UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁDIEGO SCHNEIDER MARTINEZ
USURPAÇÃO E LEGITIMAÇÃO NA HISTÓRIA CONTRA OS PAGÃOS DEORÓSIO
CURITIBA2011
DIEGO SCHNEIDER MARTINEZ
USURPAÇÃO E LEGITIMAÇÃO NA HISTÓRIA CONTRA OS PAGÃOS DEORÓSIO
Monografia apresentada à disciplina de EestágioObrigatório em Pesquisa Histórica como requisito parcialà conclusão do curso de História, Setor de CiênciasHumanas, Letras e Artes, Universidade Federal do ParanáOrientador: Prof. Dr. Renan Frighetto
Curitiba2011
Ás três mulheres da minha vida:
Geltrudes, Carmem e Júlia.
Agradecimentos
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer ao Professor Dr. Renan Frighetto pela
orientação efetuada para o presente trabalho de monografia.
Não posso deixar de agradecer aos colegas do NEMED, em especial ao Paulo,
Otávio, Janira, Elaine, André Leme, Daniel e Rafaela por sempre me incentivarem a
seguir o caminho da História Antiga.
Além deles, merecem um agradecimento especial meus colegas de turma André
Leite, vulgo Gótico, e Camila. Sem eles não teria conseguido chegar ao fim do curso
de História.
Agradeço a Universidad de Oviedo pela oportunidade de estudar por um ano letivo
em suas instalações, e em especial a Professora Dra. Rosa Cid Lopez pelas lições e
principalmente por sua atenção sempre que solicitada.
No campo pessoal, agradeço a minha mãe, Geltrudes, que desde o início se
preocupou com a minha formação e sempre me apoiou da melhor forma possível
para que eu pudesse chegar até aqui.
Agradeço a minha esposa Carmem por todo seu amor e carinho, e também pela
paciência e pela ajuda enquanto escrevia o trabalho.
Agradeço ao meu irmão Lucas pela compreensão nos momentos que não pude
dispensar toda a atenção que ele necessitava e também pelos inúmeros momentos
de descontração.
Agradeço também aos meus sogros, Luís e Patrícia, por todo o apoio.
Taken the long way
Dark realms I went through
I arrived
My vision’s so clear
In anger and pain
I left deep wounds behind
But I arrived
Truth might be changed by victory
The Curse of Fëanor – Blind Guardian
RESUMO
O principal objetivo do presente trabalho é identificar os mecanismos de legitimaçãoutilizados pelo presbítero hispano Orósio, em sua obra intutulada História contra ospagãos, para justificar o reinado do imperador cristão Honório (395-423), filho eherdeiro de Teodósio I (379-395). Para tanto, nos utilizaremos da comparação entrea imagem destes personagens com a imagem de dois outros imperadoresconsiderados usurpadores – Máximo (383-388) para o caso de Teodósio eConstantino III (407-411) para o caso de Honório. Em tal análise não perderemos defoco os conceitos de usurpação apresentado por Maria Victória Escribano e deAntiguidade Tardia apresentado por Renan Frighetto. A estrutura do trabalho estápensada para facilitar a comparação entre tais personagens e também para verificara existência de uma noção de continuidade entre os reinados de Teodósio I eHonório como maneira de legitimar o poder do segundo. Ao fim podemos perceberque além de legitimar o poder do imperador reinante, Orósio demonstra que ascaracterísticas de um personagem podem ser transmitidas a seus filhos, justificandoassim a política dinástica de Teodósio e defendendo as bases de uma transmissãode poder hereditária.
Palavras-chave: Legitimação, Usurpação, Antiguidade Tardia
SUMÁRIO
Introdução...................................................................................................................8
1. Usurpadores...................................................................................................13
1.1. O que se entende por uma usurpação?..........................................................13
1.2. Quem são os usurpadores?............................................................................17
1.2.1. Trajetória de Máximo.......................................................................................17
1.2.2. Trajetória de Constantino III............................................................................21
1.3. Como Orósio vê os usurpadores?...................................................................25
1.3.1. Máximo na História Contra os Pagãos............................................................25
1.3.2. Constantino III na História Contra os Pagãos..................................................28
2. Imperadores Legítimos.................................................................................32
2.1. Quem são os Imperadores Legítimos?...........................................................32
2.1.1. O Reinado de Teodósio I.................................................................................33
2.1.2. O Reinado de Honório.....................................................................................36
2.2. Como Orósio vê os imperadores?...................................................................40
2.2.1. Teodósio I na História Contra os Pagãos........................................................40
2.2.2. Honório na História Contra os Pagãos............................................................45
Conclusões Parciais................................................................................................49
Bibliografia................................................................................................................55
8
INTRODUÇÃO
O! principal! objetivo! do! presente! trabalho! é! identificar! os! mecanismos! de
legitimação!utilizados!pelo!presbítero!hispano!Orósio,!em!sua!obra!intitulada!História
Contra! os! Pagãos! (Historiae! adversus! paganos),! para! justificar! o! reinado! do
imperador! cristão! Honório! (395"423),! filho! e! herdeiro! de! Teodósio! I! (379"395)! no
Império!Romano!do!Ocidente.!Antes!de! iniciarmos!a!análise!propriamente!dita,!vale
lembrar! que! o! governo! de! Honório! foi! um! período! de! grande! instabilidade! no
Ocidente,! sendo!marcado!por! inúmeras! crises,! tanto!no!enfrentamento!a! inimigos
externos,!como!os!povos!ditos!“bárbaros”!que!viviam!além!das!fronteiras!do!Império,
quanto!a!rebeliões!internas!e!tentativas!de!usurpação!do!poder.
A! rebelião!de!Gildón,!governador!da!África,! foi!a!primeira!destas!crises.!Em
401!Alarico,!rei!de!um!importante!grupo!de!godos,!tentou!invadir!pela!primeira!vez!a
Itália.! Em! 405,! outro! chefe! bárbaro! chamado! Radagaiso! também! atravessou! os
Alpes!e!saqueou!parte!da! Itália.!Em!meados!de!406,!se! iniciaram!na! Britania!uma
série! de! usurpações! com! Marco,! seguido! de! Graciano,! culminando! com! a! de
Constantino!III,!que! logrou!estender!seu!poder!à! Galia.!Nos!últimos!dias!do!ano!de
406,! o! limes!do!Reno! foi! rompido!por!grupos!de! suevos,! vândalos!e!alanos,!que
entraram! nos! territórios! imperiais.! Após! tantas! crises,! Estilicão,! homem! forte! do
império!do!ocidente,!cai!em!desgraça!e!é!executado!pelos!partidários!do!Imperador.
Depois!disso,!Alarico! invade!novamente!a!Itália!e!saqueia!Roma.!Enquanto! isso!na
Hispania!Geroncio!se!revolta!contra!Constantino!III,!nomeando!Máximo!imperador!e
abrindo! os! passos! pirenaicos! para! a! entrada! de! bárbaros! na! Península.! Ainda
podemos! citar! as! tentativas! de! usurpação! protagonizadas! por! Jovino! na! Gália! e
Heracliano!na!Africa.
Diante!deste!clima!de! incerteza,! fazia"se!necessária!a!construção! ideológica
de! uma! imagem! deste! imperador! como! capaz! de! superar! suas! dificuldades,
legitimando!assim!sua!manutenção!no!poder.!Neste!sentido,!o!presente!trabalho!se
utiliza!do!conceito!de!Antiguidade!Tardia!como! referencial! teórico.!Renan!Frighetto
propõe!um!conceito!de!Antiguidade!Tardia,!baseado!na!idéia!de!que!a!especificidade
deste!período!está!na! reformulação!e! readequação!dos!conceitos!clássicos!a!uma
nova! realidade.!Os!conceitos!políticos!e! institucionais!na!Antiguidade!Tardia!estão
constantemente!em! intensa!reformulação,!sendo!sempre!pautados!por!um!passado
legitimador!de!uma!autoridade!renovada,!considerada!superior!que!a!anterior.!Este
9
pesquisador! define! como! baliza! inicial! da!Antiguidade! Tardia! o! século! II,! quando
detecta!os!primeiros!sintomas!de! reformulação!e! readequação!com!a! transição!do
modelo! de! Principado! ao! Dominado,! a! divisão! de! poderes! entre! mais! de! um
imperador!e!a!ascensão!de!poderes!regionais#!e!como!baliza!final!o!século!IX!com!o
deslocamento!do!eixo!de!poder!do!Mediterrâneo!ao!norte!da!Europa.!O!espaço!por
excelência! da! Antiguidade! Tardia! é! o! Mar! Mediterrâneo,! porém! não! se! reduz
somente!a!ele,!já!que!a!influência!das!idéias!forjadas!neste!espaço!encontra!eco!em
lugares! mais! distantes! através! da! interação! cultural! –! como,! por! exemplo,! ao
verificarmos! a! cristianização! da! Hibernia! (atual! Irlanda),! que! nunca! esteve! baixo
domínio! romano.! Concluímos,! concordando! com! Frighetto! que:! “Reformulação,
Readequação! e! Interação:! três! conceitos! que! fazem! da! Antiguidade! tardia! um
período!histórico!único,!autônomo!e!dotado!de!identidade!própria”1.!Além!disso,!com
relação!ao!Poder!Imperial!na!Antiguidade!Tardia,!se!percebe!a!vitória!da!monarquia
no! campo! institucional,! com! a! ascensão! do! sistema! de!Dominado,! substituindo! o
Principado.! Gonzalo! Bravo! define! o! Dominado! como! um! regime! monárquico! com
tendências! absolutistas,! no! qual! o! imperador! decide! pessoalmente! o! destino! do
estado,!a!lei!emana!dele!sem!se!submeter!a!nenhum!tipo!de!controle!constitucional.
Caracteriza"se!como!um!poder!autocrático!e!autoritário2.!Frighetto!aponta!na!direção
da! divinização! da! imagem! do! imperador,! principalmente! a! partir! de! Dioclesiano,
como!uma!saída!encontrada!para!enfrentar!os!problemas!políticos!do!século! III.!O
imperador!passa,!neste!momento,! ser! considerado! como!eleito!direto!dos!deuses
(ou! mais! precisamente! do! Deus! cristão,! para! o! caso! específico! estudado! no
presente! trabalho).! Também! se! percebe! uma! tendência! ao! monoteísmo! (mesmo
quando! se! trata! de! paganismo),! como! imagem! da! centralização! do! poder.
Posteriormente,! quando! o! Império! se! torna! cristão,! estas! mesmas! idéias! são
reaplicadas! com! as! adaptações! adequadas! ao! cristianismo.!Apesar! de! toda! esta
construção! teórica!em! torno!da!centralização!do!poder,!se!percebe!que!na!prática
ocorre! a! fragmentação! deste.! ! Poderes! regionais! se! fortalecem,! ocorre! a
necessidade!de!partilha!de!poderes!entre!mais!de!um! Imperador,!usurpadores! se
elevam.!Esta!dicotomia!entre!a!centralização! teórica!e!a! fragmentação!prática!está
1 FRIGHETTO, R. A longa Antiguidade Tardia: problemas e possibilidades de um conceitohistoriográfico. ATAS DA VII SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS, Brasília, 03-06 de Novembro de2009. p. 101-121.2 BRAVO, G. Teodosio: Último Emperador de Roma, Primer Emperador Católico. Madrid: Esfera,2010. p. 30
10
presente!durante!toda!a!Antiguidade!Tardia3.!É!neste!sentido!que!analisamos!a!obra
de!Orósio.!É! interessante!notar!que!apesar!de!todas!estas!crises,!Honório!teve!um
reinado!bastante! longo,! reinando!durante!vinte!e!oito!anos,!superando!a!marca!de
inúmeros! imperadores! de! períodos! muito! mais! estáveis,! demonstrando! que! a
legitimação!deste!personagem!construída!por!seus!apoiadores!deve!ter!encontrado
êxito!considerável.
Antes!de! iniciarmos!nossa!análise,!acreditamos!ser! importante! levarmos!em
consideração! alguns! dados! biográficos! acerca! do! autor,! além! de! alguns! aspectos
gerais! de! sua! obra4.! Orósio! nasceu! seguramente! na! província! da! Galaecia,! no
noroeste!da!Península!Ibérica,!por!volta!do!ano!de!383.!Não!se!sabe!exatamente!em
que! localidade! desta! província! exatamente,! sendo! que! as! duas! hipóteses! mais
prováveis! são! a! cidade! de! Brigantia! (A! Coruña! "! Espanha)! ou! Bracara! Augusta
(Braga!–!Portugal),!mas!sem!dúvidas!era!um!membro!da!igreja!de!Bracara.
Podemos!afirmar!quanto!à!origem!de!Orósio!que!ele!pertencia!a!uma!família
cristã! de! elevado! status! social,! talvez! uma! família! de! altos! funcionários.!Ele! teria
gozado!de!uma!ampla!formação!na!cultura!tradicional!romana,!aprendida!na!escola,
além!de!uma!sólida! formação!cristã.!Agostinho!de!Hipona!caracteriza!seu!gênio!da
seguinte!maneira:! “despierto!de! ingenio,!pronto!de!palabra,!entusiasta!en!su!celo,
deseando! ser! un! instrumento! útil! em! la! casa! del! Señor”5.! Devemos! levar! em
consideração! também! que! ele! vivia! na! Hispania! no! momento! da! entrada! dos
vândalos!alanos!e!suevos!nos!territórios!da!Península!Ibérica.
Sabemos!que!Orósio!esteve!envolvido!durante! toda!sua!carreira!eclesiástica
no!combate!à!heresias!que!ameaçavam!a!unidade!do!cristianismo,!em!especial!o
priscilianismo!que!estava!presente!de!maneira!bastante!sólida!em!sua! terra!natal.
Por! volta! do! ano! de! 414! o! presbítero! hispano! viajou! à! Africa! para! consultar
Agostinho!de!Hipona!sobre!as!controvérsias! teológicas!de!sua! terra!e!pedir!ajuda
para!resolver! tais!problemas.!Orósio!é!acolhido!de!maneira!calorosa!pelo!Bispo!de
Hipona!e!após!algum!tempo!de!convivência,!é!enviado!à!Belém!em!uma!importante
3 FRIGHETTO, R. Algunas consideraciones sobre las construcciones teóricas de la centralización delpoder político en la Antigüedad Tardia: Cristianismo, tradición y poder imperial. In: CORTI, P.; WIDOW,J. L.; MORENO, R. (Orgs.). Historia: entre el pesimismo y la esperanza. 1 ed. Viña del Mar:Ediciones Altazor, 2007, v. 1, p. 297-308.4 MARTINEZ CAVERO, P. El pensamiento histórico y antropológico de Orósio. Antiguedad yCristianismo, Murcia, XIX, 2002.5 Agostinho, Ep. 166, 2. apud. MARTINEZ CAVERO, P. ibdem.
11
missão,! reatar! as! relações! de!Agostinho! e! Jerônimo! de!Belém! contra! um! inimigo
comum,! Pelágio.! Além! disso,! Jerônimo! poderia! ajudar! ao! presbítero! hispano! na
construção! de! sua! argumentação! contra! os! priscilianistas! especialmente! em
questões! relacionadas!à!origem!da!alma,!assunto!sobre!o!qual!Agostinho!preferia
não!pronunciar"se.
Após!esta!viagem,!no!ano!de!416,!Orósio!retornou!a!Hipona!e!provavelmente
neste!momento!iniciou!a!escrita!de!sua!principal!obra,!a!História!Contra!os!Pagãos.
Provavelmente!já!vinha!compilando!as!informações!que!se!tornariam!a!base!de!sua
História! desde! sua! primeira! estada! na! cidade! africana,! complementando! as
informações!durante!sua!viagem!ao!oriente,!a!pedido!de!Agostinho.
O! título! desta! obra,! História! Contra! os! Pagãos,! é! muito! significativo! para
entendermos! seus! objetivos.! Sua! escrita! está! relacionada! com! a! polêmica! entre
pagãos!e!cristãos!que!voltou!a!ser!bastante!forte!após!o!saque!de!Roma!por!Alarico
em!410.!Grosso!modo,!os!pagãos!culpavam!os!cristãos!pela!ruína!do!Império!graças
ao!abandono!dos!cultos! tradicionais!da!cidade!enquanto!os!cristãos!se!defendiam
afirmando!que!as!crises!pelas!quais!passavam!o! Império!eram!uma!punição!divina
contra! aqueles! que! ainda! não! aceitavam! a! “verdadeira”! religião,! ou! seja,! o
cristianismo.!Agostinho!estava!profundamente!engajado!nesta!polêmica,! lembrando
que! neste! momento! escrevia! sua! “Cidade! de! Deus”! (De! Civitate! Dei)! com! este
objetivo,! e! uma! obra! historiográfica! contra! os! pagãos! que! desse! apoio! a! sua
argumentação!poderia!ser!bastante!útil.
Neste!sentido,!o!principal!tema!tratado!por!Orósio!é!a!infelicidade!dos!tempos
antigos,!entendidos!pelo!presbítero!hispano!como!aqueles!que!se!passaram!antes
da!vinda!de!Cristo,!e!a! felicidade!dos! tempos!cristãos! (tempora!christiana)6!sendo
que!seu!principal!objetivo!é!demonstrar!aos!pagãos!que!os!tempos!cristãos!são!mais
felizes!que!os!tempos!antigos7.!A!partir!destas!informações,!agora!poderemos!iniciar
a! análise! propriamente! dita! do! texto! de! Orósio! buscando! as! relações! entre! o
contexto!de!sua!produção!e!as!idéias!apresentadas!pelo!presbítero!hispano.
6 MARTINEZ CAVERO, Aproximacion al concepto de tiempo en Orósio, Antigüedad y Cristianismo,Murcia, XII, 1995. p. 2567 MARTINEZ CAVERO, Signos y Prodigios. Continuidad y Inflexión en el piensamento de Orósio.Antiguiedad y Cristianismo, Murcia, XIV, 1997. p. 84
12
O!presente!trabalho!visa!analisar!a!forma!pela!qual!a!legitimidade!de!Honório
é!construída!por!Orósio!a!partir!de!dois!pontos!de!vista!principais,!sendo!a!primeira
uma!oposição!de!sua!imagem!com!relação!à!imagem!dos!usurpadores!e!o!segundo
uma! noção! de! continuidade! com! relação! ao! reinado! de! seu! pai! Teodósio! I! –
entendido! em! certo! sentido! como! o! imperador! cristão! ideal.! Para! tanto,! foram
escolhidos!dois!personagens!para!serem!analisados!no!primeiro!capítulo,!sendo!um
deles!um!usurpador!do! reinado!de!Teodósio! I!–!Máximo! (383"388)!–!e!o!outro!do
reinado! de! Honório! –! Constantino! III! (407"411).! Já! no! segundo! capítulo,
analisaremos!a!imagem!dos!próprios!imperadores!legítimos!na!obra!de!Orósio.
A!estrutura!de!ambos!os!capítulos!foi!propositalmente!construída!de!maneira
bastante! similar,! para! facilitar! a! comparação! entre! os! personagens.! O! primeiro
capítulo!se!inicia!com!uma!discussão!teórico"historiográfica!acerca!do!que!podemos
entender! como! usurpação! no! contexto! que! estamos! trabalhando.! Em! seguida,
elaboramos! uma! discussão! acerca! dos! usurpadores! estudados! a! partir! da
bibliografia,!baseando"se!em!estudos!críticos!recentes,!para!servir!como!parâmetro
antes!de!partirmos!para!o!estudo!do!texto!orosiano!propriamente!dito,!já!que!Orósio
valora,!de!maneira!notavelmente! idealizada,!as! trajetórias!destes!personagens!de
uma! forma!extremamente!negativa.!Após! isto,! finalmente!partimos!para!um!estudo
detalhado!da!imagem!destes!personagens!–!os!usurpadores!Máximo!e!Constantino
III!–!na!obra!do!historiador!cristão.
O! segundo! capítulo! não! conta! com! uma! discussão! teórica! em! seu! início,
partindo! direto! para! a! discussão! acerca! dos! imperadores! legítimos! a! partir! da
bibliografia.!Este!estudo!prévio!se! justifica!pela! imagem!extremamente!positiva!–!e
também!idealizada!–!que!Orósio!faz!de!Teodósio!I!e!Honório,!sendo!que!este!estudo
serve!também!de!parâmetro!para!a!análise!da!fonte!propriamente!dita.!Em!seguida
são!analisados!–!da!mesma!forma!que!ocorre!no!primeiro!capítulo!–!a! imagem!dos
imperadores!legítimos!na!História!Contra!os!Pagãos.
Com! os! objetivos! e! a! forma! de! trabalho! definidas,! agora! cabe! aos! leitores
julgar! se! a! presente! monografia! foi! capaz! de! atingi"los! e! acrescentar! algo! ao
conhecimento! histórico! deste! período! que! ainda! é! tão! pouco! estudado! no! meio
acadêmico! brasileiro.! Esperamos! que! este! trabalho,! junto! a! todos! os! outros! de
nossos!colegas!que!estudam!a!Antiguidade!e!o!Medievo,!sirva!de!alguma!maneira
13
para! incentivar!o!estudo!nestas!áreas!do!conhecimento!histórico!no!Brasil!–!ou!que
ao! menos! sirva! de! ponto! de! partida! para! futuros! trabalhos! que! atinjam! estes
objetivos.
1. Usurpadores
O!primeiro!capítulo!do!presente!trabalho!abordará!questões!relacionadas!com
os!usurpadores!que!atuaram!durante!os!governos!de!Teodósio!I!(379"395)! 8!e!de!seu
filho! e! sucessor! no! ocidente! Honório! (395"423)! e! a! forma! com! que! estes
personagens!são!apresentados!por!Orósio!em!sua!História!Contra!os!Pagãos.!Será
dividido!em! três!partes,!sendo!que!a!primeira!consistirá!em!uma!discussão!acerca
do! que! se! entende! por! “usurpação”,! a! segunda! parte! será! uma! exposição! da
situação! das! pesquisas! atuais! sobre! os! usurpadores! que! interessam! em! nosso
trabalho! –! principalmente! Máximo! (383"388)! e! Constantino! III! (407"411)! –! e
finalmente! na! terceira! parte! analisaremos! a! forma! como! Orósio! apresenta! estes
personagens!em!sua!obra.
1.1. O que se entende por uma usurpação?
Nada!mais!natural!para!um!trabalho!que!trate!deste!tema!começar!com!esta
pergunta.!O! termo!“usurpação”!é!derivado!do! latim! usurpare!que!significa! tomar!ou
usar! algo! sem! ter! o! direito! de! fazê"lo.! Neste! sentido,! podemos! entender! um
usurpador!como!um!personagem!que!toma!ou!usa!indevidamente!o!poder!imperial9.
Porém,!de!que!maneiras!alguém!poderia!apoderar"se!do!poder! imperial?!Quais!os
interesses! que! movem! estes! personagens! para! levar! a! cabo! uma! empresa! tão
arriscada?!Quais!os!grupos!que!apoiariam!estes!personagens?!Estas!são!algumas
das!perguntas!que!tentaremos!responder!a!seguir.
Maria! Victoria! Escribano! nos! lembra! que! há! duas! formas! de! usurpação
possíveis.!A!primeira,!chamada! ex!post,!que!se!caracteriza!por!uma!reação!contra!a
8 Todas as datas presentes neste trabalho se referem ao período depois de Cristo, salvo quandoindicado o contrário.9 ESCRIBANO, M. V. Usurpación y Religión en el s. IV d. de C.: Paganismo, Cristianismo yLegitimación Política. Antigüedad y Cristianismo, Murcia, VII, 1990. p. 250
14
memória!de!um!soberano!após!sua!morte,!sendo!ele!caracterizado!então!como!um
tirano! e! sofrendo! a! damnatio! memoriae,! sem! que! ninguém! tenha! efetivamente
questionado! sua! legitimidade! durante! o! período! de! seu! reinado.! Apesar! de
aparentemente!não!se! tratar!de!uma!usurpação,!este! julgamento!após!sua!morte!o
faz!ser!caracterizado!como!alguém!que! usou!o!poder!indevidamente,!atendendo!as
exigências!para!que!seja!caracterizado!como!um!usurpador.!Este!tipo!de!usurpação
foi! bastante! comum! nos! séculos! I! e! II.! Não! é! este! tipo! de! usurpador! que! nos
interessa! neste! trabalho.! O! segundo! tipo! de! usurpação,! bastante! comum! nos
séculos! III,! IV! e! V,! se! trata! de! uma! rebelião! aberta! contra! o! imperador! legítimo
durante!o!período!de!seu!governo,!com!um!personagem!assumindo!a!posição!de
imperador!ilegitimamente10.!Porém,!o!que!faz!um!imperador!ser!considerado!legítimo
e!outro!ilegítimo?
Desde!a!época!de!Augusto,!o!imperador!havia!se!tornado!o!único!detentor!do
imperium!proconsular,!ou!seja,!o!poder!de!mando!sobre!o!Exército!Romano11.!Além
disso,! o! consenso! do! Exército! é! uma! das! principais! fontes! de! legitimação! do
imperador.! Quando! um! personagem! por! iniciativa! própria! e! em! um! ato! de
desobediência!deliberada!contra!a!autoridade!do!imperador!legítimo!passa!a!mandar
em!uma!parte!do!Exército!utilizando"se!das! insígnias! imperiais,! rompendo!assim!o
consenso,!se!caracteriza!uma!usurpação12.!Sendo!então!a!nomeação!pelo!Exército
uma! das! principais! maneiras! de! tornar"se! imperador,! se! pode! diferenciar! uma
maneira!que!poderia!ser! interpretada!como! legítima!de!se!chegar!ao!poder!sendo
nomeado! espontaneamente! pelas! suas! tropas! –! como! no! caso! de! Constantino! I
nomeado!augusto!em!30713!–!e!uma!forma! ilegítima!de!atingir!a!púrpura,!quando!o
Exército!é!forçado!a!nomear!um!personagem!–!como!no!caso!de!Carausio14.
Apesar!disso,!a!grande!diferença!entre!um!imperador!legítimo!e!um!usurpador
–!sendo!essa!a!principal!fonte!de!legitimidade!de!qualquer!personagem!–!é!a!vitória
10 ESCRIBANO, M. V. Usurpación y Religión… p. 25211 IMPERATOR; IMPERIUM; PRINCIPATUS. In: LARA PEINADO, F. et al. Diccionário deInstituciones de la Antigüedad. Madrid: Cátedra, 2009.12 ESCRIBANO, M. V. Usurpación y defensa de las Hispanias: Dídimo y Veriniano (408). Gerión,Madrid, n. 18, 2000. p. 519-52013 O fato de a nomeação de Constantino I ter sido espontânea é discutível, porém decidimosconsiderá-la assim a título de exemplo, já que é a maneira que a ascensão deste personagem émostrada nas em grande parte das fontes do período, que tinham por objetivo legitimá-lo no exercíciodo poder. Ver FRANCHI, A. P.Poder Imperial e Legitimação no Século IV d.C.: O Caso do“Panegírico de Constantino” 98 f. Dissertação (Mestrado em História) – Setor de CiênciasHumanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2009.14 RODRÍGUEZ GERVÁZ, M. J., Propaganda Política y Opinión Pública en los PanegíricosLatinos del Bajo Imperio. Salamanca: Universidad de Salamanca, 1991. p. 33
15
sobre! seus! oponentes.! Ao! vencer,! um! imperador! se! torna! quase! que
automaticamente! legítimo!por!dois!motivos.!O!primeiro!é!o! fato!de!não!haver!uma
regulamentação!jurídica!clara!acerca!da!sucessão!imperial,!sendo!que!essas!regras
eram!sempre!impostas!pela!casa!imperial!em!exercício.!Sendo!assim,!considerando
a! tendência!a!uma!hereditariedade!que!percebemos!crescer!durante!a!Antiguidade
Tardia,! a! única! maneira! de! ascender! ao! poder! sem! ser! um! membro! da! família
imperial!é!através!de!uma! tentativa!de!usurpação.!O!segundo!ponto,!é!que!neste
período! se! desenvolve! também! a! idéia! de! que! o! imperador! governa! pela! graça
divina,! fato!que!é!possível!perceber!mesmo!antes!da!oficialização!do!cristianismo.
Desta! maneira,! o! imperador! legítimo! está! predestinado! à! vitória! enquanto! o
usurpador! estava! ao! fracasso15.! Novamente! podemos! utilizar! Constantino! I! como
exemplo.!Sua!ascensão!aconteceu!claramente!através!do!uso!da! força,!porém!ao
derrotar!todos!seus!oponentes,!torna"se!o!legítimo!imperador!e!todos!os!derrotados
acabam! representados! como! usurpadores,! indignos! de! sustentar! as! obrigações
imperiais16.
Com!relação!aos!interesses17!relacionados!às!tentativas!de!usurpação,!Gilvan
Ventura!da!Silva!expõe!dois! tipos!principais!de! interesse,!sendo!eles!classificados
em!subjacentes!e!manifestos.!Os! interesses!subjacentes,!ou!seja,! implícitos,!estão
relacionados!ao!fato!de!sempre!quando!existe!uma!relação!de!autoridade,!algumas
pessoas!a!detém!e!outras!não,!e!a!partir!desta!distinção!se!podem!gerar!conflitos!se
o!grupo!desprovido!da!autoridade!resolver!mudar!as!regras!do!jogo!e!tiver!condições
para!concretizar!tal!ato.!Neste!sentido,!concordamos!com!Silva!ao!afirmar!que!todas
as! usurpações! têm! um! objetivo! inicial! de! reverter! um! determinado! padrão! de
distribuição!da!autoridade!dentro!do!aparelho!estatal.
Pensando! nos! interesses! manifestos! das! usurpações,! Silva! subdivide! os
usurpadores! em! três! categorias! distintas:! na! primeira! se! encaixam! aqueles
personagens!que!vêem!sua!posição!tornar"se! insustentável!–!por!serem!vítimas!de
algum!tipo!de!acusação,!por!exemplo!–!e!utilizam!a!usurpação!como!uma!tentativa
15 Com relação às discussões de todo parágrafo, ver: ESCRIBANO, M. V. Usurpación y Religión... p.252 – SILVA, G. V. Política e Propaganda no Baixo Império: Um aspecto da reação às usurpações.História Revista, Goiânia, v. 1, 1996, p. 73 e FRIGHETTO, R. Algunas consideraciones…16 Tal como o exemplo de Majencio exposto por RODRÍGUEZ GERVÁZ, Propaganda..., p. 4417 Sobre essa questão dos interesses relacionados às usurpações, neste e nos próximos parágrafos,seguimos quase em totalidade a interpretação de SILVA, G. V. Interesses Subjacentes e InteressesManifestos no Contexto das Usurpações Romanas, Phoînix, Rio de janeiro, n. 2, 1996.
16
desesperada!para!proteger!a!própria!vida18#!na!segunda!categoria!entram!aqueles
que!não!se!sentem!necessariamente!ameaçados,!porém!consideram"se!de!alguma
maneira! desprestigiados! ou! então! desprovidos! de! algo! que! acreditam! pertencer"
lhes#! já!na! terceira!categoria!encontramos!personagens!que!para! impedir!o!avanço
de!um!usurpador,!acabam!tornando"se!usurpadores!também.!Acreditamos!que!estas
categorias! são! bastante! interessantes! para! se! iniciar! uma! discussão! acerca! das
usurpações,!porém!a!realidade!que!cerca!os!usurpadores!é!mais!complexa!do!que
elas! apresentam,! podendo! um! personagem! considerado! usurpador! acabar! por
encaixar"se!em!mais!de!uma!delas!ou!até!mesmo!em!nenhuma!delas.
Ainda! seguindo! os! apontamentos! de! Silva,! é! válido! recordarmos! que! um
personagem! nunca! faz! uma! usurpação! sozinho.! É! necessário! para! que! possa
efetivamente!alçar"se!a!uma!posição!de!destaque!o!apoio!de!ao!menos!uma!parcela
da! sociedade.! Esta! perspectiva! visa! diminuir! o! caráter! individualista! em! que! as
usurpações! costumam! ser! colocadas.! Neste! sentido,! se! pode! dizer! que! uma
usurpação! está! sempre! relacionada! com! uma! insatisfação! de! algum! setor! da
sociedade!com!a!política!do!imperador!em!exercício,!e!na!impossibilidade!de!diálogo
com!o!poder!central!acaba!encontrando!num!personagem!que!se! torna!então!um
“catalisador!das!aspirações!sociais”,!usurpando!o!poder!e!sendo!visto!por!este!setor
como!o!único!capaz!de!solucionar!os!problemas!que!os!prejudicam.!Porém!também
não!podemos!considerar!o!usurpador!como!um!ser!passivo!que!age!somente!em
nome! destes! grupos,! já! que! assim! que! ele! percebe! a! situação! favorável! a! sua
tentativa! de! ascensão! tenta! fomentá"la! ainda! mais! através! da! propaganda! ou! da
distribuição!de!dinheiro!entre!seus!soldados!e/ou!da!plebe!urbana,!garantido!assim
uma!base!de!apoio!mais!solidificada.
Durante!a!Antiguidade!Tardia!percebemos!uma!construção! teórica!em! torno
da! centralização! do! poder.! O! Principado! é! substituído! pelo! Dominato,! regime
definido! por! Gonzalo! Bravo! como! um! regime! monárquico! com! tendências
absolutistas,!no!qual!o! imperador!decide!pessoalmente!o!destino!do!estado,!a! lei
emana!dele!sem!se!submeter!a!nenhum!tipo!de!controle!constitucional.!Caracteriza"
se!como!um!poder!autocrático!e!autoritário19.!Percebemos! também!uma! tendência
ao!monoteísmo! como! imagem!desta! centralização,! sendo!o! imperador! visto! como
18 Com relação a esta questão, quando a própria repressão levada a cabo pelo estado romano acabagerando este tipo de usurpação, ver SILVA, G. V., A Domus Imperial e o Fenômeno das Usurpaçõesno IV Século, Phoînix, Rio de Janeiro, n.1, 1995.19 BRAVO, G. Teodósio… p. 30
17
um!verdadeiro! representante!de!Deus!na!Terra.!Porém,!se!percebe!que!na!prática
ocorre! a! regionalização! deste20.! Podemos! entender! a! prática! das! usurpações
também!como!um! reflexo!desta! regionalização,!considerando!que!muitas!vezes!os
usurpadores! representaram! os! interesses! de! uma! elite! regional! que! não! era
atendida! pelo! governo! central.!Apesar! disso,! os! usurpadores! não! contestavam! a
legitimidade! do! sistema! em! si,! mas! sim! a! legitimidade! do! governo! daquele
personagem!específico! contra!o!qual! se! revoltam.!Não!existe! com!as!usurpações
nenhuma!proposta!de!redefinição!do!sistema!imperial.21
Vale! ainda! recordar! que! todas! as! informações! que! temos! sobre! os
usurpadores!é,!via!de! regra,!deturpada.!Além!de!sofrer!a! damnatio!memoriae,!que
consistia!na!destruição!de! todas!as!referências!públicas!do!regime,!existe! todo!um
esforço!por!parte!da!propaganda! imperial!do! imperador!vencedor!na!construção!de
uma! imagem! negativa! dos! personagens! considerados! usurpadores! para! a
posteridade,! para! que! a! partir! do! exemplo! de! seus! defeitos! e! de! seu! fracasso,
ninguém!tentasse!seguir!seus!passos.!A!representação!do!usurpador!acaba!servindo
a!uma!função!de!antagonista!contra!o!imperador!considerado!legítimo,!e!sua!mácula
permite!a!otimização!deste!imperador!vencedor22.
1.2. Quem são os usurpadores?
Agora!nos!ocuparemos!da!construção!de!uma!trajetória!de!cada!um!dos!dois
usurpadores!escolhidos!para! serem!analisados!no!presente! trabalho.!Acreditamos
que!a!partir!da!interpretação!de!diversos!autores!modernos!podemos!chegar!a!uma
visão! geral! dos! feitos! destes! personagens! que! servirá! de! base! para! a! análise
posterior!da! imagem!destes!personagens!na!obra!específica!de!Orósio.!A!escolha
destes! dois! personagens,! Maximo! e! Constantino! III,! não! foi! aleatória.! O! primeiro
fator! na! escolha! de! ambos! foi! o! fato! de! o! primeiro! ser! um! usurpador! que
antagonizou!com!Teodósio!I!e!do!segundo!ter!efetuado!sua!usurpação!no!reinado!de
Honório,!dois!imperadores!legítimos!que!pretendemos!também!analisar.!Além!disso,
ambos! tiveram! trajetórias!bastante!parecidas,! iniciando!suas! rebeliões!na! Britania,
conseguindo!reconhecimento!dos! imperadores! legítimos!depois!de!algumas!vitórias
na!Galia,!sendo!eliminados!por!seus!colegas!assim!que!surge!a!oportunidade,!sendo
20 FRIGHETTO, R. Algunas consideraciones…21 SILVA, G.V., Interesses... p. 9922 Ver SILVA, Política e Propaganda... e ESCRIBANO, M.V. Usurpacíon y Religión...
18
que! tais! semelhanças! podem! ser! bastante! úteis! no! momento! da! comparação! de
seus!feitos.
1.2.1. Trajetória de Maximo23
! Pouco! se! sabe! acerca! de! Maximo! antes! de! sua! rebelião! na! Britannia.
Sabemos!que!era!um!militar!de!origem!hispano,!e!havia!servido!junto!com!Teodósio!I
nas! tropas! de! Flavio! Teodósio24,! e! que! tinha! vínculos! com! a! família! teodosiana.
Quanto! à! natureza! destes! vínculos! não! há! um! consenso! total! na! historiografia.
Gonzalo! Bravo! aponta! na! direção! de! que! ele! poderia! ser! parente! da! família! de
Teodósio25,!enquanto!Maria!Victoria!Escribano!e!Luis!García!Moreno!afirmam!que
ele! seria! provavelmente! um! cliente! de! Flavio! Teodósio26.! Parece"nos! mais
interessante!a!segunda!proposição,! já!que!ambos!afirmam!que!Maximo!não! tinha
uma!origem!aristocrática!–!como!seria!no!caso!de!pertencer!diretamente!à!família!de
Teodósio.
Os!motivos!que! levaram!a!sua!rebelião!também!são!passíveis!de!discussão.
Sabe"se!que!no!momento!de!sua!ascensão!ocupava!o!cargo!de! comes!Britaniarum,
ou! seja,! comandava! as! tropas! comitatenses! da! Britania.!Escribano! afirma! que! as
tropas!estavam!previamente!descontentes!com!o! imperador! legítimo!–!vale! lembrar
que!esta!usurpação!não!foi!iniciada!contra!Teodósio!I!diretamente,!mas!sim!contra!o
representante!da!dinastia!valentiniana!no!ocidente,!Graciano!–!graças!ao!tratamento
diferenciado!dispensado!as! tropas!de!origem!bárbara!em!detrimento!dos!soldados
de!origem!cidadã!e!Máximo!se!aproveitou!desta!situação!já!que,!além!disso,!estaria
descontente!com!a!ascensão!de!seu!antigo!colega!a!dignidade! imperial,!enquanto
ele!ocupava!um!cargo!de!segundo!plano.!Já!John!Matthews!admite!que!a!principal
causa!da!usurpação!seja!a!tentativa!de!Maximo!em!se!restaurar!um!vigoroso!regime
militar!como!aquele!que!existia!nos!tempos!de!Valentiniano!I,!quando!ele!e!Teodósio
I! iniciaram! suas! carreiras,!em!detrimento!do! regime!de!um! “jovem!diletante”!e!de
uma!criança.!Nesta! linha,!o!usurpador!acreditaria! também!que!Teodósio,!como!um
23 Este tópico está baseado principalmente na confrontação das informações contidas emESCRIBANO, M. V. Usurpación y Religión... e MATTHEWS, J. Western Aristocracies and ImperialCourt A.D. 364-425. Oxford: Clarendon Press, 1975. Quando a referência provier de outrabibliografia, marcaremos.24 Sempre que utilizarmos “Flavio Teodósio”, estaremos nos remetendo ao pai do imperador TeodósioI.25 BRAVO, G. Teodósio... 146.26 GARCIA MORENO, L. A. El Bajo Imperio Romano. Madrid: Síntesis, 2005. p. 112 – ESCRIBANO,M. V. Usurpación y religión... p. 257.
19
experiente!general!na!categoria!de! senior!Augustus!e!graças!a!seus!antigos!laços!de
amizade! e! suas! origens! comuns,! aceitaria! a! sua! ascensão! ao! augustado27.
Acreditamos! que! ambas! as! afirmações! são! plausíveis! e,! até! certo! ponto,
complementárias,!sendo!assim,!assumiremos!as!duas.
Graciano! recebeu!as!noticias!da! rebelião!de!Maximo!e!de! sua! incursão!na
Galia!por!volta!do!início!do!verão!de!383.!Neste!momento!o!Imperador!se!preparava
para!uma!campanha!na!Raetia!contra!os!Alamanos,!porém!deixou!esta!campanha!e
se! voltou! para! a! Galia! para! enfrentar! seu! concorrente.! Foi! a! deserção! de! quase
todas!as!tropas!ocidentais!do!império,!principalmente!a!cavalaria!moura!–!que!entre
seus!comandantes! já!devia!contar!com!antigos!companheiros!de!Maximo!da!época
das! campanhas! africanas! de! Flavio! Teodósio! –! e! o! próprio! magister! peditum
(comandante!geral!da! infantaria)!Merobaudes,!que!decidiram!a!vitória!do!usurpador
perto!de!Paris,!antes!mesmo!de!se! iniciar!um!confronto!aberto.!O!Imperador!tentou
retirar"se!em!busca!de!seus!apoios!do!outro! lado!dos!Alpes,!porém!foi!capturado!e
executado!em!Lugdunum!(Lyon).
O!próximo!passo!de!Maximo! foi!buscar!o! reconhecimento!dos! imperadores
legítimos,!enviando!embaixadas!para! Mediolanum!(Milão)!–!onde!estava!instalada!a
corte! do! garoto! Valentiniano! II,! que! tinha! apenas! doze! anos! –! e! também! para
Constantinopla!–!onde!residia!a!corte!de!Teodósio!I.!A!oferta!que!o!usurpador!fizera
a! corte!milanesa! consistia! em! oferecer! paz! em! termos! de! submissão,! incluindo! o
traslado!do!jovem!imperador!para!sua!própria!corte!em!Tréveris.!Valentiniano!II!não
estava!em!uma!posição!muito!confortável!para!recusar!a!oferta,!porém,!graças!a!um
grande!grupo!de!apoios!na!Itália,!em!especial!personagens!que!haviam!participado
ativamente! do! governo! de! seu! pai! Valentiniano! I! –! e! também! da! intervenção! de
Ambrósio,! bispo! de! Mediolanum! –! foi! possível! protelar! a! decisão! do! traslado! do
traslado!do!Imperador!até!um!ponto!que!foi!possível!a!fortificação!dos!passos!pelos
Alpes,! garantindo! assim! a! segurança,! ao! menos! temporária,! de! se! território! na
Península!Itálica.
As! exigências! da! embaixada! enviada! à! Constantinopla! foram! de! natureza
bastante!distinta.!Maximo,!sem!nenhum!tipo!de!desculpas!com!relação!ao!que!havia
acontecido! com! Graciano,! propunha! uma! aliança! e! exigia! o! reconhecimento! da
igualdade! de! seus! títulos! e! insígnias! imperiais! com!Teodósio,! ou! então! a! guerra.
Porém!Maximo!subestimou!a! lealdade!do! imperador!do!oriente!para!com!a!dinastia
27 MATTHEWS, J. Western Aristocracies... 175-176
20
que!o! fez!atingir!a!dignidade! imperial.!Teodósio!aceitou!os! termos!do!usurpador!e
reconheceu! seu! título! imperial! muito! mais! por! conta! dos! problemas! que! vivia! no
oriente,!como!a!presença!dos!godos!no!interior!de!suas!províncias,!as!negociações
com! Sapor! III! com! relação! à! partilha! da!Armênia! e! a! invasão! dos! gretungios! na
Trácia,! que! impossibilitavam! o! engajamento! dos! exércitos! do! oriente! em! uma
campanha! no! ocidente.! Percebemos! claramente! que! Maximo! havia! se! enganado
quando!imaginou!que!Teodósio!aceitaria!de!bom!grado!sua!ascensão.
Em!384,!os!três!imperadores!assinaram!um!pacto!que!deixa!bastante!clara!a
posição! de! Teodósio! com! relação! à! usurpação! de! Máximo.! Neste! tratado,! a
igualdade! entre! todos! eles! é! reconhecida,! e! o! imperador! do! oriente! exige! que! o
usurpador! deixe! de! lado! suas! pretensões! exclusivistas! sobre! o! os! territórios
ocidentais,!regulamentando!a!extensão!de!seu!poder!somente!sobre!a!prefeitura!da
Galia! (que! compreendia! as! regiões! da! Galia,! Hispania! e! Britania),! enquanto
Valentiniano!II!teria!autonomia!para!governar!a!prefeitura!da!Itália!(que!compreendia
a!Península!Itálica!e!o!Norte!da!África).!Percebemos!assim!que!Teodósio!se!mantém
fiel!a!dinastia!valentiniana!e!só!não!age!de!maneira!mais!enérgica!com!relação!ao
usurpador!por!conta!de!seus!problemas!no!oriente.
Em! 385,! Máximo! leva! a! cabo! uma! de! suas! ações! mais! ambíguas:! o
julgamento!e!a!execução!de!Prisciliano!e!seus!principais!seguidores,!acusados!de
malefício28.! Este! feito! foi! interpretado! de! diversas! maneiras! pelos! historiadores
modernos!que!o!estudaram.!É!certo!que! tal!ação!está! relacionada!ao!processo!de
tentativa!de! legitimação!deste!personagem,!baseada!na! ideia!de!que!ele!seria!um
verdadeiro! imperador! católico! por! defender! a! ortodoxia! contra! as! heresias,
considerando!que!os! imperadores!valentinianos!haviam!assumido!uma!postura!de
defesa! do! arianismo.! Além! disso,! alguns! historiadores! atuais! defendem! a
interpretação!de!que!Máximo!pretendia!com! isso!uma!aproximação!com!Teodósio,
por! serem! ambos! defensores! da! ortodoxia! e! também! das! principais! autoridades
eclesiásticas,!como!por!exemplo,!Ambrósio.!Porém,!em!ambos!os!sentidos!podemos
dizer! que! esta! política! foi! falha,! já! que! não! resultou! numa! aproximação! com! o
Imperador! do! oriente! e! muito! menos! com! as! autoridades! eclesiásticas,! que! nos
28 Como malefício se entende praticas de magia e bruxaria, consideradas crime pela legislaçãoromana, e que estavam diretamente relacionados a alguns tipos de maniqueísmo. Esta acusaçãopode parecer estranha para um caso de heresia, porém serve de justificativa para a intervenção dasautoridades laicas no caso, já que se não fosse por esta questão, o caso deveria ser julgado apenaspelas autoridades eclesiásticas. Sobre este assunto, ver FERNANDEZ CONDE, F. J. Prisciliano y elPriscilianismo. Historiografía y Realidad. Gijón: Trea, 2007. p. 45.
21
casos!mais!emblemáticos!de!Ambrósio!e!Martin!de!Tours,!acabaram!por!acusar!o
usurpador! de! intervir! indevidamente! em! assuntos! que! não! eram! de! sua! alçada! e
pelo!fato!de!não!ter!tido!clemência,!que!era!considerada!uma!das!principais!virtudes
de!um!imperador!cristão,!alguma!com!os!acusados.!
A!paz!entre!os!três! imperadores!sem!manteve,!apesar!de!não!muito!estável,
por!algum! tempo.!Matthews!não! interpreta!este!período!como!um!momento!de!paz
efetiva,!mas!como!uma!“guerra!fria”!na!qual!cada!uma!das!partes!apenas!esperava
o! momento! certo! para! destruir! seus! concorrentes.! No! verão! de! 387,! Máximo
entendeu! que! havia! chegado! o! momento! de! eliminar! seu! concorrente! de
Mediolanum!e!atravessou!os!Alpes,! forçando!a! fuga!da!corte!de!Valentiniano! II!em
direção!ao!oriente.!Teodósio!sela!então!sua!aliança!com!o! jovem! imperador!depois
de!casar"se!com!sua! irmã!Galla29,!e!depois!de! resolver!seus!principais!problemas
que! o! prendiam! no! oriente,! inicia! sua! campanha! para! dar! fim! a! usurpação! de
Máximo.!A!principal!batalha!desta!campanha!ocorreu!perto!de!Aquiléia!e!o!imperador
do! oriente! sagrou"se! vitorioso,! podendo! celebrar! sua! vitória! com! um! triunfo! em
Roma!no!ano!de!389,!colocando!fim!à!usurpação!e!à!vida!de!Máximo.30
1.2.2. Trajetória de Constantino III31
Constantino! III! foi! o! terceiro! personagem! de! uma! seqüência! de! usurpações! a
assumir! a! púrpura! imperial! na! Britania! entre! os! anos! de! 406! e! 407.! O! primeiro
personagem! dessa! seqüência! foi! Marco,! sobre! o! qual! não! se! encontram! muitas
informações! relevantes! nas! fontes! que! temos! a! nossa! disposição.! Javier! Sanz
Huesma!defende!que!tal!personagem!detinha!o!cargo!de! comes!Britaniarum!quando
ocorreu!a!sublevação!das!tropas!presentes!na!ilha,!em!meados!de!406.
A!discussão!acerca!dos!motivos!de! tal! sublevação!é!bastante! interessante.
Marisa!Loring,!Dionisio!Pérez!e!Pablo!Fuentes!afirmam!que!as! revoltas!das! tropas
estacionadas! na! Britania! haviam! sido! bastante! comuns! durante! os! cem! anos
anteriores!a!essa!revolta,!e!se!tratavam!de!um!instrumento!dos!grupos!dirigentes!da
29 Teodósio fora casado anteriormente com Aelia Flaccila, que faleceu em 386. São filhos desteprimeiro casamento os futuros imperadores Honório e Arcádio, e do segundo casamento nasceráGalla Placídia, que terá bastante importância política posteriormente.30 Bravo, Teodósio... 147-148.31 A trajetória de Constantino III está baseada nos seguintes trabalhos: ARCE, J. Ultimo Siglo de laHispania Romana (284-409). Madrid: Alianza, 1982. ; ARCE, J. Barbaros y Romanos em Hispania(409-507 A.D.). Madrid: Marcial Pons, 2007. ; SANZ HUESMA, F. J. Usurpaciones em Britania (406-407): hipótesis sobre sus causas y protagonistas. Gerión, Madrid, 23, n.1, 2005. Quando se tratar deuma interpretação distinta da oferecida por estes autores, estará assinalado.
22
província! para! conseguir! maiores! cotas! na! distribuição! de! cargos! e! benefícios
imperiais32.!Javier!Arce!nos!informa!que!esta!sucessão!de!usurpações!é!resultado!de
um!descontentamento!da!população!da!Britannia!com! relação!ao!governo!central,
por!não! ter!suficiente!apoio!e!atenção!as!suas!necessidades.!Porém!a!motivação
principal,!segundo!Sanz!Huesma,!foi!a!falta!de!um!pagamento!regular!aos!soldados
da! Britania,! sendo! isso! resultado! dos! problemas! vividos! na!Península! Itálica! pelo
governo! imperial.! As! tropas! esperavam! uma! medida! enérgica! de! Marco! para
resolver!tal!questão,!e!ao!não!tomá"la,!acabou!sendo!assassinado!e!substituído!por
Graciano,!o!segundo!personagem!da!seqüência!de!usurpações,!por!volta!de!outubro
de!406.
Graciano!era!ao!que! tudo! indica!um!civil.!Não!aparenta!ser!a!melhor!opção
para! um! grupo! de! soldados! esperando! ações! militares! rápidas! e! decisivas
nomearem!um!civil!para!o!comando! imperial.!Sanz!Huesma!afirma!que!na!verdade
este! personagem! se! tratava! apenas! de! um! imperador! fantoche,! de! origem! local,
sendo! controlado! por! um! general! que! estaria! a! frente! das! operações! militares! e
assumiria!o!poder!de!fato!pelas!sobras.!Este!general!seria!o!próprio!Constantino!III.
Graciano! reinou! por! apenas! quatro! meses,! e! em! fevereiro! de! 407,! quando! se
mostrou! inadequado!aos!planos!de! seu!general!e! foi!eliminado.!Chegamos!então
finalmente!ao!personagem!que!realmente!nos!interessa:!Constantino!III.
Orósio!afirma!que!Constantino!III!era!um!“hombre!de!rango!militar!muy!bajo”33,
e! alguns! pesquisadores! modernos! parecem! ter! levado! tal! afirmação! de! forma
bastante!acrítica34.!Sanz!Huesma!demonstra,!através!das!ações!deste!personagem,
que!ele!não!poderia!ser!encaixado!nesta!categoria.!Seu!desembarque! imediato!no
continente,!o!envio!dos!generais!Justiniano!e!Nebiogastes!para!tomarem!o!controle
dos! exércitos! da! Galia,! sua! política! dinástica! e! a! emulação! consciente! de
Constantino!I,!o!Grande,!demonstram!que! já!existia!um!planejamento!anterior,!com
uma! complexa! geoestratégia! que! nada! tem! de! improvisada,! além! de! uma! visão
política! de! longo! alcance.! Constantino! III! certamente! não! se! limitou! a! seguir! as
ordens! de! seus! soldados,! como! algumas! vezes! tentava! fazer! aparentar,! mas
32 LORING, M. I.; PÉREZ, D.; FUENTES, P. La Hispania Tardorromana y Visigoda. Siglos V-VIII.Madrid: Síntesis, 2008., p. 6533 Orosio, VII, 40, 4. Voltaremos a esta questão na terceira parte deste capítulo, quando discutirmos aforma qual Orósio apresenta Constantino III.34 ARCE, Barbaros y Romanos… p. 34 ; BLÁZQUEZ, J. M. Evolución Político Militar en el siglo V. In:ALVAR EZQUERRA, J. (org.) Entre Fenícios y Visigodos. La Historia Antigua de la PenínsulaIbérica. Madrid: Esfera, 2008. p. 576 ; RICHARDSON, J. Hispania y los Romanos. Barcelona:Crítica, 1998. p. 262
23
certamente! tinha! um! projeto! global! que! incluía! tomar! todo! o! ocidente! baixo! seu
poder.
A!ação!de!Constantino!na! Galia!foi!rápida!e!decisiva.!Foi!aceito!pelo!exército
desta! região! sem! nenhuma! resistência! aparente! e! conseguiu,! na! medida! do
possível,!pacificar!os!diversos!grupos! considerados!bárbaros,! como!os!alanos,!os
vândalos! e! os! suevos,! que! haviam! adentrado! a! porção! ocidental! do! Império! e
saqueando! seus! território! desde! o! rompimento! do! limes! renano! no!Natal! de! 406.
Estilicão,! magister! militum! e! regente! do! Império! do! ocidente,! enviou! um! de! seus
mais!destacados!generais,!o!godo!Saro,!para!reprimir!a!usurpação!e!deter!o!avanço
de! Constantino! III.! De! fato! Saro! logrou! vencer! os! dois! principais! generais! do
usurpador,! Justino! e! Nebiogastes,! obrigando! Constantino! III! a! refugiar"se! em
Valentia.!Porém!a!nomeação!de!um!novo!par!de!generais!–!Geroncio!e!Edobicus!–
fez!que!Saro!desistisse!de!sua!campanha!e!voltasse!para! Itália.!Após!esta!vitória,
Constantino! III!se! instalou!em!Arlés!e! iniciou!os!preparativos!para!o!próximo!passo
para!a!conquista!da!porção!ocidental!do!Império:!a!conquista!da!Hispania.
Javier! Arce! afirma! que! a! conquista! da! Hispania! era! essencial! para
Constantino! III,! primeiro! apontando! como! fatores! questões! de! política! e! de
propaganda,! já!que!era!desta!região!que!provinha!a!dinastia!reinante,! iniciada!com
Teodósio! I!e! representada!pelo! imperador! legítimo!Honório,!além!de!ser!essencial
em!sua!tentativa!de!emulação!do!antigo! imperium!galliarum,!de!Constantino!I!e!até
mesmo! da! usurpação! de!Maximo.!Como! segundo! fator!Arce! aponta! que! existiam
poderosos!partidários!de!Honório!na!região,!capazes!de!criar!seu!próprio!exército!e,
em!caso!de!uma!ação!coordenada!com!o!governo!de!Ravenna,!prender!o!usurpador
entre!dois! fogos.!Escribano!demonstrou!que!este! temor!era!bem! fundado,! já!que!a
organização! das! defesas! pelos! parentes! –! provavelmente! primos! –! de! Honório,
Dídimo!e!Veriniano,! foi!anterior!à!entrada!das! tropas!do!usurpador!na!Península35.
Arce!continua!adicionando!a!estes!fatores!sua!vontade!de!unificar!toda!a!Prefeitura
Gálica!–!da!qual!a!Hispania!fazia!parte!–!sob!seu!domínio.
Para! levar!a! cabo! tal! conquista,!Constantino!nomeou! como!César! seu! filho
Constante!e!o!enviou,!acompanhado!de!seu!principal!general!Geroncio!e!do!prefeito
de!pretório!Apolinário!(avô!de!Sidônio),!a! Hispania.!Atravessados!os!Alpes,!fixou!sua
capital!em! Caesaraugusta!(Zaragoza)36,!e!enviou!novos!governadores!para!todas!as
35 ESCRIBANO, M. V. Usurpacion y defensa...36 A escolha desta cidade como capital pode ser justificada pela sua posição estratégica, já que apartir dali se podia manter contato entre a Península e a capital de Constantino III em Arlés, além de
24
regiões! da! Península,! que! foram! aceites! sem! contestação! pela! maior! parte! da
população.!A! resistência! ficou!por!conta!de!uma!parte!da!aristocracia,!em!especial
ligada!por!laços!de!parentesco!com!a!casa!imperial!de!Teodósio,!encabeçada!pelos
dois! jovens!primos!do! imperador!reinante!Dídimo!e!Veriniano.!Provavelmente!estes
personagens! não! detinham! nenhum! cargo! militar! nem! civil,! porém! sabemos! que
eram! ricos! a! ponto! de! conseguir! recrutar! em! suas! próprias! terras! e! manter! um
verdadeiro!exército!privado,!formado!de!escravos!e!camponeses,!as!suas!custas.!É
possível!também!que!tenham!usado!tropas!de!tipo! burgarii,!que!seriam!soldados!mal
equipados! e! mal! treinados! que! serviriam! como! milícias! urbanas,! recrutados! em
algumas! cidades! da! Lusitania.!Ao! que! tudo! indica,! lograram! colocar! em! perigo! a
empresa!de!Constante!e!Geroncio!na!Península,!mas!no!fim!acabaram!derrotados,
capturados!e!finalmente!executados!em!Arlés.
Após! a! vitória,! Constante! regressou! a! Arlés! para! celebrar! sua! vitória,
deixando!sua!corte,!que! incluía!sua!esposa,!em! Caesaraugusta!sob!a!proteção!de
Geroncio.!Ao! receber!as!notícias!do! filho,!Constantino! III!enviou!uma!embaixada!à
Ravenna,! esperando! que! Honório! reconhecesse! seu! poder.! O! imperador! legítimo
estava!passando!por!sérios!problemas!na!Itália,!sendo!o!principal!deles!a!presença
das!tropas!do!rei!godo!Alarico!em!seus!territórios,!e!não!teve!opção!senão!aceitar!a
solicitação! da! embaixada! do! usurpador! e! reconhecê"lo! como! imperador! legítimo.
Honório!esperava!com! isso! receber!apoio!da! Galia!para!combater!Alarico37,!porém
tais!reforços!nunca!chegaram.
A!posição!de!Geroncio!na! Hispania!começava!a!levantar!suspeita!por!parte!do
governo!de!Arlés,!até!o!ponto!que!Constante! foi!novamente!enviado!à!Península,
acompanhado! de! Justo,! outro! general,! com! a! provável! intenção! de! substituir! a
Geroncio.!Neste!momento,!o!já!assentado!general!inicia!uma!rebelião!aberta!contra
seus!antigos! imperadores,!nomeando!então!o!hispano!Máximo,!provavelmente!um
cliente! de! Geroncio,! como! imperador.! Foi! uma! verdadeira! usurpação! dentro! da
usurpação! de! Constantino! III,! e! teve! graves! conseqüências! para! este! e! para
Hispania.! Em! 409,! Geroncio! entrou! em! um! acordo! com! os! chefes! bárbaros
instalados! na!Aquitânia! e! estes! atravessaram! os! Pirineus,! provavelmente! com! a
se poder vigiar os passos pirenaicos. Além disso, a cidade provavelmente seria grande e teriacondições de acolher e sustentar uma corte de porte considerável. Sobre esta questão, verESCRIBANO, M. V. Zaragoza en la Antiguedad Tardía (285-714). Zaragoza: Ayuntamiento deZaragoza, 1998, p. 25-26.37 LORING, M. I.; PÉREZ, D.; FUENTES, P. La Hispania... p. 71.
25
intenção! de! utilizar! seus! contingentes! contra! Constantino! III,! e! isto! acabou
significando!o!início!do!fim!da!dominação!romana!na!Hispania.
As! tropas! sob! comando! de! Geroncio! venceram! Constante! e! o! general
perseguiu!o!César!até!Vienne,!cidade!da! Galia,!onde! foi!alcançado!e!assassinado.
Geroncio! sitiou!então!Arlés,!a!própria! capital!de!Constantino! III,! com!o! imperador
usurpador! intramuros.!Honório,!que!após!a!morte!de!Alarico!e!o!passo!dos!godos
para! a! Galia! estava! em! posição! muito! mais! confortável,! resolveu! colocar! fim! às
usurpações,! percebendo! a! delicada! situação! de! seus! rivais.! Para! tal! empresa,
enviou!seu!novo! magister!militum,!Constancio.!As! tropas!do! imperador!de!Ravena
puseram!em! fuga!Geroncio!ao!se!aproximar!de!Arlés,!e!seu!exército!desertou!em
nome! do! imperador! legítimo.! Constantino! III! é! então! capturado! e! executado! pelo
magister!militum!de!Honório.!Ao!chegar!à! Hispania,!Geroncio!percebeu!seu!exército
havia!se!rebelado!e!acaba!se!suicidando.!Máximo!é!deposto,!e! foge!para!viver!em
exílio! com! os! bárbaros! que! haviam! adentrado! nos! territórios! peninsulares.! Desta
maneira!Honório! foi!capaz!de! tornar"se,!novamente,!o!único! imperador!no!ocidente
do!Império.
1.3. Como Orósio vê os usurpadores?
Neste! tópico,! analisaremos! a! forma! que! os! usurpadores! são! tratados! por
Orósio!em!sua!História!Contra!os!Pagãos,!buscando!entender!a!caracterização!dos
personagens!e!de!seus!atos!apresentada!pelo!presbítero!hispano,!sem!perder!de
vista! o! fato! de! que! ele! é! perceptivelmente! um! apoiador! da! dinastia! teodosiana
escrevendo!durante!o! reinado!de!um! imperador!que!ainda!pertence!a! tal!dinastia,
Honório,!além!de!ser!um!cristão!envolvido!diretamente!no!combate!às!heresias!e!na
polemica!entre!contra!os!cristãos.
1.3.1. Máximo na História Contra os Pagãos
A! primeira! referência! a! Máximo! presente! na! obra! de! Orósio! já! é! bastante
instigante.!O!presbítero!hispano!caracteriza!o!usurpador!como!um!homem!enérgico,
honrado! e! que! seria! digno! de! ser! augusto! se! não! tivesse! se! levantado! contra! o
juramento!que!havia!feito38.!Neste!sentido,!podemos!perceber!certo!grau!de!simpatia
do! historiador! cristão! com! relação! a! um! personagem! que! é! seu! conterrâneo,
lembrando! que! Máximo! também! provinha! da! Hispania.! Ele! teria! algumas! das
38 Oros. VII, 34, 9.
26
características!necessárias!para!se! tornar!um!bom! imperador,!porém!ao! romper!o
consenso!do!exército!e!se!levantar!contra!um!imperador!já!estabelecido,!quebrando
assim!algum! tipo!de! juramento!de! lealdade!que!poderia!existir! já!que!ocupava!um
cargo! no! comando! das! tropas! da! Britania! provavelmente! nomeado! pelo! próprio
imperador!ou!então!alguém!muito!próximo!a!ele,!perdeu!a!possibilidade!de!poder
legitimar"se!aos!olhos!de!Orósio.!De!fato!desconhecemos!se!de!fato!existia!este!tipo
de!juramento,!porém!nos!parece!importante!citar!a!quebra!dele!como!um!dos!feitos
apresentados!por!Orósio!para!a!caracterização!de!Máximo!como!um!imperador!não
legítimo.
Ainda!neste!mesmo!trecho,!Orósio!afirma!que!Máximo!foi!nomeado!imperador
por!seus!soldados!quase!contra!sua!vontade.!Vemos!aí,!novamente,!um!pouco!da
simpatia!do!presbítero!hispano!por!seu!conterrâneo,!já!que!a!culpa!da!quebra!de!seu
julgamento! e! da! usurpação! não! é! totalmente! colocada! em! cima! de!Máximo,!mas
dividida!com!seus!soldados!que! já!estariam!previamente!descontentes.!É!certo!que
Orósio!não!retira! totalmente!a!culpa!do!usurpador,! já!que!em! teoria!ele!poderia! ter
optado!em!não!aceitar,!mas!aceitou!–!e!dessa!maneira!quebrou!seu!juramento.
No! trecho! seguinte,! Orósio! afirma! que! Máximo! eliminou! a! Graciano! por
traição39.! Esta! afirmação! tem! dois! sentidos! distintos.! Por! conta! da! quebra! do! já
citado! juramento,! Máximo! não! foi! leal! ao! que! deveria! ser! seu! superior,! logo
caracteriza!uma!traição.!Além!disso,!é!uma!traição!também!por!conta!de!ter!sido!um
ataque! repentino! e! sem! aviso,! pegando! de! surpresa! e! quase! sem! preparações! o
então! imperador.! Tanto! que! a! morte! de! Graciano! é! considerada! um! simples
assassinato40.!Sabemos!que!os!acontecimentos!não!se!passaram!exatamente!como
nos!conta!Orósio,!porém!estes!elementos!são!importantes!na!caracterização!que!ele
faz!da!usurpação!de!Máximo.
Em!seguida,!Orósio! já!passa!para!os!acontecimentos!que!culminaram!com!a
derrota!de!Máximo.!O!usurpador,!assentado!em!Aquiléia,!tinha!tropas!em!quantidade
superior,! contava! com! boas! estruturas! defensivas,! mas! foi! derrotado! “graças! aos
infalíveis!desígnios!de!Deus”,! já!que!seu!principal!general,!Andragatio,!abandonou
as! defesas! e! partiu! ao! encontro! das! tropas! de! Teodósio! I,! acabando! se
desencontrando!delas.!Assim,!Teodósio!teria!atravessado!os!Alpes!sem!resistência,
entrado!em!Aquiléia!e!capturado!e!vencido!o!usurpador!sem!batalha41.!Neste!trecho
39 Oros, VII, 39, 1040 Oros, VII, 35, 1.41 Oros, VII, 35, 3-4.
27
percebemos!que!para!Orósio!o!destino!do!usurpador! já!estava!traçado.!Por!atentar
contra!o! imperador!escolhido!por!Deus,!e!por! isso! legítimo,!Máximo!seria!derrotado
praticamente! sem! nenhum! esforço,! já! que! desde! o! início! sua! demanda! já! estava
destinada!ao!fracasso42.
Neste! final,! Máximo! é! caracterizado! como! um! grande! inimigo,! um! homem
cruel! que! conseguia! impostos! e! tributos! apenas! pelo! medo! que! seu! nome
inspirava43.!Neste!ponto,!Orósio!está!evidentemente!aumentando!o!valor!do! inimigo
para! valorizar! ainda! mais! a! vitória! de! Teodósio.! Apesar! disso,! é! notável! sua
caracterização! como! um! “homem! cruel”.! A! crueldade! significaria! a! falta! de
clemência,! uma! virtude! considerada! essencial! pelos! autores! cristãos! aos! bons
imperadores.
Seguindo!as!regras!de!todos!os!autores!antigos!que!abordam!as!usurpações,
temos!em!Orósio!pouquíssimas! informações!acerca!de!Máximo,!contendo! também
muitas! omissões.! Entre! estas! omissões,! identificamos! três! que! nos! parecem
bastante!significativas.!A!primeira!é!o!tempo!que!Máximo!se!manteve!no!poder.!Não
há!nenhuma!referência!à!cronologia!de!seu!reinado!a!não!ser!o!fato!de!sua!rebelião
ter!se!iniciado!no!ano!383!(1138!da!fundação!da!cidade),!seis!anos!após!a!ascensão
de! Graciano! –! que! é! colocada! ao! lado! da! morte! de! Valente44.! Sabemos! que! o
usurpador!se!manteve!no!poder!por!cinco!anos,!mas!a!partir!da!leitura!de!Orósio,!a
impressão! que! temos! é! que! sua! usurpação! não! durou! mais! que! alguns! poucos
meses.!Tal! fato!certamente! tem!relação!com!a!curta!duração!do!reinado!de!muitos
imperadores! considerados! legítimos! por!Orósio,! ao! passo! de! que! se! o! presbítero
hispano!explicitasse!o!tempo!do!reinado!de!Máximo,!poderia!gerar!algum!argumento
em! seus! detratores! com! relação! à! relativa! estabilidade! encontrada! durante! o
exercício!do!poder!por!conta!deste!personagem.
A!segunda!omissão!encontrada!está! relacionada!aos!acordos!estabelecidos
entre! o! usurpador! e! os! imperadores! considerados! legítimos.! Não! há! nenhuma
referência! aos! acordos! firmados! entre! estes! personagens,! muito! menos! sobre! as
exigências!que!uns!fizeram!sobre!os!outros!para!manter!uma!frágil!e!temporária!paz.
A! partir! da! leitura! de! Orósio,! a! impressão! que! temos! é! que! logo! após! vencer
Graciano,! Máximo! se! dirige! diretamente! à! Itália! para! destronar! a! Valentiniano! II.
Entre!estes!dois!acontecimentos!sabemos!que!existiram!ao!menos!quatro!anos!de
42 Ver tópico 1.1, em especial as páginas 14 e 15.43 Oros, VII, 35, 444 Oros, VII, 34, 1
28
diferença,! que! são! sumariamente! ignorados! pelo! historiador! cristão! a! partir! da
omissão! da! cronologia! que! já! havíamos! apontado! acima.! Tal! omissão! está
relacionada! com! a! própria! construção! da! imagem! de! Teodósio! como! imperador
cristão!ideal.!Como!poderia!um!imperador!cristão!compactuar,!independente!de!seus
motivos,! com! uma! traição! deste! nível,! ainda! mais! contra! o! imperador! que! o! fez
ascender!à!púrpura?
A! terceira! omissão! merece! um! tratamento! um! pouco! mais! detido,! já! que
levanta! outras! questões.! Trata"se! da! condenação! e! execução! de! Prisciliano,! por
conta! da! heresia! defendida! por! este.! Como! já! vimos,! Máximo! provavelmente
procurava! conseguir! o! apoio! tanto! dos! principais! personagens! da! Igreja,! como
Ambrósio!de!Milão,!quanto!de!Teodósio! I,!porém!a!ação!não!correspondeu!a!suas
expectativas.!Porém,!no!momento!em!que!Orósio!escrevia,!vemos!uma!situação!um
pouco! diferente.! Sabemos! que! o! presbítero! hispano! em! sua! província! natal,! a
Galaecia,!estava!diretamente!engajado!no!combate!a!esta!heresia!propagada!pelos
seguidores!de!Prisciliano,!e!que!este!foi!o!principal!motivo!de!sua!viagem!ao!Norte
da!África!para!encontrar"se!com!o!bispo!de!Hipona,!Agostinho,!viagem!que!culminou
na!escrita!da!obra!analisada!neste!trabalho.!Neste!sentido,!considerando!o!momento
da! escrita,! se! poderia! ver! uma! conotação! positiva! na! ação! do! usurpador! –! e
inclusive!se!pode!dizer!que!é!daí!que!parte!a!pequena!simpatia!sentida!por!Orósio
com!relação!à!Máximo!que! localizamos!no! início!da!análise!–!como!perseguidor!de
uma! heresia! que! ameaçava! a! unidade! do! cristianismo.! Porém! esta! conotação
positiva! não! poderia! transparecer! na! obra,! já! que! entre! seus! objetivos! podemos
identificar!a!exaltação!dos! imperadores!cristãos!da!dinastia! teodosiana!a!partir!da
valoração! negativa! de! seus! oponentes,! além! de! alimentar! a! argumentação! dos
pagãos! –! principal! alvo! de! crítica! da! obra! em! geral! –! contra! a! unidade! do
cristianismo.! Sendo! assim,! acreditamos! que! estes! são! os! principais! motivos! da
omissão!deste!acontecimento!na!obra!de!Orósio.
1.3.2. Constantino III na História Contra os Pagãos
A!primeira!referência!as!usurpações!na! Britania!que!culminaram!com!a
ascensão!de!Constantino!III!é!a!nomeação,!caracterizada!já!como!ilegal,!de!Graciano
e!seu!assassinato!quase! instantâneo.!Marco!não!é!citado,!talvez!pelo!fato!de!Orósio
não! ter! tido!noticias!sobre!ele!ou!por!simplesmente!por!não!o!considerar! relevante.
29
Em!seguida!o!presbítero!hispano!cita!Constantino!III!pela!primeira!vez,!afirmando!que
sua!ascensão!tinha!muito!mais!a!ver!com!a!esperança!que!seu!nome!inspirava!–!por
ser!igual!ao!nome!de!Constantino,!o!Grande!–!do!que!por!seus!valores.!Orósio!ainda
o! caracteriza! como! um! soldado! raso,! sem! aparente! experiência! militar45.! Pode"se
perceber!claramente!que!o!presbítero!hispano!não!sente!nem!um!pouco!de!simpatia
por!Constantino! III! como! sentia!por!Máximo,!e!utiliza! sempre! todos!os!argumentos
possíveis!para!denegrir!a! imagem!do!usurpador.!Já!discutimos!acerca!da!origem!e
dos!objetivos!de!Constantino!III!no!tópico!1.2.2!e!que!estas!afirmações!de!Orósio!são
provavelmente!enganosas,!mas!é!notável!a!forma!que!o!presbítero!hispano!trata!este
personagem! em! sua! História! Contra! os! Pagãos,! tornando! este! personagem! o! pior
possível!aos!olhos!de!seus!leitores.
Na!seqüência,!Orósio!narra!os!feitos!de!Constantino!III!na! Galia,!após
atravessar!o!Canal!da!Mancha!com!suas! tropas.!Novamente,!nada!de!bom!é!visto
neste!personagem.!Em!sua! tentativa!de!pacificar!a! Galia,!é!sempre!enganado!pelos
bárbaros! que! ali! estavam! assentados,! fazendo! com! eles! pactos! que! eram! mais
danosos! do! que! vantajosos! ao! estado! romano.! Podemos! perceber! então! que,! no
ponto!de!vista!de!Orósio,!este!personagem!não!era!apto!a!governar!pelo!fato!de!não
ter!suficiente!inteligência!para!isso!já!que!até!bárbaros,!considerados!tradicionalmente
como!pessoas!de!intelecto!inferior!ao!dos!cidadãos!romanos!civilizados,!são!capazes
de!enganá"lo!com!muita!facilidade.
Além!de!ser! inapto!para!o!governo,!Constantino! III!nos!é!apresentado
também!como!um!mau!cristão.!Orósio! lança!uma!expressão!de!dor!ao!nos! informar
da! conversão!–!ao!que! tudo! indica! forçada!–!de!Constante,! filho!do!usurpador,!de
monge!em!césar46.!Constantino!retira!seu!filho!de!uma!condição!honrada!de!homem
servidor!dos!desígnios!de!Deus!e!o!transforma!em!um!traidor!da!pior!espécie,!assim
como! ele.! Piorando! ainda! mais! a! situação,! Orósio! afirma! que! o! novo! César! é
acompanhado!em!sua!campanha!contra!os!jovens!defensores!do!governo!legítimo!na
Península! Ibérica,! Dídimo! e! Veriniano,! por! bárbaros! mercenários! acolhidos! no
exército! através! dos! pactos! danosos! já! citados! e! que! por! este! motivo! acabariam
trazendo!à!ruína!a!Hispania.
A!partir!deste!ponto,!podemos!entender!um!pouco!melhor!todo!o!rancor
que! Orósio! sente! por! Constantino! III.! Tal! usurpador! e! seu! filho! são! diretamente
45 Oros. VII, 40, 446 Oros, VII, 40, 7
30
considerados! responsáveis! pela! ruína! das! províncias! hispânicas,! a! terra! natal! do
historiador!cristão.!Toda!a!descrição!dos!acontecimentos!que!se!segue!sugere!isso47.
E!apesar!de!toda!a!digressão!posterior!sobre!a!invasão!e!todo!o!sofrimento!vindo!com
ela! representar!uma!punição!merecida!contra!os!pecados!e!da!clemência!de!Deus
para! com! aqueles! que! acreditam! nele48,! Orósio! não! parece! disposto! a! perdoar
Constantino!III!pelos!males!sofridos!por!sua!terra!e!seus!conterrâneos.
A!cronologia!da!usurpação!de!Constantino! III! também!é!parcialmente
omitida!por!Orósio.!Com! relação!ao!seu! início,!a!única! referência!que! temos!é!que
está!em!algum!ponto!indeterminado!entre!o!rompimento!do! limes! renano!em!40649!e!o
saque!de!Roma!por!Alarico!em!410!(1164!da!fundação!da!cidade)50.!Já!a!data!de!sua
derrota!está!colocada!de!maneira!bastante!precisa!no!ano!de!411!(1165!da!fundação
da! cidade),! quando! foi! capturado! e! executado! a! mando! do! general! de! Honório,
Constancio51.!Porém!percebemos!que!a!omissão!não!é!tão!intensa,!e!isso!se!deve!ao
fato!de!Orósio!não!ter!nenhum!argumento!em!favor!de!Constantino!III!e!não!ser!capaz
de! ver! nenhuma! estabilidade! durante! seu! reinado,! graças! a! todos! os! problemas
enfrentados!por!ele,!principalmente!os!episódios!relacionados!a! Hispania!–!a!guerra
contra! Dídimo! e! Veriniano,! a! entrada! dos! bárbaros! e! a! usurpação! dentro! da
usurpação!protagonizada!por!Geroncio!e!Máximo.
Orósio! também!omite!o!pacto! firmado!entre!Honório!e!Constantino! III
que!garantiu!a! legitimidade!do!usurpador!por!um! curto!espaço!de! tempo.!Como! já
discutimos! no! tópico! 1.2.2,! Honório! foi! forçado! a! aceitar! este! pacto! graças! aos
problemas! que! tinha! na! Itália! e! até! esperava! o! apoio! de! Constantino,! porém! uma
mudança!na!situação!de!ambos!permitiu!que!Honório!rompesse!o!pacto!e!acabasse
com! a! usurpação.!Além! dos!motivos! já! expostos! quando! tratamos! a! usurpação! de
Máximo!no!tópico!1.3.1!que!são!semelhantes,!relacionados!a!construção!de!Honório
como! um! imperador! cristão! ideal! não! podendo! compactuar! com! um! usurpador,
podemos!adicionar! também!o! fato!de!que!quem!quebrou!o!pacto!neste! caso! foi!o
próprio! imperador! legítimo.!A! imagem!de!Honório! se!afastaria!do! imperador! cristão
ideal!se!não!cumprisse!os!acordos!que!havia!firmado.
47 Oros. VII, 40, 8-10.48 Oros, VII, 41, 1-649 Na verdade, esta não é a data exposta por Orósio em seu texto. O presbítero hispano comete umerro de cronologia e nos informa que a entrada de alanos, suevos e vândalos na Gália acontece doisanos antes do saque de Roma, datado em 410 (1164 da fundação da cidade), localizando-a então em408. Oros. VII, 40, 3.50 Oros. VII, 40, 1-4 51 Oros, VII, 42, 1-3
31
A! partir! de! ambas! as! apresentações! encontramos! um! ponto! de
comparação! bastante! interessante! entre! estes! dois! personagens,! ponto! este! que
interessa!muito!à!Orósio!em!sua!obra.!Trata"se!da! relação!dos!usurpadores!com!a
Hispania.! Máximo! é! um! personagem! oriundo! da! Península! Ibérica! e! isso! gera! um
grau!de!simpatia!ao!presbítero!hispano,!somado!ao!fato!dele!ter!sido!um!perseguidor
da! heresia! que! aflige! sua! terra.! Já! Constantino! III! é! considerado! como! um
responsável!direto!da!ruína!das!províncias!hispânicas,!fato!que!faz!Orósio!o! lembrar
com!muito! rancor,!somado!ao! fato!deste!personagem! também! ter!atentado!contra!a
própria! igreja!quando! forçou! seu! filho! sair!de!um! caminho!honrado!e! tornar"se!um
usurpador!também!ao!lado!dele.
Quando! comparamos! as! cronologias,! percebemos! que! enquanto
Orósio! faz!um!grande!esforço!para!não!mostrar!nenhum! lado!positivo!da!usurpação
de!Máximo,!quando!expõe!a!situação!de!Constantino!III!o!esforço!não!é!tão!grande,!já
que!os!próprios!feitos!deste!personagem!por!eles!mesmos!são!os!argumentos!contra
ele,! no! sentido! de! que! aos! olhos! do! historiador! cristão! ele! não! é! capaz! de! gerar
nenhum!tipo!de!simpatia.
Com! relação! à! omissão! dos! pactos! que! tornaram! os! usurpadores
imperadores!legítimos!por!algum!tempo,!os!objetivos!de!Orósio!são!evidentemente!os
mesmos! em! ambos! os! casos:! o! presbítero! hispano! não! pode! admitir! que! os
imperadores! legítimos! que! está! defendendo,! no! caso! Teodósio! I! e! Honório,! são
capazes!de!compactuar!com!traidores!do!estado!romano,!já!que!a!função!deles!seria
restaurar! e! defender! este! estado.! É! a! partir! deste! ponto! que! iniciaremos! as
discussões!do!próximo!capítulo.
32
2. Imperadores legítimos.
Neste!segundo!capítulo,!seguiremos!praticamente!a!mesma!estrutura
apresentada! no! capítulo! anterior,! porém! focalizando! agora! nos! imperadores
considerados! legítimos! para! o! período! estudado:!Teodósio! I! e! Honório.! O! capítulo
será!dividido!em!duas!partes!principais,!sendo!que!na!primeira!se! trabalhará!com!a
descrição! dos! reinados! destes! imperadores! construídos! a! partir! da! bibliografia
estudada! e! em! um! segundo! momento! trabalharemos! com! a! análise! fonte
propriamente!dita,!buscando!a!maneira!qual!Orósio!apresenta!as!figuras!Teodósio!I!e
Honório!e!seus!respectivos!feitos!em!sua!História!Contra!os!Pagãos.
2.1. Quem são os Imperadores legítimos?
Nesta! seção! iremos! expor! a! trajetória! dos! reinados! dos! imperadores
Teodósio!I!e!Honório!a!partir!do!estudo!de!uma!bibliografia!recente,!visando!construir
uma!visão!geral!sobre!estes!reinados,!que!servirá!como!base!para!a!posterior!análise
do! texto!de!Orósio!acerca!deles.!A!escolha!destes!dois! imperadores!como!objeto!do
presente! trabalho!está! relacionada!a! três! fatores!principais.!O!primeiro!é!a! religião
defendida!por!tais! imperadores,!o!cristianismo!niceísta,!que!coincide!com!o!credo!de
Orósio,!autor!da!obra!analisada!no!presente!trabalho,!o!que!ao!nosso!ver!permite!uma
construção! idealizada! da! imagem! destes! imperadores! por! parte! do! presbítero
33
hispano.! Em! segundo! lugar! está! a! proximidade! cronológica! entre! Orósio! e! tais
imperadores,!considerando!que!o!autor!da!História!Contra!os!Pagãos!nasceu!durante
o! reinado!de!Teodósio! I,! vivendo! sua! infância!em!um!período!de!hegemonia!deste
imperador!e!sua!carreira!eclesiástica!–!incluindo!a!redação!de!sua!obra!–!se!encontra
dentro!dos!limites!do!reinado!de!Honório.!Um!terceiro!fator,!talvez!menos!importante,
mas!ainda!sim!interessante!de!ressaltar,!é!que!o!local!de!origem!de!Orósio!é!bastante
próximo!ao!local!de!origem!de!Teodósio,!sendo!ambos!provenientes!da!Hispania.!Não
podemos! falar!sobre! relações!diretas!entre!suas! famílias! já!que!não!há!provas!para
isso,!porém!esta!origem!próxima!pode!reforçar!a! idealização!de!Teodósio! I!e!de!sua
dinastia! –! que! inclui! obviamente! seu! filho! e! sucessor! Honório! –! por! parte! do
historiador!cristão.
2.1.1. O Reinado de Teodósio I52.
Sobre! Teodósio! I! há! uma! vastíssima! bibliografia! abordando! sua
imagem!e!seu!reinado!a!partir!de!diversos!pontos!de!vista.!Por!este!motivo,!não!nos
alongaremos!muito!nesta!seção!já!que!não!nos!parece!estritamente!necessário!além
de!não!ser!este!o!principal!objetivo!do!presente!trabalho.
Teodósio!I!nasceu!na!Hispania,!mais!precisamente!na!cidade!de! Cauca
(atual!Coca,!na!província!de!Segovia),!segundo!nos! informa!Hidácio!de!Chaves!em
sua!crônica53.!Era!membro!de!uma!destacada! família!de!aristocratas!hispanos,!e!é
conhecido!que!vários!parentes!do!futuro!imperador,!incluindo!seu!pai,!Flávio!Teodósio,
ocuparam! altos! cargos! das! administrações! civil! e! militar! do! Império! antes! de! sua
ascensão.! Sabemos! que! seu! pai! foi! magister! equitum! durante! o! reinado! de
Valentiniano! I!e! foi!encarregado!pelo! imperador!de!enfrentar!ao!usurpador!Firmo!na
África!em!373.!Porém,!com!a!morte!inesperada!de!Valentiniano!em!novembro!de!375,
a!corte! imperial!ordenou!a!prisão!e!execução!de!Flávio!Teodósio!–! temendo! talvez
que!ele!pudesse!se!tornar!um!usurpador!por!conta!de!sua!recente!vitória!na!África.
O! filho! do! magister! equitum! também! seguia! a! carreira! militar! e! se
destacava!entre!os!oficiais.!Sabemos!que!acompanhou!seu!pai!nas!campanhas!na
Britania! e! muito! provavelmente! também! na! Germania.!Aos! 27! anos,! sabemos! que
52 Este tópico está baseado principalmente nas obras BRAVO, G. Teodósio... e MATTHEWS, J.Western Aristocracies... Quando a referência vier de outra obra, será assinalado.53 Hidacio, Chron. 2. apud BRAVO, G. Hispania y el Imperio. Madrid: Síntesis, 2001.p. 197.
34
Teodósio! já! havia! atingido! o! cargo! de! dux!Moesiae! e! conseguiu! uma! considerável
vitória! sobre! os! sármatas! que! ameaçavam! a! fronteira! do! Danúbio.! Porém,! com! a
drástica!mudança!de!regime!e!a!condenação!de!seu!pai,!Teodósio!retirou"se!de!sua
promissora! carreira!e! voltou!para! sua! Hispania!natal,!onde!assumiu!o! controle!das
possessões!de!sua!família.
Em! 376! o! então! imperador! do! Oriente! Valente! aceita! acolher,! de
maneira!pacífica,!uma!parte!da!população!goda!que!vivia!na! fronteira!do!Danúbio!e
vinha!sofrendo!pressões!de!outros!povos!que!chegavam!àquela!região.!Apesar!disso,
logo! esta! situação! acaba! gerando! problemas! graças! a! corrupção! dos! legados! do
imperador! que! aumentavam! o! preço! dos! itens! necessários! à! manutenção! desta
população!visando!o!próprio!enriquecimento!e!gerando!uma!séria!revolta!deste!grupo
de!godos.!A!situação!toma!tamanha!proporção!que!o!próprio! imperador!Valente!com
seu!exército!de!campanha!se!apresenta!para!pacificar!tal!revolta,!porém!os!resultados
foram!desastrosos.!Em!378,!perto!da!cidade!de!Adrianópolis,!o!exército!imperial!sofre
uma! grande! derrota! que! culmina! com! a!morte! de! boa! parte! dos! soldados,! grande
parte!dos!oficiais!e!do!próprio!imperador!da!porção!oriental!do!Império.
A! situação! na! fronteira! do!Danúbio! era! gravíssima.!Todos! os! poucos
oficiais! que! sobraram! na! porção! oriental! do! Império! ficaram! manchados! com! tal
derrota!e!não! inspiravam!a!confiança!necessária!para!uma!ação!enérgica!e!decisiva
para!retomar!a!ordem!na!região.!Para!tanto!foi!nomeado!por!Graciano,!imperador!do
Ocidente,! para! tentar! contornar! esta! crise! um! conhecido! general,! conhecedor! da
região!e!provavelmente! também!dos!soldados! restantes!ali,!que! retornara!do!exílio
para!solucionar!a!situação!embaraçosa!vivida!pelo! Império!Romano!do!Oriente.!Tal
general! foi! Teodósio,! que! após! provar! sua! eficácia,! foi! nomeado! Augusto! dos
territórios!orientais!do!Império!por!Graciano.
Apesar! de! sua! condição! original! de! militar,!Teodósio! I! se! rodeou! de
bons!assessores!e!auxiliares!para!garantir!o!bom!funcionamento!do!aparelho!estatal
durante! seu! reinado,! incluindo! em! seu! grupo! de! apoio! a! muitos! funcionários
experientes!e!eficazes.!Tradicionalmente! se!defendia!a! tese!de!que!Teodósio!dava
preferências!a!um!grupo!de!hispanos!para!o!comando!dos!assuntos!do!estado,!porém
os! estudos! de! Gonzalo! Bravo! provaram! que! na! verdade! o! Imperador! não! se
importava!tanto!com!a!sua!origem,!fosse!ela!hispana!ou!não54,!nem!se!viesse!de!uma
54 BRAVO, G. Prosopographia theodosiana (I): en torno al llamado “clan hispano”. Gerión, Madrid, n.14, 1996.
35
condição! social! não"romana! ou! mesmo! religiosa,! incluindo! entre! seus! assessores
alguns! pagãos.! O! mais! importante! para!Teodósio,! era! a! eficiência! no! exercício! de
suas!funções.
Neste! sentido,! Teodósio! I! assumiu! uma! política! de! integração! dos
bárbaros! no! Império! a! partir! do! exército,! que! levou! a! um! aumento! significativo! do
numero! de! personagens! de! origem! bárbara! ocupando! destacados! postos! de
comando.!E!mesmo!que!tenha!sido!bastante!efetiva!desde!o!princípio,!tal!política!não
foi!bem!acolhida!entre!as!elites!do!Império,!já!que!temiam!que!a!romanização!destes
personagens!significasse!uma!ameaça!a!seus!tradicionais!privilégios.
Com! relação! à! política! religiosa,! Teodósio! era! cristão! e! seguia! os
cânones!estabelecidos!no!Concílio!de!Nicéia.!Com!o!Édito!de!Tessalônica!em!380,
denominou!de!“católicos”!aqueles!que!seguiam!o!credo!niceísta!e!rechaçou!todos!os
outros!como!hereges.!Teodósio! foi!bastante! intransigente!com!aqueles!considerados
hereges,!minorias! religiosas! como!os! judeus!e! implacável! contra!os! cultos!pagãos,
tanto! que! é! considerado! pela! historiografia! tradicional! como! o! imperador! que
oficializou!o!cristianismo!definitivamente!como!a!religião!do!estado!romano.
Do!ponto!de!vista!militar,!além!da!questão! já!citada!da! instalação!dos
godos! em! territórios! imperiais,!Teodósio! teve! que! enfrentar! diversos! problemas! no
Oriente.!Os!persas!liderados!por!seu!rei!Sapor!III!pressionavam!a!fronteira!oriental!do
Império,! sendo! uma! ameaça! constante! até! a! assinatura! de! um! pacto! em! 387! que
repartia!a!Armênia!entre!romanos!e!persas!e! liberava!um!bom!contingente!de!tropas
para! outras! questões.! Além! disso,! em! 386! os! gretungios! invadiram! a! Trácia,! na
fronteira! do!Danúbio,! obrigando!Teodósio! a! utilizar! seus! principais! contingentes! de
tropas!para!restaurar!a!fronteira.
Somando"se! a! isto,! Teodósio! ainda! teve! que! intervir! nos! assuntos
relativos!ao! Império!Romano!do!Ocidente!em!duas!ocasiões!–!notavelmente,!duas
usurpações! –! sendo! a! primeira! uma! campanha! contra! Máximo,! já! trabalhada! no
tópico! 1.2.1,! e! novamente! durante! a! usurpação! de! Eugênio,! apoiada! pelo! general
Arbogastes.!Na!primeira!ocasião,!o!Imperador!do!Oriente!se!manteve!no!Ocidente!no
período!de!388!até!391!para!garantir!a! lealdade!das! regiões!ocidentais!do! Império,
aparentemente!sem!muito!êxito!já!que!logo!em!392!se!iniciou!uma!nova!revolta.
Por!volta!de!maio!de!392!o! jovem! imperador!do!ocidente,!Valentiniano
II,! foi! encontrado! morto.! Arbogastes,! general! de! origem! franca! e! delegado! de
Teodósio! no! ocidente! para! a! manutenção! de! Valentiniano! foi! acusado! de! ser! o
36
mandante!do!crime,!defendendo"se!afirmando!que!o!jovem!imperador!havia!cometido
suicídio.!Pouco! podemos! saber! sobre! a! veracidade! destas! duas! versões,! porém! a
corte!oriental!não!tardou!em!considerá"lo!culpado.!Ao!perceber!que!não!tinha!muitas
escolhas!–!provavelmente!seria!preso!e!condenado!a!morte!pelo!regicídio!–!nomeou!o
civil!Eugênio,!um!simples!professor!de! retórica,!como! imperador!do!Ocidente,!numa
tentativa!desesperada!de!salvar"se.!Eugênio,!cristão,!enviou!embaixadas!a!Teodósio
buscando! seu! reconhecimento,! porém! as! embaixadas! foram! ignoradas! pelo
imperador! do! Oriente.! Vendo! sua! situação! complicar"se! com! a! iminência! de! uma
intervenção!militar!vinda!de!Constantinopla,!o!usurpador!tratou!de!buscar!o!apoio!da
aristocracia!senatorial! romana,!que!em!sua!grande!maioria!era!ainda!pagã!e!muitos
de! seus! membros! estavam! descontentes! com! a! política! religiosa! de! Teodósio! e
Valentiniano! II.! O! prefeito! de! pretório! da! Itália,! Nicômaco! Flaviano,! foi! um! dos
principais! apoiadores! do! regime.! Eugênio! atendeu! às! petições! da! aristocracia
senatorial! e! autorizou! o! re"estabelecimento! do!Altar! da!Vitória! na! casa! do! senado.
Mesmo! com! todo! os! apoios,! Eugênio! acabou! derrotado! por!Teodósio! quando! este
marchou!em!direção!ao!Ocidente,!em!394.!O!usurpador! foi!capturado!e!executado,
enquanto!Arbogastes!e!Flaviano!acabaram!cometendo!suicídio.!Poucos!meses!após
esta!vitória!Teodósio!I!faleceu!em!Milão,!a!inícios!de!395.
2.1.2. O Reinado de Honório
A!morte!de!Teodósio! I,!em!Janeiro!de!395,!gerou!um!grave!clima!de
incerteza! acerca! de! sua! sucessão,! especialmente! na! porção! ocidental! do! Império.
Seu! filho!e!herdeiro!Honório,!apesar!de! já!haver! sido!nomeado!augusto!dois!anos
antes,!era!uma!criança!com!apenas!onze!anos!de!idade.!Vale!lembrar!que!a!situação
política!estava! longe!de!ser!estável,! já!que!menos!de!um!ano!antes!Teodósio!havia
sido!obrigado!a! viajar!ao!ocidente,! trazendo! seu!exército!de! campanha!do!oriente,
para! enfrentar! um! usurpador! que! tinha! conseguido! importantes! apoios! nos! meios
aristocráticos! senatoriais,! e! apesar! de! sua! vitória,! sua! morte! tão! próxima! aos
acontecimentos! poderia! inspirar! uma! nova! tentativa! de! usurpação.! Seria! um
imperador! tão! jovem!capaz!de!manter!a!unidade?!Este!clima!de! incerteza!pode!ser
claramente!percebido!na!oração! fúnebre!a!Teodósio! (De!Obitu!Theodosii)!proferida
por!Ambrósio!de!Milão!conforme!demonstrou!David!Natal!Villazala55.
55 NATAL VILLAZALA, D. Sed non totus recessit .Legitimidad, Incertidumbre y cambio político en el DeObitu Theodosii. Gerión, 28, núm. 1, Madrid, 2010. 309-329.
37
Obviamente,! o! jovem! imperador! necessitaria! de! ajuda.! Para! tanto,! o
poderoso! magister! militum! Estilicão! proclamou"se! tutor! do! príncipe,! afirmando! que
Teodósio!o!havia!nomeado!em!seu!leito!de!morte.!A!verdade!é!que!não!deve!mesmo
ter!acontecido!nenhum!grande!questionamento!à!legitimidade!de!Estilicão!como!tutor
de!Honório,!e!se!nota!que!personagens!muito!destacados!o!apoiaram,!como!no!caso
do! próprio!Ambrósio56,! já! que! a! situação! favorecia! o! apoio! a! um! homem! forte! que
fosse!capaz!de!manter!a!unidade!em!detrimento!a!disputas!internas!que!fragilizariam
a!posição!do!governo!imperial.
Mas!apesar!das!tentativas!de!Ambrósio!em!construir!uma!teoria!política
que!legitimasse!o!poder!do!filho!de!Teodósio!e!da!esperança!depositada!em!Estilicão
na!manutenção!da!unidade,!percebemos!que!o!governo!de!Honório!é!marcado!por
inúmeras!crises,!que!apenas!demonstram!que!todas!as!preocupações!com!relação!à
sucessão!de!Teodósio!I!eram,!no!mínimo,!válidas.
A!primeira!destas!crises!foi!a!rebelião!de!Gildón,!governador!da!África,
logo!após!saber!da!morte!de!Teodósio.!Segundo!nos!narra!Orósio,!o!motivo!de!esta
rebelião!foi!exatamente!a!falta!de!esperança!de!que!o!jovem!Honório!fosse!capaz!de
manter"se! no! comando! do! Império! por! muito! tempo! pelo! fato! de! ser! ainda! uma
criança57.!Tal!rebelião!foi!reprimida!sem!grandes!problemas,!mas!evidencia!o!clima!de
incerteza!que!pairava!sobre!o!ocidente!do!Império.
A! ambição! de! Estilicão,! evidenciada! por! sua! pretensão! em! estender
seu!poder!à!parte!oriental!do!Império,!logo!gerou!mais!problemas.!Em!401!Alarico,!um
dos!principais!chefes!godos,!após!alguns!problemas!no!oriente!se! trasladou!a! Itália
buscando! pressionar! o! Imperador! do! ocidente! a! ceder"lhe! um! alto! cargo! militar,
aproveitando"se!da!disputa!por!influências!na!região!do!Ilírico,!fronteira!entre!as!zonas
controladas! por! Honório! e! Arcádio! –! imperador! do! oriente.! Esta! movimentação
obrigou! a! Estilicão! a! trazer! tropas! de! outras! regiões! do! Império! para! enfrentar! a
Alarico,! vencendo"o,! mas! não! de! maneira! definitiva.!A! presença! deste! contingente
godo!nas!proximidades!da!Itália,!por!mais!que!temporariamente!apaziguado,!acabaria
por!tornar"se!um!problema!crescente!nos!anos!seguintes.
Em!405,!outro!chefe!bárbaro!chamado!Radagaiso!também!atravessou
os!Alpes! e! saqueou! parte! da! Itália.! Estilicão! se! viu,! novamente,! obrigado! a! trazer
tropas!de!outras! regiões!do! Império!para!enfrentar!este! inimigo,!que!acabou!sendo
56 NATAL VILLAZALA, D. Sed non totus… p. 31257 Oros. VII, 36, 3.
38
vencido!com!certa!facilidade.!Apesar!disso,!esta!invasão!acabou!desencadeando!uma
série!de!outras!crises!e!problemas!no!Império,!como!veremos!a!seguir.
Em!meados!de!406,!se!iniciaram!na! Britania!uma!série!de!revoltas!que
culminaram! em! três! usurpações! em! um! curto! período! de! tempo.!Tais! usurpações,
incluindo!a!de!Constantino!III!que!é!um!dos!temas!principais!do!presente!trabalho,!já
foram!analisadas!no!primeiro!capítulo.
Nos! últimos! dias! do! ano! de! 406,! o! limes! do! Reno! foi! rompido! por
grupos!de!suevos,!vândalos!e!alanos,!que!entraram!nos!territórios!imperiais.!Segundo
Maria!Sonsoles!Guerras,!o!enfraquecimento!da!defesa!que!permitiu!o!rompimento!do
limes!foi!uma!conseqüência!direta!da!retirada!de!tropas!para!a!defesa!da!Itália,!levada
a! cabo!por!Estilicão58.!Este! fator!acabou! levando!a!perda!do! controle!da! Galia!por
parte!do!governo!de!Ravena!graças!ao!descontentamento!da!população! local! com
relação!a!falta!de!proteção!e!à!alternativa!de!apoio!oferecida!por!Constantino!III!com
políticas!muito!mais!eficientes!para!a!defesa!da!região.
Após!estes!reveses,!a!figura!de!Estilicão!acabou!enfraquecida!perante
a!corte!de!Honório.!Uma! tentativa!de!pactuar!com!Alarico!para!que!este! lutasse!em
nome!de!Roma!contra!o!usurpador!estabelecido!na! Galia!e!os!outros!povos!que!se
instalavam! na! região! acabou! aumentando! os! sentimentos! antigermânicos! da! corte.
Além!disso,!após!a!notícia!da!morte!de!Arcádio!no!oriente,!Estilicão!se!preparou!para
uma! viagem! a! Constantinopla! para! assegurar! seus! interesses! de! estender! sua
influência!a!parte!oriental!do!Império.!Estes!acontecimentos!aumentaram!ainda!mais!o
descontentamento!na!corte!e!Estilicão!foi!acusado!de!vender!cargos!militares,!utilizar
o!exército!em!proveito!particular!e!de!tentar!impor!seu!filho!como!imperador.!Piorando
ainda!mais!sua!situação,!seus!principais!aliados!godos,!encabeçados!por!Saro!–!rival
de!Alarico!–!também!se!revoltaram!com!a!perspectiva!de!que!o!rei!visigodo!acabaria
recebendo!melhores!condições!na!campanha!que!organizava.!Estilicão!ordenou!então
que! se! fechassem! as! portas! das! cidades! onde! estavam! as! mulheres! e! filhos! dos
soldados! bárbaros! recrutados! no! exército! romano,! conseguindo! assim! reféns! para
tentar!chegar!a!uma!negociação.!Porém,!antes!de!que! isso! fosse!possível,!Honório
ordenou!a!prisão!de!Estilicão,!aconselhado!pelo! magister!officiorum! Olimpio,!que!se
tornaria!o!novo!homem!forte!do!imperador.!Estilicão!acabou!executado!em!agosto!de
408.!A!grande!maioria!dos!partidários!do!general!acabou!tendo!sorte!similar.
58 GUERRAS, M. S. Os Povos Bárbaros. São Paulo: Ática, 1987. p. 46.
39
O! novo! governo! de! fato,! encabeçado! por! Olímpio,! assumiu! uma
postura! claramente! antigermânica.! Os! soldados! romanos! aquartelados! na! Itália
massacraram!as!mulheres!e! filhos!dos!soldados!germânicos!que!haviam!apoiado!a
Estilicão!e!no!momento!eram!reféns!em!uma!ação!de!adesão!ao!novo!regime.!Além
disso,!o! magister!officiorum! se! recusou!a!continuar!as!negociações!com!Alarico.!O
principal! resultado!desta!política! foi!o! reforço!dos!contingentes!do! rei!visigodo!com
uma!grande!quantidade!de!soldados!germanos!que!desertaram!do!exército!romano.
Insatisfeito! com! esta! situação! política,! Alarico! invadiu! novamente! a! Itália! com! o
objetivo!de!obrigar!o!imperador!a!negociar.!Após!dois!anos!de!pressão,!tentativas!de
negociação!e! três!cercos!à!Roma,! finalmente!em!Agosto!de!410,!a!Cidade!Eterna!–
que! havia! permanecido! invicta! por! vários! séculos! –! foi! saqueada! pelos! soldados
visigodos.!Este!acontecimento! terá!um! impacto!bastante!profundo!no! imaginário!do
momento.
Neste! meio! tempo,! a! situação! na! Galia! não! era! das! melhores.! Já
trabalhamos! no! primeiro! capítulo! os! problemas! enfrentados! entre! Constantino! III! e
seu! general! Geroncio.! É! interessante! recordarmos! o! resultado! dessa! disputa:
Geroncio!pactuou!com!alguns!dos!grupos!de!bárbaros!que!haviam! rompido!o! limes
renano! alguns! anos! antes! e! os! convidou! para! que! entrassem! em! Hispania! para
aumentar! seu! contingente! de! soldados,! entre! Setembro! e! Outubro! de! 409.! Nesta
disputa! entre! usurpadores,! quem! acabou! sendo! favorecido! foi! Constancio! –! novo
magister!militum! de!Honório!e!novo!homem!forte!de!Ravena!após!do!curto!período!de
hegemonia!de!Olímpio!–!que!preparou!um!ataque!à!Arlès,!capital!de!Constantino! III
enquanto!as!tropas!de!Geroncio!a!sitiavam.!O!resultado!desta!campanha!foi!a!fuga!de
Geroncio,! que! acabou! suicidando"se! após! uma! rebelião! de! seus! soldados! e! a
deposição! de!Máximo,! enquanto! a! aristocracia! de!Arlès! se! rendeu! a!Constancio! e
entregou!Constantino!III!sem!batalha.!Apesar!da!vitória!da!causa!de!Honório,!a! Galia
e! a! Hispania! acabaram! sendo! ocupadas! de! maneira! definitiva! por! contingentes
bárbaros! que! fizeram! a! balança! do! poder! se! modificar! irreversivelmente! contra! o
poder!dos!imperadores!romanos.
Após!todas!estas!crises,!ainda!podemos!citar!outras!duas!tentativas!de
usurpação,!uma!acontecida!na! Galia,! levada!a!cabo!por!Jovino!apoiado!por!alguns
dos!grupos!bárbaros!ali!estabelecidos!e!alguns!dos!antigos!partidários!de!Constantino
III! e! Heracliano! em! Africa,! que! bloqueou! as! remessas! de! grãos! africanos! que
abasteciam!a! Itália.!Ambas! foram! resolvidas! com! relativa! facilidade! se! levamos!em
40
consideração! todas!as!complicações,!porém!são!significativas!–! junto!com! todas!as
outras!–!do!período!de!instabilidade!vivido!pelo!Império!Romano!do!Ocidente!durante
o! reinado!de!Honório.!Mas!apesar!de! tudo! isso,!Honório! logrou!manter"se!no!poder
durante!vinte!e!oito!anos!(395"423),!marca!que!pouquíssimos! imperadores!atingiram
antes!dele,!e!nenhum!depois59.!Parece"nos!muito!significativo!o! fato!de!Honório,!em
um!período!tão!turbulento,!tenha!conseguido!manter"se!no!poder!por!tanto!tempo.
2.2. Como Orósio vê os Imperadores?
Nesta!seção!analisaremos!a! forma!qual!Orósio,!em!sua!História!Contra!os!Pagãos,
apresenta!os!reinados!dos!imperadores!da!dinastia!teodosiana,!Teodósio!I!e!Honório.
Para! tanto,! não! podemos! nos! esquecer! do! objetivo! principal! da! obra! escrita! pelo
presbítero!hispano:!provar!aos!pagãos!que!os!tempos!cristãos!são!mais!felizes!que!os
tempos! cristãos.! A! influência! deste! objetivo! durante! a! narração! dos! feitos! deste
período!se!tornará!bastante!clara!no!decorrer!da!análise.
2.2.1. Teodósio I na História Contra os Pagãos
A! primeira! referência! que! encontramos! sobre!Teodósio! I! na! obra! de
Orósio! é! o! momento! da! condenação! e! execução! de! seu! pai60.! Pouco! se! fala,! é
verdade,! sobre! o! futuro! imperador,! a! não! ser! pela! citação! de! que! o! personagem
condenado!é!o!pai!dele,!porém!demonstra!algumas!características! interessantes!de
sua! família.! Flávio! Teodósio! não! tem! medo! da! morte! e! se! entrega! ao! algoz
encarregado!de!efetuar!sua!sentença!sem!nenhum!tipo!de!resistência,!pois!acreditava
que! após! sua! vida! caracterizada! por! Orósio! como! gloriosa! na! terra,! encontraria
também!a!glória!na!vida!eterna.!Desde!esta!primeira!referência,!já!podemos!imaginar
quais!serão!as!principais!características!dos!membros!da!família!teodosiana!durante!o
desenrolar!da!narrativa!orosiana.
Saltamos!então!para!o!momento!da!ascensão!de!Teodósio!I!ao!poder.
É! bastante! explícito! por! Orósio! o! fato! de! Teodósio! I! haver! sido! escolhido! para! o
59 Seguindo a lista de imperadores apresentada por Gonzalo Bravo em Hispania y el Imperio, apenasAugusto, que reinou 41 anos e Constantino I que reinou 31 anos atingiram marcas superiores. Alémdestes, somente superaram os vinte anos de governo Tibério (23 anos), Adriano (21 anos), AntoninoPio (23 anos) e Dioclesiano (21 anos), sendo que todos eles marcam períodos considerados deestabilidade. Também superaram os vinte anos de reinado os sucessores de Honório, sua irmã GalaPlacídia (425-450) e seu sobrinho Valentiniano III (425-455), que reinaram paralelamente e tambémviveram um grave período de instabilidade.60 Oros. VII, 33, 5-7.
41
comando!do! Império!do!Oriente!por!Graciano!após!a!morte!de!Valente,!sendo!que
Orósio! tece! uma! comparação! entre! Graciano! e! Nerva,! por! conta! da! boa! visão! de
ambos!em!escolher!um!imperador!hispano,!e!Teodósio!e!Trajano,!por!serem!hispanos61.!Em!ambas!as! comparações,!os! imperadores!mais!próximos! cronologicamente!a
Orósio!saem!com!vantagem.!Graciano! fez!uma!escolha!melhor!que!a!de!Nerva,! já
que!Teodósio!era!semelhante!em! todas!as!virtudes! terrenas!a!Trajano,!mas! tinha!a
grande!vantagem!de!ser!cristão!e!ter!fé!em!sua!religião62.!
Esta! comparação! entre! Teodósio! e! Trajano! é! bastante! interessante,
pois! pode! nos! demonstrar! duas! coisas,! a! primeira! é! uma! espécie! de! sentimento
regionalista!orosiano!por!defender!o!fato!de!serem!hispanos!como!uma!característica
que!os!torna!bons!imperadores!e,!muito!mais!importante!que!isso,!o!engrandecimento
de!Teodósio! já!que!Trajano!é!um! imperador!considerado! tradicionalmente!como!um
grande! e! glorioso! imperador63! mas! que,! do! ponto! de! vista! dos! cristãos,! está
manchado!pelo!fato!de!haver!sido!um!perseguidor.!Já!Teodósio!aparece!para!Orósio
como! um! Trajano! melhorado,! que! ao! invés! de! perseguir! será! responsável! por
propagar! a! Igreja.! E! como! prova! da! superioridade! de! Teodósio,! resultado! de! seu
favorecimento! divino,! este! foi! capaz! de! criar! uma! dinastia! que! ainda! comanda! o
Império!no!momento!que!escreve!Orósio,!enquanto!Trajano!não!teve!filhos64.
Para! Orósio,! o! estado! oriental! estava! arruinado! pela! ira! de! Deus65,
portanto!só!poderia!ser! restaurado!por!sua!misericórdia.! !Neste!sentido,!a! figura!de
Teodósio!seria!o! ideal!para! tal!empresa,! já!que!através!de!sua!confiança!em!Cristo
venceu! inúmeros! inimigos! temidos! durante! gerações! e! gerações.! Neste! ponto,! o
presbítero!hispano!faz!outra!comparação!bastante!interessante!entre!Teodósio!e!outro
ícone! da!Antiguidade! Clássica:!Alexandre.! O! imperador! cristão! foi! capaz! de! infligir
uma!derrota!significativa!aos!povos!escitas,! temidos!graças!a!seu!grande!número!e
deixados!de! lado!pelo!rei!macedônico66,!além!de!derrotar!também!a!alanos,!hunos!e
godos.!Neste!sentido,!Orósio! torna!a! figura!de!Teodósio!maior!que!a!de!Alexandre,
61 Oros, VII, 34, 2.62 Oros, VII, 34, 3.63 Na obra de Orósio, o reinado de Trajano está descrito em VII, 12. Em linhas gerais, ele éapresentado como um imperador vitorioso que foi capaz de reorganizar um estado arruinado eexpandir as fronteiras do Império, mas é também considerado responsável por uma série dedesastres naturais e revoltas que aconteceram neste período e mataram muitas pessoas por conta desua perseguição aos cristãos.64 Oros. VII, 34, 4.65 O estado sofria com a ira de Deus pelo fato de Valente ter sido um herege e perseguidor daortodoxia. Ver Oros. VII, 33, 9, 17 e 19.66 Oros, VII, 34, 5.
42
tradicionalmente! visto! como! um! ideal! de! rei! e! general! pelos! pagãos.!E! para! todos
estes!feitos,!contou!apenas!com!um!pequeno!exército67.
Dois! importantes! inimigos! descritos! por! Orósio! são! pacificados! sem
grandes!batalhas,!graças!apenas!às!virtudes!do! imperador!cristão,!em!especial!sua
valentia!e!sua!bondade.!São!eles!os!godos,!que!após!a!morte!de!seu!rei!Atanarico!se
entregam! ao! poderio! romano68! e! os! persas! enviaram! voluntariamente! legados! a
Constantinopla! e! suplicaram! pela! paz69.! A! valentia! está! relacionada! com! as! suas
vitórias!militares!apresentadas!como! improváveis!por!Orósio!se!não!fosse!pela!ajuda
divina!e!sua!bondade,!especialmente!com! relação!aos!godos,!está! relacionada!com
sua!inclinação!à!cumprir!os!pactos!firmados!com!este!povo!em!oposição!à!exploração
a!qual!foram!submetidos!pelos!legados!do!antecessor!de!Teodósio!I!que!culminaram
com!a!derrota!de!Adrianópolis.
A!rebelião!de!Máximo,!seguida!pela!derrota!e!morte!de!Graciano!e!do
desterro!do!jovem!Valentiniano!II!obriga!ao!Imperador!do!Oriente!intervir!em!assuntos
do!Ocidente.!Em!um!primeiro!momento,!Teodósio! I!acolhe!a!Valentiniano! II!durante
sua! fuga,! com! um! amor! paternal70.!Este! amor! acabará! justificando! a! proeminência
que!Teodósio! tentará! impor!no!ocidente!após!a!derrota!de!Máximo,! já!que!Teodósio
acabará! por! tornar"se! uma! espécie! de! tutor! do! jovem! imperador! do! ocidente.! E! a
guerra!contra!o!usurpador!será!considerada!justa!e!necessária,!já!que!o!assassinato!e
o!desterro!daqueles!que!são!considerados!seus!irmãos!por!conta!de!sua!condição!de
Augusto! exigiam! a! vingança.! Porém,! a! única! vantagem! de! Teodósio! neste
enfrentamento!é!sua!fé,!já!que!em!quantidade!de!tropas!e!em!posições!estratégicas!o
inimigo!é!superior71.
E! a! fé! de! Teodósio! é,! novamente,! recompensada.! O! general! de
Máximo,!Andragatio,!abandona!sua!posição!para!tentar!antecipar!o!encontro!de!suas
tropas! com! as! do! imperador! do! Oriente! e,! graças! à! intervenção! divina,! acaba
desencontrando! o! exército! de! Teodósio! e! deixa! livre! as! passagens! dos! Alpes,
possibilitando! desta! maneira! que! a! vitória! do! imperador! cristão! acontecesse! sem
nenhuma! batalha,! sem! derramar! sangue! além! das! mortes! do! usurpador! e! seu
general,!graças!somente!a!ajuda!divina72.
67 Oros, VII, 34, 6.68 Oros, VII, 34, 7.69 Oros, VII, 34, 8.70 Oros, VII, 34, 10.71 Oros, VII, 35, 2.72 Oros, VII, 35, 3-7.
43
Neste!ponto,!Orósio!antecipa!uma! característica!apresentada!por!ele
para!as!guerras!levadas!a!cabo!pelos!imperadores!legítimos!cristãos:!grandes!vitórias
sem!grandes!batalhas73.!Durante!o! restante!do! reinado!de!Teodósio!e!o! reinado!de
Honório,! Orósio! afirma! que! todas! as! vitórias! conseguidas! pelos! imperadores! são
simples!e!puras,!e! terminam! sempre! com!uma!paz! verdadeira!e!praticamente! sem
derramamento!de!sangue74.
Antes! de! voltarmos! ao! texto! de! Orósio! propriamente! dito,! cabe! um
pequeno!comentário.!Quando!discutimos!a!usurpação!de!Máximo,!comentamos!que!a
cronologia!é! suprimida!para!que!não!existisse!nenhuma! impressão!de!estabilidade
durante!seu!reinado.!Pensando!agora!no!ponto!de!vista!da! imagem!que!Orósio!quer
passar!de!Teodósio,!essa!supressão!da!cronologia!também!pode!ser!relacionada!com
a!demonstração!de!uma!resposta!rápida!do!imperador!do!Oriente!contra!o!usurpador,
quando!sabemos!que!ele!reinou!durante!praticamente!cinco!anos!antes!que!Teodósio
pudesse! intervir,! por! conta! de! seus! problemas! no! Oriente.! O! pacto! que! legitimou
durante! algum! tempo! o! usurpador! também! não! é! citado,! provavelmente! com! um
objetivo!semelhante,!como!já!discutimos75.
O! próximo! acontecimento! relacionado! ao! reinado! de! Teodósio! I! na
narrativa!orosiana!é!a!morte!de!Valentiniano! II.!O!general!Arbogastes!é!apresentado
como! o! assassino! –! que! teria! cometido! o! crime! com! suas! próprias!mãos! –! e! que
tentou!dissimular!a!morte!do!jovem!imperador!montando!um!cenário!de!suicídio76.
Começam! então! os! preparativos! para! a! guerra.! Arbogastes! nomeia
Eugênio!como!Imperador,!para!atuar!como!um!fantoche!seu!e!recruta!grande!numero
de! tropas,!muitas!delas!caracterizadas!como! invictas!pelo!historiador!cristão,!o!que
demonstra! sua! tentativa! em! aumentar! o! poder! dos! usurpadores! em! detrimento! ao
poderio!de!Teodósio77.
Neste!momento!da!obra,!é!bastante! interessante!como!Orósio!evoca
um!elemento!característico!da!historiografia!pagã!para! legitimar!a!veracidade!do!que
ele!está!narrando:!não!é!necessário!engrandecer!estes!feitos,!já!que!são!conhecidos
por!muitos!e! inclusive!existem!muitas! testemunhas!oculares!que!podem!comprová"
los.!Após!esta!afirmação,! retorna!às!suas!origens!cristãs!para!afirmar!que!a!vitória
73 Oros, VII, 35, 6.74 Oros, VII, 35, 9.75 Ver tópico 1.3.1 do presente trabalho.76 Oros, VII, 35, 10.77 Oros, VII, 35, 11.
44
apenas!foi!alcançada!graças!a! intervenção!divina!e!não!por!conta!da!suficiência!das
tropas!de!Teodósio78.
Muito! significativo! para! entendermos! a! imagem! que! Orósio! faz! de
Teodósio! é! a! descrição! que! o! presbítero! hispano! faz! do! imperador! durante! os
preparativos! da! batalha.! Teodósio! estaria! abandonado! pelos! seus,! privado! de
alimento!e!cercado!por!inimigos.!Nesta!situação!complicada,!passou!a!noite!toda!em
claro! rezando! e! ao! amanhecer,! fez! o! sinal! da! cruz! e! atacou! sozinho! as! tropas
inimigas,!confiante!que!venceria!por!ter!Deus!a!seu!lado.!Tudo!parecia!encaminhar"se
para! a! morte! do! imperador,! porém! o! comandante! das! tropas! que! por! ele! foram
atacadas,!ao! invés!de!ordenar!sua!prisão!ou!morte,! ficou!comovido!com!a!presença
de!Teodósio!e!passou!para!o!lado!dele79.
Nos! momentos! anteriores! à! batalha,! uma! se! inicia! uma! grande
ventania!que!atrapalha!os! inimigos!e!ajuda!as! tropas!do! imperador,! interpretada!por
Orósio!como!a!ajuda!divina!ao!imperador!legítimo!contra!os!usurpadores.!Apavorados
com!esta!situação,!o!exército! inimigo!acaba!se!rendendo!e!apenas!seus! líderes!são
punidos80.!A! vitória! de! Teodósio! I! é! interpretada! sendo! um! juízo! dos! céus! contra
aqueles!que!são!arrogantes!com!sua!própria!força!e!confiam!em!seus!ídolos!em!favor
daqueles!que!esperam!humildemente!a!ajuda!do!Deus!cristão81.
A! partir! desta! leitura,! podemos! perceber! que! a! principal! virtude! de
Teodósio! I! segundo! a! interpretação! de! Orósio! é! sua! fé.! As! outras! virtudes
apresentadas,! em! especial! sua! bravura! relacionada! aos! seus! feitos! militares,! são
apresentadas! como! conseqüência! da! fé.! Por! exemplo,! quando! Teodósio! vence! a
todos! os! inimigos! no! início! de! seu! reinado,! levando! consigo! apenas! um! pequeno
exército,!se!pode! identificar!a!bravura,!porém!ela!só!existe!porque!o! imperador! tem
confiança!em!seu!Deus!e!é! isso!que!garante!sua!vitória.!Esta!mesma!conclusão!se
pode! extrair! do! momento! em! que! o! imperador! ataca! sozinho! as! tropas! inimigas
durante!o!enfrentamento!com!Eugênio.!Se!um!personagem!sem!a!característica!da!fé
tivesse!feito!a!mesma!ação,!seria!apenas!um! imprudente.!Porém,!com!a!fé,!se!torna
bravura!e!consegue!resultados!positivos.
Em!vários!momentos,!a! impressão!que! temos!é!de!que!Teodósio! tem
tudo!a!perder,!porém!sempre!vence!graças!a!intervenções!divinas,!que!são!resultado
78 Oros, VII, 35, 12.79 Oros, VII, 35, 14-16.80 Oros. VII, 35, 17-19.81 Oros, VII, 35, 22.
45
de!sua!fé.!Desta!maneira,!podemos!afirmar!que!para!Orósio!a!própria!manutenção!do
Império!e!principalmente!do! imperador!é!resultado!da!vontade!divina,!e!esta!vontade
divina!se!torna!a!própria!legitimação!do!poder!deste!imperador!em!detrimento!a!seus
opositores.
Pensando!na!cronologia,!Orósio!a!utiliza! também!como!uma! forma!de
legitimação.!As!datas!do! reinado!de!Teodósio!não!são!marcadas!precisamente,!e!o
espaço!que!este! reinado!ocupa!na!obra! também!não!é!muito!extenso.!A! impressão
que! temos! com! a! leitura! é! a! de! que!Teodósio! não! reinou! por! muito! tempo.!Ainda
assim! foi! capaz! de! levar! a! cabo! inúmeros! feitos! e! restaurou! o! estado! de! maneira
satisfatória82,! graças! a! sua! fé! e! a! intervenção! divina,! mesmo! dispondo! de! pouco
tempo!para!isso.
2.2.2. Honório na História Contra os Pagãos
Logo!no!princípio!do! trecho! relativo!ao!governo!de!Honório,!Orósio! já
apresenta! aquela! que! é,! para! ele,! a! principal! característica! do! Imperador:! sua! fé.
Enquanto! nenhuma! outra! criança! que! havia! assumido! a! púrpura! chegou! à! idade
adulta! com! facilidade,!Honório! o! conseguiu! graças! à! tutela! de!Cristo,! resultado! da
grande!fé!do!jovem!imperador!e!também!de!seu!pai83.!A!fé!é!uma!característica!e!um
instrumento!que!será!ao!longo!do!texto!tratado!como!fundamental!por!Orósio.
Os!partidários!do!Imperador!também!são!agraciados!pela!fé.!Mascazel
logrou!vencer!a!seu!irmão!Gildón!sem!batalha!graças!a!sua!fé,!na!qual!confiou!por!ter
conhecido!os! feitos!de!Teodósio84,!que! levou!à! intervenção!de!Ambrósio!de!Milão!–
que!havia!morrido!poucos!dias!antes!e!teria!aparecido!como!santo!em!um!sonho!de
Mascazel!–!mostrando!o!caminho!da!vitória85.
Já!a!figura!de!Estilicão!na!obra!de!Orósio!tem!uma!sorte!bem!diferente.
Tal! personagem! é! representado! sempre! como! ambicioso! e! acusado! desde! sua
primeira! aparição! de! querer! substituir! o! imperador! legítimo! por! seu! filho! Euquério.
Notável!é!que!sua!pretensão!de! fazer! isto!no!oriente!não!é!citada,!assim!como!em
nenhum!momento!sua!ambição!é!dita!em!termos!de!aumentar!sua!área!de!influência
ao! oriente.! Além! disso,! é! considerado! culpado! de! todos! os! males! sofridos! pelo
82 Oros, VII, 35, 23.83 Oros. VII, 36, 3.84 Oros. VII, 36, 5.85 Oros, VII, 36, 7.
46
Império! na! mão! dos! bárbaros86,! pois! além! de! ajudá"los,! os! teria! utilizado
conscientemente!para!desgastar!e!aterrorizar!o!estado87.!Com!relação!à!religião,!nada
se! fala! sobre! Estilicão! propriamente! dito,! porém! cita! que! seu! filho! já! tramava
perseguições!aos!cristãos!para!assim!que!assumisse!o!poder.!Assim!como!Honório!é
considerado!um!homem!de! fé!por!conta!da!herança!de!seu!pai,!Euquério!seria!um
idólatra! graças! a! seu! pai,! e! logo! não! seria! digno! de! nenhum! apreço! por! parte! de
Orósio.
Durante! a! invasão! de! Radagaiso,! inimigo! pagão88,! tudo! parecia
perdido.!Porém,!graças!a!fé!do!imperador!Honório!se!apresenta!a!misericórdia!divina89
e!antigos! inimigos!se! tornaram!aliados!contra!a!ameaça90,!mas!Orósio!assinala!que
Deus!não!deixa!dúvida!de!que!a!vitória!se!consegue!somente!por!sua!intervenção,!já
que! novamente,! e! apesar! dos! reforços,! o! inimigo! é! derrotado! sem! batalha91.! Esta
misericórdia! divina,! apesar! de! abarcar! todas! as! pessoas! de!Roma,! na! verdade! se
dirige! apenas! àqueles! que! acreditam! em! Deus,! pois! ela! é! temporária,! já! que! a
punição!contra!os!idólatras!viria!em!seguida!com!Alarico.!Inimigo,!mas!cristão92.
Finalmente,!quando!as!armações!de!Estilicão! foram!descobertas!pelo
exército,! ocorreu! uma! rebelião! contra! o! general,! considerada! justa! pelo! presbítero
hispano!por!estar!de!acordo!com!os!interesses!do!Imperador!e!tanto!Estilicão,!quanto
seu! filho! e! alguns! dos! seus! poucos! seguidores! foram! punidos.! Assim! se! podiam
considerar! livres,! tanto! o! próprio! Imperador! quanto! as! comunidades! cristãs,! deste
personagem!tão!odiado!por!Orósio93.
Apesar! da! fé! do! Imperador,! a! cidade! de! Roma! ainda! merecia! uma
punição!por!tantas!blasfêmias94.!Sendo!assim,!o!rei!visigodo!Alarico!sitia!e!saqueia!a
Cidade! Eterna.! O! capítulo! 39! do! sétimo! livro! da! História! Contra! os! Pagãos! é! a
narração! de! acontecimentos! relativos! a! este! acontecimento.! O! que! se! desprende
desta!descrição!são!duas!coisas!principais.!A!primeira!é!que!o!castigo!é!merecido,!e!a
segunda!que!o!saque!não!foi!tão!duro!quanto!poderia!ter!sido,!graças!ao!cristianismo
de!Alarico95.
86 Oros. VII, 37,1.87 Oros, VII, 38, 2-3.88 Oros. VII, 37, 5.89 Oros, VII, 37, 11.90 Oros, VII, 37, 12.91 Oros, VII, 37, 14.92 Oros. VII, 37, 17.93 Oros. VII, 38, 5-6.94 Oros. VII, 38, 7.95 Oros, VII, 39, 1-18.
47
As!usurpações!na! Britania!são!consideradas! ilegais!desde!o!principio
da!descrição!de!Orósio96.!Orósio!sente!grande!pesar!quando!narra!o! fato!de!que!o
filho!de!Constantino!III!foi!obrigado!a!deixar!a!Igreja!para!tornar"se!César!de!seu!pai,
soltando!neste!momento!uma!expressão!de!dor97.!Orósio!também!condena!a!aliança
deste! personagem! com! os! bárbaros98! e! os! saques! perpetuados! por! estes! na
Hispania99.!Apesar!disso,!Orósio!ameniza!a! situação!afirmando!que!os!hispanos! já
passaram!por!situações!semelhantes!outras!vezes,!ou!seja,!não!se! tratava!de!uma
novidade! gravíssima100.!Além! disso,!Orósio! afirma! novamente! que! se! trata! de! uma
justa!punição,!sendo!este!fato!reconhecido!por!aqueles!que!temem!ao!Deus!cristão!e
que! aqueles! que! não! conhecem! a! religião! não! seriam! capazes! de! agüentar! tal
punição,! por! considerá"la! injusta101.!E! apesar! da! punição! justa,! a!misericórdia! para
com! aqueles! que! têm! fé! é! expressa,! já! que! todos! que! quisessem! fugir! poderiam
contar!com!os!próprios!bárbaros!que!afligiam!a!terra!como!defensores102.!Mesmo!em
meio!à! ruína!do! Império,!Orósio!encontra!argumentos!positivos.!Em! troca!da! ruína,
muitos!bárbaros!descobrem!a!religião!cristã!e!se!convertem,!enchendo!desta!maneira
as!Igrejas103.
O!presbítero!hispano!vê!de!maneira!bastante!positiva!a!ascensão!de
Constancio,!afirmando!que!a!volta!do!comando!do!exército!às!mãos!de!um!romano,
depois!de!vários!anos!sob!comando!de!bárbaros!(Estilicão,!por!exemplo)!é!de!grande
utilidade!para!o!estado!romano104.!Através!deste!general,!Honório!é!capaz!de!derrotar
a! todas! as! crises! encontradas! em! seu! reinado,! principalmente! as! usurpações! de
Constantino! III105,!de!Geroncio!e!Máximo106,!de!Jovino107!e!Heracliano108.!O! legítimo
imperador! mereceu! derrotar! todos! seus! inimigos! com! justiça,! graças! a! sua
extraordinária!fé!e!sorte109.
Neste!sentido,!podemos!afirmar!que!a!visão!positiva!que!Orósio!faz!do
reinado!de!Honório!está!apoiada!em!dois!principais!pilares.!O!primeiro!é!o!fato!de!que96 Oros, VII, 40, 4.97 Oros, VII, 40, 7.98 Oros, VII, 40, 7.99 Oros, VII, 40, 8-10.100 Oros, VII, 41, 2.101 Oros, VII, 41, 3.102 Oros, VII, 41, 4.103 Oros. VII, 41, 8.104 Oros, VII, 42, 1-2.105 Oros, VII, 42, 3.106 Oros, VII, 42, 4-5.107 Oros, VII, 42, 6.108 Oros, VII, 42, 11-14.109 Oros, VII, 42, 15-16.
48
em! todos!os! revezes,!derrotas!ou! crises!a! responsabilidade!nunca!é!do! Imperador
propriamente!dito.!A!culpa!sempre!recai!em!um!personagem!considerado! indigno!de
seu!posto!ou!então!é!entendida!como!uma!punição!divina,!sempre! justa,!contra!os
pecadores! que! vivem! dentro! dos! limites! do! Império.! Já! todas! as! vitórias,! são
atribuídas!à! fé!de!Honório!e!de!seus!seguidores,!numa!nítida!noção!de!é!a!própria
vontade!divina!que!mantém!o!Imperador!em!seu!posto.!Disso,!podemos!concluir!que
para!Orósio!a!principal!virtude!que!um!Imperador!deve!ter!é!a!fé.
Além! disso,! a! fica! clara! a! preferência! por! romanos! aos! bárbaros! na
oposição!que!se!pode! fazer!entre!as! imagens!de!Estilicão!e!Constancio,!e!em!uma
escala!maior,!a!preferência!aos! cristãos! invés!dos!pagãos,!mesmo!que!os! cristãos
sejam!bárbaros!e!os!pagãos!romanos,!como!se!pode!notar!na!narração!dos!feitos!de
Alarico.
Neste!sentido,!podemos!concluir!que!a!visão!positiva!dos!reinados!de
Teodósio!e!de!Honório!com!o!objetivo!geral!da!obra!de!Orósio,!que!seria!como!vimos
acima,!demonstrar!como!os!tempos!cristãos!são!mais!felizes!que!os!tempos!pagãos.
Orósio! afirma! que! uma! das! provas! desta! felicidade! é! o! fato! de! encontrarmos! nos
tempos!cristãos! inumeráveis!vitórias!com!pouco!derramamento!de!sangue,!nenhuma
luta!e!quase!sem!mortes110.!Conforme! já!se!havia!antecipado!em!que!grande!parte
das! vitórias! atribuídas! aos! imperadores! cristãos! narradas! por! Orósio! se! encaixam
nesta!descrição.!Neste!sentido,!as!próprias!visões!positivas!acerca!dos! reinados!de
Honório!e!de!Teodósio! são!alguns!dos!principais!argumentos!do!historiador! cristão
para!provar!sua!principal!tese.
110 Oros, VII, 43, 16-17.
49
CONCLUSOES PARCIAIS
Em! um! primeiro! ponto! destas! conclusões,! compararemos! as! imagens! de
Teodósio! I! e! Máximo! a! partir! de! nossa! análise! da! História! Contra! os! Pagãos! de
Orósio.!Ambos!os!personagens! tem!alguma!semelhança!em!alguns!aspectos,!pelo
fato!de!ambos!serem!hispanos!e!cristãos.!Máximo!ainda!é!considerado!um!homem
enérgico!que!poderia!ter!sido!um!imperador!eficiente!se!não!fosse!por!conta!de!sua
falta! de! fidelidade.! Já! Teodósio,! além! ter! sua! eficiência! ressaltada! com! tantas
vitórias,! é! apresentado! como! portador! da! virtude! da! fidelidade,! uma! vez! que! é
encarregado!de! trazer!a!vingança!contra!o!usurpador!que!assassinou!o! imperador
que!o!nomeou!ao!augustado.!Esta!pode!ser!a!primeira!diferença!que!podemos!notar
entre!a!imagem!criada!do!usurpador!em!oposição!ao!imperador!legítimo:!a!ausência
de!fidelidade!no!primeiro!enquanto!esta!é!uma!característica!marcante!do!segundo.
Existem! outras! características! que! podem! ser! trabalhadas! neste! mesmo
sentido.!Máximo!é!caracterizado!por!Orósio!como!um!homem!cruel,!apesar!de!não
exemplificar!em!que!sentido!esta!característica!se!manifrestou.!Já!Teodósio!exerce
sempre!que!possível!a!clemência.!Apesar!de!o!presbítero!hispano!não!utilizar!esta
palavra!quando! trate!do! Imperador,! temos!pelo!menos! três!ocasiões!que!podemos
identificar!a!utilização!desta!virtude!pelo!Imperador!do!Oriente:!a!primeira!é!quando
derrota! os! godos! e! após! a! morte! de! Atanarico! os! acolhe! entre! seus! principais
50
aliados,! a! segunda! está! exatamente! na! derrota! de! Máximo,! considerando! que
segundo!o! texto!orosiano!apenas!o!próprio!usurpador! foi!condenado!por!seu!crime
enquanto! seus! apoiadores! foram! perdoados,! e! ainda! na! vitória! sobre! Eugênio,
quando!a!rendição!dos!derrotados!é!aceita!e!novamente!só!as!cabeças!da!rebelião
são!punidas.!Neste!sentido,!enquanto!um!usurpador!é!caracterizado!pela!crueldade,
um!imperador!legítimo!está!sempre!disposto!a!perdoar!seus!opositores!quando!seus
crimes!não!exigem!uma!pena!realmente!severa.
Na!contraposição!entre!Máximo!e!Teodósio!I,!surge!um!terceiro!fator!que!nos
chama! bastante! a! atenção.! O! usurpador,! em! um! sentido! próximo! ao! da! traição,
quando! enfrenta! a! Graciano! pode! também! ser! considerado! um! covarde,! por! ter
atacado!a!este! imperador!antes!de!ele!fosse!capaz!de!organizar!uma!defesa! justa,
assassinando"o!sem!chance!de!defesa,!enquanto!estava!desprevenido.!Já!Teodósio
é!sempre!apresentado!como!estando!em!situações!adversas,!com!menor!número!de
soldados,!em!posições!estratégicas!desfavoráveis!e!mesmo!assim!nunca!deixa!de
atacar!a!seus!inimigos.!Neste!sentido,!podemos!utilizar!como!exemplos!suas!vitórias
na!região!do! limes!danubiano!e,!principalmente,!os!episódios!relacionados!aos!feitos
de!Teodósio! durante! a! usurpação! de!Eugênio! como! já! trabalhamos! acima.!Neste
sentido,! percebemos! que! o! imperador! legítimo! é! caracterizado! pela! virtude! da
bravura!enquanto!o!usurpador!carece!desta!virtude.
Ainda! há! um! quarto! ponto! que! podemos! analisar! e! que! já! enfatizamos
bastante! quando! tratamos! a! questão! dos! imperadores! legítimos! no! segundo
capítulo.!É!a!questão!da!fé.!Máximo!não!é!apresentado!como!um!personagem!que
não! tem!esta! característica,!e!acreditamos!que!quanto!a!este!personagem!quase
nada! com! relação! a! religião! é! citado! na! obra! de! Orósio! por! conta! dos! episódios
relacionados! à! condena! de!Prisciliano,! como! já! trabalhamos! no! primeiro! capítulo,
que! poderiam! gerar! argumentações! em! favor! ao! usurpador! ou! então! dos! pagãos
contra!a!unidade!do!cristianismo.!Porém,!quando!se!dá!o!enfrentamento!direto!entre
Teodósio! e! o! usurpador,! o! presbítero! hispano! deixa! muito! claro! que! a! única
vantagem!do! imperador! legítimo!sobre!Máximo!é!o! fato!de!ele! ter!mais! fé,!e! isso
demonstra!de!certa!maneira!que!esta!característica!não!é!ausente!no!usurpador!em
questão,! apesar! de! aparecer! de! maneira! menos! decisiva! do! que! no! caso! do
imperador! legítimo.! Esta! diferença! na! quantidade! de! fé! entre! ambos! é! a! causa
principal!da!vitória!do!imperador!legítimo!–!escolhido!por!Deus!para!vencer!–!contra
51
o!usurpador!–!destinado!à!derrota,!graças!a! intervenção!divina!direta!apresentada
pelo!historiador!cristão.
Agora!contraporemos!as!imagens!de!Honório!e!Constantino!III.!Com!relação!à
fidelidade,!não!há!nenhuma! referência!clara!com! relação!à!presença!desta!virtude
no! imperador! legítimo,! porém! tampouco! se! pode! afirmar! a! ausência! dela.
Simplesmente! não! há! referência.! E! sua! ausência! também! não! é! explicitamente
citada! quando! Orósio! se! refere! a! Constantino! III,! porém! a! própria! caracterização
como!usurpador! já!pressupõe!sua! inexistência.!Neste!sentido,!é!mais! interessante
pensarmos! na! capacidade! destes! personagens! em! inspirar! a! fidelidade! em! seus
seguidores.! O! presbítero! hispano! cita! a! luta! pela! defesa! da! Hispania! organizada
pelos!parentes!de!Honório!em! resistência!aos!bárbaros!e!aos!usurpadores!e! isso
pode! ser! interpretado! como! uma! forma! de! demonstrar! como! os! seguidores! do
legítimo! imperador!se!mantinham! fiéis!a!sua!causa.!Além!disso,!vemos!Constante
derrotar!inúmeros!inimigos!em!nome!de!Honório,!e!mesmo!sendo!o!pivô!das!vitórias
em!nenhum!momento!as!reclama!para!si,!sendo!desta!maneira!um!seguidor!fiel.!Já
no!caso!de!Constantino! III,!a!situação!é!bastante!diferente.!Primeiro,!Orósio!afirma
ele! não! é! capaz! de! inspirar! a! fidelidade! nos! povos! bárbaros! que! deixa! sob! seu
comando,! já! que! é! frequentemente! enganado! por! eles! graças! a! seu! pouco
desenvolvido! intelecto.!Nesta!mesma! linha,!a!usurpação!organizada!por!Geroncio
coroa!a! falta!de!capacidade!de!Constantino! III!em!manter!a! fidelidade!entre!seus
comandados.
A! bravura! podemos! analisar! a! partir! desta! mesma! linha! de! raciocínio.
Enquanto!Honório! tem!entre! seus!partidários!Dídimo!e!Veriniano!que! lutam!até!a
morte! para! defender! sua! causa! e! um! personagem! como! Constante! –! capaz! de
conseguir! inúmeras!vitórias!–,!Constantino! III!conta!em!suas! linhas!com!Geroncio,
que!além!de! traidor! foge!e!comete!suicídio!na!primeira!adversidade!que!encontra,
quando!os!partidários!de!Honório!marcham!em!direção!a!Arlès!para!livrá"la!do!cerco
que!ele!impusera!a!esta!cidade.!É!bastante!interessar!ambos!os!imperadores!nunca
aparecem! diretamente! no! comando! das! operações! militares! que! levam! a! cabo,
sendo! essa! opção! sempre! legada! a! um! de! seus! comandados.! Neste! sentido,! é
interessante!notar!como!a!bravura!–!ou!a!covardia!no!caso!do!usurpador!–!é!sempre
transmitida!a!estes!personagens!que!comandam!as!tropas!no!campo!de!batalha.
Com! relação!à!clemência,!cada!um!dos!personagens! tem!um!caso!em!que
ela! é! discutida! por! Orósio.! Honório! exerce! esta! virtude! no! momento! em! que! a
52
suposta!rebelião!de!Estilicão!é!descoberta!por!seus!partidários.!Segundo!o!que!nos
conta! o! historiador! cristão,! apenas! os! principais! envolvidos! foram! castigados
enquanto! a! maior! parte! daqueles! que! poderiam! ter! sido! considerados! culpados
foram!perdoados.!Já!em!Constantino!III!esta!virtude!está!completamente!ausente,!já
que,!novamente!citando!o!caso!dos!partidários!de!Honório!na! Hispania,!os! jovens
primos! do! imperador! quando! foram! capturados! foram! logo! executados! assim! que
chegaram!a!sua!presença!em!Arlès.
Porém,!a!mais! importante! característica!atribuída!a!Honório!por!Orósio!é!a
sua!fé.!Como! já!discutimos!no!final!do!primeiro!capítulo,!esta!virtude!é!considerada
pelo!presbítero!hispano!a!causa!de! todas!suas!vitórias,!é!por!conta!dela!que!Deus
intervém!e!o!ajuda!a!manter"se!no!poder,!é!por!conta!dela!que!Honório!é!o!escolhido
por!Deus!para!manter!o!Império!Romano!do!Ocidente.!Já!Constantino!III,!apesar!de
seu! nome! ter! inspirado! alguma! esperança! por! ser! o! mesmo! de! Constantino! I,! o
Grande,!é!caracterizado!como!um!mau!cristão,!principalmente!graças!a!sua!falta!de
clemência! e! a! forçosa! retirada! de! seu! filho! Constante! da! vida! monástica! para
transformá"lo!também!em!um!usurpador.
A! partir! destas! duas! comparações,! podemos! chegar! a! conclusão! que! para
Orósio! são! importantes! para! o! Imperador! cristão! as! virtudes! da! Clemência,
Fidelidade!e!Bravura,!nesta!ordem.!Porém,!acima!de! todas!elas!e!verdadeira! fonte
de! todas! as! outras! está! a! Fé.! Quando! os! imperadores! que! o! presbítero! hispano
apresenta!estas!características!a!alguns!imperadores!e!demonstra!a!ausência!delas
em! outros,! está! tornando! legítimo! o! poder! dos! primeiros! e! transformando! em
ilegítimos!os!segundos.!É!desta! forma!que!Orósio! legitima!o!poder!de!Teodósio! I!e
de!Honório!sobre!seus!rivais!considerados!usurpadores.
Outro!ponto!que!nos!chamou!a!atenção!foi!a!questão!da!hereditariedade.!Ao
início!do!trabalho!já!havíamos!lançado!a!hipótese!de!que!Orósio!legitimava!o!poder
de! Honório! por! considerá"lo! um! continuador! do! trabalho! de! seu! pai! Teodósio! I.
Porém! ao! analisarmos! a! presente! questão! com! maior! profundidade,! percebemos
que!a!hereditariedade!na!obra!do!presbítero!hispano!é!mais!do!que!simplesmente!a
continuação!do!trabalho,!como!veremos!nos!exemplos!a!seguir.
Como!vimos,!a!primeira!referência!que!encontramos!a!Teodósio!I!na!obra!de
Orósio! é! quando! seu! pai,! Flávio!Teodósio,! é! citado.! Neste! trecho! os! feitos! deste
personagens!são!enaltecidos!e!no!momento!de!sua!condenação!a!morte!se!entrega
com!a!segurança!de!quem!sabe!o!que!lhe!espera!após!a!execução.!Neste!pequeno
53
trecho!podemos!identificar!pelo!menos!três!virtudes:!a!bravura!daquele!que!vence!os
seus!inimigos,!a!fidelidade!daquele!que!não!se!revolta!mesmo!sabendo!que!está!em
uma! situação! complicada! e! a! fé! que! é! a! base! de! sua! confiança! na! vida! eterna.
Curiosamente,!são!três!das!quatro!virtudes!que!identificamos!em!Teodósio!I!durante
nossa! análise.! Neste! sentido,! podemos! perceber! um! sintoma! de! que! Orósio
considera! que! as! principais! características! de! um! personagem! podem! ser
transmitidas!de!pai!para!filho.
O!segundo!exemplo!que! identificamos!esta!característica!da!hereditariedade
é! quando! temos! a! descrição! de! Euquério,! filho! de! Estilicão.! Como! foi! discutido
brevemente!no!primeiro!capítulo,!Estilicão!não!é!visto!com!nenhum! tipo!de!apreço
por! Orósio,! que! frequentemente! o! acusa! de! traidor! em! vários! aspectos.! Desta
maneira,! seu! filho! também! não! poderia! ser! diferente,! já! que! é! apresentado! pelo
presbítero! hispano! como! um! personagem! que! desde! criança! já! planejava! em
segredo! iniciar!uma!perseguição!aos!cristãos!no! Império!e!restaurar!desta!maneira
os!cultos!pagãos.!Nos!parece!altamente! inverossímil!que!uma!criança! já! tenha!um
plano! político! traçado,! ainda! mais! nestes! termos,! mas! Orósio! precisa! legitimar! a
execução! dele! assim! como! a! de! seu! pai,! e! desta! maneira! constrói! ambos! os
personagens!de!maneira!bastante!próxima.
Orósio!também!transmite!as!características!encontradas!em!Teodósio!I!a!seu
filho! Honório,! tanto! direta! quanto! indiretamente.! Já! discutimos! acima! sobre! as
virtudes! que! um! imperador! cristão! deve! ter! a! partir! das! descrições! apresentadas
pelo! presbítero! hispano,! e! acreditamos! também! ter! demonstrado! como! elas! se
repetem!de!pai!para!filho.!O!historiador!cristão!chega!em!pelo!menos!um!momento
explicita!de!maneira!bastante!visível!e!direta!a!influência!das!virtudes!de!Teodósio!I
no! reinado!de!seu! filho!Honório,!quando!afirma!que!poucas! foram!os! imperadores
que! assumiram! o! reinado! enquanto! ainda! crianças! e! foram! capazes! de! chegar! à
idade! adulta! sem! enfrentar! uma! série! de! problemas,!mas!Honório! logrou! tal! feito
graças!a!grande!fé!de!seu!pai!que!o!colocou!sob!“tutela!de!Cristo”!antes!de!morrer.
Neste!sentido,!podemos!perceber!que!a!principal!das!virtudes!do!Imperador!cristão
foi!passada!de!pai!para!filho!durante!três!gerações!e!esta!é!a!principal!causa,!não!só
da!legitimidade,!mas!também!do!êxito!alcançado!–!segundo!Orósio!–!por!tal!dinastia.
Em! outro! trecho,! quando! o! presbítero! hispano! tece! a! comparação! entre
Trajano! e!Teodósio,! a! grande! diferença! entre! os! dois! é! exatamente! a! fé! que! dá
vantagens! ao! imperador! cristão.! Esta! mesma! fé! é! novamente! apresentada! como
54
responsável! pelo! êxito! na! formação! de! uma! dinastia! –! já! que! Deus! teria! dado! a
Teodósio!filhos!e!netos!que!ainda!reinavam!no!momento!da!escrita!da!obra!orosiana,
Honório!no!Ocidente!e!Teodósio!II!no!Oriente!–!enquanto!Trajano!não!chegou!a!ter
filhos.
A!partir!destes!trechos,!percebemos!que!a!fé!para!Orósio!é!uma!característica
que! passa! de! pai! para! filho! e! é! considerada! fundamental! para! a! fundação! da
dinastia!teodosiana!e!essencial!para!sua!manutenção!no!poder.!Percebemos!então
que!Orósio!além!de! legitimar!o!poder!de!Honório!pelo! fato!deste!personagem!ser
filho! de!Teodósio! I,! personagem! que! pode! ser! aproximado! ao! ideal! de! imperador
cristão,! também!defende!um!verdadeiro!princípio!de!sucessão!hereditária!do!poder
baseando"se!no!fato!de!que!as!características!de!um!personagem!são!herdadas!por
seus!filhos.!Neste!sentido!o!filho!de!um!bom!imperador!poderia!sempre!tornar"se!um
bom! imperador! espelhado! em! seu! pai.! Já! os! maus! imperadores! –! incluindo! aí
também! os! usurpadores! –! devem! ter! seu! reinado! encerrado! antes! de! que! sejam
capazes!de!criar!uma!dinastia,!já!que!seus!filhos!também!serão!maus!imperadores.
Percebemos! que! este! princípio! é! válido! para! a! dinastia! teodosiana,! porém
seria! interessante! a! verificação! deste! princípio! em! um! trabalho! mais! amplo,
abarcando!toda!a!obra!de!Orósio!na!íntegra!a!partir!deste!ponto!de!vista.
55
BIBLIOGRAFIA
Fonte Primária:
OROSIO.! Historias.!Tradução!de:!SANCHÉZ!SALOR,!E.!Madrid:!Gredos,!1982.
Original!em!latim.!(2!volumes)
Bibliografia:
ALVAR! EZQUERRA,! J.! (org.)! Entre Fenícios y Visigodos. La Historia
Antigua de la Península Ibérica.!Madrid:!Esfera,!2008.!
ARCE,!J.! Ultimo Siglo de la Hispania Romana (284-409).!Madrid:!Alianza,
1982.
ARCE,! J.! Barbaros y Romanos en Hispania (409-507 A.D.).! Madrid:
Marcial!Pons,!2007.!
BRAVO,! G.! Prosopographia! theodosiana! (I):! en! torno! al! llamado! “clan! hispano”.
Gerión,!Madrid,!n.!14,!1996.
56
BRAVO,!G.!Hispania y el Imperio.!Madrid:!Síntesis,!2001.
BRAVO,! G.! Teodosio: Último Emperador de Roma,! Primer! Emperador
Católico.!Madrid:!Esfera,!2010.!
DÍAZ! MARTINEZ,! P.! C.#! MARTÍNEZ! MAZA,! C.#! SANZ! HUESMA,! F.! J.! Hispania
Tardoantigua y Visigoda.!Madrid:!Istmo,!2007.
ESCRIBANO,! M.! V.! Usurpación! y! Religión! en! el! s.! IV! d.! de! C.:! Paganismo,
Cristianismo! y! Legitimación! Política.! Antigüedad y Cristianismo,! Murcia,! VII,
1990.!
ESCRIBANO,! M.! V.! Zaragoza en la Antiguedad Tardía (285-714).
Zaragoza:!Ayuntamiento!de!Zaragoza,!1998.
ESCRIBANO,! M.! V.! Usurpación! y! defensa! de! las! Hispanias:! Dídimo! y! Veriniano
(408).!Gerión,!Madrid,!n.!18,!2000.!
FERNANDEZ!CONDE,!F.!J. Prisciliano y el Priscilianismo. Historiografía
y Realidad.!Gijón:!Trea,!2007.!
FRANCHI,!A.!P.! Poder Imperial e Legitimação no Século IV d.C.: O Caso
do “Panegírico de Constantino”!98! f.!Dissertação! (Mestrado!em!História)!–
Setor! de! Ciências! Humanas,! Letras! e! Artes,! Universidade! Federal! do! Paraná,
Curitiba,!2009.
FRIGHETTO,! R.! Cultura e Poder na Antiguidade Tardia Ocidental.
Curitiba:!Juruá,!2003.
FRIGHETTO,!R.!A!Imagem!de!Teodósio!nas! Historiae!Adversus!Paganos!VII,!34"35
de!Paulo!Orósio.!Stylos,!Buenos!Aires,!14,!2005.
FRIGHETTO,!R.!Algunas! consideraciones! sobre! las! construcciones! teóricas! de! la
centralización! del! poder! político! en! la!Antigüedad!Tardia:! Cristianismo,! tradición! y
poder! imperial.! In:! CORTI,! P.#! WIDOW,! J.! L.#! MORENO,! R.! (Orgs.).! Historia:
57
entre el pesimismo y la esperanza.!1!ed.!Viña!del!Mar:!Ediciones!Altazor,
2007,!v.!1.
FRIGHETTO,! R.! A! longa! Antiguidade! Tardia:! problemas! e! possibilidades! de! um
conceito!historiográfico.! ATAS DA VII SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS,
Brasília,!03"06!de!Novembro!de!2009.!
GARCIA! MORENO,! L.! A.#! SAYAS! ABENGOCHEA,! J.! J.! Romanismo y
Germanismo. El despertar de los pueblos hispánicos (Siglos IV-X).
Barcelona:!Labor,!1981.
GARCIA!MORENO,!L.!A.!Historia de España Visigoda.!Madrid:!Cátedra,!1989.
GARCIA!MORENO,!L.!A.!El Bajo Imperio Romano.!Madrid:!Síntesis,!2005.!
GUERRAS,!M.!S.!Os Povos Bárbaros.!São!Paulo:!Ática,!1987.
LARA!PEINADO,!F.!et!al.! Diccionário de Instituciones de la Antigüedad.
Madrid:!Cátedra,!2009.
LORING,! M.! I.#! PÉREZ,! D.#! FUENTES,! P.! La Hispania Tardorromana y
Visigoda. Siglos V-VIII.!Madrid:!Síntesis,!2008.
MARROU,!H"I.! Decadência Romana, ou Antiguidade Tardia? Lisboa:!Aster,
1979.
MARTINEZ!CAVERO,!Aproximación!al!concepto!de!tiempo!en!Orósio,! Antigüedad
y Cristianismo,!Murcia,!XII,!1995.!!
MARTINEZ!CAVERO,!Signos!y!Prodigios.!Continuidad!y!Inflexión!en!el!piensamento
de!Orósio.!Antiguiedad y Cristianismo,!Murcia,!XIV,!1997.!
MARTINEZ! CAVERO,! P.! El! pensamiento! histórico! y! antropológico! de! Orósio.
Antiguedad y Cristianismo,!Murcia,!XIX,!2002.
58
MATTHEWS,!J.!Western! Aristocracies and Imperial Court A.D. 364-425.
Oxford:!Clarendon!Press,!1975.
NATAL!VILLAZALA,!D.!Sed!non! totus!recessit.!Legitimidad,! Incertidumbre!y!cambio
político!en!el!De!Obitu!Theodosii.!Gerión,!28,!núm.!1,!Madrid,!2010.
ORLANDIS,!J.!Época Visigoda (409-711).!Madrid:!Gredos,!1999.
RICHARDSON,!J.!Hispania!y los Romanos.!Barcelona:!Crítica,!1998.!
RODRÍGUEZ!GERVÁZ,!M.! J., Propaganda Política y Opinión Pública en
los Panegíricos Latinos del Bajo Imperio.! Salamanca:! Universidad! de
Salamanca,!1991.
SANZ! HUESMA,! F.! J.! Usurpaciones! en! Britania! (406"407):! hipótesis! sobre! sus
causas!y!protagonistas.!Gerión,!Madrid,!23,!n.1,!2005.!
SILVA,! G.! V.,! A! Domus! Imperial! e! o! Fenômeno! das! Usurpações! no! IV! Século,
Phoînix,!Rio!de!Janeiro,!n.1,!1995.
SILVA,! G.! V.! Política! e! Propaganda! no! Baixo! Império:! Um! aspecto! da! reação! às
usurpações.!História Revista,!Goiânia,!v.!1,!1996.
SILVA,! G.! V.! Interesses! Subjacentes! e! Interesses! Manifestos! no! Contexto! das
Usurpações!Romanas,!Phoînix,!Rio!de!janeiro,!n.!2,!1996.