem maior do que a ofensa
original‖86
.
No entanto, comprovadamente não existe um certo cuidado por parte da grande
imprensa em revelar esses episódios, o que se traduz muitas vezes em injustiças. Os acusados
passam a ser réus já condenados implacavelmente à luz da ―justiça da imprensa‖ – aquela que
condena, sem antes se certificar do que realmente ocorreu.
Ao contrário de um erro de um engenheiro, ou outra profissão qualquer, o erro de um
jornalista em uma cobertura política de escândalos pode acarretar muitos danos à imagem
pública. Os jornalistas acreditam que exercem, sobretudo, uma função de caráter público e
coletivo, de defesa do interesse público. Mas, que muitas vezes acaba sendo de interesse
particular.
Mas em maior ou menor grau, jornalistas sentem-se no exercício de uma missão
social, combatendo e corrigindo vícios (por intermédio da denúncia). Esse é um dos
aspectos do super-homem mais belo dessa profissão... Mas, como em tudo, há um
outro lado perigoso. Ter um superpoder pode levar, em certas situações, a uma falta
de percepção da intensidade desse poder. Muitas vezes os jornalistas não sabem o
poder que têm, nem as consequências de sua força. Um ataque da imprensa poderá
provocar a destruição de uma marca ou de um líder, mas os jornalistas atuam numa
faixa de poder tão especial que tendem a achar que o estrago que podem causar não
é tão devastador assim87
.
Francisco Fonseca ratifica o que diz a teoria de Thompson sobre os escândalos
políticos. Para ele, há um crescimento de coberturas da mídia e um interesse grande pela vida
privada política.
(...) a exposição da vida privada de personagens públicos vem, frequente e
crescentemente, ocasionando danos morais às suas imagens, levando inclusive à
interrupção de carreiras e ao estigma social: é por isso que a figura dos paparazzi é
emblemática tanto da invasão da privacidade quanto do advento de uma sociedade –
nesse sentido global – ávida pelo espetáculo, inclusive no âmbito político. Embora
não adotamos aqui pressupostos pós-modernos, que imaginam as sociedades
contemporâneas como ‗simulacros‘ a ideia de ―espetacularização‖ da política e da
sociedade – que se distingue do conceito de simulacro –, por meio da mídia, é um
elemento crucial ao poder dos meios de comunicação. Ocorre, assim, uma
combinação, muitas vezes propositada, entre o ―fato‖ e a versão, o ―real‖ e o
imaginário, o ―acontecimento‖ e a ficção, em prejuízo de algo e/ou alguém
86
THOMPSON, 2002, p. 41. 87
ROSA. 2007, p. 269-270.
43
(indivíduo ou coletivo). Portanto, essa confusão da mídia é sob todos os aspectos,
perniciosa à sociedade democrática88
.
Mas, um jornalista pode cometer um erro involuntário? Ou dolosamente alterar em
linhas gerais uma notícia que está produzindo com algum propósito?
Como base os argumentos de Mário Rosa, não seria forçoso dizer que a mídia pode
atuar de forma ‗despretensiosa‘, sem temor do que pode ocorrer caso a notícia saía deturpada
no dia seguinte. Pode ―virar-se‖ o rosto para preceitos do Código de Ética dos Jornalistas
Brasileiros. ―A divulgação da informação precisa e correta é dever dos meios de comunicação
e deve ser cumprida independentemente da linha política de seus proprietários e diretores ou
da natureza econômica de suas empresas89
‖.
No entanto, apesar do Artigo 1º, o que pode predominar é a clara política-ideológica
do meio de comunicação pelo qual o jornalista trabalha. Afinal jornal é uma empresa
capitalista que visa lucro e, por isso, detém estratégias. Então a liberdade do jornalista para,
ou é podada, na ideologia da empresa para a qual trabalha. ―(...) a liberdade do jornalista,
enquanto indivíduo, de expressar suas próprias ideias ou relatar o fato objetivo como tal ele
presenciou encontra obstáculos nas individualidades situadas hierarquicamente acima dele na
empresa jornalística‖90
.
O jornalista então estaria fadado a perder sua liberdade de divulgar com sua
consciência o que se chamaria da objetividade jornalística? Ou seja, as notícias, por causa
dessa tendência ideológica, sempre serão abordadas com ‗manchas‘, com vícios de
manipulação.
De acordo com Luiz Martins da Silva, são poucas as empresas com instâncias
formais e sistemáticas de controle do rigor na apuração, codificação e editoração da notícia.
Segundo com ele, pouquíssimos jornais brasileiros adotam a instituição do
ombudsman ou de outros mecanismos de atendimento do leitor e de intermediação de queixas
e sugestões. Para Fonseca, é paradoxal observar que justamente as empresas de comunicação
sejam as menos controladas (em termos democráticos), em relação aos outros tipos de capital.
88
FONSECA, Francisco. Mídia e democracia: falsas confluências. Revista de Sociologia e Política. nº 22,
jun/2004, p. 15. 89
Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, art. 1º, I. 90
FILHO, Adelmo Genro. O segredo da pirâmide – para uma teoria marxista do jornalismo. Porto Alegre:
Tchê, 1987, p. 8.
44
CAPÍTULO 1 – PERÍODO HISTÓRICO EM QUE OS ESCÂNDALOS SE
DERAM
1.1. Governo Collor e a crise política
Os escândalos (Alceni e Ibsen) ocorreram no início da década de 1990. Era um período
de redemocratização do País. Depois do regime militar, ocorreram em 1989 as primeiras
eleições diretas com a vitória de Fernando Collor de Mello.
Maria Antonieta P. Leopoldi defende que os anos 90 foram os que trouxeram maior
transformação no Brasil em todo o século XX91
.
Se no Brasil era período de redemocratização, fora dele a década de 90 começou com
o colapso da União Soviética e o fim da Guerra Fria, sendo esses seguidos pela consolidação
da democracia, globalização e capitalismo global. Fatos marcantes para a década foram a
Guerra do Golfo e a popularização do computador pessoal e a Internet.
Na verdade, essa década no Brasil ‗começa‘ a fermentar um ano antes com a eleições
de Fernando Collor de Mello ao posto de presidente.
O sucesso eleitoral de Collor se deve em grande parte à elaborada estratégia de
marketing e ao fundamental papel da televisão. Alguns comentaristas argumentam
que a vitória de Collor nas urnas não seria possível sem a interferência da Rede
Globo, com destaque para um resumo do principal debate entre Collor e Lula,
veiculado no Jornal Nacional, cuja edição beneficiaria Collor. A influência da Globo
nas eleições de 1989 foi tema do documentário "Beyond Citizen Kane" (Muito Além
do Cidadão Kane), produzido por Simon Hartog, em 1993 e tratada na biografia do
jornalista Roberto Marinho, escrita por Pedro Bial, em que o autor relata que o
patriarca das Organizações Globo fixou-se inicialmente em Jânio Quadros como o
candidato a presidente. Contudo, como o veterano político sul-mato-grossense
radicado no estado de São Paulo vivia o acaso de sua carreira política, Marinho fez
nova opção pelo então governador paulista Orestes Quércia, considerado um nome
mais palatável que os de Covas e de Ulisses Guimarães. Entretanto, como as
articulações em torno de Quércia malograram, e tanto Covas quanto Guimarães
lançaram suas candidaturas em um cenário já favorável a Lula (uma ameaça
socialista aos interesses da sociedade) e Brizola (rejeitado por Marinho devido a
possibilidade de revogar sua concessão de TV caso eleito), a alternativa de Marinho
foi apoiar Fernando Collor – opção que, com o concurso de funcionários do canal,
teria resultado na edição tendenciosa do último debate presidencial na TV Globo, de
acordo com o diretor de Jornalismo à época, Armando Nogueira, embora a emissora
e o próprio Collor neguem que tenha havido má-fé no caso92
.
É importante falarmos de Fernando Collor porque um dos ministros dele na época foi
alvo de escândalos retratados nesse trabalho. Collor candidatou-se à presidência da República,
91
LEOPOLDI, Maria Antonieta P. Dossiê Brasil: Anos 90. Revista de Sociologia e Política. nº 18, junho de
2002. (http://www.scielo.br/pdf/rsocp/n18/10699.pdf) 92
Wikipedia (wikipedia.org). Acesso às 00h25, 20 de fevereiro de 2012.
45
em 1989, pelo PRN (Partido da Renovação Nacional) e derrotou Luiz Inácio Lula da Silva, do
PT (Partido dos Trabalhadores), no segundo turno das primeiras eleições diretas para
presidente do Brasil. Levou o rótulo de ‗caçador de marajás‘ pela própria imprensa que
ajudou a elegê-lo. Assumiu o cargo adotando medidas econômicas drásticas e impopulares,
como o bloqueio dos saldos das contas bancárias de pessoas físicas e jurídicas. O "confisco",
como ficou conhecida a medida, foi uma sugestão da então ministra da economia, Zélia
Cardoso de Mello. No entanto, sua gestão foi marcada por escândalos. Um parente próximo,
seu irmão Pedro Collor, foi um principal denunciador e responsável para a sua queda.
As denúncias ganharam força, em abril de 1992, quando Pedro Collor revelou a
existência do "esquema PC" de tráfico de influência e irregularidades financeiras, organizado
por Paulo César Faria, ex-tesoureiro da campanha.
Em 2 de outubro de 1992, foi afastado temporariamente da presidência da República,
em decorrência da abertura do processo de impeachment na Câmara dos Deputados.
Renunciou ao cargo de presidente em 29 de dezembro do mesmo ano - horas antes de ser
condenado pelo Senado por crime de responsabilidade. Teve seus direitos políticos cassados,
tornando-se inelegível por oito anos. Em seu lugar, assumiu o então vice-presidente, Itamar
Franco.
Carlos Melo que, faz um importante estudo sobre o governo Collor, diz que ele
ganhou as eleições no período da redemocratização porque ―demonstrou qualidades políticas,
porque soube aproveitar as oportunidades oferecidas pelas circunstâncias‖93
.
Mas, de certo Collor iniciou seu governo com uma autossuficiência que desafiava:
congresso, mídia, oposição, universidades, esquerda e direita. Collor chega ‗ferindo‘
interesses. Na verdade, ele se elegeu com um virulento discurso moralista ―o caçador de
marajás‖. Xingou políticos de corruptos com dedo em riste e desafiou até oligarquias – a que
ele também pertencia.
Na opinião de Carlos Melo,
o governo Fernando Collor de Mello demarca o início de um processo de
transformações profundas, sejam elas políticas, econômicas ou sociais. É um marco,
sem dúvida, pois seu governo desatou os nós que prendiam o desenvolvimento de
um processo inexorável. É forçoso admitir que seu ímpeto e disposição pessoal
foram importantes no embate de interesses que, resolvido, fez abrir a economia. A
relativa inconsequência de seus atos e a destemperança de seu gênio – a ―coragem
dos muitos ignorantes‖, como assinalou o ex-ministro Maílson da Nóbrega – deram
impulso ao processo de modernização da economia e da sociedade. Seu acaso
político, ironicamente, fortaleceu as instituições94
.
93
MELO, 2007, p. 2. 94
Ibid., p. 8.
46
Carlos Melo analisa, com muita propriedade, a ascensão e queda de Fernando Collor
utilizando duas características idealizadas por Nicolau Maquiavel ―virtù e fortuna‖. Tudo
dentro de um ―reino‖ de instabilidade que é conferida à política.
Virtù (...) é a qualidade do homem que o capacita a realizar grandes feitos, é o poder
humano de efetuar mudanças e controlar eventos, enfim, pré-requisito de liderança
de um príncipe ou um governante.
(Fortuna é a) sorte (boa ou má), acaso, ocasião, oportunidade (propícia ou
desfavorável). Como palavra isolada nada tem a ver com virtù, mas, tomada como
qualidade do príncipe, é o complemento da virtù para o êxito deste95
.
Maquiavel reforça sua tese:
Todo príncipe (... ) conquista um altíssimo conceito e, contanto que sejam realmente
notória suas qualidades e a reverência com que lhe tratam seus súditos, um tal
conceito inibe quaisquer intentos conspirativos, como dificulta todo ataque vindo do
exterior; afinal um príncipe deve considerar ambas as ameaças: a interna, com
origem nos súditos, a externa, com origem nos potentados estrangeiros96
.
Ainda em ―O príncipe‖, Maquiavel sugere que todos aqueles ―governantes‖, que um
dia foram cidadãos e passaram à condição de príncipe, parecem ter mais sorte.
Aqueles que, mercê simplesmente da fortuna, passam de simples cidadãos à
condição de príncipes, é com pouca dificuldade que a alcançam, mas com muita que
a mantêm: não enfrentam obstáculos ao longo da estrada, visto que voam...97
Mas, mesmo diante da popularidade, Collor enfrentou, por parte de seus adversários
críticas ferozes, sobre sua forma de atuar. Na política há um constante equilíbrio e
desequilíbrio.
Shakespeare e Maquiavel se aproximam ao constatar que quanto mais as ações dos
homens se voltam ao poder político, ou são atraídas por este, mais perdem o controle
das suas ações, até penetrarem naquele âmbito no quais as paixões, ou a razão, podem
ser subjugadas irremediavelmente (...)
(...) Como sucessão de conjunturas que avançam em equilíbrio-desequilíbrio, a
política torna-se uma área na qual irrompe com frequência a tragédia, pela ocorrência
de acontecimentos contrários e porque aí convivem possibilidades e impossibilidades.
95
MEGALE, Francisco Januário. O Príncipe de Maquiavel: roteiro de leitura. São Paulo: Editora Ática, 1993,
p. 51-52. 96
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Editora L&PM POCKET, 1998, p. 89. 97
Ibid., p. 29.
47
A relação entre liberdade e poder, como já indicado anteriormente, serve para elucidar
parte desta tragédia que atinge os súditos, os governados98
...
Essa constante instabilidade é mostrada também por Thomas Hobbes de Malmesbury.
O autor sugere, no entanto, que essas tensões políticas existem por causa da própria natureza
do homem e mostra que o ‗estado de natureza‘ é ‗estado de guerra‘ em que os homens
competem entre si em difícil sociabilidade. É impensável a harmonização. Hobbes nos traz a
certeza de que a humanidade sempre ‗estará na beira do abismo‘, sempre em estado de guerra.
Para ele, portanto, não é possível confiar no homem.
Portanto tudo aquilo que é válido para um tempo de guerra, em que todo homem é
inimigo do todo homem, o mesmo é válido também para o tempo durante o qual os
homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua
própria força e sua própria invenção. Desta guerra de todos os homens contra todos
os homens também isto é consequência: que nada pode ser injusto. As noções de
bem e de mal, de justiça e injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder
comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça. Na guerra, a força e a fraude
são as duas virtudes cardeais 99
.
Carlos Melo, por exemplo, afirma que o ―jogo de habilidade em duas frentes – da
moralidade à modernidade – garantiu a Fernando Collor a viabilidade eleitoral que sua
história política de até então talvez sequer imaginasse100
.
Diz também que,
desde Maquiavel, sabe-se que, pelo menos em política, não há predestinação.
Parafraseando Albert Einstein, dir-se-ia que também o político não joga dados. A
sorte é construída no compasso e descompasso das relações sociais. Cabe ao político
a refinada percepção e antever a direção dos ventos101
.
Para ele, inegavelmente, ―fez a roda da fortuna girar a seu favor, ainda que se possa
argumentar que, como todo homem, nem mesmo ele soubesse a história que efetivamente
fazia‖102
.
Bolivar Lamounier faz também uma análise do processo político ocorrido ao longo do
governo Collor103
. Ele identifica um período de "ditadura romana", no qual a legitimidade da
98
CHAIA, Miguel. A Natureza da Política em Shakespeare e Maquiavel. Revista Estudos Avançados. nº.23, São
Paulo: IEA-USP, 1995. 99
HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Abril Cultural, 1973. 100
MELO, 2007, p. 197. 101
Ibid., p. 198. 102
MELO, loc. cit. 103
LAMOUNIER, Bolívar. Antecedentes, riscos e possibilidades do governo Collor - De Geisel a Collor: O
balanço da transição. São Paulo: IDESP, 1990.
48
eleição direta para a Presidência, a iminência da hiperinflação (a inflação corria a 80% ao
mês) e a catástrofe que ocorreria em caso de desaprovação das medidas anti-inflacionárias
propostas tornaram o Congresso Nacional refém do Executivo e "afrouxaram" os requisitos de
constitucionalidade das medidas apresentadas.
Isso teria ocorrido pelo menos no mês que inaugura o mandato presidencial. Já no
primeiro dia de governo, Collor anunciou 22 medidas provisórias, que incluíam uma
reforma administrativa, a extinção de entidades públicas "desnecessárias", a
privatização de empresas estatais, abertura externa da economia e uma redução de
80% da liquidez da economia. Esta última consistiu na transformação de aplicações
financeiras e de parte dos depósitos bancários e de poupança em depósitos no Banco
Central indisponíveis por um ano e meio, sendo depois liberados, com juros, em
doze parcelas mensais. Um mês depois, as medidas provisórias estavam convertidas
em lei104
.
Este sucesso inicial trazia, porém, um perigo inerente à dinâmica do sistema
presidencialista brasileiro. Afastado o risco da hiperinflação e aprovadas as medidas propostas
pelo governo, o Congresso saiu da condição de refém, o Judiciário ganhou mais liberdade
para avaliar a constitucionalidade das iniciativas governamentais e a capacidade de condução
da Presidência passou a depender do poder que a Constituição lhe conferia. O fracasso na luta
contra a inflação, a recessão prolongada, uma série de escândalos de corrupção envolvendo
membros do governo e o estilo pessoal de Collor exercer o poder produziram uma redução
drástica do prestígio do presidente junto à população.
Para Carlos Melo, Collor, como se fosse um jogo, aventurou-se com ímpeto e
disposição. Assumiu tão bem o papel de ―caçador de marajá‖, estadista, modernizador, que se
tornou o líder encarnado que se procurava havia tempos, de modo a agir sobre os entraves que
paralisavam o País105
.
Mas, o autor faz um alerta:
É verdade que o impeachment teve forte carga simbólica e, ao longo do tempo,
poderá vir a ser compreendido como um símbolo de mudança na política. Ainda
assim, o que se quer assinalar é que o estilo de liderança política de Collor não
representa nada de novo. Ao contrário, vincula-se a mais anacrônica tradição
nacional.106
Nesse jogo, o poder da grande imprensa toma ‗corpo‘ e ganhou força na hora de
104
Lamounier, 1990, p. 88-91. 105
MELO, 2007, p. 199. 106
Ibid., p. 9.
49
decidir publicizar os atos de Fernando Collor que, por sinal, teve, primeiramente, uma relação
próxima e depois distante com a mídia.
Citando Mário Sérgio Conti, no Livro ―Notícias do Planalto‖, Melo afirma que Collor
fazia política, gerando notícia107
.
Mas, com base em Carlos Melo, há uma hipótese de que os meios de comunicação
atuaram, ainda que não articuladamente, as de forma deliberada na disposição de contribuir
com o impeachment de Fernando Collor de Mello.
Em depoimento lacônico a Mário Sérgio Conti, Paulo César Farias foi revelador ao
admitir a aventura e a alucinação em que aquele grupo se meteu: ―O ódio é a droga
mais pesada que existe, o poder enlouquece‖, disse. E explicou: ―Essa foi a loucura:
querer uma rede de televisão para enfrentar a Globo, uma companhia de aviação
para enfrentar a Varig, um partido maior do que o PMDB, o PFL e o PT‖108
.
Ou seja, é possível que Collor buscasse independência dos meios de comunicação.
O interesse de Paulo César Farias e do grupo de Collor (Paulo Octávio e José Carlos
Martinez) em adquirir empresas de comunicação (da Tribuna, de Alagoas, à Rede
Manchete, passando pelo Jornal do Brasil e pela Rede OM, de Martinez) permite
supor que, talvez, fosse esse o instrumento de poder, o perseguido para a devida
efetivação do projeto: um império de comunicações109
.
De acordo com Carlos Melo, a história do Brasil está repleta de casos e personagens
envolvendo os meios de comunicação110
.
Ele lembra, por exemplo, de Assis Chateaubriand.
O ―doutor Assis‖, uma espécie de ―rei do Brasil‖, desestabilizava governos, assim
como ajuda a erguê-los e a derrubá-los; leis foram feitas em seu interesse, a Lei
Teresoca; pelas mãos de Juscelino Kubitschek e de Tancredo Neves, conseguir
mudar o calendário eleitoral para que disputasse e vencesse eleições para o Senado.
Para o bem (MASP) ou para o mal, seu poder de coação era enorme111
.
Portanto, sem apoio popular, sem a maioria no Congresso e sem a mídia, Collor
acabou sucumbindo.
107
MELO, 2007, p. 112. 108
Ibid., p. 190. 109
Ibid., p. 191. 110
MELO, loc. cit. 111
Ibid. apud MORAIS, Fernando. Chatô: O rei do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 410, 565-
575.
50
No início, é bom lembrar, que além de ter sua imagem atrelada a ideia de audacioso e
ousado, Fernando Collor contava com o apoio tácito da opinião pública brasileira que estava
descontente com o governo de José Sarney.
De acordo com Mário Sérgio Conti, o dono das Organizações Globo procurava na
época um presidente112
. Collor, por sua vez, construía sua imagem de político corajoso e
destemido.
No dia 4 de abril de 1989, é que Roberto Marinho decidiu por Collor. Ele assinou um
editorial em O Globo intitulado ―Convocação‖. Segundo Conti, nele advogou que os líderes
do PMDB e do PFL optassem por um nome de consenso, ―um candidato de renovação que
não se enrede em manhas e combinações inaceitáveis‖113
.
Um candidato que não fuja de temas controversos e não faça do subterfúgio a
suprema sabedoria política. Um candidato, final, com uma abordagem moderna e otimista dos
problemas brasileiros, que devolva à Nação o direito de sonhar com o futuro. Esse candidato,
prosseguiu, ofereceria à nação ―uma alternativa melhor que a de obrigá-la a escolher entre um
projeto caudilhesco-populista e um outro meramente contestatório‖114
, ou seja, Brizola e Lula.
De acordo com Conti, as famílias Collor e Marinho eram próximas. Leopoldo Collor
de Melo, o irmão mais velho de Collor, chegou a trabalhar como vendedor de anúncios do
Departamento Comercial das Organizações Globo e fez carreira até chegar ao comando da
Diretoria Regional mais poderosa da empresa. Era um cargo político, de representação, que
obrigava Leopoldo a falar ao menos uma vez por semana, pelo telefone, com Roberto
Marinho115
.
E desde sua ideia de sair candidato a presidente, em Hong Kong, no dia 27 de
dezembro de 1987, até a receber apoio oficial da Globo, dois anos depois, Collor reforçou a
construção de sua imagem de ‗salvador da pátria‘.
Mas, para isso, Collor contou com a ajuda de seu primo, Marcos Antonio Coimbra,
que se encarregou de organizar uma série de pesquisas de opinião sobre a imagem do futuro
presidente.
Naquela ocasião, lembra Conti, o problema social mais grave era a corrupção, da
qual o ‗marajaísmo‘ era um elemento importante.
112
CONTI, Mario Sérgio. Notícias do Planalto: A imprensa e Fernando Collor. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994, p.113. 113
Ibid., p. 154. 114
CONTI, loc. cit. 115
Ibid., p. 121.
51
Como candidato à Presidência, dois terços dos eleitores queriam alguém indignado
com a roubalheira. Que tivesse ímpeto e energia para tirar o Brasil do
subdesenvolvimento. Que fosse corajoso e não entrasse no jogo tradicional da
política. Não pertencesse ao sistema de poder e tivesse passado limpo. Collor,
esclareceu Marcos Antônio Coimbra, era apenas um dos candidatos que poderia
preencher esses requisitos116
.
Desde o final de 1988, Collor estava decidido a deixar o governo de Alagoas para
disputar a Presidência. Na época, Marcos Coimbra achava que Collor deveria ter atingindo
mais de 10% da predileção do eleitorado para que sua candidatura fosse viável.
Mas, havia uma outra recomendação a Collor. Coimbra disse, na época, que embora
as pesquisas fossem favoráveis, havia um perigo: a candidatura de Silvio Santos. ―Você
praticamente está no segundo turno, Fernando, e só perde se o Silvio Santos concorrer‖117
.
Carlos Melo, ratifica essa tendência da época.
À parte dos discursos e das promessas de campanha, o maior perigo a que a
candidatura de Collor esteve exposta durante o primeiro turno foi a candidatura Silvio Santos,
considerada o ―fato novo‖ e a bomba daquela eleição118
.
Segundo Conti, tão logo recebeu a informação, Collor viajou a São Paulo e foi à casa
do empresário para conversar sobre o assunto e recebeu a negativa da candidatura de Silvio.
Durante a campanha, Collor não esteve em nenhum debate no primeiro turno. Era o
candidato que mais poderia perder se participasse deles. Por estar na liderança nas pesquisas,
seria questionado com maior agressividade.
Só concedeu entrevistas individuais nos programas de televisão voltados para as
eleições, como o Palanque Eletrônico, da Rede Globo. Collor não gostou da maneira como a
rede o tratou no programa. Enquanto Roberto Irineu Marinho recebeu Leonel Brizola na
chegada para a sua entrevista, quando Collor foi ao Palanque Eletrônico nenhum membro da
família proprietária apareceu para recepcioná-lo119
. A estratégia deu certo o levando a vitória
nas urnas.
Collor era mais um da família a ocupar um cargo político importante. Ele pertencia a
uma família com tradição na participação política. Seu pai, Arnon de Mello, fora senador pelo
estado de Alagoas e levou consigo, para o Senado, a violência típica da política nordestina.
Em 1960, por engano, baleou um ex-senador, que estava de visita ao plenário do Senado,
tentando acertar um senador que era seu desafeto. Essa era a política do coronelismo, que se
116
CONTI, 1994, p. 97. 117
Ibid., p. 122. 118
MELO, 2007, p.155. 119
CONTI, op. cit., p. 248.
52
enraizou no Brasil com a Proclamação da República, em 1889, e que perdurou até meados da
década de 1945.
Na região Nordeste, ao contrário da região Sudeste, essa prática não pereceu com a
posse de Getúlio Vargas. No Nordeste brasileiro, o uso da coação como meio de
convencimento tornara-se prática habitual. Enquanto isso, na região Sudeste, a política
utilizava meios mais eficazes e mais ―politicamente corretos‖ para atingir esse mesmo fim. A
maneira mais forte e mais eficaz de atingir esse objetivo era a mídia.
Era como se Fernando Collor tivesse surgido como um elo entre duas visões. Passara
a maior parte de sua vida escolar longe de Alagoas. Sua juventude, em grande parte, foi
vivenciada tanto no Rio de Janeiro como em Brasília. Collor flertava, desde a juventude, com
a nova forma de fazer política. Essa aliança entre o ―velho‖ (representado pela forma
tradicional de fazer política das famílias nordestinas, entre elas a família Collor de Mello) e o
―novo‖ (marcado pela utilização da comunicação de massa para fazer política) é o que faz
surgir a figura de Fernando Collor de Mello120
. Esses fatores fazem surgir em Fernando
Collor uma dissociação de identidades que parecem incompatíveis, porém, com o passar do
tempo, essas duas vertentes ideológicas, que aparentemente são totalmente distintas,
convergem-se formando a imagem de um candidato perfeito121
.
Mas, segundo Carlos Melo, o grau de atrito que um projeto real de transformação
despertaria requereria mais do que uma base parlamentar casual e sujeita à pressão. Seria
necessários, segundo ele, adesão e comprometimento político com o projeto, o que não
poderia se esperar de setores parlamentares tão arcaicos como os interesses anacrônicos que
se pretendia extirpar122
.
No entanto, apoiado – já no primeiro turno, mas, sobretudo, no segundo – por forças
conservadoras, que contra Lula se aproximaram de sua candidatura, Collor viu-se
afastado de setores de centro e de centro-esquerda, com quem poderia estabelecer
acordos políticos menos suscetíveis a pressão fisiológica e oligárquica. Mas o
presidente não admitia negociar e nem fazer concessões. Ficava no meio do
caminho: sem acordos políticos e sem o ―é dando que se recebe‖, de Sarney. Muito
bem: de concreto, fica o fato de que Collor errou ao desprezar o Congresso
Nacional. No mínimo, pode-se dizer que faltou uma análise clara a respeito da
importância do Congresso na democracia em geral e no presidencialismo de
coalizão nacional, em particular. A falta de articulação nesta área, passada a fase da
popularidade, causou-se lhe enormes contratempos123
.
120
PEREIRA, Valter. A imprensa e Fernando Collor: A convergência entre o Moderno e o Arcaico. Site:
Klepsidra (www.klepsidra), 2012. 121
Ibid., p. 5. 122
MELO, 2007, p.178. 123
MELO, loc. cit.
53
Quando surgiram escândalos em seu governo, Collor ficou sem apoio. Aliás, um
personagem importante no governo Collor foi responsável por questionamentos por parte da
imprensa e também do próprio Congresso: Paulo César Farias.
A ligação entre PC, como era conhecido, e Collor se fortalecera, afirma Conti, desde
a posse e funcionava como uma máquina. Sua energia eram os milhões de dólares que PC
conseguia de empresários para que o governo os beneficiasse. As correias de transmissão da
máquina eram a Empresa de Participação e Construções (EPC) e as companhias de aviação de
Farias124
.
Segundo Conti, com sede em Maceió, apenas doze funcionários, nenhum deles com
curso superior, a empresa faturou 55 milhões de dólares entre 1990 e 1992. A EPC não
prestava serviço algum. Apenas recebia dinheiro de grandes empresas, principalmente
empreiteiras.
Operava com notas fiscais fraudadas, sonegava impostos e usava cheques de
correntistas-fantasmas. Mais de trinta empresas fizeram pagamento à EPC. A
Norberto Odebrecht deu 3,2 milhões de dólares; a empreiteira Andrade Guitierrez,
1,7 milhão de dólares; as usinas de Lyra, 641 mil dólares; a Construtora Tratex, 293
mil dólares; a Votorantim, 250 mil dólares; a Cetenco Engenharia, 200 mil
dólares125
.
De acordo com Carlos Melo, somada a pouca importância que deu a formação de
uma base sólida, na raiz dos problemas responsáveis por sua queda, estão às relações
perigosas que manteve com o grupo de Alagoas. A mentalidade da província das Alagoas
acabaria por demarcar a índole do governo126
. Além de PC Farias, Melo cita, Cláudio Vieira –
secretário particular de Collor e amigo pessoal desde a época de A Gazeta de Alagoas – como
os dois responsáveis pela decomposição moral do governo.
De acordo com o noticiário da época, conta Melo, acostumados com a província de
Alagoas, seus auxiliares teriam se lançado com voracidade ímpar ao butim. Mesmo aqueles
que não eram do Estado teriam sentido o caminho livre para a pilhagem. Paralelamente, às
denúncias de corrupção ativa, descobria-se a megalomania do projeto pessoal. Isso é bastante
comum àqueles a quem tudo deu certo na vida e nunca conheceram reveses127
.
124
CONTI, 1994, p. 531. 125
CONTI, loc. cit.. 126
MELO, 2007, p.186. 127
Ibid., p. 188.
54
O projeto de poder do grupo de Collor, que tivera início em 1986, que incluía a
formação de um império midiático128
, começou a ruir com o surgimento de escândalos.
Melo, em seu livro, cita alguns: contratação ilegal de agências de publicidade de
modo a favorecer as agências que haviam trabalhado em sua campanha; beneficiamento à
VASP (privatizada pelo governo paulista e adquirida por Vagner Canhedo) no financiamento
de dívidas junto ao Banco do Brasil; compras superfaturadas de cestas básicas pela LBA
envolveram Rosane Collor em mais um escândalo; fraudes na Previdência Social e a
confissão do ministro Antônio Rogério Magri de que aceitara receber propina; Alceni Guerra,
ministro da Saúde, acusado de beneficiar uma empresa do Paraná ao comprar bicicletas e
guarda-chuvas (este último é objeto de estudos dessa dissertação)129
.
Mais profundamente, a denúncia que mais o atingiu foi a do próprio irmão, Pedro
Collor, que abrangia toda forma de funcionamento do governo. No dia 23 de maio de 1992, o
irmão de Collor diz a Revista Veja que Paulo César Farias era o testa de ferro de Collor. A
capa ―Pedro Collor conta tudo‖ era o início da queda. A entrevista foi dada ao jornalista Luis
Costa Pinto, o Lula, um dos personagens desse trabalho.
1.2. Luis Costa Pinto
Luis Costa Pinto, mais conhecido como Lula, era persistente por natureza. Chegou a
editar o jornalzinho do Colégio Nóbrega, no Recife. A partir daí quis ser jornalista. Filho de
um engenheiro, com tios e primos também engenheiros, enfrentou a oposição da família. O
pai queria que fizesse o curso de administração junto com o de jornalismo, mas ele não quis.
Ao voltar da faculdade, Costa Pinto descia do ônibus dois pontos antes de sua casa, em
Olinda, para comprar, além de jornais locais, o Jornal do Brasil, a Folha de S. Paulo e a Veja.
Quando estava estudando conseguiu estágio no Jornal do Comércio, ganhando dois
salários mínimos por mês. Em junho de 1990, cobriu dois meses de férias do correspondente
da Folha de S. Paulo e seu salário dobrou. Terminou o estágio e recebeu convite do mineiro
Bruno Bittencourt para assumir o lugar dele, o de chefe da sucursal de Veja, pois fora
128
Melo conta em seu livro que o pai de Collor, Arnon de Mello, trabalhava com Assis Chateaubriand, mas
rompeu após ser dono da própria empresa. Era possuidor de boas relações sociais e de respeitabilidade. Arnon
fez fama na capital da República como jornalista de O Cruzeiro e de O Jornal. Também era advogado, criativo e
corajoso. Foi de Arnon de Mello, a determinação a Collor que ele iria representar politicamente a família. ―A
nossa TV tem que ter um candidato, e esse candidato tem que ser você‖, dizia o pai ao filho (MELO, 2007,
p.104). 129
Ibid., p. 188.
55
transferido para Brasília. Bittencourt ensinou o que ele deveria fazer antes de visitar a
redação, em São Paulo: comprar terno e gravata130
.
O jornalista tinha um jeito tímido. Usava óculos, mas vivia sempre antenado às
notícias de política. De acordo com Conti, Lula tinha 23 anos, quando conheceu Pedro Collor,
o irmão do presidente. O jornalista foi fundamental no principal escândalo do governo Collor.
Ele foi o autor da entrevista dada por Pedro à Revista Veja contando tudo que sabia sobre a
influência de PC no governo Collor. Foi de Lula também a entrevista que contribuiria para a
cassação do presidente da Câmara dos Deputados, Ibsen Pinheiro, em 1992, na mesma
Revista Veja.
Correspondente de Veja no Recife, segundo Conti, Lula estava cobrindo a disputa
entre Renan Calheiros e Geraldo Bulhões pelo governo e visitou o irmão do presidente em seu
escritório na Gazeta de Alagoas.
Tiveram empatia imediata, talvez porque o jornalista mencionou que uns primos
dele, usineiros em Pernambuco, eram amigos de Pedro e foram até convidados para a festa de
seu casamento com Thereza131
.
Ainda de acordo com Conti, o repórter passou a falar com Pedro a cada quinze dias.
Em março de 1991, ele foi transferido para a sucursal de Brasília e continuou, segundo Conti,
a ligar para o irmão do presidente Collor.
A entrevista de Pedro Collor contando os bastidores e influência de PC no governo
teve início quando, em uma viagem à Colômbia, Cláudio Humberto, secretário particular de
Collor, contou a Costa Pinto que, acreditando que Collor e Paulo César Farias haviam se
unido para o destruir. Pedro entrou em atrito com a família.
No início, Pedro não chegou a responder os telefonemas de Lula que continuou
fazendo outras reportagens. Até que em uma segunda-feira, dia 4 de maio de 1992, quando
estava de saída para entrevistar Itamar Franco, Pedro ligou dizendo que teria dois casos graves
para contar. Furo de reportagem.
De acordo com Conti, um emaranhado de contas, registros de aberturas de empresas,
procurações e contratos foram passados por fax para o repórter de Veja. A papelada mostrava
uma movimentação financeira da ordem de 50 milhões de dólares de PC Farias que, na época,
chegou a negar dizendo se tratar de invenção de Pedro Collor. Uma primeira matéria foi
publicada em cinco páginas sob o titulo ―Tentáculos de PC‖ e provocou pânico entre os
Collor de Mello.
130
CONTI, 1994, p. 543. 131
Ibid., p. 542.
56
Depois dessa reportagem, Costa Pinto e Pedro ficaram cada vez mais próximos. De
acordo com Conti, Lula servira de pombo-correio entre Thereza e o marido, que se
reconciliaram e voltaram viver juntos132
.
A reportagem bombástica ―Pedro Collor conta tudo‖ dizia que PC era o testa de ferro
de Collor; que 70% do dinheiro que PC obtinha de empresários ia para o presidente e 30%
ficava com ele; que Collor era dono do apartamento que visitara em Paris; que ele dissera
várias vezes a seus irmãos, a Cláudio Vieira e Marcos Coimbra que Farias promovia
negociatas em nome do governo; que Collor tentara se insinuar junto a Thereza, e que o
presidente, assim como ele, usara drogas na juventude. A entrevista foi publicada com aval de
Roberto Civita. Foram impressos, segundo Mário Sérgio Conti, 836 mil exemplares da edição
de capa, 180 mil deles para as bancas e outros para os assinantes. No domingo, menos de 24
horas depois de terem sido distribuídos, todos os exemplares das bancas haviam sido
comprados. Na madrugada de segunda-feira a gráfica começou a imprimir mais 154 mil
exemplares. No total, foram vendidos 264 mil exemplares em bancas.
CAPÍTULO 2 – CASO ALCENI GUERRA
2.1. Alceni Guerra e o sonho de ser ministro
Carlos Melo afirma que o presidente Fernando Collor de Mello dividiu em três
categorias os nomes de seu ministério, assim que assumiu o cargo.
Primeiro convidou figuras de elevada visibilidade midiática, mas de expressão política
menor ou nula, como são os casos de Antônio Rogério Magri (―um trabalhador no ministério
do Trabalho‖), José Lutzenberger (um ecologista reconhecido internacionalmente na
Secretaria de Meio Ambiente), Artur Antunes Coimbra (o Zico, um craque do futebol, na
Secretaria do Desporto); Antônio Cabrera (um jovem líder ruralista na Agricultura)133
.
Segundo Melo, havia também os aliados de primeira hora que o apoiaram no primeiro
turno, mas não representavam partidos, tais como José Bernardo Cabral, Ozires Silva, Carlos
Chiarelli e Alceni Guerra (esse último o personagem de estudo desse trabalho).
Por último, haviam também os nomes que causaram absoluta estranheza. Segundo
Carlos Melo, foram os casos da Secretaria de Cultura e do Ministério das Relações Exteriores.
132
CONTI, 1994, p. 553. 133
MELO, 2007, p. 181.
57
Na Cultura, a primeira opção de Collor era o diplomata José Guilherme Merquior, que
declinou do convite, pois teria uma redução substancial de salário. Collor acabou por nomear
Ipojuca Pontes.
Alceni era um dos braços direitos de Collor. Fez parte da transição e se encarregou de
montar o sistema de acompanhamento de votação. Segundo Conti, Alceni recebeu três
milhões de dólares para essa missão.
Mas, ser ministro da Saúde era o sonho do pediatra Alceni Guerra que foi realizado
aos 43 anos. No início sua gestão foi tranquila. Ele vivia uma lua de mel com a imprensa e
nem montou uma assessoria grande. Conti afirma que ele criou canais com os chefes de
sucursal em Brasília e com as direções dos principais órgãos de imprensa. Conversava
regularmente com Roberto Marinho e seus filhos Roberto Irineu e João Roberto, e eles nunca
lhe pediram nada. Sempre que viajava, uma equipe da Rede Globo o acompanhava e fazia
reportagens simpáticas. Segundo ele, Collor gostava de Alceni. E até o usava para líder com
parlamentares. Ex-deputado, Alceni negociava bem as solicitações de congressistas134
.
Meses depois, o ministro preferido de Collor estaria envolvido em denúncias de
corrupção e desvio de recursos de licitação do Ministério da Saúde.
2.2. A suposta compra superfaturada de bicicletas por Alceni Guerra
Brasília, quarta-feira, 4 de dezembro de 1991. Neste dia começava o calvário do então
ministro da Saúde e do presidente da época, Fernando Collor de Mello. O Jornal Correio
Braziliense trazia reportagem de capa, sob título ―Saúde compra 22 mil bicicletas
superfaturadas‖135
. O título de três linhas em uma coluna na parte superior do jornal ficava
em evidência. A chamada de 26 linhas, cerca de 1,2 mil caracteres, trazia os supostos indícios
de corrupção cometidos pelo ministro.
Por um preço quase 50 por cento acima do mercado, a Fundação Nacional de Saúde
(FNS), vinculada ao Ministério da Saúde, adquiriu 22 mil e 500 bicicletas para
agentes comunitários por Cr$ 3 bilhões, 307 milhões e4 500 mil. As bicicletas marca
CaloiPoti FM custaram à Fundação Cr$ 147 mil a unidade, enquanto que em
134
CONTI, 1994, p. 494. 135
O que é interessante reparar no título da chamada é o pré-julgamento, sem deixar o texto no condicional. O
jornal considera praticamente o fato consumado e diz que houve superfaturamento. Não utiliza a palavra ‗pode‘,
‗suspeita‘. Mas, se antecipa e prejulga o ministro acusando-o de ter cometido o crime – nesse caso de corrupção
como veremos mais à frente.
58
Brasília as concessionárias Caloi estavam vendendo cada uma a Cr$ 99 mil, pelo
menos até segunda-feira136
.
Fig. 1
A reportagem assinada pela jornalista Isabel de Paula afirmava que "por um preço
quase 50% acima do mercado, a Fundação Nacional de Saúde (FNS), vinculada ao Ministério
da Saúde, havia adquirido 22.500 bicicletas para agentes comunitários por Cr$ 3 bilhões, 307
milhões e 500 mil.
As bicicletas, marca Caloi Poti FM, custaram à Fundação Cr$ 147 mil a unidade,
enquanto em Brasília as concessionárias Caloi estavam vendendo cada uma a Cr$ 99
mil. Pelos valores de mercado em Brasília, o governo poderia ter economizado mais
de Cr$ 1 bilhão na compra137
.
Nos dias que seguintes, o Correio continuou com as denúncias: "Saúde confessa
superfatura de 22 mil bicicletas"; "TCU investiga superfatura de bicicletas"; "Escândalo das
bicicletas derruba direção da FNS"; "Alceni culpa imprensa e sai de bicicleta".
Outros jornais e revistas fizeram publicações com acusações implacáveis e pouca
checagem. Era como se estivessem praticando a chamada ‗imprensa-tribunal‘. O Jornal Folha
de S. Paulo publicou na edição do dia 5 de dezembro, um dia após o ‗furo‘ do Correio
136
Correio Braziliense. Saúde compra 22 mil bicicletas superfaturadas. 4 de dezembro de 1991. Capa. 137
Correio Brasiliense. loc. cit.
59
Braziliense, matéria sob o título ―Saúde paga 50% a mais por 23,5 mil bicicletas‖, na capa,
com o seguinte título na página interna138
―Saúde compra bicicletas superfaturadas‖. E
publicou outras matérias – com novos fatos, com novas acusações - nos dias subsequentes
com os títulos ―Sem licitação, Saúde paga preço alto por 60 mil filtros‖ (6 de dezembro de
1991), ―Alceni recua e susta compra de bicicletas‖ (7 de dezembro de 1991), ―Alceni chora
quatro vezes e diz que não pedirá demissão‖139
.
O Jornal O Estado de S. Paulo, que também abordou o caso, trouxe em suas manchetes
de página e chamadas de capas, títulos mais ponderados, mas não menos ‗prejudiciais‘ à
imagem pública. Vejamos: ―Compra de bicicletas deverá ser investigada‖ (5 de dezembro de
1991), ―Preço de guarda-chuvas também fica sob suspeita‖ (6 de dezembro de 1991),
―Ministro da Saúde afasta assessores e apura licitações‖ (7 de dezembro de 1991), ―Alceni
suspende licitações sob suspeita‖ (mesmo dia, página interna), ―Alceni reclama da imprensa,
chora e passeia de bicicleta‖ (8 de dezembro de 1991). Alceni suportou o bombardeiro de
acusações contra ele por pouco mais de um mês.
No dia 23 de janeiro de 1992, entregou sua carta de demissão ao presidente Fernando
Collor. No livro a Era do Escândalo, o ex-ministro diz que passou por situações jocosas e
vexatórias no período de denúncias desse escândalo por parte da imprensa:
Tive de me acostumar a ser chamado nos jornais de ministro ―Mary Poppins‖, numa
alusão jocosa à conhecida personagem do cinema imortalizada nas cenas em que
aparece de sombrinha e bicicleta. Até meu pedido de demissão em 23 de janeiro de
1992, 48 dias depois da primeira denúncia, os ataques da mídia aniquilaram minha
imagem pública140
.
A contabilidade do ‗massacre‘ foi feita pelo próprio ex-ministro: mais de 100 horas de
gravação de reportagens sobre escândalo das bicicletas na televisão. Se o escândalo das
bicicletas fosse uma novela daria mais de 200 capítulos, além disso, foram contabilizados
mais de 10 mil metros quadrados de notícias equivalente a cobrir a área de um hectare inteiro
somente com notícias acusatórias.
Analisando ainda o Correio Braziliense, nota-se que saindo da capa e seguindo para a
página interna, a jornalista Isabel de Paula afirmava em sua reportagem, cujo título já
138
Correio Braziliense. Saúde compra bicicletas superfaturadas. 5 de dezembro de 1991. Brasil, p. 10. 139
Aqui cabe uma observação interessante. Nesta matéria a Folha de S. Paulo traz Alceni Guerra, sentado numa
escadaria – muito parecida com uma sarjeta – ao lado do filho Guilherme, na época com 12 anos, e suas
bicicletas estacionadas. Uma cena lastimável para um importante ministro da época, uma depreciação de imagem
pública. 140
ROSA, 2007, p. 394.
60
condenatório ―Saúde compra bicicletas superfaturadas‖, repete as informações da capa e diz
mais. ―Pelos valores de mercado em Brasília, o governo poderia ter economizado mais de Cr$
1 bilhão na compra".
A reportagem trazia ainda uma foto de um funcionário da Caloi descarregando as
bicicletas e a seguinte legenda: ―As primeiras bicicletas chegaram domingo à Fundação
Nacional de Saúde. No detalhe, a nota de empenho no valor de Cr$ 3.307.500,00‖.
Nas edições seguintes, o Correio continuou com as denúncias: "Saúde confessa
superfatura de 22 mil bicicletas"; "TCU investiga superfatura de bicicletas"; "Escândalo das
bicicletas derruba direção da FNS"; "Alceni culpa imprensa e sai de bicicleta".
O que se percebe durante todas as reportagens acusatórias, que culminaram na
demissão de Alceni Guerra em 23 de janeiro de 1992, foi o pouco espaço destinado para a
defesa141
. O ministro chegou, inclusive, a ser ridicularizado em uma reportagem do dia 6 de
dezembro (p.8), cujo título trazia: ―Alceni: superfaturada é a mãe‖.
O que se percebe, além da falta de espaço adequado para a defesa e ainda o início da
‗ridicularização‘ da figura do ministro, é a proporção que a denúncia foi tomando – mesmo
com poucas declarações de Alceni, mas com novos fatos surgindo a cada edição do jornal.
Quando um escândalo vem à luz, ele pode se espalhar rápido e incontrolavelmente
porque os atos de fala e as imagens que sustentam o escândalo podem ser
transmitidos a longas distâncias instantaneamente (ou de maneira praticamente
instantânea) e, porque as redes de comunicação são tão ramificadas e complexas que
é extremamente difícil conter revelações prejudicais142
.
Ou seja, as ramificações desse caso ganharam contornos contra a figura do ministro da
Saúde, uma campanha difamatória da qual foi vítima, segundo ele. Para contextualizar essa
afirmação é preciso enfatizar a edição do Correio do dia 8 de dezembro de 1991 ―Alceni culpa
a imprensa e sai de bicicleta‖. Aquela edição trazia uma foto de Alceni Guerra, em um Park
Cicle de Brasília, em cima de uma bicicleta, com seu filho Guilherme, de 12 anos (fig. 2).
141
Nota-se aqui que o jornal praticamente já tem sua convicção de que Alceni é culpado, um atropelo sem
piedade da ética jornalística – deveria ocorrer uma apuração mais profunda nesse caso. O jornalista Luís Nassif,
em seu livro o Jornalismo dos Anos 90, diz que a pressa em perseguir os furos, o receio de que a concorrência se
antecipasse estimulou o estilo de ‗atire primeiro, pergunte depois‘. Assim fez o Correio nesse episódio. 142
THOMPSON, 2002, p. 49.
61
Fig.2
A foto mostra um ministro constrangido pelo fato de ter seu filho sendo fotografado,
naquele sábado no parque, com a imprensa fazendo ilações a um simples passeio de bicicleta
com a compra dos objetos denunciados pelos jornais e revistas da época. Na edição de
domingo, o Correio – mais uma vez – lembrava seus leitores sobre toda a denúncia, mas na
página interna143
usou de um tom sarcástico para tentar ridicularizar a figura de Alceni. Em
um trecho da reportagem, desta vez não assinada pelo repórter que a produziu diz:
As denúncias não abalaram o humor do ministro. Tanto que, após a entrevista
coletiva, Guerra e seu filho foram até o Parque da Cidade e durante 1h25 minutos
andaram de bicicleta dupla. ―É uma Monark‖, explicou Plínio Pereira, proprietário
do Park Cicle, que aluga bicicletas aos frequentadores do Parque. O ministro, que
estava trajando um abrigo verde e camiseta branca, com a frase: ―Em primeiro lugar
as crianças‖, pagou Cr$ 2.500 pelo uso da bicicleta. Em menos de uma semana, esta
é a segunda vez que Guerra vai se exercitar numa Monark no Parque da Cidade.
Domingo passado, como lembra Pereira, Guerra alugou uma bicicleta e pedalou por
quase duas horas. Três dias depois, o veículo utilizado pelo ministro, para exercício,
era alvo de denúncia do Correio Braziliense, que apontava uma compra feita pelo
FNS, órgão vinculado ao Ministério da Saúde, de 22 mil e 500 bicicletas por um
preço superfaturado. Ao ver os jornalistas ontem no Parque, em Brasília, Guerra
teve um faniquito144
·. Encostou a bicicleta no meio-fio e enquanto os fotógrafos e
cinegrafistas não deixaram o local, o ministro não pedalou sua Monark145
.
143
Correio Braziliense, 8 de dezembro de 1991, p.9. 144
O termo ‗faniquito‘ para classificar um possível descontentamento do ministro sobre a presença dos
jornalistas em um passeio no parque com seu filho de 12 anos, ao que tudo indica, mostra o senso do ridículo
que o jornal quer levar Alceni Guerra. Segundo o dicionário Houaiss, faniquito é um ataque de nervos sem
importância, sem gravidade. Mostra também como o Correio vem tratando o caso com certo desdém em relação
ao ministro, já o prejulgando como se já soubesse o desfecho. 145
Correio Braziliense, op. cit., p.9.
62
Na mesma página, o Correio revelava ‗novos fatos‘. Uma retranca (matéria menor que
continua uma reportagem principal que tem o mesmo tema) trazia o título ―Estão surgindo
mais suspeitas‖. Desta vez, o Correio falava em aquisição supostamente irregular de usinas de
oxigênio. A reportagem afirmava que em setembro daquele ano, o Ministério comprou 60 mil
filtros a preços que variavam de Cr$ 12 mil 450 a Cr$ 13 mil a unidade, quando os preços de
mercado eram de Cr$ 7 mil 500 a Cr$ 10 mil. Mais: em outubro, o Ministério da Saúde
contratou, sem licitação, a empresa Marters Engenharia por Cr$ 18,1 bilhões para
supervisionar as obras de construção de Centros Integrados de Apoio à Criança e ao
Adolescente (Ciacs), em todo o País. Foram adquiridos também 22 mil e 500 guarda-chuvas,
por meio de uma licitação cujo superfaturamento estimado é de Cr$ 112 milhões.
Ou seja, a essa altura qualquer compra feita no Ministério da Saúde de Alceni Guerra
era tido como superfaturada. Todos os fatos foram mostrados nesse caso pelo Correio como
realidade e a denúncia principal (a compra das bicicletas) foi fragmentada em novas outras,
que geraram novas outras, e assim por diante.
Essa característica da imprensa foi muito bem observada por Perseu Abramo. Vejamos
o que ele diz:
Eliminados os fatos definidos como não-jornalísticos, o "resto" da realidade é
apresentado pela imprensa ao leitor não como uma realidade, com suas estruturas e
interconexões, sua dinâmica e seus movimentos e processos próprios, suas causas,
suas condições e suas consequências. O todo real é estilhaçado, despedaçado,
fragmentado em milhões de minúsculos fatos particularizados, na maior parte dos
casos desconectados entre si, despojados de seus vínculos com o geral, desligados de
seus antecedentes e de seus consequentes no processo em que ocorrem, ou
reconectados e revinculados de forma arbitrária e que não corresponde aos vínculos
reais, mas a outros ficcionais, e artificialmente inventados. Esse padrão também se
operacionaliza no "momento" do planejamento da pauta, mas, principalmente no da
busca da informação, na elaboração do texto, das imagens e sons, e no de sua
apresentação, na edição146
.
A mesma reportagem trazia também Alceni Guerra desmoralizado. Chorando
enquanto dava entrevista. O Correio explorou a imagem, como se o ministro estivesse
sucumbindo diante das denúncias (fig. 3). O ministro seguia num calvário que o levaria à
crucificação. Suas explicações transformaram-se em novas provas. O Correio, nesse caso,
deixou de dar atenção revelando as justificativas do ministro.
146
ABRAMO, Perseu. Padrões de manipulação na grande imprensa. 1º edição. São Paulo: Editora Fundação
Perseu Abramo, 2003, p. 27.
63
Fig.3
Em seu livro O Consenso Forjado, Francisco Fonseca, deixa clara sua posição sobre a
omissão de fatos e personagens, por parte da grande imprensa. Para ele, é uma maneira de
impor seu pensamento à opinião pública, com ausência do contraditório:
―(...) afinal, é usual aos periódicos a omissão de temas, questões e personagens,
sobretudo quando se trata de argumentos/interesses de adversários. Em outras
palavras, a omissão deliberada é uma forma de posicionamento, pois a ausência
implica presença do que se quer ocultar (sobretudo em termos políticos e tendo em
vista o papel da imprensa‖147
.
Milton José Pinto diz que a narrativa funciona como uma forma de sedução e, dessa
forma, seria uma maneira de impor pensamentos e induzir as conclusões que interessam ao
narrador.
(...) todo discurso é um simulacro interesseiro, produzido com o objetivo de se
conseguir ―dar a última palavra‖ na arena da comunicação, isto é, de ter reconhecida
pelos outros as representações, identidades e relações sociais construídas por seu
intermédio. Os textos narrativos são os exemplos mais espetaculares disso: a
narração é um dispositivo instrumental de distribuição de afetos a serviço da
sedução e cooptação ou, como diz o mesmo F. Lyotard (1973, 173) ―toda narrativa é
não somente o efeito de uma metamorfose de afetos, mas também produz um outro,
a história, a diégese‖, o referente enfim. Não à toa a narratio é considerada pelos
especialistas em retórica como uma parte decisiva da dispositio ―por suas virtudes
147
FONSECA, 2005, p. 28.
64
explicativas‖, leia-se por sua capacidade de produzir uma ―realidade‖ alinhada com
os interesses do emissor. (itálicos do autor, grifos meus)148
.
Como já foi citado anteriormente, pode-se classificar esse ‗estilo‘ da imprensa,
definido por Perseu Abramo, como ―padrão ocultação‖ da grande imprensa.
Não se trata, evidentemente, de fruto do desconhecimento, e nem mesmo de mera
omissão diante do real. É, ao contrário, um deliberado silêncio militante sobre
determinados fatos da realidade. Esse é um padrão que opera nos antecedentes, nas
preliminares da busca pela informação, (...) naquilo que na imprensa geralmente se
chama de pauta. (ênfases minhas)149
.
2.3. Fatos políticos e o papel exercido pela mídia
Quais seriam as razões para o ataque da grande imprensa contra Alceni Guerra? Pode-
se dizer que são dois os principais motivos. O primeiro já foi detalhadamente estudado
anteriormente – na perspectiva de Thompson - que o escândalo político vende. O segundo
vamos chamar de o ―efeito ou o papel político‖ exercido pela mídia. A mídia exerce poder
político. E não é de agora.
Desde a época do Império política e imprensa se conjugam (como foi visto mais
detalhadamente no início desse estudo). No livro a ―História da Imprensa no Brasil‖, Ana
Luiza Martins e Tânia Regina de Luca afirmam que a mídia no período imperial estava
atrelada ao serviço de partidos, a seus interesses econômicos e a de grupos familiares150
.
Manuel Castells também fala sobre o assunto. Segundo ele, o papel político
desempenhado pela mídia desenvolveu-se consideravelmente nas últimas três décadas.
Castells relata bem esse papel político.
Afirmo que em virtude dos efeitos convergentes da crise dos sistemas políticos
tradicionais e do grau de penetrabilidade bem maior dos novos meios de
comunicação, a comunicação e as informações políticas são capturadas
essencialmente no espaço da mídia. Tudo o que fica de fora do alcance da mídia
assume a condição de marginalidade política151
.
148
PINTO, Milton José. Comunicação e Discurso. São Paulo: Hacker Editores, 1999, p. 88-89. 149
ABRAMO, Perseu, Padrões de Manipulação na Grande Imprensa, Fundação Perseu Abramo, 2003, p.25-26. 150
MARTINS; TUCA, 2008, p. 48. 151
CASTELLS, Manuel. A política informacional e a crise da democracia in O Poder da Identidade. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2000, p. 368.
65
No caso de Alceni, o papel político, ou o poder político, influenciou o modo de
atuação da grande imprensa, implacável contra sua imagem pública.
Apesar de não ser objeto de estudo principal desse trabalho e nem principal de análise,
será preciso recorrer às Organizações Globo como fonte para explicar melhor esse capítulo.
A TV Globo e jornal O Globo fizeram uma dobradinha para ―pegar Alceni no
contrapé‖. Segundo Conti152
, os ataques direcionados a Alceni foram motivados pela aliança
que o ministro tinha com o governador do Rio de Janeiro Leonel Brizola, do qual Roberto
Marinho, presidente das organizações Globo, era inimigo declarado.
Carolina Riguengo publicou um interessante artigo sobre o assunto: ―As pedaladas da
imprensa‖153
. Ela conta que, Alceni, aos 43 anos, foi nomeado ministro da Saúde, por manter
um bom relacionamento com Roberto Marinho e seus filhos. O ministro muitas vezes
aparecia como bom moço na emissora global. A vida do ministro estava como um ―mar de
rosas‖. O livro Notícias do Planalto deixa claro que Alceni Guerra foi incumbido, na época,
pouco antes do escândalo das bicicletas, de ser o intermediário, o elo de uma possível
aproximação, entre Collor e Leonel Brizola, então governador do Rio de Janeiro. O ano era
1990. Collor tinha interesse nessa aproximação porque, em 1992, o Rio seria a sede da Eco92,
organizado pelo governo brasileiro.
Então havia um interesse político de Collor em se aproximar de Brizolla. O problema
é que o governador fluminense era inimigo declarado e pessoal de Roberto Marinho, dono das
Organizações Globo. Ou seja, Alceni se aproximando de Brizola configuraria para os
Marinho, uma traição do ministro da Saúde – sempre bem conceituado nas reportagens das
organizações. Segundo Carolina Riguengo, em seu artigo, Fernando Collor até simpatizava
realmente com Alceni. Mas era mais conveniente manter um bom relacionamento com Leonel
Brizola.
Querendo unir as ―parcerias‖ e óbvio, para favorecer seus interesses políticos e
ideológicos praticamente, Collor jogou Alceni para cima de Brizola que, por sinal,
não gostava do até então colega do ministro, o poderoso Roberto Marinho. A
picuinha que havia entre Brizola e o imperador global, explica o medo de Alceni em
se encontrar e, pior ainda, tratar de negócios com o governador. Toda essa
desavença se deve ao fato de, em sua campanha presidencial, Leonel resolver atacar
as ―meninas dos olhos‖ de Roberto Marinho que na época eram o jornal O Globo e a
Rede Globo também. Por parte de sua união com Brizola, Alceni sofreu várias
pressões, inclusive de nomear João Mata Pires para cuidar das licitações da
Fundação Nacional da Saúde. Collor chamou Alcenir para uma conversa na qual ele
pediu a Alceni para não se candidatar a governador do Paraná e sim que procurasse
152
CONTI, 1994, p. 493. 153
RIGUENGO, Carolina. As pedaladas da imprensa. Site Canal da Imprensa (www.canaldaimprensa.com.br),
2012.
66
manter boas relações com os ministros do Supremo Tribunal Federal e com os
ministros militares para ser bem quisto por Antônio Carlos Magalhães. O que Collor
pretendia era instituir o parlamentarismo em 1993 e Alceni imaginou que Collor o
quisesse como sucessor no Palácio do Planalto154
.
Pouco tempo mais tarde, Alceni acabou sendo deposto do cargo que tanto
almejava e ainda teve de ouvir Collor dizendo que os ataques da Globo poderiam ser apenas
mais uma manifestação da rixa entre Leonel Brizola e Roberto Marinho. E o ministro, por sua
vez, disse que o seu fracasso estaria completamente na teimosia de Collor em querer
promover o encontro e trâmites entre ele e Brizola.
No livro Notícias do Planalto, Conti relata com muita propriedade toda influência da
Globo na demissão de Alceni. Claro que a ‗campanha difamatória‘ contra o ministro teve
início após as denúncias do Correio Braziliense, mas caíram como uma luva para a empresa
de comunicação dos Marinho.
Tudo ia bem até a quarta-feira, 19 de dezembro de 1990, quando o presidente lhe
disse, num despacho no Palácio do Planalto:
- Tenho um compromisso internacional com data e local marcados: a Eco 92, no Rio
de Janeiro. Será o evento mais importante do meu mandato, e o governador eleito do
Rio só aceita dialogar com o governo através de você.
Alceni percebeu a enrascada em que podia se meter. A Conferência Internacional
das Nações Unidas para a Ecologia, reconhecida, poria o Brasil e Collor no
noticiário internacional. Mas ele não queria, de jeito nenhum, ser o elo do Planalto
com Leonel Brizola, recém-eleito governador do Rio. Não porque tivesse algo
contra o pedetista. E sim porque sabia que Roberto Marinho era inimigo de Brizola.
Ao se aproximar do governador, correria o risco de ser hostilizado pela Rede Globo.
- Acho melhor o senhor passar essa missão para o Chiarelli – disse Alceni, tentando
empurrar o abacaxi para o ministro da Educação.
- Não, tem que ser você, Alceni – insistiu o presidente. – Você sabe conversar com
políticos, tem bom trânsito com todos os partidos no Congresso.
- Mas o senhor sabe o que vai acontecer comigo?
- Não se preocupe: o doutor Roberto será informado da sua missão155
.
Por cumprir a missão imposta por Collor, de garantir uma aproximação entre Brizola e
154
RIGUENGO, 2012 // Canal da Imprensa. Em seu site o Canal da Imprensa intitula-se como uma revista
eletrônica de crítica de mídia do curso de Comunicação Social do Unasp - Centro Universitário Adventista de
São Paulo, Campus Engenheiro Coelho. Sua linha editorial orienta os articulistas a analisar e criticar o papel da
mídia brasileira e internacional. Suas abordagens não permitem o proselitismo religioso nem a propaganda
política. Em sua análise da mídia, Canal da Imprensa assume o compromisso de lutar pelos direitos de expressão
e consciência, assegurados pela Constituição Brasileira de 1988, sem esquecer-se, contudo, da responsabilidade
social e ética que deve reger a produção jornalística e editorial dos meios de comunicação. O Canal da Imprensa
acredita que a mídia deve prestar contas à sociedade de tudo aquilo que divulga, veicula ou publica, e que por
esse motivo o conteúdo desta revista eletrônica serve como um observatório que 1) critica o conteúdo e a
produção jornalística da mídia no Brasil e no exterior; 2) aponta investidas abusivas ou desrespeitosas da mídia
sobre a opinião pública e a manutenção da cidadania. 155
CONTI, 1994, p. 494.
67
o governo, Alceni entrou em atrito com Roberto Marinho, Alberico Souza Cruz, diretor de
jornalismo da Globo, Antônio Carlos Magalhães e com as grandes empreiteiras.
Começaram os ataques contra o ministro. Segundo o livro Notícias do Planalto, no
domingo, 23 de junho, O Globo avaliou a gestão de Alceni no Ministério da Saúde. A
reportagem foi dividida em cinco matérias, cujos títulos resumem bem o enfoque do jornal:
―Ministro da Saúde foge da doença‖, ―Investimento de 4% do PIB é pouco‖, ―AZT chega
tarde e não atende a demanda‖, ―Cooptar deputados, uma ação prioritária‖, ―Apesar da
promessa, as filas continuam‖. Alceni, na época, creditou os ataques à sua aproximação com
Brizola.
O poder político e de influência da Globo156
ficam claros também em um diálogo que
o presidente Collor teve com Roberto Marinho. Ainda segundo o livro de Conti, Collor
visitou Marinho na casa dele em Angra dos Reis e falaram sobre Brizola. Marinho teria
mostrado seu desapontamento em relação à possível aliança entre Collor e Brizola. O
presidente tentava se justificar afirmando que Brizola ―tem votos e se elegeu porque o Rio foi
marginalizado pelos governos federais anteriores‖. ―Seu eu continuar a marginalizá-lo o Rio
ficará cada vez mais forte‖, disse Collor, segundo livro de Conti157
.
O próprio ministro Alceni Guerra reconhece que a interferência das Organizações
Globo pode ter contribuído para que o escândalo das bicicletas se alastrasse e culminasse na
sua demissão em 23 de janeiro de 1992.
Segundo Alceni, o mal-estar político entre ele e a Globo só fazia aumentar a cada ida
dele ao Rio ou a cada acontecimento político que unia Collor e Brizola. ―As bicicletas foram a
munição que faltava. Virei estrela – ou melhor, o cometa – do noticiário da Rede Globo, com
longas e esmagadoras reportagens no Jornal Nacional, o carro-chefe da emissora, visto por
mais de 50 milhões de espectadores todas as noites‖158
.
2.4. Apelidos, charges e fotos
Praticamente um mês depois de ter tido seu nome envolvido no escândalo das
bicicletas, o ministro Alceni Guerra ainda teve de dar muitas explicações. Como ele mesmo
156
Os números da Globo impressionam. São 113 emissoras, entre geradoras e afiliadas. A TV Globo pode ser
assistida em 99,84% dos 5.043 municípios brasileiros, com uma programação 24 horas por dia no ar, sendo a
maior parte criada e produzida em seus estúdios, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Além disso, a audiência no
horário nobre chega a 74%. Isso já justifica qualquer abordagem. Os dados são da própria empresa. 157
CONTI, 1994, p. 497. 158
ROSA. 2007, p. 401.
68
afirma no livro ―A era do escândalo‖, seus dias se resumiam a contestar os escândalos de
ontem e explicar os escândalos de amanhã159
.
O objetivo da imprensa, na época, a partir da reportagem tida como ‗furo‘ jornalístico
do Correio Braziliense, de ‗derrubar‘ o superministro de Collor estava sendo atingido. Para
garantir o sucesso da empreitada, capitaneada pelo poder midiático, os meios de comunicação
– responsáveis pela cobertura dos atos políticos, sobretudo o próprio Correio e o Jornal O
Globo, os dois do Rio de Janeiro - lançaram mão de recursos retóricos, estéticos e visuais,
como charges e outros meios. As mais desmoralizantes partiram das Organizações Globo.
Na edição do dia 9 de dezembro, segunda-feira, o Globo publicou uma charge160
de
Chico Caruso (fig. 4). Ele mostrava Alceni e Guilherme, seu filho de 12 anos, numa bicicleta
dupla em um parque público em Brasília (como já mencionado no capítulo anterior), com
uma tarja preta cobrindo os olhos do menino, como se fosse um menor delinquente. O recurso
utilizado pela imprensa, neste caso O Globo, ‗de crucificação e calúnia‘ é abuso na condução
jornalística.
159
ROSA, 2007, p. 403. 160
Charge é um estilo de ilustração que tem por finalidade satirizar, por meio de uma caricatura, algum
acontecimento atual com um ou mais personagens envolvidos. Foi uma ferramenta utilizada pelos pasquins (cujo
contexto histórico já foi abordado no início deste trabalho). O Jornal da USP, número 831, de 2 a 6 de junho de
2008, Ano XXIII, traz um importante estudo sobre os pasquins. ―Em outubro de 1822, um mês depois da
Proclamação da Independência, a liberdade de imprensa voltou a ser cerceada. O clima agitado da época
provocou o aparecimento dos pasquins, com característica panfletária e linguagem violenta, que chegava à
calúnia e ao insulto pessoal. Seu conteúdo refletia o ardor das facções em divergência. Liberais e conservadores
travavam verdadeira guerra de palavras utilizando os pasquins, que, geralmente, tinham vida efêmera. Os
próprios títulos demonstram o que eram os jornais: O Enfermeiro dos Doudos, O Palhaço da Oposição, O Grito
dos Oprimidos, O Burro Magro, O Brasil Aflito, O Caolho, O Torto da Artilharia, O Soldado Aflito, O
Crioulinho e muitos outros. Pelos títulos, dá para perceber que, frequentemente, os pasquins recorriam ao
preconceito, à aliciação das forças armadas e aos apelidos. Em agosto de 1827, a censura volta a ser abolida. Isso
provocou o aparecimento de novos jornais pelas províncias. Nesse ano, surge o Farol Paulistano, primeiro jornal
da Província de São Paulo. Geralmente, os periódicos eram do tipo pasquim, que refletiam o interesse das
autoridades, de intelectuais ou de alguns grupos. Também tinham vida efêmera. Em 1829, começa a circular o
segundo jornal da Província de São Paulo: o Observador Constitucional. Em 20 de novembro de 1830, João
Batista Líbero Badaró, fundador do jornal, é assassinado. Antes de morrer, deixa uma frase que reforça sua
resistência ao governo português: Morre um liberal, mas não morre a liberdade. (...) A partir de 1837, a imprensa
começou a utilizar a caricatura e, três anos depois, passou a circular no Rio de Janeiro A Lanterna Mágica, que
marca o início das publicações ilustradas com caricaturas. A partir da metade do século 19, o Império se
consolida e a imprensa política, representada principalmente pelos pasquins, esmorece. Com a organização
urbana, que começa a se formar, a imprensa reflete as transformações da época. Em 1852, sai o Jornal das
Senhoras, com sonetos, cartas de amor e moda (LOPES, Dirceu Fernandes. Uma história marcada por censura e
resistência. Observatório da Imprensa, 03 de junho de 2008).
69
Fig. 4
A tarja, escolhida por Caruso para ilustrar seu cartum, tinha nítido significado
pejorativo. O sentido era não expor menores delinquentes. No caso de Guilherme, filho de
Alceni, ele só não foi exposto, como comparado a um bandido. O crime dele era ser filho do
ministro Alceni Guerra, considerado corrupto pela imprensa que já o havia acusado, sem que
a Justiça desse seu parecer (nos próximos capítulos será explicado como se deu a decisão de
inocentar o ministro e quais os motivos).
Alceni Guerra conta como se sentiu ao ver a charge na segunda-feira, dia 9 de
dezembro:
Vi a charge quando estava saindo de casa na segunda-feira, logo cedo. Tive um
ataque de fúria, antevendo o que aquilo ia representar para Guilherme. Ponha-se no
meu lugar: mesmo se você fosse um corrupto, se tudo o que estivessem dizendo de
você fosse verdade e não uma sucessão de absurdos, você acha justo que seu filho
pagasse por isso, sendo exposto publicamente como um meliante? Imagine então se
você fosse inocente... 161.
A charge de O Globo não foi a única investida. Prosseguiu com uma reportagem na
mesma semana veiculada no Jornal Nacional, da Rede Globo. As reportagens do JN sobre as
irregularidades no Ministério da Saúde foram implacáveis, incriminatórias e irônicas.
Segundo Conti162
, as matérias que iam ao ar fugiram dos padrões. Numa delas, o repórter
Alexandre Garcia foi mostrado pedalando uma bicicleta enquanto segurava um guarda-chuva.
A partir daí, o ministro teve de se acostumar a ser chamado por um apelido incômodo: Mary
Poppins, numa alusão jocosa à conhecida personagem do cinema imortalizada nas cenas em
que aparece de sombrinha e bicicleta.
161
ROSA. 2007, p. 409. 162
CONTI, 1994, p. 502.
70
Ciro Marcondes Filho já atentou para o uso de vários artifícios da imprensa, no
sentido, de tentar ‗vender‘ a notícia e torná-la como espetáculo, como fez primeiro o Correio
Braziliense e depois as Organizações Globo.
A notícia, como mercadoria, vai recebendo cada vez mais investimento para
melhorar sua aparência e sua vendabilidade: criam-se as manchetes, os destaques, as
reportagens, trabalha-se e investe-se muito mais na capa, no logotipo, nas chamadas
de primeira página 163
.
2.5. Sem medo de acusar, a profecia da notícia
Dentro do jornalismo, sobretudo, nas coberturas políticas em que as denúncias
aparecem como uma série novelesca – como foi o caso de Alceni Guerra – com capítulos cada
vez mais prejudiciais aos acusados, há também uma característica marcante dos jornalistas.
Eles sentem-se imunes, blindados e protegidos por uma camada impenetrável da liberdade de
imprensa. Por isso, mesmo errando lá na frente haverá a impunidade para o jornalista que
cometer o erro. Pelo menos, é assim que se sentem.
Partindo desse pressuposto, dentro de uma análise teórica, o Correio Braziliense logo
usou expressões/palavras em suas manchetes muito objetivas, acusatórias, sem meio termo,
no tempo presente, sem qualquer preocupação de que poderia sim haver apenas suspeitas. Isso
será visto nas manchetes principais: ―Saúde compra 22 mil bicicletas superfaturadas‖, ―Saúde
confessa superfatura de 22 mil bicicletas‖ – mesmo sem ter confessado o suposto crime; ou
seja, não há em qualquer parte da reportagem o Ministério da Saúde confessando o
superfaturamento.
Eugênio Bucci classifica a tentativa de antecipação dos jornalistas do que poderá
acontecer em uma determinada cobertura jornalística, como um ato ‗profético‘. Ou seja,
jornalistas, além de jornalistas, querem ser ―profetas da notícia‖164
.
Que efeitos produz no público a postura de auto-suficiência de um órgão de
imprensa que repete todo questionamento ético? O primeiro efeito é o da percepção
de arrogância, que é cada vez menos temida e cada vez mais reprovada pelas
pessoas comuns. Um outro efeito é a impressão de que o veículo arrogante acredita
163
FILHO, Ciro Marcondes. Comunicação e Jornalismo a saga dos cães perdidos. 2ª ed. Hacker Editores, 2000,
p. 24. 164
Eugênio Bucci não dá essa classificação em seu livro. Mas, deixa entender esse tipo de ‗classe‘ de jornalistas.
―Profetas da notícia‖ foi enfatizada nesse trabalho na tentativa de deixar claro que os jornalistas tentam prever
uma determinada situação, como foi o caso de Alceni Guerra, mesmo antes do processo final ser transitado e
julgado.
71
(ou finge acreditar) que aquilo que publica é ―a‖ verdade: o que está publicado é o
que é. É como se esse veículo dissesse o seguinte: aí está, respeitável público, a
verdade dos fatos, e é só isso que lhe cabe – como essa ―verdade‖ foi apurada, que
critérios nós adotamos, bem, não é da sua conta. Ora, quem age assim não é
jornalista – talvez se imagine profeta165
.
Como já foi visto anteriormente, o poder político também exercido pela mídia
contribui para que ela se sinta imune e divulgue fatos ‗sem medo de ter problemas
posteriores‘. Segundo Luiz Martins da Silva, uma salvaguarda ainda protege as grandes redes
de televisão e os grandes jornais, como o Correio Braziliense, e revistas: o seu próprio poder
político e econômico, contra os quais poucos ousam o confronto.
Ainda segundo Silva, um político, por exemplo, pensará duas vezes em processar uma
poderosa cadeia de televisão166
. Mais: poderá até obter reparação, etc., mas pode amargar o
prejuízo de nunca mais ter seu nome no noticiário (da TV, das rádios, das revistas e dos
jornais), a não ser de forma negativa, ou, nem isto, mas tão somente por sentença judicial
(direito de resposta).
O próprio ministro Alceni Guerra não processou os veículos de comunicação que
cometeram exageros, abusos e erros na cobertura do escândalo das bicicletas. No entanto, ele
considerou o ato com um erro estratégico. Na época, Alceni foi orientado pelo advogado
Saulo Ramos. Veja o que diz o ministro da época sobre sua decisão:
Um dos erros do qual mais demorei a ter consciência foi o de não processar
jornalistas e veículos de comunicação que participaram ativamente do meu massacre
na mídia. Eu optei por não pedir nenhum tipo de reparação judicial, mas revi essa
posição. Acho que em casos como o meu a vítima deve processar sempre. Até as
eleições de 2002 eu sustentava o oposto: não processe nunca. A mudança de opinião
veio com amadurecimento da derrota. Até então prevalecia a minha alma igualitária
e liberal, que não me permitia processar um jornalista ou um veículo por entender
que a liberdade de imprensa é um bem maior. Esse foi outro grande equívoco: se eu
tivesse processado aqueles profissionais da mídia que me caluniaram eu teria
provocado a reparação. Percebi duramente se você não processa jornalistas ou
veículos os culpados saem impunes, enquanto a vítima paga o preço. Não estou
falando de reparação pecuniária, mas na reparação moral – no sentido de conquistar
espaço na mídia na mesma proporção dos ataques. (...) Até que constatei, depois de
uma década, que só um processo judicial tem a força de dar o acesso à mídia de que
a vítima precisa para obter algum tipo de reparação mais condizente com o tamanho
do ataque que sofreu167
.
O que ocorreu no caso do Correio, e também de outros meios de comunicação (como
será visto posteriormente), é que a conotação dada ao caso, tanto nas chamadas de capa, como
nas reportagens de página interna, pode ser considerada como suficiente para delinear um
165
BUCCI, Eugênio. Sobre ética e imprensa. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 53. 166
SILVA, 2008. 167
ROSA, 2007, p. 419.
72
juízo de valor. Nenhum cuidado é pouco, na análise feita por esse caso, no uso de ironias,
afirmações e prejulgamentos nas denúncias.
2.6. Veja „embarca‟ nas acusações do Correio
Uma das maiores e mais influentes revistas do País, a Veja, também embarcou nas
denúncias apresentadas pelo Correio Braziliense contra o ministro Alceni Guerra. Foram três
principais edições ‗detonando‘ o ministro com afirmações de que ele realmente teria cometido
atos de corrupção e superfaturamento.
As edições de Veja, nada acrescentaram – em termos de novidades do que já havia
sido publicadas pelos jornais diários, como Folha, Estadão e o próprio Correio – mas
contribuiu para engrossar as reportagens negativas contra o ministro. A revista fez as
publicações para não ‗perder o furo‘ de reportagem.
Aliás, um cacoete da imprensa brasileira teria necessariamente de ser revisto, na
opinião de Luiz Martins da Silva. ―A confiança com que um veículo embarca numa denúncia
já publicada, mas só posteriormente comprovada como falsa. Julgando-se furado e correndo
atrás do prejuízo, com frequência um noticiário dá prosseguimento ao anterior
inadivertidamente168
‖.
No caso de Veja, a primeira reportagem contra Alceni foi publicada na edição do dia
11 de dezembro de 1991, sete dias após ter surgido a primeira matéria no Correio Braziliese.
O ‗atraso‘ é explicado porque a revista é semanal.
―Enxoval completo‖ era o título da matéria. Na linha fina um resumo da reportagem
publicada na página 38: ―As irregularidades de Alceni com bicicletas, guarda-chuvas, filtros,
nebulizadores, mochilas, geladeiras, freezeres, etc‖. A foto da reportagem trazia Alceni
Guerra com os braços para trás com ar de preocupação olhando exatamente para a lente da
câmera fotográfica. A legenda da foto: Alceni: ―Se sair agora, meu moral fica na lama‖ – uma
referência à possibilidade de o ministro deixar o cargo.
Um trecho da reportagem:
O ministro Alceni Guerra, da Saúde, é um ministro de prestígio. Construiu a ponte
no namoro do governador Leonel Brizola com o presidente Fernando Collor, é o
único ministro a despachar no Congresso uma vez por semana e administra a parte
168
SILVA, 2008.
73
mais polpuda do cofre federal – o projeto do Ciacs, que envolve 4 bilhões de
dólares. Na sexta-feira passada, o ministro conversou com o presidente e continuou
prestigiado. O que mudou na sua vida de ministro foi a espetacular enxurrada de
denúncias que desabou sobre o Ministério da Saúde. Em duas semanas, o ministro
foi acusado de contratar uma empresa sem licitação, comprar 23.500 bicicletas,
22.500 mochilas e 22.500 guarda-chuvas com preços acima dos praticados num
balcão de loja. Somadas as denúncias apontam um prejuízo de quase 20 bilhões de
cruzeiros aos cofres do governo. Acuado pelo barulho da avalanche, o ministro
resolveu apagar as luzes da vitrine para escapar das pedradas. Na sexta, depois de
conversar com o chefe, Alceni cancelou as setenta concorrências em andamento no
Ministério, suspendeu os pagamentos, abriu auditoria interna e afastou quinze
diretores de órgãos do Ministério, entre eles os quatro da Fundação Nacional de
Saúde, órgão responsável pela compra dos produtos169
.
O que é importante reparar no trecho desta reportagem são as duas referências
principais feitas por Veja. A revista diz que Alceni é um ministro de prestígio e um dos únicos
que despacha uma vez por semana com o presidente e ainda, o mais importante, que
administra a parte mais polpuda dos recursos federais, como se ele realmente tivesse controle
sobre os gastos, além da Saúde, de todo o Governo Federal.
Nesta mesma reportagem, Veja utiliza outra ferramenta para fazer denúncias: uma arte
‗espelhada‘ nas páginas 38 e 39 sob o título ―As irregularidades no ministério‖ e enumera as
acusações e supostas irregularidades que o titular da pasta de Saúde teria cometido nas
compras de: feijão com arroz, bicicletas, e contratação de empresa fantasma. Na página 39,
Veja traz a foto de uma bicicleta, cujo preço de varejo, seria menor do que o praticado na
contratação feita por Alceni.
Uma semana depois, a revista trouxe outra reportagem ―Os ministros-podres‖ citando,
além de Alceni Guerra, os então ministros Marcos Coimbra, Rogério Magri, Margarida
Procópio e Carlos Chiarelli que estariam envolvidos em outros casos de corrupção (nesse
momento não será tratado desses outros casos por não ser o objetivo de pesquisa desse
trabalho).
Na mesma página, Veja chama Alceni Guerra de ―Midas das irregularidades‖. A
revista – assim como os jornais diários que publicaram as acusações – se utiliza então de
recursos literários e de imagens para acusar e contextualizar todas as denúncias.
Bucci afirma que o jornalismo não se confunde com a literatura ou com a arte, mas
sempre se beneficiou de recursos literários e, mais tarde, no campo das imagens, das
influências que recebeu do cinema170
.
169
Veja. Enxoval completo, 11 de dezembro de 1991, p. 38. 170
BUCCI, 2000, p.141.
74
Já na edição seguinte, do dia 29 de dezembro, com o ministro demitido, Veja traz
reportagem com o seguinte título ―Faxina em casa‖ – Collor demite Alceni e Chiarelli cria um
ministério para Bornhasen e convoca o PFL para dar um novo desenho político ao governo171
.
Na mesma edição outra reportagem sobre o ministro da Saúde – ―Alceni sabia de tudo‖172
. Na
foto, o ministro aparece pedalando, ao lado do filho, em uma bicicleta dupla e a legenda com
a seguinte frase: ―Alceni e o filho Guilherme... triste teatro familiar‖. A matéria faz referência
à possibilidade de o ministro já ter conhecimento de todas as supostas irregularidades
cometidas que mais tarde foram comprovadas como ‗enganosas‘.
Nota-se na cobertura de Veja, que a revista ‗pegou o bonde‘ andando. As matérias das
três edições contra Alceni foram praticamente baseadas em ‗pautas‘ dos grandes jornais que,
durante a semana, já haviam publicado informações contra o ministro.
Sem qualquer cuidado, ou sem a conduta de esperar um pouco mais, do que sair na
frente com um furo de reportagem que mais adiante revelaria-se autêntica inverdade. Veja e
os outros meios de comunicação pecaram pelo abuso, pela falta de equilíbrio nas reportagens
com denúncias publicadas.
O ministro não logrou espaço na mídia para se defender. Tanto para Veja, como para
os demais meios de comunicação, o caso Alceni Guerra transformou-se num bom enredo,
numa história novelesca, que como já foi visto vendeu muito. Foi uma boa trama, um bom
caso. Luiz Martins da Silva explica o fenômeno utilizado pela imprensa nesses casos. ―É
quando impera a força do mito, da estrutura literária, das narrativas próprias do gênero
fantástico, do conto maravilhoso, dos enredos ardilosos173
‖.
Na cobertura de Veja, especificamente, nota-se também uma ―tentação ardilosa de
conseguir pegar em flagrante ou julgar rapidamente um ministro que tem prestígio‖. Estava
fora de cogitação, por parte da revista, perder uma boa história, sem qualquer preocupação e
interesse em desmentir o fato. Ainda segundo o Luiz Martins da Silva, a grande mídia espelha
uma certa natureza intrínseca aos ‗fatos jornalísticos‘, que é a propriedade que eles têm de
fugir à ordem natural das coisas, no caso, uma situação absurda e, por isso mesmo,
sensacional.
Por exemplo: uma autoridade do combate ao tráfico de drogas a serviço do mesmo
será muito mais notícia. O caso de Alceni é emblemático. Um superministro de Collor pego
171
Veja. Faxina em casa. 29 de dezembro de 1991, p. 18. 172
Veja. Alceni sabia de tudo. 29 de dezembro de 1991. p. 20. 173
SILVA, 2008.
75
em atos de corrupção dará mais visibilidade à reportagem. Para Silva, essa situação da
imprensa, em relação à falta de critérios, deve persistir.
Enquanto não advém uma nova disciplina, enquanto não sai do papel uma nova Lei
de Imprensa e enquanto não se criam no Brasil mecanismos de fiscalização da
imprensa, a única solução em vista é o rigor na apuração. (...) As escolas de
jornalismo, por sua vez, têm uma imensa responsabilidade para com a formação dos
futuros profissionais, não só na preparação ética dos mesmos, mas na transmissão de
conhecimentos acerca dos riscos pelos quais podem incorrer repórteres que
desconhecem legislação básica referente ao seu campo de trabalho. Poucos são os
cursos de Jornalismo que se preocupam em oferecer, além de uma disciplina
obrigatória sobre Ética, alguma outra sobre Direito, de preferência, Direito aplicado
à área de Comunicação174
.
Já Francisco Fonseca, acredita que, do ponto de vista da sociedade brasileira, as
iniciativas já consolidadas do Observatório da Imprensa e mesmo a Revista Imprensa
cumprem um importante papel fiscalizatório que, no entanto, representam ainda apenas uma
condição necessária, mas não suficiente: ―deve-se considerar, além do mais, a pequena
abrangência dessas iniciativas, seja para a denúncia dos oligopólios, seja para trazer à tona
visões alternativas às da grande imprensa, seja, especialmente, para o franqueamento ao
dissenso175
‖.
Mais detalhadamente será visto em capítulos posteriores alternativas para controlar
democraticamente a mídia. Os abusos nas coberturas podem existir.
Mário Rosa, em ―A era do escândalo‖ também tem esse reconhecimento.
A mídia exerce dois papéis fundamentais no mundo moderno: definir a pauta do
cotidiano e expor os personagens que a encarnam. A mídia funciona idealmente,
assim, como uma espécie de espelho do ambiente social. Um espelho seletivo, pois
se concentra não sobre todos os temas do universo social, mas apenas sobre aqueles
que são mais importantes ou surpreendentes. Nesse sentido, qualquer mídia, em
qualquer lugar do mundo, embute em seu âmago um certo grau de distorção, pois
não reflete a realidade como um todo, senão seus aspectos capitais. Mas, no caso
brasileiro, corre-se o risco de que esse grau de distorção esteja sendo muito mais
exposto do que outros, igualmente importantes. Essa distorção no espelho pode
trazer como resultado diversas consequências políticas e sociais 176
.
No caso específico da cobertura da Revista Veja, sobre o episódio, Fonseca tem uma
opinião muito particular sobre o assunto. Para ele, a revista abriu mão de ser revista é um
panfleto político-ideológico 177.
174
SILVA. 2008, p. 30. 175
FONSECA, Francisco. Mídia e democracia: falsas confluências. Revista de Sociologia e Política. nº 22,
jun/2004. p. 21. 176
ROSA. 2007, p. 494. 177
Portal da Revista Imprensa. 13 de maio de 2011, às 15h30.
76
Fonseca, no entanto, apenas qualifica a revista, mas não detalha o que leva o
semanário a esse caminho: seus interesses, suas escolhas. Apesar de ter, como toda empresa
privada, interesses econômicos e políticos, a revista não deixa isso claro para o leitor em suas
publicações.
O estudo de Fábio Jammal Makhoul em ―A cobertura da Revista Veja no primeiro
mandato do presidente Lula‖ traz pistas. Ele lembra que a revista criada em 1968 atinge 5
milhões de leitores (os dados são da própria empresa). Segundo Kelma Jucá178
, o perfil do
leitor de Veja é de classes mais abastadas. Em 2005, 68% dos leitores eram das classes A e B;
47% tinham entre 20 e 39 anos; 55% tinham nível superior; 80% casa própria, e 51% tinham
TV a cabo.
Makhoul conta que, embora o escândalo do mensalão não tenha derrubado e nem
impedido a reeleição de Lula em 2006, foi justamente nos eleitores da classe média alta que o
presidente encontrou o maior índice de rejeição nas eleições. ―Desde que os escândalos no
interior do governo começaram, as pesquisas mostraram um crescente aumento na avaliação
negativa dos petistas entre os setores mais ricos da sociedade com maior grau de escolaridade.
São os potenciais leitores de Veja179
‖.
Desta forma, é possível desconfiar que o posicionamento da revista é ideológico com
aparência de neutralidade, como bem afirma Nélson Jahr Garcia, e de difícil identificação.
―Jornais e revistas, por informarem constantemente sobre os fatos regionais e
internacionais, contribuem em alto grau para fornecer aos determinados leitores uma
visão da realidade em que vivem. Dessa maneira transmitem aos leitores uma
determinada visão da realidade em que vivem. Dessa maneira transmitem os
elementos fundamentais para a formação de um conceito de sociedade e do papel
que cada um deve exercer nela. Por trabalhar com fenômenos apresentados de
maneira aparentemente objetiva, como se fosse a mera e simples apresentação dos
fatos puros, tais como realmente ocorreram, adquire uma aparência de neutralidade
que assegura a confiança da maioria dos leitores. Mas, essa neutralidade não é
real‖180
.
Fábio Jammal Makhoul em seu trabalho, chega a conclusão que a Revista Veja, apesar
de dizer que é parcial e de não revelar ao seu leitor a sua tendência política-ideológica, foi
tendenciosa contra o governo Lula e o PT.
A Revista Veja empreendeu uma verdadeira cruzada contra o governo para derrubar
o PT da Presidência da República e favorecer o PSDB, rasgando todas as regras e
178
JUCÁ, Kelma. Revolução gráfica da Revista Veja em três décadas de existência. Taubaté: Universidade de
Taubaté, 2005, p.85. 179
MAKHOUL, 2009, p. 15 180
GARCIA, Nélson Jahr. O que é propaganda Ideológica. São Paulo: Brasiliense,1982. p. 23.
77
códigos de ética do jornalismo. O espírito preconceituoso, patrulheiro, intolerante e
arrogante do semanário carregou nos adjetivos contra o governo Lula, promovendo
um festival de grosseria patético e panfletário. Grosseria que só serviu para
aprofundar o preconceito social e oficializar o jornalismo de insulto181
.
Evidentemente, que ter um lado não é problema. Mas, é importante apresentar ao leitor
o lado em que o meio de comunicação está. É preciso também, ao meu ver, ter honestidade
nas coberturas, assim como seguir as regras básicas de ética do jornalismo.
2.7. Cobertura mais moderada do Estadão, mas não menos prejudicial
O Jornal O Estado de S.Paulo publicou a primeira reportagem sobre as denúncias
contra o ministro Alceni Guerra na edição do dia 5 de dezembro, portanto, um dia após o
‗furo‘ do Correio Braziliense. Como será visto a seguir, em comparação com a Veja e Correio
Braziliense, o jornal paulista foi mais moderado em suas alegações e acusações sobre o caso.
Mas, não deixou de divulgá-lo. Nota-se, portanto, que apesar de linhas editorais diferentes,
quando o caso vira uma ‗trama novelesca‘182
é imprescindível a publicação. A grande
imprensa prolongou o espetáculo – nesse caso as denúncias viraram de grande interesse do
público. Na primeira reportagem de O Estado, o título na página 9 era o seguinte: ―Compra de
bicicletas deverá ser investigada‖. Na linha fina: ―TCU e Câmara querem explicações sobre
os valores pagos‖. O jornal usa o verbo ―deverá‖ e não faz acusações diretas, apesar de deixar
nas entrelinhas de que houve caso de corrupção. Nesse dia, no entanto, não saiu chamada de
capa sobre a matéria.
Na edição seguinte, O Estado de S.Paulo trouxe reportagem apontando que o preço de
guarda-chuvas também estaria sob suspeita.
Os deputados petistas José Dirceu (SP) e Paulo Bernardo (PR) deverão entrar com
uma representação na Procuradoria-Geral da República contra uma licitação para
compra de 22.500 guarda-chuvas, feita pela Fundação Nacional de Saúde. De
acordo com denúncia recebida pelos deputados, os preços estariam superfaturados
em Cr$ 112 milhões em relação aos valores de mercado. Os guarda-chuvas seriam
destinados aos agentes comunitários de saúde, os mesmos destinatários das
181
MAKHOUL, 2009, p. 209. 182
A comparação aqui não retrata teorias de comunicação, mas simplesmente uma prática já habitual da
teledramaturgia. Uma novela tem abertura, quando são nos apresentados os personagens, seus perfis, e seus
valores. Há também o enredo (desenvolvimento) - quando o desenrolar da história dos personagens principais
em paralelo com os antagonistas, e também dos co-protagonistas. Há também a fase da novela em que intrigas,
paixões, emoções, etc, prendem a atenção do telespectador. Uma novela contém protagonistas (os mocinhos) e
antagonistas (vilões). A comparação feita nesse trabalho é para dizer que o ministro da Saúde praticamente viveu
uma enredo de novela com início, meio e fim do episódio.
78
bicicletas compradas no Paraná também em concorrência suspeita de
irregularidades183.
A primeira manchete de capa dada pelo O Estado foi na edição do dia 7 de
dezembro: ―Ministro da Saúde afasta assessores e apura licitações‖ (fig. 5). Ainda utilizando
termos como ―apura‖. Na linha fina o jornal diz que ―Denúncias de superfaturamento levam
Alceni a convocar auditores para investigar concorrências‖.
Fig. 5
O próprio jornal reconhece que a grande quantidade de denúncias vinha partindo da
imprensa na época.
O ministro da Saúde, Alceni Guerra, depois de seguidas denúncias da imprensa
sobre licitações suspeitas, anunciou ontem o afastamento da diretoria da Fundação
Nacional de Saúde (FNS), de diretores do Instituto Nacional de Assistência da
Previdência Social (Inamps) e da Central de Medicamentos. Ele nomeou auditores
183
Estado de São Paulo, 5 de dezembro de 1991, p.5.
79
para investigar todas as concorrências do Ministério. As denúncias que levaram
Alceni a agir são de superfaturamento na compra de bicicletas, de guarda-chuvas e
de mochilas para agentes sanitários. O porta-voz do Planalto defendeu o ministro: o
definiu como ―absolutamente correto e merecedor de confiança‖ 184.
Na edição seguinte, do dia 7 de dezembro, O Estado trouxe nova chamada de capa
em sua edição. Desta vez, sob o título ―Alceni reclama da imprensa, chora e passeia de
bicicleta‖. ―O ministro da Saúde, Alceni Guerra, acusou a imprensa de perseguí-lo com a
notícia de que comprou 23.500 bicicletas por preços superfaturados. Chorou e foi passear de
bicicleta185
‖.
A chamada só perdeu espaço para a manchete principal ―Governo negocia dívida dos
Estados em troca de apoio‖.
Na página interna O Estado mostrou a foto emblemática que foi divulgada em quase
todos os jornais do País (fig. 6): Alceni sentado no meio-fio de uma calçada com sua bicicleta
dupla estacionada, ao lado do filho, uma desmoralização pública ao superministro que
‗cometeu atos de corrupção‘.
184
Nota-se que O Estado foi um dos poucos meios de comunicação da grande imprensa a ter declarações de
alguém do governo partindo em defesa do ministro. O porta-voz do Planalto, que fala em nome de Collor,
definiu o ministro como absolutamente correto e merecedor de confiança. Essa confiança que não teria sido dada
a ele pela imprensa. 185
O Estado de S. Paulo. Alceni reclama da imprensa, chora e passeia de bicicleta. 7 de dezembro de 1991,
Capa.
80
Fig. 6
Repetindo o que fizeram os demais meios de comunicação, O Estado seguiu nas
mesmas apurações. Veja o que diz Perseu Abramo sobre essa característica da imprensa:
Embora tenha sido escolhido como um fato jornalístico e, portanto, digno de
merecer estar na produção jornalística, o fato é decomposto, atomizado, dividido,
em particularidades, ou aspectos do fato, e a imprensa seleciona os que apresentará
ou não ao público. Novamente, os critérios para essa Seleção não residem
necessariamente na natureza ou nas características do fato decomposto, mas sim
nas decisões, na linha, no projeto do órgão de imprensa, e que são transmitidos,
impostos ou adotados pelos jornalistas desse órgão186
.
Trecho da reportagem:
Três dias depois da divulgação de uma série de denúncias sobre superfaturamento
de compras do Ministério da Saúde, o ministro Alceni Guerra teve ontem um dia
emblemático. Em entrevista coletiva, na sede do Ministério, ele se mostrou tão
magoado que interrompeu suas declarações com a voz presa e os olhos cheios de
lágrimas. Saiu apressado e foi ao Parque da Cidade para relaxar pedalando uma
Monark de dois lugares – uma das irregularidades foi registrada na aquisição de
bicicletas Caloi por preços acima -, em companhia de Guilherme um de seus quatro
186
ABRAMO, Perseu. Padrões de manipulação na grande imprensa, 1º edição. São Paulo: Editora Fundação
Perseu Abramo, 2003, p. 29.
81
filhos. Na entrevista, o ministro se queixou da imprensa, que denunciou as compras
superfaturadas de 23.500 bicicletas, e igual quantidade de mochilas e guarda-
chuvas. ―Há dez meses os veículos de comunicação fazem uma marcação
implacável sobre mim‖, afirmou Alceni. ―É uma campanha insidiosa‖, desabafou,
interrompendo a entrevista para chorar. Ao ver o pai se retirando apressado para
disfarçar as lágrimas, Guilherme, de 12 anos, também chorou187
.
Nesse caso, nota-se que o comportamento de O Estado de S. Paulo, assim como de
outros jornais, sobre a cobertura desse episódio, foi além dos fatos políticos. Ao contrário do
início da cobertura, O Estado de S. Paulo partiu para publicações de matérias com tons mais
agressivos. Partiu para o lado pessoal, atingindo agora, inclusive, familiares do ministro, seu
filho de 12 anos.
A mídia, que sempre busca investigar e debater questões públicas de outras
instituições, infelizmente cala-se quando o assunto é ela própria.
De acordo com Ricardo Noblat, citado no Livro ―A era do escândalo‖, ―por orgulho,
soberba, vaidade ou ignorância, jornais e jornalistas procuram fazer de conta que só acertam.
E quando são pilhados em erro custa-lhes admitir que erraram. Os jornalistas temem ser
punidos por seus chefes. Os jornais temem perder leitores‖188
.
Esse tipo de posição e postura da mídia já foi tratado também por autores
importantes. O livro ―Os elementos do jornalista‖189
, que traz análises profundas da imprensa
contemporânea, de autoria dos jornalistas americanos Bill Kovach e Tom Rosenstiel, defende
que os meios de comunicação devem primar pela transparência:
―Os jornalistas devem revelar ao seu público sempre que manipularam suas fontes
para conseguir a informação e explicar suas razões, incluindo porque a matéria
justifica a fraude e por que essa foi a única forma de conseguir a informação. Com
esse enfoque os cidadãos podem decidir por si mesmos se essa desonestidade
jornalística se justifica ou não. E os jornalistas, por sua vez, foram claros com a
população a quem devem sua lealdade maior‖190
.
Então se é o interesse é público que está em jogo, e a imprensa diz que prima por
esse interesse, e não há nada de impróprio na cobertura da imprensa porque esconder os
detalhes de certas apurações?
Nesse sentido, não somente O Estado de S. Paulo, analisado nesse capítulo, como os
demais meios de comunicação escrita, pecam. Escondem seus critérios de apuração, muitas
vezes questionáveis.
187
O Estado de S. Paulo. Ministro queixa-se da imprensa e chora. 11 de dezembro de 1991, p.8. 188
ROSA, 2007, p. 448. 189
ROSENSTIEL, Tom; KOVACH, Bill. Os elementos do jornalismo. Porto Editorial, 2005. 190
ROSA, op. cit., p. 450.
82
Para encerrar esse capítulo, é bom lembrar também que muito embora o
conservadorismo191
de O Estado de S. Paulo – como visão de mundo – as coberturas tornam-
se indistintas quando os episódios são dados como escândalos. A preocupação com a venda
de jornais e a produção de títulos, fotos e chamadas de capas para chamar a atenção dos
leitores é comum a todos os órgãos de imprensa estudados.
Mesmo com menor grau de ‗abuso‘, O Estado publicou as difamações contra Alceni.
As diferenças de perfis ideológicos, inclusive, não foram suficientes para que o leitor
conseguisse observar uma cobertura diferente, mais aprofundada sobre o caso. O Estado e os
demais jornais trabalharam em uníssono.
Nesse sentido, a publicação uníssona trouxe graves prejuízos à imagem pública do
ministro da Saúde atingindo, inclusive, seus familiares, com requintes de crueldade no
episódio do parque.
Estava tentando manter a normalidade em um momento de minha vida em que nada
mais era normal quando envolvia a figura de Alceni Guerra, o ministro das
bicicletas. Na hora de ir para o parque eu agi como pai, não como político no meio
do tiroteio. Estava cumprindo a promessa de andar de bicicleta com meu filho no
parque, como sempre fazíamos. Foi um erro. Não adianta querer manter a
normalidade 192.
2.8. Por que a Folha não poupou o ministro de Collor?
O Jornal Folha de S. Paulo que tem a maior tiragem do País, desde 1984, também
não poupou o ministro Alceni Guerra em suas reportagens sobre o escândalo da compra de
bicicletas. Mas, antes da análise das reportagens é importante contextualizar o início dos anos
90 para mostrar a relação do presidente Collor com a direção do jornal na época.
A Folha, tida como um jornal brasileiro moderno, independente, liberal, avançado,
imparcial e que pratica um jornalismo independente, teve problemas com o presidente Collor.
No próprio site da empresa jornalística e também no livro de Mário Sérgio Conti, ex-
jornalista do periódico, é confirmada esta versão.
Segundo o site da Folha, seja como candidato, seja como presidente, Fernando Collor
de Mello sempre considerou a Folha um jornal inimigo193
.
191
FONSECA, 2005, p. 402. 192
ROSA, 2007, p. 410. 193
http:// www1.folha.uol.com.br/folha/80anos/tempos_cruciais-04.shtml.
83
E teria agido de acordo com essa crença: menos de dez dias depois de tomar posse,
deu sinal verde para que a Receita e a Polícia Federal invadissem o jornal e quatro meses mais
tarde processou o seu diretor de Redação e outros três jornalistas.
Collor esteve duas vezes na sede do jornal durante a campanha presidencial de
1989. Em ambas, achou que foi mal recebido. Na primeira, por não ter encontrado
ninguém da diretoria da empresa ou do jornal. Na outra visita, por ter podido
conversar apenas poucos minutos com o diretor de Redação, Otavio Frias Filho.
O candidato do PRN também não gostou de reportagens de Elvira Lobato, Gilberto
Dimenstein e Clóvis Rossi publicadas durante a campanha. Nelas, o jornal revelava
detalhes do acordo de Collor com usineiros alagoanos; como ele contratou mais de
400 funcionários na véspera de deixar a Prefeitura de Maceió; e como o governo de
Alagoas assinara um contrato no valor de US$ 420 mil para contar com a assessoria
de Zélia Cardoso de Mello194
.
Ainda segundo site, por meio de reportagem de Mário Sérgio Conti, na época,
editorialmente, a Folha não tomou posição a favor de nenhum dos candidatos. Seguiu o seu
preceito de manter a independência em relação aos partidos. Houve um editorial, no entanto,
sugerido e escrito por Artur Ribeiro Neto, que criticou a espetacularização da política e as
ilusões televisivas disseminadas por Collor.
Logo em seguida à decretação do Plano Collor, no qual o presidente congelava contas
bancárias, cadernetas de poupança e aplicações financeiras acima de US$ 1.250, o jornal fez
um editorial sobre a medida.
Na tarde de sexta-feira, 23 de março de 1990, seis fiscais da Receita, dois agentes e
um delegado da PF invadiram o prédio da Folha. Zelia Cardoso de Mello, ministra
da Economia, disse a Collor que a PF faria uma diligência no jornal.
O objetivo da invasão era conferir se o jornal estava cobrando faturas publicitárias
em cruzados novos ou na moeda recém-criada, o cruzeiro. Conforme orientação da
Associação Nacional de Jornais, a Folha fazia as cobranças em cruzeiros.
Os policiais e agentes da Receita não se encaminharam ao local onde ficavam os
arquivos contábeis da empresa. Foram direto para o andar da diretoria e
perguntaram várias vezes: "Onde está o Frias?". Não o encontraram (ele estava
noutro andar) e levaram à Polícia Federal a sua secretária, Vera Lia Roberto, um
dos diretores da empresa na época, Pedro Pinciroli, e o diretor administrativo,
Renato Castanhari. Os três prestaram depoimento e foram liberados.
Na edição do dia seguinte, o jornal publicou uma reportagem relatando a invasão.
Estampou também na primeira página um editorial, escrito por Marcelo Coelho,
então coordenador dos editoriais, intitulado "A escalada fascista". O editorial
responsabilizava Collor diretamente pela invasão e o comparava a Ceaucescu, o
ditador comunista da Romênia que fora destituído do poder e fuzilado três meses
antes:
"A democracia brasileira não tolera aspirantes a Ceaucescu ou versões juvenis de
Mussolini. Aberta, como qualquer empresa, à fiscalização das autoridades, esta
Folha não aceita intimidações grosseiras nem ameaças policiais".
No domingo, o jornal publicou um artigo de Otavio Frias Filho em que a
comparação de Collor com Mussolini era aprofundada. Na segunda-feira, o
194
ROSA, 2007, p. 410.
84
governo cancelou a medida provisória que dera embasamento à invasão. Com o
recuo do governo, não houve mais artigos e editoriais contra a invasão. Na
avaliação da Direção do jornal, havia sido cumprido o objetivo de mostrar aos
leitores, e ao governo, que a Folha não se atemorizaria.
Em julho, Gustavo Krieger e Josias de Souza, da Sucursal de Brasília, fizeram uma
série de reportagens mostrando que Cláudio Vieira, secretário particular do
presidente, contratara agências de publicidade sem realizar licitações, como
determinava a legislação criada pelo próprio governo recém-empossado. As
agências contratadas, Setembro e Giovanni, haviam participado da campanha
eleitoral de Collor.
Cláudio Vieira protestou. Enviou cartas à Folha, que as publicou, e veiculou textos
pagos em outros jornais contestando as reportagens. Argumentava que as
contratações em licitação foram feitas em "caráter excepcional". O jornal não
desmentiu as suas reportagens, todas elas baseadas em documentos oficiais.
No mês seguinte, o presidente abriu um processo contra Gustavo Krieger, Josias de
Souza, o repórter Nelson Blecher, que participara marginalmente da apuração sobre
as agências de publicidade, e o diretor de Redação, Otavio Frias Filho. Collor
acusou o jornal de caluniá-lo.
O mote do processo não eram as reportagens, e sim duas notas que saíram na
coluna "Painel Econômico", nas quais nem Cláudio Vieira nem Collor eram
citados. Nenhum dos quatro processados apurara ou escrevera as notas, e Frias
Filho nem sequer estava no jornal na época em que elas foram publicadas.
As notas faziam uma vinculação, indireta, entre eventuais dívidas restantes da
campanha de Collor, com agências de publicidade, e as contratações feitas pelo
Planalto sem licitação, em "caráter excepcional"195
.
De acordo com a Folha, um processo de Collor contra o jornal se arrastou durante
meses. Em abril de 1991, o diretor de Redação do jornal escreveu uma carta aberta ao
presidente. A intenção de Frias Filho, diretor do jornal, era chamar a atenção da opinião
pública para a dimensão política da ação do presidente: a de intimidar um órgão de imprensa.
O texto foi publicado na primeira página da edição de quinta-feira, 25 de abril de 1991, com o
título de "Carta aberta ao sr. Presidente da República":
No livro ―Notícias do Planalto‖, Conti reproduz a carta:
Que o sr. esqueça o processo contra os meus três colegas e concentre seus rancores
na minha pessoa, já que deseja atingir a Folha como instituição", afirmava o diretor
de Redação. "Processe-me pelo que de fato penso e afirmo em vez de se esconder
sob o pretexto de duas notas inócuas, perdidas sem assinatura numa edição
publicada, aliás, quando eu estava ausente, em licença profissional196
.
Frias Filho encerrou a carta comparando as razões de Collor com as suas, as
motivações da autoridade com as da imprensa.
Eu luto pela minha liberdade, o sr. por uma vaidade ferida; e, no entanto minhas
razões são públicas e de interesse geral, ao passo que as suas é que são particulares,
sombrias como a própria solidão; (...) eu advogo um direito, o sr. uma obrigação de
vassalagem; uma condenação lançará vergonha sobre o sr. e honra sobre mim; seu
governo será tragado pelo turbilhão do tempo até que dele só reste uma pálida
195
www.folha.com. br. 196
CONTI, 1994, p. 452.
85
reminiscência, mas este jornal desde que cultive o seu compromisso com o direito
dos leitores à verdade continuará de pé: até mesmo o sr. é capaz de compreender
por que a minha causa é mais forte e mais justa que a sua"197
.
Em janeiro do ano seguinte, 1992, os jornalistas da Folha foram absolvidos. Na
sentença, o juiz Nelson Bernardes de Souza escreveu: "É irrecusável que o noticiário
publicado pelo jornal Folha de S.Paulo, apontando irregularidades na contratação de agências
publicitárias sem licitação, circunscreveu-se aos estreitos limites da crítica inspirada pelo
interesse público". O presidente não recorreu da decisão.
De acordo com Conti, aquela altura Collor já estava desgastado e esse desgaste
continuou no início de 1992, com denúncias de corrupção e queda de ministros. Em março,
Collor tentou se reassenhorar da situação promovendo uma reforma ministerial. Encarregado
da articulação política, Jorge Bornhausen, do PFL, agendou encontros do presidente com
dirigentes de órgãos de imprensa, inclusive a Folha.
Nem por isso a situação do governo melhorou. Em maio, as acusações do irmão mais
novo do presidente, Pedro Collor, contra Paulo César Farias logo viraram um pesado bate-
boca. A escalada de Pedro Collor culminou numa longa entrevista a "Veja", na qual sustentou
que PC Farias era testa de ferro do presidente.
No final de junho, Eriberto França, motorista de Collor, deu uma entrevista a IstoÉ e
apresentou documentos comprovando que PC Farias pagava despesas de Rosane e Fernando
Collor.
Três dias depois, a Folha publicou um editorial cujo conteúdo vinha sendo discutido
internamente no jornal há vários dias. Escrito por Marcelo Coelho e publicado na primeira
página, o editorial defendia a renúncia de Fernando Collor. O Estado de S.Paulo também
publicou um editorial no mesmo sentido naquela terça-feira, 30 de junho.
Segundo a Folha, em 29 de dezembro, na iminência de ser considerado culpado pelo
Senado e definitivamente apeado do cargo, Fernando Collor renunciou à Presidência.
Portanto, o início do mandato de Collor (1990) foi turbulento no relacionamento com
a Folha. O que parte do princípio que no caso da denúncia contra um ministro do presidente
não haveria misericórdia. Todos os atos dele seriam publicados.
Francisco Fonseca, no livro ―O Consenso Forjado‖, escreve um capítulo para falar do
jornal intitulado ―A Folha de S. Paulo e a volatilidade ideológica‖.
Segundo ele, a Folha é volátil em termos ideológicos (ideologia tomada no sentido
―fraco‖, isto é, como corpus doutrinário), em razão de alteração de suas posições tendo em
197
CONTI, 1994, p. 452.
86
vista a proximidade que procura estabelecer seus leitores e com a opinião média da sociedade,
à luz do Projeto Folha.
Tal característica é ambígua, dado ser igualmente objetivo do jornal influenciar
seus leitores e a sociedade como um todo. A facilidade com que se assume ―novas‖
posições lhe é, contudo, marcante, e pode ser apercebida nesta significativa
afirmação de Otavio Frias Filho de que ―é muito mais útil que a sociedade tenha um
jornal que é sensível às mudanças que ocorrem cada dia, muito mais útil que os
leitores tenham um jornal que se modifica à medida que a disposição deles, leitores,
vai se modificando do que ter um jornal fossilizado, que é uma ideologia incrustada
na sociedade, que não se modifica há décadas [ou seja, o Jornal O Estado de
S.Paulo]. 198
2.9. As reportagens acusatórias
Depois de explicarmos o porquê a Folha não poupou o ministro Alceni Guerra,
torna-se imprescindível analisar que, a exemplo dos demais jornais e da Revista Veja já
mencionados nesse trabalho, o jornal paulista também acompanhou passo a passo as
denúncias contra o ministro. A primeira reportagem foi publicada na edição de 5 de dezembro
de 1991. Por um período de uma semana ininterrupta, a Folha trouxe em suas páginas, ao
menos, uma reportagem sobre as acusações.
―Saúde paga 50% a mais por 23,5 mil bicicletas‖ foi a primeira matéria, de capa do
jornal. Nela, o periódico afirmava com ‗convicção‘199 que o Ministério da Saúde comprou
23,5 mil bicicletas pagando pelo menos 50% acima dos preços de mercado. ―Adquiridas por
Cr$ 3,3 bilhões de uma empresa paranaense, as bicicletas são destinadas a agentes de saúde da
região Nordeste e Norte. O Tribunal de Contas da União pediu investigação da transação. O
ministro da Saúde, Alceni Guerra, não quis comentar o caso‖200
.
O primeiro equívoco nessa chamada de capa pode ser considerado o fato de a Folha
ter afirmado que o ministro não quis comentar o caso. Não quis ou não foi procurado? Na
página interna do jornal, não é especificado ou explicado esse fato. Não houve defesa do
ministro sobre o episódio. De acordo com a mesma reportagem da Folha, o caso das bicicletas
seria a 2ª irregularidade em 15 dias.
198
FONSECA, 2005, p. 150-151. 199
Nota-se aqui os verbos utilizados pela Folha, sempre no presente, excluindo totalmente a possibilidade de
uma suspeita. 200
Folha de S. Paulo. Saúde paga 50% a mais por 23,5 mil bicicletas. 5 de dezembro de 1991, Capa.
87
O superfaturamento de preços na compra de bicicletas é o segundo caso de suspeita
de irregularidade verificado no Ministério da Saúde, num prazo de 15 dias. No dia
23, a Folha revelou um contrato no valor de Cr$ 18 bilhões com a Maters
Consultores Associados, realizado sem licitação201
.
E, no caso da cobertura da Folha de S. Paulo, uma única denúncia – do caso da
compra das bicicletas – se transformara numa bola de neve. Já nas edições seguintes foram
publicadas mais denúncias. Na edição do dia 6, por exemplo, o ministro agora era acusado de
comprar, sem licitação, 60 mil filtros pagando um preço alto.
Na linha fina, abaixo do título ―Sem licitação, Saúde paga preço alto por 60 mil
filtros‖, o seguinte: Produtos foram comprados em setembro com custo superior ao de
mercado. A reportagem, de cerca de 2 mil caracteres, com abre de página, trazia uma defesa
de apenas 400 caracteres com o ministro tentando se defender. ―Ministro alega preço do
frete‖. O detalhe é que o jornal não deu qualquer espaço para que ele pudesse falar sobre os
filtros.
A defesa dele, de apenas 400 caracteres, era sobre as bicicletas. A essa altura as
denúncias ‗pipocaram‘ na imprensa. Num pequeno texto/espaço dado pelo jornal, Alceni
afirmava que não houve superfaturamento de preços na compra de 23,5 mil bicicletas.
―Superfaturamento é a mãe de quem está inventando isso. Provamos que os preços eram
inferiores aos da fábrica e que o acréscimo em relação ao varejo deve-se aos custos de frete e
armazenagem‖202
.
De acordo com Eugênio Bucci, em seu livro ―Sobre Ética e Imprensa‖, há um tábua
de pecados cometidos pela imprensa. Com base nas ideias de Ciro Marcondes Filho, no livro
―Comunicação e Jornalismo: A saga dos cães perdidos‖, são, ao todo, doze deslizes,
compilados pelo autor com base em livros e artigos.
No livro de Bucci são citados alguns deslizes que, ao serem analisados, podemos
chegar a conclusão que, a Folha de S. Paulo, e também todos os outros periódicos analisados
nesse trabalho cometeram203
.
1 – Apresentar um suspeito como culpado: Durante toda a cobertura, Alceni Guerra
foi apresentado como culpado condenado. Os meios de comunicação, nesse caso, foram
implacáveis. As denúncias, a cada dia, se avolumaram. O ministro faz declarações
importantes sobre essa característica da imprensa, a de o considerarem culpado e também o
201
Folha de S. Paulo, 5 de dezembro de 1991, p.10. 202
Folha de S. Paulo. Sem licitação, Saúde paga preço alto por 60 mil filtros, 6 de dezembro de 1991, p. 4. 203
Ao longo de estudo dos erros da imprensa nota-se que todos os jornais e a revista analisados publicaram
reportagens com abordagem muito semelhantes. O espaço dado ao investigado, quando dado, foi muito igual em
todos os espaços da mídia.
88
fato de as acusações se transformarem em outras novas acusações. Ele chegou a abrir
auditorias na tentativa de dar uma resposta positiva à imprensa e cessar as acusações. Mas,
não adiantou.
Dentro do cenário de enormes pressões, eu não só não tinha controlado a crise
como produzira a maior fúria jornalística já vista no Brasil. Abrir o ministério para
auditorias foi um erro. A imprensa não queria a verdade, queria destruir o ministro
de maior evidência em um governo que ela detestava. Para cada explicação, uma
nova acusação. No carrossel de denúncias, era impossível se defender. Quando os
ataques passaram para a esfera pessoal eu me senti como os animais que são
linchados em praça pública no ritual conhecido como ―farra do boi‖, que acontece
na Semana Santa em várias comunidades de Santa Catarina. Os bois são soltos nas
ruas e passam a ser perseguidos implacavelmente pelos habitantes dos vilarejos,
armados de porretes, pedras, facas e lanças. A farra só acaba quando o animal está
morto204
.
Foi como se Alceni Guerra, abrindo uma auditoria para investigar as denúncias,
tentasse dar uma resposta para o que a imprensa gostaria de ouvir. Esse fato, aliás, já foi
observado por Manoel Castells.
(...) os atores políticos acabam tendo de obedecer às regras e sujeitar-se aos
recursos tecnológicos e interesses da mídia. A política passa a ser inserida na mídia.
E porque o governo depende de reeleições, ou eleições para um posto mais elevado,
o próprio governo fica também dependente de sua avaliação diária do impacto
potencial de suas decisões sobre a opinião pública, mensurado por meio de
pesquisas de opinião, grupo de teste e análises de imagens205
.
O efeito preterido por Alceni, no entanto, foi contrário. Apesar de tomar decisão de
abrir autoria, o caso ganhou mais repercussão com surgimento de novas denúncias. Citando
Sandra Moog, Castells diz que as afirmações de profissionais da mídia sobre política
transformam-se em acontecimentos políticos por si próprios, e a cada semana são
proclamados os vencedores e os vencidos na corrida política. É o que já foi denominado em
capítulos anteriores, da ‗trama novelesca‘ nas coberturas dos escândalos políticos.
Atualmente os eventos divulgados nas notícias tendem a diluir-se em meras
discussões sobre reações do público a mais recente cobertura da imprensa. Quem
são os vencedores e os vencidos, quais personalidades estão com os índices de
popularidade em alta ou em baixa, como consequência de eventos políticos do mês,
da semana ou do dia anterior. A realização frequente de pesquisas de opinião pelas
agências de noticias permitem esse tipo de hiperreflexividade ao fornecer uma base
supostamente objetiva para especulações dos jornalistas sobre os impactos das
204
ROSA, 2007, p.410. 205
CASTELLS, Manuel. A política informacional e a crise da democracia. Tradução Klauss Brandini Gerhardt.
São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 370.
89
ações políticas e as respectivas reações da imprensa a tais ações, mediante a
avaliação popular de diversos políticos. 206
O que pode ser analisado, no caso Alceni Guerra, se confirma no que diz Sandra
Moog. Por parte da cobertura, tanto da Folha como dos demais jornais e a revista analisada,
foram, sem dúvida, especulações e mais especulações de assuntos no noticiário, com uma
espécie de termômetro para saber quando o ministro ia cair.
Voltando então aos deslizes, o segundo também é apontado no livro de Bucci.
2 – Vasculhar a vida privada das pessoas, publicar detalhes insignificantes de
personalidades e de autoridades para desacreditá-las – Esse deslize foi observado dentro do
estudo desse trabalho. Todos os jornais vasculharam a vida de Alceni, inclusive com
reportagens publicadas quando o ministro fazia um simples passeio em um parque da cidade.
Veja um trecho da reportagem da Folha na edição de 8 de dezembro de 1991. O título daquele
dia: ―Alceni chora quatro vezes e diz que não pedirá demissão‖.
O ministro da Saúde, Alceni Guerra, chorou ontem quatro vezes durante entrevista no
Ministério da Saúde. Ele afirmou que não pensa em pedir demissão. Estava
acompanhado do filho Guilherme, 12. As denúncias de supostas irregularidades
atingiram um dos ministros preferidos do presidente Fernando Collor de Melo.
Responsável pela principal obra social do governo, os Ciacs, Alceni foi o alvo da
semana207
.
A célebre foto de Alceni na sarjeta sentado, ao lado do filho, com uma bicicleta
também foi publicada nas edições da Folha (fig. 7).
206
CASTELLS, Manuel apud. MOOG, Sandra, p. 379. 207
Folha de S. Paulo. Alceni chora quatro vezes e diz que não pedirá demissão. 8 de dezembro de 1991, p.6.
90
Fig. 7
A edição do dia 7 da Folha é mais curiosa. Nela, aparece a manchete sobre o
principal assunto: ―Alceni recua e susta compra de bicicletas‖.
Proposital ou não a foto principal da capa naquele dia não é de Alceni e sim do
presidente Fernando Collor, ao lado do então governador Luiz Antônio Fleury Filho.
A legenda da foto diz: ―Incomodado por uma coceira no olho, Collor acompanha
com o governador Luiz Antônio Fleury Filho formatura de cadetes da Academia da Força
Aérea de Pirassununga (SP)‖.
Mas observando a foto (fig. 8) nota-se que profundamente analisada, ela pode ou não
ter sido colocada ao lado da manchete sobre as denúncias de Alceni Guerra. É como se o
jornal quisesse dizer: ―Collor precisa abrir os olhos para os atos de corrupção de seu ministro
da Saúde‖. Mas, reparando analiticamente, percebe-se um Collor em atitude característica de
91
uma pessoa que diz para a outra: ―Vou abrir o olho‖ e acima coincidentemente ou não a
manchete sobre as denúncias de Alceni.
Fig. 8
Esse tipo de instrumento ‗oculto e sub-liminar‘, utilizado pela mídia, como fez a
Folha nesse episódio, pode ser equiparado ao que o Perseu Abramo chamaria de ―Inversão da
relevância dos aspectos‖. ―O secundário é apresentado como o principal e vice-versa; o
particular pelo geral e vice-versa; o acessório e supérfluo no lugar do importante e decisivo; o
caráter adjetivo pelo substantivo; o pitoresco, o esdrúxulo, o detalhe, enfim, pelo
essencial208
‖.
O terceiro deslize apontado no livro de Eugenio Bucci também tem grande relevância.
3 – Construir uma história falsa, seja em apoio a versões oficiais, seja para justificar
uma suspeita – Aqui os jornais, como a Folha, cometeram esse erro ao publicarem denúncia
de corrupção que não existia e que foi comprovadamente desmentida, após reconhecido pela
92
Justiça e pelos próprios meios de comunicação ou jornalistas que acompanharam o caso na
época.
O maior problema, como já revelamos anteriormente, é que a imprensa geralmente dá
muito mais importância para as notícias negativas, ainda mais quando se trata de escândalos.
Manuel Castells, em ―A política informacional e a crise da democracia‖, também identificou
essa característica.
A fim de compreender a inserção da política na lógica dos meios de comunicação,
devemos atentar para os princípios fundamentais que regem a mídia informativa: a
corrida em busca de maiores índices de audiência, em concorrência direta com o
entretenimento; e o necessário distanciamento da política, para conquistar
credibilidade. Isso se traduz nas tradicionais premissas para uma boa cobertura de
notícias, conforme Gitlin: ―As notícias devem estar voltadas ao evento, não às
condições a ele subjacentes; na pessoa, não no grupo; no conflito, não no consenso;
no fato que ―antecipa a história‖, não naquele que a explica‖. Somente as ―más
notícias‖, referentes a conflitos, cenas dramáticas, acordos ilícitos ou
comportamentos questionáveis são noticias interessantes. Considerando que as
notícias são cada vez mais submetidas à concorrência dos programas de
entretenimento ou de eventos esportivos, o mesmo acontece com sua lógica. Ela
exige cenas dramáticas, suspense conflito, rivalidades, ganância, decepções,
vencedores e vencidos e, se possível, sexo e violência‖209
.
Está aí um prato cheio para a grande imprensa brasileira. O caso Alceni Guerra teve
um pouco de tudo: cenas dramáticas (um passeio com o filho no parque, o choro do ministro),
ganância, suspense, conflito, rivalidade (vejamos então a missão de Alceni para tentar
emplacar uma aproximação entre Leonel Brizola e o empresário Roberto Marinho). Também
teve vencedores e vencidos. O vencido foi o ministro da Saúde, demitido pelo presidente
Collor após as denúncias de superfaturamento na compra de bicicletas e seu desgaste político.
4 – Publicar o provisório e o não-confirmado para obter o furo. Transformar rumor
em notícia – Foi outra característica, dentro dos deslizes da imprensa, citados por Bucci. Uma
falha inadmissível e cruel que pode trazer prejuízos inimagináveis à figura pública. Nesse
contexto praticamente só existe espaço para o negativo. No livro a Era do Escândalo, o
próprio Alceni conta que ―uma outra vertente da competição era no sentido de quem atirava
mais, que ia conseguir derrubar o ministro. Qual a manchete ia resultar na minha
demissão‖210
.
A característica citada por Bucci também é confirmada por Perseu Abramo. Ele diz
que não é o fato em si (nesse caso o verdadeiro) que passa a importar, mas a versão que dele
208
ABRAMO, 2003, p. 29. 209
CASTELLS, 2000, p. 379. 210
ROSA, 2007, p. 408.
93
tem o órgão de imprensa, seja essa versão originada no próprio órgão de imprensa, seja
adotada ou aceita de alguém – da fonte das declarações e opiniões211
.
Ou seja, a posição da grande imprensa, como se pode observar na cobertura da Folha
de S. Paulo, e dos demais órgãos estudados nesse episódio foi clara. Os jornais abriram os
olhos para uma denúncia não comprovada e os fecharam para uma ‗investigação jornalística‘
mais profunda e cuidadosa no trato das análises políticas.
A meu ver, jornais e a Revista Veja, deram a notícia sem qualquer preocupação
assumindo conscientemente um possível erro posterior. É como veremos nos próximos
capítulos: jornalistas têm características intrínsecas dentro desse setor. Eles se apresentam
como representantes do que chamam de interesse público, que muitas vezes, na verdade, se
confunde com o interesse do público. No entanto, existe um argumento insofismável de que a
imprensa é uma atividade privada.
Ainda remetendo-se às opiniões de Abramo e Bucci, em que se publica fatos não
confirmados como sendo verdadeiros, há uma referência importante no livro Padrões de
Manipulação da Grande Imprensa, do primeiro autor.
O órgão de imprensa praticamente renuncia a observar e expor os fatos mais triviais
do mundo natural ou social, e prefere, em lugar dessa simples operação, apresentar
as declarações, suas ou alheias sobre esses fatos. Frequentemente, sustenta as
versões mesmo quando os fatos as contradizem. Muitas vezes, prefere engendrar
versões e explicações opiniáticas cada vez mais complicadas e nebulosas a render-
se à evidência dos fatos. Tudo se passa como se o órgão de imprensa agisse sob o
domínio de um princípio que dissesse: se o fato não corresponde à minha versão,
deve haver algo errado com o fato212
.
2.10. A imprensa fecha os olhos para as explicações de Alceni
Já vimos que a imprensa, que sempre debate as contradições de outras instituições
sociais, frequentemente deixa a desejar quando o assunto é o momento de discutir as suas
próprias. Na análise das reportagens dos meios de comunicação em estudo, em relação ao
caso Alceni Guerra, pode-se perfeitamente afirmar que é possível identificar excessos nas
coberturas com inverdades pontuais. As acusações foram implacáveis. No entanto, uma
observação é muito importante. Os meios de comunicação teriam dado o espaço devido para
que o ministro pudesse se explicar? A resposta, com certeza, é não.
211
ABRAMO. 2003, p.29. 212
ABRAMO, loc. cit.
94
Ricardo Noblat revela uma característica comum dos jornalistas. Segundo ele, ―por
orgulho, soberba, vaidade ou ignorância, jornais e jornalistas procuram fazer de conta que só
acertam. E quando são pilhados em erro custa-lhes admitir que erraram213
.
No caso do ministro Alceni Guerra, a grande imprensa teria errado ao não dar o devido
espaço para a defesa. Durante todo o episódio em que foi acusado o ministro tentou dar
explicações para derrubar a denúncia de superfaturamento na compra de bicicletas. Depois
surgiram novas denúncias, de outras compras como guarda-chuvas.
O ministro relata, no livro ―A era do escândalo‖, que chegou a pedir para que um
funcionário do ministério fosse a uma grande loja de varejo de Brasília, uma das maiores
redes do País, onde se vendiam bicicletas a um preço inferior ao que seria pago pelo
ministério na compra das 23 mil unidades. A resposta foi de que era impossível manter o
preço do varejo, porque o valor na fábrica já era superior aquele praticado na loja e também
maior em relação ao vencedor da licitação. Era assim o Brasil da inflação, segundo o ministro.
Ele conta que pegou os dois orçamentos – o da fábrica, e já mais caro do que o pago pelo
ministério, e o da loja, mais barato – e viu que não havia superfaturamento, como noticiava a
imprensa. Esperava assim provar que o Ministério da Saúde realmente tinha razão em suas
explicações. Mas, ao contrário do que se esperava, as notícias negativas se evoluíram. A
imprensa já tinha se voltado contra o ministério.
Alceni conta também que somente muito tempo depois descobriu que a primeira
denúncia partira de um dos perdedores da licitação que forneceu dados equivocados ao
Correio Braziliense – jornal de onde partiu a denúncia.
As acusações eram infundadas e de má-fé. A denúncia era a seguinte: o ministério
iria pagar Cr$ 140 mil por cada bicicleta, quando o produto era vendido em uma
loja de varejo de Brasília por Cr$ 95 mil. Só que o preço praticado na indústria era
de Cr$ 180 mil. Vale lembrar que a inflação naquele período era de 30% ao mês.
Então, era muito difícil lidar com uma acusação de superfaturamento num cenário
inflacionário de majoramento de preços da ordem de 1% ao dia. Além disso, no
caso das contas do governo, não se pode ignorar que os pagamentos eram feitos
com prazos que variavam de 30 a 60 dias. Era óbvio que quem fosse avaliar os
valores de qualquer licitação com os praticados no mercado iria encontrar
discrepâncias. Afinal, os parâmetros de preços mudavam diariamente. Quem paga
uma bicicleta com 30% de inflação mensal em 60 dias de prazo não pode
desembolsar o mesmo que quando compra a mesma mercadoria à vista. Existe algo
mais elementar, cristalino, óbvio? 214
Dentre os jornais analisados, pouco ou quase nada, se falou sobre isso. O Correio
Braziliense, por exemplo, em uma semana maciça de acusações não publicou qualquer
213
ROSA, 2007, p. 448.
95
reportagem específica com essas explicações. A ênfase foi dada na possibilidade de abertura
de uma auditoria para investigar o caso.
O Jornal Folha de S. Paulo trouxe duas notas – nas edições dos dias 5 e 6 de
dezembro-, respectivamente, onde o ministro explica que a diferença de valores teria sido
ocasionada pelo preço do frete.
A presidente da Funasa, Izabel Stefano, admitiu que os preços das bicicletas estão
elevados. Justificou que os preços se devem aos custos do frete de transporte e
armazenagem. Alceni Guerra não falou da compra. Disse que Izabel Stefano
esclarecia a compra. A Comissão de Finanças da Câmara convocou Alceni a depor
na terça-feira215
.
Na edição do dia seguinte, a Folha de S. Paulo destinou o mesmo espaço – uma coluna
com 400 caracteres -, para a mesma explicação. Desta vez, dada pelo próprio ministro.
O ministro da Saúde disse ontem que não houve superfaturamento de preços na compra de 23,5
mil bicicletas. ―Superfaturamento é a mãe de quem está inventando isso. Provamos que os preços
eram inferiores aos da fábrica e que o acréscimo em relação ao varejo deve-se ao custo de frete e
armazenagem‖. Disse que o custo do frete também é o motivo para os preços das talhas de barro
compradas serem superiores aos de mercado216
.
O Jornal O Estado de S. Paulo também trouxe a versão apresentada sobre pagamentos
de taxas e fretes, na página 5, da edição do dia 5 de dezembro. A exemplo da Folha, não fez
menção à majoração provocada pela inflação.
A Revista Veja (edição 11 de dezembro) usou a explicação da alta da inflação para
deixar no ar uma atmosfera ainda mais incriminatória, de que o aumento de preços poderiam
sim ter sido um instrumento para superfaturamento das compras do governo.
É natural que, com uma inflação estratosférica, as concorrências públicas sejam um
ambiente de falcatruas. Depois que o governo proibiu o uso de indexadores, os
preços das compras a prazo ficaram tão fáceis de prever quanto a inflação
acumulada da década de 90. Na semana passada, por exemplo, as mochilas que o
Ministério da Saúde preparava-se para comprar por 8.700 cruzeiros na Casa
Helvética, em São Paulo, podiam ser encontradas por 3.100 cruzeiros, na Diana
Paolucci, ou por 7.900, na Casa Mascingrande, ambas em São Paulo. É uma
matemática embaralhada...217
.
214
ROSA, 2007, p. 402. 215
Folha de S. Paulo, 5 de dezembro de 1991, p. 10. 216
Folha de S. Paulo, 6 de dezembro de 1991, p. 4. 217
Veja, 11 de dezembro de 1991, p. 39.
96
Então, portanto, todos os jornais e a revista em estudo, passaram para o público uma
verdade subjetiva. Não se aprofundaram nas explicações ou no que poderia ser a ―verdadeira-
verdade‖ desse episódio. Eugênio Bucci diz que a ―verdade da imprensa é por definição uma
verdade precária‖.
(...) sua força não virá jamais da veracidade total, de resto impossível, mas de sua
transparência em lidar com as limitações que lhe são congênitas. Se a verdade é
precária, a credibilidade da imprensa pode ser duradoura. Ela só depende do
vínculo de confiança. Daí procede a essenciabilidade da discussão ética quando se
trata de conferir qualidade ao jornalismo. A confiabilidade e a credibilidade advêm
da atitude, em relação aos fatos e ao público, daqueles encarregados de relatar os
fatos a esse mesmo público – já não vêm da empáfia de quem não admite ser
desmentido jamais, nem mesmo pelos fatos. Que efeitos produz no público a
postura de auto-suficiência de um órgão de imprensa que repele todo
questionamento ético? O primeiro efeito é o da percepção de arrogância, que é cada
vez menos temida e cada vez mais reprovada pelas pessoas comuns. Um outro
efeito é a impressão de que o veículo arrogante acredita (ou finge acreditar) que
aquilo que publica é ―a‖ verdade218
.
CAPÍTULO 3 – CASO IBSEN PINHEIRO
3.1. Ibsen Pinheiro e a máfia dos anões do orçamento
Ibsen Pinheiro era presidente da Câmara dos Deputados, em 1992, quando foi
instalada a CPI do caso PC Farias219
. Comandou a sessão que autorizou a abertura de processo
de impeachment contra o então presidente Fernando Collor de Mello.
Na ocasião, pronunciou uma frase histórica: "O que o povo quer, esta Casa acaba
querendo". No ano seguinte, no entanto, a vontade da Câmara Federal se voltou contra ele.
Ele foi investigado pela CPI dos Anões do Orçamento e acusado de ter movimentação
financeira incompatível com seu patrimônio. A acusação foi reproduzida à exaustão pela
imprensa e, em maio de 1994, Ibsen teve o mandato cassado. Em dezembro de 1999, o STF
218
BUCCI, 2000, p. 52-53. 219
Em valores atuais, o "esquema PC" arrecadou exclusivamente de empresários o equivalente a R$ 15
milhões, em dois anos e meio do governo Collor. Paulo César Cavalcante Farias, conhecido como PC Farias, foi peça-chave no processo de impeachment do ex-
presidente e atual senador, Fernando Collor de Mello. As irregularidades ligadas ao seu nome começaram ainda
na época da campanha quando foi tesoureiro. As acusações partiram do irmão de Collor, Pedro, em entrevista
para a revista Veja em 1992. Em valores atuais, o "esquema PC" arrecadou exclusivamente de empresários
privados o equivalente a US$ 8 milhões, equivalente a R$ 15 milhões, em dois anos e meio do governo Collor
(1990-1992). O escândalo acabou de forma trágica. Quatro anos depois, PC Farias foi encontrado morto, junto
com sua namorada Suzana Marcolino, em Alagoas. Depois de muita confusão na apuração, envolvendo laudos
distintos de dois legistas consagrados - Badan Palahares e George Sanguinetti, o caso é considerado oficialmente
97
extinguiu o processo: considerou insatisfatória a consistência das denúncias. Em 2004, um
dos jornalistas que escreveu matéria contra ele admitiu ter cometido erros na apuração como
será visto no decorrer desse trabalho. A manipulação aconteceu.
Em 2003, Ibsen voltou à política como secretário de Comunicação do governo
Germano Rigotto, no Rio Grande do Sul, depois de trabalhar como professor, diretor de clube
de futebol, jornalista e comentarista esportivo. Em 2004, foi o vereador mais votado em Porto
Alegre. Em 2006, restabeleceu sua vida pública por completo. Voltou à Câmara com 76.165
votos.
A grande imprensa foi implacável. A Revista Veja publicou, na edição nº 1314, de 17
de novembro, de 1993, matéria de capa ―Até tu Ibsen?‖ – um baluarte do Congresso naufraga
em dólares suspeitos. E, nas páginas internas daquela edição os seguintes títulos: ―Ibsen se
explica, mas não convence‖ (publicado na página 5), ―Uma estrela na lama‖ ( página 36). Em
um dos trechos da reportagem, Veja faz a seguinte acusação. ―A CPI descobre que o deputado
Ibsen Pinheiro movimentou 1 milhão de dólares em suas contas e derruba um símbolo do
Legislativo‖.
A reportagem trazia também um pouco da trajetória ascendente do deputado. Ibsen
soube mudar de vida.
Quando criança, ajudava a mãe vendendo laranja nas ruas de Porto Alegre. Aos 16
anos, escrevia para o Jornal do PCB. Acabou virando colunista esportivo, fanático
pelo Internacional, e trabalhou no Jornal do Brasil, no Rio. De volta ao Rio Grande
do Sul formou-se em Direito em 1963 e cobriu duas Copas do Mundo. Fez sua
estréia na política em 1976. Foi o vereador mais votado. Está no terceiro mandato de
deputado federal220
.
Os jornais O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo e Correio Braziliense também
publicaram por 15 dias seguidos reportagens de capa e, na maioria das vezes manchetes, o
caso do ‗escândalo‘ de Ibsen Pinheiro.
O primeiro jornal trouxe os seguintes títulos entre os dias 8 e 17 de dezembro de 1993:
―Escândalo pode tirar cargo de Ibsen na revisão‖, ―Cheques reforçam acusação a deputado‖,
―Ibsen renuncia a função na reforma‖ (manchete), ―Ibsen renuncia e Genebaldo avisa que vai
sair‖, ―CPI acha novos depósitos em contas de Ibsen‖, ―Ibsen movimentou US$ 340 mil em
um ano‖, Ibsen movimentou US$ 1 milhão desde 1989 em conta do Banrisul‖, ―Ibsen justifica
depósito como sobras de eleição‖ e ―Ibsen alegará que usou sobra de campanha‖.
apenas como um crime passional apesar da suspeita de assassinato. (Fonte:Museu da
Corrupção:www.muco.com.br, acesso 25 de maio de 2012, às 00h14). 220
Veja, 17 de novembro de 1993, p. 33.
98
Já a Folha de S. Paulo trouxe reportagens no mesmo período: ―Acusações contra
Ibsen e Roriz abrem crise na CPI‖, ―CPI descobre novas contas de Ibsen‖, ―CPI acha US$ 160
mil em poupanças de Ibsen‖, ―Ibsen tinha mais de US$ 340 mil no Banrisul‖, ―Depósitos de
Ibsen superam US$ 1 mi‖, ―CPI revelou que depósitos a Ibsen superam US$ 1 mi‖.
O Correio Braziliense também repetiu as denúncias em suas edições: ―CPI decide
convocar Ibsen e Genebaldo‖, ―Ibsen rebate acusações sobre corrupção‖, ―Ibsen reage e quer
ver os cheques‖, ―CPI descobre altos depósitos nas contas de Ibsen e Genebaldo‖, ―Festival
de cheques espanta CPI‖, ―CPI convoca mais sete parlamentares‖, ―CPI descobre conta
milionária de Ibsen‖, ―Mais US$ 169 mil na conta de Ibsen‖, entre outras manchetes.
Em todas as reportagens da grande imprensa, Ibsen tentou em vão se explicar. O
espaço dado para as explicações de defesa gerou mais acusações que se repetiam dia-a-dia nos
noticiários. Foi como jogar gasolina no meio da fogueira.
3.2. Ibsen: Revista Veja
Não é preciso dizer que a Revista Veja é o maior semanário do País, com tiragem de
mais de 1 milhão de exemplares, como já foi visto anteriormente. Segundo seu fundador,
Roberto Civita ―é fundamental que a revista seja independente, isenta, inteligente e
responsável.
Que não admita pressões de governos e governantes, amigos e inimigos, acionistas e
anunciantes. Que busca a objetividade. E que esteja comprometida – sempre – com a
liberdade e a verdade. Evidentemente, não basta declarar boas intenções para
realizá-las. É preciso reunir centenas de competentes jornalistas, treiná-los, motivá-
los e liderá-los com sensibilidade, imaginação e talento221
.
O discurso do fundador de Veja, no entanto, pode contrastar com a prática. A revista
pode ter sido um dos órgãos de imprensa que mais influenciou ou que contribuiu para a
cassação do mandato do deputado federal Ibsen Pinheiro.
Aliás, a influência que os meios de comunicação mantêm na opinião pública é descrita
por Francisco Fonseca. Segundo ele, periodicamente o aparato de manchetes, editoriais,
artigos, charges, fotos, reportagens, dentre outros recursos, possibilitam aos jornais uma
221
Veja. Edição Especial, ano 41, setembro de 2008. p. 14.
99
influência sutil, capaz de sedimentar – embora de forma não mecânica – uma dada ideia,
opinião ou representação.
Não bastasse isso, as trincheiras ideológicas (ocupação das instituições produtoras
de cultura, entendida como visão de mundo), no contexto de uma guerra de posições
(busca do poder mediante a conquista cumulativa de espaços ideológicos na esfera
cultural/ideológica), são particularmente expressas nos jornais. Estes, para além da
clareza do poder ideológico que possuem, objetivam a veiculação de ideias ou
influenciem: a chamada opinião pública, os detentores do poder estatal, e
determinados segmentos sociais (dos quais, por vezes, são porta-vozes)222
.
Além dessa influência, os erros e abusos podem ocorrer nas coberturas. Em sua edição
de 17 de novembro de 1993, nº 1.314, Veja trouxe uma reportagem ‗bombástica‘, com
acusação de corrupção contra o então deputado federal Ibsen Pinheiro, do PMDB do Rio
Grande do Sul.
Até tu Ibsen? - a frase é uma comparação à tragédia vivida por Caio Júlio César,
general romano que era senador – era o título da reportagem de Veja.
Caio Júlio César, general romano, conquistador, tribuno e historiador que
conquistou as Gálias, esteve no Egipto onde teve uma relação amorosa com
Cleópatra. A sua audácia e astúcia, tornaram-no numa lenda. Amado e odiado,
conseguia movimentar-se na complexa teia de influências da Roma de então. De
chefe militar passou a ditador fundador do império mais sólido de sempre. Como
senador foi brilhante. Teve diversos adversários como Catilina. César criou um
triunvirato com Pompeu e Crasso e distribuíram entre si os poderes do Estado.
Fizeram então alianças matrimoniais, Pompeu casou-se em quartas núpcias com
Júlia, filha de César e pela terceira vez com Calpúrnia, filha de um político
influente. No ano de 54 o triunvirato termina. Sem ter sido imperador é sem sombra
de dúvida a mais conhecida figura da História Romana e mentor de grandes
militares e políticos de diversos países. Júlio César cai em desgraça perante os seus
pares e é assassinado, em pleno Senado, por 60 conjurados, entre eles um familiar
insuspeito: o seu próprio sobrinho e filho adotivo. Surpreso, César disse em latim:
Tu quoque, Brute, fili mi? (Até tu, Brutus, meu filho?)223.
A capa (fig. 9) trazia um deputado ―atordoado‖ movimentando as mãos e os braços
como se fosse aplicar um golpe de artes marciais.
222
FONSECA, 2005, p. 29-30. 223
www.leme.pt/historia/palavras/cesar.html.
100
Fig. 9
Abaixo da manchete, o subtítulo ―Um baluarte do Congresso naufraga em dólares
suspeitos‖. Há nessa última frase uma subliminar tendência de pré-julgamento. Como se
quisesse alertar o leitor: de quem menos se esperava descobriu-se corrupção. A revista
questiona ―Até tu, Ibsen?‖ – e deixa no ar outras tantas perguntas que o leitor de Veja poderia
fazer, como por exemplo: ―Como pode? Até Ibsen Pinheiro está envolvido?‖. É como se
houvesse uma acusação ‗julgamento‘ do deputado.
Orlando Santos Jr. tem um pensamento importante sobre a liberdade de informação e
os direitos e liberdades políticos.
Os direitos e liberdades políticos, ao fazerem parte do repertório dos direitos civis e
sociais, têm limites que são indetermináveis sob o ponto de vista teórico. Tal
problema pode ser bem ilustrado com a questão da liberdade de informação, em
que, apesar do consenso em torno de sua defesa, é impossível indicar, com base em
critérios teóricos, quais os aspectos da liberdade de informação que são, de fato,
relevantes para a democracia política: assim, ―mesmo no âmbito do regime, salvo
casos claramente localizados nos pólos de plena vigência e de negação desses
direitos de liberdade, surgirão disputas quanto ao caráter democrático ou não do
regime... 224
Na página 5 daquela edição, Veja traz a chamada para a reportagem sobre a
denúncia: Ibsen se explica, mas não convence225
. Na mesma página Ibsen aparece ‗matando‘
224
JÚNIOR, Orlando Alves dos Santos. A democracia e Governo Local. Editora Revan, 2001. p. 77. 225
Veja, 17 de novembro de 1993, p. 36.
101
uma bola no peito e abaixo a legenda da foto: Ibsen Pinheiro começou a semana passada
tendo de explicar três cheques de Genebaldo Correia depositados em sua conta e acabou
enrolado em saldos bancários volumosos e um patrimônio difícil de esclarecer.
Na foto de página interna de Veja, Ibsen aparece tentando se explicar. O título da
reportagem ―Uma estrela na lama‖, que não vem assinada pelo jornalista que a produziu, mas
que era de autoria de Luís Costa Pinto. E abaixo a linha fina (olho da matéria, um resumo) da
reportagem: A CPI descobre que o deputado Ibsen Pinheiro movimentou 1 milhão de dólares
em suas contas e derruba um símbolo do legislativo. Mas, tarde como veremos, Veja errou na
contabilidade. Não eram 1 milhão e sim 1 mil. O grave erro só foi descoberto 11 anos mais
tarde com a revelação do jornalista que produziu a reportagem. A matéria foi publicada na
revista IstoÉ, como veremos depois.
Na reportagem, a revista reconhece a reputação de Ibsen. Daí um prato cheio para ir
a fundo nas denúncias que vieram sobre ele. Uma figura pública, de grande influência
política, daria uma grande reportagem. Afinal como foi visto nos capítulos anteriores um
‗bom escândalo político‘ com trama novelesca vende.
Na visão de autores, como Thompson, os escândalos preenchem um espaço crescente
na ‗novela‘ da vida real, em que a forma da narrativa jornalística se confunde cada vez mais
com as formas tradicionais de drama (inclusive com seus arquétipos básicos, os vilões, os
mocinhos, o ápice e o desfecho de cada drama ou escândalo).
Observe o que diz a reportagem de Veja sobre a reputação de Ibsen Pinheiro.
Com uma década de Brasília, onde chegou em 1982 a bordo de 48.500 votos, o
deputado Ibsen Pinheiro, de 58 anos, tornou-se uma figura impoluta e respeitada.
Cumpriu seu primeiro mandato como um político esforçado, que cozinhava seu
jantar no apartamento funcional, enquanto a mulher, Laila, permanecia em Porto
Alegre, com o filho único do casal, Márcio, hoje com 26 anos. No segundo
mandato, Ibsen Pinheiro ocupou a liderança do PMDB, comandando uma poderosa
bancada de 260 deputados. No terceiro, com seu eleitorado ampliado para 65.000
votos, chegou ao ponto alto da carreira. Na presidência da Câmara, com seu cabelo
engomalinado, comandou a sessão do impeachment de Collor e prestou um imenso
serviço ao País, ajudando a tirar um corrupto do Planalto. Na hora de dar seu voto,
posicionou-se a favor do impeachment e afirmou que ―o que povo quer esta Casa
acaba querendo‖, num brinde emocionado às alegres manifestações que ocupavam
as ruas226
.
Portanto posicionando o leitor na introdução da reportagem, Veja parece produzir
uma espécie de preparação para deixar as acusações mais sérias. É como se alertasse o leitor
para dar conhecimento de quem estaria cometendo atos de corrupção.
226
Veja, 17 de novembro de 1993, p. 30.
102
A mesma reportagem também trazia um pouco da biografia e importância política do
deputado. ―Formado em direito em 1963, conquistou a imagem do promotor capaz de agir à
maneira dos magistrados. Com sua ascensão, entrou no elenco dos cotados ao Planalto.
Tornou-se um político popular, apesar do nome de dramaturgo norueguês‖227
.
Segundo a reportagem, apesar de todas essas qualidades, a CPI do Orçamento
descobriu que o deputado movimentou em suas contas bancárias 1 milhão de dólares. A
revista diz que a informação foi um choque.
Como na tragédia grega, quando maior o homem, maior a sua queda. E Ibsen
Pinheiro tinha sua grandeza. Não era um anão, um João Alves, um Genebra ou um
Quinzinho. Ibsen Pinheiro não era um deputado do PSD enlameado com dólares na
venda de mandatos. Não era um traficante de drogas, como Jabes Rabelo. Era um
símbolo do Parlamento. ―Ganhei espaço político, mas não tenho a imagem de
administrador. Porque isso, tenho de firmar-me como homem de Estado‖, ponderou
ele, numa conversa recente com aliados. Sua queda transforma-o na primeira estrela
a soçobrar no escândalo orçamentário. Na semana passada, acuado pelos próprios
cheques, o deputado renunciou à relatoria do regimento da revisão. O Congresso
estava perplexo. ―Foi uma decepção‖, diz o deputado petista José Genoíno. ―Eu não
vou comentar nada. Em 24 anos de repórter convivi com surpresas, mas essa foi de
matar‖, esquivou-se o ministro da Previdência, Antônio Brito228
.
Nesta mesma edição, a revista fez a reprodução de dois cheques supostamente
depositados em favor do deputado Ibsen Pinheiro nos valores totais de 35 mil dólares. A
reportagem traz ainda uma ligação entre Ibsen e a máfia229
dos anões do orçamento230
.
227
Veja, 17 de novembro de 1993, p. 30. 228
Ibid., p. 30-31. 229
A denominação máfia foi usada por toda a grande imprensa da época. 230
Os chamados "Anões do Orçamento" foram congressistas brasileiros que no final dos anos 80 e início dos
anos 90 se envolveram em fraudes com recursos do Orçamento da União até serem descobertos e investigados,
em 1993, perante uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) de grande repercussão. A denominação de
"anões" era uma alusão a coincidência de serem os principais envolvidos homens de baixa estatura física. Os
"Anões do Orçamento" foram descobertos em outubro de 1993, a partir das denúncias do economista José Carlos
Alves dos Santos, integrante da quadrilha e chefe da assessoria técnica da Comissão do Orçamento do
Congresso. As revelações levaram à realização de uma CPI no Congresso Nacional que durante três meses
esmiuçou o esquema de propinas montado por deputados que atuavam na comissão. Foram 18 acusados. Seis
foram cassados, oito absolvidos e quatro preferiram renunciar para fugir da punição e da inelegibilidade. O
rastreamento das contas bancárias acabou derrubando o presidente da Câmara, Ibsen Pinheiro (PMDB), o líder
do PMDB, deputado Genebaldo Corrêa (BA) e o deputado baiano João Alves de Almeida (falecido em 2004),
suposto chefe do esquema. Alves lavava o dinheiro comprando cartões de loteria premiados. Havia dois
esquemas fraudulentos. No primeiro, parlamentares faziam emendas remetendo dinheiro para entidades
filantrópicas ligadas a parentes e laranjas. Mas o principal eram os acertos com grandes empreiteiras para a
inclusão de verbas orçamentárias para grandes obras, em troca de polpudas comissões. O ex-chefe da Assessoria
de Orçamento do Senado, José Carlos Alves dos Santos, ao denunciar as irregularidade, fez desmontar o
esquema. Mas ele próprio foi preso e acusado de assassinar a esposa, Ana Elizabeth Lofrano, que ameaçava
denunciar os podres da máfia. Na casa dele foi achada uma mala com mais de US$ 600 mil.
A situação de José Carlos se complicou com a prisão de dois cúmplices, que mostraram o local onde enterraram
o corpo de Ana Elizabeth, após a terem matado a golpes de pedra e picareta em novembro de 1992, na presença
do marido. O assessor foi condenado a 20 anos de prisão. Em sua defesa, acusou os ex-deputados João Alves e
Ricardo Fiúza como os verdadeiros mandantes do assassinato de sua mulher.
103
A descoberta de 1 milhão de dólares na sua conta foi demolidora. O mais grave é
que se poderia suspeitar há muito tempo do lado oculto do deputado, a julgar por
suas relações com a máfia dos anões. Como líder do PMDB em 1989, Ibsen indicou
os anões do partido para a Comissão de Orçamento – Genebaldo Correia, Cid
Carvalho, Manoel Moreira e José Geraldo Ribeiro. A intimidade era tanta que
Ibsen, depois de ir à Tunísia numa missão parlamentar, fez um cruzeiro pelas ilhas
gregas com esses mesmos anões, em 1991. Em Istambul, na Turquia, uma
fotografia eternizou a imagem de Ibsen e os anões, todos com suas mulheres, num
jantar na noite de 16 de julho daquele ano. O deputado Genoíno, que os
acompanhou na parte oficial da viagem, impressionou-se com a intimidade de Ibsen
com os anões, mas não desconfiou de nada. Por duas vezes, Ibsen apoiou
Genebaldo para líder do PMDB contra seus conterrâneos Nelson Jobim, em 1991, e
Odacir Klein, no ano seguinte231
.
Nota-se que a revista tentava conseguir comprovar o envolvimento de Ibsen com a
máfia dos anões. Neste caso específico, o deputado José Genoíno que ficou impressionado
com a intimidade de Ibsen com os anões, segundo a Revista Veja, mas em nenhum momento
da reportagem se consegue ler sequer uma frase do deputado sobre esse episódio. Começa
então a exposição de um personagem político importante.
Aliás, a exposição dos personagens políticos na cobertura de um escândalo, muitas
vezes, de forma distorcida pode ocorrer na cobertura da imprensa.
De acordo com Mário Rosa, ―a mídia exerce dois papéis fundamentais no mundo
moderno: definir a pauta do cotidiano e expor personagens que a encarnam‖.
A mídia funcionaria idealmente, assim, como uma espécie de espelho do ambiente
social. Um espelho seletivo, pois se concentra não sobre todos os temas do universo
social, mas apenas sobre aqueles que são mais importantes ou surpreendentes.
Nesse sentido, qualquer mídia, em qualquer lugar do mundo, embute em seu âmago
um certo grau de distorção, pois não reflete a realidade como um todo, senão seus
aspectos capitais. Mas, no caso brasileiro, corre-se o risco de que esse grau de
distorção esteja bem maior, na medida em que alguns atores importantes estão
sendo muito mais expostos do que outros, igualmente importantes. Essa distorção
no espelho pode trazer como resultado diversas consequências políticas e sociais232
.
A Revista Veja também fez uma verdadeira devassa na vida pessoal de Ibsen.
Pesquisou seus bens, seu patrimônio questionando, inclusive, o apartamento do deputado de
R$ 70 mil, cobertura de 174 mil dólares – segundo a revista – quitada em ‗apenas‘ 14 meses.
Ou seja, todo e qualquer patrimônio do deputado parecia de origem ilícita. Aqui podemos
Na cadeia, José Carlos tentou o suicídio, mas foi salvo. Quase dez anos depois, já em liberdade condicional,
amarga uma vida solitária e sem atrativos. Não frequenta mais as altas rodas a que estava acostumado e teve a
aposentadoria cortada pelo Senado. Mas, ao contrário do que ocorre com a CPI do PC, onde os personagens
revelaram os bastidores dos crimes financeiros, muitos segredos dos "Anões do Orçamento" continuam
guardados. José Carlos até hoje se nega a falar sobre o assunto. 231
Veja, 17 de novembro de 1993, p. 30. 232
ROSA. 2007, p. 494.
104
dizer que a revista não traça, em princípio, a delimitação entre dois campos: interesse público
e o interesse do público. Os dois são frequentemente confundidos na reportagem.
O fundador de Veja, Roberto Civita, já afirmou anteriormente, como já foi enfatizado
nesse trabalho. ―É fundamental que a revista seja independente... E que esteja comprometida
com a liberdade e a verdade‖.
E qual seria a verdade de Veja nesse episódio? Acusar Ibsen? Sem ter provas
substanciais de crime? Veja apenas deu uma versão dos fatos, sem comprová-los, como
verdadeiros.
Para Eugênio Bucci, a verdade dos fatos, dentro do jornalismo, é sempre a versão dos
fatos. Veja o que ele diz:
Pode parecer uma pretensão modesta, a do jornalismo. Mas na realidade ela é uma
pretensão tão vasta que talvez seja inalcançável. No fundo da ética jornalística
dorme um problema do tamanho do mundo. A verdade dos fatos existe? Existe um
relato perfeitamente neutro e isento? A objetividade perfeita é possível? Não, não e
não. A verdade dos fatos é sempre uma versão dos fatos. O relato, qualquer que
seja ele, é discurso, e como tal, é inevitavelmente ideológico: mesmo quando
sincera e declaradamente não opinativo, o relato jornalístico é encadeado segundo
valores que obrigatoriamente definem aquilo que se descreve. A objetividade
perfeita nunca é mais que uma tentativa bem-intecionada. Denis Diderot disse certa
vez: Deve-se exigir de mim que eu procure a verdade. Não que a encontre‖233
.
Bernard Kucinski, publicou em 2003, uma série de verbetes sob o título ―As muitas
formas de não dizer a verdade‖. Os verbetes buscavam mostrar os variados tipos de artifício
que podiam ser usados nos jornais para distorcer notícias sobre o governo, batizados por
Kucinski como ‗mecanismos específicos de manipulação da matéria jornalística‘. ―A palavra
manipulação aí não tem o tom pejorativo que costuma se dar. Mas o significado sociológico,
no sentido de que muitas pessoas trabalham, manipulam um texto nos jornais‖234
.
As muitas formas de não dizer a verdade, de Kucinski, tinham por objetivo orientar as
redações de cartas das assessorias de imprensa e pedidos de resposta, partindo do princípio de
que os jornalistas valem-se de subterfúgios para distorcer os fatos. Para Kucinski, os meios de
comunicação têm tendência de valorizar denúncias e aspectos negativos, e prejudicar o
governo. O caso Ibsen é exemplo emblemático.
Os verbetes, segundo Kucinski, ‗descrevem os mecanismos específicos da
manipulação jornalística‘ que podem muito bem servir para análise da cobertura sobre o
‗escândalo‘ em que se envolveu Ibsen Pinheiro.
233
BUCCI, 2000, p. 51. 234
KUCINSKI, Bernard. Entrevista ao Correio Braziliense, 6 de julho de 2003.
105
Em um dos verbetes de ―As muitas formas de não dizer a verdade‖, Kucinski afirma
que algumas notícias são construídas de modo ‗a tornar os fatos especialmente torpes ou
sórdidos‘.
Kucinski cita que informações são colocadas fora de contexto para reforçar aspectos
negativos. Outra característica, na opinião dele, é de que os jornalistas guiam o juízo dos seus
leitores. Para ele, manchetes e reportagens inserem opiniões no texto ‗com intenção
deliberada de guiar o juízo dos leitores‘. Segundo Kucinski, esse é um ‗fenômeno cada vez
mais comum‘.
Ainda para Kucinski, alguns fatos são dimensionados ‗de modo desproporcional à sua
importância, com a finalidade de direcionar o seu sentido‘. Para ele, jornalistas também
fazem ‗denuncismo barato‘ – que seria a prática de publicar fatos suspeitos sem a
comprovação da verdade. Segundo ele, ‗é muito barato dar um furo de reportagem e se
mostrar guardião do interesse público, com esse tipo de matéria‘.
Por último, o escritor acredita que repórteres de política fazem jornalismo
mediúnico235
.
No caso, os repórteres ‗adivinham intenções, visões, crenças, disposição de espírito e
até mesmo os sentimentos dos protagonistas‘. ―A grande vantagem desse novo gênero é
justamente essa: dispensa fontes. Essa é a sua lógica operacional236
‖.
3.3. A vida „espartana‟ de Ibsen
A Revista Veja passou a vasculhar toda a vida privada de Ibsen Pinheiro, causando
consideravel prejuízos e perda de reputação. Aliás, essa é uma das características da grande
imprensa brasileira: investigar, além da vida pública, o cotidiano da vida privada do político.
A revista publicou o que chamou da vida espartana de Ibsen. Espartana referindo-se à
cidade de Sparta na Grécia? Veja, como já afirmara na reportagem, tentou mostrar o que
chamou de ‗tragédia grega‘ do deputado nesse episódio.
Ibsen teve uma origem humilde em São Borja, onde nasceu. Seu pai era artesão e
morreu quando Ibsen era pequeno. Para criar os três filhos – Ibsen, Ophir e Aura,
que já morreu – a mãe, Lilia, foi para Porto Alegre, onde abriu uma pensão para
estudantes. Ibsen ajudava no orçamento vendendo laranja nas ruas da cidade. Pelas
mãos de sua mãe, casada com um comunista, conheceu o antigo Partidão. Aos 16
235
O termo foi criado por um dos assessores de imprensa da Presidência da República, Fábio Kerche. 236
KUCINSKI, Bernard. Entrevista ao Correio Braziliense, 6 de julho de 2003.
106
anos, era redator do jornal do PCB. Hoje, refere-se aos tempos de comunista como
―coisas de juventude‖. Tornou-se cronista de esportes em jornal, rádio e TV. Aos
33 anos, abriu um escritório de advocacia e passou a trabalhar no departamento
jurídico do Internacional, time do seu coração. (...) Com essa vida modesta, o
deputado formou um bom patrimônio. Em 1978, comprou apartamento de dois
quartos, de 70.000 dólares, onde vivem seus sogros, em Porto Alegre. Na Praia do
Remanso, está reformando uma bela casa de frente para o mar. Vale 60.000 dólares.
Em janeiro de 1991 fez uma grande aquisição: comprou, por 174.000 dólares, uma
cobertura de 500 metros quadrados237
.
A reportagem, além de ter trazido as acusações de depósitos de 1 milhão de dólares
nas contas do deputado, mostrou, por outro lado, a vida privada do deputado. Esse tipo de
prática da imprensa é comum na cobertura de escândalos238
políticos.
Para Eugênio Bucci, quando se fala em invasão de privacidade fala-se de uma força
que não respeita nem a integridade física daqueles que são o objeto do desejo de massa. Para a
Veja, publicar notícias negativas sobre o deputado, um dos que contribuíram para o
impeachment de Collor, daria ‗audiência‘ – ou melhor venderia mais exemplares.
Bucci cita Paul Johnson sobre essa polêmica. ―Por mais privilegiados que seja, como a
realeza, por mais bem-sucedidos, como os astros do cinema e da música, por mais poderosos,
como os chefes de governo, ou ricos e comemorados, todos precisam de alguma
privacidade239
‖.
O que se percebe, cada vez mais nos meios de comunicação, é que esse grande
interesse pela vida privada é resultado também do grande interesse do público por ‗fofocas‘, e
saber o que aquela personalidade faz no seu dia-a-dia, como se fosse algo incomum. Desta
forma, essas coberturas cada vez mais fomentam os escândalos.
Vera Chaia, acredita que o tema de corrupção, na verdade, entrou na pauta da agenda
política e passou a atrair maior interesse da imprensa no início dos anos 90. É que nesse
período, ocorreu um dos maiores casos de escândalo desse País: o impeachment do presidente
Collor, do qual Ibsen Pinheiro, foi um dos parlamentares que contribuíram para a investigação
dos atos de corrupção do presidente da época.
237
Veja, 17 de novembro de 1993, p. 33-34. 238
A referência aqui citada tem como base os textos da professora e pesquisadora Vera Chaia que nem todo
escândalo político pode ser considerado ato de corrupção. No caso de Ibsen Pinheiro, ele foi sim vítima de uma
injustiça de cobertura da imprensa. Não é questão principal aqui saber se o Congresso foi ou não influenciado
pela reportagem de Veja para cassá-lo. No entanto, como o trabalho é tema jornalístico, o papel exercido por
esse meio de comunicação que, no Brasil, tem totais condições – ou teoricamente teria – de ser independente.
Mas, por razões óbvias e por fazer parte de uma estrutura hegemônica, a grande mídia não o é. 239
BUCCI, 2000, p. 150.
107
Para ela, o aparecimento de escândalos midiáticos é resultado de um jornalismo
investigativo e possuiu pontos positivos e negativos.
Por um lado, a divulgação desses escândalos provoca um aumento da fiscalização
das atividades políticas, forçando que sejam criados instrumentos para seu controle,
e por outro, a cobertura desses escândalos pode levar a uma generalização dos
―maus exemplos‖ de políticos, provocando descrença nas instituições, consideradas
como inoperantes e custosas240
.
3.4. Ibsen tem pouco espaço na mídia
Na mesma edição, de 17 de novembro de 1993, o deputado Ibsen Pinheiro teve pouco
espaço oferecido pela revista. Apesar disso, negou veementemente todas as acusações.
Segundo trecho da revista, o deputado garantiu que não lidou com ‗essa montanha de
dinheiro‘. Veja o que Ibsen disse: ―Não movimentei porque não sou louco. Não esqueceria
tamanha fortura‖241
.
Para Ibsen, haveria duplicidade de cheques. Na reportagem ele afirma que não tinha
relações com empreiteiras, não criou entidades fantasmas para levar dinheiro e depositá-lo em
sua conta. ―Vivo do meu salário e da minha biografia. É isso que quero preservar. A
contabilidade de 1 milhão de dólares foi feita na CPI, e é de sua responsabilidade. Mas,
podem ocorrer novas descobertas. A CPI não fez o cruzamento de todas as contas‖242
.
Por parte da grande imprensa, não foi feito cruzamento das contas e não se investigou
de forma esmiuçada as denúncias. Teria sido no acaso o valor de 1 milhão citado pela revista,
já que em nenhum momento a revista fez soma desse total ou mostra qualquer tipo de
depósito nesse valor absurdo. Se a Revista Veja afirma que os dados são da CPI, ela confiou
‗cegamente‘ nessa informação. É como se informações oficiais públicas, ou se órgãos oficiais
do governo, não necessitassem de checagem. Aliás, esse é um dos grandes problemas da
imprensa brasileira: confiar nas fontes públicas, sem confrontar dados com especialistas ou
alguma outra fonte que pode contrastar as informações, ou posicioná-la por um outro ângulo.
Marcelo Leite, então ombudsman da Folha de S. Paulo, num artigo de 31 de dezembro
de 1995, deixa claro que o jornalista deve ter plena confiança na fonte, com base em um
histórico de veracidade – percebe-se que ele deixa uma condição importante para que essa
240
CHAIA; TEIXEIRA, 2001, p. 73. 241
Veja, 17 de novembro de 1993, p. 33. 242
Ibid., p. 33.
108
confiança seja 100%. Para ele, o jornalista deve confirmar as informações que recebe – seja
oficial ou não – com, pelo menos, uma fonte independente. Essa observação teria faltado e
que, mesmo com números equivocados, como veremos mais adiante, a reportagem foi
publicada em detrimento à figura pública do deputado Ibsen Pinheiro.
3.5. CPI do Orçamento vira a CPI do Ibsen
O tribunal político que era a CPI do Orçamento transformou o deputado Ibsen
Pinheiro no principal astro. Veja deixou de se aprofundar na checagem de informações da
denúncia contra os anões do orçamento para se dedicar mais a vida pública e também
privativa do deputado do PMDB. A CPI do Orçamento virou a CPI do Ibsen.
Por um mês ininterrupto, a revista trouxe reportagens diretas, acusações, ―novas‖
denúncias e suspeitas. Com a figura pública arranhada, vivendo uma crise de imagem, Ibsen
tinha grandes dificuldades em se defender. A muralha a ser transposta parecia impossível
naquela época. Mário Rosa tem opinião formada sobre esse assunto:
(...) A dificuldade é maior nessas situações porque a única pessoa que pode se
defender no caso é justamente a que está tendo sua credibilidade atacada. Qualquer
gesto, qualquer fala podem tornar sua situação ainda mais delicada, quando não
contribuir para aumentar ainda mais a exposição do acontecimento 243.
A essa altura, Ibsen, claramente, já tinha dificuldades em conviver com as notícias
absurdas a seu respeito. Por mais que tentasse explicar, o efeito vinha contrário. Era como se
jogasse gasolina na fogueira.
3.6. A descoberta de um erro: a imprensa „vira‟ escândalo político
Depois da publicação da primeira reportagem, mostrando um Ibsen Pinheiro,
atordoado, com uma foto sugestiva na capa, como se ele fosse aplicar um golpe de artes
marciais, descontrolado, aparentemente, Veja puxou o freio à ‗saga‘ de acusações.
Na edição de 24 de novembro, a revista trouxe mais uma reportagem sobre o
243
ROSA, 2007, p. 513.
109
escândalo, mas não foi a manchete de capa. O assunto parecia se esgotar. ―Um milhão de
dificuldades‖ foi o título da matéria da página 43. O título era um trocadilho para lembrar a
acusação de que teriam surgindo um milhão de dólares nas contas do deputado. Até aquele
momento não havia sido comprovada a denúncia. E mais: a revista publicou matéria
reconhecendo que a CPI errou244
na contabilidade dos valores divulgados no caso Ibsen. Não
era um milhão de dólares.
Mesmo já sabendo que havia errado no número, a revista disponibilizou essa
informação no meio do texto, quase no fim. Não abriu a matéria com essa informação.
Apenas na linha fina (olho da matéria) constava que a CPI errou na conta de Ibsen Pinheiro.
Veja trecho da reportagem. ―(...) Já no caso do ex-presidente da Câmara Ibsen Pinheiro, a
quem atribuiu a movimentação bancária de 1 milhão de dólares nos últimos quatro anos, a
subcomissão (da CPI da Câmara) errou feio e colocou em risco a credibilidade da CPI‖245
.
Nesse caso, para a Veja, quem ‗errou feio‘ foi só a CPI. A revista se eximiu de culpa.
Mais um trecho em que a revista faz uma ‗mea-culpa‘ e tenta se justificar:
O erro é de ordem semântica: ―movimentar‖ é um termo bancário de significado
amplo demais. Movimentar 1 milhão de dólares não significa ter, ou ter tido,
riqueza equivalente. A subcomissão confundiu depósitos novos com transferências
de uma conta para outra, ou aplicações financeiras. Ibsen Pinheiro não teve
dificuldade de explicar 400.000 dólares de seus depósitos. ―Vieram de meu salário
como deputado, de minha aposentadoria como jornalista e de minhas diárias
internacionais‖, diz246
.
No trecho anterior então percebe-se que existe um erro, mas a revista tenta ‗amenizar‘
o equívoco chegando a dizer que ele é de ordem semântica. Tenta explicar que ‗movimentar‘,
não é ‗movimentar‘. Ter dito que a pessoa tem um milhão de dólares, ou não dizer são as
mesmas coisas, na visão da revista.
Há uma hipótese para certo comportamento da grande imprensa: jornalistas têm
dificuldade em aceitar que erram. Basta ler os jornais diários da grande imprensa e é possível
observar a pouca ou quase nada sessão destinada para os equívocos cometidos pela imprensa.
Dentro de uma ótica realista, é preciso dizer também que, mesmo involuntariamente, o
244
Aqui nota-se que a revista não reconhece seu erro, apesar de ter publicado na edição anterior o valor de um
milhão, ela diz que o equívoco foi da CPI. Ora, se a informação está errada não importa nesse momento saber se
foi a CPI ou a Veja que conseguiram esse número. O fato é que a informação saiu errada. E, se saiu errada, ela
foi deturpada, manipulada. Seja com ou sem intenção, houve sim a manipulação da informação. Aliás, a
manipulação, a meu ver, ocorre mesmo que o jornalista a faça com ou sem intenção, por processo culposo ou
doloso. Na edição seguinte, Veja também deixou de publicar qualquer nota de correção ou errata, como se diz no
jornalismo. 245
Veja, 24 de novembro de 1993, p. 43. 246
Veja, loc.cit.
110
jornalista que erra comete ‗pecados‘ incalculáveis quando o caso envolve figura pública. Ou
seja, o erro pode e destrói a vida pública de uma personalidade política, ou até mesmo de uma
artista ou qualquer figura conhecida do público.
Na opinião de Mário Rosa, existe certa arrogância nessa atitude por parte da grande
imprensa e, mais especificamente, dos jornalistas. Ele diz que sempre que há um erro
cometido por parte da imprensa, o meio de comunicação que o cometeu tenta relativizar esse
equívoco.
(...) ser jornalista é tentar acertar mais do que errar, é tentar acertar mais do que a
concorrência, é tentar acertar mais sobre temas mais importantes. Ser jornalista,
portanto, é tentar ser preciso. Quem sobrevive nesse jogo duríssimo da informação
passa naturalmente a confiar mais em si mesmo. Daí nasce o perigo: uma espécie
de arrogância do acerto que procura relativizar o erro, ou simplesmente negá-lo.
Jornalistas não costumam aceitar facilmente que estão errados, principalmente
durante as crises. Até porque muita gente tenta enganá-los dizendo que estão
errados, quando os fatos posteriores provam que não. Por isso, jornalistas resistem
em dar o braço a torcer e, quando dão, muitas vezes é tarde demais, quando a crise
já passou247
.
Luiz Martins da Silva, já citado nesse trabalho, tem uma postura enfática sobre os
erros da imprensa, principalmente quando eles são propositais. Para ele, erros conscientes
deixam a esfera jornalística para ser um crime, isso porque houve o dolo. ―Quando a imprensa
erra conscientemente, tipifica ação dolosa. Já não é erro, é crime. Já não é jornalismo, é
delinquência248
‖.
Fica a pergunta: o jornalista então não pode errar? Pode cometer equívocos desde que
sejam reconhecidos e que sejam reparados. Essa é a questão: a reparação, seja por meio do
reconhecimento do meio de comunicação ou até mesmo na Justiça.
Eugênio Bucci, também é claro ao afirmar que os jornalistas torcem o nariz para o
tema: os erros da imprensa. A ética é deixada de lado. Nas redações, segundo ele, a ética é
tratada como uma ‗alienígena‘. Jornalistas são considerados ‗independentes‘. Parecem viver
num mundo à parte, por isso consideram-se intocáveis.
(...) a recusa em discutir ética em público se manifesta como se fosse afirmação de
independência. Os jornalistas se recusam a prestar contas a quem quer que seja. O
paradoxo, contudo, é apenas aparente: o não-falar de ética parece querer exprimir
uma atitude de autonomia perante esferas externas, como a do poder e a dos
negócios, mas no seu fundamento essa pretensa autonomia é apenas arrogância.
Pode-se dizer que a arrogância jornalística não é outra coisa senão a afirmação de
uma auto-suficiência ética. É como se a imprensa proclamasse: minha função é
247
ROSA, 2007, p. 278. 248 SILVA, Luiz Martins. Por que a imprensa erra? – 100 casos e algumas hipóteses. X Encontro Anual dos
Programas de Pós-graduação em Comunicação. GT Estudos de Jornalismo da Compós. p. 7.
111
informar o público, mas os meus valores não estão em discussão, os meus métodos
não são da conta de mais ninguém – eles são bons, corretos e justos por
definição249
.
E porque a imprensa age desta maneira? Porque é arrogante? O próprio Bucci dá uma
primeira pista. Essa atitude pode ter uma explicação histórica. No embate com lobistas de
grupos econômicos, por exemplo, e com mensageiros do governo dispostos a interferir no
curso das coberturas jornalísticas, a grossura no trato às vezes é uma maneira eficaz de manter
a distância devida.
Diante de forças que agem em surdina, que não admitem o menor grau de
transparência quanto a seus próprios métodos, a imprensa não teria outra maneira
de resguardar sua independência que não fosse fechar-se, ela também, em
barricadas, torres e muros bem altos e espessos. Isso é ainda mais verdadeiro
quando se leva em conta que, entre 1964 e 1985, o Brasil viveu sob o estado
ditatorial imposto pelo regime militar, que incluiu a censura à imprensa – e também
a prisão, a tortura e o assassinato de jornalistas. Não há o que conversar com gente
que defende a censura. Não há o que dialogar com quem quer subornar. E, num
momento histórico em que é impossível distinguir quem é quem, não há porque
perder energias procurando canais de diálogos deontológicos. A ―casca grossa‖ é
útil. Ou, no mínimo, tem razão de ser 250
.
Francisco Fonseca vai além de Bucci. Ele defende categoricamente que a grande
imprensa é um aparelho privado de hegemonia251
. Ou seja, uma parte da mídia funciona como
organismos sociais privados – voltados à propagação de ideias tendo em vista a obtenção de
hegemonia (esse tema foi detalhado na introdução do trabalho). Então por estarem inserido
dentre de uma superestrutura, jornalistas acreditam que exercem uma função de caráter
público e coletivo, mesmo não sendo seres ideais.
3.6.1. Cinema
De acordo com Mário Rosa, o cinema ajudou a entender as características dos
jornalistas. Diria mais, o cinema contribuiu, inclusive, até mesmo para compreender e
249
BUCCI, 2000, p.41. 250
BUCCI, loc. cit. 251
Em seu livro Consenso Forjado, Fonseca cita o escritor Antônio Gramsci para sintetizar os aparelhos
―privados‖ de hegemonia. Segundo ele, são organismos sociais privados, o que significa que a adesão ao menos
é voluntária e não coercitiva, tornando-se assim relativamente autônomos em face do Estado em sentido estrito
[no contexto, portanto, de sua configuração ampliada, isto é, sociedade política + sociedade civil, possível nas
conformações sociais do tipo ―ocidente‖ – FF ]; mas deve-se observar que Gramsci põe o adjetivo ―privado‖
entre aspas, querendo com isso significar que – apesar desse seu caráter voluntário ou ―contratual‖ – eles têm
112
verificar uma certa ―arrogância‖ em não querer assumir que erram. Os jornalistas acreditam
que são seres superiores.
O trabalho de Stella Senra foi importante para identificar o que Mário Rosa chama de
arquétipo dos jornalistas. Foram alguns identificados.
Um dos elementos é o poder do jornalista. Sim o jornalista acredita que tem poder, ou
até super-poder. Publicando uma reportagem, como ocorreu em relação à Ibsen Pinheiro, Veja
e uma parte da grande imprensa sentem-se no lugar mais alto. Acredita que a maioria do leitor
ou da opinião pública vai ‗acreditar‘ em qualquer história que for publicada. Ela faz uma
indagação.
Você sabe dizer o nome do jornalista mais famoso de todos os tempos? Não, nada
de Walter Cronkite, Dan Rather, Cid Moreira ou William Bonner! O jornalista
mundialmente mais conhecido atende pelo nome de Clark Kent. Sim: o personagem
que encarnava o super-homem à paisana. ―Nos seus traços essa mitologia confere à
face superdotada do personagem uma série de traços comumente atribuídos ao
jornalista‖, observa a professora Senra.252
O que a Senra quer dizer nesse trecho é chamar atenção para essa comparação muito
pertinente de o jornalista achar que tem super-poder e está acima do bem e do mal.
O jornalismo, não só o praticado por Veja no episódio Ibsen Pinheiro, mas o de outros
órgãos da grande imprensa se assemelha ao ―super-homem‖, engajado na defesa dos direitos
do cidadão e em protegê-los dos perigos. De que perigo Veja então gostaria de defender seus
leitores? A resposta é simples: ―de corruptos como Ibsen‖. Assim como Clark Kent, a grande
imprensa ‗combate sem temor os vilões, os agentes do mal‘. Essa, na verdade, é uma visão
caricatural do jornalista.
Mesmo não voando ou parando trens – acreditam que exercem uma função de
caráter público e coletivo. É claro que não são seres ideais. São movidos pela
ambição, querem crescer profissionalmente para ganhar mais e ter mais influência,
como em qualquer outra atividade. Mas em maior ou menor grau, jornalistas
sentem-se no exercício de uma missão social, combatendo e corrigindo vícios (por
intermédio da denúncia). Esse é um dos aspectos do super-homem mais belos dessa
profissão. ―Antes de ser um negócio, jornal deve ser visto como um serviço
público‖, define Ricardo Noblat, um dos mais respeitados jornalistas do País, em
seu livro A arte de fazer um jornal diário (editora Contexto) (...) 253
uma indiscutível dimensão pública, na medida em que parte integrante das relações de poder em dada sociedade
(2005, p.30). 252
ROSA, 2007, p. 269. 253
Ibid., p. 270.
113
E se o jornalista tem super-poder, ele precisa saber controlá-lo. Dosar suas atitudes
para não cometer injustiças ou não correr o risco de tornar uma cobertura perigosa para quem
está sendo investigado. Quando esse controle sobre a cobertura não existe e o super-poder é
extrapolado pode provocar danos. Ou quando a grande imprensa nega que cometa abusos, ela
mais uma vez pode estar ―plantando a semente da arrogância‖.
Segundo Mário Rosa, existe um forte sentimento dos jornalistas de atingir uma
missão, de atuar em favor da coletividade, usando os ‗super-poderes‘ que lhe são conferidos
no combate aos erros e aos vilões. Só que em muitas vezes esse enorme poder é usado de
forma desmedida.
3.7. Denúncias que se enfraquecem
Como já vimos em capítulos anteriores, os meios de comunicação têm dificuldades em
assumir o erro. Os jornalistas são, muitas vezes, arrogantes, o que dificulta as publicações de
informações sobre a presunção da inocência de um político que está sendo acusado em um
escândalo, como ocorreu no episódio Ibsen Pinheiro.
No caso do deputado, os fatos se encarregaram de desmentir as versões das primeiras
reportagens sobre o caso. Na edição de Veja, do dia 24 de novembro de 1993, encontra-se na
mesma reportagem já citada, sob título ―Um milhão de dificuldades‖ com destaque para o
próprio responsável pela subcomissão que investigava o caso, o deputado federal Benedito
Gama. A revista diz que o parlamentar é um político experiente que foi presidente da CPI de
Collor-PC e secretário da Fazenda da Bahia. Mesmo com toda essa experiência, Veja confiou
na fonte e errou ao publicar que Ibsen tinha 1 milhão de dólares em suas contas pessoais.
A revista fez mea-culpa para tentar se explicar, sem, entretanto, admitir que ela
pessoalmente errou no caso. Abaixo um trecho da reportagem de Veja.
A subcomissão confundiu depósitos novos com transferências de uma conta para
outra, ou aplicações financeiras. Ibsen Pinheiro não teve dificuldades254
de explicar
400.000 dólares de seus depósitos. ―Vieram do meu salário, como deputado, de
minha aposentadoria como jornalista e de minhas diárias internacionais‖, diz.
Como deputado, ele recebe cerca de 6.000 dólares mensais. Sua aposentadoria é de
254
Aqui vai uma observação. Nota-se perfeitamente a mudança de postura. Agora a revista diz que Ibsen não
teve (ênfase minha) dificuldade em se explicar. Nem parece a mesma revista que no início das acusações, ao
lado de outros meios de comunicação da grande imprensa, dizia que o deputado tinha dificuldade de explicar os
depósitos em suas contas. Ou seja, a revista admite de forma muito oculta, com uma certa negativa, às vezes
dizendo sim, às vezes dizendo não para o erro cometido. Esse erro, sendo involuntário ou não, acaba por
manipular a informação que é passada para o leitor de Veja.
114
600 dólares mensais e as diárias pegas pelo Congresso são gordas: 500 dólares,
com a vantagem de que a sobra de hospedagem, alimentação e transporte não
precisa ser reembolsada. Outros 175.000 dólares depositados em sua conta tiveram
origem na Riocell, fábrica de celulose que comprou duas fazendas de Ibsen. Ela
apresentou recibo e notas de cartório comprovando o negócio.
Complô – Sobram 425.000 dólares, do quais Ibsen justifica sem problemas, o
depósito de 160.000 dólares. Segundo ele, foram antigas economias, convertidas
em cadernetas de poupança. Há ainda 35.000 dólares – esses explicáveis. O
dinheiro veio do deputado Genebaldo Correia, no dia 28 de junho de 1989. Há três
cheques dele na conta de Ibsen. O ex-presidente da Câmara diz que recebeu essa
quantia pela venda de uma caminhonete F-1000 equipada. O negócio não chegou a
ser concretizado, e Ibsen garante ter devolvido o dinheiro, só não se lembra como.
―Não sei se foi em cheque, dinheiro vivo ou se assumi um débito dele. O fato é que
devolvi o dinheiro. Que paguei, paguei‖, afirma. Genebaldo, por sua vez, também
não se lembra da história. (...) ―A CPI errou na conta. Estou sendo vítima de um
complô‖, afirma255
.
A essa altura o erro praticamente já estava caracterizado. A revista já sabia disso. A
própria Veja já jogava a culpa da informação para a subcomissão da CPI.
A subcomissão de bancos errou, mas não há complô algum contra Ibsen. O que
pesa contra ele é a própria falta de memória e uma estreita ligação com a anãozada
do orçamento, a alegre turma que lhe fez companhia na viagem de turismo às ilhas
gregas dois anos atrás. (...) Ibsen tem todo o direito de se defender, e ele não perde
tempo. Na semana passada, contratou a empresa de auditoria de Antoninho Marmo
Trevisan para checar suas contas e o advogado Ives Gandra Martins para lhe dar
um parecer256
.
Na edição seguinte, Veja não trouxe reportagem de capa sobre o episódio. Deu ênfase
maior, não individualmente ao caso de Ibsen, como fez na edição de 17 de novembro, mais
mostrava que a Câmara dos Deputados poderia cassar oito deputados na CPI do Orçamento
ou o caso dos anões do orçamento como ficou conhecida.
A reportagem reclamava que ―apenas‖ oito deputados estavam na mira da CPI e
comparava o trabalho da comissão ao humorístico Casseta & Planeta.
A CPI do Orçamento pode terminar como a Comissão Casseta & Planeta de Investigação do
programa humorístico que a Rede Globo exibe nesta terça-feira: numa grande farsa. Há um mês,
o economista José Carlos Alves do Santos disse a Veja o nome dos 23 parlamentares, dois
ministros de Itamar, quatro ex-ministros e quatro empreiteiras que integravam o esquema de
corrupção do Orçamento. Depois, o número subiu para 25 congressistas. Na semana passada
havia material contra oito parlamentares, que podem efetivamente ser cassados. Na quinta-feira,
o deputado Roberto Magalhães (PFL-PE), relator da CPI, encarregado de alinhavar as conclusões
finais dos trabalhos e propor punições aos culpados, estava convencido de que mesmo os
corruptos sejam capazes de conservar seus mandatos – hipótese que jogaria a lama dos anões
pelo Congresso inteiro e teria consequências imprevisíveis sobre o ambiente político. ―Quero
dizer a vocês que acho muito difícil esse Congresso cassar alguém‖, confessou Magalhães
durante uma reunião com caciques do PFL257
.
255
Veja, 24 de novembro de 1993, p. 43. 256
Veja, loc. cit. 257
Ibid., p. 36.
115
A reportagem trazia uma foto com os atores de Casseta & Planeta imitando alguns
deputados, como Benito Gama e até o deputado Ibsen Pinheiro. Nesta edição, Veja também
mostrava uma foto de Ibsen Pinheiro ‗coçando os olhos‘ – como se estivesse caindo uma
lágrima de seu rosto e na legenda escrito ―Ibsen na lista dos acusados: não explica 230.000
dólares nem convence com a caminhonete.
Na edição seguinte Veja questionava: ―Até onde vai a CPI?‖ – era a manchete de capa
da revista na edição de 15 de dezembro de 1993. No olho/linha fina, a revista afirmava que
―depois de abrir o leque de investigações e aceitar listas inconclusivas, a CPI adia seus
trabalhos e corre o risco de terminar emparedada‖. A reportagem de seis páginas trazia pouca
referência a Ibsen. Veja já tinha consciência do equívoco que havia cometido. No entanto, ele
ainda não havia se tornado público.
Entre as seis páginas, apenas uma referência. Uma foto do deputado do PMDB.
―Ibsen: caminhonete que não convence‖ – ainda uma referência à compra de uma
caminhonete – cuja transação financeira ocorreu por meio de um depósito feito na conta de
Ibsen e que perfeitamente era compatível com seus rendimentos da época. Abaixo da legenda
da foto, um resumo em nove linhas:
Ibsen Pinheiro, José Carlos Vasconcelos e Carlos Benevides estão enrolados. Ibsen
não consegue explicar seu saldo bancário e um negócio com Genebaldo258
.
Em mais uma edição, Veja trouxe o seguinte título no dia 26 de dezembro de 1993:
―Depoimento lacrimoso‖. Abaixo a linha fina trazia, por incrível que pareça, elogios ao
deputado: ―O deputado Ibsen Pinheiro faz um bom discurso, explica seu patrimônio, deixa
algumas dúvidas e chora ao depor‖. A revista já sabia de seu equívoco em relação às
denúncias de que o parlamentar teria um milhão de dólares em suas contas. É como se a
revista, ao promover as acusações contra o deputado, tentasse na primeira edição de 17 de
novembro, incutir na cabeça das pessoas uma realidade, considerada verdadeira, mas que não
era. Perseu Abramo já trouxe explicações sobre esse tema deixando claro que a imprensa
muitas vezes cria uma realidade artificial, como ocorreu com o caso Ibsen.
É uma realidade artificial, não-real, irreal, criada e desenvolvida pela imprensa e
apresentada no lugar da realidade real. A relação que existe entre a imprensa e a
realidade é parecida com a que existe entre um espelho deformado e um objeto que
258
O negócio com Genebaldo a que a revista se refere é exatamente a compra de uma caminhonete F-1000. Ibsen
comprou o carro de Genebaldo e recebeu um depósito em sua conta. O valor do documento bancário era
compatível com essa transação. Segundo a própria revista Veja, seriam depositados na conta de Ibsen três
cheques no valor total de 35 mil dólares. A obviedade das explicações de Ibsen não emplacaram diante da ânsia
de apuração jornalística sobre o fato. Mais um exagero.
116
ele aparentemente reflete: a imagem do espelho tem algo a ver com o objeto, mas
não só não é o objeto como também não é a sua imagem: é a imagem de outro
objeto que não corresponde ao objeto real. Assim, o público — a sociedade — é
cotidiana e sistematicamente colocado diante de uma realidade artificialmente
criada pela imprensa e que se contradiz, se contrapõe e frequentemente se superpõe
e domina a realidade real que ele vive e conhece. Como o público é fragmentado no
leitor ou no telespectador individual, ele só percebe a contradição quando se trata
da infinitesimal parcela de realidade da qual ele é protagonista, testemunha ou
agente direto, e que, portanto, conhece. A imensa parte da realidade ele a capta por
meio da imagem artificial e irreal da realidade criada pela imprensa; essa é,
justamente, a parte da realidade que ele não percebe diretamente, mas aprende por
conhecimento. Daí que cada leitor tem, para si, uma imagem da realidade, que na
sua quase totalidade, não é real. É diferente e até antagonicamente oposta à
realidade.(...) A manipulação das informações se transforma, assim, em
manipulação da realidade 259
.
Agora, nessa reportagem, Veja considerava que o deputado teria dado a ―volta por
cima‖. É como se a revista batesse e, ao descobrir que errou – como veremos no próximo
capítulo – decidiu ‗assoprar‘ para fazer mea-culpa. E trouxe relatos, considerados
satisfatórios, do deputado à CPI.
(...) o deputado Ibsen Pinheiro apareceu para explicar-se na CPI. E chorou. Não
porque estava acuado pela fogueira dos seus cheques. Chorou porque pelo menos
na CPI, onde depôs na quinta-feira, Ibsen deu a volta por cima. Teve o respeito e a
simpatia dos seus inquisidores e, a certa altura, prestando um bom depoimento,
chegou a ouvir o senador Elcio Álvares afirmar que suas explicações honravam sua
biografia. Ibsen escutou os elogios com lágrimas no rosto e, com a voz embargada,
disse: ―Estava preparado para as perguntas mais duras, mas não para a sua
generosidade‖. (...) O deputado estava seguro, falou com clareza e apresentou uma
defesa de advogado. (...) O deputado deu um depoimento devastador para a própria
CPI. Acabou por jogar uma sombra de dúvida sobre a papelada que seus membros
agitam com denúncias, comprometendo o trabalho do deputado Aloizio Mercadante
e do senador José Paulo Bisol260
.
A própria revista reconhece em trecho posterior, o ‗martírio‘ pessoal pelo qual viveu
Ibsen durante todo o episódio. Em uma foto publicada na revista, o deputado é mostrado em
dois momentos. Propositalmente, a revista traz uma foto de Ibsen, sem óculos, com cabelo
penteado, olhar sereno, sério e com um ar maioral. Na outra foto, na mesma página, Ibsen
aparece de óculos, cabelos um pouco espalhados, com ar ‗desesperado‘, tenso, movimentando
a mão direita, como se tentasse explicar e se defender contra as acusações que vinha sofrendo
na época. Abaixo das duas fotos a legenda: ―O gaúcho Ibsen Pinheiro, antes e depois da CPI:
12 quilos a menos, sem emendas à revisão e com vergonha de ser deputado‖.
259
ABRAMO, 2003, p. 24. 260
Veja, 26 de dezembro de 1993, p. 34.
117
Ou seja, até parece uma ‗linha de montagem‘ da imprensa contra um ator político que
provocou alto poder destrutivo, não só na vida pública, mas sim na vida pessoal. Agora, Ibsen
tentava administrar o sentimento de vergonha numa sensação de impotência diante de tantos
golpes.
Diante da sede da mídia por informações, no início do escândalo, até o depoimento na
CPI, Ibsen vivia no eterno dilema de como se posicionar. Ele tentava fazer isso se defendendo
aos colegas deputados e, com muita mais dificuldade, pela mídia que o acusava, uma vez que
os espaços para sua defesa eram pequenos e o estrago do início da denúncia já tinha sido feito.
3.8. Quem representa a opinião pública?
Como foi visto anteriormente, as denúncias contra o deputado Ibsen Pinheiro já não
eram publicadas na revista de forma isolada. Outros políticos passaram a ser alvos dentro das
investigações da CPI do Orçamento, ou a CPI do Orçamento dos Anões, do qual Ibsen estava
envolvido, como será visto mais adiante, sem qualquer culpa no ‗cartório‘.
O que havia até agora contra o deputado do PMDB era o cheque de Genebaldo
Correia – explicado pelo deputado e que seria da compra de um veículo F-1000 e ainda uma
foto em que Ibsen aparece na Grécia ao lado de acusados de fazer parte da máfia dos anões. E
só. As duas denúncias tentavam sustentar a versão de corrupto.
Na edição de 26 de janeiro de 1994, mais de dois meses após a reportagem de capa
―Até tu Ibsen?‖, Veja mostrava que a CPI havia realizado naquela semana uma sessão
histórica para aprovar uma lista em que a comissão propôs a cassação de 18 de deputados,
entre eles Ibsen. A CPI pressionada incluíra o nome do deputado na lista. Para Veja, ―o
Congresso expunha sua podridão‖. O título da reportagem ―O Congresso dá volta por cima‖ e
a linha fina ―... o legislativo corta na própria carne e faz as pazes com a opinião pública‖ –
mostrava que a lista já estava sendo divulgada.
Ao publicar essa reportagem, a mídia se coloca como representante da opinião
pública261
. O editor-fundador da revista Roberto Civita afirma: ―o leitor sabe de que lado
261
Três autores parecem mais apropriados, a meu ver, para conceituar opinião pública. Nas ideias de Stuart Mill,
em seu clássico Sobre a Liberdade, ele debate o tema opinião pública e diz que: ―[...] a opinião de semelhante
maioria, imposto como lei à minoria, em questões de conduta estritamente individual, tanto pode ser certa como
errada. Nesses casos, a opinião pública, na melhor hipótese, significa a opinião de algumas pessoas sobre o que é
bom ou mau para outras pessoas‖. (MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. 2ª ed. Petrópoles: Vozes, 1991,
p.149). Portanto, estudando por esse ângulo de abordagem podemos dizer que tanto Veja, como a grande
imprensa, não podem representar a opinião pública, mesmo porque ela não é a maioria. Significa um seleto
118
lutamos ao longo desses anos agitados, controvertidos mas certamente estimulantes anos de
vida. E sabe, também, onde nos encontrará amanhã‖ 262
.
Pode-se discordar de Civita, uma vez que a mídia, assim como Veja, também tem
interesse mercantilista. A revista deixa, a meu ver, equívoco ao dizer que a exposição da
podridão do Legislativo, o Congresso faz as pazes com a opinião pública. Que opinião
pública? Os leitores ‗seletos‘ de Veja. Aliás, a revista inclui nesse rol, de corruptos o
deputado Ibsen.
A revista se coloca na função de ―cobrir‖ o que seria de interesse da opinião pública
(essa opinião pública, no entanto, selecionada apenas a um grupo da sociedade). Na verdade,
a revista é uma empresa privada em busca de capital. Ao dizer que investiga tendo em vista os
interesses da sociedade, no caso específico analisado, ela incorre em contradições. Hoje, se
tem total liberdade de um lado, ela move-se por total ausência de responsabilidade de outro.
A discussão em torno do significado de opinião pública foi observada por Francisco
Fonseca.
Em um dos capítulos de seu artigo, ele relata o papel privado da mídia versus sua
atuação pública.
Para além do caráter mercantil da notícia, em perspectiva teórica a distinção entre a
esfera pública e a esfera privada – conceitos por excelência controversos –
encontrou um verdadeiro divisor de águas com as revoluções burguesas, sobretudo
a Revolução Francesa, pois inaugurou um novo conceito de liberdade, agora
identificado, com o mundo privado – por meio , inicialmente, do mercado – e
politologicamente definido como pertencente ao caráter negativo da ideia de
liberdade263
.
grupo de pessoas para quem a grande mídia vai atender. Gramsci falando sobre a história da opinião pública
afirma que: ―naturalmente, os elementos da opinião pública, sempre existiram, mesmo nas satrapias asiáticas.
Mas, a opinião pública, como a entendemos hoje, surgiu às vésperas da queda do Estado absoluto, isto é, no
período da nova classe burguesa por hegemonia política e conquista do poder. A opinião pública é o conteúdo
político da vontade política pública, que poderia ser discordante. Essa é a razão pela qual existe a luta pelo
monopólio dos órgãos de opinião pública: jornais, partidos, parlamento, de modo a que uma única força modele
a opinião e desse modo a vontade política nacional, dispensando os desacordos numa poeira individual e
desorganizada (citado por Portelli, 1987). – Hugues Portelli, Gramsci e o bloco histórico. São Paulo, Paz e Terra,
1987. Para Alexis de Tocqueville, nas sociedades igualitárias ocorre um processo de homogeneização da opinião
pública, descrito por Frey (2000) como ―uma tirania uniformizadora que se estenderia à vida psicossocial,
intelectual e cultural, suprimindo a diversidade social. As respectivas ideias e sentimentos democráticos, por sua
vez, influenciam o funcionamento e as características da sociedade política‖. Em ― A Democracia na América‖,
Tocqueville afirma: ―Uma lei geral, que tem o nome de justiça, foi feita e sancionada, não apenas pela maioria
deste ou daquele povo, mas, pela maioria da espécie humana. Os direitos de todos é justo. A nação pode ser
considerada o júri dotado de poderes para representante a sociedade, em geral, e para aplicar a justiça, que é a
sua lei. Tomada coletivamente, maioria é apenas um indivíduo cujas opiniões e, frequentemente, interesses são
opostos aos de outro indivíduo, intitulado minoria. Se admite que um homem possuindo poder absoluto pode
usar, erradamente, esse poder fazendo mal a seus adversários, por que não será a maioria passível da mesma
censura? (TOCQUEVILLE, Aléxis. A Democracia na América. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1966). 262
VEJA, Edição especial de 40 anos. 14 de setembro de 2008, p. 14. 263
FONSECA, 2004.
119
3.9. O troféu de „corruptologia‟
No episódio da CPI do Orçamento, em que o deputado Ibsen Pinheiro, foi um dos
acusados de corrupção, Veja entendeu, em edição do dia 26 de janeiro de 1994, que ao
apontar em relatório o pedido de cassação de 18 parlamentares, a Câmara dos Deputados
ganharia um ―troféu de corruptologia‖.
Chegou a ser dito que a CPI iria paralisar o País, inviabilizar a revisão
constitucional e bloquear o governo Itamar Franco. O País continuou andando
normalmente, a revisão constitucional já começou e deve encerrar-se no prazo
marcado, 15 de março. O Congresso ainda discute o plano Fernando Henrique. Para
quem gosta de Copas do Mundo em qualquer modalidade, há um troféu na área da
corruptologia. Não se conhece o caso, em nenhum País, de um Congresso que tenha
sido capaz de realizar um serviço de limpeza tão amplo e profundo em seus
quadros264
.
Essa característica de promover classificações e ‗batizar‘ os escândalos com nomes
estranhos podem ser entendidos como um padrão de manipulação também. Perseu Abramo
afirma que a imprensa busca ângulos sensacionalistas quando aborda certos casos.
Submetido a todos os padrões gerais de manipulação, o fato é apresentado sob os
seus ângulos menos racionais e mais emocionais, mais espetaculares e mais
sensacionalistas. As imagens e sons mostram o incêndio, a tempestade, a enchente,
ou a convenção do Partido Majoritário, a passeata, a greve, o assalto, o crime, etc.
As imagens são amparadas por textos lidos ou falados265
.
Na mesma reportagem mais uma vez Ibsen Pinheiro sofre ataques.
Na página 30, uma foto do deputado e, sob altos e baixos, acusações de ―morde e
assopra‖, Veja trouxe um pequeno texto afirmando que a CPI havia constatado que o
deputado gaúcho movimentou 1,2 milhão de dólares em cinco anos, ou seja, 850.000 dólares
a mais que seus rendimentos.
Segundo a revista, ele não explicou por que transferiu 114.000 dólares para uma
corretora de câmbio no Uruguai. Veja: Ibsen não esclareceu a origem dos 60.000 dólares com
264
Veja, 26 de janeiro de 1994, p. 28. 265
ABRAMO, 2003, p. 32.
120
que pagou a entrada de um apartamento. Nem como pagou uma dívida de 35.000 dólares a
Genebaldo Correia266
.
3.10. A cassação de Ibsen, o troféu da mídia
Após a ‗batelada‘ de acusações, Ibsen foi ‗capturado‘ pelas reportagens acusatórias e
teve seu mandato cassado em maio de 1994. Na edição do dia 18 daquele mês, Veja trouxe o
assunto. Uma reportagem de uma página, com cerca de 3 mil caracteres. No final da
reportagem sob título ―vitória magra‖ – uma referência ao deputado Ricardo Fiúza, que
comemorava o fim de seu julgamento, salvando assim seu mandato das acusações da CPI do
Orçamento. Já Ibsen não teve a mesma sorte, dizia a revista. O deputado gaúcho não teria
convencido a comissão sobre a origem de pelo menos 300 mil dólares e admitiu, segundo a
revista, ter comprado dólares acima do limite legal, às vésperas do confisco do Plano Collor.
A edição seguinte de Veja, do dia 25 de maio, foi muito mais efusiva. ―Ibsen moído‖267
era o título da reportagem com a linha fina resumindo o que teria ocorrido no Congresso: ―O
ex-presidente da Câmara é cassado por humilhante maioria de colegas‖.
Por 296 votos a favor, 139 contra e 24 abstenções, a Câmara dos Deputados cassou,
na semana passada, o mandato do deputado Ibsen Pinheiro (PMDB-RS), ex-
prestigioso presidente da Casa, de fala fluida e eloquente, tido outrora por sério e
destinado a postos cada vez mais altos na política268
.
Moído pelas acusações publicadas na grande imprensa, Ibsen deixou a cena política.
Como a própria revista disse o deputado foi o quinto a ser ―degolado‖ pelos colegas do
congresso.
3.11. A verdade aparece 11 anos depois
266
Aqui a revista mergulha em contradições. Senão vejamos. Na edição de 26 de dez., ela diz que o deputado faz
um bom discurso e explica seu patrimônio. Na mesma edição, Veja dá um pequeno espaço para Ibsen se
defender e relata em reportagem que Ibsen fez questão de desmoralizar o trabalho da CPI. Bateu na tecla de que
pode até ter ‗movimentado‘ 2,3 milhões de dólares em suas contas, mas que nunca recebeu essa quantia de
crédito. Agora a versão mudou novamente. 267
Nota-se aqui que a referência de Veja ao termo moído refere-se a derrota esmagadora de Ibsen no Congresso
e não a ser moído pela grande imprensa que o acusou injustamente, sem provas, sem elementos condizentes para
que seu mandato fosse cassado. Mais uma vez, Veja não admite diretamente seu erro nesse episódio. 268
Veja, 25 de maio de 1994, p. 21.
121
A descoberta do erro na cobertura do escândalo de Ibsen acabou por ser revelada
onze anos depois pelo jornalista que escreveu a reportagem de Veja ―Até tu Ibsen?‖, edição
de 17 de novembro de 1993.
A revelação se deu por meio de outro meio de comunicação da grande imprensa, a
Revista IstoÉ. Na edição nº 1.819, de 18 de agosto, de 2004, matéria de capa (fig. 10), cujo
título ―Massacrado‖ fazia uma referência ao ―massacre‖ praticado por Veja, na referência
específica de IstoÉ, contra o deputado.
Fig. 10
Na reportagem, a revista trazia um importante depoimento do jornalista Luís Costa
Pinto, quase que avassalador, não para um jornalista nem para um veículo de comunicação,
mas para toda uma categoria. Na matéria ele reconhece que errou. E, com a consciência
pesada traz revelações importantes dos bastidores da publicação da capa de Veja acusando
Ibsen de corrupção.
Segundo ele, como será visto em seu relato na íntegra, Veja sabia que os depósitos nas
contas de Ibsen apontados como US$ 1 milhão, eram na, verdade, US$ 1.000.
O mais grave, segundo Costa Pinto (que foi entrevistado para essa dissertação), é que
122
o erro teria sido descoberto a tempo, antes de a revista ir para as bancas. Para embasar as
revelações, a Revista IstoÉ lançou mão da carta endereçada pelo jornalista Costa Pinto, o
Lula, na época editor da sucursal de Veja em Brasília e autor da reportagem. Na carta, o
jornalista diz que o então editor-executivo, Paulo Moreira Leite, ao ser informado pelo chefe
da equipe de checagem da revista, Adam Sun, de que a movimentação era de 1.000 dólares, e
não de 1 milhão de dólares, sugeriu que Lula encontrasse alguém para sustentar a cifra
milionária. Por medo de perder o emprego, Lula então recorreu, a pedido do editor-executivo
(que lhe ordenou que procurasse alguém político para sustentar a informação), ao deputado
Benito Gama, que teria se disposto a cacifar a falsa informação.
O resultado da publicação no dia seguinte todos já sabiam. A ‗onda denuncista‘
ganhou corpo. Se transformou numa bola de neve, com os deputados acuados por publicações
na mídia cada vez mais severas incriminando Ibsen.
Ainda segundo relatos do jornalista Lula, o pivô da armação-jornalística contra Ibsen
teria sido o então deputado Waldomiro Diniz, do PT. Na versão de Costa Pinto, quem lhe deu
as cifras erradas foi Waldomiro.
As revelações publicadas em IstoÉ causaram surpresa e espanto.
Tomada de surpresa pela fraude de IstoÉ, Veja, em sua edição passada, pediu
desculpas por eventuais erros que tenha publicado no caso de Ibsen e em outros
daquele período tormentoso. Mas eles jamais foram intencionais – e quase sempre
foram compartilhados por outros veículos, como a própria IstoÉ, que também se
alimentavam das informações fornecidas pelos integrantes da CPI 269
.
3.12. Pedido de desculpas. Mas, tarde...
A reprodução do trecho do pedido de desculpas foi feito em meio a uma reportagem
sobre a proposta do Conselho Federal de Jornalismo (fig. 11) na edição de 18 de agosto de
2004.
269
Veja, 25 de agosto de 2004.
123
Fig. 11
O pedido de desculpas foi feito na página 48, daquela edição, quando a Revista Veja
tratava exatamente do Conselho Federal de Jornalismo, do qual o semanário classificava de
‗autoritarismo‘. O pedido de desculpas trazia o seguinte:
A matéria, sobre o então deputado Ibsen Pinheiro, continha números errados a
respeito do dinheiro movimentado pelo político, que acabou cassado pela CPI dos
Anões do Orçamento. A imprensa erra, mas os erros acabam aparecendo quando
não são corrigidos logo em seguida pela apuração correta dos fatos. Veja lamenta
os enganos que cometeu nos casos de Alceni, Eduardo Jorge e Ibsen Pinheiro270
.
A revista propriamente reconhece que ‗os erros acabam aparecendo quando não são
corrigidos logo em seguida‘. Mas, se a revista realmente conseguiu descobrir um dia antes
que a movimentação financeira do deputado Ibsen Pinheiro estaria errada, porque publicou?
Em relato surpreendente, o jornalista Luís Costa Pinto, o Lula, o autor da matéria, faz
revelações. Arrependido, ele traz informações sobre os bastidores da publicação da
reportagem que contribuiria para cassar o deputado. No relato, ele diz que pensou no
emprego. O título ―O homem que se recusou a morrer‖ traz acusações contra a direção da
revista que, segundo Lula, para não perder a tiragem de mais de um milhão de exemplares
manteve o erro na notícia. Propositalmente. Toda a denúncia teria chegado à Veja por meio de
uma vazamento de informações do deputado Waldomiro Diniz. Aliás, essa característica já foi
270
Veja, 18 de agosto de 2004, p. 48.
124
estudada pelo ex-ombudsman da Folha de S. Paulo, Marcelo Leite, e citado em referência no
livro de Eugênio Bucci. Marcelo Leite chama de ‗vazamentismo‘ esse tipo de característica da
imprensa.
(...) Aqui, a referência do ombudsman eram ―os escândalos postos no colo da
imprensa‖ com base em informações ―oficialmente‖ vazadas dos gabinetes do
poder. Na verdade, esse ―vazamentismo‖ estava se tornando um expediente
rotineiro de políticos interessados em prejudicar a imagem de outros. Denúncias
chegavam aos jornais sem origem declarada e eram publicadas sem maior trabalho
de verificação prévia271
.
Outra característica, também citada pelo ex-ombudsman da Folha de S. Paulo, e
encontrada na primeira reportagem de Veja sobre o caso, sob título ―Até tu Ibsen?‖ foi o
―offismo‖. Ou seja, a revista revelou a suposta corrupção, mas não ‗entregou‘ o nome de
Waldomiro Diniz, como sendo a fonte que passou a informação. Em nenhum momento a
revista deixa claro ou cita-o como autor do vazamento de informações.
Segundo o livro de Eugênio Bucci, o off é um termo que faz parte do jargão das
redações. Tem origem na expressão inglesa off the record, que designa aquilo que se diz a um
jornalista ―confidencialmente‖, isto é, algo que se diz para não ser registrado.
Mas, muitas vezes o off é utilizado e publicado, quando a fonte pede para não ser
identificada. O jornal ou a revista publicam então a notícia sem citar a fonte.
No Brasil, a expressão ―declaração em off‖ admite os dois significados. Em seu uso
mais corrente, a expressão se refere à informação que poderá ser publicada desde
que não se identifique a fonte. Entre nós, é verdade, o uso do off tornou-se rotina e
se transformou em abuso. Com frequência, o leitor, o telespectador ou o ouvinte
não fica sabendo da origem da informação. Ele só é avisado de que ―uma alta
autoridade do Ministério tal‖ ou ―um professor que prefere não se identificar‖ ou
ainda ―uma fonte qualificada‖ disse isso ou aquilo. Outros recursos para o mesmo
procedimento são os cacoetes de texto do tipo ―comenta-se‖, ―garante-se‖ etc.
Muito comum nas colunas de notas de informação política, econômica e de
interesse geral, esse modo de informar, salvo exceções, é também um modo de
desinformar. Afinal: quem diz? quem garante? quem comenta? Não se faz bom
jornalismo com declarações anônimas.272
3.13. Uma carta reveladora
Após esses parênteses veja a carta escrita por Luis Costa Pinto.
271
BUCCI, 2000, p.132. 272
BUCCI, loc. cit.
125
Luís Costa Pinto273
– Não gosto desse governo, mas é o único que temos. Logo, resignemo-nos.
Tomei um susto ao ouvir aquilo. Estava em Brasília havia menos de um mês. Fora
transferido pela revista Veja da sucursal de Recife, que chefiava, para me integrar
ao grupo de repórteres da sucursal brasiliense. Quando fui informado da promoção
saí para comemorá-la, em São Paulo, com os jornalistas Laurentino Gomes, Caco
de Paula e Xico Sá. Este último, que tivera uma experiência em Brasília, detestara a
cidade. ―Cara, o Congresso é um mistério. Passei três meses para descobrir onde
ficavam os banheiros de lá. E se você não tiver fontes entre os parlamentares, está
ferrado: os mais velhos o engolem‖, explicara Xico. ―Ouça muito e fale pouco."
Quem me confessara a resignação ante o governo do então presidente Fernando
Collor de Mello, já no primeiro encontro entre fonte e repórter, sem pedir reservas,
fora o presidente da Câmara dos Deputados à época, Ibsen Pinheiro. A conversa
que tivemos, que começara por futebol, passara por questões regionais e
jornalísticas e terminara em política pura, havia gerado uma empatia instantânea
entre mim e ele. Estabeleceu-se, a partir de então, uma relação de admiração que
segue até hoje.
Dono de raciocínio rápido e lógico, auto-ironia refinada e poder de análise
invejável, o ex-deputado Ibsen Pinheiro pontificava como uma das melhores fontes
de informação na capital da República naquele início da década de 1990. Durante a
Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988, Ibsen liderara a bancada de
deputados federais do PMDB. Foi a partir de sua atuação como líder que conseguiu
migrar do chamado baixo clero parlamentar – grupo numeroso de deputados que
tem pouco destaque na Casa a despeito de alguns terem construído respeitável
biografia na ação junto às comissões temáticas do Parlamento – para o time de
políticos com destaque nacional. Antes de tudo, Ibsen era uma fonte jornalística
que não mentia. Perguntado acerca de temas sobre os quais não podia se manifestar,
omitia-se. Jamais lançava balões de ensaio à imprensa ou tirava repórteres dos bons
caminhos de apuração. ―Já fui um de vocês‖, dizia, com alguma nostalgia.
Em 1992, quando o governo Collor perdeu as condições de sustentação política no
Congresso e definhava à mercê da Comissão Parlamentar de Inquérito que lhe
expunhas as entranhas, Ibsen tornou-se um aliado seguro e secreto da corrente
suprapartidária que pediria a cassação do presidente da República. ―O que o povo
quer, esta Casa termina querendo‖, vaticinou o ex-presidente da Câmara dos
Deputados ao receber, na primeira semana de setembro daquele ano, a formalização
do pedido de impeachment presidencial no Salão Verde do Congresso. A retórica
começava a aprontar uma cilada para ele: o povo, representado em protestos nas
ruas pela sociedade civil organizada, de fato queria o impeachment. O Parlamento,
em sua maioria, ainda não. Existia certa margem de negociação capaz de evitar a
perda de mandato de Collor, mas Ibsen foi peça chave na articulação que estreitou o
raio de ação dos estrategistas palacianos. Escreviam-se, naquela ação surda do
presidente da Câmara, as primeiras linhas do epílogo de sua vida parlamentar em
Brasília – a cassação, em 18 de maio de 1994, por alegada colaboração com a
―Máfia dos Anões do Orçamento‖. Numa sexta-feira do mês de setembro de 1993,
o repórter Policarpo Jr., meu colega na redação brasiliense de Veja, obteve o furo
de reportagem que mais tarde deu origem à CPI do Orçamento. Depois de insistir
por uma semana, ele conseguiu uma entrevista exclusiva com José Carlos Alves
dos Santos, ex-assessor da Comissão Parlamentar Mista de Orçamento do
Congresso Nacional. José Carlos estava preso em uma delegacia de Brasília por
suspeita de assassinato de sua mulher, Maria Elizabeth Lofrano. Na entrevista
original, José Carlos mencionou o envolvimento de sete deputados e de um senador
em um esquema de fraudes ao Orçamento Geral da União. Não falou no nome de
Ibsen Pinheiro, que acabara de deixar a Presidência da Câmara e, semanas antes,
fora lançado pré-candidato a Presidente da República numa festa do PMDB no
Recife. Àquela altura, mais de um ano antes do pleito, a candidatura presidencial de
Ibsen era uma miragem no cenário político – mas do centro à direita do espectro
273
Luís Costa Pinto é jornalista. Foi editor e chefe da sucursal de Veja no Recife e em Brasília, foi repórter de O
Globo e da Folha de S.Paulo, foi editor de Época e editor-executivo do Correio Braziliense. É consultor de
comunicação. (os relatos foram feitos na edição nº 1.819, de 18 de agosto de 2004 da Revista IstoÉ. p. 30-33).
126
partidário não havia nenhum nome viável para disputar o pleito presidencial de
1994 com Luiz Inácio Lula da Silva, o favoritíssimo pré-candidato do PT. ―Tenho
certeza que o calvário de Ibsen começou ali, no momento em que ele deixou de ser
uma aventura para começar a aglutinar apoios em torno de si‖, disse-me certa vez
Nelson Jobim.
Cerca de dois meses depois de iniciadas as investigações parlamentares acerca dos
desmandos e da cobrança de propinas na Comissão de Orçamento do Congresso
Nacional, o nome de Ibsen Pinheiro emergiu associado à Máfia de Anões que
corrompia o erário. O primeiro documento revelado para incriminá-lo era um
cheque do ex-deputado Genebaldo Correia (que renunciou ao mandato na esteira
das investigações) depositado em sua conta bancária. Horas depois de divulgada a
informação dando conta da existência desse cheque, a assessoria de Ibsen Pinheiro
passou a afirmar que o cheque era referente a uma transação financeira com uma
caminhonete. O valor do documento bancário era compatível com essa transação e
o carro, de fato, fora transferido de um para outro – mas a obviedade do álibi não
aplacou a ânsia de apuração jornalística sobre o fato. O segundo documento
divulgado para estabelecer um elo entre o ex-presidente da Câmara e a Máfia dos
Anões do Orçamento era uma fotografia tirada durante um jantar em uma ilha grega
– mostrava Ibsen cercado por cinco dos sete anões do Orçamento.
Um tímido círculo de amigos – alguns deputados; outros, amigos da vida inteira –
reuniu-se em torno de Ibsen para rechaçar as acusações. Nelson Jobim , Miro
Teixeira, Sigmaringa Seixas, Henrique Eduardo Alves, entre os parlamentares,
eram os mais chegados. Luiz Carlos Madeira, advogado e ministro do TSE,
pontificava no grupo dos amigos de fora do Congresso.
– Eu era um prato cheio para servir à vingança fria. Tinha ampla exposição, mas
não tinha nenhum poder político. Ou seja, eu já havia sido até lembrado para ser
candidato a presidente da República, mas não tinha construído nenhum
relacionamento político mais sólido dentro das estruturas partidárias ou com a
mídia. Fui ingênuo.
O desabafo é do próprio Ibsen e foi feito mais de uma vez ao longo das inúmeras
conversas que tivemos em torno do episódio de sua cassação. Como sempre, a
análise insinua-se precisa.
O cheque de Genebaldo Correia e a foto da Grécia sustentaram uma semana de
acusações nos jornais contra o ex-presidente da Câmara dos Deputados. Mesmo
desarticulados, mas fiando-se na ausência de outras provas que maculassem ainda
mais a biografia de alguém que fora interlocutor privilegiado da República por dois
anos, os amigos de Ibsen conquistavam terreno na árdua tarefa de desmentir as
acusações. No intestino da CPI do Orçamento, que caminhava para um desfecho
melancólico pois só ia cassar deputados do chamado ―baixo clero‖ parlamentar,
buscava-se uma revelação de impacto. Foi nesse ambiente que se perpetrou um dos
grandes erros jornalísticos contemporâneos. Às 20h de uma sexta-feira de
novembro de 1993 telefonou-me o assessor parlamentar Waldomiro Diniz. Lotado
na Subcomissão de Investigação Bancária da CPI do Orçamento, Waldomiro era o
braço direito dos deputados José Dirceu e Aloizio Mercadante naquelas
investigações. Hábil, esperto e articulado, forjara-se desde a CPI do Caso PC como
uma das boas fontes do submundo político brasiliense. ―Tenho uma bomba para
você‖, disse-me Waldomiro. ―Estou indo para a sua redação .‖ Minutos depois
Waldomiro Diniz entrou na sucursal brasiliense de Veja, onde os trabalhos de
encerramento da edição estavam avançados e trabalhávamos em um texto de capa
sem maiores novidades ou revelações sobre os trabalhos da CPI. Dali a duas horas,
no máximo três horas, a edição de Veja teria de baixar para a gráfica da Editora
Abril, em São Paulo. Waldomiro exibia um sorriso triunfal. ―Pegamos Ibsen‖,
disse-me. Em seguida, exibiu sete boletos de depósitos bancários, já dolarizados
por ele, e que, segundo me dizia, provavam a transferência de US$ 1 milhão de
dólares de uma conta bancária de Ibsen Pinheiro de uma agência da Caixa
Econômica para uma agência do Banrisul. ―Ele não tem salário para ter tanto
dinheiro. Isso é a prova da corrupção‖, asseverou Waldomiro.
Irresponsável, mas maravilhado com a possibilidade de cravar um furo na edição de
Veja do fim de semana seguinte, embarquei na versão e na dolarização. Não
chequei as informações. Comuniquei aos editores em São Paulo que estava
127
mudando o tom da reportagem que concluía e passava a ser mais afirmativo contra
Ibsen. Liguei para o ex-presidente da Câmara – afinal, ouvir o outro lado é praxe
muitas vezes cumprida com burocracia. Ele me negou a história, negou-me os
depósitos e os valores, mas eu preferi acreditar nos documentos que tinha em mãos
– afinal, registrar o outro lado burocraticamente também é praxe no jornalismo
A nova informação autorizou uma chamada de capa mais enfática contra o
ex-deputado – ―Até tu, Ibsen?‖. A principal revista semanal de informação do País,
que ia ficar exposta nas bancas por uma semana, era um libelo acusatório contra o
presidente da Câmara dos Deputados que liderara a votação do impeachment ao
ex-presidente Fernando Collor de Mello um ano antes. Escrevi o texto e enviei os
documentos bancários por fax para São Paulo. Com a reportagem lida, modificada
e aprovada pelos diversos escalões editoriais de Veja, cheguei à minha casa por
volta das 2h da madrugada do sábado. Pouco antes das 8h fui acordado por toques
insistentes da campainha do apartamento onde morava. Era Silvânia Dal Bosco,
colega na redação de Veja. ―O Paulo Moreira quer falar com você. Deu um
problema grave lá em São Paulo... na edição da matéria do Ibsen‖, disse-me
Silvânia. ―Ele está tentando ligar para cá, para a sua casa, mas só dá ocupado .‖ O
meu filho tinha deixado o telefone fora do gancho. Liguei para Paulo Moreira,
então editor-executivo de Veja. Tenso, Paulo disse-me que Adam Sun, chinês
implacável que por muitos anos zelou pela qualidade das informações publicadas
em Veja na condição de chefe da equipe de checagem da revista, descobrira que a
dolarização estava errada. ―Lula, essa soma não dá US$ 1 milhão de dólares. Dá
US$ 1 mil dólares‖, gritou-me Adam do outro lado da linha. Eu gelei. ―Paulo, tem
jeito?‖, perguntei. ―Não‖, cravou-me ele, friamente. ―Já rodamos 1 milhão e 200
mil capas. E jogar fora 1 milhão e 200 mil capas é um prejuízo impagável.
Podemos, ainda, mexer no texto dentro da revista – mas isso vai atrasar a remessa
para o Rio de Janeiro e para o interior de São Paulo‖, advertiu-me ele. ―Vê se
consegue, em 10 minutos, alguém para sustentar em on essa dolarização de US$ 1
milhão‖, sugeriu.
Não pensei em Ibsen Pinheiro ou na injustiça que estava ajudando a dar curso com
aquela reportagem calçada em uma falsa prova. Pensei em mim, no meu emprego,
em como salvar uma reportagem fadada a produzir uma tragédia. Telefonei para o
presidente da CPI do PC, o então deputado Benito Gama, e consegui pegá-lo
acordado àquela hora. Narrei-lhe o ocorrido. Ele tinha conhecimento da versão
acerca dos tais depósitos de US$ 1 milhão. ―Não há chance de isso estar errado. É
US$ 1 milhão e Ibsen terá de responder por isso‖, asseverou Benito. ―Deputado,
isso é on (ou seja, no jargão jornalístico, eu perguntava se a informação podia ser
publicada assinalando-se a sua origem)? Olhe que a reportagem de Veja, que está
errada, vai se escudar nesse on seu‖, perguntei mais uma vez. ―É on. Agora, deixe-
me fazer o meu cooper‖, tranquilizou-me Benito. Passei a frase por telefone a Paulo
Moreira, que mexeu na edição da revista já na gráfica, e a Veja circulou com o
libelo acusatório contra Ibsen.
Foi uma tragédia pessoal para Ibsen Pinheiro. Ele não me procurou nos 10 dias
seguintes. ―Não tinha coragem de querer saber o porquê de terem dado curso àquela
mentira. E logo um repórter com o qual eu tinha excelente relação‖, disse-me anos
depois. Eu sabia que a reportagem estava errada, a CPI também. Por ter detectado o
erro e por ter trabalhado para corrigi-lo no texto interno da revista, a despeito de
não ter salvado a capa, já impressa, o checador Adam Sun ganhou um prêmio de
US$ 1 mil conferido pelo diretor de redação de Veja, Mário Sérgio Conti. Prêmios
como aquele, obtidos mesmo sem concursos ou disputas, só eram dados depois que
conseguíamos bons furos de reportagem. Fora a primeira vez que um prêmio como
aquele acabara nas mãos de um checador. O texto de Veja repercutiu nos jornais
por dois dias, a dolarização incorreta foi protocolarmente corrigida pela CPI na
semana seguinte, mas Ibsen fora arrastado definitivamente para o centro das
investigações. Seus advogados de defesa contrataram uma auditoria da Trevisan &
Associados para esquadrinhar todos os ingressos e todas as saídas de suas contas
bancárias no período de cinco anos. Nenhuma movimentação financeira anormal
foi detectada, mas a CPI desconheceu tal auditoria argumentando que não a pedira
nem a fiscalizara.
128
– Houve um momento, no meio de todo aquele furacão, em que eu tomei uma
decisão: convenci-me que a melhor coisa que podia fazer por mim seria não morrer.
Eu não poderia simplesmente ter um enfarte e morrer; dar um tiro na cabeça ou
sucumbir a um câncer, se ele fosse diagnosticado em meu corpo. Tomei a decisão
política de não morrer para ver até onde iria tudo aquilo, até onde eu resistiria e
como seria o meu restabelecimento pessoal e público.
Essas memórias do turbilhão pessoal foram-me confessadas por Ibsen Pinheiro sete
anos depois de seu calvário pessoal. A conversa, travada em um restaurante de
Curitiba, teve por testemunha o ex-deputado e ex-ministro da Saúde Alceni Guerra,
personagem involuntário de um massacre semelhante à sua honorabilidade e à sua
biografia.
Ibsen Pinheiro sobreviveu à tormenta. Recusou-se a ver a si mesmo no meio do
cenário devastado. Horas depois de ter sido cassado por 293 votos no plenário da
Câmara dos Deputados, pouco mais da metade dos integrantes da Casa, Ibsen
deixou o apartamento funcional de parlamentar no qual morava em Brasília e voou
para Porto Alegre. Não conseguiu dormir. Levantou-se às 6h da manhã seguinte e
foi barbear-se. Olhou-se no espelho e perguntou-se: ―Até onde vou?‖ Envergou o
terno, pôs uma pasta 007 nas mãos e dirigiu-se à sede da Promotoria do Estado do
Rio Grande do Sul. Queria reassumir de imediato, naquele dia, o posto de promotor
de Justiça para o qual passara por concurso público mais de duas décadas
atrás.―Tire férias‖, aconselhou-o o superior hierárquico. ―Não. Quero trabalhar.
Quero viver de novo‖, resignou-se Ibsen, que passou a ser lotado como promotor-
assessor da Procuradoria-Geral de Justiça do Rio Grande do Sul.
– Nunca tive vergonha de mim. Sempre tive fama de ser arrogante e, naqueles
tempos, passei a me impor uma postura que soava ainda mais antipática: sabia que
precisava andar de cabeça erguida. Não podia abaixar o olhar. Não podia sentir-me
derrotado. Os dias, as semanas, os meses foram passando e, nas ruas de Porto
Alegre, de São Borja ou de Tramandaí, jamais fui hostilizado. Dois ou três anos
depois, voltei a ser saudado por um ou outro. A reparação pública não havia se
formalizado, mas eu estava em paz comigo.
A confissão desse processo de regresso a um estado de paz interior consigo mesmo
foi feita por Ibsen em uma conversa que tivemos, na sala de seu apartamento em
Porto Alegre, no ano de 2000. Estávamos ali eu, ele e sua mulher, Laila,
companheira dos melhores dias e dos mais torturantes momentos. Olhei em volta,
mirei alguns pratos de louça dourada sobre uma cômoda, uma almofada de crochê
sobre uma cadeira de balanço, três ou quatro bibelôs dentro de uma cristaleira
espartanamente arrumada. ― Meu Deus‖, pensei em silêncio. ―Este apartamento está
decorado à semelhança da casa de meus avós, de meus pais. Um dia eu fui capaz de
escrever que esse homem, que essa mulher, tinham se tornado milionários – e olha
aqui: são plácidos avós, marcados pela vida, mas ainda sólidos.‖ Não revelei, na
hora, aquela sensação que me provocava desconforto, mas passei a me perguntar
como poderia fazer um gesto que tentasse reparar as injustiças que,
involuntariamente, mas cúmplice, ajudei a perpetrar. Meu maior patrimônio é a
credibilidade de que gozo como jornalista profissional e, de alguns anos para cá,
como consultor de comunicação. Escrever este relato, absolutamente fiel a tudo o
que vivi, foi a melhor maneira que encontrei de repor a verdade – a verdade que
testemunhei.
Conclusões sobre a carta reveladora: no começo da carta, Lula mostra uma certa
intimidade com sua fonte, o deputado Ibsen Pinheiro.
Quem me confessara a resignação ante o governo do então presidente Fernando
Collor de Mello, já no primeiro encontro entre fonte e repórter, sem pedir reservas,
fora o presidente da Câmara dos Deputados à época, Ibsen Pinheiro. A conversa
que tivemos, que começara por futebol, passara por questões regionais e
jornalísticas e terminara em política pura, havia gerado uma empatia instantânea
entre mim e ele. Estabeleceu-se, a partir de então, uma relação de admiração que
129
segue até hoje. Dono de raciocínio rápido e lógico, auto-ironia refinada e poder de
análise invejável, o ex-deputado Ibsen Pinheiro pontificava como uma das melhores
fontes de informação na capital da República naquele início da década de 1990.
A revista tinha pleno conhecimento do erro de informação.
―Lula, essa soma não dá US$ 1 milhão de dólares. Dá US$ 1 mil dólares‖, gritou-
me Adam do outro lado da linha. Eu gelei. ―Paulo, tem jeito?‖, perguntei. ―Não‖,
cravou-me ele, friamente. ―Já rodamos 1 milhão e 200 mil capas. E jogar fora 1
milhão e 200 mil capas é um prejuízo impagável. Podemos, ainda, mexer no texto
dentro da revista – mas isso vai atrasar a remessa para o Rio de Janeiro e para o
interior de São Paulo‖, advertiu-me ele. ―Vê se consegue, em 10 minutos, alguém
para sustentar em on essa dolarização de US$ 1 milhão‖, sugeriu.
A edição de IstoÉ, que tratava guerra editorial com Veja (nesse momento não vamos
entrar nesse mérito da questão por não ser o principal objeto de estudo desse trabalho),
trazia revelações importantes na edição nº 1.819, cujo título de capa ―Massacrado‖ apontava
―como o mau jornalismo transformou US$ 1 mil em US$ 1 milhão e levou à cassação de um
forte candidato a presidente do Brasil‖. Na mesma capa, a revista afirmava: ―Apesar de tudo,
a vítima preserva a sensatez: o denuncismo tem cura, mas na imprensa censurada o
denuncismo é eterno‖.
A revista IstoÉ trazia nessa edição questões sobre o projeto de lei da época do
presidente Lula e criticava a criação do Conselho Nacional de Jornalismo (CFJ) ‗para
fiscalizar e punir jornais e jornalistas‘ e repetia que o ―mau jornalismo provocou martírio do
deputado Ibsen‖.
Pelos relatos do jornalista Luis Costa Pinto, Veja – em especial – pode ter cometido
―distorção deliberada‖ da informação. Bucci identificou essa característica e considerou como
um ‗pecado capital‘ cometido pela imprensa.
Segundo ele, a distorção deliberada é:
(...) a mentira deslavada e consciente. É um pecado evidente que não mereceria
maiores comentários não fosse pelo fato de que, no Brasil, ela não se deve apenas à
má intenção de editores e donos de jornais, revistas ou emissoras de rádio e TV,
mas tem uma origem estrutural: o regime de propriedade dos meios de
comunicação eletrônicos de massa. Por isso, a distorção deliberada se confunde
com frequência com o sétimo pecado capital, que é o abuso do poder. É o que se
verificou com as coberturas políticas da Globo em 1984, quando a campanha
popular por eleições diretas não aparecia na tela da Globo: distorção deliberada e
abuso do poder.274
274
BUCCI, 2000, p. 138.
130
Bernardo Kucinski aprofunda a questão. Para ele, o ‗jornalismo brasileiro é
deficiente em precisão e em capacidade analítica‘. No fundo, Kucinski quer dizer que a falta
de profundidade nas reportagens, no cruzamento de dados, e em erros, como os cometidos
pela revista ao publicar o valor do depósito das contas de Ibsen, acabam por prejudicar os
atores políticos envolvidos e, por tabela, passa ao leitor informações equivocadas de ‗má
qualidade‘. Daí a defesa do controle de qualidade das matérias jornalísticas. ―O jornalismo
brasileiro, tão deficiente em precisão e em capacidade analítica, é mestre de calúnia, na injúria
e na difamação‖ 275
.
Perseu Abramo em seu célebre livro ―Padrões de Manipulação na grande imprensa‖
identificou, ao menos, quatro tipos de manipulação que se aplicados à cobertura do caso Ibsen
Pinheiro, podem ter sido utilizados.
O primeiro é Padrão de Ocultação - é o padrão que se refere à ausência e à presença
dos fatos reais na produção da Imprensa. Não se trata, evidentemente, de fruto do
desconhecimento, e nem mesmo de mera omissão diante do real. É, ao contrário, um
deliberado silêncio militante sobre determinados fatos da realidade. Então pode-se dizer que
ao se equivocar de, forma deliberada (como diz Eugenio Bucci), no caso Ibsen, comete-se a
ocultação com a presença do irreal, de uma notícia sem valor verídico.
Nesse caso, à luz de Perseu Abramo, também foi cometido o Padrão de Fragmentação.
Eliminados os fatos definidos como não-jornalísticos, o "resto" da realidade é
apresentado pela imprensa ao leitor não como uma realidade, com suas estruturas e
interconexões, sua dinâmica e seus movimentos e processos próprios, suas causas,
suas condições e suas consequências. O todo real é estilhaçado, despedaçado,
fragmentado em milhões de minúsculos fatos particularizados, na maior parte dos
casos desconectados entre si, despojados de seus vínculos com o geral, desligados
de seus antecedentes e de seus consequentes no processo em que ocorrem, ou
reconectados e revinculados de forma arbitrária e que não corresponde aos vínculos
reais, mas a outros ficcionais, e artificialmente inventados 276
.
Ainda, dentro dos estudos de Perseu Abramo, podemos citar que a cobertura também
foi feita dentro do que o jornalista chama de ―Inversão da relevância dos aspectos‖. O
secundário foi apresentado como o principal e vice-versa; o particular pelo geral e vice-versa;
o acessório e supérfluo no lugar do importante e decisivo; o caráter adjetivo pelo substantivo;
o pitoresco, o esdrúxulo, o detalhe, enfim, pelo essencial. Essa característica fica clara que a
reportagem de Veja transforma a CPI do Orçamento ou a CPI dos Anões em CPI do Ibsen
275
KUCINSKI, 1998. p. 96. 276
ABRAMO, 2003, p.27.
131
Pinheiro. O elemento principal da reportagem passa a ser um deputado, antes renomado e que,
curiosamente, acaba por ser um político corrupto.
Outra característica nítida no conjunto de reportagens, sobre o caso Ibsen, sobretudo
na matéria de capa, do dia 17 de novembro de 1993, foi o que Abramo chama de a ―Inversão
da versão pelo fato‖. Isso ocorre quando a grande imprensa abre mão de buscar a verdade, de
ir além dos fatos óbvios. Veja, no caso específico, sustentou sua versão mesmo quando houve
contradição entre os elementos da reportagem: o valor do depósito não era o que foi
publicado, as declarações de Ibsen tornaram-se uma bola de neve e serviram para abrir mais
denúncias.
Veja o que diz Abramo sobre a ―Inversão da versão pelo fato‖:
(...) não é o fato em si que passa a importar, mas a versão que dele tem o órgão de
imprensa, seja essa versão originada no próprio órgão de imprensa, seja adotada ou
aceita de alguém - da fonte das declarações e opiniões. O órgão de imprensa
praticamente renuncia a observar e expor os fatos mais triviais do mundo natural ou
social, e prefere, em lugar dessa simples operação, apresentar as declarações, suas
ou alheias sobre esses fatos. Frequentemente, sustenta as versões mesmo quando os
fatos as contradizem. Muitas vezes, prefere engendrar versões e explicações
opiniáticas cada vez mais complicadas e nebulosas a render-se à evidência dos
fatos. Tudo se passa como se o órgão de imprensa agisse sob o domínio de um
princípio que dissesse: se o fato não corresponde à minha versão, deve haver algo
errado com o fato 277.
Há também outra característica apontada por Abramo, em relação aos padrões de
manipulação da grande imprensa. A chamada Inversão da Opinião pela Informação ocorre
quando a utilização sistemática e abusiva de todos esses padrões de manipulação leva quase
inevitavelmente a outro padrão: o de substituir, inteira ou parcialmente, a informação pela
opinião. Segundo ele, não se trata de dizer que, além da informação, o órgão de imprensa
apresenta também a opinião, o que seria justo, louvável e desejável.
Mas que o órgão de imprensa apresenta a opinião no lugar da informação, e com a
agravante de fazer passar a opinião pela informação. O juízo de valor é
inescrupulosamente utilizado como se fosse um juízo de realidade, quando não
como se fosse a própria mera exposição narrativa/descritiva da realidade. O
leitor/espectador já não tem mais diante de si a coisa tal como existe ou acontece,
mas sim uma determinada valorização que o órgão quer que ele tenha de uma coisa
que ele desconhece, porque o seu conhecimento lhe foi oculto, negado e
escamoteado pelo órgão.
Essa inversão é operada pela negação, total ou quase total, da distinção entre juízo
de valor e juízo de realidade, entre o que já se chamou de "gêneros jornalísticos",
ou seja, de um lado a notícia, a reportagem, a entrevista, a cobertura, o noticiário, e,
de outro, o editorial, o artigo, formas de apreensão e compreensão do real que,
coexistentes numa mesma edição ou programação, completavam-se entre si e
277
ABRAMO, 2003. p. 29.
132
ofereciam ao leitor alternativas de formar sua (do leitor) opinião, de maneira
autônoma e independente 278
.
A exemplo de Eugênio Bucci, Perseu Abramo também classifica a distorção da
realidade pela manipulação da imprensa, uma característica deliberada. Ele vai além. Para
Abramo, a maioria dos erros não é involuntária. Isso em função de uma empresa de
comunicação visar lucros – como já foi visto anteriormente.
Se é possível fazer jornalismo com objetividade, porque o jornalismo manipula a
informação e distorce a realidade? Se é possível identificar e distinguir padrões
reiterativos de manipulação, ela é fruto do erro involuntário, da causalidade
excepcional ou das naturais limitações da capacidade de observação e
conhecimento? Certamente não. A conclusão a que se pode chegar, pelo menos
como hipótese de trabalho, é a de que a distorção da realidade pela manipulação da
informação é deliberada, tem um significado e um propósito279
.
Abramo diz ainda que em sua imensa maioria, os principais órgãos de comunicação no
Brasil de hoje são propriedade da empresa privada. Por causa deste fato, há um grau de
controle que as empresas exercem sobre a produção das reportagens, das matérias produzidas
e até mesmo nas apurações. ―(...) É possível concluir que são os proprietários das empresas de
comunicação os principais - embora não os únicos - responsáveis pela deliberada distorção da
realidade pela manipulação das informações 280
‖.
Para Abramo, a discussão que deve ser feita, ―portanto, é a que possa nos levar a
compreender porque os empresários da comunicação manipulam e torcem a realidade‖281
.
E, como os meios de comunicação são empresas privadas, para Abramo, uma das
explicações para essa questão procura situar a raiz da resposta no campo econômico.
E há duas vertentes para a explicação economicista do fenômeno. A primeira
desloca para a figura do anunciante a responsabilidade última e maior pelo produto
final da comunicação: segundo essa vertente, é por imposição — direta ou indireta
— desse anunciante (privado ou estatal) que o empresário se vê obrigado a
manipular e distorcer 282
.
Em seu livro, Padrões de Manipulação da Imprensa, ele cita também uma segunda
vertente para explicar a distorção das informações na imprensa. A ambição de lucro do
278
ABRAMO, 2003, p. 30. 279
Ibid., p. 42. 280
ABRAMO, loc. cit. 281
ABRAMO, loc. cit. 282
ABRAMO, loc. cit.
133
próprio empresário de comunicação é outra resposta para o assunto, assim como o poder no
meio político.
Para Abramo, o empresário, muitas vezes, distorce e manipula informações para
agradar seus consumidores, e, assim, vender mais material de comunicação e desta forma
aumentar seus lucros: a responsabilidade é do próprio empresário de comunicação, mas a
motivação é econômica.
Teria sido o caso de Veja? Em capa do dia 17 de novembro de 1993, a motivação pode
ter sido política, mas principalmente na afã de vender mais exemplares da revista. Afinal, uma
vez suspensa aquela edição o prejuízo seria significativo. Veja então pensou em seu lucro, em
detrimento à imagem pública do político Ibsen Pinheiro.
É bastante provável que ambos esses elementos entrem, em maior ou menor grau,
no comportamento de grande parte das empresas de comunicação. Mas não
parecem explicar todo o fenômeno. O peso de cada anunciante individual sobre o
órgão de comunicação, ou mesmo de seu conjunto, é muito ponderável na pequena
imprensa, naquela em que a manipulação surte menos efeito. Onde a manipulação
impera é na grande imprensa, na que conta, como recriadora de uma realidade
artificial, e, nessa, o peso econômico do anunciante, enquanto expressão editorial, é
quase nulo ou bastante reduzido.
A ambição de lucro, por outro lado, não explica, por si só, a manipulação e a
distorção. Em primeiro lugar porque muito provavelmente o empresário, no Brasil
de hoje, teria mais possibilidades de obter lucros mais gordos e mais rápidos
aplicando seu capital em outros ramos da Indústria, do Comércio ou das Finanças, e
não precisaria investi-los na comunicação. Em segundo lugar, porque nada garante
que outro tipo de jornalismo, não manipulador, não tivesse uma audiência
infinitamente maior do que a que consome os produtos de comunicação
manipulados. É evidente que os órgãos de comunicação, e a Indústria Cultural de
que fazem parte, estão submetidos à Lógica Econômica do Capitalismo. Mas o
Capitalismo opera também com outra lógica — a lógica Política, a lógica do Poder
— e é aí, provavelmente que vamos encontrar a explicação da manipulação
jornalística 283.
3.14. Disputa editorial entre as revistas
A reportagem de capa da revista IstoÉ, edição nº 1.819, provocou grande repercussão
e uma disputa sem igual com a revista Veja. A contribuição da revista foi mostrar o erro de
Veja, como foi visto anteriormente, mas, sem dúvida, revelou uma disputa de mercado entre
os dois semanários.
283
ABRAMO, 2003, p. 43.
134
A publicação da carta de Luís Costa Pinto, ex-editor da revista Veja, e as revelações
sobre o erro que ajudou a enterrar a carreira política do deputado Ibsen Pinheiro causaram
grande surpresa.
Veja, onde há 11 anos foi publicado o erro, reagiu, contra-atacando sua concorrente.
Afinal existia, na época das publicações, uma guerra editorial por fatia do mercado.
Outro ponto importante a ser abordado é que a disputa editorial trouxe à tona uma
discussão relevante. Na época, estava em discussão a criação do Conselho Federal de
Jornalismo (CFJ)284
.
284
De acordo com Projeto de Lei, apresentado por Lula, no dia 27 de maio de 2004, na Câmara Federal, o
Conselho Federal de Jornalismo seria criado para orientar, disciplinar e fiscalizar o exercício da profissão de
jornalista e da atividade de jornalismo, zelar pela fiel observância dos princípios de ética e disciplina da classe
em todo o território nacional, bem assim pugnar pelo direito à livre informação plural e pelo aperfeiçoamento do
jornalismo. Ainda segundo projeto apresentado na Câmara Federal, o CFJ teria sede e foro em Brasília e
jurisdição em todo o território nacional. Pelo projeto competiria ao CFJ:
I - zelar pela dignidade, independência, prerrogativas e valorização do jornalista;
II - representar em juízo, ou fora dele, os interesses coletivos ou individuais relativos às prerrogativas da função
dos jornalistas, ressalvadas as competências privativas dos sindicatos representativos da categoria;
III - editar e alterar o seu regimento, o Código de Ética e Disciplina, as resoluções e os provimentos;
IV - estabelecer as normas e procedimentos do processo disciplinar;
V - supervisionar a fiscalização do exercício profissional em todo o território nacional;
VI - colaborar com o aperfeiçoamento dos cursos de jornalismo e comunicação social com habilitação em
jornalismo;
VII - autorizar, pela maioria absoluta dos seus membros, a oneração de bens imóveis;
VIII - promover diligências, inquéritos ou verificações sobre o funcionamento dos CRJ em todo o território
nacional e adotar medidas para a melhoria de sua gestão;
IX - intervir nos CRJ em que se constate violação a esta Lei ou às suas resoluções, nomeando composição
provisória para o prazo que fixar;
X - cassar ou modificar, de ofício ou mediante representação, qualquer ato de órgão ou autoridade do CFJ
contrário a esta Lei, ao regimento, ao Código de Ética e Disciplina ou às resoluções e provimentos, ouvida a
autoridade ou órgão em causa;
XI - reexaminar, em grau de recurso, as decisões dos CRJ nos casos previstos no regimento;
XII - definir e instituir os símbolos privativos dos jornalistas;
XIII - resolver os casos omissos nesta Lei e nas demais normas pertinentes ao CFJ, assim como aqueles relativos
ao exercício da profissão de jornalista e da atividade de jornalismo;
XIV - fixar e cobrar de seus inscritos as anuidades e os preços por serviços;
XV - fixar normas sobre a obrigatoriedade de indicação do jornalista responsável por material de conteúdo
jornalístico publicado ou veiculado em qualquer meio de comunicação;
XVI - definir as condições para inscrição, cancelamento e suspensão da inscrição dos jornalistas, bem como para
revisão dos registros existentes; e
XVII - estabelecer as condições para a criação e funcionamento das seções dos CRJ.
Parágrafo único. A intervenção de que trata o inciso IX deste artigo depende de prévia aprovação de dois terços
dos membros do CFJ, garantido ao CRJ o amplo direito de defesa.
No artigo Art. 4, o CFJ exigia que todo jornalista, para exercício da profissão, deverá inscrever-se no CRJ da
região de seu domicílio, atendendo às condições estabelecidas pela legislação.
O projeto apontava também infrações disciplinares, além de outras definidas pelo Código de Ética e Disciplina:
I - transgredir seus preceitos;
II - exercer a profissão quando impedido de fazê-lo, ou facilitar, por qualquer meio, o seu exercício aos não
inscritos ou impedidos;
III - solicitar ou receber de cliente qualquer favor em troca de concessões ilícitas;
IV - praticar, no exercício da atividade profissional, ato que a lei defina como crime ou contravenção;
V - deixar de cumprir, no prazo estabelecido, depois de regularmente notificado, determinação emanada pelos
CFJ ou CRJ, em matéria de sua competência; e
VI - deixar de pagar aos CRJ as anuidades a que esteja obrigado.
135
O CFJ teria sido um dos panos de fundo para a publicação de IstoÉ relatando o caso de
mau jornalismo. Nota-se que, apesar de ‗brigarem‘ por nichos de mercado, por maior
vendagem, as duas revistas IstoÉ e Veja são contra o Conselho Federal de Jornalismo. Ou
seja, quando o assunto é ‗exercer‘ um maior controle sobre os atos da imprensa e o papel
exercido por ela, os dois meios de comunicação são uníssonos em afirmar que o controle seria
prejudicial. Ou seja, a imprensa erra, pode mudar o rumo da história, diz que fiscaliza o
governo e o poder público, mas, de forma alguma quer ser controlada.
Isso é facilmente identificado nas posições oficiais das duas revistas:
Sentindo-se vítima de denúncias contra os presidentes do Banco Central, Henrique
Meirelles, e do Banco do Brasil, Cássio Casseb, além do tesoureiro do PT, Delúbio
Soares, o governo resolver atacar a liberdade de imprensa: propôs ao Congresso a
criação de um Conselho Nacional de Jornalismo para fiscalizar e punir jornais e
jornalistas. Mas, uma revelação de um repórter em artigo enviado para o livro a ser
lançado pelo ex-presidente da Câmara Ibsen Pinheiro (PMDB-RS) mostra que a
descoberta da verdade independe de mecanismos repressivos 285
.
A posição de Veja é parecida:
No momento em que o governo tenta amordaçar a imprensa, por meio de um
projeto de lei que cria um conselho federal para "orientar, disciplinar e fiscalizar" a
atividade dos profissionais de jornais e revistas, o mau jornalismo da revista IstoÉ
tentou massacrar o bom jornalismo de Veja, fornecendo munição aos adversários
da liberdade de informação e opinião. Em sua edição da semana passada, numa
fraude jornalística que lhe serviu de capa, IstoÉ retomou o episódio do processo
contra o ex-presidente da Câmara dos Deputados Ibsen Pinheiro, ocorrido em 1993,
para afirmar que Ibsen, acusado de participar do esquema da Máfia dos Anões do
Orçamento, havia sido "massacrado" por uma reportagem de capa de VEJA, na
qual uma movimentação financeira do ex-deputado equivalente a 1.000 dólares
havia se transformado em 1 milhão de dólares, em virtude de um erro grosseiro no
cálculo de conversão, procedimento comum à época, por causa das sucessivas
trocas de moeda que ocorriam no Brasil286
.
3.15. Para Veja, erro não foi proposital. Foi virtude de checagem rigorosa
Art. 7. As penas aplicáveis por infrações disciplinares são as seguintes:
I - advertência;
II - multa;
III - censura;
IV - suspensão do registro profissional, por até trinta dias; e
V - cassação do registro profissional.
Obs: O projeto foi adquirido na íntegra para esta monografia. Porém foram utilizados para o trabalho alguns
trechos do projeto. A fonte é a Câmara Federal de Brasília. O projeto do CFJ foi engavetado por pressão da
imprensa na época, sobretudo dos grandes meios de comunicação. 285
IstoÉ, 18 agosto de 2004, p. 28. 286
Veja, 25 agosto de 2004, p. 36.
136
A edição do dia 25 de agosto de Veja dizia que o erro cometido contra o deputado
Ibsen Pinheiro, na verdade, não era erro287 mas sim uma ―checagem rigorosa dos fatos‖
288. Na
mesma edição, Veja acusa de falsa a carta publicada pelo jornalista Luís Costa Pinto na
edição de IstoÉ. A revista também se defende afirmando que IstoÉ também teria publicada a
mesma reportagem. Ou seja, para Veja o erro não foi isoladamente dela. Mesmo não estando
em discussão aqui se o erro foi ou não isolado e se IstoÉ também errou e não reconheceu o
equívoco achou-se por bem recortar para o trabalho um trecho da reportagem da revista Veja,
desta, vez contra a IstoÉ:
A carta de Luís Costa Pinto é uma peça falsa, indevidamente amplificada pelo mau
jornalismo de IstoÉ. Costa Pinto foi um bom profissional do jornalismo, participou
de apurações de reportagens em Veja, inclusive a entrevista com Pedro Collor,
irmão de Fernando Collor, uma das mais importantes realizações da revista. Depois
deixou de servir ao jornalismo para se servir do jornalismo, tornando-se
marqueteiro, consultor de políticos e lobista, pronto a se engajar em operações
pangaias. Imerso nessa confusão profissional, ele produziu a carta que serviu aos
interesses mesquinhos de IstoÉ. Se o diretor de redação de IstoÉ, o fotógrafo Hélio
Campos Mello, tivesse se dado ao trabalho de mandar um de seus repórteres apurar
as afirmações de Lula, chegaria à conclusão óbvia de que a carta é repleta de
absurdos. Se tivesse se dado ao trabalho, ainda, de dar uma olhadela nos arquivos de
sua própria revista, veria que IstoÉ, em 1993, publicou na mesma semana que Veja
que Ibsen havia movimentado 1 milhão de dólares – por ironia do destino, a matéria
de IstoÉ trazia o mesmo título da de Veja, "Até tu, Ibsen?"289
.
A revista, mais uma vez, no entanto, pode ter incorrido em contradição. Em texto, o
semanário da Abril não explica porque publicou uma informação errada, que havia sido
detectada pelos seus próprios mecanismos de checagem ainda no prazo de fechamento e com
tempo hábil para correção. O assunto que mereceu capa de IstoÉ é muito mais grave. Trata-se
da discussão da manipulação de informações acerca das contas bancárias de um cidadão,
mesmo sabendo que os dados apontados pela revista estavam errados. Pior: a revista tinha
conhecimento do erro, poderia ter corrigido, mas não o fez por diversas razões, como já foi
citado nesse trabalho.
3.16. Jornalista cassado e condenado
287
É preciso notar que a própria revista já havia assumido o erro de informação no caso. Mas, agora para ela, o
que houve foi uma brilhante checagem do caso. Ou seja, mesmo descobrindo que havia informação manipulada,
a revista não se eximiu de publicá-la. 288
Veja, 25 agosto de 2004, p. 36. 289
Ibid., p. 37.
137
Depois de contestar a carta de Luis Costa Pinto (fig.12), o Lula, publicada na revista
IstoÉ, Veja decidiu menosprezar e atacar o profissional que denunciou a manipulação
jornalística. Na edição de 25 de agosto de 2004, a revista faz a seguinte referência:
É entristecedor que Lula, um repórter brilhante na juventude, tenha enveredado pelo
caminho da fraude. Sua carta a Ibsen cortou definitivamente sua trajetória no
jornalismo, colocando-o no limbo onde transitam pessoas que, por terem sido
jornalistas de alguma expressão, hoje se oferecem como lobistas e "apaziguadores de
crises". Em e-mail endereçado a Veja, Lula nada acrescentou que esclarecesse as
circunstâncias em que ele produziu sua fábula290
.
Fig. 12
Na mesma edição, Veja afirma também que a reportagem, a peça de Lula, foi ―usada
de modo fraudulento por IstoÉ”.
Para o semanário, a publicação de IstoÉ – acusando Veja de ter cometido o erro que
contribuiu para a cassação de Ibsen Pinheiro – foi um ato ―irresponsável e criminoso
perpetrado pela direção de IstoÉ, para destruir o maior patrimônio291
de Veja‖, aquele que a
transformou na maior revista brasileira e na quarta do mundo: sua credibilidade292
.
Em outro trecho da reportagem, da edição de 25 de agosto, a Revista Veja, mais uma
vez, tenta se explicar:
(...) a cifra de 1 milhão de dólares não foi um erro de Veja, e muito menos
intencional. Foi um erro da CPI do Orçamento, divulgado, repita-se, por todos os
290
Veja, 25 agosto de 2004, p. 40. 291
Nota-se aqui mais uma prova da guerra editorial e por fatia do mercado entre as revistas. Na mesma edição,
no entanto, Veja não reconhece essa disputa. Afirma que sua circulação total é quase quatro vezes maior do que
a de IstoÉ, hoje a terceira semanal do Brasil, atrás de Época. 292
Veja, op. cit., p. 40.
138
grandes órgãos de imprensa. Esse erro foi corrigido por Veja na edição da semana
seguinte. Correção que foi sonegada por IstoÉ. Mas o fotógrafo Hélio Campos
Mello estava ocupado demais para fazer o trabalho certo293
.
No entanto, para a Revista IstoÉ, as tentativas de explicações de Veja e o ataque ao
jornalista Luis Costa Pinto, se transformaram em histérica demonstração de descontrole. Em
sua versão online, segundo IstoÉ, além do erro de informação jornalística contra o deputado
Ibsen, houve outra tentativa de manipulação.
Na versão online, Veja reproduziu uma chamada interna de IstoÉ para dar a impressão
de que a revista elaborou, na época, uma capa igual à de Veja. A capa de Istoé naquela edição
era sobre outro assunto. No mesmo texto de Veja On Line, foi feita uma montagem com o
título de uma reportagem interna de IstoÉ misturado à legenda de uma foto: ―IstoÉ de 1993.
Até Tu Ibsen – Ibsen movimentou em suas contas pelo menos US$ 1 milhão desde 1990.‖ A
segunda frase era legenda de foto no texto de IstoÉ, e não parte do título, como Veja quis
fazer acreditar. A reportagem de IstoÉ não falava em depósitos de US$ 881 mil na conta de
Ibsen. Pelo contrário, o texto de IstoÉ dizia: ―A CPI parece ter se enganado ao denunciar os
depósitos e levantar a suspeita de que se tratava de repasses financeiros do pessoal da máfia
do Orçamento.‖
Veja foi acusada pelo jornalista Luís Costa Pinto de ter publicado informações
comprovadamente falsas. Em Istoé, a reportagem de capa falava exatamente do estrago
produzido.
Em sua última edição, IstoÉ apenas revelou o fato. A informação falsa vazada pela
CPI é que levou toda a imprensa ao erro, inclusive a legenda da foto de IstoÉ. A
diferença é que, como relatou Costa Pinto, Veja teve acesso aos extratos, refez as
contas e mesmo assim publicou a capa contra Ibsen. Também não é verdade que
Veja tenha se corrigido na edição seguinte, como diz o site. Em uma semana, dá a
foto de Ibsen na capa – com o título interno de ―Uma estrela na lama‖ – e numa
reportagem de seis páginas confirma em vários trechos que o então parlamentar
havia recebido US$ 881 mil (informação que sabia ser errada). Na semana seguinte,
em uma página com o título ―Um milhão de dificuldades‖, Veja repassa a culpa
pelo erro – que conhecia de antemão, conforme relatou Costa Pinto – para a CPI,
como se não tivesse sido alertada para o superfaturamento em 1.000% dos
depósitos atribuídos a Ibsen Pinheiro294
.
Veja também foi tomada pela histeria, segundo IstoÉ, quando desclassifica o jornalista
Luís Costa Pinto. Quem trabalhou durante sete anos em sua redação, conquistou vários
prêmios – inclusive com a famosa entrevista de Pedro Collor que deu origem ao processo de
293
Veja, 25 agosto de 2004, p. 40. 294
http://www.terra.com.br/istoe/1820/brasil/1820_erros_desequilibrio.htm.
139
renúncia do presidente Collor –, não poderia ser tratado por ―lobista de empresas
multinacionais, marqueteiro, consultor do PT e ex-jornalista‖. ―Nem um stalinista do
Conselho Federal de Jornalismo da velha União Soviética faria o que fez Veja: julgar,
condenar e cassar um profissional em tempo recorde‖295
.
Enfim, o fato é que os ataques entre Veja e Istoé o que ficou evidente foi o erro
histórico da primeira, o que contribuiu, de alguma forma, direta ou indiretamente para a
cassação do mandato de um deputado federal, que estava em franca ascensão política na
época. Ficou evidente também que, diante do reconhecimento de Veja, ocorreu manipulação
na informação durante toda a cobertura do caso Ibsen Pinheiro. Tudo, no entanto, em nome da
liberdade de imprensa.
Cláudio Abramo já chamava atenção para o fenômeno – de a grande imprensa tomar
como escudo a liberdade de informação. Ele afirmava que ―o equívoco que existe entre os
jornalistas é considerar que a grande imprensa possa ir além daquilo que é o seu papel
histórico‖.
Para o reformulador de O Estado de S. Paulo e da Folha de S. Paulo nos anos 1960 e
1970, liberdade de imprensa, é antes de qualquer coisa, liberdade da empresa jornalística.
A grande imprensa, como já está definida pelo nome, é ligada aos interesses
daquela classe que pode manter a grande imprensa. Na medida em que essa classe
está em contradição com a conjuntura nacional, os jornais podem exercer um papel
de esclarecimento‖ da opinião pública. (...) Mas, é preciso não esquecer, lembra
Abramo, ―que esse esclarecimento vai até o nível dos interesses da própria grande
imprensa‖. Ele tem interesses peculiares, pertence a pessoas cujos interesses estão
ligados a um complexo econômico, político e institucional 296
.
3.17. O que falaram Estadão, Folha e Correio sobre Ibsen
Cada meio de comunicação atua dentro de uma linha editorial, mas como vimos no
transcorrer dessa dissertação isso não impede de os meios de comunicação, ou a chamada
grande imprensa, atuarem de forma hegemônica, como uma corporação.
Mário Rosa fala dessa característica, quando diz em seu livro ―A era do escândalo‖297
que o ―sistema de avaliações (dos meios de comunicação) peca com excessiva complacência,
própria das corporações fechadas‖. Ou seja, ele refere-se a forma como a imprensa trata dos
295
IstoÉ, 25 de agosto de 2004. 296
ABRAMO, Cláudio. A regra do jogo. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 116. 297
ROSA, 2007, p. 452.
140
seus próprios abusos e erros. Na visão dele, e comprovadamente, há certo comodismo da
grande imprensa sobre a manipulação ocorrida dentro nas informações que vão para o leitor.
Marilena Chaiú vai além:
Gradualmente desaparece uma figura essencial do jornalismo: o jornalismo
investigativo, que cede lugar ao jornalismo assertivo ou opinativo. Os jornalista
(sic) passam, assim, o ocupar (sic) o lugar que, tradicionalmente, cabia a grupos e
classes sociais e a partidos políticos. Todavia, sua opinião não fica restrita ao meio
impresso: passa a servir como material para os noticiários de rádio e televisão298
.
Francisco Fonseca considera que ―numa fronteira próxima pode-se definir os órgãos
de imprensa como perfilhados a uma atuação pragmática ou doutrinária‖299
.
Há uma pista então que, como fez a Revista Veja, as coberturas dos jornais impressos
O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo e Correio Braziliense foram próximas do que foram
publicadas na revista. O que se percebe é que apesar de cada um ter sua peculiaridade, a
grande imprensa geralmente atua por meio de um mesmo modo de operação. Afinal com
maior ou menor ênfase, o personagem retratado nas reportagens diárias era o mesmo (Ibsen
Pinheiro). É como diz Fonseca ―é a ausência de vozes discordantes nos jornais‖300
.
Durante toda a cobertura, entre a Revista Veja e os jornais abordados nesse trabalho
são as mesmas fontes como oficiais para a acusação de Ibsen. Os enfoques e fotos são
praticamente os mesmos. Quase que dos mesmos ângulos, com qualidade de apuração
duvidosa.
Eugênio Bucci fala sobre essa (falta de) qualidade dentro do jornalismo, quando
defende que a prática jornalística nunca dependeu tanto da reflexão e do estudo como agora.
Uma redação não é um balcão onde notícias são empacotadas. Uma redação é um
núcleo encarregado de pensar. Ela é tanto melhor quanto melhor for a sua
capacidade de elaboração coletiva. A qualidade do que ela apura, escreve, narra,
edita, fotografa e desenha é consequência do modo como ela pensa – ou do modo
como ela não pensa. Jornalistas não são ―mineradores‖ de informação exclusiva
que ocasionalmente são instados a pensar, mas precisam ser pensadores com grande
capacidade executiva. O jornalismo é uma atividade intelectual – ou é
inconsequente e tolo 301
.
298
CHAUÍ, Marilena. Simulacro e poder – Uma análise da mídia. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2006, p.
12-13. 299
FONSECA, 2005. p. 441. 300
Ibid., p. 445. 301
BUCCI, 2000, p. 199.
141
Para além disso, os meios de comunicação são empresas privadas, pertencentes a
grupos que têm objetivos de gerar lucro.
Então, se os jornais buscam lucros e usam as mesmas armas e métodos para atingir
seus objetivos, eles tornam-se cada vez mais parecidos com reportagens e títulos semelhantes.
3.18. A cobertura do Estadão contra „Ouribsen‟
O Jornal O Estado de S. Paulo iniciou suas publicações do escândalo, contra o
deputado Ibsen Pinheiro, em sua edição de dia 8 de dezembro de 1993. ―Escândalo pode tirar
cargo de Ibsen na revisão‖ foi o título da primeira reportagem sobre o caso. A reportagem
com chamada de capa trazia um diferencial: uma charge de Ibsen Pinheiro (fig. 13). Nela, o
autor Paulo Caruso mostra Ibsen com o cabelo liso (arrumado à gel) e ao invés de um pente,
um ‗cortador de grama‘ se incumbindo de ‗pentear‘ o local. Mostra, sobretudo, as
dificuldades que Ibsen teria para enfrentar as denúncias contra ele.
O jornal trouxe uma caricatura com objetivo de influenciar, cada vez mais o seu leitor.
Muitas vezes, o leitor interessado em saber rapidamente o que acontece, e que se
limita a uma vista d‘olhos pela jornal, escapa a uma adesão, a um posicionamento
quanto às opiniões explícitas do veículo. É claro que nesse contato, por mais breve
que seja, com o veículo, o leitor naturalmente incorpora uma carta ótica do real.
Mas isso fica limitado a um nível inconsciente. Já no caso da imagem, que produz
um impacto imediato, seja pela evidência, seja pelo eventual humorismo, nota-se
uma participação consciente na captação do cotidiano. (...) A opinião se manifesta
explícita e permanentemente através da caricatura, cuja finalidade satírica ou
humorística pressupõe a emissão de juízos de valor302
.
302
MELO, 1994, p. 163.
142
Fig. 13
É possível observar também que a caricatura utilizada pelo O Estado de S. Paulo traz
um juízo de valor. Mostra Ibsen com a ―cabeça inchada‖ tendo de explicar à opinião pública
as acusações que vinha sofrendo. Utilizando Ramón Columba303
, Melo diz que uma caricatura
pode ser considerada ―o supremo tribunal‖, cujo mandato vem da opinião pública.
A caricatura é encarregada de assinalar qualquer excesso social ou político suspeito
de licenciosidade corruptora. E o faz em juízo sumário, sem materialização de
provas nem apelo possível. Ante ela se inclinam os próprios juízes e autoridades da
nação. Quer dizer que exerce uma suprema jurisdição, missão de privilégio que, por
certo, não possuem outras artes que enfrentam também a natureza e reproduzem
aspectos da sociedade (...).304
Não podemos nos esquecer também que essa ferramenta da imprensa também foi
muito utilizada pelos pasquins no início do período do Império (leia mais na introdução desse
303
COLUMBA, Ramón. Que és la caricatura. Buenos Aires: Editorial Columba, 1959. 304
MELO, 1994, p. 163.
143
trabalho). Na primeira reportagem de O Estado de S. Paulo sobre o assunto ainda não se
falava sobre o suposto depósito de U$ 1 milhão, mas de um outro valor de US$ 30 mil a Ibsen
proveniente do deputado Genebaldo Correia. Outro enfoque era sobre a possibilidade de Ibsen
deixar a relatoria do regimento da revisão constitucional.
A descoberta de que o líder do PMDB, Genebaldo Correia, um dos principais
envolvidos no escândalo do Orçamento deu três cheques no valor de US$ 30 mil a
Ibsen deixou os líderes políticos desconcertados. ―Ele deve se afastar da revisão‖,
disse o líder do governo na Câmara, Roberto Freire. Ibsen enviou carta ao senador
Jarbas Passarinho, confirmou ter recebido os cheques, mas negou a acusação que a
transação tenha relação com o Orçamento305
.
Como já vimos anteriormente, esse cheque teria sido ‗explicado‘ por Ibsen. Seria da
venda de uma F-1000. Mais uma vez, os cheques depositados não comprovariam, naquela
ocasião, atos de corrupção do deputado. Nem mesmo por isso, O Estado de S. Paulo deixou
de ‗carimbar‘ as acusações em sua página interna daquela edição ―Cheques reforçam
acusação a deputado‖ foi mais uma vez enfática. Outro detalhe foi a utilização de uma
fotolegenda (uma mini-matéria complementar ao lado da principal tratando do mesmo
assunto) mostrando a realização de um arrastão no Rio de Janeiro contra os corruptos.
Em um trecho da reportagem, na página A.5, O Estado de S.Paulo afirma o seguinte:
A descoberta dos três cheques emitidos pelo líder do PMDB, Genebaldo Correia
(BA), para o deputado Ibsen Pinheiro (PMDB-RS) pode confirmar denúncia do ex-
diretor do Departamento do Orçamento da União (DOU), José Carlos Alves de
Souza – que acusou o parlamentar da Bahia de ser o representante do ex-presidente
da Câmara no esquema de corrupção no Congresso306
.
O Estado de S. Paulo prosseguiu acompanhando o caso. Na edição seguinte, do dia 9,
não fez referência direta às acusações contra Ibsen. Mostrou a ‗preocupação‘ do Congresso
em tentar acordo para ―salvar‖ a revisão da reforma constitucional, uma vez que um de seus
membros, o deputado Ibsen Pinheiro estaria envolvido no escândalo do Orçamento.
Na mesma edição, o jornal paulista trazia uma outra informação política. Desta vez, a
preocupação do PMDB, partido de Ibsen, sobre o desgaste político provocado em função do
episódio. ―PMDB admite desgaste e busca saída para a crise‖ foi o título da reportagem da
página A-4 da edição do dia 9 de novembro.
305
O Estado de S. Paulo, 8 de dezembro de 1993, capa. 306
Ibid., p. A.5.
144
Na edição seguinte – ainda sem falar especificamente do valor de US$ 1 milhão
encontrados em suas contas, como fez Veja na edição do dia 17 de novembro, O Estado de S.
Paulo trouxe manchete sobre as denúncias contra o deputado.
―Ibsen renuncia a função na reforma‖ foi o título da edição de capa com manchete do
dia 10 de novembro. A chamada trazia Ibsen cabisbaixo e uma foto de Ulysses Guimarães,
deputado constituinte e símbolo da política brasileira. Como se vê (fig. 14), o jornal trouxe
propositalmente uma mensagem oculta. Era como se Ulysses Guimarães estivesse reprovando
a atitude de Ibsen. Mostra Guimarães com o rosto sisudo parecendo ―reprovar‖ a atitude do
deputado gaúcho que deixa uma sala – não se sabe se do Congresso Nacional – com a cabeça
baixa.
Fig. 14
Aqui nota-se mais, uma vez, um instrumento de persuasão utilizado pelo jornal
paulista para enfatizar a denúncia e tentar ―desmoralizar‖ a figura político de um personagem
que já estaria no ―olho do furacão‖. Chama atenção também a legenda da foto da capa que
diz: VENCIDO PELA SUSPEITA Ibsen, sob o retrato de Ulisses: renuncia, ―para não
atrapalhar a revisão‖, em meio às acusações da CPI do Orçamento.
145
Na página interna (A-5), da mesma edição, o Jornal O Estado traz o título ―Ibsen
renuncia e Genebaldo avisa que vai sair‖. Mais uma vez a foto de Ibsen chama atenção. O
deputado aparece, mais uma vez com imagem atordoada, fazendo um ―bico‖ – a boca aberta,
mas não mostrando os dentes – como se tentasse explicar o episódio pelo qual estava
envolvido. O lead da matéria diz o seguinte:
Três dias depois de a CPI do Orçamento ter descoberto três cheques do deputado
Genebaldo Correia (PMDB-BA), em sua conta, totalizando US$ 51 mil, o deputado
Ibsen Pinheiro (PMDB-RS), resolveu renunciar ao cargo de relator do regimento
interno da revisão constitucional. À noite, Genebaldo também comunicou ao
presidente do partido, Luiz Henrique (SC), que iria se licenciar da liderança na
Câmara para não causar maiores constrangimentos à bancada307
.
As três edições seguintes do Jornal O Estado de S. Paulo traçaram notícias sobre
dinheiro que a CPI teria encontrado nas contas de Ibsen. Em cada edição um valor diferente,
repetindo assim, o que os demais jornais da época relataram. Na edição do dia 11 de
dezembro de 1993, por exemplo, o jornal Estadão trouxe a seguinte matéria na página A-7:
―CPI acha novos depósitos em contas de Ibsen‖. No dia seguinte, ―Ibsen movimentou US$
340 mil em um ano‖. Já na edição do dia 13 de novembro, mais dinheiro encontrado nas
contas do deputado: ―Ibsen movimentou US$ 1 milhão desde 1989 em conta do Banrisul‖. A
essa altura do campeonato qualquer valor encontrado na conta particular do deputado já se
transformaria em prova de denúncias. A edição do dia 16 de novembro foi mais enfática. O
jornal claramente pedia a punição aos políticos corruptos. Ibsen, é claro, incluído nesse rol.
A título da reportagem ―Punição de corruptores ainda faz a diferença entre Itália e
Brasil‖ mostrava uma relação ou um tipo de referência da corrupção brasileira com a máfia
siciliana. A reportagem fazia comparações e trazia semelhanças entre políticos brasileiros
como Ibsen Pinheiro com mafiosos italianos.
A reportagem mais incisiva e avassaladora para a figura do deputado Ibsen Pinheiro,
trazida pelo Estadão foi a do dia 17 de novembro de 1993. Apesar de não ter sido manchete
daquele dia, o jornal trouxe chamada de capa sob título ―Ibsen justifica depósito como sobras
de eleição‖.
O deputado Ibsen Pinheiro (PMDB-RS) explicará que parte dos elevados308
depósitos bancários encontrados em suas contas pela CPI do Orçamento foi de
dinheiro de sobra de campanha. O argumento é o mesmo utilizado pelo ex-
307
O Estado de S. Paulo, 10 de novembro de 1993, p. A-5. 308
Aqui nota-se o termo usado por O Estado de S.Paulo. A palavra elevado é utilizada aqui como se fosse um
juízo de valor. Ou seja, para o Jornal os valores descobertos nas contas de Ibsen e que, comprovadamente,
estavam equivocados eram elevados.
146
presidente Fernando Collor para justificar os recursos recebidos de Paulo César
Farias. A parcela restante dos depósitos, já declarou o deputado gaúcho, teria sido
de cruzados liberados pelo Plano Collor, Ibsen Pinheiro garantiu que a CPI errou ao
somar depósitos de mais de US$ 1 milhão em suas contas309
.
Além disso, o que chamou mais atenção nessa edição foi a charge/caricatura (fig. 15)
de Ibsen, a segunda utilizada pelo jornal O Estado de S. Paulo, na cobertura desse episódio.
Na capa, o jornal trouxe um desenho caricaturado de Ibsen comparando a um ourives no
fundo do mar. Chamou atenção também a legenda da caricatura: ―Espécimes do mar de lama:
III – Ouribsen‖ – uma forma exagerada e condenatória de mostrar a denúncia contra o
deputado. Ficou evidente o prejulgamento nesse episódio, como fizeram os outros meios de
comunicação na época. É como se o jornal buscasse o entretenimento, ao invés da informação
absoluta e verdadeira.
Fig. 15
309
O Estado de S. Paulo, 17 de novembro de 1993, capa.
147
Eugenio Bucci, em seu livro ―Sobre Ética e Imprensa‖ diz que os meios de
comunicação podem se dedicar exclusivamente ao entretenimento; a imprensa não. Na
verdade, ele faz uma diferenciação entre imprensa e meios de comunicação – esse último
considerado os meios em geral: tevê, rádio, etc. Já a imprensa considera o jornalismo em si.
(...) (a imprensa) ela deve noticiar e interpretar os fatos, assim como dar espaço às
ideias e aos debates de interesse público. Os primeiros – os meios de comunicação,
genericamente – lidam com divertimento de todo tipo e também com obras de
ficção, que não têm compromisso algum com a objetividade; já a imprensa trabalha
sobretudo com fatos e ideias. Por isso, quando os jornais publicam um conto,
fazem-no em caráter excepcional; as caricaturas ou cartuns, cuja função é
―comentar‖ os fatos, bem como os textos humorísticos e as crônicas, têm lugares
claramente delimitados – tudo para impedir qualquer confusão. E é aqui que se
funda a particularidade do jornalismo em relação aos meios de comunicação em
geral: ele lida com a verdade factual e deve promover a busca da verdade de forma
equilibrada e crítica, enquanto os meios de comunicação prestam-se a qualquer tipo
de conteúdo 310
.
O Jornal O Estado de S.Paulo teria ‗pecado‘ pelo exagero? E se ‗pecou‘ é porque não
teme qualquer tipo de punição? Se o jornalismo deve prezar pela busca da verdade, faltou
então um pouco de mais de investigação no caso. O jornal usou um instrumento jornalístico –
que são as charges – para sustentar a ficção sobre o caso Ibsen.
Para Luiz Martins da Silva,
―a pressa na investigação ou a total ausência desse procedimento têm imposto à
imprensa brasileira dois tipos de prejuízo, que se alternam, ou se somam: perda da
credibilidade e de recursos financeiros. Mesmo que se valha de fontes de fé pública
e mesmo que se venha estabelecer uma rigorosa conduta na checagem das
informações, mesmo assim, a imprensa está fadada a uma grande vulnerabilidade,
graças a dois fatores: a inexistência de um teto para as penas pecuniárias em casos
de prejuízo moral e a facilidade com que este delito pode ser tipificado, dada a
amplitude subjetiva com que se pode caracterizá-lo 311
.
3.19. A cobertura da Folha no caso Ibsen Pinheiro
Como vimos no estudo feito até agora toda e qualquer acusação ou investigação sobre
a CPI dos Anões do Orçamento respingaram com grande força sobre o deputado Ibsen
Pinheiro. A investigação, como já bem dissemos, virou a CPI do Ibsen. Isso se torna notório
mais uma vez na cobertura da Folha de S. Paulo. A exemplo dos demais concorrentes da
310
BUCCI, 2000, p. 186. 311
SILVA, 2000.
148
imprensa, as notícias foram sem profundidade, guardando, sobretudo, informações oficiais da
CPI.
É interessante notar, sobretudo, a ‗similaridade‘ da cobertura da Folha de S. Paulo com
os demais jornais. O jornal paulista iniciou sua cobertura na edição do dia 9 de novembro de
1993. O título ―Novas acusações abrem crise na CPI‖, mostrava que a CPI do Orçamento
entrou em crise após divulgação de acusações contra o deputado Ibsen. A Folha de S. Paulo
só foi, entretanto, acusar diretamente Ibsen de corrupção na edição seguinte: ―CPI descobre
novas contas de Ibsen‖. ―A CPI do Orçamento descobriu que o deputado Ibsen Pinheiro
(PMDB-RS) abriu seis cadernetas de poupança, seis dias antes do bloqueio do Plano Collor,
em março de 90. Foram encontrados depósitos em cheques de US$ 160 mil. A CPI quer saber
a origem dos recursos‖312
.
É interessante notar que o Jornal Folha de S. Paulo foi mais um meio de comunicação
da grande mídia a utilizar um ‗selo/logo‘ em suas coberturas sobre o caso da CPI do
Orçamento e, consequentemente, sobre o caso Ibsen Pinheiro. O logo SUPERESCÂNDALO,
foi utilizado todas as vezes em que o jornal produziu reportagens sobre o episódio. Na
primeira vez, foi na página interna (A-6), da edição do dia 11 de novembro. Para a Folha de S.
Paulo, Ibsen estava envolvido em um superescândalo. Na mesma página interna, uma foto
mostra o deputado gaúcho, já sendo o principal ‗protagonista‘ das acusações, falando ao
telefone e a legenda da foto com o seguinte texto: ―O deputado Ibsen Pinheiro (PSDB-RS)
fala ao telefone no Salão Verde da Câmara‖.
O jornal deu um pequeno espaço para que o deputado se explicasse. Mas, as poucas
linhas de explicações foram ofuscadas pela matéria principal da denúncia.
O deputado Ibsen Pinheiro (PSDB-RS) disse ontem que as quantias que aparecem
depositadas periodicamente em suas contas, de cerca de US$ 10 mil313
referem-se
―provavelmente‖ à liberação, a partir de outubro de 91, dos cruzados bloqueados no
governo Collor. Ele disse que teve apreendido naquela época algo em torno de US$
150 mil. Segundo Ibsen, notícias publicadas em jornais de ontem, sobre o assunto
―foram plantadas‖. Ele disse que os textos não especificaram os depósitos, seus
valores exatos e datas. ―Embora eu não seja abonado, US$ 10 mil na minha
econômica não é desproporcional‖314
.
312
Folha de S. Paulo, 9 de novembro de 1993, capa. 313
Nota-se aqui que tanto a Folha de S. Paulo, como O Estado de S.Paulo, e a Revista Veja trouxeram valores
diferentes. Ou seja, qualquer depósito feito nas contas do deputado já constavam como suspeitos. Desta forma, o
leitor da época viu um emaranhado de valores nas contas e poupança do deputado. 314
Folha de S. Paulo, 11 de novembro de 1993, p. 6.
149
A cobertura do ―superescândalo‖ deixa uma pista também de que a imprensa utilizou
sua própria ‗ética‘ para desenvolver sua cobertura do caso.
Isso foi identificado claramente por Cláudio Abramo em seu livro ―A Regra do Jogo –
o jornalismo e a ética do marceneiro‖. Ao tratar do assunto ele diz:
Evidentemente, a empresa tem a sua ética, que é a dos donos. Pode variar de jornal
para jornal, mas o que os jornalistas deveriam exigir seria um tratamento mais ético
da empresa em relação a eles e seus colegas. Isso não tem acontecido. É preciso
uma atitude muito ética dentro da redação: os chefes e os responsáveis pelo jornal
têm de dar o exemplo ao pessoal mais novo, senão é o caos. Um chefe de redação
que tolera hipocrisia e golpes baixos contra funcionários do jornal perde a ética e o
direito de usar essa palavra.
A resolução da questão ética depende também do que o jornalista considera seu
dever de cidadão. Caso ele saiba de algo que põe em perigo a pátria, que põe em
perigo o povo brasileiro, o dever do cidadão deve se refletir na profissão. O limite
do jornalista é esse, ou seja, o limite do cidadão. Se um médico souber que estão
preparando um golpe de Estado, ele tem a obrigação de contar, se for contra. Se for
a favor, ele não tem obrigação. A ética do jornalista, portanto, é um mito que
precisa ser desfeito. O jornalista não pode ser despido de opinião política. A
posição que considera o jornalista um ser separado da humanidade é uma bobagem.
A própria objetividade é mal-administrada, porque se mistura com a necessidade de
não se envolver, o que cria uma contradição na própria formulação política do
trabalho jornalístico. Deve-se, sim, ter opinião, saber onde ela começa e onde
acaba, saber onde ela interfere nas coisas ou não. É preciso ter consciência. O que
se procura, hoje, é exatamente tirar a consciência do jornalista. O jornalista não
deve ser ingênuo, deve ser cético. Ele não pode ser impiedoso com as coisas sem
um critério ético. Nós não temos licença especial, dada por um xerife sobrenatural,
para fazer o que quisermos315
.
E, seguindo na cobertura, a Folha de S. Paulo trouxe na edição do dia 12 de novembro,
mais um valor de depósito na conta do deputado. ―Ibsen tinha mais US$ 340 mil no Banrisul‖
foi o título da reportagem da página 6.
Na linha fina, o jornal afirma que a descoberta contradizia com a versão do deputado,
de que seus investimentos em 90 se limitavam às poupanças na CEF.
É como se praticamente todos os jornais ‗cegassem‘ seus olhos e direcionassem a
cobertura para os ataques, característica percebida por Mário Rosa.
Segundo ele, ―em situações de grande comoção, quando a busca frenética pela última
novidade aprisiona o olhar da mídia, é normal que grandes equívocos venham à tona. O difícil
é conviver com essa variável sempre presente no rastro das grandes crises‖ 316
.
Ou seja, quando a grande imprensa busca um foco, dificilmente ela terá olhos para o
‗outro lado‘.
315
ABRAMO, 1988, p. 29. 316
ROSA, 2007, p. 45
150
Ao falar sobre o assunto, Rosa também diz que é difícil controlar a mídia. Ou seja, se
ela busca um foco e segue com informações mesmo que contraditórias, dificilmente ela
mudará de posição.
É claro que ninguém vai conseguir controlar a mídia. A imprensa é livre, mas se as
posições da empresa (ou da pessoa que está sendo atingida por ela) forem
consistentes as informações forem passadas com frequência e de forma cadenciada,
a vontade de especular sobre o assunto vai diminuindo progressivamente 317
.
A imprensa, na verdade, é uma empresa e como empresa defende interesses
particulares e, na maioria das vezes, não abre mão deles.
Voltando a análise da cobertura, no dia 13 de novembro de 1993, o Jornal Folha de S.
Paulo trouxe reportagem sobre um novo valor nas contas de Ibsen. Desta vez, o mesmo valor
pelo qual se pautou a revista Veja na reportagem ―Até tu Ibsen?‖: US$ 1 milhão.
Segundo a Folha, na ocasião, a CPI achou novos cheques da Banrisul e no Meridional
e a soma se contradizia às declarações do deputado à comissão.
Eis a ‗salada‘ de números publicados na reportagem de capa da Folha de S. Paulo
naquela edição:
A CPI do Orçamento descobriu depósitos de US$ 882 mil na conta do deputado
Ibsen Pinheiro (PMDB-RS) no Banrisul entre 89 e 93. Foi encontrado também
cheque de US$ 170 mil no Banco Meridional. Com os US$ 51 mil recebidos de
Genebaldo Correia, a comissão já achou US$ 1,1 milhão de Ibsen. À CPI, o
deputado declarou ter US$ 145 mil. Em nota disse ontem que dará, ―no local e
momento adequados, todas as satisfações‖318
.
Na página interna, a Folha trouxe a seguinte matéria: ―CPI revelou que depósitos a
Ibsen superam US$ 1 mi‖.
De mãos atadas, o deputado gaúcho praticamente foi vítima da contra-informação. Ou
seja, surgiram várias notícias de depósitos, de valores diferentes, que engrossaram as
denúncias e dificultaram as justificativas do deputado. O próprio Ibsen reconheceu essa
dificuldade onze anos depois do escândalo, durante entrevista para a Revista IstoÉ:
Nenhum desses episódios que sofri tem o condão de me tornar amargo ou
vingativo. Eu os atribuo à natureza do processo político: primeiro, destruir a
imagem de seu alvo; segundo, emudecer-lhe a voz. Não que ele não fale, ele fala,
mas ninguém o escuta. Dez anos depois, pode ser319
.
317
ROSA, 2007, p. 47 318
Folha de S. Paulo, 13 de novembro de 1993, capa. 319
IstoÉ, 18 de agosto de 2004.
151
3.20. A cobertura do Correio Braziliense no caso Ibsen Pinheiro
Por ser um jornal com sede em Brasília, Capital Federal do País, a cobertura do
Correio Braziliense foi mais ampla quando comparados aos jornais paulistas O Estado de S.
Paulo e Folha de S. Paulo.
Mas antes de iniciar a análise é preciso abrir um parêntese. A essa altura, no entanto,
Correio e os demais meios de comunicação trouxeram a característica da ‗mídia tribunal‘,
quase que competindo com as atribuições precípuas do Poder Judiciário, entre eles o Tribunal
de Justiça e até o Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília.
Ela é mais uma manifestação da capacidade da mídia de invadir todo o tecido social
e de seu poder de tentar submeter atribuições e formatações de outros campos
sociais à sua dinâmica de funcionamento. O ritmo de rito judiciário,
obrigatoriamente lento para possibilitar um julgamento fundamentado e consistente,
com ampla defesa do acusado, é virtualmente atropelado por um dispositivo
sociotecnológico regido pela velocidade dos acontecimentos e por seu necessário
apego à atualidade. A desigualdade dos ritmos certamente conduz a dificuldades
expressivas nas coberturas midiáticas e, mais especialmente, na possibilidade de a
mídia invadir e assumir o papel de tribunal, ao pretender julgar acontecimentos e
atores sociais 320
.
Além disso, diante de toda análise que foi feita nesse trabalho, temos uma importante
pista a ser analisada. A grande imprensa avança e disputa o poder de se representar com o
campo da política. Como se tivessem ‗mandatos‘ e fossem escolhidos para representar o
povo, os meios de comunicação assumem o lugar de ‗porta-vozes‘, que julgam ‗representar‘
setores da população, em especial os excluídos.
Seria muito esperar da própria grande imprensa que a ética - dos meios de
comunicação e também dos profissionais - resolva a questão da imprensa-tribunal?
A questão talvez seja muito mais abrangente, passando para uma discussão coletiva e
que envolva mais segmentos.
De acordo com Antônio Albino Canelas Rubin, o assunto em questão também se
inscreve no campo da ética coletiva ou individual, mas ela não pode deixar de ser formulada
como problema político da maior relevância hoje, inclusive para a possibilidade de uma
sociedade radicalmente democrática.
320
RUBIN, Antonio Albino Canelas. Dos poderes da media: comunicação, sociabilidade e política in NETO,
Antonio Fausto, Brasil, Comunicação, Cultura e Política. Rio de Janeiro: Diadorim, 1994.
152
(...) como a sociedade vai regulamentar democraticamente essa nova dimensão
pública (midiatizada) da sociabilidade contemporânea e quais as normas sociais que
a sociedade vai imaginar para governar e ordenar democraticamente essa dimensão,
assegurando assim uma atuação responsável da mídia, de seus proprietários, dos
patrocinadores, dos profissionais de imprensa e do público? 321
Segundo Rubin, estes e outros exemplos possíveis demonstram, antes de tudo, como a
presença e a atuação da mídia aparecem como um problema essencial da sociedade
contemporânea. Aliás, a origem e o desenvolvimento dos estudos de Comunicação devem
muito às demandas da sociedade para compreender o impacto, o papel, a atuação e os efeitos
da mídia na contemporaneidade.
Na opinião de Rubin, apesar de ampla bibliografia publicada, principalmente no
exterior, acerca da temática, não se pode afirmar que existe uma convergência de
interpretações a respeito do assunto. Ele aponta ainda que de qualquer modo, apesar da
multiplicidade de concepções, pode-se afirmar que a presença e a atuação da mídia aparecem
como uma das características mais marcantes da contemporaneidade. Ou melhor, da
experiência de vida que se nomeia como contemporânea, pois ela se conforma como uma
singular conjunção entre convivências - vivências acontecidas em presença e em espaços
geográficos - e televivências - vivências de acontecimentos distantes mediadas por signos, em
especial que transitam na mídia.
Fechando esse parêntese, veja como foi à cobertura do Correio. A primeira vez que o
jornal publicou o caso Ibsen Pinheiro foi na edição do dia 8 de novembro. O título ―Cheques
levam Genebaldo e Ibsen a depor‖. A chamada na capa, de uma coluna e três linhas, foi posta,
nesse primeiro momento, sem tanto destaque. O resumo da chamada dizia:
Flagrados em uma troca de cheques de alto valor, os deputados Genebaldo Correia
e Ibsen Pinheiro serão ―convidados‖ a prestar depoimento na CPI do Orçamento.
Cálculos refeitos chegaram a um total de 51 mil322
dólares em cheques recebidos
por Ibsen de Genebaldo, que por sua vez recebeu cheques do deputado João Alves.
O líder do Governo na Câmara, deputado Roberto Freire (PPS-PE), quer a imediata
renúncia de Ibsen ao cargo de relator do regimento da revisão323
.
No resumo acima, mais uma vez, em nenhum momento na chamada de capa existe
qualquer espaço fornecido aos dois acusados: Ibsen e Genebaldo. Essa característica é comum
321
RUBIN, 1994. 322
Nota-se aqui que o Jornal Correio Braziliense traz um novo valor em relação aos cheques. Como vimos nas
abordagens dos Jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, os depósitos traziam valores diferentes. O
primeiro jornal trouxe valor de US$ 160 mil (edição do dia 11 de novembro de 1993- capa). Já o segundo falou
em US$ 30 mil (edição do dia 8 de novembro – capa). O fato mostra as contradições da mídia no episódio. Ou
seja, a grande imprensa também é o ‗reino‘ das contradições. 323
Correio Braziliense, 8 de novembro de 1993, capa.
153
na grande imprensa. Quando se dá espaço para o acusado, esse é praticamente invisível ao
‗olho nu‘ do leitor. É preciso uma ‗lupa‘ para encontrar onde está o espaço destinado para que
o acusado se explique. Esse fato é comum dentro na grande imprensa porque, aparentemente,
os meios de comunicação trabalham em uníssono. Apesar de cada um ter seu perfil
ideológico, quando se fala em grande imprensa, todavia como aparelho privado de hegemonia
e que visa lucro, como empresa mercantilista, ela até parece mais um partido político.
Mas outras concordâncias constituíram ainda mais vigorosamente o modus
operandi da grande imprensa, pois a ação uníssona superou qualquer contenda
comercial que, como vimos, existiram de forma renhida tanto entre o dueto paulista
como (sobretudo) entre o carioca. Afinal, com maior ou menor ênfase, os inimigos
eram os mesmos, as imagens criadas também as mesmas, o modo de operar
idêntico e os objetivos muitos semelhantes, apesar de nuanças 324
.
Iniciando pela primeira chamada do Correio Braziliense sobre o episódio nota-se ainda
o esforço do jornal em trazer um fato novo diferente, exclusivo, um ‗furo‘ jornalístico.
Como vimos anteriormente, todos os outros meios de comunicação da grande
imprensa entraram ―de cabeça‖ na rota do escândalo. A mídia conseguiu potencializar uma
suspeita a tal nível, sob tal grau de massificação e maquiagem, que o indício do caso Ibsen
Pinheiro virou suplício. A suspeita virou verdade para a imprensa.
Para Francisco Fonseca, ―a grande imprensa possui um poder ‗sem freios nem
contrapesos‖ 325.
Para ele, muitas vezes a imprensa é antidemocrática. Mais: a grande imprensa busca
intermediar, a todo instante, interesses na esfera pública, implicando assim uma brutal
contradição, uma vez que a mídia é privada.
Afinal o auto-elogio que a grande imprensa fez (e faz) de si em relação à sua
capacidade investigativa sobre o poder e as autoridades é perfeitamente
contemplada pelas instituições públicas, a começar pelo próprio Ministério Público,
entidade capaz, legal e tecnicamente, de promover investigações, em concomitância
às suspeitas e mesmo preventivamente. 326
Para Fonseca, a grande imprensa não é o que disse ter sido (liberal e democrata). Pelo
contrário. Segundo ele, a imprensa ―não fez o que professou (dar voz aos diversos lados e
expressar uma suposta ―verdade‖). 327
324
FONSECA, 2005, p. 444. 325
Ibid. p. 451. 326
Ibid., p. 453. 327
FONSECA, loc. cit.
154
Na cobertura do Correio, não demorou muita para que a denúncia fosse amplamente
divulgada em forma de manchete com grande destaque. Na edição do dia 9 de novembro, o
título ―Ibsen rebate acusações sobre corrupção‖ trazia o deputado tentando se explicar. Num
momento raro, desse episódio, a grande imprensa, por meio do Correio, trouxe uma manchete
com enfoque para a tentativa de defesa de Ibsen, coisa que nenhum outro jornal – muito
menos a dupla paulista – o fez. Muito pelo contrário. No Jornal O Estado de S. Paulo, por
exemplo, os principais títulos/chamadas foram: ―Escândalo pode tirar cargo de Ibsen na
revisão‖, ―Cheques reforçam acusação a deputado‖,‖Ibsen renuncia a função na reforma‖,
―Ibsen renuncia e Genebaldo avisa que vai sair‖, CPI acha novos depósitos em contas de
Ibsen‖, ―Ibsen movimentou US$ 340 mil em um ano‖, ―Ibsen movimentou US$ 1 milhão
desde 1989 em conta do Banrisul‖, ―Punição de corruptores ainda faz a diferença Itália e
Brasil‖. Em um só momento, O Estado de S. Paulo tentou abrir espaço para o deputado, em
sua chamada de capa, mas não em forma de manchete: ―Ibsen justifica depósito como sobras
de eleição‖.
Já o Jornal Folha de S. Paulo seguiu o mesmo caminho. Trouxe os seguintes títulos em
suas chamadas: ―Novas acusações abrem crise na CPI‖, ―Acusações contra Ibsen e Roriz
abrem crise na CPI‖, ―CPI descobre novas contas de Ibsen‖, ―CPI acha US$ 160 mil em
poupanças de Ibsen‖, ―Ibsen tinha mais de US$ 340 mil no Banrisul‖, ―Depósitos de Ibsen
superam US$ 1 mi‖ e ―CPI revelou que depósitos a Ibsen superam US$ 1 mi‖.
Na manchete de capa do Correio sob título ―Ibsen rebate acusações sobre corrupção‖,
Ibsen Pinheiro encaminhou ofício à CPI do Orçamento condenando o noticiário da imprensa
―com foros de escândalo‖ e deplorando ―o vazamento de uma informação incompleta‖. No
trecho da chamada de capa do Correio, traz o seguinte trecho de indignação do deputado:
O deputado reagiu indignado ao que considera ser ―uma conotação perversa que
atribuiu contornos escusos a um ato comum‖. Ibsen garante que a operação
bancária teria sido compatível ―com a capacidade econômica e a movimentação
financeira do requerente. O deputado disse ainda que os depósitos ocorreram
quando o Orçamento ainda não sofria a interferência do Legislativo. E garante que
não se negará a dar todas as informações que forem necessárias para o
esclarecimento dos depósitos328
.
Essa mesma indignação, na época do episódio, foi explicada por Ibsen Pinheiro na
entrevista que ele concedeu à Revista IstoÉ, quando se descobriu o erro da Revista Veja,
328
Correio Braziliense, 9 de novembro de 1993, capa.
155
sobre o caso. Na ocasião Ibsen falou sobre a possibilidade de ter havido ou não má fé em todo
e episódio, tanto dentro da CPI do Orçamento, quando pela cobertura da imprensa.
Eu não sei se houve má-fé. Não sei se o pior é a má-fé ou a irresponsabilidade, a
ligeireza. Às vezes, a má-fé, por ter compromissos com a realidade, tem limites que
a irresponsabilidade não tem. Não acho que essas coisas se façam por uma
conspiração. Elas se regulam por regras macro. Eu era a vítima ideal. Atingir um
ex-presidente da Câmara, um ícone da Casa, significava dar uma dimensão ao
episódio que de outra forma não seria alcançada, uma forma de dizer que toda a
instituição se comprometeu sem que se precisasse fazer essa afirmação. Sendo eu
um deputado de expressão pessoal, mas então sem força política, era a vítima
perfeita. Tinha apenas um cargo honorífico, que era a presidência da Comissão de
Relações Exteriores. Muito charme, nenhum poder. Pode ter havido algum ódio
político. Eu tinha participado meses antes de um processo de grande conflito na
Casa, o do impeachment do presidente da República. E também de um processo de
cassação de deputado (Jabes Rebelo, cassado por denúncias de envolvimento com o
tráfico). Conduzir processos dessa natureza não é exatamente o caminho para ser a
miss simpatia de um concurso. Podem ter sido conjugados todos esses fatores. É
mais compreensível que imaginar uma conspiração: ‗Vamos atingir esse cara, tirá-
lo da carreira política.‘ Não se faz vida política com esse maquiavelismo, a despeito
de Maquiavel‖329
.
A manchete do Correio, no entanto, em que dava espaço para a defesa de Ibsen, foi
apenas uma exceção no meio do emaranhado de denúncias. Nas edições seguintes, como será
visto a seguir, todas as denúncias e acusações vindas da CPI foram tornadas como fatos
verídicos. A exemplo dos outros meios de comunicação da grande imprensa, como já foi
estudado nesse trabalho, o Correio pode ter cometido os mesmos erros dos outros periódicos.
Dois deles, foram – como reclamou o próprio deputado Ibsen Pinheiro – a invasão da
privacidade (contas até de poupanças do deputado foram levados como prova de atos de
corrupção) e ainda o assassinato da reputação de um político em franca ascensão na época.
Assim, a grande imprensa ao invadir a privacidade, ‗fuxica a intimidade alheia‘, isso
sem falar na função de aparelho privado de hegemonia de cunho ideológico.
A imprensa é capaz de destruir a reputação de políticos e personalidades importantes,
como fez contra o deputado gaúcho. Eugênio Bucci escreveu em seu livro ―Sobre Ética e
Imprensa‖ sobre essa característica:
Quando os personagens se situam acima da linha da dignidade humana, e desfrutam
de alguma reputação, aí, sim entende-se que a imprensa é capaz de destruí-los. E de
fato os destrói. Por distorção deliberada ou inadvertida. Um exemplo de assassinato
de reputação aconteceu em 1992, quando se verificou uma campanha contra o
ministro da Saúde de Fernando Collor, Alceni Guerra. Mario Sergio Conti, em
Notícias do Planalto, conta como a Rede Globo liderou essa campanha.330
329
IstoÉ, 18 de agosto de 2004. 330
BUCCI, 2000, p. 157.
156
Como não há qualquer tipo de ‗responsabilidade/controle‘, os donos de jornais, em
parceria com a edição, são quem decidem o que vai ser publicado sobre um determinado
personagem no dia seguinte. O enfoque é dado, geralmente, de acordo com a linha editorial
que cada grupo jornalístico possui.
Paul Johnson331
,citado por Eugenio Bucci, fala sobre o abuso de poder, da imprensa:
Desde que Macaulay denominou a imprensa de ―o Quarto Poder‖, há consciência
do poder político que a mídia dispõe, o que pode ser chamado de ―síndrome de
cidadão Kane‖ [...] Os proprietários dos meios de comunicação nem sempre estão
conscientes do grau de poder que exercem, e de sua natureza corruptora. Pois o dito
de lord Acton de que todo poder tende a corromper aplica-se tanto à mídia quanto à
política. O exercício por longo prazo de um grande poder produz uma vulgarização
das sensibilidades morais, uma certa abordagem descuidada e temerária de decisões
graves 332
.
Uma outra edição marcante sobre o caso Ibsen Pinheiro, do Jornal Correio Braziliense,
foi a edição do dia 10 de novembro de 1993. ―CPI descobre altos depósitos nas contas de
Ibsen e Genebaldo‖.
A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Orçamento descobriu, ontem,
elevadas movimentações nas contas dos deputados Genebaldo Correia (PMDB-BA)
e Ibsen Pinheiro (PMDB-RS). Ex-presidente da Câmara, Ibsen terá que explicar
depósitos semanais de dez mil dólares em suas contas bancárias no Banrisul,
Bradesco e Banco do Brasil concentrados em 1989 e 1990 quando liberava mais de
300 deputados da bancada peemedebista. Antes, Ibsen foi acusado de receber
cheques de Genebaldo no valor de 51 mil dólares333
.
É interessante notar, que novos valores surgiram nesta reportagem do Correio. Cada
jornal trouxe um valor diferente do valor do cheque. O Correio Braziliense, nesta edição,
utilizou o título ―Festival334
de cheques espanta CPI‖ na página interna335
daquele edição.
331
Paul Johnson é um pensador influente no pensamento liberal contemporâneo. Historiador, ensaísta e jornalista,
é autor de artigos na revista britânica Spectator que têm servido de referência ao debate sobre ética na imprensa
no mundo inteiro. Não pelo que pontificam, mas pelos problemas que apontam. Ele propõe uma grande análise
para os erros mais frequentes do jornalismo: listou sete pecados capitais e, como antídotos, dez mandamentos –
alguns já tratados nesse trabalho. 332
BUCCI, 2000, p. 161. 333
Correio Braziliense, 10 de novembro de 1993, capa. 334
É preciso ressaltar que esse festival, na verdade, teria sido provocado pela imprensa. Os cálculos não eram
muito precisos. Cada jornal divulgou um valor diferente, o que deve ter dado um nó na cabeça do leitor que
estava acompanhando o caso pela grande imprensa. Os números, mais uma vez, não foram checados. A imprensa
ficou à mercê da fonte oficial, que era a CPI do Orçamento, e não fez cruzamentos com as declarações de Ibsen,
o que comprovariam que toda a investigação estaria equivocada. Desta forma, a precipitação, o erro na cobertura
da imprensa, causou desgastes e, o mais grave, a reputação de um político que, até então, era ilibada. Na
verdade, toda divulgação ocorreu sem o menor medo de errar, sem o menor medo de ser responsabilizado por
algum eventual equívoco. Afinal a imprensa sabe que nada iria acontecer, caso estivesse errada. 335
Correio Braziliense, 10 de novembro de 1993, p. 3.
157
Dando continuidade ao assunto, no dia seguinte (dia 11 de novembro), o Correio
divulgou que a CPI teria descoberto mais depósitos nas contas do deputado. A chamada de
capa ―Novos depósitos comprometem Ibsen‖ traz dois aspectos importantes que merecem ser
mencionados: a imprensa traz novos valores descobertos nas contas (a essa altura já não se
sabe mais quanto seria o valor da corrupção do deputado), a cobertura tendenciosa não só do
Correio, mas da grande imprensa na ‗captura‘ de Ibsen influenciou sobremaneira entidades e
também a população.
A CPI do Orçamento apurou novos dados sobre o envolvimento do deputado Ibsen Pinheiro no
esquema de manipulação de verbas: só na agência do Banco Meridional há um depósito de 153
mil dólares e novos depósitos, quinzenais, foram encontrados na conta do deputado na agência da
CEF no Congresso. Hoje, a CPI deverá confirmar a convocação do deputado Genebaldo Correia.
Ontem, dirigentes da Confederação das Associações Comerciais entregaram um manifesto ao
presidente da CPI, senador Jarbas Passarinho, pedindo punição e reforma. Uma pesquisa da
Soma Opinião & Mercado revela que 73 por centro dos brasileiros estão atentos à CPI336
.
Na página interna daquela edição, o Correio trazia reportagem de três colunas (não era
a principal), com o título ―Para Ibsen, depósitos quinzenais‖ afirmando que: ―(...) a
―Subcomissão de Bancos da CPI do Orçamento acredita ter encontrado provas337
definitivas
sobre o envolvimento do deputado Ibsen Pinheiro (PMDB-RS) no esquema de desvio de
verbas. Só na agenda do Banco Meridional há um depósito de 153 mil dólares. (...)‖338
.
336
Correio Braziliense, 11 de novembro de 1993, capa. 337
É interessante notar aqui a expressão ―provas‖ utilizada pelo Correio Braziliense. O que mais tarde,
comprovadamente se revelou como equívoco, para a grande imprensa foi ‗uma pá de cal‘. Ou seja, Ibsen era
corrupto por causa das provas. Perseu Abramo, em ―Padrões de Manipulação na Grande Imprensa‖ trata esse
tipo de exagero, uma espécie de pré-julgamento como a não reflexão da realidade. Em um trecho do livro ele diz
o seguinte:
―O principal efeito dessa manipulação é que os órgãos de imprensa não refletem a realidade. A maior parte do
material que a imprensa oferece ao público tem algum tipo de relação com a realidade. Mas essa relação é
indireta. É uma referência indireta à realidade, mas que distorce a realidade. Tudo se passa como se a imprensa
se referisse à realidade apenas para apresentar outra realidade, irreal, que é a contrafação da realidade real. É
uma realidade artificial, não-real, irreal, criada e desenvolvida pela imprensa e apresentada no lugar da realidade
real. A relação que existe entre a imprensa e a realidade é parecida com a que existe entre um espelho deformado
e um objeto que ele aparentemente reflete: a imagem do espelho tem algo a ver com o objeto, mas não só não é o
objeto como também não é a sua imagem: é a imagem de outro objeto que não corresponde ao objeto real.
Assim, o público — a sociedade — é cotidiana e sistematicamente colocado diante de uma realidade
artificialmente criada pela Imprensa e que se contradiz, se contrapõe e frequentemente se superpõe e domina a
realidade real que ele vive e conhece. Como o público é fragmentado no leitor ou no telespectador individual, ele
só percebe a contradição quando se trata da infinitesimal parcela de realidade da qual ele é protagonista,
testemunha ou agente direto, e que, portanto, conhece. A imensa parte da realidade ele a capta por meio da
imagem artificial e irreal da realidade criada pela imprensa; essa é, justamente, a parte da realidade que ele não
percebe diretamente, mas aprende por conhecimento. Daí que cada leitor tem, para si, uma imagem da realidade,
que na sua quase totalidade, não é real. É diferente e até antagonicamente oposta à realidade. A maior parte dos
indivíduos, portanto, move-se num mundo que não existe, e que foi artificialmente criado para ele justamente a
fim de que ele se mova nesse mundo irreal. A manipulação das informações se transforma, assim, em
manipulação da realidade‖ (ABRAMO, 2003, p. 24-25). 338
Correio Braziliense, op. cit., p. 3.
158
O deputado se dizia, na época, vítima de uma armação, e criticava a falta de provas e
as fontes que vinham alimentando a imprensa de informações inverídicas. Essa versão pouco
importou para a mídia. Na mesma edição do Correio Braziliense, ele afirmou que a armação
estaria partindo de ―revanchismo da crise de 1992 do impeachment de Collor‖ – uma vez que
ele foi o presidente da CPI que pediu o afastamento do então presidente da República na
época.
Em outro trecho da reportagem do Correio, o deputado afirma. ―Estou sendo objeto
não de uma injustiça, como achava, e que me deixou amargurado, mas de uma armação de
inimigos. Antes desse episódio cogitava em encerrar minha vida pública. Mas estou
conseguindo forças para continuar na vida pública e vou desmascarar os adversários‖.
Ibsen tentou, sem sucesso, explicar um dos valores dos cheques encontrados pela CPI.
Mas, a grande imprensa contribuiu para o desgaste, influenciando a investigação da CPI. O
deputado disse o seguinte em entrevista ao Correio na mesma edição do dia 11 de novembro.
―Esses 150 mil dólares bloqueados são a poupança de uma vida. E o meu patrimônio em dois
imóveis e poupança e que chegavam ao total de 200 mil a 250 mil dólares. A origem da
poupança é a venda de uma fanzendola de 100 hectares (mil dólares o hectar)‖.
A cobertura mais implacável ocorreu no dia 13 de novembro. A manchete de capa do
Correio trouxe o seguinte título: ―CPI descobre conta milionária de Ibsen‖. Não havia
nenhuma foto do deputado na reportagem de capa. As letras ‗garrafais‘ em seis colunas de
uma linha revelavam que a CPI do Orçamento teria encontrado um novo cheque, agora no
valor de 169 mil dólares, do Banco Meridional, na conta do ex-presidente da Câmara. De
acordo com a reportagem, aquela altura os depósitos encontrados nas contas do deputado já
haviam superado um milhão e 500 mil dólares. Ibsen passou a ser uma ―vítima de uma
carnificina‖.
Na edição seguinte, mais uma reportagem do Correio sobre o episódio: ―Passarinho
fecha dados para convocar Ibsen‖. O título da matéria na página 3, do dia 14 de novembro, de
1993, referia-se ao presidente da CPI do Orçamento, senador Jarbas Passarinho (PPB-PA),
sobre a possibilidade de ouvir o deputado Ibsen na comissão.
3.21. Na cobertura do Correio, caso sai da esfera política para a policial
O caso do escândalo do Orçamento envolvendo o deputado Ibsen Pinheiro saiu das
páginas políticas para as policiais, segundo a cobertura do Correio Brazilienze. Na edição do
159
dia 15 de novembro de 1993, o jornal trouxe com exclusividade o que pode ser chamado de
―furo jornalístico‖. O título da manchete ―Polícia quer ouvir Ibsen sobre depósitos‖ dizia que
o delegado da Polícia Federal, Magnaldo José Nicolau da Costa, responsável pelo inquérito
que apurava as denúncias de irregularidades na Comissão Mista do Orçamento do Congresso
Nacional, havia revelado ao Correio Brazilienze que pretendia ouvir o deputado.
Ao mesmo tempo, na chamada de capa, o delegado assumiu que ainda não havia
indícios suficientes sobre as acusações. Nesse caso, o Correio decidiu publicar a reportagem
por se tratar de uma informação exclusiva, mesmo sem comprovação verídica dos fatos.
Bucci comentou esse tipo de atitude da grande imprensa:
Há jornalista que crê poder mentir: para um aqui, para outro ali, bem pouco, só de
vez em quando, até que, um dia, nenhum de seus colegas e fontes será capaz de
acreditar nele. Jornalista que mente, assim como o jornalista plagiário, é
tecnicamente imprestável: não há como usá-lo na imprensa. Publicar as
informações que ele traz à redação é como comprar remédios numa farmácia que,
ocasionalmente, vende ali um antibiótico falsificado. É como usar um parafuso de
isopor, unzinho só, na fabricação de um submarino. Lá na frente, ou lá no fundo,
vai dar errado. Não adianta. A integridade pessoal de um jornalista é o começo e o
fim dos valores que ele carrega – e que serão determinantes de seu preço no
mercado. Para o patrão, a ética aparente pode ser um fator de lucro. Para o
jornalista, é fator de remuneração 339
.
Na edição seguinte o Correio trouxe, mais uma vez, uma manchete sobre o escândalo.
A capa, do dia 16 de novembro de 1993, tinha o título ―CPI acha inevitável depoimento de
Ibsen‖. A reportagem trazia a informação de que Ibsen poderia ser ouvido pela CPI ―sobre
corrupção no Orçamento antes mesmo dos sete parlamentares com depoimentos já marcados‖.
Na página interna (p.3), uma cena curiosa. O jornal trazia uma foto em que numa mesa os
membros da CPI analisavam documentos, como depósitos e declarações de bens dos acusados
de corrupção, entre eles, de Ibsen Pinheiro.
A legenda da foto trazia o seguinte: ―Sob exames as declarações de bens dos acusados:
incompatibilidade com a sua renda agrava a situação‖.
Na edição seguinte, dia 17 de novembro, o Correio Braziliense, foi o único jornal do
País, a fazer relação entre a máfia do Orçamento, como ficou conhecido o caso de corrupção,
e o Esquema PC Farias – este último que acabou derrubando o presidente Fernando Collor do
cargo em 1992.
O título de capa/manchete ―Máfia do Orçamento tem ligação com esquema PC‖
mostrava bem essa tentativa de relação.
339
BUCCI, 2000, p. 77.
160
O esquema de corrupção do Orçamento e o esquema PC Farias agiam
paralelamente, disputando espaço e dividindo território na cobrança de propinas.
Esta é uma das conclusões a que chegaram membros da CPI do Orçamento, ao
receberam os primeiros documentos requisitados à Polícia Federal sobre o
envolvimento das maiores empreiteiras do País com o Esquema PC. Numa análise
preliminar, os parlamentares da CPI estão certos de que o esquema é o mesmo, as
obras as mesmas, sendo que PC operava numa ponta e a máfia do Orçamento na
outra, destinando as verbas às obras340
.
A tentativa de relacionar os dois episódios deixou o caso, cada vez mais complexo,
com reportagens carregadas – de especulações, mas segundo a grande imprensa, tratava-se de
jornalismo investigativo.
Reforçando a cobertura, além da notícia em si, publicada diariamente nos jornais sobre
o episódio/escândalo político, a grande imprensa usou importantes ‗instrumentos‘ para marcar
e situar o leitor. A Folha de S. Paulo optou, por exemplo, por utilizar logos para facilitar em
suas páginas as reportagens sobre as acusações contra Ibsen Pinheiro. Como o Jornal O
Estado de S. Paulo utilizou charges e caricaturas de Ibsen durante toda a cobertura do
escândalo político, o Correio Braziliense optou pelo uso de um ‗selo‘ em suas páginas, toda
vez que se referia à reportagem da CPI dos Anões do Orçamento. O ‗selo da corrupção‘,
como está sendo denominando nesse trabalho, trazia um desenho da fachada do Congresso
Nacional, em Brasília, sobreposto a um cifrão ($) símbolo do desvio de verbas e da corrupção
na política (fig. 16).
Foi uma das formas de situar o leitor para o episódio. Seu uso se deu até o final do
caso que culminou na cassação do deputado Ibsen Pinheiro.
340
Correio Braziliense, 17 de novembro de 1993, capa.
161
Fig. 16
3.22. A política é instável e sempre trágica
Até o início da década de 1990, Ibsen Pinheiro tinha uma grande popularidade e
respeito por parte dos colegas da Câmara Federal. À luz de Maquiavel poderíamos dizer que
ele tinha virtú e fortuna.
Mesmo diante de tanta popularidade, Ibsen enfrentou, além da grande imprensa, por
parte de seus adversários, críticas ferozes. Na política há um constante equilíbrio e
desequilíbrio. No início dos anos 2000, no Congresso Nacional, por exemplo, o PT (partido
do então presidente Lula) viveu em estado de constante tensão com o DEM e o PSDB.
Existe um reino da instabilidade na política que está repleta de tensões, de conflitos.
Para Shakespeare, por exemplo, a política é trágica: ela é impedimento, dificuldade, é morte e
traz destruição:
―Shakespeare e Maquiavel se aproximam ao constatar que quanto mais as ações
dos homens se voltam ao poder político, ou são atraídas por este, mais perdem o
controle das suas ações, até penetrarem naquele âmbito no quais as paixões, ou a
razão, podem ser subjugadas irremediavelmente...
(...) Como sucessão de conjunturas que avançam em equilíbrio-desequilíbrio, a
política torna-se uma área na qual irrompe com frequência a tragédia, pela
ocorrência de acontecimentos contrários e porque aí convivem possibilidades e
162
impossibilidades. A relação entre liberdade e poder, como já indicado
anteriormente, serve para elucidar parte desta tragédia que atinge os súditos, os
governados...341
‖
Essa constante instabilidade é mostrada também por Thomas Hobbes de Malmesbury.
O autor sugere, no entanto, que essas tensões políticas existem por causa da própria natureza
do homem e mostra que o ‗estado de natureza‘ é ‗estado de guerra‘ em que os homens
competem entre si em difícil sociabilidade.
É impensável a harmonização. Hobbes nos mostra que a humanidade sempre ‗estará
na beira do abismo‘, sempre em estado de guerra. Para ele, portanto, não é possível confiar no
homem.
Portanto, as tensões políticas, nas perspectivas desses autores, vão existir. Nas peças
de Shakespeare, por exemplo, é possível perceber que a política interfere até no amor. Pode
até permitir a paz, mas esta é momentânea, nunca duradoura. Nesse sentido, políticos, como
Ibsen e Alceni Guerra, vão convivendo com as tensões políticas, tendo de administrar ―com
barganha‖ e/ou com sua habilidade política (virtù) para se manter no poder. Essa virtù – teria
faltado ao ex-presidente Fernando Collor de Mello, em 1992, quando teve seu mandato
investigado no Congresso Nacional, por exemplo. E, também ao presidente da Câmara, da
época, Ibsen Pinheiro, que não conseguiu, apesar da campanha da grande imprensa, se safar
do também julgamento político de seus pares.
Somam-se a isso, as relações pessoais, a identidade política com o governo ou o
interesse econômico das empresas de comunicação, que podem influenciar sobremaneira, na
cobertura política da grande imprensa.
Só para citar um exemplo, no livro ―Notícias do Planalto‖, de Mário Sérgio Conti, ao
falar sobre a Revista Veja, percebe-se como a notícia é tratada é moldada aos padrões
editoriais, ou melhor ideológicos da revista.
Depois de percorrer pilhas de fotos, para escolher as melhores, e de fazer tabelas,
mapas ou gráficos com a editoria de Arte, o repórter diagramava a matéria, que era
repaginada pelo editor e depois pelo editor executivo. O encarregado escrevia o
texto, seu editor pedia complementos e determinava que fosse reescrito. A cada
degrau na hierarquia a reportagem era reescrita novamente. Autorizada a
publicação, era hora da checagem. Os checadores conferiam as datas, grafias de
nomes e comparavam o texto final com os relatórios originais, buscando
incongruências e erros. Esse ir-e-vir levava dias, às vezes semanas e, no gargalo
final, era extenuante e neurótico. À meia-noite, acontecia de se reescrever uma
matéria de oito páginas, com um novo enfoque reduzido para duas páginas. O
repórter que teve a ideia original saía da redação às nove horas da manhã, com o sol
341
CHAIA, 1995.
163
alto, e chegava em casa massacrado. Apenas uma das oito pessoas que entrevistara
durante horas fora citada. Do seu texto original não sobraram nem as vírgulas342
.
É importante ressaltar que todo o texto, conforme deixa claro o próprio Conti, era
moldado pelos editores que representavam a direção.
Nota-se também, na análise da cobertura de Veja, sobre o caso Ibsen Pinheiro, que
existe por parte da mídia e os políticos, um estreito relacionamento. Às vezes pode ser
‗promíscuo‘. Como vamos notar na entrevista de Ibsen Pinheiro, apesar de ter sido atacado
por Veja e a grande imprensa, ele parece se afastar, 11 anos depois das denúncias, de qualquer
desentendimento com os meios de comunicação.
E, ao contrário do que se esperava, ele defende a liberdade de imprensa, não processou
a revista ou qualquer órgão de comunicação, e critica a criação de órgãos de controle na
entrevista que deu à IstoÉ na edição do dia 18 de agosto de 2004, nº 1.819. ―O denuncismo
tem cura, mas na imprensa censurada o denuncismo é eterno‖343
.
E por que a postura do deputado foi essa? Políticos precisam estar na mídia. No futuro
vão buscar uma eleição política. É preciso ser reconhecido pelo povo.
Nota-se, sobretudo, que existe uma aproximação muito grande entre a imprensa e o
poder político. A imprensa, que sempre debate as contradições das outras instituições sociais,
frequentemente deixa a desejar quando é o momento de discutir suas próprias contradições.
Na entrevista que Ibsen, concedeu à Revista IstoÉ, ele faz considerações importantes,
mas prefere preservar, poupar ou falar sobre um controle rígido sobre os meios de
comunicação. No entanto diz claramente que sofreu linchamento moral por parte da imprensa
que se precipitou.
Voltaire tem uma definição muito interessante. Diz que a primeira infâmia contra
alguém é rejeitada. A segunda arranha e a terceira destrói. No quadro que se criou,
as imputações sem provas, sem nenhum conteúdo, produziam este efeito. Mas
aquele quadro se criou. Uma foto junto com uma acusação de movimentação
financeira desproporcional passava para o imaginário das pessoas que o ex-
presidente da Câmara devia ser responsável por tudo de errado que acontecesse.
Isso no imaginário das pessoas dispensava a necessidade de provas. Bastava a
afirmação. Chegou a um ponto que não precisava nem afirmação, bastava a
insinuação. Eu disse naquela ocasião algo que eu posso repetir hoje: nunca tive a
graça de uma acusação. O próprio relatório da CPI dizia: ―A denúncia inicial não
restou provada.‖ Nos processos políticos, o ônus da prova se inverte. É o acusado
que precisa provar uma, duas, três, quatro vezes. Passei por processo marcado pela
ligeireza, característico dos processos políticos344
.
342
CONTI, Mário Sérgio. Notícias do Planalto: a imprensa e Fernando Collor. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999. p. 62. 343
IstoÉ, 18 de agosto de 2004, capa. 344
Ibid., p. 37.
164
Na mesma entrevista Ibsen se diz inconformado com a suposta manipulação praticada
no episódio, uma vez que a imprensa sabia do erro e mesmo assim publicou a denúncia:
O que mais me impressionou foi ter havido, antes da publicação, a percepção do
erro e ter havido a persistência na informação inverídica. Mas fui jornalista quase
toda a minha vida e acredito na liberdade de imprensa. Se a imprensa comete
desvios de conduta, só a liberdade de imprensa é capaz de corrigí-los. Pior que o
denuncismo é a censura. O denuncismo tem cura, a verdade aparece. Na imprensa
censurada, o denuncismo é eterno. Os vícios que a imprensa pratica podem decorrer
da liberdade de imprensa, mas não tenho dúvida que os vícios mais graves
decorrem da censura. Vivi momentos da censura, como todos, no regime militar, e
vimos do que a censura é capaz. Nas ditaduras, os efeitos desses vícios de conduta
são eternos, são imutáveis. No regime da liberdade, sempre se tem, no mínimo, a
esperança e, no máximo, a convicção de que a liberdade vai oxigenar os fatos e
aqueles que não são verdadeiros não sobreviverão. Vejo com preocupação quando
se pretende criar um Conselho Federal de Jornalistas, com a função de
supostamente orientar e fiscalizar, mas, sem dúvida, ainda que a proposta seja de
boa-fé, o conteúdo será do patrulhamento345
.
Segundo Rosa, jornalistas e meios de comunicação que cometem erros estão quase
sempre imunes ao risco de serem expostos publicamente, como ocorreu com Ibsen Pinheiro.
O que ocorre, no máximo, com os jornalistas que cometem o erro é a demissão.
Luís Nassif afirma que, em geral, os meios de comunicação mantêm uma grande
complacência para os erros de jornalistas sejam eles deliberados (dolosos) ou não. Para ele, há
uma espécie de corporações fechadas para brindar aqueles que cometem os erros. A imprensa,
por sua vez, critica as instituições que assim fazem.
Policiais, políticos, militares ou diplomatas que resolverem problemas internos com
afastamentos, punições brandas ou transparência para lugares distantes correm o
risco de serem imediatamente taxados (pela mídia) de estarem praticando
―acobertamento‖, produzindo ―impunidade‖. Essa regra vale só para os outros?
Quando jornalistas erram, essa questão costuma ser abafada, confinada aos
escaninhos das redações, sob o argumento de que se trata de ―questão interna‖,
―questão privada‖. Nessa hora, o argumento do interesse público perde força e, ao
contrário de quase todas as outras profissões, o infrator normalmente escapa, sem
sofrer execração. O biombo, assim preserva a pessoa física346
.
Segundo Eugênio Bucci, ―quase nada se noticia sobre o que se passa no mundo dos
negócios dos donos dos jornais‖, em nota relatada no livro ―Do B- Crônicas e críticas para o
Caderno B‖347
, que analisa a mídia. Mário Rosa diz mais:
345
IstoÉ, 18 de agosto de 2004, p. 38. 346
ROSA, 2007. p. 452. 347
BUCCI, Eugênio. Do B – Crônicas críticas para o Caderno B do Jornal do Brasil. São Paulo: Editora
Record, 2003.
165
Veículos de comunicação entendem que podem solicitar, através de seus repórteres,
praticamente quaisquer informações que considerem importantes, em nome do
―interesse público‖ ou do ―leitor‖. Mesmo que seja uma informação sensível de
outra empresa privada: quando esse tipo de dado é negado em meio a um processo
de desgaste público, o teor das reportagens realça uma aura de ―suspeição‖. Mas,
porque as empresas jornalísticas não poderiam deixar registrados na internet, por
exemplo, todos os ingressos publicitários de seu caixa? Por que a sociedade e os
leitores não podem saber quais empresas que mais anunciam, quais governos fazem
propaganda e qual o volume percentual dessa vinculação? 348
Ou seja, a mesma transparência que os veículos de comunicação na grande imprensa
cobram dos governos, das instituições públicas e dos políticos não é seguida por eles próprios.
É o ditado: ―Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço‖.
CAPÍTULO 4. “AGENDA OCULTA”: COMPORTAMENTO DA MÍDIA E AS
ALTERNATIVAS DE CONTROLE DEMOCRÁTICO
4.1. Conselhos de Ética e 0800
A mídia defende seus interesses particulares. É empresa privada. Visa lucro. E, se ela
é o quarto poder, não seria necessário a utilização de aparatos para conter os abusos, os erros
cometidos e, principalmente, a manipulação de informações? Se a imprensa quer defender o
interesse público nada mais justo que o próprio público (aqui no sentido fraco da palavra,
considerando o leitor do jornal, por exemplo) ser um dos agentes que possam opinar sobre
essa mesma imprensa. Hoje, ao olhar para a Câmara – que é ―fiscalizada‖ pela grande
imprensa – percebe-se que lá existe um Conselho de Ética e até o Sistema 0800 para que o
eleitor possa reclamar e dar sugestões sobre determinados assuntos que seu deputado esteja
defendendo. Nas Prefeituras existem as Ouvidorias. As diferentes modalidades esportivas têm
conselhos deliberativos, de ética. Outras profissões, como os advogados, os médicos, e outros
profissionais liberais contam com os conselhos. E a imprensa? Onde o leitor pode reclamar
dela?
A experiência do ombudsman ainda é muito restrita na imprensa brasileira. Poucos
meios de comunicação da grande imprensa, como o Jornal Folha de S. Paulo e mais
348
ROSA, 2007, p. 452.
166
recentemente a TV Cultura contam com esses profissionais. Eles são incumbidos de analisar e
fazer críticas à postura de jornal e qual o ângulo de cobertura escolheu para uma determinada
notícia. No entanto, o grau de liberdade nem sempre é o desejado para esse profissional. Um
caso ―célebre‖ é o do jornalista Mário Magalhães. Ele decidiu não ter seu contrato de
ombudsman renovado na Folha por discordar da postura do jornal em relação ao seu trabalho.
Assim sem um sistema de controle, a imprensa acaba sendo combatida em meio aos
processos judiciais, movido por pessoas que se sentem lesadas pela cobertura da mídia. Por
não existir um teto para as multas por dano moral, as sentenças podem levar à falência de
pequenas e médias empresas, ou punir as grandes. E, mais uma vez, por conveniência
corporativa, a grande mídia não divulga as decisões de indenizações das vítimas de seus erros.
Veja o que diz Mário Rosa sobre o assunto:
Se é verdade que o poder da imprensa pode estar sendo combatido a partir dos
questionamentos judiciais (algo, por sinal, legítimo e democrático), é verdade
também que a própria imprensa não vem expressando sua adesão a determinados
valores, ao menos no sentido de reconhecer as próprias falhas. Empresas tão
privadas quanto as jornalísticas criaram linhas 0800 para mostrar a seus
consumidores que eventuais defeitos em seus produtos são falhas não intencionais,
que serão reparadas assim que constatadas, em benefício dos clientes. Órgãos
públicos, como a Câmara dos Deputados, criaram instituições como conselho de
ética para punir e expulsar políticos que cometam erros inadmissíveis. Leis para
cassar deputados já existem há décadas. O conselho de ética, nesse caso, só veio a
dar uma satisfação social nesse sentido. A mídia vem caminhando na direção de
maior transparência, com a criação de manuais de redação e ombudsman, sem
dúvida sinais alvissareiros. Todavia, a velocidade dessa caminhada está aquém da
agilidade que a imprensa costuma exibir em outros campos. Infelizmente. 349
Francisco Fonseca acredita que, do ponto de vista da sociedade brasileira, as
iniciativas já consolidadas do Observatório da Imprensa e mesmo a Revista Imprensa
cumprem um importante papel fiscalizatório. No entanto, representam ainda apenas uma
condição necessária, mas não suficiente.
(...) deve-se considerar, além do mais, a pequena abrangência dessas iniciativas –
seja para denúncia dos oligopólios, seja para trazer à tona visões alternativas às da
grande imprensa, seja, especialmente, para o franqueamento ao dissenso. Já que em
escala global, a tentativa de constituição de centros de informação independentes,
tais como os sítios brasileiros Carta Maior e Ciranda, além dos internacionais
Media Watch e Le Monde Diplomatique350
,entre inúmeros outros, não apenas
utilizam da internet como veículo de informação global como, principalmente,
avaliam os grandes jornais, revistas, agências noticiosas e emissoras de televisão.
Procuram demonstrar, assim, outros lados, outras vozes e outras interpretações dos
fenômenos que tendem a ser retratados de maneira homogênea pelos grandes
349
ROSA, 2007, p. 453. 350
Os endereços eletrônicos desses órgãos são, respectivamente, www.cartamaior.uol.com.br, www.
carosamigos.terra.com.br, www.cirandabrasil.net., www.mediawatch.org e www.lemonde.fr.
167
grupos de comunicação. Esses novos organismos estimulam o surgimento de
jornais e revistas, não vinculados a grandes grupos – é a situação, na grande
imprensa brasileira, das revistas Carta Capital e Caros Amigos. Tudo isso conflui
para a ideia de que ―um outro mundo é possível‖, lema do Fórum Social Mundial,
cujo tema da informação plural é fundante 351
.
Fonseca defende ainda mudanças na forma de concessão de emissoras de televisão,
com ampliação da participação da sociedade no sistema decisório, sobretudo por meio de
fortalecimento do Conselho de Comunicação Social.
(...) a concessão e mesmo o estímulo governamental em termos de crédito, que
poderia ocorrer, às emissoras de rádio e televisão livres (comunitárias), que, no
Brasil, foram abarcadas por grupos evangélicos em larga medida
descompromissados com os valores democráticos; o rigoroso impedimento da
concentração acionária dos veículos de comunicação e proibição de que um mesmo
proprietário possua diversas modalidades de meios de comunicação, como existem
em determinados países europeus, entre inúmeras medidas352
.
Fonseca reconhece que o assunto é polêmico. Segundo ele, a luta pelo controle e
democratização da mídia assumem contornos de uma verdadeira guerra de posições.
Afinal o auto-elogio que a mídia como um todo faz de si em relação à sua
capacidade investigativa sobre o poder do Estado e sobre as autoridades é
perfeitamente contemplada pela capacidade do Ministério Público, por exemplo –
entidade capaz, legal e tecnicamente, de promover investigações em concomitância
às suspeitas e mesmo de maneira preventiva. Em outras palavras, o poder
fiscalizatório e investigativo que a mídia autoproclama-se pode e deve ser exercido
por instituições de fato públicas, caso o Ministério Público, das organizações civis
sem fins lucrativos e de determinadas organizações não-governamentais, entre
inúmeros outros atores. Afinal a mídia é um agente privado que objetiva fins
privados: o lucro353
.
Algo precisa ser feito em relação ao controle de qualidade das informações, uma vez
que o processo de manipulação existe.
Bucci faz referência a esse assunto:
Que existe manipulação, existe. Ela nada mais é que a distorção deliberada da
informação. Movidos por interesses escusos, há donos de meios de comunicação e
funcionários da cúpula de empresas que patrocinam mentiras para atingir objetivos
particulares. A manipulação agride o cidadão e deve ser combatida, como é óbvio
(...)354
.
351
FONSECA, junho/2004. 352
Ibid., p. 22. 353
FONSECA, loc. cit. 354
BUCCI, 2000, p. 176.
168
4.2. Accountability para os órgãos de imprensa
Num País democrático, como o Brasil, a liberdade de imprensa é perfeitamente
pertinente, até mesmo fundamental para que seja exercido o papel da liberdade de expressão e
informação. Por outro lado, é importante que sejam criados mecanismos de responsabilização
da mídia por tudo aquilo que é publicado ou veiculado. Num País democrático, a ausência
total de mecanismos de ‗accountability‘ pode se tornar perigoso, como já foi visto nos dois
estudos de casos mencionados nesse trabalho. Hoje, o que se vê é a total liberdade, com
ausência de responsabilidade.
O termo ‗accountability‘ é de difícil tradução em termos políticos. Mas,
resumidamente, significa responsabilidade, controle sobre algo dentro de uma democracia.
(...) implica por um lado transparência e responsabilidade dos que detêm o poder e,
por outro lado, a possibilidade de o poder ser fiscalizado e sobretudo controlado.
Ora, se isso é verdade em relação aos três poderes constituídos (Executivo,
Legislativo e Judiciário), porque não o deveria ser em relação aos poder da mídia e
mesmo a outros pólos de poder, tais como os militares, o capital, os cientistas, o
Ministério Público, entre inúmeros outros? 355
A expressão ‗accountability‘ também foi utilizada por Adam Przeworski. Ele tratou do
controle social. Em ―Sociedade em Transformação‖, capítulo ―O Estado e o Cidadão‖ ele fala
sobre esses controles:
Os mecanismos ―horizontais‖ são instâncias institucionais de controle e avaliação.
―(checks and balance) mútuos entre os diferentes níveis de governo: a hipótese aqui defendida
é que se a estrutura de governo é bem projetada, os órgãos de governo controlarão uns aos
outros de tal maneira que os direitos dos cidadãos serão exercidos‖356
.
O autor examina os mecanismos institucionais, por meio dos quais os direitos dos
cidadãos podem ser exercidos dentro de uma democracia e, além de falar em mecanismo
horizontal de controle, ele destaca os ―mecanismos verticais‖.
Os mecanismos ―verticais‖ de outro modo, são aqueles através dos quais os
cidadãos exercem controle sobre as ações do governo. Um dos mecanismos
verticais é a eleição. A hipótese aqui defendida é de que as disputas nas eleições
são livres, se a participação é generalizada, e se os cidadãos desfrutam liberdades
políticas, então os governos atuarão orientados para os melhores interesses das
355
FONSECA, junho de 2004, p. 21. 356
PRZEWORSKI, Adam. ―O Estado e o cidadão‖ in BERESSER, Pereira; WILHEIM e SOLA, Sociedade e
Estado em Transformação. São Paulo: Editora Unesp-Enap, 2001, p. 327.
169
pessoas. Mas também existem mecanismos não eleitorais através dos quais os
cidadãos podem influenciar e controlar os governos 357
.
Desta forma, é importante pensar na grande imprensa, como uma ‗instituição‘ que
deve ter responsabilidades por aquilo que coloca no mercado: a notícia. Afinal o que se vê
hoje em dia, sobretudo no Brasil, é a imensa dificuldade de a imprensa reconhecer seus erros
e conceder espaços para retratações. Mesmo que essa retratação ocorra cabe aqui um
―adendo‖: as primeiras reportagens, publicadas de forma irresponsáveis, sempre causam os
maiores problemas.
Os tipos de acusações errôneas, assim como sua gravidade, variam de caso para caso.
Segundo Rosa, ―a mídia considera – não sem razão – que a onda de ações judiciais visa
apenas sufocar a liberdade editorial dos veículos, criando custos pesados para as empresas de
comunicação. Por outro lado, afirma ele, cada vez mais pessoas atingidas pela mídia
denunciam a impossibilidade de obter reparações por eventuais erros com o mesmo destaque
dados aos ataques.
No caso brasileiro há uma dificuldade adicional: a mesma impunidade que
beneficia poderosos pilhados em flagrante, na forma de táticas de procrastinação
judicial, é um kit de poder que beneficia também a mídia. Os prazos para processar
criminalmente jornalistas e órgãos da imprensa são relativamente pequenos e,
sendo assim, qualquer pequena chicana jurídica equivale a uma impossibilidade de
condenação. Sem outro caminho, aqueles que se sentem injustiçados vêm
procurando cada vez mais a reparação civil, cuja vantagem principal é um prazo de
prescrição muito maior, de até 20 anos358
.
Rosa cita que nos Estados Unidos é uma regra do jogo para jornalistas colocar o
próprio patrimônio pessoal em jogo quando enveredam pelos caminhos da investigação ou da
denúncia. Parte-se do pressuposto de que, na hora de escrever, esse risco já foi previamente
assumido. ―Essa realizada deverá se incorporar ao expediente do jornalismo brasileiro, por
mais que a mídia reaja a essas pressões, denunciando-a como tentativa de calar sua voz. É
óbvio que há essa intenção, mas, (...) o legítimo interesse de obter uma satisfação moral
também existe‖ 359
.
Hoje no Brasil, segundo ele, para as empresas de comunicação ainda vale a velha
lógica a qual tem o direito de fazer tudo o que a lei não proíbe. Mas, conforme ele, o olhar da
357
PRZEWORSKI, 2001, p. 327. 358
ROSA, 2007, p. 516. 359
Ibid., p. 517.
170
mídia – e também o não olhar – pode criar deformações na imagem retratada pela imprensa,
caso ela permaneça hipnotizada sempre por uma temática fixa.
Rosa citando Ricardo Noblat, afirma que ―olho – e não olhar - é sempre uma escolha e
não fruto do acaso‖.
O ato de publicar uma notícia e desprezar outra é tudo menos um ato neutro. (...) Os
jornalistas aprendem desde cedo que devem perseguir a verdade a qualquer preço.
Mas quando se deparam com uma notícia são obrigados a serví-la à consideração
do distinto público, só então descobrem que a essência de sua missão não é escrever
a verdade. Cabe aos jornalistas escolher a verdade! 360
Rosa cita Fernando Rodrigues quando fala sobre o assunto em seu livro. ―(...) nenhum
jornal ou jornalista é neutro‖ 361
.
4.3. Liberdade de imprensa não é liberdade da imprensa
Qualquer tentativa de criar mecanismos de responsabilidade sobre reportagens e
matérias publicadas pela grande imprensa pode parecer para os meios de comunicação como
tentativa de controle, de ditadura da imprensa, de mordaça. Acontece que ao menosprezar a
discussão do assunto, a imprensa pode mostrar, por outro lado, sua face arrogante diante de
um problema tão sério. Diante de casos, como o que foi estudado nesse trabalho - envolvendo
Alceni Guerra e Ibsen Pinheiro – é preciso existir preocupação sobre erros, exageros e
distorções. E, conforme foi visto aqui, eles existem. Rosa, por exemplo, defende que os
mecanismos de regulação também podem partir por meio de iniciativas das próprias
instituições brasileiras, como Ministério Público e Congresso, por exemplo.
(...) a persistência de falhas inadmissíveis, muitas vezes cruéis, não pode se
justificar em nenhuma hipótese, por representarem a médio e longo prazo a perda
de credibilidade dessas instituições. Ignorar o clamor dos que se sentem
injustiçados e traduzi-los apenas como choro dos descontentes ou dos atingidos por
uma ―nova ética‖ vigente é uma atitude de radicalismo, antidemocrática, que põe
em risco justamente os enormes e visíveis benefícios que estão por trás do
dinamismo dessas organizações. 362
Mário Rosa, em seu livro, tem uma definição interessante e que será utilizada nesse
360
ROSA, 2007, p. 506. 361
ROSA, loc. cit. 362
Ibid., p. 455.
171
capítulo para definir a atuação da imprensa. Ele afirma que existe diferença entre a liberdade
de imprensa e a liberdade da imprensa. ―Liberdade de imprensa não é o mesmo que liberdade
da imprensa. Cabe à própria imprensa tomar a iniciativa de garantir sua credibilidade. Isso
atende ao interesse público. Imprensa sem credibilidade é imprensa fraca, o que sem dúvida
nenhuma é ruim para a sociedade‖363
.
Ele quer dizer que a liberdade de imprensa deve existir para o bem da democracia. A
liberdade da imprensa é aquela liberdade, sem responsabilidade em que os órgãos de
comunicação publicam tudo o que querem sem qualquer tipo de controle. Seria importante
aprofundar mais a questão: além da liberdade de imprensa, existe a liberdade da empresa de
comunicação, como identificou Cláudio Abramo, reformulador dos jornais O Estado de
S.Paulo e Folha de S. Paulo. Esta última mais perigosa. Os interesses particulares são
buscados a todo tempo em nome da defesa da opinião pública, do interesse público. Um risco
para a sociedade.
A grande imprensa, inserida dentro da sociedade, se diz ‗defensora do interesse‘
público. Portanto, deve existir acompanhamento público de tudo aquilo que é publicado ou
colocado no mercado pela mídia: a notícia. É preciso mais transparência dos órgãos de
comunicação. Ou seja, os meios de comunicação – a grande imprensa – que se auto-
proclamam compromissadas com a verdade devem dar o exemplo. Isso os tornariam mais
respeitáveis e com maior credibilidade.
Será que a imprensa está se posicionando em relação aos demais setores sociais
com a eficiência necessária? Será que está se posicionando estrategicamente bem
ao não assumir a vanguarda da coerção aos eventuais erros e exageros na cobertura
(ainda mais em momentos tão tumultuados e sacudidos por escândalos em todos os
setores)? O modo como a mídia se comporta nos bastidores dos escândalos precisa
ser pensado e aperfeiçoado (...)364
.
Pode-se dizer que a liberdade de imprensa é um ‗bem inegociável‘. Ela deve existir
para beneficiar a sociedade democrática em sua dimensão pública. Ela não deve ser utilizada
para fins comerciais, como negócio, por parte das grandes empresas do ramo.
Eugenio Bucci também resume a importância da liberdade de imprensa para a
sociedade, por vezes defendendo também a responsabilidade sobre aquilo o que é publicado
na mídia:
Não faria sentido – nem técnico, nem lógico, nem ético – que os jornalistas se
mobilizassem contra a liberdade de imprensa. Seriam suicidas. A liberdade de
imprensa, a propósito, é um princípio assegurado não por eles, jornalistas, mas pela
363
ROSA, 2007, p. 455. 364
Ibid., p. 456.
172
sociedade, que deles precisa para mediar a comunicação pública. Do mesmo modo,
está no fundamento da ética jornalística, qualquer que seja a sua acepção, a defesa
da liberdade, da verdade, da justiça, da pluralidade de opiniões e de pontos de vista
(...)365
.
Ele cita também um dilema jornalístico em que envolve razões de Estado em relação a
essa liberdade de imprensa. Como foi visto no estudo desse trabalho, os órgãos de imprensa
deveriam ―se ver‖ entre optar pelo respeito à privacidade, de Ibsen e Alceni, por exemplo, que
foi tema das reportagens, e o direito do cidadão de ser ‗bem informado‘. Fica a pergunta: é
justo investigar a intimidade de alguém?
Mas, e um agente público que esteja exercendo uma função pública e guarda em sua
intimidade práticas suspeitas que envolvam o Estado? O dilema ético tem sido desse tipo.
Claro que seria justo investigar esse agente, mas com responsabilidade, sem
sensacionalismos, paixões ou direcionamento de enfoques jornalísticos para prejudicar essa
ou aquela pessoa.
O problema é que ‗os desvios‘ éticos, conforme afirma Eugênio Bucci, não se
resumem apenas às falhas dos jornalistas, que, evidentemente, devem ser analisadas em
público, para o bem da melhoria, da qualidade da informação.
(...) eles se estendem às empresas e à sociedade. O problema ético é um problema
estrutural e sistêmico. A desinformação não se deve apenas aos maus profissionais,
mas também a atitudes empresariais que revelam falta de compromisso com o
direito à informação, que se articulam para excluir o cidadão das decisões que em
seu nome são tomadas. O único interessado na discussão ética é o cidadão – não os
proprietários dos órgãos de imprensa, não os jornalistas, não os governantes (que
também são cidadãos mas se encontram investidos de condições que os diferenciam
dos demais); o único interessado é o cidadão como outro qualquer, aquela pessoa
comum que consome as notícias e que, no fim, é o beneficiário final do jornalismo
de qualidade – ou a vítima do jornalismo vil. É por isso que essa discussão vale a
pena, faz sentido e, mais que isso, é urgente366
.
O perigo de tudo isso é que, muitas vezes, a grande imprensa se julga acima do bem e
do mal. Não quer discutir ética ou meios de responsabilização sobre o que é publicado, uma
espécie do que já foi descrito como ‗accountability‘.
E ao julgar-se mais, ou imaginar-se acima, ao pensar que não precisa prestar contas
de seus métodos e de seus valores a mais ninguém, estará corroendo a função social
que um dia fundou sua profissão. Sua auto-suficiência no fundo é uma ilusão, mas é
exatamente assim, como ilusão, que ela é nefasta. Mata a qualidade de informação.
365
BUCCI, 2000. p. 18. 366
Ibid., p. 36.
173
Aí, o jornalismo, em lugar de um método ético para buscar a verdade dos fatos,
sempre frágil torna-se fonte da verdade. Torna-se impostura. 367
4.4. A imprensa de „rabo preso‟ com quem?
Ser o representante da sociedade e defendê-la são duas ideias vendidas pela grande
imprensa para o público. Segundo Fonseca, a grande imprensa, concebida como ator político-
ideológico, deve ser compreendida ―fundamentalmente como instrumento de manipulação de
interesses e de intervenção na vida social‖368
.
Ela influência. Até muda os rumos da história ao tomar determinadas posições sobre
fatos políticos, como ocorreu como Alceni Guerra e Ibsen Pinheiro. ―Além do mais, a
imprensa representa uma instituição em que ―se mesclam o público e o privado [em que] os
direitos dos cidadãos se confundem com os do dono do jornal. Os limites, entre uns e outros,
são muito tênues‖ 369
.
Um dos slogans mais marcantes da grande imprensa e que prova que os meios de
comunicação buscam ser representantes da sociedade mostrando o caráter da preocupação,
que a imprensa se diz com o público, foi o do Jornal Folha de S. Paulo. O jornal paulista
cunhou a expressão ―de rabo preso com o leitor‖. O slogan ―rabo preso‖ mostra o
compromisso, a busca da verdade pelo interesse público. Mas, apesar de a campanha
publicitária ter sido um sucesso até hoje a pergunta que fica: até que ponto a Folha, citando só
como exemplo, teria mesmo rabo preso com o leitor? E, como ficam os interesses
particulares?
A verdade é que o ―rabo preso‖ é com o leitor e também com seus anunciantes, grupos
empresariais pelo qual a Folha pertence. Porque, na verdade, existe um conflito de interesses
econômicos. A Folha é uma empresa privada, precisa lucrar, vender seus produtos.
4.5. A imprensa alternativa
Pela análise que foi feita nesse trabalho a respeito dos padrões de manipulação da
grande imprensa, a impressão que fica é que não existe mais caminho para o jornalismo
brasileiro. A despeito dos grandes meios de comunicação, existe aquela imprensa chamada de
367
BUCCI, 2000, p. 54-55. 368
FONSECA, 2005, p. 30. 369
FONSECA, loc. cit.
174
contra-hegemônica, ou mais precisamente alternativa, ou até mesmo conhecida ou apelidada
de ‗nanica‘ e popular. Essa imprensa tenta contrapor o que existe nos meios de comunicação,
como alternativa ao meio mercantilista como são os grandes meios de comunicação do País.
Nesse sentido, publicações como a Revista Caros Amigos, de ViaPolítica, revista virtual que
não esconde seus laços com versus, Retratos do Brasil, revista com a marca de Raimundo
Pereira, Revista do Brasil e Brasileiros são opções no meio da grande imprensa. Há também a
Revista Carta Capital, o Centro de Mídia Independente, entre outras publicações importantes.
Para Gustavo Falcón, a imprensa alternativa era uma forma de produção jornalística de
contestação ao sistema, de contracultura370
.
Segundo ele, com o fim da ditadura, ―o garrote de censura e da ameaça de prisão foi
substituído pelo garrote do envolvimento com negócios, principalmente imobiliários, da
indústria da construção‖371
.
Ainda conforme Falcón, algo que lembra a imprensa alternativa do período ditatorial
são publicações como Caros Amigos, ―mais à esquerda‖, e Piauí, no que tange a pauta, texto e
imagem.
Para o ex-editor da Revista Caros Amigos, Myltainho Severiano, ser alternativo era
uma expressão da época dos anos 70 e 80.
Hoje a gente prefere não chamar uma revista como Caros Amigos de alternativa. É
uma revista independente. Não deixa de ser alternativa, assim como, no mesmo
sentido, a Carta Capital é uma alternativa às outras semanais, que são tudo farinha
do mesmo saco. Da mesma forma, temos Piauí, Bravo e assemelhadas, um
jornalismo que eu chamo de fofo 372
.
Falcón no livro ―Os baianos que rugem. A imprensa alternativa na Bahia‖373
, diz que a
opção da esquerda pela luta armada foi o pretexto para um controle mais rígido dos meios de
comunicação, para impedir a divulgação das torturas e assassinatos políticos pela aparelho
repressivo.
O endurecimento chega ao paroxismo no assassínio, sob tortura, do jornalista
Vlamidir Herzog, em outubro de 1975, no DOI-Codi paulista. O mesmo garrote que
cerceia as atividades artísticas, impede a tentativa de aberturas de espaços para o
exercício do jornalismo na imprensa convencional e leva jornalistas, intelectuais e
artistas a somar esforços para romper o cerco. 374
370
UNIDADE, Jornal dos Jornalistas, publicação mensal do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de
São Paulo, número 314, p. 6. 371
UNIDADE, loc. cit. 372
UNIDADE, loc. cit. 373
FALCÓN, Gustavo. Os baianos que rugem. A imprensa alternativa na Bahia. Bahia: Edufba, 1996. 374
UNIDADE, p. 5.
175
Segundo reportagem publicada no Jornal Unidade do Sindicato dos Jornalistas de São
Paulo, ―produzir novos jornais diários é difícil, até porque exige grandes investimentos. A
alternativa é um modelo de imprensa capaz de enfrentar a camisa de força da censura e ser um
veículo adequado à circulação das novas ideias‖.
Ainda segundo o jornal, ―para superar a precariedade de recursos, ampliam e
diversificam a rede de colaboradores, as formas de captação de recursos para infraestrutura e
lançam mão da enorme criatividade do brasileiro na execução do projeto e na hora de dar
nome às publicações‖.
Geralmente, a imprensa alternativa surge pelo descontentamento com a grande
imprensa: sua abordagem viciada e, como já foi visto, tendenciosa, e manipuladora. Fernando
Gasparian, por exemplo, empresário do setor têxtil encabeçou uma frente democrática ao
publicar o semanário Opinião, em 1972, que recebeu vários tipos de pressões econômicas na
época: corte de anúncios, apreensão de edições já liberadas e até atentados a bancas que
vendiam o jornal.
A ―imprensa alternativa‖ surge também quando jornalistas insatisfeitos com a falta de
espaço na imprensa convencional se organizam em cooperativas. Um exemplo de publicação
desse tipo ocorreu em Porto Alegre, de 1974 a 1983. Na Capital do Rio Grande do Sul
circulou a Coojornal, formada por profissionais que saíram da Folha da Manhã, em 1975,
entre os quais José Antônio Vieira da Cunha, Osmar Trindade, Rosvita Saueressig, Euclides
Torres, entre outros.
Na história do jornalismo, a própria imprensa brasileira começou com um alternativo.
O Correio Braziliense, fundado por Hipólito José da Costa, em 1808, em Londres, entre
outras coisas para lutar pela independência do País, aspecto destacado no capítulo ―Os
primeiros passos da palavra imprensa‖.
Durante o Império houve vários alternativos. O mais significativo deles foi o Jornal
dos Tipógrafos, fundado em 1858 pela categoria depois da primeira greve no Brasil, também
mencionado no capítulo ―Imprensa em tempos de Império‖.
O alternativo de maior sucesso de público na história brasileira foi Última Hora,
criado por Samuel Wainer no segundo governo de Vargas, com apoio deste, para se
contrapor ao coro unânime da imprensa conservadora e golpista que queria a
deposição do presidente (ver capítulo ―Batalhas em letra de forma: Chato, Wainer e
Lacerda‖). Apresentar Última Hora como um ―alternativo‖ pode ser perecer
paradoxal ou até mesmo irônico, uma vez que ele foi criado com apoio do governo.
176
E seguiu padrões de produção característicos do que se chamou de ―grande
imprensa‖: tiragens enormes, apelo e sucesso populares, além de ter sucedâneos
homônimos em algumas capitais brasileiras. Entretanto, nessa época – meados do
século XX – estava em formação o cartel hegemônico da própria ―grande
imprensa‖, com características muito próprias: em geral, grandes empresas
familiares – os Mesquita, os Marinho, os Frias, por exemplo – que reuniam uma
ideologia capitalista com um espírito oligárquico, fraco-apoiadores dos Estados
Unidos na Guerra Fria e que se dedicaram a combater o que viam como
―esquerdismo‖ no País 375
.
Três outros jornais fizeram história dentro do jornalismo alternativo: Opinião,
Movimento e Em Tempo.
(...) eram muito diferentes entre si. À primeira vista, nem pareceriam aparentados,
ainda que a uma visão mais acurada, e distanciada, como a de hoje, post-factum,
possam revelar cromossomos comuns quando às qualidades e defeitos. Para
percebermos essas diferenças, basta irmos a uma biblioteca especializada, como a
da Escola de Comunicação e Artes da USP, onde está o Departamento de
Jornalismo, e folhearmos os exemplares 376
.
Bernardo Kucinski, o único jornalista a ter participado organicamente da formulação
do projeto dos três jornais e de sua execução, afirma em seu livro ―Jornalistas e
revolucionários‖ que os periódicos foram marcados por estéticas gráficas, o que incluía a
apresentação textual, muito diferentes entre si. Havia entre os jornalistas tendências
ideológicas diferenciadas.
(...) a vida da redação cristalizou-se em torno da disputa interna entre distintas
facções: notadamente os grupos de origem trotskista ou próxima, que acabariam
formando o grupo Democracia Socialista, que se integrou o Partido dos
Trabalhadores, e os remanescentes do Movimento de Emancipação do Proletariado
(MEP), com forte presença a partir de Curitiba e na redação em São Paulo,
sobretudo na editoria de Cultura. O confronto desaguou numa luta de vida e morte,
em que o pessoa do MEP acabou afastando da Cultura e do jornal 377
.
Com a redemocratização no País, em 1988, e início do século XXI, surgiu uma nova
imprensa alternativa, um pouco diferente, ou mais ampliada do que a anterior ao atual
período. Pode-se dizer que está muito mais variada, nascida dos desenvolvimentos da internet
(blogs e sites). Há também os jornais de movimentos e organizações específicas, como o MST
e os sindicatos, das rádios comunitárias, e até mesmo de espaços na televisão.
As condições culturais dessa nova imprensa alternativa são muito diferentes
daquela do século XX. Hoje sem horizonte resguarda os fóruns sociais mundiais e
375
MARTINS; LUCA, 2008, p. 235. 376
Ibid., p. 239. 377
Ibid., p. 245.
177
seu alcance, graças à internet, é muito maior e imediato, além de que os novos
espaços comunicativos relativizam muito o poder da ―grande imprensa‖ 378
.
De certo é que aquela imprensa alternativa dos anos 1960/1970 deixou um importante
legado dos erros e acertos, das polêmicas e concordâncias, da época.
A imprensa aguerrida que, a despeito da feroz repressão dos anos 1960/1970 se fez
ouvir, deu recados e provocou mudanças, figura não só como marco da busca do
estado de direito do País, mas como uma das expressões de contestação mais
veementes da história do jornalismo impresso brasileiro. Nas décadas subsequentes,
a mídia conheceria transformação revolucionária, que por meio dos recursos on-
line, ampliaria sua comunicação e poder, abrindo novo capítulo da história da
imprensa – aquele jornalismo eletrônico . (...) As propostas podem até ter sido
esquecidas, ou devidamente remodeladas para atender aos reclamos de novos
tempos, que exigem propostas de um novo socialismo, mais democrático do que o
das anteriores, ou outras propostas dentro do âmbito de uma sociedade capitalista
mais permeada pelas preocupações sociais. Mas o etos da dedicação a uma causa
que envolva solidariedade com uma visão inseparável da luta por liberdade e justiça
social, inalienáveis uma da outra, permanece imorredouro, num tempo em que por
vezes a canalhice adesiva é chamada de virtude e a traição seguida a ideais e
princípios virou moeda corrente, mesmo entre quem diz rejeitar a inevitável
corrupção capitalista 379
.
4.6. A necessidade de democratização da mídia
Duas principais interrogações são as causas de controvérsias entre os grandes meios
de comunicação e aqueles que buscam a democratização da informação: a mídia tem dono?
Mais: Ela deveria ter dono?
A mídia tem dono e não só isso. Entre outras coisas, tem interesses a defender. Ela
pertence a grupos políticos, empresariais e, por tabela, mantêm interesses particulares. Se diz
defensora da sociedade, guardiã dos oprimidos – basta olhar para o antigo slogan de uma
rádio da Capital paulista que é ―A rádio que briga por você!‖ – só para citar como exemplo.
E, se a mídia tem uma posição definida – que é o de reproduzir, muitas vezes, o
discurso de certos grupos sociais -, grande parcela da população desconhece a posição desses
órgãos de imprensa.
Laurindo Lalo Leal Filho, afirma, categoricamente, que a necessidade da regulação
do rádio e da TV em sociedades nas quais o acesso a diferentes fontes de informação é
importante para o equilíbrio do jogo democrático380
.
378
MARTINS; LUCA, 2008, p. 246. 379
Ibid. p. 246-247. 380
Revista Propuc, nº 25/2006.
178
O próprio Leal Filho traz um dado importante: a televisão está presente em 95% dos
domicílios do País, enquanto menos de 10% da população lê jornais (circulam, diariamente,
cerca de seis milhões de exemplares) ou tem TV por assinatura (cerca de 3,6 milhões de
assinantes), para não mencionar as reduzidas possibilidades de acesso às revistas, aos livros,
ao cinema ou ao teatro.
Nesse quadro, o poder da televisão torna- se brutal e a regulação se impõe. Não
para censurar, mas para equilibrar, ampliando a oferta de informações, num sistema
capaz de oferecer ao cidadão um leque de alternativas suficientemente amplo para
quebrar o monopólio do pensamento único381
.
Ou seja, o receptor da notícia ―pode estar refém de uma abordagem única‖ com o
agravante de que as televisões comerciais pautam suas notícias e programações levando em
conta os interesses dos seus grandes anunciantes. Pierre Bordieu em ―Sobre a Televisão‖,
identificou essa tendência. ―O grau de autonomia de um órgão de difusão se mede sem dúvida
pela parcela de suas receitas que provém da publicidade e da ajuda do Estado (sob forma de
publicidade ou de subvenção) e também pelo grau de concentração dos anunciantes382
‖.
E mais:
(...) assim como o campo político e econômico, e muito mais que o campo
científico, artístico ou literário ou mesmo jurídico, o campo jornalístico está
permanentemente sujeito à prova dos vereditos do mercado, através da sanção,
direta, da clientela ou, indireta ao índice de audiência (ainda que a ajuda do Estado
possa assegurar certa independência com relação às pressões imediatas do
mercado)383
.
A população não decide e, não tem opção, daquilo que quer ou pode assistir. E
quando se diz que a mídia tem dono é importante dizer quem são eles. Um trabalho muito
importante do jornalista Daniel Herz, um dos fundadores do Fórum Nacional Para
Democratização da Informação (FNDI), produziu – por meio do Instituto de Estudos e
Pesquisas em Comunicação (Epcom) uma ferramenta importante para a sociedade. O projeto
―Os donos da mídia‖ está disponível no site www.donosdamídia.com.br.
Trata-se de um rico banco de dados sobre os grupos de mídia do País. Donos da
Mídia é também um estudo inédito que permite avaliar as relações políticas, sociais e
econômicas decorrentes da concentração da mídia nacional.
381
Ibid. 382
BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 102. 383
Ibid., p. 106.
179
A pesquisa lista 7,2 mil veículos de comunicação: rádios comerciais e comunitárias,
televisão aberta e por assinatura, revistas e jornais. Também traz uma lista das afiliadas das
televisões.
Diante de uma ferramenta tão rica, é possível identificar que as cinco maiores
emissoras de televisão, como Globo, Bandeirantes, Record, SBT e Rede TV! formam 33
redes de TV em que estão ligados 1.415 veículos de comunicação, os chamados de afiliados.
As redes de emissoras de rádio FM e AM somam 21. Donos da Mídia também traz o número
de veículos em cada município ligados a políticos. Foram identificados 20 senadores, 48
deputados federais, 55 deputados estaduais e 147 prefeitos como sócios ou diretores de
empresas de radiodifusão. Detalhe: o Artigo 54 da Constituição Federal proíbe que políticos
tenham empresas de comunicação.
Nem Folha, nem Estadão, Rede Globo, ou outros emissoras divulgaram a pesquisa.
Apenas a Revista Carta Capital trouxe em sua edição do dia 6 de março de 2002, sob o título
―Quem são os donos da mídia‖, reportagem mostrando os veículos de comunicação dos
principais ―coronéis eletrônicos‖ – políticos que têm certa influência sobre uma determinada
região do País.
A reportagem de Carta Capital mostrou também, por meio do estudo do Instituto de
Estudos e Pesquisas em Comunicação, que as seis principais redes privadas nacionais hoje
abrangem um total de 667 veículos, entre emissoras de tevê, rádios e jornais por meio de
afiliadas. O resultado de tudo isso é a criação de um Brasil refém de grandes empresas de
mídia, imunes a qualquer forma de controle público, comandadas de forma vertical e
sustentadas em alianças regionais que reproduzem e amplificam ideias, concepções e valores
para 190 milhões de habitantes.
Ainda de acordo com reportagem de Carta Capital, os grupos cabeças-de-rede, como a
Rede Globo, que geram a programação de televisão, buscam nos afiliados sustentação nas
regiões e amplitude de presença no mercado.
Em troca, dão fôlego econômico e uma face institucional a projetos empresariais e
políticos regionais. Por meio dos grupos afiliados, as redes geram um vasto campo de
influência, em escola de massas, que se capitaliza por 294 emissoras de tevê em VHF (90%
do total de emissoras do País), 15 em UHF, 122 emissoras de rádio AM, 184 de FM e 2 de
rádio em onda tropical (OT), além de 50 jornais384
.
384
Carta Capital, 6 de março de 2002.
180
O estudo revela na edição de Carta Capital que os veículos ligados a seis redes
privadas nacionais são a base de um sistema de poder econômico e político que se ramifica
por todo o Brasil e se enraíza fortemente nas regiões.
A reportagem chama atenção para os dados do Maranhão, do Amapá e do Mato
Grosso. No Estado da governadora Roseana Sarney (DEM), concentram-se 54 veículos (8,1%
do total e quase a mesma quantidade de veículos ligados às redes existentes em São Paulo,
atuando em um mercado que corresponde a apenas 3,3% da população, 1% do PIB).
Outra constatação importante, segundo a pesquisa, é que no Amapá por onde se elegeu
o atual senador e ex-presidente da República, José Sarney (PMDB), são 44 os veículos
ligados as 6 principais redes (6,6% do total), operando em um mercado que possui 3,7% da
população e 2,1% do PIB. Já no Mato Grosso, em um mercado que envolve 1,5% da
população, 1,1% aparecem 36 veículos ligados às redes (5,4% do total).
Em números absolutos, individualizando cada ―coronel eletrônico‖ – ou seja os
políticos detentores de emissoras de televisão -, a pesquisa traz os seguintes dados: a família
Sarney tem dez veículos, assim como a família de Antônio Carlos Magalhães. Jader Barbalho
tem seis, assim como Albano Franco e a família Collor, do ex-presidente Fernando Collor de
Mello.
De acordo com o site Observatório do Direito à Comunicação, no Brasil, 271 políticos
são sócios ou diretores de emissoras de televisão e rádio – os meios com maior abrangência
entre a população385
.
Especialmente em ano de eleições, interesses políticos e econômicos dos proprietários
de veículos de comunicação podem afetar diretamente a programação e mesmo a cobertura
jornalística dessas empresas, chegando a influenciar no processo eleitoral.
Apesar de estar em desacordo com a Constituição Federal, o número de políticos
empresários da mídia só vem crescendo. São (ou foram) candidatos privilegiados, porque
podem tirar vantagem dessa condição em campanha.
Os donos da mídia criaram um vicioso sistema de comunicação que privilegia poucos
e deixa de fora a maior parte da sociedade.
A realidade é essa: o que predomina é a clara política-ideológica do meio de
comunicação pelo qual o jornalista trabalha. Afinal jornal é uma empresa capitalista que visa
lucro. Então a liberdade do jornalista para, ou é podada, na ideologia da empresa para a qual
385
http://www.direitoacomunicacao.org.br/novo/content.php?option=com_content&task=view&id=2925.
181
trabalha. ―(...) a liberdade do jornalista, enquanto indivíduo, de expressar suas próprias ideias
ou relatar o fato objetivo como tal ele presenciou encontra obstáculos nas individualidades
situadas hierarquicamente acima dele na empresa jornalística‖386
.
De acordo com Luiz Martins da Silva, são poucas as empresas com instâncias
formais e sistemáticas de controle do rigor na apuração, codificação e editoração da notícia.
Ele diz que pouquíssimos jornais brasileiros adotam a instituição do ombudsman ou de
outros mecanismos de atendimento do leitor e de intermediação de queixas e sugestões. Para
Francisco Fonseca, é paradoxal observar que justamente as empresas de comunicação sejam
as menos controladas (em termos democráticos), em relação aos outros tipos de capital.
Então, portanto, os ―donos da mídia‖ – com base em seus interesses de classe social e
econômico - passam para o público uma verdade subjetiva do que é a realidade.
4.7. A necessidade de mudar todo o sistema
Talvez a mudança de todo o sistema de comunicação seria o início de um
aprimoramento para maior transparência da mídia. Poderiam surgir novas mídias voltadas ao
interesse público, de fato. A história da imprensa mostra que, desde 1808, a maioria dos
meios de comunicação passou a ser privada buscando fins lucrativos. A minoria pertence ao
outro grupo, como jornal de sindicatos, revistas independentes, etc. A esmagadora maioria
dos grandes meios de comunicação, como Folha, Estadão, entre outros, é imprensa comercial.
Essa situação viciosa não é restrita apenas aos grandes jornais impressos. No Brasil, as
concessões públicas de rádio, por exemplo, até já viraram moeda de troca entre os políticos.
Uma rádio funciona como atividade comercial de fins lucrativos, contrariando a Constituição
Federal, em seu Artigo 224, onde encontramos a informação de que o sistema é público.
A televisão segue a mesma rota. É empresa privada de fins lucrativos. O mais grave é
descobrir que não existe qualquer tipo de controle eficaz sobre a distribuição de canais, ou
participação popular nesses meios.
Um grave problema à sociedade sobre a falta de democratização da mídia é a forma
como ela recebe certas notícias sobre determinados fatos, sejam eles políticos, do cotidiano e
que envolvem assuntos cruciais da sociedade brasileira.
386
FILHO, 1987, p. 8.
182
4.8. Sugestões de democratização da mídia
Se a grande mídia está umbilicalmente ligada à grupos políticos e de classe sociais e
tudo que é publicado pela mídia tem uma subjetividade, um viés, que beneficia apenas um
lado deixando vozes dissonantes ―caladas‖ diante de assuntos relevantes do País, acredita-se
que é preciso democratizar todo o sistema de comunicação. Criar um único modelo de mídia
democrática seria inconsistente.
E o que seria democratizar a mídia? Tentar oferecer voz aos grupos dissonantes, ouvir
todos os lados e, principalmente, deixar que o cidadão seja o protagonista na comunicação.
Em primeiro lugar, ao tentar buscar soluções para democratizar a mídia, é preciso
pensar em um sistema em que todos falam e todos ouvem.
Sugestões:
1 – Incentivo e autorização de funcionamento às rádios comunitárias:
O que é visto atualmente no Brasil, como bem já foi relatado no início deste trabalho,
é que os donos da mídia – de iniciativa privada – conseguem manter um discurso na tentativa
de unificar as opiniões. Em 2005, o governo da Venezuela tentou fortalecer a mídia
independente. Autorizou centenas de rádios comunitárias a funcionar. O mesmo valeu para as
TVs comunitárias. Desta forma, garantiu-se a disputa contra-hegemônica – aquele tipo de
mídia livre do controle de grandes grupos de comunicação. A vantagem é que essa alternativa
de mídia independente é que ela não está ligada a compromissos com anunciantes, grupos
políticos e de classes. Muito pelo contrário. Busca a opiniões plurais e informações
heterogêneas.
No Brasil, no entanto, para que essa medida seja concretizada tornam-se mudanças na
legislação por meio do Congresso Nacional.
2 – Restrições ao “coronelismo eletrônico”:
Existe hoje no Brasil famílias de políticos donos de redes de televisão em várias
regionais. A restrição/proibição aos políticos como ―donos‖ de imensas redes de comunicação
seria um importante passo. De fato, as concessões públicas de rádio e televisão poderiam,
como o nome já diz, ser públicas.
3 – Participação da sociedade nas decisões sobre as concessões públicas:
183
Fortalecimento do Conselho de Comunicação Social para que a sociedade seja
representada e possa decidir como se dará as concessões públicas de rádio e televisão. Hoje, o
que se vê, são os políticos conseguindo facilmente uma emissora de rádio e tevê.
Laurindo Lalo Leal Filho diz que a Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e
Televisão (Abert) possui um código de auto-regulamentação de bom nível, só que suas
associadas nunca o praticaram. Governos, em diferentes oportunidades, tentaram extrair das
empresas novos princípios auto-regulatórios, sempre sem êxito.
O controle externo, para ser ao mesmo tempo democrático e eficiente, deve ter forte
participação social e acompanhar todo o processo de concessão de canais. Cabe à
sociedade e ao Estado constituir órgãos reguladores representativos dos
pensamentos plurais existentes num determinado momento histórico. A constituição
desses conselhos não precisa e nem deve ser feita a partir de representações
corporativas, mas por cidadãos reconhecidamente comprometidos com o bem
público, sem qualquer tipo de interesse político e econômico em relação à televisão.
Instâncias plurais, como os parlamentos, seriam os melhores locais para o debate e a
oficialização de nomes, cuja indicação poderia vir de diferentes setores sociais.
Cabe à sociedade e ao Estado constituir órgãos reguladores representativos dos
pensamentos plurais existentes num determinado momento histórico387
.
4 – Enquanto não se consegue democratizar, meios de comunicação independentes
devem ser pesquisados:
Há uma grande quantidade de jornais de sindicatos, ONGs, entidades e a mídia
alternativa que vem assumindo o papel – ―como formiguinha, é verdade‖ – de informar em
‗contraposição‘. E aqui vale pesquisar, sobretudo, a mídia independente no Brasil, ou a mídia
alternativa como também é conhecida.
Quando se faz uma análise à respeito dos padrões de manipulação da grande imprensa,
a impressão que fica é que não existe mais caminho para o jornalismo brasileiro, sobretudo
pela falta de democratização da mídia.
À despeito dos grandes meios de comunicação, existe aquela imprensa chamada de
contra-hegemônica, ou mais precisamente alternativa, ou até mesmo conhecida ou apelidada
de ‗nanica‘ e popular. Essa imprensa tenta ser um pouco mais independente, como alternativa
ao modelo mercantilista como são os grandes meios de comunicação do País.
5 – Obrigação a os meios de comunicação, sobretudo, a tevê de destinar um
percentual de sua programação para a educação e cultura.
6 - Implementação dos Conselhos de Ética e 0800 para a mídia:
387
FILHO, Leandro Leal. A necessidade do controle público da televisão. Boletim da Associacion
Latinoamericana de Investigadores de la Comunicacion, São Paulo, vol. V, nº. 21, 2005.
184
A tentativa de fortalecimento de uma mídia independente, não é um dos únicos pontos
importantes na tentativa de democratizar a mídia. Se a grande imprensa quer fiscalizar o poder
público e se julga defensora ou guardiã da sociedade tratando diretamente com informações
públicas, apesar de ser empresa privada e defender interesses muitas vezes escusos, não seria
pertinente, nesse sentido, avaliar a mídia com controle democrático?
Há alternativas já existentes no Brasil, como o Observatório da Imprensa e o
Ombudsman – no caso da Folha de S. Paulo – mas que pouco pode se aprofundar no sentido
de avaliação.
4.9. Diploma e Lei de Imprensa
Por tudo o que se discutiu nesse trabalho há uma aproximação da conclusão de que
jornalista gosta de ―liberdade, mas não de responsabilidade‖ (claro que aqui não podemos
generalizar, há exceções).
Em 2009, duas mudanças significativas alteram um pouco o panorama. O primeiro é a
queda da Lei de Imprensa: no meio daquele ano, por sete votos a quatro, o plenário do
Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou a Lei nº 5.250/67 considerando-a inconstitucional.
Não há dúvida que a lei era arcaica, da época da ditadura, mas o grande problema é
que nada foi colocado no lugar. A lei deixou de existir e, com isso, passa a existir também
uma grande lacuna e a pergunta: o que colocar no lugar da lei de imprensa?
Outra mudança é a dispensa do diploma para exercer a profissão de jornalista. Pelas
manifestações do Supremo Tribunal Federal– principalmente na pessoa do ministro Gilmar
Mendes – jornalismo não é profissão. Mas, ao contrário do que pensa o STF, o bom jornalista
diplomado também não restringe a liberdade de expressão.
A missão do profissional é informar. A matéria-prima nesse caso é a notícia e não a
opinião. E mesmo assim, as pessoas vão encontrar liberdade de expressão nas páginas de
opinião dos jornais. Desta forma, a falta de diploma vai prejudicar, por outro lado, a reserva
de mercado e desregulamentar a profissão.
4.10. Por que regulamentar a mídia? Fatos políticos que envolvem a imprensa
transformando-a em escândalo político
185
Quando se „entrega a alma‟ para obter informações
Atualmente no Brasil, entidades que reúnem as grandes empresas de comunicação no
Brasil classificam de "censura" qualquer tentativa de discussão sobre democratização da
mídia.
O debate sobre regulação do setor de comunicação social no Brasil, ou regulação da
mídia, como preferem alguns, está povoado por fantasmas, gosta de dizer o ex-
ministro da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, Franklin
Martins. O fantasma da censura é o frequentador mais habitual, assombrando os
setores da sociedade que defendem a regulamentação do setor, conforme foi
estabelecido pela Constituição de 1988. Regulamentar para quê? – indagam os que
enxergam na proposta uma tentativa disfarçada de censura. A mera pergunta já é
reveladora da natureza do problema. Como assim, para quê? Por que a
comunicação deveria ser um território livre de regras e normas, como acontece com
as demais atividades humanas? Por que a palavra ―regulação‖ causa tanta reação
entre os empresários brasileiros do setor? 388
.
Segundo Marco Aurélio Weissheimer, em artigo na Carta Maior, em boa parte da
reação contra a ―regulação‖ é de responsabilidade dos próprios meios de comunicação que
não costumam divulgar esse tema.
O seminário internacional Comunicações Eletrônicas e Convergências de Mídias,
realizado em Brasília, em novembro de 2010, reuniu representantes das agências reguladoras
desses países que relataram diversos casos que, no Brasil, seriam certamente objeto de uma
veemente nota da Associação Nacional de Jornais (ANJ) e da Associação Brasileira de
Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) denunciando a tentativa de implantar a censura e o
totalitarismo no Brasil.
Ao esconder as existências dessas regras e o modo funcionamento da mídia em outros
países, essas entidades empresariais é que estão praticando censura e manifestando a visão
autoritária que tem sobre o tema. O acesso à informação de qualidade é um direito.
Em artigo no Jornal O Estado de S. Paulo, Carlos Alberto Di Franco, defendeu a
plenitude da liberdade de imprensa, mas afirmou a necessidade de regulamentação e dos
meios de comunicação serem responsabilizados ou controlados para que se contenham os
excessos. Na verdade, Di Franco se referia, em seu artigo, às palavras do ministro do
Supremo Tribunal Federal (STF), Ayres Britto, durante palestra de encerramento do
Seminário Internacional de Liberdade de Expressão, dia 4 de maio de 2012, em São Paulo.
388
Marco Aurélio Weissheimer. Dez fatos que a "grande" imprensa esconde da sociedade. Carta Maior
(www.cartamaior.com.br).
186
É claro que a liberdade de imprensa reclama responsabilidade ética. ―O poder social
da imprensa também deve ser controlado, mas não pelo Estado‖, sublinhou o
ministro. Não defendo, por óbvio, uma imprensa irresponsável. Afinal, tenho
martelado, teimosa e reiteradamente, que a responsabilidade é a outra face da
liberdade. Não sou contra os legítimos instrumentos que coíbam os abusos da
mídia. Mas, eles já existem e estão previstos na Constituição e na legislação
vigente, sem necessidade novas intervenções do Estado 389
.
Em maio de 2012, a falta de transparência dos meios de comunicação abriu-se uma
importante discussão sobre a necessidade de regulamentação dos meios de comunicação e
como ele deve responsabilizado e até mesmo controlado democraticamente. A Revista Carta
Capital em sua edição nº 696, do dia 4 de maio de 2012, acusou a Revista Veja de falta de
transparência ao esconder do leitor da revista ligações ‗escusas‘ com o bicheiro Carlinhos
Cachoeira390
.
389
DI FRANCO, Carlos Alberto. ―Plenitude de Liberdade de imprensa‖. Jornal O Estado de S. Paulo, edição de
segunda-feira, dia 14 de maio de 2012, Ano 133, nº 43.308, Página A2, Espaço Aberto. 390
Aqui não nos cabe, pelo menos nesse trabalho, tratar de mais um escândalo em si. Fugirá do objetivo de
estudo que é tratar dos casos de Alceni Guerra e Ibsen Pinheiro. No entanto, por ser um assunto relevante, é
possível mostrar, mais uma vez, o comportamento da mídia, no caso a Revista Veja, no tema transparência – que
também é objeto de estudo da mídia.
187
Fig. 17 / Edição 696 - 4 de maio de 2012
A Carta Capital publicou na capa ‗fictícia‘ da revista Veja (uma capa dentro da capa),
com uma foto de Roberto Civita, atual presidente da Editora Abril, e a chamada: ―O Nosso
Murdoch‖. A provocação tenta igualar Roberto Civita a Rupert Murdoch, que fechou um
jornal no Reino Unido, o News of the World, após um escândalo revelar que o tablóide fazia
escutas ilegais de políticos, celebridades e cidadãos comuns.
Ainda de acordo com a reportagem, essas gravações, divulgadas pela revista Carta
Capital, reforçariam a existência de conexões entre o senador Demóstenes Torres (ex-DEM-
GO),391
a Revista Veja e o contraventor Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira, preso
durante a Operação Monte Carlo da Polícia Federal.
391
Nascido em Anicuns, um município no interior goiano, Demóstenes Torres formou-se em Direito pela
Pontifícia Universidade Católica de Goiás e é integrante concursado do Ministério Público de Goiás desde 1983.
Foi Procurador-Geral do órgão antes de ocupar o cargo de secretário de Segurança Pública, entre 1999 a 2002,
188
A reportagem de Cynara Menezes mostra como a atuação de arapongas a serviço de
Cachoeira resultou em notícias divulgadas pela semanal do Grupo Abril. Chamam atenção
dois casos, que se somam à detecção de mais de duzentas chamadas telefônicas entre o diretor
da sucursal de Brasília de Veja, Policarpo Júnior, e os integrantes do grupo do contraventor.
De acordo com a matéria, no primeiro áudio, Cláudio Abreu, diretor da construtora
Delta no Centro-Oeste, comemora entrevista divulgada pela publicação defendendo que
Demóstenes deixasse o DEM rumo ao PMDB para abrir caminho a uma indicação como
ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). ―Você conseguiu?‖, pergunta Cachoeira em
uma conversa ao telefone. ―Consegui‖, responde Abreu, afirmando que a entrevista saiu na
seção Páginas Amarelas, que abre a semanal, segundo reportagem da Carta Capital.
Ainda de acordo com a revista, em outro áudio, o araponga Jairo Martins, do grupo do
contraventor, revela como conseguiu que Veja se saísse com a capa ―O poderoso chefão‖, que
aborda encontros do ex-ministro José Dirceu (PT) com políticos em um hotel de Brasília. O
caso ficou famoso depois que um repórter da revista, Gustavo Ribeiro, tentou invadir o quarto
de Dirceu. ―Se era, como argumenta Veja, um trabalho jornalístico comum, por que se valer
dos préstimos de um araponga serviçal de um contraventor?‖, indaga Carta Capital.
no governo de Marconi Perillo. Filiado ao DEM, foi eleito senador da República em 2002 com 1 239 352 votos.
Concorreu ao governo de Goiás em 2006 mas obteve apenas 3,5% dos votos, ocupando a quarta posição. Desde
fevereiro de 2009 é presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, a mais importante Comissão da
Casa. Foi considerado pela Revista Época um dos 100 brasileiros mais influentes do ano de 2009. Como
presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, Demóstenes Torres participou do I Congresso
Mestiço Brasileiro, promovido pelo Nação Mestiça em Manaus, capital do Amazonas, em 20 de junho de 2011,
onde discutiu temas como o Estatuto da Igualdade Racial e o sistema de cotas em universidades públicas.
Assumiu em março de 2011 a liderança da bancada do Democratas no Senado, substituindo José Agripino Maia.
Em 15 de julho de 2011, Demóstenes casou-se com a advogada Flávia Coelho. Em março de 2012, conforme
apurado nas investigações da Operação Monte Carlo, a Polícia Federal revelou que Demóstenes Torres tinha
ligação com Carlinhos Cachoeira, pivô do escândalo que ficou conhecido como "máfia dos caça-níqueis" em
Goiás, em 2004. Demóstenes negou que tivesse negócios com Carlinhos, a quem chamou de "empresário", e
justificou as 298 ligações telefônicas como "uma grande amizade". A Procuradoria do Ministério Público
Federal acredita que o Senador possa ser sócio oculto da empreiteira Delta, que mantém contratos milionários
com entes públicos. Demóstenes afirmou, no entanto,que não sabia do envolvimento de Carlinhos com a máfia
dos caça-níqueis. No dia 23 de março de 2012, a imprensa noticiou que gravações da Polícia Federal revelaram
que o senador Demóstenes Torres pediu dinheiro e vazou informações de reuniões oficiais a Carlos Augusto
Ramos, o Carlinhos Cachoeira. Relatório com as gravações e outros graves indícios foi enviado à Procuradoria-
Geral da República em 2009, mas o chefe da instituição, Roberto Gurgel, não tomou qualquer providência para
esclarecer o caso.
Demóstenes foi o relator na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal que resultou na
Lei da Ficha Limpa, que impede a candidatura de políticos condenados e daqueles que renunciam a mandatos
para não serem cassados. Por conta desta atuação, Demóstenes foi convidado para redigir o prefácio de um livro
editado pela OAB em comemoração à Lei da Ficha Limpa, em 2010. No prefácio, Demóstenes elogia a atuação
da OAB no processo de aprovação da lei e afirma que há uma quantidade de "bandidos abrigados na vida
pública". Após a divulgação dos escândalos, o presidente da OAB, Ophir Cavalcante, pediu a renúncia imediata
de Demóstenes como uma "atitude moral" e manifestou constrangimento.
189
Em texto divulgado em sua página na internet, afirma Carta Capital, o ex-ministro
defende que a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) aberta no Congresso para
apurar as relações entre Cachoeira e o mundo político debruce sobre as conexões com o
mundo jornalístico. Ele lamenta o silêncio da mídia tradicional em torno do tema, à exceção
da TV Record.
Há veículos de comunicação que gostam de confundir liberdade de imprensa com
liberdade de empresa e de transformar essa mesma liberdade no direito de alguns
poucos proprietários de veículos e de seus jornalistas mais próximos de fazerem o
que bem entendem‖, diz. ―Liberdade não dá à imprensa salvo conduto para publicar
mentiras sobre quem quer que seja e muito menos para agir em conluio com o crime,
ou para praticar atividades ilegais. Numa democracia de verdade, ninguém pode
estar acima da lei. Nem mesmo a mídia, por mais poderosa que seja, por mais imune
que se imagine392
.
Para Carta Capital, Veja faz lembrar o caso do magnata da mídia Rupert Murdoch. No
ano passado, no Reino Unido, revelou-se que um de seus jornais, o News of The World,
lançava mão de escutas telefônicas ilegais e de uma relação ilegal com a polícia para
bisbilhotar a vida de personalidades e autoridades. As investigações mostraram um jogo de
chantagem entre Murdoch e os dois principais partidos britânicos. Agora, pode-se decidir que
Murdoch terá de se desfazer de todos seus veículos de comunicação na Grã-Bretanha.
Policarpo Jr., diretor da sucursal da revista Veja em Brasília, trocou 200 ligações
com Carlinhos Cachoeira. O bicheiro goiano, escreveu o correspondente de Carta
Capital em Brasília, Leandro Fortes, alega ser o pai de ―todos os furos‖ da revista. E
Cachoeira disse estar pronto a detalhar as histórias que contou para Policarpo Jr. na
CPI. O patrão da Editora Abril, Roberto Civita, 75 anos, sabia quem era a fonte de
todos aqueles ―furos‖ da semanal mais lucrativa de sua empresa? Se for convocado
para depor na CPI do Cachoeira, Civita reconhecerá que a Veja não respeitou a ética
jornalística? Usar como parceiro de reportagem um criminoso com estreitos elos (às
vezes acompanhados de subornos) com um senador, deputados, governadores e uma
empreiteira foge à regra essencial do jornalismo: a de apurar as duas ou mais versões
da mesma história. Mas o patrão da Abril provavelmente não dará o ar da graça na
CPI. Isso porque os jornalões e a tevê Globo agem em bloco para que isso não
aconteça. São dois os motivos. O bicheiro, atualmente atrás das grades, favorecia os
―furos‖ a envolver os inimigos ―esquerdistas‖ da mídia tucana, principalmente
petistas e ministros. Segundo motivo: jornalistas de outros orgãos da mídia também
obtinham seus ―furos‖ de Cachoeira.393
Em mais este episódio mostra-se a necessidade de providências a serem tomadas no
sentido de assegurar uma informação mais transparência, mais plural, sem qualquer tipo de
interesse particular. Que se preserve o interesse público. O episódio revela também que a
392
Carta Capital, edição 696, 4 de maio de 2012. 393
Ibid.
190
velocidade com que a grande imprensa divulga denúncias de envolvimento de particulares
(políticos e empresários) com o bicheiro de Goiás, Carlinhos Cachoeira, não é a mesma para
noticiar diálogos de grampos telefônicos entre o bicheiro e membros da imprensa. Na edição
de domingo, dia 6 de maio de 2012, Página A8, a ombudsman da Folha de S. Paulo, Suzana
Singer afirma que ‗grampos mostram que mídia fazia parte do xadrez de Cachoeira‖. ―Que
essa parte do escândalo seja tratada sem indulgência, com a mesma dureza com que os
políticos têm sido cobrados. Permitir-se ser questionado, jogar luz sobre a delicada relação
fonte-jornalista, faz parte do jogo democrático‖ 394
.
Portanto, é possível afirmar que a instrumentalização política de determinados grupos
de comunicação já deixou de ser um fenômeno novo. Ele existe. Está presente na política.
Além de episódios como o da Revista Veja, há outros casos na América Latina.
O exemplo mais gritante na atualidade talvez seja o da Venezuela, onde uma mídia
completamente partidarizada e alinhada aos interesses empresariais dominantes
produziu o que um analista chamou de uma tentativa de ―golpe midiático-militar‖ –
na realidade, muito mais midiático do que militar – contra o presidente Hugo
Chaves, em 2002395
.
Ana Luiza Martins e Tania Regina de Luca, autoras do Livro ―História da Imprensa no
Brasil‖, afirmam que Cláudio Abramo, falecido em 1987, já chamava atenção para esse
fenômeno. Ele afirmava que ―o equívoco que existe entre os jornalistas é considerar que a
grande imprensa possa ir além daquilo que é o seu papel histórico‖.
A grande imprensa, como já está definida pelo nome, é ligada aos interesses daquela
classe que pode manter a grande imprensa. Na medida em que essa classe está em
contradição com a conjuntura nacional, os jornais podem exercer um papel de
esclarecimento da opinião pública. Mas é preciso não esquecer, lembra Abramo,
―que esse esclarecimento vai até o nível dos interesses da própria grande imprensa.
Ela tem interesses peculiares, pertence a pessoas cujos interesses estão ligados a um
complexo econômico, político e institucional‖ 396
.
No mesmo livro de Ana Luiza Martins e Tania Regina de Luca é feito um importante
resumo de episódios da cobertura da grande imprensa. Mostra a mídia sem qualquer tipo de
critério, com tendências claras deixando de lado a isenção da notícia.
As autoras contam, por exemplo, que o período ditatorial consolidou, ou melhor,
mostraram os interesses da mídia de maneira tão sólida que seus beneficiários não hesitaram
em se colocar abertamente contra a opinião pública. Um dos casos é Proconsult – a tentativa
394
SINGER, Suzana. Ombudsman da Folha de S. Paulo, edição do dia 6 de maio de 2012. A8 (Poder). 395
MARTINS; LUCA, 2008, p. 275.
191
de fraudar a vitória do candidato Leonel Brizola ao governo do Rio de Janeiro em benefício
do governista Moreira Francisco, em 1982; a cobertura enviesada das manifestações pela
diretas em 1984 e a escandalosa edição do debate entre os candidatos Lula e Collor, em favor
do segundo, em 1989 – episódios estes protagonizados pela Rede Globo. A grande imprensa
construiu o ―caçador de marajás‖ e ajudou a eleger Collor, contudo, segundo as autoras,
provocaram o divórcio entre o criador e a criatura, levando a primeira a capitanear – antes do
Congresso e da Justiça – a campanha pelo impeachment.
Passado o trauma do afastamento de Collor e o interregno do governo Itamar Franco
– visto pela mídia apenas pelos seus aspectos folclóricos -, a maioria dos grandes
meios de comunicação engajou-se de corpo e alma no apoio à candidatura de
Fernando Henrique Cardoso, pai da estabilização econômica trazido pelo Plano Real
e candidato da aliança de centro-direita PSDB-PFL. O programa de liberalização
econômica implantado por FHC tinha como carro-chefe as grandes privatizações de
empresas públicas – na realidade, um aprofundamento da agenda colocada por
Collor – e foi entusiasticamente apoiada pelos grandes veículos de imprensa. Poucas
vozes como o articulista Jânio de Freitas, na Folha de S. Paulo, ou Aloysio Biondi,
na série O Brasil Privatizado, ousaram desafinar o coro dos contentes e denunciar a
operação de desmonte do Estado brasileiro acarretado pelo processo. Em nome da
modernidade e da eficiência econômica, as privatizações garantiram a transferência
do controle de grande parte do patrimônio público – empresas como Embratel, Vale
do Rio Doce, Embraer – para as mãos privadas. Pouco se questionou sobre o fato de
esse patrimônio público ter sido vendido com financiamento do BNDES – inclusive
para empresas estrangeiras – ou em troca de ―moedas podres‖, títulos negociados
com deságio, principalmente títulos da dívida pública não honrados no vencimento
ou no prazo longo. Também não se enfatizou a violenta elevação de algumas tarifas,
como telefonia e eletricidade, e a explosão da dívida pública, que em oito anos
saltou de R$ 134 bilhões para R$ 700 bilhões. Caudalosas reportagens foram
escritas depois, mostrando os bons resultados operacionais das empresas
privatizadas, principalmente a Vale do Rio Doce e a Embraer. Mas as graves
irregularidades verificadas no processo de privatizações tiveram pouco destaque na
mídia e foram tratadas como pequenos desvios de rota de um projeto basicamente
adequado em seus fundamentos. Em suma, FHC contou com o beneplácito da
grande imprensa. Nem mesmo as mazelas políticas de seu governo tiveram
repercussão significativa. A Folha de S. Paulo destacou-se mais uma vez ao mostrar
a que a aprovação da emenda constitucional que permitiu a reeleição do presidente
da República em 1994 – o que, na época, vestia como uma luva para o ―príncipe dos
sociólogos‖ – havia sido comprada por parte dos deputados da base governista. Mas
o cerne da questão acabou se esvaziando, porque a polêmica restringiu-se mais à
forma como as declarações dos deputados tinham sido obtidas, como constatou o
repórter Fernando Rodrigues, o autor da denúncia397
.
As duas autoras citam como exemplo também a cobertura da imprensa sobre o
governo Lula. Manteve-se relativamente objetiva, na avaliação delas, até quase o fim do
primeiro mandato do ex-metalúrgico. O divisor de águas, apontam, foi o episódio do
mensalão, desencadeado em 2005, quando o presidente do PTB, Roberto Jefferson, denunciou
396
MARTINS; LUCA, 2008, p. 275. 397
Ibid., p. 276-277.
192
esquema montado pelo PT no Congresso que consistia em pagar deputados em troca de apoio
político.
Depois dessa entrevista, um setor dos meios de comunicação de massa ―avaliou que
havia espaço para declarar guerra político-midiática contra a gestão do presidente
Luiz Inácio Lula da Silva‖, analisa Renato Rovai, editor da revista Fórum e autor do
livro Midiático poder: o caso Venezuela e a guerrilha informativa. ―Uma parte desse
setor entendia que era possível encurtar o mandato de Lula ou no mínimo conseguir
garantiras de que o presidente não disputaria a reeleição. Isso foi verbalizado de
forma clara à revista Exame de 1º de julho de 2005 pelo ex-presidente Fernando
Henrique Cardoso: ‗Lula deveria anunciar que não é mais candidato à reeleição.
Deveria escolher projetos importantes e abrir negociação com todos‖, diz Rovai. Foi
então que a grande imprensa brasileira engajou-se numa das mais violentas cruzadas
de sua história: uma operação contra o governo Lula, cujo ápice foram as eleições de
2006, e que foi classificada pelo jornalista Luís Nassif, no livro A mídia nas eleições
de 2006, como ―suicídio editorial‖ da mídia. Para ele, a campanha contra Lula foi
conduzida ―com tal dose de agressividade, preconceito e arrogância, que a marcaria
indelevelmente dali por diante [...]. A mídia, seguramente, nunca mais será a mesma
depois dessa longa Noite de São Bartolomeu, em que todos os crimes de opinião
foram permitidos em nome do Santo Graal: a glória perdida em algum momento dos
anos 1990‖. Nesse episódio, diz Nassif, a grande impressa rompeu com uma
tradição que vinha da campanha das Diretas, de procurar atingir um público mais
amplo. No mesmo livro, o jornalista Bernardo Kucinski, então assessor especial da
Secretaria de Comunicação da Presidência da República do governo Lula, assinalava
que essa tendência nasceu com o engajamento do jornalismo brasileiro nas
denúncias de corrupção, que se iniciou no governo de Fernando Collor e ―foi
crescendo e ganhando musculatura no decorrer dos escândalos dos anões do
Orçamento, da Sudam e da Sudene, tornando-se gênero dominante no jornalismo
brasileiro nos últimos 20 anos‖. Kucinski afirma que revelações de Roberto
Jefferson revivaram as brasas adormecidas desse gênero398
.
Kucinski ressalta:
Mas, nas campanhas anteriores da mídia contra a corrupção, havia abusos do
jornalismo denuncista, mas o objetivo era elucidar as tramas. Já em 2006, o objetivo
não era elucidar. Era incriminar, mesmo que para isso fosse preciso falsear a
verdade dos fatos, suprimir informações, torcer manchetes e chamadas399
.
É nesse mesmo período em que a mídia brasileira se apega mais a reportagens de teor
sensacionalista e menos investigativas. Um dos exemplos, citados em livro da ―História da
Imprensa‖, é a reportagem da Folha de S. Paulo de 23 de agosto de 2003 intitulada: ―Inquérito
investiga se existe ligação entre o PCC e petistas‖. Segundo Ana Luiza Martins e Tania
Regina de Luca, a reportagem informava que a polícia de São Paulo abrira inquérito para
investigar se existia ligação entre a organização criminosa do Primeiro Comando da Capital e
militantes do PT.
398
MARTINS; LUCA, 2008, p. 278. 399
KUCINSKI, 1998, p. 279.
193
A investigação teria sido motivada por um grampo telefônico, ao qual o jornal teve
acesso, feito pela polícia na noite de 12 de maio daquele ano, quando se iniciou o
primeiro ataque do PCC a postos policiais da capital. Segundo o jornal, dois presos,
supostamente líderes da organização, orientavam os ataques contra agentes da lei e
políticos, ―exceto petistas‖. Nenhum questionamento foi feito sobre a posição dos
dois bandidos na hierarquia do PCC, nem sobre o fato de nenhum político ter sido
atacado posteriormente. O próprio ombudsman da Folha, Marcelo Beraba,
questionou o fato de a Folha não informar a fonte já que, em se tratando de
inquérito, era pública. Desse modo sem apuração mais acurada, passava-se um
discurso que criminalizava o PT sem apresentar provas400
.
Emir Sader faz uma análise importante sobre os caminhos tomados pela mídia
brasileira.
(...) uma ambiguidade cruza a grande imprensa: ela desempenha uma função
pública, mas é uma empresa privada [...]. Sua lucratividade faz com que ela perca
independência, conforme passa a buscar maior rentabilidade, participando de outros
ramos econômicos e, assim, passando a ter interesses materiais que limitam ainda
mais sua isenção. [...]. Por outro lado, os grandes jornais passam a fazer parte da
‗cultura da diversão‘, aquela que mais cresce no mundo, com o comprometimento
com um tipo de consumo, com um estilo de vida, com seus personagens e com os
valores que ela divulga401
.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os anos 90 foram marcados por dois momentos distintos: a expectativa do primeiro
governo eleito democraticamente, após a Ditadura Militar, e o início de escândalos políticos
que abalaram a gestão de Fernando Collor de Mello. Nessa esteira, dois importantes
personagens políticos da era Collor acabaram envolvidos em escândalos. Com apoio da
imprensa Alceni Guerra e Ibsen Pinheiro perderam suas funções políticas – que tanto
almejaram na vida pública.
Os dois levaram a ‗pecha‘ de agentes políticos corruptos, tentaram em vão se defender
de acusações que foram fortalecidas pela quantidade de reportagens publicadas pelos jornais
impressos da época, considerados os maiores da grande mídia.
Essa afinal era a forma de a imprensa mostrar à sociedade que estava do lado dela.
Para isso, ‗caçaram‘ os dois políticos como Judas. As cabeças dos dois foram colocadas à
prêmio, como numa bandeja. O momento e a conjuntura política da época favoreceram as
duas ―cassações‖ dos políticos. Collor, que foi eleito em 1989 com apoio da imprensa,
desafiou grandes interesses. Peitou desafetos e não soube contornar a crise política que se
400
MARTINS; LUCA, 2008, p. 281. 401
SADER, Emir. Os novos cães de guarda. Petrópolis: Vozes, 1998, p.127.
194
instalou no governo. Desta forma, seria fácil investigar e condenar seus auxiliares. À
imprensa faltou mais cuidado na apuração dos dois casos. Houve julgamento sumário. Desde
o começo das coberturas, os dois políticos – Alceni e Ibsen – já tinham sido considerados
culpados. Nada adiantaria as justificativas. O veredito já havia sido dado.
Dentro dessa conjuntura, podemos dizer que a política viveu e vive momentos de
instabilidade. É difícil o entendimento. Por isso, é imprescindível o jogo de cintura que faltou
tanto ao presidente da época Fernando Collor para derrubar, por exemplo, denúncias de
superfaturamento envolvendo seu ministro da Saúde, Alceni Guerra. No caso de Ibsen, é
outro importante político ―capturado‖ pela mídia. Considerado homem forte da época, cotado
inclusive para ser o próximo presidente, foi o maior prêmio das denúncias apontadas pela
imprensa. Foi vítima de um erro, assim como Alceni.
Durante análise do material estudado é possível confirmar a hipótese anteriormente
levantada: a imprensa comete abusos nas coberturas dos escândalos políticos porque sabe que
não vai ser punida ou sofrer sanções. O comportamento da mídia nesses dois episódios não foi
o adequado. Por isso, é preciso regulamentá-la. Hoje, não existe instrumento de
responsabilização por eventuais manipulações cometidas. Nos estudos de casos de Alceni
Guerra e Ibsen Pinheiro confirmou-se a insistente exposição deliberada de reportagens com
base em indícios apresentados como se fossem fatos consumados. Pode-se até considerar que
houve um massacre à figura pública. É preciso considerar também que a mídia é
mercantilista. Empresas de comunicação que cometem abusos ou praticam manipulação, nada
sofrem. Dificilmente precisam responder por seus atos (toma-se como exemplos os próprios
estudos sobre Alceni e Ibsen).
Jornais e revistas também praticam a distorção deliberada. O que a permite,
novamente, é a garantia de ―impunidade‖, isto é, a sensação compartilhada pelos
donos dos órgãos de imprensa e pelos jornalistas no comando das redações de que
não serão chamados a responder, perante o público, pelas mentiras que difundem.
Sem pluralidade e diversidade nas comunicações, dificilmente essas deficiências
serão combatidas. 402
O trabalho tentou mostrar também que a mídia precisa ter responsabilidade pelo que
―coloca no mercado‖. É fato: a mídia, sem usar de critérios éticos, destrói a vida pública. A
grande imprensa também não diz à sociedade quais os métodos utiliza para conseguir
informações. Falta a transparência que tanto a imprensa cobra dos políticos e dos órgãos
públicos. E, quando o assunto é tentar abordar o tema imprensa, a mídia torce o nariz.
402
BUCCI, 2000, p. 140.
195
A grande imprensa se vê e se intitula como guardiã da sociedade. Fala de interesse
público, mas é uma empresa privada. Nas duas coberturas, uma engrenagem específica foi
utilizada por meio de padrões de manipulação. A dimensão mercadológica, nesse contexto, é
fundamental, mas não é a única.
Conforme citado por autores estudados nesse trabalho, a manipulação existe e, pode
ser considerada a distorção deliberada da informação. ―Movidos por interesses escusos, há
donos de meios de comunicação e funcionários da cúpula das empresas que patrocinam
mentiras para atingir objetivos particulares. A manipulação agride o cidadão e deve ser
combatida, como é óbvio‖ 403
.
Verificamos nesse trabalho também que a grande imprensa faz denúncias, com base
no que chama liberdade de imprensa. No entanto, essa ―liberdade‖ é, na maioria das vezes, a
liberdade do dono do jornal. Não se pode esquecer que os meios de comunicação fazem parte
de grupos empresariais e tentam confundir ‗liberdade de imprensa‘ com ‗liberdade da
imprensa‘.
Desta forma, erros, como os cometidos contra Alceni Guerra e Ibsen, ficam gravados
na história, e reconhecidos por alguns órgãos de imprensa e jornalistas que atuaram na época.
O problema é que as vidas dos dois foram ‗dizimadas‘, mas quem praticou os abusos nada
sofreu. Nada teve de responder. Atropelando sem piedade a ética seguiram sem medo as
acusações contra os dois e somente mais de dez anos depois comprovadamente as injustiças
vieram à tona.
Após análise dos dois casos, é mais do que pertinente falar em ‗controle democrático‘
do poder da mídia. Uma das sugestões seria a criação de anteparos, no sentido, de tentar
promover uma responsabilização maior contra a manipulação da informação. No entanto,
quando esse assunto é colocado em pauta logo se pensa em ‗mordaça‘ ou atentado contra a
liberdade de imprensa.
No entanto, apesar da manipulação dos meios de comunicação, não se pode negar o
jornalismo. Assim também defende Bernardo Kucinski:
Também não sou dos que negam o jornalismo, devido ao grau de manipulação que
hoje sofre. Eu ainda acredito no jornalismo. Tento refletir sobre a nossa prática com
o objetivo de aprimorá-la em benefício da qualidade da nossa democracia e do
403
BUCCI, 2000, p. 176.
196
interesse público – e do próprio jornalismo, que continua a ser uma profissão
fascinante 404
.
Fora da grande imprensa, há jornais e revistas que tentam se contrapor a tudo o que é
de tradicional nesse rol da mídia. Trata-se da mídia independente ou, popularmente conhecida
por mídia alternativa, contra-hegemônica.
Esse jornalismo independente tenta se contrapor a mídia tradicional que, segundo
Perseu Abramo, no final de seu livro ―Padrões de Manipulação da Grande Imprensa‖, atua
semelhante a partidos políticos. Podemos confirmar essa constatação pelo modo em que os
personagens políticos analisados foram tratados. As notícias foram muito semelhantes pelo
poder de atuação dos órgãos de imprensa. Afinal pertencem aos mesmos grupos dominantes.
Perseu Abramo sustenta que os grandes e modernos órgãos de poder são semelhantes
aos partidos políticos e, que por essa razão, precisam recriar a realidade para exercer o poder,
e para tanto, precisam manipular as informações.
Assim como os partidos políticos têm suas teses e manifestos, os órgãos de
comunicação têm suas linhas editoriais.
Ainda conforme Abramo, os partidos têm regimentos internos, enquanto os órgãos de
comunicação têm seus manuais de redação e normas de trabalho.
Os partidos têm seu aparato material, bem como os órgãos de comunicação, mas
frequentemente mais diversificado e moderno que o da média dos partidos. A função do
jornalismo é levar a informação às pessoas, portanto é essencial que se tenham equipamentos
para uma maior eficácia e rapidez.
Ao recriar a realidade ao seu jeito e de acordo com seus interesses político-partidários
os órgãos de comunicação exercem todo o seu poder. Este fenômeno é mais notável na época
de pré-campanhas eleitorais, onde a mídia divulga os atos bons e esconde os ruins dos
políticos, os quais favorecem. Uma comparação inevitável, é que os órgãos de comunicação
apoiam quem pode lhe trazer benefícios, bem como os partidos políticos.
Ainda segundo Abramo, a manipulação ocorre de várias e múltiplas formas, como
nota-se no estudo desse trabalho. Consta-se que os padrões citados pelo autor foram aplicados
nas abordagens da grande imprensa para incriminar Alceni e Ibsen Pinheiro.
Padrão de ocultação: alguns fatos são considerados ―jornalísticos‖, outros não. Há
uma seleção do que apresentar ao público, o que ―é notícia‖. Para o jornalista, há o ―fato
404
KUCINSKI, 1998, p. 12.
197
jornalístico‖ e o ―fato não-jornalístico‖, logo ele deve apresentar o primeiro e ocultar o
segundo.
A descontextualização: isolados como particularidades de um fato, o dado, a
informação, a declaração perdem todo o seu significado original e real para permanecer no
limbo, sem significado aparente, ou receber outro significado, diferente e mesmo antagônico
ao significado real original. Outro padrão de manipulação é a fragmentação que ocorre
também na pauta, mas principalmente na apuração, na produção da matéria e na edição. Há
também o padrão de inversão, o frasismo, entre outros, todos estudados nesse trabalho.
O estudo apontou também que o leitor, muitas vezes, é induzido a ver o mundo não
como ele é, mas sim como a imprensa quer que ele seja.
Se a imprensa cobra e quer transparência dos órgãos públicos, deve mudar sua postura
e aceitar o debate. Afinal a imprensa - que reproduz o discurso de grupos - precisa se
responsabilizar por seus atos. Ou se submeter a um controle democrático que, seja, sobretudo,
garantido o direito da liberdade de imprensa. Mais uma coisa é certa: a imprensa tem lado. Ela
faz suas escolhas.
198
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