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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO - UFOP
INSTITUTO DE FILOSOFIA ARTES E CULTURA
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia
A filosofia da vontade e as interpretaccedilotildees da trageacutedia uma
anaacutelise das teorias de Schopenhauer e do jovem Nietzsche
Raul Moraes de Euclides
OURO PRETO
2010
2
Raul Moraes de Euclides
A filosofia da vontade e as interpretaccedilotildees da trageacutedia uma
anaacutelise das teorias de Schopenhauer e do jovem Nietzsche
Dissertaccedilatildeo apresentada ao programa de
Poacutes-graduaccedilatildeo em Esteacutetica e Filosofia da
Arte do Instituto de Filosofia Artes e
Cultura da Universidade Federal de Ouro
Preto como requisito parcial para obtenccedilatildeo
do tiacutetulo de Mestre em Filosofia
Aacuterea de concentraccedilatildeo Esteacutetica e Filosofia
da Arte
Orientador Prof Dr Heacutelio Lopes da Silva
Co-orientador Prof Dr Eduardo Soares
Neves Silva
OURO PRETO
2010
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Catalogaccedilatildeo sisbinsisbinufopbr
E86f Euclides Raul Moraes de
A filosofia da vontade e as interpretaccedilotildees da trageacutedia [manuscrito]
uma anaacutelise das teorias de Schopenhauer e do jovem Nietzsche Raul
Moraes de Euclides - 2010
99f
Orientador Prof Dr Heacutelio Lopes da Silva
Co-orientador Prof Dr Eduardo Soares Neves Silva
Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Universidade Federal de Ouro Preto
Instituto de Filosofia Artes e Cultura
Aacuterea de concentraccedilatildeo Esteacutetica e Filosofia da Arte
1 Schopenhauer Arthur 1788-1860 - Teses 2 Nietzsche Friedrich
Wilhelm 1844-1900 - Teses 3 Trageacutedia - Teses I Universidade Federal
de Ouro Preto II Tiacutetulo
CDU 179221
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
INSTITUTO DE FILOSOFIA ARTES E CULTURA
PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM FILOSOFIA
MESTRADO EM ESTEacuteTICA E FILOSOFIA DA ARTE
Dissertaccedilatildeo intitulada ldquoA filosofia da vontade e as interpretaccedilotildees da trageacutedia
uma anaacutelise das teorias de Schopenhauer e do jovem Nietzscherdquo de autoria do
mestrando Raul Moraes de Euclides apresentada agrave banca examinadora constituiacuteda pelos
seguintes professores
____________________________________________________
ProfDr Heacutelio Lopes da Silva - Orientador- UFOP
___________________________________________________
ProfDr Eduardo Soares Neves Silva ndash Co-orientador - UFMG
____________________________________________________
Prof Dr Douglas Garcia Alves Juacutenior - UFOP
____________________________________________________
Prof Dr Rogeacuterio Antocircnio Lopes - UFMG
Ouro Preto 24 de Marccedilo de 2010
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Agrave minha famiacutelia
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AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo agraves pessoas que direta ou indiretamente ajudaram na elaboraccedilatildeo deste
trabalho
Agrave minha esposa pelo amor paciecircncia e apoio
Ao corpo docente do curso de mestrado e em especial ao meu co-orientador
cujo incentivo foi essencial agrave continuaccedilatildeo da pesquisa
Ao meu orientador pelas observaccedilotildees valiosas
Aos colegas de mestrado companheiros indispensaacuteveis nas diaacuterias procissotildees de
embriaguez dionisiacuteaca pelas labiriacutenticas ladeiras de Ouro Preto
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A existecircncia eacute um episoacutedio do nada
Arthur Schopenhauer
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RESUMO
O projeto que aqui se apresenta tem como objetivo principal percorrer as
teorias do traacutegico schopenhaueriana e nietzscheana no intuito de apresentar as
principais caracteriacutesticas de cada uma destas teorias Este percurso teraacute como ponto de
partida o fundamento metafiacutesico comum a elas qual seja a filosofia schopenhaueriana
da vontade Atraveacutes desta exposiccedilatildeo pretendemos demonstrar natildeo somente a real
amplitude da influecircncia de Schopenhauer nos primeiros escritos de Nietzsche mas
tambeacutem algumas das peculiaridades existentes em cada uma das citadas teorias
Palavras-chave Schopenhauer - Nietzsche - Trageacutedia - Traacutegico - Filosofia da
vontade
ABSTRACT
The research presented herein has as its ultimate goal to discuss the
theories of the tragedy developed by Schopenhauer and Nietzsche highlighting the
main characteristics ndash points of convergence and divergence ndash of both Our trajectory
shall start from the metaphysical foundations apparently displayed in both theories
which is ndash the schopenhauerian philosophy of the will Throughout our exposition we
intend to show not only that Schopenhauers philosophy had a huge impact in
Nietzsches first writings but also reveal the peculiarities beneath the development of
their aforementioned theories
Keywords Schopenhauer - Nietzsche - Tragedy - Tragic ndash Philosophy of the will
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SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO11
1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES NA
FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA 17
2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU
SUBSTRATO METAFIacuteSICO42
21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo43
22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo45
23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana49
24 A finalidade moral da trageacutedia56
25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera62
3 A TEORIA DA TRAGEacuteDIA DO JOVEM NIETZSCHE65
31 A influecircncia de Schopenhauer na obra do primeiro Nietzsche66
32 O projeto subjacente ao nascimento da trageacutedia72
33 A teoria da trageacutedia publicada75
4 CONCLUSAtildeO pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo da
vida85
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS93
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ABREVIATURAS
Obras de Schopenhauer
MVR = Mundo como vontade e como representaccedilatildeo (2005)
MVR II ndash Mundo como vontade e como representaccedilatildeo volume II (2005)
MB = Metafiacutesica do belo (2003)
SOE = Sobre o ofiacutecio de Escritor (2005)
QRPRS = De la cuadruple raiz del principio de razon suficiente (1981)
PP = Parerga e paralipomena (1974)
SFM = Sobre o fundamento da moral (2001)
SFU = Sobre a filosofia universitaacuteria (2001)
Obras de Nietzsche
NT = O nascimento da trageacutedia (1992)
VD = Visatildeo dionisiacuteaca do mundo (2005)
CORRESPONDEcircNCIA = Correspondecircncias de Nietzsche (2007)
OC = Obras completas de Nietzsche (1963)
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INTRODUCcedilAtildeO
ldquoDias sem nuacutemero nunca reservam a
ningueacutem nada mais que dissabores mais
proacuteximos da dor que da alegria Quanto aos
prazeres natildeo os discernimos e nossa vista os
buscaraacute em vatildeo logo que para nossa
desventura chegamos ao limite prefixado E
desde entatildeo o nosso aliacutevio uacutenico seraacute aquele
que daraacute a todos o mesmo fim na hora de
chegar de suacutebito o destino procedente do
tenebroso reino onde natildeo haacute cantos nem
liras onde natildeo haacute danccedilas ndash ou seja a morte
epiacutelogo de tudo Melhor seria natildeo haver
nascido como segunda escolha bom seria
voltar logo depois de ver a luz agrave mesma
regiatildeo de onde se veiordquo
(Soacutefocles)
As teorias sobre a trageacutedia de Schopenhauer e Nietzsche satildeo parte
indispensaacutevel no estudo da histoacuteria da filosofia da trageacutedia Dentre os diversos
pensadores contemporacircneos que tratam sobre o problema da trageacutedia e do traacutegico e que
deram visiacutevel destaque agraves teorias dos nossos filoacutesofos podemos destacar Walter
Benjamin1 e Peter Szondi
2 Entretanto nos trabalhos destes autores o problema do
1 BENJAMIN Walter Origem do drama barroco alematildeo Traduccedilatildeo Sergio Paulo Rouanet Satildeo Paulo
Brasiliense 2004
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relacionamento e da interdependecircncia entre as filosofias de Schopenhauer e Nietzsche
natildeo eacute detalhado a contento Diante disto mesmo para um olhar historicamente
caracterizador torna-se vaacutelido um estudo comparado destas teorias que leve em
consideraccedilatildeo o quecirc ou o quanto haacute de comum em suas metafiacutesicas e a partir desta
perspectiva trace os aspectos coincidentes e dissidentes das mesmas mostrando seus
pontos de interdependecircncia e discrepacircncia muacutetua
Apesar de estar entre as teorias da trageacutedia mais estudadas do periacuteodo do
idealismo alematildeo a teoria Schopenhaueriana que eacute sempre analisada em relaccedilatildeo a seus
pressupostos metafiacutesicos ao ser vista sob outra perspectiva ganharia contornos
intensamente enriquecidos Esta perspectiva atraveacutes da qual nos propomos a examinar a
teoria do traacutegico do filoacutesofo eacute aquela que levaraacute em consideraccedilatildeo as influecircncias
histoacutericas culturais e filosoacuteficas que agiram diretamente sobre a esteacutetica do traacutegico
schopenhaueriana Ao lanccedilarmos um olhar sobre estas referidas influecircncias estaremos
abrindo caminho para uma melhor compreensatildeo sobre a teoria esteacutetica
schopenhaueriana o que conseguintemente refletiraacute em um juiacutezo mais adequado da
teoria nietzscheana
Para um entendimento mais eficiente das teorias propostas nas obras do
jovem Nietzsche parece-nos essencial o conhecimento de uma de suas mais decisivas
influecircncias a filosofia de Schopenhauer A analogia almejada erige-se na verdade
como meacutetodo de anaacutelise ou seja o que pretendemos eacute alcanccedilar uma maior compreensatildeo
dos problemas com os quais Nietzsche se deparou quando da elaboraccedilatildeo de sua primeira
obra e procurar identificar a existecircncia de alguma apropriaccedilatildeo eou adaptaccedilatildeo de alguns
conceitos da filosofia de Schopenhauer na resoluccedilatildeo destes problemas A necessidade
deste estudo comparativo torna-se ainda mais evidente quando e este eacute o caso
2 SZONDI Peter Ensaio sobre o Traacutegico Traduccedilatildeo Pedro Suumlssekind Rio de Janeiro Jorge Zahar
2005
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defrontamo-nos com uma influecircncia que se apresenta tatildeo clara e assumidamente
admitida pelo autor Todavia natildeo se pretende aqui apenas a justaposiccedilatildeo de um
pensamento ao outro Apesar de ser identificaacutevel em toda a obra posterior de Nietzsche
encontra-se nos seus primeiros escritos sobretudo na obra O nascimento da trageacutedia
aquele momento discursivo no qual podemos apontar uma influecircncia mais direta da
filosofia de Schopenhauer
Dos trabalhos que fazem um estudo comparativo entre estes filoacutesofos a
maioria se ateacutem em identificar as diferenccedilas conceituais entre eles mais
especificamente no campo eacutetico e metafiacutesico Grosso modo tratam principalmente dos
problemas relativos agrave diferenciaccedilatildeo entre os conceitos de vontade nestes autores
vontade de viver e vontade de poder Estes estudos tecircm como foco a filosofia tardia de
Nietzsche onde este apesar da assumida influecircncia torna-se um criacutetico de
Schopenhauer A real extensatildeo da influecircncia deste filoacutesofo na primeira obra de
Nietzsche bem como o relacionamento entre suas teorias da trageacutedia permanecem
assim como territoacuterios ainda pouco explorados Ao lanccedilarmos olhar sobre esse
afastamento que Nietzsche mais tarde realizaraacute em relaccedilatildeo agrave filosofia
Schopenhaueriana verificamos mais uma vez a importacircncia do estudo de sua primeira
fase na qual poderemos detectar o referido afastamento
Podemos observar entretanto o crescimento do interesse no estudo da
obra O nascimento da trageacutedia de Nietzsche Nos uacuteltimos anos assistimos tambeacutem no
Brasil agrave publicaccedilatildeo de vaacuterios trabalhos que tecircm sob perspectiva a complexidade desse
seu primeiro livro Na bibliografia sugerida neste projeto constam publicaccedilotildees dos
seguintes autores Roberto Machado (2006) Rosa Maria Dias (2005 e 2009) Iracema
Macedo (2006) Marcio Joseacute Silveira Lima (2006) Estas publicaccedilotildees tratam temas
diversos da esteacutetica nietzscheana tais como a muacutesica a trageacutedia o traacutegico ou a
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repercussatildeo do livro de Nietzsche e sua influecircncia wagneriana Podemos ver entretanto
naqueles e em outros trabalhos a constante chave de leitura que atribui a Schopenhauer
a influecircncia decisiva natildeo apenas sobre o jovem Nietzsche como usualmente se aponta
mas tambeacutem sobre um peculiar imbricamento entre metafiacutesica e esteacutetica o qual se
sustentaria sobre os ldquoimpulsos artiacutesticos da naturezardquo o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco Nos
termos de Dias (2005 27)
A oposiccedilatildeo apoliacutenea e dionisiacuteaca considerada no plano
metafiacutesico se daacute a partir da noccedilatildeo de vontade ou querer
estendida (sic) no sentido que a ela deu Schopenhauer de
ldquocentro e nuacutecleo do mundordquo ou ldquoforccedila que eternamente quer
deseja e aspirardquo () O mundo fenomecircnico como resultado
desse movimento do querer () faz um segundo movimento
dessa vez esteacutetico reproduzindo o movimento inicial que a
vontade realizou em direccedilatildeo agrave aparecircncia
Tendo em vista o fato de que as teorias sobre o traacutegico dos dois filoacutesofos tecircm como
ponto de partida o sistema metafiacutesico schopenhaueriano fica clara a necessidade de
analisar em cotejo estas teorias tendo como fio condutor o meacutetodo de investigaccedilatildeo ora
proposto
Aleacutem de um aprofundamento no problema da influecircncia de
Schopenhauer na obra esteacutetica de Nietzsche o estudo de suas teorias sobre o traacutegico nos
daraacute a oportunidade de identificar as peculiaridades de cada uma destas teorias bem
como de estabelecer a sua importacircncia histoacuterica para uma filosofia do traacutegico
Em um primeiro momento traccedilaremos um panorama histoacuterico que
objetiva entender o status quo da filosofia do traacutegico no periacuteodo anterior ao
desenvolvimento da teoria schopenhaueriana da trageacutedia Esta investigaccedilatildeo seraacute
norteada pelas referecircncias constantes na proacutepria obra de Schopenhauer bem como por
um levantamento biograacutefico do filoacutesofo ou seja trabalharemos somente os momentos
que satildeo fundamentais para uma melhor compreensatildeo da obra schopenhaueriana Dentre
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estes momentos daremos ecircnfase aos seguintes pontos o estudo sobre o helenismo de
Winckelmann e sua repercussatildeo a criacutetica teatral de Lessing Schiller e Goethe seu
projeto de criaccedilatildeo de um teatro alematildeo e suas produccedilotildees dramaacuteticas
Traccedilado o panorama histoacuterico no qual se insere a teoria da trageacutedia
schopenhaueriana passaremos para o toacutepico seguinte a apresentaccedilatildeo do sistema
metafiacutesico de Schopenhauer no qual estaacute embasada a sua teoria da trageacutedia bem como
a teoria nietzscheana A apresentaccedilatildeo seraacute feita de forma a expor os aspectos gerais da
filosofia da vontade atendo-se aos pontos deste sistema que estatildeo intrinsecamente
relacionados agraves teorias da trageacutedia dos nossos autores
Apoacutes os passos descritos reuniremos em um esboccedilo geral as
caracteriacutesticas do relacionamento existente entre o jovem Nietzsche e a filosofia de
Schopenhauer Para tanto utilizaremo-nos das referecircncias que Nietzsche faz a
Schopenhauer em suas cartas e escritos de juventude Com esta pesquisa pretendemos
identificar a opiniatildeo que o jovem Nietzsche tinha sobre a filosofia de Schopenhauer e a
profundidade da influecircncia desta em sua primeira obra Percorreremos ainda o ambiente
circundante agrave primeira obra de Nietzsche no intuito de realccedilar alguns dos conceitos
formativos de O nascimento da trageacutedia
Estabelecida a ligaccedilatildeo entre os autores passaremos ao estudo do apoliacuteneo
e do dionisiacuteaco par conceitual que nos forneceraacute a chave para se fazer um estudo
comparativo entre os filoacutesofos Para cumprir esta etapa analisaremos O nascimento da
trageacutedia bem como escritos contemporacircneos a este livro atraveacutes dos quais poderemos
delinear melhor a significaccedilatildeo desta duplicidade de impulsos e visotildees de mundo
Delinearemos assim os contornos das definiccedilotildees fundamentais da esteacutetica nietzscheana
e procuraremos construir um paralelo entre o mundo dionisiacuteaco e o mundo metafiacutesico
da vontade schopenhaueriano Temos a intenccedilatildeo de demonstrar a origem desta
16
metafiacutesica da vontade ou seja o criticismo kantiano e sua importacircncia para o conceito
de dionisiacuteaco Demonstraremos tambeacutem as caracteriacutesticas do mundo fenomecircnico
schopenhaueriano em sua identidade com o apoliacuteneo nietzscheano retomando a
epistemologia de Schopenhauer
Realizada a aproximaccedilatildeo e expostas tanto as semelhanccedilas como as
particularidades dos conceitos principais dos dois autores percorreremos sempre
focando um estudo paralelo entre os filoacutesofos outros conceitos que encontram
similaridade em suas esteacuteticas Com esse intuito procuraremos identificar nos dois
filoacutesofos o destaque dado agrave muacutesica dentro de suas teorias e o lugar dado agraves outras artes
em suas obras Discorreremos sobre a criacutetica que eles em uniacutessono fazem ao que
nomeiam racionalismo dogmatismo e o otimismo Finalizadas as aproximaccedilotildees
voltaremos nossa atenccedilatildeo ao aspecto de dissensatildeo que propicia o afastamento
fundamental entre as teorias dos dois filoacutesofos o efeito da trageacutedia Com isto
demonstraremos que a base metafiacutesica comum quando alinhada a pressupostos
esteacuteticos distintos geraraacute a referida dissensatildeo
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1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES
NA FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA
Por que minha filosofia natildeo encontrou
simpatia e interesse Porque a verdade natildeo
estaacute de acordo com a tagarelice dos tempos
(Schopenhauer)
Neste primeiro capiacutetulo objetivamos apresentar as fontes filosoacuteficas
incutidas no sistema schopenhaueriano no intuito de situar historicamente o surgimento
da filosofia da vontade e trazer agrave baila o seu ambiente circundante bem como as teorias
filosoacuteficas com as quais Schopenhauer se propotildee a dialogar Apontaremos inicialmente
as influecircncias filosoacuteficas assumidamente presentes no sistema schopenhaueriano bem
como aquelas que fundamentam sua metafiacutesica e consequumlentemente sua teoria esteacutetica
Em um segundo momento procuraremos fazer um breve esboccedilo do ambiente artiacutestico-
cultural que dominava o pensamento alematildeo de entatildeo com o qual direta ou
indiretamente Schopenhauer e o jovem Nietzsche se depararam Com isto esperamos
posteriormente demarcar as singularidades que caracterizam as teorias destes filoacutesofos
Ressaltamos todavia que natildeo se trata de um mapeamento completo das fontes que
influenciaram esses autores ndash tarefa que exigiria um esforccedilo bem maior do que aquele
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proposto por esta pesquisa ndash e sim de um breve panorama que se pautaraacute nas influecircncias
marcantemente presentes em suas obras
No contato com a obra de Schopenhauer a primeira impressatildeo que natildeo
passa despercebida aos seus leitores eacute a qualidade de sua prosa3 Tal qualidade
revelada na diversidade de recursos literaacuterios utilizados pelo autor eacute produto da visiacutevel
erudiccedilatildeo cultivada pelo filoacutesofo Conhecedor do grego do latim e suas respectivas
literaturas Schopenhauer transitava ainda pela obras literaacuterias cientiacuteficas e filosoacuteficas
contemporacircneas em suas liacutenguas originais conhecia o inglecircs o italiano o francecircs e o
espanhol Em sua juventude conviveu com vaacuterias personalidades do meio cultural
germacircnico que frequumlentavam o salatildeo de sua matildee em Weimar dentre eles Goethe a
maior figura das letras germacircnicas com quem teve um relacionamento mais proacuteximo
Sua obra eacute repleta de citaccedilotildees de poetas dramaturgos e seu conhecimento das artes
plaacutesticas e da muacutesica natildeo satildeo superficiais Em suas viagens pela Europa pocircde admirar
diversas esculturas e pinturas e como ele proacuteprio dizia pocircde ler diretamente no ldquolivro
do mundordquo Essa erudiccedilatildeo pode ser notada mesmo diante do desconhecimento de sua
biografia pela observaccedilatildeo da enorme quantidade de citaccedilotildees e menccedilotildees que estatildeo
espalhadas no interior de suas obras traduzidas ou como em sua maior parte citadas
em suas respectivas liacutenguas Frequumlentava as mais diversas aacutereas de conhecimento de sua
eacutepoca como sustenta Aramayo
3 O cuidado com a qualidade da produccedilatildeo literaacuteria tanto no que se refere agrave clareza quanto agrave riqueza de
recursos linguumliacutesticos eacute uma das caracteriacutesticas que Schopenhauer e Nietzsche tecircm em comum Esta
qualidade torna-se mais evidente ainda quando seus trabalhos satildeo natildeo raramente comparados com os
escritos filosoacuteficos alematildees daquele periacuteodo principalmente aos de Fichte Schelling e Hegel O elogio agrave
prosa schopenhaueriana feito por literatos e filoacutesofos contemporacircneos influenciados por sua obra pode
ser ilustrado agrave exaustatildeo entre eles encontram-se Thomas Mann Goethe Wittgenstein e o proacuteprio
Nietzsche ldquoMas a imensa forccedila de penetraccedilatildeo deste pensamento explica-se antes de tudo pelo fato de o
autor ser ao lado de Nietzsche o maior entre os escritores filosoacuteficos alematildeesrdquo (Rosenfeld 1996 177)
Jorge Luis Borges em uma entrevista publicada por Die Welt em 25 de marccedilo de 1975 realizava esta
confissatildeo ltPara mim existe um escritor alematildeo ao qual prefiro Schopenhauer Sei que deveria dizer
Goethe poreacutem Schopenhauer me interessa muitiacutessimo mais Tanto que estudei alematildeo ndash que aprendi
sobre os versos de Heine ndash fundamental e especificamente para poder ler a Schopenhauer em sua proacutepria
liacutenguagt (Aramayo 2001 18)
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ldquoEm sua busca pela verdade Schopenhauer natildeo desdenha
nenhum aliado Os dramaturgos novelistas e poetas estatildeo quando
menos em peacute de igualdade com os mais egreacutegios filoacutesofos A perspicaacutecia
de Shakespeare ou a genialidade de Voltaire e a sutileza de Goethe nada
devem para a eloquumlecircncia Platocircnica a precisatildeo de um Spinoza e o rigor
conceitual do admirado Kant Sua curiosidade natildeo conhece limites nem
prejuiacutezo algum e por esta razatildeo tampouco menospreza quando o
considera oportuno prestar suficiente atenccedilatildeo aos fenocircmenos
paranormais agrave hipnose ou ao caacutelculo cabaliacutestico se entende que em
algo isto pode servir-lhe para demonstrar sua tese ou avaliar algumas de
suas intuiccedilotildees E na mesma direccedilatildeo aponta seu grande empenho por
incorporar o pensamento das religiotildees orientais a nosso acervo cultural
na possibilidade de um enriquecimento muacutetuordquo (Aramayo 2001 14-15)
A comparaccedilatildeo feita atraveacutes de metaacuteforas4 paraacutebolas ou alegorias em
sua maioria retiradas de obras literaacuterias ou cientiacuteficas torna-se recurso literaacuterio
constantemente presente na obra do filoacutesofo e ao mesmo tempo termocircmetro de suas
influecircncias e de seu relacionamento com o pensamento de seus contemporacircneos Tais
recursos satildeo utilizados contudo com o objetivo consciente de construir conhecimento
de ilustrar a mateacuteria do seu pensamento Nas palavras do filoacutesofo ldquoAs comparaccedilotildees satildeo
de grande valor na medida em que reduzem uma relaccedilatildeo desconhecida a uma
conhecida Inclusive as comparaccedilotildees mais detalhadas transformadas em paraacutebola ou
alegoria satildeo somente a reduccedilatildeo de uma relaccedilatildeo qualquer agrave sua exposiccedilatildeo mais
simples ilustrativa e palpaacutevelrdquo (Schopenhauer SOE 86) Se o nosso objetivo eacute mostrar
as raiacutezes da filosofia de Schopenhauer ou seja as influecircncias que formaram a mateacuteria
de seu pensamento eacute sobre esta mateacuteria que devemos nos debruccedilar Natildeo podemos
contudo nos furtar a apontar a riqueza das fontes formalmente presentes em seus
escritos5 A percepccedilatildeo da presenccedila desta numerosa miscelacircnea de referecircncias dentro da
4 ldquoSua profusa e brilhante utilizaccedilatildeo das metaacuteforas eacute o que o converte sem duacutevida alguma em um grande
escritor cujo estilo se nos afigura tatildeo ameno quanto sugestivordquo (Aramayo 2001 54) 5 Mateacuteria e forma satildeo na concepccedilatildeo do filoacutesofo planos ou instacircncias da produccedilatildeo escrita que servem
como referecircncia para o julgamento de valor do pensamento de um autor ldquo Um livro nunca pode ser mais
do que a impressatildeo dos pensamentos do autor O valor desses pensamentos reside na mateacuteria ou seja
naquilo sobre o que ele pensou ou na forma isto eacute na elaboraccedilatildeo da mateacuteria naquilo que pensou a
respeitordquo (Schopenhauer SOE 11) A importacircncia dada agrave forma por Schopenhauer seraacute melhor
esclarecida quando posteriormente apresentarmos a caracteriacutestica fundamentalmente epistemoloacutegica de
toda produccedilatildeo artiacutestica dentro de sua metafiacutesica do belo
20
obra schopenhaueriana diz-nos algo sobre seu estilo e seu arcabouccedilo cultural
entretanto quando voltamo-nos para a busca das influecircncias diretamente presentes em
seu sistema ie agraves raiacutezes da mateacuteria de seu pensamento percebemos que elas natildeo satildeo
tatildeo numerosas
Uma leitura das fontes filosoacuteficas do sistema schopenhaueriano torna-se
diferentemente do que ocorre em outros sistemas de seu tempo menos trabalhosa por
dois motivos Primeiramente o autor natildeo esconde suas influecircncias mas ao contraacuterio
faz questatildeo de apontaacute-las citaacute-las e quando lhe parece necessaacuterio as critica ou exalta
Em segundo lugar o que facilita o mapeamento destas fontes eacute a caracteriacutestica de
unidade do sistema schopenhaueriano como um todo Apesar da longevidade do
filoacutesofo e da distacircncia temporal entre suas obras suas intuiccedilotildees fundamentais
continuaram sendo as mesmas ao longo de sua vida Nas palavras de Rosset
ldquoSchopenhauer eacute homem de um soacute livro o MVR e de um soacute pensamento (qualificado
por ele mesmo de ltpensamento uacutenicogt nas primeiras linhas de sua obra)rdquo (2005 35)6
Natildeo satildeo poreacutem coetacircneas as influecircncias que marcaram a obra do filoacutesofo
como talvez a constante menccedilatildeo a seus contemporacircneos possa sugerir Nas palavras do
filoacutesofo como citado por Lefranc (2005 17) ldquoPude amar prosseguir aperfeiccediloar a
minha obra soacute por ela mesma em tranquumlilidade completa ao abrigo de toda influecircncia
externa e meus contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes
permaneci estranhosrdquo Conhecia a filosofia de seu tempo todavia natildeo a tinha como
interlocutora na verdade a desdenhava satildeo famosas as criacuteticas de Schopenhauer contra
as filosofias de seus contemporacircneos principalmente as de Fichte Schelling e Hegel
6 Sobre a unidade da produccedilatildeo schopenhaueriana destacamos aleacutem de Rosset os apontamentos de outros
dois de seus maiores comentadores Arthur Huumlbscher e Alexis Philonenko Na introduccedilatildeo aos manuscritos
schopenhauerianos Huumlbscher aponta a importacircncia dos manuscritos na percepccedilatildeo desta unidade uma vez
que podemos notar em diversas fases da vida do filoacutesofo o desenvolvimento dos temas pontuais que
marcaram sua obra principal Vide Hubscher Introduction Manuscript Remains 1985 Alexis
Philonenko trata desta unidade no proacutelogo de sua obra Schopenhauer uma filosofia da trageacutedia
(Philonenko 1989 41-45)
21
(chamados de ldquoos trecircs sofistasrdquo) Quando faz referecircncias a eles comumente estaacute
imbuiacutedo de trecircs propoacutesitos criticar a qualidade formal de suas produccedilotildees
principalmente no que tange ao uso da liacutengua germacircnica apontar uma motivaccedilatildeo
individualista (subsistecircncia pessoal e status social) que existiria por traacutes de suas
elucubraccedilotildees filosoacuteficas e ressaltar a falta de atenccedilatildeo por parte daqueles filoacutesofos no
que se refere ao conteuacutedo da primeira criacutetica kantiana
Schopenhauer diagnosticava em seu tempo um periacuteodo de
empobrecimento da expressatildeo literaacuteria e do uso da liacutengua germacircnica e apontava como
os principais responsaacuteveis por estes acontecimentos os ldquoprofessores de filosofiardquo e seus
disciacutepulos As investidas schopenhauerianas contra a filosofia de seus contemporacircneos
podem ser encontrada em praticamente todas as suas obras mas estatildeo concentradas de
forma mais persistente em sua produccedilatildeo mais tardia na segunda ediccedilatildeo da QRPRS de
MVR em seus ensaios sobre a liberdade e o fundamento da moral e nos PP 7
Nesta
uacuteltima obra temos dedicados a estas criacuteticas alguns textos que podemos destacar Sobre
o ofiacutecio de escritor Da leitura e dos livros Da liacutengua e das palavras e Sobre a filosofia
universitaacuteria A liacutengua alematilde no que se refere agrave sua capacidade expressiva era tida em
mais alta consideraccedilatildeo por nosso filoacutesofo Afirmava que dentre as liacutenguas modernas
era ldquoa uacutenica na qual se pode escrever quase tatildeo bem quanto em grego ou em latimrdquo
(Schopenhauer SOE 72) Esta capacidade de expressatildeo de uma liacutengua eacute segundo o
filoacutesofo resultado de sua aptidatildeo em representar conceitos Desta forma na medida em
que surgem novos conceitos a elaboraccedilatildeo de novas palavras que os representem eacute um
sinal de evoluccedilatildeo adequaccedilatildeo e riqueza da liacutengua Entretanto para o filoacutesofo os
neologismos e adaptaccedilotildees criados por seus contemporacircneos natildeo eram resultados da
7 Muitos historiadores da filosofia bioacutegrafos e comentadores apontam que esta criacutetica adveacutem do
ressentimento pelo fracasso de Schopenhauer como docente na universidade de Berlim onde Hegel
reinava absoluto bem como da falta de reconhecimento de sua filosofia diante do sucesso dos professores
da mesma universidade
22
tentativa de representaccedilatildeo de novos conceitos mas ao contraacuterio eram comprovaccedilatildeo de
sua ldquopobreza de espiacuterito que a todo custo quer colocar algo no mercado e por natildeo ter
novos pensamentos chega com palavras novasrdquo (Schopenhauer SOE 129)
Schopenhauer condenava a atitude de seus contemporacircneos de utilizarem-se de
artifiacutecios como a natildeo designaccedilatildeo do caso a expressatildeo dos preteacuteritos por meio do
imperfeito a supressatildeo dos prefixos e outros subterfuacutegios para com isso disfarccedilar a sua
imprecisatildeo conceitual De acordo com Schopenhauer tratavam displicentemente a
liacutengua alematilde por dois motivos por natildeo possuiacuterem uma mateacuteria conceitualmente
relevante a ser expressa ou entatildeo para conscientemente causar a impressatildeo de que a
possuem e neste caso a responsabilidade pela natildeo compreensatildeo do texto seria atribuiacuteda
agrave incompetecircncia intelectual do leitor
Os que compotildeem discursos difiacuteceis obscuros enleados e
ambiacuteguos natildeo sabem ao certo o que querem dizer tecircm somente uma
consciecircncia vaga a esse respeito que luta primeiro por uma ideacuteia poreacutem
amiuacutede querem tambeacutem ocultar de si mesmos e dos outros que na
realidade eles natildeo tecircm nada a dizer Como Fichte Schelling e Hegel
querem parecer saber o que natildeo sabem pensar o que natildeo pensam e dizer
o que natildeo dizem Algueacutem que tenha algo correto a dizer se esforccedilaraacute por
exprimi-lo de maneira indistinta ou distinta (Schopenhauer SOE 39)
Podemos perceber entatildeo que ao criticar o estilo ldquoobscurordquo e ldquopomposordquo de seus
contemporacircneos Schopenhauer aponta como causa deste estilo natildeo somente a sua falta
de mateacuteria mas tambeacutem uma atitude consciente e arquitetadamente maldosa e com
toda a sua forccedila retoacuterica condena esta atitude
Nobre bdquoatualidade‟ magniacuteficos epiacutegonos geraccedilatildeo crescida no
leite materno da filosofia hegeliana Pela gloacuteria eterna quereis apertar
vossas garras em nossa antiga liacutengua para que a marca com um icnoacutelito
conserve para sempre o vestiacutegio de vossa existecircncia insiacutepida e sombria
Mas Dicirc Meliora Fora paquidermes fora Esta eacute a liacutengua alematilde Nela se
expressaram homens ou melhor nela cantaram grandes poetas e grandes
pensadores escreveram Arredai as patas Ou natildeo tereis o que comer (Soacute
isso os assusta) (Schopenhauer SOE 72-73)
23
A uacuteltima frase desta citaccedilatildeo nos eacute aclarada pelo texto Sobre a filosofia universitaacuteria
onde o filoacutesofo expotildee os argumentos de sua criacutetica agrave filosofia produzida em seu tempo
Para Schopenhauer os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo podem devido agrave sua funccedilatildeo
estatal se imiscuir do compromisso poliacutetico-religioso que seu cargo exige e
conseguintemente sustentados pelo Estado tratam de fazer sua apoteose Nas palavras
de Cacciola constantes na introduccedilatildeo agrave traduccedilatildeo brasileira do referido texto
ldquoSchopenhauer eacute um continuador da criacutetica romacircntica ao filisteiacutesmo que se origina em
Tieck A ironia que visa os homens de vida tatildeo regular como o reloacutegio lhe eacute bem
familiar O filisteu eacute o erudito pedante que soacute pensa na proacutepria vantagem O professor
de filosofia que pauta seus ensinamentos de acordo com os ditames do Estado e da
religiatildeo eacute o tipo acabado do filisteu A idolatria do Estado eacute a apoteose do filisteiacutesmo
(Schopenhauer SFU XXX) Por traacutes das ideacuteias dos ldquofiloacutesofos de profissatildeordquo estaria
incutido o retorno disfarccedilado da ldquoteologia judaicardquo de uma ldquopsicologia racionalrdquo da
ldquoliberdade da vontaderdquo e outros dogmas que de acordo com Schopenhauer refletem a
sua vocaccedilatildeo de trabalharem ldquoin maiorem Dei gloriamrdquo como exigido pela ideologia
estatal daquele periacuteodo Natildeo podem sob a pena de perderem o sustento financeiro
pessoal e familiar bem como sob o custo de perderem o status que o cargo lhes confere
contrariar os dogmas patronais
ldquo[] o intelecto dessa gente permanece fiel agrave sua destinaccedilatildeo
natural de trabalhar a serviccedilo da vontade como normalmente acontece
Mas por isso mesmo existe sempre uma intenccedilatildeo como fundamento do
seu agir e pensar eles tecircm fins o tempo todo e soacute tomam conhecimento
do que diz respeito a esses fins e portanto soacute do que corresponde a
esses fins A atividade do intelecto liberto da vontade condiccedilatildeo da pura
objetividade e por isso de todas as grandes realizaccedilotildees permanece-lhes
eternamente estranha ndash eacute uma faacutebula para seu coraccedilatildeordquo (Schopenhauer
SFU 63)
Desta forma os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo estariam voltados para a investigaccedilatildeo
objetiva da ldquoverdaderdquo a qual exigiria o distanciamento de todo e qualquer interesse
24
pessoal De acordo com o sistema schopenhaueriano tal distanciamento eacute um dom raro
com o qual a natureza a poucos contempla Na metafiacutesica schopenhaueriana a natureza
eacute aristocraacutetica O gecircnio eacute fenocircmeno raro seja ele filoacutesofo ou artista A percepccedilatildeo
objetiva do mundo alheia aos interesses pessoais da vontade individual eacute uma exceccedilatildeo
que soacute se manifesta raramente e as pessoas atadas aos interesses pessoais de sua
vontade natildeo podem reconhececirc-lo imediatamente Estes gecircnios produzidos pela natureza
seriam os verdadeiros educadores do mundo e os ldquoprofessores de filosofiardquo ao tentar
representar este papel que soacute agrave natureza cabe eleger causam-lhe repulsa
Tantas mentes comuns que se acham por cargo e profissatildeo no
dever de representar papeacuteis que a natureza nem ao menos lhes atribuiacutera e
de transportar cargas que exigem ombros de gigantes espirituais
oferecem na realidade um espetaacuteculo deveras lamentaacutevel Pois escutar
cantar os roucos e ver danccedilar os coxos eacute penoso mas ouvir filosofar a
mente limitada eacute insuportaacutevel (Schopenhauer SFU 34)
Prova do embotamento da capacidade de reconhecimento de uma produccedilatildeo genial era
para o filoacutesofo o fato de seus contemporacircneos ignorarem ou mesmo passarem agrave
margem do que seria a mais importante produccedilatildeo filosoacutefica do periacuteodo a cisatildeo entre o
real e o ideal perpetrada pela primeira criacutetica kantiana Esta era para o filoacutesofo a maior
prova do demeacuterito filosoacutefico de seus contemporacircneos preocupados com seus interesse
pessoais alheios a uma observaccedilatildeo objetiva do mundo natildeo levaram em consideraccedilatildeo os
limites impostos pela primeira criacutetica kantiana a toda investigaccedilatildeo racional
Depois de Kant ter cortado o nervo de todas as provas possiacuteveis
da teologia ndash tatildeo incisivamente que desde entatildeo ningueacutem mais pocircde
meter-se com elas ndash o esforccedilo filosoacutefico em quase cinquumlenta anos tem
consistido nas diversas tentativas de insinuar sutil e astuciosamente a
teologia e os escritos filosoacuteficos nada mais satildeo na sua maioria do que
tentativas infrutiacuteferas de reanimar um cadaacutever sem vida (Schopenhauer
SFU 81)
Natildeo nos interessa aqui adentrarmo-nos aos reais motivos existentes por
traacutes dos vitupeacuterios schopenhauerianos contra os pensadores de seu tempo nem
25
tampouco fazer juiacutezo valorativo sobre a importacircncia da filosofia da vontade em
comparaccedilatildeo ao idealismo absoluto Dentro do objetivo proposto qual seja situar
historicamente a filosofia da vontade e apontar suas influecircncias o importante eacute ressaltar
que a filosofia contemporacircnea a Schopenhauer natildeo fez efeito sobre a sua proacutepria a ponto
de modificaacute-la em seu conteuacutedo conforme esclarece o proacuteprio filoacutesofo ldquo [] meus
contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes permaneci
estranhosrdquo (apud Lefranc 2005 17) Eacute fundamental verificarmos que apesar do
sistema schopenhaueriano ter se desenvolvido agrave margem do idealismo de entatildeo seu
autor natildeo o desconhecia e muitas das ilustraccedilotildees e argumentaccedilotildees utilizadas por ele na
explicaccedilatildeo de suas teorias apoiavam-se nesta sua contenda com o seu tempo
Entretanto como a filosofia de seu tempo pretende-se herdeira do kantismo assim
tambeacutem procede Schopenhauer e a suas criacuteticas ao idealismo absoluto estatildeo
fundamentadas em sua pretensatildeo a uma heranccedila direta da filosofia kantiana Sobre a
heranccedila de Kant Schopenhauer esclarece ldquoEm todo caso natildeo reconheccedilo que tenha
acontecido algo na filosofia entre ele e mim por conseguinte ligo-me imediatamente a
elerdquo (Schopenhauer MVR 525)
Natildeo obstante as diversas criacuteticas ao retorno kantiano ao dogmatismo8
das quais a obra de Schopenhauer estaacute recheada sua admiraccedilatildeo por ele foi tambeacutem
abundantemente expressa Considerava-o ldquoa inteligecircncia mais original jaacute criada pela
naturezardquo (Schopenhauer SFU52) e afirmava que seus escritos capitais eram o ldquo[]
fenocircmeno mais importante que ocorreu ao longo dos uacuteltimos dois mil anos na filosofia
[]rdquo (Schopenhauer MVR 22) O maior reflexo desta admiraccedilatildeo pode ser observada
8 Nas palavras de Cacciola ldquoO criticismo de Kant teria segundo Schopenhauer perdido sua forccedila inicial
na segunda ediccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura Ou seja Schopenhauer acusa Kant de uma ldquorecaiacuteda no
dogmatismordquo por ter amenizado seu confronto com a teologia A ameaccedila dogmaacutetica jaacute configurada na
filosofia teoacuterica concretiza-se na Eacutetica de Kant quando esta acolhe como postulados Deus
imortalidade da alma e liberdade No poacutes-kantismo a importacircncia crescente atribuiacuteda agrave filosofia praacutetica
de Kant a expensas de sua criacutetica do conhecimento teria levado a uma espeacutecie de contaminaccedilatildeo da
razatildeo teoacuterica pela razatildeo praacutetica fazendo com que a primeira se transformasse num oacutergatildeo apto para
captar o Absolutordquo (Cacciola 1994 20)
26
no fato de que eacute da filosofia kantiana que Schopenhauer retira o leitmotiv para o
desenvolvimento da ideacuteia central9 de sua filosofia Esta ideacuteia central eacute aquela contida
concisamente no tiacutetulo de sua obra principal O mundo como vontade e como
representaccedilatildeo10
A dualidade formada entre representaccedilatildeo e vontade atraveacutes da qual
Schopenhauer acredita ter desvendado o ldquomisteacuteriordquo cosmoloacutegico eacute uma apropriaccedilatildeo
assumida dos conceitos kantianos de fenocircmeno e coisa-em-si respectivamente
Dizemos apropriaccedilatildeo pois aqueles conceitos satildeo acrescidos na filosofia
schopenhaueriana de caracteriacutesticas singulares Eacute com base nesta dualidade de
perspectivas de conhecimento do mundo inspirada na primeira criacutetica kantiana que o
filoacutesofo desenvolve as demais teorias que compotildeem seu sistema sejam elas a esteacutetica a
eacutetica a poliacutetica etc
Para Schopenhauer ldquoo maior meacuterito de Kant eacute a distinccedilatildeo entre
fenocircmeno e coisa-em-sirdquo (Schopenhauer MVR 526) Esta distinccedilatildeo foi o que
possibilitou a ldquorevoluccedilatildeo copernicanardquo realizada sobre o dogmatismo anterior A partir
daquele momento ldquoo mundo objetivo como o conhecemos natildeo pertence agrave essecircncia das
coisas em si mesmas mas eacute seu mero FENOcircMENO condicionado exatamente por
aquelas mesmas formas que se encontram a priori no intelecto
humanordquo(Schopenhauer MVR 530) Na teoria kantiana temos o espaccedilo e o tempo
como formas da sensibilidade que na filosofia de Schopenhauer satildeo associadas agrave
faculdade do entendimento juntamente com a causalidade uacutenica das doze categorias
kantianas do entendimento mantidas por Schopenhauer em seu sistema Desta forma o
mundo enquanto representaccedilatildeo eacute aquele que se apresenta para o sujeito enquanto objeto
9 Quando dizemos ideacuteia central havemos de lembrar que no sistema schopenhaueriano esta categorizaccedilatildeo
eacute singular (o tema seraacute tratado no iniacutecio do proacuteximo capiacutetulo) 10
A importacircncia que o filoacutesofo daacute ao tiacutetulo de uma obra eacute esclarecedora para a compreensatildeo da
importacircncia de sua ideacuteia central ldquoo que o sobrescrito deve ser para uma carta eacute o que um tiacutetulo deve ser
para um livro ou seja antes de tudo deve ter o objetivo de destinaacute-lo agrave parte do puacuteblico que pode se
interessar por seu conteuacutedo Sendo assim o tiacutetulo precisa ser caracteriacutestico e por ser naturalmente
breve deve ser conciso lacocircnico pregnante e se possiacutevel um monograma do conteuacutedordquo
(Schopenhauer SOE 09-10)
27
condicionado por estas trecircs formas presentes a priori no intelecto humano tempo
espaccedilo e causalidade Quanto ao mundo noumecircnico que dentro da teoria kantiana eacute um
ldquox desconhecidordquo Schopenhauer o explica atraveacutes da Vontade sua traduccedilatildeo da coisa-
em-si Essa dualidade que traz agrave tona a ldquocompleta diversidade entre o ideal e o realrdquo
(Schopenhauer MVR 527) doutrina que de acordo com Schopenhauer (MVR 528) foi
expressa por Kant de forma soacutebria calma demonstrada e incontestaacutevel jaacute havia sido
expressa tambeacutem em linguagem mais miacutetica e poeacutetica por outras duas doutrinas que
tambeacutem estatildeo profundamente presentes na obra Schopenhaueriana Platatildeo e os escritos
indianos dos Vedas e Puranas
Os estudos das obras de Platatildeo e Kant foram recomendaccedilatildeo de Schultze
um dos professores de Schopenhauer em Gottingen (Weissmann 1980 54) e formam os
pilares filosoacuteficos do sistema schopenhaueriano A separaccedilatildeo entre o real e o ideal
executada por Kant eacute vista tambeacutem na obra platocircnica Sua teoria das ideacuteias bem como
sua alegoria da caverna satildeo expressotildees de uma intuiccedilatildeo da existecircncia daquela separaccedilatildeo
O que Kant teria sistematizado a seu modo eacute a mesma verdade que ldquojaacute Platatildeo
incansavelmente repete e na maioria das vezes exprime em sua linguagem do seguinte
modo este mundo que aparece aos sentidos natildeo possui nenhum verdadeiro ser mas
apenas um incessante devir ele eacute e tambeacutem natildeo eacute sua apreensatildeo natildeo eacute tanto um
conhecimento mas uma ilusatildeordquo (Schopenhauer MVR 528)
Aleacutem de Platatildeo os livros sagrados dos indianos afirmavam esta ldquoilusatildeordquo
ldquofantasmagoriardquo do mundo e constituem tambeacutem uma fonte frequumlentemente utilizada
por Schopenhauer O contato do nosso filoacutesofo com o pensamento oriental se deu
quando do seu encontro com o orientalista Friedrich Majer no salatildeo de sua matildee em
28
Weimar A partir de entatildeo o interesse do filoacutesofo pelo pensamento oriental foi se
intensificando ao longo de sua vida 11
A mesma verdade representada de modo completamente outro eacute
tambeacutem uma doutrina capital dos vedas e puranas a saber a doutrina de
Maia pela qual natildeo se entende outra coisa senatildeo aquilo que Kant nomeia
o fenocircmeno em oposiccedilatildeo agrave coisa-em-si pois a obra de maia eacute
apresentada justamente como este mundo visiacutevel no qual estamos um
efeito maacutegico que aparece na existecircncia uma aparecircncia inconstante e
inessencial em si destituiacuteda de ser comparaacutevel agrave ilusatildeo de oacutetica e ao
sonho um veacuteu que envolve a consciecircncia humana um algo do qual eacute
igualmente falso e igualmente verdadeiro dizer que eacute ou natildeo eacute
(Schopenhauer MVR 528)
Estas trecircs doutrinas estavam admitidamente presentes quando da
elaboraccedilatildeo do nuacutecleo conceitual fundamental da posteriormente nominada Filosofia da
Vontade Entretanto aleacutem de formarem seu nuacutecleo conceitual podemos encontraacute-las
ainda posteriormente em outros instantes desta filosofia O pensamento oriental seraacute
figura fortemente presente na eacutetica schopenhaueriana desenvolvida no quarto livro do
Mundo onde o filoacutesofo adotaraacute como fundamento de sua eacutetica o sentimento da
compaixatildeo jaacute presente na doutrina budista Platatildeo e Kant satildeo ainda influecircncias
fundamentais como veremos no proacuteximo capiacutetulo da esteacutetica schopenhaueriana O
primeiro novamente atraveacutes de sua teoria das ideacuteias seraacute utilizado por Schopenhauer na
definiccedilatildeo do objeto artiacutestico Do segundo poderemos notar sua influecircncia nas teorias
schopenhauerianas do sublime da imaginaccedilatildeo e da contemplaccedilatildeo desinteressada todas
elas fundamentais agrave compreensatildeo da teoria da arte poeacutetica
- - - - - - - - - -
11
Suas fontes principais eram o Oupnekacutehat uma traduccedilatildeo latina dos vedas e o Asiatic Journals jornal
publicado pela sociedade asiaacutetica fundada em 1784 Para uma referecircncia completa das citaccedilotildees orientais
na obra de Schopenhauer veja o apecircndice do artigo de Moira Nicholls The influences of Eastern Thought
on Schopenhaueracutes Doctrine of the Thing-in-itself (in Janaway 1999 197-204)
29
Apresentadas as principais influecircncias teoacutericas do sistema
schopenhaueriano passemos a uma breve descriccedilatildeo do ambiente cultural que naquele
momento tinha como foco um projeto de fundaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para o teatro e a
literatura germacircnicas Tal projeto envolveu os mais importantes dramaturgos criacuteticos
escritores e pensadores do periacuteodo imediatamente anterior a Schopenhauer12
e eacute
tambeacutem posteriormente retomado por Nietzsche em seu Nascimento da Trageacutedia Sua
importacircncia para a filosofia da vontade pode ser medida pela recorrente referecircncia feita
a estes pensadores nas obras dos filoacutesofos Seu iniacutecio em meados do seacuteculo XVIII deu-
se pela influecircncia exercida pelo historiador da arte Johann J Winckelmann junto aos
escritores poetas e dramaturgos posteriores dentre eles Lessing Goethe e Schiller
A influecircncia winckelmanniana que de acordo com Butler (1958 11)
criou ondas cujo violento distuacuterbio ldquoainda varrem as praias do seacuteculo XXrdquo se pautou
em duas noccedilotildees fundamentais13
a imitaccedilatildeo dos antigos e o belo ideal Winckelmann
propunha um novo modelo no qual a arte germacircnica deveria se basear para atingir uma
grandiosidade rara e ldquoinimitaacutevelrdquo a imitaccedilatildeo dos gregos Por esta imitaccedilatildeo o
historiador natildeo propunha uma mera coacutepia das obras de arte gregas poreacutem uma imitaccedilatildeo
do modo de produccedilatildeo artiacutestica dos gregos qual seja sintetizar a beleza ideal descoberta
na observaccedilatildeo da diversidade objetiva da natureza Esta proposta de um retorno ao
modelo antigo coloca Winckelmann na esteira da conhecida querela entre antigos e
modernos e eacute a igniccedilatildeo para o periacuteodo literaacuterio conhecido como classicismo germacircnico
Esta disputa quanto agrave valorizaccedilatildeo das obras poeacuteticas antigas ou modernas estaraacute de um
modo ou de outro presente nas teorias schopenhaueriana e nietzscheana da trageacutedia
12
De acordo com Schopenhauer as obras de tais poetas e escritores assim como a filosofia de Kant satildeo
exemplos para os quais a literatura e a filosofia pobres de seu tempo deveriam se voltar No que se refere
ao uso da liacutengua ele aconselha ldquoLede vede qual liacutengua Winckelmann Lessing Klopstock Wieland
Goethe Buumlrger Schiller falaram e emulai-a mas natildeo fazei o mesmo com o jargatildeo estupidamente
excogitado pelos miseraacuteveis literatos atuais e entre eles pelos professores que vatildeo agrave escola de liacutenguardquo
(Schopenhauer SOE 57-58) 13
Esta duas noccedilotildees fundamentais satildeo ressaltadas por Suumlssekind e Machado em seus trabalhos sobre o
tema Veja Suumlssekind 2008 67-77 e Machado 2006 9-14
30
Como veremos posteriormente Schopenhauer privilegiaraacute a trageacutedia moderna em
detrimento da antiga argumentando que aquela cumpre com maior competecircncia o seu
objetivo enquanto forma de arte qual seja provocar repulsa agrave vontade de viver e
estimular sua negaccedilatildeo Apesar deste privileacutegio pelas obras traacutegicas modernas o filoacutesofo
natildeo deixa como seus contemporacircneos de ter os gregos como modelo e natildeo satildeo raros
seus elogios agraves produccedilotildees helecircnicas Para Schopenhauer Winckelmann foi para a
histoacuteria da arte assim como ele o eacute para a da filosofia um exemplo do modo epiciacuteclico
atraveacutes do qual a natureza de tempo em tempo faz avanccedilar o conhecimento do gecircnero
humano Para o filoacutesofo a retomada do projeto kantiano realizada pelo seu sistema eacute a
demonstraccedilatildeo de que entre ele e Kant nenhum conhecimento foi produzido Como
exemplo deste esquema epiciacuteclico na histoacuteria da arte Schopenhauer utiliza-se do
retorno de Winckelmann agrave beleza claacutessica o que nos mostra a importacircncia dada pelo
filoacutesofo agrave forma de arte grega bem como ao projeto inaugurado pelo historiador da arte
Apoacutes explicar o esquema epiciacuteclico da evoluccedilatildeo dos progressos humanos
Schopenhauer diz
Para quem deseja poreacutem ter uma prova do esquema geral dos
epiciclos aqui exposto com base na histoacuteria da arte basta observar a
escola de escultura de Bernini que florescia ainda no seacuteculo passado
particularmente em seu desenvolvimento francecircs sucessivo e que
representava a natureza comum em vez da beleza claacutessica e o decoro do
minueto francecircs em vez da simplicidade e da graccedila antigas Tal escola
faliu quando apoacutes a repreensatildeo de Winckelmann voltou-se agrave escola dos
antigos (Schopenhauer SOE 110)
Nietzsche por sua vez seguiraacute o caminho winckelmanniano de exaltaccedilatildeo da forma de
arte antiga apresentando a trageacutedia grega como modelo para a arte moderna e elogiando
a iniciativa de seus predecessores em valorizar e recuperar a arte helecircnica
31
Conviria que alguma vez se pesasse diante dos olhos de um juiz
insubornaacutevel em que tempo e em que homens o espiacuterito alematildeo se
esforccedilou mais vigorosamente por aprender dos gregos e se admitirmos
com confianccedila que esse louvor uacutenico deveria ser atribuiacutedo agrave nobiliacutessima
luta de Goethe Schiller e Winckelmann pela cultura haveria em todo
caso que acrescentar que desde aquele tempo e depois das influecircncias
imediatas daquela luta tornou-se cada vez mais fraca de maneira
incompreensiacutevel a aspiraccedilatildeo de se chegar por uma mesma via agrave cultura e
aos gregos (Nietzsche NT 120)
Podemos perceber entatildeo a importacircncia do helenismo proposto por Winckelmann no
pensamento germacircnico ao observarmos a sua duraccedilatildeo tendo em vista que mais de um
seacuteculo separa o historiador da arte e o filoacutesofo da vontade de poder o que confirma a
forccedila de suas propostas para uma cultura em formaccedilatildeo e justifica o epiacuteteto com o qual
Butler caracterizou este periacuteodo dizendo que nele vemos ldquoa tirania da Greacutecia sobre a
Alemanhardquo14
O segundo ponto fundamental da teoria da arte winckelmanniana o belo
ideal natildeo provocou menor interesse em seu tempo Este belo ideal era alcanccedilado a
partir da reuniatildeo em uma uacutenica obra harmocircnica daquilo que o artista observa de mais
belo na natureza
A natureza tem seus defeitos o corpo mais belo natildeo deixa de tecirc-los e
nele encontramos frequumlentemente partes que em outros satildeo mais belas ou
podem supor-se mais perfeitas [] Os gregos trataram de reunir as formas
elegantes de vaacuterios corpos belos como sabemos pelo diaacutelogo de Soacutecrates com o
ceacutelebre pintor Parrasio [] Esta seleccedilatildeo das partes belas e sua harmocircnica
associaccedilatildeo em uma soacute figura produziu a beleza ideal (Winckelmann 2002
130)
Tal beleza encontrou sua manifestaccedilatildeo primeira na Greacutecia do periacuteodo helecircnico devido
ao favorecimento das condiccedilotildees geograacutefico-climaacuteticas15
e poliacuteticas16
Aleacutem da beleza
14
Tiacutetulo de sua obra Butler 1958 15
Sobre a influecircncia climaacutetica Winckelmann deduz ldquoA natureza depois de haver se manifestado em
gradaccedilotildees extremas de frio e de calor se estabeleceu na Greacutecia como em seu centro e por isso reina
naquele paiacutes uma temperatura intermediaacuteria entre o inverno e o veratildeo E quanto mais se aproxima deste
centro mais claridade e serenidade oferece e suas obras se manifestam em formas mais graciosas e
amaacuteveis e com detalhes mais caracteriacutesticos e decididosrdquo (Winckelmann 2002106) 16
Sobre as condiccedilotildees poliacuteticas sejam elas patriarcais democraacuteticas ou tiracircnicas Winckelmann conclui o
seguinte ldquoCom relaccedilatildeo ao regime poliacutetico e o governo da Greacutecia a liberdade eacute uma das causas da
preeminecircncia dos gregos na arte Tambeacutem a liberdade parece ter estabelecido na Greacutecia a sua sede existia
32
formal retirada da diversidade das formas naturais eleitas as mais belas as obras gregas
eram exemplares devido agrave importacircncia dada pelos artistas agrave sua expressatildeo A obra de
arte deve sua forccedila tanto agrave beleza das formas quanto agrave expressatildeo da alma nela contida
De acordo com Winckelmann ldquoa expressatildeo de uma alma grande vai muito aleacutem da
plasmaccedilatildeo de uma bela naturezardquo isto ocorre devido ao fato de que para o historiador
da arte ldquona Greacutecia a sabedoria estendia a matildeo agrave arte e insuflava nas figuras almas
mais que comunsrdquo (Winckelmann 1958 19) As caracteriacutesticas que esta expressatildeo deve
possuir satildeo aquelas contidas na passagem mais famosa da obra de Winckelmann na
qual ele descreve ainda como exemplo daquela expressatildeo artiacutestica o grupo estatuaacuterio
do Laocoonte que por sua vez seraacute alvo de uma grande controveacutersia posterior da qual
participaratildeo dentre outros Lessing Herder Goethe Schelling e Schopenhauer
Reproduzimos a passagem de Winckelmann em sua integridade
A caracteriacutestica geral e principal das obras mestras gregas eacute uma
nobre simplicidade e uma serena grandeza tanto na atitude como na
expressatildeo Assim como nas profundidades o mar estaacute sempre calmo por
muito que se agite a superfiacutecie do mesmo modo a expressatildeo nas figuras
dos gregos mostra em meio a todas as paixotildees uma alma grande e
comedida Isso transmite o rosto do Laocoonte ndash e natildeo soacute o dele ndash em
meio agrave mais violenta dor O sofrimento que aparece em todos os
muacutesculos e fibras do corpo e que no baixo ventre contraiacutedo se
experimenta tatildeo intensamente que parecemos senti-lo natildeo se exterioriza
contudo mediante qualquer ira no rosto e em toda a atitude Natildeo lanccedila
um grito terriacutevel tal como Virgiacutelio cantou em seu Laocoonte A abertura
da boca natildeo o permitiria Mais parece um suspiro angustiado como o
descreve Sadolet A dor do corpo e a grandeza da alma estatildeo distribuiacutedos
com igual forccedila atraveacutes de toda a composiccedilatildeo da figura e em certa
medida estatildeo equilibrados Laocoonte sofre mas sofre como o
Filoctetes de Soacutefocles sua dor nos toca a alma mas desejariacuteamos poder
suportar essa dor com a grandeza desse homem (Winckelmann 1958
18-19 grifo nosso)
inclusive junto ao tronos de seus reis que governavam paternalmente a seus suacuteditos antes que mais
ilustrados gozassem do destino de uma completa liberdade Homero chama a Agamemnoacuten de pastor de
seus povos com o que queria designar sua ternura com seus subordinados e sua preocupaccedilatildeo constante
pela felicidade dos mesmos Eacute bem verdade que depois surgiram tiranos mas natildeo o foram mais para uma
determinada cidade e a naccedilatildeo inteira jamais reconheceu um soberano uacutenicordquo (Winckelmann 2002 109)
33
Desta famosa passagem retiramos dois momentos que especialmente nos interessam O
primeiro dele eacute a enunciaccedilatildeo que caracterizaraacute o ideal de beleza das obras gregas nobre
simplicidade e uma serena grandeza Este ideal winckelmanniano de beleza eacute o que
torna a arte grega nas palavras de Suumlssekind ldquoinimitaacutevel e ao mesmo tempo faz dela o
modelo a ser imitadordquo (Suumlssekind 2008 69) Interessa-nos especialmente devido agrave
influecircncia desta definiccedilatildeo para a teoria do jovem professor de filologia da Basileacuteia
Podemos ver ateacute mesmo pelo vocabulaacuterio utilizado para descrever a arte grega a
proximidade e a influecircncia exercida por estes conceitos nas teorias esteacuteticas do primeiro
Nietzsche Luminosidade serenidade harmonia satildeo alguns dos conceitos que
posteriormente seratildeo utilizados por Nietzsche ao definir o seu impulso artiacutestico
apoliacuteneo17
O segundo momento - quando Winckelmann defende o espiacuterito grego na
escultura do Laocoonte em contraposiccedilatildeo ao personagem de Virgiacutelio comparando esta
representaccedilatildeo escultural com o Filoctetes de Soacutefocles - seraacute o precursor do posterior
debate sobre as fronteiras que separam as formas de arte Para Winckelmann ldquoa nobre
simplicidade e a serena grandeza das estatuas gregas eacute tambeacutem a verdadeira
caracteriacutestica dos escritos gregos da melhor eacutepoca dos escritos da escola
socraacuteticardquo(Winckelmann 1958 31) O debate sugerido pela passagem do qual
participaraacute posteriormente o proacuteprio Schopenhauer seraacute iniciado por outro pensador
de grande importacircncia para o projeto cultural alematildeo Gotthold Ephraim Lessing
Lessing em sua obra Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da
poesia apresentaraacute a contenda que chegaraacute ateacute Schopenhauer Para Lessing o ponto de
discordacircncia com Winckelmann estaacute no motivo pelo qual na escultura o Laocoonte natildeo
17
Segundo Rodriges (2007 93-126) tambeacutem o conceito do impulso dionisiacuteaco estaria mesmo que em
germe presente nos estudos de Winckelmann Segundo seu artigo o mapeamento da origem e
desenvolvimento da discussatildeo sobre os citados impulsos artiacutesticos da natureza ou seja sobre a
importacircncia dos deuses Apolo e Dioniacutesio na cultura grega abrangeria necessariamente diversas aacutereas do
pensamento alematildeo desde Winckelmann dentre elas os estudos filoloacutegicos o movimento romacircntico e as
filosofias idealistas
34
apresenta as caracteriacutesticas de quem grita e lamenta Como vimos para Winckelmann o
conjunto estatuaacuterio em questatildeo eacute exemplar pelo fato de transmitir atraveacutes da atitude
estoacuteica diante da dor a grandeza de alma que seria a regra universal da verdadeira arte
grega Esta grandeza enquanto regra universal estaria ainda de acordo com o
historiador da arte presente tanto nas formas pictoacutericas como nas obras poeacuteticas
Contrapondo-se a Winckelman Lessing afirma - exemplificando atraveacutes de passagens
de poetas queridos ao proacuteprio Winckelmann como Homero e Soacutefocles - que em vaacuterios
momentos da poesia antiga diversos personagens dentre eles deuses e heroacuteis proferem
exaltados lamentos e gritos e isto natildeo lhes subtrai a grandeza da alma Sendo assim se
na poesialdquoo gritar na sensaccedilatildeo de dor corporal pode coexistir muito bem com uma
grande alma portanto a expressatildeo de uma tal alma natildeo pode ser a causa pela qual
apesar disso o artista natildeo quer imitar esse grito no seu maacutermore antes deve haver um
outro motivo por que aqui ele separa-se do seu rival o poeta que expressa esse grito
com o melhor propoacutesitordquo(Lessing 1998 86) O motivo pelo qual em sua representaccedilatildeo
estatuaacuteria o Laocoonte natildeo grita eacute para Lessing uma questatildeo de limitaccedilatildeo da forma de
expressatildeo escultoacuterica que ao se submeter agrave ldquolei da belezardquo natildeo pode representar o grito
desfigurador Em suas palavras
O mestre visava a suprema beleza sob as condiccedilotildees aceitas da dor
corporal Esta em toda a sua violecircncia desfiguradora era incompatiacutevel
com aquela Ele foi obrigado a reduzi-la ele foi obrigado a suavizar o
grito em suspiro natildeo porque o grito denuncia uma alma indigna mas
antes porque ele dispotildee a face de um modo asqueroso (Lessing 1998
92)
Devemos ressaltar que segundo a teoria artiacutestica de Lessing para quem as leis a que
devem obedecer a arte estatildeo ligadas agrave sua interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica a arte eacute
julgada atraveacutes do seu efeito Neste contexto ao conceder a seus personagens
caracteriacutesticas de humanidade como por exemplo a manifestaccedilatildeo da dor atraveacutes de
35
lamentos e gritos o poeta estaria aproximando o heroacutei traacutegico do puacuteblico a ser atingido
e consequumlentemente maximizando a identificaccedilatildeo entre eles e com isto o efeito
esperado qual seja a catarse atraveacutes do temor e da compaixatildeo Esta identificaccedilatildeo
alcanccedilada por via da demonstraccedilatildeo dos lamentos dos heroacuteis dramaacuteticos natildeo pode ser
obtida da mesma forma pelas artes pictoacutericas Nestas que satildeo expressotildees de um
momento uacutenico a beleza natildeo pode deixar de estar presente pois ela eacute um dos
ingredientes mais fundamentais do efeito buscado Na poesia o heroacutei natildeo seraacute
caracterizado em uma uacutenica accedilatildeo como ocorre na escultura Sendo assim o grito
narrado eacute apenas um momento do conjunto que iraacute definir o personagem
O Laocoonte de Virgiacutelio grita mas esse Laocoonte que grita eacute
justamente aquele que noacutes jaacute conhecemos e amamos como o patriota
mais cordato e o pai mais afetuoso Noacutes vinculamos o seu grito natildeo ao
seu caraacuteter mas antes apenas ao seu sofrimento insuportaacutevel Apenas
esse uacuteltimo noacutes ouvimos no seu grito e o poeta pode tornaacute-lo sensiacutevel
apenas graccedilas a esse grito (Lessing 1998 106)
Com isto tanto o escultor que suprime o grito quanto o poeta que o descreve ao
fazerem o fazem de acordo com as leis que regem suas respectivas formas de arte
Da contenda sobre o grito do Laocoonte e sua representaccedilatildeo escultoacuterica e
poeacutetica iratildeo participar ainda diversos pensadores Dentre os mais ilustres podemos
destacar Goethe cuja explicaccedilatildeo sobre a escultura proacutexima em muitos pontos da de
Lessing encontra-se nos Propileus Para o poeta o grupo estatuaacuterio ldquoesgota o seu objeto
e preenche com sucesso todas as condiccedilotildees da arterdquo (Goethe 2005126) Segundo
Goethe a escultura eacute limitada a um uacutenico momento da accedilatildeo e sua comparaccedilatildeo com a
poesia de Virgiacutelio eacute injusta O poeta a avalia assim como Lessing atraveacutes de seu efeito
ainda dentro das categorias poeacuteticas de Aristoacuteteles e destaca
O ser humano possui apenas trecircs sentimentos no sofrimento
proacuteprio e alheio o medo o terror e a compaixatildeo a previsatildeo temerosa de
um mal que se aproxima a percepccedilatildeo inesperada do sofrimento presente
36
e a participaccedilatildeo no sofrimento duradouro ou que passou todos os trecircs
sentimentos satildeo representados e suscitados por esta obra de arte e na
verdade na gradaccedilatildeo a mais conveniente (Goethe 2005 126)
Em sua obra principal Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 46 a seus comentaacuterios do
Laocoonte que seratildeo acrescidos de exemplos no posterior volume de suplementos
Reconhece o avanccedilo feito por Lessing ao colocar no lugar de um fundamento
psicoloacutegico um fundamento puramente esteacutetico e critica ainda as teorias psicoloacutegicas e
fisioloacutegicas de seu tempo como as de Hirt e Fernow18
Para Schopenhauer apesar de
sua aproximaccedilatildeo do que seria uma ldquoexplicaccedilatildeo corretardquo da obra Lessing natildeo encontrou
o seu ponto exato qual seja a explicaccedilatildeo de que o grito natildeo pertence ao domiacutenio de
uma representaccedilatildeo escultoacuterica
Antes de qualquer investigaccedilatildeo psicoloacutegica e fisioloacutegica sobre se
Laocoonte em sua situaccedilatildeo poderia gritar ou natildeo deve-se decidir em
relaccedilatildeo ao grupo de esculturas o seguinte que nele o grito natildeo pode ser
exposto pelo motivo de que a exposiccedilatildeo do grito reside por inteiro fora
do domiacutenio da escultura (Schopenhauer MVR 2005 303)
Para Schopenhauer a simples exposiccedilatildeo que representaria o grito ou seja ldquoo
escancarar violento da bocardquo natildeo pode ocasionar o efeito que o grito mesmo enquanto
forma de expressatildeo ocasionaria O efeito que o grito pode causar em uma arte
descritiva atraveacutes do uso da imaginaccedilatildeo do leitor ou mesmo na arte representativa no
teatro tornar-se-ia motivo de riso caso seja representado por uma boca escancarada na
arte plaacutestica Schopenhauer utiliza-se do exemplo do Laocoonte para demonstrar a
necessidade do estabelecimento de fronteiras entre as artes que devido agrave suas formas
devem obedecer agraves competecircncias determinadas pelo objeto representado (no caso da
teoria schopenhaueriana as competecircncias seratildeo determinadas pelas ideacuteias a serem
representadas como veremos posteriormente) Esta preocupaccedilatildeo com os limites entre as
18
Segundo Schopenhauer Hirt (Horen 1797 parte 10) apresenta a explicaccedilatildeo de que Laocoonte natildeo grita
pois estaacute impossibilitado pela sufocaccedilatildeo que o leva agrave morte Fernow por sua vez faz uma amalgama das
opiniotildees de Winckelmann Lessing e Hirt
37
formas artiacutesticas presente na esteacutetica schopenhaueriana e no Laocoonte de Lessing foi
contudo como nos lembra Suzuki (Rosenfield 2001 36-56) ignorada por Goethe
(como podemos ver pelos elementos da poeacutetica aristoteacutelica utilizados pelo poeta para
explicar a escultura na citaccedilatildeo presente na paacutegina anterior) e seraacute posteriormente
tambeacutem desconsiderada por Nietzsche em seu projeto de uma obra de arte total
Diante do acima exposto ainda tratando de Lessing podemos perceber
que toda a discussatildeo acerca do Laocoonte foi desencadeada pela motivaccedilatildeo de defesa da
arte poeacutetica agrave qual Lessing dedicou sua vida como escritor diretor e criacutetico teatral
Desta forma a importacircncia de Lessing para o tema em questatildeo nesta dissertaccedilatildeo estaacute
mais ligado ao seu papel junto a um projeto de formaccedilatildeo de um teatro alematildeo e sua
interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica Enquanto teoacuterico e criacutetico do teatro o autor da
Dramaturgia de Hamburgo exerceu grande influecircncia na cultura posterior ao oferecer a
seu tempo uma nova interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica que vai de encontro agraves
interpretaccedilotildees francesas e de Gottsched que eram por sua vez inflexiacuteveis em relaccedilatildeo agraves
regras (das unidades de espaccedilo tempo e lugar do estatuto social dos personagens da
linguagem e do nuacutemero de atos) Lessing atento agraves necessidades de uma burguesia em
ascensatildeo que natildeo se identificava mais com as concepccedilotildees aristocraacuteticas do modelo de
teatro francecircs e imbuiacutedo na construccedilatildeo do projeto de formaccedilatildeo cultural de uma naccedilatildeo
fragmentada oferece atraveacutes de suas interpretaccedilotildees uma seacuterie de elementos que estaratildeo
presentes nas consideraccedilotildees de pensadores posteriores Dentre estes elementos podemos
destacar as seguintes uma discussatildeo acerca dos conceitos de mimese temor
compaixatildeo catarse a defesa da utilizaccedilatildeo de caracteres mistos a liberdade do gecircnio
ante as regras o enaltecimento dos teatros espanhol e inglecircs principalmente de
Shakespeare
38
Ao tratarmos do referido projeto de um teatro alematildeo e tambeacutem do
classicismo germacircnico dois nomes ainda satildeo fundamentais para sua formaccedilatildeo bem
como eacute incontestaacutevel sua influecircncia sobre Schopenhauer e o jovem Nietzsche19
satildeo
eles Goethe e Schiller O primeiro deles maior dos poetas do classicismo germacircnico
foi um ampliador do projeto Winckelmanniano ldquoPois Goethe pensa o ideal de beleza
natildeo soacute em relaccedilatildeo agrave pintura e agrave escultura mas tambeacutem e principalmente em relaccedilatildeo agrave
poesia ou agrave arte dramaacutetica ampliando as ideacuteias de Winckelmann nesse domiacutenio como
teoacuterico e como criador de obras teatraisrdquo (Machado 2006 14) Seu classicismo
impresso em seus textos teoacutericos e na forma e conteuacutedo de diversas de suas produccedilotildees
literaacuterias eacute o auge do projeto Winckelmanniano Podemos ver na esteira de Machado
(2006 14-22) que o ideal de beleza proposto por Winckelmann eacute ainda o que domina a
noccedilatildeo Goetheana dos gregos e eacute apoiado neste ideal que o poeta interpreta a arte do
mundo helecircnico e a apresenta como um exemplo para a arte de seu tempo Ressaltamos
poreacutem que dada a sua extrema heterogeneidade como nos adverte Butler (1958 85)
encontrar um senso de harmonia interna no todo da obra goetheana eacute tarefa tatildeo incerta
como determinar o grau de sua influecircncia no pensamento de nossos filoacutesofos No que se
refere a Schopenhauer entretanto natildeo podemos deixar de ressaltar que sua convivecircncia
com o poeta foi norteada pelas discussotildees cientiacuteficas e filosoacuteficas que ocupavam o palco
de seus estudos agrave eacutepoca Goethe dedicou vinte anos de sua vida ao estudo das cores e
sua obra Doutrina das cores eacute o resultado desta investigaccedilatildeo Ela atraiu o interesse do
jovem Schopenhauer que apoacutes alguns encontros com Goethe dedicou-se a escrever a
sua proacutepria teoria que divergia em diversos pontos da teoria do poeta fato que marcou o
fim da relaccedilatildeo amistosa dos mesmos Sobre este periacuteodo de convivecircncia
19
De acordo com Martin (1996) a obra desenvolvida por Nietzsche enquanto escritor e pensador eacute
demasiado complexa para ser reduzida ou atribuiacuteda a determinada influecircncia Entretanto em uma
estatiacutestica crua podemos ter o vislumbre desta influecircncia como se segue ldquoSchopenhauer eacute referenciado
394 vezes na obra de Nietzsche Wagner 327 vezes a Goethe existem 311 menccedilotildees Schiller encontra-se
em nono lugar com 126 menccedilotildeesrdquo (Martin 1996 5)
39
especificamente sobre o episodio citado Goethe vai escrever mais tarde conforme
citaccedilatildeo de Safranski
O Dr Schopenhauer foi para mim um amigo benevolente
Estivemos de acordo em muitas coisas mas foi impossiacutevel evitar ao final
um certo distanciamento como dois amigos que ateacute certo momento
caminharam juntos se datildeo a matildeo para despedir pois querem dirigir-se um
ao norte outro ao sul perdendo-se rapidamente de vista um ao outro
(apud Safranski 1991 265)
Ainda na esteira do movimento de estabelecimento de um projeto
artiacutestico nacional encontramos Schiller que ao lado de Goethe foi o responsaacutevel pelas
maiores obras do classicismo literaacuterio de Weimar Para o estudo em questatildeo o que mais
nos interessa em sua obra eacute o periacuteodo no qual antes do contato com Goethe Schiller
produz seus escritos teoacutericos sobre a trageacutedia Estes estudos podem ser considerados
em uma perspectiva histoacuterica como uma ponte entre a interpretaccedilatildeo da trageacutedia nos
moldes puramente aristoteacutelicos e a trageacutedia vista enquanto forma de arte que para
atingir o efeito dela esperado deve refletir a condiccedilatildeo traacutegica do homem pensada com
base em elementos retirados da filosofia moral e da esteacutetica kantiana Em seus textos
teoacutericos sobre a poesia traacutegica pertencentes ao periacuteodo que Schiller assume ter estado
sob influecircncia da filosofia kantiana ele descreve a trageacutedia como expressatildeo do sublime
ndash conceito extraiacutedo da criacutetica kantiana do juiacutezo ndash como a representaccedilatildeo sensiacutevel da
dicotomia entre a liberdade moral a vontade individual (vontade tomada enquanto
faculdade de pensar e agir livremente) por um lado e a necessidade natural e instintiva
por outro Vemos pela primeira vez em Schiller a utilizaccedilatildeo de categorias filosoacuteficas
kantianas na elaboraccedilatildeo de uma teoria da trageacutedia o que teraacute continuidade com as
teorias do idealismo absoluto e a do proacuteprio Schopenhauer Este eacute um momento
extremamente importante devido ao fato de marcar toda a reflexatildeo futura sobre o tema
ao fundar o deslocamento de uma interpretaccedilatildeo poeacutetica da trageacutedia baseada em
40
comentaacuterios da obra aristoteacutelica para uma interpretaccedilatildeo do traacutegico enquanto fenocircmeno
que descreve a situaccedilatildeo do homem no mundo De acordo com Machado ldquoEacute do
encontro de um grande dramaturgo como Schiller com a filosofia de Kant -
principalmente a sua eacutetica considerada como uma filosofia da liberdade e sua
esteacutetica no que diz respeito agrave teoria do juiacutezo sobre o sublime ndash que nasce a primeira
filosofia do traacutegico uma reflexatildeo filosoacutefica original que criou um tipo novo de
pensamento sobre a trageacutediardquo (Machado 2006 54) Na teoria schopenhaueriana da
trageacutedia podemos ver caracteriacutesticas da teoria schilleriana Primeiramente a presenccedila
marcante da influecircncia kantiana no que se refere ao sublime Em segundo lugar a
leitura da trageacutedia enquanto instrumento para a percepccedilatildeo de uma ordem moral do
mundo Tais caracteriacutesticas seratildeo aprofundadas no capiacutetulo posterior Vale antecipar que
na obra do jovem Nietzsche poderemos ver a exaltaccedilatildeo de Schiller em sua tentativa de
compreensatildeo do mundo helecircnico aleacutem do elogio agrave teoria schilleriana do coro Veremos
entretanto uma criacutetica acirrada no que se refere ao projeto de um teatro enquanto
instituiccedilatildeo moral
Neste capiacutetulo foram delineadas as principais influecircncias filosoacuteficas que
alicerccedilaram o sistema schopenhaueriano bem como esboccedilaram-se as diversas teorias
artiacutesticas que surgiram no periacuteodo em questatildeo teorias estas que propuseram mateacuteria
para a formaccedilatildeo do pensamento de nossos filoacutesofos A partir da cisatildeo entre fenocircmeno e
noumeno proposta por Kant e sua primeira criacutetica Schopenhauer elabora as matrizes de
seu sistema e para ilustraacute-lo encontra apoio na cosmologia platocircnica e no pensamento
oriental Vimos ainda que sua teoria esteacutetica eacute alimentada pela frequumlentaccedilatildeo agraves
categorias apresentadas por artistas teoacutericos e criacuteticos de arte de seu periacuteodo Por seu
turno vimos com Winckelmann a origem do estudo sobre os gregos e sua arte aleacutem do
estabelecimento destes como um modelo para a arte alematilde projeto este que foi
41
retomado por Lessing que por sua vez intensificou o estudo e propocircs um modelo de um
teatro nacional independente projeto que seraacute mais tarde revisitado e aprofundado por
Goethe e Schiller Esta apresentaccedilatildeo de influecircncias eacute imprescindiacutevel para identificarmos
a origem de certos elementos que satildeo fundamentais ao entendimento da proacutepria doutrina
schopenhaueriana tais como o caraacuteter moral de sua teoria esteacutetica sua preocupaccedilatildeo
com o estabelecimento de limite entre as artes sua interpretaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo da poeacutetica
sua utilizaccedilatildeo de conceitos esteacuteticos kantianos (sublime belo e desinteresse) sua
apreciaccedilatildeo das obras modernas seu reconhecimento da produccedilatildeo claacutessica seu desprezo
agrave filosofia de seu tempo Eacute tambeacutem atraveacutes do mapeamento aqui feito de algumas de
suas influecircncias mesmo que brevemente apontado que poderemos mais tarde
identificar alguns dos aspectos originais e singulares de sua teoria
Quanto agraves influecircncias presentes na teoria da trageacutedia do jovem Nietzsche
apontaremos complementos no capiacutetulo correspondente Eacute imprescindiacutevel dar destaque
no que se refere agrave obra nietzscheana agrave sua formaccedilatildeo filoloacutegica ao seu conviacutevio com
Richard Wagner e agrave sua leitura do proacuteprio Schopenhauer - e isto seraacute feito
posteriormente Esperamos ter deixado claro ateacute aqui que diferentemente de Zaratustra
Nietzsche natildeo desceu simplesmente de uma montanha mas faz parte de uma tradiccedilatildeo
histoacuterica assim como Schopenhauer e que a contextualizaccedilatildeo de suas teorias eacute
fundamental para a identificaccedilatildeo dos elementos ali presentes que singularmente se
originaram do sistema metafiacutesico da Vontade
42
2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU
SUBSTRATO METAFIacuteSICO
ldquoOra se todo mundo como representaccedilatildeo eacute
a visibilidade da Vontade a arte eacute o
clareamento dessa visibilidade a cacircmera
obscura que mostra os objetos mais
puramente permitindo-nos melhor abarcaacute-
los e compreendecirc-los eacute o teatro dentro do
teatro a peccedila dentro da peccedila em Hamletrdquo
(Schopenhauer)
Utilizando-se de uma metaacutefora retirada do Eacutedipo de Soacutefocles Schopenhauer nos
oferece um exemplo da caracteriacutestica de conexatildeo interna dos temas abordados em sua
obra20
ldquo minha filosofia eacute como a Tebas de cem portas desde todos os lados se pode
entrar e atraveacutes de todos se pode chegar por um caminho direto ateacute o centrordquo
(Schopenhauer 2002 4) Tendo em vista que nosso objetivo neste capiacutetulo eacute apresentar
a teoria schopenhaueriana da trageacutedia e seus fundamentos filosoacuteficos utilizaremo-nos
desta porta para termos acesso ao sistema schopenhaueriano Procuraremos percorrer o
20
Barboza define bem esta caracteriacutestica marcante da filosofia schopenhaueriana ldquoSchopenhauer eacute o
filoacutesofo da organicidade Procura-a porque com ela onde quer que se esteja no seu sistema estar-se-aacute
em toda parte O todo conteria as partes e seria contido por elas De uma metafiacutesica da efetividade se vai
para uma do belo desta para a da eacutetica que por sua vez pode remeter agrave muacutesica por seu turno a nos
enviar para a efetividade numa por assim dizer circularidade virtuosa A unidade natildeo se perde do
horizonte de observaccedilatildeordquo (Barboza 2001 137)
43
substrato metafiacutesico sustentador da teoria do traacutegico schopenhaueriana e perceber assim
a conectividade interna existente entre sua cosmologia sua teoria esteacutetica e sua eacutetica
De posse deste meacutetodo procuraremos destacar os conceitos fundamentais da teoria
traacutegica e de sua visatildeo de mundo que viratildeo posteriormente se fazer presentes tambeacutem
na obra do jovem Nietzsche
21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo
Agrave descriccedilatildeo das artes poeacuteticas Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 51 do primeiro
volume e o capiacutetulo 37 do segundo volume de sua obra principal Tais descriccedilotildees
encontram-se por sua vez ao final dos trechos dedicados agrave teoria esteacutetica (livro III de
MVR e sus complementos) e finalizam seus apontamentos do que podemos chamar na
esteira de Young (2005) das artes natildeo-musicais21
Em ambos os casos a teoria da
trageacutedia estaacute localizada ao final da apresentaccedilatildeo Esta localizaccedilatildeo juntamente com as
diversas citaccedilotildees e exemplos retirados de peccedilas traacutegicas das quais o filoacutesofo se utiliza ao
longo de seu trabalho nos permite ver a importacircncia da arte traacutegica para Schopenhauer
Em sua teoria artiacutestica existe uma hierarquizaccedilatildeo das artes que leva em consideraccedilatildeo a
capacidade de cada uma em apresentar um grau especiacutefico de objetivaccedilatildeo da vontade
Na cosmologia schopenhaueriana a vontade essecircncia do mundo identificada como
sendo a coisa-em-si kantiana manifesta-se (torna-se objeto de conhecimento) atraveacutes de
diversos graus ndash que exprimem a nitidez com que a vontade se manifesta para o
observador - representados pelos reinos da natureza e finalmente pelo homem Desta
forma ela se objetivaria no mundo inorgacircnico atraveacutes das forccedilas magneacuteticas e da
gravidade no mundo vegetal atraveacutes das funccedilotildees orgacircnicas no mundo animal atraveacutes
21
Como veremos mais adiante a muacutesica eacute uma exceccedilatildeo no sistema das artes schopenhaueriano pois natildeo
se relaciona a uma objetivaccedilatildeo da vontade mas expressa a proacutepria vontade e desta forma natildeo figura na
sistematizaccedilatildeo hieraacuterquica
44
dos instintos e dos motivos assim como o faz no homem A classificaccedilatildeo das artes
corresponde portanto a esta hierarquizaccedilatildeo cosmoloacutegica de objetivaccedilatildeo da vontade22
Sendo assim a arquitetura e a hidraacuteulica mostram a objetivaccedilatildeo da vontade no seu grau
mais baixo ao expor o jogo das forccedilas que caracterizam a mateacuteria tais como a gravidade
rigidez dureza resistecircncia luz A jardinagem e a pintura da natureza satildeo as formas
artiacutesticas cujo fim eacute a exposiccedilatildeo da objetivaccedilatildeo da vontade que se manifesta no reino
vegetal A pintura de animais encontra-se em um niacutevel superior pois o reino animal
objeto de sua representaccedilatildeo expotildee de forma mais evidente a vontade objetivada Temos
ainda as pinturas de retratos a pintura histoacuterica e a escultura que das artes plaacutesticas
formam a categoria superior cujo objeto eacute a exposiccedilatildeo da vontade no grau mais elevado
de sua cognoscibilidade o homem Esta mesma exposiccedilatildeo a do homem eacute tambeacutem o
objeto da arte poeacutetica que agrave diferenccedila das artes que fazem sua exposiccedilatildeo de modo
puramente intuitivo eacute auxiliada pela imaginaccedilatildeo No aacutepice das artes poeacuteticas
encontramos a trageacutedia a uacuteltima arte natildeo-musical a ser descrita A arte traacutegica eacute aquela
que possui a caracteriacutestica de por sua natureza representar de forma mais ilustrativa a
objetivaccedilatildeo mais desenvolvida da vontade a vida humana e suas relaccedilotildees Veremos
mais tarde que aleacutem de corresponder agrave hierarquia de objetivaccedilatildeo da vontade mais
desenvolvida a arte traacutegica ocupa um lugar especial na filosofia schopenhaueriana
devido agrave ldquograndeza de seu efeitordquo (Schopenhauer 2005 333) Diante do exposto
podemos depreender que a arte possui na filosofia schopenhaueriana um papel
cognitivo e a trageacutedia por sua vez eacute a forma artiacutestica que por sua competecircncia cognitiva
ocupa o primeiro lugar entre as artes natildeo musicais
22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo
22
Vemos aqui um exemplo da citada inter-conectividade existente no sistema schopenhaueriano tendo
em vista que a elaboraccedilatildeo de sua classificaccedilatildeo artiacutestica obedece ao construto metafiacutesico do livro II de
MVR e sua consequumlente cosmologia
45
A tarefa a que se propotildee o sistema schopenhaueriano eacute a decifraccedilatildeo do ldquoenigma
do mundordquo ie encontrar uma resposta agrave pergunta o que eacute o mundo Esta tarefa tem
origem no idealismo subjacente na primeira criacutetica kantiana e de certa forma era uma
tarefa da qual estava imbuiacutedo todo o pensamento filosoacutefico daquele periacuteodo ie por
decifraccedilatildeo do enigma do mundo podemos entender a decifraccedilatildeo da coisa-em-si
kantiana Temos daiacute o ponto de partida da filosofia de Schopenhauer o idealismo
transcendental do mundo fenomecircnico Sob o ponto de vista da representaccedilatildeo o mundo eacute
objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito agraves condiccedilotildees a priori do
entendimento que para o filoacutesofo satildeo as categorias do espaccedilo do tempo e da
causalidade
Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das formas a priori do entendimento eacute
interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos advindos da filosofia Platocircnica e oriental
como um mundo ilusoacuterio Conforme a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana Platatildeo jaacute
identificava esta caracteriacutestica ilusoacuteria do mundo em sua contraposiccedilatildeo teoacuterica entre o
mundo fiacutesico onde o devir impossibilitava a apreensatildeo do ser e o mundo das ideacuteias
onde haveria o verdadeiro encontro com o ser das coisas Ainda de acordo com a
interpretaccedilatildeo de Schopenhauer os livros sagrados indianos Vedas e Puranas faziam
esta distinccedilatildeo atraveacutes da noccedilatildeo do veacuteu de maia a consciecircncia humana seria envolvida
por um veacuteu o que resultaria em uma visatildeo oniacuterica do mundo e impediria assim a
percepccedilatildeo da realidade
Entretanto o mundo pode ainda ser conhecido atraveacutes de um segundo ponto de
vista como vontade Este eacute o ponto de vista que Schopenhauer utiliza-se para decifrar a
incognosciacutevel coisa-em-si kantiana Percorrendo uma ldquovia subterracircneardquo de modo
imanente Schopenhauer identifica nas accedilotildees do corpo bioloacutegico os atos da vontade
46
enquanto coisa-em-si e de forma analoacutegica a estabelece como essecircncia governante do
mundo Faz-se necessaacuterio aqui ressaltar como o fazem Brum (1998 23) e Rosset23
que
natildeo devemos interpretar esta analogia como uma visatildeo antropomoacuterfica do mundo Essa
essecircncia do mundo encontrada empiricamente natildeo eacute todavia um ente racional uma
ldquoalma do mundordquo Se por um lado o mundo fenomecircnico eacute aquele onde o princiacutepio de
razatildeo24
estabelece as normas de funcionamento um mundo natildeo-fenomecircnico mundo em
si enquanto vontade se expressa por sua alogicidade irracionalidade Grundlosigkeit
(falta de fundamento) Essa essecircncia irracional que manifesta-se nos diversos reinos e
indiviacuteduos do mundo eacute a raiz da visatildeo pessimista da existecircncia que de acordo com o
filoacutesofo pode ser a todo momento constatada empiricamente
As diversas manifestaccedilotildees da vontade suas objetidades carregam inerentemente
a sua iacutendole puro impulso cego vontade de vida insaciabilidade Notadamente o
mundo fenomecircnico objetivaccedilatildeo da vontade expressa a essecircncia desta vontade atraveacutes
de um conflito permanente Desenha-se um cenaacuterio de batalha onde cada objetidade da
vontade cada ser do mundo eacute orientado por sua essecircncia irracional desguarnecida de
qualquer telos ldquoAssim a vontade de vida crava continuamente os dentes na proacutepria
carne e em diferentes figuras eacute seu proacuteprio alimentordquo (Schopenhauer MVR 211) Este
fundamento ontoloacutegico a vontade determina assim o caraacuteter absurdo que a vida
humana toma na filosofia schopenhaueriana eterno esforccedilo carente de ordem ou
finalidade O ldquomecanismo internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens
marionetes guiados pela carecircncia
[]nenhuma satisfaccedilatildeo todavia eacute duradoura mas antes sempre eacute um
ponto de partida de um novo esforccedilo o qual por sua vez vemos travado em
toda parte de diferentes maneiras em toda parte lutando e assim portanto
23
[] natildeo haacute que transpor a experiecircncia da motivaccedilatildeo humana ao conjunto das forccedilas naturais para
compreender o segredo da natureza senatildeo o contraacuterio transpor o misteacuterio das forccedilas naturais ao conjunto
das motivaccedilotildees psicoloacutegicas para desvendar-se o segredo da vontade humana (Rosset 2005 31) 24
Princiacutepio tratado na tese de doutoramento de Schopenhauer SRQPRS bem como no livro I de MVR
O princiacutepio estabelece que todo acontecimento possui uma causa uma razatildeo de ser
47
sempre como sofrimento natildeo haacute nenhum fim uacuteltimo do esforccedilo portanto natildeo
haacute nenhuma medida e fim do sofrimento (Schopenhauer 2005 399)
Se carecircncia vontade e desejo satildeo a tocircnica da vida humana na maior parte do tempo e
satildeo experimentados como dor e infelicidade a felicidade por sua vez eacute definida
negativamente como um momento de ausecircncia daquela dor
Sentimos a dor e natildeo a ausecircncia da dor a inquietude e natildeo a
tranquumlilidade o medo e natildeo a seguranccedila Sentimos desejo como quando
temos fome e sede entretanto ao alimentarmo-nos estas sensaccedilotildees
deixam de existir para noacutes (MVR II 630)
Toda satisfaccedilatildeo momentacircnea de um querer eacute imediatamente suprimida por outro querer
ou se perdurar por algum tempo por menor que seja este transforma-se em teacutedio Um
ldquopecircndulo entre a dor e teacutediordquo eacute a definiccedilatildeo que Schopenhauer propotildee para a vida
humana Assim se daacute tambeacutem com a sauacutede a juventude e a liberdade Todos satildeo
conceitos definidos negativamente soacute os conhecemos atraveacutes de sua ausecircncia Este afatilde
por prolongar e conservar a vida essecircncia iacutentima de cada indiviacuteduo natildeo eacute contudo
resultado de uma observaccedilatildeo objetiva da mesma de um conhecimento que eleja a vida
como algo de valor a ser mantido e preservado e portanto os ldquo[] seres natildeo satildeo
atraiacutedos por algo que se lhes apresenta mas satildeo empurrados a elerdquo (MVR II 398) A
luta eterna observada nos diversos reinos da natureza a busca por alimento o esforccedilo da
procriaccedilatildeo se comparados aos momentos fugazes de satisfaccedilatildeo fazem da vida ldquoum
negoacutecio cujos investimentos natildeo cobrem nem de longe os custosrdquo (MVR II 399)
Em todas estas consideraccedilotildees se faz claro que a vontade de viver
natildeo eacute a consequecircncia do conhecimento da vida natildeo se trata de uma
bdquoconclusio ex praemissis‟ nem em geral eacute algo secundaacuterio antes
contudo eacute o primeiro e incondicionado a premissa de todas as premissas
e precisamente por isso aquilo do que haacute de partir a filosofia pois a
vontade de viver natildeo se apresenta como a consequumlecircncia do mundo senatildeo
o mundo como consequumlecircncia da vontade de viver (MVR II 405)
Um dos pontos essenciais a ser verificado nesta visatildeo de mundo eacute o
destronamento da razatildeo O ceacuterebro oacutergatildeo da razatildeo eacute o resultado de um esforccedilo da
48
vontade em seu percurso de objetivaccedilatildeo A racionalidade humana estaacute a serviccedilo da
vontade que eacute em sua essecircncia grundlos A razatildeo eacute ferramenta para que o homem
enquanto objetidade da vontade consiga satisfazer a seus anseios Em oposiccedilatildeo agrave
filosofia racionalista de entatildeo onde o ldquoreal eacute o racionalrdquo assistimos ao surgimento de
uma filosofia irracionalista das forccedilas inconscientes onde a razatildeo na medida em que eacute
mecanismo da vontade estaacute sempre a serviccedilo desta O comportamento humano eacute
naturalmente egoiacutesta voltado para os proacuteprios interesses e estes por sua vez satildeo
expressatildeo desta vontade aloacutegica desprovida de telos Schopenhauer se mostrava
consciente da singularidade desta sua biparticcedilatildeo do ego e da consequumlente visatildeo de
mundo que ela trouxe agrave luz e enfatizou isto em seus manuscritos berlinenses ldquo[] a
divisatildeo da mente o eu em duas partes diferentes - em vontade como parte essencial e
primaacuteria e em intelecto como secundaacuteria - eacute o grande princiacutepio e meacuterito de minha
filosofia e tambeacutem a principal diferenccedila dos demais sistemasrdquo (MR III 328)
Temos entatildeo os dois pontos de vista do mundo que fundamentam a visatildeo de
Schopenhauer e que posteriormente seratildeo transformados pela teoria nietzscheana da
trageacutedia nos dois impulsos da natureza o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco O primeiro deles eacute o
mundo da individualidade da pluralidade regido pelo que Schopenhauer vai chamar
utilizando-se de um termo retirado da escolaacutestica de principium individuationis
Nesse sentido servindo-me da antiga escolaacutestica denomino
tempo e espaccedilo pela expressatildeo principium individuationis que peccedilo para
o leitor guardar para sempre Tempo e espaccedilo satildeo os uacutenicos pelos quais
aquilo que eacute uno e igual conforme a essecircncia e o conceito aparece como
pluralidade de coisas que coexistem e se sucedem (MVR 171)
No segundo toto genere diferente do primeiro existe a vontade una indivisiacutevel natildeo
submetida ao princiacutepio de razatildeo e por isso sem fundamento
Em apoio a sua tese Schopenhauer invoca ao final do capiacutetulo 46 (Sobre a
nulidade e o sofrimento da vida) dos complementos de MVR a opiniatildeo de diversos
49
pensadores dentre eles Heroacutedoto Platatildeo Teoacutegnis Homero os tragedioacutegrafos gregos
Shakespeare Byron Voltaire Rousseau Faz-se importante neste momento ressaltar que
o filoacutesofo aponta a invenccedilatildeo da trageacutedia pelos gregos como uma expressatildeo desta visatildeo
de mundo ponto de vista que como veremos tambeacutem seraacute adotado pelo primeiro
Nietzsche
Ante tudo mencionarei que os gregos por mais distantes que
estivessem da visatildeo de mundo cristatilde e da alta Aacutesia e por muito que se
mantiveram sob o ponto de vista da afirmaccedilatildeo da vontade se fizeram
profundamente impressionados pela miseacuteria da existecircncia Isso eacute
demonstrado pela invenccedilatildeo da trageacutedia obra deles (MVR II 640)
23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana
Existe poreacutem uma forma de conhecimento que eacute ndash agrave diferenccedila daquela
subordinada ao princiacutepio de razatildeo que percebe os objetos em sua relaccedilatildeo com os outros
objetos do espaccedilo-tempo ndash uma forma mais universal pois mostra o objeto em sua
caracteriacutestica mais geral qual seja a de ser objeto para o sujeito A esta forma de
conhecimento Schopenhauer associa a apreciaccedilatildeo esteacutetica O seu objeto eacute a ideacuteia
platocircnica25
um grau determinado de objetivaccedilatildeo da coisa-em-si
Os diferentes graus de objetivaccedilatildeo da Vontade expressos em
inumeraacuteveis indiviacuteduos e que existem como seus protoacutetipos
inalcanccedilaacuteveis ou formas eternas das coisas que nunca aparecem no
tempo e no espaccedilo meacutedium do indiviacuteduo mas existem fixamente natildeo
submetidos a mudanccedila alguma satildeo e nunca vindo-a-ser enquanto as
coisas nascem e perecem sempre vecircm-a-ser e nunca satildeo os GRAUS DE
OBJETIVACcedilAtildeO DA VONTADE ia dizer natildeo satildeo outra coisa senatildeo as
IDEacuteIAS DE PLATAtildeO (MVR 191)
Esta instacircncia do conhecimento eacute alcanccedilada intuitivamente pela contemplaccedilatildeo
esteacutetica da natureza ou pela facilitaccedilatildeo de uma obra de arte Desta forma as obras de
25
Conforme o filoacutesofo ldquo A expressatildeo mais breve e sucinta daquele famoso dogma platocircnico foi dada por
Dioacutegenes Laeacutercio (II 12) Platatildeo ensina que as ideacuteias da natureza existem como protoacutetipos jaacute as demais
coisas apenas se assemelham a elas e satildeo suas coacutepiasrdquo (MVR 191)
50
arte na teoria schopenhaueriana satildeo uma exposiccedilatildeo destes graus de objetivaccedilatildeo da
vontade as ideacuteias Ao contraacuterio da criacutetica agrave arte presente na repuacuteblica platocircnica - onde a
arte seria uma coacutepia mais imperfeita da ideacuteia por retratar o mundo fenomecircnico sua
coacutepia direta - Schopenhauer aproxima as obras artiacutesticas das ideacuteias eternas as define
como suas expressotildees diretas Contudo a intuiccedilatildeo das ideacuteias exige um estado de
consciecircncia diferente do estado comum Neste uacuteltimo o aparelho cognitivo sob a eacutegide
da vontade estaacute voltado para a realizaccedilatildeo dos interesses individuais e entatildeo se
movimenta no mundo guiado por estes interesses ldquoCaso entretanto a Ideacuteia deva de
alguma maneira tornar-se conhecimento e ser conhecida pelo sujeito entatildeo isso soacute
pode ocorrer graccedilas agrave supressatildeo da individualidade no sujeito que conhecerdquo (MB 30)
A forma artiacutestica de conhecimento cujo possuidor eacute o denominado gecircnio estaacute
associada a um desprendimento das reacutedeas da vontade O gecircnio eacute entatildeo aquele que livre
dos interesses da vontade percebe as ideacuteias por traacutes dos objetos alheio aos princiacutepios
de razatildeo e de individuaccedilatildeo e traduz este objeto na obra de arte O observador esteacutetico eacute
portanto um partiacutecipe da genialidade na medida em que intui a ideacuteia por traz do objeto
observado conforme tambeacutem ao seu grau de desinteresse26
Durante a apreciaccedilatildeo
esteacutetica o homem se vecirc livre momentaneamente daquela parte de si que eacute a causadora
de todo o sofrimento individual e coletivo a vontade para transformar-se em um ldquopuro
sujeito de conhecimentordquo Este estado de satisfaccedilatildeo decorrente da suspensatildeo da vontade
individualizada eacute o sentimento do belo
Aquilo que se poderia nomear o lado mais belo e a pura alegria
da vida precisamente porque nos arranca da existecircncia real e nos
transforma em espectadores desinteressados diante dela eacute o puro
conhecimento que permanece alheio a todo querer eacute a fruiccedilatildeo do belo a
alegria autecircntica na arte Mas mesmo isso requer dispositivos raros e
cabe apenas a pouquiacutessimos e mesmo para estes eacute um sonho
passageiro (MVR 404)
26
Vemos nesta forma de associaccedilatildeo entre conhecimento e interesse mais uma heranccedila kantiana no caso
provinda da definiccedilatildeo de belo da criacutetica da faculdade de juiacutezo
51
- - - - - - - - - -
Ao descrever a apreciaccedilatildeo artiacutestica como um ato cognitivo Schopenhauer
preocupa-se em diferenciaacute-la do conhecimento cientiacutefico De fato boa parte das
consideraccedilotildees sobre a arte eacute dedicada ao esclarecimento desta diferenccedila
Podemos por conseguinte definir a arte como o modo de
consideraccedilatildeo das coisas independente do princiacutepio de razatildeo em oposiccedilatildeo
justamente agrave consideraccedilatildeo que o segue que eacute o caminho da experiecircncia e
da ciecircncia O modo de consideraccedilatildeo que seque o princiacutepio de razatildeo eacute o
racional o uacutenico que vale e que auxilia na vida praacutetica e na ciecircncia o
modo apartado do conteuacutedo do princiacutepio de razatildeo eacute o genial o uacutenico que
vale e que auxilia na arte (MB 59)
No caso da trageacutedia cujo objetivo eacute o conhecimento do homem e de suas relaccedilotildees a
ciecircncia que mais se assemelha a esta forma artiacutestica seria a histoacuteria Esta natildeo tem como
objetivo a demonstraccedilatildeo da essecircncia do homem em sua forma atemporal ou seja a
demonstraccedilatildeo daquilo que fundamenta toda accedilatildeo humana independente dos
acontecimentos empiacutericos
[ ]toda ciecircncia no sentido proacuteprio do termo compreendida como
conhecimento sistemaacutetico guiado pelo fio condutor do princiacutepio de
razatildeo parte sempre de dois dados baacutesicos um deles sem exceccedilatildeo eacute o
princiacutepio de razatildeo em uma de suas figuras como oacuterganon outro eacute o
objeto especiacutefico de cada uma delas enquanto problema (Schopenhauer
MVR 73)
Desta forma a histoacuteria teria a lei de motivaccedilatildeo e o os fatos humanos como oacuterganon e
problemas respectivamente Entretanto interessa a Schopenhauer um conhecimento
mais universal que soacute pode ser apresentado pela arte e que aponta por sua proximidade
agrave essecircncia daquilo que eacute a uma ldquoiacutendole imutaacutevelrdquo das manifestaccedilotildees
Podemos ver entatildeo que sendo consideradas como meios para o
conhecimento da essecircncia da humanidade arte poeacutetica e histoacuteria possuem todavia
objetos de conhecimento diferentes A primeira quando produzida pelo verdadeiro
gecircnio tenciona manifestar a ideacuteia por traacutes destes conceitos a ideacuteia de homem de
humanidade intuitivamente independentemente do princiacutepio de razatildeo do devir como
52
objeto puro de conhecimento alheio agrave corrente dos motivos em suas caracteriacutesticas
essenciais atemporais A histoacuteria por sua vez segue o rastro do princiacutepio de razatildeo
procurando apresentar o fenocircmeno humano em suas relaccedilotildees descrever-lhe em suas
situaccedilotildees particulares individuais empiacutericas Nas palavras de Schopenhauer
Arte e ciecircncia tecircm em uacuteltima instacircncia o mesmo estofo a saber
justamente o mundo tal como ele se posta diante de noacutes ou antes uma
parte destacada dele quanto ao todo do mundo soacute a filosofia o
considera Contudo a grande diferenccedila entre ciecircncia e arte reside na
maneira como elas consideram o mundo e trabalham seu estofo Tal
oposiccedilatildeo pode ser indicada com uma palavra a ciecircncia considera os
fenocircmenos do mundo seguindo o fio condutor do princiacutepio de razatildeo ao
passo que a arte coloca totalmente de lado o princiacutepio de razatildeo
independente dele para que assim a ideacuteia entre em cena
(SCHOPENHAUER MB 57)
Podemos notar que a valorizaccedilatildeo do que eacute imutaacutevel alheio agrave idealidade do tempo eacute a
raiz da valorizaccedilatildeo do conhecimento artiacutestico frente ao histoacuterico Este uacuteltimo natildeo visa o
acesso aos modelos eternos pois seu objeto satildeo os acontecimentos individuais do
mundo fenomecircnico que satildeo eventos meramente aparentes se considerarmos a
idealidade do tempo O que se manifesta no fluxo temporal do mundo fenomecircnico satildeo
sempre as mesmas formas eternas as ideacuteias entretanto com roupagens diferentes o
mesmo homem enquanto objetivaccedilatildeo da vontade a mesma humanidade Onde quer que
seja e em qualquer momento especiacutefico sua essecircncia eacute a mesma e esta essecircncia eacute o que
deve ser alvo de uma compreensatildeo privilegiada de entendimento e natildeo as suas diversas
manifestaccedilotildees Por este motivo Schopenhauer deixando explicito o seu chamado anti-
historicismo afirma que ldquose algueacutem jaacute lera Heroacutedoto jaacute estudara bastante histoacuteria e
efeitos filosoacuteficos Pois laacute jaacute estaacute tudo o que compotildee a posterior histoacuteria mundial a
atividade o obrar o sofrimento e o destino do gecircnero humano (Schopenhauer MVR
II 496) Podemos notar claramente a oposiccedilatildeo entre a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana
da histoacuteria e as tendecircncias de seu tempo principalmente presentes na filosofia de
Hegel Este de acordo com a criacutetica de Schopenhauer ignorando a filosofia critica de
53
Kant toma o fenocircmeno histoacuterico como coisa em si ao atribuir-lhe uma unidade de
consciecircncia Entretanto unidade de consciecircncia eacute um atributo dos indiviacuteduos e natildeo do
gecircnero humano Estas filosofias de acordo com o Schopenhauer satildeo frutos do realismo
otimista queldquo tomam o mundo como perfeitamente real e potildeem como fim do mesmo
uma miseraacutevel felicidade terrena (Schopenhauer MVR II 495)
- - - - - - - - - -
Colocando de lado o fio condutor do princiacutepio de razatildeo e mirando-se no
conhecimento da ideacuteia imutaacutevel atemporal encontramos a trageacutedia como fenocircmeno que
apresenta agrave intuiccedilatildeo o homem e sua condiccedilatildeo Eacute a forma de arte que tem como objeto o
grau mais elevado de objetivaccedilatildeo da vontade A intenccedilatildeo do artista traacutegico eacute de acordo
com Schopenhauer transmitir a ideacuteia intuiacuteda tarefa que seraacute bem sucedida de acordo
com a habilidade de utilizaccedilatildeo da teacutecnica artiacutestica por um lado e com a capacidade de
percepccedilatildeo esteacutetica do apreciador por outro O tragedioacutegrafo diferentemente do
historiador que relata os fatos empiacutericos explicitando seus motivos e consequumlecircncias
deve para obter o efeito esperado em sua obra expor uma situaccedilatildeo tal em que o homem
possa manifestar todas as suas potencialidades e dessa forma transmitir ao apreciador
esteacutetico a ideacuteia representada ldquoO poeta expotildee com escolha e intenccedilatildeo caracteres
significativos em situaccedilotildees significativas jaacute o historiador toma aos dois como eles
aparecemrdquo (Schopenhauer MVR 323) A qualidade da obra traacutegica seraacute julgada entatildeo
pela sua capacidade de representaccedilatildeo da ideacuteia de humanidade e Schopenhauer qualifica
as trageacutedias de acordo com esta capacidade Natildeo existe em seu sistema uma
consideraccedilatildeo histoacuterica da produccedilatildeo traacutegica Ele natildeo leva em consideraccedilatildeo as condiccedilotildees
histoacutericas no que se refere agrave origem ou mesmo quanto ao desenvolvimento desta forma
artiacutestica e a avalia unicamente conforme o seu efeito E neste ponto a trageacutedia apresenta
uma peculiaridade frente agraves demais artes ela eacute a forma de arte que provocaraacute o
54
sentimento do sublime Como vimos o correlato subjetivo de toda apreciaccedilatildeo esteacutetica eacute
o sentimento causado pela anulaccedilatildeo da vontade individual mediante a elevaccedilatildeo ao
estado de puro sujeito de conhecimento O sublime assim como o belo satildeo expressotildees
deste sentimento que se diferenciam unicamente por sua forma
Se tal estado surgiu por si mesmo na medida em que o objeto foi
solicitado e se apresentou ndash e fomos postos sem resistecircncia pelo mero
desaparecer da vontade da consciecircncia no estado do conhecer puro ndash ou
se primeiro foi despertado por elevaccedilatildeo livre consciente sobre a vontade
na medida em que o objeto contemplado tem com esta uma relaccedilatildeo
desfavoraacutevel hostil cuja prossecuccedilatildeo suprimiria a contemplaccedilatildeo ndash aiacute
reside a diferenccedila entre o belo e o sublime (MB 119)
A impressatildeo do sublime eacute portanto uma forma de colocar-se no estado do puro conhecer
ao nos depararmos com o objeto que por sua apresentaccedilatildeo sugere uma ldquorelaccedilatildeo hostilrdquo
com o indiviacuteduo27
Jaacute vimos que a visatildeo de mundo de Schopenhauer identifica a vida humana como
sofrimento infindaacutevel no entanto ao elaborar sua definiccedilatildeo da trageacutedia Schopenhauer
aponta para o desfecho moral de sua obra (livro IV de MVR) e afirma que a trageacutedia
melhor eacute aquela que expotildee a renuacutencia agrave vida O filoacutesofo compara obras contemporacircneas
agraves antigas e afirma sua preferecircncia por estas em decorrecircncia da capacidade que elas tecircm
de provocar esta a renuacutencia agrave vida Vejamos a descriccedilatildeo que Schopenhauer faz da
trageacutedia
No aacutepice da arte poeacutetica tanto no que se refere agrave grandeza do seu
efeito quanto agrave dificuldade da sua realizaccedilatildeo deve-se ver a trageacutedia e de
fato ela assim foi reconhecida Observe-se aqui algo de suma significaccedilatildeo
para toda a nossa visatildeo geral de mundo o objetivo dessa suprema
realizaccedilatildeo poeacutetica natildeo eacute outro senatildeo a exposiccedilatildeo do lado terriacutevel da vida
27
Vemos na teoria do sublime Schopenhaueriana mais uma vez a influecircncia de Kant Schopenhauer iraacute
identificar duas formas de sublime e utilizar-se-aacute dos termos kantianos ldquosublime dinacircmicordquo e ldquosublime
matemaacuteticordquo para diferenciaacute-los No primeiro o objeto de apreciaccedilatildeo se mostra a princiacutepio uma ameaccedila
ao observador ldquoum poder que suprimiria qualquer resistecircnciardquo(MB 104) No sublime matemaacutetico o
segundo o objeto eacute visto em sua incomensuraacutevel grandiosidade diante da qual o observador infere a sua
infimidade A afinidade entre Schopenhauer e a teoria criacutetica do juiacutezo eacute expressa em sua obra principal
ldquoDe longe o que haacute de mais excelente na criacutetica da faculdade de juiacutezo eacute a teoria do sublime Ela eacute
incomparavelmente mais bem sucedida que a teoria do belo e daacute natildeo apenas como esta o meacutetodo geral
da investigaccedilatildeo mas tambeacutem um trecho do correto caminho de maneira que embora natildeo forneccedila a
soluccedilatildeo propriamente dita do problema chega bem perto delardquo(MVR 660)
55
a saber o inominado sofrimento a miseacuteria humana o triunfo da maldade
o impeacuterio ciacutenico do acaso a queda inevitaacutevel do justo e do inocente E
em tudo isso se encontra uma indicaccedilatildeo significativa da iacutendole do mundo
e da existecircncia Eacute o conflito da Vontade consigo mesma que aqui
desdobrado plenamente no grau mais elevado de sua objetidade entra em
cena de maneira aterrorizante Ele se torna visiacutevel no sofrimento da
humanidade em parte produzido por acaso e erro que se apresentam
como os senhores do mundo e personificados como destino e perfiacutedia os
quais aparecem enquanto intencionalidade em parte advindo da
humanidade mesma por meio dos entrecruzados esforccedilos voluntaacuterios dos
indiviacuteduos e da maldade e perversatildeo da maioria Trata-se de uma uacutenica e
mesma Vontade que em todos vive e aparece cujos fenocircmenos
entretanto combatem entre si e se entredevoram [] Por fim esse
conhecimento no indiviacuteduo purificado e enobrecido pelo sofrimento
mesmo atinge o ponto no qual o fenocircmeno o veacuteu de maia natildeo mais o
ilude Ele vecirc atraveacutes da forma do fenocircmeno do principium
individuationis com o que tambeacutem expira o egoiacutesmo nele baseado Com
isso os ateacute entatildeo poderosos MOTIVOS perdem o seu poder e em vez
deles o conhecimento perfeito da essecircncia do mundo atuando como
quietivo da vontade produz a resignaccedilatildeo a renuacutencia natildeo apenas da vida
mas de toda a vontade de vida mesma (Schopenhauer MVR 333)
Percebemos nesta descriccedilatildeo que a trageacutedia aleacutem de expor a visatildeo de mundo construiacuteda
pelo filoacutesofo tem como fim uacuteltimo provocar um efeito moral no apreciador esteacutetico
qual seja a renuacutencia ao mundo Vejamos entatildeo a relaccedilatildeo entre a visatildeo de mundo
schopenhaueriana o efeito esteacutetico provocado pela trageacutedia e o projeto moral existente
por traacutes de suas teorias
24 A finalidade moral da trageacutedia
Para que possamos perceber a relaccedilatildeo intriacutenseca entre cosmologia metafiacutesica
arte e a eacutetica faz-se necessaacuterio uma pequena excursatildeo sobre esta uacuteltima Que todo o
sistema schopenhaueriano possui um viacutenculo inseparaacutevel com o seu projeto eacutetico eacute fato
que natildeo passa despercebido a seus comentadores Um projeto de juventude eacute descrito
por Safranski (1991 188-198) Young (2006 07 200) Aramayo (2001 56-59) e
Cartwright (Janaway 1999 252) como uma premissa no desenvolvimento da filosofia
56
schopenhaueriana trata-se do projeto de uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Young a descreve
como uma transcendecircncia do mundo ordinaacuterio para o ldquomundo verdadeirordquo Esta
consciecircncia melhor poderia ser experimentada atraveacutes da apreciaccedilatildeo artiacutestica e da
consciecircncia eacutetica ambas originadas do desvelamento de maia Assim Schopenhauer a
descreve conforme citaccedilatildeo de Young (2006 9) ldquopersonalidade e causalidade existem
neste mundo compreensiacutevel temporal sensorial Mas a consciecircncia melhor me leva a
um mundo onde nem personalidade nem sujeito ou objeto existem maisrdquo Safransky
descreve a consciecircncia melhor como um estado semelhante ao ecircxtase miacutestico
Este arrebatamento estaacute livre das coordenadas espaccedilo-temporais
cujo ponto de interseccedilatildeo eacute o eu corporal apartado do espaccedilo do tempo
do eu Os miacutesticos chamam a esta experiecircncia ldquonunc stansrdquo agora
permanente A intensidade deste presente natildeo conhece princiacutepio nem fim
e soacute pode desaparecer porque noacutes desaparecemos dele (Safransky1991
190)
Conforme Aramayo tanto a figura do gecircnio como a do santo satildeo expressotildees do
reconhecimento desta consciecircncia melhor e a filosofia de Schopenhauer pretende-se
uma terceira via que tambeacutem apontaria para este estado de consciecircncia A caracteriacutestica
primordial deste estado eacute o desprendimento dos desejos individuais e o comportamento
virtuoso que adveacutem deste desprendimento Eacute na esteira do entendimento desta
consciecircncia melhor que as bases eacutetico-metafiacutesicas do filoacutesofo foram elaboradas Em
apoio a esta afirmaccedilatildeo Aramayo apresenta duas citaccedilotildees a partir das quais em
momentos distintos de sua vida Schopenhauer apresenta seu projeto de identificaccedilatildeo
entre eacutetica e metafiacutesica Nos escritos de Juventude em 1813 vemos o projeto
Em meu espiacuterito encontra-se em gestaccedilatildeo uma filosofia onde
metafiacutesica e eacutetica devem constituir uma soacute coisa cuja dissociaccedilatildeo eacute tatildeo
errocircnea como agrave da alma e do corpo (Aramayo 2001 41)
Jaacute nos escritos tardios especificamente em seu ensaio de 1836 Sobre a vontade na
natureza veremos Schopenhauer identificar esta uniatildeo
57
Tatildeo soacute esta metafiacutesica que jaacute eacute eacutetica por si soacute ao estar construiacuteda
com esse material primordialmente eacutetico que se supotildee a vontade
constitui real e imediatamente um sustentaacuteculo para a eacutetica em vista de
que poderia haver colocado em minha metafiacutesica o nome de eacutetica (apud
Aramayo 2001 43)
Cartwright aponta ainda na uacuteltima obra schopenhaueriana de 1851 Parerga e
paralipomena a afirmaccedilatildeo de que a ldquosua real filosofia culminou em um ponto de vista
altamente eacutetico-metafiacutesicordquo (Janaway 1999 252)
Na filosofia schopenhaueriana como vimos o indiviacuteduo humano eacute uma
expressatildeo da objetidade da vontade e seu ponto de partida por natureza eacute a satisfaccedilatildeo
manutenccedilatildeo e o prolongamento desta vontade de vida Este estado de consciecircncia onde
todos os esforccedilos estatildeo voltados para a satisfaccedilatildeo da vontade individual eacute a causa de
todo o sofrimento do mundo Aprisionado agrave perspectiva fenomecircnica do mundo o
homem natildeo percebe a unidade da vontade e age de acordo com os motivos estabelecidos
pela sua proacutepria individualidade Para este homem existe uma separaccedilatildeo profunda entre
o proacuteprio eu e os objetos do mundo
Por meio da intuiccedilatildeo que o ceacuterebro efetua a partir dos dados do sentido
e portanto mediatamente conhecemos o proacuteprio corpo como um objeto no
espaccedilo e por meio do sentido interno conhecemos a seacuterie sucessiva de nossos
desejos e atos de vontade que surgem por ocasiatildeo dos motivos externos e
finalmente conhecemos os muacuteltiplos movimentos fortes ou fracos da proacutepria
vontade aos quais todos os sentimentos internos deixam-se reconduzir Isto eacute
tudo pois o conhecer natildeo eacute ele proacuteprio de novo conhecido (Schopenhauer
2001 213)
Eacute deste estado que surge todo o comportamento humano considerado pelo filoacutesofo
como comportamento antimoral Egoiacutesmo eacute o nome dado ao resultado da influecircncia do
princiacutepio de individuaccedilatildeo sobre o comportamento dos homens Este egoiacutesmo chega ao
extremo de o homem considerar-se o centro do mundo e transformar o seu querer em
mandamento para os objetos exteriores ldquoalguns homens seriam capazes de assassinar
um outro soacute para engraxar suas botas com a gordura delerdquo (SFM 124) Nestas
58
condiccedilotildees ldquose fosse dado pois a um indiviacuteduo escolher entre a sua proacutepria aniquilaccedilatildeo
e a do mundo nem preciso dizer para onde a maioria se inclinariardquo (SFM 121) Da
forma como ocorre com o egoiacutesmo a ilusatildeo fenomecircnica daacute origem a outro sentimento
o oacutedio Estes dois egoiacutesmo e oacutedio satildeo os princiacutepios originadores de todos os viacutecios do
homem Desta leitura pessimista da natureza humana Schopenhauer retira seu conceito
perspectivista das ideacuteias de bem e mal satildeo consideradas boas ou maacutes as coisas que
agradam ou desagradam agrave vontade do indiviacuteduo ldquoPortanto tudo o que eacute favoraacutevel agrave
vontade em alguma de suas exteriorizaccedilotildees e satisfaz seus fins eacute pensado pelo conceito
bom por mais diferentes que essas coisas possam ser noutros aspectosrdquo (MVR 459)
Este estado eacute definido por Schopenhauer como ldquoafirmaccedilatildeo da vontaderdquo nele o amor-
proacuteprio Eros dita as regras de comportamento Definido o Eros enquanto
fundamentador das accedilotildees antimorais humanas sendo este surgido de uma percepccedilatildeo
subordinada ao principium individuationis entendemos o motivo pelo qual o filoacutesofo
rejeita a validade de qualquer moral baseada em argumentos abstratos
Uma moral sem fundaccedilatildeo portanto um simples moralizar natildeo pode
fazer efeito pois natildeo motiva Uma moral entretanto que motiva soacute pode fazecirc-
lo atuando sobre o amor proacuteprio O que entretanto nasce daiacute natildeo tem valor
moral algum Segue-se assim que mediante moral e conhecimento abstrato em
geral nenhuma virtude autecircntica pode fazer efeito mas esta tem de brotar do
conhecimento intuitivo o qual reconhece no outro indiviacuteduo a mesma essecircncia
que a proacutepria (MVR 468)
Desta forma em contraposiccedilatildeo ao comportamento antimoral produzido
pela ilusatildeo causada pelo principium individuationis o filoacutesofo apresenta o outro lado da
moeda a accedilatildeo moral Esta seria a accedilatildeo praticada em funccedilatildeo do bem-estar de um outro
indiviacuteduo tendo em vista que as accedilotildees praticadas em funccedilatildeo do mal-estar do outro ou
do bem e mal estar de si mesmo satildeo justamente as accedilotildees antimorais baseadas no
egoiacutesmo ou no oacutedio ldquoTodo amor que natildeo eacute compaixatildeo eacute amor-proacuteprio Amor-proacuteprio eacute
59
Eros compaixatildeo eacute Aacutegaperdquo (MVR 478) Todo ato moral eacute por consequumlecircncia um ato de
compaixatildeo ou seja um ato que eacute praticado a partir da percepccedilatildeo do sofrimento do
outro Entretanto a percepccedilatildeo do sofrimento alheio natildeo eacute dada atraveacutes do conhecimento
abstrato E somente por uma percepccedilatildeo intuitiva direta do sofrimento do outro como o
meu proacuteprio sofrimento que surge a compaixatildeo Tal percepccedilatildeo assim como a
apreciaccedilatildeo esteacutetica tem origem em uma visatildeo que vai aleacutem do principium
individuationis Desfaz-se a ilusatildeo causada por este princiacutepio de que existe em realidade
um eu e um natildeo-eu ilusatildeo essa que eacute originada pelos condicionantes do conhecimento
tempo espaccedilo e causalidade Livre do principium individuationis natildeo haacute mais
diversidade natildeo existe mais indiviacuteduo passado futuro motivaccedilotildees existe apenas o
instante presente do ser a vontade Natildeo nos vemos mais como uma vontade separada de
outras ao contraacuterio vemos nos outros a mesma vontade pela qual somos Necessaacuterio
faz-se ressaltar que este conhecimento intuitivo que demonstra a unidade da vontade
em todo indiviacuteduo eacute entendimento de verdade tatildeo profundo que supera qualquer
especulaccedilatildeo abstrata do conhecimento e por isso seu efeito eacute marcante
Para o conhecimento que vecirc atraveacutes do principium individuationis uma
vida feliz no tempo presenteada pelo acaso ou conquistada deste pela
sabedoria em meio ao sofrimento de inumeraacuteveis outros eacute apenas um sonho de
mendigo no qual eacute um rei poreacutem tem de acordar e reconhecer que era tatildeo-soacute
uma ilusatildeo fugidia aquilo que o separava do sofrimento da sua vida (MVR
452)
A experimentaccedilatildeo deste estado de consciecircncia faz-nos perceber a vida como engano
luta infinita e provoca em noacutes a renuacutencia a esta mesma vida agrave vontade de viver O
homem natildeo mais afirma a sua essecircncia mas a repudia
Agrave semelhanccedila do estado de negaccedilatildeo da vontade o proacuteprio estado de
contemplaccedilatildeo esteacutetica pressupotildee um desinteresse pelos mandamentos da vontade
60
individual um desligamento do caraacuteter egoiacutestico do sujeito empiacuterico28
Para que possa
perceber a Ideacuteia por traacutes do objeto contemplado o observador deve estar em um estado
de consciecircncia que se vecirc livre dos grilhotildees da vontade Neste estado ele eacute alccedilado para
aleacutem da individualidade torna-se puro sujeito de conhecimento Para que este estado se
manifeste eacute imprescindiacutevel natildeo estar interessado nas relaccedilotildees do objeto apreciado seja
com outros objetos seja consigo mesmo O apreciador esteacutetico natildeo se preocupa com o
ldquoonderdquo o ldquocomordquo o ldquoporquecircrdquo dos objetos Estas formas de interjeiccedilatildeo sinalizam para a
relaccedilatildeo dos objetos com o mundo O apreciador esteacutetico no momento da apreciaccedilatildeo
tem em vista somente o ldquoquerdquo do objeto transforma-se em um ldquoolho que vecircrdquo livre do
princiacutepio de individuaccedilatildeo eacute o puro sujeito de conhecimento Vemos nestes dois estados
(o esteacutetico e o compassivo) exemplos de estados de consciecircncia que por suas
caracteriacutesticas de alccedilarem o indiviacuteduo a uma anulaccedilatildeo do sofrimento fazem parte do
projeto de juventude de estabelecer uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Percebemos entatildeo que a
consideraccedilatildeo esteacutetica e a consideraccedilatildeo eacutetica possuem em comum esta caracteriacutestica da
consciecircncia de se apartar do princiacutepio de individuaccedilatildeo
No caso da trageacutedia como descreve Schopenhauer seu fim uacuteltimo eacute despertar a
compaixatildeo no apreciador Desta forma o filoacutesofo associa agrave trageacutedia um efeito singular e
adverso das demais artes ou pelo menos reconhece na trageacutedia a arte capaz de
demonstrar a semelhanccedila entre os modos de consideraccedilatildeo artiacutestico e eacutetico Ao ilustrar o
conflito das vontades no mundo atraveacutes da exposiccedilatildeo do sofrimento humano a trageacutedia
cumpre seu papel artiacutestico ao expor a ideacuteia de humanidade Aleacutem deste atributo
podemos dizer que a trageacutedia tem que cumprir ainda seu papel moral ao causar no
28
Neste ponto de semelhanccedila eacute fundamental apontar mais uma vez a heranccedila kantiana Nas palavras de
Barboza (2001 82) ldquoA negaccedilatildeo da Vontade diante da beleza realmente obedece a uma leitura do
conceito criacutetico de desinteresse Quando Kant diz que o belo eacute aquilo que satisfaz bdquosem nenhum
interesse‟ o autor de O mundo leu essa expressatildeo como equivalente da negaccedilatildeo do querer visto que
interesse e motivo satildeo conceitos intercambiaacuteveis [] e a vontade neutraliza-se desinteressa-se ou seja eacute
indeterminaacutevel por motivos na contemplaccedilatildeo da Ideacuteia do belordquo
61
espectador a renuacutencia a toda vontade O modelo exemplar da trageacutedia eacute para
Schopenhauer a trageacutedia cristatilde onde o heroacutei conscientemente abandona o querer e
conseguintemente a vida Na trageacutedia antiga havia somente a identificaccedilatildeo do
sofrimento humano e sua exposiccedilatildeo A renuacutencia agrave vontade de vida eacute caracteriacutestica das
trageacutedias posteriores ao advento cristatildeo Schopenhauer exemplifica O priacutencipe de
Calderoacuten Gretchen em Fausto A Donzela de Orleans a Noiva de Messina etc Assim
ldquotoda a exposiccedilatildeo traacutegica eacute para o espectador um chamado agrave resignaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo livre
da Vontade de vida Somente a eacutetica pode tornar tudo isso mais compreensiacutevelrdquo (MB
223) Vemos entatildeo de forma clara na teoria da trageacutedia de Schopenhauer um momento
onde ocorre a coalizatildeo dos fundamentos metafiacutesicos de sua filosofia do pessimismo
originado nestes fundamentos e da atitude eacutetica existente por traacutes de seu pensamento
25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera
Faz-se necessaacuterio aqui uma incursatildeo sobre a teoria da muacutesica de Schopenhauer
tendo em vista de que ela ocuparaacute um papel decisivo na teoria nietzscheana da trageacutedia
As relaccedilotildees que Nietzsche estabelece entre a muacutesica a vontade as palavras e
finalmente a trageacutedia satildeo delineadas como veremos pela metafiacutesica schopenhaueriana
da muacutesica No intuito de perceber estas relaccedilotildees propomos aqui um breve esboccedilo da
teoria da muacutesica na filosofia de Schopenhauer
A filosofia da muacutesica encontra seu lugar ao final do terceiro livro de MVR bem
como no capiacutetulo 39 dos complementos fechando assim as consideraccedilotildees de
Schopenhauer sobre a metafiacutesica do belo e as artes29
29
Na esteira de Lydia Goehr (Jacquette 1996 200) ressaltamos que tendo em vista a influecircncia que sua
filosofia da muacutesica exerceu sobre o pensamento artiacutestico e filosoacutefico posterior e comparada agrave dimensatildeo
de sua obra as consideraccedilotildees sobre a muacutesica ocupam um espaccedilo diminuto em sua obra
62
Para o filoacutesofo da vontade a muacutesica eacute a arte que pela natureza de seu objeto de
expressatildeo natildeo encontra lugar apropriado dentro do sistema das demais artes Estas
conforme sua competecircncia em traduzir uma determinada objetidade da vontade uma
ideacuteia satildeo classificadas hierarquicamente A muacutesica entretanto figura aleacutem desta
hierarquizaccedilatildeo pois representa o conceitualmente irrepresentaacutevel ldquoa coacutepia de um
modelo que ele mesmo nunca pode ser representado imediatamenterdquo(MVR 338) a
Vontade mesma Esta arte eacute especialmente considerada devido agrave peculiaridade uacutenica de
seu efeito esteacutetico ldquoeacute uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente
sobre o mais iacutentimo do homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele
como se fora uma linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do
mundo intuitivordquo (MVR 336) A muacutesica estaacute aleacutem da intuiccedilatildeo pois representa aquilo
que estaacute aleacutem desta forma agrave semelhanccedila das ideacuteias que satildeo objetivaccedilotildees imediatas da
vontade a muacutesica eacute tambeacutem uma destas objetivaccedilotildees representaccedilatildeo imediata da coisa
em si O que o compositor apresenta atraveacutes da muacutesica eacute a essecircncia mais iacutentima do
mundo em uma ldquolinguagem natildeo compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo
magneacutetico fornece informaccedilotildees sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito
algumrdquo (MVR 342) Por estar em um acircmbito inalcanccedilaacutevel pelo conceito a muacutesica
atraveacutes de sua linguagem arrebata o homem de forma mais marcante e direta e ateacute
mesmo a explanaccedilatildeo sobre a muacutesica estaacute condenada agrave pobreza e agrave insuficiecircncia Desta
forma o filoacutesofo se utilizaraacute de uma analogia para explanar sobre a muacutesica ie
procederaacute a uma explicaccedilatildeo da muacutesica atraveacutes de um paralelismo entre ela as ideacuteias e o
mundo enquanto objetivaccedilotildees da vontade
Esta analogia expressa atraveacutes de diversos exemplos leva em consideraccedilatildeo que
em suas duas formas de objetivaccedilatildeo (o mundo e a muacutesica) a Vontade deixa transparecer
semelhanccedilas Na muacutesica os tons mais graves aproximam-se ao que satildeo no mundo os
63
graus mais baixos de objetivaccedilatildeo da vontade quais sejam a natureza inorgacircnica A lei
da harmonia estabelece que os tons agudos satildeo originados daquele tom mais grave
fundamental Da mesma forma no mundo os corpos tecircm como fonte e sustentaacuteculo a
natureza inorgacircnica ldquoagrave partir da qual tudo se eleva e desenvolverdquo(MB 230) As vozes
intermediaacuterias da melodia que estatildeo entre o baixo fundamental e a voz condutora
correspondem no mundo aos demais graus de objetivaccedilatildeo da vontade na natureza ldquoAs
vozes mais proacuteximas do baixo correspondem aos graus mais baixos ou seja os corpos
ainda inorgacircnicos poreacutem jaacute se exteriorizando de diversas maneiras As vozes mais
elevadas por sua vez representam os reinos vegetal e animalrdquo(MB 231)
O objeto de representaccedilatildeo da muacutesica eacute a Vontade e esta por sua vez eacute
intraduziacutevel atraveacutes das palavras da configuraccedilatildeo racional pois a razatildeo natildeo pode
alcanccedilar sua profundidade Trata-se de ldquouma linguagem universal cuja
compreensibilidade eacute inata e cuja clareza ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo
(MB 228) Diante desta caracteriacutestica cognitiva a muacutesica natildeo deve se inspirar no texto
nas palavras a natildeo ser para ilustraacute-las e conceder-lhes assim significaccedilatildeo mais
profunda A muacutesica natildeo deve ser composta com base em conceitos ou em objetos e
ocorrecircncias do mundo pois trata-se de uma expressatildeo da ordem do essencial do
universal ldquoela eacute a alma mais interior dessas ocorrecircncias sem o corpordquo (MB 235) Os
objetos e situaccedilotildees do mundo satildeo manifestaccedilotildees e portanto sua representaccedilatildeo
conceitual satildeo reproduccedilotildees circunstanciais da essecircncia do mundo expressa pela muacutesica
Daiacute se compreende o fato de a muacutesica realccedilar em cada
pintura sim em cada cena da vida efetiva e do mundo o
aparecimento de uma significaccedilatildeo mais elevada e tanto mais
quanto mais anaacuteloga eacute sua melodia ao espiacuterito iacutentimo do
fenocircmeno dado A muacutesica combina com tudo em todas as
exposiccedilotildees Nada lhe pode ser estranho pois exprime a essecircncia
de todas as coisas Caso se soe uma muacutesica que combine com
alguma cena da vida humana ou da natureza destituiacuteda de
conhecimento ou com alguma accedilatildeo acontecimento ambiente ou
64
alguma imagem ndash entatildeo ela revela o sentido secreto dessa cena e eacute
seu comentaacuterio mais correto e claro (MB 235)
Esta caracteriacutestica que daacute agrave muacutesica um privileacutegio cognitivo sobre as demais formas
artiacutesticas eacute o que delineia as consideraccedilotildees do filoacutesofo sobre a oacutepera30
A oacutepera ideal eacute
portanto aquela onde o livreto estaacute para a muacutesica como um exemplo para um conceito
geral A muacutesica tem a funccedilatildeo de expor ldquoo profundo e misterioso sobre a essecircncia
iacutentimardquo daquilo que a palavra exemplifica O compositor que maior ecircxito conseguiu
neste sentido conforme o filoacutesofo foi Rossini cuja ldquomuacutesica fala tatildeo distinta e
puramente a sua linguagem PROacutePRIA visto que quase natildeo precisa de palavras e por
conseguinte provoca todo o seu efeito mesmo se executada soacute com instrumentosrdquo
(MVR 344)
Vemos entatildeo a muacutesica como a mais profunda das artes cujo efeito eacute o mais
avassalador e que portanto quando conjugada com outras formas de expressatildeo como a
oacutepera deve formar a base e orientar a sua elaboraccedilatildeo Entretanto ao contraacuterio da
trageacutedia cujo fim eacute o estiacutemulo agrave renuacutencia da vontade de viver a muacutesica segundo a
metafiacutesica exposta por Schopenhauer ldquonatildeo faz mais do que agradar a vontade de viver
jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo seus ecircxitos e ao final expressa sua
satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509)
30
ldquoAo adotar esta atitude Schopenhauer transtorna toda a tradiccedilatildeo jaacute secular que havia afirmado natildeo
poucas vezes desde os tempos do nascimento da oacutepera o predomiacutenio da palavra sobre a muacutesica e em
consequumlecircncia a subordinaccedilatildeo desta uacuteltima agrave primeirardquo (Fubini 1988 289)
65
3 A teoria da trageacutedia do Jovem Nietzsche
Debalde espreitamos por uma raiz
vigorosamente ramificada por um pedaccedilo
de terra sadia e feacutertil por toda parte poacute
areia rigidez consunccedilatildeo Aqui um
solitaacuterio desconsolado natildeo poderia escolher
melhor siacutembolo do que o Cavaleiro com a
Morte e o Diabo como Duumlrer o desenhou o
cavaleiro arnesado com o olhar duro
brocircnzeo que sabe tomar o seu caminho
assustador imperturbado por seus
hediondos companheiros e natildeo obstante
desesperanccedilado sozinho com o seu corcel e
o seu catildeo Um tal cavaleiro duumlreriano foi
nosso Schopenhauer faltava-lhe qualquer
esperanccedila mas queria a verdade Natildeo haacute
quem se lhe iguale
(Nietzsche)
Neste capiacutetulo procuraremos apontar primeiramente o modo pelo qual se deu o
encontro entre Nietzsche e a filosofia de Schopenhauer Em um segundo momento
percorreremos o desenvolvimento histoacuterico das produccedilotildees nietzscheanas que
culminaram com a publicaccedilatildeo da obra que caracteriza o primeiro periacuteodo do filoacutesofo
qual seja O nascimento da trageacutedia a partir do espiacuterito da muacutesica Concluiremos entatildeo
apresentando um esboccedilo desta obra dando ecircnfase em todos os momentos aos
66
elementos que caracterizam sua teoria da trageacutedia especialmente agravequeles relacionados agrave
metafiacutesica schopenhaueriana da vontade
31 Schopenhauer e o jovem Nietzsche uma breve contextualizaccedilatildeo histoacuterica
Foram nos anos de universidade em Leipzig que Nietzsche se deparou com a
filosofia de Schopenhauer Este periacuteodo entre os anos de 1865 e 1869 eacute especialmente
importante devido ao fato de que nele podemos assistir ao surgimento de alguns
aspectos fundamentais ao projeto filosoacutefico de Nietzsche Janz descreve este periacuteodo
como aquele em que o filoacutesofo estabeleceu ldquoseus encontros espirituais determinantes a
partir dos quais se defrontou consigo mesmo e com sua tarefardquo(1987 151)
O primeiro contato do jovem Nietzsche com o mundo schopenhaueriano deu-se
em meados de outubro de 1865 pouco tempo apoacutes sua chegada a Leipzig O
arrebatamento causado no jovem estudante de filologia pelo encontro com a filosofia
schopenhaueriana eacute descrito por ele apoacutes dois anos da seguinte maneira
Sentia-me naquela eacutepoca desorientado solitaacuterio sem
princiacutepios sem esperanccedilas inconsolado e com algumas
experiecircncias dolorosas e decepccedilotildees Construir uma vida proacutepria e
adequada era para mim uma aspiraccedilatildeo que me ocupava da manhatilde
ateacute a noite No feliz apartamento em que vivia procurava
concentrar-me a mergulhar em mim mesmo e quando me
encontrava com amigos estes eram sempre Mushacke e Von
Gersdorff os quais por sua parte alentavam objetivos muito
semelhantes aos meus Creio que natildeo seraacute difiacutecil imaginar a
impressatildeo que nesta situaccedilatildeo me causou a leitura da obra
principal de Schopenhauer Encontrei um dia este livro no sebo do
velho Rohm Ignorando tudo sobre ele o tomei em minhas matildeos e
me pus a folheaacute-lo Natildeo sei que democircnio me sussurrou bdquoleve este
livro para a casa‟ Aconteceu de compraacute-lo apesar do meu usual
costume de natildeo me precipitar na compra de livros Uma vez em
casa num canto do sofaacute me lancei sobre o tesouro receacutem
adquirido e comecei a deixar que aquele gecircnio eneacutergico e sombrio
influiacutesse sobre mim Em cada linha sua gritava a renuacutencia
negaccedilatildeo resignaccedilatildeo tinha diante de mim um espelho no qual
podia contemplar o mundo a vida e meu proacuteprio acircnimo com uma
67
grandeza deprimente Um espelho desde o qual o olho solar da
arte me mirava desde sua absoluta falta de interesse Vi
enfermidade e cura desterro e refuacutegio inferno e paraiacuteso A
necessidade de autoconhecimento inclusive de auto-
experimentaccedilatildeo apoderou-se de mim com forccedila indomaacutevel
provas daquela mutaccedilatildeo profunda satildeo hoje todavia para mim as
paacuteginas desassossegadas e melancoacutelicas do diaacuterio que agravequela
eacutepoca escrevi com suas auto-acusaccedilotildees inuacuteteis e sua desesperada
busca de salvaccedilatildeo e reconstruccedilatildeo do inteiro nuacutecleo humano Na
medida em que propus a submeter todas as minhas caracteriacutesticas
e aspiraccedilotildees ao tribunal de uma sombria auto-depreciaccedilatildeo minha
atitude estava cheia de amargura possuiacuteda de um oacutedio injusto e
desenfreado contra mim mesmo Nem sequer renunciei agraves
mortificaccedilotildees corporais Obriguei-me com efeito durante
quatorze dias seguidos a deitar-me agraves duas da noite e acordar agraves
seis da manhatilde Uma excitaccedilatildeo nervosa muito singular se apoderou
assim de mim e quem sabe ateacute que grau de loucura haveria
chegado se natildeo tivesse modificado frente agravequele estado de
acircnimo os atrativos da vida da vaidade e o imperativo de retornar
a meus estudos regulares (conforme citaccedilatildeo de Janz 1987 158)
Da citaccedilatildeo podemos inferir a mudanccedila de acircnimo que o encontro com
Schopenhauer provocou A partir daquele momento diversas correspondecircncias datildeo-nos
ainda informaccedilotildees do impacto que a filosofia de Schopenhauer provocou na concepccedilatildeo
de mundo do jovem estudante Em algumas destas correspondecircncias vemos transparecer
a influecircncia atraveacutes da frequumlente utilizaccedilatildeo de um vocabulaacuterio schopenhaueriano bem
como das ideacuteias nelas expressas Assim acontece em carta enviada agrave sua matildee e irmatilde
datada de 5 de novembro de 1865 onde ao discorrer acerca da frivolidade da vida
humana o jovem Nietzsche conclui utilizando-se dos argumentos propostos pela eacutetica
schopenhaueriana
Existem dois caminhos ou se esforccedila e se acostuma a ser
o mais limitado que se possa e uma vez que se reduz o maacuteximo
possiacutevel a luz do espiacuterito se busque bens de fortuna e se viva com
os prazeres do mundo ou por outro lado se sabe que a vida eacute
miseraacutevel se sabe que somos seus escravos tanto mais quanto
mais procuramos dela gozar e por tanto se desprende dos bens da
vida exercita a sobriedade e se eacute austero consigo mesmo e cordial
com os demais ndash e isto porque sente compaixatildeo pelos
companheiros de miseacuteria ndash em uma palavra se vive de acordo
68
com as rigorosas exigecircncias do cristianismo primitivo (OC
470)
Vemos ainda em carta a Mushacke em 12 de julho de 1866 o impacto que a
interpretaccedilatildeo schopenhaueriana pessimista de mundo causou em Nietzsche ldquoDesde que
Schopenhauer nos retirou dos olhos a venda do otimismo as coisas satildeo percebidas
mais agudamente A vida eacute mais interessante ainda que mais feiardquo (conforme citaccedilatildeo
de Janz 1987 172) Percebemos tambeacutem a linguagem schopenhaueriana na descriccedilatildeo
dos momentos de contemplaccedilatildeo Eacute o caso da carta datada de 07 de abril de 1866 a
Gersdorf onde Nietzsche descreve seu estado que nos remeteraacute agrave contemplaccedilatildeo
artiacutestica na filosofia de Schopenhauer ao discorrer sobre os dias de veratildeo ldquo[] a
natureza se faz perfeita e noacutes tambeacutem entatildeo nos sentimos livres do poderio da vontade
sempre alerta e somos olho puro intuitivo desinteressadordquo (OC 472)
Estas influecircncias nortearam de forma definitiva as produccedilotildees acadecircmicas de
Nietzsche mesmos suas pesquisas filoloacutegicas A concepccedilatildeo traacutegica do mundo tornou-se
um feixe condutor para as reflexotildees do jovem filoacutelogo Seus companheiros no estudo da
obra de Schopenhauer eram Gersdorff e Mushacke Em carta agrave sua matildee de 01 de
fevereiro de 1866 Nietzsche deixa saber sobre a frequumlecircncia dos estudos ldquoCom
Gersdorff me encontro uma noite por semana para ler grego a cada duas semanas me
reuacuteno com ele e com Mushacke e nos entregamos a Schopenhauer Este filoacutesofo ocupa
uma posiccedilatildeo importante em meus pensamentos e estudos e meu respeito por ele cresce
incomparavelmenterdquo (OC 471) Se o conteuacutedo da filosofia schopenhaueriana foi
absorvido intensamente pelo jovem Nietzsche como podemos ver a partir dos trechos
transcritos acima a forma estiliacutestica tambeacutem se configura como preocupaccedilatildeo Em um
periacuteodo onde as pesquisas acadecircmicas exigiam o esforccedilo da escrita ali tambeacutem a
autoridade das regras schopenhauerianas exibia sua feiccedilatildeo Eacute tambeacutem em uma carta a
69
Gersdorff datada de 06 de abril de 1867 onde Nietzsche expotildee sua preocupaccedilatildeo com o
estilo
Nestas divagaccedilotildees quero redigir meu trabalho sobre as
fontes de Dioacutegenes Laeacutercio e estou todavia no iniacutecio Para seu
regozijo confessarei que o que mais me daacute trabalho eacute meu estilo
em alematildeo Agora me caem os veacuteus dos olhos e vejo que
durante muito tempo vivi em estado de inocecircncia estiliacutestica O
imperativo categoacuterico bdquodeves escrever‟ me foi despertado[] nos
ouvidos me soavam todos os preceitos estiliacutesticos de Lessing de
Lichtenberg e de Schopenhauer Meu uacutenico consolo eacute que estas
trecircs autoridades afirmavam unanimemente que eacute difiacutecil escrever
bem que por natureza ningueacutem tem um bom estilo e que haacute que
trabalhar e trabalhar para consegui-lo (OC 476)
Entretanto apesar do profundo arrebatamento causado pela filosofia de
Schopenhauer que fez com que o universo das preocupaccedilotildees do entatildeo jovem Nietzsche
se fundamentasse nos pressupostos da metafiacutesica schopenhaueriana outros elementos
tambeacutem fundamentais para o pensamento futuro do filoacutesofo foram tambeacutem neste
periacuteodo despertados Como apontam Dias (2009 42) Janaway (2007 16) e Lopes
(2008 27) jaacute neste periacuteodo que podemos tratar como um periacuteodo de despertar para o
pensamento filosoacutefico encontraacutevamos os elementos que a partir de Humano demasiado
humano conformaratildeo a criacutetica nietzscheana agrave filosofia de Schopenhauer Os
comentadores citados chamam a atenccedilatildeo para o fato de que embora nas obras
publicadas de Nietzsche possamos assistir a criacuteticas diretas a Schopenhauer somente
apoacutes Humano demasiado humano tais criacuteticas agrave filosofia schopenhaueriana surgiram
em um momento imediatamente posterior agrave descoberta da metafiacutesica da vontade Rosa
Maria Dias chama a atenccedilatildeo para os fragmentos poacutestumos e para a correspondecircncia que
agrave partir de 1867 trazem algumas criacuteticas agrave metafiacutesica da vontade Rogeacuterio Lopes e
Cristopher Janaway apontam que algumas destas criacuteticas estatildeo embasadas nas leituras
que o jovem Nietzsche fez de Friedrich A Lange Rudolf Haym Kuno Fischer dentre
outros Tais criacuteticas contudo natildeo afastaram o jovem Nietzsche do discipulado
70
schopenhaueriano mas transformaram sua aceitaccedilatildeo do sistema da vontade No lugar de
uma defesa da consistecircncia loacutegica do sistema Nietzsche passou a adotar uma postura de
defesa da bdquonatureza edificante‟ e preponderantemente artiacutestica deste sistema Exemplos
desta postura podem ser encontrados tambeacutem na correspondecircncia daquele periacuteodo
Para escrever uma apologia a Schopenhauer eu tenho
unicamente que considerar o fato de que olho esta vida livre e
bravamente diante do fato de que encontrei um suporte para me
apoiar obviamente que isto natildeo eacute mais que uma apologia
totalmente individual Mas eacute como as coisas satildeo Se algueacutem
deseja refutar Schopenhauer para mim atraveacutes de argumentos
racionais murmuro em seu ouvido bdquoporeacutem meu amigo visotildees de
mundo natildeo satildeo criadas nem destruiacutedas pela loacutegica‟ (carta a
Deussen Outubro-Novembro de 1867 citada por Janaway
(200718))
Ou ainda em carta a Gersdorff onde apoacutes apresentar a criacutetica de Lange agrave metafiacutesica da
vontade Nietzsche conclui contra Haym ainda com os argumentos de Lange
Natildeo apenas a verdadeira essecircncia das coisas a coisa em si
eacute desconhecida para noacutes tambeacutem seu conceito eacute nada mais nada
menos que o uacuteltimo rebento de um contraste condicionado por
nossa organizaccedilatildeo do qual natildeo sabemos se conserva algum
significado fora de nossa experiecircncia Disso resulta pensa Lange
que os filoacutesofos natildeo devem ser importunados na medida em que
nos edificam A arte eacute livre tambeacutem na regiatildeo dos conceitos
Quem pretenderia refutar uma frase de Beethoven e acusar de erro
uma Madonna de Rafael Como vocecirc pode perceber o nosso
Schopenhauer resiste mesmo a este mais rigoroso ponto de vista
criacutetico ele se torna quase ainda mais valioso para noacutes Se filosofia
eacute arte entatildeo que Haym se anule diante de Schopenhauer se a
filosofia deve edificar entatildeo eu pelo menos natildeo conheccedilo nenhum
filoacutesofo que edifique mais do que nosso Schopenhauer (apud
Lopes 2008 86-87)
Vimos ateacute entatildeo que a descoberta de Schopenhauer provocou no jovem
estudante de filologia transformou sua forma de perceber o mundo e o influenciou de
forma definitiva a ponto de fazer com que Nietzsche se definisse como um seguidor e
divulgador da obra schopenhaueriana Contudo eacute no fim de seus anos de estudo em
Leipzig que o disciacutepulo de Schopenhauer iraacute se defrontar com a personalidade que lhe
71
reforccedilaraacute de forma ainda mais contundente o selo da rotunda schopenhaueriana
Richard Wagner
Foi atraveacutes de seu amigo Brockhaus cuja esposa era irmatilde do muacutesico que em
novembro de 1868 Nietzsche encontrou-se pela primeira vez com Wagner A partir
daquele encontro se estabeleceria um relacionamento que de uma forma ou de outra
marcaraacute Nietzsche pelo resto de sua vida Em uma carta a seu amigo Erwin Rohde
Nietzsche descreve o primeiro encontro e sua perplexidade ao encontrar em Wagner um
admirador de Schopenhauer ldquo[]mantive com ele uma longa conversa sobre
Schopenhauer Ah Compreenderaacutes minha felicidade em ouvir-lhe falar com um
entusiasmo completamente indescritiacutevel ao qual ele agradecia como Schopenhauer
era o uacutenico filoacutesofo que havia compreendido a essecircncia da muacutesicardquo (Correspondecircncia
2007 21) A impressatildeo deste encontro eacute tambeacutem claramente visiacutevel atraveacutes de
correspondecircncia endereccedilada ao proacuteprio Wagner em maio de 1869 ldquoVeneradiacutessimo
senhor quanto tempo tive a intenccedilatildeo de lhe manifestar sem nenhuma timidez o grau de
gratidatildeo que sinto em relaccedilatildeo ao senhor pois realmente os melhores e mais elevados
momentos de minha vida se ligam ao seu nome e eu soacute conheccedilo mais um homem aleacutem
disso seu grande irmatildeo em espiacuterito Arthur Schopenhauer em quem penso com a
mesma veneraccedilatildeo ateacute senso religiosordquo (Correspondecircncia 2007 56) Como podemos
ver a pessoa de Wagner eacute associada agrave de Schopenhauer Esta associaccedilatildeo tornar-se-aacute
uma constante e poderaacute ser identificada ainda na fase tardia onde as criacuteticas a estes
pensadores e ao que eles entatildeo representavam se daraacute de forma inter-relacionada Este
primeiro encontro com Wagner conforme Janz (1987 22) foi um dos principais
motivos que levaram Nietzsche a aceitar em detrimento de outros planos que
formulava assumir a caacutetedra de filologia em Basel A proximidade de Tribschen
residecircncia dos Wagner e a possibilidade de uma convivecircncia com o muacutesico o
72
inspiraram E assim aconteceu Ao mudar-se para Basel pocircde desfrutar de uma
convivecircncia constante com o casal Wagner Desde a chegada de Nietzsche ateacute a
mudanccedila de Wagner em 1872 encontravam-se com muita frequumlecircncia e os assuntos que
pautavam tais encontros eram amiuacutede arte muacutesica a literatura claacutessica e a filosofia de
Schopenhauer Wagner tornar-se-ia para Nietzsche a personificaccedilatildeo do gecircnio
schopenhaueriano aquele capaz de atraveacutes da muacutesica expor a essecircncia do mundo No
projeto wagneriano de ldquoarte totalrdquo Nietzsche pocircde vislumbrar a uniatildeo entre muacutesica e
filosofia e satisfazer assim em certa medida as expectativas oriundas da metafiacutesica da
vontade
32 O projeto subjacente ao Nascimento da Trageacutedia
Eacute famosa a passagem onde Nietzsche em carta a Deussen datada de janeiro de
1870 informa sobre seu estado de espiacuterito ldquo Ciecircncia arte e filosofia crescem agora
juntas em mim e de tal modo que um dia haverei de parir centaurosrdquo (Janz 1981 66)
Esta afirmaccedilatildeo eacute ilustrativa no que se refere ao ambiente onde o Nascimento da trageacutedia
foi gerado Podemos identificar claramente as figuras por detraacutes dos termos filosofia
arte e ciecircncia satildeo elas Schopenhauer Wagner e a filologia claacutessica Neste periacuteodo
Nietzsche entatildeo jovem professor de filologia estava imbuiacutedo pela pretensatildeo de poder
unir os estudos filoloacutegicos aos filosoacuteficos Sua preleccedilatildeo inicial Homero e a filologia
claacutessica em Basel nos daacute uma amostra desta pretensatildeo Ali podemos assistir a uma
aproximaccedilatildeo entre filologia e filosofia atraveacutes da proposta de uma leitura filosoacutefica do
mundo antigo ldquoCom isto quero expressar que toda atividade filoloacutegica deve estar
impregnada de uma concepccedilatildeo filosoacutefica do mundo na qual todo o particular e singular
seja visto como algo sem proveito e soacute permaneccedila de peacute a unidade do todordquo (OC 26)
73
Sua escolha por trilhar caminhos mais proacuteximos agrave filosofia pode tambeacutem ser observada
pela tentativa frustrada de ocupar uma cadeira desta disciplina que se mostrou livre em
janeiro de 1871 Se por um lado podemos diagnosticar certa decepccedilatildeo e ateacute um
determinado desacircnimo na atividade acadecircmica por outro lado os laccedilos com os Wagner
se estreitavam cada vez mais No refuacutegio de Tribschen sob a aura de Richard Wagner
Nietzsche discorria sobre o mundo grego enquanto modelo de cultura e ouvia os planos
wagnerianos sobre seu projeto de uma obra de arte total Como pano de fundo destas
discussotildees a metafiacutesica da muacutesica schopenhaueriana e sua concepccedilatildeo traacutegica do mundo
Eacute em torno destes eixos formadores que vemos se materializar a primeira publicaccedilatildeo de
Nietzsche
O desenvolvimento das ideacuteias que formaratildeo a obra contudo se deu de forma
gradual Ao longo do periacuteodo compreendido entre a chegada de Nietzsche a Basel e a
publicaccedilatildeo de seu livro determinados trabalhos deixam transparecer o delineamento de
algumas das ideacuteias centrais da obra Satildeo eles O drama musical grego Soacutecrates e a
trageacutedia A visatildeo dionisiacuteaca do mundo e Introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles31
Em o drama musical grego conferecircncia puacuteblica datada de janeiro de 1870
Nietzsche efetua uma comparaccedilatildeo entre a arte traacutegica da antiguidade e as oacuteperas
modernas Estas de acordo com o filoacutesofo satildeo uma imperfeita ldquocaricatura do drama
musical antigordquo (VD 48) Muacutesica pintura escultura e poesia formavam um todo na
arte traacutegica da antiguidade Nas artes modernas por sua vez as formas artiacutesticas satildeo
fragmentadas fato que dificulta o entendimento da trageacutedia grega e que causaria
espanto ao apreciador de arte moderno A muacutesica teria para a trageacutedia antiga uma
31
Como ressaltam M S Silk e J P Stern em sua obra Nietzsche on tragedy (1981 59) o nascimento da
trageacutedia eacute composto de forma estrutural pelos conceitos encontrados nestes trabalhos O iniacutecio do livro
(sectsect1-10) eacute substancialmente baseado no ensaio a visatildeo dionisiacuteaca do mundo enquanto a sequumlecircncia
composta pelos paraacutegrafos 5 e 6 estaacute mais proacutexima da introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles O trecho
composto pelos paraacutegrafos 11 a 14 pode ser derivado diretamente da leitura Soacutecrates e a trageacutedia O resto
do livro eacute formado por uma amaacutelgama destes escritos Partes dispersas ainda satildeo formadas pelo ensaio do
drama musical grego
74
importacircncia capital como elemento intensificador de seu efeito Podemos ver a intenccedilatildeo
por traacutes da anaacutelise nietzscheana da trageacutedia antiga em comparaccedilatildeo agrave opera Ao final da
conferecircncia no elogio que confere a Wagner o tiacutetulo de ldquoatual reformador da arterdquo bem
como na descriccedilatildeo de seu projeto de arte total retratado como um acontecimento que jaacute
teve lugar na trageacutedia da antiguidade claacutessica Nietzsche deixa claro seu engajamento ao
projeto wagneriano
No mecircs seguinte ao da citada conferecircncia uma segunda intitulada Soacutecrates e a
trageacutedia foi proferida por Nietzsche O assunto em pauta era a morte repentina da
trageacutedia grega Esta morte teria ocorrido pelas matildeos de Euriacutepides apoacutes uma decadecircncia
iniciada nos uacuteltimos periacuteodos das produccedilotildees de Eacutesquilo passando por Soacutefocles e
culminando com o advento da comeacutedia Tal decadecircncia teria sido provocada pela saiacuteda
de cena da muacutesica que de forma progressiva foi substituiacuteda pelo diaacutelogo racionalista
Soacutecrates ocupa aqui um lugar importante Eacute sua influecircncia sobre Euriacutepides que
transforma de uma forma definitiva a arte instintivamente musical da trageacutedia em uma
manifestaccedilatildeo do discurso eacutetico racionalista Esta ldquoesteacutetica racionalista e conscienterdquo
pode ser identificada no proacutelogo euripidiano e na inserccedilatildeo do deus ex machina
enquanto agentes de racionalizaccedilatildeo da obra artiacutestica A trageacutedia de Euriacutepides teria
assumido assim os pressupostos do racionalismo socraacuteticos ldquoVirtude eacute saber peca-se
somente por ignoracircncia O virtuoso eacute felizrdquo (VD 90) Esta assunccedilatildeo que liga a virtude
ao saber impotildee agrave trageacutedia um caraacuteter eacutetico alheio agrave sua caracteriacutestica puramente
esteacutetica O elemento culpa na dialeacutetica socraacutetica toma o lugar que era ocupado pela
compaixatildeo Jaacute podemos perceber nesta conferecircncia o esboccedilo da dicotomia que mais
tarde seraacute ilustrada atraveacutes dos deuses Apolo e Dioniso Os pares formadores da
dicotomia satildeo aqui expressos pela separaccedilatildeo entre instinto e razatildeo muacutesica e discurso
pessimismo e otimismo arte e ciecircncia
75
Temos a primeira referecircncia agrave arte dionisiacuteaca como impulso formador da
trageacutedia e sua contraposiccedilatildeo agrave arte apoliacutenea nas aulas proferidas por Nietzsche no veratildeo
daquele mesmo ano Neste curso sobre a trageacutedia de Soacutefocles do qual temos a
introduccedilatildeo podemos ver o esforccedilo de Nietzsche em caracterizar e apontar as
peculiaridades da trageacutedia da antiguidade que a tornam um fenocircmeno uacutenico em
comparaccedilatildeo agraves trageacutedias modernas Tal discussatildeo demonstraraacute pelos aspectos ali
expostos a aproximaccedilatildeo de Nietzsche com autores do periacuteodo claacutessico alematildeo e
sobretudo da chamada querela entre antigos e modernos Vemos claramente a influecircncia
de Schiller e F A Schlegel em algumas das definiccedilotildees adotadas por Nietzsche
No texto denominado A visatildeo dionisiacuteaca do mundo jaacute podemos assistir a um
desenvolvimento das duas pulsotildees artiacutesticas que satildeo o nuacutecleo da interpretaccedilatildeo
nietzscheana da trageacutedia O apoliacuteneo e o dionisiacuteaco satildeo ali explicados no acircmbito de seu
surgimento no mundo helecircnico e simbolizam a uniatildeo entre verdade e beleza na forma de
arte traacutegica Sua descriccedilatildeo como veremos abaixo estaacute permeada de conceitos retirados
da filosofia schopenhaueriana que vatildeo desde a biparticcedilatildeo do mundo entre verdade e
aparecircncia perpassam as noccedilotildees de belo e sublime e apontam a trageacutedia e a muacutesica como
forma de arte superiores
Em janeiro de 1872 Nietzsche daacute luz a seu ldquoCentaurordquo sob o nome O nascimento
da trageacutedia atraveacutes do espiacuterito da muacutesica Em carta a Rohde datada de 23 de novembro
de 1871 podemos notar atraveacutes da ansiosa expectativa nietzscheana a amaacutelgama
formadora da obra ldquo Temo sempre que os filoacutelogos natildeo o queiram ler por causa da
muacutesica os muacutesicos por causa da filologia e os filoacutesofos por causa da muacutesica e da
filologia e sinto logo medo e compaixatildeo de mim mesmordquo (Correspondecircncia 2007 237)
33 A teoria da trageacutedia publicada
Como escopo geral da primeira obra de Nietzsche podemos dizer na esteira de
Silk e de Stern (1981 52) que ela se propunha a esclarecer o problema do nascimento e
76
da morte da trageacutedia helecircnica Trageacutedia que por sua vez era a expressatildeo artiacutestica que
simbolizava um problema vital o de que sob uma superfiacutecie bela podiacuteamos ter acesso agrave
terriacutevel profundidade do ser Tal forma de arte poderia novamente vir agrave luz por uma
geraccedilatildeo criativa que ao combater a superficialidade moderna que reinava no mundo
germacircnico poderia produzir o renascimento moderno do mundo Helecircnico
Em sua essecircncia o nascimento da trageacutedia aponta para as divindades Apolo e
Dioniacutesio como ldquorepresentantes vivosrdquo de princiacutepios diacutespares que irrompem da proacutepria
natureza e que ao serem conciliados de certa forma tornaram possiacutevel que atraveacutes dos
atritos de tal uniatildeo a trageacutedia grega despontasse como manifestaccedilatildeo artiacutestica exemplar
do sublime Em linhas gerais a arte do ldquofigurador plaacutesticordquo estaria entatildeo associada ao
deus Apolo enquanto a arte ldquonatildeo figuradardquo a da muacutesica estaria associada ao deus
Dioniacutesio O apoliacuteneo eacute um impulso da vontade grega que ao almejar a vida a apresenta
transfiguradamente como um belo sonho plasmado no mundo dos deuses oliacutempicos O
princiacutepio apoliacuteneo seria aquele que estabeleceria a ordem a beleza estaacutetica e a clareza
dos limites O dionisiacuteaco eacute oriundo das festas do oriente e seu efeito eacute comparado ao da
embriaguecircs A ele cabe a sabedoria profunda da essecircncia da vida lugar do acaso do
impermanente do horriacutevel e do sofrimento A Apolo eacute facultado tecer o veacuteu que
encobre a sabedoria dionisiacuteaca e torna a vida suportaacutevel atraveacutes da ilusatildeo do sonho
Assim segundo Nietzsche o desenvolvimento contiacutenuo da arte estaacute vinculado agrave
duplicidade dos princiacutepios apoliacuteneo e dionisiacuteaco Perfazendo um caminho histoacuterico da
cultura grega podemos notar uma sobreposiccedilatildeo intermitente entre os impulsos divinos
Temos momentos onde o impulso apoliacuteneo se mostrou dominante e outros onde
Dioniacutesio recupera seu predomiacutenio O mundo oliacutempico homeacuterico com sua arte eacutepica e
sua escultura do periacuteodo doacuterico nascem a partir de uma necessidade de redenccedilatildeo para a
realidade de horror e sofrimento que o povo helecircnico presenciava Em substituiccedilatildeo ao
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mundo titacircnico temos o mundo dos deuses oliacutempicos exemplificadores de uma
existecircncia divinizada que exalta a vida Nas palavras de Nietzsche ldquoo grego conheceu
e sentiu os temores e os horrores do existir para que lhe fosse possiacutevel de algum modo
viver teve de colocar ali entre ele e a vida a resplendente criaccedilatildeo oniacuterica dos deuses
oliacutempicosrdquo (NT 36) Entretanto a sabedoria dionisiacuteaca portadora da visatildeo abismal do
ser natildeo pocircde ser contida por muito tempo e a muacutesica veiacuteculo da uniatildeo orgiaacutestica aos
poucos foi se infiltrando no mundo construiacutedo pelo divino Apolo Os gregos foram se
tornando conscientes de seu estado sonambuacutelico que sob a graccedila do deus Apolo enleva
e transporta pela extraordinaacuteria beleza natural ou esteacutetica Em um estado semelhante ao
do indiviacuteduo que restabelecido em suas forccedilas pelo efeito renovador do sono ao findar
de uma noite comeccedila a ouvir os sons a sua volta e aos poucos vai se despertando da
mesma forma os gregos comeccedilaram novamente a ouvir o sussurro do Sileno
companheiro de Dioniacutesio ldquoo melhor de tudo eacute para ti inteiramente inatingiacutevel natildeo ter
nascido e natildeo ser nada ser Depois disso poreacutem o melhor para ti eacute logo morrerrdquo
(NT 36) O artista que representa este retorno do dionisiacuteaco com a mesma envergadura
com que Homero representa as forccedilas apoliacuteneas eacute Arquiacuteloco Tomando-o como modelo
do gecircnio liacuterico Nietzsche faz uma descriccedilatildeo de seu processo de criaccedilatildeo Conforme a
metafiacutesica esteacutetica adotada por Nietzsche - que mais agrave frente veremos ser retirada da
esteacutetica schopenhaueriana - toda arte tem que ser objetiva livre dos interesses
individuais Nesta situaccedilatildeo a liacuterica que tem como objeto o eu do poeta seus desejos e
emoccedilotildees natildeo seria uma forma de arte Entretanto atraveacutes de uma descriccedilatildeo que Schiller
faz da inspiraccedilatildeo poeacutetica Nietzsche aponta o caminho para percebermos a liacuterica como
obra de arte e portanto objetivamente Conforme a passagem de Schiller citada por
Nietzsche (NT 44) ldquoo sentimento se me apresenta no comeccedilo sem um objeto claro e
determinado este soacute se forma mais tarde Uma certa disposiccedilatildeo musical de espiacuterito
78
vem primeiro e somente depois eacute que se segue em mim a ideacuteia poeacuteticardquo Desta forma
Arquiacuteloco em seu processo criativo a princiacutepio entraria em um estado de consciecircncia
ou de criaccedilatildeo onde renunciaria agrave sua individualidade e dionisiacamente participaria do
uno-primordial ldquoabismo do serrdquo estado que por sua vez materializa-se atraveacutes da
representaccedilatildeo musical A muacutesica assim produzida seraacute condiccedilatildeo para o surgimento da
inspiraccedilatildeo que a posteriori daraacute nascimento atraveacutes da aplicaccedilatildeo das formas
apoliacuteneas agrave poesia liacuterica geacutermen da trageacutedia e dos ditirambos dramaacuteticos Esta uniatildeo da
poesia liacuterica com a muacutesica eacute uma expressatildeo sinteacutetica da relaccedilatildeo dos deuses Apolo e
Dioniacutesio Eacute no quinto capiacutetulo de sua obra que Nietzsche iraacute tratar da poesia liacuterica
Neste capiacutetulo o filoacutesofo se distancia de Schopenhauer em sua interpretaccedilatildeo do
fenocircmeno liacuterico Para Schopenhauer na citaccedilatildeo reproduzida por Nietzsche (NT 46) a
liacuterica eacute produzida atraveacutes de uma percepccedilatildeo da consciecircncia onde os estados da vontade
individualizada se alternam com o conhecimento objetivo Como vimos o poeta liacuterico
assistiria ao jogo do eu em sua afetaccedilatildeo emocional e descreveria este estado atraveacutes de
sua poesia Nietzsche ao descrever a liacuterica utiliza-se da teoria da muacutesica
schopenhaueriana qual seja o poeta liacuterico produz primeiramente a muacutesica como forma
geral de expressatildeo da vontade mesma e desta produccedilatildeo gera posteriormente o texto que
se torna um exemplificador do evento musical sua forma plaacutestica objetiva A muacutesica eacute
a aparecircncia da vontade e as imagens apoliacuteneas que dela se originaram satildeo conforme seu
espiacuterito A imagem e o conceito satildeo desta forma na liacuterica originados a partir da
muacutesica
Tem-se portanto na trageacutedia grega uma relaccedilatildeo de interdependecircncia que evoca
um aparente paradoxo ndash ou seja ao lado da necessidade esteacutetica da beleza Apolo exige
dos seus a medida (limites fronteiras do indiviacuteduo presentes no ldquonada em demasiardquo) e
o auto-conhecimento necessaacuterio para determinaacute-la (ldquoconhece-te a ti mesmordquo) o
79
desmedido os excessos o dionisiacuteaco seriam identificados pelo apoliacuteneo como
democircnios de uma era preacute-apoliacutenea era dos Titatildes reminiscecircncias de barbarismo O
paradoxo estaacute em que para que o comedimento apoliacuteneo possa existir o desmedido
dionisiacuteaco faz-se necessaacuterio (na linguagem de Nietzsche como ldquosubstratordquo) assim
como para que o desmedido dionisiacuteaco possa existir faz-se necessaacuterio a existecircncia do
comedido do apoliacuteneo Natildeo obstante a trageacutedia grega depende da conjugaccedilatildeo destes
dois princiacutepios para existir ndash indo aleacutem poder-se-ia dizer que a proacutepria muacutesica compotildee
o princiacutepio primeiro que possibilita o surgimento da trageacutedia no jogo das formas
apoliacuteneo A trageacutedia eacute entatildeo definida como ldquoo coro dionisiacuteaco a descarregar-se sempre
de novo em um mundo de imagens apoliacuteneordquo (NT 60)
Em seu iniacutecio a trageacutedia grega era representada pelo coro traacutegico Este coro natildeo
era uma ldquorepresentaccedilatildeo constitucional do povordquo muito menos um espectador ideal
como o queria August Schlegel Nietzsche acompanha Schiller na definiccedilatildeo de que o
coro cria um terreno ideal para a manifestaccedilatildeo da arte O efeito da trageacutedia eacute a
manifestaccedilatildeo de um estado de unidade que transporta ao abismo do ser O coro eacute a
manifestaccedilatildeo deste sentimento da consciecircncia de que por traacutes da vida cotidiana haacute uma
realidade ldquoindestrutivelmente poderosa e cheia de alegriardquo (NT 55) Este eacute o consolo
metafiacutesico propiciado pela arte traacutegica Ao retornarmos deste estado o cotidiano nos
causa asco nojo Natildeo eacute possiacutevel interpretar mais o papel da vida comum A vida soacute
passa a se justificar atraveacutes da arte Perceba-se aiacute que o coro possui um papel
fundamental no processo O coro atua como impulso artiacutestico dionisiacuteaco em
contraposiccedilatildeo agrave forma apoliacutenea ou seja agraves imagens e agrave beleza plaacutestica Assim o
indiviacuteduo atraveacutes do coro tem para si revelado aquele substrato dionisiacuteaco encoberto
pela beleza e comedimento apoliacuteneos isto eacute ao indiviacuteduo era possiacutevel submergir na
80
torrente dionisiacuteaca do auto-esquecimento permitindo-se pocircr de lado os preceitos
apoliacuteneos
E foi assim que em toda parte onde o dionisiacuteaco penetrou o apoliacuteneo
foi suspenso e aniquilado Mas eacute igualmente certo que laacute onde o primeiro
assalto foi suportado o prestiacutegio e a majestade do deus deacutelfico se externaram de
maneira mais riacutegida e ameaccediladora do que nunca(NT 41-42)
De acordo com Nietzsche as trageacutedias eram em seu iniacutecio representaccedilotildees do
sofrimento de Dioniacutesio Mesmo as trageacutedias do periacuteodo aacutetico traziam Dioniacutesio como
heroacutei traacutegico O sofrimento representado era o do despedaccedilamento de Dioniacutesio o deus
que sofreu o padecimento da individuaccedilatildeo causa de todo o sofrer O mito de Dioniacutesio eacute
interpretado aqui sob a luz da filosofia de Schopenhauer que apresenta a individuaccedilatildeo
como fonte do sofrimento ldquoNos pontos de vista aduzidos temos jaacute todas as partes
componentes de uma profunda e pessimista consideraccedilatildeo do mundo e ao mesmo tempo
a doutrina misteriosoacutefica da trageacutedia o conhecimento baacutesico da unidade de tudo o que
existe a consideraccedilatildeo da individuaccedilatildeo como a causa primeira do mal a arte como a
esperanccedila jubilosa de que possa ser rompido o feiticcedilo da individuaccedilatildeo como
pressentimento de uma unidade restabelecidardquo (NT 70)
Contudo ressalta Nietzsche a trageacutedia grega que como vimos desenvolve-se a
partir do embate contiacutenuo entre as representaccedilotildees dos deuses antiacutepodas ndash envolvidos em
um enfrentamento aparentemente sem fim ndash eacute reestruturada por Euriacutepides de forma a
diminuir o impacto do coro ou seja um golpe quase mortal para Dioniacutesio que
agonizante lanccedila matildeo de seus uacuteltimos esforccedilos O que em Euriacutepedes suscitou esta
reestruturaccedilatildeo que conforme Nietzsche eacute responsaacutevel pelo afastamento progressivo do
dionisiacuteaco tem suas origens no que o filoacutesofo chamou de uma ldquotendecircncia socraacuteticardquo O
socratismo euripidiano e a sua nova concepccedilatildeo esteacutetica satildeo as causadoras do
afastamento dos impulsos esteacuteticos primevos o dionisiacuteaco e o apoliacuteneo Em seu lugar o
discurso consciente passa a imperar O deus ex machina e os proacutelogos satildeo exemplos das
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interferecircncias racionais que datildeo novo tom agrave trageacutedia aacutetica Soacutecrates e seu racionalismo
expulsam da trageacutedia o conhecimento primevo dionisiacuteaco e estabelecem novas regras
esteacuteticas regras racionais que fazem com que o bom sinocircnimo do belo seja aquilo
alcanccedilado conscientemente
Se a trageacutedia grega foi para Nietzsche a manifestaccedilatildeo mais sublime de uma
forma artiacutestica isto se daacute em decorrecircncia do efeito por ela provocado qual seja o de
justificar o mundo enquanto fenocircmeno esteacutetico Foi exatamente o decliacutenio deste efeito
constatado pela produccedilatildeo racionalizada de Euriacutepides o responsaacutevel pela morte da
trageacutedia Ao fortalecer em demasia os princiacutepios racionais da forma Euriacutepides suprimiu
o dionisiacuteaco por meio da flacircmula que nas palavras de Nietzsche o tragedioacutegrafo
ldquolevava agrave testardquo ndash a saber uma espeacutecie de socratismo esteacutetico cujos princiacutepios se davam
a partir da remissatildeo do belo ao inteligiacutevel e deste ao virtuoso Identifica-se portanto a
racionalidade otimista socraacutetica como grande responsaacutevel pela supressatildeo do impulso
dionisiacuteaco Nietzsche alude agrave proximidade de convivecircncia entre Soacutecrates e Euriacutepides
para justificar a presenccedila do racionalismo nas obras Euripidianas Soacutecrates frequumlentava
o teatro somente para assistir agraves apresentaccedilotildees de Euriacutepides De todos os atenienses
Soacutecrates era apontado como o mais saacutebio e Euriacutepides como o segundo em sabedoria
Entretanto na contraposiccedilatildeo proposta por Nietzsche entre conhecimento instintivo e
racional Soacutecrates era descomunalmente racional ao contraacuterio do intuitivismo criativo
que reinava ateacute entatildeo Era questionando aos atenienses sobre seus atos que Soacutecrates
percebia que eles natildeo agiam conscientemente mas por intuiccedilatildeo A crenccedila socraacutetica de
que toda accedilatildeo boa deve ser consciente dominou o teatro atraveacutes de Euriacutepides Uma
chave para o entendimento da racionalidade socraacutetica segundo Nietzsche nos eacute
revelada pela ldquomonstruosa inversatildeordquo representada pela consciecircncia criacutetica de Soacutecrates ndash
ou seja a nota destoante em Soacutecrates revela-se pelo instinto criacutetico em contraposiccedilatildeo agrave
82
consciecircncia criacutetica a consciecircncia criadora em contraposiccedilatildeo ao instinto como forccedila
criadora Intui-se assim o motivo pelo qual Soacutecrates natildeo compreendia a trageacutedia grega
- o dionisiacuteaco a tornava ininteligiacutevel para as exigecircncias racionalistas e criacuteticas da
ldquodialeacutetica otimistardquo socraacutetica ldquoA Soacutecrates [] parecia que a arte traacutegica nunca bdquodiz a
verdade‟ sem considerar o fato de que se dirigia agravequele que bdquonatildeo tem muito
entendimento‟ portanto natildeo aos filoacutesofos daiacute um duplo motivo para manter-se dela
afastadordquo(NT 87) Nietzsche compara Soacutecrates ao heroacutei euripidiano que
diferentemente (ateacute mesmo antagonicamente) agrave trageacutedia de Eacutesquilo e Soacutefocles ldquoprecisa
defender suas accedilotildees por meio da razatildeo e contra a razatildeordquo O que estaacute em jogo no
socratismo eacute a substituiccedilatildeo das verdades expressas miticamente religiosamente pelas
verdades loacutegicas A razatildeo tenta abarcar o todo e para isso desconsidera a arte e seus
impulsos A excelecircncia estaacute no saber e atraveacutes deste alcanccedila-se a felicidade erro do
otimismo racionalista Ilusatildeo da razatildeo que se acha soberana e independente A loacutegica
torna-se essecircncia da trageacutedia procura-se por relaccedilotildees causais e pelo bom telos O
diaacutelogo formata sua estrutura e expulsa seu fundamento musical O ldquoheroacutei dialeacuteticordquo eacute
portanto impulsionado pelo elemento otimista da dialeacutetica A justiccedila transcendental
presente nas obras Esquilianas ldquoeacute rebaixada ao niacutevel do raso e insolente princiacutepio da
bdquojusticcedila poeacutetica‟ com seu habitual deus ex machinardquo (NT 89) A racionalidade de
Soacutecrates atraveacutes de sua investigaccedilatildeo cientiacutefica da natureza de seu processo de
construccedilatildeo loacutegica da realidade daraacute origem ao que Nietzsche denominaraacute de ldquohomem
teoacutericordquo ou ldquohomem cientiacuteficordquo a quem a razatildeo ergue-se acima da proacutepria realidade ao
ponto mesmo de ndash e aiacute reside o proacuteprio otimismo ndash propor-se a tarefa de corrigir as
falhas da proacutepria realidade Mais ainda a razatildeo socraacutetica acena ao homem com a
promessa de conferir sentido agrave existecircncia pelo conhecimento e desta forma busca
justificar tal existecircncia
83
Em face ao pessimismo praacutetico eacute Soacutecrates o protoacutetipo do
otimista teoacuterico que na jaacute assinalada feacute na escrutabilidade da
natureza das coisas atribui ao saber e ao conhecimento a forccedila de
uma medicina universal e percebe no erro o mal em si mesmo
(NT 94)
Natildeo obstante o otimismo no conhecimento na racionalidade socraacutetica encontra seu
maior dragatildeo em sua proacutepria loacutegica interna Assim nas palavras de Nietzsche
[] a periferia do ciacuterculo da ciecircncia possui infinitos pontos
e enquanto natildeo for possiacutevel prever de maneira nenhuma como se
poderaacute alguma vez medir completamente o ciacuterculo o homem
nobre e dotado ainda antes de chegar ao meio de sua existecircncia
tropeccedila e de modo inevitaacutevel em tais pontos fronteiriccedilos da
periferia onde fixa o olhar no inesclareciacutevel Quando divisa aiacute
para seu susto como nesses limites a loacutegica passa a girar em
redor de si mesma e acaba por morder a proacutepria cauda ndash entatildeo
irrompe a nova forma de conhecimento o conhecimento traacutegico
que mesmo para ser apenas suportado precisa da arte como meio
de proteccedilatildeo e remeacutedio (NT 95)
Afigura-se-nos aqui o problema apontado por Nietzsche como o ldquoproblema da
ciecircncia mesmardquo a saber um problema que nos envolve a todos por abarcar (ou
contaminar) toda a cultura ocidental - isto eacute ainda mantemos o dionisiacuteaco agrave baila
ocupando diminuta posiccedilatildeo em detrimento ao culto acerbado ao racionalismo socraacutetico
A cultura socraacutetica impotildee-se pelo homem-teoacuterico e qualquer outra existecircncia que fuja
aos olhos perscrutadores de Soacutecrates deve ldquolutar penosamente para pocircr-se agrave sua altura
como existecircncia permitida e natildeo como existecircncia propostardquo
Nietzsche nos atenta para o fato de reconhecermos comumente no homem culto
erudito o homem douto saacutebio ndash consecutivamente o dionisiacuteaco a arte eacute colocada de
forma perifeacuterica de modo a nunca poder encontrar espaccedilo para superar sua condiccedilatildeo de
ldquoremeacutedio-arterdquo A vontade aacutevida faz seu caminho mesmo atraveacutes da completa falta de
respostas de fundamentos de sentido assim eacute preferiacutevel ao ser humano querer o nada
no sentido de ainda sim querer alguma coisa do que nada querer do que reconhecer a
84
falta de fundamentos da qual consistem em todos os tempos as ilusotildees que
costumeiramente adota-se como engodo ao absoluto sem-sentido da vida
Por fim Nietzsche atenta-nos para o fato de como o homem de seu tempo vem
perdendo a crenccedila na ciecircncia otimista socraacutetica isto eacute pressentindo que a cultura
racionalista socraacutetica torna-se iloacutegica ao vislumbraacute-la em seus horizontes afastando-se
de suas consequumlecircncias Nietzsche diagnostica na oacutepera de seu periacuteodo a subordinaccedilatildeo da
muacutesica agrave arte figurada agrave palavra e expotildee a expectativa de que possa haver no cansaccedilo e
na percepccedilatildeo do insucesso dos esforccedilos racionalistas um renascimento da trageacutedia
85
4 Conclusatildeo pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo
da vida
Retribui-se mal a um mestre continuando-
se sempre apenas aluno
(Nietzsche)
Natildeo podemos ver na filosofia schopenhaueriana qualquer instacircncia que
justifique a vida Ao conhecermos a sua essecircncia - a vontade cega e irracional que se
deixa ver atraveacutes das manifestaccedilotildees do seu querer incessante - percebemos o absurdo de
sua existecircncia e somos por essa percepccedilatildeo levados agrave sua negaccedilatildeo Nietzsche por sua
vez utilizando-se dos conceitos da filosofia de Schopenhauer procura em sua obra
justificar a vida e encontra esta justificaccedilatildeo na arte Nesta conclusatildeo da pesquisa
pretendemos entatildeo apresentar um esboccedilo do modo pelo qual alguns elementos da
filosofia schopenhaueriana foram utilizados no projeto do primeiro livro de Nietzsche e
explicitar o modo como estes elementos foram configurados no interior de seu projeto
Dentre estes elementos percorreremos o paralelo entre os pares dionisiacuteacoapoliacuteneo e
vontaderepresentaccedilatildeo os conceitos de arte e apreciaccedilatildeo esteacutetica e sua cisatildeo entre as
86
artes figurativas e a musical a especificidade da muacutesica o conceito de gecircnio e sua
divisatildeo e os limites da racionalidade e da ciecircncia
Jaacute no primeiro paraacutegrafo de NT a associaccedilatildeo entre os pares nietzscheanos do
dionisiacuteaco e apoliacuteneo e as visotildees de mundo schopenhauerianas satildeo expliacutecitas Nietzsche
define o impulso apoliacuteneo atraveacutes do sonho do princiacutepio de individuaccedilatildeo e o dionisiacuteaco
atraveacutes da embriaguez da consciecircncia de unidade da vontade do livrar-se do veacuteu de
maia Os deuses gregos tornam-se representativos destes estados schopenhauerianos de
consciecircncia Como vimos no capiacutetulo segundo desta dissertaccedilatildeo sob o ponto de vista da
representaccedilatildeo o mundo eacute objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito
agraves condiccedilotildees a priori do entendimento Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das
formas a priori do entendimento eacute interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos
advindos da filosofia Platocircnica e oriental como um mundo aparente ilusoacuterio artificial
O sonho efeito do encantamento apoliacuteneo eacute utilizado como metaacutefora da realidade
fenomecircnica no mundo Schopenhaueriano Os Vedas e Puranas tantas vezes citados por
Schopenhauer tratam o mundo como um sonho imposto pelo deus Maia o deus da
ilusatildeo que cobre a visatildeo do homem com seu veacuteu A mitologia oriental aludida por
Schopenhauer toma conta do mundo helecircnico em Nietzsche que transforma Apolo no
deus Maia o configurador de sonhos O sonho eacute utilizado como ilustraccedilatildeo da realidade
pelo fato de que durante o sonho natildeo sabemos estar sonhando O mundo dos sonhos nos
eacute naquele momento real Vemo-nos como indiviacuteduos e vemos o mundo da
individuaccedilatildeo e suas leis causais espaccedilo-temporais Somente o momento empiacuterico do
despertar informa-nos do sonho Haacute portanto uma identificaccedilatildeo do ldquoparentesco iacutentimo
entre vida e sonhordquo(MVR 60) Como ilustraccedilatildeo desta metaacutefora Schopenhauer elogia
ainda a obra do ldquovaterdquo Calderoacuten de La Barca A vida eacute sonho agrave qual denominaraacute como
um ldquodrama metafiacutesicordquo por expor esta faceta de seu sistema A consciecircncia de que a
87
vida eacute sonho eacute para Schopenhauer um despertar metafiacutesico cujo propiciador foi Kant
ao demonstrar o caraacuteter fenomecircnico do mundo Este despertar contudo natildeo causa
prazer O filoacutesofo e o gecircnio personagens que na metafiacutesica schopenhaueriana alcanccedilam
este despertar satildeo atormentados pela realidade com a qual se deparam qual seja a de
que a vida eacute puro sofrimento Eacute no intuito de deixar velada esta faceta da vida que
Apolo ofusca a visatildeo dos homens com seu mundo luminoso de sonho seu objetivo eacute
encobrir esta verdade aterrorizadora As artes natildeo musicais tanto na teoria de
Schopenhauer como na nietzscheana manteacutem o homem em um juacutebilo prazeroso
ocasionado pela contemplaccedilatildeo puramente objetiva Neste momento natildeo se percebe o
jogo da vontade individualizada somos afastados da realidade do querer insuflados
pela caracteriacutestica quietiva da apreciaccedilatildeo esteacutetica nas palavras de Nietzsche
encontramos na arte um ldquoremeacutedio-arterdquo32
Esta visatildeo do lado terriacutevel da vida ocasionada pelo despertar do dogmatismo
metafiacutesico na teoria schopenhaueriana eacute associada em NT agrave sabedoria dionisiacuteaca
Verificamos na descriccedilatildeo do impulso dionisiacuteaco os elementos que caracterizam a
vontade schopenhaueriana A visatildeo dionisiacuteaca do mundo carrega consigo o despertar
para o caraacuteter absurdo da vida Ao olhar para a proacutepria essecircncia o homem descobre-se
enquanto manifestaccedilatildeo de uma vontade aacutevida desprovida de telos O ldquomecanismo
internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens marionetes guiados pela
carecircncia Esta realidade eacute assustadora pois subtrai do horizonte todos os propoacutesitos da
vida individual Dioniacutesio trava aqui sua batalha contra Apolo ao apontar a ilusatildeo da
individuaccedilatildeo como mecanismo para uma fuga daquilo que em essecircncia somos Apesar
de seu caraacuteter aterrorizador a sabedoria dionisiacuteaca eacute acompanhada do deleite
32
Podemos ver aqui o nuacutecleo da dissenssatildeo entre as teorias dos dois filoacutesofos Para Schopenhauer este
remeacutedio eacute temporaacuterio e tatildeo logo o efeito da apreciaccedilatildeo esteacutetica se esvaia os interesses da vontade voltam
a agir sobre o indiviacuteduo e a vida de sofrimento continua seu percurso restando apenas o caminho da
negaccedilatildeo daquela vontade da vida mesma em direccedilatildeo ao nada Nietzsche ao contraacuterio aponta para uma
forma de cura atraveacutes do remeacutedio-arte ver a vida enquanto forma de arte afirmaacute-la
88
indescritiacutevel da celebraccedilatildeo da unidade com o todo ldquoSob a magia do dionisiacuteaco torna a
selar-se natildeo apenas o laccedilo de pessoa a pessoa mas tambeacutem a natureza alheada
inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de reconciliaccedilatildeo com seu filho
perdido o homemrdquo(NT 31) Se Apolo eacute representado como deus da forma da clareza
da individuaccedilatildeo e as artes patrocinadas por ele satildeo expressotildees destas caracteriacutesticas
Dioniacutesio por sua vez eacute o patrocinador da muacutesica expressatildeo fenomecircnica direta da
vontade Vemos em Nietzsche uma biparticcedilatildeo das artes que tambeacutem pode ser extraiacuteda
da metafiacutesica schopenhaueriana (artes natildeo-musicais e arte musical)
Para Schopenhauer as formas artiacutesticas natildeo-musicais ao provocarem uma visatildeo
puramente objetiva do objeto apreciado tecircm como caracteriacutestica fundamental a
libertaccedilatildeo da subjetividade e com ela dos anseios da vontade Durante esta forma de
apreciaccedilatildeo esteacutetica ldquosomos alforriados do desgraccedilado iacutempeto volitivo festejamos o
Sabbath dos trabalhos forccedilados do querer a roda de Iacutexion cessa de girarrdquo (MVR
267) A definiccedilatildeo nietzscheana para a funccedilatildeo da arte apoliacutenea se daacute da mesma maneira
qual seja ela deve ldquo [] livrar a vista de olhar no horror da noite e salvar o sujeito
graccedilas ao baacutelsamo da aparecircncia do espasmo dos movimentos do querer []rdquo (NT
117) A muacutesica por sua vez recebe um tratamento especial de Schopenhauer devido ao
seu efeito esteacutetico Se as demais artes satildeo um quietivo para a vontade a muacutesica ldquonatildeo faz
mais do que agradar a vontade de viver jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo
seus ecircxitos e ao final expressa sua satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509) Ela encontra-se
num niacutevel de valor superior ao das demais artes por tratar-se de representar a essecircncia
do mundo a vontade mesma Assim tambeacutem ela eacute tratada por Nietzsche como a arte
que representa a sabedoria dionisiacuteaca e faz o apreciador vivenciar a vontade mesma
Em seus escritos sobre a poesia e a oacutepera Schopenhauer alude agrave necessidade de
subordinar os conceitos e o texto agrave muacutesica para que estas artes tenham um efeito mais
89
arrebatador no apreciador esteacutetico Esta subordinaccedilatildeo eacute assumida por Nietzsche em sua
teoria da trageacutedia Nietzsche encontra na liacuterica a primeira manifestaccedilatildeo desta junccedilatildeo da
arte dionisiacuteaca com a arte apoliacutenea e aponta aiacute o geacutermen que daraacute origem agrave trageacutedia
Podemos perceber aqui uma subordinaccedilatildeo das artes natildeo-musicais agrave muacutesica que por sua
vez se espelha na subordinaccedilatildeo do mundo fenomecircnico ao mundo da coisa-em-si As
artes figurativas representam as ideacuteias objetivaccedilotildees imediatas da vontade e a muacutesica
representa a vontade mesma Na teoria da trageacutedia de Nietzsche esta subordinaccedilatildeo seraacute
mantida e assim reflete a configuraccedilatildeo da metafiacutesica schopenhaueriana A muacutesica ldquoeacute
uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente sobre o mais iacutentimo do
homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele como se fora uma
linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo (MVR
336) Desta forma uma arte que se pretenda formar a partir da integraccedilatildeo de elementos
de diversas formas artiacutesticas deve tomar a muacutesica como inspiraccedilatildeo tanto na teoria de
Schopenhauer como na de Nietzsche
Desta dicotomia das formas artiacutesticas que podemos perceber nos dois filoacutesofos
podemos depreender duas formas do gecircnio o apoliacuteneo ou contemplativo e o
compositor dionisiacuteaco Para Schopenhauer ldquoo compositor manifesta a essecircncia mais
iacutentima do mundo expressa a sabedoria mais profunda numa linguagem natildeo
compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo magneacutetico fornece informaccedilotildees
sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito algumrdquo (MVR 342) Podemos
vislumbrar ainda nesta descriccedilatildeo de Schopenhauer uma caracteriacutestica do que Nietzsche
mais tarde iraacute chamar de criaccedilatildeo inconsciente Em uma segunda passagem desta vez ao
final do capiacutetulo 39 do segundo volume de MVR vemos tambeacutem uma caracteriacutestica que
posteriormente tambeacutem seraacute ressaltada por Nietzsche como demarcaccedilatildeo do caraacuteter
dionisiacuteaco Schopenhauer se utiliza de uma passagem dos Vedas para descrever o prazer
90
provocado pela muacutesica como um prazer de participaccedilatildeo no todo33
Este ecircxtase da
comunhatildeo eacute um aspecto reiteradamente apontado por Nietzsche O gecircnio dionisiacuteaco eacute
para o jovem filoacutesofo aquele que tambeacutem absorvido pelo impulso dionisiacuteaco traduz
sua essecircncia em linguagem musical O tipo de gecircnio musical descrito eacute encontrado em
Schopenhauer nas encarnaccedilotildees de Rossini e Beethoven cujas obras operiacutesticas satildeo
norteadas pela produccedilatildeo musical e o livreto ocupa um lugar secundaacuterio Nietzsche
aponta um renascimento progressivo do gecircnio musical em seu tempo que se inicia com
Bach e tem continuidade em Beethoven mas que encontra sua forma mais bem acabada
em Richard Wagner
Apesar da tomarem caminhos diferentes no que tange ao objetivo da obra de arte
traacutegica Nietzsche e Schopenhauer mais uma vez em uniacutessono consideram-na todavia
como uma forma de entendimento superior ao apresentado pelo pensamento cientiacutefico
Como vimos anteriormente as ciecircncias no sistema schopenhaueriano seguem o
princiacutepio de razatildeo seu papel eacute apenas descritivo e consequumlentemente limitado ao
acircmbito daquele princiacutepio Transformam em conceitos abstratos o mundo intuitivo ao
descrevecirc-lo em sua aparecircncia e seguem o fio condutor do principio de razatildeo
apresentando as causas para cada fenocircmeno particular Desta forma as ciecircncias estatildeo
subordinadas ao mundo da aparecircncia e no que importa agrave essecircncia natildeo podem
demonstraacute-la As uacutenicas produccedilotildees humanas com esta capacidade satildeo a arte e a
filosofia e essas o fazem de forma indireta metafoacuterica A consideraccedilatildeo racional do
mundo estaacute enquanto presa ao acircmbito do fenocircmeno subordinada aos ditames da
vontade Esta ldquovontade aacutevida sempre encontra um meio atraveacutes de uma ilusatildeo
distendida sobre as coisas de prender agrave vida as suas criaturas e de obrigaacute-las a
prosseguir vivendordquo (NT 108) Nietzsche descreve trecircs formas pelas quais a vontade
33
ldquoE o delicioso que eacute uma classe de alegria chama-se assim o sumo Atman porque onde haacute uma
alegria esta eacute uma pequena parte de sua alegriardquo (MVR II 510)
91
manteacutem a vida A primeira delas eacute o ldquoveacuteu da beleza da arterdquo sustentado pelo impulso
apoliacuteneo Encontramo-la na epopeacuteia homeacuterica e nas artes figurativas A segunda eacute a
visatildeo traacutegica do mundo que encontra um consolo metafiacutesico na percepccedilatildeo de um
substrato comum aos fenocircmenos e que por consequumlecircncia abdica destes em funccedilatildeo da
vivecircncia daquele substrato A terceira forma de dominaccedilatildeo da vontade eacute a ciecircncia a
loacutegica socraacutetica que procura abarcar o mundo com sua razatildeo de acircnsia justificadora
Estas trecircs formas de coerccedilatildeo conforme sua predominacircncia em determinada cultura
formam o que Nietzsche iraacute denominar respectivamente de culturas artiacutestica traacutegica e
socraacutetica Correspondem historicamente agraves fases predominantemente helecircnica budista
ou alexandrina Fazendo um diagnoacutestico da cultura contemporacircnea Nietzsche a
identifica como uma cultura predominantemente alexandrina Diagnostica o seu ocaso a
partir da identificaccedilatildeo feita por Kant e Schopenhauer dos limites da ciecircncia do
desmascaramento das verdades eternas que amparam a visatildeo socraacutetica de mundo quais
sejam a visatildeo de que o tempo o espaccedilo e a causalidade satildeo leis universais e
incondicionais Esta criacutetica ao racionalismo eacute constante na obra schopenhaueriana
Percebemo-la claramente em suas investidas contra a filosofia de seu tempo e a
presunccedilatildeo nela presente de racionalmente abarcar o real
- - - - - - - - - -
Compostas por conceitos da metafiacutesica schopenhaueriana a teoria da trageacutedia de
Schopenhauer e a de Nietzsche apontam para caminhos diversos Em Schopenhauer a
trageacutedia eacute a arte cujo fim uacuteltimo eacute ao expor seu lado terriacutevel inspirar o apreciador agrave sua
renuacutencia Este lado terriacutevel espelho do mundo presentificador da vida humana e de
suas relaccedilotildees ocasiona atraveacutes do medo e da compaixatildeo a vontade de renuacutencia a essa
92
mesma vida Nietzsche introduz na trageacutedia o elemento da muacutesica schopenhaueriana34
A consequumlecircncia desta introduccedilatildeo eacute um plano mais profundo de entendimento que
apresenta a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com sua essecircncia Neste estado de consciecircncia
apartado de sua individualidade o sujeito jaacute se vecirc como um criador de mundos e vecirc no
mundo uma obra de arte sua Ao derivar o impulso apoliacuteneo do dionisiacuteaco35
Nietzsche
jaacute executou a renuacutencia do indiviacuteduo que agora passa a se ver como essecircncia e ao mundo
como fenocircmeno artiacutestico
34
Machado (2006 200) considera na esteira de Clemeacutent Rosset e de Jean-Marie Schaeffer a utilizaccedilatildeo
da teoria da apreciaccedilatildeo musical de Schopenhauer por Nietzsche como o elemento que sugeriraacute a
caracteriacutestica de afirmaccedilatildeo da vontade de sua filosofia da trageacutedia 35
ldquoNo efeito conjunto da trageacutedia o dionisiacuteaco recupera a preponderacircncia ela se encerra com um tom
que jamais poderia soar a partir do reino da arte apoliacutenea E com isso o engano apoliacuteneo se mostra como o
que ele eacute como o veacuteu que enquanto dura a trageacutedia envolve o autecircntico efeito dionisiacuteaco o qual
todavia eacute tatildeo poderoso que ao final impele o proacuteprio drama apoliacuteneo a uma esfera onde ele comeccedila a
falar com sabedoria dionisiacuteaca e onde nega a si mesmo e agrave sua visibilidade apoliacuteneardquo (NT 129)
93
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Raul Moraes de Euclides
A filosofia da vontade e as interpretaccedilotildees da trageacutedia uma
anaacutelise das teorias de Schopenhauer e do jovem Nietzsche
Dissertaccedilatildeo apresentada ao programa de
Poacutes-graduaccedilatildeo em Esteacutetica e Filosofia da
Arte do Instituto de Filosofia Artes e
Cultura da Universidade Federal de Ouro
Preto como requisito parcial para obtenccedilatildeo
do tiacutetulo de Mestre em Filosofia
Aacuterea de concentraccedilatildeo Esteacutetica e Filosofia
da Arte
Orientador Prof Dr Heacutelio Lopes da Silva
Co-orientador Prof Dr Eduardo Soares
Neves Silva
OURO PRETO
2010
3
Catalogaccedilatildeo sisbinsisbinufopbr
E86f Euclides Raul Moraes de
A filosofia da vontade e as interpretaccedilotildees da trageacutedia [manuscrito]
uma anaacutelise das teorias de Schopenhauer e do jovem Nietzsche Raul
Moraes de Euclides - 2010
99f
Orientador Prof Dr Heacutelio Lopes da Silva
Co-orientador Prof Dr Eduardo Soares Neves Silva
Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Universidade Federal de Ouro Preto
Instituto de Filosofia Artes e Cultura
Aacuterea de concentraccedilatildeo Esteacutetica e Filosofia da Arte
1 Schopenhauer Arthur 1788-1860 - Teses 2 Nietzsche Friedrich
Wilhelm 1844-1900 - Teses 3 Trageacutedia - Teses I Universidade Federal
de Ouro Preto II Tiacutetulo
CDU 179221
4
UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
INSTITUTO DE FILOSOFIA ARTES E CULTURA
PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM FILOSOFIA
MESTRADO EM ESTEacuteTICA E FILOSOFIA DA ARTE
Dissertaccedilatildeo intitulada ldquoA filosofia da vontade e as interpretaccedilotildees da trageacutedia
uma anaacutelise das teorias de Schopenhauer e do jovem Nietzscherdquo de autoria do
mestrando Raul Moraes de Euclides apresentada agrave banca examinadora constituiacuteda pelos
seguintes professores
____________________________________________________
ProfDr Heacutelio Lopes da Silva - Orientador- UFOP
___________________________________________________
ProfDr Eduardo Soares Neves Silva ndash Co-orientador - UFMG
____________________________________________________
Prof Dr Douglas Garcia Alves Juacutenior - UFOP
____________________________________________________
Prof Dr Rogeacuterio Antocircnio Lopes - UFMG
Ouro Preto 24 de Marccedilo de 2010
5
Agrave minha famiacutelia
6
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo agraves pessoas que direta ou indiretamente ajudaram na elaboraccedilatildeo deste
trabalho
Agrave minha esposa pelo amor paciecircncia e apoio
Ao corpo docente do curso de mestrado e em especial ao meu co-orientador
cujo incentivo foi essencial agrave continuaccedilatildeo da pesquisa
Ao meu orientador pelas observaccedilotildees valiosas
Aos colegas de mestrado companheiros indispensaacuteveis nas diaacuterias procissotildees de
embriaguez dionisiacuteaca pelas labiriacutenticas ladeiras de Ouro Preto
7
A existecircncia eacute um episoacutedio do nada
Arthur Schopenhauer
8
RESUMO
O projeto que aqui se apresenta tem como objetivo principal percorrer as
teorias do traacutegico schopenhaueriana e nietzscheana no intuito de apresentar as
principais caracteriacutesticas de cada uma destas teorias Este percurso teraacute como ponto de
partida o fundamento metafiacutesico comum a elas qual seja a filosofia schopenhaueriana
da vontade Atraveacutes desta exposiccedilatildeo pretendemos demonstrar natildeo somente a real
amplitude da influecircncia de Schopenhauer nos primeiros escritos de Nietzsche mas
tambeacutem algumas das peculiaridades existentes em cada uma das citadas teorias
Palavras-chave Schopenhauer - Nietzsche - Trageacutedia - Traacutegico - Filosofia da
vontade
ABSTRACT
The research presented herein has as its ultimate goal to discuss the
theories of the tragedy developed by Schopenhauer and Nietzsche highlighting the
main characteristics ndash points of convergence and divergence ndash of both Our trajectory
shall start from the metaphysical foundations apparently displayed in both theories
which is ndash the schopenhauerian philosophy of the will Throughout our exposition we
intend to show not only that Schopenhauers philosophy had a huge impact in
Nietzsches first writings but also reveal the peculiarities beneath the development of
their aforementioned theories
Keywords Schopenhauer - Nietzsche - Tragedy - Tragic ndash Philosophy of the will
9
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO11
1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES NA
FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA 17
2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU
SUBSTRATO METAFIacuteSICO42
21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo43
22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo45
23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana49
24 A finalidade moral da trageacutedia56
25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera62
3 A TEORIA DA TRAGEacuteDIA DO JOVEM NIETZSCHE65
31 A influecircncia de Schopenhauer na obra do primeiro Nietzsche66
32 O projeto subjacente ao nascimento da trageacutedia72
33 A teoria da trageacutedia publicada75
4 CONCLUSAtildeO pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo da
vida85
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS93
10
ABREVIATURAS
Obras de Schopenhauer
MVR = Mundo como vontade e como representaccedilatildeo (2005)
MVR II ndash Mundo como vontade e como representaccedilatildeo volume II (2005)
MB = Metafiacutesica do belo (2003)
SOE = Sobre o ofiacutecio de Escritor (2005)
QRPRS = De la cuadruple raiz del principio de razon suficiente (1981)
PP = Parerga e paralipomena (1974)
SFM = Sobre o fundamento da moral (2001)
SFU = Sobre a filosofia universitaacuteria (2001)
Obras de Nietzsche
NT = O nascimento da trageacutedia (1992)
VD = Visatildeo dionisiacuteaca do mundo (2005)
CORRESPONDEcircNCIA = Correspondecircncias de Nietzsche (2007)
OC = Obras completas de Nietzsche (1963)
11
INTRODUCcedilAtildeO
ldquoDias sem nuacutemero nunca reservam a
ningueacutem nada mais que dissabores mais
proacuteximos da dor que da alegria Quanto aos
prazeres natildeo os discernimos e nossa vista os
buscaraacute em vatildeo logo que para nossa
desventura chegamos ao limite prefixado E
desde entatildeo o nosso aliacutevio uacutenico seraacute aquele
que daraacute a todos o mesmo fim na hora de
chegar de suacutebito o destino procedente do
tenebroso reino onde natildeo haacute cantos nem
liras onde natildeo haacute danccedilas ndash ou seja a morte
epiacutelogo de tudo Melhor seria natildeo haver
nascido como segunda escolha bom seria
voltar logo depois de ver a luz agrave mesma
regiatildeo de onde se veiordquo
(Soacutefocles)
As teorias sobre a trageacutedia de Schopenhauer e Nietzsche satildeo parte
indispensaacutevel no estudo da histoacuteria da filosofia da trageacutedia Dentre os diversos
pensadores contemporacircneos que tratam sobre o problema da trageacutedia e do traacutegico e que
deram visiacutevel destaque agraves teorias dos nossos filoacutesofos podemos destacar Walter
Benjamin1 e Peter Szondi
2 Entretanto nos trabalhos destes autores o problema do
1 BENJAMIN Walter Origem do drama barroco alematildeo Traduccedilatildeo Sergio Paulo Rouanet Satildeo Paulo
Brasiliense 2004
12
relacionamento e da interdependecircncia entre as filosofias de Schopenhauer e Nietzsche
natildeo eacute detalhado a contento Diante disto mesmo para um olhar historicamente
caracterizador torna-se vaacutelido um estudo comparado destas teorias que leve em
consideraccedilatildeo o quecirc ou o quanto haacute de comum em suas metafiacutesicas e a partir desta
perspectiva trace os aspectos coincidentes e dissidentes das mesmas mostrando seus
pontos de interdependecircncia e discrepacircncia muacutetua
Apesar de estar entre as teorias da trageacutedia mais estudadas do periacuteodo do
idealismo alematildeo a teoria Schopenhaueriana que eacute sempre analisada em relaccedilatildeo a seus
pressupostos metafiacutesicos ao ser vista sob outra perspectiva ganharia contornos
intensamente enriquecidos Esta perspectiva atraveacutes da qual nos propomos a examinar a
teoria do traacutegico do filoacutesofo eacute aquela que levaraacute em consideraccedilatildeo as influecircncias
histoacutericas culturais e filosoacuteficas que agiram diretamente sobre a esteacutetica do traacutegico
schopenhaueriana Ao lanccedilarmos um olhar sobre estas referidas influecircncias estaremos
abrindo caminho para uma melhor compreensatildeo sobre a teoria esteacutetica
schopenhaueriana o que conseguintemente refletiraacute em um juiacutezo mais adequado da
teoria nietzscheana
Para um entendimento mais eficiente das teorias propostas nas obras do
jovem Nietzsche parece-nos essencial o conhecimento de uma de suas mais decisivas
influecircncias a filosofia de Schopenhauer A analogia almejada erige-se na verdade
como meacutetodo de anaacutelise ou seja o que pretendemos eacute alcanccedilar uma maior compreensatildeo
dos problemas com os quais Nietzsche se deparou quando da elaboraccedilatildeo de sua primeira
obra e procurar identificar a existecircncia de alguma apropriaccedilatildeo eou adaptaccedilatildeo de alguns
conceitos da filosofia de Schopenhauer na resoluccedilatildeo destes problemas A necessidade
deste estudo comparativo torna-se ainda mais evidente quando e este eacute o caso
2 SZONDI Peter Ensaio sobre o Traacutegico Traduccedilatildeo Pedro Suumlssekind Rio de Janeiro Jorge Zahar
2005
13
defrontamo-nos com uma influecircncia que se apresenta tatildeo clara e assumidamente
admitida pelo autor Todavia natildeo se pretende aqui apenas a justaposiccedilatildeo de um
pensamento ao outro Apesar de ser identificaacutevel em toda a obra posterior de Nietzsche
encontra-se nos seus primeiros escritos sobretudo na obra O nascimento da trageacutedia
aquele momento discursivo no qual podemos apontar uma influecircncia mais direta da
filosofia de Schopenhauer
Dos trabalhos que fazem um estudo comparativo entre estes filoacutesofos a
maioria se ateacutem em identificar as diferenccedilas conceituais entre eles mais
especificamente no campo eacutetico e metafiacutesico Grosso modo tratam principalmente dos
problemas relativos agrave diferenciaccedilatildeo entre os conceitos de vontade nestes autores
vontade de viver e vontade de poder Estes estudos tecircm como foco a filosofia tardia de
Nietzsche onde este apesar da assumida influecircncia torna-se um criacutetico de
Schopenhauer A real extensatildeo da influecircncia deste filoacutesofo na primeira obra de
Nietzsche bem como o relacionamento entre suas teorias da trageacutedia permanecem
assim como territoacuterios ainda pouco explorados Ao lanccedilarmos olhar sobre esse
afastamento que Nietzsche mais tarde realizaraacute em relaccedilatildeo agrave filosofia
Schopenhaueriana verificamos mais uma vez a importacircncia do estudo de sua primeira
fase na qual poderemos detectar o referido afastamento
Podemos observar entretanto o crescimento do interesse no estudo da
obra O nascimento da trageacutedia de Nietzsche Nos uacuteltimos anos assistimos tambeacutem no
Brasil agrave publicaccedilatildeo de vaacuterios trabalhos que tecircm sob perspectiva a complexidade desse
seu primeiro livro Na bibliografia sugerida neste projeto constam publicaccedilotildees dos
seguintes autores Roberto Machado (2006) Rosa Maria Dias (2005 e 2009) Iracema
Macedo (2006) Marcio Joseacute Silveira Lima (2006) Estas publicaccedilotildees tratam temas
diversos da esteacutetica nietzscheana tais como a muacutesica a trageacutedia o traacutegico ou a
14
repercussatildeo do livro de Nietzsche e sua influecircncia wagneriana Podemos ver entretanto
naqueles e em outros trabalhos a constante chave de leitura que atribui a Schopenhauer
a influecircncia decisiva natildeo apenas sobre o jovem Nietzsche como usualmente se aponta
mas tambeacutem sobre um peculiar imbricamento entre metafiacutesica e esteacutetica o qual se
sustentaria sobre os ldquoimpulsos artiacutesticos da naturezardquo o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco Nos
termos de Dias (2005 27)
A oposiccedilatildeo apoliacutenea e dionisiacuteaca considerada no plano
metafiacutesico se daacute a partir da noccedilatildeo de vontade ou querer
estendida (sic) no sentido que a ela deu Schopenhauer de
ldquocentro e nuacutecleo do mundordquo ou ldquoforccedila que eternamente quer
deseja e aspirardquo () O mundo fenomecircnico como resultado
desse movimento do querer () faz um segundo movimento
dessa vez esteacutetico reproduzindo o movimento inicial que a
vontade realizou em direccedilatildeo agrave aparecircncia
Tendo em vista o fato de que as teorias sobre o traacutegico dos dois filoacutesofos tecircm como
ponto de partida o sistema metafiacutesico schopenhaueriano fica clara a necessidade de
analisar em cotejo estas teorias tendo como fio condutor o meacutetodo de investigaccedilatildeo ora
proposto
Aleacutem de um aprofundamento no problema da influecircncia de
Schopenhauer na obra esteacutetica de Nietzsche o estudo de suas teorias sobre o traacutegico nos
daraacute a oportunidade de identificar as peculiaridades de cada uma destas teorias bem
como de estabelecer a sua importacircncia histoacuterica para uma filosofia do traacutegico
Em um primeiro momento traccedilaremos um panorama histoacuterico que
objetiva entender o status quo da filosofia do traacutegico no periacuteodo anterior ao
desenvolvimento da teoria schopenhaueriana da trageacutedia Esta investigaccedilatildeo seraacute
norteada pelas referecircncias constantes na proacutepria obra de Schopenhauer bem como por
um levantamento biograacutefico do filoacutesofo ou seja trabalharemos somente os momentos
que satildeo fundamentais para uma melhor compreensatildeo da obra schopenhaueriana Dentre
15
estes momentos daremos ecircnfase aos seguintes pontos o estudo sobre o helenismo de
Winckelmann e sua repercussatildeo a criacutetica teatral de Lessing Schiller e Goethe seu
projeto de criaccedilatildeo de um teatro alematildeo e suas produccedilotildees dramaacuteticas
Traccedilado o panorama histoacuterico no qual se insere a teoria da trageacutedia
schopenhaueriana passaremos para o toacutepico seguinte a apresentaccedilatildeo do sistema
metafiacutesico de Schopenhauer no qual estaacute embasada a sua teoria da trageacutedia bem como
a teoria nietzscheana A apresentaccedilatildeo seraacute feita de forma a expor os aspectos gerais da
filosofia da vontade atendo-se aos pontos deste sistema que estatildeo intrinsecamente
relacionados agraves teorias da trageacutedia dos nossos autores
Apoacutes os passos descritos reuniremos em um esboccedilo geral as
caracteriacutesticas do relacionamento existente entre o jovem Nietzsche e a filosofia de
Schopenhauer Para tanto utilizaremo-nos das referecircncias que Nietzsche faz a
Schopenhauer em suas cartas e escritos de juventude Com esta pesquisa pretendemos
identificar a opiniatildeo que o jovem Nietzsche tinha sobre a filosofia de Schopenhauer e a
profundidade da influecircncia desta em sua primeira obra Percorreremos ainda o ambiente
circundante agrave primeira obra de Nietzsche no intuito de realccedilar alguns dos conceitos
formativos de O nascimento da trageacutedia
Estabelecida a ligaccedilatildeo entre os autores passaremos ao estudo do apoliacuteneo
e do dionisiacuteaco par conceitual que nos forneceraacute a chave para se fazer um estudo
comparativo entre os filoacutesofos Para cumprir esta etapa analisaremos O nascimento da
trageacutedia bem como escritos contemporacircneos a este livro atraveacutes dos quais poderemos
delinear melhor a significaccedilatildeo desta duplicidade de impulsos e visotildees de mundo
Delinearemos assim os contornos das definiccedilotildees fundamentais da esteacutetica nietzscheana
e procuraremos construir um paralelo entre o mundo dionisiacuteaco e o mundo metafiacutesico
da vontade schopenhaueriano Temos a intenccedilatildeo de demonstrar a origem desta
16
metafiacutesica da vontade ou seja o criticismo kantiano e sua importacircncia para o conceito
de dionisiacuteaco Demonstraremos tambeacutem as caracteriacutesticas do mundo fenomecircnico
schopenhaueriano em sua identidade com o apoliacuteneo nietzscheano retomando a
epistemologia de Schopenhauer
Realizada a aproximaccedilatildeo e expostas tanto as semelhanccedilas como as
particularidades dos conceitos principais dos dois autores percorreremos sempre
focando um estudo paralelo entre os filoacutesofos outros conceitos que encontram
similaridade em suas esteacuteticas Com esse intuito procuraremos identificar nos dois
filoacutesofos o destaque dado agrave muacutesica dentro de suas teorias e o lugar dado agraves outras artes
em suas obras Discorreremos sobre a criacutetica que eles em uniacutessono fazem ao que
nomeiam racionalismo dogmatismo e o otimismo Finalizadas as aproximaccedilotildees
voltaremos nossa atenccedilatildeo ao aspecto de dissensatildeo que propicia o afastamento
fundamental entre as teorias dos dois filoacutesofos o efeito da trageacutedia Com isto
demonstraremos que a base metafiacutesica comum quando alinhada a pressupostos
esteacuteticos distintos geraraacute a referida dissensatildeo
17
1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES
NA FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA
Por que minha filosofia natildeo encontrou
simpatia e interesse Porque a verdade natildeo
estaacute de acordo com a tagarelice dos tempos
(Schopenhauer)
Neste primeiro capiacutetulo objetivamos apresentar as fontes filosoacuteficas
incutidas no sistema schopenhaueriano no intuito de situar historicamente o surgimento
da filosofia da vontade e trazer agrave baila o seu ambiente circundante bem como as teorias
filosoacuteficas com as quais Schopenhauer se propotildee a dialogar Apontaremos inicialmente
as influecircncias filosoacuteficas assumidamente presentes no sistema schopenhaueriano bem
como aquelas que fundamentam sua metafiacutesica e consequumlentemente sua teoria esteacutetica
Em um segundo momento procuraremos fazer um breve esboccedilo do ambiente artiacutestico-
cultural que dominava o pensamento alematildeo de entatildeo com o qual direta ou
indiretamente Schopenhauer e o jovem Nietzsche se depararam Com isto esperamos
posteriormente demarcar as singularidades que caracterizam as teorias destes filoacutesofos
Ressaltamos todavia que natildeo se trata de um mapeamento completo das fontes que
influenciaram esses autores ndash tarefa que exigiria um esforccedilo bem maior do que aquele
18
proposto por esta pesquisa ndash e sim de um breve panorama que se pautaraacute nas influecircncias
marcantemente presentes em suas obras
No contato com a obra de Schopenhauer a primeira impressatildeo que natildeo
passa despercebida aos seus leitores eacute a qualidade de sua prosa3 Tal qualidade
revelada na diversidade de recursos literaacuterios utilizados pelo autor eacute produto da visiacutevel
erudiccedilatildeo cultivada pelo filoacutesofo Conhecedor do grego do latim e suas respectivas
literaturas Schopenhauer transitava ainda pela obras literaacuterias cientiacuteficas e filosoacuteficas
contemporacircneas em suas liacutenguas originais conhecia o inglecircs o italiano o francecircs e o
espanhol Em sua juventude conviveu com vaacuterias personalidades do meio cultural
germacircnico que frequumlentavam o salatildeo de sua matildee em Weimar dentre eles Goethe a
maior figura das letras germacircnicas com quem teve um relacionamento mais proacuteximo
Sua obra eacute repleta de citaccedilotildees de poetas dramaturgos e seu conhecimento das artes
plaacutesticas e da muacutesica natildeo satildeo superficiais Em suas viagens pela Europa pocircde admirar
diversas esculturas e pinturas e como ele proacuteprio dizia pocircde ler diretamente no ldquolivro
do mundordquo Essa erudiccedilatildeo pode ser notada mesmo diante do desconhecimento de sua
biografia pela observaccedilatildeo da enorme quantidade de citaccedilotildees e menccedilotildees que estatildeo
espalhadas no interior de suas obras traduzidas ou como em sua maior parte citadas
em suas respectivas liacutenguas Frequumlentava as mais diversas aacutereas de conhecimento de sua
eacutepoca como sustenta Aramayo
3 O cuidado com a qualidade da produccedilatildeo literaacuteria tanto no que se refere agrave clareza quanto agrave riqueza de
recursos linguumliacutesticos eacute uma das caracteriacutesticas que Schopenhauer e Nietzsche tecircm em comum Esta
qualidade torna-se mais evidente ainda quando seus trabalhos satildeo natildeo raramente comparados com os
escritos filosoacuteficos alematildees daquele periacuteodo principalmente aos de Fichte Schelling e Hegel O elogio agrave
prosa schopenhaueriana feito por literatos e filoacutesofos contemporacircneos influenciados por sua obra pode
ser ilustrado agrave exaustatildeo entre eles encontram-se Thomas Mann Goethe Wittgenstein e o proacuteprio
Nietzsche ldquoMas a imensa forccedila de penetraccedilatildeo deste pensamento explica-se antes de tudo pelo fato de o
autor ser ao lado de Nietzsche o maior entre os escritores filosoacuteficos alematildeesrdquo (Rosenfeld 1996 177)
Jorge Luis Borges em uma entrevista publicada por Die Welt em 25 de marccedilo de 1975 realizava esta
confissatildeo ltPara mim existe um escritor alematildeo ao qual prefiro Schopenhauer Sei que deveria dizer
Goethe poreacutem Schopenhauer me interessa muitiacutessimo mais Tanto que estudei alematildeo ndash que aprendi
sobre os versos de Heine ndash fundamental e especificamente para poder ler a Schopenhauer em sua proacutepria
liacutenguagt (Aramayo 2001 18)
19
ldquoEm sua busca pela verdade Schopenhauer natildeo desdenha
nenhum aliado Os dramaturgos novelistas e poetas estatildeo quando
menos em peacute de igualdade com os mais egreacutegios filoacutesofos A perspicaacutecia
de Shakespeare ou a genialidade de Voltaire e a sutileza de Goethe nada
devem para a eloquumlecircncia Platocircnica a precisatildeo de um Spinoza e o rigor
conceitual do admirado Kant Sua curiosidade natildeo conhece limites nem
prejuiacutezo algum e por esta razatildeo tampouco menospreza quando o
considera oportuno prestar suficiente atenccedilatildeo aos fenocircmenos
paranormais agrave hipnose ou ao caacutelculo cabaliacutestico se entende que em
algo isto pode servir-lhe para demonstrar sua tese ou avaliar algumas de
suas intuiccedilotildees E na mesma direccedilatildeo aponta seu grande empenho por
incorporar o pensamento das religiotildees orientais a nosso acervo cultural
na possibilidade de um enriquecimento muacutetuordquo (Aramayo 2001 14-15)
A comparaccedilatildeo feita atraveacutes de metaacuteforas4 paraacutebolas ou alegorias em
sua maioria retiradas de obras literaacuterias ou cientiacuteficas torna-se recurso literaacuterio
constantemente presente na obra do filoacutesofo e ao mesmo tempo termocircmetro de suas
influecircncias e de seu relacionamento com o pensamento de seus contemporacircneos Tais
recursos satildeo utilizados contudo com o objetivo consciente de construir conhecimento
de ilustrar a mateacuteria do seu pensamento Nas palavras do filoacutesofo ldquoAs comparaccedilotildees satildeo
de grande valor na medida em que reduzem uma relaccedilatildeo desconhecida a uma
conhecida Inclusive as comparaccedilotildees mais detalhadas transformadas em paraacutebola ou
alegoria satildeo somente a reduccedilatildeo de uma relaccedilatildeo qualquer agrave sua exposiccedilatildeo mais
simples ilustrativa e palpaacutevelrdquo (Schopenhauer SOE 86) Se o nosso objetivo eacute mostrar
as raiacutezes da filosofia de Schopenhauer ou seja as influecircncias que formaram a mateacuteria
de seu pensamento eacute sobre esta mateacuteria que devemos nos debruccedilar Natildeo podemos
contudo nos furtar a apontar a riqueza das fontes formalmente presentes em seus
escritos5 A percepccedilatildeo da presenccedila desta numerosa miscelacircnea de referecircncias dentro da
4 ldquoSua profusa e brilhante utilizaccedilatildeo das metaacuteforas eacute o que o converte sem duacutevida alguma em um grande
escritor cujo estilo se nos afigura tatildeo ameno quanto sugestivordquo (Aramayo 2001 54) 5 Mateacuteria e forma satildeo na concepccedilatildeo do filoacutesofo planos ou instacircncias da produccedilatildeo escrita que servem
como referecircncia para o julgamento de valor do pensamento de um autor ldquo Um livro nunca pode ser mais
do que a impressatildeo dos pensamentos do autor O valor desses pensamentos reside na mateacuteria ou seja
naquilo sobre o que ele pensou ou na forma isto eacute na elaboraccedilatildeo da mateacuteria naquilo que pensou a
respeitordquo (Schopenhauer SOE 11) A importacircncia dada agrave forma por Schopenhauer seraacute melhor
esclarecida quando posteriormente apresentarmos a caracteriacutestica fundamentalmente epistemoloacutegica de
toda produccedilatildeo artiacutestica dentro de sua metafiacutesica do belo
20
obra schopenhaueriana diz-nos algo sobre seu estilo e seu arcabouccedilo cultural
entretanto quando voltamo-nos para a busca das influecircncias diretamente presentes em
seu sistema ie agraves raiacutezes da mateacuteria de seu pensamento percebemos que elas natildeo satildeo
tatildeo numerosas
Uma leitura das fontes filosoacuteficas do sistema schopenhaueriano torna-se
diferentemente do que ocorre em outros sistemas de seu tempo menos trabalhosa por
dois motivos Primeiramente o autor natildeo esconde suas influecircncias mas ao contraacuterio
faz questatildeo de apontaacute-las citaacute-las e quando lhe parece necessaacuterio as critica ou exalta
Em segundo lugar o que facilita o mapeamento destas fontes eacute a caracteriacutestica de
unidade do sistema schopenhaueriano como um todo Apesar da longevidade do
filoacutesofo e da distacircncia temporal entre suas obras suas intuiccedilotildees fundamentais
continuaram sendo as mesmas ao longo de sua vida Nas palavras de Rosset
ldquoSchopenhauer eacute homem de um soacute livro o MVR e de um soacute pensamento (qualificado
por ele mesmo de ltpensamento uacutenicogt nas primeiras linhas de sua obra)rdquo (2005 35)6
Natildeo satildeo poreacutem coetacircneas as influecircncias que marcaram a obra do filoacutesofo
como talvez a constante menccedilatildeo a seus contemporacircneos possa sugerir Nas palavras do
filoacutesofo como citado por Lefranc (2005 17) ldquoPude amar prosseguir aperfeiccediloar a
minha obra soacute por ela mesma em tranquumlilidade completa ao abrigo de toda influecircncia
externa e meus contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes
permaneci estranhosrdquo Conhecia a filosofia de seu tempo todavia natildeo a tinha como
interlocutora na verdade a desdenhava satildeo famosas as criacuteticas de Schopenhauer contra
as filosofias de seus contemporacircneos principalmente as de Fichte Schelling e Hegel
6 Sobre a unidade da produccedilatildeo schopenhaueriana destacamos aleacutem de Rosset os apontamentos de outros
dois de seus maiores comentadores Arthur Huumlbscher e Alexis Philonenko Na introduccedilatildeo aos manuscritos
schopenhauerianos Huumlbscher aponta a importacircncia dos manuscritos na percepccedilatildeo desta unidade uma vez
que podemos notar em diversas fases da vida do filoacutesofo o desenvolvimento dos temas pontuais que
marcaram sua obra principal Vide Hubscher Introduction Manuscript Remains 1985 Alexis
Philonenko trata desta unidade no proacutelogo de sua obra Schopenhauer uma filosofia da trageacutedia
(Philonenko 1989 41-45)
21
(chamados de ldquoos trecircs sofistasrdquo) Quando faz referecircncias a eles comumente estaacute
imbuiacutedo de trecircs propoacutesitos criticar a qualidade formal de suas produccedilotildees
principalmente no que tange ao uso da liacutengua germacircnica apontar uma motivaccedilatildeo
individualista (subsistecircncia pessoal e status social) que existiria por traacutes de suas
elucubraccedilotildees filosoacuteficas e ressaltar a falta de atenccedilatildeo por parte daqueles filoacutesofos no
que se refere ao conteuacutedo da primeira criacutetica kantiana
Schopenhauer diagnosticava em seu tempo um periacuteodo de
empobrecimento da expressatildeo literaacuteria e do uso da liacutengua germacircnica e apontava como
os principais responsaacuteveis por estes acontecimentos os ldquoprofessores de filosofiardquo e seus
disciacutepulos As investidas schopenhauerianas contra a filosofia de seus contemporacircneos
podem ser encontrada em praticamente todas as suas obras mas estatildeo concentradas de
forma mais persistente em sua produccedilatildeo mais tardia na segunda ediccedilatildeo da QRPRS de
MVR em seus ensaios sobre a liberdade e o fundamento da moral e nos PP 7
Nesta
uacuteltima obra temos dedicados a estas criacuteticas alguns textos que podemos destacar Sobre
o ofiacutecio de escritor Da leitura e dos livros Da liacutengua e das palavras e Sobre a filosofia
universitaacuteria A liacutengua alematilde no que se refere agrave sua capacidade expressiva era tida em
mais alta consideraccedilatildeo por nosso filoacutesofo Afirmava que dentre as liacutenguas modernas
era ldquoa uacutenica na qual se pode escrever quase tatildeo bem quanto em grego ou em latimrdquo
(Schopenhauer SOE 72) Esta capacidade de expressatildeo de uma liacutengua eacute segundo o
filoacutesofo resultado de sua aptidatildeo em representar conceitos Desta forma na medida em
que surgem novos conceitos a elaboraccedilatildeo de novas palavras que os representem eacute um
sinal de evoluccedilatildeo adequaccedilatildeo e riqueza da liacutengua Entretanto para o filoacutesofo os
neologismos e adaptaccedilotildees criados por seus contemporacircneos natildeo eram resultados da
7 Muitos historiadores da filosofia bioacutegrafos e comentadores apontam que esta criacutetica adveacutem do
ressentimento pelo fracasso de Schopenhauer como docente na universidade de Berlim onde Hegel
reinava absoluto bem como da falta de reconhecimento de sua filosofia diante do sucesso dos professores
da mesma universidade
22
tentativa de representaccedilatildeo de novos conceitos mas ao contraacuterio eram comprovaccedilatildeo de
sua ldquopobreza de espiacuterito que a todo custo quer colocar algo no mercado e por natildeo ter
novos pensamentos chega com palavras novasrdquo (Schopenhauer SOE 129)
Schopenhauer condenava a atitude de seus contemporacircneos de utilizarem-se de
artifiacutecios como a natildeo designaccedilatildeo do caso a expressatildeo dos preteacuteritos por meio do
imperfeito a supressatildeo dos prefixos e outros subterfuacutegios para com isso disfarccedilar a sua
imprecisatildeo conceitual De acordo com Schopenhauer tratavam displicentemente a
liacutengua alematilde por dois motivos por natildeo possuiacuterem uma mateacuteria conceitualmente
relevante a ser expressa ou entatildeo para conscientemente causar a impressatildeo de que a
possuem e neste caso a responsabilidade pela natildeo compreensatildeo do texto seria atribuiacuteda
agrave incompetecircncia intelectual do leitor
Os que compotildeem discursos difiacuteceis obscuros enleados e
ambiacuteguos natildeo sabem ao certo o que querem dizer tecircm somente uma
consciecircncia vaga a esse respeito que luta primeiro por uma ideacuteia poreacutem
amiuacutede querem tambeacutem ocultar de si mesmos e dos outros que na
realidade eles natildeo tecircm nada a dizer Como Fichte Schelling e Hegel
querem parecer saber o que natildeo sabem pensar o que natildeo pensam e dizer
o que natildeo dizem Algueacutem que tenha algo correto a dizer se esforccedilaraacute por
exprimi-lo de maneira indistinta ou distinta (Schopenhauer SOE 39)
Podemos perceber entatildeo que ao criticar o estilo ldquoobscurordquo e ldquopomposordquo de seus
contemporacircneos Schopenhauer aponta como causa deste estilo natildeo somente a sua falta
de mateacuteria mas tambeacutem uma atitude consciente e arquitetadamente maldosa e com
toda a sua forccedila retoacuterica condena esta atitude
Nobre bdquoatualidade‟ magniacuteficos epiacutegonos geraccedilatildeo crescida no
leite materno da filosofia hegeliana Pela gloacuteria eterna quereis apertar
vossas garras em nossa antiga liacutengua para que a marca com um icnoacutelito
conserve para sempre o vestiacutegio de vossa existecircncia insiacutepida e sombria
Mas Dicirc Meliora Fora paquidermes fora Esta eacute a liacutengua alematilde Nela se
expressaram homens ou melhor nela cantaram grandes poetas e grandes
pensadores escreveram Arredai as patas Ou natildeo tereis o que comer (Soacute
isso os assusta) (Schopenhauer SOE 72-73)
23
A uacuteltima frase desta citaccedilatildeo nos eacute aclarada pelo texto Sobre a filosofia universitaacuteria
onde o filoacutesofo expotildee os argumentos de sua criacutetica agrave filosofia produzida em seu tempo
Para Schopenhauer os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo podem devido agrave sua funccedilatildeo
estatal se imiscuir do compromisso poliacutetico-religioso que seu cargo exige e
conseguintemente sustentados pelo Estado tratam de fazer sua apoteose Nas palavras
de Cacciola constantes na introduccedilatildeo agrave traduccedilatildeo brasileira do referido texto
ldquoSchopenhauer eacute um continuador da criacutetica romacircntica ao filisteiacutesmo que se origina em
Tieck A ironia que visa os homens de vida tatildeo regular como o reloacutegio lhe eacute bem
familiar O filisteu eacute o erudito pedante que soacute pensa na proacutepria vantagem O professor
de filosofia que pauta seus ensinamentos de acordo com os ditames do Estado e da
religiatildeo eacute o tipo acabado do filisteu A idolatria do Estado eacute a apoteose do filisteiacutesmo
(Schopenhauer SFU XXX) Por traacutes das ideacuteias dos ldquofiloacutesofos de profissatildeordquo estaria
incutido o retorno disfarccedilado da ldquoteologia judaicardquo de uma ldquopsicologia racionalrdquo da
ldquoliberdade da vontaderdquo e outros dogmas que de acordo com Schopenhauer refletem a
sua vocaccedilatildeo de trabalharem ldquoin maiorem Dei gloriamrdquo como exigido pela ideologia
estatal daquele periacuteodo Natildeo podem sob a pena de perderem o sustento financeiro
pessoal e familiar bem como sob o custo de perderem o status que o cargo lhes confere
contrariar os dogmas patronais
ldquo[] o intelecto dessa gente permanece fiel agrave sua destinaccedilatildeo
natural de trabalhar a serviccedilo da vontade como normalmente acontece
Mas por isso mesmo existe sempre uma intenccedilatildeo como fundamento do
seu agir e pensar eles tecircm fins o tempo todo e soacute tomam conhecimento
do que diz respeito a esses fins e portanto soacute do que corresponde a
esses fins A atividade do intelecto liberto da vontade condiccedilatildeo da pura
objetividade e por isso de todas as grandes realizaccedilotildees permanece-lhes
eternamente estranha ndash eacute uma faacutebula para seu coraccedilatildeordquo (Schopenhauer
SFU 63)
Desta forma os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo estariam voltados para a investigaccedilatildeo
objetiva da ldquoverdaderdquo a qual exigiria o distanciamento de todo e qualquer interesse
24
pessoal De acordo com o sistema schopenhaueriano tal distanciamento eacute um dom raro
com o qual a natureza a poucos contempla Na metafiacutesica schopenhaueriana a natureza
eacute aristocraacutetica O gecircnio eacute fenocircmeno raro seja ele filoacutesofo ou artista A percepccedilatildeo
objetiva do mundo alheia aos interesses pessoais da vontade individual eacute uma exceccedilatildeo
que soacute se manifesta raramente e as pessoas atadas aos interesses pessoais de sua
vontade natildeo podem reconhececirc-lo imediatamente Estes gecircnios produzidos pela natureza
seriam os verdadeiros educadores do mundo e os ldquoprofessores de filosofiardquo ao tentar
representar este papel que soacute agrave natureza cabe eleger causam-lhe repulsa
Tantas mentes comuns que se acham por cargo e profissatildeo no
dever de representar papeacuteis que a natureza nem ao menos lhes atribuiacutera e
de transportar cargas que exigem ombros de gigantes espirituais
oferecem na realidade um espetaacuteculo deveras lamentaacutevel Pois escutar
cantar os roucos e ver danccedilar os coxos eacute penoso mas ouvir filosofar a
mente limitada eacute insuportaacutevel (Schopenhauer SFU 34)
Prova do embotamento da capacidade de reconhecimento de uma produccedilatildeo genial era
para o filoacutesofo o fato de seus contemporacircneos ignorarem ou mesmo passarem agrave
margem do que seria a mais importante produccedilatildeo filosoacutefica do periacuteodo a cisatildeo entre o
real e o ideal perpetrada pela primeira criacutetica kantiana Esta era para o filoacutesofo a maior
prova do demeacuterito filosoacutefico de seus contemporacircneos preocupados com seus interesse
pessoais alheios a uma observaccedilatildeo objetiva do mundo natildeo levaram em consideraccedilatildeo os
limites impostos pela primeira criacutetica kantiana a toda investigaccedilatildeo racional
Depois de Kant ter cortado o nervo de todas as provas possiacuteveis
da teologia ndash tatildeo incisivamente que desde entatildeo ningueacutem mais pocircde
meter-se com elas ndash o esforccedilo filosoacutefico em quase cinquumlenta anos tem
consistido nas diversas tentativas de insinuar sutil e astuciosamente a
teologia e os escritos filosoacuteficos nada mais satildeo na sua maioria do que
tentativas infrutiacuteferas de reanimar um cadaacutever sem vida (Schopenhauer
SFU 81)
Natildeo nos interessa aqui adentrarmo-nos aos reais motivos existentes por
traacutes dos vitupeacuterios schopenhauerianos contra os pensadores de seu tempo nem
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tampouco fazer juiacutezo valorativo sobre a importacircncia da filosofia da vontade em
comparaccedilatildeo ao idealismo absoluto Dentro do objetivo proposto qual seja situar
historicamente a filosofia da vontade e apontar suas influecircncias o importante eacute ressaltar
que a filosofia contemporacircnea a Schopenhauer natildeo fez efeito sobre a sua proacutepria a ponto
de modificaacute-la em seu conteuacutedo conforme esclarece o proacuteprio filoacutesofo ldquo [] meus
contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes permaneci
estranhosrdquo (apud Lefranc 2005 17) Eacute fundamental verificarmos que apesar do
sistema schopenhaueriano ter se desenvolvido agrave margem do idealismo de entatildeo seu
autor natildeo o desconhecia e muitas das ilustraccedilotildees e argumentaccedilotildees utilizadas por ele na
explicaccedilatildeo de suas teorias apoiavam-se nesta sua contenda com o seu tempo
Entretanto como a filosofia de seu tempo pretende-se herdeira do kantismo assim
tambeacutem procede Schopenhauer e a suas criacuteticas ao idealismo absoluto estatildeo
fundamentadas em sua pretensatildeo a uma heranccedila direta da filosofia kantiana Sobre a
heranccedila de Kant Schopenhauer esclarece ldquoEm todo caso natildeo reconheccedilo que tenha
acontecido algo na filosofia entre ele e mim por conseguinte ligo-me imediatamente a
elerdquo (Schopenhauer MVR 525)
Natildeo obstante as diversas criacuteticas ao retorno kantiano ao dogmatismo8
das quais a obra de Schopenhauer estaacute recheada sua admiraccedilatildeo por ele foi tambeacutem
abundantemente expressa Considerava-o ldquoa inteligecircncia mais original jaacute criada pela
naturezardquo (Schopenhauer SFU52) e afirmava que seus escritos capitais eram o ldquo[]
fenocircmeno mais importante que ocorreu ao longo dos uacuteltimos dois mil anos na filosofia
[]rdquo (Schopenhauer MVR 22) O maior reflexo desta admiraccedilatildeo pode ser observada
8 Nas palavras de Cacciola ldquoO criticismo de Kant teria segundo Schopenhauer perdido sua forccedila inicial
na segunda ediccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura Ou seja Schopenhauer acusa Kant de uma ldquorecaiacuteda no
dogmatismordquo por ter amenizado seu confronto com a teologia A ameaccedila dogmaacutetica jaacute configurada na
filosofia teoacuterica concretiza-se na Eacutetica de Kant quando esta acolhe como postulados Deus
imortalidade da alma e liberdade No poacutes-kantismo a importacircncia crescente atribuiacuteda agrave filosofia praacutetica
de Kant a expensas de sua criacutetica do conhecimento teria levado a uma espeacutecie de contaminaccedilatildeo da
razatildeo teoacuterica pela razatildeo praacutetica fazendo com que a primeira se transformasse num oacutergatildeo apto para
captar o Absolutordquo (Cacciola 1994 20)
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no fato de que eacute da filosofia kantiana que Schopenhauer retira o leitmotiv para o
desenvolvimento da ideacuteia central9 de sua filosofia Esta ideacuteia central eacute aquela contida
concisamente no tiacutetulo de sua obra principal O mundo como vontade e como
representaccedilatildeo10
A dualidade formada entre representaccedilatildeo e vontade atraveacutes da qual
Schopenhauer acredita ter desvendado o ldquomisteacuteriordquo cosmoloacutegico eacute uma apropriaccedilatildeo
assumida dos conceitos kantianos de fenocircmeno e coisa-em-si respectivamente
Dizemos apropriaccedilatildeo pois aqueles conceitos satildeo acrescidos na filosofia
schopenhaueriana de caracteriacutesticas singulares Eacute com base nesta dualidade de
perspectivas de conhecimento do mundo inspirada na primeira criacutetica kantiana que o
filoacutesofo desenvolve as demais teorias que compotildeem seu sistema sejam elas a esteacutetica a
eacutetica a poliacutetica etc
Para Schopenhauer ldquoo maior meacuterito de Kant eacute a distinccedilatildeo entre
fenocircmeno e coisa-em-sirdquo (Schopenhauer MVR 526) Esta distinccedilatildeo foi o que
possibilitou a ldquorevoluccedilatildeo copernicanardquo realizada sobre o dogmatismo anterior A partir
daquele momento ldquoo mundo objetivo como o conhecemos natildeo pertence agrave essecircncia das
coisas em si mesmas mas eacute seu mero FENOcircMENO condicionado exatamente por
aquelas mesmas formas que se encontram a priori no intelecto
humanordquo(Schopenhauer MVR 530) Na teoria kantiana temos o espaccedilo e o tempo
como formas da sensibilidade que na filosofia de Schopenhauer satildeo associadas agrave
faculdade do entendimento juntamente com a causalidade uacutenica das doze categorias
kantianas do entendimento mantidas por Schopenhauer em seu sistema Desta forma o
mundo enquanto representaccedilatildeo eacute aquele que se apresenta para o sujeito enquanto objeto
9 Quando dizemos ideacuteia central havemos de lembrar que no sistema schopenhaueriano esta categorizaccedilatildeo
eacute singular (o tema seraacute tratado no iniacutecio do proacuteximo capiacutetulo) 10
A importacircncia que o filoacutesofo daacute ao tiacutetulo de uma obra eacute esclarecedora para a compreensatildeo da
importacircncia de sua ideacuteia central ldquoo que o sobrescrito deve ser para uma carta eacute o que um tiacutetulo deve ser
para um livro ou seja antes de tudo deve ter o objetivo de destinaacute-lo agrave parte do puacuteblico que pode se
interessar por seu conteuacutedo Sendo assim o tiacutetulo precisa ser caracteriacutestico e por ser naturalmente
breve deve ser conciso lacocircnico pregnante e se possiacutevel um monograma do conteuacutedordquo
(Schopenhauer SOE 09-10)
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condicionado por estas trecircs formas presentes a priori no intelecto humano tempo
espaccedilo e causalidade Quanto ao mundo noumecircnico que dentro da teoria kantiana eacute um
ldquox desconhecidordquo Schopenhauer o explica atraveacutes da Vontade sua traduccedilatildeo da coisa-
em-si Essa dualidade que traz agrave tona a ldquocompleta diversidade entre o ideal e o realrdquo
(Schopenhauer MVR 527) doutrina que de acordo com Schopenhauer (MVR 528) foi
expressa por Kant de forma soacutebria calma demonstrada e incontestaacutevel jaacute havia sido
expressa tambeacutem em linguagem mais miacutetica e poeacutetica por outras duas doutrinas que
tambeacutem estatildeo profundamente presentes na obra Schopenhaueriana Platatildeo e os escritos
indianos dos Vedas e Puranas
Os estudos das obras de Platatildeo e Kant foram recomendaccedilatildeo de Schultze
um dos professores de Schopenhauer em Gottingen (Weissmann 1980 54) e formam os
pilares filosoacuteficos do sistema schopenhaueriano A separaccedilatildeo entre o real e o ideal
executada por Kant eacute vista tambeacutem na obra platocircnica Sua teoria das ideacuteias bem como
sua alegoria da caverna satildeo expressotildees de uma intuiccedilatildeo da existecircncia daquela separaccedilatildeo
O que Kant teria sistematizado a seu modo eacute a mesma verdade que ldquojaacute Platatildeo
incansavelmente repete e na maioria das vezes exprime em sua linguagem do seguinte
modo este mundo que aparece aos sentidos natildeo possui nenhum verdadeiro ser mas
apenas um incessante devir ele eacute e tambeacutem natildeo eacute sua apreensatildeo natildeo eacute tanto um
conhecimento mas uma ilusatildeordquo (Schopenhauer MVR 528)
Aleacutem de Platatildeo os livros sagrados dos indianos afirmavam esta ldquoilusatildeordquo
ldquofantasmagoriardquo do mundo e constituem tambeacutem uma fonte frequumlentemente utilizada
por Schopenhauer O contato do nosso filoacutesofo com o pensamento oriental se deu
quando do seu encontro com o orientalista Friedrich Majer no salatildeo de sua matildee em
28
Weimar A partir de entatildeo o interesse do filoacutesofo pelo pensamento oriental foi se
intensificando ao longo de sua vida 11
A mesma verdade representada de modo completamente outro eacute
tambeacutem uma doutrina capital dos vedas e puranas a saber a doutrina de
Maia pela qual natildeo se entende outra coisa senatildeo aquilo que Kant nomeia
o fenocircmeno em oposiccedilatildeo agrave coisa-em-si pois a obra de maia eacute
apresentada justamente como este mundo visiacutevel no qual estamos um
efeito maacutegico que aparece na existecircncia uma aparecircncia inconstante e
inessencial em si destituiacuteda de ser comparaacutevel agrave ilusatildeo de oacutetica e ao
sonho um veacuteu que envolve a consciecircncia humana um algo do qual eacute
igualmente falso e igualmente verdadeiro dizer que eacute ou natildeo eacute
(Schopenhauer MVR 528)
Estas trecircs doutrinas estavam admitidamente presentes quando da
elaboraccedilatildeo do nuacutecleo conceitual fundamental da posteriormente nominada Filosofia da
Vontade Entretanto aleacutem de formarem seu nuacutecleo conceitual podemos encontraacute-las
ainda posteriormente em outros instantes desta filosofia O pensamento oriental seraacute
figura fortemente presente na eacutetica schopenhaueriana desenvolvida no quarto livro do
Mundo onde o filoacutesofo adotaraacute como fundamento de sua eacutetica o sentimento da
compaixatildeo jaacute presente na doutrina budista Platatildeo e Kant satildeo ainda influecircncias
fundamentais como veremos no proacuteximo capiacutetulo da esteacutetica schopenhaueriana O
primeiro novamente atraveacutes de sua teoria das ideacuteias seraacute utilizado por Schopenhauer na
definiccedilatildeo do objeto artiacutestico Do segundo poderemos notar sua influecircncia nas teorias
schopenhauerianas do sublime da imaginaccedilatildeo e da contemplaccedilatildeo desinteressada todas
elas fundamentais agrave compreensatildeo da teoria da arte poeacutetica
- - - - - - - - - -
11
Suas fontes principais eram o Oupnekacutehat uma traduccedilatildeo latina dos vedas e o Asiatic Journals jornal
publicado pela sociedade asiaacutetica fundada em 1784 Para uma referecircncia completa das citaccedilotildees orientais
na obra de Schopenhauer veja o apecircndice do artigo de Moira Nicholls The influences of Eastern Thought
on Schopenhaueracutes Doctrine of the Thing-in-itself (in Janaway 1999 197-204)
29
Apresentadas as principais influecircncias teoacutericas do sistema
schopenhaueriano passemos a uma breve descriccedilatildeo do ambiente cultural que naquele
momento tinha como foco um projeto de fundaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para o teatro e a
literatura germacircnicas Tal projeto envolveu os mais importantes dramaturgos criacuteticos
escritores e pensadores do periacuteodo imediatamente anterior a Schopenhauer12
e eacute
tambeacutem posteriormente retomado por Nietzsche em seu Nascimento da Trageacutedia Sua
importacircncia para a filosofia da vontade pode ser medida pela recorrente referecircncia feita
a estes pensadores nas obras dos filoacutesofos Seu iniacutecio em meados do seacuteculo XVIII deu-
se pela influecircncia exercida pelo historiador da arte Johann J Winckelmann junto aos
escritores poetas e dramaturgos posteriores dentre eles Lessing Goethe e Schiller
A influecircncia winckelmanniana que de acordo com Butler (1958 11)
criou ondas cujo violento distuacuterbio ldquoainda varrem as praias do seacuteculo XXrdquo se pautou
em duas noccedilotildees fundamentais13
a imitaccedilatildeo dos antigos e o belo ideal Winckelmann
propunha um novo modelo no qual a arte germacircnica deveria se basear para atingir uma
grandiosidade rara e ldquoinimitaacutevelrdquo a imitaccedilatildeo dos gregos Por esta imitaccedilatildeo o
historiador natildeo propunha uma mera coacutepia das obras de arte gregas poreacutem uma imitaccedilatildeo
do modo de produccedilatildeo artiacutestica dos gregos qual seja sintetizar a beleza ideal descoberta
na observaccedilatildeo da diversidade objetiva da natureza Esta proposta de um retorno ao
modelo antigo coloca Winckelmann na esteira da conhecida querela entre antigos e
modernos e eacute a igniccedilatildeo para o periacuteodo literaacuterio conhecido como classicismo germacircnico
Esta disputa quanto agrave valorizaccedilatildeo das obras poeacuteticas antigas ou modernas estaraacute de um
modo ou de outro presente nas teorias schopenhaueriana e nietzscheana da trageacutedia
12
De acordo com Schopenhauer as obras de tais poetas e escritores assim como a filosofia de Kant satildeo
exemplos para os quais a literatura e a filosofia pobres de seu tempo deveriam se voltar No que se refere
ao uso da liacutengua ele aconselha ldquoLede vede qual liacutengua Winckelmann Lessing Klopstock Wieland
Goethe Buumlrger Schiller falaram e emulai-a mas natildeo fazei o mesmo com o jargatildeo estupidamente
excogitado pelos miseraacuteveis literatos atuais e entre eles pelos professores que vatildeo agrave escola de liacutenguardquo
(Schopenhauer SOE 57-58) 13
Esta duas noccedilotildees fundamentais satildeo ressaltadas por Suumlssekind e Machado em seus trabalhos sobre o
tema Veja Suumlssekind 2008 67-77 e Machado 2006 9-14
30
Como veremos posteriormente Schopenhauer privilegiaraacute a trageacutedia moderna em
detrimento da antiga argumentando que aquela cumpre com maior competecircncia o seu
objetivo enquanto forma de arte qual seja provocar repulsa agrave vontade de viver e
estimular sua negaccedilatildeo Apesar deste privileacutegio pelas obras traacutegicas modernas o filoacutesofo
natildeo deixa como seus contemporacircneos de ter os gregos como modelo e natildeo satildeo raros
seus elogios agraves produccedilotildees helecircnicas Para Schopenhauer Winckelmann foi para a
histoacuteria da arte assim como ele o eacute para a da filosofia um exemplo do modo epiciacuteclico
atraveacutes do qual a natureza de tempo em tempo faz avanccedilar o conhecimento do gecircnero
humano Para o filoacutesofo a retomada do projeto kantiano realizada pelo seu sistema eacute a
demonstraccedilatildeo de que entre ele e Kant nenhum conhecimento foi produzido Como
exemplo deste esquema epiciacuteclico na histoacuteria da arte Schopenhauer utiliza-se do
retorno de Winckelmann agrave beleza claacutessica o que nos mostra a importacircncia dada pelo
filoacutesofo agrave forma de arte grega bem como ao projeto inaugurado pelo historiador da arte
Apoacutes explicar o esquema epiciacuteclico da evoluccedilatildeo dos progressos humanos
Schopenhauer diz
Para quem deseja poreacutem ter uma prova do esquema geral dos
epiciclos aqui exposto com base na histoacuteria da arte basta observar a
escola de escultura de Bernini que florescia ainda no seacuteculo passado
particularmente em seu desenvolvimento francecircs sucessivo e que
representava a natureza comum em vez da beleza claacutessica e o decoro do
minueto francecircs em vez da simplicidade e da graccedila antigas Tal escola
faliu quando apoacutes a repreensatildeo de Winckelmann voltou-se agrave escola dos
antigos (Schopenhauer SOE 110)
Nietzsche por sua vez seguiraacute o caminho winckelmanniano de exaltaccedilatildeo da forma de
arte antiga apresentando a trageacutedia grega como modelo para a arte moderna e elogiando
a iniciativa de seus predecessores em valorizar e recuperar a arte helecircnica
31
Conviria que alguma vez se pesasse diante dos olhos de um juiz
insubornaacutevel em que tempo e em que homens o espiacuterito alematildeo se
esforccedilou mais vigorosamente por aprender dos gregos e se admitirmos
com confianccedila que esse louvor uacutenico deveria ser atribuiacutedo agrave nobiliacutessima
luta de Goethe Schiller e Winckelmann pela cultura haveria em todo
caso que acrescentar que desde aquele tempo e depois das influecircncias
imediatas daquela luta tornou-se cada vez mais fraca de maneira
incompreensiacutevel a aspiraccedilatildeo de se chegar por uma mesma via agrave cultura e
aos gregos (Nietzsche NT 120)
Podemos perceber entatildeo a importacircncia do helenismo proposto por Winckelmann no
pensamento germacircnico ao observarmos a sua duraccedilatildeo tendo em vista que mais de um
seacuteculo separa o historiador da arte e o filoacutesofo da vontade de poder o que confirma a
forccedila de suas propostas para uma cultura em formaccedilatildeo e justifica o epiacuteteto com o qual
Butler caracterizou este periacuteodo dizendo que nele vemos ldquoa tirania da Greacutecia sobre a
Alemanhardquo14
O segundo ponto fundamental da teoria da arte winckelmanniana o belo
ideal natildeo provocou menor interesse em seu tempo Este belo ideal era alcanccedilado a
partir da reuniatildeo em uma uacutenica obra harmocircnica daquilo que o artista observa de mais
belo na natureza
A natureza tem seus defeitos o corpo mais belo natildeo deixa de tecirc-los e
nele encontramos frequumlentemente partes que em outros satildeo mais belas ou
podem supor-se mais perfeitas [] Os gregos trataram de reunir as formas
elegantes de vaacuterios corpos belos como sabemos pelo diaacutelogo de Soacutecrates com o
ceacutelebre pintor Parrasio [] Esta seleccedilatildeo das partes belas e sua harmocircnica
associaccedilatildeo em uma soacute figura produziu a beleza ideal (Winckelmann 2002
130)
Tal beleza encontrou sua manifestaccedilatildeo primeira na Greacutecia do periacuteodo helecircnico devido
ao favorecimento das condiccedilotildees geograacutefico-climaacuteticas15
e poliacuteticas16
Aleacutem da beleza
14
Tiacutetulo de sua obra Butler 1958 15
Sobre a influecircncia climaacutetica Winckelmann deduz ldquoA natureza depois de haver se manifestado em
gradaccedilotildees extremas de frio e de calor se estabeleceu na Greacutecia como em seu centro e por isso reina
naquele paiacutes uma temperatura intermediaacuteria entre o inverno e o veratildeo E quanto mais se aproxima deste
centro mais claridade e serenidade oferece e suas obras se manifestam em formas mais graciosas e
amaacuteveis e com detalhes mais caracteriacutesticos e decididosrdquo (Winckelmann 2002106) 16
Sobre as condiccedilotildees poliacuteticas sejam elas patriarcais democraacuteticas ou tiracircnicas Winckelmann conclui o
seguinte ldquoCom relaccedilatildeo ao regime poliacutetico e o governo da Greacutecia a liberdade eacute uma das causas da
preeminecircncia dos gregos na arte Tambeacutem a liberdade parece ter estabelecido na Greacutecia a sua sede existia
32
formal retirada da diversidade das formas naturais eleitas as mais belas as obras gregas
eram exemplares devido agrave importacircncia dada pelos artistas agrave sua expressatildeo A obra de
arte deve sua forccedila tanto agrave beleza das formas quanto agrave expressatildeo da alma nela contida
De acordo com Winckelmann ldquoa expressatildeo de uma alma grande vai muito aleacutem da
plasmaccedilatildeo de uma bela naturezardquo isto ocorre devido ao fato de que para o historiador
da arte ldquona Greacutecia a sabedoria estendia a matildeo agrave arte e insuflava nas figuras almas
mais que comunsrdquo (Winckelmann 1958 19) As caracteriacutesticas que esta expressatildeo deve
possuir satildeo aquelas contidas na passagem mais famosa da obra de Winckelmann na
qual ele descreve ainda como exemplo daquela expressatildeo artiacutestica o grupo estatuaacuterio
do Laocoonte que por sua vez seraacute alvo de uma grande controveacutersia posterior da qual
participaratildeo dentre outros Lessing Herder Goethe Schelling e Schopenhauer
Reproduzimos a passagem de Winckelmann em sua integridade
A caracteriacutestica geral e principal das obras mestras gregas eacute uma
nobre simplicidade e uma serena grandeza tanto na atitude como na
expressatildeo Assim como nas profundidades o mar estaacute sempre calmo por
muito que se agite a superfiacutecie do mesmo modo a expressatildeo nas figuras
dos gregos mostra em meio a todas as paixotildees uma alma grande e
comedida Isso transmite o rosto do Laocoonte ndash e natildeo soacute o dele ndash em
meio agrave mais violenta dor O sofrimento que aparece em todos os
muacutesculos e fibras do corpo e que no baixo ventre contraiacutedo se
experimenta tatildeo intensamente que parecemos senti-lo natildeo se exterioriza
contudo mediante qualquer ira no rosto e em toda a atitude Natildeo lanccedila
um grito terriacutevel tal como Virgiacutelio cantou em seu Laocoonte A abertura
da boca natildeo o permitiria Mais parece um suspiro angustiado como o
descreve Sadolet A dor do corpo e a grandeza da alma estatildeo distribuiacutedos
com igual forccedila atraveacutes de toda a composiccedilatildeo da figura e em certa
medida estatildeo equilibrados Laocoonte sofre mas sofre como o
Filoctetes de Soacutefocles sua dor nos toca a alma mas desejariacuteamos poder
suportar essa dor com a grandeza desse homem (Winckelmann 1958
18-19 grifo nosso)
inclusive junto ao tronos de seus reis que governavam paternalmente a seus suacuteditos antes que mais
ilustrados gozassem do destino de uma completa liberdade Homero chama a Agamemnoacuten de pastor de
seus povos com o que queria designar sua ternura com seus subordinados e sua preocupaccedilatildeo constante
pela felicidade dos mesmos Eacute bem verdade que depois surgiram tiranos mas natildeo o foram mais para uma
determinada cidade e a naccedilatildeo inteira jamais reconheceu um soberano uacutenicordquo (Winckelmann 2002 109)
33
Desta famosa passagem retiramos dois momentos que especialmente nos interessam O
primeiro dele eacute a enunciaccedilatildeo que caracterizaraacute o ideal de beleza das obras gregas nobre
simplicidade e uma serena grandeza Este ideal winckelmanniano de beleza eacute o que
torna a arte grega nas palavras de Suumlssekind ldquoinimitaacutevel e ao mesmo tempo faz dela o
modelo a ser imitadordquo (Suumlssekind 2008 69) Interessa-nos especialmente devido agrave
influecircncia desta definiccedilatildeo para a teoria do jovem professor de filologia da Basileacuteia
Podemos ver ateacute mesmo pelo vocabulaacuterio utilizado para descrever a arte grega a
proximidade e a influecircncia exercida por estes conceitos nas teorias esteacuteticas do primeiro
Nietzsche Luminosidade serenidade harmonia satildeo alguns dos conceitos que
posteriormente seratildeo utilizados por Nietzsche ao definir o seu impulso artiacutestico
apoliacuteneo17
O segundo momento - quando Winckelmann defende o espiacuterito grego na
escultura do Laocoonte em contraposiccedilatildeo ao personagem de Virgiacutelio comparando esta
representaccedilatildeo escultural com o Filoctetes de Soacutefocles - seraacute o precursor do posterior
debate sobre as fronteiras que separam as formas de arte Para Winckelmann ldquoa nobre
simplicidade e a serena grandeza das estatuas gregas eacute tambeacutem a verdadeira
caracteriacutestica dos escritos gregos da melhor eacutepoca dos escritos da escola
socraacuteticardquo(Winckelmann 1958 31) O debate sugerido pela passagem do qual
participaraacute posteriormente o proacuteprio Schopenhauer seraacute iniciado por outro pensador
de grande importacircncia para o projeto cultural alematildeo Gotthold Ephraim Lessing
Lessing em sua obra Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da
poesia apresentaraacute a contenda que chegaraacute ateacute Schopenhauer Para Lessing o ponto de
discordacircncia com Winckelmann estaacute no motivo pelo qual na escultura o Laocoonte natildeo
17
Segundo Rodriges (2007 93-126) tambeacutem o conceito do impulso dionisiacuteaco estaria mesmo que em
germe presente nos estudos de Winckelmann Segundo seu artigo o mapeamento da origem e
desenvolvimento da discussatildeo sobre os citados impulsos artiacutesticos da natureza ou seja sobre a
importacircncia dos deuses Apolo e Dioniacutesio na cultura grega abrangeria necessariamente diversas aacutereas do
pensamento alematildeo desde Winckelmann dentre elas os estudos filoloacutegicos o movimento romacircntico e as
filosofias idealistas
34
apresenta as caracteriacutesticas de quem grita e lamenta Como vimos para Winckelmann o
conjunto estatuaacuterio em questatildeo eacute exemplar pelo fato de transmitir atraveacutes da atitude
estoacuteica diante da dor a grandeza de alma que seria a regra universal da verdadeira arte
grega Esta grandeza enquanto regra universal estaria ainda de acordo com o
historiador da arte presente tanto nas formas pictoacutericas como nas obras poeacuteticas
Contrapondo-se a Winckelman Lessing afirma - exemplificando atraveacutes de passagens
de poetas queridos ao proacuteprio Winckelmann como Homero e Soacutefocles - que em vaacuterios
momentos da poesia antiga diversos personagens dentre eles deuses e heroacuteis proferem
exaltados lamentos e gritos e isto natildeo lhes subtrai a grandeza da alma Sendo assim se
na poesialdquoo gritar na sensaccedilatildeo de dor corporal pode coexistir muito bem com uma
grande alma portanto a expressatildeo de uma tal alma natildeo pode ser a causa pela qual
apesar disso o artista natildeo quer imitar esse grito no seu maacutermore antes deve haver um
outro motivo por que aqui ele separa-se do seu rival o poeta que expressa esse grito
com o melhor propoacutesitordquo(Lessing 1998 86) O motivo pelo qual em sua representaccedilatildeo
estatuaacuteria o Laocoonte natildeo grita eacute para Lessing uma questatildeo de limitaccedilatildeo da forma de
expressatildeo escultoacuterica que ao se submeter agrave ldquolei da belezardquo natildeo pode representar o grito
desfigurador Em suas palavras
O mestre visava a suprema beleza sob as condiccedilotildees aceitas da dor
corporal Esta em toda a sua violecircncia desfiguradora era incompatiacutevel
com aquela Ele foi obrigado a reduzi-la ele foi obrigado a suavizar o
grito em suspiro natildeo porque o grito denuncia uma alma indigna mas
antes porque ele dispotildee a face de um modo asqueroso (Lessing 1998
92)
Devemos ressaltar que segundo a teoria artiacutestica de Lessing para quem as leis a que
devem obedecer a arte estatildeo ligadas agrave sua interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica a arte eacute
julgada atraveacutes do seu efeito Neste contexto ao conceder a seus personagens
caracteriacutesticas de humanidade como por exemplo a manifestaccedilatildeo da dor atraveacutes de
35
lamentos e gritos o poeta estaria aproximando o heroacutei traacutegico do puacuteblico a ser atingido
e consequumlentemente maximizando a identificaccedilatildeo entre eles e com isto o efeito
esperado qual seja a catarse atraveacutes do temor e da compaixatildeo Esta identificaccedilatildeo
alcanccedilada por via da demonstraccedilatildeo dos lamentos dos heroacuteis dramaacuteticos natildeo pode ser
obtida da mesma forma pelas artes pictoacutericas Nestas que satildeo expressotildees de um
momento uacutenico a beleza natildeo pode deixar de estar presente pois ela eacute um dos
ingredientes mais fundamentais do efeito buscado Na poesia o heroacutei natildeo seraacute
caracterizado em uma uacutenica accedilatildeo como ocorre na escultura Sendo assim o grito
narrado eacute apenas um momento do conjunto que iraacute definir o personagem
O Laocoonte de Virgiacutelio grita mas esse Laocoonte que grita eacute
justamente aquele que noacutes jaacute conhecemos e amamos como o patriota
mais cordato e o pai mais afetuoso Noacutes vinculamos o seu grito natildeo ao
seu caraacuteter mas antes apenas ao seu sofrimento insuportaacutevel Apenas
esse uacuteltimo noacutes ouvimos no seu grito e o poeta pode tornaacute-lo sensiacutevel
apenas graccedilas a esse grito (Lessing 1998 106)
Com isto tanto o escultor que suprime o grito quanto o poeta que o descreve ao
fazerem o fazem de acordo com as leis que regem suas respectivas formas de arte
Da contenda sobre o grito do Laocoonte e sua representaccedilatildeo escultoacuterica e
poeacutetica iratildeo participar ainda diversos pensadores Dentre os mais ilustres podemos
destacar Goethe cuja explicaccedilatildeo sobre a escultura proacutexima em muitos pontos da de
Lessing encontra-se nos Propileus Para o poeta o grupo estatuaacuterio ldquoesgota o seu objeto
e preenche com sucesso todas as condiccedilotildees da arterdquo (Goethe 2005126) Segundo
Goethe a escultura eacute limitada a um uacutenico momento da accedilatildeo e sua comparaccedilatildeo com a
poesia de Virgiacutelio eacute injusta O poeta a avalia assim como Lessing atraveacutes de seu efeito
ainda dentro das categorias poeacuteticas de Aristoacuteteles e destaca
O ser humano possui apenas trecircs sentimentos no sofrimento
proacuteprio e alheio o medo o terror e a compaixatildeo a previsatildeo temerosa de
um mal que se aproxima a percepccedilatildeo inesperada do sofrimento presente
36
e a participaccedilatildeo no sofrimento duradouro ou que passou todos os trecircs
sentimentos satildeo representados e suscitados por esta obra de arte e na
verdade na gradaccedilatildeo a mais conveniente (Goethe 2005 126)
Em sua obra principal Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 46 a seus comentaacuterios do
Laocoonte que seratildeo acrescidos de exemplos no posterior volume de suplementos
Reconhece o avanccedilo feito por Lessing ao colocar no lugar de um fundamento
psicoloacutegico um fundamento puramente esteacutetico e critica ainda as teorias psicoloacutegicas e
fisioloacutegicas de seu tempo como as de Hirt e Fernow18
Para Schopenhauer apesar de
sua aproximaccedilatildeo do que seria uma ldquoexplicaccedilatildeo corretardquo da obra Lessing natildeo encontrou
o seu ponto exato qual seja a explicaccedilatildeo de que o grito natildeo pertence ao domiacutenio de
uma representaccedilatildeo escultoacuterica
Antes de qualquer investigaccedilatildeo psicoloacutegica e fisioloacutegica sobre se
Laocoonte em sua situaccedilatildeo poderia gritar ou natildeo deve-se decidir em
relaccedilatildeo ao grupo de esculturas o seguinte que nele o grito natildeo pode ser
exposto pelo motivo de que a exposiccedilatildeo do grito reside por inteiro fora
do domiacutenio da escultura (Schopenhauer MVR 2005 303)
Para Schopenhauer a simples exposiccedilatildeo que representaria o grito ou seja ldquoo
escancarar violento da bocardquo natildeo pode ocasionar o efeito que o grito mesmo enquanto
forma de expressatildeo ocasionaria O efeito que o grito pode causar em uma arte
descritiva atraveacutes do uso da imaginaccedilatildeo do leitor ou mesmo na arte representativa no
teatro tornar-se-ia motivo de riso caso seja representado por uma boca escancarada na
arte plaacutestica Schopenhauer utiliza-se do exemplo do Laocoonte para demonstrar a
necessidade do estabelecimento de fronteiras entre as artes que devido agrave suas formas
devem obedecer agraves competecircncias determinadas pelo objeto representado (no caso da
teoria schopenhaueriana as competecircncias seratildeo determinadas pelas ideacuteias a serem
representadas como veremos posteriormente) Esta preocupaccedilatildeo com os limites entre as
18
Segundo Schopenhauer Hirt (Horen 1797 parte 10) apresenta a explicaccedilatildeo de que Laocoonte natildeo grita
pois estaacute impossibilitado pela sufocaccedilatildeo que o leva agrave morte Fernow por sua vez faz uma amalgama das
opiniotildees de Winckelmann Lessing e Hirt
37
formas artiacutesticas presente na esteacutetica schopenhaueriana e no Laocoonte de Lessing foi
contudo como nos lembra Suzuki (Rosenfield 2001 36-56) ignorada por Goethe
(como podemos ver pelos elementos da poeacutetica aristoteacutelica utilizados pelo poeta para
explicar a escultura na citaccedilatildeo presente na paacutegina anterior) e seraacute posteriormente
tambeacutem desconsiderada por Nietzsche em seu projeto de uma obra de arte total
Diante do acima exposto ainda tratando de Lessing podemos perceber
que toda a discussatildeo acerca do Laocoonte foi desencadeada pela motivaccedilatildeo de defesa da
arte poeacutetica agrave qual Lessing dedicou sua vida como escritor diretor e criacutetico teatral
Desta forma a importacircncia de Lessing para o tema em questatildeo nesta dissertaccedilatildeo estaacute
mais ligado ao seu papel junto a um projeto de formaccedilatildeo de um teatro alematildeo e sua
interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica Enquanto teoacuterico e criacutetico do teatro o autor da
Dramaturgia de Hamburgo exerceu grande influecircncia na cultura posterior ao oferecer a
seu tempo uma nova interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica que vai de encontro agraves
interpretaccedilotildees francesas e de Gottsched que eram por sua vez inflexiacuteveis em relaccedilatildeo agraves
regras (das unidades de espaccedilo tempo e lugar do estatuto social dos personagens da
linguagem e do nuacutemero de atos) Lessing atento agraves necessidades de uma burguesia em
ascensatildeo que natildeo se identificava mais com as concepccedilotildees aristocraacuteticas do modelo de
teatro francecircs e imbuiacutedo na construccedilatildeo do projeto de formaccedilatildeo cultural de uma naccedilatildeo
fragmentada oferece atraveacutes de suas interpretaccedilotildees uma seacuterie de elementos que estaratildeo
presentes nas consideraccedilotildees de pensadores posteriores Dentre estes elementos podemos
destacar as seguintes uma discussatildeo acerca dos conceitos de mimese temor
compaixatildeo catarse a defesa da utilizaccedilatildeo de caracteres mistos a liberdade do gecircnio
ante as regras o enaltecimento dos teatros espanhol e inglecircs principalmente de
Shakespeare
38
Ao tratarmos do referido projeto de um teatro alematildeo e tambeacutem do
classicismo germacircnico dois nomes ainda satildeo fundamentais para sua formaccedilatildeo bem
como eacute incontestaacutevel sua influecircncia sobre Schopenhauer e o jovem Nietzsche19
satildeo
eles Goethe e Schiller O primeiro deles maior dos poetas do classicismo germacircnico
foi um ampliador do projeto Winckelmanniano ldquoPois Goethe pensa o ideal de beleza
natildeo soacute em relaccedilatildeo agrave pintura e agrave escultura mas tambeacutem e principalmente em relaccedilatildeo agrave
poesia ou agrave arte dramaacutetica ampliando as ideacuteias de Winckelmann nesse domiacutenio como
teoacuterico e como criador de obras teatraisrdquo (Machado 2006 14) Seu classicismo
impresso em seus textos teoacutericos e na forma e conteuacutedo de diversas de suas produccedilotildees
literaacuterias eacute o auge do projeto Winckelmanniano Podemos ver na esteira de Machado
(2006 14-22) que o ideal de beleza proposto por Winckelmann eacute ainda o que domina a
noccedilatildeo Goetheana dos gregos e eacute apoiado neste ideal que o poeta interpreta a arte do
mundo helecircnico e a apresenta como um exemplo para a arte de seu tempo Ressaltamos
poreacutem que dada a sua extrema heterogeneidade como nos adverte Butler (1958 85)
encontrar um senso de harmonia interna no todo da obra goetheana eacute tarefa tatildeo incerta
como determinar o grau de sua influecircncia no pensamento de nossos filoacutesofos No que se
refere a Schopenhauer entretanto natildeo podemos deixar de ressaltar que sua convivecircncia
com o poeta foi norteada pelas discussotildees cientiacuteficas e filosoacuteficas que ocupavam o palco
de seus estudos agrave eacutepoca Goethe dedicou vinte anos de sua vida ao estudo das cores e
sua obra Doutrina das cores eacute o resultado desta investigaccedilatildeo Ela atraiu o interesse do
jovem Schopenhauer que apoacutes alguns encontros com Goethe dedicou-se a escrever a
sua proacutepria teoria que divergia em diversos pontos da teoria do poeta fato que marcou o
fim da relaccedilatildeo amistosa dos mesmos Sobre este periacuteodo de convivecircncia
19
De acordo com Martin (1996) a obra desenvolvida por Nietzsche enquanto escritor e pensador eacute
demasiado complexa para ser reduzida ou atribuiacuteda a determinada influecircncia Entretanto em uma
estatiacutestica crua podemos ter o vislumbre desta influecircncia como se segue ldquoSchopenhauer eacute referenciado
394 vezes na obra de Nietzsche Wagner 327 vezes a Goethe existem 311 menccedilotildees Schiller encontra-se
em nono lugar com 126 menccedilotildeesrdquo (Martin 1996 5)
39
especificamente sobre o episodio citado Goethe vai escrever mais tarde conforme
citaccedilatildeo de Safranski
O Dr Schopenhauer foi para mim um amigo benevolente
Estivemos de acordo em muitas coisas mas foi impossiacutevel evitar ao final
um certo distanciamento como dois amigos que ateacute certo momento
caminharam juntos se datildeo a matildeo para despedir pois querem dirigir-se um
ao norte outro ao sul perdendo-se rapidamente de vista um ao outro
(apud Safranski 1991 265)
Ainda na esteira do movimento de estabelecimento de um projeto
artiacutestico nacional encontramos Schiller que ao lado de Goethe foi o responsaacutevel pelas
maiores obras do classicismo literaacuterio de Weimar Para o estudo em questatildeo o que mais
nos interessa em sua obra eacute o periacuteodo no qual antes do contato com Goethe Schiller
produz seus escritos teoacutericos sobre a trageacutedia Estes estudos podem ser considerados
em uma perspectiva histoacuterica como uma ponte entre a interpretaccedilatildeo da trageacutedia nos
moldes puramente aristoteacutelicos e a trageacutedia vista enquanto forma de arte que para
atingir o efeito dela esperado deve refletir a condiccedilatildeo traacutegica do homem pensada com
base em elementos retirados da filosofia moral e da esteacutetica kantiana Em seus textos
teoacutericos sobre a poesia traacutegica pertencentes ao periacuteodo que Schiller assume ter estado
sob influecircncia da filosofia kantiana ele descreve a trageacutedia como expressatildeo do sublime
ndash conceito extraiacutedo da criacutetica kantiana do juiacutezo ndash como a representaccedilatildeo sensiacutevel da
dicotomia entre a liberdade moral a vontade individual (vontade tomada enquanto
faculdade de pensar e agir livremente) por um lado e a necessidade natural e instintiva
por outro Vemos pela primeira vez em Schiller a utilizaccedilatildeo de categorias filosoacuteficas
kantianas na elaboraccedilatildeo de uma teoria da trageacutedia o que teraacute continuidade com as
teorias do idealismo absoluto e a do proacuteprio Schopenhauer Este eacute um momento
extremamente importante devido ao fato de marcar toda a reflexatildeo futura sobre o tema
ao fundar o deslocamento de uma interpretaccedilatildeo poeacutetica da trageacutedia baseada em
40
comentaacuterios da obra aristoteacutelica para uma interpretaccedilatildeo do traacutegico enquanto fenocircmeno
que descreve a situaccedilatildeo do homem no mundo De acordo com Machado ldquoEacute do
encontro de um grande dramaturgo como Schiller com a filosofia de Kant -
principalmente a sua eacutetica considerada como uma filosofia da liberdade e sua
esteacutetica no que diz respeito agrave teoria do juiacutezo sobre o sublime ndash que nasce a primeira
filosofia do traacutegico uma reflexatildeo filosoacutefica original que criou um tipo novo de
pensamento sobre a trageacutediardquo (Machado 2006 54) Na teoria schopenhaueriana da
trageacutedia podemos ver caracteriacutesticas da teoria schilleriana Primeiramente a presenccedila
marcante da influecircncia kantiana no que se refere ao sublime Em segundo lugar a
leitura da trageacutedia enquanto instrumento para a percepccedilatildeo de uma ordem moral do
mundo Tais caracteriacutesticas seratildeo aprofundadas no capiacutetulo posterior Vale antecipar que
na obra do jovem Nietzsche poderemos ver a exaltaccedilatildeo de Schiller em sua tentativa de
compreensatildeo do mundo helecircnico aleacutem do elogio agrave teoria schilleriana do coro Veremos
entretanto uma criacutetica acirrada no que se refere ao projeto de um teatro enquanto
instituiccedilatildeo moral
Neste capiacutetulo foram delineadas as principais influecircncias filosoacuteficas que
alicerccedilaram o sistema schopenhaueriano bem como esboccedilaram-se as diversas teorias
artiacutesticas que surgiram no periacuteodo em questatildeo teorias estas que propuseram mateacuteria
para a formaccedilatildeo do pensamento de nossos filoacutesofos A partir da cisatildeo entre fenocircmeno e
noumeno proposta por Kant e sua primeira criacutetica Schopenhauer elabora as matrizes de
seu sistema e para ilustraacute-lo encontra apoio na cosmologia platocircnica e no pensamento
oriental Vimos ainda que sua teoria esteacutetica eacute alimentada pela frequumlentaccedilatildeo agraves
categorias apresentadas por artistas teoacutericos e criacuteticos de arte de seu periacuteodo Por seu
turno vimos com Winckelmann a origem do estudo sobre os gregos e sua arte aleacutem do
estabelecimento destes como um modelo para a arte alematilde projeto este que foi
41
retomado por Lessing que por sua vez intensificou o estudo e propocircs um modelo de um
teatro nacional independente projeto que seraacute mais tarde revisitado e aprofundado por
Goethe e Schiller Esta apresentaccedilatildeo de influecircncias eacute imprescindiacutevel para identificarmos
a origem de certos elementos que satildeo fundamentais ao entendimento da proacutepria doutrina
schopenhaueriana tais como o caraacuteter moral de sua teoria esteacutetica sua preocupaccedilatildeo
com o estabelecimento de limite entre as artes sua interpretaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo da poeacutetica
sua utilizaccedilatildeo de conceitos esteacuteticos kantianos (sublime belo e desinteresse) sua
apreciaccedilatildeo das obras modernas seu reconhecimento da produccedilatildeo claacutessica seu desprezo
agrave filosofia de seu tempo Eacute tambeacutem atraveacutes do mapeamento aqui feito de algumas de
suas influecircncias mesmo que brevemente apontado que poderemos mais tarde
identificar alguns dos aspectos originais e singulares de sua teoria
Quanto agraves influecircncias presentes na teoria da trageacutedia do jovem Nietzsche
apontaremos complementos no capiacutetulo correspondente Eacute imprescindiacutevel dar destaque
no que se refere agrave obra nietzscheana agrave sua formaccedilatildeo filoloacutegica ao seu conviacutevio com
Richard Wagner e agrave sua leitura do proacuteprio Schopenhauer - e isto seraacute feito
posteriormente Esperamos ter deixado claro ateacute aqui que diferentemente de Zaratustra
Nietzsche natildeo desceu simplesmente de uma montanha mas faz parte de uma tradiccedilatildeo
histoacuterica assim como Schopenhauer e que a contextualizaccedilatildeo de suas teorias eacute
fundamental para a identificaccedilatildeo dos elementos ali presentes que singularmente se
originaram do sistema metafiacutesico da Vontade
42
2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU
SUBSTRATO METAFIacuteSICO
ldquoOra se todo mundo como representaccedilatildeo eacute
a visibilidade da Vontade a arte eacute o
clareamento dessa visibilidade a cacircmera
obscura que mostra os objetos mais
puramente permitindo-nos melhor abarcaacute-
los e compreendecirc-los eacute o teatro dentro do
teatro a peccedila dentro da peccedila em Hamletrdquo
(Schopenhauer)
Utilizando-se de uma metaacutefora retirada do Eacutedipo de Soacutefocles Schopenhauer nos
oferece um exemplo da caracteriacutestica de conexatildeo interna dos temas abordados em sua
obra20
ldquo minha filosofia eacute como a Tebas de cem portas desde todos os lados se pode
entrar e atraveacutes de todos se pode chegar por um caminho direto ateacute o centrordquo
(Schopenhauer 2002 4) Tendo em vista que nosso objetivo neste capiacutetulo eacute apresentar
a teoria schopenhaueriana da trageacutedia e seus fundamentos filosoacuteficos utilizaremo-nos
desta porta para termos acesso ao sistema schopenhaueriano Procuraremos percorrer o
20
Barboza define bem esta caracteriacutestica marcante da filosofia schopenhaueriana ldquoSchopenhauer eacute o
filoacutesofo da organicidade Procura-a porque com ela onde quer que se esteja no seu sistema estar-se-aacute
em toda parte O todo conteria as partes e seria contido por elas De uma metafiacutesica da efetividade se vai
para uma do belo desta para a da eacutetica que por sua vez pode remeter agrave muacutesica por seu turno a nos
enviar para a efetividade numa por assim dizer circularidade virtuosa A unidade natildeo se perde do
horizonte de observaccedilatildeordquo (Barboza 2001 137)
43
substrato metafiacutesico sustentador da teoria do traacutegico schopenhaueriana e perceber assim
a conectividade interna existente entre sua cosmologia sua teoria esteacutetica e sua eacutetica
De posse deste meacutetodo procuraremos destacar os conceitos fundamentais da teoria
traacutegica e de sua visatildeo de mundo que viratildeo posteriormente se fazer presentes tambeacutem
na obra do jovem Nietzsche
21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo
Agrave descriccedilatildeo das artes poeacuteticas Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 51 do primeiro
volume e o capiacutetulo 37 do segundo volume de sua obra principal Tais descriccedilotildees
encontram-se por sua vez ao final dos trechos dedicados agrave teoria esteacutetica (livro III de
MVR e sus complementos) e finalizam seus apontamentos do que podemos chamar na
esteira de Young (2005) das artes natildeo-musicais21
Em ambos os casos a teoria da
trageacutedia estaacute localizada ao final da apresentaccedilatildeo Esta localizaccedilatildeo juntamente com as
diversas citaccedilotildees e exemplos retirados de peccedilas traacutegicas das quais o filoacutesofo se utiliza ao
longo de seu trabalho nos permite ver a importacircncia da arte traacutegica para Schopenhauer
Em sua teoria artiacutestica existe uma hierarquizaccedilatildeo das artes que leva em consideraccedilatildeo a
capacidade de cada uma em apresentar um grau especiacutefico de objetivaccedilatildeo da vontade
Na cosmologia schopenhaueriana a vontade essecircncia do mundo identificada como
sendo a coisa-em-si kantiana manifesta-se (torna-se objeto de conhecimento) atraveacutes de
diversos graus ndash que exprimem a nitidez com que a vontade se manifesta para o
observador - representados pelos reinos da natureza e finalmente pelo homem Desta
forma ela se objetivaria no mundo inorgacircnico atraveacutes das forccedilas magneacuteticas e da
gravidade no mundo vegetal atraveacutes das funccedilotildees orgacircnicas no mundo animal atraveacutes
21
Como veremos mais adiante a muacutesica eacute uma exceccedilatildeo no sistema das artes schopenhaueriano pois natildeo
se relaciona a uma objetivaccedilatildeo da vontade mas expressa a proacutepria vontade e desta forma natildeo figura na
sistematizaccedilatildeo hieraacuterquica
44
dos instintos e dos motivos assim como o faz no homem A classificaccedilatildeo das artes
corresponde portanto a esta hierarquizaccedilatildeo cosmoloacutegica de objetivaccedilatildeo da vontade22
Sendo assim a arquitetura e a hidraacuteulica mostram a objetivaccedilatildeo da vontade no seu grau
mais baixo ao expor o jogo das forccedilas que caracterizam a mateacuteria tais como a gravidade
rigidez dureza resistecircncia luz A jardinagem e a pintura da natureza satildeo as formas
artiacutesticas cujo fim eacute a exposiccedilatildeo da objetivaccedilatildeo da vontade que se manifesta no reino
vegetal A pintura de animais encontra-se em um niacutevel superior pois o reino animal
objeto de sua representaccedilatildeo expotildee de forma mais evidente a vontade objetivada Temos
ainda as pinturas de retratos a pintura histoacuterica e a escultura que das artes plaacutesticas
formam a categoria superior cujo objeto eacute a exposiccedilatildeo da vontade no grau mais elevado
de sua cognoscibilidade o homem Esta mesma exposiccedilatildeo a do homem eacute tambeacutem o
objeto da arte poeacutetica que agrave diferenccedila das artes que fazem sua exposiccedilatildeo de modo
puramente intuitivo eacute auxiliada pela imaginaccedilatildeo No aacutepice das artes poeacuteticas
encontramos a trageacutedia a uacuteltima arte natildeo-musical a ser descrita A arte traacutegica eacute aquela
que possui a caracteriacutestica de por sua natureza representar de forma mais ilustrativa a
objetivaccedilatildeo mais desenvolvida da vontade a vida humana e suas relaccedilotildees Veremos
mais tarde que aleacutem de corresponder agrave hierarquia de objetivaccedilatildeo da vontade mais
desenvolvida a arte traacutegica ocupa um lugar especial na filosofia schopenhaueriana
devido agrave ldquograndeza de seu efeitordquo (Schopenhauer 2005 333) Diante do exposto
podemos depreender que a arte possui na filosofia schopenhaueriana um papel
cognitivo e a trageacutedia por sua vez eacute a forma artiacutestica que por sua competecircncia cognitiva
ocupa o primeiro lugar entre as artes natildeo musicais
22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo
22
Vemos aqui um exemplo da citada inter-conectividade existente no sistema schopenhaueriano tendo
em vista que a elaboraccedilatildeo de sua classificaccedilatildeo artiacutestica obedece ao construto metafiacutesico do livro II de
MVR e sua consequumlente cosmologia
45
A tarefa a que se propotildee o sistema schopenhaueriano eacute a decifraccedilatildeo do ldquoenigma
do mundordquo ie encontrar uma resposta agrave pergunta o que eacute o mundo Esta tarefa tem
origem no idealismo subjacente na primeira criacutetica kantiana e de certa forma era uma
tarefa da qual estava imbuiacutedo todo o pensamento filosoacutefico daquele periacuteodo ie por
decifraccedilatildeo do enigma do mundo podemos entender a decifraccedilatildeo da coisa-em-si
kantiana Temos daiacute o ponto de partida da filosofia de Schopenhauer o idealismo
transcendental do mundo fenomecircnico Sob o ponto de vista da representaccedilatildeo o mundo eacute
objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito agraves condiccedilotildees a priori do
entendimento que para o filoacutesofo satildeo as categorias do espaccedilo do tempo e da
causalidade
Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das formas a priori do entendimento eacute
interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos advindos da filosofia Platocircnica e oriental
como um mundo ilusoacuterio Conforme a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana Platatildeo jaacute
identificava esta caracteriacutestica ilusoacuteria do mundo em sua contraposiccedilatildeo teoacuterica entre o
mundo fiacutesico onde o devir impossibilitava a apreensatildeo do ser e o mundo das ideacuteias
onde haveria o verdadeiro encontro com o ser das coisas Ainda de acordo com a
interpretaccedilatildeo de Schopenhauer os livros sagrados indianos Vedas e Puranas faziam
esta distinccedilatildeo atraveacutes da noccedilatildeo do veacuteu de maia a consciecircncia humana seria envolvida
por um veacuteu o que resultaria em uma visatildeo oniacuterica do mundo e impediria assim a
percepccedilatildeo da realidade
Entretanto o mundo pode ainda ser conhecido atraveacutes de um segundo ponto de
vista como vontade Este eacute o ponto de vista que Schopenhauer utiliza-se para decifrar a
incognosciacutevel coisa-em-si kantiana Percorrendo uma ldquovia subterracircneardquo de modo
imanente Schopenhauer identifica nas accedilotildees do corpo bioloacutegico os atos da vontade
46
enquanto coisa-em-si e de forma analoacutegica a estabelece como essecircncia governante do
mundo Faz-se necessaacuterio aqui ressaltar como o fazem Brum (1998 23) e Rosset23
que
natildeo devemos interpretar esta analogia como uma visatildeo antropomoacuterfica do mundo Essa
essecircncia do mundo encontrada empiricamente natildeo eacute todavia um ente racional uma
ldquoalma do mundordquo Se por um lado o mundo fenomecircnico eacute aquele onde o princiacutepio de
razatildeo24
estabelece as normas de funcionamento um mundo natildeo-fenomecircnico mundo em
si enquanto vontade se expressa por sua alogicidade irracionalidade Grundlosigkeit
(falta de fundamento) Essa essecircncia irracional que manifesta-se nos diversos reinos e
indiviacuteduos do mundo eacute a raiz da visatildeo pessimista da existecircncia que de acordo com o
filoacutesofo pode ser a todo momento constatada empiricamente
As diversas manifestaccedilotildees da vontade suas objetidades carregam inerentemente
a sua iacutendole puro impulso cego vontade de vida insaciabilidade Notadamente o
mundo fenomecircnico objetivaccedilatildeo da vontade expressa a essecircncia desta vontade atraveacutes
de um conflito permanente Desenha-se um cenaacuterio de batalha onde cada objetidade da
vontade cada ser do mundo eacute orientado por sua essecircncia irracional desguarnecida de
qualquer telos ldquoAssim a vontade de vida crava continuamente os dentes na proacutepria
carne e em diferentes figuras eacute seu proacuteprio alimentordquo (Schopenhauer MVR 211) Este
fundamento ontoloacutegico a vontade determina assim o caraacuteter absurdo que a vida
humana toma na filosofia schopenhaueriana eterno esforccedilo carente de ordem ou
finalidade O ldquomecanismo internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens
marionetes guiados pela carecircncia
[]nenhuma satisfaccedilatildeo todavia eacute duradoura mas antes sempre eacute um
ponto de partida de um novo esforccedilo o qual por sua vez vemos travado em
toda parte de diferentes maneiras em toda parte lutando e assim portanto
23
[] natildeo haacute que transpor a experiecircncia da motivaccedilatildeo humana ao conjunto das forccedilas naturais para
compreender o segredo da natureza senatildeo o contraacuterio transpor o misteacuterio das forccedilas naturais ao conjunto
das motivaccedilotildees psicoloacutegicas para desvendar-se o segredo da vontade humana (Rosset 2005 31) 24
Princiacutepio tratado na tese de doutoramento de Schopenhauer SRQPRS bem como no livro I de MVR
O princiacutepio estabelece que todo acontecimento possui uma causa uma razatildeo de ser
47
sempre como sofrimento natildeo haacute nenhum fim uacuteltimo do esforccedilo portanto natildeo
haacute nenhuma medida e fim do sofrimento (Schopenhauer 2005 399)
Se carecircncia vontade e desejo satildeo a tocircnica da vida humana na maior parte do tempo e
satildeo experimentados como dor e infelicidade a felicidade por sua vez eacute definida
negativamente como um momento de ausecircncia daquela dor
Sentimos a dor e natildeo a ausecircncia da dor a inquietude e natildeo a
tranquumlilidade o medo e natildeo a seguranccedila Sentimos desejo como quando
temos fome e sede entretanto ao alimentarmo-nos estas sensaccedilotildees
deixam de existir para noacutes (MVR II 630)
Toda satisfaccedilatildeo momentacircnea de um querer eacute imediatamente suprimida por outro querer
ou se perdurar por algum tempo por menor que seja este transforma-se em teacutedio Um
ldquopecircndulo entre a dor e teacutediordquo eacute a definiccedilatildeo que Schopenhauer propotildee para a vida
humana Assim se daacute tambeacutem com a sauacutede a juventude e a liberdade Todos satildeo
conceitos definidos negativamente soacute os conhecemos atraveacutes de sua ausecircncia Este afatilde
por prolongar e conservar a vida essecircncia iacutentima de cada indiviacuteduo natildeo eacute contudo
resultado de uma observaccedilatildeo objetiva da mesma de um conhecimento que eleja a vida
como algo de valor a ser mantido e preservado e portanto os ldquo[] seres natildeo satildeo
atraiacutedos por algo que se lhes apresenta mas satildeo empurrados a elerdquo (MVR II 398) A
luta eterna observada nos diversos reinos da natureza a busca por alimento o esforccedilo da
procriaccedilatildeo se comparados aos momentos fugazes de satisfaccedilatildeo fazem da vida ldquoum
negoacutecio cujos investimentos natildeo cobrem nem de longe os custosrdquo (MVR II 399)
Em todas estas consideraccedilotildees se faz claro que a vontade de viver
natildeo eacute a consequecircncia do conhecimento da vida natildeo se trata de uma
bdquoconclusio ex praemissis‟ nem em geral eacute algo secundaacuterio antes
contudo eacute o primeiro e incondicionado a premissa de todas as premissas
e precisamente por isso aquilo do que haacute de partir a filosofia pois a
vontade de viver natildeo se apresenta como a consequumlecircncia do mundo senatildeo
o mundo como consequumlecircncia da vontade de viver (MVR II 405)
Um dos pontos essenciais a ser verificado nesta visatildeo de mundo eacute o
destronamento da razatildeo O ceacuterebro oacutergatildeo da razatildeo eacute o resultado de um esforccedilo da
48
vontade em seu percurso de objetivaccedilatildeo A racionalidade humana estaacute a serviccedilo da
vontade que eacute em sua essecircncia grundlos A razatildeo eacute ferramenta para que o homem
enquanto objetidade da vontade consiga satisfazer a seus anseios Em oposiccedilatildeo agrave
filosofia racionalista de entatildeo onde o ldquoreal eacute o racionalrdquo assistimos ao surgimento de
uma filosofia irracionalista das forccedilas inconscientes onde a razatildeo na medida em que eacute
mecanismo da vontade estaacute sempre a serviccedilo desta O comportamento humano eacute
naturalmente egoiacutesta voltado para os proacuteprios interesses e estes por sua vez satildeo
expressatildeo desta vontade aloacutegica desprovida de telos Schopenhauer se mostrava
consciente da singularidade desta sua biparticcedilatildeo do ego e da consequumlente visatildeo de
mundo que ela trouxe agrave luz e enfatizou isto em seus manuscritos berlinenses ldquo[] a
divisatildeo da mente o eu em duas partes diferentes - em vontade como parte essencial e
primaacuteria e em intelecto como secundaacuteria - eacute o grande princiacutepio e meacuterito de minha
filosofia e tambeacutem a principal diferenccedila dos demais sistemasrdquo (MR III 328)
Temos entatildeo os dois pontos de vista do mundo que fundamentam a visatildeo de
Schopenhauer e que posteriormente seratildeo transformados pela teoria nietzscheana da
trageacutedia nos dois impulsos da natureza o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco O primeiro deles eacute o
mundo da individualidade da pluralidade regido pelo que Schopenhauer vai chamar
utilizando-se de um termo retirado da escolaacutestica de principium individuationis
Nesse sentido servindo-me da antiga escolaacutestica denomino
tempo e espaccedilo pela expressatildeo principium individuationis que peccedilo para
o leitor guardar para sempre Tempo e espaccedilo satildeo os uacutenicos pelos quais
aquilo que eacute uno e igual conforme a essecircncia e o conceito aparece como
pluralidade de coisas que coexistem e se sucedem (MVR 171)
No segundo toto genere diferente do primeiro existe a vontade una indivisiacutevel natildeo
submetida ao princiacutepio de razatildeo e por isso sem fundamento
Em apoio a sua tese Schopenhauer invoca ao final do capiacutetulo 46 (Sobre a
nulidade e o sofrimento da vida) dos complementos de MVR a opiniatildeo de diversos
49
pensadores dentre eles Heroacutedoto Platatildeo Teoacutegnis Homero os tragedioacutegrafos gregos
Shakespeare Byron Voltaire Rousseau Faz-se importante neste momento ressaltar que
o filoacutesofo aponta a invenccedilatildeo da trageacutedia pelos gregos como uma expressatildeo desta visatildeo
de mundo ponto de vista que como veremos tambeacutem seraacute adotado pelo primeiro
Nietzsche
Ante tudo mencionarei que os gregos por mais distantes que
estivessem da visatildeo de mundo cristatilde e da alta Aacutesia e por muito que se
mantiveram sob o ponto de vista da afirmaccedilatildeo da vontade se fizeram
profundamente impressionados pela miseacuteria da existecircncia Isso eacute
demonstrado pela invenccedilatildeo da trageacutedia obra deles (MVR II 640)
23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana
Existe poreacutem uma forma de conhecimento que eacute ndash agrave diferenccedila daquela
subordinada ao princiacutepio de razatildeo que percebe os objetos em sua relaccedilatildeo com os outros
objetos do espaccedilo-tempo ndash uma forma mais universal pois mostra o objeto em sua
caracteriacutestica mais geral qual seja a de ser objeto para o sujeito A esta forma de
conhecimento Schopenhauer associa a apreciaccedilatildeo esteacutetica O seu objeto eacute a ideacuteia
platocircnica25
um grau determinado de objetivaccedilatildeo da coisa-em-si
Os diferentes graus de objetivaccedilatildeo da Vontade expressos em
inumeraacuteveis indiviacuteduos e que existem como seus protoacutetipos
inalcanccedilaacuteveis ou formas eternas das coisas que nunca aparecem no
tempo e no espaccedilo meacutedium do indiviacuteduo mas existem fixamente natildeo
submetidos a mudanccedila alguma satildeo e nunca vindo-a-ser enquanto as
coisas nascem e perecem sempre vecircm-a-ser e nunca satildeo os GRAUS DE
OBJETIVACcedilAtildeO DA VONTADE ia dizer natildeo satildeo outra coisa senatildeo as
IDEacuteIAS DE PLATAtildeO (MVR 191)
Esta instacircncia do conhecimento eacute alcanccedilada intuitivamente pela contemplaccedilatildeo
esteacutetica da natureza ou pela facilitaccedilatildeo de uma obra de arte Desta forma as obras de
25
Conforme o filoacutesofo ldquo A expressatildeo mais breve e sucinta daquele famoso dogma platocircnico foi dada por
Dioacutegenes Laeacutercio (II 12) Platatildeo ensina que as ideacuteias da natureza existem como protoacutetipos jaacute as demais
coisas apenas se assemelham a elas e satildeo suas coacutepiasrdquo (MVR 191)
50
arte na teoria schopenhaueriana satildeo uma exposiccedilatildeo destes graus de objetivaccedilatildeo da
vontade as ideacuteias Ao contraacuterio da criacutetica agrave arte presente na repuacuteblica platocircnica - onde a
arte seria uma coacutepia mais imperfeita da ideacuteia por retratar o mundo fenomecircnico sua
coacutepia direta - Schopenhauer aproxima as obras artiacutesticas das ideacuteias eternas as define
como suas expressotildees diretas Contudo a intuiccedilatildeo das ideacuteias exige um estado de
consciecircncia diferente do estado comum Neste uacuteltimo o aparelho cognitivo sob a eacutegide
da vontade estaacute voltado para a realizaccedilatildeo dos interesses individuais e entatildeo se
movimenta no mundo guiado por estes interesses ldquoCaso entretanto a Ideacuteia deva de
alguma maneira tornar-se conhecimento e ser conhecida pelo sujeito entatildeo isso soacute
pode ocorrer graccedilas agrave supressatildeo da individualidade no sujeito que conhecerdquo (MB 30)
A forma artiacutestica de conhecimento cujo possuidor eacute o denominado gecircnio estaacute
associada a um desprendimento das reacutedeas da vontade O gecircnio eacute entatildeo aquele que livre
dos interesses da vontade percebe as ideacuteias por traacutes dos objetos alheio aos princiacutepios
de razatildeo e de individuaccedilatildeo e traduz este objeto na obra de arte O observador esteacutetico eacute
portanto um partiacutecipe da genialidade na medida em que intui a ideacuteia por traz do objeto
observado conforme tambeacutem ao seu grau de desinteresse26
Durante a apreciaccedilatildeo
esteacutetica o homem se vecirc livre momentaneamente daquela parte de si que eacute a causadora
de todo o sofrimento individual e coletivo a vontade para transformar-se em um ldquopuro
sujeito de conhecimentordquo Este estado de satisfaccedilatildeo decorrente da suspensatildeo da vontade
individualizada eacute o sentimento do belo
Aquilo que se poderia nomear o lado mais belo e a pura alegria
da vida precisamente porque nos arranca da existecircncia real e nos
transforma em espectadores desinteressados diante dela eacute o puro
conhecimento que permanece alheio a todo querer eacute a fruiccedilatildeo do belo a
alegria autecircntica na arte Mas mesmo isso requer dispositivos raros e
cabe apenas a pouquiacutessimos e mesmo para estes eacute um sonho
passageiro (MVR 404)
26
Vemos nesta forma de associaccedilatildeo entre conhecimento e interesse mais uma heranccedila kantiana no caso
provinda da definiccedilatildeo de belo da criacutetica da faculdade de juiacutezo
51
- - - - - - - - - -
Ao descrever a apreciaccedilatildeo artiacutestica como um ato cognitivo Schopenhauer
preocupa-se em diferenciaacute-la do conhecimento cientiacutefico De fato boa parte das
consideraccedilotildees sobre a arte eacute dedicada ao esclarecimento desta diferenccedila
Podemos por conseguinte definir a arte como o modo de
consideraccedilatildeo das coisas independente do princiacutepio de razatildeo em oposiccedilatildeo
justamente agrave consideraccedilatildeo que o segue que eacute o caminho da experiecircncia e
da ciecircncia O modo de consideraccedilatildeo que seque o princiacutepio de razatildeo eacute o
racional o uacutenico que vale e que auxilia na vida praacutetica e na ciecircncia o
modo apartado do conteuacutedo do princiacutepio de razatildeo eacute o genial o uacutenico que
vale e que auxilia na arte (MB 59)
No caso da trageacutedia cujo objetivo eacute o conhecimento do homem e de suas relaccedilotildees a
ciecircncia que mais se assemelha a esta forma artiacutestica seria a histoacuteria Esta natildeo tem como
objetivo a demonstraccedilatildeo da essecircncia do homem em sua forma atemporal ou seja a
demonstraccedilatildeo daquilo que fundamenta toda accedilatildeo humana independente dos
acontecimentos empiacutericos
[ ]toda ciecircncia no sentido proacuteprio do termo compreendida como
conhecimento sistemaacutetico guiado pelo fio condutor do princiacutepio de
razatildeo parte sempre de dois dados baacutesicos um deles sem exceccedilatildeo eacute o
princiacutepio de razatildeo em uma de suas figuras como oacuterganon outro eacute o
objeto especiacutefico de cada uma delas enquanto problema (Schopenhauer
MVR 73)
Desta forma a histoacuteria teria a lei de motivaccedilatildeo e o os fatos humanos como oacuterganon e
problemas respectivamente Entretanto interessa a Schopenhauer um conhecimento
mais universal que soacute pode ser apresentado pela arte e que aponta por sua proximidade
agrave essecircncia daquilo que eacute a uma ldquoiacutendole imutaacutevelrdquo das manifestaccedilotildees
Podemos ver entatildeo que sendo consideradas como meios para o
conhecimento da essecircncia da humanidade arte poeacutetica e histoacuteria possuem todavia
objetos de conhecimento diferentes A primeira quando produzida pelo verdadeiro
gecircnio tenciona manifestar a ideacuteia por traacutes destes conceitos a ideacuteia de homem de
humanidade intuitivamente independentemente do princiacutepio de razatildeo do devir como
52
objeto puro de conhecimento alheio agrave corrente dos motivos em suas caracteriacutesticas
essenciais atemporais A histoacuteria por sua vez segue o rastro do princiacutepio de razatildeo
procurando apresentar o fenocircmeno humano em suas relaccedilotildees descrever-lhe em suas
situaccedilotildees particulares individuais empiacutericas Nas palavras de Schopenhauer
Arte e ciecircncia tecircm em uacuteltima instacircncia o mesmo estofo a saber
justamente o mundo tal como ele se posta diante de noacutes ou antes uma
parte destacada dele quanto ao todo do mundo soacute a filosofia o
considera Contudo a grande diferenccedila entre ciecircncia e arte reside na
maneira como elas consideram o mundo e trabalham seu estofo Tal
oposiccedilatildeo pode ser indicada com uma palavra a ciecircncia considera os
fenocircmenos do mundo seguindo o fio condutor do princiacutepio de razatildeo ao
passo que a arte coloca totalmente de lado o princiacutepio de razatildeo
independente dele para que assim a ideacuteia entre em cena
(SCHOPENHAUER MB 57)
Podemos notar que a valorizaccedilatildeo do que eacute imutaacutevel alheio agrave idealidade do tempo eacute a
raiz da valorizaccedilatildeo do conhecimento artiacutestico frente ao histoacuterico Este uacuteltimo natildeo visa o
acesso aos modelos eternos pois seu objeto satildeo os acontecimentos individuais do
mundo fenomecircnico que satildeo eventos meramente aparentes se considerarmos a
idealidade do tempo O que se manifesta no fluxo temporal do mundo fenomecircnico satildeo
sempre as mesmas formas eternas as ideacuteias entretanto com roupagens diferentes o
mesmo homem enquanto objetivaccedilatildeo da vontade a mesma humanidade Onde quer que
seja e em qualquer momento especiacutefico sua essecircncia eacute a mesma e esta essecircncia eacute o que
deve ser alvo de uma compreensatildeo privilegiada de entendimento e natildeo as suas diversas
manifestaccedilotildees Por este motivo Schopenhauer deixando explicito o seu chamado anti-
historicismo afirma que ldquose algueacutem jaacute lera Heroacutedoto jaacute estudara bastante histoacuteria e
efeitos filosoacuteficos Pois laacute jaacute estaacute tudo o que compotildee a posterior histoacuteria mundial a
atividade o obrar o sofrimento e o destino do gecircnero humano (Schopenhauer MVR
II 496) Podemos notar claramente a oposiccedilatildeo entre a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana
da histoacuteria e as tendecircncias de seu tempo principalmente presentes na filosofia de
Hegel Este de acordo com a criacutetica de Schopenhauer ignorando a filosofia critica de
53
Kant toma o fenocircmeno histoacuterico como coisa em si ao atribuir-lhe uma unidade de
consciecircncia Entretanto unidade de consciecircncia eacute um atributo dos indiviacuteduos e natildeo do
gecircnero humano Estas filosofias de acordo com o Schopenhauer satildeo frutos do realismo
otimista queldquo tomam o mundo como perfeitamente real e potildeem como fim do mesmo
uma miseraacutevel felicidade terrena (Schopenhauer MVR II 495)
- - - - - - - - - -
Colocando de lado o fio condutor do princiacutepio de razatildeo e mirando-se no
conhecimento da ideacuteia imutaacutevel atemporal encontramos a trageacutedia como fenocircmeno que
apresenta agrave intuiccedilatildeo o homem e sua condiccedilatildeo Eacute a forma de arte que tem como objeto o
grau mais elevado de objetivaccedilatildeo da vontade A intenccedilatildeo do artista traacutegico eacute de acordo
com Schopenhauer transmitir a ideacuteia intuiacuteda tarefa que seraacute bem sucedida de acordo
com a habilidade de utilizaccedilatildeo da teacutecnica artiacutestica por um lado e com a capacidade de
percepccedilatildeo esteacutetica do apreciador por outro O tragedioacutegrafo diferentemente do
historiador que relata os fatos empiacutericos explicitando seus motivos e consequumlecircncias
deve para obter o efeito esperado em sua obra expor uma situaccedilatildeo tal em que o homem
possa manifestar todas as suas potencialidades e dessa forma transmitir ao apreciador
esteacutetico a ideacuteia representada ldquoO poeta expotildee com escolha e intenccedilatildeo caracteres
significativos em situaccedilotildees significativas jaacute o historiador toma aos dois como eles
aparecemrdquo (Schopenhauer MVR 323) A qualidade da obra traacutegica seraacute julgada entatildeo
pela sua capacidade de representaccedilatildeo da ideacuteia de humanidade e Schopenhauer qualifica
as trageacutedias de acordo com esta capacidade Natildeo existe em seu sistema uma
consideraccedilatildeo histoacuterica da produccedilatildeo traacutegica Ele natildeo leva em consideraccedilatildeo as condiccedilotildees
histoacutericas no que se refere agrave origem ou mesmo quanto ao desenvolvimento desta forma
artiacutestica e a avalia unicamente conforme o seu efeito E neste ponto a trageacutedia apresenta
uma peculiaridade frente agraves demais artes ela eacute a forma de arte que provocaraacute o
54
sentimento do sublime Como vimos o correlato subjetivo de toda apreciaccedilatildeo esteacutetica eacute
o sentimento causado pela anulaccedilatildeo da vontade individual mediante a elevaccedilatildeo ao
estado de puro sujeito de conhecimento O sublime assim como o belo satildeo expressotildees
deste sentimento que se diferenciam unicamente por sua forma
Se tal estado surgiu por si mesmo na medida em que o objeto foi
solicitado e se apresentou ndash e fomos postos sem resistecircncia pelo mero
desaparecer da vontade da consciecircncia no estado do conhecer puro ndash ou
se primeiro foi despertado por elevaccedilatildeo livre consciente sobre a vontade
na medida em que o objeto contemplado tem com esta uma relaccedilatildeo
desfavoraacutevel hostil cuja prossecuccedilatildeo suprimiria a contemplaccedilatildeo ndash aiacute
reside a diferenccedila entre o belo e o sublime (MB 119)
A impressatildeo do sublime eacute portanto uma forma de colocar-se no estado do puro conhecer
ao nos depararmos com o objeto que por sua apresentaccedilatildeo sugere uma ldquorelaccedilatildeo hostilrdquo
com o indiviacuteduo27
Jaacute vimos que a visatildeo de mundo de Schopenhauer identifica a vida humana como
sofrimento infindaacutevel no entanto ao elaborar sua definiccedilatildeo da trageacutedia Schopenhauer
aponta para o desfecho moral de sua obra (livro IV de MVR) e afirma que a trageacutedia
melhor eacute aquela que expotildee a renuacutencia agrave vida O filoacutesofo compara obras contemporacircneas
agraves antigas e afirma sua preferecircncia por estas em decorrecircncia da capacidade que elas tecircm
de provocar esta a renuacutencia agrave vida Vejamos a descriccedilatildeo que Schopenhauer faz da
trageacutedia
No aacutepice da arte poeacutetica tanto no que se refere agrave grandeza do seu
efeito quanto agrave dificuldade da sua realizaccedilatildeo deve-se ver a trageacutedia e de
fato ela assim foi reconhecida Observe-se aqui algo de suma significaccedilatildeo
para toda a nossa visatildeo geral de mundo o objetivo dessa suprema
realizaccedilatildeo poeacutetica natildeo eacute outro senatildeo a exposiccedilatildeo do lado terriacutevel da vida
27
Vemos na teoria do sublime Schopenhaueriana mais uma vez a influecircncia de Kant Schopenhauer iraacute
identificar duas formas de sublime e utilizar-se-aacute dos termos kantianos ldquosublime dinacircmicordquo e ldquosublime
matemaacuteticordquo para diferenciaacute-los No primeiro o objeto de apreciaccedilatildeo se mostra a princiacutepio uma ameaccedila
ao observador ldquoum poder que suprimiria qualquer resistecircnciardquo(MB 104) No sublime matemaacutetico o
segundo o objeto eacute visto em sua incomensuraacutevel grandiosidade diante da qual o observador infere a sua
infimidade A afinidade entre Schopenhauer e a teoria criacutetica do juiacutezo eacute expressa em sua obra principal
ldquoDe longe o que haacute de mais excelente na criacutetica da faculdade de juiacutezo eacute a teoria do sublime Ela eacute
incomparavelmente mais bem sucedida que a teoria do belo e daacute natildeo apenas como esta o meacutetodo geral
da investigaccedilatildeo mas tambeacutem um trecho do correto caminho de maneira que embora natildeo forneccedila a
soluccedilatildeo propriamente dita do problema chega bem perto delardquo(MVR 660)
55
a saber o inominado sofrimento a miseacuteria humana o triunfo da maldade
o impeacuterio ciacutenico do acaso a queda inevitaacutevel do justo e do inocente E
em tudo isso se encontra uma indicaccedilatildeo significativa da iacutendole do mundo
e da existecircncia Eacute o conflito da Vontade consigo mesma que aqui
desdobrado plenamente no grau mais elevado de sua objetidade entra em
cena de maneira aterrorizante Ele se torna visiacutevel no sofrimento da
humanidade em parte produzido por acaso e erro que se apresentam
como os senhores do mundo e personificados como destino e perfiacutedia os
quais aparecem enquanto intencionalidade em parte advindo da
humanidade mesma por meio dos entrecruzados esforccedilos voluntaacuterios dos
indiviacuteduos e da maldade e perversatildeo da maioria Trata-se de uma uacutenica e
mesma Vontade que em todos vive e aparece cujos fenocircmenos
entretanto combatem entre si e se entredevoram [] Por fim esse
conhecimento no indiviacuteduo purificado e enobrecido pelo sofrimento
mesmo atinge o ponto no qual o fenocircmeno o veacuteu de maia natildeo mais o
ilude Ele vecirc atraveacutes da forma do fenocircmeno do principium
individuationis com o que tambeacutem expira o egoiacutesmo nele baseado Com
isso os ateacute entatildeo poderosos MOTIVOS perdem o seu poder e em vez
deles o conhecimento perfeito da essecircncia do mundo atuando como
quietivo da vontade produz a resignaccedilatildeo a renuacutencia natildeo apenas da vida
mas de toda a vontade de vida mesma (Schopenhauer MVR 333)
Percebemos nesta descriccedilatildeo que a trageacutedia aleacutem de expor a visatildeo de mundo construiacuteda
pelo filoacutesofo tem como fim uacuteltimo provocar um efeito moral no apreciador esteacutetico
qual seja a renuacutencia ao mundo Vejamos entatildeo a relaccedilatildeo entre a visatildeo de mundo
schopenhaueriana o efeito esteacutetico provocado pela trageacutedia e o projeto moral existente
por traacutes de suas teorias
24 A finalidade moral da trageacutedia
Para que possamos perceber a relaccedilatildeo intriacutenseca entre cosmologia metafiacutesica
arte e a eacutetica faz-se necessaacuterio uma pequena excursatildeo sobre esta uacuteltima Que todo o
sistema schopenhaueriano possui um viacutenculo inseparaacutevel com o seu projeto eacutetico eacute fato
que natildeo passa despercebido a seus comentadores Um projeto de juventude eacute descrito
por Safranski (1991 188-198) Young (2006 07 200) Aramayo (2001 56-59) e
Cartwright (Janaway 1999 252) como uma premissa no desenvolvimento da filosofia
56
schopenhaueriana trata-se do projeto de uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Young a descreve
como uma transcendecircncia do mundo ordinaacuterio para o ldquomundo verdadeirordquo Esta
consciecircncia melhor poderia ser experimentada atraveacutes da apreciaccedilatildeo artiacutestica e da
consciecircncia eacutetica ambas originadas do desvelamento de maia Assim Schopenhauer a
descreve conforme citaccedilatildeo de Young (2006 9) ldquopersonalidade e causalidade existem
neste mundo compreensiacutevel temporal sensorial Mas a consciecircncia melhor me leva a
um mundo onde nem personalidade nem sujeito ou objeto existem maisrdquo Safransky
descreve a consciecircncia melhor como um estado semelhante ao ecircxtase miacutestico
Este arrebatamento estaacute livre das coordenadas espaccedilo-temporais
cujo ponto de interseccedilatildeo eacute o eu corporal apartado do espaccedilo do tempo
do eu Os miacutesticos chamam a esta experiecircncia ldquonunc stansrdquo agora
permanente A intensidade deste presente natildeo conhece princiacutepio nem fim
e soacute pode desaparecer porque noacutes desaparecemos dele (Safransky1991
190)
Conforme Aramayo tanto a figura do gecircnio como a do santo satildeo expressotildees do
reconhecimento desta consciecircncia melhor e a filosofia de Schopenhauer pretende-se
uma terceira via que tambeacutem apontaria para este estado de consciecircncia A caracteriacutestica
primordial deste estado eacute o desprendimento dos desejos individuais e o comportamento
virtuoso que adveacutem deste desprendimento Eacute na esteira do entendimento desta
consciecircncia melhor que as bases eacutetico-metafiacutesicas do filoacutesofo foram elaboradas Em
apoio a esta afirmaccedilatildeo Aramayo apresenta duas citaccedilotildees a partir das quais em
momentos distintos de sua vida Schopenhauer apresenta seu projeto de identificaccedilatildeo
entre eacutetica e metafiacutesica Nos escritos de Juventude em 1813 vemos o projeto
Em meu espiacuterito encontra-se em gestaccedilatildeo uma filosofia onde
metafiacutesica e eacutetica devem constituir uma soacute coisa cuja dissociaccedilatildeo eacute tatildeo
errocircnea como agrave da alma e do corpo (Aramayo 2001 41)
Jaacute nos escritos tardios especificamente em seu ensaio de 1836 Sobre a vontade na
natureza veremos Schopenhauer identificar esta uniatildeo
57
Tatildeo soacute esta metafiacutesica que jaacute eacute eacutetica por si soacute ao estar construiacuteda
com esse material primordialmente eacutetico que se supotildee a vontade
constitui real e imediatamente um sustentaacuteculo para a eacutetica em vista de
que poderia haver colocado em minha metafiacutesica o nome de eacutetica (apud
Aramayo 2001 43)
Cartwright aponta ainda na uacuteltima obra schopenhaueriana de 1851 Parerga e
paralipomena a afirmaccedilatildeo de que a ldquosua real filosofia culminou em um ponto de vista
altamente eacutetico-metafiacutesicordquo (Janaway 1999 252)
Na filosofia schopenhaueriana como vimos o indiviacuteduo humano eacute uma
expressatildeo da objetidade da vontade e seu ponto de partida por natureza eacute a satisfaccedilatildeo
manutenccedilatildeo e o prolongamento desta vontade de vida Este estado de consciecircncia onde
todos os esforccedilos estatildeo voltados para a satisfaccedilatildeo da vontade individual eacute a causa de
todo o sofrimento do mundo Aprisionado agrave perspectiva fenomecircnica do mundo o
homem natildeo percebe a unidade da vontade e age de acordo com os motivos estabelecidos
pela sua proacutepria individualidade Para este homem existe uma separaccedilatildeo profunda entre
o proacuteprio eu e os objetos do mundo
Por meio da intuiccedilatildeo que o ceacuterebro efetua a partir dos dados do sentido
e portanto mediatamente conhecemos o proacuteprio corpo como um objeto no
espaccedilo e por meio do sentido interno conhecemos a seacuterie sucessiva de nossos
desejos e atos de vontade que surgem por ocasiatildeo dos motivos externos e
finalmente conhecemos os muacuteltiplos movimentos fortes ou fracos da proacutepria
vontade aos quais todos os sentimentos internos deixam-se reconduzir Isto eacute
tudo pois o conhecer natildeo eacute ele proacuteprio de novo conhecido (Schopenhauer
2001 213)
Eacute deste estado que surge todo o comportamento humano considerado pelo filoacutesofo
como comportamento antimoral Egoiacutesmo eacute o nome dado ao resultado da influecircncia do
princiacutepio de individuaccedilatildeo sobre o comportamento dos homens Este egoiacutesmo chega ao
extremo de o homem considerar-se o centro do mundo e transformar o seu querer em
mandamento para os objetos exteriores ldquoalguns homens seriam capazes de assassinar
um outro soacute para engraxar suas botas com a gordura delerdquo (SFM 124) Nestas
58
condiccedilotildees ldquose fosse dado pois a um indiviacuteduo escolher entre a sua proacutepria aniquilaccedilatildeo
e a do mundo nem preciso dizer para onde a maioria se inclinariardquo (SFM 121) Da
forma como ocorre com o egoiacutesmo a ilusatildeo fenomecircnica daacute origem a outro sentimento
o oacutedio Estes dois egoiacutesmo e oacutedio satildeo os princiacutepios originadores de todos os viacutecios do
homem Desta leitura pessimista da natureza humana Schopenhauer retira seu conceito
perspectivista das ideacuteias de bem e mal satildeo consideradas boas ou maacutes as coisas que
agradam ou desagradam agrave vontade do indiviacuteduo ldquoPortanto tudo o que eacute favoraacutevel agrave
vontade em alguma de suas exteriorizaccedilotildees e satisfaz seus fins eacute pensado pelo conceito
bom por mais diferentes que essas coisas possam ser noutros aspectosrdquo (MVR 459)
Este estado eacute definido por Schopenhauer como ldquoafirmaccedilatildeo da vontaderdquo nele o amor-
proacuteprio Eros dita as regras de comportamento Definido o Eros enquanto
fundamentador das accedilotildees antimorais humanas sendo este surgido de uma percepccedilatildeo
subordinada ao principium individuationis entendemos o motivo pelo qual o filoacutesofo
rejeita a validade de qualquer moral baseada em argumentos abstratos
Uma moral sem fundaccedilatildeo portanto um simples moralizar natildeo pode
fazer efeito pois natildeo motiva Uma moral entretanto que motiva soacute pode fazecirc-
lo atuando sobre o amor proacuteprio O que entretanto nasce daiacute natildeo tem valor
moral algum Segue-se assim que mediante moral e conhecimento abstrato em
geral nenhuma virtude autecircntica pode fazer efeito mas esta tem de brotar do
conhecimento intuitivo o qual reconhece no outro indiviacuteduo a mesma essecircncia
que a proacutepria (MVR 468)
Desta forma em contraposiccedilatildeo ao comportamento antimoral produzido
pela ilusatildeo causada pelo principium individuationis o filoacutesofo apresenta o outro lado da
moeda a accedilatildeo moral Esta seria a accedilatildeo praticada em funccedilatildeo do bem-estar de um outro
indiviacuteduo tendo em vista que as accedilotildees praticadas em funccedilatildeo do mal-estar do outro ou
do bem e mal estar de si mesmo satildeo justamente as accedilotildees antimorais baseadas no
egoiacutesmo ou no oacutedio ldquoTodo amor que natildeo eacute compaixatildeo eacute amor-proacuteprio Amor-proacuteprio eacute
59
Eros compaixatildeo eacute Aacutegaperdquo (MVR 478) Todo ato moral eacute por consequumlecircncia um ato de
compaixatildeo ou seja um ato que eacute praticado a partir da percepccedilatildeo do sofrimento do
outro Entretanto a percepccedilatildeo do sofrimento alheio natildeo eacute dada atraveacutes do conhecimento
abstrato E somente por uma percepccedilatildeo intuitiva direta do sofrimento do outro como o
meu proacuteprio sofrimento que surge a compaixatildeo Tal percepccedilatildeo assim como a
apreciaccedilatildeo esteacutetica tem origem em uma visatildeo que vai aleacutem do principium
individuationis Desfaz-se a ilusatildeo causada por este princiacutepio de que existe em realidade
um eu e um natildeo-eu ilusatildeo essa que eacute originada pelos condicionantes do conhecimento
tempo espaccedilo e causalidade Livre do principium individuationis natildeo haacute mais
diversidade natildeo existe mais indiviacuteduo passado futuro motivaccedilotildees existe apenas o
instante presente do ser a vontade Natildeo nos vemos mais como uma vontade separada de
outras ao contraacuterio vemos nos outros a mesma vontade pela qual somos Necessaacuterio
faz-se ressaltar que este conhecimento intuitivo que demonstra a unidade da vontade
em todo indiviacuteduo eacute entendimento de verdade tatildeo profundo que supera qualquer
especulaccedilatildeo abstrata do conhecimento e por isso seu efeito eacute marcante
Para o conhecimento que vecirc atraveacutes do principium individuationis uma
vida feliz no tempo presenteada pelo acaso ou conquistada deste pela
sabedoria em meio ao sofrimento de inumeraacuteveis outros eacute apenas um sonho de
mendigo no qual eacute um rei poreacutem tem de acordar e reconhecer que era tatildeo-soacute
uma ilusatildeo fugidia aquilo que o separava do sofrimento da sua vida (MVR
452)
A experimentaccedilatildeo deste estado de consciecircncia faz-nos perceber a vida como engano
luta infinita e provoca em noacutes a renuacutencia a esta mesma vida agrave vontade de viver O
homem natildeo mais afirma a sua essecircncia mas a repudia
Agrave semelhanccedila do estado de negaccedilatildeo da vontade o proacuteprio estado de
contemplaccedilatildeo esteacutetica pressupotildee um desinteresse pelos mandamentos da vontade
60
individual um desligamento do caraacuteter egoiacutestico do sujeito empiacuterico28
Para que possa
perceber a Ideacuteia por traacutes do objeto contemplado o observador deve estar em um estado
de consciecircncia que se vecirc livre dos grilhotildees da vontade Neste estado ele eacute alccedilado para
aleacutem da individualidade torna-se puro sujeito de conhecimento Para que este estado se
manifeste eacute imprescindiacutevel natildeo estar interessado nas relaccedilotildees do objeto apreciado seja
com outros objetos seja consigo mesmo O apreciador esteacutetico natildeo se preocupa com o
ldquoonderdquo o ldquocomordquo o ldquoporquecircrdquo dos objetos Estas formas de interjeiccedilatildeo sinalizam para a
relaccedilatildeo dos objetos com o mundo O apreciador esteacutetico no momento da apreciaccedilatildeo
tem em vista somente o ldquoquerdquo do objeto transforma-se em um ldquoolho que vecircrdquo livre do
princiacutepio de individuaccedilatildeo eacute o puro sujeito de conhecimento Vemos nestes dois estados
(o esteacutetico e o compassivo) exemplos de estados de consciecircncia que por suas
caracteriacutesticas de alccedilarem o indiviacuteduo a uma anulaccedilatildeo do sofrimento fazem parte do
projeto de juventude de estabelecer uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Percebemos entatildeo que a
consideraccedilatildeo esteacutetica e a consideraccedilatildeo eacutetica possuem em comum esta caracteriacutestica da
consciecircncia de se apartar do princiacutepio de individuaccedilatildeo
No caso da trageacutedia como descreve Schopenhauer seu fim uacuteltimo eacute despertar a
compaixatildeo no apreciador Desta forma o filoacutesofo associa agrave trageacutedia um efeito singular e
adverso das demais artes ou pelo menos reconhece na trageacutedia a arte capaz de
demonstrar a semelhanccedila entre os modos de consideraccedilatildeo artiacutestico e eacutetico Ao ilustrar o
conflito das vontades no mundo atraveacutes da exposiccedilatildeo do sofrimento humano a trageacutedia
cumpre seu papel artiacutestico ao expor a ideacuteia de humanidade Aleacutem deste atributo
podemos dizer que a trageacutedia tem que cumprir ainda seu papel moral ao causar no
28
Neste ponto de semelhanccedila eacute fundamental apontar mais uma vez a heranccedila kantiana Nas palavras de
Barboza (2001 82) ldquoA negaccedilatildeo da Vontade diante da beleza realmente obedece a uma leitura do
conceito criacutetico de desinteresse Quando Kant diz que o belo eacute aquilo que satisfaz bdquosem nenhum
interesse‟ o autor de O mundo leu essa expressatildeo como equivalente da negaccedilatildeo do querer visto que
interesse e motivo satildeo conceitos intercambiaacuteveis [] e a vontade neutraliza-se desinteressa-se ou seja eacute
indeterminaacutevel por motivos na contemplaccedilatildeo da Ideacuteia do belordquo
61
espectador a renuacutencia a toda vontade O modelo exemplar da trageacutedia eacute para
Schopenhauer a trageacutedia cristatilde onde o heroacutei conscientemente abandona o querer e
conseguintemente a vida Na trageacutedia antiga havia somente a identificaccedilatildeo do
sofrimento humano e sua exposiccedilatildeo A renuacutencia agrave vontade de vida eacute caracteriacutestica das
trageacutedias posteriores ao advento cristatildeo Schopenhauer exemplifica O priacutencipe de
Calderoacuten Gretchen em Fausto A Donzela de Orleans a Noiva de Messina etc Assim
ldquotoda a exposiccedilatildeo traacutegica eacute para o espectador um chamado agrave resignaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo livre
da Vontade de vida Somente a eacutetica pode tornar tudo isso mais compreensiacutevelrdquo (MB
223) Vemos entatildeo de forma clara na teoria da trageacutedia de Schopenhauer um momento
onde ocorre a coalizatildeo dos fundamentos metafiacutesicos de sua filosofia do pessimismo
originado nestes fundamentos e da atitude eacutetica existente por traacutes de seu pensamento
25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera
Faz-se necessaacuterio aqui uma incursatildeo sobre a teoria da muacutesica de Schopenhauer
tendo em vista de que ela ocuparaacute um papel decisivo na teoria nietzscheana da trageacutedia
As relaccedilotildees que Nietzsche estabelece entre a muacutesica a vontade as palavras e
finalmente a trageacutedia satildeo delineadas como veremos pela metafiacutesica schopenhaueriana
da muacutesica No intuito de perceber estas relaccedilotildees propomos aqui um breve esboccedilo da
teoria da muacutesica na filosofia de Schopenhauer
A filosofia da muacutesica encontra seu lugar ao final do terceiro livro de MVR bem
como no capiacutetulo 39 dos complementos fechando assim as consideraccedilotildees de
Schopenhauer sobre a metafiacutesica do belo e as artes29
29
Na esteira de Lydia Goehr (Jacquette 1996 200) ressaltamos que tendo em vista a influecircncia que sua
filosofia da muacutesica exerceu sobre o pensamento artiacutestico e filosoacutefico posterior e comparada agrave dimensatildeo
de sua obra as consideraccedilotildees sobre a muacutesica ocupam um espaccedilo diminuto em sua obra
62
Para o filoacutesofo da vontade a muacutesica eacute a arte que pela natureza de seu objeto de
expressatildeo natildeo encontra lugar apropriado dentro do sistema das demais artes Estas
conforme sua competecircncia em traduzir uma determinada objetidade da vontade uma
ideacuteia satildeo classificadas hierarquicamente A muacutesica entretanto figura aleacutem desta
hierarquizaccedilatildeo pois representa o conceitualmente irrepresentaacutevel ldquoa coacutepia de um
modelo que ele mesmo nunca pode ser representado imediatamenterdquo(MVR 338) a
Vontade mesma Esta arte eacute especialmente considerada devido agrave peculiaridade uacutenica de
seu efeito esteacutetico ldquoeacute uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente
sobre o mais iacutentimo do homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele
como se fora uma linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do
mundo intuitivordquo (MVR 336) A muacutesica estaacute aleacutem da intuiccedilatildeo pois representa aquilo
que estaacute aleacutem desta forma agrave semelhanccedila das ideacuteias que satildeo objetivaccedilotildees imediatas da
vontade a muacutesica eacute tambeacutem uma destas objetivaccedilotildees representaccedilatildeo imediata da coisa
em si O que o compositor apresenta atraveacutes da muacutesica eacute a essecircncia mais iacutentima do
mundo em uma ldquolinguagem natildeo compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo
magneacutetico fornece informaccedilotildees sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito
algumrdquo (MVR 342) Por estar em um acircmbito inalcanccedilaacutevel pelo conceito a muacutesica
atraveacutes de sua linguagem arrebata o homem de forma mais marcante e direta e ateacute
mesmo a explanaccedilatildeo sobre a muacutesica estaacute condenada agrave pobreza e agrave insuficiecircncia Desta
forma o filoacutesofo se utilizaraacute de uma analogia para explanar sobre a muacutesica ie
procederaacute a uma explicaccedilatildeo da muacutesica atraveacutes de um paralelismo entre ela as ideacuteias e o
mundo enquanto objetivaccedilotildees da vontade
Esta analogia expressa atraveacutes de diversos exemplos leva em consideraccedilatildeo que
em suas duas formas de objetivaccedilatildeo (o mundo e a muacutesica) a Vontade deixa transparecer
semelhanccedilas Na muacutesica os tons mais graves aproximam-se ao que satildeo no mundo os
63
graus mais baixos de objetivaccedilatildeo da vontade quais sejam a natureza inorgacircnica A lei
da harmonia estabelece que os tons agudos satildeo originados daquele tom mais grave
fundamental Da mesma forma no mundo os corpos tecircm como fonte e sustentaacuteculo a
natureza inorgacircnica ldquoagrave partir da qual tudo se eleva e desenvolverdquo(MB 230) As vozes
intermediaacuterias da melodia que estatildeo entre o baixo fundamental e a voz condutora
correspondem no mundo aos demais graus de objetivaccedilatildeo da vontade na natureza ldquoAs
vozes mais proacuteximas do baixo correspondem aos graus mais baixos ou seja os corpos
ainda inorgacircnicos poreacutem jaacute se exteriorizando de diversas maneiras As vozes mais
elevadas por sua vez representam os reinos vegetal e animalrdquo(MB 231)
O objeto de representaccedilatildeo da muacutesica eacute a Vontade e esta por sua vez eacute
intraduziacutevel atraveacutes das palavras da configuraccedilatildeo racional pois a razatildeo natildeo pode
alcanccedilar sua profundidade Trata-se de ldquouma linguagem universal cuja
compreensibilidade eacute inata e cuja clareza ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo
(MB 228) Diante desta caracteriacutestica cognitiva a muacutesica natildeo deve se inspirar no texto
nas palavras a natildeo ser para ilustraacute-las e conceder-lhes assim significaccedilatildeo mais
profunda A muacutesica natildeo deve ser composta com base em conceitos ou em objetos e
ocorrecircncias do mundo pois trata-se de uma expressatildeo da ordem do essencial do
universal ldquoela eacute a alma mais interior dessas ocorrecircncias sem o corpordquo (MB 235) Os
objetos e situaccedilotildees do mundo satildeo manifestaccedilotildees e portanto sua representaccedilatildeo
conceitual satildeo reproduccedilotildees circunstanciais da essecircncia do mundo expressa pela muacutesica
Daiacute se compreende o fato de a muacutesica realccedilar em cada
pintura sim em cada cena da vida efetiva e do mundo o
aparecimento de uma significaccedilatildeo mais elevada e tanto mais
quanto mais anaacuteloga eacute sua melodia ao espiacuterito iacutentimo do
fenocircmeno dado A muacutesica combina com tudo em todas as
exposiccedilotildees Nada lhe pode ser estranho pois exprime a essecircncia
de todas as coisas Caso se soe uma muacutesica que combine com
alguma cena da vida humana ou da natureza destituiacuteda de
conhecimento ou com alguma accedilatildeo acontecimento ambiente ou
64
alguma imagem ndash entatildeo ela revela o sentido secreto dessa cena e eacute
seu comentaacuterio mais correto e claro (MB 235)
Esta caracteriacutestica que daacute agrave muacutesica um privileacutegio cognitivo sobre as demais formas
artiacutesticas eacute o que delineia as consideraccedilotildees do filoacutesofo sobre a oacutepera30
A oacutepera ideal eacute
portanto aquela onde o livreto estaacute para a muacutesica como um exemplo para um conceito
geral A muacutesica tem a funccedilatildeo de expor ldquoo profundo e misterioso sobre a essecircncia
iacutentimardquo daquilo que a palavra exemplifica O compositor que maior ecircxito conseguiu
neste sentido conforme o filoacutesofo foi Rossini cuja ldquomuacutesica fala tatildeo distinta e
puramente a sua linguagem PROacutePRIA visto que quase natildeo precisa de palavras e por
conseguinte provoca todo o seu efeito mesmo se executada soacute com instrumentosrdquo
(MVR 344)
Vemos entatildeo a muacutesica como a mais profunda das artes cujo efeito eacute o mais
avassalador e que portanto quando conjugada com outras formas de expressatildeo como a
oacutepera deve formar a base e orientar a sua elaboraccedilatildeo Entretanto ao contraacuterio da
trageacutedia cujo fim eacute o estiacutemulo agrave renuacutencia da vontade de viver a muacutesica segundo a
metafiacutesica exposta por Schopenhauer ldquonatildeo faz mais do que agradar a vontade de viver
jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo seus ecircxitos e ao final expressa sua
satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509)
30
ldquoAo adotar esta atitude Schopenhauer transtorna toda a tradiccedilatildeo jaacute secular que havia afirmado natildeo
poucas vezes desde os tempos do nascimento da oacutepera o predomiacutenio da palavra sobre a muacutesica e em
consequumlecircncia a subordinaccedilatildeo desta uacuteltima agrave primeirardquo (Fubini 1988 289)
65
3 A teoria da trageacutedia do Jovem Nietzsche
Debalde espreitamos por uma raiz
vigorosamente ramificada por um pedaccedilo
de terra sadia e feacutertil por toda parte poacute
areia rigidez consunccedilatildeo Aqui um
solitaacuterio desconsolado natildeo poderia escolher
melhor siacutembolo do que o Cavaleiro com a
Morte e o Diabo como Duumlrer o desenhou o
cavaleiro arnesado com o olhar duro
brocircnzeo que sabe tomar o seu caminho
assustador imperturbado por seus
hediondos companheiros e natildeo obstante
desesperanccedilado sozinho com o seu corcel e
o seu catildeo Um tal cavaleiro duumlreriano foi
nosso Schopenhauer faltava-lhe qualquer
esperanccedila mas queria a verdade Natildeo haacute
quem se lhe iguale
(Nietzsche)
Neste capiacutetulo procuraremos apontar primeiramente o modo pelo qual se deu o
encontro entre Nietzsche e a filosofia de Schopenhauer Em um segundo momento
percorreremos o desenvolvimento histoacuterico das produccedilotildees nietzscheanas que
culminaram com a publicaccedilatildeo da obra que caracteriza o primeiro periacuteodo do filoacutesofo
qual seja O nascimento da trageacutedia a partir do espiacuterito da muacutesica Concluiremos entatildeo
apresentando um esboccedilo desta obra dando ecircnfase em todos os momentos aos
66
elementos que caracterizam sua teoria da trageacutedia especialmente agravequeles relacionados agrave
metafiacutesica schopenhaueriana da vontade
31 Schopenhauer e o jovem Nietzsche uma breve contextualizaccedilatildeo histoacuterica
Foram nos anos de universidade em Leipzig que Nietzsche se deparou com a
filosofia de Schopenhauer Este periacuteodo entre os anos de 1865 e 1869 eacute especialmente
importante devido ao fato de que nele podemos assistir ao surgimento de alguns
aspectos fundamentais ao projeto filosoacutefico de Nietzsche Janz descreve este periacuteodo
como aquele em que o filoacutesofo estabeleceu ldquoseus encontros espirituais determinantes a
partir dos quais se defrontou consigo mesmo e com sua tarefardquo(1987 151)
O primeiro contato do jovem Nietzsche com o mundo schopenhaueriano deu-se
em meados de outubro de 1865 pouco tempo apoacutes sua chegada a Leipzig O
arrebatamento causado no jovem estudante de filologia pelo encontro com a filosofia
schopenhaueriana eacute descrito por ele apoacutes dois anos da seguinte maneira
Sentia-me naquela eacutepoca desorientado solitaacuterio sem
princiacutepios sem esperanccedilas inconsolado e com algumas
experiecircncias dolorosas e decepccedilotildees Construir uma vida proacutepria e
adequada era para mim uma aspiraccedilatildeo que me ocupava da manhatilde
ateacute a noite No feliz apartamento em que vivia procurava
concentrar-me a mergulhar em mim mesmo e quando me
encontrava com amigos estes eram sempre Mushacke e Von
Gersdorff os quais por sua parte alentavam objetivos muito
semelhantes aos meus Creio que natildeo seraacute difiacutecil imaginar a
impressatildeo que nesta situaccedilatildeo me causou a leitura da obra
principal de Schopenhauer Encontrei um dia este livro no sebo do
velho Rohm Ignorando tudo sobre ele o tomei em minhas matildeos e
me pus a folheaacute-lo Natildeo sei que democircnio me sussurrou bdquoleve este
livro para a casa‟ Aconteceu de compraacute-lo apesar do meu usual
costume de natildeo me precipitar na compra de livros Uma vez em
casa num canto do sofaacute me lancei sobre o tesouro receacutem
adquirido e comecei a deixar que aquele gecircnio eneacutergico e sombrio
influiacutesse sobre mim Em cada linha sua gritava a renuacutencia
negaccedilatildeo resignaccedilatildeo tinha diante de mim um espelho no qual
podia contemplar o mundo a vida e meu proacuteprio acircnimo com uma
67
grandeza deprimente Um espelho desde o qual o olho solar da
arte me mirava desde sua absoluta falta de interesse Vi
enfermidade e cura desterro e refuacutegio inferno e paraiacuteso A
necessidade de autoconhecimento inclusive de auto-
experimentaccedilatildeo apoderou-se de mim com forccedila indomaacutevel
provas daquela mutaccedilatildeo profunda satildeo hoje todavia para mim as
paacuteginas desassossegadas e melancoacutelicas do diaacuterio que agravequela
eacutepoca escrevi com suas auto-acusaccedilotildees inuacuteteis e sua desesperada
busca de salvaccedilatildeo e reconstruccedilatildeo do inteiro nuacutecleo humano Na
medida em que propus a submeter todas as minhas caracteriacutesticas
e aspiraccedilotildees ao tribunal de uma sombria auto-depreciaccedilatildeo minha
atitude estava cheia de amargura possuiacuteda de um oacutedio injusto e
desenfreado contra mim mesmo Nem sequer renunciei agraves
mortificaccedilotildees corporais Obriguei-me com efeito durante
quatorze dias seguidos a deitar-me agraves duas da noite e acordar agraves
seis da manhatilde Uma excitaccedilatildeo nervosa muito singular se apoderou
assim de mim e quem sabe ateacute que grau de loucura haveria
chegado se natildeo tivesse modificado frente agravequele estado de
acircnimo os atrativos da vida da vaidade e o imperativo de retornar
a meus estudos regulares (conforme citaccedilatildeo de Janz 1987 158)
Da citaccedilatildeo podemos inferir a mudanccedila de acircnimo que o encontro com
Schopenhauer provocou A partir daquele momento diversas correspondecircncias datildeo-nos
ainda informaccedilotildees do impacto que a filosofia de Schopenhauer provocou na concepccedilatildeo
de mundo do jovem estudante Em algumas destas correspondecircncias vemos transparecer
a influecircncia atraveacutes da frequumlente utilizaccedilatildeo de um vocabulaacuterio schopenhaueriano bem
como das ideacuteias nelas expressas Assim acontece em carta enviada agrave sua matildee e irmatilde
datada de 5 de novembro de 1865 onde ao discorrer acerca da frivolidade da vida
humana o jovem Nietzsche conclui utilizando-se dos argumentos propostos pela eacutetica
schopenhaueriana
Existem dois caminhos ou se esforccedila e se acostuma a ser
o mais limitado que se possa e uma vez que se reduz o maacuteximo
possiacutevel a luz do espiacuterito se busque bens de fortuna e se viva com
os prazeres do mundo ou por outro lado se sabe que a vida eacute
miseraacutevel se sabe que somos seus escravos tanto mais quanto
mais procuramos dela gozar e por tanto se desprende dos bens da
vida exercita a sobriedade e se eacute austero consigo mesmo e cordial
com os demais ndash e isto porque sente compaixatildeo pelos
companheiros de miseacuteria ndash em uma palavra se vive de acordo
68
com as rigorosas exigecircncias do cristianismo primitivo (OC
470)
Vemos ainda em carta a Mushacke em 12 de julho de 1866 o impacto que a
interpretaccedilatildeo schopenhaueriana pessimista de mundo causou em Nietzsche ldquoDesde que
Schopenhauer nos retirou dos olhos a venda do otimismo as coisas satildeo percebidas
mais agudamente A vida eacute mais interessante ainda que mais feiardquo (conforme citaccedilatildeo
de Janz 1987 172) Percebemos tambeacutem a linguagem schopenhaueriana na descriccedilatildeo
dos momentos de contemplaccedilatildeo Eacute o caso da carta datada de 07 de abril de 1866 a
Gersdorf onde Nietzsche descreve seu estado que nos remeteraacute agrave contemplaccedilatildeo
artiacutestica na filosofia de Schopenhauer ao discorrer sobre os dias de veratildeo ldquo[] a
natureza se faz perfeita e noacutes tambeacutem entatildeo nos sentimos livres do poderio da vontade
sempre alerta e somos olho puro intuitivo desinteressadordquo (OC 472)
Estas influecircncias nortearam de forma definitiva as produccedilotildees acadecircmicas de
Nietzsche mesmos suas pesquisas filoloacutegicas A concepccedilatildeo traacutegica do mundo tornou-se
um feixe condutor para as reflexotildees do jovem filoacutelogo Seus companheiros no estudo da
obra de Schopenhauer eram Gersdorff e Mushacke Em carta agrave sua matildee de 01 de
fevereiro de 1866 Nietzsche deixa saber sobre a frequumlecircncia dos estudos ldquoCom
Gersdorff me encontro uma noite por semana para ler grego a cada duas semanas me
reuacuteno com ele e com Mushacke e nos entregamos a Schopenhauer Este filoacutesofo ocupa
uma posiccedilatildeo importante em meus pensamentos e estudos e meu respeito por ele cresce
incomparavelmenterdquo (OC 471) Se o conteuacutedo da filosofia schopenhaueriana foi
absorvido intensamente pelo jovem Nietzsche como podemos ver a partir dos trechos
transcritos acima a forma estiliacutestica tambeacutem se configura como preocupaccedilatildeo Em um
periacuteodo onde as pesquisas acadecircmicas exigiam o esforccedilo da escrita ali tambeacutem a
autoridade das regras schopenhauerianas exibia sua feiccedilatildeo Eacute tambeacutem em uma carta a
69
Gersdorff datada de 06 de abril de 1867 onde Nietzsche expotildee sua preocupaccedilatildeo com o
estilo
Nestas divagaccedilotildees quero redigir meu trabalho sobre as
fontes de Dioacutegenes Laeacutercio e estou todavia no iniacutecio Para seu
regozijo confessarei que o que mais me daacute trabalho eacute meu estilo
em alematildeo Agora me caem os veacuteus dos olhos e vejo que
durante muito tempo vivi em estado de inocecircncia estiliacutestica O
imperativo categoacuterico bdquodeves escrever‟ me foi despertado[] nos
ouvidos me soavam todos os preceitos estiliacutesticos de Lessing de
Lichtenberg e de Schopenhauer Meu uacutenico consolo eacute que estas
trecircs autoridades afirmavam unanimemente que eacute difiacutecil escrever
bem que por natureza ningueacutem tem um bom estilo e que haacute que
trabalhar e trabalhar para consegui-lo (OC 476)
Entretanto apesar do profundo arrebatamento causado pela filosofia de
Schopenhauer que fez com que o universo das preocupaccedilotildees do entatildeo jovem Nietzsche
se fundamentasse nos pressupostos da metafiacutesica schopenhaueriana outros elementos
tambeacutem fundamentais para o pensamento futuro do filoacutesofo foram tambeacutem neste
periacuteodo despertados Como apontam Dias (2009 42) Janaway (2007 16) e Lopes
(2008 27) jaacute neste periacuteodo que podemos tratar como um periacuteodo de despertar para o
pensamento filosoacutefico encontraacutevamos os elementos que a partir de Humano demasiado
humano conformaratildeo a criacutetica nietzscheana agrave filosofia de Schopenhauer Os
comentadores citados chamam a atenccedilatildeo para o fato de que embora nas obras
publicadas de Nietzsche possamos assistir a criacuteticas diretas a Schopenhauer somente
apoacutes Humano demasiado humano tais criacuteticas agrave filosofia schopenhaueriana surgiram
em um momento imediatamente posterior agrave descoberta da metafiacutesica da vontade Rosa
Maria Dias chama a atenccedilatildeo para os fragmentos poacutestumos e para a correspondecircncia que
agrave partir de 1867 trazem algumas criacuteticas agrave metafiacutesica da vontade Rogeacuterio Lopes e
Cristopher Janaway apontam que algumas destas criacuteticas estatildeo embasadas nas leituras
que o jovem Nietzsche fez de Friedrich A Lange Rudolf Haym Kuno Fischer dentre
outros Tais criacuteticas contudo natildeo afastaram o jovem Nietzsche do discipulado
70
schopenhaueriano mas transformaram sua aceitaccedilatildeo do sistema da vontade No lugar de
uma defesa da consistecircncia loacutegica do sistema Nietzsche passou a adotar uma postura de
defesa da bdquonatureza edificante‟ e preponderantemente artiacutestica deste sistema Exemplos
desta postura podem ser encontrados tambeacutem na correspondecircncia daquele periacuteodo
Para escrever uma apologia a Schopenhauer eu tenho
unicamente que considerar o fato de que olho esta vida livre e
bravamente diante do fato de que encontrei um suporte para me
apoiar obviamente que isto natildeo eacute mais que uma apologia
totalmente individual Mas eacute como as coisas satildeo Se algueacutem
deseja refutar Schopenhauer para mim atraveacutes de argumentos
racionais murmuro em seu ouvido bdquoporeacutem meu amigo visotildees de
mundo natildeo satildeo criadas nem destruiacutedas pela loacutegica‟ (carta a
Deussen Outubro-Novembro de 1867 citada por Janaway
(200718))
Ou ainda em carta a Gersdorff onde apoacutes apresentar a criacutetica de Lange agrave metafiacutesica da
vontade Nietzsche conclui contra Haym ainda com os argumentos de Lange
Natildeo apenas a verdadeira essecircncia das coisas a coisa em si
eacute desconhecida para noacutes tambeacutem seu conceito eacute nada mais nada
menos que o uacuteltimo rebento de um contraste condicionado por
nossa organizaccedilatildeo do qual natildeo sabemos se conserva algum
significado fora de nossa experiecircncia Disso resulta pensa Lange
que os filoacutesofos natildeo devem ser importunados na medida em que
nos edificam A arte eacute livre tambeacutem na regiatildeo dos conceitos
Quem pretenderia refutar uma frase de Beethoven e acusar de erro
uma Madonna de Rafael Como vocecirc pode perceber o nosso
Schopenhauer resiste mesmo a este mais rigoroso ponto de vista
criacutetico ele se torna quase ainda mais valioso para noacutes Se filosofia
eacute arte entatildeo que Haym se anule diante de Schopenhauer se a
filosofia deve edificar entatildeo eu pelo menos natildeo conheccedilo nenhum
filoacutesofo que edifique mais do que nosso Schopenhauer (apud
Lopes 2008 86-87)
Vimos ateacute entatildeo que a descoberta de Schopenhauer provocou no jovem
estudante de filologia transformou sua forma de perceber o mundo e o influenciou de
forma definitiva a ponto de fazer com que Nietzsche se definisse como um seguidor e
divulgador da obra schopenhaueriana Contudo eacute no fim de seus anos de estudo em
Leipzig que o disciacutepulo de Schopenhauer iraacute se defrontar com a personalidade que lhe
71
reforccedilaraacute de forma ainda mais contundente o selo da rotunda schopenhaueriana
Richard Wagner
Foi atraveacutes de seu amigo Brockhaus cuja esposa era irmatilde do muacutesico que em
novembro de 1868 Nietzsche encontrou-se pela primeira vez com Wagner A partir
daquele encontro se estabeleceria um relacionamento que de uma forma ou de outra
marcaraacute Nietzsche pelo resto de sua vida Em uma carta a seu amigo Erwin Rohde
Nietzsche descreve o primeiro encontro e sua perplexidade ao encontrar em Wagner um
admirador de Schopenhauer ldquo[]mantive com ele uma longa conversa sobre
Schopenhauer Ah Compreenderaacutes minha felicidade em ouvir-lhe falar com um
entusiasmo completamente indescritiacutevel ao qual ele agradecia como Schopenhauer
era o uacutenico filoacutesofo que havia compreendido a essecircncia da muacutesicardquo (Correspondecircncia
2007 21) A impressatildeo deste encontro eacute tambeacutem claramente visiacutevel atraveacutes de
correspondecircncia endereccedilada ao proacuteprio Wagner em maio de 1869 ldquoVeneradiacutessimo
senhor quanto tempo tive a intenccedilatildeo de lhe manifestar sem nenhuma timidez o grau de
gratidatildeo que sinto em relaccedilatildeo ao senhor pois realmente os melhores e mais elevados
momentos de minha vida se ligam ao seu nome e eu soacute conheccedilo mais um homem aleacutem
disso seu grande irmatildeo em espiacuterito Arthur Schopenhauer em quem penso com a
mesma veneraccedilatildeo ateacute senso religiosordquo (Correspondecircncia 2007 56) Como podemos
ver a pessoa de Wagner eacute associada agrave de Schopenhauer Esta associaccedilatildeo tornar-se-aacute
uma constante e poderaacute ser identificada ainda na fase tardia onde as criacuteticas a estes
pensadores e ao que eles entatildeo representavam se daraacute de forma inter-relacionada Este
primeiro encontro com Wagner conforme Janz (1987 22) foi um dos principais
motivos que levaram Nietzsche a aceitar em detrimento de outros planos que
formulava assumir a caacutetedra de filologia em Basel A proximidade de Tribschen
residecircncia dos Wagner e a possibilidade de uma convivecircncia com o muacutesico o
72
inspiraram E assim aconteceu Ao mudar-se para Basel pocircde desfrutar de uma
convivecircncia constante com o casal Wagner Desde a chegada de Nietzsche ateacute a
mudanccedila de Wagner em 1872 encontravam-se com muita frequumlecircncia e os assuntos que
pautavam tais encontros eram amiuacutede arte muacutesica a literatura claacutessica e a filosofia de
Schopenhauer Wagner tornar-se-ia para Nietzsche a personificaccedilatildeo do gecircnio
schopenhaueriano aquele capaz de atraveacutes da muacutesica expor a essecircncia do mundo No
projeto wagneriano de ldquoarte totalrdquo Nietzsche pocircde vislumbrar a uniatildeo entre muacutesica e
filosofia e satisfazer assim em certa medida as expectativas oriundas da metafiacutesica da
vontade
32 O projeto subjacente ao Nascimento da Trageacutedia
Eacute famosa a passagem onde Nietzsche em carta a Deussen datada de janeiro de
1870 informa sobre seu estado de espiacuterito ldquo Ciecircncia arte e filosofia crescem agora
juntas em mim e de tal modo que um dia haverei de parir centaurosrdquo (Janz 1981 66)
Esta afirmaccedilatildeo eacute ilustrativa no que se refere ao ambiente onde o Nascimento da trageacutedia
foi gerado Podemos identificar claramente as figuras por detraacutes dos termos filosofia
arte e ciecircncia satildeo elas Schopenhauer Wagner e a filologia claacutessica Neste periacuteodo
Nietzsche entatildeo jovem professor de filologia estava imbuiacutedo pela pretensatildeo de poder
unir os estudos filoloacutegicos aos filosoacuteficos Sua preleccedilatildeo inicial Homero e a filologia
claacutessica em Basel nos daacute uma amostra desta pretensatildeo Ali podemos assistir a uma
aproximaccedilatildeo entre filologia e filosofia atraveacutes da proposta de uma leitura filosoacutefica do
mundo antigo ldquoCom isto quero expressar que toda atividade filoloacutegica deve estar
impregnada de uma concepccedilatildeo filosoacutefica do mundo na qual todo o particular e singular
seja visto como algo sem proveito e soacute permaneccedila de peacute a unidade do todordquo (OC 26)
73
Sua escolha por trilhar caminhos mais proacuteximos agrave filosofia pode tambeacutem ser observada
pela tentativa frustrada de ocupar uma cadeira desta disciplina que se mostrou livre em
janeiro de 1871 Se por um lado podemos diagnosticar certa decepccedilatildeo e ateacute um
determinado desacircnimo na atividade acadecircmica por outro lado os laccedilos com os Wagner
se estreitavam cada vez mais No refuacutegio de Tribschen sob a aura de Richard Wagner
Nietzsche discorria sobre o mundo grego enquanto modelo de cultura e ouvia os planos
wagnerianos sobre seu projeto de uma obra de arte total Como pano de fundo destas
discussotildees a metafiacutesica da muacutesica schopenhaueriana e sua concepccedilatildeo traacutegica do mundo
Eacute em torno destes eixos formadores que vemos se materializar a primeira publicaccedilatildeo de
Nietzsche
O desenvolvimento das ideacuteias que formaratildeo a obra contudo se deu de forma
gradual Ao longo do periacuteodo compreendido entre a chegada de Nietzsche a Basel e a
publicaccedilatildeo de seu livro determinados trabalhos deixam transparecer o delineamento de
algumas das ideacuteias centrais da obra Satildeo eles O drama musical grego Soacutecrates e a
trageacutedia A visatildeo dionisiacuteaca do mundo e Introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles31
Em o drama musical grego conferecircncia puacuteblica datada de janeiro de 1870
Nietzsche efetua uma comparaccedilatildeo entre a arte traacutegica da antiguidade e as oacuteperas
modernas Estas de acordo com o filoacutesofo satildeo uma imperfeita ldquocaricatura do drama
musical antigordquo (VD 48) Muacutesica pintura escultura e poesia formavam um todo na
arte traacutegica da antiguidade Nas artes modernas por sua vez as formas artiacutesticas satildeo
fragmentadas fato que dificulta o entendimento da trageacutedia grega e que causaria
espanto ao apreciador de arte moderno A muacutesica teria para a trageacutedia antiga uma
31
Como ressaltam M S Silk e J P Stern em sua obra Nietzsche on tragedy (1981 59) o nascimento da
trageacutedia eacute composto de forma estrutural pelos conceitos encontrados nestes trabalhos O iniacutecio do livro
(sectsect1-10) eacute substancialmente baseado no ensaio a visatildeo dionisiacuteaca do mundo enquanto a sequumlecircncia
composta pelos paraacutegrafos 5 e 6 estaacute mais proacutexima da introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles O trecho
composto pelos paraacutegrafos 11 a 14 pode ser derivado diretamente da leitura Soacutecrates e a trageacutedia O resto
do livro eacute formado por uma amaacutelgama destes escritos Partes dispersas ainda satildeo formadas pelo ensaio do
drama musical grego
74
importacircncia capital como elemento intensificador de seu efeito Podemos ver a intenccedilatildeo
por traacutes da anaacutelise nietzscheana da trageacutedia antiga em comparaccedilatildeo agrave opera Ao final da
conferecircncia no elogio que confere a Wagner o tiacutetulo de ldquoatual reformador da arterdquo bem
como na descriccedilatildeo de seu projeto de arte total retratado como um acontecimento que jaacute
teve lugar na trageacutedia da antiguidade claacutessica Nietzsche deixa claro seu engajamento ao
projeto wagneriano
No mecircs seguinte ao da citada conferecircncia uma segunda intitulada Soacutecrates e a
trageacutedia foi proferida por Nietzsche O assunto em pauta era a morte repentina da
trageacutedia grega Esta morte teria ocorrido pelas matildeos de Euriacutepides apoacutes uma decadecircncia
iniciada nos uacuteltimos periacuteodos das produccedilotildees de Eacutesquilo passando por Soacutefocles e
culminando com o advento da comeacutedia Tal decadecircncia teria sido provocada pela saiacuteda
de cena da muacutesica que de forma progressiva foi substituiacuteda pelo diaacutelogo racionalista
Soacutecrates ocupa aqui um lugar importante Eacute sua influecircncia sobre Euriacutepides que
transforma de uma forma definitiva a arte instintivamente musical da trageacutedia em uma
manifestaccedilatildeo do discurso eacutetico racionalista Esta ldquoesteacutetica racionalista e conscienterdquo
pode ser identificada no proacutelogo euripidiano e na inserccedilatildeo do deus ex machina
enquanto agentes de racionalizaccedilatildeo da obra artiacutestica A trageacutedia de Euriacutepides teria
assumido assim os pressupostos do racionalismo socraacuteticos ldquoVirtude eacute saber peca-se
somente por ignoracircncia O virtuoso eacute felizrdquo (VD 90) Esta assunccedilatildeo que liga a virtude
ao saber impotildee agrave trageacutedia um caraacuteter eacutetico alheio agrave sua caracteriacutestica puramente
esteacutetica O elemento culpa na dialeacutetica socraacutetica toma o lugar que era ocupado pela
compaixatildeo Jaacute podemos perceber nesta conferecircncia o esboccedilo da dicotomia que mais
tarde seraacute ilustrada atraveacutes dos deuses Apolo e Dioniso Os pares formadores da
dicotomia satildeo aqui expressos pela separaccedilatildeo entre instinto e razatildeo muacutesica e discurso
pessimismo e otimismo arte e ciecircncia
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Temos a primeira referecircncia agrave arte dionisiacuteaca como impulso formador da
trageacutedia e sua contraposiccedilatildeo agrave arte apoliacutenea nas aulas proferidas por Nietzsche no veratildeo
daquele mesmo ano Neste curso sobre a trageacutedia de Soacutefocles do qual temos a
introduccedilatildeo podemos ver o esforccedilo de Nietzsche em caracterizar e apontar as
peculiaridades da trageacutedia da antiguidade que a tornam um fenocircmeno uacutenico em
comparaccedilatildeo agraves trageacutedias modernas Tal discussatildeo demonstraraacute pelos aspectos ali
expostos a aproximaccedilatildeo de Nietzsche com autores do periacuteodo claacutessico alematildeo e
sobretudo da chamada querela entre antigos e modernos Vemos claramente a influecircncia
de Schiller e F A Schlegel em algumas das definiccedilotildees adotadas por Nietzsche
No texto denominado A visatildeo dionisiacuteaca do mundo jaacute podemos assistir a um
desenvolvimento das duas pulsotildees artiacutesticas que satildeo o nuacutecleo da interpretaccedilatildeo
nietzscheana da trageacutedia O apoliacuteneo e o dionisiacuteaco satildeo ali explicados no acircmbito de seu
surgimento no mundo helecircnico e simbolizam a uniatildeo entre verdade e beleza na forma de
arte traacutegica Sua descriccedilatildeo como veremos abaixo estaacute permeada de conceitos retirados
da filosofia schopenhaueriana que vatildeo desde a biparticcedilatildeo do mundo entre verdade e
aparecircncia perpassam as noccedilotildees de belo e sublime e apontam a trageacutedia e a muacutesica como
forma de arte superiores
Em janeiro de 1872 Nietzsche daacute luz a seu ldquoCentaurordquo sob o nome O nascimento
da trageacutedia atraveacutes do espiacuterito da muacutesica Em carta a Rohde datada de 23 de novembro
de 1871 podemos notar atraveacutes da ansiosa expectativa nietzscheana a amaacutelgama
formadora da obra ldquo Temo sempre que os filoacutelogos natildeo o queiram ler por causa da
muacutesica os muacutesicos por causa da filologia e os filoacutesofos por causa da muacutesica e da
filologia e sinto logo medo e compaixatildeo de mim mesmordquo (Correspondecircncia 2007 237)
33 A teoria da trageacutedia publicada
Como escopo geral da primeira obra de Nietzsche podemos dizer na esteira de
Silk e de Stern (1981 52) que ela se propunha a esclarecer o problema do nascimento e
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da morte da trageacutedia helecircnica Trageacutedia que por sua vez era a expressatildeo artiacutestica que
simbolizava um problema vital o de que sob uma superfiacutecie bela podiacuteamos ter acesso agrave
terriacutevel profundidade do ser Tal forma de arte poderia novamente vir agrave luz por uma
geraccedilatildeo criativa que ao combater a superficialidade moderna que reinava no mundo
germacircnico poderia produzir o renascimento moderno do mundo Helecircnico
Em sua essecircncia o nascimento da trageacutedia aponta para as divindades Apolo e
Dioniacutesio como ldquorepresentantes vivosrdquo de princiacutepios diacutespares que irrompem da proacutepria
natureza e que ao serem conciliados de certa forma tornaram possiacutevel que atraveacutes dos
atritos de tal uniatildeo a trageacutedia grega despontasse como manifestaccedilatildeo artiacutestica exemplar
do sublime Em linhas gerais a arte do ldquofigurador plaacutesticordquo estaria entatildeo associada ao
deus Apolo enquanto a arte ldquonatildeo figuradardquo a da muacutesica estaria associada ao deus
Dioniacutesio O apoliacuteneo eacute um impulso da vontade grega que ao almejar a vida a apresenta
transfiguradamente como um belo sonho plasmado no mundo dos deuses oliacutempicos O
princiacutepio apoliacuteneo seria aquele que estabeleceria a ordem a beleza estaacutetica e a clareza
dos limites O dionisiacuteaco eacute oriundo das festas do oriente e seu efeito eacute comparado ao da
embriaguecircs A ele cabe a sabedoria profunda da essecircncia da vida lugar do acaso do
impermanente do horriacutevel e do sofrimento A Apolo eacute facultado tecer o veacuteu que
encobre a sabedoria dionisiacuteaca e torna a vida suportaacutevel atraveacutes da ilusatildeo do sonho
Assim segundo Nietzsche o desenvolvimento contiacutenuo da arte estaacute vinculado agrave
duplicidade dos princiacutepios apoliacuteneo e dionisiacuteaco Perfazendo um caminho histoacuterico da
cultura grega podemos notar uma sobreposiccedilatildeo intermitente entre os impulsos divinos
Temos momentos onde o impulso apoliacuteneo se mostrou dominante e outros onde
Dioniacutesio recupera seu predomiacutenio O mundo oliacutempico homeacuterico com sua arte eacutepica e
sua escultura do periacuteodo doacuterico nascem a partir de uma necessidade de redenccedilatildeo para a
realidade de horror e sofrimento que o povo helecircnico presenciava Em substituiccedilatildeo ao
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mundo titacircnico temos o mundo dos deuses oliacutempicos exemplificadores de uma
existecircncia divinizada que exalta a vida Nas palavras de Nietzsche ldquoo grego conheceu
e sentiu os temores e os horrores do existir para que lhe fosse possiacutevel de algum modo
viver teve de colocar ali entre ele e a vida a resplendente criaccedilatildeo oniacuterica dos deuses
oliacutempicosrdquo (NT 36) Entretanto a sabedoria dionisiacuteaca portadora da visatildeo abismal do
ser natildeo pocircde ser contida por muito tempo e a muacutesica veiacuteculo da uniatildeo orgiaacutestica aos
poucos foi se infiltrando no mundo construiacutedo pelo divino Apolo Os gregos foram se
tornando conscientes de seu estado sonambuacutelico que sob a graccedila do deus Apolo enleva
e transporta pela extraordinaacuteria beleza natural ou esteacutetica Em um estado semelhante ao
do indiviacuteduo que restabelecido em suas forccedilas pelo efeito renovador do sono ao findar
de uma noite comeccedila a ouvir os sons a sua volta e aos poucos vai se despertando da
mesma forma os gregos comeccedilaram novamente a ouvir o sussurro do Sileno
companheiro de Dioniacutesio ldquoo melhor de tudo eacute para ti inteiramente inatingiacutevel natildeo ter
nascido e natildeo ser nada ser Depois disso poreacutem o melhor para ti eacute logo morrerrdquo
(NT 36) O artista que representa este retorno do dionisiacuteaco com a mesma envergadura
com que Homero representa as forccedilas apoliacuteneas eacute Arquiacuteloco Tomando-o como modelo
do gecircnio liacuterico Nietzsche faz uma descriccedilatildeo de seu processo de criaccedilatildeo Conforme a
metafiacutesica esteacutetica adotada por Nietzsche - que mais agrave frente veremos ser retirada da
esteacutetica schopenhaueriana - toda arte tem que ser objetiva livre dos interesses
individuais Nesta situaccedilatildeo a liacuterica que tem como objeto o eu do poeta seus desejos e
emoccedilotildees natildeo seria uma forma de arte Entretanto atraveacutes de uma descriccedilatildeo que Schiller
faz da inspiraccedilatildeo poeacutetica Nietzsche aponta o caminho para percebermos a liacuterica como
obra de arte e portanto objetivamente Conforme a passagem de Schiller citada por
Nietzsche (NT 44) ldquoo sentimento se me apresenta no comeccedilo sem um objeto claro e
determinado este soacute se forma mais tarde Uma certa disposiccedilatildeo musical de espiacuterito
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vem primeiro e somente depois eacute que se segue em mim a ideacuteia poeacuteticardquo Desta forma
Arquiacuteloco em seu processo criativo a princiacutepio entraria em um estado de consciecircncia
ou de criaccedilatildeo onde renunciaria agrave sua individualidade e dionisiacamente participaria do
uno-primordial ldquoabismo do serrdquo estado que por sua vez materializa-se atraveacutes da
representaccedilatildeo musical A muacutesica assim produzida seraacute condiccedilatildeo para o surgimento da
inspiraccedilatildeo que a posteriori daraacute nascimento atraveacutes da aplicaccedilatildeo das formas
apoliacuteneas agrave poesia liacuterica geacutermen da trageacutedia e dos ditirambos dramaacuteticos Esta uniatildeo da
poesia liacuterica com a muacutesica eacute uma expressatildeo sinteacutetica da relaccedilatildeo dos deuses Apolo e
Dioniacutesio Eacute no quinto capiacutetulo de sua obra que Nietzsche iraacute tratar da poesia liacuterica
Neste capiacutetulo o filoacutesofo se distancia de Schopenhauer em sua interpretaccedilatildeo do
fenocircmeno liacuterico Para Schopenhauer na citaccedilatildeo reproduzida por Nietzsche (NT 46) a
liacuterica eacute produzida atraveacutes de uma percepccedilatildeo da consciecircncia onde os estados da vontade
individualizada se alternam com o conhecimento objetivo Como vimos o poeta liacuterico
assistiria ao jogo do eu em sua afetaccedilatildeo emocional e descreveria este estado atraveacutes de
sua poesia Nietzsche ao descrever a liacuterica utiliza-se da teoria da muacutesica
schopenhaueriana qual seja o poeta liacuterico produz primeiramente a muacutesica como forma
geral de expressatildeo da vontade mesma e desta produccedilatildeo gera posteriormente o texto que
se torna um exemplificador do evento musical sua forma plaacutestica objetiva A muacutesica eacute
a aparecircncia da vontade e as imagens apoliacuteneas que dela se originaram satildeo conforme seu
espiacuterito A imagem e o conceito satildeo desta forma na liacuterica originados a partir da
muacutesica
Tem-se portanto na trageacutedia grega uma relaccedilatildeo de interdependecircncia que evoca
um aparente paradoxo ndash ou seja ao lado da necessidade esteacutetica da beleza Apolo exige
dos seus a medida (limites fronteiras do indiviacuteduo presentes no ldquonada em demasiardquo) e
o auto-conhecimento necessaacuterio para determinaacute-la (ldquoconhece-te a ti mesmordquo) o
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desmedido os excessos o dionisiacuteaco seriam identificados pelo apoliacuteneo como
democircnios de uma era preacute-apoliacutenea era dos Titatildes reminiscecircncias de barbarismo O
paradoxo estaacute em que para que o comedimento apoliacuteneo possa existir o desmedido
dionisiacuteaco faz-se necessaacuterio (na linguagem de Nietzsche como ldquosubstratordquo) assim
como para que o desmedido dionisiacuteaco possa existir faz-se necessaacuterio a existecircncia do
comedido do apoliacuteneo Natildeo obstante a trageacutedia grega depende da conjugaccedilatildeo destes
dois princiacutepios para existir ndash indo aleacutem poder-se-ia dizer que a proacutepria muacutesica compotildee
o princiacutepio primeiro que possibilita o surgimento da trageacutedia no jogo das formas
apoliacuteneo A trageacutedia eacute entatildeo definida como ldquoo coro dionisiacuteaco a descarregar-se sempre
de novo em um mundo de imagens apoliacuteneordquo (NT 60)
Em seu iniacutecio a trageacutedia grega era representada pelo coro traacutegico Este coro natildeo
era uma ldquorepresentaccedilatildeo constitucional do povordquo muito menos um espectador ideal
como o queria August Schlegel Nietzsche acompanha Schiller na definiccedilatildeo de que o
coro cria um terreno ideal para a manifestaccedilatildeo da arte O efeito da trageacutedia eacute a
manifestaccedilatildeo de um estado de unidade que transporta ao abismo do ser O coro eacute a
manifestaccedilatildeo deste sentimento da consciecircncia de que por traacutes da vida cotidiana haacute uma
realidade ldquoindestrutivelmente poderosa e cheia de alegriardquo (NT 55) Este eacute o consolo
metafiacutesico propiciado pela arte traacutegica Ao retornarmos deste estado o cotidiano nos
causa asco nojo Natildeo eacute possiacutevel interpretar mais o papel da vida comum A vida soacute
passa a se justificar atraveacutes da arte Perceba-se aiacute que o coro possui um papel
fundamental no processo O coro atua como impulso artiacutestico dionisiacuteaco em
contraposiccedilatildeo agrave forma apoliacutenea ou seja agraves imagens e agrave beleza plaacutestica Assim o
indiviacuteduo atraveacutes do coro tem para si revelado aquele substrato dionisiacuteaco encoberto
pela beleza e comedimento apoliacuteneos isto eacute ao indiviacuteduo era possiacutevel submergir na
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torrente dionisiacuteaca do auto-esquecimento permitindo-se pocircr de lado os preceitos
apoliacuteneos
E foi assim que em toda parte onde o dionisiacuteaco penetrou o apoliacuteneo
foi suspenso e aniquilado Mas eacute igualmente certo que laacute onde o primeiro
assalto foi suportado o prestiacutegio e a majestade do deus deacutelfico se externaram de
maneira mais riacutegida e ameaccediladora do que nunca(NT 41-42)
De acordo com Nietzsche as trageacutedias eram em seu iniacutecio representaccedilotildees do
sofrimento de Dioniacutesio Mesmo as trageacutedias do periacuteodo aacutetico traziam Dioniacutesio como
heroacutei traacutegico O sofrimento representado era o do despedaccedilamento de Dioniacutesio o deus
que sofreu o padecimento da individuaccedilatildeo causa de todo o sofrer O mito de Dioniacutesio eacute
interpretado aqui sob a luz da filosofia de Schopenhauer que apresenta a individuaccedilatildeo
como fonte do sofrimento ldquoNos pontos de vista aduzidos temos jaacute todas as partes
componentes de uma profunda e pessimista consideraccedilatildeo do mundo e ao mesmo tempo
a doutrina misteriosoacutefica da trageacutedia o conhecimento baacutesico da unidade de tudo o que
existe a consideraccedilatildeo da individuaccedilatildeo como a causa primeira do mal a arte como a
esperanccedila jubilosa de que possa ser rompido o feiticcedilo da individuaccedilatildeo como
pressentimento de uma unidade restabelecidardquo (NT 70)
Contudo ressalta Nietzsche a trageacutedia grega que como vimos desenvolve-se a
partir do embate contiacutenuo entre as representaccedilotildees dos deuses antiacutepodas ndash envolvidos em
um enfrentamento aparentemente sem fim ndash eacute reestruturada por Euriacutepides de forma a
diminuir o impacto do coro ou seja um golpe quase mortal para Dioniacutesio que
agonizante lanccedila matildeo de seus uacuteltimos esforccedilos O que em Euriacutepedes suscitou esta
reestruturaccedilatildeo que conforme Nietzsche eacute responsaacutevel pelo afastamento progressivo do
dionisiacuteaco tem suas origens no que o filoacutesofo chamou de uma ldquotendecircncia socraacuteticardquo O
socratismo euripidiano e a sua nova concepccedilatildeo esteacutetica satildeo as causadoras do
afastamento dos impulsos esteacuteticos primevos o dionisiacuteaco e o apoliacuteneo Em seu lugar o
discurso consciente passa a imperar O deus ex machina e os proacutelogos satildeo exemplos das
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interferecircncias racionais que datildeo novo tom agrave trageacutedia aacutetica Soacutecrates e seu racionalismo
expulsam da trageacutedia o conhecimento primevo dionisiacuteaco e estabelecem novas regras
esteacuteticas regras racionais que fazem com que o bom sinocircnimo do belo seja aquilo
alcanccedilado conscientemente
Se a trageacutedia grega foi para Nietzsche a manifestaccedilatildeo mais sublime de uma
forma artiacutestica isto se daacute em decorrecircncia do efeito por ela provocado qual seja o de
justificar o mundo enquanto fenocircmeno esteacutetico Foi exatamente o decliacutenio deste efeito
constatado pela produccedilatildeo racionalizada de Euriacutepides o responsaacutevel pela morte da
trageacutedia Ao fortalecer em demasia os princiacutepios racionais da forma Euriacutepides suprimiu
o dionisiacuteaco por meio da flacircmula que nas palavras de Nietzsche o tragedioacutegrafo
ldquolevava agrave testardquo ndash a saber uma espeacutecie de socratismo esteacutetico cujos princiacutepios se davam
a partir da remissatildeo do belo ao inteligiacutevel e deste ao virtuoso Identifica-se portanto a
racionalidade otimista socraacutetica como grande responsaacutevel pela supressatildeo do impulso
dionisiacuteaco Nietzsche alude agrave proximidade de convivecircncia entre Soacutecrates e Euriacutepides
para justificar a presenccedila do racionalismo nas obras Euripidianas Soacutecrates frequumlentava
o teatro somente para assistir agraves apresentaccedilotildees de Euriacutepides De todos os atenienses
Soacutecrates era apontado como o mais saacutebio e Euriacutepides como o segundo em sabedoria
Entretanto na contraposiccedilatildeo proposta por Nietzsche entre conhecimento instintivo e
racional Soacutecrates era descomunalmente racional ao contraacuterio do intuitivismo criativo
que reinava ateacute entatildeo Era questionando aos atenienses sobre seus atos que Soacutecrates
percebia que eles natildeo agiam conscientemente mas por intuiccedilatildeo A crenccedila socraacutetica de
que toda accedilatildeo boa deve ser consciente dominou o teatro atraveacutes de Euriacutepides Uma
chave para o entendimento da racionalidade socraacutetica segundo Nietzsche nos eacute
revelada pela ldquomonstruosa inversatildeordquo representada pela consciecircncia criacutetica de Soacutecrates ndash
ou seja a nota destoante em Soacutecrates revela-se pelo instinto criacutetico em contraposiccedilatildeo agrave
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consciecircncia criacutetica a consciecircncia criadora em contraposiccedilatildeo ao instinto como forccedila
criadora Intui-se assim o motivo pelo qual Soacutecrates natildeo compreendia a trageacutedia grega
- o dionisiacuteaco a tornava ininteligiacutevel para as exigecircncias racionalistas e criacuteticas da
ldquodialeacutetica otimistardquo socraacutetica ldquoA Soacutecrates [] parecia que a arte traacutegica nunca bdquodiz a
verdade‟ sem considerar o fato de que se dirigia agravequele que bdquonatildeo tem muito
entendimento‟ portanto natildeo aos filoacutesofos daiacute um duplo motivo para manter-se dela
afastadordquo(NT 87) Nietzsche compara Soacutecrates ao heroacutei euripidiano que
diferentemente (ateacute mesmo antagonicamente) agrave trageacutedia de Eacutesquilo e Soacutefocles ldquoprecisa
defender suas accedilotildees por meio da razatildeo e contra a razatildeordquo O que estaacute em jogo no
socratismo eacute a substituiccedilatildeo das verdades expressas miticamente religiosamente pelas
verdades loacutegicas A razatildeo tenta abarcar o todo e para isso desconsidera a arte e seus
impulsos A excelecircncia estaacute no saber e atraveacutes deste alcanccedila-se a felicidade erro do
otimismo racionalista Ilusatildeo da razatildeo que se acha soberana e independente A loacutegica
torna-se essecircncia da trageacutedia procura-se por relaccedilotildees causais e pelo bom telos O
diaacutelogo formata sua estrutura e expulsa seu fundamento musical O ldquoheroacutei dialeacuteticordquo eacute
portanto impulsionado pelo elemento otimista da dialeacutetica A justiccedila transcendental
presente nas obras Esquilianas ldquoeacute rebaixada ao niacutevel do raso e insolente princiacutepio da
bdquojusticcedila poeacutetica‟ com seu habitual deus ex machinardquo (NT 89) A racionalidade de
Soacutecrates atraveacutes de sua investigaccedilatildeo cientiacutefica da natureza de seu processo de
construccedilatildeo loacutegica da realidade daraacute origem ao que Nietzsche denominaraacute de ldquohomem
teoacutericordquo ou ldquohomem cientiacuteficordquo a quem a razatildeo ergue-se acima da proacutepria realidade ao
ponto mesmo de ndash e aiacute reside o proacuteprio otimismo ndash propor-se a tarefa de corrigir as
falhas da proacutepria realidade Mais ainda a razatildeo socraacutetica acena ao homem com a
promessa de conferir sentido agrave existecircncia pelo conhecimento e desta forma busca
justificar tal existecircncia
83
Em face ao pessimismo praacutetico eacute Soacutecrates o protoacutetipo do
otimista teoacuterico que na jaacute assinalada feacute na escrutabilidade da
natureza das coisas atribui ao saber e ao conhecimento a forccedila de
uma medicina universal e percebe no erro o mal em si mesmo
(NT 94)
Natildeo obstante o otimismo no conhecimento na racionalidade socraacutetica encontra seu
maior dragatildeo em sua proacutepria loacutegica interna Assim nas palavras de Nietzsche
[] a periferia do ciacuterculo da ciecircncia possui infinitos pontos
e enquanto natildeo for possiacutevel prever de maneira nenhuma como se
poderaacute alguma vez medir completamente o ciacuterculo o homem
nobre e dotado ainda antes de chegar ao meio de sua existecircncia
tropeccedila e de modo inevitaacutevel em tais pontos fronteiriccedilos da
periferia onde fixa o olhar no inesclareciacutevel Quando divisa aiacute
para seu susto como nesses limites a loacutegica passa a girar em
redor de si mesma e acaba por morder a proacutepria cauda ndash entatildeo
irrompe a nova forma de conhecimento o conhecimento traacutegico
que mesmo para ser apenas suportado precisa da arte como meio
de proteccedilatildeo e remeacutedio (NT 95)
Afigura-se-nos aqui o problema apontado por Nietzsche como o ldquoproblema da
ciecircncia mesmardquo a saber um problema que nos envolve a todos por abarcar (ou
contaminar) toda a cultura ocidental - isto eacute ainda mantemos o dionisiacuteaco agrave baila
ocupando diminuta posiccedilatildeo em detrimento ao culto acerbado ao racionalismo socraacutetico
A cultura socraacutetica impotildee-se pelo homem-teoacuterico e qualquer outra existecircncia que fuja
aos olhos perscrutadores de Soacutecrates deve ldquolutar penosamente para pocircr-se agrave sua altura
como existecircncia permitida e natildeo como existecircncia propostardquo
Nietzsche nos atenta para o fato de reconhecermos comumente no homem culto
erudito o homem douto saacutebio ndash consecutivamente o dionisiacuteaco a arte eacute colocada de
forma perifeacuterica de modo a nunca poder encontrar espaccedilo para superar sua condiccedilatildeo de
ldquoremeacutedio-arterdquo A vontade aacutevida faz seu caminho mesmo atraveacutes da completa falta de
respostas de fundamentos de sentido assim eacute preferiacutevel ao ser humano querer o nada
no sentido de ainda sim querer alguma coisa do que nada querer do que reconhecer a
84
falta de fundamentos da qual consistem em todos os tempos as ilusotildees que
costumeiramente adota-se como engodo ao absoluto sem-sentido da vida
Por fim Nietzsche atenta-nos para o fato de como o homem de seu tempo vem
perdendo a crenccedila na ciecircncia otimista socraacutetica isto eacute pressentindo que a cultura
racionalista socraacutetica torna-se iloacutegica ao vislumbraacute-la em seus horizontes afastando-se
de suas consequumlecircncias Nietzsche diagnostica na oacutepera de seu periacuteodo a subordinaccedilatildeo da
muacutesica agrave arte figurada agrave palavra e expotildee a expectativa de que possa haver no cansaccedilo e
na percepccedilatildeo do insucesso dos esforccedilos racionalistas um renascimento da trageacutedia
85
4 Conclusatildeo pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo
da vida
Retribui-se mal a um mestre continuando-
se sempre apenas aluno
(Nietzsche)
Natildeo podemos ver na filosofia schopenhaueriana qualquer instacircncia que
justifique a vida Ao conhecermos a sua essecircncia - a vontade cega e irracional que se
deixa ver atraveacutes das manifestaccedilotildees do seu querer incessante - percebemos o absurdo de
sua existecircncia e somos por essa percepccedilatildeo levados agrave sua negaccedilatildeo Nietzsche por sua
vez utilizando-se dos conceitos da filosofia de Schopenhauer procura em sua obra
justificar a vida e encontra esta justificaccedilatildeo na arte Nesta conclusatildeo da pesquisa
pretendemos entatildeo apresentar um esboccedilo do modo pelo qual alguns elementos da
filosofia schopenhaueriana foram utilizados no projeto do primeiro livro de Nietzsche e
explicitar o modo como estes elementos foram configurados no interior de seu projeto
Dentre estes elementos percorreremos o paralelo entre os pares dionisiacuteacoapoliacuteneo e
vontaderepresentaccedilatildeo os conceitos de arte e apreciaccedilatildeo esteacutetica e sua cisatildeo entre as
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artes figurativas e a musical a especificidade da muacutesica o conceito de gecircnio e sua
divisatildeo e os limites da racionalidade e da ciecircncia
Jaacute no primeiro paraacutegrafo de NT a associaccedilatildeo entre os pares nietzscheanos do
dionisiacuteaco e apoliacuteneo e as visotildees de mundo schopenhauerianas satildeo expliacutecitas Nietzsche
define o impulso apoliacuteneo atraveacutes do sonho do princiacutepio de individuaccedilatildeo e o dionisiacuteaco
atraveacutes da embriaguez da consciecircncia de unidade da vontade do livrar-se do veacuteu de
maia Os deuses gregos tornam-se representativos destes estados schopenhauerianos de
consciecircncia Como vimos no capiacutetulo segundo desta dissertaccedilatildeo sob o ponto de vista da
representaccedilatildeo o mundo eacute objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito
agraves condiccedilotildees a priori do entendimento Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das
formas a priori do entendimento eacute interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos
advindos da filosofia Platocircnica e oriental como um mundo aparente ilusoacuterio artificial
O sonho efeito do encantamento apoliacuteneo eacute utilizado como metaacutefora da realidade
fenomecircnica no mundo Schopenhaueriano Os Vedas e Puranas tantas vezes citados por
Schopenhauer tratam o mundo como um sonho imposto pelo deus Maia o deus da
ilusatildeo que cobre a visatildeo do homem com seu veacuteu A mitologia oriental aludida por
Schopenhauer toma conta do mundo helecircnico em Nietzsche que transforma Apolo no
deus Maia o configurador de sonhos O sonho eacute utilizado como ilustraccedilatildeo da realidade
pelo fato de que durante o sonho natildeo sabemos estar sonhando O mundo dos sonhos nos
eacute naquele momento real Vemo-nos como indiviacuteduos e vemos o mundo da
individuaccedilatildeo e suas leis causais espaccedilo-temporais Somente o momento empiacuterico do
despertar informa-nos do sonho Haacute portanto uma identificaccedilatildeo do ldquoparentesco iacutentimo
entre vida e sonhordquo(MVR 60) Como ilustraccedilatildeo desta metaacutefora Schopenhauer elogia
ainda a obra do ldquovaterdquo Calderoacuten de La Barca A vida eacute sonho agrave qual denominaraacute como
um ldquodrama metafiacutesicordquo por expor esta faceta de seu sistema A consciecircncia de que a
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vida eacute sonho eacute para Schopenhauer um despertar metafiacutesico cujo propiciador foi Kant
ao demonstrar o caraacuteter fenomecircnico do mundo Este despertar contudo natildeo causa
prazer O filoacutesofo e o gecircnio personagens que na metafiacutesica schopenhaueriana alcanccedilam
este despertar satildeo atormentados pela realidade com a qual se deparam qual seja a de
que a vida eacute puro sofrimento Eacute no intuito de deixar velada esta faceta da vida que
Apolo ofusca a visatildeo dos homens com seu mundo luminoso de sonho seu objetivo eacute
encobrir esta verdade aterrorizadora As artes natildeo musicais tanto na teoria de
Schopenhauer como na nietzscheana manteacutem o homem em um juacutebilo prazeroso
ocasionado pela contemplaccedilatildeo puramente objetiva Neste momento natildeo se percebe o
jogo da vontade individualizada somos afastados da realidade do querer insuflados
pela caracteriacutestica quietiva da apreciaccedilatildeo esteacutetica nas palavras de Nietzsche
encontramos na arte um ldquoremeacutedio-arterdquo32
Esta visatildeo do lado terriacutevel da vida ocasionada pelo despertar do dogmatismo
metafiacutesico na teoria schopenhaueriana eacute associada em NT agrave sabedoria dionisiacuteaca
Verificamos na descriccedilatildeo do impulso dionisiacuteaco os elementos que caracterizam a
vontade schopenhaueriana A visatildeo dionisiacuteaca do mundo carrega consigo o despertar
para o caraacuteter absurdo da vida Ao olhar para a proacutepria essecircncia o homem descobre-se
enquanto manifestaccedilatildeo de uma vontade aacutevida desprovida de telos O ldquomecanismo
internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens marionetes guiados pela
carecircncia Esta realidade eacute assustadora pois subtrai do horizonte todos os propoacutesitos da
vida individual Dioniacutesio trava aqui sua batalha contra Apolo ao apontar a ilusatildeo da
individuaccedilatildeo como mecanismo para uma fuga daquilo que em essecircncia somos Apesar
de seu caraacuteter aterrorizador a sabedoria dionisiacuteaca eacute acompanhada do deleite
32
Podemos ver aqui o nuacutecleo da dissenssatildeo entre as teorias dos dois filoacutesofos Para Schopenhauer este
remeacutedio eacute temporaacuterio e tatildeo logo o efeito da apreciaccedilatildeo esteacutetica se esvaia os interesses da vontade voltam
a agir sobre o indiviacuteduo e a vida de sofrimento continua seu percurso restando apenas o caminho da
negaccedilatildeo daquela vontade da vida mesma em direccedilatildeo ao nada Nietzsche ao contraacuterio aponta para uma
forma de cura atraveacutes do remeacutedio-arte ver a vida enquanto forma de arte afirmaacute-la
88
indescritiacutevel da celebraccedilatildeo da unidade com o todo ldquoSob a magia do dionisiacuteaco torna a
selar-se natildeo apenas o laccedilo de pessoa a pessoa mas tambeacutem a natureza alheada
inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de reconciliaccedilatildeo com seu filho
perdido o homemrdquo(NT 31) Se Apolo eacute representado como deus da forma da clareza
da individuaccedilatildeo e as artes patrocinadas por ele satildeo expressotildees destas caracteriacutesticas
Dioniacutesio por sua vez eacute o patrocinador da muacutesica expressatildeo fenomecircnica direta da
vontade Vemos em Nietzsche uma biparticcedilatildeo das artes que tambeacutem pode ser extraiacuteda
da metafiacutesica schopenhaueriana (artes natildeo-musicais e arte musical)
Para Schopenhauer as formas artiacutesticas natildeo-musicais ao provocarem uma visatildeo
puramente objetiva do objeto apreciado tecircm como caracteriacutestica fundamental a
libertaccedilatildeo da subjetividade e com ela dos anseios da vontade Durante esta forma de
apreciaccedilatildeo esteacutetica ldquosomos alforriados do desgraccedilado iacutempeto volitivo festejamos o
Sabbath dos trabalhos forccedilados do querer a roda de Iacutexion cessa de girarrdquo (MVR
267) A definiccedilatildeo nietzscheana para a funccedilatildeo da arte apoliacutenea se daacute da mesma maneira
qual seja ela deve ldquo [] livrar a vista de olhar no horror da noite e salvar o sujeito
graccedilas ao baacutelsamo da aparecircncia do espasmo dos movimentos do querer []rdquo (NT
117) A muacutesica por sua vez recebe um tratamento especial de Schopenhauer devido ao
seu efeito esteacutetico Se as demais artes satildeo um quietivo para a vontade a muacutesica ldquonatildeo faz
mais do que agradar a vontade de viver jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo
seus ecircxitos e ao final expressa sua satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509) Ela encontra-se
num niacutevel de valor superior ao das demais artes por tratar-se de representar a essecircncia
do mundo a vontade mesma Assim tambeacutem ela eacute tratada por Nietzsche como a arte
que representa a sabedoria dionisiacuteaca e faz o apreciador vivenciar a vontade mesma
Em seus escritos sobre a poesia e a oacutepera Schopenhauer alude agrave necessidade de
subordinar os conceitos e o texto agrave muacutesica para que estas artes tenham um efeito mais
89
arrebatador no apreciador esteacutetico Esta subordinaccedilatildeo eacute assumida por Nietzsche em sua
teoria da trageacutedia Nietzsche encontra na liacuterica a primeira manifestaccedilatildeo desta junccedilatildeo da
arte dionisiacuteaca com a arte apoliacutenea e aponta aiacute o geacutermen que daraacute origem agrave trageacutedia
Podemos perceber aqui uma subordinaccedilatildeo das artes natildeo-musicais agrave muacutesica que por sua
vez se espelha na subordinaccedilatildeo do mundo fenomecircnico ao mundo da coisa-em-si As
artes figurativas representam as ideacuteias objetivaccedilotildees imediatas da vontade e a muacutesica
representa a vontade mesma Na teoria da trageacutedia de Nietzsche esta subordinaccedilatildeo seraacute
mantida e assim reflete a configuraccedilatildeo da metafiacutesica schopenhaueriana A muacutesica ldquoeacute
uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente sobre o mais iacutentimo do
homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele como se fora uma
linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo (MVR
336) Desta forma uma arte que se pretenda formar a partir da integraccedilatildeo de elementos
de diversas formas artiacutesticas deve tomar a muacutesica como inspiraccedilatildeo tanto na teoria de
Schopenhauer como na de Nietzsche
Desta dicotomia das formas artiacutesticas que podemos perceber nos dois filoacutesofos
podemos depreender duas formas do gecircnio o apoliacuteneo ou contemplativo e o
compositor dionisiacuteaco Para Schopenhauer ldquoo compositor manifesta a essecircncia mais
iacutentima do mundo expressa a sabedoria mais profunda numa linguagem natildeo
compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo magneacutetico fornece informaccedilotildees
sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito algumrdquo (MVR 342) Podemos
vislumbrar ainda nesta descriccedilatildeo de Schopenhauer uma caracteriacutestica do que Nietzsche
mais tarde iraacute chamar de criaccedilatildeo inconsciente Em uma segunda passagem desta vez ao
final do capiacutetulo 39 do segundo volume de MVR vemos tambeacutem uma caracteriacutestica que
posteriormente tambeacutem seraacute ressaltada por Nietzsche como demarcaccedilatildeo do caraacuteter
dionisiacuteaco Schopenhauer se utiliza de uma passagem dos Vedas para descrever o prazer
90
provocado pela muacutesica como um prazer de participaccedilatildeo no todo33
Este ecircxtase da
comunhatildeo eacute um aspecto reiteradamente apontado por Nietzsche O gecircnio dionisiacuteaco eacute
para o jovem filoacutesofo aquele que tambeacutem absorvido pelo impulso dionisiacuteaco traduz
sua essecircncia em linguagem musical O tipo de gecircnio musical descrito eacute encontrado em
Schopenhauer nas encarnaccedilotildees de Rossini e Beethoven cujas obras operiacutesticas satildeo
norteadas pela produccedilatildeo musical e o livreto ocupa um lugar secundaacuterio Nietzsche
aponta um renascimento progressivo do gecircnio musical em seu tempo que se inicia com
Bach e tem continuidade em Beethoven mas que encontra sua forma mais bem acabada
em Richard Wagner
Apesar da tomarem caminhos diferentes no que tange ao objetivo da obra de arte
traacutegica Nietzsche e Schopenhauer mais uma vez em uniacutessono consideram-na todavia
como uma forma de entendimento superior ao apresentado pelo pensamento cientiacutefico
Como vimos anteriormente as ciecircncias no sistema schopenhaueriano seguem o
princiacutepio de razatildeo seu papel eacute apenas descritivo e consequumlentemente limitado ao
acircmbito daquele princiacutepio Transformam em conceitos abstratos o mundo intuitivo ao
descrevecirc-lo em sua aparecircncia e seguem o fio condutor do principio de razatildeo
apresentando as causas para cada fenocircmeno particular Desta forma as ciecircncias estatildeo
subordinadas ao mundo da aparecircncia e no que importa agrave essecircncia natildeo podem
demonstraacute-la As uacutenicas produccedilotildees humanas com esta capacidade satildeo a arte e a
filosofia e essas o fazem de forma indireta metafoacuterica A consideraccedilatildeo racional do
mundo estaacute enquanto presa ao acircmbito do fenocircmeno subordinada aos ditames da
vontade Esta ldquovontade aacutevida sempre encontra um meio atraveacutes de uma ilusatildeo
distendida sobre as coisas de prender agrave vida as suas criaturas e de obrigaacute-las a
prosseguir vivendordquo (NT 108) Nietzsche descreve trecircs formas pelas quais a vontade
33
ldquoE o delicioso que eacute uma classe de alegria chama-se assim o sumo Atman porque onde haacute uma
alegria esta eacute uma pequena parte de sua alegriardquo (MVR II 510)
91
manteacutem a vida A primeira delas eacute o ldquoveacuteu da beleza da arterdquo sustentado pelo impulso
apoliacuteneo Encontramo-la na epopeacuteia homeacuterica e nas artes figurativas A segunda eacute a
visatildeo traacutegica do mundo que encontra um consolo metafiacutesico na percepccedilatildeo de um
substrato comum aos fenocircmenos e que por consequumlecircncia abdica destes em funccedilatildeo da
vivecircncia daquele substrato A terceira forma de dominaccedilatildeo da vontade eacute a ciecircncia a
loacutegica socraacutetica que procura abarcar o mundo com sua razatildeo de acircnsia justificadora
Estas trecircs formas de coerccedilatildeo conforme sua predominacircncia em determinada cultura
formam o que Nietzsche iraacute denominar respectivamente de culturas artiacutestica traacutegica e
socraacutetica Correspondem historicamente agraves fases predominantemente helecircnica budista
ou alexandrina Fazendo um diagnoacutestico da cultura contemporacircnea Nietzsche a
identifica como uma cultura predominantemente alexandrina Diagnostica o seu ocaso a
partir da identificaccedilatildeo feita por Kant e Schopenhauer dos limites da ciecircncia do
desmascaramento das verdades eternas que amparam a visatildeo socraacutetica de mundo quais
sejam a visatildeo de que o tempo o espaccedilo e a causalidade satildeo leis universais e
incondicionais Esta criacutetica ao racionalismo eacute constante na obra schopenhaueriana
Percebemo-la claramente em suas investidas contra a filosofia de seu tempo e a
presunccedilatildeo nela presente de racionalmente abarcar o real
- - - - - - - - - -
Compostas por conceitos da metafiacutesica schopenhaueriana a teoria da trageacutedia de
Schopenhauer e a de Nietzsche apontam para caminhos diversos Em Schopenhauer a
trageacutedia eacute a arte cujo fim uacuteltimo eacute ao expor seu lado terriacutevel inspirar o apreciador agrave sua
renuacutencia Este lado terriacutevel espelho do mundo presentificador da vida humana e de
suas relaccedilotildees ocasiona atraveacutes do medo e da compaixatildeo a vontade de renuacutencia a essa
92
mesma vida Nietzsche introduz na trageacutedia o elemento da muacutesica schopenhaueriana34
A consequumlecircncia desta introduccedilatildeo eacute um plano mais profundo de entendimento que
apresenta a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com sua essecircncia Neste estado de consciecircncia
apartado de sua individualidade o sujeito jaacute se vecirc como um criador de mundos e vecirc no
mundo uma obra de arte sua Ao derivar o impulso apoliacuteneo do dionisiacuteaco35
Nietzsche
jaacute executou a renuacutencia do indiviacuteduo que agora passa a se ver como essecircncia e ao mundo
como fenocircmeno artiacutestico
34
Machado (2006 200) considera na esteira de Clemeacutent Rosset e de Jean-Marie Schaeffer a utilizaccedilatildeo
da teoria da apreciaccedilatildeo musical de Schopenhauer por Nietzsche como o elemento que sugeriraacute a
caracteriacutestica de afirmaccedilatildeo da vontade de sua filosofia da trageacutedia 35
ldquoNo efeito conjunto da trageacutedia o dionisiacuteaco recupera a preponderacircncia ela se encerra com um tom
que jamais poderia soar a partir do reino da arte apoliacutenea E com isso o engano apoliacuteneo se mostra como o
que ele eacute como o veacuteu que enquanto dura a trageacutedia envolve o autecircntico efeito dionisiacuteaco o qual
todavia eacute tatildeo poderoso que ao final impele o proacuteprio drama apoliacuteneo a uma esfera onde ele comeccedila a
falar com sabedoria dionisiacuteaca e onde nega a si mesmo e agrave sua visibilidade apoliacuteneardquo (NT 129)
93
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3
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E86f Euclides Raul Moraes de
A filosofia da vontade e as interpretaccedilotildees da trageacutedia [manuscrito]
uma anaacutelise das teorias de Schopenhauer e do jovem Nietzsche Raul
Moraes de Euclides - 2010
99f
Orientador Prof Dr Heacutelio Lopes da Silva
Co-orientador Prof Dr Eduardo Soares Neves Silva
Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Universidade Federal de Ouro Preto
Instituto de Filosofia Artes e Cultura
Aacuterea de concentraccedilatildeo Esteacutetica e Filosofia da Arte
1 Schopenhauer Arthur 1788-1860 - Teses 2 Nietzsche Friedrich
Wilhelm 1844-1900 - Teses 3 Trageacutedia - Teses I Universidade Federal
de Ouro Preto II Tiacutetulo
CDU 179221
4
UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
INSTITUTO DE FILOSOFIA ARTES E CULTURA
PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM FILOSOFIA
MESTRADO EM ESTEacuteTICA E FILOSOFIA DA ARTE
Dissertaccedilatildeo intitulada ldquoA filosofia da vontade e as interpretaccedilotildees da trageacutedia
uma anaacutelise das teorias de Schopenhauer e do jovem Nietzscherdquo de autoria do
mestrando Raul Moraes de Euclides apresentada agrave banca examinadora constituiacuteda pelos
seguintes professores
____________________________________________________
ProfDr Heacutelio Lopes da Silva - Orientador- UFOP
___________________________________________________
ProfDr Eduardo Soares Neves Silva ndash Co-orientador - UFMG
____________________________________________________
Prof Dr Douglas Garcia Alves Juacutenior - UFOP
____________________________________________________
Prof Dr Rogeacuterio Antocircnio Lopes - UFMG
Ouro Preto 24 de Marccedilo de 2010
5
Agrave minha famiacutelia
6
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo agraves pessoas que direta ou indiretamente ajudaram na elaboraccedilatildeo deste
trabalho
Agrave minha esposa pelo amor paciecircncia e apoio
Ao corpo docente do curso de mestrado e em especial ao meu co-orientador
cujo incentivo foi essencial agrave continuaccedilatildeo da pesquisa
Ao meu orientador pelas observaccedilotildees valiosas
Aos colegas de mestrado companheiros indispensaacuteveis nas diaacuterias procissotildees de
embriaguez dionisiacuteaca pelas labiriacutenticas ladeiras de Ouro Preto
7
A existecircncia eacute um episoacutedio do nada
Arthur Schopenhauer
8
RESUMO
O projeto que aqui se apresenta tem como objetivo principal percorrer as
teorias do traacutegico schopenhaueriana e nietzscheana no intuito de apresentar as
principais caracteriacutesticas de cada uma destas teorias Este percurso teraacute como ponto de
partida o fundamento metafiacutesico comum a elas qual seja a filosofia schopenhaueriana
da vontade Atraveacutes desta exposiccedilatildeo pretendemos demonstrar natildeo somente a real
amplitude da influecircncia de Schopenhauer nos primeiros escritos de Nietzsche mas
tambeacutem algumas das peculiaridades existentes em cada uma das citadas teorias
Palavras-chave Schopenhauer - Nietzsche - Trageacutedia - Traacutegico - Filosofia da
vontade
ABSTRACT
The research presented herein has as its ultimate goal to discuss the
theories of the tragedy developed by Schopenhauer and Nietzsche highlighting the
main characteristics ndash points of convergence and divergence ndash of both Our trajectory
shall start from the metaphysical foundations apparently displayed in both theories
which is ndash the schopenhauerian philosophy of the will Throughout our exposition we
intend to show not only that Schopenhauers philosophy had a huge impact in
Nietzsches first writings but also reveal the peculiarities beneath the development of
their aforementioned theories
Keywords Schopenhauer - Nietzsche - Tragedy - Tragic ndash Philosophy of the will
9
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO11
1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES NA
FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA 17
2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU
SUBSTRATO METAFIacuteSICO42
21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo43
22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo45
23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana49
24 A finalidade moral da trageacutedia56
25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera62
3 A TEORIA DA TRAGEacuteDIA DO JOVEM NIETZSCHE65
31 A influecircncia de Schopenhauer na obra do primeiro Nietzsche66
32 O projeto subjacente ao nascimento da trageacutedia72
33 A teoria da trageacutedia publicada75
4 CONCLUSAtildeO pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo da
vida85
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS93
10
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CORRESPONDEcircNCIA = Correspondecircncias de Nietzsche (2007)
OC = Obras completas de Nietzsche (1963)
11
INTRODUCcedilAtildeO
ldquoDias sem nuacutemero nunca reservam a
ningueacutem nada mais que dissabores mais
proacuteximos da dor que da alegria Quanto aos
prazeres natildeo os discernimos e nossa vista os
buscaraacute em vatildeo logo que para nossa
desventura chegamos ao limite prefixado E
desde entatildeo o nosso aliacutevio uacutenico seraacute aquele
que daraacute a todos o mesmo fim na hora de
chegar de suacutebito o destino procedente do
tenebroso reino onde natildeo haacute cantos nem
liras onde natildeo haacute danccedilas ndash ou seja a morte
epiacutelogo de tudo Melhor seria natildeo haver
nascido como segunda escolha bom seria
voltar logo depois de ver a luz agrave mesma
regiatildeo de onde se veiordquo
(Soacutefocles)
As teorias sobre a trageacutedia de Schopenhauer e Nietzsche satildeo parte
indispensaacutevel no estudo da histoacuteria da filosofia da trageacutedia Dentre os diversos
pensadores contemporacircneos que tratam sobre o problema da trageacutedia e do traacutegico e que
deram visiacutevel destaque agraves teorias dos nossos filoacutesofos podemos destacar Walter
Benjamin1 e Peter Szondi
2 Entretanto nos trabalhos destes autores o problema do
1 BENJAMIN Walter Origem do drama barroco alematildeo Traduccedilatildeo Sergio Paulo Rouanet Satildeo Paulo
Brasiliense 2004
12
relacionamento e da interdependecircncia entre as filosofias de Schopenhauer e Nietzsche
natildeo eacute detalhado a contento Diante disto mesmo para um olhar historicamente
caracterizador torna-se vaacutelido um estudo comparado destas teorias que leve em
consideraccedilatildeo o quecirc ou o quanto haacute de comum em suas metafiacutesicas e a partir desta
perspectiva trace os aspectos coincidentes e dissidentes das mesmas mostrando seus
pontos de interdependecircncia e discrepacircncia muacutetua
Apesar de estar entre as teorias da trageacutedia mais estudadas do periacuteodo do
idealismo alematildeo a teoria Schopenhaueriana que eacute sempre analisada em relaccedilatildeo a seus
pressupostos metafiacutesicos ao ser vista sob outra perspectiva ganharia contornos
intensamente enriquecidos Esta perspectiva atraveacutes da qual nos propomos a examinar a
teoria do traacutegico do filoacutesofo eacute aquela que levaraacute em consideraccedilatildeo as influecircncias
histoacutericas culturais e filosoacuteficas que agiram diretamente sobre a esteacutetica do traacutegico
schopenhaueriana Ao lanccedilarmos um olhar sobre estas referidas influecircncias estaremos
abrindo caminho para uma melhor compreensatildeo sobre a teoria esteacutetica
schopenhaueriana o que conseguintemente refletiraacute em um juiacutezo mais adequado da
teoria nietzscheana
Para um entendimento mais eficiente das teorias propostas nas obras do
jovem Nietzsche parece-nos essencial o conhecimento de uma de suas mais decisivas
influecircncias a filosofia de Schopenhauer A analogia almejada erige-se na verdade
como meacutetodo de anaacutelise ou seja o que pretendemos eacute alcanccedilar uma maior compreensatildeo
dos problemas com os quais Nietzsche se deparou quando da elaboraccedilatildeo de sua primeira
obra e procurar identificar a existecircncia de alguma apropriaccedilatildeo eou adaptaccedilatildeo de alguns
conceitos da filosofia de Schopenhauer na resoluccedilatildeo destes problemas A necessidade
deste estudo comparativo torna-se ainda mais evidente quando e este eacute o caso
2 SZONDI Peter Ensaio sobre o Traacutegico Traduccedilatildeo Pedro Suumlssekind Rio de Janeiro Jorge Zahar
2005
13
defrontamo-nos com uma influecircncia que se apresenta tatildeo clara e assumidamente
admitida pelo autor Todavia natildeo se pretende aqui apenas a justaposiccedilatildeo de um
pensamento ao outro Apesar de ser identificaacutevel em toda a obra posterior de Nietzsche
encontra-se nos seus primeiros escritos sobretudo na obra O nascimento da trageacutedia
aquele momento discursivo no qual podemos apontar uma influecircncia mais direta da
filosofia de Schopenhauer
Dos trabalhos que fazem um estudo comparativo entre estes filoacutesofos a
maioria se ateacutem em identificar as diferenccedilas conceituais entre eles mais
especificamente no campo eacutetico e metafiacutesico Grosso modo tratam principalmente dos
problemas relativos agrave diferenciaccedilatildeo entre os conceitos de vontade nestes autores
vontade de viver e vontade de poder Estes estudos tecircm como foco a filosofia tardia de
Nietzsche onde este apesar da assumida influecircncia torna-se um criacutetico de
Schopenhauer A real extensatildeo da influecircncia deste filoacutesofo na primeira obra de
Nietzsche bem como o relacionamento entre suas teorias da trageacutedia permanecem
assim como territoacuterios ainda pouco explorados Ao lanccedilarmos olhar sobre esse
afastamento que Nietzsche mais tarde realizaraacute em relaccedilatildeo agrave filosofia
Schopenhaueriana verificamos mais uma vez a importacircncia do estudo de sua primeira
fase na qual poderemos detectar o referido afastamento
Podemos observar entretanto o crescimento do interesse no estudo da
obra O nascimento da trageacutedia de Nietzsche Nos uacuteltimos anos assistimos tambeacutem no
Brasil agrave publicaccedilatildeo de vaacuterios trabalhos que tecircm sob perspectiva a complexidade desse
seu primeiro livro Na bibliografia sugerida neste projeto constam publicaccedilotildees dos
seguintes autores Roberto Machado (2006) Rosa Maria Dias (2005 e 2009) Iracema
Macedo (2006) Marcio Joseacute Silveira Lima (2006) Estas publicaccedilotildees tratam temas
diversos da esteacutetica nietzscheana tais como a muacutesica a trageacutedia o traacutegico ou a
14
repercussatildeo do livro de Nietzsche e sua influecircncia wagneriana Podemos ver entretanto
naqueles e em outros trabalhos a constante chave de leitura que atribui a Schopenhauer
a influecircncia decisiva natildeo apenas sobre o jovem Nietzsche como usualmente se aponta
mas tambeacutem sobre um peculiar imbricamento entre metafiacutesica e esteacutetica o qual se
sustentaria sobre os ldquoimpulsos artiacutesticos da naturezardquo o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco Nos
termos de Dias (2005 27)
A oposiccedilatildeo apoliacutenea e dionisiacuteaca considerada no plano
metafiacutesico se daacute a partir da noccedilatildeo de vontade ou querer
estendida (sic) no sentido que a ela deu Schopenhauer de
ldquocentro e nuacutecleo do mundordquo ou ldquoforccedila que eternamente quer
deseja e aspirardquo () O mundo fenomecircnico como resultado
desse movimento do querer () faz um segundo movimento
dessa vez esteacutetico reproduzindo o movimento inicial que a
vontade realizou em direccedilatildeo agrave aparecircncia
Tendo em vista o fato de que as teorias sobre o traacutegico dos dois filoacutesofos tecircm como
ponto de partida o sistema metafiacutesico schopenhaueriano fica clara a necessidade de
analisar em cotejo estas teorias tendo como fio condutor o meacutetodo de investigaccedilatildeo ora
proposto
Aleacutem de um aprofundamento no problema da influecircncia de
Schopenhauer na obra esteacutetica de Nietzsche o estudo de suas teorias sobre o traacutegico nos
daraacute a oportunidade de identificar as peculiaridades de cada uma destas teorias bem
como de estabelecer a sua importacircncia histoacuterica para uma filosofia do traacutegico
Em um primeiro momento traccedilaremos um panorama histoacuterico que
objetiva entender o status quo da filosofia do traacutegico no periacuteodo anterior ao
desenvolvimento da teoria schopenhaueriana da trageacutedia Esta investigaccedilatildeo seraacute
norteada pelas referecircncias constantes na proacutepria obra de Schopenhauer bem como por
um levantamento biograacutefico do filoacutesofo ou seja trabalharemos somente os momentos
que satildeo fundamentais para uma melhor compreensatildeo da obra schopenhaueriana Dentre
15
estes momentos daremos ecircnfase aos seguintes pontos o estudo sobre o helenismo de
Winckelmann e sua repercussatildeo a criacutetica teatral de Lessing Schiller e Goethe seu
projeto de criaccedilatildeo de um teatro alematildeo e suas produccedilotildees dramaacuteticas
Traccedilado o panorama histoacuterico no qual se insere a teoria da trageacutedia
schopenhaueriana passaremos para o toacutepico seguinte a apresentaccedilatildeo do sistema
metafiacutesico de Schopenhauer no qual estaacute embasada a sua teoria da trageacutedia bem como
a teoria nietzscheana A apresentaccedilatildeo seraacute feita de forma a expor os aspectos gerais da
filosofia da vontade atendo-se aos pontos deste sistema que estatildeo intrinsecamente
relacionados agraves teorias da trageacutedia dos nossos autores
Apoacutes os passos descritos reuniremos em um esboccedilo geral as
caracteriacutesticas do relacionamento existente entre o jovem Nietzsche e a filosofia de
Schopenhauer Para tanto utilizaremo-nos das referecircncias que Nietzsche faz a
Schopenhauer em suas cartas e escritos de juventude Com esta pesquisa pretendemos
identificar a opiniatildeo que o jovem Nietzsche tinha sobre a filosofia de Schopenhauer e a
profundidade da influecircncia desta em sua primeira obra Percorreremos ainda o ambiente
circundante agrave primeira obra de Nietzsche no intuito de realccedilar alguns dos conceitos
formativos de O nascimento da trageacutedia
Estabelecida a ligaccedilatildeo entre os autores passaremos ao estudo do apoliacuteneo
e do dionisiacuteaco par conceitual que nos forneceraacute a chave para se fazer um estudo
comparativo entre os filoacutesofos Para cumprir esta etapa analisaremos O nascimento da
trageacutedia bem como escritos contemporacircneos a este livro atraveacutes dos quais poderemos
delinear melhor a significaccedilatildeo desta duplicidade de impulsos e visotildees de mundo
Delinearemos assim os contornos das definiccedilotildees fundamentais da esteacutetica nietzscheana
e procuraremos construir um paralelo entre o mundo dionisiacuteaco e o mundo metafiacutesico
da vontade schopenhaueriano Temos a intenccedilatildeo de demonstrar a origem desta
16
metafiacutesica da vontade ou seja o criticismo kantiano e sua importacircncia para o conceito
de dionisiacuteaco Demonstraremos tambeacutem as caracteriacutesticas do mundo fenomecircnico
schopenhaueriano em sua identidade com o apoliacuteneo nietzscheano retomando a
epistemologia de Schopenhauer
Realizada a aproximaccedilatildeo e expostas tanto as semelhanccedilas como as
particularidades dos conceitos principais dos dois autores percorreremos sempre
focando um estudo paralelo entre os filoacutesofos outros conceitos que encontram
similaridade em suas esteacuteticas Com esse intuito procuraremos identificar nos dois
filoacutesofos o destaque dado agrave muacutesica dentro de suas teorias e o lugar dado agraves outras artes
em suas obras Discorreremos sobre a criacutetica que eles em uniacutessono fazem ao que
nomeiam racionalismo dogmatismo e o otimismo Finalizadas as aproximaccedilotildees
voltaremos nossa atenccedilatildeo ao aspecto de dissensatildeo que propicia o afastamento
fundamental entre as teorias dos dois filoacutesofos o efeito da trageacutedia Com isto
demonstraremos que a base metafiacutesica comum quando alinhada a pressupostos
esteacuteticos distintos geraraacute a referida dissensatildeo
17
1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES
NA FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA
Por que minha filosofia natildeo encontrou
simpatia e interesse Porque a verdade natildeo
estaacute de acordo com a tagarelice dos tempos
(Schopenhauer)
Neste primeiro capiacutetulo objetivamos apresentar as fontes filosoacuteficas
incutidas no sistema schopenhaueriano no intuito de situar historicamente o surgimento
da filosofia da vontade e trazer agrave baila o seu ambiente circundante bem como as teorias
filosoacuteficas com as quais Schopenhauer se propotildee a dialogar Apontaremos inicialmente
as influecircncias filosoacuteficas assumidamente presentes no sistema schopenhaueriano bem
como aquelas que fundamentam sua metafiacutesica e consequumlentemente sua teoria esteacutetica
Em um segundo momento procuraremos fazer um breve esboccedilo do ambiente artiacutestico-
cultural que dominava o pensamento alematildeo de entatildeo com o qual direta ou
indiretamente Schopenhauer e o jovem Nietzsche se depararam Com isto esperamos
posteriormente demarcar as singularidades que caracterizam as teorias destes filoacutesofos
Ressaltamos todavia que natildeo se trata de um mapeamento completo das fontes que
influenciaram esses autores ndash tarefa que exigiria um esforccedilo bem maior do que aquele
18
proposto por esta pesquisa ndash e sim de um breve panorama que se pautaraacute nas influecircncias
marcantemente presentes em suas obras
No contato com a obra de Schopenhauer a primeira impressatildeo que natildeo
passa despercebida aos seus leitores eacute a qualidade de sua prosa3 Tal qualidade
revelada na diversidade de recursos literaacuterios utilizados pelo autor eacute produto da visiacutevel
erudiccedilatildeo cultivada pelo filoacutesofo Conhecedor do grego do latim e suas respectivas
literaturas Schopenhauer transitava ainda pela obras literaacuterias cientiacuteficas e filosoacuteficas
contemporacircneas em suas liacutenguas originais conhecia o inglecircs o italiano o francecircs e o
espanhol Em sua juventude conviveu com vaacuterias personalidades do meio cultural
germacircnico que frequumlentavam o salatildeo de sua matildee em Weimar dentre eles Goethe a
maior figura das letras germacircnicas com quem teve um relacionamento mais proacuteximo
Sua obra eacute repleta de citaccedilotildees de poetas dramaturgos e seu conhecimento das artes
plaacutesticas e da muacutesica natildeo satildeo superficiais Em suas viagens pela Europa pocircde admirar
diversas esculturas e pinturas e como ele proacuteprio dizia pocircde ler diretamente no ldquolivro
do mundordquo Essa erudiccedilatildeo pode ser notada mesmo diante do desconhecimento de sua
biografia pela observaccedilatildeo da enorme quantidade de citaccedilotildees e menccedilotildees que estatildeo
espalhadas no interior de suas obras traduzidas ou como em sua maior parte citadas
em suas respectivas liacutenguas Frequumlentava as mais diversas aacutereas de conhecimento de sua
eacutepoca como sustenta Aramayo
3 O cuidado com a qualidade da produccedilatildeo literaacuteria tanto no que se refere agrave clareza quanto agrave riqueza de
recursos linguumliacutesticos eacute uma das caracteriacutesticas que Schopenhauer e Nietzsche tecircm em comum Esta
qualidade torna-se mais evidente ainda quando seus trabalhos satildeo natildeo raramente comparados com os
escritos filosoacuteficos alematildees daquele periacuteodo principalmente aos de Fichte Schelling e Hegel O elogio agrave
prosa schopenhaueriana feito por literatos e filoacutesofos contemporacircneos influenciados por sua obra pode
ser ilustrado agrave exaustatildeo entre eles encontram-se Thomas Mann Goethe Wittgenstein e o proacuteprio
Nietzsche ldquoMas a imensa forccedila de penetraccedilatildeo deste pensamento explica-se antes de tudo pelo fato de o
autor ser ao lado de Nietzsche o maior entre os escritores filosoacuteficos alematildeesrdquo (Rosenfeld 1996 177)
Jorge Luis Borges em uma entrevista publicada por Die Welt em 25 de marccedilo de 1975 realizava esta
confissatildeo ltPara mim existe um escritor alematildeo ao qual prefiro Schopenhauer Sei que deveria dizer
Goethe poreacutem Schopenhauer me interessa muitiacutessimo mais Tanto que estudei alematildeo ndash que aprendi
sobre os versos de Heine ndash fundamental e especificamente para poder ler a Schopenhauer em sua proacutepria
liacutenguagt (Aramayo 2001 18)
19
ldquoEm sua busca pela verdade Schopenhauer natildeo desdenha
nenhum aliado Os dramaturgos novelistas e poetas estatildeo quando
menos em peacute de igualdade com os mais egreacutegios filoacutesofos A perspicaacutecia
de Shakespeare ou a genialidade de Voltaire e a sutileza de Goethe nada
devem para a eloquumlecircncia Platocircnica a precisatildeo de um Spinoza e o rigor
conceitual do admirado Kant Sua curiosidade natildeo conhece limites nem
prejuiacutezo algum e por esta razatildeo tampouco menospreza quando o
considera oportuno prestar suficiente atenccedilatildeo aos fenocircmenos
paranormais agrave hipnose ou ao caacutelculo cabaliacutestico se entende que em
algo isto pode servir-lhe para demonstrar sua tese ou avaliar algumas de
suas intuiccedilotildees E na mesma direccedilatildeo aponta seu grande empenho por
incorporar o pensamento das religiotildees orientais a nosso acervo cultural
na possibilidade de um enriquecimento muacutetuordquo (Aramayo 2001 14-15)
A comparaccedilatildeo feita atraveacutes de metaacuteforas4 paraacutebolas ou alegorias em
sua maioria retiradas de obras literaacuterias ou cientiacuteficas torna-se recurso literaacuterio
constantemente presente na obra do filoacutesofo e ao mesmo tempo termocircmetro de suas
influecircncias e de seu relacionamento com o pensamento de seus contemporacircneos Tais
recursos satildeo utilizados contudo com o objetivo consciente de construir conhecimento
de ilustrar a mateacuteria do seu pensamento Nas palavras do filoacutesofo ldquoAs comparaccedilotildees satildeo
de grande valor na medida em que reduzem uma relaccedilatildeo desconhecida a uma
conhecida Inclusive as comparaccedilotildees mais detalhadas transformadas em paraacutebola ou
alegoria satildeo somente a reduccedilatildeo de uma relaccedilatildeo qualquer agrave sua exposiccedilatildeo mais
simples ilustrativa e palpaacutevelrdquo (Schopenhauer SOE 86) Se o nosso objetivo eacute mostrar
as raiacutezes da filosofia de Schopenhauer ou seja as influecircncias que formaram a mateacuteria
de seu pensamento eacute sobre esta mateacuteria que devemos nos debruccedilar Natildeo podemos
contudo nos furtar a apontar a riqueza das fontes formalmente presentes em seus
escritos5 A percepccedilatildeo da presenccedila desta numerosa miscelacircnea de referecircncias dentro da
4 ldquoSua profusa e brilhante utilizaccedilatildeo das metaacuteforas eacute o que o converte sem duacutevida alguma em um grande
escritor cujo estilo se nos afigura tatildeo ameno quanto sugestivordquo (Aramayo 2001 54) 5 Mateacuteria e forma satildeo na concepccedilatildeo do filoacutesofo planos ou instacircncias da produccedilatildeo escrita que servem
como referecircncia para o julgamento de valor do pensamento de um autor ldquo Um livro nunca pode ser mais
do que a impressatildeo dos pensamentos do autor O valor desses pensamentos reside na mateacuteria ou seja
naquilo sobre o que ele pensou ou na forma isto eacute na elaboraccedilatildeo da mateacuteria naquilo que pensou a
respeitordquo (Schopenhauer SOE 11) A importacircncia dada agrave forma por Schopenhauer seraacute melhor
esclarecida quando posteriormente apresentarmos a caracteriacutestica fundamentalmente epistemoloacutegica de
toda produccedilatildeo artiacutestica dentro de sua metafiacutesica do belo
20
obra schopenhaueriana diz-nos algo sobre seu estilo e seu arcabouccedilo cultural
entretanto quando voltamo-nos para a busca das influecircncias diretamente presentes em
seu sistema ie agraves raiacutezes da mateacuteria de seu pensamento percebemos que elas natildeo satildeo
tatildeo numerosas
Uma leitura das fontes filosoacuteficas do sistema schopenhaueriano torna-se
diferentemente do que ocorre em outros sistemas de seu tempo menos trabalhosa por
dois motivos Primeiramente o autor natildeo esconde suas influecircncias mas ao contraacuterio
faz questatildeo de apontaacute-las citaacute-las e quando lhe parece necessaacuterio as critica ou exalta
Em segundo lugar o que facilita o mapeamento destas fontes eacute a caracteriacutestica de
unidade do sistema schopenhaueriano como um todo Apesar da longevidade do
filoacutesofo e da distacircncia temporal entre suas obras suas intuiccedilotildees fundamentais
continuaram sendo as mesmas ao longo de sua vida Nas palavras de Rosset
ldquoSchopenhauer eacute homem de um soacute livro o MVR e de um soacute pensamento (qualificado
por ele mesmo de ltpensamento uacutenicogt nas primeiras linhas de sua obra)rdquo (2005 35)6
Natildeo satildeo poreacutem coetacircneas as influecircncias que marcaram a obra do filoacutesofo
como talvez a constante menccedilatildeo a seus contemporacircneos possa sugerir Nas palavras do
filoacutesofo como citado por Lefranc (2005 17) ldquoPude amar prosseguir aperfeiccediloar a
minha obra soacute por ela mesma em tranquumlilidade completa ao abrigo de toda influecircncia
externa e meus contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes
permaneci estranhosrdquo Conhecia a filosofia de seu tempo todavia natildeo a tinha como
interlocutora na verdade a desdenhava satildeo famosas as criacuteticas de Schopenhauer contra
as filosofias de seus contemporacircneos principalmente as de Fichte Schelling e Hegel
6 Sobre a unidade da produccedilatildeo schopenhaueriana destacamos aleacutem de Rosset os apontamentos de outros
dois de seus maiores comentadores Arthur Huumlbscher e Alexis Philonenko Na introduccedilatildeo aos manuscritos
schopenhauerianos Huumlbscher aponta a importacircncia dos manuscritos na percepccedilatildeo desta unidade uma vez
que podemos notar em diversas fases da vida do filoacutesofo o desenvolvimento dos temas pontuais que
marcaram sua obra principal Vide Hubscher Introduction Manuscript Remains 1985 Alexis
Philonenko trata desta unidade no proacutelogo de sua obra Schopenhauer uma filosofia da trageacutedia
(Philonenko 1989 41-45)
21
(chamados de ldquoos trecircs sofistasrdquo) Quando faz referecircncias a eles comumente estaacute
imbuiacutedo de trecircs propoacutesitos criticar a qualidade formal de suas produccedilotildees
principalmente no que tange ao uso da liacutengua germacircnica apontar uma motivaccedilatildeo
individualista (subsistecircncia pessoal e status social) que existiria por traacutes de suas
elucubraccedilotildees filosoacuteficas e ressaltar a falta de atenccedilatildeo por parte daqueles filoacutesofos no
que se refere ao conteuacutedo da primeira criacutetica kantiana
Schopenhauer diagnosticava em seu tempo um periacuteodo de
empobrecimento da expressatildeo literaacuteria e do uso da liacutengua germacircnica e apontava como
os principais responsaacuteveis por estes acontecimentos os ldquoprofessores de filosofiardquo e seus
disciacutepulos As investidas schopenhauerianas contra a filosofia de seus contemporacircneos
podem ser encontrada em praticamente todas as suas obras mas estatildeo concentradas de
forma mais persistente em sua produccedilatildeo mais tardia na segunda ediccedilatildeo da QRPRS de
MVR em seus ensaios sobre a liberdade e o fundamento da moral e nos PP 7
Nesta
uacuteltima obra temos dedicados a estas criacuteticas alguns textos que podemos destacar Sobre
o ofiacutecio de escritor Da leitura e dos livros Da liacutengua e das palavras e Sobre a filosofia
universitaacuteria A liacutengua alematilde no que se refere agrave sua capacidade expressiva era tida em
mais alta consideraccedilatildeo por nosso filoacutesofo Afirmava que dentre as liacutenguas modernas
era ldquoa uacutenica na qual se pode escrever quase tatildeo bem quanto em grego ou em latimrdquo
(Schopenhauer SOE 72) Esta capacidade de expressatildeo de uma liacutengua eacute segundo o
filoacutesofo resultado de sua aptidatildeo em representar conceitos Desta forma na medida em
que surgem novos conceitos a elaboraccedilatildeo de novas palavras que os representem eacute um
sinal de evoluccedilatildeo adequaccedilatildeo e riqueza da liacutengua Entretanto para o filoacutesofo os
neologismos e adaptaccedilotildees criados por seus contemporacircneos natildeo eram resultados da
7 Muitos historiadores da filosofia bioacutegrafos e comentadores apontam que esta criacutetica adveacutem do
ressentimento pelo fracasso de Schopenhauer como docente na universidade de Berlim onde Hegel
reinava absoluto bem como da falta de reconhecimento de sua filosofia diante do sucesso dos professores
da mesma universidade
22
tentativa de representaccedilatildeo de novos conceitos mas ao contraacuterio eram comprovaccedilatildeo de
sua ldquopobreza de espiacuterito que a todo custo quer colocar algo no mercado e por natildeo ter
novos pensamentos chega com palavras novasrdquo (Schopenhauer SOE 129)
Schopenhauer condenava a atitude de seus contemporacircneos de utilizarem-se de
artifiacutecios como a natildeo designaccedilatildeo do caso a expressatildeo dos preteacuteritos por meio do
imperfeito a supressatildeo dos prefixos e outros subterfuacutegios para com isso disfarccedilar a sua
imprecisatildeo conceitual De acordo com Schopenhauer tratavam displicentemente a
liacutengua alematilde por dois motivos por natildeo possuiacuterem uma mateacuteria conceitualmente
relevante a ser expressa ou entatildeo para conscientemente causar a impressatildeo de que a
possuem e neste caso a responsabilidade pela natildeo compreensatildeo do texto seria atribuiacuteda
agrave incompetecircncia intelectual do leitor
Os que compotildeem discursos difiacuteceis obscuros enleados e
ambiacuteguos natildeo sabem ao certo o que querem dizer tecircm somente uma
consciecircncia vaga a esse respeito que luta primeiro por uma ideacuteia poreacutem
amiuacutede querem tambeacutem ocultar de si mesmos e dos outros que na
realidade eles natildeo tecircm nada a dizer Como Fichte Schelling e Hegel
querem parecer saber o que natildeo sabem pensar o que natildeo pensam e dizer
o que natildeo dizem Algueacutem que tenha algo correto a dizer se esforccedilaraacute por
exprimi-lo de maneira indistinta ou distinta (Schopenhauer SOE 39)
Podemos perceber entatildeo que ao criticar o estilo ldquoobscurordquo e ldquopomposordquo de seus
contemporacircneos Schopenhauer aponta como causa deste estilo natildeo somente a sua falta
de mateacuteria mas tambeacutem uma atitude consciente e arquitetadamente maldosa e com
toda a sua forccedila retoacuterica condena esta atitude
Nobre bdquoatualidade‟ magniacuteficos epiacutegonos geraccedilatildeo crescida no
leite materno da filosofia hegeliana Pela gloacuteria eterna quereis apertar
vossas garras em nossa antiga liacutengua para que a marca com um icnoacutelito
conserve para sempre o vestiacutegio de vossa existecircncia insiacutepida e sombria
Mas Dicirc Meliora Fora paquidermes fora Esta eacute a liacutengua alematilde Nela se
expressaram homens ou melhor nela cantaram grandes poetas e grandes
pensadores escreveram Arredai as patas Ou natildeo tereis o que comer (Soacute
isso os assusta) (Schopenhauer SOE 72-73)
23
A uacuteltima frase desta citaccedilatildeo nos eacute aclarada pelo texto Sobre a filosofia universitaacuteria
onde o filoacutesofo expotildee os argumentos de sua criacutetica agrave filosofia produzida em seu tempo
Para Schopenhauer os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo podem devido agrave sua funccedilatildeo
estatal se imiscuir do compromisso poliacutetico-religioso que seu cargo exige e
conseguintemente sustentados pelo Estado tratam de fazer sua apoteose Nas palavras
de Cacciola constantes na introduccedilatildeo agrave traduccedilatildeo brasileira do referido texto
ldquoSchopenhauer eacute um continuador da criacutetica romacircntica ao filisteiacutesmo que se origina em
Tieck A ironia que visa os homens de vida tatildeo regular como o reloacutegio lhe eacute bem
familiar O filisteu eacute o erudito pedante que soacute pensa na proacutepria vantagem O professor
de filosofia que pauta seus ensinamentos de acordo com os ditames do Estado e da
religiatildeo eacute o tipo acabado do filisteu A idolatria do Estado eacute a apoteose do filisteiacutesmo
(Schopenhauer SFU XXX) Por traacutes das ideacuteias dos ldquofiloacutesofos de profissatildeordquo estaria
incutido o retorno disfarccedilado da ldquoteologia judaicardquo de uma ldquopsicologia racionalrdquo da
ldquoliberdade da vontaderdquo e outros dogmas que de acordo com Schopenhauer refletem a
sua vocaccedilatildeo de trabalharem ldquoin maiorem Dei gloriamrdquo como exigido pela ideologia
estatal daquele periacuteodo Natildeo podem sob a pena de perderem o sustento financeiro
pessoal e familiar bem como sob o custo de perderem o status que o cargo lhes confere
contrariar os dogmas patronais
ldquo[] o intelecto dessa gente permanece fiel agrave sua destinaccedilatildeo
natural de trabalhar a serviccedilo da vontade como normalmente acontece
Mas por isso mesmo existe sempre uma intenccedilatildeo como fundamento do
seu agir e pensar eles tecircm fins o tempo todo e soacute tomam conhecimento
do que diz respeito a esses fins e portanto soacute do que corresponde a
esses fins A atividade do intelecto liberto da vontade condiccedilatildeo da pura
objetividade e por isso de todas as grandes realizaccedilotildees permanece-lhes
eternamente estranha ndash eacute uma faacutebula para seu coraccedilatildeordquo (Schopenhauer
SFU 63)
Desta forma os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo estariam voltados para a investigaccedilatildeo
objetiva da ldquoverdaderdquo a qual exigiria o distanciamento de todo e qualquer interesse
24
pessoal De acordo com o sistema schopenhaueriano tal distanciamento eacute um dom raro
com o qual a natureza a poucos contempla Na metafiacutesica schopenhaueriana a natureza
eacute aristocraacutetica O gecircnio eacute fenocircmeno raro seja ele filoacutesofo ou artista A percepccedilatildeo
objetiva do mundo alheia aos interesses pessoais da vontade individual eacute uma exceccedilatildeo
que soacute se manifesta raramente e as pessoas atadas aos interesses pessoais de sua
vontade natildeo podem reconhececirc-lo imediatamente Estes gecircnios produzidos pela natureza
seriam os verdadeiros educadores do mundo e os ldquoprofessores de filosofiardquo ao tentar
representar este papel que soacute agrave natureza cabe eleger causam-lhe repulsa
Tantas mentes comuns que se acham por cargo e profissatildeo no
dever de representar papeacuteis que a natureza nem ao menos lhes atribuiacutera e
de transportar cargas que exigem ombros de gigantes espirituais
oferecem na realidade um espetaacuteculo deveras lamentaacutevel Pois escutar
cantar os roucos e ver danccedilar os coxos eacute penoso mas ouvir filosofar a
mente limitada eacute insuportaacutevel (Schopenhauer SFU 34)
Prova do embotamento da capacidade de reconhecimento de uma produccedilatildeo genial era
para o filoacutesofo o fato de seus contemporacircneos ignorarem ou mesmo passarem agrave
margem do que seria a mais importante produccedilatildeo filosoacutefica do periacuteodo a cisatildeo entre o
real e o ideal perpetrada pela primeira criacutetica kantiana Esta era para o filoacutesofo a maior
prova do demeacuterito filosoacutefico de seus contemporacircneos preocupados com seus interesse
pessoais alheios a uma observaccedilatildeo objetiva do mundo natildeo levaram em consideraccedilatildeo os
limites impostos pela primeira criacutetica kantiana a toda investigaccedilatildeo racional
Depois de Kant ter cortado o nervo de todas as provas possiacuteveis
da teologia ndash tatildeo incisivamente que desde entatildeo ningueacutem mais pocircde
meter-se com elas ndash o esforccedilo filosoacutefico em quase cinquumlenta anos tem
consistido nas diversas tentativas de insinuar sutil e astuciosamente a
teologia e os escritos filosoacuteficos nada mais satildeo na sua maioria do que
tentativas infrutiacuteferas de reanimar um cadaacutever sem vida (Schopenhauer
SFU 81)
Natildeo nos interessa aqui adentrarmo-nos aos reais motivos existentes por
traacutes dos vitupeacuterios schopenhauerianos contra os pensadores de seu tempo nem
25
tampouco fazer juiacutezo valorativo sobre a importacircncia da filosofia da vontade em
comparaccedilatildeo ao idealismo absoluto Dentro do objetivo proposto qual seja situar
historicamente a filosofia da vontade e apontar suas influecircncias o importante eacute ressaltar
que a filosofia contemporacircnea a Schopenhauer natildeo fez efeito sobre a sua proacutepria a ponto
de modificaacute-la em seu conteuacutedo conforme esclarece o proacuteprio filoacutesofo ldquo [] meus
contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes permaneci
estranhosrdquo (apud Lefranc 2005 17) Eacute fundamental verificarmos que apesar do
sistema schopenhaueriano ter se desenvolvido agrave margem do idealismo de entatildeo seu
autor natildeo o desconhecia e muitas das ilustraccedilotildees e argumentaccedilotildees utilizadas por ele na
explicaccedilatildeo de suas teorias apoiavam-se nesta sua contenda com o seu tempo
Entretanto como a filosofia de seu tempo pretende-se herdeira do kantismo assim
tambeacutem procede Schopenhauer e a suas criacuteticas ao idealismo absoluto estatildeo
fundamentadas em sua pretensatildeo a uma heranccedila direta da filosofia kantiana Sobre a
heranccedila de Kant Schopenhauer esclarece ldquoEm todo caso natildeo reconheccedilo que tenha
acontecido algo na filosofia entre ele e mim por conseguinte ligo-me imediatamente a
elerdquo (Schopenhauer MVR 525)
Natildeo obstante as diversas criacuteticas ao retorno kantiano ao dogmatismo8
das quais a obra de Schopenhauer estaacute recheada sua admiraccedilatildeo por ele foi tambeacutem
abundantemente expressa Considerava-o ldquoa inteligecircncia mais original jaacute criada pela
naturezardquo (Schopenhauer SFU52) e afirmava que seus escritos capitais eram o ldquo[]
fenocircmeno mais importante que ocorreu ao longo dos uacuteltimos dois mil anos na filosofia
[]rdquo (Schopenhauer MVR 22) O maior reflexo desta admiraccedilatildeo pode ser observada
8 Nas palavras de Cacciola ldquoO criticismo de Kant teria segundo Schopenhauer perdido sua forccedila inicial
na segunda ediccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura Ou seja Schopenhauer acusa Kant de uma ldquorecaiacuteda no
dogmatismordquo por ter amenizado seu confronto com a teologia A ameaccedila dogmaacutetica jaacute configurada na
filosofia teoacuterica concretiza-se na Eacutetica de Kant quando esta acolhe como postulados Deus
imortalidade da alma e liberdade No poacutes-kantismo a importacircncia crescente atribuiacuteda agrave filosofia praacutetica
de Kant a expensas de sua criacutetica do conhecimento teria levado a uma espeacutecie de contaminaccedilatildeo da
razatildeo teoacuterica pela razatildeo praacutetica fazendo com que a primeira se transformasse num oacutergatildeo apto para
captar o Absolutordquo (Cacciola 1994 20)
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no fato de que eacute da filosofia kantiana que Schopenhauer retira o leitmotiv para o
desenvolvimento da ideacuteia central9 de sua filosofia Esta ideacuteia central eacute aquela contida
concisamente no tiacutetulo de sua obra principal O mundo como vontade e como
representaccedilatildeo10
A dualidade formada entre representaccedilatildeo e vontade atraveacutes da qual
Schopenhauer acredita ter desvendado o ldquomisteacuteriordquo cosmoloacutegico eacute uma apropriaccedilatildeo
assumida dos conceitos kantianos de fenocircmeno e coisa-em-si respectivamente
Dizemos apropriaccedilatildeo pois aqueles conceitos satildeo acrescidos na filosofia
schopenhaueriana de caracteriacutesticas singulares Eacute com base nesta dualidade de
perspectivas de conhecimento do mundo inspirada na primeira criacutetica kantiana que o
filoacutesofo desenvolve as demais teorias que compotildeem seu sistema sejam elas a esteacutetica a
eacutetica a poliacutetica etc
Para Schopenhauer ldquoo maior meacuterito de Kant eacute a distinccedilatildeo entre
fenocircmeno e coisa-em-sirdquo (Schopenhauer MVR 526) Esta distinccedilatildeo foi o que
possibilitou a ldquorevoluccedilatildeo copernicanardquo realizada sobre o dogmatismo anterior A partir
daquele momento ldquoo mundo objetivo como o conhecemos natildeo pertence agrave essecircncia das
coisas em si mesmas mas eacute seu mero FENOcircMENO condicionado exatamente por
aquelas mesmas formas que se encontram a priori no intelecto
humanordquo(Schopenhauer MVR 530) Na teoria kantiana temos o espaccedilo e o tempo
como formas da sensibilidade que na filosofia de Schopenhauer satildeo associadas agrave
faculdade do entendimento juntamente com a causalidade uacutenica das doze categorias
kantianas do entendimento mantidas por Schopenhauer em seu sistema Desta forma o
mundo enquanto representaccedilatildeo eacute aquele que se apresenta para o sujeito enquanto objeto
9 Quando dizemos ideacuteia central havemos de lembrar que no sistema schopenhaueriano esta categorizaccedilatildeo
eacute singular (o tema seraacute tratado no iniacutecio do proacuteximo capiacutetulo) 10
A importacircncia que o filoacutesofo daacute ao tiacutetulo de uma obra eacute esclarecedora para a compreensatildeo da
importacircncia de sua ideacuteia central ldquoo que o sobrescrito deve ser para uma carta eacute o que um tiacutetulo deve ser
para um livro ou seja antes de tudo deve ter o objetivo de destinaacute-lo agrave parte do puacuteblico que pode se
interessar por seu conteuacutedo Sendo assim o tiacutetulo precisa ser caracteriacutestico e por ser naturalmente
breve deve ser conciso lacocircnico pregnante e se possiacutevel um monograma do conteuacutedordquo
(Schopenhauer SOE 09-10)
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condicionado por estas trecircs formas presentes a priori no intelecto humano tempo
espaccedilo e causalidade Quanto ao mundo noumecircnico que dentro da teoria kantiana eacute um
ldquox desconhecidordquo Schopenhauer o explica atraveacutes da Vontade sua traduccedilatildeo da coisa-
em-si Essa dualidade que traz agrave tona a ldquocompleta diversidade entre o ideal e o realrdquo
(Schopenhauer MVR 527) doutrina que de acordo com Schopenhauer (MVR 528) foi
expressa por Kant de forma soacutebria calma demonstrada e incontestaacutevel jaacute havia sido
expressa tambeacutem em linguagem mais miacutetica e poeacutetica por outras duas doutrinas que
tambeacutem estatildeo profundamente presentes na obra Schopenhaueriana Platatildeo e os escritos
indianos dos Vedas e Puranas
Os estudos das obras de Platatildeo e Kant foram recomendaccedilatildeo de Schultze
um dos professores de Schopenhauer em Gottingen (Weissmann 1980 54) e formam os
pilares filosoacuteficos do sistema schopenhaueriano A separaccedilatildeo entre o real e o ideal
executada por Kant eacute vista tambeacutem na obra platocircnica Sua teoria das ideacuteias bem como
sua alegoria da caverna satildeo expressotildees de uma intuiccedilatildeo da existecircncia daquela separaccedilatildeo
O que Kant teria sistematizado a seu modo eacute a mesma verdade que ldquojaacute Platatildeo
incansavelmente repete e na maioria das vezes exprime em sua linguagem do seguinte
modo este mundo que aparece aos sentidos natildeo possui nenhum verdadeiro ser mas
apenas um incessante devir ele eacute e tambeacutem natildeo eacute sua apreensatildeo natildeo eacute tanto um
conhecimento mas uma ilusatildeordquo (Schopenhauer MVR 528)
Aleacutem de Platatildeo os livros sagrados dos indianos afirmavam esta ldquoilusatildeordquo
ldquofantasmagoriardquo do mundo e constituem tambeacutem uma fonte frequumlentemente utilizada
por Schopenhauer O contato do nosso filoacutesofo com o pensamento oriental se deu
quando do seu encontro com o orientalista Friedrich Majer no salatildeo de sua matildee em
28
Weimar A partir de entatildeo o interesse do filoacutesofo pelo pensamento oriental foi se
intensificando ao longo de sua vida 11
A mesma verdade representada de modo completamente outro eacute
tambeacutem uma doutrina capital dos vedas e puranas a saber a doutrina de
Maia pela qual natildeo se entende outra coisa senatildeo aquilo que Kant nomeia
o fenocircmeno em oposiccedilatildeo agrave coisa-em-si pois a obra de maia eacute
apresentada justamente como este mundo visiacutevel no qual estamos um
efeito maacutegico que aparece na existecircncia uma aparecircncia inconstante e
inessencial em si destituiacuteda de ser comparaacutevel agrave ilusatildeo de oacutetica e ao
sonho um veacuteu que envolve a consciecircncia humana um algo do qual eacute
igualmente falso e igualmente verdadeiro dizer que eacute ou natildeo eacute
(Schopenhauer MVR 528)
Estas trecircs doutrinas estavam admitidamente presentes quando da
elaboraccedilatildeo do nuacutecleo conceitual fundamental da posteriormente nominada Filosofia da
Vontade Entretanto aleacutem de formarem seu nuacutecleo conceitual podemos encontraacute-las
ainda posteriormente em outros instantes desta filosofia O pensamento oriental seraacute
figura fortemente presente na eacutetica schopenhaueriana desenvolvida no quarto livro do
Mundo onde o filoacutesofo adotaraacute como fundamento de sua eacutetica o sentimento da
compaixatildeo jaacute presente na doutrina budista Platatildeo e Kant satildeo ainda influecircncias
fundamentais como veremos no proacuteximo capiacutetulo da esteacutetica schopenhaueriana O
primeiro novamente atraveacutes de sua teoria das ideacuteias seraacute utilizado por Schopenhauer na
definiccedilatildeo do objeto artiacutestico Do segundo poderemos notar sua influecircncia nas teorias
schopenhauerianas do sublime da imaginaccedilatildeo e da contemplaccedilatildeo desinteressada todas
elas fundamentais agrave compreensatildeo da teoria da arte poeacutetica
- - - - - - - - - -
11
Suas fontes principais eram o Oupnekacutehat uma traduccedilatildeo latina dos vedas e o Asiatic Journals jornal
publicado pela sociedade asiaacutetica fundada em 1784 Para uma referecircncia completa das citaccedilotildees orientais
na obra de Schopenhauer veja o apecircndice do artigo de Moira Nicholls The influences of Eastern Thought
on Schopenhaueracutes Doctrine of the Thing-in-itself (in Janaway 1999 197-204)
29
Apresentadas as principais influecircncias teoacutericas do sistema
schopenhaueriano passemos a uma breve descriccedilatildeo do ambiente cultural que naquele
momento tinha como foco um projeto de fundaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para o teatro e a
literatura germacircnicas Tal projeto envolveu os mais importantes dramaturgos criacuteticos
escritores e pensadores do periacuteodo imediatamente anterior a Schopenhauer12
e eacute
tambeacutem posteriormente retomado por Nietzsche em seu Nascimento da Trageacutedia Sua
importacircncia para a filosofia da vontade pode ser medida pela recorrente referecircncia feita
a estes pensadores nas obras dos filoacutesofos Seu iniacutecio em meados do seacuteculo XVIII deu-
se pela influecircncia exercida pelo historiador da arte Johann J Winckelmann junto aos
escritores poetas e dramaturgos posteriores dentre eles Lessing Goethe e Schiller
A influecircncia winckelmanniana que de acordo com Butler (1958 11)
criou ondas cujo violento distuacuterbio ldquoainda varrem as praias do seacuteculo XXrdquo se pautou
em duas noccedilotildees fundamentais13
a imitaccedilatildeo dos antigos e o belo ideal Winckelmann
propunha um novo modelo no qual a arte germacircnica deveria se basear para atingir uma
grandiosidade rara e ldquoinimitaacutevelrdquo a imitaccedilatildeo dos gregos Por esta imitaccedilatildeo o
historiador natildeo propunha uma mera coacutepia das obras de arte gregas poreacutem uma imitaccedilatildeo
do modo de produccedilatildeo artiacutestica dos gregos qual seja sintetizar a beleza ideal descoberta
na observaccedilatildeo da diversidade objetiva da natureza Esta proposta de um retorno ao
modelo antigo coloca Winckelmann na esteira da conhecida querela entre antigos e
modernos e eacute a igniccedilatildeo para o periacuteodo literaacuterio conhecido como classicismo germacircnico
Esta disputa quanto agrave valorizaccedilatildeo das obras poeacuteticas antigas ou modernas estaraacute de um
modo ou de outro presente nas teorias schopenhaueriana e nietzscheana da trageacutedia
12
De acordo com Schopenhauer as obras de tais poetas e escritores assim como a filosofia de Kant satildeo
exemplos para os quais a literatura e a filosofia pobres de seu tempo deveriam se voltar No que se refere
ao uso da liacutengua ele aconselha ldquoLede vede qual liacutengua Winckelmann Lessing Klopstock Wieland
Goethe Buumlrger Schiller falaram e emulai-a mas natildeo fazei o mesmo com o jargatildeo estupidamente
excogitado pelos miseraacuteveis literatos atuais e entre eles pelos professores que vatildeo agrave escola de liacutenguardquo
(Schopenhauer SOE 57-58) 13
Esta duas noccedilotildees fundamentais satildeo ressaltadas por Suumlssekind e Machado em seus trabalhos sobre o
tema Veja Suumlssekind 2008 67-77 e Machado 2006 9-14
30
Como veremos posteriormente Schopenhauer privilegiaraacute a trageacutedia moderna em
detrimento da antiga argumentando que aquela cumpre com maior competecircncia o seu
objetivo enquanto forma de arte qual seja provocar repulsa agrave vontade de viver e
estimular sua negaccedilatildeo Apesar deste privileacutegio pelas obras traacutegicas modernas o filoacutesofo
natildeo deixa como seus contemporacircneos de ter os gregos como modelo e natildeo satildeo raros
seus elogios agraves produccedilotildees helecircnicas Para Schopenhauer Winckelmann foi para a
histoacuteria da arte assim como ele o eacute para a da filosofia um exemplo do modo epiciacuteclico
atraveacutes do qual a natureza de tempo em tempo faz avanccedilar o conhecimento do gecircnero
humano Para o filoacutesofo a retomada do projeto kantiano realizada pelo seu sistema eacute a
demonstraccedilatildeo de que entre ele e Kant nenhum conhecimento foi produzido Como
exemplo deste esquema epiciacuteclico na histoacuteria da arte Schopenhauer utiliza-se do
retorno de Winckelmann agrave beleza claacutessica o que nos mostra a importacircncia dada pelo
filoacutesofo agrave forma de arte grega bem como ao projeto inaugurado pelo historiador da arte
Apoacutes explicar o esquema epiciacuteclico da evoluccedilatildeo dos progressos humanos
Schopenhauer diz
Para quem deseja poreacutem ter uma prova do esquema geral dos
epiciclos aqui exposto com base na histoacuteria da arte basta observar a
escola de escultura de Bernini que florescia ainda no seacuteculo passado
particularmente em seu desenvolvimento francecircs sucessivo e que
representava a natureza comum em vez da beleza claacutessica e o decoro do
minueto francecircs em vez da simplicidade e da graccedila antigas Tal escola
faliu quando apoacutes a repreensatildeo de Winckelmann voltou-se agrave escola dos
antigos (Schopenhauer SOE 110)
Nietzsche por sua vez seguiraacute o caminho winckelmanniano de exaltaccedilatildeo da forma de
arte antiga apresentando a trageacutedia grega como modelo para a arte moderna e elogiando
a iniciativa de seus predecessores em valorizar e recuperar a arte helecircnica
31
Conviria que alguma vez se pesasse diante dos olhos de um juiz
insubornaacutevel em que tempo e em que homens o espiacuterito alematildeo se
esforccedilou mais vigorosamente por aprender dos gregos e se admitirmos
com confianccedila que esse louvor uacutenico deveria ser atribuiacutedo agrave nobiliacutessima
luta de Goethe Schiller e Winckelmann pela cultura haveria em todo
caso que acrescentar que desde aquele tempo e depois das influecircncias
imediatas daquela luta tornou-se cada vez mais fraca de maneira
incompreensiacutevel a aspiraccedilatildeo de se chegar por uma mesma via agrave cultura e
aos gregos (Nietzsche NT 120)
Podemos perceber entatildeo a importacircncia do helenismo proposto por Winckelmann no
pensamento germacircnico ao observarmos a sua duraccedilatildeo tendo em vista que mais de um
seacuteculo separa o historiador da arte e o filoacutesofo da vontade de poder o que confirma a
forccedila de suas propostas para uma cultura em formaccedilatildeo e justifica o epiacuteteto com o qual
Butler caracterizou este periacuteodo dizendo que nele vemos ldquoa tirania da Greacutecia sobre a
Alemanhardquo14
O segundo ponto fundamental da teoria da arte winckelmanniana o belo
ideal natildeo provocou menor interesse em seu tempo Este belo ideal era alcanccedilado a
partir da reuniatildeo em uma uacutenica obra harmocircnica daquilo que o artista observa de mais
belo na natureza
A natureza tem seus defeitos o corpo mais belo natildeo deixa de tecirc-los e
nele encontramos frequumlentemente partes que em outros satildeo mais belas ou
podem supor-se mais perfeitas [] Os gregos trataram de reunir as formas
elegantes de vaacuterios corpos belos como sabemos pelo diaacutelogo de Soacutecrates com o
ceacutelebre pintor Parrasio [] Esta seleccedilatildeo das partes belas e sua harmocircnica
associaccedilatildeo em uma soacute figura produziu a beleza ideal (Winckelmann 2002
130)
Tal beleza encontrou sua manifestaccedilatildeo primeira na Greacutecia do periacuteodo helecircnico devido
ao favorecimento das condiccedilotildees geograacutefico-climaacuteticas15
e poliacuteticas16
Aleacutem da beleza
14
Tiacutetulo de sua obra Butler 1958 15
Sobre a influecircncia climaacutetica Winckelmann deduz ldquoA natureza depois de haver se manifestado em
gradaccedilotildees extremas de frio e de calor se estabeleceu na Greacutecia como em seu centro e por isso reina
naquele paiacutes uma temperatura intermediaacuteria entre o inverno e o veratildeo E quanto mais se aproxima deste
centro mais claridade e serenidade oferece e suas obras se manifestam em formas mais graciosas e
amaacuteveis e com detalhes mais caracteriacutesticos e decididosrdquo (Winckelmann 2002106) 16
Sobre as condiccedilotildees poliacuteticas sejam elas patriarcais democraacuteticas ou tiracircnicas Winckelmann conclui o
seguinte ldquoCom relaccedilatildeo ao regime poliacutetico e o governo da Greacutecia a liberdade eacute uma das causas da
preeminecircncia dos gregos na arte Tambeacutem a liberdade parece ter estabelecido na Greacutecia a sua sede existia
32
formal retirada da diversidade das formas naturais eleitas as mais belas as obras gregas
eram exemplares devido agrave importacircncia dada pelos artistas agrave sua expressatildeo A obra de
arte deve sua forccedila tanto agrave beleza das formas quanto agrave expressatildeo da alma nela contida
De acordo com Winckelmann ldquoa expressatildeo de uma alma grande vai muito aleacutem da
plasmaccedilatildeo de uma bela naturezardquo isto ocorre devido ao fato de que para o historiador
da arte ldquona Greacutecia a sabedoria estendia a matildeo agrave arte e insuflava nas figuras almas
mais que comunsrdquo (Winckelmann 1958 19) As caracteriacutesticas que esta expressatildeo deve
possuir satildeo aquelas contidas na passagem mais famosa da obra de Winckelmann na
qual ele descreve ainda como exemplo daquela expressatildeo artiacutestica o grupo estatuaacuterio
do Laocoonte que por sua vez seraacute alvo de uma grande controveacutersia posterior da qual
participaratildeo dentre outros Lessing Herder Goethe Schelling e Schopenhauer
Reproduzimos a passagem de Winckelmann em sua integridade
A caracteriacutestica geral e principal das obras mestras gregas eacute uma
nobre simplicidade e uma serena grandeza tanto na atitude como na
expressatildeo Assim como nas profundidades o mar estaacute sempre calmo por
muito que se agite a superfiacutecie do mesmo modo a expressatildeo nas figuras
dos gregos mostra em meio a todas as paixotildees uma alma grande e
comedida Isso transmite o rosto do Laocoonte ndash e natildeo soacute o dele ndash em
meio agrave mais violenta dor O sofrimento que aparece em todos os
muacutesculos e fibras do corpo e que no baixo ventre contraiacutedo se
experimenta tatildeo intensamente que parecemos senti-lo natildeo se exterioriza
contudo mediante qualquer ira no rosto e em toda a atitude Natildeo lanccedila
um grito terriacutevel tal como Virgiacutelio cantou em seu Laocoonte A abertura
da boca natildeo o permitiria Mais parece um suspiro angustiado como o
descreve Sadolet A dor do corpo e a grandeza da alma estatildeo distribuiacutedos
com igual forccedila atraveacutes de toda a composiccedilatildeo da figura e em certa
medida estatildeo equilibrados Laocoonte sofre mas sofre como o
Filoctetes de Soacutefocles sua dor nos toca a alma mas desejariacuteamos poder
suportar essa dor com a grandeza desse homem (Winckelmann 1958
18-19 grifo nosso)
inclusive junto ao tronos de seus reis que governavam paternalmente a seus suacuteditos antes que mais
ilustrados gozassem do destino de uma completa liberdade Homero chama a Agamemnoacuten de pastor de
seus povos com o que queria designar sua ternura com seus subordinados e sua preocupaccedilatildeo constante
pela felicidade dos mesmos Eacute bem verdade que depois surgiram tiranos mas natildeo o foram mais para uma
determinada cidade e a naccedilatildeo inteira jamais reconheceu um soberano uacutenicordquo (Winckelmann 2002 109)
33
Desta famosa passagem retiramos dois momentos que especialmente nos interessam O
primeiro dele eacute a enunciaccedilatildeo que caracterizaraacute o ideal de beleza das obras gregas nobre
simplicidade e uma serena grandeza Este ideal winckelmanniano de beleza eacute o que
torna a arte grega nas palavras de Suumlssekind ldquoinimitaacutevel e ao mesmo tempo faz dela o
modelo a ser imitadordquo (Suumlssekind 2008 69) Interessa-nos especialmente devido agrave
influecircncia desta definiccedilatildeo para a teoria do jovem professor de filologia da Basileacuteia
Podemos ver ateacute mesmo pelo vocabulaacuterio utilizado para descrever a arte grega a
proximidade e a influecircncia exercida por estes conceitos nas teorias esteacuteticas do primeiro
Nietzsche Luminosidade serenidade harmonia satildeo alguns dos conceitos que
posteriormente seratildeo utilizados por Nietzsche ao definir o seu impulso artiacutestico
apoliacuteneo17
O segundo momento - quando Winckelmann defende o espiacuterito grego na
escultura do Laocoonte em contraposiccedilatildeo ao personagem de Virgiacutelio comparando esta
representaccedilatildeo escultural com o Filoctetes de Soacutefocles - seraacute o precursor do posterior
debate sobre as fronteiras que separam as formas de arte Para Winckelmann ldquoa nobre
simplicidade e a serena grandeza das estatuas gregas eacute tambeacutem a verdadeira
caracteriacutestica dos escritos gregos da melhor eacutepoca dos escritos da escola
socraacuteticardquo(Winckelmann 1958 31) O debate sugerido pela passagem do qual
participaraacute posteriormente o proacuteprio Schopenhauer seraacute iniciado por outro pensador
de grande importacircncia para o projeto cultural alematildeo Gotthold Ephraim Lessing
Lessing em sua obra Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da
poesia apresentaraacute a contenda que chegaraacute ateacute Schopenhauer Para Lessing o ponto de
discordacircncia com Winckelmann estaacute no motivo pelo qual na escultura o Laocoonte natildeo
17
Segundo Rodriges (2007 93-126) tambeacutem o conceito do impulso dionisiacuteaco estaria mesmo que em
germe presente nos estudos de Winckelmann Segundo seu artigo o mapeamento da origem e
desenvolvimento da discussatildeo sobre os citados impulsos artiacutesticos da natureza ou seja sobre a
importacircncia dos deuses Apolo e Dioniacutesio na cultura grega abrangeria necessariamente diversas aacutereas do
pensamento alematildeo desde Winckelmann dentre elas os estudos filoloacutegicos o movimento romacircntico e as
filosofias idealistas
34
apresenta as caracteriacutesticas de quem grita e lamenta Como vimos para Winckelmann o
conjunto estatuaacuterio em questatildeo eacute exemplar pelo fato de transmitir atraveacutes da atitude
estoacuteica diante da dor a grandeza de alma que seria a regra universal da verdadeira arte
grega Esta grandeza enquanto regra universal estaria ainda de acordo com o
historiador da arte presente tanto nas formas pictoacutericas como nas obras poeacuteticas
Contrapondo-se a Winckelman Lessing afirma - exemplificando atraveacutes de passagens
de poetas queridos ao proacuteprio Winckelmann como Homero e Soacutefocles - que em vaacuterios
momentos da poesia antiga diversos personagens dentre eles deuses e heroacuteis proferem
exaltados lamentos e gritos e isto natildeo lhes subtrai a grandeza da alma Sendo assim se
na poesialdquoo gritar na sensaccedilatildeo de dor corporal pode coexistir muito bem com uma
grande alma portanto a expressatildeo de uma tal alma natildeo pode ser a causa pela qual
apesar disso o artista natildeo quer imitar esse grito no seu maacutermore antes deve haver um
outro motivo por que aqui ele separa-se do seu rival o poeta que expressa esse grito
com o melhor propoacutesitordquo(Lessing 1998 86) O motivo pelo qual em sua representaccedilatildeo
estatuaacuteria o Laocoonte natildeo grita eacute para Lessing uma questatildeo de limitaccedilatildeo da forma de
expressatildeo escultoacuterica que ao se submeter agrave ldquolei da belezardquo natildeo pode representar o grito
desfigurador Em suas palavras
O mestre visava a suprema beleza sob as condiccedilotildees aceitas da dor
corporal Esta em toda a sua violecircncia desfiguradora era incompatiacutevel
com aquela Ele foi obrigado a reduzi-la ele foi obrigado a suavizar o
grito em suspiro natildeo porque o grito denuncia uma alma indigna mas
antes porque ele dispotildee a face de um modo asqueroso (Lessing 1998
92)
Devemos ressaltar que segundo a teoria artiacutestica de Lessing para quem as leis a que
devem obedecer a arte estatildeo ligadas agrave sua interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica a arte eacute
julgada atraveacutes do seu efeito Neste contexto ao conceder a seus personagens
caracteriacutesticas de humanidade como por exemplo a manifestaccedilatildeo da dor atraveacutes de
35
lamentos e gritos o poeta estaria aproximando o heroacutei traacutegico do puacuteblico a ser atingido
e consequumlentemente maximizando a identificaccedilatildeo entre eles e com isto o efeito
esperado qual seja a catarse atraveacutes do temor e da compaixatildeo Esta identificaccedilatildeo
alcanccedilada por via da demonstraccedilatildeo dos lamentos dos heroacuteis dramaacuteticos natildeo pode ser
obtida da mesma forma pelas artes pictoacutericas Nestas que satildeo expressotildees de um
momento uacutenico a beleza natildeo pode deixar de estar presente pois ela eacute um dos
ingredientes mais fundamentais do efeito buscado Na poesia o heroacutei natildeo seraacute
caracterizado em uma uacutenica accedilatildeo como ocorre na escultura Sendo assim o grito
narrado eacute apenas um momento do conjunto que iraacute definir o personagem
O Laocoonte de Virgiacutelio grita mas esse Laocoonte que grita eacute
justamente aquele que noacutes jaacute conhecemos e amamos como o patriota
mais cordato e o pai mais afetuoso Noacutes vinculamos o seu grito natildeo ao
seu caraacuteter mas antes apenas ao seu sofrimento insuportaacutevel Apenas
esse uacuteltimo noacutes ouvimos no seu grito e o poeta pode tornaacute-lo sensiacutevel
apenas graccedilas a esse grito (Lessing 1998 106)
Com isto tanto o escultor que suprime o grito quanto o poeta que o descreve ao
fazerem o fazem de acordo com as leis que regem suas respectivas formas de arte
Da contenda sobre o grito do Laocoonte e sua representaccedilatildeo escultoacuterica e
poeacutetica iratildeo participar ainda diversos pensadores Dentre os mais ilustres podemos
destacar Goethe cuja explicaccedilatildeo sobre a escultura proacutexima em muitos pontos da de
Lessing encontra-se nos Propileus Para o poeta o grupo estatuaacuterio ldquoesgota o seu objeto
e preenche com sucesso todas as condiccedilotildees da arterdquo (Goethe 2005126) Segundo
Goethe a escultura eacute limitada a um uacutenico momento da accedilatildeo e sua comparaccedilatildeo com a
poesia de Virgiacutelio eacute injusta O poeta a avalia assim como Lessing atraveacutes de seu efeito
ainda dentro das categorias poeacuteticas de Aristoacuteteles e destaca
O ser humano possui apenas trecircs sentimentos no sofrimento
proacuteprio e alheio o medo o terror e a compaixatildeo a previsatildeo temerosa de
um mal que se aproxima a percepccedilatildeo inesperada do sofrimento presente
36
e a participaccedilatildeo no sofrimento duradouro ou que passou todos os trecircs
sentimentos satildeo representados e suscitados por esta obra de arte e na
verdade na gradaccedilatildeo a mais conveniente (Goethe 2005 126)
Em sua obra principal Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 46 a seus comentaacuterios do
Laocoonte que seratildeo acrescidos de exemplos no posterior volume de suplementos
Reconhece o avanccedilo feito por Lessing ao colocar no lugar de um fundamento
psicoloacutegico um fundamento puramente esteacutetico e critica ainda as teorias psicoloacutegicas e
fisioloacutegicas de seu tempo como as de Hirt e Fernow18
Para Schopenhauer apesar de
sua aproximaccedilatildeo do que seria uma ldquoexplicaccedilatildeo corretardquo da obra Lessing natildeo encontrou
o seu ponto exato qual seja a explicaccedilatildeo de que o grito natildeo pertence ao domiacutenio de
uma representaccedilatildeo escultoacuterica
Antes de qualquer investigaccedilatildeo psicoloacutegica e fisioloacutegica sobre se
Laocoonte em sua situaccedilatildeo poderia gritar ou natildeo deve-se decidir em
relaccedilatildeo ao grupo de esculturas o seguinte que nele o grito natildeo pode ser
exposto pelo motivo de que a exposiccedilatildeo do grito reside por inteiro fora
do domiacutenio da escultura (Schopenhauer MVR 2005 303)
Para Schopenhauer a simples exposiccedilatildeo que representaria o grito ou seja ldquoo
escancarar violento da bocardquo natildeo pode ocasionar o efeito que o grito mesmo enquanto
forma de expressatildeo ocasionaria O efeito que o grito pode causar em uma arte
descritiva atraveacutes do uso da imaginaccedilatildeo do leitor ou mesmo na arte representativa no
teatro tornar-se-ia motivo de riso caso seja representado por uma boca escancarada na
arte plaacutestica Schopenhauer utiliza-se do exemplo do Laocoonte para demonstrar a
necessidade do estabelecimento de fronteiras entre as artes que devido agrave suas formas
devem obedecer agraves competecircncias determinadas pelo objeto representado (no caso da
teoria schopenhaueriana as competecircncias seratildeo determinadas pelas ideacuteias a serem
representadas como veremos posteriormente) Esta preocupaccedilatildeo com os limites entre as
18
Segundo Schopenhauer Hirt (Horen 1797 parte 10) apresenta a explicaccedilatildeo de que Laocoonte natildeo grita
pois estaacute impossibilitado pela sufocaccedilatildeo que o leva agrave morte Fernow por sua vez faz uma amalgama das
opiniotildees de Winckelmann Lessing e Hirt
37
formas artiacutesticas presente na esteacutetica schopenhaueriana e no Laocoonte de Lessing foi
contudo como nos lembra Suzuki (Rosenfield 2001 36-56) ignorada por Goethe
(como podemos ver pelos elementos da poeacutetica aristoteacutelica utilizados pelo poeta para
explicar a escultura na citaccedilatildeo presente na paacutegina anterior) e seraacute posteriormente
tambeacutem desconsiderada por Nietzsche em seu projeto de uma obra de arte total
Diante do acima exposto ainda tratando de Lessing podemos perceber
que toda a discussatildeo acerca do Laocoonte foi desencadeada pela motivaccedilatildeo de defesa da
arte poeacutetica agrave qual Lessing dedicou sua vida como escritor diretor e criacutetico teatral
Desta forma a importacircncia de Lessing para o tema em questatildeo nesta dissertaccedilatildeo estaacute
mais ligado ao seu papel junto a um projeto de formaccedilatildeo de um teatro alematildeo e sua
interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica Enquanto teoacuterico e criacutetico do teatro o autor da
Dramaturgia de Hamburgo exerceu grande influecircncia na cultura posterior ao oferecer a
seu tempo uma nova interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica que vai de encontro agraves
interpretaccedilotildees francesas e de Gottsched que eram por sua vez inflexiacuteveis em relaccedilatildeo agraves
regras (das unidades de espaccedilo tempo e lugar do estatuto social dos personagens da
linguagem e do nuacutemero de atos) Lessing atento agraves necessidades de uma burguesia em
ascensatildeo que natildeo se identificava mais com as concepccedilotildees aristocraacuteticas do modelo de
teatro francecircs e imbuiacutedo na construccedilatildeo do projeto de formaccedilatildeo cultural de uma naccedilatildeo
fragmentada oferece atraveacutes de suas interpretaccedilotildees uma seacuterie de elementos que estaratildeo
presentes nas consideraccedilotildees de pensadores posteriores Dentre estes elementos podemos
destacar as seguintes uma discussatildeo acerca dos conceitos de mimese temor
compaixatildeo catarse a defesa da utilizaccedilatildeo de caracteres mistos a liberdade do gecircnio
ante as regras o enaltecimento dos teatros espanhol e inglecircs principalmente de
Shakespeare
38
Ao tratarmos do referido projeto de um teatro alematildeo e tambeacutem do
classicismo germacircnico dois nomes ainda satildeo fundamentais para sua formaccedilatildeo bem
como eacute incontestaacutevel sua influecircncia sobre Schopenhauer e o jovem Nietzsche19
satildeo
eles Goethe e Schiller O primeiro deles maior dos poetas do classicismo germacircnico
foi um ampliador do projeto Winckelmanniano ldquoPois Goethe pensa o ideal de beleza
natildeo soacute em relaccedilatildeo agrave pintura e agrave escultura mas tambeacutem e principalmente em relaccedilatildeo agrave
poesia ou agrave arte dramaacutetica ampliando as ideacuteias de Winckelmann nesse domiacutenio como
teoacuterico e como criador de obras teatraisrdquo (Machado 2006 14) Seu classicismo
impresso em seus textos teoacutericos e na forma e conteuacutedo de diversas de suas produccedilotildees
literaacuterias eacute o auge do projeto Winckelmanniano Podemos ver na esteira de Machado
(2006 14-22) que o ideal de beleza proposto por Winckelmann eacute ainda o que domina a
noccedilatildeo Goetheana dos gregos e eacute apoiado neste ideal que o poeta interpreta a arte do
mundo helecircnico e a apresenta como um exemplo para a arte de seu tempo Ressaltamos
poreacutem que dada a sua extrema heterogeneidade como nos adverte Butler (1958 85)
encontrar um senso de harmonia interna no todo da obra goetheana eacute tarefa tatildeo incerta
como determinar o grau de sua influecircncia no pensamento de nossos filoacutesofos No que se
refere a Schopenhauer entretanto natildeo podemos deixar de ressaltar que sua convivecircncia
com o poeta foi norteada pelas discussotildees cientiacuteficas e filosoacuteficas que ocupavam o palco
de seus estudos agrave eacutepoca Goethe dedicou vinte anos de sua vida ao estudo das cores e
sua obra Doutrina das cores eacute o resultado desta investigaccedilatildeo Ela atraiu o interesse do
jovem Schopenhauer que apoacutes alguns encontros com Goethe dedicou-se a escrever a
sua proacutepria teoria que divergia em diversos pontos da teoria do poeta fato que marcou o
fim da relaccedilatildeo amistosa dos mesmos Sobre este periacuteodo de convivecircncia
19
De acordo com Martin (1996) a obra desenvolvida por Nietzsche enquanto escritor e pensador eacute
demasiado complexa para ser reduzida ou atribuiacuteda a determinada influecircncia Entretanto em uma
estatiacutestica crua podemos ter o vislumbre desta influecircncia como se segue ldquoSchopenhauer eacute referenciado
394 vezes na obra de Nietzsche Wagner 327 vezes a Goethe existem 311 menccedilotildees Schiller encontra-se
em nono lugar com 126 menccedilotildeesrdquo (Martin 1996 5)
39
especificamente sobre o episodio citado Goethe vai escrever mais tarde conforme
citaccedilatildeo de Safranski
O Dr Schopenhauer foi para mim um amigo benevolente
Estivemos de acordo em muitas coisas mas foi impossiacutevel evitar ao final
um certo distanciamento como dois amigos que ateacute certo momento
caminharam juntos se datildeo a matildeo para despedir pois querem dirigir-se um
ao norte outro ao sul perdendo-se rapidamente de vista um ao outro
(apud Safranski 1991 265)
Ainda na esteira do movimento de estabelecimento de um projeto
artiacutestico nacional encontramos Schiller que ao lado de Goethe foi o responsaacutevel pelas
maiores obras do classicismo literaacuterio de Weimar Para o estudo em questatildeo o que mais
nos interessa em sua obra eacute o periacuteodo no qual antes do contato com Goethe Schiller
produz seus escritos teoacutericos sobre a trageacutedia Estes estudos podem ser considerados
em uma perspectiva histoacuterica como uma ponte entre a interpretaccedilatildeo da trageacutedia nos
moldes puramente aristoteacutelicos e a trageacutedia vista enquanto forma de arte que para
atingir o efeito dela esperado deve refletir a condiccedilatildeo traacutegica do homem pensada com
base em elementos retirados da filosofia moral e da esteacutetica kantiana Em seus textos
teoacutericos sobre a poesia traacutegica pertencentes ao periacuteodo que Schiller assume ter estado
sob influecircncia da filosofia kantiana ele descreve a trageacutedia como expressatildeo do sublime
ndash conceito extraiacutedo da criacutetica kantiana do juiacutezo ndash como a representaccedilatildeo sensiacutevel da
dicotomia entre a liberdade moral a vontade individual (vontade tomada enquanto
faculdade de pensar e agir livremente) por um lado e a necessidade natural e instintiva
por outro Vemos pela primeira vez em Schiller a utilizaccedilatildeo de categorias filosoacuteficas
kantianas na elaboraccedilatildeo de uma teoria da trageacutedia o que teraacute continuidade com as
teorias do idealismo absoluto e a do proacuteprio Schopenhauer Este eacute um momento
extremamente importante devido ao fato de marcar toda a reflexatildeo futura sobre o tema
ao fundar o deslocamento de uma interpretaccedilatildeo poeacutetica da trageacutedia baseada em
40
comentaacuterios da obra aristoteacutelica para uma interpretaccedilatildeo do traacutegico enquanto fenocircmeno
que descreve a situaccedilatildeo do homem no mundo De acordo com Machado ldquoEacute do
encontro de um grande dramaturgo como Schiller com a filosofia de Kant -
principalmente a sua eacutetica considerada como uma filosofia da liberdade e sua
esteacutetica no que diz respeito agrave teoria do juiacutezo sobre o sublime ndash que nasce a primeira
filosofia do traacutegico uma reflexatildeo filosoacutefica original que criou um tipo novo de
pensamento sobre a trageacutediardquo (Machado 2006 54) Na teoria schopenhaueriana da
trageacutedia podemos ver caracteriacutesticas da teoria schilleriana Primeiramente a presenccedila
marcante da influecircncia kantiana no que se refere ao sublime Em segundo lugar a
leitura da trageacutedia enquanto instrumento para a percepccedilatildeo de uma ordem moral do
mundo Tais caracteriacutesticas seratildeo aprofundadas no capiacutetulo posterior Vale antecipar que
na obra do jovem Nietzsche poderemos ver a exaltaccedilatildeo de Schiller em sua tentativa de
compreensatildeo do mundo helecircnico aleacutem do elogio agrave teoria schilleriana do coro Veremos
entretanto uma criacutetica acirrada no que se refere ao projeto de um teatro enquanto
instituiccedilatildeo moral
Neste capiacutetulo foram delineadas as principais influecircncias filosoacuteficas que
alicerccedilaram o sistema schopenhaueriano bem como esboccedilaram-se as diversas teorias
artiacutesticas que surgiram no periacuteodo em questatildeo teorias estas que propuseram mateacuteria
para a formaccedilatildeo do pensamento de nossos filoacutesofos A partir da cisatildeo entre fenocircmeno e
noumeno proposta por Kant e sua primeira criacutetica Schopenhauer elabora as matrizes de
seu sistema e para ilustraacute-lo encontra apoio na cosmologia platocircnica e no pensamento
oriental Vimos ainda que sua teoria esteacutetica eacute alimentada pela frequumlentaccedilatildeo agraves
categorias apresentadas por artistas teoacutericos e criacuteticos de arte de seu periacuteodo Por seu
turno vimos com Winckelmann a origem do estudo sobre os gregos e sua arte aleacutem do
estabelecimento destes como um modelo para a arte alematilde projeto este que foi
41
retomado por Lessing que por sua vez intensificou o estudo e propocircs um modelo de um
teatro nacional independente projeto que seraacute mais tarde revisitado e aprofundado por
Goethe e Schiller Esta apresentaccedilatildeo de influecircncias eacute imprescindiacutevel para identificarmos
a origem de certos elementos que satildeo fundamentais ao entendimento da proacutepria doutrina
schopenhaueriana tais como o caraacuteter moral de sua teoria esteacutetica sua preocupaccedilatildeo
com o estabelecimento de limite entre as artes sua interpretaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo da poeacutetica
sua utilizaccedilatildeo de conceitos esteacuteticos kantianos (sublime belo e desinteresse) sua
apreciaccedilatildeo das obras modernas seu reconhecimento da produccedilatildeo claacutessica seu desprezo
agrave filosofia de seu tempo Eacute tambeacutem atraveacutes do mapeamento aqui feito de algumas de
suas influecircncias mesmo que brevemente apontado que poderemos mais tarde
identificar alguns dos aspectos originais e singulares de sua teoria
Quanto agraves influecircncias presentes na teoria da trageacutedia do jovem Nietzsche
apontaremos complementos no capiacutetulo correspondente Eacute imprescindiacutevel dar destaque
no que se refere agrave obra nietzscheana agrave sua formaccedilatildeo filoloacutegica ao seu conviacutevio com
Richard Wagner e agrave sua leitura do proacuteprio Schopenhauer - e isto seraacute feito
posteriormente Esperamos ter deixado claro ateacute aqui que diferentemente de Zaratustra
Nietzsche natildeo desceu simplesmente de uma montanha mas faz parte de uma tradiccedilatildeo
histoacuterica assim como Schopenhauer e que a contextualizaccedilatildeo de suas teorias eacute
fundamental para a identificaccedilatildeo dos elementos ali presentes que singularmente se
originaram do sistema metafiacutesico da Vontade
42
2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU
SUBSTRATO METAFIacuteSICO
ldquoOra se todo mundo como representaccedilatildeo eacute
a visibilidade da Vontade a arte eacute o
clareamento dessa visibilidade a cacircmera
obscura que mostra os objetos mais
puramente permitindo-nos melhor abarcaacute-
los e compreendecirc-los eacute o teatro dentro do
teatro a peccedila dentro da peccedila em Hamletrdquo
(Schopenhauer)
Utilizando-se de uma metaacutefora retirada do Eacutedipo de Soacutefocles Schopenhauer nos
oferece um exemplo da caracteriacutestica de conexatildeo interna dos temas abordados em sua
obra20
ldquo minha filosofia eacute como a Tebas de cem portas desde todos os lados se pode
entrar e atraveacutes de todos se pode chegar por um caminho direto ateacute o centrordquo
(Schopenhauer 2002 4) Tendo em vista que nosso objetivo neste capiacutetulo eacute apresentar
a teoria schopenhaueriana da trageacutedia e seus fundamentos filosoacuteficos utilizaremo-nos
desta porta para termos acesso ao sistema schopenhaueriano Procuraremos percorrer o
20
Barboza define bem esta caracteriacutestica marcante da filosofia schopenhaueriana ldquoSchopenhauer eacute o
filoacutesofo da organicidade Procura-a porque com ela onde quer que se esteja no seu sistema estar-se-aacute
em toda parte O todo conteria as partes e seria contido por elas De uma metafiacutesica da efetividade se vai
para uma do belo desta para a da eacutetica que por sua vez pode remeter agrave muacutesica por seu turno a nos
enviar para a efetividade numa por assim dizer circularidade virtuosa A unidade natildeo se perde do
horizonte de observaccedilatildeordquo (Barboza 2001 137)
43
substrato metafiacutesico sustentador da teoria do traacutegico schopenhaueriana e perceber assim
a conectividade interna existente entre sua cosmologia sua teoria esteacutetica e sua eacutetica
De posse deste meacutetodo procuraremos destacar os conceitos fundamentais da teoria
traacutegica e de sua visatildeo de mundo que viratildeo posteriormente se fazer presentes tambeacutem
na obra do jovem Nietzsche
21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo
Agrave descriccedilatildeo das artes poeacuteticas Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 51 do primeiro
volume e o capiacutetulo 37 do segundo volume de sua obra principal Tais descriccedilotildees
encontram-se por sua vez ao final dos trechos dedicados agrave teoria esteacutetica (livro III de
MVR e sus complementos) e finalizam seus apontamentos do que podemos chamar na
esteira de Young (2005) das artes natildeo-musicais21
Em ambos os casos a teoria da
trageacutedia estaacute localizada ao final da apresentaccedilatildeo Esta localizaccedilatildeo juntamente com as
diversas citaccedilotildees e exemplos retirados de peccedilas traacutegicas das quais o filoacutesofo se utiliza ao
longo de seu trabalho nos permite ver a importacircncia da arte traacutegica para Schopenhauer
Em sua teoria artiacutestica existe uma hierarquizaccedilatildeo das artes que leva em consideraccedilatildeo a
capacidade de cada uma em apresentar um grau especiacutefico de objetivaccedilatildeo da vontade
Na cosmologia schopenhaueriana a vontade essecircncia do mundo identificada como
sendo a coisa-em-si kantiana manifesta-se (torna-se objeto de conhecimento) atraveacutes de
diversos graus ndash que exprimem a nitidez com que a vontade se manifesta para o
observador - representados pelos reinos da natureza e finalmente pelo homem Desta
forma ela se objetivaria no mundo inorgacircnico atraveacutes das forccedilas magneacuteticas e da
gravidade no mundo vegetal atraveacutes das funccedilotildees orgacircnicas no mundo animal atraveacutes
21
Como veremos mais adiante a muacutesica eacute uma exceccedilatildeo no sistema das artes schopenhaueriano pois natildeo
se relaciona a uma objetivaccedilatildeo da vontade mas expressa a proacutepria vontade e desta forma natildeo figura na
sistematizaccedilatildeo hieraacuterquica
44
dos instintos e dos motivos assim como o faz no homem A classificaccedilatildeo das artes
corresponde portanto a esta hierarquizaccedilatildeo cosmoloacutegica de objetivaccedilatildeo da vontade22
Sendo assim a arquitetura e a hidraacuteulica mostram a objetivaccedilatildeo da vontade no seu grau
mais baixo ao expor o jogo das forccedilas que caracterizam a mateacuteria tais como a gravidade
rigidez dureza resistecircncia luz A jardinagem e a pintura da natureza satildeo as formas
artiacutesticas cujo fim eacute a exposiccedilatildeo da objetivaccedilatildeo da vontade que se manifesta no reino
vegetal A pintura de animais encontra-se em um niacutevel superior pois o reino animal
objeto de sua representaccedilatildeo expotildee de forma mais evidente a vontade objetivada Temos
ainda as pinturas de retratos a pintura histoacuterica e a escultura que das artes plaacutesticas
formam a categoria superior cujo objeto eacute a exposiccedilatildeo da vontade no grau mais elevado
de sua cognoscibilidade o homem Esta mesma exposiccedilatildeo a do homem eacute tambeacutem o
objeto da arte poeacutetica que agrave diferenccedila das artes que fazem sua exposiccedilatildeo de modo
puramente intuitivo eacute auxiliada pela imaginaccedilatildeo No aacutepice das artes poeacuteticas
encontramos a trageacutedia a uacuteltima arte natildeo-musical a ser descrita A arte traacutegica eacute aquela
que possui a caracteriacutestica de por sua natureza representar de forma mais ilustrativa a
objetivaccedilatildeo mais desenvolvida da vontade a vida humana e suas relaccedilotildees Veremos
mais tarde que aleacutem de corresponder agrave hierarquia de objetivaccedilatildeo da vontade mais
desenvolvida a arte traacutegica ocupa um lugar especial na filosofia schopenhaueriana
devido agrave ldquograndeza de seu efeitordquo (Schopenhauer 2005 333) Diante do exposto
podemos depreender que a arte possui na filosofia schopenhaueriana um papel
cognitivo e a trageacutedia por sua vez eacute a forma artiacutestica que por sua competecircncia cognitiva
ocupa o primeiro lugar entre as artes natildeo musicais
22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo
22
Vemos aqui um exemplo da citada inter-conectividade existente no sistema schopenhaueriano tendo
em vista que a elaboraccedilatildeo de sua classificaccedilatildeo artiacutestica obedece ao construto metafiacutesico do livro II de
MVR e sua consequumlente cosmologia
45
A tarefa a que se propotildee o sistema schopenhaueriano eacute a decifraccedilatildeo do ldquoenigma
do mundordquo ie encontrar uma resposta agrave pergunta o que eacute o mundo Esta tarefa tem
origem no idealismo subjacente na primeira criacutetica kantiana e de certa forma era uma
tarefa da qual estava imbuiacutedo todo o pensamento filosoacutefico daquele periacuteodo ie por
decifraccedilatildeo do enigma do mundo podemos entender a decifraccedilatildeo da coisa-em-si
kantiana Temos daiacute o ponto de partida da filosofia de Schopenhauer o idealismo
transcendental do mundo fenomecircnico Sob o ponto de vista da representaccedilatildeo o mundo eacute
objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito agraves condiccedilotildees a priori do
entendimento que para o filoacutesofo satildeo as categorias do espaccedilo do tempo e da
causalidade
Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das formas a priori do entendimento eacute
interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos advindos da filosofia Platocircnica e oriental
como um mundo ilusoacuterio Conforme a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana Platatildeo jaacute
identificava esta caracteriacutestica ilusoacuteria do mundo em sua contraposiccedilatildeo teoacuterica entre o
mundo fiacutesico onde o devir impossibilitava a apreensatildeo do ser e o mundo das ideacuteias
onde haveria o verdadeiro encontro com o ser das coisas Ainda de acordo com a
interpretaccedilatildeo de Schopenhauer os livros sagrados indianos Vedas e Puranas faziam
esta distinccedilatildeo atraveacutes da noccedilatildeo do veacuteu de maia a consciecircncia humana seria envolvida
por um veacuteu o que resultaria em uma visatildeo oniacuterica do mundo e impediria assim a
percepccedilatildeo da realidade
Entretanto o mundo pode ainda ser conhecido atraveacutes de um segundo ponto de
vista como vontade Este eacute o ponto de vista que Schopenhauer utiliza-se para decifrar a
incognosciacutevel coisa-em-si kantiana Percorrendo uma ldquovia subterracircneardquo de modo
imanente Schopenhauer identifica nas accedilotildees do corpo bioloacutegico os atos da vontade
46
enquanto coisa-em-si e de forma analoacutegica a estabelece como essecircncia governante do
mundo Faz-se necessaacuterio aqui ressaltar como o fazem Brum (1998 23) e Rosset23
que
natildeo devemos interpretar esta analogia como uma visatildeo antropomoacuterfica do mundo Essa
essecircncia do mundo encontrada empiricamente natildeo eacute todavia um ente racional uma
ldquoalma do mundordquo Se por um lado o mundo fenomecircnico eacute aquele onde o princiacutepio de
razatildeo24
estabelece as normas de funcionamento um mundo natildeo-fenomecircnico mundo em
si enquanto vontade se expressa por sua alogicidade irracionalidade Grundlosigkeit
(falta de fundamento) Essa essecircncia irracional que manifesta-se nos diversos reinos e
indiviacuteduos do mundo eacute a raiz da visatildeo pessimista da existecircncia que de acordo com o
filoacutesofo pode ser a todo momento constatada empiricamente
As diversas manifestaccedilotildees da vontade suas objetidades carregam inerentemente
a sua iacutendole puro impulso cego vontade de vida insaciabilidade Notadamente o
mundo fenomecircnico objetivaccedilatildeo da vontade expressa a essecircncia desta vontade atraveacutes
de um conflito permanente Desenha-se um cenaacuterio de batalha onde cada objetidade da
vontade cada ser do mundo eacute orientado por sua essecircncia irracional desguarnecida de
qualquer telos ldquoAssim a vontade de vida crava continuamente os dentes na proacutepria
carne e em diferentes figuras eacute seu proacuteprio alimentordquo (Schopenhauer MVR 211) Este
fundamento ontoloacutegico a vontade determina assim o caraacuteter absurdo que a vida
humana toma na filosofia schopenhaueriana eterno esforccedilo carente de ordem ou
finalidade O ldquomecanismo internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens
marionetes guiados pela carecircncia
[]nenhuma satisfaccedilatildeo todavia eacute duradoura mas antes sempre eacute um
ponto de partida de um novo esforccedilo o qual por sua vez vemos travado em
toda parte de diferentes maneiras em toda parte lutando e assim portanto
23
[] natildeo haacute que transpor a experiecircncia da motivaccedilatildeo humana ao conjunto das forccedilas naturais para
compreender o segredo da natureza senatildeo o contraacuterio transpor o misteacuterio das forccedilas naturais ao conjunto
das motivaccedilotildees psicoloacutegicas para desvendar-se o segredo da vontade humana (Rosset 2005 31) 24
Princiacutepio tratado na tese de doutoramento de Schopenhauer SRQPRS bem como no livro I de MVR
O princiacutepio estabelece que todo acontecimento possui uma causa uma razatildeo de ser
47
sempre como sofrimento natildeo haacute nenhum fim uacuteltimo do esforccedilo portanto natildeo
haacute nenhuma medida e fim do sofrimento (Schopenhauer 2005 399)
Se carecircncia vontade e desejo satildeo a tocircnica da vida humana na maior parte do tempo e
satildeo experimentados como dor e infelicidade a felicidade por sua vez eacute definida
negativamente como um momento de ausecircncia daquela dor
Sentimos a dor e natildeo a ausecircncia da dor a inquietude e natildeo a
tranquumlilidade o medo e natildeo a seguranccedila Sentimos desejo como quando
temos fome e sede entretanto ao alimentarmo-nos estas sensaccedilotildees
deixam de existir para noacutes (MVR II 630)
Toda satisfaccedilatildeo momentacircnea de um querer eacute imediatamente suprimida por outro querer
ou se perdurar por algum tempo por menor que seja este transforma-se em teacutedio Um
ldquopecircndulo entre a dor e teacutediordquo eacute a definiccedilatildeo que Schopenhauer propotildee para a vida
humana Assim se daacute tambeacutem com a sauacutede a juventude e a liberdade Todos satildeo
conceitos definidos negativamente soacute os conhecemos atraveacutes de sua ausecircncia Este afatilde
por prolongar e conservar a vida essecircncia iacutentima de cada indiviacuteduo natildeo eacute contudo
resultado de uma observaccedilatildeo objetiva da mesma de um conhecimento que eleja a vida
como algo de valor a ser mantido e preservado e portanto os ldquo[] seres natildeo satildeo
atraiacutedos por algo que se lhes apresenta mas satildeo empurrados a elerdquo (MVR II 398) A
luta eterna observada nos diversos reinos da natureza a busca por alimento o esforccedilo da
procriaccedilatildeo se comparados aos momentos fugazes de satisfaccedilatildeo fazem da vida ldquoum
negoacutecio cujos investimentos natildeo cobrem nem de longe os custosrdquo (MVR II 399)
Em todas estas consideraccedilotildees se faz claro que a vontade de viver
natildeo eacute a consequecircncia do conhecimento da vida natildeo se trata de uma
bdquoconclusio ex praemissis‟ nem em geral eacute algo secundaacuterio antes
contudo eacute o primeiro e incondicionado a premissa de todas as premissas
e precisamente por isso aquilo do que haacute de partir a filosofia pois a
vontade de viver natildeo se apresenta como a consequumlecircncia do mundo senatildeo
o mundo como consequumlecircncia da vontade de viver (MVR II 405)
Um dos pontos essenciais a ser verificado nesta visatildeo de mundo eacute o
destronamento da razatildeo O ceacuterebro oacutergatildeo da razatildeo eacute o resultado de um esforccedilo da
48
vontade em seu percurso de objetivaccedilatildeo A racionalidade humana estaacute a serviccedilo da
vontade que eacute em sua essecircncia grundlos A razatildeo eacute ferramenta para que o homem
enquanto objetidade da vontade consiga satisfazer a seus anseios Em oposiccedilatildeo agrave
filosofia racionalista de entatildeo onde o ldquoreal eacute o racionalrdquo assistimos ao surgimento de
uma filosofia irracionalista das forccedilas inconscientes onde a razatildeo na medida em que eacute
mecanismo da vontade estaacute sempre a serviccedilo desta O comportamento humano eacute
naturalmente egoiacutesta voltado para os proacuteprios interesses e estes por sua vez satildeo
expressatildeo desta vontade aloacutegica desprovida de telos Schopenhauer se mostrava
consciente da singularidade desta sua biparticcedilatildeo do ego e da consequumlente visatildeo de
mundo que ela trouxe agrave luz e enfatizou isto em seus manuscritos berlinenses ldquo[] a
divisatildeo da mente o eu em duas partes diferentes - em vontade como parte essencial e
primaacuteria e em intelecto como secundaacuteria - eacute o grande princiacutepio e meacuterito de minha
filosofia e tambeacutem a principal diferenccedila dos demais sistemasrdquo (MR III 328)
Temos entatildeo os dois pontos de vista do mundo que fundamentam a visatildeo de
Schopenhauer e que posteriormente seratildeo transformados pela teoria nietzscheana da
trageacutedia nos dois impulsos da natureza o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco O primeiro deles eacute o
mundo da individualidade da pluralidade regido pelo que Schopenhauer vai chamar
utilizando-se de um termo retirado da escolaacutestica de principium individuationis
Nesse sentido servindo-me da antiga escolaacutestica denomino
tempo e espaccedilo pela expressatildeo principium individuationis que peccedilo para
o leitor guardar para sempre Tempo e espaccedilo satildeo os uacutenicos pelos quais
aquilo que eacute uno e igual conforme a essecircncia e o conceito aparece como
pluralidade de coisas que coexistem e se sucedem (MVR 171)
No segundo toto genere diferente do primeiro existe a vontade una indivisiacutevel natildeo
submetida ao princiacutepio de razatildeo e por isso sem fundamento
Em apoio a sua tese Schopenhauer invoca ao final do capiacutetulo 46 (Sobre a
nulidade e o sofrimento da vida) dos complementos de MVR a opiniatildeo de diversos
49
pensadores dentre eles Heroacutedoto Platatildeo Teoacutegnis Homero os tragedioacutegrafos gregos
Shakespeare Byron Voltaire Rousseau Faz-se importante neste momento ressaltar que
o filoacutesofo aponta a invenccedilatildeo da trageacutedia pelos gregos como uma expressatildeo desta visatildeo
de mundo ponto de vista que como veremos tambeacutem seraacute adotado pelo primeiro
Nietzsche
Ante tudo mencionarei que os gregos por mais distantes que
estivessem da visatildeo de mundo cristatilde e da alta Aacutesia e por muito que se
mantiveram sob o ponto de vista da afirmaccedilatildeo da vontade se fizeram
profundamente impressionados pela miseacuteria da existecircncia Isso eacute
demonstrado pela invenccedilatildeo da trageacutedia obra deles (MVR II 640)
23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana
Existe poreacutem uma forma de conhecimento que eacute ndash agrave diferenccedila daquela
subordinada ao princiacutepio de razatildeo que percebe os objetos em sua relaccedilatildeo com os outros
objetos do espaccedilo-tempo ndash uma forma mais universal pois mostra o objeto em sua
caracteriacutestica mais geral qual seja a de ser objeto para o sujeito A esta forma de
conhecimento Schopenhauer associa a apreciaccedilatildeo esteacutetica O seu objeto eacute a ideacuteia
platocircnica25
um grau determinado de objetivaccedilatildeo da coisa-em-si
Os diferentes graus de objetivaccedilatildeo da Vontade expressos em
inumeraacuteveis indiviacuteduos e que existem como seus protoacutetipos
inalcanccedilaacuteveis ou formas eternas das coisas que nunca aparecem no
tempo e no espaccedilo meacutedium do indiviacuteduo mas existem fixamente natildeo
submetidos a mudanccedila alguma satildeo e nunca vindo-a-ser enquanto as
coisas nascem e perecem sempre vecircm-a-ser e nunca satildeo os GRAUS DE
OBJETIVACcedilAtildeO DA VONTADE ia dizer natildeo satildeo outra coisa senatildeo as
IDEacuteIAS DE PLATAtildeO (MVR 191)
Esta instacircncia do conhecimento eacute alcanccedilada intuitivamente pela contemplaccedilatildeo
esteacutetica da natureza ou pela facilitaccedilatildeo de uma obra de arte Desta forma as obras de
25
Conforme o filoacutesofo ldquo A expressatildeo mais breve e sucinta daquele famoso dogma platocircnico foi dada por
Dioacutegenes Laeacutercio (II 12) Platatildeo ensina que as ideacuteias da natureza existem como protoacutetipos jaacute as demais
coisas apenas se assemelham a elas e satildeo suas coacutepiasrdquo (MVR 191)
50
arte na teoria schopenhaueriana satildeo uma exposiccedilatildeo destes graus de objetivaccedilatildeo da
vontade as ideacuteias Ao contraacuterio da criacutetica agrave arte presente na repuacuteblica platocircnica - onde a
arte seria uma coacutepia mais imperfeita da ideacuteia por retratar o mundo fenomecircnico sua
coacutepia direta - Schopenhauer aproxima as obras artiacutesticas das ideacuteias eternas as define
como suas expressotildees diretas Contudo a intuiccedilatildeo das ideacuteias exige um estado de
consciecircncia diferente do estado comum Neste uacuteltimo o aparelho cognitivo sob a eacutegide
da vontade estaacute voltado para a realizaccedilatildeo dos interesses individuais e entatildeo se
movimenta no mundo guiado por estes interesses ldquoCaso entretanto a Ideacuteia deva de
alguma maneira tornar-se conhecimento e ser conhecida pelo sujeito entatildeo isso soacute
pode ocorrer graccedilas agrave supressatildeo da individualidade no sujeito que conhecerdquo (MB 30)
A forma artiacutestica de conhecimento cujo possuidor eacute o denominado gecircnio estaacute
associada a um desprendimento das reacutedeas da vontade O gecircnio eacute entatildeo aquele que livre
dos interesses da vontade percebe as ideacuteias por traacutes dos objetos alheio aos princiacutepios
de razatildeo e de individuaccedilatildeo e traduz este objeto na obra de arte O observador esteacutetico eacute
portanto um partiacutecipe da genialidade na medida em que intui a ideacuteia por traz do objeto
observado conforme tambeacutem ao seu grau de desinteresse26
Durante a apreciaccedilatildeo
esteacutetica o homem se vecirc livre momentaneamente daquela parte de si que eacute a causadora
de todo o sofrimento individual e coletivo a vontade para transformar-se em um ldquopuro
sujeito de conhecimentordquo Este estado de satisfaccedilatildeo decorrente da suspensatildeo da vontade
individualizada eacute o sentimento do belo
Aquilo que se poderia nomear o lado mais belo e a pura alegria
da vida precisamente porque nos arranca da existecircncia real e nos
transforma em espectadores desinteressados diante dela eacute o puro
conhecimento que permanece alheio a todo querer eacute a fruiccedilatildeo do belo a
alegria autecircntica na arte Mas mesmo isso requer dispositivos raros e
cabe apenas a pouquiacutessimos e mesmo para estes eacute um sonho
passageiro (MVR 404)
26
Vemos nesta forma de associaccedilatildeo entre conhecimento e interesse mais uma heranccedila kantiana no caso
provinda da definiccedilatildeo de belo da criacutetica da faculdade de juiacutezo
51
- - - - - - - - - -
Ao descrever a apreciaccedilatildeo artiacutestica como um ato cognitivo Schopenhauer
preocupa-se em diferenciaacute-la do conhecimento cientiacutefico De fato boa parte das
consideraccedilotildees sobre a arte eacute dedicada ao esclarecimento desta diferenccedila
Podemos por conseguinte definir a arte como o modo de
consideraccedilatildeo das coisas independente do princiacutepio de razatildeo em oposiccedilatildeo
justamente agrave consideraccedilatildeo que o segue que eacute o caminho da experiecircncia e
da ciecircncia O modo de consideraccedilatildeo que seque o princiacutepio de razatildeo eacute o
racional o uacutenico que vale e que auxilia na vida praacutetica e na ciecircncia o
modo apartado do conteuacutedo do princiacutepio de razatildeo eacute o genial o uacutenico que
vale e que auxilia na arte (MB 59)
No caso da trageacutedia cujo objetivo eacute o conhecimento do homem e de suas relaccedilotildees a
ciecircncia que mais se assemelha a esta forma artiacutestica seria a histoacuteria Esta natildeo tem como
objetivo a demonstraccedilatildeo da essecircncia do homem em sua forma atemporal ou seja a
demonstraccedilatildeo daquilo que fundamenta toda accedilatildeo humana independente dos
acontecimentos empiacutericos
[ ]toda ciecircncia no sentido proacuteprio do termo compreendida como
conhecimento sistemaacutetico guiado pelo fio condutor do princiacutepio de
razatildeo parte sempre de dois dados baacutesicos um deles sem exceccedilatildeo eacute o
princiacutepio de razatildeo em uma de suas figuras como oacuterganon outro eacute o
objeto especiacutefico de cada uma delas enquanto problema (Schopenhauer
MVR 73)
Desta forma a histoacuteria teria a lei de motivaccedilatildeo e o os fatos humanos como oacuterganon e
problemas respectivamente Entretanto interessa a Schopenhauer um conhecimento
mais universal que soacute pode ser apresentado pela arte e que aponta por sua proximidade
agrave essecircncia daquilo que eacute a uma ldquoiacutendole imutaacutevelrdquo das manifestaccedilotildees
Podemos ver entatildeo que sendo consideradas como meios para o
conhecimento da essecircncia da humanidade arte poeacutetica e histoacuteria possuem todavia
objetos de conhecimento diferentes A primeira quando produzida pelo verdadeiro
gecircnio tenciona manifestar a ideacuteia por traacutes destes conceitos a ideacuteia de homem de
humanidade intuitivamente independentemente do princiacutepio de razatildeo do devir como
52
objeto puro de conhecimento alheio agrave corrente dos motivos em suas caracteriacutesticas
essenciais atemporais A histoacuteria por sua vez segue o rastro do princiacutepio de razatildeo
procurando apresentar o fenocircmeno humano em suas relaccedilotildees descrever-lhe em suas
situaccedilotildees particulares individuais empiacutericas Nas palavras de Schopenhauer
Arte e ciecircncia tecircm em uacuteltima instacircncia o mesmo estofo a saber
justamente o mundo tal como ele se posta diante de noacutes ou antes uma
parte destacada dele quanto ao todo do mundo soacute a filosofia o
considera Contudo a grande diferenccedila entre ciecircncia e arte reside na
maneira como elas consideram o mundo e trabalham seu estofo Tal
oposiccedilatildeo pode ser indicada com uma palavra a ciecircncia considera os
fenocircmenos do mundo seguindo o fio condutor do princiacutepio de razatildeo ao
passo que a arte coloca totalmente de lado o princiacutepio de razatildeo
independente dele para que assim a ideacuteia entre em cena
(SCHOPENHAUER MB 57)
Podemos notar que a valorizaccedilatildeo do que eacute imutaacutevel alheio agrave idealidade do tempo eacute a
raiz da valorizaccedilatildeo do conhecimento artiacutestico frente ao histoacuterico Este uacuteltimo natildeo visa o
acesso aos modelos eternos pois seu objeto satildeo os acontecimentos individuais do
mundo fenomecircnico que satildeo eventos meramente aparentes se considerarmos a
idealidade do tempo O que se manifesta no fluxo temporal do mundo fenomecircnico satildeo
sempre as mesmas formas eternas as ideacuteias entretanto com roupagens diferentes o
mesmo homem enquanto objetivaccedilatildeo da vontade a mesma humanidade Onde quer que
seja e em qualquer momento especiacutefico sua essecircncia eacute a mesma e esta essecircncia eacute o que
deve ser alvo de uma compreensatildeo privilegiada de entendimento e natildeo as suas diversas
manifestaccedilotildees Por este motivo Schopenhauer deixando explicito o seu chamado anti-
historicismo afirma que ldquose algueacutem jaacute lera Heroacutedoto jaacute estudara bastante histoacuteria e
efeitos filosoacuteficos Pois laacute jaacute estaacute tudo o que compotildee a posterior histoacuteria mundial a
atividade o obrar o sofrimento e o destino do gecircnero humano (Schopenhauer MVR
II 496) Podemos notar claramente a oposiccedilatildeo entre a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana
da histoacuteria e as tendecircncias de seu tempo principalmente presentes na filosofia de
Hegel Este de acordo com a criacutetica de Schopenhauer ignorando a filosofia critica de
53
Kant toma o fenocircmeno histoacuterico como coisa em si ao atribuir-lhe uma unidade de
consciecircncia Entretanto unidade de consciecircncia eacute um atributo dos indiviacuteduos e natildeo do
gecircnero humano Estas filosofias de acordo com o Schopenhauer satildeo frutos do realismo
otimista queldquo tomam o mundo como perfeitamente real e potildeem como fim do mesmo
uma miseraacutevel felicidade terrena (Schopenhauer MVR II 495)
- - - - - - - - - -
Colocando de lado o fio condutor do princiacutepio de razatildeo e mirando-se no
conhecimento da ideacuteia imutaacutevel atemporal encontramos a trageacutedia como fenocircmeno que
apresenta agrave intuiccedilatildeo o homem e sua condiccedilatildeo Eacute a forma de arte que tem como objeto o
grau mais elevado de objetivaccedilatildeo da vontade A intenccedilatildeo do artista traacutegico eacute de acordo
com Schopenhauer transmitir a ideacuteia intuiacuteda tarefa que seraacute bem sucedida de acordo
com a habilidade de utilizaccedilatildeo da teacutecnica artiacutestica por um lado e com a capacidade de
percepccedilatildeo esteacutetica do apreciador por outro O tragedioacutegrafo diferentemente do
historiador que relata os fatos empiacutericos explicitando seus motivos e consequumlecircncias
deve para obter o efeito esperado em sua obra expor uma situaccedilatildeo tal em que o homem
possa manifestar todas as suas potencialidades e dessa forma transmitir ao apreciador
esteacutetico a ideacuteia representada ldquoO poeta expotildee com escolha e intenccedilatildeo caracteres
significativos em situaccedilotildees significativas jaacute o historiador toma aos dois como eles
aparecemrdquo (Schopenhauer MVR 323) A qualidade da obra traacutegica seraacute julgada entatildeo
pela sua capacidade de representaccedilatildeo da ideacuteia de humanidade e Schopenhauer qualifica
as trageacutedias de acordo com esta capacidade Natildeo existe em seu sistema uma
consideraccedilatildeo histoacuterica da produccedilatildeo traacutegica Ele natildeo leva em consideraccedilatildeo as condiccedilotildees
histoacutericas no que se refere agrave origem ou mesmo quanto ao desenvolvimento desta forma
artiacutestica e a avalia unicamente conforme o seu efeito E neste ponto a trageacutedia apresenta
uma peculiaridade frente agraves demais artes ela eacute a forma de arte que provocaraacute o
54
sentimento do sublime Como vimos o correlato subjetivo de toda apreciaccedilatildeo esteacutetica eacute
o sentimento causado pela anulaccedilatildeo da vontade individual mediante a elevaccedilatildeo ao
estado de puro sujeito de conhecimento O sublime assim como o belo satildeo expressotildees
deste sentimento que se diferenciam unicamente por sua forma
Se tal estado surgiu por si mesmo na medida em que o objeto foi
solicitado e se apresentou ndash e fomos postos sem resistecircncia pelo mero
desaparecer da vontade da consciecircncia no estado do conhecer puro ndash ou
se primeiro foi despertado por elevaccedilatildeo livre consciente sobre a vontade
na medida em que o objeto contemplado tem com esta uma relaccedilatildeo
desfavoraacutevel hostil cuja prossecuccedilatildeo suprimiria a contemplaccedilatildeo ndash aiacute
reside a diferenccedila entre o belo e o sublime (MB 119)
A impressatildeo do sublime eacute portanto uma forma de colocar-se no estado do puro conhecer
ao nos depararmos com o objeto que por sua apresentaccedilatildeo sugere uma ldquorelaccedilatildeo hostilrdquo
com o indiviacuteduo27
Jaacute vimos que a visatildeo de mundo de Schopenhauer identifica a vida humana como
sofrimento infindaacutevel no entanto ao elaborar sua definiccedilatildeo da trageacutedia Schopenhauer
aponta para o desfecho moral de sua obra (livro IV de MVR) e afirma que a trageacutedia
melhor eacute aquela que expotildee a renuacutencia agrave vida O filoacutesofo compara obras contemporacircneas
agraves antigas e afirma sua preferecircncia por estas em decorrecircncia da capacidade que elas tecircm
de provocar esta a renuacutencia agrave vida Vejamos a descriccedilatildeo que Schopenhauer faz da
trageacutedia
No aacutepice da arte poeacutetica tanto no que se refere agrave grandeza do seu
efeito quanto agrave dificuldade da sua realizaccedilatildeo deve-se ver a trageacutedia e de
fato ela assim foi reconhecida Observe-se aqui algo de suma significaccedilatildeo
para toda a nossa visatildeo geral de mundo o objetivo dessa suprema
realizaccedilatildeo poeacutetica natildeo eacute outro senatildeo a exposiccedilatildeo do lado terriacutevel da vida
27
Vemos na teoria do sublime Schopenhaueriana mais uma vez a influecircncia de Kant Schopenhauer iraacute
identificar duas formas de sublime e utilizar-se-aacute dos termos kantianos ldquosublime dinacircmicordquo e ldquosublime
matemaacuteticordquo para diferenciaacute-los No primeiro o objeto de apreciaccedilatildeo se mostra a princiacutepio uma ameaccedila
ao observador ldquoum poder que suprimiria qualquer resistecircnciardquo(MB 104) No sublime matemaacutetico o
segundo o objeto eacute visto em sua incomensuraacutevel grandiosidade diante da qual o observador infere a sua
infimidade A afinidade entre Schopenhauer e a teoria criacutetica do juiacutezo eacute expressa em sua obra principal
ldquoDe longe o que haacute de mais excelente na criacutetica da faculdade de juiacutezo eacute a teoria do sublime Ela eacute
incomparavelmente mais bem sucedida que a teoria do belo e daacute natildeo apenas como esta o meacutetodo geral
da investigaccedilatildeo mas tambeacutem um trecho do correto caminho de maneira que embora natildeo forneccedila a
soluccedilatildeo propriamente dita do problema chega bem perto delardquo(MVR 660)
55
a saber o inominado sofrimento a miseacuteria humana o triunfo da maldade
o impeacuterio ciacutenico do acaso a queda inevitaacutevel do justo e do inocente E
em tudo isso se encontra uma indicaccedilatildeo significativa da iacutendole do mundo
e da existecircncia Eacute o conflito da Vontade consigo mesma que aqui
desdobrado plenamente no grau mais elevado de sua objetidade entra em
cena de maneira aterrorizante Ele se torna visiacutevel no sofrimento da
humanidade em parte produzido por acaso e erro que se apresentam
como os senhores do mundo e personificados como destino e perfiacutedia os
quais aparecem enquanto intencionalidade em parte advindo da
humanidade mesma por meio dos entrecruzados esforccedilos voluntaacuterios dos
indiviacuteduos e da maldade e perversatildeo da maioria Trata-se de uma uacutenica e
mesma Vontade que em todos vive e aparece cujos fenocircmenos
entretanto combatem entre si e se entredevoram [] Por fim esse
conhecimento no indiviacuteduo purificado e enobrecido pelo sofrimento
mesmo atinge o ponto no qual o fenocircmeno o veacuteu de maia natildeo mais o
ilude Ele vecirc atraveacutes da forma do fenocircmeno do principium
individuationis com o que tambeacutem expira o egoiacutesmo nele baseado Com
isso os ateacute entatildeo poderosos MOTIVOS perdem o seu poder e em vez
deles o conhecimento perfeito da essecircncia do mundo atuando como
quietivo da vontade produz a resignaccedilatildeo a renuacutencia natildeo apenas da vida
mas de toda a vontade de vida mesma (Schopenhauer MVR 333)
Percebemos nesta descriccedilatildeo que a trageacutedia aleacutem de expor a visatildeo de mundo construiacuteda
pelo filoacutesofo tem como fim uacuteltimo provocar um efeito moral no apreciador esteacutetico
qual seja a renuacutencia ao mundo Vejamos entatildeo a relaccedilatildeo entre a visatildeo de mundo
schopenhaueriana o efeito esteacutetico provocado pela trageacutedia e o projeto moral existente
por traacutes de suas teorias
24 A finalidade moral da trageacutedia
Para que possamos perceber a relaccedilatildeo intriacutenseca entre cosmologia metafiacutesica
arte e a eacutetica faz-se necessaacuterio uma pequena excursatildeo sobre esta uacuteltima Que todo o
sistema schopenhaueriano possui um viacutenculo inseparaacutevel com o seu projeto eacutetico eacute fato
que natildeo passa despercebido a seus comentadores Um projeto de juventude eacute descrito
por Safranski (1991 188-198) Young (2006 07 200) Aramayo (2001 56-59) e
Cartwright (Janaway 1999 252) como uma premissa no desenvolvimento da filosofia
56
schopenhaueriana trata-se do projeto de uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Young a descreve
como uma transcendecircncia do mundo ordinaacuterio para o ldquomundo verdadeirordquo Esta
consciecircncia melhor poderia ser experimentada atraveacutes da apreciaccedilatildeo artiacutestica e da
consciecircncia eacutetica ambas originadas do desvelamento de maia Assim Schopenhauer a
descreve conforme citaccedilatildeo de Young (2006 9) ldquopersonalidade e causalidade existem
neste mundo compreensiacutevel temporal sensorial Mas a consciecircncia melhor me leva a
um mundo onde nem personalidade nem sujeito ou objeto existem maisrdquo Safransky
descreve a consciecircncia melhor como um estado semelhante ao ecircxtase miacutestico
Este arrebatamento estaacute livre das coordenadas espaccedilo-temporais
cujo ponto de interseccedilatildeo eacute o eu corporal apartado do espaccedilo do tempo
do eu Os miacutesticos chamam a esta experiecircncia ldquonunc stansrdquo agora
permanente A intensidade deste presente natildeo conhece princiacutepio nem fim
e soacute pode desaparecer porque noacutes desaparecemos dele (Safransky1991
190)
Conforme Aramayo tanto a figura do gecircnio como a do santo satildeo expressotildees do
reconhecimento desta consciecircncia melhor e a filosofia de Schopenhauer pretende-se
uma terceira via que tambeacutem apontaria para este estado de consciecircncia A caracteriacutestica
primordial deste estado eacute o desprendimento dos desejos individuais e o comportamento
virtuoso que adveacutem deste desprendimento Eacute na esteira do entendimento desta
consciecircncia melhor que as bases eacutetico-metafiacutesicas do filoacutesofo foram elaboradas Em
apoio a esta afirmaccedilatildeo Aramayo apresenta duas citaccedilotildees a partir das quais em
momentos distintos de sua vida Schopenhauer apresenta seu projeto de identificaccedilatildeo
entre eacutetica e metafiacutesica Nos escritos de Juventude em 1813 vemos o projeto
Em meu espiacuterito encontra-se em gestaccedilatildeo uma filosofia onde
metafiacutesica e eacutetica devem constituir uma soacute coisa cuja dissociaccedilatildeo eacute tatildeo
errocircnea como agrave da alma e do corpo (Aramayo 2001 41)
Jaacute nos escritos tardios especificamente em seu ensaio de 1836 Sobre a vontade na
natureza veremos Schopenhauer identificar esta uniatildeo
57
Tatildeo soacute esta metafiacutesica que jaacute eacute eacutetica por si soacute ao estar construiacuteda
com esse material primordialmente eacutetico que se supotildee a vontade
constitui real e imediatamente um sustentaacuteculo para a eacutetica em vista de
que poderia haver colocado em minha metafiacutesica o nome de eacutetica (apud
Aramayo 2001 43)
Cartwright aponta ainda na uacuteltima obra schopenhaueriana de 1851 Parerga e
paralipomena a afirmaccedilatildeo de que a ldquosua real filosofia culminou em um ponto de vista
altamente eacutetico-metafiacutesicordquo (Janaway 1999 252)
Na filosofia schopenhaueriana como vimos o indiviacuteduo humano eacute uma
expressatildeo da objetidade da vontade e seu ponto de partida por natureza eacute a satisfaccedilatildeo
manutenccedilatildeo e o prolongamento desta vontade de vida Este estado de consciecircncia onde
todos os esforccedilos estatildeo voltados para a satisfaccedilatildeo da vontade individual eacute a causa de
todo o sofrimento do mundo Aprisionado agrave perspectiva fenomecircnica do mundo o
homem natildeo percebe a unidade da vontade e age de acordo com os motivos estabelecidos
pela sua proacutepria individualidade Para este homem existe uma separaccedilatildeo profunda entre
o proacuteprio eu e os objetos do mundo
Por meio da intuiccedilatildeo que o ceacuterebro efetua a partir dos dados do sentido
e portanto mediatamente conhecemos o proacuteprio corpo como um objeto no
espaccedilo e por meio do sentido interno conhecemos a seacuterie sucessiva de nossos
desejos e atos de vontade que surgem por ocasiatildeo dos motivos externos e
finalmente conhecemos os muacuteltiplos movimentos fortes ou fracos da proacutepria
vontade aos quais todos os sentimentos internos deixam-se reconduzir Isto eacute
tudo pois o conhecer natildeo eacute ele proacuteprio de novo conhecido (Schopenhauer
2001 213)
Eacute deste estado que surge todo o comportamento humano considerado pelo filoacutesofo
como comportamento antimoral Egoiacutesmo eacute o nome dado ao resultado da influecircncia do
princiacutepio de individuaccedilatildeo sobre o comportamento dos homens Este egoiacutesmo chega ao
extremo de o homem considerar-se o centro do mundo e transformar o seu querer em
mandamento para os objetos exteriores ldquoalguns homens seriam capazes de assassinar
um outro soacute para engraxar suas botas com a gordura delerdquo (SFM 124) Nestas
58
condiccedilotildees ldquose fosse dado pois a um indiviacuteduo escolher entre a sua proacutepria aniquilaccedilatildeo
e a do mundo nem preciso dizer para onde a maioria se inclinariardquo (SFM 121) Da
forma como ocorre com o egoiacutesmo a ilusatildeo fenomecircnica daacute origem a outro sentimento
o oacutedio Estes dois egoiacutesmo e oacutedio satildeo os princiacutepios originadores de todos os viacutecios do
homem Desta leitura pessimista da natureza humana Schopenhauer retira seu conceito
perspectivista das ideacuteias de bem e mal satildeo consideradas boas ou maacutes as coisas que
agradam ou desagradam agrave vontade do indiviacuteduo ldquoPortanto tudo o que eacute favoraacutevel agrave
vontade em alguma de suas exteriorizaccedilotildees e satisfaz seus fins eacute pensado pelo conceito
bom por mais diferentes que essas coisas possam ser noutros aspectosrdquo (MVR 459)
Este estado eacute definido por Schopenhauer como ldquoafirmaccedilatildeo da vontaderdquo nele o amor-
proacuteprio Eros dita as regras de comportamento Definido o Eros enquanto
fundamentador das accedilotildees antimorais humanas sendo este surgido de uma percepccedilatildeo
subordinada ao principium individuationis entendemos o motivo pelo qual o filoacutesofo
rejeita a validade de qualquer moral baseada em argumentos abstratos
Uma moral sem fundaccedilatildeo portanto um simples moralizar natildeo pode
fazer efeito pois natildeo motiva Uma moral entretanto que motiva soacute pode fazecirc-
lo atuando sobre o amor proacuteprio O que entretanto nasce daiacute natildeo tem valor
moral algum Segue-se assim que mediante moral e conhecimento abstrato em
geral nenhuma virtude autecircntica pode fazer efeito mas esta tem de brotar do
conhecimento intuitivo o qual reconhece no outro indiviacuteduo a mesma essecircncia
que a proacutepria (MVR 468)
Desta forma em contraposiccedilatildeo ao comportamento antimoral produzido
pela ilusatildeo causada pelo principium individuationis o filoacutesofo apresenta o outro lado da
moeda a accedilatildeo moral Esta seria a accedilatildeo praticada em funccedilatildeo do bem-estar de um outro
indiviacuteduo tendo em vista que as accedilotildees praticadas em funccedilatildeo do mal-estar do outro ou
do bem e mal estar de si mesmo satildeo justamente as accedilotildees antimorais baseadas no
egoiacutesmo ou no oacutedio ldquoTodo amor que natildeo eacute compaixatildeo eacute amor-proacuteprio Amor-proacuteprio eacute
59
Eros compaixatildeo eacute Aacutegaperdquo (MVR 478) Todo ato moral eacute por consequumlecircncia um ato de
compaixatildeo ou seja um ato que eacute praticado a partir da percepccedilatildeo do sofrimento do
outro Entretanto a percepccedilatildeo do sofrimento alheio natildeo eacute dada atraveacutes do conhecimento
abstrato E somente por uma percepccedilatildeo intuitiva direta do sofrimento do outro como o
meu proacuteprio sofrimento que surge a compaixatildeo Tal percepccedilatildeo assim como a
apreciaccedilatildeo esteacutetica tem origem em uma visatildeo que vai aleacutem do principium
individuationis Desfaz-se a ilusatildeo causada por este princiacutepio de que existe em realidade
um eu e um natildeo-eu ilusatildeo essa que eacute originada pelos condicionantes do conhecimento
tempo espaccedilo e causalidade Livre do principium individuationis natildeo haacute mais
diversidade natildeo existe mais indiviacuteduo passado futuro motivaccedilotildees existe apenas o
instante presente do ser a vontade Natildeo nos vemos mais como uma vontade separada de
outras ao contraacuterio vemos nos outros a mesma vontade pela qual somos Necessaacuterio
faz-se ressaltar que este conhecimento intuitivo que demonstra a unidade da vontade
em todo indiviacuteduo eacute entendimento de verdade tatildeo profundo que supera qualquer
especulaccedilatildeo abstrata do conhecimento e por isso seu efeito eacute marcante
Para o conhecimento que vecirc atraveacutes do principium individuationis uma
vida feliz no tempo presenteada pelo acaso ou conquistada deste pela
sabedoria em meio ao sofrimento de inumeraacuteveis outros eacute apenas um sonho de
mendigo no qual eacute um rei poreacutem tem de acordar e reconhecer que era tatildeo-soacute
uma ilusatildeo fugidia aquilo que o separava do sofrimento da sua vida (MVR
452)
A experimentaccedilatildeo deste estado de consciecircncia faz-nos perceber a vida como engano
luta infinita e provoca em noacutes a renuacutencia a esta mesma vida agrave vontade de viver O
homem natildeo mais afirma a sua essecircncia mas a repudia
Agrave semelhanccedila do estado de negaccedilatildeo da vontade o proacuteprio estado de
contemplaccedilatildeo esteacutetica pressupotildee um desinteresse pelos mandamentos da vontade
60
individual um desligamento do caraacuteter egoiacutestico do sujeito empiacuterico28
Para que possa
perceber a Ideacuteia por traacutes do objeto contemplado o observador deve estar em um estado
de consciecircncia que se vecirc livre dos grilhotildees da vontade Neste estado ele eacute alccedilado para
aleacutem da individualidade torna-se puro sujeito de conhecimento Para que este estado se
manifeste eacute imprescindiacutevel natildeo estar interessado nas relaccedilotildees do objeto apreciado seja
com outros objetos seja consigo mesmo O apreciador esteacutetico natildeo se preocupa com o
ldquoonderdquo o ldquocomordquo o ldquoporquecircrdquo dos objetos Estas formas de interjeiccedilatildeo sinalizam para a
relaccedilatildeo dos objetos com o mundo O apreciador esteacutetico no momento da apreciaccedilatildeo
tem em vista somente o ldquoquerdquo do objeto transforma-se em um ldquoolho que vecircrdquo livre do
princiacutepio de individuaccedilatildeo eacute o puro sujeito de conhecimento Vemos nestes dois estados
(o esteacutetico e o compassivo) exemplos de estados de consciecircncia que por suas
caracteriacutesticas de alccedilarem o indiviacuteduo a uma anulaccedilatildeo do sofrimento fazem parte do
projeto de juventude de estabelecer uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Percebemos entatildeo que a
consideraccedilatildeo esteacutetica e a consideraccedilatildeo eacutetica possuem em comum esta caracteriacutestica da
consciecircncia de se apartar do princiacutepio de individuaccedilatildeo
No caso da trageacutedia como descreve Schopenhauer seu fim uacuteltimo eacute despertar a
compaixatildeo no apreciador Desta forma o filoacutesofo associa agrave trageacutedia um efeito singular e
adverso das demais artes ou pelo menos reconhece na trageacutedia a arte capaz de
demonstrar a semelhanccedila entre os modos de consideraccedilatildeo artiacutestico e eacutetico Ao ilustrar o
conflito das vontades no mundo atraveacutes da exposiccedilatildeo do sofrimento humano a trageacutedia
cumpre seu papel artiacutestico ao expor a ideacuteia de humanidade Aleacutem deste atributo
podemos dizer que a trageacutedia tem que cumprir ainda seu papel moral ao causar no
28
Neste ponto de semelhanccedila eacute fundamental apontar mais uma vez a heranccedila kantiana Nas palavras de
Barboza (2001 82) ldquoA negaccedilatildeo da Vontade diante da beleza realmente obedece a uma leitura do
conceito criacutetico de desinteresse Quando Kant diz que o belo eacute aquilo que satisfaz bdquosem nenhum
interesse‟ o autor de O mundo leu essa expressatildeo como equivalente da negaccedilatildeo do querer visto que
interesse e motivo satildeo conceitos intercambiaacuteveis [] e a vontade neutraliza-se desinteressa-se ou seja eacute
indeterminaacutevel por motivos na contemplaccedilatildeo da Ideacuteia do belordquo
61
espectador a renuacutencia a toda vontade O modelo exemplar da trageacutedia eacute para
Schopenhauer a trageacutedia cristatilde onde o heroacutei conscientemente abandona o querer e
conseguintemente a vida Na trageacutedia antiga havia somente a identificaccedilatildeo do
sofrimento humano e sua exposiccedilatildeo A renuacutencia agrave vontade de vida eacute caracteriacutestica das
trageacutedias posteriores ao advento cristatildeo Schopenhauer exemplifica O priacutencipe de
Calderoacuten Gretchen em Fausto A Donzela de Orleans a Noiva de Messina etc Assim
ldquotoda a exposiccedilatildeo traacutegica eacute para o espectador um chamado agrave resignaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo livre
da Vontade de vida Somente a eacutetica pode tornar tudo isso mais compreensiacutevelrdquo (MB
223) Vemos entatildeo de forma clara na teoria da trageacutedia de Schopenhauer um momento
onde ocorre a coalizatildeo dos fundamentos metafiacutesicos de sua filosofia do pessimismo
originado nestes fundamentos e da atitude eacutetica existente por traacutes de seu pensamento
25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera
Faz-se necessaacuterio aqui uma incursatildeo sobre a teoria da muacutesica de Schopenhauer
tendo em vista de que ela ocuparaacute um papel decisivo na teoria nietzscheana da trageacutedia
As relaccedilotildees que Nietzsche estabelece entre a muacutesica a vontade as palavras e
finalmente a trageacutedia satildeo delineadas como veremos pela metafiacutesica schopenhaueriana
da muacutesica No intuito de perceber estas relaccedilotildees propomos aqui um breve esboccedilo da
teoria da muacutesica na filosofia de Schopenhauer
A filosofia da muacutesica encontra seu lugar ao final do terceiro livro de MVR bem
como no capiacutetulo 39 dos complementos fechando assim as consideraccedilotildees de
Schopenhauer sobre a metafiacutesica do belo e as artes29
29
Na esteira de Lydia Goehr (Jacquette 1996 200) ressaltamos que tendo em vista a influecircncia que sua
filosofia da muacutesica exerceu sobre o pensamento artiacutestico e filosoacutefico posterior e comparada agrave dimensatildeo
de sua obra as consideraccedilotildees sobre a muacutesica ocupam um espaccedilo diminuto em sua obra
62
Para o filoacutesofo da vontade a muacutesica eacute a arte que pela natureza de seu objeto de
expressatildeo natildeo encontra lugar apropriado dentro do sistema das demais artes Estas
conforme sua competecircncia em traduzir uma determinada objetidade da vontade uma
ideacuteia satildeo classificadas hierarquicamente A muacutesica entretanto figura aleacutem desta
hierarquizaccedilatildeo pois representa o conceitualmente irrepresentaacutevel ldquoa coacutepia de um
modelo que ele mesmo nunca pode ser representado imediatamenterdquo(MVR 338) a
Vontade mesma Esta arte eacute especialmente considerada devido agrave peculiaridade uacutenica de
seu efeito esteacutetico ldquoeacute uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente
sobre o mais iacutentimo do homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele
como se fora uma linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do
mundo intuitivordquo (MVR 336) A muacutesica estaacute aleacutem da intuiccedilatildeo pois representa aquilo
que estaacute aleacutem desta forma agrave semelhanccedila das ideacuteias que satildeo objetivaccedilotildees imediatas da
vontade a muacutesica eacute tambeacutem uma destas objetivaccedilotildees representaccedilatildeo imediata da coisa
em si O que o compositor apresenta atraveacutes da muacutesica eacute a essecircncia mais iacutentima do
mundo em uma ldquolinguagem natildeo compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo
magneacutetico fornece informaccedilotildees sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito
algumrdquo (MVR 342) Por estar em um acircmbito inalcanccedilaacutevel pelo conceito a muacutesica
atraveacutes de sua linguagem arrebata o homem de forma mais marcante e direta e ateacute
mesmo a explanaccedilatildeo sobre a muacutesica estaacute condenada agrave pobreza e agrave insuficiecircncia Desta
forma o filoacutesofo se utilizaraacute de uma analogia para explanar sobre a muacutesica ie
procederaacute a uma explicaccedilatildeo da muacutesica atraveacutes de um paralelismo entre ela as ideacuteias e o
mundo enquanto objetivaccedilotildees da vontade
Esta analogia expressa atraveacutes de diversos exemplos leva em consideraccedilatildeo que
em suas duas formas de objetivaccedilatildeo (o mundo e a muacutesica) a Vontade deixa transparecer
semelhanccedilas Na muacutesica os tons mais graves aproximam-se ao que satildeo no mundo os
63
graus mais baixos de objetivaccedilatildeo da vontade quais sejam a natureza inorgacircnica A lei
da harmonia estabelece que os tons agudos satildeo originados daquele tom mais grave
fundamental Da mesma forma no mundo os corpos tecircm como fonte e sustentaacuteculo a
natureza inorgacircnica ldquoagrave partir da qual tudo se eleva e desenvolverdquo(MB 230) As vozes
intermediaacuterias da melodia que estatildeo entre o baixo fundamental e a voz condutora
correspondem no mundo aos demais graus de objetivaccedilatildeo da vontade na natureza ldquoAs
vozes mais proacuteximas do baixo correspondem aos graus mais baixos ou seja os corpos
ainda inorgacircnicos poreacutem jaacute se exteriorizando de diversas maneiras As vozes mais
elevadas por sua vez representam os reinos vegetal e animalrdquo(MB 231)
O objeto de representaccedilatildeo da muacutesica eacute a Vontade e esta por sua vez eacute
intraduziacutevel atraveacutes das palavras da configuraccedilatildeo racional pois a razatildeo natildeo pode
alcanccedilar sua profundidade Trata-se de ldquouma linguagem universal cuja
compreensibilidade eacute inata e cuja clareza ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo
(MB 228) Diante desta caracteriacutestica cognitiva a muacutesica natildeo deve se inspirar no texto
nas palavras a natildeo ser para ilustraacute-las e conceder-lhes assim significaccedilatildeo mais
profunda A muacutesica natildeo deve ser composta com base em conceitos ou em objetos e
ocorrecircncias do mundo pois trata-se de uma expressatildeo da ordem do essencial do
universal ldquoela eacute a alma mais interior dessas ocorrecircncias sem o corpordquo (MB 235) Os
objetos e situaccedilotildees do mundo satildeo manifestaccedilotildees e portanto sua representaccedilatildeo
conceitual satildeo reproduccedilotildees circunstanciais da essecircncia do mundo expressa pela muacutesica
Daiacute se compreende o fato de a muacutesica realccedilar em cada
pintura sim em cada cena da vida efetiva e do mundo o
aparecimento de uma significaccedilatildeo mais elevada e tanto mais
quanto mais anaacuteloga eacute sua melodia ao espiacuterito iacutentimo do
fenocircmeno dado A muacutesica combina com tudo em todas as
exposiccedilotildees Nada lhe pode ser estranho pois exprime a essecircncia
de todas as coisas Caso se soe uma muacutesica que combine com
alguma cena da vida humana ou da natureza destituiacuteda de
conhecimento ou com alguma accedilatildeo acontecimento ambiente ou
64
alguma imagem ndash entatildeo ela revela o sentido secreto dessa cena e eacute
seu comentaacuterio mais correto e claro (MB 235)
Esta caracteriacutestica que daacute agrave muacutesica um privileacutegio cognitivo sobre as demais formas
artiacutesticas eacute o que delineia as consideraccedilotildees do filoacutesofo sobre a oacutepera30
A oacutepera ideal eacute
portanto aquela onde o livreto estaacute para a muacutesica como um exemplo para um conceito
geral A muacutesica tem a funccedilatildeo de expor ldquoo profundo e misterioso sobre a essecircncia
iacutentimardquo daquilo que a palavra exemplifica O compositor que maior ecircxito conseguiu
neste sentido conforme o filoacutesofo foi Rossini cuja ldquomuacutesica fala tatildeo distinta e
puramente a sua linguagem PROacutePRIA visto que quase natildeo precisa de palavras e por
conseguinte provoca todo o seu efeito mesmo se executada soacute com instrumentosrdquo
(MVR 344)
Vemos entatildeo a muacutesica como a mais profunda das artes cujo efeito eacute o mais
avassalador e que portanto quando conjugada com outras formas de expressatildeo como a
oacutepera deve formar a base e orientar a sua elaboraccedilatildeo Entretanto ao contraacuterio da
trageacutedia cujo fim eacute o estiacutemulo agrave renuacutencia da vontade de viver a muacutesica segundo a
metafiacutesica exposta por Schopenhauer ldquonatildeo faz mais do que agradar a vontade de viver
jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo seus ecircxitos e ao final expressa sua
satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509)
30
ldquoAo adotar esta atitude Schopenhauer transtorna toda a tradiccedilatildeo jaacute secular que havia afirmado natildeo
poucas vezes desde os tempos do nascimento da oacutepera o predomiacutenio da palavra sobre a muacutesica e em
consequumlecircncia a subordinaccedilatildeo desta uacuteltima agrave primeirardquo (Fubini 1988 289)
65
3 A teoria da trageacutedia do Jovem Nietzsche
Debalde espreitamos por uma raiz
vigorosamente ramificada por um pedaccedilo
de terra sadia e feacutertil por toda parte poacute
areia rigidez consunccedilatildeo Aqui um
solitaacuterio desconsolado natildeo poderia escolher
melhor siacutembolo do que o Cavaleiro com a
Morte e o Diabo como Duumlrer o desenhou o
cavaleiro arnesado com o olhar duro
brocircnzeo que sabe tomar o seu caminho
assustador imperturbado por seus
hediondos companheiros e natildeo obstante
desesperanccedilado sozinho com o seu corcel e
o seu catildeo Um tal cavaleiro duumlreriano foi
nosso Schopenhauer faltava-lhe qualquer
esperanccedila mas queria a verdade Natildeo haacute
quem se lhe iguale
(Nietzsche)
Neste capiacutetulo procuraremos apontar primeiramente o modo pelo qual se deu o
encontro entre Nietzsche e a filosofia de Schopenhauer Em um segundo momento
percorreremos o desenvolvimento histoacuterico das produccedilotildees nietzscheanas que
culminaram com a publicaccedilatildeo da obra que caracteriza o primeiro periacuteodo do filoacutesofo
qual seja O nascimento da trageacutedia a partir do espiacuterito da muacutesica Concluiremos entatildeo
apresentando um esboccedilo desta obra dando ecircnfase em todos os momentos aos
66
elementos que caracterizam sua teoria da trageacutedia especialmente agravequeles relacionados agrave
metafiacutesica schopenhaueriana da vontade
31 Schopenhauer e o jovem Nietzsche uma breve contextualizaccedilatildeo histoacuterica
Foram nos anos de universidade em Leipzig que Nietzsche se deparou com a
filosofia de Schopenhauer Este periacuteodo entre os anos de 1865 e 1869 eacute especialmente
importante devido ao fato de que nele podemos assistir ao surgimento de alguns
aspectos fundamentais ao projeto filosoacutefico de Nietzsche Janz descreve este periacuteodo
como aquele em que o filoacutesofo estabeleceu ldquoseus encontros espirituais determinantes a
partir dos quais se defrontou consigo mesmo e com sua tarefardquo(1987 151)
O primeiro contato do jovem Nietzsche com o mundo schopenhaueriano deu-se
em meados de outubro de 1865 pouco tempo apoacutes sua chegada a Leipzig O
arrebatamento causado no jovem estudante de filologia pelo encontro com a filosofia
schopenhaueriana eacute descrito por ele apoacutes dois anos da seguinte maneira
Sentia-me naquela eacutepoca desorientado solitaacuterio sem
princiacutepios sem esperanccedilas inconsolado e com algumas
experiecircncias dolorosas e decepccedilotildees Construir uma vida proacutepria e
adequada era para mim uma aspiraccedilatildeo que me ocupava da manhatilde
ateacute a noite No feliz apartamento em que vivia procurava
concentrar-me a mergulhar em mim mesmo e quando me
encontrava com amigos estes eram sempre Mushacke e Von
Gersdorff os quais por sua parte alentavam objetivos muito
semelhantes aos meus Creio que natildeo seraacute difiacutecil imaginar a
impressatildeo que nesta situaccedilatildeo me causou a leitura da obra
principal de Schopenhauer Encontrei um dia este livro no sebo do
velho Rohm Ignorando tudo sobre ele o tomei em minhas matildeos e
me pus a folheaacute-lo Natildeo sei que democircnio me sussurrou bdquoleve este
livro para a casa‟ Aconteceu de compraacute-lo apesar do meu usual
costume de natildeo me precipitar na compra de livros Uma vez em
casa num canto do sofaacute me lancei sobre o tesouro receacutem
adquirido e comecei a deixar que aquele gecircnio eneacutergico e sombrio
influiacutesse sobre mim Em cada linha sua gritava a renuacutencia
negaccedilatildeo resignaccedilatildeo tinha diante de mim um espelho no qual
podia contemplar o mundo a vida e meu proacuteprio acircnimo com uma
67
grandeza deprimente Um espelho desde o qual o olho solar da
arte me mirava desde sua absoluta falta de interesse Vi
enfermidade e cura desterro e refuacutegio inferno e paraiacuteso A
necessidade de autoconhecimento inclusive de auto-
experimentaccedilatildeo apoderou-se de mim com forccedila indomaacutevel
provas daquela mutaccedilatildeo profunda satildeo hoje todavia para mim as
paacuteginas desassossegadas e melancoacutelicas do diaacuterio que agravequela
eacutepoca escrevi com suas auto-acusaccedilotildees inuacuteteis e sua desesperada
busca de salvaccedilatildeo e reconstruccedilatildeo do inteiro nuacutecleo humano Na
medida em que propus a submeter todas as minhas caracteriacutesticas
e aspiraccedilotildees ao tribunal de uma sombria auto-depreciaccedilatildeo minha
atitude estava cheia de amargura possuiacuteda de um oacutedio injusto e
desenfreado contra mim mesmo Nem sequer renunciei agraves
mortificaccedilotildees corporais Obriguei-me com efeito durante
quatorze dias seguidos a deitar-me agraves duas da noite e acordar agraves
seis da manhatilde Uma excitaccedilatildeo nervosa muito singular se apoderou
assim de mim e quem sabe ateacute que grau de loucura haveria
chegado se natildeo tivesse modificado frente agravequele estado de
acircnimo os atrativos da vida da vaidade e o imperativo de retornar
a meus estudos regulares (conforme citaccedilatildeo de Janz 1987 158)
Da citaccedilatildeo podemos inferir a mudanccedila de acircnimo que o encontro com
Schopenhauer provocou A partir daquele momento diversas correspondecircncias datildeo-nos
ainda informaccedilotildees do impacto que a filosofia de Schopenhauer provocou na concepccedilatildeo
de mundo do jovem estudante Em algumas destas correspondecircncias vemos transparecer
a influecircncia atraveacutes da frequumlente utilizaccedilatildeo de um vocabulaacuterio schopenhaueriano bem
como das ideacuteias nelas expressas Assim acontece em carta enviada agrave sua matildee e irmatilde
datada de 5 de novembro de 1865 onde ao discorrer acerca da frivolidade da vida
humana o jovem Nietzsche conclui utilizando-se dos argumentos propostos pela eacutetica
schopenhaueriana
Existem dois caminhos ou se esforccedila e se acostuma a ser
o mais limitado que se possa e uma vez que se reduz o maacuteximo
possiacutevel a luz do espiacuterito se busque bens de fortuna e se viva com
os prazeres do mundo ou por outro lado se sabe que a vida eacute
miseraacutevel se sabe que somos seus escravos tanto mais quanto
mais procuramos dela gozar e por tanto se desprende dos bens da
vida exercita a sobriedade e se eacute austero consigo mesmo e cordial
com os demais ndash e isto porque sente compaixatildeo pelos
companheiros de miseacuteria ndash em uma palavra se vive de acordo
68
com as rigorosas exigecircncias do cristianismo primitivo (OC
470)
Vemos ainda em carta a Mushacke em 12 de julho de 1866 o impacto que a
interpretaccedilatildeo schopenhaueriana pessimista de mundo causou em Nietzsche ldquoDesde que
Schopenhauer nos retirou dos olhos a venda do otimismo as coisas satildeo percebidas
mais agudamente A vida eacute mais interessante ainda que mais feiardquo (conforme citaccedilatildeo
de Janz 1987 172) Percebemos tambeacutem a linguagem schopenhaueriana na descriccedilatildeo
dos momentos de contemplaccedilatildeo Eacute o caso da carta datada de 07 de abril de 1866 a
Gersdorf onde Nietzsche descreve seu estado que nos remeteraacute agrave contemplaccedilatildeo
artiacutestica na filosofia de Schopenhauer ao discorrer sobre os dias de veratildeo ldquo[] a
natureza se faz perfeita e noacutes tambeacutem entatildeo nos sentimos livres do poderio da vontade
sempre alerta e somos olho puro intuitivo desinteressadordquo (OC 472)
Estas influecircncias nortearam de forma definitiva as produccedilotildees acadecircmicas de
Nietzsche mesmos suas pesquisas filoloacutegicas A concepccedilatildeo traacutegica do mundo tornou-se
um feixe condutor para as reflexotildees do jovem filoacutelogo Seus companheiros no estudo da
obra de Schopenhauer eram Gersdorff e Mushacke Em carta agrave sua matildee de 01 de
fevereiro de 1866 Nietzsche deixa saber sobre a frequumlecircncia dos estudos ldquoCom
Gersdorff me encontro uma noite por semana para ler grego a cada duas semanas me
reuacuteno com ele e com Mushacke e nos entregamos a Schopenhauer Este filoacutesofo ocupa
uma posiccedilatildeo importante em meus pensamentos e estudos e meu respeito por ele cresce
incomparavelmenterdquo (OC 471) Se o conteuacutedo da filosofia schopenhaueriana foi
absorvido intensamente pelo jovem Nietzsche como podemos ver a partir dos trechos
transcritos acima a forma estiliacutestica tambeacutem se configura como preocupaccedilatildeo Em um
periacuteodo onde as pesquisas acadecircmicas exigiam o esforccedilo da escrita ali tambeacutem a
autoridade das regras schopenhauerianas exibia sua feiccedilatildeo Eacute tambeacutem em uma carta a
69
Gersdorff datada de 06 de abril de 1867 onde Nietzsche expotildee sua preocupaccedilatildeo com o
estilo
Nestas divagaccedilotildees quero redigir meu trabalho sobre as
fontes de Dioacutegenes Laeacutercio e estou todavia no iniacutecio Para seu
regozijo confessarei que o que mais me daacute trabalho eacute meu estilo
em alematildeo Agora me caem os veacuteus dos olhos e vejo que
durante muito tempo vivi em estado de inocecircncia estiliacutestica O
imperativo categoacuterico bdquodeves escrever‟ me foi despertado[] nos
ouvidos me soavam todos os preceitos estiliacutesticos de Lessing de
Lichtenberg e de Schopenhauer Meu uacutenico consolo eacute que estas
trecircs autoridades afirmavam unanimemente que eacute difiacutecil escrever
bem que por natureza ningueacutem tem um bom estilo e que haacute que
trabalhar e trabalhar para consegui-lo (OC 476)
Entretanto apesar do profundo arrebatamento causado pela filosofia de
Schopenhauer que fez com que o universo das preocupaccedilotildees do entatildeo jovem Nietzsche
se fundamentasse nos pressupostos da metafiacutesica schopenhaueriana outros elementos
tambeacutem fundamentais para o pensamento futuro do filoacutesofo foram tambeacutem neste
periacuteodo despertados Como apontam Dias (2009 42) Janaway (2007 16) e Lopes
(2008 27) jaacute neste periacuteodo que podemos tratar como um periacuteodo de despertar para o
pensamento filosoacutefico encontraacutevamos os elementos que a partir de Humano demasiado
humano conformaratildeo a criacutetica nietzscheana agrave filosofia de Schopenhauer Os
comentadores citados chamam a atenccedilatildeo para o fato de que embora nas obras
publicadas de Nietzsche possamos assistir a criacuteticas diretas a Schopenhauer somente
apoacutes Humano demasiado humano tais criacuteticas agrave filosofia schopenhaueriana surgiram
em um momento imediatamente posterior agrave descoberta da metafiacutesica da vontade Rosa
Maria Dias chama a atenccedilatildeo para os fragmentos poacutestumos e para a correspondecircncia que
agrave partir de 1867 trazem algumas criacuteticas agrave metafiacutesica da vontade Rogeacuterio Lopes e
Cristopher Janaway apontam que algumas destas criacuteticas estatildeo embasadas nas leituras
que o jovem Nietzsche fez de Friedrich A Lange Rudolf Haym Kuno Fischer dentre
outros Tais criacuteticas contudo natildeo afastaram o jovem Nietzsche do discipulado
70
schopenhaueriano mas transformaram sua aceitaccedilatildeo do sistema da vontade No lugar de
uma defesa da consistecircncia loacutegica do sistema Nietzsche passou a adotar uma postura de
defesa da bdquonatureza edificante‟ e preponderantemente artiacutestica deste sistema Exemplos
desta postura podem ser encontrados tambeacutem na correspondecircncia daquele periacuteodo
Para escrever uma apologia a Schopenhauer eu tenho
unicamente que considerar o fato de que olho esta vida livre e
bravamente diante do fato de que encontrei um suporte para me
apoiar obviamente que isto natildeo eacute mais que uma apologia
totalmente individual Mas eacute como as coisas satildeo Se algueacutem
deseja refutar Schopenhauer para mim atraveacutes de argumentos
racionais murmuro em seu ouvido bdquoporeacutem meu amigo visotildees de
mundo natildeo satildeo criadas nem destruiacutedas pela loacutegica‟ (carta a
Deussen Outubro-Novembro de 1867 citada por Janaway
(200718))
Ou ainda em carta a Gersdorff onde apoacutes apresentar a criacutetica de Lange agrave metafiacutesica da
vontade Nietzsche conclui contra Haym ainda com os argumentos de Lange
Natildeo apenas a verdadeira essecircncia das coisas a coisa em si
eacute desconhecida para noacutes tambeacutem seu conceito eacute nada mais nada
menos que o uacuteltimo rebento de um contraste condicionado por
nossa organizaccedilatildeo do qual natildeo sabemos se conserva algum
significado fora de nossa experiecircncia Disso resulta pensa Lange
que os filoacutesofos natildeo devem ser importunados na medida em que
nos edificam A arte eacute livre tambeacutem na regiatildeo dos conceitos
Quem pretenderia refutar uma frase de Beethoven e acusar de erro
uma Madonna de Rafael Como vocecirc pode perceber o nosso
Schopenhauer resiste mesmo a este mais rigoroso ponto de vista
criacutetico ele se torna quase ainda mais valioso para noacutes Se filosofia
eacute arte entatildeo que Haym se anule diante de Schopenhauer se a
filosofia deve edificar entatildeo eu pelo menos natildeo conheccedilo nenhum
filoacutesofo que edifique mais do que nosso Schopenhauer (apud
Lopes 2008 86-87)
Vimos ateacute entatildeo que a descoberta de Schopenhauer provocou no jovem
estudante de filologia transformou sua forma de perceber o mundo e o influenciou de
forma definitiva a ponto de fazer com que Nietzsche se definisse como um seguidor e
divulgador da obra schopenhaueriana Contudo eacute no fim de seus anos de estudo em
Leipzig que o disciacutepulo de Schopenhauer iraacute se defrontar com a personalidade que lhe
71
reforccedilaraacute de forma ainda mais contundente o selo da rotunda schopenhaueriana
Richard Wagner
Foi atraveacutes de seu amigo Brockhaus cuja esposa era irmatilde do muacutesico que em
novembro de 1868 Nietzsche encontrou-se pela primeira vez com Wagner A partir
daquele encontro se estabeleceria um relacionamento que de uma forma ou de outra
marcaraacute Nietzsche pelo resto de sua vida Em uma carta a seu amigo Erwin Rohde
Nietzsche descreve o primeiro encontro e sua perplexidade ao encontrar em Wagner um
admirador de Schopenhauer ldquo[]mantive com ele uma longa conversa sobre
Schopenhauer Ah Compreenderaacutes minha felicidade em ouvir-lhe falar com um
entusiasmo completamente indescritiacutevel ao qual ele agradecia como Schopenhauer
era o uacutenico filoacutesofo que havia compreendido a essecircncia da muacutesicardquo (Correspondecircncia
2007 21) A impressatildeo deste encontro eacute tambeacutem claramente visiacutevel atraveacutes de
correspondecircncia endereccedilada ao proacuteprio Wagner em maio de 1869 ldquoVeneradiacutessimo
senhor quanto tempo tive a intenccedilatildeo de lhe manifestar sem nenhuma timidez o grau de
gratidatildeo que sinto em relaccedilatildeo ao senhor pois realmente os melhores e mais elevados
momentos de minha vida se ligam ao seu nome e eu soacute conheccedilo mais um homem aleacutem
disso seu grande irmatildeo em espiacuterito Arthur Schopenhauer em quem penso com a
mesma veneraccedilatildeo ateacute senso religiosordquo (Correspondecircncia 2007 56) Como podemos
ver a pessoa de Wagner eacute associada agrave de Schopenhauer Esta associaccedilatildeo tornar-se-aacute
uma constante e poderaacute ser identificada ainda na fase tardia onde as criacuteticas a estes
pensadores e ao que eles entatildeo representavam se daraacute de forma inter-relacionada Este
primeiro encontro com Wagner conforme Janz (1987 22) foi um dos principais
motivos que levaram Nietzsche a aceitar em detrimento de outros planos que
formulava assumir a caacutetedra de filologia em Basel A proximidade de Tribschen
residecircncia dos Wagner e a possibilidade de uma convivecircncia com o muacutesico o
72
inspiraram E assim aconteceu Ao mudar-se para Basel pocircde desfrutar de uma
convivecircncia constante com o casal Wagner Desde a chegada de Nietzsche ateacute a
mudanccedila de Wagner em 1872 encontravam-se com muita frequumlecircncia e os assuntos que
pautavam tais encontros eram amiuacutede arte muacutesica a literatura claacutessica e a filosofia de
Schopenhauer Wagner tornar-se-ia para Nietzsche a personificaccedilatildeo do gecircnio
schopenhaueriano aquele capaz de atraveacutes da muacutesica expor a essecircncia do mundo No
projeto wagneriano de ldquoarte totalrdquo Nietzsche pocircde vislumbrar a uniatildeo entre muacutesica e
filosofia e satisfazer assim em certa medida as expectativas oriundas da metafiacutesica da
vontade
32 O projeto subjacente ao Nascimento da Trageacutedia
Eacute famosa a passagem onde Nietzsche em carta a Deussen datada de janeiro de
1870 informa sobre seu estado de espiacuterito ldquo Ciecircncia arte e filosofia crescem agora
juntas em mim e de tal modo que um dia haverei de parir centaurosrdquo (Janz 1981 66)
Esta afirmaccedilatildeo eacute ilustrativa no que se refere ao ambiente onde o Nascimento da trageacutedia
foi gerado Podemos identificar claramente as figuras por detraacutes dos termos filosofia
arte e ciecircncia satildeo elas Schopenhauer Wagner e a filologia claacutessica Neste periacuteodo
Nietzsche entatildeo jovem professor de filologia estava imbuiacutedo pela pretensatildeo de poder
unir os estudos filoloacutegicos aos filosoacuteficos Sua preleccedilatildeo inicial Homero e a filologia
claacutessica em Basel nos daacute uma amostra desta pretensatildeo Ali podemos assistir a uma
aproximaccedilatildeo entre filologia e filosofia atraveacutes da proposta de uma leitura filosoacutefica do
mundo antigo ldquoCom isto quero expressar que toda atividade filoloacutegica deve estar
impregnada de uma concepccedilatildeo filosoacutefica do mundo na qual todo o particular e singular
seja visto como algo sem proveito e soacute permaneccedila de peacute a unidade do todordquo (OC 26)
73
Sua escolha por trilhar caminhos mais proacuteximos agrave filosofia pode tambeacutem ser observada
pela tentativa frustrada de ocupar uma cadeira desta disciplina que se mostrou livre em
janeiro de 1871 Se por um lado podemos diagnosticar certa decepccedilatildeo e ateacute um
determinado desacircnimo na atividade acadecircmica por outro lado os laccedilos com os Wagner
se estreitavam cada vez mais No refuacutegio de Tribschen sob a aura de Richard Wagner
Nietzsche discorria sobre o mundo grego enquanto modelo de cultura e ouvia os planos
wagnerianos sobre seu projeto de uma obra de arte total Como pano de fundo destas
discussotildees a metafiacutesica da muacutesica schopenhaueriana e sua concepccedilatildeo traacutegica do mundo
Eacute em torno destes eixos formadores que vemos se materializar a primeira publicaccedilatildeo de
Nietzsche
O desenvolvimento das ideacuteias que formaratildeo a obra contudo se deu de forma
gradual Ao longo do periacuteodo compreendido entre a chegada de Nietzsche a Basel e a
publicaccedilatildeo de seu livro determinados trabalhos deixam transparecer o delineamento de
algumas das ideacuteias centrais da obra Satildeo eles O drama musical grego Soacutecrates e a
trageacutedia A visatildeo dionisiacuteaca do mundo e Introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles31
Em o drama musical grego conferecircncia puacuteblica datada de janeiro de 1870
Nietzsche efetua uma comparaccedilatildeo entre a arte traacutegica da antiguidade e as oacuteperas
modernas Estas de acordo com o filoacutesofo satildeo uma imperfeita ldquocaricatura do drama
musical antigordquo (VD 48) Muacutesica pintura escultura e poesia formavam um todo na
arte traacutegica da antiguidade Nas artes modernas por sua vez as formas artiacutesticas satildeo
fragmentadas fato que dificulta o entendimento da trageacutedia grega e que causaria
espanto ao apreciador de arte moderno A muacutesica teria para a trageacutedia antiga uma
31
Como ressaltam M S Silk e J P Stern em sua obra Nietzsche on tragedy (1981 59) o nascimento da
trageacutedia eacute composto de forma estrutural pelos conceitos encontrados nestes trabalhos O iniacutecio do livro
(sectsect1-10) eacute substancialmente baseado no ensaio a visatildeo dionisiacuteaca do mundo enquanto a sequumlecircncia
composta pelos paraacutegrafos 5 e 6 estaacute mais proacutexima da introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles O trecho
composto pelos paraacutegrafos 11 a 14 pode ser derivado diretamente da leitura Soacutecrates e a trageacutedia O resto
do livro eacute formado por uma amaacutelgama destes escritos Partes dispersas ainda satildeo formadas pelo ensaio do
drama musical grego
74
importacircncia capital como elemento intensificador de seu efeito Podemos ver a intenccedilatildeo
por traacutes da anaacutelise nietzscheana da trageacutedia antiga em comparaccedilatildeo agrave opera Ao final da
conferecircncia no elogio que confere a Wagner o tiacutetulo de ldquoatual reformador da arterdquo bem
como na descriccedilatildeo de seu projeto de arte total retratado como um acontecimento que jaacute
teve lugar na trageacutedia da antiguidade claacutessica Nietzsche deixa claro seu engajamento ao
projeto wagneriano
No mecircs seguinte ao da citada conferecircncia uma segunda intitulada Soacutecrates e a
trageacutedia foi proferida por Nietzsche O assunto em pauta era a morte repentina da
trageacutedia grega Esta morte teria ocorrido pelas matildeos de Euriacutepides apoacutes uma decadecircncia
iniciada nos uacuteltimos periacuteodos das produccedilotildees de Eacutesquilo passando por Soacutefocles e
culminando com o advento da comeacutedia Tal decadecircncia teria sido provocada pela saiacuteda
de cena da muacutesica que de forma progressiva foi substituiacuteda pelo diaacutelogo racionalista
Soacutecrates ocupa aqui um lugar importante Eacute sua influecircncia sobre Euriacutepides que
transforma de uma forma definitiva a arte instintivamente musical da trageacutedia em uma
manifestaccedilatildeo do discurso eacutetico racionalista Esta ldquoesteacutetica racionalista e conscienterdquo
pode ser identificada no proacutelogo euripidiano e na inserccedilatildeo do deus ex machina
enquanto agentes de racionalizaccedilatildeo da obra artiacutestica A trageacutedia de Euriacutepides teria
assumido assim os pressupostos do racionalismo socraacuteticos ldquoVirtude eacute saber peca-se
somente por ignoracircncia O virtuoso eacute felizrdquo (VD 90) Esta assunccedilatildeo que liga a virtude
ao saber impotildee agrave trageacutedia um caraacuteter eacutetico alheio agrave sua caracteriacutestica puramente
esteacutetica O elemento culpa na dialeacutetica socraacutetica toma o lugar que era ocupado pela
compaixatildeo Jaacute podemos perceber nesta conferecircncia o esboccedilo da dicotomia que mais
tarde seraacute ilustrada atraveacutes dos deuses Apolo e Dioniso Os pares formadores da
dicotomia satildeo aqui expressos pela separaccedilatildeo entre instinto e razatildeo muacutesica e discurso
pessimismo e otimismo arte e ciecircncia
75
Temos a primeira referecircncia agrave arte dionisiacuteaca como impulso formador da
trageacutedia e sua contraposiccedilatildeo agrave arte apoliacutenea nas aulas proferidas por Nietzsche no veratildeo
daquele mesmo ano Neste curso sobre a trageacutedia de Soacutefocles do qual temos a
introduccedilatildeo podemos ver o esforccedilo de Nietzsche em caracterizar e apontar as
peculiaridades da trageacutedia da antiguidade que a tornam um fenocircmeno uacutenico em
comparaccedilatildeo agraves trageacutedias modernas Tal discussatildeo demonstraraacute pelos aspectos ali
expostos a aproximaccedilatildeo de Nietzsche com autores do periacuteodo claacutessico alematildeo e
sobretudo da chamada querela entre antigos e modernos Vemos claramente a influecircncia
de Schiller e F A Schlegel em algumas das definiccedilotildees adotadas por Nietzsche
No texto denominado A visatildeo dionisiacuteaca do mundo jaacute podemos assistir a um
desenvolvimento das duas pulsotildees artiacutesticas que satildeo o nuacutecleo da interpretaccedilatildeo
nietzscheana da trageacutedia O apoliacuteneo e o dionisiacuteaco satildeo ali explicados no acircmbito de seu
surgimento no mundo helecircnico e simbolizam a uniatildeo entre verdade e beleza na forma de
arte traacutegica Sua descriccedilatildeo como veremos abaixo estaacute permeada de conceitos retirados
da filosofia schopenhaueriana que vatildeo desde a biparticcedilatildeo do mundo entre verdade e
aparecircncia perpassam as noccedilotildees de belo e sublime e apontam a trageacutedia e a muacutesica como
forma de arte superiores
Em janeiro de 1872 Nietzsche daacute luz a seu ldquoCentaurordquo sob o nome O nascimento
da trageacutedia atraveacutes do espiacuterito da muacutesica Em carta a Rohde datada de 23 de novembro
de 1871 podemos notar atraveacutes da ansiosa expectativa nietzscheana a amaacutelgama
formadora da obra ldquo Temo sempre que os filoacutelogos natildeo o queiram ler por causa da
muacutesica os muacutesicos por causa da filologia e os filoacutesofos por causa da muacutesica e da
filologia e sinto logo medo e compaixatildeo de mim mesmordquo (Correspondecircncia 2007 237)
33 A teoria da trageacutedia publicada
Como escopo geral da primeira obra de Nietzsche podemos dizer na esteira de
Silk e de Stern (1981 52) que ela se propunha a esclarecer o problema do nascimento e
76
da morte da trageacutedia helecircnica Trageacutedia que por sua vez era a expressatildeo artiacutestica que
simbolizava um problema vital o de que sob uma superfiacutecie bela podiacuteamos ter acesso agrave
terriacutevel profundidade do ser Tal forma de arte poderia novamente vir agrave luz por uma
geraccedilatildeo criativa que ao combater a superficialidade moderna que reinava no mundo
germacircnico poderia produzir o renascimento moderno do mundo Helecircnico
Em sua essecircncia o nascimento da trageacutedia aponta para as divindades Apolo e
Dioniacutesio como ldquorepresentantes vivosrdquo de princiacutepios diacutespares que irrompem da proacutepria
natureza e que ao serem conciliados de certa forma tornaram possiacutevel que atraveacutes dos
atritos de tal uniatildeo a trageacutedia grega despontasse como manifestaccedilatildeo artiacutestica exemplar
do sublime Em linhas gerais a arte do ldquofigurador plaacutesticordquo estaria entatildeo associada ao
deus Apolo enquanto a arte ldquonatildeo figuradardquo a da muacutesica estaria associada ao deus
Dioniacutesio O apoliacuteneo eacute um impulso da vontade grega que ao almejar a vida a apresenta
transfiguradamente como um belo sonho plasmado no mundo dos deuses oliacutempicos O
princiacutepio apoliacuteneo seria aquele que estabeleceria a ordem a beleza estaacutetica e a clareza
dos limites O dionisiacuteaco eacute oriundo das festas do oriente e seu efeito eacute comparado ao da
embriaguecircs A ele cabe a sabedoria profunda da essecircncia da vida lugar do acaso do
impermanente do horriacutevel e do sofrimento A Apolo eacute facultado tecer o veacuteu que
encobre a sabedoria dionisiacuteaca e torna a vida suportaacutevel atraveacutes da ilusatildeo do sonho
Assim segundo Nietzsche o desenvolvimento contiacutenuo da arte estaacute vinculado agrave
duplicidade dos princiacutepios apoliacuteneo e dionisiacuteaco Perfazendo um caminho histoacuterico da
cultura grega podemos notar uma sobreposiccedilatildeo intermitente entre os impulsos divinos
Temos momentos onde o impulso apoliacuteneo se mostrou dominante e outros onde
Dioniacutesio recupera seu predomiacutenio O mundo oliacutempico homeacuterico com sua arte eacutepica e
sua escultura do periacuteodo doacuterico nascem a partir de uma necessidade de redenccedilatildeo para a
realidade de horror e sofrimento que o povo helecircnico presenciava Em substituiccedilatildeo ao
77
mundo titacircnico temos o mundo dos deuses oliacutempicos exemplificadores de uma
existecircncia divinizada que exalta a vida Nas palavras de Nietzsche ldquoo grego conheceu
e sentiu os temores e os horrores do existir para que lhe fosse possiacutevel de algum modo
viver teve de colocar ali entre ele e a vida a resplendente criaccedilatildeo oniacuterica dos deuses
oliacutempicosrdquo (NT 36) Entretanto a sabedoria dionisiacuteaca portadora da visatildeo abismal do
ser natildeo pocircde ser contida por muito tempo e a muacutesica veiacuteculo da uniatildeo orgiaacutestica aos
poucos foi se infiltrando no mundo construiacutedo pelo divino Apolo Os gregos foram se
tornando conscientes de seu estado sonambuacutelico que sob a graccedila do deus Apolo enleva
e transporta pela extraordinaacuteria beleza natural ou esteacutetica Em um estado semelhante ao
do indiviacuteduo que restabelecido em suas forccedilas pelo efeito renovador do sono ao findar
de uma noite comeccedila a ouvir os sons a sua volta e aos poucos vai se despertando da
mesma forma os gregos comeccedilaram novamente a ouvir o sussurro do Sileno
companheiro de Dioniacutesio ldquoo melhor de tudo eacute para ti inteiramente inatingiacutevel natildeo ter
nascido e natildeo ser nada ser Depois disso poreacutem o melhor para ti eacute logo morrerrdquo
(NT 36) O artista que representa este retorno do dionisiacuteaco com a mesma envergadura
com que Homero representa as forccedilas apoliacuteneas eacute Arquiacuteloco Tomando-o como modelo
do gecircnio liacuterico Nietzsche faz uma descriccedilatildeo de seu processo de criaccedilatildeo Conforme a
metafiacutesica esteacutetica adotada por Nietzsche - que mais agrave frente veremos ser retirada da
esteacutetica schopenhaueriana - toda arte tem que ser objetiva livre dos interesses
individuais Nesta situaccedilatildeo a liacuterica que tem como objeto o eu do poeta seus desejos e
emoccedilotildees natildeo seria uma forma de arte Entretanto atraveacutes de uma descriccedilatildeo que Schiller
faz da inspiraccedilatildeo poeacutetica Nietzsche aponta o caminho para percebermos a liacuterica como
obra de arte e portanto objetivamente Conforme a passagem de Schiller citada por
Nietzsche (NT 44) ldquoo sentimento se me apresenta no comeccedilo sem um objeto claro e
determinado este soacute se forma mais tarde Uma certa disposiccedilatildeo musical de espiacuterito
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vem primeiro e somente depois eacute que se segue em mim a ideacuteia poeacuteticardquo Desta forma
Arquiacuteloco em seu processo criativo a princiacutepio entraria em um estado de consciecircncia
ou de criaccedilatildeo onde renunciaria agrave sua individualidade e dionisiacamente participaria do
uno-primordial ldquoabismo do serrdquo estado que por sua vez materializa-se atraveacutes da
representaccedilatildeo musical A muacutesica assim produzida seraacute condiccedilatildeo para o surgimento da
inspiraccedilatildeo que a posteriori daraacute nascimento atraveacutes da aplicaccedilatildeo das formas
apoliacuteneas agrave poesia liacuterica geacutermen da trageacutedia e dos ditirambos dramaacuteticos Esta uniatildeo da
poesia liacuterica com a muacutesica eacute uma expressatildeo sinteacutetica da relaccedilatildeo dos deuses Apolo e
Dioniacutesio Eacute no quinto capiacutetulo de sua obra que Nietzsche iraacute tratar da poesia liacuterica
Neste capiacutetulo o filoacutesofo se distancia de Schopenhauer em sua interpretaccedilatildeo do
fenocircmeno liacuterico Para Schopenhauer na citaccedilatildeo reproduzida por Nietzsche (NT 46) a
liacuterica eacute produzida atraveacutes de uma percepccedilatildeo da consciecircncia onde os estados da vontade
individualizada se alternam com o conhecimento objetivo Como vimos o poeta liacuterico
assistiria ao jogo do eu em sua afetaccedilatildeo emocional e descreveria este estado atraveacutes de
sua poesia Nietzsche ao descrever a liacuterica utiliza-se da teoria da muacutesica
schopenhaueriana qual seja o poeta liacuterico produz primeiramente a muacutesica como forma
geral de expressatildeo da vontade mesma e desta produccedilatildeo gera posteriormente o texto que
se torna um exemplificador do evento musical sua forma plaacutestica objetiva A muacutesica eacute
a aparecircncia da vontade e as imagens apoliacuteneas que dela se originaram satildeo conforme seu
espiacuterito A imagem e o conceito satildeo desta forma na liacuterica originados a partir da
muacutesica
Tem-se portanto na trageacutedia grega uma relaccedilatildeo de interdependecircncia que evoca
um aparente paradoxo ndash ou seja ao lado da necessidade esteacutetica da beleza Apolo exige
dos seus a medida (limites fronteiras do indiviacuteduo presentes no ldquonada em demasiardquo) e
o auto-conhecimento necessaacuterio para determinaacute-la (ldquoconhece-te a ti mesmordquo) o
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desmedido os excessos o dionisiacuteaco seriam identificados pelo apoliacuteneo como
democircnios de uma era preacute-apoliacutenea era dos Titatildes reminiscecircncias de barbarismo O
paradoxo estaacute em que para que o comedimento apoliacuteneo possa existir o desmedido
dionisiacuteaco faz-se necessaacuterio (na linguagem de Nietzsche como ldquosubstratordquo) assim
como para que o desmedido dionisiacuteaco possa existir faz-se necessaacuterio a existecircncia do
comedido do apoliacuteneo Natildeo obstante a trageacutedia grega depende da conjugaccedilatildeo destes
dois princiacutepios para existir ndash indo aleacutem poder-se-ia dizer que a proacutepria muacutesica compotildee
o princiacutepio primeiro que possibilita o surgimento da trageacutedia no jogo das formas
apoliacuteneo A trageacutedia eacute entatildeo definida como ldquoo coro dionisiacuteaco a descarregar-se sempre
de novo em um mundo de imagens apoliacuteneordquo (NT 60)
Em seu iniacutecio a trageacutedia grega era representada pelo coro traacutegico Este coro natildeo
era uma ldquorepresentaccedilatildeo constitucional do povordquo muito menos um espectador ideal
como o queria August Schlegel Nietzsche acompanha Schiller na definiccedilatildeo de que o
coro cria um terreno ideal para a manifestaccedilatildeo da arte O efeito da trageacutedia eacute a
manifestaccedilatildeo de um estado de unidade que transporta ao abismo do ser O coro eacute a
manifestaccedilatildeo deste sentimento da consciecircncia de que por traacutes da vida cotidiana haacute uma
realidade ldquoindestrutivelmente poderosa e cheia de alegriardquo (NT 55) Este eacute o consolo
metafiacutesico propiciado pela arte traacutegica Ao retornarmos deste estado o cotidiano nos
causa asco nojo Natildeo eacute possiacutevel interpretar mais o papel da vida comum A vida soacute
passa a se justificar atraveacutes da arte Perceba-se aiacute que o coro possui um papel
fundamental no processo O coro atua como impulso artiacutestico dionisiacuteaco em
contraposiccedilatildeo agrave forma apoliacutenea ou seja agraves imagens e agrave beleza plaacutestica Assim o
indiviacuteduo atraveacutes do coro tem para si revelado aquele substrato dionisiacuteaco encoberto
pela beleza e comedimento apoliacuteneos isto eacute ao indiviacuteduo era possiacutevel submergir na
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torrente dionisiacuteaca do auto-esquecimento permitindo-se pocircr de lado os preceitos
apoliacuteneos
E foi assim que em toda parte onde o dionisiacuteaco penetrou o apoliacuteneo
foi suspenso e aniquilado Mas eacute igualmente certo que laacute onde o primeiro
assalto foi suportado o prestiacutegio e a majestade do deus deacutelfico se externaram de
maneira mais riacutegida e ameaccediladora do que nunca(NT 41-42)
De acordo com Nietzsche as trageacutedias eram em seu iniacutecio representaccedilotildees do
sofrimento de Dioniacutesio Mesmo as trageacutedias do periacuteodo aacutetico traziam Dioniacutesio como
heroacutei traacutegico O sofrimento representado era o do despedaccedilamento de Dioniacutesio o deus
que sofreu o padecimento da individuaccedilatildeo causa de todo o sofrer O mito de Dioniacutesio eacute
interpretado aqui sob a luz da filosofia de Schopenhauer que apresenta a individuaccedilatildeo
como fonte do sofrimento ldquoNos pontos de vista aduzidos temos jaacute todas as partes
componentes de uma profunda e pessimista consideraccedilatildeo do mundo e ao mesmo tempo
a doutrina misteriosoacutefica da trageacutedia o conhecimento baacutesico da unidade de tudo o que
existe a consideraccedilatildeo da individuaccedilatildeo como a causa primeira do mal a arte como a
esperanccedila jubilosa de que possa ser rompido o feiticcedilo da individuaccedilatildeo como
pressentimento de uma unidade restabelecidardquo (NT 70)
Contudo ressalta Nietzsche a trageacutedia grega que como vimos desenvolve-se a
partir do embate contiacutenuo entre as representaccedilotildees dos deuses antiacutepodas ndash envolvidos em
um enfrentamento aparentemente sem fim ndash eacute reestruturada por Euriacutepides de forma a
diminuir o impacto do coro ou seja um golpe quase mortal para Dioniacutesio que
agonizante lanccedila matildeo de seus uacuteltimos esforccedilos O que em Euriacutepedes suscitou esta
reestruturaccedilatildeo que conforme Nietzsche eacute responsaacutevel pelo afastamento progressivo do
dionisiacuteaco tem suas origens no que o filoacutesofo chamou de uma ldquotendecircncia socraacuteticardquo O
socratismo euripidiano e a sua nova concepccedilatildeo esteacutetica satildeo as causadoras do
afastamento dos impulsos esteacuteticos primevos o dionisiacuteaco e o apoliacuteneo Em seu lugar o
discurso consciente passa a imperar O deus ex machina e os proacutelogos satildeo exemplos das
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interferecircncias racionais que datildeo novo tom agrave trageacutedia aacutetica Soacutecrates e seu racionalismo
expulsam da trageacutedia o conhecimento primevo dionisiacuteaco e estabelecem novas regras
esteacuteticas regras racionais que fazem com que o bom sinocircnimo do belo seja aquilo
alcanccedilado conscientemente
Se a trageacutedia grega foi para Nietzsche a manifestaccedilatildeo mais sublime de uma
forma artiacutestica isto se daacute em decorrecircncia do efeito por ela provocado qual seja o de
justificar o mundo enquanto fenocircmeno esteacutetico Foi exatamente o decliacutenio deste efeito
constatado pela produccedilatildeo racionalizada de Euriacutepides o responsaacutevel pela morte da
trageacutedia Ao fortalecer em demasia os princiacutepios racionais da forma Euriacutepides suprimiu
o dionisiacuteaco por meio da flacircmula que nas palavras de Nietzsche o tragedioacutegrafo
ldquolevava agrave testardquo ndash a saber uma espeacutecie de socratismo esteacutetico cujos princiacutepios se davam
a partir da remissatildeo do belo ao inteligiacutevel e deste ao virtuoso Identifica-se portanto a
racionalidade otimista socraacutetica como grande responsaacutevel pela supressatildeo do impulso
dionisiacuteaco Nietzsche alude agrave proximidade de convivecircncia entre Soacutecrates e Euriacutepides
para justificar a presenccedila do racionalismo nas obras Euripidianas Soacutecrates frequumlentava
o teatro somente para assistir agraves apresentaccedilotildees de Euriacutepides De todos os atenienses
Soacutecrates era apontado como o mais saacutebio e Euriacutepides como o segundo em sabedoria
Entretanto na contraposiccedilatildeo proposta por Nietzsche entre conhecimento instintivo e
racional Soacutecrates era descomunalmente racional ao contraacuterio do intuitivismo criativo
que reinava ateacute entatildeo Era questionando aos atenienses sobre seus atos que Soacutecrates
percebia que eles natildeo agiam conscientemente mas por intuiccedilatildeo A crenccedila socraacutetica de
que toda accedilatildeo boa deve ser consciente dominou o teatro atraveacutes de Euriacutepides Uma
chave para o entendimento da racionalidade socraacutetica segundo Nietzsche nos eacute
revelada pela ldquomonstruosa inversatildeordquo representada pela consciecircncia criacutetica de Soacutecrates ndash
ou seja a nota destoante em Soacutecrates revela-se pelo instinto criacutetico em contraposiccedilatildeo agrave
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consciecircncia criacutetica a consciecircncia criadora em contraposiccedilatildeo ao instinto como forccedila
criadora Intui-se assim o motivo pelo qual Soacutecrates natildeo compreendia a trageacutedia grega
- o dionisiacuteaco a tornava ininteligiacutevel para as exigecircncias racionalistas e criacuteticas da
ldquodialeacutetica otimistardquo socraacutetica ldquoA Soacutecrates [] parecia que a arte traacutegica nunca bdquodiz a
verdade‟ sem considerar o fato de que se dirigia agravequele que bdquonatildeo tem muito
entendimento‟ portanto natildeo aos filoacutesofos daiacute um duplo motivo para manter-se dela
afastadordquo(NT 87) Nietzsche compara Soacutecrates ao heroacutei euripidiano que
diferentemente (ateacute mesmo antagonicamente) agrave trageacutedia de Eacutesquilo e Soacutefocles ldquoprecisa
defender suas accedilotildees por meio da razatildeo e contra a razatildeordquo O que estaacute em jogo no
socratismo eacute a substituiccedilatildeo das verdades expressas miticamente religiosamente pelas
verdades loacutegicas A razatildeo tenta abarcar o todo e para isso desconsidera a arte e seus
impulsos A excelecircncia estaacute no saber e atraveacutes deste alcanccedila-se a felicidade erro do
otimismo racionalista Ilusatildeo da razatildeo que se acha soberana e independente A loacutegica
torna-se essecircncia da trageacutedia procura-se por relaccedilotildees causais e pelo bom telos O
diaacutelogo formata sua estrutura e expulsa seu fundamento musical O ldquoheroacutei dialeacuteticordquo eacute
portanto impulsionado pelo elemento otimista da dialeacutetica A justiccedila transcendental
presente nas obras Esquilianas ldquoeacute rebaixada ao niacutevel do raso e insolente princiacutepio da
bdquojusticcedila poeacutetica‟ com seu habitual deus ex machinardquo (NT 89) A racionalidade de
Soacutecrates atraveacutes de sua investigaccedilatildeo cientiacutefica da natureza de seu processo de
construccedilatildeo loacutegica da realidade daraacute origem ao que Nietzsche denominaraacute de ldquohomem
teoacutericordquo ou ldquohomem cientiacuteficordquo a quem a razatildeo ergue-se acima da proacutepria realidade ao
ponto mesmo de ndash e aiacute reside o proacuteprio otimismo ndash propor-se a tarefa de corrigir as
falhas da proacutepria realidade Mais ainda a razatildeo socraacutetica acena ao homem com a
promessa de conferir sentido agrave existecircncia pelo conhecimento e desta forma busca
justificar tal existecircncia
83
Em face ao pessimismo praacutetico eacute Soacutecrates o protoacutetipo do
otimista teoacuterico que na jaacute assinalada feacute na escrutabilidade da
natureza das coisas atribui ao saber e ao conhecimento a forccedila de
uma medicina universal e percebe no erro o mal em si mesmo
(NT 94)
Natildeo obstante o otimismo no conhecimento na racionalidade socraacutetica encontra seu
maior dragatildeo em sua proacutepria loacutegica interna Assim nas palavras de Nietzsche
[] a periferia do ciacuterculo da ciecircncia possui infinitos pontos
e enquanto natildeo for possiacutevel prever de maneira nenhuma como se
poderaacute alguma vez medir completamente o ciacuterculo o homem
nobre e dotado ainda antes de chegar ao meio de sua existecircncia
tropeccedila e de modo inevitaacutevel em tais pontos fronteiriccedilos da
periferia onde fixa o olhar no inesclareciacutevel Quando divisa aiacute
para seu susto como nesses limites a loacutegica passa a girar em
redor de si mesma e acaba por morder a proacutepria cauda ndash entatildeo
irrompe a nova forma de conhecimento o conhecimento traacutegico
que mesmo para ser apenas suportado precisa da arte como meio
de proteccedilatildeo e remeacutedio (NT 95)
Afigura-se-nos aqui o problema apontado por Nietzsche como o ldquoproblema da
ciecircncia mesmardquo a saber um problema que nos envolve a todos por abarcar (ou
contaminar) toda a cultura ocidental - isto eacute ainda mantemos o dionisiacuteaco agrave baila
ocupando diminuta posiccedilatildeo em detrimento ao culto acerbado ao racionalismo socraacutetico
A cultura socraacutetica impotildee-se pelo homem-teoacuterico e qualquer outra existecircncia que fuja
aos olhos perscrutadores de Soacutecrates deve ldquolutar penosamente para pocircr-se agrave sua altura
como existecircncia permitida e natildeo como existecircncia propostardquo
Nietzsche nos atenta para o fato de reconhecermos comumente no homem culto
erudito o homem douto saacutebio ndash consecutivamente o dionisiacuteaco a arte eacute colocada de
forma perifeacuterica de modo a nunca poder encontrar espaccedilo para superar sua condiccedilatildeo de
ldquoremeacutedio-arterdquo A vontade aacutevida faz seu caminho mesmo atraveacutes da completa falta de
respostas de fundamentos de sentido assim eacute preferiacutevel ao ser humano querer o nada
no sentido de ainda sim querer alguma coisa do que nada querer do que reconhecer a
84
falta de fundamentos da qual consistem em todos os tempos as ilusotildees que
costumeiramente adota-se como engodo ao absoluto sem-sentido da vida
Por fim Nietzsche atenta-nos para o fato de como o homem de seu tempo vem
perdendo a crenccedila na ciecircncia otimista socraacutetica isto eacute pressentindo que a cultura
racionalista socraacutetica torna-se iloacutegica ao vislumbraacute-la em seus horizontes afastando-se
de suas consequumlecircncias Nietzsche diagnostica na oacutepera de seu periacuteodo a subordinaccedilatildeo da
muacutesica agrave arte figurada agrave palavra e expotildee a expectativa de que possa haver no cansaccedilo e
na percepccedilatildeo do insucesso dos esforccedilos racionalistas um renascimento da trageacutedia
85
4 Conclusatildeo pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo
da vida
Retribui-se mal a um mestre continuando-
se sempre apenas aluno
(Nietzsche)
Natildeo podemos ver na filosofia schopenhaueriana qualquer instacircncia que
justifique a vida Ao conhecermos a sua essecircncia - a vontade cega e irracional que se
deixa ver atraveacutes das manifestaccedilotildees do seu querer incessante - percebemos o absurdo de
sua existecircncia e somos por essa percepccedilatildeo levados agrave sua negaccedilatildeo Nietzsche por sua
vez utilizando-se dos conceitos da filosofia de Schopenhauer procura em sua obra
justificar a vida e encontra esta justificaccedilatildeo na arte Nesta conclusatildeo da pesquisa
pretendemos entatildeo apresentar um esboccedilo do modo pelo qual alguns elementos da
filosofia schopenhaueriana foram utilizados no projeto do primeiro livro de Nietzsche e
explicitar o modo como estes elementos foram configurados no interior de seu projeto
Dentre estes elementos percorreremos o paralelo entre os pares dionisiacuteacoapoliacuteneo e
vontaderepresentaccedilatildeo os conceitos de arte e apreciaccedilatildeo esteacutetica e sua cisatildeo entre as
86
artes figurativas e a musical a especificidade da muacutesica o conceito de gecircnio e sua
divisatildeo e os limites da racionalidade e da ciecircncia
Jaacute no primeiro paraacutegrafo de NT a associaccedilatildeo entre os pares nietzscheanos do
dionisiacuteaco e apoliacuteneo e as visotildees de mundo schopenhauerianas satildeo expliacutecitas Nietzsche
define o impulso apoliacuteneo atraveacutes do sonho do princiacutepio de individuaccedilatildeo e o dionisiacuteaco
atraveacutes da embriaguez da consciecircncia de unidade da vontade do livrar-se do veacuteu de
maia Os deuses gregos tornam-se representativos destes estados schopenhauerianos de
consciecircncia Como vimos no capiacutetulo segundo desta dissertaccedilatildeo sob o ponto de vista da
representaccedilatildeo o mundo eacute objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito
agraves condiccedilotildees a priori do entendimento Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das
formas a priori do entendimento eacute interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos
advindos da filosofia Platocircnica e oriental como um mundo aparente ilusoacuterio artificial
O sonho efeito do encantamento apoliacuteneo eacute utilizado como metaacutefora da realidade
fenomecircnica no mundo Schopenhaueriano Os Vedas e Puranas tantas vezes citados por
Schopenhauer tratam o mundo como um sonho imposto pelo deus Maia o deus da
ilusatildeo que cobre a visatildeo do homem com seu veacuteu A mitologia oriental aludida por
Schopenhauer toma conta do mundo helecircnico em Nietzsche que transforma Apolo no
deus Maia o configurador de sonhos O sonho eacute utilizado como ilustraccedilatildeo da realidade
pelo fato de que durante o sonho natildeo sabemos estar sonhando O mundo dos sonhos nos
eacute naquele momento real Vemo-nos como indiviacuteduos e vemos o mundo da
individuaccedilatildeo e suas leis causais espaccedilo-temporais Somente o momento empiacuterico do
despertar informa-nos do sonho Haacute portanto uma identificaccedilatildeo do ldquoparentesco iacutentimo
entre vida e sonhordquo(MVR 60) Como ilustraccedilatildeo desta metaacutefora Schopenhauer elogia
ainda a obra do ldquovaterdquo Calderoacuten de La Barca A vida eacute sonho agrave qual denominaraacute como
um ldquodrama metafiacutesicordquo por expor esta faceta de seu sistema A consciecircncia de que a
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vida eacute sonho eacute para Schopenhauer um despertar metafiacutesico cujo propiciador foi Kant
ao demonstrar o caraacuteter fenomecircnico do mundo Este despertar contudo natildeo causa
prazer O filoacutesofo e o gecircnio personagens que na metafiacutesica schopenhaueriana alcanccedilam
este despertar satildeo atormentados pela realidade com a qual se deparam qual seja a de
que a vida eacute puro sofrimento Eacute no intuito de deixar velada esta faceta da vida que
Apolo ofusca a visatildeo dos homens com seu mundo luminoso de sonho seu objetivo eacute
encobrir esta verdade aterrorizadora As artes natildeo musicais tanto na teoria de
Schopenhauer como na nietzscheana manteacutem o homem em um juacutebilo prazeroso
ocasionado pela contemplaccedilatildeo puramente objetiva Neste momento natildeo se percebe o
jogo da vontade individualizada somos afastados da realidade do querer insuflados
pela caracteriacutestica quietiva da apreciaccedilatildeo esteacutetica nas palavras de Nietzsche
encontramos na arte um ldquoremeacutedio-arterdquo32
Esta visatildeo do lado terriacutevel da vida ocasionada pelo despertar do dogmatismo
metafiacutesico na teoria schopenhaueriana eacute associada em NT agrave sabedoria dionisiacuteaca
Verificamos na descriccedilatildeo do impulso dionisiacuteaco os elementos que caracterizam a
vontade schopenhaueriana A visatildeo dionisiacuteaca do mundo carrega consigo o despertar
para o caraacuteter absurdo da vida Ao olhar para a proacutepria essecircncia o homem descobre-se
enquanto manifestaccedilatildeo de uma vontade aacutevida desprovida de telos O ldquomecanismo
internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens marionetes guiados pela
carecircncia Esta realidade eacute assustadora pois subtrai do horizonte todos os propoacutesitos da
vida individual Dioniacutesio trava aqui sua batalha contra Apolo ao apontar a ilusatildeo da
individuaccedilatildeo como mecanismo para uma fuga daquilo que em essecircncia somos Apesar
de seu caraacuteter aterrorizador a sabedoria dionisiacuteaca eacute acompanhada do deleite
32
Podemos ver aqui o nuacutecleo da dissenssatildeo entre as teorias dos dois filoacutesofos Para Schopenhauer este
remeacutedio eacute temporaacuterio e tatildeo logo o efeito da apreciaccedilatildeo esteacutetica se esvaia os interesses da vontade voltam
a agir sobre o indiviacuteduo e a vida de sofrimento continua seu percurso restando apenas o caminho da
negaccedilatildeo daquela vontade da vida mesma em direccedilatildeo ao nada Nietzsche ao contraacuterio aponta para uma
forma de cura atraveacutes do remeacutedio-arte ver a vida enquanto forma de arte afirmaacute-la
88
indescritiacutevel da celebraccedilatildeo da unidade com o todo ldquoSob a magia do dionisiacuteaco torna a
selar-se natildeo apenas o laccedilo de pessoa a pessoa mas tambeacutem a natureza alheada
inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de reconciliaccedilatildeo com seu filho
perdido o homemrdquo(NT 31) Se Apolo eacute representado como deus da forma da clareza
da individuaccedilatildeo e as artes patrocinadas por ele satildeo expressotildees destas caracteriacutesticas
Dioniacutesio por sua vez eacute o patrocinador da muacutesica expressatildeo fenomecircnica direta da
vontade Vemos em Nietzsche uma biparticcedilatildeo das artes que tambeacutem pode ser extraiacuteda
da metafiacutesica schopenhaueriana (artes natildeo-musicais e arte musical)
Para Schopenhauer as formas artiacutesticas natildeo-musicais ao provocarem uma visatildeo
puramente objetiva do objeto apreciado tecircm como caracteriacutestica fundamental a
libertaccedilatildeo da subjetividade e com ela dos anseios da vontade Durante esta forma de
apreciaccedilatildeo esteacutetica ldquosomos alforriados do desgraccedilado iacutempeto volitivo festejamos o
Sabbath dos trabalhos forccedilados do querer a roda de Iacutexion cessa de girarrdquo (MVR
267) A definiccedilatildeo nietzscheana para a funccedilatildeo da arte apoliacutenea se daacute da mesma maneira
qual seja ela deve ldquo [] livrar a vista de olhar no horror da noite e salvar o sujeito
graccedilas ao baacutelsamo da aparecircncia do espasmo dos movimentos do querer []rdquo (NT
117) A muacutesica por sua vez recebe um tratamento especial de Schopenhauer devido ao
seu efeito esteacutetico Se as demais artes satildeo um quietivo para a vontade a muacutesica ldquonatildeo faz
mais do que agradar a vontade de viver jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo
seus ecircxitos e ao final expressa sua satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509) Ela encontra-se
num niacutevel de valor superior ao das demais artes por tratar-se de representar a essecircncia
do mundo a vontade mesma Assim tambeacutem ela eacute tratada por Nietzsche como a arte
que representa a sabedoria dionisiacuteaca e faz o apreciador vivenciar a vontade mesma
Em seus escritos sobre a poesia e a oacutepera Schopenhauer alude agrave necessidade de
subordinar os conceitos e o texto agrave muacutesica para que estas artes tenham um efeito mais
89
arrebatador no apreciador esteacutetico Esta subordinaccedilatildeo eacute assumida por Nietzsche em sua
teoria da trageacutedia Nietzsche encontra na liacuterica a primeira manifestaccedilatildeo desta junccedilatildeo da
arte dionisiacuteaca com a arte apoliacutenea e aponta aiacute o geacutermen que daraacute origem agrave trageacutedia
Podemos perceber aqui uma subordinaccedilatildeo das artes natildeo-musicais agrave muacutesica que por sua
vez se espelha na subordinaccedilatildeo do mundo fenomecircnico ao mundo da coisa-em-si As
artes figurativas representam as ideacuteias objetivaccedilotildees imediatas da vontade e a muacutesica
representa a vontade mesma Na teoria da trageacutedia de Nietzsche esta subordinaccedilatildeo seraacute
mantida e assim reflete a configuraccedilatildeo da metafiacutesica schopenhaueriana A muacutesica ldquoeacute
uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente sobre o mais iacutentimo do
homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele como se fora uma
linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo (MVR
336) Desta forma uma arte que se pretenda formar a partir da integraccedilatildeo de elementos
de diversas formas artiacutesticas deve tomar a muacutesica como inspiraccedilatildeo tanto na teoria de
Schopenhauer como na de Nietzsche
Desta dicotomia das formas artiacutesticas que podemos perceber nos dois filoacutesofos
podemos depreender duas formas do gecircnio o apoliacuteneo ou contemplativo e o
compositor dionisiacuteaco Para Schopenhauer ldquoo compositor manifesta a essecircncia mais
iacutentima do mundo expressa a sabedoria mais profunda numa linguagem natildeo
compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo magneacutetico fornece informaccedilotildees
sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito algumrdquo (MVR 342) Podemos
vislumbrar ainda nesta descriccedilatildeo de Schopenhauer uma caracteriacutestica do que Nietzsche
mais tarde iraacute chamar de criaccedilatildeo inconsciente Em uma segunda passagem desta vez ao
final do capiacutetulo 39 do segundo volume de MVR vemos tambeacutem uma caracteriacutestica que
posteriormente tambeacutem seraacute ressaltada por Nietzsche como demarcaccedilatildeo do caraacuteter
dionisiacuteaco Schopenhauer se utiliza de uma passagem dos Vedas para descrever o prazer
90
provocado pela muacutesica como um prazer de participaccedilatildeo no todo33
Este ecircxtase da
comunhatildeo eacute um aspecto reiteradamente apontado por Nietzsche O gecircnio dionisiacuteaco eacute
para o jovem filoacutesofo aquele que tambeacutem absorvido pelo impulso dionisiacuteaco traduz
sua essecircncia em linguagem musical O tipo de gecircnio musical descrito eacute encontrado em
Schopenhauer nas encarnaccedilotildees de Rossini e Beethoven cujas obras operiacutesticas satildeo
norteadas pela produccedilatildeo musical e o livreto ocupa um lugar secundaacuterio Nietzsche
aponta um renascimento progressivo do gecircnio musical em seu tempo que se inicia com
Bach e tem continuidade em Beethoven mas que encontra sua forma mais bem acabada
em Richard Wagner
Apesar da tomarem caminhos diferentes no que tange ao objetivo da obra de arte
traacutegica Nietzsche e Schopenhauer mais uma vez em uniacutessono consideram-na todavia
como uma forma de entendimento superior ao apresentado pelo pensamento cientiacutefico
Como vimos anteriormente as ciecircncias no sistema schopenhaueriano seguem o
princiacutepio de razatildeo seu papel eacute apenas descritivo e consequumlentemente limitado ao
acircmbito daquele princiacutepio Transformam em conceitos abstratos o mundo intuitivo ao
descrevecirc-lo em sua aparecircncia e seguem o fio condutor do principio de razatildeo
apresentando as causas para cada fenocircmeno particular Desta forma as ciecircncias estatildeo
subordinadas ao mundo da aparecircncia e no que importa agrave essecircncia natildeo podem
demonstraacute-la As uacutenicas produccedilotildees humanas com esta capacidade satildeo a arte e a
filosofia e essas o fazem de forma indireta metafoacuterica A consideraccedilatildeo racional do
mundo estaacute enquanto presa ao acircmbito do fenocircmeno subordinada aos ditames da
vontade Esta ldquovontade aacutevida sempre encontra um meio atraveacutes de uma ilusatildeo
distendida sobre as coisas de prender agrave vida as suas criaturas e de obrigaacute-las a
prosseguir vivendordquo (NT 108) Nietzsche descreve trecircs formas pelas quais a vontade
33
ldquoE o delicioso que eacute uma classe de alegria chama-se assim o sumo Atman porque onde haacute uma
alegria esta eacute uma pequena parte de sua alegriardquo (MVR II 510)
91
manteacutem a vida A primeira delas eacute o ldquoveacuteu da beleza da arterdquo sustentado pelo impulso
apoliacuteneo Encontramo-la na epopeacuteia homeacuterica e nas artes figurativas A segunda eacute a
visatildeo traacutegica do mundo que encontra um consolo metafiacutesico na percepccedilatildeo de um
substrato comum aos fenocircmenos e que por consequumlecircncia abdica destes em funccedilatildeo da
vivecircncia daquele substrato A terceira forma de dominaccedilatildeo da vontade eacute a ciecircncia a
loacutegica socraacutetica que procura abarcar o mundo com sua razatildeo de acircnsia justificadora
Estas trecircs formas de coerccedilatildeo conforme sua predominacircncia em determinada cultura
formam o que Nietzsche iraacute denominar respectivamente de culturas artiacutestica traacutegica e
socraacutetica Correspondem historicamente agraves fases predominantemente helecircnica budista
ou alexandrina Fazendo um diagnoacutestico da cultura contemporacircnea Nietzsche a
identifica como uma cultura predominantemente alexandrina Diagnostica o seu ocaso a
partir da identificaccedilatildeo feita por Kant e Schopenhauer dos limites da ciecircncia do
desmascaramento das verdades eternas que amparam a visatildeo socraacutetica de mundo quais
sejam a visatildeo de que o tempo o espaccedilo e a causalidade satildeo leis universais e
incondicionais Esta criacutetica ao racionalismo eacute constante na obra schopenhaueriana
Percebemo-la claramente em suas investidas contra a filosofia de seu tempo e a
presunccedilatildeo nela presente de racionalmente abarcar o real
- - - - - - - - - -
Compostas por conceitos da metafiacutesica schopenhaueriana a teoria da trageacutedia de
Schopenhauer e a de Nietzsche apontam para caminhos diversos Em Schopenhauer a
trageacutedia eacute a arte cujo fim uacuteltimo eacute ao expor seu lado terriacutevel inspirar o apreciador agrave sua
renuacutencia Este lado terriacutevel espelho do mundo presentificador da vida humana e de
suas relaccedilotildees ocasiona atraveacutes do medo e da compaixatildeo a vontade de renuacutencia a essa
92
mesma vida Nietzsche introduz na trageacutedia o elemento da muacutesica schopenhaueriana34
A consequumlecircncia desta introduccedilatildeo eacute um plano mais profundo de entendimento que
apresenta a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com sua essecircncia Neste estado de consciecircncia
apartado de sua individualidade o sujeito jaacute se vecirc como um criador de mundos e vecirc no
mundo uma obra de arte sua Ao derivar o impulso apoliacuteneo do dionisiacuteaco35
Nietzsche
jaacute executou a renuacutencia do indiviacuteduo que agora passa a se ver como essecircncia e ao mundo
como fenocircmeno artiacutestico
34
Machado (2006 200) considera na esteira de Clemeacutent Rosset e de Jean-Marie Schaeffer a utilizaccedilatildeo
da teoria da apreciaccedilatildeo musical de Schopenhauer por Nietzsche como o elemento que sugeriraacute a
caracteriacutestica de afirmaccedilatildeo da vontade de sua filosofia da trageacutedia 35
ldquoNo efeito conjunto da trageacutedia o dionisiacuteaco recupera a preponderacircncia ela se encerra com um tom
que jamais poderia soar a partir do reino da arte apoliacutenea E com isso o engano apoliacuteneo se mostra como o
que ele eacute como o veacuteu que enquanto dura a trageacutedia envolve o autecircntico efeito dionisiacuteaco o qual
todavia eacute tatildeo poderoso que ao final impele o proacuteprio drama apoliacuteneo a uma esfera onde ele comeccedila a
falar com sabedoria dionisiacuteaca e onde nega a si mesmo e agrave sua visibilidade apoliacuteneardquo (NT 129)
93
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4
UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
INSTITUTO DE FILOSOFIA ARTES E CULTURA
PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM FILOSOFIA
MESTRADO EM ESTEacuteTICA E FILOSOFIA DA ARTE
Dissertaccedilatildeo intitulada ldquoA filosofia da vontade e as interpretaccedilotildees da trageacutedia
uma anaacutelise das teorias de Schopenhauer e do jovem Nietzscherdquo de autoria do
mestrando Raul Moraes de Euclides apresentada agrave banca examinadora constituiacuteda pelos
seguintes professores
____________________________________________________
ProfDr Heacutelio Lopes da Silva - Orientador- UFOP
___________________________________________________
ProfDr Eduardo Soares Neves Silva ndash Co-orientador - UFMG
____________________________________________________
Prof Dr Douglas Garcia Alves Juacutenior - UFOP
____________________________________________________
Prof Dr Rogeacuterio Antocircnio Lopes - UFMG
Ouro Preto 24 de Marccedilo de 2010
5
Agrave minha famiacutelia
6
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo agraves pessoas que direta ou indiretamente ajudaram na elaboraccedilatildeo deste
trabalho
Agrave minha esposa pelo amor paciecircncia e apoio
Ao corpo docente do curso de mestrado e em especial ao meu co-orientador
cujo incentivo foi essencial agrave continuaccedilatildeo da pesquisa
Ao meu orientador pelas observaccedilotildees valiosas
Aos colegas de mestrado companheiros indispensaacuteveis nas diaacuterias procissotildees de
embriaguez dionisiacuteaca pelas labiriacutenticas ladeiras de Ouro Preto
7
A existecircncia eacute um episoacutedio do nada
Arthur Schopenhauer
8
RESUMO
O projeto que aqui se apresenta tem como objetivo principal percorrer as
teorias do traacutegico schopenhaueriana e nietzscheana no intuito de apresentar as
principais caracteriacutesticas de cada uma destas teorias Este percurso teraacute como ponto de
partida o fundamento metafiacutesico comum a elas qual seja a filosofia schopenhaueriana
da vontade Atraveacutes desta exposiccedilatildeo pretendemos demonstrar natildeo somente a real
amplitude da influecircncia de Schopenhauer nos primeiros escritos de Nietzsche mas
tambeacutem algumas das peculiaridades existentes em cada uma das citadas teorias
Palavras-chave Schopenhauer - Nietzsche - Trageacutedia - Traacutegico - Filosofia da
vontade
ABSTRACT
The research presented herein has as its ultimate goal to discuss the
theories of the tragedy developed by Schopenhauer and Nietzsche highlighting the
main characteristics ndash points of convergence and divergence ndash of both Our trajectory
shall start from the metaphysical foundations apparently displayed in both theories
which is ndash the schopenhauerian philosophy of the will Throughout our exposition we
intend to show not only that Schopenhauers philosophy had a huge impact in
Nietzsches first writings but also reveal the peculiarities beneath the development of
their aforementioned theories
Keywords Schopenhauer - Nietzsche - Tragedy - Tragic ndash Philosophy of the will
9
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO11
1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES NA
FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA 17
2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU
SUBSTRATO METAFIacuteSICO42
21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo43
22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo45
23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana49
24 A finalidade moral da trageacutedia56
25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera62
3 A TEORIA DA TRAGEacuteDIA DO JOVEM NIETZSCHE65
31 A influecircncia de Schopenhauer na obra do primeiro Nietzsche66
32 O projeto subjacente ao nascimento da trageacutedia72
33 A teoria da trageacutedia publicada75
4 CONCLUSAtildeO pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo da
vida85
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS93
10
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Obras de Nietzsche
NT = O nascimento da trageacutedia (1992)
VD = Visatildeo dionisiacuteaca do mundo (2005)
CORRESPONDEcircNCIA = Correspondecircncias de Nietzsche (2007)
OC = Obras completas de Nietzsche (1963)
11
INTRODUCcedilAtildeO
ldquoDias sem nuacutemero nunca reservam a
ningueacutem nada mais que dissabores mais
proacuteximos da dor que da alegria Quanto aos
prazeres natildeo os discernimos e nossa vista os
buscaraacute em vatildeo logo que para nossa
desventura chegamos ao limite prefixado E
desde entatildeo o nosso aliacutevio uacutenico seraacute aquele
que daraacute a todos o mesmo fim na hora de
chegar de suacutebito o destino procedente do
tenebroso reino onde natildeo haacute cantos nem
liras onde natildeo haacute danccedilas ndash ou seja a morte
epiacutelogo de tudo Melhor seria natildeo haver
nascido como segunda escolha bom seria
voltar logo depois de ver a luz agrave mesma
regiatildeo de onde se veiordquo
(Soacutefocles)
As teorias sobre a trageacutedia de Schopenhauer e Nietzsche satildeo parte
indispensaacutevel no estudo da histoacuteria da filosofia da trageacutedia Dentre os diversos
pensadores contemporacircneos que tratam sobre o problema da trageacutedia e do traacutegico e que
deram visiacutevel destaque agraves teorias dos nossos filoacutesofos podemos destacar Walter
Benjamin1 e Peter Szondi
2 Entretanto nos trabalhos destes autores o problema do
1 BENJAMIN Walter Origem do drama barroco alematildeo Traduccedilatildeo Sergio Paulo Rouanet Satildeo Paulo
Brasiliense 2004
12
relacionamento e da interdependecircncia entre as filosofias de Schopenhauer e Nietzsche
natildeo eacute detalhado a contento Diante disto mesmo para um olhar historicamente
caracterizador torna-se vaacutelido um estudo comparado destas teorias que leve em
consideraccedilatildeo o quecirc ou o quanto haacute de comum em suas metafiacutesicas e a partir desta
perspectiva trace os aspectos coincidentes e dissidentes das mesmas mostrando seus
pontos de interdependecircncia e discrepacircncia muacutetua
Apesar de estar entre as teorias da trageacutedia mais estudadas do periacuteodo do
idealismo alematildeo a teoria Schopenhaueriana que eacute sempre analisada em relaccedilatildeo a seus
pressupostos metafiacutesicos ao ser vista sob outra perspectiva ganharia contornos
intensamente enriquecidos Esta perspectiva atraveacutes da qual nos propomos a examinar a
teoria do traacutegico do filoacutesofo eacute aquela que levaraacute em consideraccedilatildeo as influecircncias
histoacutericas culturais e filosoacuteficas que agiram diretamente sobre a esteacutetica do traacutegico
schopenhaueriana Ao lanccedilarmos um olhar sobre estas referidas influecircncias estaremos
abrindo caminho para uma melhor compreensatildeo sobre a teoria esteacutetica
schopenhaueriana o que conseguintemente refletiraacute em um juiacutezo mais adequado da
teoria nietzscheana
Para um entendimento mais eficiente das teorias propostas nas obras do
jovem Nietzsche parece-nos essencial o conhecimento de uma de suas mais decisivas
influecircncias a filosofia de Schopenhauer A analogia almejada erige-se na verdade
como meacutetodo de anaacutelise ou seja o que pretendemos eacute alcanccedilar uma maior compreensatildeo
dos problemas com os quais Nietzsche se deparou quando da elaboraccedilatildeo de sua primeira
obra e procurar identificar a existecircncia de alguma apropriaccedilatildeo eou adaptaccedilatildeo de alguns
conceitos da filosofia de Schopenhauer na resoluccedilatildeo destes problemas A necessidade
deste estudo comparativo torna-se ainda mais evidente quando e este eacute o caso
2 SZONDI Peter Ensaio sobre o Traacutegico Traduccedilatildeo Pedro Suumlssekind Rio de Janeiro Jorge Zahar
2005
13
defrontamo-nos com uma influecircncia que se apresenta tatildeo clara e assumidamente
admitida pelo autor Todavia natildeo se pretende aqui apenas a justaposiccedilatildeo de um
pensamento ao outro Apesar de ser identificaacutevel em toda a obra posterior de Nietzsche
encontra-se nos seus primeiros escritos sobretudo na obra O nascimento da trageacutedia
aquele momento discursivo no qual podemos apontar uma influecircncia mais direta da
filosofia de Schopenhauer
Dos trabalhos que fazem um estudo comparativo entre estes filoacutesofos a
maioria se ateacutem em identificar as diferenccedilas conceituais entre eles mais
especificamente no campo eacutetico e metafiacutesico Grosso modo tratam principalmente dos
problemas relativos agrave diferenciaccedilatildeo entre os conceitos de vontade nestes autores
vontade de viver e vontade de poder Estes estudos tecircm como foco a filosofia tardia de
Nietzsche onde este apesar da assumida influecircncia torna-se um criacutetico de
Schopenhauer A real extensatildeo da influecircncia deste filoacutesofo na primeira obra de
Nietzsche bem como o relacionamento entre suas teorias da trageacutedia permanecem
assim como territoacuterios ainda pouco explorados Ao lanccedilarmos olhar sobre esse
afastamento que Nietzsche mais tarde realizaraacute em relaccedilatildeo agrave filosofia
Schopenhaueriana verificamos mais uma vez a importacircncia do estudo de sua primeira
fase na qual poderemos detectar o referido afastamento
Podemos observar entretanto o crescimento do interesse no estudo da
obra O nascimento da trageacutedia de Nietzsche Nos uacuteltimos anos assistimos tambeacutem no
Brasil agrave publicaccedilatildeo de vaacuterios trabalhos que tecircm sob perspectiva a complexidade desse
seu primeiro livro Na bibliografia sugerida neste projeto constam publicaccedilotildees dos
seguintes autores Roberto Machado (2006) Rosa Maria Dias (2005 e 2009) Iracema
Macedo (2006) Marcio Joseacute Silveira Lima (2006) Estas publicaccedilotildees tratam temas
diversos da esteacutetica nietzscheana tais como a muacutesica a trageacutedia o traacutegico ou a
14
repercussatildeo do livro de Nietzsche e sua influecircncia wagneriana Podemos ver entretanto
naqueles e em outros trabalhos a constante chave de leitura que atribui a Schopenhauer
a influecircncia decisiva natildeo apenas sobre o jovem Nietzsche como usualmente se aponta
mas tambeacutem sobre um peculiar imbricamento entre metafiacutesica e esteacutetica o qual se
sustentaria sobre os ldquoimpulsos artiacutesticos da naturezardquo o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco Nos
termos de Dias (2005 27)
A oposiccedilatildeo apoliacutenea e dionisiacuteaca considerada no plano
metafiacutesico se daacute a partir da noccedilatildeo de vontade ou querer
estendida (sic) no sentido que a ela deu Schopenhauer de
ldquocentro e nuacutecleo do mundordquo ou ldquoforccedila que eternamente quer
deseja e aspirardquo () O mundo fenomecircnico como resultado
desse movimento do querer () faz um segundo movimento
dessa vez esteacutetico reproduzindo o movimento inicial que a
vontade realizou em direccedilatildeo agrave aparecircncia
Tendo em vista o fato de que as teorias sobre o traacutegico dos dois filoacutesofos tecircm como
ponto de partida o sistema metafiacutesico schopenhaueriano fica clara a necessidade de
analisar em cotejo estas teorias tendo como fio condutor o meacutetodo de investigaccedilatildeo ora
proposto
Aleacutem de um aprofundamento no problema da influecircncia de
Schopenhauer na obra esteacutetica de Nietzsche o estudo de suas teorias sobre o traacutegico nos
daraacute a oportunidade de identificar as peculiaridades de cada uma destas teorias bem
como de estabelecer a sua importacircncia histoacuterica para uma filosofia do traacutegico
Em um primeiro momento traccedilaremos um panorama histoacuterico que
objetiva entender o status quo da filosofia do traacutegico no periacuteodo anterior ao
desenvolvimento da teoria schopenhaueriana da trageacutedia Esta investigaccedilatildeo seraacute
norteada pelas referecircncias constantes na proacutepria obra de Schopenhauer bem como por
um levantamento biograacutefico do filoacutesofo ou seja trabalharemos somente os momentos
que satildeo fundamentais para uma melhor compreensatildeo da obra schopenhaueriana Dentre
15
estes momentos daremos ecircnfase aos seguintes pontos o estudo sobre o helenismo de
Winckelmann e sua repercussatildeo a criacutetica teatral de Lessing Schiller e Goethe seu
projeto de criaccedilatildeo de um teatro alematildeo e suas produccedilotildees dramaacuteticas
Traccedilado o panorama histoacuterico no qual se insere a teoria da trageacutedia
schopenhaueriana passaremos para o toacutepico seguinte a apresentaccedilatildeo do sistema
metafiacutesico de Schopenhauer no qual estaacute embasada a sua teoria da trageacutedia bem como
a teoria nietzscheana A apresentaccedilatildeo seraacute feita de forma a expor os aspectos gerais da
filosofia da vontade atendo-se aos pontos deste sistema que estatildeo intrinsecamente
relacionados agraves teorias da trageacutedia dos nossos autores
Apoacutes os passos descritos reuniremos em um esboccedilo geral as
caracteriacutesticas do relacionamento existente entre o jovem Nietzsche e a filosofia de
Schopenhauer Para tanto utilizaremo-nos das referecircncias que Nietzsche faz a
Schopenhauer em suas cartas e escritos de juventude Com esta pesquisa pretendemos
identificar a opiniatildeo que o jovem Nietzsche tinha sobre a filosofia de Schopenhauer e a
profundidade da influecircncia desta em sua primeira obra Percorreremos ainda o ambiente
circundante agrave primeira obra de Nietzsche no intuito de realccedilar alguns dos conceitos
formativos de O nascimento da trageacutedia
Estabelecida a ligaccedilatildeo entre os autores passaremos ao estudo do apoliacuteneo
e do dionisiacuteaco par conceitual que nos forneceraacute a chave para se fazer um estudo
comparativo entre os filoacutesofos Para cumprir esta etapa analisaremos O nascimento da
trageacutedia bem como escritos contemporacircneos a este livro atraveacutes dos quais poderemos
delinear melhor a significaccedilatildeo desta duplicidade de impulsos e visotildees de mundo
Delinearemos assim os contornos das definiccedilotildees fundamentais da esteacutetica nietzscheana
e procuraremos construir um paralelo entre o mundo dionisiacuteaco e o mundo metafiacutesico
da vontade schopenhaueriano Temos a intenccedilatildeo de demonstrar a origem desta
16
metafiacutesica da vontade ou seja o criticismo kantiano e sua importacircncia para o conceito
de dionisiacuteaco Demonstraremos tambeacutem as caracteriacutesticas do mundo fenomecircnico
schopenhaueriano em sua identidade com o apoliacuteneo nietzscheano retomando a
epistemologia de Schopenhauer
Realizada a aproximaccedilatildeo e expostas tanto as semelhanccedilas como as
particularidades dos conceitos principais dos dois autores percorreremos sempre
focando um estudo paralelo entre os filoacutesofos outros conceitos que encontram
similaridade em suas esteacuteticas Com esse intuito procuraremos identificar nos dois
filoacutesofos o destaque dado agrave muacutesica dentro de suas teorias e o lugar dado agraves outras artes
em suas obras Discorreremos sobre a criacutetica que eles em uniacutessono fazem ao que
nomeiam racionalismo dogmatismo e o otimismo Finalizadas as aproximaccedilotildees
voltaremos nossa atenccedilatildeo ao aspecto de dissensatildeo que propicia o afastamento
fundamental entre as teorias dos dois filoacutesofos o efeito da trageacutedia Com isto
demonstraremos que a base metafiacutesica comum quando alinhada a pressupostos
esteacuteticos distintos geraraacute a referida dissensatildeo
17
1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES
NA FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA
Por que minha filosofia natildeo encontrou
simpatia e interesse Porque a verdade natildeo
estaacute de acordo com a tagarelice dos tempos
(Schopenhauer)
Neste primeiro capiacutetulo objetivamos apresentar as fontes filosoacuteficas
incutidas no sistema schopenhaueriano no intuito de situar historicamente o surgimento
da filosofia da vontade e trazer agrave baila o seu ambiente circundante bem como as teorias
filosoacuteficas com as quais Schopenhauer se propotildee a dialogar Apontaremos inicialmente
as influecircncias filosoacuteficas assumidamente presentes no sistema schopenhaueriano bem
como aquelas que fundamentam sua metafiacutesica e consequumlentemente sua teoria esteacutetica
Em um segundo momento procuraremos fazer um breve esboccedilo do ambiente artiacutestico-
cultural que dominava o pensamento alematildeo de entatildeo com o qual direta ou
indiretamente Schopenhauer e o jovem Nietzsche se depararam Com isto esperamos
posteriormente demarcar as singularidades que caracterizam as teorias destes filoacutesofos
Ressaltamos todavia que natildeo se trata de um mapeamento completo das fontes que
influenciaram esses autores ndash tarefa que exigiria um esforccedilo bem maior do que aquele
18
proposto por esta pesquisa ndash e sim de um breve panorama que se pautaraacute nas influecircncias
marcantemente presentes em suas obras
No contato com a obra de Schopenhauer a primeira impressatildeo que natildeo
passa despercebida aos seus leitores eacute a qualidade de sua prosa3 Tal qualidade
revelada na diversidade de recursos literaacuterios utilizados pelo autor eacute produto da visiacutevel
erudiccedilatildeo cultivada pelo filoacutesofo Conhecedor do grego do latim e suas respectivas
literaturas Schopenhauer transitava ainda pela obras literaacuterias cientiacuteficas e filosoacuteficas
contemporacircneas em suas liacutenguas originais conhecia o inglecircs o italiano o francecircs e o
espanhol Em sua juventude conviveu com vaacuterias personalidades do meio cultural
germacircnico que frequumlentavam o salatildeo de sua matildee em Weimar dentre eles Goethe a
maior figura das letras germacircnicas com quem teve um relacionamento mais proacuteximo
Sua obra eacute repleta de citaccedilotildees de poetas dramaturgos e seu conhecimento das artes
plaacutesticas e da muacutesica natildeo satildeo superficiais Em suas viagens pela Europa pocircde admirar
diversas esculturas e pinturas e como ele proacuteprio dizia pocircde ler diretamente no ldquolivro
do mundordquo Essa erudiccedilatildeo pode ser notada mesmo diante do desconhecimento de sua
biografia pela observaccedilatildeo da enorme quantidade de citaccedilotildees e menccedilotildees que estatildeo
espalhadas no interior de suas obras traduzidas ou como em sua maior parte citadas
em suas respectivas liacutenguas Frequumlentava as mais diversas aacutereas de conhecimento de sua
eacutepoca como sustenta Aramayo
3 O cuidado com a qualidade da produccedilatildeo literaacuteria tanto no que se refere agrave clareza quanto agrave riqueza de
recursos linguumliacutesticos eacute uma das caracteriacutesticas que Schopenhauer e Nietzsche tecircm em comum Esta
qualidade torna-se mais evidente ainda quando seus trabalhos satildeo natildeo raramente comparados com os
escritos filosoacuteficos alematildees daquele periacuteodo principalmente aos de Fichte Schelling e Hegel O elogio agrave
prosa schopenhaueriana feito por literatos e filoacutesofos contemporacircneos influenciados por sua obra pode
ser ilustrado agrave exaustatildeo entre eles encontram-se Thomas Mann Goethe Wittgenstein e o proacuteprio
Nietzsche ldquoMas a imensa forccedila de penetraccedilatildeo deste pensamento explica-se antes de tudo pelo fato de o
autor ser ao lado de Nietzsche o maior entre os escritores filosoacuteficos alematildeesrdquo (Rosenfeld 1996 177)
Jorge Luis Borges em uma entrevista publicada por Die Welt em 25 de marccedilo de 1975 realizava esta
confissatildeo ltPara mim existe um escritor alematildeo ao qual prefiro Schopenhauer Sei que deveria dizer
Goethe poreacutem Schopenhauer me interessa muitiacutessimo mais Tanto que estudei alematildeo ndash que aprendi
sobre os versos de Heine ndash fundamental e especificamente para poder ler a Schopenhauer em sua proacutepria
liacutenguagt (Aramayo 2001 18)
19
ldquoEm sua busca pela verdade Schopenhauer natildeo desdenha
nenhum aliado Os dramaturgos novelistas e poetas estatildeo quando
menos em peacute de igualdade com os mais egreacutegios filoacutesofos A perspicaacutecia
de Shakespeare ou a genialidade de Voltaire e a sutileza de Goethe nada
devem para a eloquumlecircncia Platocircnica a precisatildeo de um Spinoza e o rigor
conceitual do admirado Kant Sua curiosidade natildeo conhece limites nem
prejuiacutezo algum e por esta razatildeo tampouco menospreza quando o
considera oportuno prestar suficiente atenccedilatildeo aos fenocircmenos
paranormais agrave hipnose ou ao caacutelculo cabaliacutestico se entende que em
algo isto pode servir-lhe para demonstrar sua tese ou avaliar algumas de
suas intuiccedilotildees E na mesma direccedilatildeo aponta seu grande empenho por
incorporar o pensamento das religiotildees orientais a nosso acervo cultural
na possibilidade de um enriquecimento muacutetuordquo (Aramayo 2001 14-15)
A comparaccedilatildeo feita atraveacutes de metaacuteforas4 paraacutebolas ou alegorias em
sua maioria retiradas de obras literaacuterias ou cientiacuteficas torna-se recurso literaacuterio
constantemente presente na obra do filoacutesofo e ao mesmo tempo termocircmetro de suas
influecircncias e de seu relacionamento com o pensamento de seus contemporacircneos Tais
recursos satildeo utilizados contudo com o objetivo consciente de construir conhecimento
de ilustrar a mateacuteria do seu pensamento Nas palavras do filoacutesofo ldquoAs comparaccedilotildees satildeo
de grande valor na medida em que reduzem uma relaccedilatildeo desconhecida a uma
conhecida Inclusive as comparaccedilotildees mais detalhadas transformadas em paraacutebola ou
alegoria satildeo somente a reduccedilatildeo de uma relaccedilatildeo qualquer agrave sua exposiccedilatildeo mais
simples ilustrativa e palpaacutevelrdquo (Schopenhauer SOE 86) Se o nosso objetivo eacute mostrar
as raiacutezes da filosofia de Schopenhauer ou seja as influecircncias que formaram a mateacuteria
de seu pensamento eacute sobre esta mateacuteria que devemos nos debruccedilar Natildeo podemos
contudo nos furtar a apontar a riqueza das fontes formalmente presentes em seus
escritos5 A percepccedilatildeo da presenccedila desta numerosa miscelacircnea de referecircncias dentro da
4 ldquoSua profusa e brilhante utilizaccedilatildeo das metaacuteforas eacute o que o converte sem duacutevida alguma em um grande
escritor cujo estilo se nos afigura tatildeo ameno quanto sugestivordquo (Aramayo 2001 54) 5 Mateacuteria e forma satildeo na concepccedilatildeo do filoacutesofo planos ou instacircncias da produccedilatildeo escrita que servem
como referecircncia para o julgamento de valor do pensamento de um autor ldquo Um livro nunca pode ser mais
do que a impressatildeo dos pensamentos do autor O valor desses pensamentos reside na mateacuteria ou seja
naquilo sobre o que ele pensou ou na forma isto eacute na elaboraccedilatildeo da mateacuteria naquilo que pensou a
respeitordquo (Schopenhauer SOE 11) A importacircncia dada agrave forma por Schopenhauer seraacute melhor
esclarecida quando posteriormente apresentarmos a caracteriacutestica fundamentalmente epistemoloacutegica de
toda produccedilatildeo artiacutestica dentro de sua metafiacutesica do belo
20
obra schopenhaueriana diz-nos algo sobre seu estilo e seu arcabouccedilo cultural
entretanto quando voltamo-nos para a busca das influecircncias diretamente presentes em
seu sistema ie agraves raiacutezes da mateacuteria de seu pensamento percebemos que elas natildeo satildeo
tatildeo numerosas
Uma leitura das fontes filosoacuteficas do sistema schopenhaueriano torna-se
diferentemente do que ocorre em outros sistemas de seu tempo menos trabalhosa por
dois motivos Primeiramente o autor natildeo esconde suas influecircncias mas ao contraacuterio
faz questatildeo de apontaacute-las citaacute-las e quando lhe parece necessaacuterio as critica ou exalta
Em segundo lugar o que facilita o mapeamento destas fontes eacute a caracteriacutestica de
unidade do sistema schopenhaueriano como um todo Apesar da longevidade do
filoacutesofo e da distacircncia temporal entre suas obras suas intuiccedilotildees fundamentais
continuaram sendo as mesmas ao longo de sua vida Nas palavras de Rosset
ldquoSchopenhauer eacute homem de um soacute livro o MVR e de um soacute pensamento (qualificado
por ele mesmo de ltpensamento uacutenicogt nas primeiras linhas de sua obra)rdquo (2005 35)6
Natildeo satildeo poreacutem coetacircneas as influecircncias que marcaram a obra do filoacutesofo
como talvez a constante menccedilatildeo a seus contemporacircneos possa sugerir Nas palavras do
filoacutesofo como citado por Lefranc (2005 17) ldquoPude amar prosseguir aperfeiccediloar a
minha obra soacute por ela mesma em tranquumlilidade completa ao abrigo de toda influecircncia
externa e meus contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes
permaneci estranhosrdquo Conhecia a filosofia de seu tempo todavia natildeo a tinha como
interlocutora na verdade a desdenhava satildeo famosas as criacuteticas de Schopenhauer contra
as filosofias de seus contemporacircneos principalmente as de Fichte Schelling e Hegel
6 Sobre a unidade da produccedilatildeo schopenhaueriana destacamos aleacutem de Rosset os apontamentos de outros
dois de seus maiores comentadores Arthur Huumlbscher e Alexis Philonenko Na introduccedilatildeo aos manuscritos
schopenhauerianos Huumlbscher aponta a importacircncia dos manuscritos na percepccedilatildeo desta unidade uma vez
que podemos notar em diversas fases da vida do filoacutesofo o desenvolvimento dos temas pontuais que
marcaram sua obra principal Vide Hubscher Introduction Manuscript Remains 1985 Alexis
Philonenko trata desta unidade no proacutelogo de sua obra Schopenhauer uma filosofia da trageacutedia
(Philonenko 1989 41-45)
21
(chamados de ldquoos trecircs sofistasrdquo) Quando faz referecircncias a eles comumente estaacute
imbuiacutedo de trecircs propoacutesitos criticar a qualidade formal de suas produccedilotildees
principalmente no que tange ao uso da liacutengua germacircnica apontar uma motivaccedilatildeo
individualista (subsistecircncia pessoal e status social) que existiria por traacutes de suas
elucubraccedilotildees filosoacuteficas e ressaltar a falta de atenccedilatildeo por parte daqueles filoacutesofos no
que se refere ao conteuacutedo da primeira criacutetica kantiana
Schopenhauer diagnosticava em seu tempo um periacuteodo de
empobrecimento da expressatildeo literaacuteria e do uso da liacutengua germacircnica e apontava como
os principais responsaacuteveis por estes acontecimentos os ldquoprofessores de filosofiardquo e seus
disciacutepulos As investidas schopenhauerianas contra a filosofia de seus contemporacircneos
podem ser encontrada em praticamente todas as suas obras mas estatildeo concentradas de
forma mais persistente em sua produccedilatildeo mais tardia na segunda ediccedilatildeo da QRPRS de
MVR em seus ensaios sobre a liberdade e o fundamento da moral e nos PP 7
Nesta
uacuteltima obra temos dedicados a estas criacuteticas alguns textos que podemos destacar Sobre
o ofiacutecio de escritor Da leitura e dos livros Da liacutengua e das palavras e Sobre a filosofia
universitaacuteria A liacutengua alematilde no que se refere agrave sua capacidade expressiva era tida em
mais alta consideraccedilatildeo por nosso filoacutesofo Afirmava que dentre as liacutenguas modernas
era ldquoa uacutenica na qual se pode escrever quase tatildeo bem quanto em grego ou em latimrdquo
(Schopenhauer SOE 72) Esta capacidade de expressatildeo de uma liacutengua eacute segundo o
filoacutesofo resultado de sua aptidatildeo em representar conceitos Desta forma na medida em
que surgem novos conceitos a elaboraccedilatildeo de novas palavras que os representem eacute um
sinal de evoluccedilatildeo adequaccedilatildeo e riqueza da liacutengua Entretanto para o filoacutesofo os
neologismos e adaptaccedilotildees criados por seus contemporacircneos natildeo eram resultados da
7 Muitos historiadores da filosofia bioacutegrafos e comentadores apontam que esta criacutetica adveacutem do
ressentimento pelo fracasso de Schopenhauer como docente na universidade de Berlim onde Hegel
reinava absoluto bem como da falta de reconhecimento de sua filosofia diante do sucesso dos professores
da mesma universidade
22
tentativa de representaccedilatildeo de novos conceitos mas ao contraacuterio eram comprovaccedilatildeo de
sua ldquopobreza de espiacuterito que a todo custo quer colocar algo no mercado e por natildeo ter
novos pensamentos chega com palavras novasrdquo (Schopenhauer SOE 129)
Schopenhauer condenava a atitude de seus contemporacircneos de utilizarem-se de
artifiacutecios como a natildeo designaccedilatildeo do caso a expressatildeo dos preteacuteritos por meio do
imperfeito a supressatildeo dos prefixos e outros subterfuacutegios para com isso disfarccedilar a sua
imprecisatildeo conceitual De acordo com Schopenhauer tratavam displicentemente a
liacutengua alematilde por dois motivos por natildeo possuiacuterem uma mateacuteria conceitualmente
relevante a ser expressa ou entatildeo para conscientemente causar a impressatildeo de que a
possuem e neste caso a responsabilidade pela natildeo compreensatildeo do texto seria atribuiacuteda
agrave incompetecircncia intelectual do leitor
Os que compotildeem discursos difiacuteceis obscuros enleados e
ambiacuteguos natildeo sabem ao certo o que querem dizer tecircm somente uma
consciecircncia vaga a esse respeito que luta primeiro por uma ideacuteia poreacutem
amiuacutede querem tambeacutem ocultar de si mesmos e dos outros que na
realidade eles natildeo tecircm nada a dizer Como Fichte Schelling e Hegel
querem parecer saber o que natildeo sabem pensar o que natildeo pensam e dizer
o que natildeo dizem Algueacutem que tenha algo correto a dizer se esforccedilaraacute por
exprimi-lo de maneira indistinta ou distinta (Schopenhauer SOE 39)
Podemos perceber entatildeo que ao criticar o estilo ldquoobscurordquo e ldquopomposordquo de seus
contemporacircneos Schopenhauer aponta como causa deste estilo natildeo somente a sua falta
de mateacuteria mas tambeacutem uma atitude consciente e arquitetadamente maldosa e com
toda a sua forccedila retoacuterica condena esta atitude
Nobre bdquoatualidade‟ magniacuteficos epiacutegonos geraccedilatildeo crescida no
leite materno da filosofia hegeliana Pela gloacuteria eterna quereis apertar
vossas garras em nossa antiga liacutengua para que a marca com um icnoacutelito
conserve para sempre o vestiacutegio de vossa existecircncia insiacutepida e sombria
Mas Dicirc Meliora Fora paquidermes fora Esta eacute a liacutengua alematilde Nela se
expressaram homens ou melhor nela cantaram grandes poetas e grandes
pensadores escreveram Arredai as patas Ou natildeo tereis o que comer (Soacute
isso os assusta) (Schopenhauer SOE 72-73)
23
A uacuteltima frase desta citaccedilatildeo nos eacute aclarada pelo texto Sobre a filosofia universitaacuteria
onde o filoacutesofo expotildee os argumentos de sua criacutetica agrave filosofia produzida em seu tempo
Para Schopenhauer os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo podem devido agrave sua funccedilatildeo
estatal se imiscuir do compromisso poliacutetico-religioso que seu cargo exige e
conseguintemente sustentados pelo Estado tratam de fazer sua apoteose Nas palavras
de Cacciola constantes na introduccedilatildeo agrave traduccedilatildeo brasileira do referido texto
ldquoSchopenhauer eacute um continuador da criacutetica romacircntica ao filisteiacutesmo que se origina em
Tieck A ironia que visa os homens de vida tatildeo regular como o reloacutegio lhe eacute bem
familiar O filisteu eacute o erudito pedante que soacute pensa na proacutepria vantagem O professor
de filosofia que pauta seus ensinamentos de acordo com os ditames do Estado e da
religiatildeo eacute o tipo acabado do filisteu A idolatria do Estado eacute a apoteose do filisteiacutesmo
(Schopenhauer SFU XXX) Por traacutes das ideacuteias dos ldquofiloacutesofos de profissatildeordquo estaria
incutido o retorno disfarccedilado da ldquoteologia judaicardquo de uma ldquopsicologia racionalrdquo da
ldquoliberdade da vontaderdquo e outros dogmas que de acordo com Schopenhauer refletem a
sua vocaccedilatildeo de trabalharem ldquoin maiorem Dei gloriamrdquo como exigido pela ideologia
estatal daquele periacuteodo Natildeo podem sob a pena de perderem o sustento financeiro
pessoal e familiar bem como sob o custo de perderem o status que o cargo lhes confere
contrariar os dogmas patronais
ldquo[] o intelecto dessa gente permanece fiel agrave sua destinaccedilatildeo
natural de trabalhar a serviccedilo da vontade como normalmente acontece
Mas por isso mesmo existe sempre uma intenccedilatildeo como fundamento do
seu agir e pensar eles tecircm fins o tempo todo e soacute tomam conhecimento
do que diz respeito a esses fins e portanto soacute do que corresponde a
esses fins A atividade do intelecto liberto da vontade condiccedilatildeo da pura
objetividade e por isso de todas as grandes realizaccedilotildees permanece-lhes
eternamente estranha ndash eacute uma faacutebula para seu coraccedilatildeordquo (Schopenhauer
SFU 63)
Desta forma os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo estariam voltados para a investigaccedilatildeo
objetiva da ldquoverdaderdquo a qual exigiria o distanciamento de todo e qualquer interesse
24
pessoal De acordo com o sistema schopenhaueriano tal distanciamento eacute um dom raro
com o qual a natureza a poucos contempla Na metafiacutesica schopenhaueriana a natureza
eacute aristocraacutetica O gecircnio eacute fenocircmeno raro seja ele filoacutesofo ou artista A percepccedilatildeo
objetiva do mundo alheia aos interesses pessoais da vontade individual eacute uma exceccedilatildeo
que soacute se manifesta raramente e as pessoas atadas aos interesses pessoais de sua
vontade natildeo podem reconhececirc-lo imediatamente Estes gecircnios produzidos pela natureza
seriam os verdadeiros educadores do mundo e os ldquoprofessores de filosofiardquo ao tentar
representar este papel que soacute agrave natureza cabe eleger causam-lhe repulsa
Tantas mentes comuns que se acham por cargo e profissatildeo no
dever de representar papeacuteis que a natureza nem ao menos lhes atribuiacutera e
de transportar cargas que exigem ombros de gigantes espirituais
oferecem na realidade um espetaacuteculo deveras lamentaacutevel Pois escutar
cantar os roucos e ver danccedilar os coxos eacute penoso mas ouvir filosofar a
mente limitada eacute insuportaacutevel (Schopenhauer SFU 34)
Prova do embotamento da capacidade de reconhecimento de uma produccedilatildeo genial era
para o filoacutesofo o fato de seus contemporacircneos ignorarem ou mesmo passarem agrave
margem do que seria a mais importante produccedilatildeo filosoacutefica do periacuteodo a cisatildeo entre o
real e o ideal perpetrada pela primeira criacutetica kantiana Esta era para o filoacutesofo a maior
prova do demeacuterito filosoacutefico de seus contemporacircneos preocupados com seus interesse
pessoais alheios a uma observaccedilatildeo objetiva do mundo natildeo levaram em consideraccedilatildeo os
limites impostos pela primeira criacutetica kantiana a toda investigaccedilatildeo racional
Depois de Kant ter cortado o nervo de todas as provas possiacuteveis
da teologia ndash tatildeo incisivamente que desde entatildeo ningueacutem mais pocircde
meter-se com elas ndash o esforccedilo filosoacutefico em quase cinquumlenta anos tem
consistido nas diversas tentativas de insinuar sutil e astuciosamente a
teologia e os escritos filosoacuteficos nada mais satildeo na sua maioria do que
tentativas infrutiacuteferas de reanimar um cadaacutever sem vida (Schopenhauer
SFU 81)
Natildeo nos interessa aqui adentrarmo-nos aos reais motivos existentes por
traacutes dos vitupeacuterios schopenhauerianos contra os pensadores de seu tempo nem
25
tampouco fazer juiacutezo valorativo sobre a importacircncia da filosofia da vontade em
comparaccedilatildeo ao idealismo absoluto Dentro do objetivo proposto qual seja situar
historicamente a filosofia da vontade e apontar suas influecircncias o importante eacute ressaltar
que a filosofia contemporacircnea a Schopenhauer natildeo fez efeito sobre a sua proacutepria a ponto
de modificaacute-la em seu conteuacutedo conforme esclarece o proacuteprio filoacutesofo ldquo [] meus
contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes permaneci
estranhosrdquo (apud Lefranc 2005 17) Eacute fundamental verificarmos que apesar do
sistema schopenhaueriano ter se desenvolvido agrave margem do idealismo de entatildeo seu
autor natildeo o desconhecia e muitas das ilustraccedilotildees e argumentaccedilotildees utilizadas por ele na
explicaccedilatildeo de suas teorias apoiavam-se nesta sua contenda com o seu tempo
Entretanto como a filosofia de seu tempo pretende-se herdeira do kantismo assim
tambeacutem procede Schopenhauer e a suas criacuteticas ao idealismo absoluto estatildeo
fundamentadas em sua pretensatildeo a uma heranccedila direta da filosofia kantiana Sobre a
heranccedila de Kant Schopenhauer esclarece ldquoEm todo caso natildeo reconheccedilo que tenha
acontecido algo na filosofia entre ele e mim por conseguinte ligo-me imediatamente a
elerdquo (Schopenhauer MVR 525)
Natildeo obstante as diversas criacuteticas ao retorno kantiano ao dogmatismo8
das quais a obra de Schopenhauer estaacute recheada sua admiraccedilatildeo por ele foi tambeacutem
abundantemente expressa Considerava-o ldquoa inteligecircncia mais original jaacute criada pela
naturezardquo (Schopenhauer SFU52) e afirmava que seus escritos capitais eram o ldquo[]
fenocircmeno mais importante que ocorreu ao longo dos uacuteltimos dois mil anos na filosofia
[]rdquo (Schopenhauer MVR 22) O maior reflexo desta admiraccedilatildeo pode ser observada
8 Nas palavras de Cacciola ldquoO criticismo de Kant teria segundo Schopenhauer perdido sua forccedila inicial
na segunda ediccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura Ou seja Schopenhauer acusa Kant de uma ldquorecaiacuteda no
dogmatismordquo por ter amenizado seu confronto com a teologia A ameaccedila dogmaacutetica jaacute configurada na
filosofia teoacuterica concretiza-se na Eacutetica de Kant quando esta acolhe como postulados Deus
imortalidade da alma e liberdade No poacutes-kantismo a importacircncia crescente atribuiacuteda agrave filosofia praacutetica
de Kant a expensas de sua criacutetica do conhecimento teria levado a uma espeacutecie de contaminaccedilatildeo da
razatildeo teoacuterica pela razatildeo praacutetica fazendo com que a primeira se transformasse num oacutergatildeo apto para
captar o Absolutordquo (Cacciola 1994 20)
26
no fato de que eacute da filosofia kantiana que Schopenhauer retira o leitmotiv para o
desenvolvimento da ideacuteia central9 de sua filosofia Esta ideacuteia central eacute aquela contida
concisamente no tiacutetulo de sua obra principal O mundo como vontade e como
representaccedilatildeo10
A dualidade formada entre representaccedilatildeo e vontade atraveacutes da qual
Schopenhauer acredita ter desvendado o ldquomisteacuteriordquo cosmoloacutegico eacute uma apropriaccedilatildeo
assumida dos conceitos kantianos de fenocircmeno e coisa-em-si respectivamente
Dizemos apropriaccedilatildeo pois aqueles conceitos satildeo acrescidos na filosofia
schopenhaueriana de caracteriacutesticas singulares Eacute com base nesta dualidade de
perspectivas de conhecimento do mundo inspirada na primeira criacutetica kantiana que o
filoacutesofo desenvolve as demais teorias que compotildeem seu sistema sejam elas a esteacutetica a
eacutetica a poliacutetica etc
Para Schopenhauer ldquoo maior meacuterito de Kant eacute a distinccedilatildeo entre
fenocircmeno e coisa-em-sirdquo (Schopenhauer MVR 526) Esta distinccedilatildeo foi o que
possibilitou a ldquorevoluccedilatildeo copernicanardquo realizada sobre o dogmatismo anterior A partir
daquele momento ldquoo mundo objetivo como o conhecemos natildeo pertence agrave essecircncia das
coisas em si mesmas mas eacute seu mero FENOcircMENO condicionado exatamente por
aquelas mesmas formas que se encontram a priori no intelecto
humanordquo(Schopenhauer MVR 530) Na teoria kantiana temos o espaccedilo e o tempo
como formas da sensibilidade que na filosofia de Schopenhauer satildeo associadas agrave
faculdade do entendimento juntamente com a causalidade uacutenica das doze categorias
kantianas do entendimento mantidas por Schopenhauer em seu sistema Desta forma o
mundo enquanto representaccedilatildeo eacute aquele que se apresenta para o sujeito enquanto objeto
9 Quando dizemos ideacuteia central havemos de lembrar que no sistema schopenhaueriano esta categorizaccedilatildeo
eacute singular (o tema seraacute tratado no iniacutecio do proacuteximo capiacutetulo) 10
A importacircncia que o filoacutesofo daacute ao tiacutetulo de uma obra eacute esclarecedora para a compreensatildeo da
importacircncia de sua ideacuteia central ldquoo que o sobrescrito deve ser para uma carta eacute o que um tiacutetulo deve ser
para um livro ou seja antes de tudo deve ter o objetivo de destinaacute-lo agrave parte do puacuteblico que pode se
interessar por seu conteuacutedo Sendo assim o tiacutetulo precisa ser caracteriacutestico e por ser naturalmente
breve deve ser conciso lacocircnico pregnante e se possiacutevel um monograma do conteuacutedordquo
(Schopenhauer SOE 09-10)
27
condicionado por estas trecircs formas presentes a priori no intelecto humano tempo
espaccedilo e causalidade Quanto ao mundo noumecircnico que dentro da teoria kantiana eacute um
ldquox desconhecidordquo Schopenhauer o explica atraveacutes da Vontade sua traduccedilatildeo da coisa-
em-si Essa dualidade que traz agrave tona a ldquocompleta diversidade entre o ideal e o realrdquo
(Schopenhauer MVR 527) doutrina que de acordo com Schopenhauer (MVR 528) foi
expressa por Kant de forma soacutebria calma demonstrada e incontestaacutevel jaacute havia sido
expressa tambeacutem em linguagem mais miacutetica e poeacutetica por outras duas doutrinas que
tambeacutem estatildeo profundamente presentes na obra Schopenhaueriana Platatildeo e os escritos
indianos dos Vedas e Puranas
Os estudos das obras de Platatildeo e Kant foram recomendaccedilatildeo de Schultze
um dos professores de Schopenhauer em Gottingen (Weissmann 1980 54) e formam os
pilares filosoacuteficos do sistema schopenhaueriano A separaccedilatildeo entre o real e o ideal
executada por Kant eacute vista tambeacutem na obra platocircnica Sua teoria das ideacuteias bem como
sua alegoria da caverna satildeo expressotildees de uma intuiccedilatildeo da existecircncia daquela separaccedilatildeo
O que Kant teria sistematizado a seu modo eacute a mesma verdade que ldquojaacute Platatildeo
incansavelmente repete e na maioria das vezes exprime em sua linguagem do seguinte
modo este mundo que aparece aos sentidos natildeo possui nenhum verdadeiro ser mas
apenas um incessante devir ele eacute e tambeacutem natildeo eacute sua apreensatildeo natildeo eacute tanto um
conhecimento mas uma ilusatildeordquo (Schopenhauer MVR 528)
Aleacutem de Platatildeo os livros sagrados dos indianos afirmavam esta ldquoilusatildeordquo
ldquofantasmagoriardquo do mundo e constituem tambeacutem uma fonte frequumlentemente utilizada
por Schopenhauer O contato do nosso filoacutesofo com o pensamento oriental se deu
quando do seu encontro com o orientalista Friedrich Majer no salatildeo de sua matildee em
28
Weimar A partir de entatildeo o interesse do filoacutesofo pelo pensamento oriental foi se
intensificando ao longo de sua vida 11
A mesma verdade representada de modo completamente outro eacute
tambeacutem uma doutrina capital dos vedas e puranas a saber a doutrina de
Maia pela qual natildeo se entende outra coisa senatildeo aquilo que Kant nomeia
o fenocircmeno em oposiccedilatildeo agrave coisa-em-si pois a obra de maia eacute
apresentada justamente como este mundo visiacutevel no qual estamos um
efeito maacutegico que aparece na existecircncia uma aparecircncia inconstante e
inessencial em si destituiacuteda de ser comparaacutevel agrave ilusatildeo de oacutetica e ao
sonho um veacuteu que envolve a consciecircncia humana um algo do qual eacute
igualmente falso e igualmente verdadeiro dizer que eacute ou natildeo eacute
(Schopenhauer MVR 528)
Estas trecircs doutrinas estavam admitidamente presentes quando da
elaboraccedilatildeo do nuacutecleo conceitual fundamental da posteriormente nominada Filosofia da
Vontade Entretanto aleacutem de formarem seu nuacutecleo conceitual podemos encontraacute-las
ainda posteriormente em outros instantes desta filosofia O pensamento oriental seraacute
figura fortemente presente na eacutetica schopenhaueriana desenvolvida no quarto livro do
Mundo onde o filoacutesofo adotaraacute como fundamento de sua eacutetica o sentimento da
compaixatildeo jaacute presente na doutrina budista Platatildeo e Kant satildeo ainda influecircncias
fundamentais como veremos no proacuteximo capiacutetulo da esteacutetica schopenhaueriana O
primeiro novamente atraveacutes de sua teoria das ideacuteias seraacute utilizado por Schopenhauer na
definiccedilatildeo do objeto artiacutestico Do segundo poderemos notar sua influecircncia nas teorias
schopenhauerianas do sublime da imaginaccedilatildeo e da contemplaccedilatildeo desinteressada todas
elas fundamentais agrave compreensatildeo da teoria da arte poeacutetica
- - - - - - - - - -
11
Suas fontes principais eram o Oupnekacutehat uma traduccedilatildeo latina dos vedas e o Asiatic Journals jornal
publicado pela sociedade asiaacutetica fundada em 1784 Para uma referecircncia completa das citaccedilotildees orientais
na obra de Schopenhauer veja o apecircndice do artigo de Moira Nicholls The influences of Eastern Thought
on Schopenhaueracutes Doctrine of the Thing-in-itself (in Janaway 1999 197-204)
29
Apresentadas as principais influecircncias teoacutericas do sistema
schopenhaueriano passemos a uma breve descriccedilatildeo do ambiente cultural que naquele
momento tinha como foco um projeto de fundaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para o teatro e a
literatura germacircnicas Tal projeto envolveu os mais importantes dramaturgos criacuteticos
escritores e pensadores do periacuteodo imediatamente anterior a Schopenhauer12
e eacute
tambeacutem posteriormente retomado por Nietzsche em seu Nascimento da Trageacutedia Sua
importacircncia para a filosofia da vontade pode ser medida pela recorrente referecircncia feita
a estes pensadores nas obras dos filoacutesofos Seu iniacutecio em meados do seacuteculo XVIII deu-
se pela influecircncia exercida pelo historiador da arte Johann J Winckelmann junto aos
escritores poetas e dramaturgos posteriores dentre eles Lessing Goethe e Schiller
A influecircncia winckelmanniana que de acordo com Butler (1958 11)
criou ondas cujo violento distuacuterbio ldquoainda varrem as praias do seacuteculo XXrdquo se pautou
em duas noccedilotildees fundamentais13
a imitaccedilatildeo dos antigos e o belo ideal Winckelmann
propunha um novo modelo no qual a arte germacircnica deveria se basear para atingir uma
grandiosidade rara e ldquoinimitaacutevelrdquo a imitaccedilatildeo dos gregos Por esta imitaccedilatildeo o
historiador natildeo propunha uma mera coacutepia das obras de arte gregas poreacutem uma imitaccedilatildeo
do modo de produccedilatildeo artiacutestica dos gregos qual seja sintetizar a beleza ideal descoberta
na observaccedilatildeo da diversidade objetiva da natureza Esta proposta de um retorno ao
modelo antigo coloca Winckelmann na esteira da conhecida querela entre antigos e
modernos e eacute a igniccedilatildeo para o periacuteodo literaacuterio conhecido como classicismo germacircnico
Esta disputa quanto agrave valorizaccedilatildeo das obras poeacuteticas antigas ou modernas estaraacute de um
modo ou de outro presente nas teorias schopenhaueriana e nietzscheana da trageacutedia
12
De acordo com Schopenhauer as obras de tais poetas e escritores assim como a filosofia de Kant satildeo
exemplos para os quais a literatura e a filosofia pobres de seu tempo deveriam se voltar No que se refere
ao uso da liacutengua ele aconselha ldquoLede vede qual liacutengua Winckelmann Lessing Klopstock Wieland
Goethe Buumlrger Schiller falaram e emulai-a mas natildeo fazei o mesmo com o jargatildeo estupidamente
excogitado pelos miseraacuteveis literatos atuais e entre eles pelos professores que vatildeo agrave escola de liacutenguardquo
(Schopenhauer SOE 57-58) 13
Esta duas noccedilotildees fundamentais satildeo ressaltadas por Suumlssekind e Machado em seus trabalhos sobre o
tema Veja Suumlssekind 2008 67-77 e Machado 2006 9-14
30
Como veremos posteriormente Schopenhauer privilegiaraacute a trageacutedia moderna em
detrimento da antiga argumentando que aquela cumpre com maior competecircncia o seu
objetivo enquanto forma de arte qual seja provocar repulsa agrave vontade de viver e
estimular sua negaccedilatildeo Apesar deste privileacutegio pelas obras traacutegicas modernas o filoacutesofo
natildeo deixa como seus contemporacircneos de ter os gregos como modelo e natildeo satildeo raros
seus elogios agraves produccedilotildees helecircnicas Para Schopenhauer Winckelmann foi para a
histoacuteria da arte assim como ele o eacute para a da filosofia um exemplo do modo epiciacuteclico
atraveacutes do qual a natureza de tempo em tempo faz avanccedilar o conhecimento do gecircnero
humano Para o filoacutesofo a retomada do projeto kantiano realizada pelo seu sistema eacute a
demonstraccedilatildeo de que entre ele e Kant nenhum conhecimento foi produzido Como
exemplo deste esquema epiciacuteclico na histoacuteria da arte Schopenhauer utiliza-se do
retorno de Winckelmann agrave beleza claacutessica o que nos mostra a importacircncia dada pelo
filoacutesofo agrave forma de arte grega bem como ao projeto inaugurado pelo historiador da arte
Apoacutes explicar o esquema epiciacuteclico da evoluccedilatildeo dos progressos humanos
Schopenhauer diz
Para quem deseja poreacutem ter uma prova do esquema geral dos
epiciclos aqui exposto com base na histoacuteria da arte basta observar a
escola de escultura de Bernini que florescia ainda no seacuteculo passado
particularmente em seu desenvolvimento francecircs sucessivo e que
representava a natureza comum em vez da beleza claacutessica e o decoro do
minueto francecircs em vez da simplicidade e da graccedila antigas Tal escola
faliu quando apoacutes a repreensatildeo de Winckelmann voltou-se agrave escola dos
antigos (Schopenhauer SOE 110)
Nietzsche por sua vez seguiraacute o caminho winckelmanniano de exaltaccedilatildeo da forma de
arte antiga apresentando a trageacutedia grega como modelo para a arte moderna e elogiando
a iniciativa de seus predecessores em valorizar e recuperar a arte helecircnica
31
Conviria que alguma vez se pesasse diante dos olhos de um juiz
insubornaacutevel em que tempo e em que homens o espiacuterito alematildeo se
esforccedilou mais vigorosamente por aprender dos gregos e se admitirmos
com confianccedila que esse louvor uacutenico deveria ser atribuiacutedo agrave nobiliacutessima
luta de Goethe Schiller e Winckelmann pela cultura haveria em todo
caso que acrescentar que desde aquele tempo e depois das influecircncias
imediatas daquela luta tornou-se cada vez mais fraca de maneira
incompreensiacutevel a aspiraccedilatildeo de se chegar por uma mesma via agrave cultura e
aos gregos (Nietzsche NT 120)
Podemos perceber entatildeo a importacircncia do helenismo proposto por Winckelmann no
pensamento germacircnico ao observarmos a sua duraccedilatildeo tendo em vista que mais de um
seacuteculo separa o historiador da arte e o filoacutesofo da vontade de poder o que confirma a
forccedila de suas propostas para uma cultura em formaccedilatildeo e justifica o epiacuteteto com o qual
Butler caracterizou este periacuteodo dizendo que nele vemos ldquoa tirania da Greacutecia sobre a
Alemanhardquo14
O segundo ponto fundamental da teoria da arte winckelmanniana o belo
ideal natildeo provocou menor interesse em seu tempo Este belo ideal era alcanccedilado a
partir da reuniatildeo em uma uacutenica obra harmocircnica daquilo que o artista observa de mais
belo na natureza
A natureza tem seus defeitos o corpo mais belo natildeo deixa de tecirc-los e
nele encontramos frequumlentemente partes que em outros satildeo mais belas ou
podem supor-se mais perfeitas [] Os gregos trataram de reunir as formas
elegantes de vaacuterios corpos belos como sabemos pelo diaacutelogo de Soacutecrates com o
ceacutelebre pintor Parrasio [] Esta seleccedilatildeo das partes belas e sua harmocircnica
associaccedilatildeo em uma soacute figura produziu a beleza ideal (Winckelmann 2002
130)
Tal beleza encontrou sua manifestaccedilatildeo primeira na Greacutecia do periacuteodo helecircnico devido
ao favorecimento das condiccedilotildees geograacutefico-climaacuteticas15
e poliacuteticas16
Aleacutem da beleza
14
Tiacutetulo de sua obra Butler 1958 15
Sobre a influecircncia climaacutetica Winckelmann deduz ldquoA natureza depois de haver se manifestado em
gradaccedilotildees extremas de frio e de calor se estabeleceu na Greacutecia como em seu centro e por isso reina
naquele paiacutes uma temperatura intermediaacuteria entre o inverno e o veratildeo E quanto mais se aproxima deste
centro mais claridade e serenidade oferece e suas obras se manifestam em formas mais graciosas e
amaacuteveis e com detalhes mais caracteriacutesticos e decididosrdquo (Winckelmann 2002106) 16
Sobre as condiccedilotildees poliacuteticas sejam elas patriarcais democraacuteticas ou tiracircnicas Winckelmann conclui o
seguinte ldquoCom relaccedilatildeo ao regime poliacutetico e o governo da Greacutecia a liberdade eacute uma das causas da
preeminecircncia dos gregos na arte Tambeacutem a liberdade parece ter estabelecido na Greacutecia a sua sede existia
32
formal retirada da diversidade das formas naturais eleitas as mais belas as obras gregas
eram exemplares devido agrave importacircncia dada pelos artistas agrave sua expressatildeo A obra de
arte deve sua forccedila tanto agrave beleza das formas quanto agrave expressatildeo da alma nela contida
De acordo com Winckelmann ldquoa expressatildeo de uma alma grande vai muito aleacutem da
plasmaccedilatildeo de uma bela naturezardquo isto ocorre devido ao fato de que para o historiador
da arte ldquona Greacutecia a sabedoria estendia a matildeo agrave arte e insuflava nas figuras almas
mais que comunsrdquo (Winckelmann 1958 19) As caracteriacutesticas que esta expressatildeo deve
possuir satildeo aquelas contidas na passagem mais famosa da obra de Winckelmann na
qual ele descreve ainda como exemplo daquela expressatildeo artiacutestica o grupo estatuaacuterio
do Laocoonte que por sua vez seraacute alvo de uma grande controveacutersia posterior da qual
participaratildeo dentre outros Lessing Herder Goethe Schelling e Schopenhauer
Reproduzimos a passagem de Winckelmann em sua integridade
A caracteriacutestica geral e principal das obras mestras gregas eacute uma
nobre simplicidade e uma serena grandeza tanto na atitude como na
expressatildeo Assim como nas profundidades o mar estaacute sempre calmo por
muito que se agite a superfiacutecie do mesmo modo a expressatildeo nas figuras
dos gregos mostra em meio a todas as paixotildees uma alma grande e
comedida Isso transmite o rosto do Laocoonte ndash e natildeo soacute o dele ndash em
meio agrave mais violenta dor O sofrimento que aparece em todos os
muacutesculos e fibras do corpo e que no baixo ventre contraiacutedo se
experimenta tatildeo intensamente que parecemos senti-lo natildeo se exterioriza
contudo mediante qualquer ira no rosto e em toda a atitude Natildeo lanccedila
um grito terriacutevel tal como Virgiacutelio cantou em seu Laocoonte A abertura
da boca natildeo o permitiria Mais parece um suspiro angustiado como o
descreve Sadolet A dor do corpo e a grandeza da alma estatildeo distribuiacutedos
com igual forccedila atraveacutes de toda a composiccedilatildeo da figura e em certa
medida estatildeo equilibrados Laocoonte sofre mas sofre como o
Filoctetes de Soacutefocles sua dor nos toca a alma mas desejariacuteamos poder
suportar essa dor com a grandeza desse homem (Winckelmann 1958
18-19 grifo nosso)
inclusive junto ao tronos de seus reis que governavam paternalmente a seus suacuteditos antes que mais
ilustrados gozassem do destino de uma completa liberdade Homero chama a Agamemnoacuten de pastor de
seus povos com o que queria designar sua ternura com seus subordinados e sua preocupaccedilatildeo constante
pela felicidade dos mesmos Eacute bem verdade que depois surgiram tiranos mas natildeo o foram mais para uma
determinada cidade e a naccedilatildeo inteira jamais reconheceu um soberano uacutenicordquo (Winckelmann 2002 109)
33
Desta famosa passagem retiramos dois momentos que especialmente nos interessam O
primeiro dele eacute a enunciaccedilatildeo que caracterizaraacute o ideal de beleza das obras gregas nobre
simplicidade e uma serena grandeza Este ideal winckelmanniano de beleza eacute o que
torna a arte grega nas palavras de Suumlssekind ldquoinimitaacutevel e ao mesmo tempo faz dela o
modelo a ser imitadordquo (Suumlssekind 2008 69) Interessa-nos especialmente devido agrave
influecircncia desta definiccedilatildeo para a teoria do jovem professor de filologia da Basileacuteia
Podemos ver ateacute mesmo pelo vocabulaacuterio utilizado para descrever a arte grega a
proximidade e a influecircncia exercida por estes conceitos nas teorias esteacuteticas do primeiro
Nietzsche Luminosidade serenidade harmonia satildeo alguns dos conceitos que
posteriormente seratildeo utilizados por Nietzsche ao definir o seu impulso artiacutestico
apoliacuteneo17
O segundo momento - quando Winckelmann defende o espiacuterito grego na
escultura do Laocoonte em contraposiccedilatildeo ao personagem de Virgiacutelio comparando esta
representaccedilatildeo escultural com o Filoctetes de Soacutefocles - seraacute o precursor do posterior
debate sobre as fronteiras que separam as formas de arte Para Winckelmann ldquoa nobre
simplicidade e a serena grandeza das estatuas gregas eacute tambeacutem a verdadeira
caracteriacutestica dos escritos gregos da melhor eacutepoca dos escritos da escola
socraacuteticardquo(Winckelmann 1958 31) O debate sugerido pela passagem do qual
participaraacute posteriormente o proacuteprio Schopenhauer seraacute iniciado por outro pensador
de grande importacircncia para o projeto cultural alematildeo Gotthold Ephraim Lessing
Lessing em sua obra Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da
poesia apresentaraacute a contenda que chegaraacute ateacute Schopenhauer Para Lessing o ponto de
discordacircncia com Winckelmann estaacute no motivo pelo qual na escultura o Laocoonte natildeo
17
Segundo Rodriges (2007 93-126) tambeacutem o conceito do impulso dionisiacuteaco estaria mesmo que em
germe presente nos estudos de Winckelmann Segundo seu artigo o mapeamento da origem e
desenvolvimento da discussatildeo sobre os citados impulsos artiacutesticos da natureza ou seja sobre a
importacircncia dos deuses Apolo e Dioniacutesio na cultura grega abrangeria necessariamente diversas aacutereas do
pensamento alematildeo desde Winckelmann dentre elas os estudos filoloacutegicos o movimento romacircntico e as
filosofias idealistas
34
apresenta as caracteriacutesticas de quem grita e lamenta Como vimos para Winckelmann o
conjunto estatuaacuterio em questatildeo eacute exemplar pelo fato de transmitir atraveacutes da atitude
estoacuteica diante da dor a grandeza de alma que seria a regra universal da verdadeira arte
grega Esta grandeza enquanto regra universal estaria ainda de acordo com o
historiador da arte presente tanto nas formas pictoacutericas como nas obras poeacuteticas
Contrapondo-se a Winckelman Lessing afirma - exemplificando atraveacutes de passagens
de poetas queridos ao proacuteprio Winckelmann como Homero e Soacutefocles - que em vaacuterios
momentos da poesia antiga diversos personagens dentre eles deuses e heroacuteis proferem
exaltados lamentos e gritos e isto natildeo lhes subtrai a grandeza da alma Sendo assim se
na poesialdquoo gritar na sensaccedilatildeo de dor corporal pode coexistir muito bem com uma
grande alma portanto a expressatildeo de uma tal alma natildeo pode ser a causa pela qual
apesar disso o artista natildeo quer imitar esse grito no seu maacutermore antes deve haver um
outro motivo por que aqui ele separa-se do seu rival o poeta que expressa esse grito
com o melhor propoacutesitordquo(Lessing 1998 86) O motivo pelo qual em sua representaccedilatildeo
estatuaacuteria o Laocoonte natildeo grita eacute para Lessing uma questatildeo de limitaccedilatildeo da forma de
expressatildeo escultoacuterica que ao se submeter agrave ldquolei da belezardquo natildeo pode representar o grito
desfigurador Em suas palavras
O mestre visava a suprema beleza sob as condiccedilotildees aceitas da dor
corporal Esta em toda a sua violecircncia desfiguradora era incompatiacutevel
com aquela Ele foi obrigado a reduzi-la ele foi obrigado a suavizar o
grito em suspiro natildeo porque o grito denuncia uma alma indigna mas
antes porque ele dispotildee a face de um modo asqueroso (Lessing 1998
92)
Devemos ressaltar que segundo a teoria artiacutestica de Lessing para quem as leis a que
devem obedecer a arte estatildeo ligadas agrave sua interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica a arte eacute
julgada atraveacutes do seu efeito Neste contexto ao conceder a seus personagens
caracteriacutesticas de humanidade como por exemplo a manifestaccedilatildeo da dor atraveacutes de
35
lamentos e gritos o poeta estaria aproximando o heroacutei traacutegico do puacuteblico a ser atingido
e consequumlentemente maximizando a identificaccedilatildeo entre eles e com isto o efeito
esperado qual seja a catarse atraveacutes do temor e da compaixatildeo Esta identificaccedilatildeo
alcanccedilada por via da demonstraccedilatildeo dos lamentos dos heroacuteis dramaacuteticos natildeo pode ser
obtida da mesma forma pelas artes pictoacutericas Nestas que satildeo expressotildees de um
momento uacutenico a beleza natildeo pode deixar de estar presente pois ela eacute um dos
ingredientes mais fundamentais do efeito buscado Na poesia o heroacutei natildeo seraacute
caracterizado em uma uacutenica accedilatildeo como ocorre na escultura Sendo assim o grito
narrado eacute apenas um momento do conjunto que iraacute definir o personagem
O Laocoonte de Virgiacutelio grita mas esse Laocoonte que grita eacute
justamente aquele que noacutes jaacute conhecemos e amamos como o patriota
mais cordato e o pai mais afetuoso Noacutes vinculamos o seu grito natildeo ao
seu caraacuteter mas antes apenas ao seu sofrimento insuportaacutevel Apenas
esse uacuteltimo noacutes ouvimos no seu grito e o poeta pode tornaacute-lo sensiacutevel
apenas graccedilas a esse grito (Lessing 1998 106)
Com isto tanto o escultor que suprime o grito quanto o poeta que o descreve ao
fazerem o fazem de acordo com as leis que regem suas respectivas formas de arte
Da contenda sobre o grito do Laocoonte e sua representaccedilatildeo escultoacuterica e
poeacutetica iratildeo participar ainda diversos pensadores Dentre os mais ilustres podemos
destacar Goethe cuja explicaccedilatildeo sobre a escultura proacutexima em muitos pontos da de
Lessing encontra-se nos Propileus Para o poeta o grupo estatuaacuterio ldquoesgota o seu objeto
e preenche com sucesso todas as condiccedilotildees da arterdquo (Goethe 2005126) Segundo
Goethe a escultura eacute limitada a um uacutenico momento da accedilatildeo e sua comparaccedilatildeo com a
poesia de Virgiacutelio eacute injusta O poeta a avalia assim como Lessing atraveacutes de seu efeito
ainda dentro das categorias poeacuteticas de Aristoacuteteles e destaca
O ser humano possui apenas trecircs sentimentos no sofrimento
proacuteprio e alheio o medo o terror e a compaixatildeo a previsatildeo temerosa de
um mal que se aproxima a percepccedilatildeo inesperada do sofrimento presente
36
e a participaccedilatildeo no sofrimento duradouro ou que passou todos os trecircs
sentimentos satildeo representados e suscitados por esta obra de arte e na
verdade na gradaccedilatildeo a mais conveniente (Goethe 2005 126)
Em sua obra principal Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 46 a seus comentaacuterios do
Laocoonte que seratildeo acrescidos de exemplos no posterior volume de suplementos
Reconhece o avanccedilo feito por Lessing ao colocar no lugar de um fundamento
psicoloacutegico um fundamento puramente esteacutetico e critica ainda as teorias psicoloacutegicas e
fisioloacutegicas de seu tempo como as de Hirt e Fernow18
Para Schopenhauer apesar de
sua aproximaccedilatildeo do que seria uma ldquoexplicaccedilatildeo corretardquo da obra Lessing natildeo encontrou
o seu ponto exato qual seja a explicaccedilatildeo de que o grito natildeo pertence ao domiacutenio de
uma representaccedilatildeo escultoacuterica
Antes de qualquer investigaccedilatildeo psicoloacutegica e fisioloacutegica sobre se
Laocoonte em sua situaccedilatildeo poderia gritar ou natildeo deve-se decidir em
relaccedilatildeo ao grupo de esculturas o seguinte que nele o grito natildeo pode ser
exposto pelo motivo de que a exposiccedilatildeo do grito reside por inteiro fora
do domiacutenio da escultura (Schopenhauer MVR 2005 303)
Para Schopenhauer a simples exposiccedilatildeo que representaria o grito ou seja ldquoo
escancarar violento da bocardquo natildeo pode ocasionar o efeito que o grito mesmo enquanto
forma de expressatildeo ocasionaria O efeito que o grito pode causar em uma arte
descritiva atraveacutes do uso da imaginaccedilatildeo do leitor ou mesmo na arte representativa no
teatro tornar-se-ia motivo de riso caso seja representado por uma boca escancarada na
arte plaacutestica Schopenhauer utiliza-se do exemplo do Laocoonte para demonstrar a
necessidade do estabelecimento de fronteiras entre as artes que devido agrave suas formas
devem obedecer agraves competecircncias determinadas pelo objeto representado (no caso da
teoria schopenhaueriana as competecircncias seratildeo determinadas pelas ideacuteias a serem
representadas como veremos posteriormente) Esta preocupaccedilatildeo com os limites entre as
18
Segundo Schopenhauer Hirt (Horen 1797 parte 10) apresenta a explicaccedilatildeo de que Laocoonte natildeo grita
pois estaacute impossibilitado pela sufocaccedilatildeo que o leva agrave morte Fernow por sua vez faz uma amalgama das
opiniotildees de Winckelmann Lessing e Hirt
37
formas artiacutesticas presente na esteacutetica schopenhaueriana e no Laocoonte de Lessing foi
contudo como nos lembra Suzuki (Rosenfield 2001 36-56) ignorada por Goethe
(como podemos ver pelos elementos da poeacutetica aristoteacutelica utilizados pelo poeta para
explicar a escultura na citaccedilatildeo presente na paacutegina anterior) e seraacute posteriormente
tambeacutem desconsiderada por Nietzsche em seu projeto de uma obra de arte total
Diante do acima exposto ainda tratando de Lessing podemos perceber
que toda a discussatildeo acerca do Laocoonte foi desencadeada pela motivaccedilatildeo de defesa da
arte poeacutetica agrave qual Lessing dedicou sua vida como escritor diretor e criacutetico teatral
Desta forma a importacircncia de Lessing para o tema em questatildeo nesta dissertaccedilatildeo estaacute
mais ligado ao seu papel junto a um projeto de formaccedilatildeo de um teatro alematildeo e sua
interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica Enquanto teoacuterico e criacutetico do teatro o autor da
Dramaturgia de Hamburgo exerceu grande influecircncia na cultura posterior ao oferecer a
seu tempo uma nova interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica que vai de encontro agraves
interpretaccedilotildees francesas e de Gottsched que eram por sua vez inflexiacuteveis em relaccedilatildeo agraves
regras (das unidades de espaccedilo tempo e lugar do estatuto social dos personagens da
linguagem e do nuacutemero de atos) Lessing atento agraves necessidades de uma burguesia em
ascensatildeo que natildeo se identificava mais com as concepccedilotildees aristocraacuteticas do modelo de
teatro francecircs e imbuiacutedo na construccedilatildeo do projeto de formaccedilatildeo cultural de uma naccedilatildeo
fragmentada oferece atraveacutes de suas interpretaccedilotildees uma seacuterie de elementos que estaratildeo
presentes nas consideraccedilotildees de pensadores posteriores Dentre estes elementos podemos
destacar as seguintes uma discussatildeo acerca dos conceitos de mimese temor
compaixatildeo catarse a defesa da utilizaccedilatildeo de caracteres mistos a liberdade do gecircnio
ante as regras o enaltecimento dos teatros espanhol e inglecircs principalmente de
Shakespeare
38
Ao tratarmos do referido projeto de um teatro alematildeo e tambeacutem do
classicismo germacircnico dois nomes ainda satildeo fundamentais para sua formaccedilatildeo bem
como eacute incontestaacutevel sua influecircncia sobre Schopenhauer e o jovem Nietzsche19
satildeo
eles Goethe e Schiller O primeiro deles maior dos poetas do classicismo germacircnico
foi um ampliador do projeto Winckelmanniano ldquoPois Goethe pensa o ideal de beleza
natildeo soacute em relaccedilatildeo agrave pintura e agrave escultura mas tambeacutem e principalmente em relaccedilatildeo agrave
poesia ou agrave arte dramaacutetica ampliando as ideacuteias de Winckelmann nesse domiacutenio como
teoacuterico e como criador de obras teatraisrdquo (Machado 2006 14) Seu classicismo
impresso em seus textos teoacutericos e na forma e conteuacutedo de diversas de suas produccedilotildees
literaacuterias eacute o auge do projeto Winckelmanniano Podemos ver na esteira de Machado
(2006 14-22) que o ideal de beleza proposto por Winckelmann eacute ainda o que domina a
noccedilatildeo Goetheana dos gregos e eacute apoiado neste ideal que o poeta interpreta a arte do
mundo helecircnico e a apresenta como um exemplo para a arte de seu tempo Ressaltamos
poreacutem que dada a sua extrema heterogeneidade como nos adverte Butler (1958 85)
encontrar um senso de harmonia interna no todo da obra goetheana eacute tarefa tatildeo incerta
como determinar o grau de sua influecircncia no pensamento de nossos filoacutesofos No que se
refere a Schopenhauer entretanto natildeo podemos deixar de ressaltar que sua convivecircncia
com o poeta foi norteada pelas discussotildees cientiacuteficas e filosoacuteficas que ocupavam o palco
de seus estudos agrave eacutepoca Goethe dedicou vinte anos de sua vida ao estudo das cores e
sua obra Doutrina das cores eacute o resultado desta investigaccedilatildeo Ela atraiu o interesse do
jovem Schopenhauer que apoacutes alguns encontros com Goethe dedicou-se a escrever a
sua proacutepria teoria que divergia em diversos pontos da teoria do poeta fato que marcou o
fim da relaccedilatildeo amistosa dos mesmos Sobre este periacuteodo de convivecircncia
19
De acordo com Martin (1996) a obra desenvolvida por Nietzsche enquanto escritor e pensador eacute
demasiado complexa para ser reduzida ou atribuiacuteda a determinada influecircncia Entretanto em uma
estatiacutestica crua podemos ter o vislumbre desta influecircncia como se segue ldquoSchopenhauer eacute referenciado
394 vezes na obra de Nietzsche Wagner 327 vezes a Goethe existem 311 menccedilotildees Schiller encontra-se
em nono lugar com 126 menccedilotildeesrdquo (Martin 1996 5)
39
especificamente sobre o episodio citado Goethe vai escrever mais tarde conforme
citaccedilatildeo de Safranski
O Dr Schopenhauer foi para mim um amigo benevolente
Estivemos de acordo em muitas coisas mas foi impossiacutevel evitar ao final
um certo distanciamento como dois amigos que ateacute certo momento
caminharam juntos se datildeo a matildeo para despedir pois querem dirigir-se um
ao norte outro ao sul perdendo-se rapidamente de vista um ao outro
(apud Safranski 1991 265)
Ainda na esteira do movimento de estabelecimento de um projeto
artiacutestico nacional encontramos Schiller que ao lado de Goethe foi o responsaacutevel pelas
maiores obras do classicismo literaacuterio de Weimar Para o estudo em questatildeo o que mais
nos interessa em sua obra eacute o periacuteodo no qual antes do contato com Goethe Schiller
produz seus escritos teoacutericos sobre a trageacutedia Estes estudos podem ser considerados
em uma perspectiva histoacuterica como uma ponte entre a interpretaccedilatildeo da trageacutedia nos
moldes puramente aristoteacutelicos e a trageacutedia vista enquanto forma de arte que para
atingir o efeito dela esperado deve refletir a condiccedilatildeo traacutegica do homem pensada com
base em elementos retirados da filosofia moral e da esteacutetica kantiana Em seus textos
teoacutericos sobre a poesia traacutegica pertencentes ao periacuteodo que Schiller assume ter estado
sob influecircncia da filosofia kantiana ele descreve a trageacutedia como expressatildeo do sublime
ndash conceito extraiacutedo da criacutetica kantiana do juiacutezo ndash como a representaccedilatildeo sensiacutevel da
dicotomia entre a liberdade moral a vontade individual (vontade tomada enquanto
faculdade de pensar e agir livremente) por um lado e a necessidade natural e instintiva
por outro Vemos pela primeira vez em Schiller a utilizaccedilatildeo de categorias filosoacuteficas
kantianas na elaboraccedilatildeo de uma teoria da trageacutedia o que teraacute continuidade com as
teorias do idealismo absoluto e a do proacuteprio Schopenhauer Este eacute um momento
extremamente importante devido ao fato de marcar toda a reflexatildeo futura sobre o tema
ao fundar o deslocamento de uma interpretaccedilatildeo poeacutetica da trageacutedia baseada em
40
comentaacuterios da obra aristoteacutelica para uma interpretaccedilatildeo do traacutegico enquanto fenocircmeno
que descreve a situaccedilatildeo do homem no mundo De acordo com Machado ldquoEacute do
encontro de um grande dramaturgo como Schiller com a filosofia de Kant -
principalmente a sua eacutetica considerada como uma filosofia da liberdade e sua
esteacutetica no que diz respeito agrave teoria do juiacutezo sobre o sublime ndash que nasce a primeira
filosofia do traacutegico uma reflexatildeo filosoacutefica original que criou um tipo novo de
pensamento sobre a trageacutediardquo (Machado 2006 54) Na teoria schopenhaueriana da
trageacutedia podemos ver caracteriacutesticas da teoria schilleriana Primeiramente a presenccedila
marcante da influecircncia kantiana no que se refere ao sublime Em segundo lugar a
leitura da trageacutedia enquanto instrumento para a percepccedilatildeo de uma ordem moral do
mundo Tais caracteriacutesticas seratildeo aprofundadas no capiacutetulo posterior Vale antecipar que
na obra do jovem Nietzsche poderemos ver a exaltaccedilatildeo de Schiller em sua tentativa de
compreensatildeo do mundo helecircnico aleacutem do elogio agrave teoria schilleriana do coro Veremos
entretanto uma criacutetica acirrada no que se refere ao projeto de um teatro enquanto
instituiccedilatildeo moral
Neste capiacutetulo foram delineadas as principais influecircncias filosoacuteficas que
alicerccedilaram o sistema schopenhaueriano bem como esboccedilaram-se as diversas teorias
artiacutesticas que surgiram no periacuteodo em questatildeo teorias estas que propuseram mateacuteria
para a formaccedilatildeo do pensamento de nossos filoacutesofos A partir da cisatildeo entre fenocircmeno e
noumeno proposta por Kant e sua primeira criacutetica Schopenhauer elabora as matrizes de
seu sistema e para ilustraacute-lo encontra apoio na cosmologia platocircnica e no pensamento
oriental Vimos ainda que sua teoria esteacutetica eacute alimentada pela frequumlentaccedilatildeo agraves
categorias apresentadas por artistas teoacutericos e criacuteticos de arte de seu periacuteodo Por seu
turno vimos com Winckelmann a origem do estudo sobre os gregos e sua arte aleacutem do
estabelecimento destes como um modelo para a arte alematilde projeto este que foi
41
retomado por Lessing que por sua vez intensificou o estudo e propocircs um modelo de um
teatro nacional independente projeto que seraacute mais tarde revisitado e aprofundado por
Goethe e Schiller Esta apresentaccedilatildeo de influecircncias eacute imprescindiacutevel para identificarmos
a origem de certos elementos que satildeo fundamentais ao entendimento da proacutepria doutrina
schopenhaueriana tais como o caraacuteter moral de sua teoria esteacutetica sua preocupaccedilatildeo
com o estabelecimento de limite entre as artes sua interpretaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo da poeacutetica
sua utilizaccedilatildeo de conceitos esteacuteticos kantianos (sublime belo e desinteresse) sua
apreciaccedilatildeo das obras modernas seu reconhecimento da produccedilatildeo claacutessica seu desprezo
agrave filosofia de seu tempo Eacute tambeacutem atraveacutes do mapeamento aqui feito de algumas de
suas influecircncias mesmo que brevemente apontado que poderemos mais tarde
identificar alguns dos aspectos originais e singulares de sua teoria
Quanto agraves influecircncias presentes na teoria da trageacutedia do jovem Nietzsche
apontaremos complementos no capiacutetulo correspondente Eacute imprescindiacutevel dar destaque
no que se refere agrave obra nietzscheana agrave sua formaccedilatildeo filoloacutegica ao seu conviacutevio com
Richard Wagner e agrave sua leitura do proacuteprio Schopenhauer - e isto seraacute feito
posteriormente Esperamos ter deixado claro ateacute aqui que diferentemente de Zaratustra
Nietzsche natildeo desceu simplesmente de uma montanha mas faz parte de uma tradiccedilatildeo
histoacuterica assim como Schopenhauer e que a contextualizaccedilatildeo de suas teorias eacute
fundamental para a identificaccedilatildeo dos elementos ali presentes que singularmente se
originaram do sistema metafiacutesico da Vontade
42
2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU
SUBSTRATO METAFIacuteSICO
ldquoOra se todo mundo como representaccedilatildeo eacute
a visibilidade da Vontade a arte eacute o
clareamento dessa visibilidade a cacircmera
obscura que mostra os objetos mais
puramente permitindo-nos melhor abarcaacute-
los e compreendecirc-los eacute o teatro dentro do
teatro a peccedila dentro da peccedila em Hamletrdquo
(Schopenhauer)
Utilizando-se de uma metaacutefora retirada do Eacutedipo de Soacutefocles Schopenhauer nos
oferece um exemplo da caracteriacutestica de conexatildeo interna dos temas abordados em sua
obra20
ldquo minha filosofia eacute como a Tebas de cem portas desde todos os lados se pode
entrar e atraveacutes de todos se pode chegar por um caminho direto ateacute o centrordquo
(Schopenhauer 2002 4) Tendo em vista que nosso objetivo neste capiacutetulo eacute apresentar
a teoria schopenhaueriana da trageacutedia e seus fundamentos filosoacuteficos utilizaremo-nos
desta porta para termos acesso ao sistema schopenhaueriano Procuraremos percorrer o
20
Barboza define bem esta caracteriacutestica marcante da filosofia schopenhaueriana ldquoSchopenhauer eacute o
filoacutesofo da organicidade Procura-a porque com ela onde quer que se esteja no seu sistema estar-se-aacute
em toda parte O todo conteria as partes e seria contido por elas De uma metafiacutesica da efetividade se vai
para uma do belo desta para a da eacutetica que por sua vez pode remeter agrave muacutesica por seu turno a nos
enviar para a efetividade numa por assim dizer circularidade virtuosa A unidade natildeo se perde do
horizonte de observaccedilatildeordquo (Barboza 2001 137)
43
substrato metafiacutesico sustentador da teoria do traacutegico schopenhaueriana e perceber assim
a conectividade interna existente entre sua cosmologia sua teoria esteacutetica e sua eacutetica
De posse deste meacutetodo procuraremos destacar os conceitos fundamentais da teoria
traacutegica e de sua visatildeo de mundo que viratildeo posteriormente se fazer presentes tambeacutem
na obra do jovem Nietzsche
21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo
Agrave descriccedilatildeo das artes poeacuteticas Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 51 do primeiro
volume e o capiacutetulo 37 do segundo volume de sua obra principal Tais descriccedilotildees
encontram-se por sua vez ao final dos trechos dedicados agrave teoria esteacutetica (livro III de
MVR e sus complementos) e finalizam seus apontamentos do que podemos chamar na
esteira de Young (2005) das artes natildeo-musicais21
Em ambos os casos a teoria da
trageacutedia estaacute localizada ao final da apresentaccedilatildeo Esta localizaccedilatildeo juntamente com as
diversas citaccedilotildees e exemplos retirados de peccedilas traacutegicas das quais o filoacutesofo se utiliza ao
longo de seu trabalho nos permite ver a importacircncia da arte traacutegica para Schopenhauer
Em sua teoria artiacutestica existe uma hierarquizaccedilatildeo das artes que leva em consideraccedilatildeo a
capacidade de cada uma em apresentar um grau especiacutefico de objetivaccedilatildeo da vontade
Na cosmologia schopenhaueriana a vontade essecircncia do mundo identificada como
sendo a coisa-em-si kantiana manifesta-se (torna-se objeto de conhecimento) atraveacutes de
diversos graus ndash que exprimem a nitidez com que a vontade se manifesta para o
observador - representados pelos reinos da natureza e finalmente pelo homem Desta
forma ela se objetivaria no mundo inorgacircnico atraveacutes das forccedilas magneacuteticas e da
gravidade no mundo vegetal atraveacutes das funccedilotildees orgacircnicas no mundo animal atraveacutes
21
Como veremos mais adiante a muacutesica eacute uma exceccedilatildeo no sistema das artes schopenhaueriano pois natildeo
se relaciona a uma objetivaccedilatildeo da vontade mas expressa a proacutepria vontade e desta forma natildeo figura na
sistematizaccedilatildeo hieraacuterquica
44
dos instintos e dos motivos assim como o faz no homem A classificaccedilatildeo das artes
corresponde portanto a esta hierarquizaccedilatildeo cosmoloacutegica de objetivaccedilatildeo da vontade22
Sendo assim a arquitetura e a hidraacuteulica mostram a objetivaccedilatildeo da vontade no seu grau
mais baixo ao expor o jogo das forccedilas que caracterizam a mateacuteria tais como a gravidade
rigidez dureza resistecircncia luz A jardinagem e a pintura da natureza satildeo as formas
artiacutesticas cujo fim eacute a exposiccedilatildeo da objetivaccedilatildeo da vontade que se manifesta no reino
vegetal A pintura de animais encontra-se em um niacutevel superior pois o reino animal
objeto de sua representaccedilatildeo expotildee de forma mais evidente a vontade objetivada Temos
ainda as pinturas de retratos a pintura histoacuterica e a escultura que das artes plaacutesticas
formam a categoria superior cujo objeto eacute a exposiccedilatildeo da vontade no grau mais elevado
de sua cognoscibilidade o homem Esta mesma exposiccedilatildeo a do homem eacute tambeacutem o
objeto da arte poeacutetica que agrave diferenccedila das artes que fazem sua exposiccedilatildeo de modo
puramente intuitivo eacute auxiliada pela imaginaccedilatildeo No aacutepice das artes poeacuteticas
encontramos a trageacutedia a uacuteltima arte natildeo-musical a ser descrita A arte traacutegica eacute aquela
que possui a caracteriacutestica de por sua natureza representar de forma mais ilustrativa a
objetivaccedilatildeo mais desenvolvida da vontade a vida humana e suas relaccedilotildees Veremos
mais tarde que aleacutem de corresponder agrave hierarquia de objetivaccedilatildeo da vontade mais
desenvolvida a arte traacutegica ocupa um lugar especial na filosofia schopenhaueriana
devido agrave ldquograndeza de seu efeitordquo (Schopenhauer 2005 333) Diante do exposto
podemos depreender que a arte possui na filosofia schopenhaueriana um papel
cognitivo e a trageacutedia por sua vez eacute a forma artiacutestica que por sua competecircncia cognitiva
ocupa o primeiro lugar entre as artes natildeo musicais
22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo
22
Vemos aqui um exemplo da citada inter-conectividade existente no sistema schopenhaueriano tendo
em vista que a elaboraccedilatildeo de sua classificaccedilatildeo artiacutestica obedece ao construto metafiacutesico do livro II de
MVR e sua consequumlente cosmologia
45
A tarefa a que se propotildee o sistema schopenhaueriano eacute a decifraccedilatildeo do ldquoenigma
do mundordquo ie encontrar uma resposta agrave pergunta o que eacute o mundo Esta tarefa tem
origem no idealismo subjacente na primeira criacutetica kantiana e de certa forma era uma
tarefa da qual estava imbuiacutedo todo o pensamento filosoacutefico daquele periacuteodo ie por
decifraccedilatildeo do enigma do mundo podemos entender a decifraccedilatildeo da coisa-em-si
kantiana Temos daiacute o ponto de partida da filosofia de Schopenhauer o idealismo
transcendental do mundo fenomecircnico Sob o ponto de vista da representaccedilatildeo o mundo eacute
objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito agraves condiccedilotildees a priori do
entendimento que para o filoacutesofo satildeo as categorias do espaccedilo do tempo e da
causalidade
Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das formas a priori do entendimento eacute
interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos advindos da filosofia Platocircnica e oriental
como um mundo ilusoacuterio Conforme a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana Platatildeo jaacute
identificava esta caracteriacutestica ilusoacuteria do mundo em sua contraposiccedilatildeo teoacuterica entre o
mundo fiacutesico onde o devir impossibilitava a apreensatildeo do ser e o mundo das ideacuteias
onde haveria o verdadeiro encontro com o ser das coisas Ainda de acordo com a
interpretaccedilatildeo de Schopenhauer os livros sagrados indianos Vedas e Puranas faziam
esta distinccedilatildeo atraveacutes da noccedilatildeo do veacuteu de maia a consciecircncia humana seria envolvida
por um veacuteu o que resultaria em uma visatildeo oniacuterica do mundo e impediria assim a
percepccedilatildeo da realidade
Entretanto o mundo pode ainda ser conhecido atraveacutes de um segundo ponto de
vista como vontade Este eacute o ponto de vista que Schopenhauer utiliza-se para decifrar a
incognosciacutevel coisa-em-si kantiana Percorrendo uma ldquovia subterracircneardquo de modo
imanente Schopenhauer identifica nas accedilotildees do corpo bioloacutegico os atos da vontade
46
enquanto coisa-em-si e de forma analoacutegica a estabelece como essecircncia governante do
mundo Faz-se necessaacuterio aqui ressaltar como o fazem Brum (1998 23) e Rosset23
que
natildeo devemos interpretar esta analogia como uma visatildeo antropomoacuterfica do mundo Essa
essecircncia do mundo encontrada empiricamente natildeo eacute todavia um ente racional uma
ldquoalma do mundordquo Se por um lado o mundo fenomecircnico eacute aquele onde o princiacutepio de
razatildeo24
estabelece as normas de funcionamento um mundo natildeo-fenomecircnico mundo em
si enquanto vontade se expressa por sua alogicidade irracionalidade Grundlosigkeit
(falta de fundamento) Essa essecircncia irracional que manifesta-se nos diversos reinos e
indiviacuteduos do mundo eacute a raiz da visatildeo pessimista da existecircncia que de acordo com o
filoacutesofo pode ser a todo momento constatada empiricamente
As diversas manifestaccedilotildees da vontade suas objetidades carregam inerentemente
a sua iacutendole puro impulso cego vontade de vida insaciabilidade Notadamente o
mundo fenomecircnico objetivaccedilatildeo da vontade expressa a essecircncia desta vontade atraveacutes
de um conflito permanente Desenha-se um cenaacuterio de batalha onde cada objetidade da
vontade cada ser do mundo eacute orientado por sua essecircncia irracional desguarnecida de
qualquer telos ldquoAssim a vontade de vida crava continuamente os dentes na proacutepria
carne e em diferentes figuras eacute seu proacuteprio alimentordquo (Schopenhauer MVR 211) Este
fundamento ontoloacutegico a vontade determina assim o caraacuteter absurdo que a vida
humana toma na filosofia schopenhaueriana eterno esforccedilo carente de ordem ou
finalidade O ldquomecanismo internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens
marionetes guiados pela carecircncia
[]nenhuma satisfaccedilatildeo todavia eacute duradoura mas antes sempre eacute um
ponto de partida de um novo esforccedilo o qual por sua vez vemos travado em
toda parte de diferentes maneiras em toda parte lutando e assim portanto
23
[] natildeo haacute que transpor a experiecircncia da motivaccedilatildeo humana ao conjunto das forccedilas naturais para
compreender o segredo da natureza senatildeo o contraacuterio transpor o misteacuterio das forccedilas naturais ao conjunto
das motivaccedilotildees psicoloacutegicas para desvendar-se o segredo da vontade humana (Rosset 2005 31) 24
Princiacutepio tratado na tese de doutoramento de Schopenhauer SRQPRS bem como no livro I de MVR
O princiacutepio estabelece que todo acontecimento possui uma causa uma razatildeo de ser
47
sempre como sofrimento natildeo haacute nenhum fim uacuteltimo do esforccedilo portanto natildeo
haacute nenhuma medida e fim do sofrimento (Schopenhauer 2005 399)
Se carecircncia vontade e desejo satildeo a tocircnica da vida humana na maior parte do tempo e
satildeo experimentados como dor e infelicidade a felicidade por sua vez eacute definida
negativamente como um momento de ausecircncia daquela dor
Sentimos a dor e natildeo a ausecircncia da dor a inquietude e natildeo a
tranquumlilidade o medo e natildeo a seguranccedila Sentimos desejo como quando
temos fome e sede entretanto ao alimentarmo-nos estas sensaccedilotildees
deixam de existir para noacutes (MVR II 630)
Toda satisfaccedilatildeo momentacircnea de um querer eacute imediatamente suprimida por outro querer
ou se perdurar por algum tempo por menor que seja este transforma-se em teacutedio Um
ldquopecircndulo entre a dor e teacutediordquo eacute a definiccedilatildeo que Schopenhauer propotildee para a vida
humana Assim se daacute tambeacutem com a sauacutede a juventude e a liberdade Todos satildeo
conceitos definidos negativamente soacute os conhecemos atraveacutes de sua ausecircncia Este afatilde
por prolongar e conservar a vida essecircncia iacutentima de cada indiviacuteduo natildeo eacute contudo
resultado de uma observaccedilatildeo objetiva da mesma de um conhecimento que eleja a vida
como algo de valor a ser mantido e preservado e portanto os ldquo[] seres natildeo satildeo
atraiacutedos por algo que se lhes apresenta mas satildeo empurrados a elerdquo (MVR II 398) A
luta eterna observada nos diversos reinos da natureza a busca por alimento o esforccedilo da
procriaccedilatildeo se comparados aos momentos fugazes de satisfaccedilatildeo fazem da vida ldquoum
negoacutecio cujos investimentos natildeo cobrem nem de longe os custosrdquo (MVR II 399)
Em todas estas consideraccedilotildees se faz claro que a vontade de viver
natildeo eacute a consequecircncia do conhecimento da vida natildeo se trata de uma
bdquoconclusio ex praemissis‟ nem em geral eacute algo secundaacuterio antes
contudo eacute o primeiro e incondicionado a premissa de todas as premissas
e precisamente por isso aquilo do que haacute de partir a filosofia pois a
vontade de viver natildeo se apresenta como a consequumlecircncia do mundo senatildeo
o mundo como consequumlecircncia da vontade de viver (MVR II 405)
Um dos pontos essenciais a ser verificado nesta visatildeo de mundo eacute o
destronamento da razatildeo O ceacuterebro oacutergatildeo da razatildeo eacute o resultado de um esforccedilo da
48
vontade em seu percurso de objetivaccedilatildeo A racionalidade humana estaacute a serviccedilo da
vontade que eacute em sua essecircncia grundlos A razatildeo eacute ferramenta para que o homem
enquanto objetidade da vontade consiga satisfazer a seus anseios Em oposiccedilatildeo agrave
filosofia racionalista de entatildeo onde o ldquoreal eacute o racionalrdquo assistimos ao surgimento de
uma filosofia irracionalista das forccedilas inconscientes onde a razatildeo na medida em que eacute
mecanismo da vontade estaacute sempre a serviccedilo desta O comportamento humano eacute
naturalmente egoiacutesta voltado para os proacuteprios interesses e estes por sua vez satildeo
expressatildeo desta vontade aloacutegica desprovida de telos Schopenhauer se mostrava
consciente da singularidade desta sua biparticcedilatildeo do ego e da consequumlente visatildeo de
mundo que ela trouxe agrave luz e enfatizou isto em seus manuscritos berlinenses ldquo[] a
divisatildeo da mente o eu em duas partes diferentes - em vontade como parte essencial e
primaacuteria e em intelecto como secundaacuteria - eacute o grande princiacutepio e meacuterito de minha
filosofia e tambeacutem a principal diferenccedila dos demais sistemasrdquo (MR III 328)
Temos entatildeo os dois pontos de vista do mundo que fundamentam a visatildeo de
Schopenhauer e que posteriormente seratildeo transformados pela teoria nietzscheana da
trageacutedia nos dois impulsos da natureza o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco O primeiro deles eacute o
mundo da individualidade da pluralidade regido pelo que Schopenhauer vai chamar
utilizando-se de um termo retirado da escolaacutestica de principium individuationis
Nesse sentido servindo-me da antiga escolaacutestica denomino
tempo e espaccedilo pela expressatildeo principium individuationis que peccedilo para
o leitor guardar para sempre Tempo e espaccedilo satildeo os uacutenicos pelos quais
aquilo que eacute uno e igual conforme a essecircncia e o conceito aparece como
pluralidade de coisas que coexistem e se sucedem (MVR 171)
No segundo toto genere diferente do primeiro existe a vontade una indivisiacutevel natildeo
submetida ao princiacutepio de razatildeo e por isso sem fundamento
Em apoio a sua tese Schopenhauer invoca ao final do capiacutetulo 46 (Sobre a
nulidade e o sofrimento da vida) dos complementos de MVR a opiniatildeo de diversos
49
pensadores dentre eles Heroacutedoto Platatildeo Teoacutegnis Homero os tragedioacutegrafos gregos
Shakespeare Byron Voltaire Rousseau Faz-se importante neste momento ressaltar que
o filoacutesofo aponta a invenccedilatildeo da trageacutedia pelos gregos como uma expressatildeo desta visatildeo
de mundo ponto de vista que como veremos tambeacutem seraacute adotado pelo primeiro
Nietzsche
Ante tudo mencionarei que os gregos por mais distantes que
estivessem da visatildeo de mundo cristatilde e da alta Aacutesia e por muito que se
mantiveram sob o ponto de vista da afirmaccedilatildeo da vontade se fizeram
profundamente impressionados pela miseacuteria da existecircncia Isso eacute
demonstrado pela invenccedilatildeo da trageacutedia obra deles (MVR II 640)
23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana
Existe poreacutem uma forma de conhecimento que eacute ndash agrave diferenccedila daquela
subordinada ao princiacutepio de razatildeo que percebe os objetos em sua relaccedilatildeo com os outros
objetos do espaccedilo-tempo ndash uma forma mais universal pois mostra o objeto em sua
caracteriacutestica mais geral qual seja a de ser objeto para o sujeito A esta forma de
conhecimento Schopenhauer associa a apreciaccedilatildeo esteacutetica O seu objeto eacute a ideacuteia
platocircnica25
um grau determinado de objetivaccedilatildeo da coisa-em-si
Os diferentes graus de objetivaccedilatildeo da Vontade expressos em
inumeraacuteveis indiviacuteduos e que existem como seus protoacutetipos
inalcanccedilaacuteveis ou formas eternas das coisas que nunca aparecem no
tempo e no espaccedilo meacutedium do indiviacuteduo mas existem fixamente natildeo
submetidos a mudanccedila alguma satildeo e nunca vindo-a-ser enquanto as
coisas nascem e perecem sempre vecircm-a-ser e nunca satildeo os GRAUS DE
OBJETIVACcedilAtildeO DA VONTADE ia dizer natildeo satildeo outra coisa senatildeo as
IDEacuteIAS DE PLATAtildeO (MVR 191)
Esta instacircncia do conhecimento eacute alcanccedilada intuitivamente pela contemplaccedilatildeo
esteacutetica da natureza ou pela facilitaccedilatildeo de uma obra de arte Desta forma as obras de
25
Conforme o filoacutesofo ldquo A expressatildeo mais breve e sucinta daquele famoso dogma platocircnico foi dada por
Dioacutegenes Laeacutercio (II 12) Platatildeo ensina que as ideacuteias da natureza existem como protoacutetipos jaacute as demais
coisas apenas se assemelham a elas e satildeo suas coacutepiasrdquo (MVR 191)
50
arte na teoria schopenhaueriana satildeo uma exposiccedilatildeo destes graus de objetivaccedilatildeo da
vontade as ideacuteias Ao contraacuterio da criacutetica agrave arte presente na repuacuteblica platocircnica - onde a
arte seria uma coacutepia mais imperfeita da ideacuteia por retratar o mundo fenomecircnico sua
coacutepia direta - Schopenhauer aproxima as obras artiacutesticas das ideacuteias eternas as define
como suas expressotildees diretas Contudo a intuiccedilatildeo das ideacuteias exige um estado de
consciecircncia diferente do estado comum Neste uacuteltimo o aparelho cognitivo sob a eacutegide
da vontade estaacute voltado para a realizaccedilatildeo dos interesses individuais e entatildeo se
movimenta no mundo guiado por estes interesses ldquoCaso entretanto a Ideacuteia deva de
alguma maneira tornar-se conhecimento e ser conhecida pelo sujeito entatildeo isso soacute
pode ocorrer graccedilas agrave supressatildeo da individualidade no sujeito que conhecerdquo (MB 30)
A forma artiacutestica de conhecimento cujo possuidor eacute o denominado gecircnio estaacute
associada a um desprendimento das reacutedeas da vontade O gecircnio eacute entatildeo aquele que livre
dos interesses da vontade percebe as ideacuteias por traacutes dos objetos alheio aos princiacutepios
de razatildeo e de individuaccedilatildeo e traduz este objeto na obra de arte O observador esteacutetico eacute
portanto um partiacutecipe da genialidade na medida em que intui a ideacuteia por traz do objeto
observado conforme tambeacutem ao seu grau de desinteresse26
Durante a apreciaccedilatildeo
esteacutetica o homem se vecirc livre momentaneamente daquela parte de si que eacute a causadora
de todo o sofrimento individual e coletivo a vontade para transformar-se em um ldquopuro
sujeito de conhecimentordquo Este estado de satisfaccedilatildeo decorrente da suspensatildeo da vontade
individualizada eacute o sentimento do belo
Aquilo que se poderia nomear o lado mais belo e a pura alegria
da vida precisamente porque nos arranca da existecircncia real e nos
transforma em espectadores desinteressados diante dela eacute o puro
conhecimento que permanece alheio a todo querer eacute a fruiccedilatildeo do belo a
alegria autecircntica na arte Mas mesmo isso requer dispositivos raros e
cabe apenas a pouquiacutessimos e mesmo para estes eacute um sonho
passageiro (MVR 404)
26
Vemos nesta forma de associaccedilatildeo entre conhecimento e interesse mais uma heranccedila kantiana no caso
provinda da definiccedilatildeo de belo da criacutetica da faculdade de juiacutezo
51
- - - - - - - - - -
Ao descrever a apreciaccedilatildeo artiacutestica como um ato cognitivo Schopenhauer
preocupa-se em diferenciaacute-la do conhecimento cientiacutefico De fato boa parte das
consideraccedilotildees sobre a arte eacute dedicada ao esclarecimento desta diferenccedila
Podemos por conseguinte definir a arte como o modo de
consideraccedilatildeo das coisas independente do princiacutepio de razatildeo em oposiccedilatildeo
justamente agrave consideraccedilatildeo que o segue que eacute o caminho da experiecircncia e
da ciecircncia O modo de consideraccedilatildeo que seque o princiacutepio de razatildeo eacute o
racional o uacutenico que vale e que auxilia na vida praacutetica e na ciecircncia o
modo apartado do conteuacutedo do princiacutepio de razatildeo eacute o genial o uacutenico que
vale e que auxilia na arte (MB 59)
No caso da trageacutedia cujo objetivo eacute o conhecimento do homem e de suas relaccedilotildees a
ciecircncia que mais se assemelha a esta forma artiacutestica seria a histoacuteria Esta natildeo tem como
objetivo a demonstraccedilatildeo da essecircncia do homem em sua forma atemporal ou seja a
demonstraccedilatildeo daquilo que fundamenta toda accedilatildeo humana independente dos
acontecimentos empiacutericos
[ ]toda ciecircncia no sentido proacuteprio do termo compreendida como
conhecimento sistemaacutetico guiado pelo fio condutor do princiacutepio de
razatildeo parte sempre de dois dados baacutesicos um deles sem exceccedilatildeo eacute o
princiacutepio de razatildeo em uma de suas figuras como oacuterganon outro eacute o
objeto especiacutefico de cada uma delas enquanto problema (Schopenhauer
MVR 73)
Desta forma a histoacuteria teria a lei de motivaccedilatildeo e o os fatos humanos como oacuterganon e
problemas respectivamente Entretanto interessa a Schopenhauer um conhecimento
mais universal que soacute pode ser apresentado pela arte e que aponta por sua proximidade
agrave essecircncia daquilo que eacute a uma ldquoiacutendole imutaacutevelrdquo das manifestaccedilotildees
Podemos ver entatildeo que sendo consideradas como meios para o
conhecimento da essecircncia da humanidade arte poeacutetica e histoacuteria possuem todavia
objetos de conhecimento diferentes A primeira quando produzida pelo verdadeiro
gecircnio tenciona manifestar a ideacuteia por traacutes destes conceitos a ideacuteia de homem de
humanidade intuitivamente independentemente do princiacutepio de razatildeo do devir como
52
objeto puro de conhecimento alheio agrave corrente dos motivos em suas caracteriacutesticas
essenciais atemporais A histoacuteria por sua vez segue o rastro do princiacutepio de razatildeo
procurando apresentar o fenocircmeno humano em suas relaccedilotildees descrever-lhe em suas
situaccedilotildees particulares individuais empiacutericas Nas palavras de Schopenhauer
Arte e ciecircncia tecircm em uacuteltima instacircncia o mesmo estofo a saber
justamente o mundo tal como ele se posta diante de noacutes ou antes uma
parte destacada dele quanto ao todo do mundo soacute a filosofia o
considera Contudo a grande diferenccedila entre ciecircncia e arte reside na
maneira como elas consideram o mundo e trabalham seu estofo Tal
oposiccedilatildeo pode ser indicada com uma palavra a ciecircncia considera os
fenocircmenos do mundo seguindo o fio condutor do princiacutepio de razatildeo ao
passo que a arte coloca totalmente de lado o princiacutepio de razatildeo
independente dele para que assim a ideacuteia entre em cena
(SCHOPENHAUER MB 57)
Podemos notar que a valorizaccedilatildeo do que eacute imutaacutevel alheio agrave idealidade do tempo eacute a
raiz da valorizaccedilatildeo do conhecimento artiacutestico frente ao histoacuterico Este uacuteltimo natildeo visa o
acesso aos modelos eternos pois seu objeto satildeo os acontecimentos individuais do
mundo fenomecircnico que satildeo eventos meramente aparentes se considerarmos a
idealidade do tempo O que se manifesta no fluxo temporal do mundo fenomecircnico satildeo
sempre as mesmas formas eternas as ideacuteias entretanto com roupagens diferentes o
mesmo homem enquanto objetivaccedilatildeo da vontade a mesma humanidade Onde quer que
seja e em qualquer momento especiacutefico sua essecircncia eacute a mesma e esta essecircncia eacute o que
deve ser alvo de uma compreensatildeo privilegiada de entendimento e natildeo as suas diversas
manifestaccedilotildees Por este motivo Schopenhauer deixando explicito o seu chamado anti-
historicismo afirma que ldquose algueacutem jaacute lera Heroacutedoto jaacute estudara bastante histoacuteria e
efeitos filosoacuteficos Pois laacute jaacute estaacute tudo o que compotildee a posterior histoacuteria mundial a
atividade o obrar o sofrimento e o destino do gecircnero humano (Schopenhauer MVR
II 496) Podemos notar claramente a oposiccedilatildeo entre a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana
da histoacuteria e as tendecircncias de seu tempo principalmente presentes na filosofia de
Hegel Este de acordo com a criacutetica de Schopenhauer ignorando a filosofia critica de
53
Kant toma o fenocircmeno histoacuterico como coisa em si ao atribuir-lhe uma unidade de
consciecircncia Entretanto unidade de consciecircncia eacute um atributo dos indiviacuteduos e natildeo do
gecircnero humano Estas filosofias de acordo com o Schopenhauer satildeo frutos do realismo
otimista queldquo tomam o mundo como perfeitamente real e potildeem como fim do mesmo
uma miseraacutevel felicidade terrena (Schopenhauer MVR II 495)
- - - - - - - - - -
Colocando de lado o fio condutor do princiacutepio de razatildeo e mirando-se no
conhecimento da ideacuteia imutaacutevel atemporal encontramos a trageacutedia como fenocircmeno que
apresenta agrave intuiccedilatildeo o homem e sua condiccedilatildeo Eacute a forma de arte que tem como objeto o
grau mais elevado de objetivaccedilatildeo da vontade A intenccedilatildeo do artista traacutegico eacute de acordo
com Schopenhauer transmitir a ideacuteia intuiacuteda tarefa que seraacute bem sucedida de acordo
com a habilidade de utilizaccedilatildeo da teacutecnica artiacutestica por um lado e com a capacidade de
percepccedilatildeo esteacutetica do apreciador por outro O tragedioacutegrafo diferentemente do
historiador que relata os fatos empiacutericos explicitando seus motivos e consequumlecircncias
deve para obter o efeito esperado em sua obra expor uma situaccedilatildeo tal em que o homem
possa manifestar todas as suas potencialidades e dessa forma transmitir ao apreciador
esteacutetico a ideacuteia representada ldquoO poeta expotildee com escolha e intenccedilatildeo caracteres
significativos em situaccedilotildees significativas jaacute o historiador toma aos dois como eles
aparecemrdquo (Schopenhauer MVR 323) A qualidade da obra traacutegica seraacute julgada entatildeo
pela sua capacidade de representaccedilatildeo da ideacuteia de humanidade e Schopenhauer qualifica
as trageacutedias de acordo com esta capacidade Natildeo existe em seu sistema uma
consideraccedilatildeo histoacuterica da produccedilatildeo traacutegica Ele natildeo leva em consideraccedilatildeo as condiccedilotildees
histoacutericas no que se refere agrave origem ou mesmo quanto ao desenvolvimento desta forma
artiacutestica e a avalia unicamente conforme o seu efeito E neste ponto a trageacutedia apresenta
uma peculiaridade frente agraves demais artes ela eacute a forma de arte que provocaraacute o
54
sentimento do sublime Como vimos o correlato subjetivo de toda apreciaccedilatildeo esteacutetica eacute
o sentimento causado pela anulaccedilatildeo da vontade individual mediante a elevaccedilatildeo ao
estado de puro sujeito de conhecimento O sublime assim como o belo satildeo expressotildees
deste sentimento que se diferenciam unicamente por sua forma
Se tal estado surgiu por si mesmo na medida em que o objeto foi
solicitado e se apresentou ndash e fomos postos sem resistecircncia pelo mero
desaparecer da vontade da consciecircncia no estado do conhecer puro ndash ou
se primeiro foi despertado por elevaccedilatildeo livre consciente sobre a vontade
na medida em que o objeto contemplado tem com esta uma relaccedilatildeo
desfavoraacutevel hostil cuja prossecuccedilatildeo suprimiria a contemplaccedilatildeo ndash aiacute
reside a diferenccedila entre o belo e o sublime (MB 119)
A impressatildeo do sublime eacute portanto uma forma de colocar-se no estado do puro conhecer
ao nos depararmos com o objeto que por sua apresentaccedilatildeo sugere uma ldquorelaccedilatildeo hostilrdquo
com o indiviacuteduo27
Jaacute vimos que a visatildeo de mundo de Schopenhauer identifica a vida humana como
sofrimento infindaacutevel no entanto ao elaborar sua definiccedilatildeo da trageacutedia Schopenhauer
aponta para o desfecho moral de sua obra (livro IV de MVR) e afirma que a trageacutedia
melhor eacute aquela que expotildee a renuacutencia agrave vida O filoacutesofo compara obras contemporacircneas
agraves antigas e afirma sua preferecircncia por estas em decorrecircncia da capacidade que elas tecircm
de provocar esta a renuacutencia agrave vida Vejamos a descriccedilatildeo que Schopenhauer faz da
trageacutedia
No aacutepice da arte poeacutetica tanto no que se refere agrave grandeza do seu
efeito quanto agrave dificuldade da sua realizaccedilatildeo deve-se ver a trageacutedia e de
fato ela assim foi reconhecida Observe-se aqui algo de suma significaccedilatildeo
para toda a nossa visatildeo geral de mundo o objetivo dessa suprema
realizaccedilatildeo poeacutetica natildeo eacute outro senatildeo a exposiccedilatildeo do lado terriacutevel da vida
27
Vemos na teoria do sublime Schopenhaueriana mais uma vez a influecircncia de Kant Schopenhauer iraacute
identificar duas formas de sublime e utilizar-se-aacute dos termos kantianos ldquosublime dinacircmicordquo e ldquosublime
matemaacuteticordquo para diferenciaacute-los No primeiro o objeto de apreciaccedilatildeo se mostra a princiacutepio uma ameaccedila
ao observador ldquoum poder que suprimiria qualquer resistecircnciardquo(MB 104) No sublime matemaacutetico o
segundo o objeto eacute visto em sua incomensuraacutevel grandiosidade diante da qual o observador infere a sua
infimidade A afinidade entre Schopenhauer e a teoria criacutetica do juiacutezo eacute expressa em sua obra principal
ldquoDe longe o que haacute de mais excelente na criacutetica da faculdade de juiacutezo eacute a teoria do sublime Ela eacute
incomparavelmente mais bem sucedida que a teoria do belo e daacute natildeo apenas como esta o meacutetodo geral
da investigaccedilatildeo mas tambeacutem um trecho do correto caminho de maneira que embora natildeo forneccedila a
soluccedilatildeo propriamente dita do problema chega bem perto delardquo(MVR 660)
55
a saber o inominado sofrimento a miseacuteria humana o triunfo da maldade
o impeacuterio ciacutenico do acaso a queda inevitaacutevel do justo e do inocente E
em tudo isso se encontra uma indicaccedilatildeo significativa da iacutendole do mundo
e da existecircncia Eacute o conflito da Vontade consigo mesma que aqui
desdobrado plenamente no grau mais elevado de sua objetidade entra em
cena de maneira aterrorizante Ele se torna visiacutevel no sofrimento da
humanidade em parte produzido por acaso e erro que se apresentam
como os senhores do mundo e personificados como destino e perfiacutedia os
quais aparecem enquanto intencionalidade em parte advindo da
humanidade mesma por meio dos entrecruzados esforccedilos voluntaacuterios dos
indiviacuteduos e da maldade e perversatildeo da maioria Trata-se de uma uacutenica e
mesma Vontade que em todos vive e aparece cujos fenocircmenos
entretanto combatem entre si e se entredevoram [] Por fim esse
conhecimento no indiviacuteduo purificado e enobrecido pelo sofrimento
mesmo atinge o ponto no qual o fenocircmeno o veacuteu de maia natildeo mais o
ilude Ele vecirc atraveacutes da forma do fenocircmeno do principium
individuationis com o que tambeacutem expira o egoiacutesmo nele baseado Com
isso os ateacute entatildeo poderosos MOTIVOS perdem o seu poder e em vez
deles o conhecimento perfeito da essecircncia do mundo atuando como
quietivo da vontade produz a resignaccedilatildeo a renuacutencia natildeo apenas da vida
mas de toda a vontade de vida mesma (Schopenhauer MVR 333)
Percebemos nesta descriccedilatildeo que a trageacutedia aleacutem de expor a visatildeo de mundo construiacuteda
pelo filoacutesofo tem como fim uacuteltimo provocar um efeito moral no apreciador esteacutetico
qual seja a renuacutencia ao mundo Vejamos entatildeo a relaccedilatildeo entre a visatildeo de mundo
schopenhaueriana o efeito esteacutetico provocado pela trageacutedia e o projeto moral existente
por traacutes de suas teorias
24 A finalidade moral da trageacutedia
Para que possamos perceber a relaccedilatildeo intriacutenseca entre cosmologia metafiacutesica
arte e a eacutetica faz-se necessaacuterio uma pequena excursatildeo sobre esta uacuteltima Que todo o
sistema schopenhaueriano possui um viacutenculo inseparaacutevel com o seu projeto eacutetico eacute fato
que natildeo passa despercebido a seus comentadores Um projeto de juventude eacute descrito
por Safranski (1991 188-198) Young (2006 07 200) Aramayo (2001 56-59) e
Cartwright (Janaway 1999 252) como uma premissa no desenvolvimento da filosofia
56
schopenhaueriana trata-se do projeto de uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Young a descreve
como uma transcendecircncia do mundo ordinaacuterio para o ldquomundo verdadeirordquo Esta
consciecircncia melhor poderia ser experimentada atraveacutes da apreciaccedilatildeo artiacutestica e da
consciecircncia eacutetica ambas originadas do desvelamento de maia Assim Schopenhauer a
descreve conforme citaccedilatildeo de Young (2006 9) ldquopersonalidade e causalidade existem
neste mundo compreensiacutevel temporal sensorial Mas a consciecircncia melhor me leva a
um mundo onde nem personalidade nem sujeito ou objeto existem maisrdquo Safransky
descreve a consciecircncia melhor como um estado semelhante ao ecircxtase miacutestico
Este arrebatamento estaacute livre das coordenadas espaccedilo-temporais
cujo ponto de interseccedilatildeo eacute o eu corporal apartado do espaccedilo do tempo
do eu Os miacutesticos chamam a esta experiecircncia ldquonunc stansrdquo agora
permanente A intensidade deste presente natildeo conhece princiacutepio nem fim
e soacute pode desaparecer porque noacutes desaparecemos dele (Safransky1991
190)
Conforme Aramayo tanto a figura do gecircnio como a do santo satildeo expressotildees do
reconhecimento desta consciecircncia melhor e a filosofia de Schopenhauer pretende-se
uma terceira via que tambeacutem apontaria para este estado de consciecircncia A caracteriacutestica
primordial deste estado eacute o desprendimento dos desejos individuais e o comportamento
virtuoso que adveacutem deste desprendimento Eacute na esteira do entendimento desta
consciecircncia melhor que as bases eacutetico-metafiacutesicas do filoacutesofo foram elaboradas Em
apoio a esta afirmaccedilatildeo Aramayo apresenta duas citaccedilotildees a partir das quais em
momentos distintos de sua vida Schopenhauer apresenta seu projeto de identificaccedilatildeo
entre eacutetica e metafiacutesica Nos escritos de Juventude em 1813 vemos o projeto
Em meu espiacuterito encontra-se em gestaccedilatildeo uma filosofia onde
metafiacutesica e eacutetica devem constituir uma soacute coisa cuja dissociaccedilatildeo eacute tatildeo
errocircnea como agrave da alma e do corpo (Aramayo 2001 41)
Jaacute nos escritos tardios especificamente em seu ensaio de 1836 Sobre a vontade na
natureza veremos Schopenhauer identificar esta uniatildeo
57
Tatildeo soacute esta metafiacutesica que jaacute eacute eacutetica por si soacute ao estar construiacuteda
com esse material primordialmente eacutetico que se supotildee a vontade
constitui real e imediatamente um sustentaacuteculo para a eacutetica em vista de
que poderia haver colocado em minha metafiacutesica o nome de eacutetica (apud
Aramayo 2001 43)
Cartwright aponta ainda na uacuteltima obra schopenhaueriana de 1851 Parerga e
paralipomena a afirmaccedilatildeo de que a ldquosua real filosofia culminou em um ponto de vista
altamente eacutetico-metafiacutesicordquo (Janaway 1999 252)
Na filosofia schopenhaueriana como vimos o indiviacuteduo humano eacute uma
expressatildeo da objetidade da vontade e seu ponto de partida por natureza eacute a satisfaccedilatildeo
manutenccedilatildeo e o prolongamento desta vontade de vida Este estado de consciecircncia onde
todos os esforccedilos estatildeo voltados para a satisfaccedilatildeo da vontade individual eacute a causa de
todo o sofrimento do mundo Aprisionado agrave perspectiva fenomecircnica do mundo o
homem natildeo percebe a unidade da vontade e age de acordo com os motivos estabelecidos
pela sua proacutepria individualidade Para este homem existe uma separaccedilatildeo profunda entre
o proacuteprio eu e os objetos do mundo
Por meio da intuiccedilatildeo que o ceacuterebro efetua a partir dos dados do sentido
e portanto mediatamente conhecemos o proacuteprio corpo como um objeto no
espaccedilo e por meio do sentido interno conhecemos a seacuterie sucessiva de nossos
desejos e atos de vontade que surgem por ocasiatildeo dos motivos externos e
finalmente conhecemos os muacuteltiplos movimentos fortes ou fracos da proacutepria
vontade aos quais todos os sentimentos internos deixam-se reconduzir Isto eacute
tudo pois o conhecer natildeo eacute ele proacuteprio de novo conhecido (Schopenhauer
2001 213)
Eacute deste estado que surge todo o comportamento humano considerado pelo filoacutesofo
como comportamento antimoral Egoiacutesmo eacute o nome dado ao resultado da influecircncia do
princiacutepio de individuaccedilatildeo sobre o comportamento dos homens Este egoiacutesmo chega ao
extremo de o homem considerar-se o centro do mundo e transformar o seu querer em
mandamento para os objetos exteriores ldquoalguns homens seriam capazes de assassinar
um outro soacute para engraxar suas botas com a gordura delerdquo (SFM 124) Nestas
58
condiccedilotildees ldquose fosse dado pois a um indiviacuteduo escolher entre a sua proacutepria aniquilaccedilatildeo
e a do mundo nem preciso dizer para onde a maioria se inclinariardquo (SFM 121) Da
forma como ocorre com o egoiacutesmo a ilusatildeo fenomecircnica daacute origem a outro sentimento
o oacutedio Estes dois egoiacutesmo e oacutedio satildeo os princiacutepios originadores de todos os viacutecios do
homem Desta leitura pessimista da natureza humana Schopenhauer retira seu conceito
perspectivista das ideacuteias de bem e mal satildeo consideradas boas ou maacutes as coisas que
agradam ou desagradam agrave vontade do indiviacuteduo ldquoPortanto tudo o que eacute favoraacutevel agrave
vontade em alguma de suas exteriorizaccedilotildees e satisfaz seus fins eacute pensado pelo conceito
bom por mais diferentes que essas coisas possam ser noutros aspectosrdquo (MVR 459)
Este estado eacute definido por Schopenhauer como ldquoafirmaccedilatildeo da vontaderdquo nele o amor-
proacuteprio Eros dita as regras de comportamento Definido o Eros enquanto
fundamentador das accedilotildees antimorais humanas sendo este surgido de uma percepccedilatildeo
subordinada ao principium individuationis entendemos o motivo pelo qual o filoacutesofo
rejeita a validade de qualquer moral baseada em argumentos abstratos
Uma moral sem fundaccedilatildeo portanto um simples moralizar natildeo pode
fazer efeito pois natildeo motiva Uma moral entretanto que motiva soacute pode fazecirc-
lo atuando sobre o amor proacuteprio O que entretanto nasce daiacute natildeo tem valor
moral algum Segue-se assim que mediante moral e conhecimento abstrato em
geral nenhuma virtude autecircntica pode fazer efeito mas esta tem de brotar do
conhecimento intuitivo o qual reconhece no outro indiviacuteduo a mesma essecircncia
que a proacutepria (MVR 468)
Desta forma em contraposiccedilatildeo ao comportamento antimoral produzido
pela ilusatildeo causada pelo principium individuationis o filoacutesofo apresenta o outro lado da
moeda a accedilatildeo moral Esta seria a accedilatildeo praticada em funccedilatildeo do bem-estar de um outro
indiviacuteduo tendo em vista que as accedilotildees praticadas em funccedilatildeo do mal-estar do outro ou
do bem e mal estar de si mesmo satildeo justamente as accedilotildees antimorais baseadas no
egoiacutesmo ou no oacutedio ldquoTodo amor que natildeo eacute compaixatildeo eacute amor-proacuteprio Amor-proacuteprio eacute
59
Eros compaixatildeo eacute Aacutegaperdquo (MVR 478) Todo ato moral eacute por consequumlecircncia um ato de
compaixatildeo ou seja um ato que eacute praticado a partir da percepccedilatildeo do sofrimento do
outro Entretanto a percepccedilatildeo do sofrimento alheio natildeo eacute dada atraveacutes do conhecimento
abstrato E somente por uma percepccedilatildeo intuitiva direta do sofrimento do outro como o
meu proacuteprio sofrimento que surge a compaixatildeo Tal percepccedilatildeo assim como a
apreciaccedilatildeo esteacutetica tem origem em uma visatildeo que vai aleacutem do principium
individuationis Desfaz-se a ilusatildeo causada por este princiacutepio de que existe em realidade
um eu e um natildeo-eu ilusatildeo essa que eacute originada pelos condicionantes do conhecimento
tempo espaccedilo e causalidade Livre do principium individuationis natildeo haacute mais
diversidade natildeo existe mais indiviacuteduo passado futuro motivaccedilotildees existe apenas o
instante presente do ser a vontade Natildeo nos vemos mais como uma vontade separada de
outras ao contraacuterio vemos nos outros a mesma vontade pela qual somos Necessaacuterio
faz-se ressaltar que este conhecimento intuitivo que demonstra a unidade da vontade
em todo indiviacuteduo eacute entendimento de verdade tatildeo profundo que supera qualquer
especulaccedilatildeo abstrata do conhecimento e por isso seu efeito eacute marcante
Para o conhecimento que vecirc atraveacutes do principium individuationis uma
vida feliz no tempo presenteada pelo acaso ou conquistada deste pela
sabedoria em meio ao sofrimento de inumeraacuteveis outros eacute apenas um sonho de
mendigo no qual eacute um rei poreacutem tem de acordar e reconhecer que era tatildeo-soacute
uma ilusatildeo fugidia aquilo que o separava do sofrimento da sua vida (MVR
452)
A experimentaccedilatildeo deste estado de consciecircncia faz-nos perceber a vida como engano
luta infinita e provoca em noacutes a renuacutencia a esta mesma vida agrave vontade de viver O
homem natildeo mais afirma a sua essecircncia mas a repudia
Agrave semelhanccedila do estado de negaccedilatildeo da vontade o proacuteprio estado de
contemplaccedilatildeo esteacutetica pressupotildee um desinteresse pelos mandamentos da vontade
60
individual um desligamento do caraacuteter egoiacutestico do sujeito empiacuterico28
Para que possa
perceber a Ideacuteia por traacutes do objeto contemplado o observador deve estar em um estado
de consciecircncia que se vecirc livre dos grilhotildees da vontade Neste estado ele eacute alccedilado para
aleacutem da individualidade torna-se puro sujeito de conhecimento Para que este estado se
manifeste eacute imprescindiacutevel natildeo estar interessado nas relaccedilotildees do objeto apreciado seja
com outros objetos seja consigo mesmo O apreciador esteacutetico natildeo se preocupa com o
ldquoonderdquo o ldquocomordquo o ldquoporquecircrdquo dos objetos Estas formas de interjeiccedilatildeo sinalizam para a
relaccedilatildeo dos objetos com o mundo O apreciador esteacutetico no momento da apreciaccedilatildeo
tem em vista somente o ldquoquerdquo do objeto transforma-se em um ldquoolho que vecircrdquo livre do
princiacutepio de individuaccedilatildeo eacute o puro sujeito de conhecimento Vemos nestes dois estados
(o esteacutetico e o compassivo) exemplos de estados de consciecircncia que por suas
caracteriacutesticas de alccedilarem o indiviacuteduo a uma anulaccedilatildeo do sofrimento fazem parte do
projeto de juventude de estabelecer uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Percebemos entatildeo que a
consideraccedilatildeo esteacutetica e a consideraccedilatildeo eacutetica possuem em comum esta caracteriacutestica da
consciecircncia de se apartar do princiacutepio de individuaccedilatildeo
No caso da trageacutedia como descreve Schopenhauer seu fim uacuteltimo eacute despertar a
compaixatildeo no apreciador Desta forma o filoacutesofo associa agrave trageacutedia um efeito singular e
adverso das demais artes ou pelo menos reconhece na trageacutedia a arte capaz de
demonstrar a semelhanccedila entre os modos de consideraccedilatildeo artiacutestico e eacutetico Ao ilustrar o
conflito das vontades no mundo atraveacutes da exposiccedilatildeo do sofrimento humano a trageacutedia
cumpre seu papel artiacutestico ao expor a ideacuteia de humanidade Aleacutem deste atributo
podemos dizer que a trageacutedia tem que cumprir ainda seu papel moral ao causar no
28
Neste ponto de semelhanccedila eacute fundamental apontar mais uma vez a heranccedila kantiana Nas palavras de
Barboza (2001 82) ldquoA negaccedilatildeo da Vontade diante da beleza realmente obedece a uma leitura do
conceito criacutetico de desinteresse Quando Kant diz que o belo eacute aquilo que satisfaz bdquosem nenhum
interesse‟ o autor de O mundo leu essa expressatildeo como equivalente da negaccedilatildeo do querer visto que
interesse e motivo satildeo conceitos intercambiaacuteveis [] e a vontade neutraliza-se desinteressa-se ou seja eacute
indeterminaacutevel por motivos na contemplaccedilatildeo da Ideacuteia do belordquo
61
espectador a renuacutencia a toda vontade O modelo exemplar da trageacutedia eacute para
Schopenhauer a trageacutedia cristatilde onde o heroacutei conscientemente abandona o querer e
conseguintemente a vida Na trageacutedia antiga havia somente a identificaccedilatildeo do
sofrimento humano e sua exposiccedilatildeo A renuacutencia agrave vontade de vida eacute caracteriacutestica das
trageacutedias posteriores ao advento cristatildeo Schopenhauer exemplifica O priacutencipe de
Calderoacuten Gretchen em Fausto A Donzela de Orleans a Noiva de Messina etc Assim
ldquotoda a exposiccedilatildeo traacutegica eacute para o espectador um chamado agrave resignaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo livre
da Vontade de vida Somente a eacutetica pode tornar tudo isso mais compreensiacutevelrdquo (MB
223) Vemos entatildeo de forma clara na teoria da trageacutedia de Schopenhauer um momento
onde ocorre a coalizatildeo dos fundamentos metafiacutesicos de sua filosofia do pessimismo
originado nestes fundamentos e da atitude eacutetica existente por traacutes de seu pensamento
25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera
Faz-se necessaacuterio aqui uma incursatildeo sobre a teoria da muacutesica de Schopenhauer
tendo em vista de que ela ocuparaacute um papel decisivo na teoria nietzscheana da trageacutedia
As relaccedilotildees que Nietzsche estabelece entre a muacutesica a vontade as palavras e
finalmente a trageacutedia satildeo delineadas como veremos pela metafiacutesica schopenhaueriana
da muacutesica No intuito de perceber estas relaccedilotildees propomos aqui um breve esboccedilo da
teoria da muacutesica na filosofia de Schopenhauer
A filosofia da muacutesica encontra seu lugar ao final do terceiro livro de MVR bem
como no capiacutetulo 39 dos complementos fechando assim as consideraccedilotildees de
Schopenhauer sobre a metafiacutesica do belo e as artes29
29
Na esteira de Lydia Goehr (Jacquette 1996 200) ressaltamos que tendo em vista a influecircncia que sua
filosofia da muacutesica exerceu sobre o pensamento artiacutestico e filosoacutefico posterior e comparada agrave dimensatildeo
de sua obra as consideraccedilotildees sobre a muacutesica ocupam um espaccedilo diminuto em sua obra
62
Para o filoacutesofo da vontade a muacutesica eacute a arte que pela natureza de seu objeto de
expressatildeo natildeo encontra lugar apropriado dentro do sistema das demais artes Estas
conforme sua competecircncia em traduzir uma determinada objetidade da vontade uma
ideacuteia satildeo classificadas hierarquicamente A muacutesica entretanto figura aleacutem desta
hierarquizaccedilatildeo pois representa o conceitualmente irrepresentaacutevel ldquoa coacutepia de um
modelo que ele mesmo nunca pode ser representado imediatamenterdquo(MVR 338) a
Vontade mesma Esta arte eacute especialmente considerada devido agrave peculiaridade uacutenica de
seu efeito esteacutetico ldquoeacute uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente
sobre o mais iacutentimo do homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele
como se fora uma linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do
mundo intuitivordquo (MVR 336) A muacutesica estaacute aleacutem da intuiccedilatildeo pois representa aquilo
que estaacute aleacutem desta forma agrave semelhanccedila das ideacuteias que satildeo objetivaccedilotildees imediatas da
vontade a muacutesica eacute tambeacutem uma destas objetivaccedilotildees representaccedilatildeo imediata da coisa
em si O que o compositor apresenta atraveacutes da muacutesica eacute a essecircncia mais iacutentima do
mundo em uma ldquolinguagem natildeo compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo
magneacutetico fornece informaccedilotildees sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito
algumrdquo (MVR 342) Por estar em um acircmbito inalcanccedilaacutevel pelo conceito a muacutesica
atraveacutes de sua linguagem arrebata o homem de forma mais marcante e direta e ateacute
mesmo a explanaccedilatildeo sobre a muacutesica estaacute condenada agrave pobreza e agrave insuficiecircncia Desta
forma o filoacutesofo se utilizaraacute de uma analogia para explanar sobre a muacutesica ie
procederaacute a uma explicaccedilatildeo da muacutesica atraveacutes de um paralelismo entre ela as ideacuteias e o
mundo enquanto objetivaccedilotildees da vontade
Esta analogia expressa atraveacutes de diversos exemplos leva em consideraccedilatildeo que
em suas duas formas de objetivaccedilatildeo (o mundo e a muacutesica) a Vontade deixa transparecer
semelhanccedilas Na muacutesica os tons mais graves aproximam-se ao que satildeo no mundo os
63
graus mais baixos de objetivaccedilatildeo da vontade quais sejam a natureza inorgacircnica A lei
da harmonia estabelece que os tons agudos satildeo originados daquele tom mais grave
fundamental Da mesma forma no mundo os corpos tecircm como fonte e sustentaacuteculo a
natureza inorgacircnica ldquoagrave partir da qual tudo se eleva e desenvolverdquo(MB 230) As vozes
intermediaacuterias da melodia que estatildeo entre o baixo fundamental e a voz condutora
correspondem no mundo aos demais graus de objetivaccedilatildeo da vontade na natureza ldquoAs
vozes mais proacuteximas do baixo correspondem aos graus mais baixos ou seja os corpos
ainda inorgacircnicos poreacutem jaacute se exteriorizando de diversas maneiras As vozes mais
elevadas por sua vez representam os reinos vegetal e animalrdquo(MB 231)
O objeto de representaccedilatildeo da muacutesica eacute a Vontade e esta por sua vez eacute
intraduziacutevel atraveacutes das palavras da configuraccedilatildeo racional pois a razatildeo natildeo pode
alcanccedilar sua profundidade Trata-se de ldquouma linguagem universal cuja
compreensibilidade eacute inata e cuja clareza ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo
(MB 228) Diante desta caracteriacutestica cognitiva a muacutesica natildeo deve se inspirar no texto
nas palavras a natildeo ser para ilustraacute-las e conceder-lhes assim significaccedilatildeo mais
profunda A muacutesica natildeo deve ser composta com base em conceitos ou em objetos e
ocorrecircncias do mundo pois trata-se de uma expressatildeo da ordem do essencial do
universal ldquoela eacute a alma mais interior dessas ocorrecircncias sem o corpordquo (MB 235) Os
objetos e situaccedilotildees do mundo satildeo manifestaccedilotildees e portanto sua representaccedilatildeo
conceitual satildeo reproduccedilotildees circunstanciais da essecircncia do mundo expressa pela muacutesica
Daiacute se compreende o fato de a muacutesica realccedilar em cada
pintura sim em cada cena da vida efetiva e do mundo o
aparecimento de uma significaccedilatildeo mais elevada e tanto mais
quanto mais anaacuteloga eacute sua melodia ao espiacuterito iacutentimo do
fenocircmeno dado A muacutesica combina com tudo em todas as
exposiccedilotildees Nada lhe pode ser estranho pois exprime a essecircncia
de todas as coisas Caso se soe uma muacutesica que combine com
alguma cena da vida humana ou da natureza destituiacuteda de
conhecimento ou com alguma accedilatildeo acontecimento ambiente ou
64
alguma imagem ndash entatildeo ela revela o sentido secreto dessa cena e eacute
seu comentaacuterio mais correto e claro (MB 235)
Esta caracteriacutestica que daacute agrave muacutesica um privileacutegio cognitivo sobre as demais formas
artiacutesticas eacute o que delineia as consideraccedilotildees do filoacutesofo sobre a oacutepera30
A oacutepera ideal eacute
portanto aquela onde o livreto estaacute para a muacutesica como um exemplo para um conceito
geral A muacutesica tem a funccedilatildeo de expor ldquoo profundo e misterioso sobre a essecircncia
iacutentimardquo daquilo que a palavra exemplifica O compositor que maior ecircxito conseguiu
neste sentido conforme o filoacutesofo foi Rossini cuja ldquomuacutesica fala tatildeo distinta e
puramente a sua linguagem PROacutePRIA visto que quase natildeo precisa de palavras e por
conseguinte provoca todo o seu efeito mesmo se executada soacute com instrumentosrdquo
(MVR 344)
Vemos entatildeo a muacutesica como a mais profunda das artes cujo efeito eacute o mais
avassalador e que portanto quando conjugada com outras formas de expressatildeo como a
oacutepera deve formar a base e orientar a sua elaboraccedilatildeo Entretanto ao contraacuterio da
trageacutedia cujo fim eacute o estiacutemulo agrave renuacutencia da vontade de viver a muacutesica segundo a
metafiacutesica exposta por Schopenhauer ldquonatildeo faz mais do que agradar a vontade de viver
jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo seus ecircxitos e ao final expressa sua
satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509)
30
ldquoAo adotar esta atitude Schopenhauer transtorna toda a tradiccedilatildeo jaacute secular que havia afirmado natildeo
poucas vezes desde os tempos do nascimento da oacutepera o predomiacutenio da palavra sobre a muacutesica e em
consequumlecircncia a subordinaccedilatildeo desta uacuteltima agrave primeirardquo (Fubini 1988 289)
65
3 A teoria da trageacutedia do Jovem Nietzsche
Debalde espreitamos por uma raiz
vigorosamente ramificada por um pedaccedilo
de terra sadia e feacutertil por toda parte poacute
areia rigidez consunccedilatildeo Aqui um
solitaacuterio desconsolado natildeo poderia escolher
melhor siacutembolo do que o Cavaleiro com a
Morte e o Diabo como Duumlrer o desenhou o
cavaleiro arnesado com o olhar duro
brocircnzeo que sabe tomar o seu caminho
assustador imperturbado por seus
hediondos companheiros e natildeo obstante
desesperanccedilado sozinho com o seu corcel e
o seu catildeo Um tal cavaleiro duumlreriano foi
nosso Schopenhauer faltava-lhe qualquer
esperanccedila mas queria a verdade Natildeo haacute
quem se lhe iguale
(Nietzsche)
Neste capiacutetulo procuraremos apontar primeiramente o modo pelo qual se deu o
encontro entre Nietzsche e a filosofia de Schopenhauer Em um segundo momento
percorreremos o desenvolvimento histoacuterico das produccedilotildees nietzscheanas que
culminaram com a publicaccedilatildeo da obra que caracteriza o primeiro periacuteodo do filoacutesofo
qual seja O nascimento da trageacutedia a partir do espiacuterito da muacutesica Concluiremos entatildeo
apresentando um esboccedilo desta obra dando ecircnfase em todos os momentos aos
66
elementos que caracterizam sua teoria da trageacutedia especialmente agravequeles relacionados agrave
metafiacutesica schopenhaueriana da vontade
31 Schopenhauer e o jovem Nietzsche uma breve contextualizaccedilatildeo histoacuterica
Foram nos anos de universidade em Leipzig que Nietzsche se deparou com a
filosofia de Schopenhauer Este periacuteodo entre os anos de 1865 e 1869 eacute especialmente
importante devido ao fato de que nele podemos assistir ao surgimento de alguns
aspectos fundamentais ao projeto filosoacutefico de Nietzsche Janz descreve este periacuteodo
como aquele em que o filoacutesofo estabeleceu ldquoseus encontros espirituais determinantes a
partir dos quais se defrontou consigo mesmo e com sua tarefardquo(1987 151)
O primeiro contato do jovem Nietzsche com o mundo schopenhaueriano deu-se
em meados de outubro de 1865 pouco tempo apoacutes sua chegada a Leipzig O
arrebatamento causado no jovem estudante de filologia pelo encontro com a filosofia
schopenhaueriana eacute descrito por ele apoacutes dois anos da seguinte maneira
Sentia-me naquela eacutepoca desorientado solitaacuterio sem
princiacutepios sem esperanccedilas inconsolado e com algumas
experiecircncias dolorosas e decepccedilotildees Construir uma vida proacutepria e
adequada era para mim uma aspiraccedilatildeo que me ocupava da manhatilde
ateacute a noite No feliz apartamento em que vivia procurava
concentrar-me a mergulhar em mim mesmo e quando me
encontrava com amigos estes eram sempre Mushacke e Von
Gersdorff os quais por sua parte alentavam objetivos muito
semelhantes aos meus Creio que natildeo seraacute difiacutecil imaginar a
impressatildeo que nesta situaccedilatildeo me causou a leitura da obra
principal de Schopenhauer Encontrei um dia este livro no sebo do
velho Rohm Ignorando tudo sobre ele o tomei em minhas matildeos e
me pus a folheaacute-lo Natildeo sei que democircnio me sussurrou bdquoleve este
livro para a casa‟ Aconteceu de compraacute-lo apesar do meu usual
costume de natildeo me precipitar na compra de livros Uma vez em
casa num canto do sofaacute me lancei sobre o tesouro receacutem
adquirido e comecei a deixar que aquele gecircnio eneacutergico e sombrio
influiacutesse sobre mim Em cada linha sua gritava a renuacutencia
negaccedilatildeo resignaccedilatildeo tinha diante de mim um espelho no qual
podia contemplar o mundo a vida e meu proacuteprio acircnimo com uma
67
grandeza deprimente Um espelho desde o qual o olho solar da
arte me mirava desde sua absoluta falta de interesse Vi
enfermidade e cura desterro e refuacutegio inferno e paraiacuteso A
necessidade de autoconhecimento inclusive de auto-
experimentaccedilatildeo apoderou-se de mim com forccedila indomaacutevel
provas daquela mutaccedilatildeo profunda satildeo hoje todavia para mim as
paacuteginas desassossegadas e melancoacutelicas do diaacuterio que agravequela
eacutepoca escrevi com suas auto-acusaccedilotildees inuacuteteis e sua desesperada
busca de salvaccedilatildeo e reconstruccedilatildeo do inteiro nuacutecleo humano Na
medida em que propus a submeter todas as minhas caracteriacutesticas
e aspiraccedilotildees ao tribunal de uma sombria auto-depreciaccedilatildeo minha
atitude estava cheia de amargura possuiacuteda de um oacutedio injusto e
desenfreado contra mim mesmo Nem sequer renunciei agraves
mortificaccedilotildees corporais Obriguei-me com efeito durante
quatorze dias seguidos a deitar-me agraves duas da noite e acordar agraves
seis da manhatilde Uma excitaccedilatildeo nervosa muito singular se apoderou
assim de mim e quem sabe ateacute que grau de loucura haveria
chegado se natildeo tivesse modificado frente agravequele estado de
acircnimo os atrativos da vida da vaidade e o imperativo de retornar
a meus estudos regulares (conforme citaccedilatildeo de Janz 1987 158)
Da citaccedilatildeo podemos inferir a mudanccedila de acircnimo que o encontro com
Schopenhauer provocou A partir daquele momento diversas correspondecircncias datildeo-nos
ainda informaccedilotildees do impacto que a filosofia de Schopenhauer provocou na concepccedilatildeo
de mundo do jovem estudante Em algumas destas correspondecircncias vemos transparecer
a influecircncia atraveacutes da frequumlente utilizaccedilatildeo de um vocabulaacuterio schopenhaueriano bem
como das ideacuteias nelas expressas Assim acontece em carta enviada agrave sua matildee e irmatilde
datada de 5 de novembro de 1865 onde ao discorrer acerca da frivolidade da vida
humana o jovem Nietzsche conclui utilizando-se dos argumentos propostos pela eacutetica
schopenhaueriana
Existem dois caminhos ou se esforccedila e se acostuma a ser
o mais limitado que se possa e uma vez que se reduz o maacuteximo
possiacutevel a luz do espiacuterito se busque bens de fortuna e se viva com
os prazeres do mundo ou por outro lado se sabe que a vida eacute
miseraacutevel se sabe que somos seus escravos tanto mais quanto
mais procuramos dela gozar e por tanto se desprende dos bens da
vida exercita a sobriedade e se eacute austero consigo mesmo e cordial
com os demais ndash e isto porque sente compaixatildeo pelos
companheiros de miseacuteria ndash em uma palavra se vive de acordo
68
com as rigorosas exigecircncias do cristianismo primitivo (OC
470)
Vemos ainda em carta a Mushacke em 12 de julho de 1866 o impacto que a
interpretaccedilatildeo schopenhaueriana pessimista de mundo causou em Nietzsche ldquoDesde que
Schopenhauer nos retirou dos olhos a venda do otimismo as coisas satildeo percebidas
mais agudamente A vida eacute mais interessante ainda que mais feiardquo (conforme citaccedilatildeo
de Janz 1987 172) Percebemos tambeacutem a linguagem schopenhaueriana na descriccedilatildeo
dos momentos de contemplaccedilatildeo Eacute o caso da carta datada de 07 de abril de 1866 a
Gersdorf onde Nietzsche descreve seu estado que nos remeteraacute agrave contemplaccedilatildeo
artiacutestica na filosofia de Schopenhauer ao discorrer sobre os dias de veratildeo ldquo[] a
natureza se faz perfeita e noacutes tambeacutem entatildeo nos sentimos livres do poderio da vontade
sempre alerta e somos olho puro intuitivo desinteressadordquo (OC 472)
Estas influecircncias nortearam de forma definitiva as produccedilotildees acadecircmicas de
Nietzsche mesmos suas pesquisas filoloacutegicas A concepccedilatildeo traacutegica do mundo tornou-se
um feixe condutor para as reflexotildees do jovem filoacutelogo Seus companheiros no estudo da
obra de Schopenhauer eram Gersdorff e Mushacke Em carta agrave sua matildee de 01 de
fevereiro de 1866 Nietzsche deixa saber sobre a frequumlecircncia dos estudos ldquoCom
Gersdorff me encontro uma noite por semana para ler grego a cada duas semanas me
reuacuteno com ele e com Mushacke e nos entregamos a Schopenhauer Este filoacutesofo ocupa
uma posiccedilatildeo importante em meus pensamentos e estudos e meu respeito por ele cresce
incomparavelmenterdquo (OC 471) Se o conteuacutedo da filosofia schopenhaueriana foi
absorvido intensamente pelo jovem Nietzsche como podemos ver a partir dos trechos
transcritos acima a forma estiliacutestica tambeacutem se configura como preocupaccedilatildeo Em um
periacuteodo onde as pesquisas acadecircmicas exigiam o esforccedilo da escrita ali tambeacutem a
autoridade das regras schopenhauerianas exibia sua feiccedilatildeo Eacute tambeacutem em uma carta a
69
Gersdorff datada de 06 de abril de 1867 onde Nietzsche expotildee sua preocupaccedilatildeo com o
estilo
Nestas divagaccedilotildees quero redigir meu trabalho sobre as
fontes de Dioacutegenes Laeacutercio e estou todavia no iniacutecio Para seu
regozijo confessarei que o que mais me daacute trabalho eacute meu estilo
em alematildeo Agora me caem os veacuteus dos olhos e vejo que
durante muito tempo vivi em estado de inocecircncia estiliacutestica O
imperativo categoacuterico bdquodeves escrever‟ me foi despertado[] nos
ouvidos me soavam todos os preceitos estiliacutesticos de Lessing de
Lichtenberg e de Schopenhauer Meu uacutenico consolo eacute que estas
trecircs autoridades afirmavam unanimemente que eacute difiacutecil escrever
bem que por natureza ningueacutem tem um bom estilo e que haacute que
trabalhar e trabalhar para consegui-lo (OC 476)
Entretanto apesar do profundo arrebatamento causado pela filosofia de
Schopenhauer que fez com que o universo das preocupaccedilotildees do entatildeo jovem Nietzsche
se fundamentasse nos pressupostos da metafiacutesica schopenhaueriana outros elementos
tambeacutem fundamentais para o pensamento futuro do filoacutesofo foram tambeacutem neste
periacuteodo despertados Como apontam Dias (2009 42) Janaway (2007 16) e Lopes
(2008 27) jaacute neste periacuteodo que podemos tratar como um periacuteodo de despertar para o
pensamento filosoacutefico encontraacutevamos os elementos que a partir de Humano demasiado
humano conformaratildeo a criacutetica nietzscheana agrave filosofia de Schopenhauer Os
comentadores citados chamam a atenccedilatildeo para o fato de que embora nas obras
publicadas de Nietzsche possamos assistir a criacuteticas diretas a Schopenhauer somente
apoacutes Humano demasiado humano tais criacuteticas agrave filosofia schopenhaueriana surgiram
em um momento imediatamente posterior agrave descoberta da metafiacutesica da vontade Rosa
Maria Dias chama a atenccedilatildeo para os fragmentos poacutestumos e para a correspondecircncia que
agrave partir de 1867 trazem algumas criacuteticas agrave metafiacutesica da vontade Rogeacuterio Lopes e
Cristopher Janaway apontam que algumas destas criacuteticas estatildeo embasadas nas leituras
que o jovem Nietzsche fez de Friedrich A Lange Rudolf Haym Kuno Fischer dentre
outros Tais criacuteticas contudo natildeo afastaram o jovem Nietzsche do discipulado
70
schopenhaueriano mas transformaram sua aceitaccedilatildeo do sistema da vontade No lugar de
uma defesa da consistecircncia loacutegica do sistema Nietzsche passou a adotar uma postura de
defesa da bdquonatureza edificante‟ e preponderantemente artiacutestica deste sistema Exemplos
desta postura podem ser encontrados tambeacutem na correspondecircncia daquele periacuteodo
Para escrever uma apologia a Schopenhauer eu tenho
unicamente que considerar o fato de que olho esta vida livre e
bravamente diante do fato de que encontrei um suporte para me
apoiar obviamente que isto natildeo eacute mais que uma apologia
totalmente individual Mas eacute como as coisas satildeo Se algueacutem
deseja refutar Schopenhauer para mim atraveacutes de argumentos
racionais murmuro em seu ouvido bdquoporeacutem meu amigo visotildees de
mundo natildeo satildeo criadas nem destruiacutedas pela loacutegica‟ (carta a
Deussen Outubro-Novembro de 1867 citada por Janaway
(200718))
Ou ainda em carta a Gersdorff onde apoacutes apresentar a criacutetica de Lange agrave metafiacutesica da
vontade Nietzsche conclui contra Haym ainda com os argumentos de Lange
Natildeo apenas a verdadeira essecircncia das coisas a coisa em si
eacute desconhecida para noacutes tambeacutem seu conceito eacute nada mais nada
menos que o uacuteltimo rebento de um contraste condicionado por
nossa organizaccedilatildeo do qual natildeo sabemos se conserva algum
significado fora de nossa experiecircncia Disso resulta pensa Lange
que os filoacutesofos natildeo devem ser importunados na medida em que
nos edificam A arte eacute livre tambeacutem na regiatildeo dos conceitos
Quem pretenderia refutar uma frase de Beethoven e acusar de erro
uma Madonna de Rafael Como vocecirc pode perceber o nosso
Schopenhauer resiste mesmo a este mais rigoroso ponto de vista
criacutetico ele se torna quase ainda mais valioso para noacutes Se filosofia
eacute arte entatildeo que Haym se anule diante de Schopenhauer se a
filosofia deve edificar entatildeo eu pelo menos natildeo conheccedilo nenhum
filoacutesofo que edifique mais do que nosso Schopenhauer (apud
Lopes 2008 86-87)
Vimos ateacute entatildeo que a descoberta de Schopenhauer provocou no jovem
estudante de filologia transformou sua forma de perceber o mundo e o influenciou de
forma definitiva a ponto de fazer com que Nietzsche se definisse como um seguidor e
divulgador da obra schopenhaueriana Contudo eacute no fim de seus anos de estudo em
Leipzig que o disciacutepulo de Schopenhauer iraacute se defrontar com a personalidade que lhe
71
reforccedilaraacute de forma ainda mais contundente o selo da rotunda schopenhaueriana
Richard Wagner
Foi atraveacutes de seu amigo Brockhaus cuja esposa era irmatilde do muacutesico que em
novembro de 1868 Nietzsche encontrou-se pela primeira vez com Wagner A partir
daquele encontro se estabeleceria um relacionamento que de uma forma ou de outra
marcaraacute Nietzsche pelo resto de sua vida Em uma carta a seu amigo Erwin Rohde
Nietzsche descreve o primeiro encontro e sua perplexidade ao encontrar em Wagner um
admirador de Schopenhauer ldquo[]mantive com ele uma longa conversa sobre
Schopenhauer Ah Compreenderaacutes minha felicidade em ouvir-lhe falar com um
entusiasmo completamente indescritiacutevel ao qual ele agradecia como Schopenhauer
era o uacutenico filoacutesofo que havia compreendido a essecircncia da muacutesicardquo (Correspondecircncia
2007 21) A impressatildeo deste encontro eacute tambeacutem claramente visiacutevel atraveacutes de
correspondecircncia endereccedilada ao proacuteprio Wagner em maio de 1869 ldquoVeneradiacutessimo
senhor quanto tempo tive a intenccedilatildeo de lhe manifestar sem nenhuma timidez o grau de
gratidatildeo que sinto em relaccedilatildeo ao senhor pois realmente os melhores e mais elevados
momentos de minha vida se ligam ao seu nome e eu soacute conheccedilo mais um homem aleacutem
disso seu grande irmatildeo em espiacuterito Arthur Schopenhauer em quem penso com a
mesma veneraccedilatildeo ateacute senso religiosordquo (Correspondecircncia 2007 56) Como podemos
ver a pessoa de Wagner eacute associada agrave de Schopenhauer Esta associaccedilatildeo tornar-se-aacute
uma constante e poderaacute ser identificada ainda na fase tardia onde as criacuteticas a estes
pensadores e ao que eles entatildeo representavam se daraacute de forma inter-relacionada Este
primeiro encontro com Wagner conforme Janz (1987 22) foi um dos principais
motivos que levaram Nietzsche a aceitar em detrimento de outros planos que
formulava assumir a caacutetedra de filologia em Basel A proximidade de Tribschen
residecircncia dos Wagner e a possibilidade de uma convivecircncia com o muacutesico o
72
inspiraram E assim aconteceu Ao mudar-se para Basel pocircde desfrutar de uma
convivecircncia constante com o casal Wagner Desde a chegada de Nietzsche ateacute a
mudanccedila de Wagner em 1872 encontravam-se com muita frequumlecircncia e os assuntos que
pautavam tais encontros eram amiuacutede arte muacutesica a literatura claacutessica e a filosofia de
Schopenhauer Wagner tornar-se-ia para Nietzsche a personificaccedilatildeo do gecircnio
schopenhaueriano aquele capaz de atraveacutes da muacutesica expor a essecircncia do mundo No
projeto wagneriano de ldquoarte totalrdquo Nietzsche pocircde vislumbrar a uniatildeo entre muacutesica e
filosofia e satisfazer assim em certa medida as expectativas oriundas da metafiacutesica da
vontade
32 O projeto subjacente ao Nascimento da Trageacutedia
Eacute famosa a passagem onde Nietzsche em carta a Deussen datada de janeiro de
1870 informa sobre seu estado de espiacuterito ldquo Ciecircncia arte e filosofia crescem agora
juntas em mim e de tal modo que um dia haverei de parir centaurosrdquo (Janz 1981 66)
Esta afirmaccedilatildeo eacute ilustrativa no que se refere ao ambiente onde o Nascimento da trageacutedia
foi gerado Podemos identificar claramente as figuras por detraacutes dos termos filosofia
arte e ciecircncia satildeo elas Schopenhauer Wagner e a filologia claacutessica Neste periacuteodo
Nietzsche entatildeo jovem professor de filologia estava imbuiacutedo pela pretensatildeo de poder
unir os estudos filoloacutegicos aos filosoacuteficos Sua preleccedilatildeo inicial Homero e a filologia
claacutessica em Basel nos daacute uma amostra desta pretensatildeo Ali podemos assistir a uma
aproximaccedilatildeo entre filologia e filosofia atraveacutes da proposta de uma leitura filosoacutefica do
mundo antigo ldquoCom isto quero expressar que toda atividade filoloacutegica deve estar
impregnada de uma concepccedilatildeo filosoacutefica do mundo na qual todo o particular e singular
seja visto como algo sem proveito e soacute permaneccedila de peacute a unidade do todordquo (OC 26)
73
Sua escolha por trilhar caminhos mais proacuteximos agrave filosofia pode tambeacutem ser observada
pela tentativa frustrada de ocupar uma cadeira desta disciplina que se mostrou livre em
janeiro de 1871 Se por um lado podemos diagnosticar certa decepccedilatildeo e ateacute um
determinado desacircnimo na atividade acadecircmica por outro lado os laccedilos com os Wagner
se estreitavam cada vez mais No refuacutegio de Tribschen sob a aura de Richard Wagner
Nietzsche discorria sobre o mundo grego enquanto modelo de cultura e ouvia os planos
wagnerianos sobre seu projeto de uma obra de arte total Como pano de fundo destas
discussotildees a metafiacutesica da muacutesica schopenhaueriana e sua concepccedilatildeo traacutegica do mundo
Eacute em torno destes eixos formadores que vemos se materializar a primeira publicaccedilatildeo de
Nietzsche
O desenvolvimento das ideacuteias que formaratildeo a obra contudo se deu de forma
gradual Ao longo do periacuteodo compreendido entre a chegada de Nietzsche a Basel e a
publicaccedilatildeo de seu livro determinados trabalhos deixam transparecer o delineamento de
algumas das ideacuteias centrais da obra Satildeo eles O drama musical grego Soacutecrates e a
trageacutedia A visatildeo dionisiacuteaca do mundo e Introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles31
Em o drama musical grego conferecircncia puacuteblica datada de janeiro de 1870
Nietzsche efetua uma comparaccedilatildeo entre a arte traacutegica da antiguidade e as oacuteperas
modernas Estas de acordo com o filoacutesofo satildeo uma imperfeita ldquocaricatura do drama
musical antigordquo (VD 48) Muacutesica pintura escultura e poesia formavam um todo na
arte traacutegica da antiguidade Nas artes modernas por sua vez as formas artiacutesticas satildeo
fragmentadas fato que dificulta o entendimento da trageacutedia grega e que causaria
espanto ao apreciador de arte moderno A muacutesica teria para a trageacutedia antiga uma
31
Como ressaltam M S Silk e J P Stern em sua obra Nietzsche on tragedy (1981 59) o nascimento da
trageacutedia eacute composto de forma estrutural pelos conceitos encontrados nestes trabalhos O iniacutecio do livro
(sectsect1-10) eacute substancialmente baseado no ensaio a visatildeo dionisiacuteaca do mundo enquanto a sequumlecircncia
composta pelos paraacutegrafos 5 e 6 estaacute mais proacutexima da introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles O trecho
composto pelos paraacutegrafos 11 a 14 pode ser derivado diretamente da leitura Soacutecrates e a trageacutedia O resto
do livro eacute formado por uma amaacutelgama destes escritos Partes dispersas ainda satildeo formadas pelo ensaio do
drama musical grego
74
importacircncia capital como elemento intensificador de seu efeito Podemos ver a intenccedilatildeo
por traacutes da anaacutelise nietzscheana da trageacutedia antiga em comparaccedilatildeo agrave opera Ao final da
conferecircncia no elogio que confere a Wagner o tiacutetulo de ldquoatual reformador da arterdquo bem
como na descriccedilatildeo de seu projeto de arte total retratado como um acontecimento que jaacute
teve lugar na trageacutedia da antiguidade claacutessica Nietzsche deixa claro seu engajamento ao
projeto wagneriano
No mecircs seguinte ao da citada conferecircncia uma segunda intitulada Soacutecrates e a
trageacutedia foi proferida por Nietzsche O assunto em pauta era a morte repentina da
trageacutedia grega Esta morte teria ocorrido pelas matildeos de Euriacutepides apoacutes uma decadecircncia
iniciada nos uacuteltimos periacuteodos das produccedilotildees de Eacutesquilo passando por Soacutefocles e
culminando com o advento da comeacutedia Tal decadecircncia teria sido provocada pela saiacuteda
de cena da muacutesica que de forma progressiva foi substituiacuteda pelo diaacutelogo racionalista
Soacutecrates ocupa aqui um lugar importante Eacute sua influecircncia sobre Euriacutepides que
transforma de uma forma definitiva a arte instintivamente musical da trageacutedia em uma
manifestaccedilatildeo do discurso eacutetico racionalista Esta ldquoesteacutetica racionalista e conscienterdquo
pode ser identificada no proacutelogo euripidiano e na inserccedilatildeo do deus ex machina
enquanto agentes de racionalizaccedilatildeo da obra artiacutestica A trageacutedia de Euriacutepides teria
assumido assim os pressupostos do racionalismo socraacuteticos ldquoVirtude eacute saber peca-se
somente por ignoracircncia O virtuoso eacute felizrdquo (VD 90) Esta assunccedilatildeo que liga a virtude
ao saber impotildee agrave trageacutedia um caraacuteter eacutetico alheio agrave sua caracteriacutestica puramente
esteacutetica O elemento culpa na dialeacutetica socraacutetica toma o lugar que era ocupado pela
compaixatildeo Jaacute podemos perceber nesta conferecircncia o esboccedilo da dicotomia que mais
tarde seraacute ilustrada atraveacutes dos deuses Apolo e Dioniso Os pares formadores da
dicotomia satildeo aqui expressos pela separaccedilatildeo entre instinto e razatildeo muacutesica e discurso
pessimismo e otimismo arte e ciecircncia
75
Temos a primeira referecircncia agrave arte dionisiacuteaca como impulso formador da
trageacutedia e sua contraposiccedilatildeo agrave arte apoliacutenea nas aulas proferidas por Nietzsche no veratildeo
daquele mesmo ano Neste curso sobre a trageacutedia de Soacutefocles do qual temos a
introduccedilatildeo podemos ver o esforccedilo de Nietzsche em caracterizar e apontar as
peculiaridades da trageacutedia da antiguidade que a tornam um fenocircmeno uacutenico em
comparaccedilatildeo agraves trageacutedias modernas Tal discussatildeo demonstraraacute pelos aspectos ali
expostos a aproximaccedilatildeo de Nietzsche com autores do periacuteodo claacutessico alematildeo e
sobretudo da chamada querela entre antigos e modernos Vemos claramente a influecircncia
de Schiller e F A Schlegel em algumas das definiccedilotildees adotadas por Nietzsche
No texto denominado A visatildeo dionisiacuteaca do mundo jaacute podemos assistir a um
desenvolvimento das duas pulsotildees artiacutesticas que satildeo o nuacutecleo da interpretaccedilatildeo
nietzscheana da trageacutedia O apoliacuteneo e o dionisiacuteaco satildeo ali explicados no acircmbito de seu
surgimento no mundo helecircnico e simbolizam a uniatildeo entre verdade e beleza na forma de
arte traacutegica Sua descriccedilatildeo como veremos abaixo estaacute permeada de conceitos retirados
da filosofia schopenhaueriana que vatildeo desde a biparticcedilatildeo do mundo entre verdade e
aparecircncia perpassam as noccedilotildees de belo e sublime e apontam a trageacutedia e a muacutesica como
forma de arte superiores
Em janeiro de 1872 Nietzsche daacute luz a seu ldquoCentaurordquo sob o nome O nascimento
da trageacutedia atraveacutes do espiacuterito da muacutesica Em carta a Rohde datada de 23 de novembro
de 1871 podemos notar atraveacutes da ansiosa expectativa nietzscheana a amaacutelgama
formadora da obra ldquo Temo sempre que os filoacutelogos natildeo o queiram ler por causa da
muacutesica os muacutesicos por causa da filologia e os filoacutesofos por causa da muacutesica e da
filologia e sinto logo medo e compaixatildeo de mim mesmordquo (Correspondecircncia 2007 237)
33 A teoria da trageacutedia publicada
Como escopo geral da primeira obra de Nietzsche podemos dizer na esteira de
Silk e de Stern (1981 52) que ela se propunha a esclarecer o problema do nascimento e
76
da morte da trageacutedia helecircnica Trageacutedia que por sua vez era a expressatildeo artiacutestica que
simbolizava um problema vital o de que sob uma superfiacutecie bela podiacuteamos ter acesso agrave
terriacutevel profundidade do ser Tal forma de arte poderia novamente vir agrave luz por uma
geraccedilatildeo criativa que ao combater a superficialidade moderna que reinava no mundo
germacircnico poderia produzir o renascimento moderno do mundo Helecircnico
Em sua essecircncia o nascimento da trageacutedia aponta para as divindades Apolo e
Dioniacutesio como ldquorepresentantes vivosrdquo de princiacutepios diacutespares que irrompem da proacutepria
natureza e que ao serem conciliados de certa forma tornaram possiacutevel que atraveacutes dos
atritos de tal uniatildeo a trageacutedia grega despontasse como manifestaccedilatildeo artiacutestica exemplar
do sublime Em linhas gerais a arte do ldquofigurador plaacutesticordquo estaria entatildeo associada ao
deus Apolo enquanto a arte ldquonatildeo figuradardquo a da muacutesica estaria associada ao deus
Dioniacutesio O apoliacuteneo eacute um impulso da vontade grega que ao almejar a vida a apresenta
transfiguradamente como um belo sonho plasmado no mundo dos deuses oliacutempicos O
princiacutepio apoliacuteneo seria aquele que estabeleceria a ordem a beleza estaacutetica e a clareza
dos limites O dionisiacuteaco eacute oriundo das festas do oriente e seu efeito eacute comparado ao da
embriaguecircs A ele cabe a sabedoria profunda da essecircncia da vida lugar do acaso do
impermanente do horriacutevel e do sofrimento A Apolo eacute facultado tecer o veacuteu que
encobre a sabedoria dionisiacuteaca e torna a vida suportaacutevel atraveacutes da ilusatildeo do sonho
Assim segundo Nietzsche o desenvolvimento contiacutenuo da arte estaacute vinculado agrave
duplicidade dos princiacutepios apoliacuteneo e dionisiacuteaco Perfazendo um caminho histoacuterico da
cultura grega podemos notar uma sobreposiccedilatildeo intermitente entre os impulsos divinos
Temos momentos onde o impulso apoliacuteneo se mostrou dominante e outros onde
Dioniacutesio recupera seu predomiacutenio O mundo oliacutempico homeacuterico com sua arte eacutepica e
sua escultura do periacuteodo doacuterico nascem a partir de uma necessidade de redenccedilatildeo para a
realidade de horror e sofrimento que o povo helecircnico presenciava Em substituiccedilatildeo ao
77
mundo titacircnico temos o mundo dos deuses oliacutempicos exemplificadores de uma
existecircncia divinizada que exalta a vida Nas palavras de Nietzsche ldquoo grego conheceu
e sentiu os temores e os horrores do existir para que lhe fosse possiacutevel de algum modo
viver teve de colocar ali entre ele e a vida a resplendente criaccedilatildeo oniacuterica dos deuses
oliacutempicosrdquo (NT 36) Entretanto a sabedoria dionisiacuteaca portadora da visatildeo abismal do
ser natildeo pocircde ser contida por muito tempo e a muacutesica veiacuteculo da uniatildeo orgiaacutestica aos
poucos foi se infiltrando no mundo construiacutedo pelo divino Apolo Os gregos foram se
tornando conscientes de seu estado sonambuacutelico que sob a graccedila do deus Apolo enleva
e transporta pela extraordinaacuteria beleza natural ou esteacutetica Em um estado semelhante ao
do indiviacuteduo que restabelecido em suas forccedilas pelo efeito renovador do sono ao findar
de uma noite comeccedila a ouvir os sons a sua volta e aos poucos vai se despertando da
mesma forma os gregos comeccedilaram novamente a ouvir o sussurro do Sileno
companheiro de Dioniacutesio ldquoo melhor de tudo eacute para ti inteiramente inatingiacutevel natildeo ter
nascido e natildeo ser nada ser Depois disso poreacutem o melhor para ti eacute logo morrerrdquo
(NT 36) O artista que representa este retorno do dionisiacuteaco com a mesma envergadura
com que Homero representa as forccedilas apoliacuteneas eacute Arquiacuteloco Tomando-o como modelo
do gecircnio liacuterico Nietzsche faz uma descriccedilatildeo de seu processo de criaccedilatildeo Conforme a
metafiacutesica esteacutetica adotada por Nietzsche - que mais agrave frente veremos ser retirada da
esteacutetica schopenhaueriana - toda arte tem que ser objetiva livre dos interesses
individuais Nesta situaccedilatildeo a liacuterica que tem como objeto o eu do poeta seus desejos e
emoccedilotildees natildeo seria uma forma de arte Entretanto atraveacutes de uma descriccedilatildeo que Schiller
faz da inspiraccedilatildeo poeacutetica Nietzsche aponta o caminho para percebermos a liacuterica como
obra de arte e portanto objetivamente Conforme a passagem de Schiller citada por
Nietzsche (NT 44) ldquoo sentimento se me apresenta no comeccedilo sem um objeto claro e
determinado este soacute se forma mais tarde Uma certa disposiccedilatildeo musical de espiacuterito
78
vem primeiro e somente depois eacute que se segue em mim a ideacuteia poeacuteticardquo Desta forma
Arquiacuteloco em seu processo criativo a princiacutepio entraria em um estado de consciecircncia
ou de criaccedilatildeo onde renunciaria agrave sua individualidade e dionisiacamente participaria do
uno-primordial ldquoabismo do serrdquo estado que por sua vez materializa-se atraveacutes da
representaccedilatildeo musical A muacutesica assim produzida seraacute condiccedilatildeo para o surgimento da
inspiraccedilatildeo que a posteriori daraacute nascimento atraveacutes da aplicaccedilatildeo das formas
apoliacuteneas agrave poesia liacuterica geacutermen da trageacutedia e dos ditirambos dramaacuteticos Esta uniatildeo da
poesia liacuterica com a muacutesica eacute uma expressatildeo sinteacutetica da relaccedilatildeo dos deuses Apolo e
Dioniacutesio Eacute no quinto capiacutetulo de sua obra que Nietzsche iraacute tratar da poesia liacuterica
Neste capiacutetulo o filoacutesofo se distancia de Schopenhauer em sua interpretaccedilatildeo do
fenocircmeno liacuterico Para Schopenhauer na citaccedilatildeo reproduzida por Nietzsche (NT 46) a
liacuterica eacute produzida atraveacutes de uma percepccedilatildeo da consciecircncia onde os estados da vontade
individualizada se alternam com o conhecimento objetivo Como vimos o poeta liacuterico
assistiria ao jogo do eu em sua afetaccedilatildeo emocional e descreveria este estado atraveacutes de
sua poesia Nietzsche ao descrever a liacuterica utiliza-se da teoria da muacutesica
schopenhaueriana qual seja o poeta liacuterico produz primeiramente a muacutesica como forma
geral de expressatildeo da vontade mesma e desta produccedilatildeo gera posteriormente o texto que
se torna um exemplificador do evento musical sua forma plaacutestica objetiva A muacutesica eacute
a aparecircncia da vontade e as imagens apoliacuteneas que dela se originaram satildeo conforme seu
espiacuterito A imagem e o conceito satildeo desta forma na liacuterica originados a partir da
muacutesica
Tem-se portanto na trageacutedia grega uma relaccedilatildeo de interdependecircncia que evoca
um aparente paradoxo ndash ou seja ao lado da necessidade esteacutetica da beleza Apolo exige
dos seus a medida (limites fronteiras do indiviacuteduo presentes no ldquonada em demasiardquo) e
o auto-conhecimento necessaacuterio para determinaacute-la (ldquoconhece-te a ti mesmordquo) o
79
desmedido os excessos o dionisiacuteaco seriam identificados pelo apoliacuteneo como
democircnios de uma era preacute-apoliacutenea era dos Titatildes reminiscecircncias de barbarismo O
paradoxo estaacute em que para que o comedimento apoliacuteneo possa existir o desmedido
dionisiacuteaco faz-se necessaacuterio (na linguagem de Nietzsche como ldquosubstratordquo) assim
como para que o desmedido dionisiacuteaco possa existir faz-se necessaacuterio a existecircncia do
comedido do apoliacuteneo Natildeo obstante a trageacutedia grega depende da conjugaccedilatildeo destes
dois princiacutepios para existir ndash indo aleacutem poder-se-ia dizer que a proacutepria muacutesica compotildee
o princiacutepio primeiro que possibilita o surgimento da trageacutedia no jogo das formas
apoliacuteneo A trageacutedia eacute entatildeo definida como ldquoo coro dionisiacuteaco a descarregar-se sempre
de novo em um mundo de imagens apoliacuteneordquo (NT 60)
Em seu iniacutecio a trageacutedia grega era representada pelo coro traacutegico Este coro natildeo
era uma ldquorepresentaccedilatildeo constitucional do povordquo muito menos um espectador ideal
como o queria August Schlegel Nietzsche acompanha Schiller na definiccedilatildeo de que o
coro cria um terreno ideal para a manifestaccedilatildeo da arte O efeito da trageacutedia eacute a
manifestaccedilatildeo de um estado de unidade que transporta ao abismo do ser O coro eacute a
manifestaccedilatildeo deste sentimento da consciecircncia de que por traacutes da vida cotidiana haacute uma
realidade ldquoindestrutivelmente poderosa e cheia de alegriardquo (NT 55) Este eacute o consolo
metafiacutesico propiciado pela arte traacutegica Ao retornarmos deste estado o cotidiano nos
causa asco nojo Natildeo eacute possiacutevel interpretar mais o papel da vida comum A vida soacute
passa a se justificar atraveacutes da arte Perceba-se aiacute que o coro possui um papel
fundamental no processo O coro atua como impulso artiacutestico dionisiacuteaco em
contraposiccedilatildeo agrave forma apoliacutenea ou seja agraves imagens e agrave beleza plaacutestica Assim o
indiviacuteduo atraveacutes do coro tem para si revelado aquele substrato dionisiacuteaco encoberto
pela beleza e comedimento apoliacuteneos isto eacute ao indiviacuteduo era possiacutevel submergir na
80
torrente dionisiacuteaca do auto-esquecimento permitindo-se pocircr de lado os preceitos
apoliacuteneos
E foi assim que em toda parte onde o dionisiacuteaco penetrou o apoliacuteneo
foi suspenso e aniquilado Mas eacute igualmente certo que laacute onde o primeiro
assalto foi suportado o prestiacutegio e a majestade do deus deacutelfico se externaram de
maneira mais riacutegida e ameaccediladora do que nunca(NT 41-42)
De acordo com Nietzsche as trageacutedias eram em seu iniacutecio representaccedilotildees do
sofrimento de Dioniacutesio Mesmo as trageacutedias do periacuteodo aacutetico traziam Dioniacutesio como
heroacutei traacutegico O sofrimento representado era o do despedaccedilamento de Dioniacutesio o deus
que sofreu o padecimento da individuaccedilatildeo causa de todo o sofrer O mito de Dioniacutesio eacute
interpretado aqui sob a luz da filosofia de Schopenhauer que apresenta a individuaccedilatildeo
como fonte do sofrimento ldquoNos pontos de vista aduzidos temos jaacute todas as partes
componentes de uma profunda e pessimista consideraccedilatildeo do mundo e ao mesmo tempo
a doutrina misteriosoacutefica da trageacutedia o conhecimento baacutesico da unidade de tudo o que
existe a consideraccedilatildeo da individuaccedilatildeo como a causa primeira do mal a arte como a
esperanccedila jubilosa de que possa ser rompido o feiticcedilo da individuaccedilatildeo como
pressentimento de uma unidade restabelecidardquo (NT 70)
Contudo ressalta Nietzsche a trageacutedia grega que como vimos desenvolve-se a
partir do embate contiacutenuo entre as representaccedilotildees dos deuses antiacutepodas ndash envolvidos em
um enfrentamento aparentemente sem fim ndash eacute reestruturada por Euriacutepides de forma a
diminuir o impacto do coro ou seja um golpe quase mortal para Dioniacutesio que
agonizante lanccedila matildeo de seus uacuteltimos esforccedilos O que em Euriacutepedes suscitou esta
reestruturaccedilatildeo que conforme Nietzsche eacute responsaacutevel pelo afastamento progressivo do
dionisiacuteaco tem suas origens no que o filoacutesofo chamou de uma ldquotendecircncia socraacuteticardquo O
socratismo euripidiano e a sua nova concepccedilatildeo esteacutetica satildeo as causadoras do
afastamento dos impulsos esteacuteticos primevos o dionisiacuteaco e o apoliacuteneo Em seu lugar o
discurso consciente passa a imperar O deus ex machina e os proacutelogos satildeo exemplos das
81
interferecircncias racionais que datildeo novo tom agrave trageacutedia aacutetica Soacutecrates e seu racionalismo
expulsam da trageacutedia o conhecimento primevo dionisiacuteaco e estabelecem novas regras
esteacuteticas regras racionais que fazem com que o bom sinocircnimo do belo seja aquilo
alcanccedilado conscientemente
Se a trageacutedia grega foi para Nietzsche a manifestaccedilatildeo mais sublime de uma
forma artiacutestica isto se daacute em decorrecircncia do efeito por ela provocado qual seja o de
justificar o mundo enquanto fenocircmeno esteacutetico Foi exatamente o decliacutenio deste efeito
constatado pela produccedilatildeo racionalizada de Euriacutepides o responsaacutevel pela morte da
trageacutedia Ao fortalecer em demasia os princiacutepios racionais da forma Euriacutepides suprimiu
o dionisiacuteaco por meio da flacircmula que nas palavras de Nietzsche o tragedioacutegrafo
ldquolevava agrave testardquo ndash a saber uma espeacutecie de socratismo esteacutetico cujos princiacutepios se davam
a partir da remissatildeo do belo ao inteligiacutevel e deste ao virtuoso Identifica-se portanto a
racionalidade otimista socraacutetica como grande responsaacutevel pela supressatildeo do impulso
dionisiacuteaco Nietzsche alude agrave proximidade de convivecircncia entre Soacutecrates e Euriacutepides
para justificar a presenccedila do racionalismo nas obras Euripidianas Soacutecrates frequumlentava
o teatro somente para assistir agraves apresentaccedilotildees de Euriacutepides De todos os atenienses
Soacutecrates era apontado como o mais saacutebio e Euriacutepides como o segundo em sabedoria
Entretanto na contraposiccedilatildeo proposta por Nietzsche entre conhecimento instintivo e
racional Soacutecrates era descomunalmente racional ao contraacuterio do intuitivismo criativo
que reinava ateacute entatildeo Era questionando aos atenienses sobre seus atos que Soacutecrates
percebia que eles natildeo agiam conscientemente mas por intuiccedilatildeo A crenccedila socraacutetica de
que toda accedilatildeo boa deve ser consciente dominou o teatro atraveacutes de Euriacutepides Uma
chave para o entendimento da racionalidade socraacutetica segundo Nietzsche nos eacute
revelada pela ldquomonstruosa inversatildeordquo representada pela consciecircncia criacutetica de Soacutecrates ndash
ou seja a nota destoante em Soacutecrates revela-se pelo instinto criacutetico em contraposiccedilatildeo agrave
82
consciecircncia criacutetica a consciecircncia criadora em contraposiccedilatildeo ao instinto como forccedila
criadora Intui-se assim o motivo pelo qual Soacutecrates natildeo compreendia a trageacutedia grega
- o dionisiacuteaco a tornava ininteligiacutevel para as exigecircncias racionalistas e criacuteticas da
ldquodialeacutetica otimistardquo socraacutetica ldquoA Soacutecrates [] parecia que a arte traacutegica nunca bdquodiz a
verdade‟ sem considerar o fato de que se dirigia agravequele que bdquonatildeo tem muito
entendimento‟ portanto natildeo aos filoacutesofos daiacute um duplo motivo para manter-se dela
afastadordquo(NT 87) Nietzsche compara Soacutecrates ao heroacutei euripidiano que
diferentemente (ateacute mesmo antagonicamente) agrave trageacutedia de Eacutesquilo e Soacutefocles ldquoprecisa
defender suas accedilotildees por meio da razatildeo e contra a razatildeordquo O que estaacute em jogo no
socratismo eacute a substituiccedilatildeo das verdades expressas miticamente religiosamente pelas
verdades loacutegicas A razatildeo tenta abarcar o todo e para isso desconsidera a arte e seus
impulsos A excelecircncia estaacute no saber e atraveacutes deste alcanccedila-se a felicidade erro do
otimismo racionalista Ilusatildeo da razatildeo que se acha soberana e independente A loacutegica
torna-se essecircncia da trageacutedia procura-se por relaccedilotildees causais e pelo bom telos O
diaacutelogo formata sua estrutura e expulsa seu fundamento musical O ldquoheroacutei dialeacuteticordquo eacute
portanto impulsionado pelo elemento otimista da dialeacutetica A justiccedila transcendental
presente nas obras Esquilianas ldquoeacute rebaixada ao niacutevel do raso e insolente princiacutepio da
bdquojusticcedila poeacutetica‟ com seu habitual deus ex machinardquo (NT 89) A racionalidade de
Soacutecrates atraveacutes de sua investigaccedilatildeo cientiacutefica da natureza de seu processo de
construccedilatildeo loacutegica da realidade daraacute origem ao que Nietzsche denominaraacute de ldquohomem
teoacutericordquo ou ldquohomem cientiacuteficordquo a quem a razatildeo ergue-se acima da proacutepria realidade ao
ponto mesmo de ndash e aiacute reside o proacuteprio otimismo ndash propor-se a tarefa de corrigir as
falhas da proacutepria realidade Mais ainda a razatildeo socraacutetica acena ao homem com a
promessa de conferir sentido agrave existecircncia pelo conhecimento e desta forma busca
justificar tal existecircncia
83
Em face ao pessimismo praacutetico eacute Soacutecrates o protoacutetipo do
otimista teoacuterico que na jaacute assinalada feacute na escrutabilidade da
natureza das coisas atribui ao saber e ao conhecimento a forccedila de
uma medicina universal e percebe no erro o mal em si mesmo
(NT 94)
Natildeo obstante o otimismo no conhecimento na racionalidade socraacutetica encontra seu
maior dragatildeo em sua proacutepria loacutegica interna Assim nas palavras de Nietzsche
[] a periferia do ciacuterculo da ciecircncia possui infinitos pontos
e enquanto natildeo for possiacutevel prever de maneira nenhuma como se
poderaacute alguma vez medir completamente o ciacuterculo o homem
nobre e dotado ainda antes de chegar ao meio de sua existecircncia
tropeccedila e de modo inevitaacutevel em tais pontos fronteiriccedilos da
periferia onde fixa o olhar no inesclareciacutevel Quando divisa aiacute
para seu susto como nesses limites a loacutegica passa a girar em
redor de si mesma e acaba por morder a proacutepria cauda ndash entatildeo
irrompe a nova forma de conhecimento o conhecimento traacutegico
que mesmo para ser apenas suportado precisa da arte como meio
de proteccedilatildeo e remeacutedio (NT 95)
Afigura-se-nos aqui o problema apontado por Nietzsche como o ldquoproblema da
ciecircncia mesmardquo a saber um problema que nos envolve a todos por abarcar (ou
contaminar) toda a cultura ocidental - isto eacute ainda mantemos o dionisiacuteaco agrave baila
ocupando diminuta posiccedilatildeo em detrimento ao culto acerbado ao racionalismo socraacutetico
A cultura socraacutetica impotildee-se pelo homem-teoacuterico e qualquer outra existecircncia que fuja
aos olhos perscrutadores de Soacutecrates deve ldquolutar penosamente para pocircr-se agrave sua altura
como existecircncia permitida e natildeo como existecircncia propostardquo
Nietzsche nos atenta para o fato de reconhecermos comumente no homem culto
erudito o homem douto saacutebio ndash consecutivamente o dionisiacuteaco a arte eacute colocada de
forma perifeacuterica de modo a nunca poder encontrar espaccedilo para superar sua condiccedilatildeo de
ldquoremeacutedio-arterdquo A vontade aacutevida faz seu caminho mesmo atraveacutes da completa falta de
respostas de fundamentos de sentido assim eacute preferiacutevel ao ser humano querer o nada
no sentido de ainda sim querer alguma coisa do que nada querer do que reconhecer a
84
falta de fundamentos da qual consistem em todos os tempos as ilusotildees que
costumeiramente adota-se como engodo ao absoluto sem-sentido da vida
Por fim Nietzsche atenta-nos para o fato de como o homem de seu tempo vem
perdendo a crenccedila na ciecircncia otimista socraacutetica isto eacute pressentindo que a cultura
racionalista socraacutetica torna-se iloacutegica ao vislumbraacute-la em seus horizontes afastando-se
de suas consequumlecircncias Nietzsche diagnostica na oacutepera de seu periacuteodo a subordinaccedilatildeo da
muacutesica agrave arte figurada agrave palavra e expotildee a expectativa de que possa haver no cansaccedilo e
na percepccedilatildeo do insucesso dos esforccedilos racionalistas um renascimento da trageacutedia
85
4 Conclusatildeo pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo
da vida
Retribui-se mal a um mestre continuando-
se sempre apenas aluno
(Nietzsche)
Natildeo podemos ver na filosofia schopenhaueriana qualquer instacircncia que
justifique a vida Ao conhecermos a sua essecircncia - a vontade cega e irracional que se
deixa ver atraveacutes das manifestaccedilotildees do seu querer incessante - percebemos o absurdo de
sua existecircncia e somos por essa percepccedilatildeo levados agrave sua negaccedilatildeo Nietzsche por sua
vez utilizando-se dos conceitos da filosofia de Schopenhauer procura em sua obra
justificar a vida e encontra esta justificaccedilatildeo na arte Nesta conclusatildeo da pesquisa
pretendemos entatildeo apresentar um esboccedilo do modo pelo qual alguns elementos da
filosofia schopenhaueriana foram utilizados no projeto do primeiro livro de Nietzsche e
explicitar o modo como estes elementos foram configurados no interior de seu projeto
Dentre estes elementos percorreremos o paralelo entre os pares dionisiacuteacoapoliacuteneo e
vontaderepresentaccedilatildeo os conceitos de arte e apreciaccedilatildeo esteacutetica e sua cisatildeo entre as
86
artes figurativas e a musical a especificidade da muacutesica o conceito de gecircnio e sua
divisatildeo e os limites da racionalidade e da ciecircncia
Jaacute no primeiro paraacutegrafo de NT a associaccedilatildeo entre os pares nietzscheanos do
dionisiacuteaco e apoliacuteneo e as visotildees de mundo schopenhauerianas satildeo expliacutecitas Nietzsche
define o impulso apoliacuteneo atraveacutes do sonho do princiacutepio de individuaccedilatildeo e o dionisiacuteaco
atraveacutes da embriaguez da consciecircncia de unidade da vontade do livrar-se do veacuteu de
maia Os deuses gregos tornam-se representativos destes estados schopenhauerianos de
consciecircncia Como vimos no capiacutetulo segundo desta dissertaccedilatildeo sob o ponto de vista da
representaccedilatildeo o mundo eacute objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito
agraves condiccedilotildees a priori do entendimento Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das
formas a priori do entendimento eacute interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos
advindos da filosofia Platocircnica e oriental como um mundo aparente ilusoacuterio artificial
O sonho efeito do encantamento apoliacuteneo eacute utilizado como metaacutefora da realidade
fenomecircnica no mundo Schopenhaueriano Os Vedas e Puranas tantas vezes citados por
Schopenhauer tratam o mundo como um sonho imposto pelo deus Maia o deus da
ilusatildeo que cobre a visatildeo do homem com seu veacuteu A mitologia oriental aludida por
Schopenhauer toma conta do mundo helecircnico em Nietzsche que transforma Apolo no
deus Maia o configurador de sonhos O sonho eacute utilizado como ilustraccedilatildeo da realidade
pelo fato de que durante o sonho natildeo sabemos estar sonhando O mundo dos sonhos nos
eacute naquele momento real Vemo-nos como indiviacuteduos e vemos o mundo da
individuaccedilatildeo e suas leis causais espaccedilo-temporais Somente o momento empiacuterico do
despertar informa-nos do sonho Haacute portanto uma identificaccedilatildeo do ldquoparentesco iacutentimo
entre vida e sonhordquo(MVR 60) Como ilustraccedilatildeo desta metaacutefora Schopenhauer elogia
ainda a obra do ldquovaterdquo Calderoacuten de La Barca A vida eacute sonho agrave qual denominaraacute como
um ldquodrama metafiacutesicordquo por expor esta faceta de seu sistema A consciecircncia de que a
87
vida eacute sonho eacute para Schopenhauer um despertar metafiacutesico cujo propiciador foi Kant
ao demonstrar o caraacuteter fenomecircnico do mundo Este despertar contudo natildeo causa
prazer O filoacutesofo e o gecircnio personagens que na metafiacutesica schopenhaueriana alcanccedilam
este despertar satildeo atormentados pela realidade com a qual se deparam qual seja a de
que a vida eacute puro sofrimento Eacute no intuito de deixar velada esta faceta da vida que
Apolo ofusca a visatildeo dos homens com seu mundo luminoso de sonho seu objetivo eacute
encobrir esta verdade aterrorizadora As artes natildeo musicais tanto na teoria de
Schopenhauer como na nietzscheana manteacutem o homem em um juacutebilo prazeroso
ocasionado pela contemplaccedilatildeo puramente objetiva Neste momento natildeo se percebe o
jogo da vontade individualizada somos afastados da realidade do querer insuflados
pela caracteriacutestica quietiva da apreciaccedilatildeo esteacutetica nas palavras de Nietzsche
encontramos na arte um ldquoremeacutedio-arterdquo32
Esta visatildeo do lado terriacutevel da vida ocasionada pelo despertar do dogmatismo
metafiacutesico na teoria schopenhaueriana eacute associada em NT agrave sabedoria dionisiacuteaca
Verificamos na descriccedilatildeo do impulso dionisiacuteaco os elementos que caracterizam a
vontade schopenhaueriana A visatildeo dionisiacuteaca do mundo carrega consigo o despertar
para o caraacuteter absurdo da vida Ao olhar para a proacutepria essecircncia o homem descobre-se
enquanto manifestaccedilatildeo de uma vontade aacutevida desprovida de telos O ldquomecanismo
internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens marionetes guiados pela
carecircncia Esta realidade eacute assustadora pois subtrai do horizonte todos os propoacutesitos da
vida individual Dioniacutesio trava aqui sua batalha contra Apolo ao apontar a ilusatildeo da
individuaccedilatildeo como mecanismo para uma fuga daquilo que em essecircncia somos Apesar
de seu caraacuteter aterrorizador a sabedoria dionisiacuteaca eacute acompanhada do deleite
32
Podemos ver aqui o nuacutecleo da dissenssatildeo entre as teorias dos dois filoacutesofos Para Schopenhauer este
remeacutedio eacute temporaacuterio e tatildeo logo o efeito da apreciaccedilatildeo esteacutetica se esvaia os interesses da vontade voltam
a agir sobre o indiviacuteduo e a vida de sofrimento continua seu percurso restando apenas o caminho da
negaccedilatildeo daquela vontade da vida mesma em direccedilatildeo ao nada Nietzsche ao contraacuterio aponta para uma
forma de cura atraveacutes do remeacutedio-arte ver a vida enquanto forma de arte afirmaacute-la
88
indescritiacutevel da celebraccedilatildeo da unidade com o todo ldquoSob a magia do dionisiacuteaco torna a
selar-se natildeo apenas o laccedilo de pessoa a pessoa mas tambeacutem a natureza alheada
inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de reconciliaccedilatildeo com seu filho
perdido o homemrdquo(NT 31) Se Apolo eacute representado como deus da forma da clareza
da individuaccedilatildeo e as artes patrocinadas por ele satildeo expressotildees destas caracteriacutesticas
Dioniacutesio por sua vez eacute o patrocinador da muacutesica expressatildeo fenomecircnica direta da
vontade Vemos em Nietzsche uma biparticcedilatildeo das artes que tambeacutem pode ser extraiacuteda
da metafiacutesica schopenhaueriana (artes natildeo-musicais e arte musical)
Para Schopenhauer as formas artiacutesticas natildeo-musicais ao provocarem uma visatildeo
puramente objetiva do objeto apreciado tecircm como caracteriacutestica fundamental a
libertaccedilatildeo da subjetividade e com ela dos anseios da vontade Durante esta forma de
apreciaccedilatildeo esteacutetica ldquosomos alforriados do desgraccedilado iacutempeto volitivo festejamos o
Sabbath dos trabalhos forccedilados do querer a roda de Iacutexion cessa de girarrdquo (MVR
267) A definiccedilatildeo nietzscheana para a funccedilatildeo da arte apoliacutenea se daacute da mesma maneira
qual seja ela deve ldquo [] livrar a vista de olhar no horror da noite e salvar o sujeito
graccedilas ao baacutelsamo da aparecircncia do espasmo dos movimentos do querer []rdquo (NT
117) A muacutesica por sua vez recebe um tratamento especial de Schopenhauer devido ao
seu efeito esteacutetico Se as demais artes satildeo um quietivo para a vontade a muacutesica ldquonatildeo faz
mais do que agradar a vontade de viver jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo
seus ecircxitos e ao final expressa sua satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509) Ela encontra-se
num niacutevel de valor superior ao das demais artes por tratar-se de representar a essecircncia
do mundo a vontade mesma Assim tambeacutem ela eacute tratada por Nietzsche como a arte
que representa a sabedoria dionisiacuteaca e faz o apreciador vivenciar a vontade mesma
Em seus escritos sobre a poesia e a oacutepera Schopenhauer alude agrave necessidade de
subordinar os conceitos e o texto agrave muacutesica para que estas artes tenham um efeito mais
89
arrebatador no apreciador esteacutetico Esta subordinaccedilatildeo eacute assumida por Nietzsche em sua
teoria da trageacutedia Nietzsche encontra na liacuterica a primeira manifestaccedilatildeo desta junccedilatildeo da
arte dionisiacuteaca com a arte apoliacutenea e aponta aiacute o geacutermen que daraacute origem agrave trageacutedia
Podemos perceber aqui uma subordinaccedilatildeo das artes natildeo-musicais agrave muacutesica que por sua
vez se espelha na subordinaccedilatildeo do mundo fenomecircnico ao mundo da coisa-em-si As
artes figurativas representam as ideacuteias objetivaccedilotildees imediatas da vontade e a muacutesica
representa a vontade mesma Na teoria da trageacutedia de Nietzsche esta subordinaccedilatildeo seraacute
mantida e assim reflete a configuraccedilatildeo da metafiacutesica schopenhaueriana A muacutesica ldquoeacute
uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente sobre o mais iacutentimo do
homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele como se fora uma
linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo (MVR
336) Desta forma uma arte que se pretenda formar a partir da integraccedilatildeo de elementos
de diversas formas artiacutesticas deve tomar a muacutesica como inspiraccedilatildeo tanto na teoria de
Schopenhauer como na de Nietzsche
Desta dicotomia das formas artiacutesticas que podemos perceber nos dois filoacutesofos
podemos depreender duas formas do gecircnio o apoliacuteneo ou contemplativo e o
compositor dionisiacuteaco Para Schopenhauer ldquoo compositor manifesta a essecircncia mais
iacutentima do mundo expressa a sabedoria mais profunda numa linguagem natildeo
compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo magneacutetico fornece informaccedilotildees
sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito algumrdquo (MVR 342) Podemos
vislumbrar ainda nesta descriccedilatildeo de Schopenhauer uma caracteriacutestica do que Nietzsche
mais tarde iraacute chamar de criaccedilatildeo inconsciente Em uma segunda passagem desta vez ao
final do capiacutetulo 39 do segundo volume de MVR vemos tambeacutem uma caracteriacutestica que
posteriormente tambeacutem seraacute ressaltada por Nietzsche como demarcaccedilatildeo do caraacuteter
dionisiacuteaco Schopenhauer se utiliza de uma passagem dos Vedas para descrever o prazer
90
provocado pela muacutesica como um prazer de participaccedilatildeo no todo33
Este ecircxtase da
comunhatildeo eacute um aspecto reiteradamente apontado por Nietzsche O gecircnio dionisiacuteaco eacute
para o jovem filoacutesofo aquele que tambeacutem absorvido pelo impulso dionisiacuteaco traduz
sua essecircncia em linguagem musical O tipo de gecircnio musical descrito eacute encontrado em
Schopenhauer nas encarnaccedilotildees de Rossini e Beethoven cujas obras operiacutesticas satildeo
norteadas pela produccedilatildeo musical e o livreto ocupa um lugar secundaacuterio Nietzsche
aponta um renascimento progressivo do gecircnio musical em seu tempo que se inicia com
Bach e tem continuidade em Beethoven mas que encontra sua forma mais bem acabada
em Richard Wagner
Apesar da tomarem caminhos diferentes no que tange ao objetivo da obra de arte
traacutegica Nietzsche e Schopenhauer mais uma vez em uniacutessono consideram-na todavia
como uma forma de entendimento superior ao apresentado pelo pensamento cientiacutefico
Como vimos anteriormente as ciecircncias no sistema schopenhaueriano seguem o
princiacutepio de razatildeo seu papel eacute apenas descritivo e consequumlentemente limitado ao
acircmbito daquele princiacutepio Transformam em conceitos abstratos o mundo intuitivo ao
descrevecirc-lo em sua aparecircncia e seguem o fio condutor do principio de razatildeo
apresentando as causas para cada fenocircmeno particular Desta forma as ciecircncias estatildeo
subordinadas ao mundo da aparecircncia e no que importa agrave essecircncia natildeo podem
demonstraacute-la As uacutenicas produccedilotildees humanas com esta capacidade satildeo a arte e a
filosofia e essas o fazem de forma indireta metafoacuterica A consideraccedilatildeo racional do
mundo estaacute enquanto presa ao acircmbito do fenocircmeno subordinada aos ditames da
vontade Esta ldquovontade aacutevida sempre encontra um meio atraveacutes de uma ilusatildeo
distendida sobre as coisas de prender agrave vida as suas criaturas e de obrigaacute-las a
prosseguir vivendordquo (NT 108) Nietzsche descreve trecircs formas pelas quais a vontade
33
ldquoE o delicioso que eacute uma classe de alegria chama-se assim o sumo Atman porque onde haacute uma
alegria esta eacute uma pequena parte de sua alegriardquo (MVR II 510)
91
manteacutem a vida A primeira delas eacute o ldquoveacuteu da beleza da arterdquo sustentado pelo impulso
apoliacuteneo Encontramo-la na epopeacuteia homeacuterica e nas artes figurativas A segunda eacute a
visatildeo traacutegica do mundo que encontra um consolo metafiacutesico na percepccedilatildeo de um
substrato comum aos fenocircmenos e que por consequumlecircncia abdica destes em funccedilatildeo da
vivecircncia daquele substrato A terceira forma de dominaccedilatildeo da vontade eacute a ciecircncia a
loacutegica socraacutetica que procura abarcar o mundo com sua razatildeo de acircnsia justificadora
Estas trecircs formas de coerccedilatildeo conforme sua predominacircncia em determinada cultura
formam o que Nietzsche iraacute denominar respectivamente de culturas artiacutestica traacutegica e
socraacutetica Correspondem historicamente agraves fases predominantemente helecircnica budista
ou alexandrina Fazendo um diagnoacutestico da cultura contemporacircnea Nietzsche a
identifica como uma cultura predominantemente alexandrina Diagnostica o seu ocaso a
partir da identificaccedilatildeo feita por Kant e Schopenhauer dos limites da ciecircncia do
desmascaramento das verdades eternas que amparam a visatildeo socraacutetica de mundo quais
sejam a visatildeo de que o tempo o espaccedilo e a causalidade satildeo leis universais e
incondicionais Esta criacutetica ao racionalismo eacute constante na obra schopenhaueriana
Percebemo-la claramente em suas investidas contra a filosofia de seu tempo e a
presunccedilatildeo nela presente de racionalmente abarcar o real
- - - - - - - - - -
Compostas por conceitos da metafiacutesica schopenhaueriana a teoria da trageacutedia de
Schopenhauer e a de Nietzsche apontam para caminhos diversos Em Schopenhauer a
trageacutedia eacute a arte cujo fim uacuteltimo eacute ao expor seu lado terriacutevel inspirar o apreciador agrave sua
renuacutencia Este lado terriacutevel espelho do mundo presentificador da vida humana e de
suas relaccedilotildees ocasiona atraveacutes do medo e da compaixatildeo a vontade de renuacutencia a essa
92
mesma vida Nietzsche introduz na trageacutedia o elemento da muacutesica schopenhaueriana34
A consequumlecircncia desta introduccedilatildeo eacute um plano mais profundo de entendimento que
apresenta a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com sua essecircncia Neste estado de consciecircncia
apartado de sua individualidade o sujeito jaacute se vecirc como um criador de mundos e vecirc no
mundo uma obra de arte sua Ao derivar o impulso apoliacuteneo do dionisiacuteaco35
Nietzsche
jaacute executou a renuacutencia do indiviacuteduo que agora passa a se ver como essecircncia e ao mundo
como fenocircmeno artiacutestico
34
Machado (2006 200) considera na esteira de Clemeacutent Rosset e de Jean-Marie Schaeffer a utilizaccedilatildeo
da teoria da apreciaccedilatildeo musical de Schopenhauer por Nietzsche como o elemento que sugeriraacute a
caracteriacutestica de afirmaccedilatildeo da vontade de sua filosofia da trageacutedia 35
ldquoNo efeito conjunto da trageacutedia o dionisiacuteaco recupera a preponderacircncia ela se encerra com um tom
que jamais poderia soar a partir do reino da arte apoliacutenea E com isso o engano apoliacuteneo se mostra como o
que ele eacute como o veacuteu que enquanto dura a trageacutedia envolve o autecircntico efeito dionisiacuteaco o qual
todavia eacute tatildeo poderoso que ao final impele o proacuteprio drama apoliacuteneo a uma esfera onde ele comeccedila a
falar com sabedoria dionisiacuteaca e onde nega a si mesmo e agrave sua visibilidade apoliacuteneardquo (NT 129)
93
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5
Agrave minha famiacutelia
6
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo agraves pessoas que direta ou indiretamente ajudaram na elaboraccedilatildeo deste
trabalho
Agrave minha esposa pelo amor paciecircncia e apoio
Ao corpo docente do curso de mestrado e em especial ao meu co-orientador
cujo incentivo foi essencial agrave continuaccedilatildeo da pesquisa
Ao meu orientador pelas observaccedilotildees valiosas
Aos colegas de mestrado companheiros indispensaacuteveis nas diaacuterias procissotildees de
embriaguez dionisiacuteaca pelas labiriacutenticas ladeiras de Ouro Preto
7
A existecircncia eacute um episoacutedio do nada
Arthur Schopenhauer
8
RESUMO
O projeto que aqui se apresenta tem como objetivo principal percorrer as
teorias do traacutegico schopenhaueriana e nietzscheana no intuito de apresentar as
principais caracteriacutesticas de cada uma destas teorias Este percurso teraacute como ponto de
partida o fundamento metafiacutesico comum a elas qual seja a filosofia schopenhaueriana
da vontade Atraveacutes desta exposiccedilatildeo pretendemos demonstrar natildeo somente a real
amplitude da influecircncia de Schopenhauer nos primeiros escritos de Nietzsche mas
tambeacutem algumas das peculiaridades existentes em cada uma das citadas teorias
Palavras-chave Schopenhauer - Nietzsche - Trageacutedia - Traacutegico - Filosofia da
vontade
ABSTRACT
The research presented herein has as its ultimate goal to discuss the
theories of the tragedy developed by Schopenhauer and Nietzsche highlighting the
main characteristics ndash points of convergence and divergence ndash of both Our trajectory
shall start from the metaphysical foundations apparently displayed in both theories
which is ndash the schopenhauerian philosophy of the will Throughout our exposition we
intend to show not only that Schopenhauers philosophy had a huge impact in
Nietzsches first writings but also reveal the peculiarities beneath the development of
their aforementioned theories
Keywords Schopenhauer - Nietzsche - Tragedy - Tragic ndash Philosophy of the will
9
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO11
1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES NA
FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA 17
2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU
SUBSTRATO METAFIacuteSICO42
21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo43
22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo45
23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana49
24 A finalidade moral da trageacutedia56
25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera62
3 A TEORIA DA TRAGEacuteDIA DO JOVEM NIETZSCHE65
31 A influecircncia de Schopenhauer na obra do primeiro Nietzsche66
32 O projeto subjacente ao nascimento da trageacutedia72
33 A teoria da trageacutedia publicada75
4 CONCLUSAtildeO pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo da
vida85
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS93
10
ABREVIATURAS
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MVR = Mundo como vontade e como representaccedilatildeo (2005)
MVR II ndash Mundo como vontade e como representaccedilatildeo volume II (2005)
MB = Metafiacutesica do belo (2003)
SOE = Sobre o ofiacutecio de Escritor (2005)
QRPRS = De la cuadruple raiz del principio de razon suficiente (1981)
PP = Parerga e paralipomena (1974)
SFM = Sobre o fundamento da moral (2001)
SFU = Sobre a filosofia universitaacuteria (2001)
Obras de Nietzsche
NT = O nascimento da trageacutedia (1992)
VD = Visatildeo dionisiacuteaca do mundo (2005)
CORRESPONDEcircNCIA = Correspondecircncias de Nietzsche (2007)
OC = Obras completas de Nietzsche (1963)
11
INTRODUCcedilAtildeO
ldquoDias sem nuacutemero nunca reservam a
ningueacutem nada mais que dissabores mais
proacuteximos da dor que da alegria Quanto aos
prazeres natildeo os discernimos e nossa vista os
buscaraacute em vatildeo logo que para nossa
desventura chegamos ao limite prefixado E
desde entatildeo o nosso aliacutevio uacutenico seraacute aquele
que daraacute a todos o mesmo fim na hora de
chegar de suacutebito o destino procedente do
tenebroso reino onde natildeo haacute cantos nem
liras onde natildeo haacute danccedilas ndash ou seja a morte
epiacutelogo de tudo Melhor seria natildeo haver
nascido como segunda escolha bom seria
voltar logo depois de ver a luz agrave mesma
regiatildeo de onde se veiordquo
(Soacutefocles)
As teorias sobre a trageacutedia de Schopenhauer e Nietzsche satildeo parte
indispensaacutevel no estudo da histoacuteria da filosofia da trageacutedia Dentre os diversos
pensadores contemporacircneos que tratam sobre o problema da trageacutedia e do traacutegico e que
deram visiacutevel destaque agraves teorias dos nossos filoacutesofos podemos destacar Walter
Benjamin1 e Peter Szondi
2 Entretanto nos trabalhos destes autores o problema do
1 BENJAMIN Walter Origem do drama barroco alematildeo Traduccedilatildeo Sergio Paulo Rouanet Satildeo Paulo
Brasiliense 2004
12
relacionamento e da interdependecircncia entre as filosofias de Schopenhauer e Nietzsche
natildeo eacute detalhado a contento Diante disto mesmo para um olhar historicamente
caracterizador torna-se vaacutelido um estudo comparado destas teorias que leve em
consideraccedilatildeo o quecirc ou o quanto haacute de comum em suas metafiacutesicas e a partir desta
perspectiva trace os aspectos coincidentes e dissidentes das mesmas mostrando seus
pontos de interdependecircncia e discrepacircncia muacutetua
Apesar de estar entre as teorias da trageacutedia mais estudadas do periacuteodo do
idealismo alematildeo a teoria Schopenhaueriana que eacute sempre analisada em relaccedilatildeo a seus
pressupostos metafiacutesicos ao ser vista sob outra perspectiva ganharia contornos
intensamente enriquecidos Esta perspectiva atraveacutes da qual nos propomos a examinar a
teoria do traacutegico do filoacutesofo eacute aquela que levaraacute em consideraccedilatildeo as influecircncias
histoacutericas culturais e filosoacuteficas que agiram diretamente sobre a esteacutetica do traacutegico
schopenhaueriana Ao lanccedilarmos um olhar sobre estas referidas influecircncias estaremos
abrindo caminho para uma melhor compreensatildeo sobre a teoria esteacutetica
schopenhaueriana o que conseguintemente refletiraacute em um juiacutezo mais adequado da
teoria nietzscheana
Para um entendimento mais eficiente das teorias propostas nas obras do
jovem Nietzsche parece-nos essencial o conhecimento de uma de suas mais decisivas
influecircncias a filosofia de Schopenhauer A analogia almejada erige-se na verdade
como meacutetodo de anaacutelise ou seja o que pretendemos eacute alcanccedilar uma maior compreensatildeo
dos problemas com os quais Nietzsche se deparou quando da elaboraccedilatildeo de sua primeira
obra e procurar identificar a existecircncia de alguma apropriaccedilatildeo eou adaptaccedilatildeo de alguns
conceitos da filosofia de Schopenhauer na resoluccedilatildeo destes problemas A necessidade
deste estudo comparativo torna-se ainda mais evidente quando e este eacute o caso
2 SZONDI Peter Ensaio sobre o Traacutegico Traduccedilatildeo Pedro Suumlssekind Rio de Janeiro Jorge Zahar
2005
13
defrontamo-nos com uma influecircncia que se apresenta tatildeo clara e assumidamente
admitida pelo autor Todavia natildeo se pretende aqui apenas a justaposiccedilatildeo de um
pensamento ao outro Apesar de ser identificaacutevel em toda a obra posterior de Nietzsche
encontra-se nos seus primeiros escritos sobretudo na obra O nascimento da trageacutedia
aquele momento discursivo no qual podemos apontar uma influecircncia mais direta da
filosofia de Schopenhauer
Dos trabalhos que fazem um estudo comparativo entre estes filoacutesofos a
maioria se ateacutem em identificar as diferenccedilas conceituais entre eles mais
especificamente no campo eacutetico e metafiacutesico Grosso modo tratam principalmente dos
problemas relativos agrave diferenciaccedilatildeo entre os conceitos de vontade nestes autores
vontade de viver e vontade de poder Estes estudos tecircm como foco a filosofia tardia de
Nietzsche onde este apesar da assumida influecircncia torna-se um criacutetico de
Schopenhauer A real extensatildeo da influecircncia deste filoacutesofo na primeira obra de
Nietzsche bem como o relacionamento entre suas teorias da trageacutedia permanecem
assim como territoacuterios ainda pouco explorados Ao lanccedilarmos olhar sobre esse
afastamento que Nietzsche mais tarde realizaraacute em relaccedilatildeo agrave filosofia
Schopenhaueriana verificamos mais uma vez a importacircncia do estudo de sua primeira
fase na qual poderemos detectar o referido afastamento
Podemos observar entretanto o crescimento do interesse no estudo da
obra O nascimento da trageacutedia de Nietzsche Nos uacuteltimos anos assistimos tambeacutem no
Brasil agrave publicaccedilatildeo de vaacuterios trabalhos que tecircm sob perspectiva a complexidade desse
seu primeiro livro Na bibliografia sugerida neste projeto constam publicaccedilotildees dos
seguintes autores Roberto Machado (2006) Rosa Maria Dias (2005 e 2009) Iracema
Macedo (2006) Marcio Joseacute Silveira Lima (2006) Estas publicaccedilotildees tratam temas
diversos da esteacutetica nietzscheana tais como a muacutesica a trageacutedia o traacutegico ou a
14
repercussatildeo do livro de Nietzsche e sua influecircncia wagneriana Podemos ver entretanto
naqueles e em outros trabalhos a constante chave de leitura que atribui a Schopenhauer
a influecircncia decisiva natildeo apenas sobre o jovem Nietzsche como usualmente se aponta
mas tambeacutem sobre um peculiar imbricamento entre metafiacutesica e esteacutetica o qual se
sustentaria sobre os ldquoimpulsos artiacutesticos da naturezardquo o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco Nos
termos de Dias (2005 27)
A oposiccedilatildeo apoliacutenea e dionisiacuteaca considerada no plano
metafiacutesico se daacute a partir da noccedilatildeo de vontade ou querer
estendida (sic) no sentido que a ela deu Schopenhauer de
ldquocentro e nuacutecleo do mundordquo ou ldquoforccedila que eternamente quer
deseja e aspirardquo () O mundo fenomecircnico como resultado
desse movimento do querer () faz um segundo movimento
dessa vez esteacutetico reproduzindo o movimento inicial que a
vontade realizou em direccedilatildeo agrave aparecircncia
Tendo em vista o fato de que as teorias sobre o traacutegico dos dois filoacutesofos tecircm como
ponto de partida o sistema metafiacutesico schopenhaueriano fica clara a necessidade de
analisar em cotejo estas teorias tendo como fio condutor o meacutetodo de investigaccedilatildeo ora
proposto
Aleacutem de um aprofundamento no problema da influecircncia de
Schopenhauer na obra esteacutetica de Nietzsche o estudo de suas teorias sobre o traacutegico nos
daraacute a oportunidade de identificar as peculiaridades de cada uma destas teorias bem
como de estabelecer a sua importacircncia histoacuterica para uma filosofia do traacutegico
Em um primeiro momento traccedilaremos um panorama histoacuterico que
objetiva entender o status quo da filosofia do traacutegico no periacuteodo anterior ao
desenvolvimento da teoria schopenhaueriana da trageacutedia Esta investigaccedilatildeo seraacute
norteada pelas referecircncias constantes na proacutepria obra de Schopenhauer bem como por
um levantamento biograacutefico do filoacutesofo ou seja trabalharemos somente os momentos
que satildeo fundamentais para uma melhor compreensatildeo da obra schopenhaueriana Dentre
15
estes momentos daremos ecircnfase aos seguintes pontos o estudo sobre o helenismo de
Winckelmann e sua repercussatildeo a criacutetica teatral de Lessing Schiller e Goethe seu
projeto de criaccedilatildeo de um teatro alematildeo e suas produccedilotildees dramaacuteticas
Traccedilado o panorama histoacuterico no qual se insere a teoria da trageacutedia
schopenhaueriana passaremos para o toacutepico seguinte a apresentaccedilatildeo do sistema
metafiacutesico de Schopenhauer no qual estaacute embasada a sua teoria da trageacutedia bem como
a teoria nietzscheana A apresentaccedilatildeo seraacute feita de forma a expor os aspectos gerais da
filosofia da vontade atendo-se aos pontos deste sistema que estatildeo intrinsecamente
relacionados agraves teorias da trageacutedia dos nossos autores
Apoacutes os passos descritos reuniremos em um esboccedilo geral as
caracteriacutesticas do relacionamento existente entre o jovem Nietzsche e a filosofia de
Schopenhauer Para tanto utilizaremo-nos das referecircncias que Nietzsche faz a
Schopenhauer em suas cartas e escritos de juventude Com esta pesquisa pretendemos
identificar a opiniatildeo que o jovem Nietzsche tinha sobre a filosofia de Schopenhauer e a
profundidade da influecircncia desta em sua primeira obra Percorreremos ainda o ambiente
circundante agrave primeira obra de Nietzsche no intuito de realccedilar alguns dos conceitos
formativos de O nascimento da trageacutedia
Estabelecida a ligaccedilatildeo entre os autores passaremos ao estudo do apoliacuteneo
e do dionisiacuteaco par conceitual que nos forneceraacute a chave para se fazer um estudo
comparativo entre os filoacutesofos Para cumprir esta etapa analisaremos O nascimento da
trageacutedia bem como escritos contemporacircneos a este livro atraveacutes dos quais poderemos
delinear melhor a significaccedilatildeo desta duplicidade de impulsos e visotildees de mundo
Delinearemos assim os contornos das definiccedilotildees fundamentais da esteacutetica nietzscheana
e procuraremos construir um paralelo entre o mundo dionisiacuteaco e o mundo metafiacutesico
da vontade schopenhaueriano Temos a intenccedilatildeo de demonstrar a origem desta
16
metafiacutesica da vontade ou seja o criticismo kantiano e sua importacircncia para o conceito
de dionisiacuteaco Demonstraremos tambeacutem as caracteriacutesticas do mundo fenomecircnico
schopenhaueriano em sua identidade com o apoliacuteneo nietzscheano retomando a
epistemologia de Schopenhauer
Realizada a aproximaccedilatildeo e expostas tanto as semelhanccedilas como as
particularidades dos conceitos principais dos dois autores percorreremos sempre
focando um estudo paralelo entre os filoacutesofos outros conceitos que encontram
similaridade em suas esteacuteticas Com esse intuito procuraremos identificar nos dois
filoacutesofos o destaque dado agrave muacutesica dentro de suas teorias e o lugar dado agraves outras artes
em suas obras Discorreremos sobre a criacutetica que eles em uniacutessono fazem ao que
nomeiam racionalismo dogmatismo e o otimismo Finalizadas as aproximaccedilotildees
voltaremos nossa atenccedilatildeo ao aspecto de dissensatildeo que propicia o afastamento
fundamental entre as teorias dos dois filoacutesofos o efeito da trageacutedia Com isto
demonstraremos que a base metafiacutesica comum quando alinhada a pressupostos
esteacuteticos distintos geraraacute a referida dissensatildeo
17
1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES
NA FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA
Por que minha filosofia natildeo encontrou
simpatia e interesse Porque a verdade natildeo
estaacute de acordo com a tagarelice dos tempos
(Schopenhauer)
Neste primeiro capiacutetulo objetivamos apresentar as fontes filosoacuteficas
incutidas no sistema schopenhaueriano no intuito de situar historicamente o surgimento
da filosofia da vontade e trazer agrave baila o seu ambiente circundante bem como as teorias
filosoacuteficas com as quais Schopenhauer se propotildee a dialogar Apontaremos inicialmente
as influecircncias filosoacuteficas assumidamente presentes no sistema schopenhaueriano bem
como aquelas que fundamentam sua metafiacutesica e consequumlentemente sua teoria esteacutetica
Em um segundo momento procuraremos fazer um breve esboccedilo do ambiente artiacutestico-
cultural que dominava o pensamento alematildeo de entatildeo com o qual direta ou
indiretamente Schopenhauer e o jovem Nietzsche se depararam Com isto esperamos
posteriormente demarcar as singularidades que caracterizam as teorias destes filoacutesofos
Ressaltamos todavia que natildeo se trata de um mapeamento completo das fontes que
influenciaram esses autores ndash tarefa que exigiria um esforccedilo bem maior do que aquele
18
proposto por esta pesquisa ndash e sim de um breve panorama que se pautaraacute nas influecircncias
marcantemente presentes em suas obras
No contato com a obra de Schopenhauer a primeira impressatildeo que natildeo
passa despercebida aos seus leitores eacute a qualidade de sua prosa3 Tal qualidade
revelada na diversidade de recursos literaacuterios utilizados pelo autor eacute produto da visiacutevel
erudiccedilatildeo cultivada pelo filoacutesofo Conhecedor do grego do latim e suas respectivas
literaturas Schopenhauer transitava ainda pela obras literaacuterias cientiacuteficas e filosoacuteficas
contemporacircneas em suas liacutenguas originais conhecia o inglecircs o italiano o francecircs e o
espanhol Em sua juventude conviveu com vaacuterias personalidades do meio cultural
germacircnico que frequumlentavam o salatildeo de sua matildee em Weimar dentre eles Goethe a
maior figura das letras germacircnicas com quem teve um relacionamento mais proacuteximo
Sua obra eacute repleta de citaccedilotildees de poetas dramaturgos e seu conhecimento das artes
plaacutesticas e da muacutesica natildeo satildeo superficiais Em suas viagens pela Europa pocircde admirar
diversas esculturas e pinturas e como ele proacuteprio dizia pocircde ler diretamente no ldquolivro
do mundordquo Essa erudiccedilatildeo pode ser notada mesmo diante do desconhecimento de sua
biografia pela observaccedilatildeo da enorme quantidade de citaccedilotildees e menccedilotildees que estatildeo
espalhadas no interior de suas obras traduzidas ou como em sua maior parte citadas
em suas respectivas liacutenguas Frequumlentava as mais diversas aacutereas de conhecimento de sua
eacutepoca como sustenta Aramayo
3 O cuidado com a qualidade da produccedilatildeo literaacuteria tanto no que se refere agrave clareza quanto agrave riqueza de
recursos linguumliacutesticos eacute uma das caracteriacutesticas que Schopenhauer e Nietzsche tecircm em comum Esta
qualidade torna-se mais evidente ainda quando seus trabalhos satildeo natildeo raramente comparados com os
escritos filosoacuteficos alematildees daquele periacuteodo principalmente aos de Fichte Schelling e Hegel O elogio agrave
prosa schopenhaueriana feito por literatos e filoacutesofos contemporacircneos influenciados por sua obra pode
ser ilustrado agrave exaustatildeo entre eles encontram-se Thomas Mann Goethe Wittgenstein e o proacuteprio
Nietzsche ldquoMas a imensa forccedila de penetraccedilatildeo deste pensamento explica-se antes de tudo pelo fato de o
autor ser ao lado de Nietzsche o maior entre os escritores filosoacuteficos alematildeesrdquo (Rosenfeld 1996 177)
Jorge Luis Borges em uma entrevista publicada por Die Welt em 25 de marccedilo de 1975 realizava esta
confissatildeo ltPara mim existe um escritor alematildeo ao qual prefiro Schopenhauer Sei que deveria dizer
Goethe poreacutem Schopenhauer me interessa muitiacutessimo mais Tanto que estudei alematildeo ndash que aprendi
sobre os versos de Heine ndash fundamental e especificamente para poder ler a Schopenhauer em sua proacutepria
liacutenguagt (Aramayo 2001 18)
19
ldquoEm sua busca pela verdade Schopenhauer natildeo desdenha
nenhum aliado Os dramaturgos novelistas e poetas estatildeo quando
menos em peacute de igualdade com os mais egreacutegios filoacutesofos A perspicaacutecia
de Shakespeare ou a genialidade de Voltaire e a sutileza de Goethe nada
devem para a eloquumlecircncia Platocircnica a precisatildeo de um Spinoza e o rigor
conceitual do admirado Kant Sua curiosidade natildeo conhece limites nem
prejuiacutezo algum e por esta razatildeo tampouco menospreza quando o
considera oportuno prestar suficiente atenccedilatildeo aos fenocircmenos
paranormais agrave hipnose ou ao caacutelculo cabaliacutestico se entende que em
algo isto pode servir-lhe para demonstrar sua tese ou avaliar algumas de
suas intuiccedilotildees E na mesma direccedilatildeo aponta seu grande empenho por
incorporar o pensamento das religiotildees orientais a nosso acervo cultural
na possibilidade de um enriquecimento muacutetuordquo (Aramayo 2001 14-15)
A comparaccedilatildeo feita atraveacutes de metaacuteforas4 paraacutebolas ou alegorias em
sua maioria retiradas de obras literaacuterias ou cientiacuteficas torna-se recurso literaacuterio
constantemente presente na obra do filoacutesofo e ao mesmo tempo termocircmetro de suas
influecircncias e de seu relacionamento com o pensamento de seus contemporacircneos Tais
recursos satildeo utilizados contudo com o objetivo consciente de construir conhecimento
de ilustrar a mateacuteria do seu pensamento Nas palavras do filoacutesofo ldquoAs comparaccedilotildees satildeo
de grande valor na medida em que reduzem uma relaccedilatildeo desconhecida a uma
conhecida Inclusive as comparaccedilotildees mais detalhadas transformadas em paraacutebola ou
alegoria satildeo somente a reduccedilatildeo de uma relaccedilatildeo qualquer agrave sua exposiccedilatildeo mais
simples ilustrativa e palpaacutevelrdquo (Schopenhauer SOE 86) Se o nosso objetivo eacute mostrar
as raiacutezes da filosofia de Schopenhauer ou seja as influecircncias que formaram a mateacuteria
de seu pensamento eacute sobre esta mateacuteria que devemos nos debruccedilar Natildeo podemos
contudo nos furtar a apontar a riqueza das fontes formalmente presentes em seus
escritos5 A percepccedilatildeo da presenccedila desta numerosa miscelacircnea de referecircncias dentro da
4 ldquoSua profusa e brilhante utilizaccedilatildeo das metaacuteforas eacute o que o converte sem duacutevida alguma em um grande
escritor cujo estilo se nos afigura tatildeo ameno quanto sugestivordquo (Aramayo 2001 54) 5 Mateacuteria e forma satildeo na concepccedilatildeo do filoacutesofo planos ou instacircncias da produccedilatildeo escrita que servem
como referecircncia para o julgamento de valor do pensamento de um autor ldquo Um livro nunca pode ser mais
do que a impressatildeo dos pensamentos do autor O valor desses pensamentos reside na mateacuteria ou seja
naquilo sobre o que ele pensou ou na forma isto eacute na elaboraccedilatildeo da mateacuteria naquilo que pensou a
respeitordquo (Schopenhauer SOE 11) A importacircncia dada agrave forma por Schopenhauer seraacute melhor
esclarecida quando posteriormente apresentarmos a caracteriacutestica fundamentalmente epistemoloacutegica de
toda produccedilatildeo artiacutestica dentro de sua metafiacutesica do belo
20
obra schopenhaueriana diz-nos algo sobre seu estilo e seu arcabouccedilo cultural
entretanto quando voltamo-nos para a busca das influecircncias diretamente presentes em
seu sistema ie agraves raiacutezes da mateacuteria de seu pensamento percebemos que elas natildeo satildeo
tatildeo numerosas
Uma leitura das fontes filosoacuteficas do sistema schopenhaueriano torna-se
diferentemente do que ocorre em outros sistemas de seu tempo menos trabalhosa por
dois motivos Primeiramente o autor natildeo esconde suas influecircncias mas ao contraacuterio
faz questatildeo de apontaacute-las citaacute-las e quando lhe parece necessaacuterio as critica ou exalta
Em segundo lugar o que facilita o mapeamento destas fontes eacute a caracteriacutestica de
unidade do sistema schopenhaueriano como um todo Apesar da longevidade do
filoacutesofo e da distacircncia temporal entre suas obras suas intuiccedilotildees fundamentais
continuaram sendo as mesmas ao longo de sua vida Nas palavras de Rosset
ldquoSchopenhauer eacute homem de um soacute livro o MVR e de um soacute pensamento (qualificado
por ele mesmo de ltpensamento uacutenicogt nas primeiras linhas de sua obra)rdquo (2005 35)6
Natildeo satildeo poreacutem coetacircneas as influecircncias que marcaram a obra do filoacutesofo
como talvez a constante menccedilatildeo a seus contemporacircneos possa sugerir Nas palavras do
filoacutesofo como citado por Lefranc (2005 17) ldquoPude amar prosseguir aperfeiccediloar a
minha obra soacute por ela mesma em tranquumlilidade completa ao abrigo de toda influecircncia
externa e meus contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes
permaneci estranhosrdquo Conhecia a filosofia de seu tempo todavia natildeo a tinha como
interlocutora na verdade a desdenhava satildeo famosas as criacuteticas de Schopenhauer contra
as filosofias de seus contemporacircneos principalmente as de Fichte Schelling e Hegel
6 Sobre a unidade da produccedilatildeo schopenhaueriana destacamos aleacutem de Rosset os apontamentos de outros
dois de seus maiores comentadores Arthur Huumlbscher e Alexis Philonenko Na introduccedilatildeo aos manuscritos
schopenhauerianos Huumlbscher aponta a importacircncia dos manuscritos na percepccedilatildeo desta unidade uma vez
que podemos notar em diversas fases da vida do filoacutesofo o desenvolvimento dos temas pontuais que
marcaram sua obra principal Vide Hubscher Introduction Manuscript Remains 1985 Alexis
Philonenko trata desta unidade no proacutelogo de sua obra Schopenhauer uma filosofia da trageacutedia
(Philonenko 1989 41-45)
21
(chamados de ldquoos trecircs sofistasrdquo) Quando faz referecircncias a eles comumente estaacute
imbuiacutedo de trecircs propoacutesitos criticar a qualidade formal de suas produccedilotildees
principalmente no que tange ao uso da liacutengua germacircnica apontar uma motivaccedilatildeo
individualista (subsistecircncia pessoal e status social) que existiria por traacutes de suas
elucubraccedilotildees filosoacuteficas e ressaltar a falta de atenccedilatildeo por parte daqueles filoacutesofos no
que se refere ao conteuacutedo da primeira criacutetica kantiana
Schopenhauer diagnosticava em seu tempo um periacuteodo de
empobrecimento da expressatildeo literaacuteria e do uso da liacutengua germacircnica e apontava como
os principais responsaacuteveis por estes acontecimentos os ldquoprofessores de filosofiardquo e seus
disciacutepulos As investidas schopenhauerianas contra a filosofia de seus contemporacircneos
podem ser encontrada em praticamente todas as suas obras mas estatildeo concentradas de
forma mais persistente em sua produccedilatildeo mais tardia na segunda ediccedilatildeo da QRPRS de
MVR em seus ensaios sobre a liberdade e o fundamento da moral e nos PP 7
Nesta
uacuteltima obra temos dedicados a estas criacuteticas alguns textos que podemos destacar Sobre
o ofiacutecio de escritor Da leitura e dos livros Da liacutengua e das palavras e Sobre a filosofia
universitaacuteria A liacutengua alematilde no que se refere agrave sua capacidade expressiva era tida em
mais alta consideraccedilatildeo por nosso filoacutesofo Afirmava que dentre as liacutenguas modernas
era ldquoa uacutenica na qual se pode escrever quase tatildeo bem quanto em grego ou em latimrdquo
(Schopenhauer SOE 72) Esta capacidade de expressatildeo de uma liacutengua eacute segundo o
filoacutesofo resultado de sua aptidatildeo em representar conceitos Desta forma na medida em
que surgem novos conceitos a elaboraccedilatildeo de novas palavras que os representem eacute um
sinal de evoluccedilatildeo adequaccedilatildeo e riqueza da liacutengua Entretanto para o filoacutesofo os
neologismos e adaptaccedilotildees criados por seus contemporacircneos natildeo eram resultados da
7 Muitos historiadores da filosofia bioacutegrafos e comentadores apontam que esta criacutetica adveacutem do
ressentimento pelo fracasso de Schopenhauer como docente na universidade de Berlim onde Hegel
reinava absoluto bem como da falta de reconhecimento de sua filosofia diante do sucesso dos professores
da mesma universidade
22
tentativa de representaccedilatildeo de novos conceitos mas ao contraacuterio eram comprovaccedilatildeo de
sua ldquopobreza de espiacuterito que a todo custo quer colocar algo no mercado e por natildeo ter
novos pensamentos chega com palavras novasrdquo (Schopenhauer SOE 129)
Schopenhauer condenava a atitude de seus contemporacircneos de utilizarem-se de
artifiacutecios como a natildeo designaccedilatildeo do caso a expressatildeo dos preteacuteritos por meio do
imperfeito a supressatildeo dos prefixos e outros subterfuacutegios para com isso disfarccedilar a sua
imprecisatildeo conceitual De acordo com Schopenhauer tratavam displicentemente a
liacutengua alematilde por dois motivos por natildeo possuiacuterem uma mateacuteria conceitualmente
relevante a ser expressa ou entatildeo para conscientemente causar a impressatildeo de que a
possuem e neste caso a responsabilidade pela natildeo compreensatildeo do texto seria atribuiacuteda
agrave incompetecircncia intelectual do leitor
Os que compotildeem discursos difiacuteceis obscuros enleados e
ambiacuteguos natildeo sabem ao certo o que querem dizer tecircm somente uma
consciecircncia vaga a esse respeito que luta primeiro por uma ideacuteia poreacutem
amiuacutede querem tambeacutem ocultar de si mesmos e dos outros que na
realidade eles natildeo tecircm nada a dizer Como Fichte Schelling e Hegel
querem parecer saber o que natildeo sabem pensar o que natildeo pensam e dizer
o que natildeo dizem Algueacutem que tenha algo correto a dizer se esforccedilaraacute por
exprimi-lo de maneira indistinta ou distinta (Schopenhauer SOE 39)
Podemos perceber entatildeo que ao criticar o estilo ldquoobscurordquo e ldquopomposordquo de seus
contemporacircneos Schopenhauer aponta como causa deste estilo natildeo somente a sua falta
de mateacuteria mas tambeacutem uma atitude consciente e arquitetadamente maldosa e com
toda a sua forccedila retoacuterica condena esta atitude
Nobre bdquoatualidade‟ magniacuteficos epiacutegonos geraccedilatildeo crescida no
leite materno da filosofia hegeliana Pela gloacuteria eterna quereis apertar
vossas garras em nossa antiga liacutengua para que a marca com um icnoacutelito
conserve para sempre o vestiacutegio de vossa existecircncia insiacutepida e sombria
Mas Dicirc Meliora Fora paquidermes fora Esta eacute a liacutengua alematilde Nela se
expressaram homens ou melhor nela cantaram grandes poetas e grandes
pensadores escreveram Arredai as patas Ou natildeo tereis o que comer (Soacute
isso os assusta) (Schopenhauer SOE 72-73)
23
A uacuteltima frase desta citaccedilatildeo nos eacute aclarada pelo texto Sobre a filosofia universitaacuteria
onde o filoacutesofo expotildee os argumentos de sua criacutetica agrave filosofia produzida em seu tempo
Para Schopenhauer os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo podem devido agrave sua funccedilatildeo
estatal se imiscuir do compromisso poliacutetico-religioso que seu cargo exige e
conseguintemente sustentados pelo Estado tratam de fazer sua apoteose Nas palavras
de Cacciola constantes na introduccedilatildeo agrave traduccedilatildeo brasileira do referido texto
ldquoSchopenhauer eacute um continuador da criacutetica romacircntica ao filisteiacutesmo que se origina em
Tieck A ironia que visa os homens de vida tatildeo regular como o reloacutegio lhe eacute bem
familiar O filisteu eacute o erudito pedante que soacute pensa na proacutepria vantagem O professor
de filosofia que pauta seus ensinamentos de acordo com os ditames do Estado e da
religiatildeo eacute o tipo acabado do filisteu A idolatria do Estado eacute a apoteose do filisteiacutesmo
(Schopenhauer SFU XXX) Por traacutes das ideacuteias dos ldquofiloacutesofos de profissatildeordquo estaria
incutido o retorno disfarccedilado da ldquoteologia judaicardquo de uma ldquopsicologia racionalrdquo da
ldquoliberdade da vontaderdquo e outros dogmas que de acordo com Schopenhauer refletem a
sua vocaccedilatildeo de trabalharem ldquoin maiorem Dei gloriamrdquo como exigido pela ideologia
estatal daquele periacuteodo Natildeo podem sob a pena de perderem o sustento financeiro
pessoal e familiar bem como sob o custo de perderem o status que o cargo lhes confere
contrariar os dogmas patronais
ldquo[] o intelecto dessa gente permanece fiel agrave sua destinaccedilatildeo
natural de trabalhar a serviccedilo da vontade como normalmente acontece
Mas por isso mesmo existe sempre uma intenccedilatildeo como fundamento do
seu agir e pensar eles tecircm fins o tempo todo e soacute tomam conhecimento
do que diz respeito a esses fins e portanto soacute do que corresponde a
esses fins A atividade do intelecto liberto da vontade condiccedilatildeo da pura
objetividade e por isso de todas as grandes realizaccedilotildees permanece-lhes
eternamente estranha ndash eacute uma faacutebula para seu coraccedilatildeordquo (Schopenhauer
SFU 63)
Desta forma os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo estariam voltados para a investigaccedilatildeo
objetiva da ldquoverdaderdquo a qual exigiria o distanciamento de todo e qualquer interesse
24
pessoal De acordo com o sistema schopenhaueriano tal distanciamento eacute um dom raro
com o qual a natureza a poucos contempla Na metafiacutesica schopenhaueriana a natureza
eacute aristocraacutetica O gecircnio eacute fenocircmeno raro seja ele filoacutesofo ou artista A percepccedilatildeo
objetiva do mundo alheia aos interesses pessoais da vontade individual eacute uma exceccedilatildeo
que soacute se manifesta raramente e as pessoas atadas aos interesses pessoais de sua
vontade natildeo podem reconhececirc-lo imediatamente Estes gecircnios produzidos pela natureza
seriam os verdadeiros educadores do mundo e os ldquoprofessores de filosofiardquo ao tentar
representar este papel que soacute agrave natureza cabe eleger causam-lhe repulsa
Tantas mentes comuns que se acham por cargo e profissatildeo no
dever de representar papeacuteis que a natureza nem ao menos lhes atribuiacutera e
de transportar cargas que exigem ombros de gigantes espirituais
oferecem na realidade um espetaacuteculo deveras lamentaacutevel Pois escutar
cantar os roucos e ver danccedilar os coxos eacute penoso mas ouvir filosofar a
mente limitada eacute insuportaacutevel (Schopenhauer SFU 34)
Prova do embotamento da capacidade de reconhecimento de uma produccedilatildeo genial era
para o filoacutesofo o fato de seus contemporacircneos ignorarem ou mesmo passarem agrave
margem do que seria a mais importante produccedilatildeo filosoacutefica do periacuteodo a cisatildeo entre o
real e o ideal perpetrada pela primeira criacutetica kantiana Esta era para o filoacutesofo a maior
prova do demeacuterito filosoacutefico de seus contemporacircneos preocupados com seus interesse
pessoais alheios a uma observaccedilatildeo objetiva do mundo natildeo levaram em consideraccedilatildeo os
limites impostos pela primeira criacutetica kantiana a toda investigaccedilatildeo racional
Depois de Kant ter cortado o nervo de todas as provas possiacuteveis
da teologia ndash tatildeo incisivamente que desde entatildeo ningueacutem mais pocircde
meter-se com elas ndash o esforccedilo filosoacutefico em quase cinquumlenta anos tem
consistido nas diversas tentativas de insinuar sutil e astuciosamente a
teologia e os escritos filosoacuteficos nada mais satildeo na sua maioria do que
tentativas infrutiacuteferas de reanimar um cadaacutever sem vida (Schopenhauer
SFU 81)
Natildeo nos interessa aqui adentrarmo-nos aos reais motivos existentes por
traacutes dos vitupeacuterios schopenhauerianos contra os pensadores de seu tempo nem
25
tampouco fazer juiacutezo valorativo sobre a importacircncia da filosofia da vontade em
comparaccedilatildeo ao idealismo absoluto Dentro do objetivo proposto qual seja situar
historicamente a filosofia da vontade e apontar suas influecircncias o importante eacute ressaltar
que a filosofia contemporacircnea a Schopenhauer natildeo fez efeito sobre a sua proacutepria a ponto
de modificaacute-la em seu conteuacutedo conforme esclarece o proacuteprio filoacutesofo ldquo [] meus
contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes permaneci
estranhosrdquo (apud Lefranc 2005 17) Eacute fundamental verificarmos que apesar do
sistema schopenhaueriano ter se desenvolvido agrave margem do idealismo de entatildeo seu
autor natildeo o desconhecia e muitas das ilustraccedilotildees e argumentaccedilotildees utilizadas por ele na
explicaccedilatildeo de suas teorias apoiavam-se nesta sua contenda com o seu tempo
Entretanto como a filosofia de seu tempo pretende-se herdeira do kantismo assim
tambeacutem procede Schopenhauer e a suas criacuteticas ao idealismo absoluto estatildeo
fundamentadas em sua pretensatildeo a uma heranccedila direta da filosofia kantiana Sobre a
heranccedila de Kant Schopenhauer esclarece ldquoEm todo caso natildeo reconheccedilo que tenha
acontecido algo na filosofia entre ele e mim por conseguinte ligo-me imediatamente a
elerdquo (Schopenhauer MVR 525)
Natildeo obstante as diversas criacuteticas ao retorno kantiano ao dogmatismo8
das quais a obra de Schopenhauer estaacute recheada sua admiraccedilatildeo por ele foi tambeacutem
abundantemente expressa Considerava-o ldquoa inteligecircncia mais original jaacute criada pela
naturezardquo (Schopenhauer SFU52) e afirmava que seus escritos capitais eram o ldquo[]
fenocircmeno mais importante que ocorreu ao longo dos uacuteltimos dois mil anos na filosofia
[]rdquo (Schopenhauer MVR 22) O maior reflexo desta admiraccedilatildeo pode ser observada
8 Nas palavras de Cacciola ldquoO criticismo de Kant teria segundo Schopenhauer perdido sua forccedila inicial
na segunda ediccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura Ou seja Schopenhauer acusa Kant de uma ldquorecaiacuteda no
dogmatismordquo por ter amenizado seu confronto com a teologia A ameaccedila dogmaacutetica jaacute configurada na
filosofia teoacuterica concretiza-se na Eacutetica de Kant quando esta acolhe como postulados Deus
imortalidade da alma e liberdade No poacutes-kantismo a importacircncia crescente atribuiacuteda agrave filosofia praacutetica
de Kant a expensas de sua criacutetica do conhecimento teria levado a uma espeacutecie de contaminaccedilatildeo da
razatildeo teoacuterica pela razatildeo praacutetica fazendo com que a primeira se transformasse num oacutergatildeo apto para
captar o Absolutordquo (Cacciola 1994 20)
26
no fato de que eacute da filosofia kantiana que Schopenhauer retira o leitmotiv para o
desenvolvimento da ideacuteia central9 de sua filosofia Esta ideacuteia central eacute aquela contida
concisamente no tiacutetulo de sua obra principal O mundo como vontade e como
representaccedilatildeo10
A dualidade formada entre representaccedilatildeo e vontade atraveacutes da qual
Schopenhauer acredita ter desvendado o ldquomisteacuteriordquo cosmoloacutegico eacute uma apropriaccedilatildeo
assumida dos conceitos kantianos de fenocircmeno e coisa-em-si respectivamente
Dizemos apropriaccedilatildeo pois aqueles conceitos satildeo acrescidos na filosofia
schopenhaueriana de caracteriacutesticas singulares Eacute com base nesta dualidade de
perspectivas de conhecimento do mundo inspirada na primeira criacutetica kantiana que o
filoacutesofo desenvolve as demais teorias que compotildeem seu sistema sejam elas a esteacutetica a
eacutetica a poliacutetica etc
Para Schopenhauer ldquoo maior meacuterito de Kant eacute a distinccedilatildeo entre
fenocircmeno e coisa-em-sirdquo (Schopenhauer MVR 526) Esta distinccedilatildeo foi o que
possibilitou a ldquorevoluccedilatildeo copernicanardquo realizada sobre o dogmatismo anterior A partir
daquele momento ldquoo mundo objetivo como o conhecemos natildeo pertence agrave essecircncia das
coisas em si mesmas mas eacute seu mero FENOcircMENO condicionado exatamente por
aquelas mesmas formas que se encontram a priori no intelecto
humanordquo(Schopenhauer MVR 530) Na teoria kantiana temos o espaccedilo e o tempo
como formas da sensibilidade que na filosofia de Schopenhauer satildeo associadas agrave
faculdade do entendimento juntamente com a causalidade uacutenica das doze categorias
kantianas do entendimento mantidas por Schopenhauer em seu sistema Desta forma o
mundo enquanto representaccedilatildeo eacute aquele que se apresenta para o sujeito enquanto objeto
9 Quando dizemos ideacuteia central havemos de lembrar que no sistema schopenhaueriano esta categorizaccedilatildeo
eacute singular (o tema seraacute tratado no iniacutecio do proacuteximo capiacutetulo) 10
A importacircncia que o filoacutesofo daacute ao tiacutetulo de uma obra eacute esclarecedora para a compreensatildeo da
importacircncia de sua ideacuteia central ldquoo que o sobrescrito deve ser para uma carta eacute o que um tiacutetulo deve ser
para um livro ou seja antes de tudo deve ter o objetivo de destinaacute-lo agrave parte do puacuteblico que pode se
interessar por seu conteuacutedo Sendo assim o tiacutetulo precisa ser caracteriacutestico e por ser naturalmente
breve deve ser conciso lacocircnico pregnante e se possiacutevel um monograma do conteuacutedordquo
(Schopenhauer SOE 09-10)
27
condicionado por estas trecircs formas presentes a priori no intelecto humano tempo
espaccedilo e causalidade Quanto ao mundo noumecircnico que dentro da teoria kantiana eacute um
ldquox desconhecidordquo Schopenhauer o explica atraveacutes da Vontade sua traduccedilatildeo da coisa-
em-si Essa dualidade que traz agrave tona a ldquocompleta diversidade entre o ideal e o realrdquo
(Schopenhauer MVR 527) doutrina que de acordo com Schopenhauer (MVR 528) foi
expressa por Kant de forma soacutebria calma demonstrada e incontestaacutevel jaacute havia sido
expressa tambeacutem em linguagem mais miacutetica e poeacutetica por outras duas doutrinas que
tambeacutem estatildeo profundamente presentes na obra Schopenhaueriana Platatildeo e os escritos
indianos dos Vedas e Puranas
Os estudos das obras de Platatildeo e Kant foram recomendaccedilatildeo de Schultze
um dos professores de Schopenhauer em Gottingen (Weissmann 1980 54) e formam os
pilares filosoacuteficos do sistema schopenhaueriano A separaccedilatildeo entre o real e o ideal
executada por Kant eacute vista tambeacutem na obra platocircnica Sua teoria das ideacuteias bem como
sua alegoria da caverna satildeo expressotildees de uma intuiccedilatildeo da existecircncia daquela separaccedilatildeo
O que Kant teria sistematizado a seu modo eacute a mesma verdade que ldquojaacute Platatildeo
incansavelmente repete e na maioria das vezes exprime em sua linguagem do seguinte
modo este mundo que aparece aos sentidos natildeo possui nenhum verdadeiro ser mas
apenas um incessante devir ele eacute e tambeacutem natildeo eacute sua apreensatildeo natildeo eacute tanto um
conhecimento mas uma ilusatildeordquo (Schopenhauer MVR 528)
Aleacutem de Platatildeo os livros sagrados dos indianos afirmavam esta ldquoilusatildeordquo
ldquofantasmagoriardquo do mundo e constituem tambeacutem uma fonte frequumlentemente utilizada
por Schopenhauer O contato do nosso filoacutesofo com o pensamento oriental se deu
quando do seu encontro com o orientalista Friedrich Majer no salatildeo de sua matildee em
28
Weimar A partir de entatildeo o interesse do filoacutesofo pelo pensamento oriental foi se
intensificando ao longo de sua vida 11
A mesma verdade representada de modo completamente outro eacute
tambeacutem uma doutrina capital dos vedas e puranas a saber a doutrina de
Maia pela qual natildeo se entende outra coisa senatildeo aquilo que Kant nomeia
o fenocircmeno em oposiccedilatildeo agrave coisa-em-si pois a obra de maia eacute
apresentada justamente como este mundo visiacutevel no qual estamos um
efeito maacutegico que aparece na existecircncia uma aparecircncia inconstante e
inessencial em si destituiacuteda de ser comparaacutevel agrave ilusatildeo de oacutetica e ao
sonho um veacuteu que envolve a consciecircncia humana um algo do qual eacute
igualmente falso e igualmente verdadeiro dizer que eacute ou natildeo eacute
(Schopenhauer MVR 528)
Estas trecircs doutrinas estavam admitidamente presentes quando da
elaboraccedilatildeo do nuacutecleo conceitual fundamental da posteriormente nominada Filosofia da
Vontade Entretanto aleacutem de formarem seu nuacutecleo conceitual podemos encontraacute-las
ainda posteriormente em outros instantes desta filosofia O pensamento oriental seraacute
figura fortemente presente na eacutetica schopenhaueriana desenvolvida no quarto livro do
Mundo onde o filoacutesofo adotaraacute como fundamento de sua eacutetica o sentimento da
compaixatildeo jaacute presente na doutrina budista Platatildeo e Kant satildeo ainda influecircncias
fundamentais como veremos no proacuteximo capiacutetulo da esteacutetica schopenhaueriana O
primeiro novamente atraveacutes de sua teoria das ideacuteias seraacute utilizado por Schopenhauer na
definiccedilatildeo do objeto artiacutestico Do segundo poderemos notar sua influecircncia nas teorias
schopenhauerianas do sublime da imaginaccedilatildeo e da contemplaccedilatildeo desinteressada todas
elas fundamentais agrave compreensatildeo da teoria da arte poeacutetica
- - - - - - - - - -
11
Suas fontes principais eram o Oupnekacutehat uma traduccedilatildeo latina dos vedas e o Asiatic Journals jornal
publicado pela sociedade asiaacutetica fundada em 1784 Para uma referecircncia completa das citaccedilotildees orientais
na obra de Schopenhauer veja o apecircndice do artigo de Moira Nicholls The influences of Eastern Thought
on Schopenhaueracutes Doctrine of the Thing-in-itself (in Janaway 1999 197-204)
29
Apresentadas as principais influecircncias teoacutericas do sistema
schopenhaueriano passemos a uma breve descriccedilatildeo do ambiente cultural que naquele
momento tinha como foco um projeto de fundaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para o teatro e a
literatura germacircnicas Tal projeto envolveu os mais importantes dramaturgos criacuteticos
escritores e pensadores do periacuteodo imediatamente anterior a Schopenhauer12
e eacute
tambeacutem posteriormente retomado por Nietzsche em seu Nascimento da Trageacutedia Sua
importacircncia para a filosofia da vontade pode ser medida pela recorrente referecircncia feita
a estes pensadores nas obras dos filoacutesofos Seu iniacutecio em meados do seacuteculo XVIII deu-
se pela influecircncia exercida pelo historiador da arte Johann J Winckelmann junto aos
escritores poetas e dramaturgos posteriores dentre eles Lessing Goethe e Schiller
A influecircncia winckelmanniana que de acordo com Butler (1958 11)
criou ondas cujo violento distuacuterbio ldquoainda varrem as praias do seacuteculo XXrdquo se pautou
em duas noccedilotildees fundamentais13
a imitaccedilatildeo dos antigos e o belo ideal Winckelmann
propunha um novo modelo no qual a arte germacircnica deveria se basear para atingir uma
grandiosidade rara e ldquoinimitaacutevelrdquo a imitaccedilatildeo dos gregos Por esta imitaccedilatildeo o
historiador natildeo propunha uma mera coacutepia das obras de arte gregas poreacutem uma imitaccedilatildeo
do modo de produccedilatildeo artiacutestica dos gregos qual seja sintetizar a beleza ideal descoberta
na observaccedilatildeo da diversidade objetiva da natureza Esta proposta de um retorno ao
modelo antigo coloca Winckelmann na esteira da conhecida querela entre antigos e
modernos e eacute a igniccedilatildeo para o periacuteodo literaacuterio conhecido como classicismo germacircnico
Esta disputa quanto agrave valorizaccedilatildeo das obras poeacuteticas antigas ou modernas estaraacute de um
modo ou de outro presente nas teorias schopenhaueriana e nietzscheana da trageacutedia
12
De acordo com Schopenhauer as obras de tais poetas e escritores assim como a filosofia de Kant satildeo
exemplos para os quais a literatura e a filosofia pobres de seu tempo deveriam se voltar No que se refere
ao uso da liacutengua ele aconselha ldquoLede vede qual liacutengua Winckelmann Lessing Klopstock Wieland
Goethe Buumlrger Schiller falaram e emulai-a mas natildeo fazei o mesmo com o jargatildeo estupidamente
excogitado pelos miseraacuteveis literatos atuais e entre eles pelos professores que vatildeo agrave escola de liacutenguardquo
(Schopenhauer SOE 57-58) 13
Esta duas noccedilotildees fundamentais satildeo ressaltadas por Suumlssekind e Machado em seus trabalhos sobre o
tema Veja Suumlssekind 2008 67-77 e Machado 2006 9-14
30
Como veremos posteriormente Schopenhauer privilegiaraacute a trageacutedia moderna em
detrimento da antiga argumentando que aquela cumpre com maior competecircncia o seu
objetivo enquanto forma de arte qual seja provocar repulsa agrave vontade de viver e
estimular sua negaccedilatildeo Apesar deste privileacutegio pelas obras traacutegicas modernas o filoacutesofo
natildeo deixa como seus contemporacircneos de ter os gregos como modelo e natildeo satildeo raros
seus elogios agraves produccedilotildees helecircnicas Para Schopenhauer Winckelmann foi para a
histoacuteria da arte assim como ele o eacute para a da filosofia um exemplo do modo epiciacuteclico
atraveacutes do qual a natureza de tempo em tempo faz avanccedilar o conhecimento do gecircnero
humano Para o filoacutesofo a retomada do projeto kantiano realizada pelo seu sistema eacute a
demonstraccedilatildeo de que entre ele e Kant nenhum conhecimento foi produzido Como
exemplo deste esquema epiciacuteclico na histoacuteria da arte Schopenhauer utiliza-se do
retorno de Winckelmann agrave beleza claacutessica o que nos mostra a importacircncia dada pelo
filoacutesofo agrave forma de arte grega bem como ao projeto inaugurado pelo historiador da arte
Apoacutes explicar o esquema epiciacuteclico da evoluccedilatildeo dos progressos humanos
Schopenhauer diz
Para quem deseja poreacutem ter uma prova do esquema geral dos
epiciclos aqui exposto com base na histoacuteria da arte basta observar a
escola de escultura de Bernini que florescia ainda no seacuteculo passado
particularmente em seu desenvolvimento francecircs sucessivo e que
representava a natureza comum em vez da beleza claacutessica e o decoro do
minueto francecircs em vez da simplicidade e da graccedila antigas Tal escola
faliu quando apoacutes a repreensatildeo de Winckelmann voltou-se agrave escola dos
antigos (Schopenhauer SOE 110)
Nietzsche por sua vez seguiraacute o caminho winckelmanniano de exaltaccedilatildeo da forma de
arte antiga apresentando a trageacutedia grega como modelo para a arte moderna e elogiando
a iniciativa de seus predecessores em valorizar e recuperar a arte helecircnica
31
Conviria que alguma vez se pesasse diante dos olhos de um juiz
insubornaacutevel em que tempo e em que homens o espiacuterito alematildeo se
esforccedilou mais vigorosamente por aprender dos gregos e se admitirmos
com confianccedila que esse louvor uacutenico deveria ser atribuiacutedo agrave nobiliacutessima
luta de Goethe Schiller e Winckelmann pela cultura haveria em todo
caso que acrescentar que desde aquele tempo e depois das influecircncias
imediatas daquela luta tornou-se cada vez mais fraca de maneira
incompreensiacutevel a aspiraccedilatildeo de se chegar por uma mesma via agrave cultura e
aos gregos (Nietzsche NT 120)
Podemos perceber entatildeo a importacircncia do helenismo proposto por Winckelmann no
pensamento germacircnico ao observarmos a sua duraccedilatildeo tendo em vista que mais de um
seacuteculo separa o historiador da arte e o filoacutesofo da vontade de poder o que confirma a
forccedila de suas propostas para uma cultura em formaccedilatildeo e justifica o epiacuteteto com o qual
Butler caracterizou este periacuteodo dizendo que nele vemos ldquoa tirania da Greacutecia sobre a
Alemanhardquo14
O segundo ponto fundamental da teoria da arte winckelmanniana o belo
ideal natildeo provocou menor interesse em seu tempo Este belo ideal era alcanccedilado a
partir da reuniatildeo em uma uacutenica obra harmocircnica daquilo que o artista observa de mais
belo na natureza
A natureza tem seus defeitos o corpo mais belo natildeo deixa de tecirc-los e
nele encontramos frequumlentemente partes que em outros satildeo mais belas ou
podem supor-se mais perfeitas [] Os gregos trataram de reunir as formas
elegantes de vaacuterios corpos belos como sabemos pelo diaacutelogo de Soacutecrates com o
ceacutelebre pintor Parrasio [] Esta seleccedilatildeo das partes belas e sua harmocircnica
associaccedilatildeo em uma soacute figura produziu a beleza ideal (Winckelmann 2002
130)
Tal beleza encontrou sua manifestaccedilatildeo primeira na Greacutecia do periacuteodo helecircnico devido
ao favorecimento das condiccedilotildees geograacutefico-climaacuteticas15
e poliacuteticas16
Aleacutem da beleza
14
Tiacutetulo de sua obra Butler 1958 15
Sobre a influecircncia climaacutetica Winckelmann deduz ldquoA natureza depois de haver se manifestado em
gradaccedilotildees extremas de frio e de calor se estabeleceu na Greacutecia como em seu centro e por isso reina
naquele paiacutes uma temperatura intermediaacuteria entre o inverno e o veratildeo E quanto mais se aproxima deste
centro mais claridade e serenidade oferece e suas obras se manifestam em formas mais graciosas e
amaacuteveis e com detalhes mais caracteriacutesticos e decididosrdquo (Winckelmann 2002106) 16
Sobre as condiccedilotildees poliacuteticas sejam elas patriarcais democraacuteticas ou tiracircnicas Winckelmann conclui o
seguinte ldquoCom relaccedilatildeo ao regime poliacutetico e o governo da Greacutecia a liberdade eacute uma das causas da
preeminecircncia dos gregos na arte Tambeacutem a liberdade parece ter estabelecido na Greacutecia a sua sede existia
32
formal retirada da diversidade das formas naturais eleitas as mais belas as obras gregas
eram exemplares devido agrave importacircncia dada pelos artistas agrave sua expressatildeo A obra de
arte deve sua forccedila tanto agrave beleza das formas quanto agrave expressatildeo da alma nela contida
De acordo com Winckelmann ldquoa expressatildeo de uma alma grande vai muito aleacutem da
plasmaccedilatildeo de uma bela naturezardquo isto ocorre devido ao fato de que para o historiador
da arte ldquona Greacutecia a sabedoria estendia a matildeo agrave arte e insuflava nas figuras almas
mais que comunsrdquo (Winckelmann 1958 19) As caracteriacutesticas que esta expressatildeo deve
possuir satildeo aquelas contidas na passagem mais famosa da obra de Winckelmann na
qual ele descreve ainda como exemplo daquela expressatildeo artiacutestica o grupo estatuaacuterio
do Laocoonte que por sua vez seraacute alvo de uma grande controveacutersia posterior da qual
participaratildeo dentre outros Lessing Herder Goethe Schelling e Schopenhauer
Reproduzimos a passagem de Winckelmann em sua integridade
A caracteriacutestica geral e principal das obras mestras gregas eacute uma
nobre simplicidade e uma serena grandeza tanto na atitude como na
expressatildeo Assim como nas profundidades o mar estaacute sempre calmo por
muito que se agite a superfiacutecie do mesmo modo a expressatildeo nas figuras
dos gregos mostra em meio a todas as paixotildees uma alma grande e
comedida Isso transmite o rosto do Laocoonte ndash e natildeo soacute o dele ndash em
meio agrave mais violenta dor O sofrimento que aparece em todos os
muacutesculos e fibras do corpo e que no baixo ventre contraiacutedo se
experimenta tatildeo intensamente que parecemos senti-lo natildeo se exterioriza
contudo mediante qualquer ira no rosto e em toda a atitude Natildeo lanccedila
um grito terriacutevel tal como Virgiacutelio cantou em seu Laocoonte A abertura
da boca natildeo o permitiria Mais parece um suspiro angustiado como o
descreve Sadolet A dor do corpo e a grandeza da alma estatildeo distribuiacutedos
com igual forccedila atraveacutes de toda a composiccedilatildeo da figura e em certa
medida estatildeo equilibrados Laocoonte sofre mas sofre como o
Filoctetes de Soacutefocles sua dor nos toca a alma mas desejariacuteamos poder
suportar essa dor com a grandeza desse homem (Winckelmann 1958
18-19 grifo nosso)
inclusive junto ao tronos de seus reis que governavam paternalmente a seus suacuteditos antes que mais
ilustrados gozassem do destino de uma completa liberdade Homero chama a Agamemnoacuten de pastor de
seus povos com o que queria designar sua ternura com seus subordinados e sua preocupaccedilatildeo constante
pela felicidade dos mesmos Eacute bem verdade que depois surgiram tiranos mas natildeo o foram mais para uma
determinada cidade e a naccedilatildeo inteira jamais reconheceu um soberano uacutenicordquo (Winckelmann 2002 109)
33
Desta famosa passagem retiramos dois momentos que especialmente nos interessam O
primeiro dele eacute a enunciaccedilatildeo que caracterizaraacute o ideal de beleza das obras gregas nobre
simplicidade e uma serena grandeza Este ideal winckelmanniano de beleza eacute o que
torna a arte grega nas palavras de Suumlssekind ldquoinimitaacutevel e ao mesmo tempo faz dela o
modelo a ser imitadordquo (Suumlssekind 2008 69) Interessa-nos especialmente devido agrave
influecircncia desta definiccedilatildeo para a teoria do jovem professor de filologia da Basileacuteia
Podemos ver ateacute mesmo pelo vocabulaacuterio utilizado para descrever a arte grega a
proximidade e a influecircncia exercida por estes conceitos nas teorias esteacuteticas do primeiro
Nietzsche Luminosidade serenidade harmonia satildeo alguns dos conceitos que
posteriormente seratildeo utilizados por Nietzsche ao definir o seu impulso artiacutestico
apoliacuteneo17
O segundo momento - quando Winckelmann defende o espiacuterito grego na
escultura do Laocoonte em contraposiccedilatildeo ao personagem de Virgiacutelio comparando esta
representaccedilatildeo escultural com o Filoctetes de Soacutefocles - seraacute o precursor do posterior
debate sobre as fronteiras que separam as formas de arte Para Winckelmann ldquoa nobre
simplicidade e a serena grandeza das estatuas gregas eacute tambeacutem a verdadeira
caracteriacutestica dos escritos gregos da melhor eacutepoca dos escritos da escola
socraacuteticardquo(Winckelmann 1958 31) O debate sugerido pela passagem do qual
participaraacute posteriormente o proacuteprio Schopenhauer seraacute iniciado por outro pensador
de grande importacircncia para o projeto cultural alematildeo Gotthold Ephraim Lessing
Lessing em sua obra Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da
poesia apresentaraacute a contenda que chegaraacute ateacute Schopenhauer Para Lessing o ponto de
discordacircncia com Winckelmann estaacute no motivo pelo qual na escultura o Laocoonte natildeo
17
Segundo Rodriges (2007 93-126) tambeacutem o conceito do impulso dionisiacuteaco estaria mesmo que em
germe presente nos estudos de Winckelmann Segundo seu artigo o mapeamento da origem e
desenvolvimento da discussatildeo sobre os citados impulsos artiacutesticos da natureza ou seja sobre a
importacircncia dos deuses Apolo e Dioniacutesio na cultura grega abrangeria necessariamente diversas aacutereas do
pensamento alematildeo desde Winckelmann dentre elas os estudos filoloacutegicos o movimento romacircntico e as
filosofias idealistas
34
apresenta as caracteriacutesticas de quem grita e lamenta Como vimos para Winckelmann o
conjunto estatuaacuterio em questatildeo eacute exemplar pelo fato de transmitir atraveacutes da atitude
estoacuteica diante da dor a grandeza de alma que seria a regra universal da verdadeira arte
grega Esta grandeza enquanto regra universal estaria ainda de acordo com o
historiador da arte presente tanto nas formas pictoacutericas como nas obras poeacuteticas
Contrapondo-se a Winckelman Lessing afirma - exemplificando atraveacutes de passagens
de poetas queridos ao proacuteprio Winckelmann como Homero e Soacutefocles - que em vaacuterios
momentos da poesia antiga diversos personagens dentre eles deuses e heroacuteis proferem
exaltados lamentos e gritos e isto natildeo lhes subtrai a grandeza da alma Sendo assim se
na poesialdquoo gritar na sensaccedilatildeo de dor corporal pode coexistir muito bem com uma
grande alma portanto a expressatildeo de uma tal alma natildeo pode ser a causa pela qual
apesar disso o artista natildeo quer imitar esse grito no seu maacutermore antes deve haver um
outro motivo por que aqui ele separa-se do seu rival o poeta que expressa esse grito
com o melhor propoacutesitordquo(Lessing 1998 86) O motivo pelo qual em sua representaccedilatildeo
estatuaacuteria o Laocoonte natildeo grita eacute para Lessing uma questatildeo de limitaccedilatildeo da forma de
expressatildeo escultoacuterica que ao se submeter agrave ldquolei da belezardquo natildeo pode representar o grito
desfigurador Em suas palavras
O mestre visava a suprema beleza sob as condiccedilotildees aceitas da dor
corporal Esta em toda a sua violecircncia desfiguradora era incompatiacutevel
com aquela Ele foi obrigado a reduzi-la ele foi obrigado a suavizar o
grito em suspiro natildeo porque o grito denuncia uma alma indigna mas
antes porque ele dispotildee a face de um modo asqueroso (Lessing 1998
92)
Devemos ressaltar que segundo a teoria artiacutestica de Lessing para quem as leis a que
devem obedecer a arte estatildeo ligadas agrave sua interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica a arte eacute
julgada atraveacutes do seu efeito Neste contexto ao conceder a seus personagens
caracteriacutesticas de humanidade como por exemplo a manifestaccedilatildeo da dor atraveacutes de
35
lamentos e gritos o poeta estaria aproximando o heroacutei traacutegico do puacuteblico a ser atingido
e consequumlentemente maximizando a identificaccedilatildeo entre eles e com isto o efeito
esperado qual seja a catarse atraveacutes do temor e da compaixatildeo Esta identificaccedilatildeo
alcanccedilada por via da demonstraccedilatildeo dos lamentos dos heroacuteis dramaacuteticos natildeo pode ser
obtida da mesma forma pelas artes pictoacutericas Nestas que satildeo expressotildees de um
momento uacutenico a beleza natildeo pode deixar de estar presente pois ela eacute um dos
ingredientes mais fundamentais do efeito buscado Na poesia o heroacutei natildeo seraacute
caracterizado em uma uacutenica accedilatildeo como ocorre na escultura Sendo assim o grito
narrado eacute apenas um momento do conjunto que iraacute definir o personagem
O Laocoonte de Virgiacutelio grita mas esse Laocoonte que grita eacute
justamente aquele que noacutes jaacute conhecemos e amamos como o patriota
mais cordato e o pai mais afetuoso Noacutes vinculamos o seu grito natildeo ao
seu caraacuteter mas antes apenas ao seu sofrimento insuportaacutevel Apenas
esse uacuteltimo noacutes ouvimos no seu grito e o poeta pode tornaacute-lo sensiacutevel
apenas graccedilas a esse grito (Lessing 1998 106)
Com isto tanto o escultor que suprime o grito quanto o poeta que o descreve ao
fazerem o fazem de acordo com as leis que regem suas respectivas formas de arte
Da contenda sobre o grito do Laocoonte e sua representaccedilatildeo escultoacuterica e
poeacutetica iratildeo participar ainda diversos pensadores Dentre os mais ilustres podemos
destacar Goethe cuja explicaccedilatildeo sobre a escultura proacutexima em muitos pontos da de
Lessing encontra-se nos Propileus Para o poeta o grupo estatuaacuterio ldquoesgota o seu objeto
e preenche com sucesso todas as condiccedilotildees da arterdquo (Goethe 2005126) Segundo
Goethe a escultura eacute limitada a um uacutenico momento da accedilatildeo e sua comparaccedilatildeo com a
poesia de Virgiacutelio eacute injusta O poeta a avalia assim como Lessing atraveacutes de seu efeito
ainda dentro das categorias poeacuteticas de Aristoacuteteles e destaca
O ser humano possui apenas trecircs sentimentos no sofrimento
proacuteprio e alheio o medo o terror e a compaixatildeo a previsatildeo temerosa de
um mal que se aproxima a percepccedilatildeo inesperada do sofrimento presente
36
e a participaccedilatildeo no sofrimento duradouro ou que passou todos os trecircs
sentimentos satildeo representados e suscitados por esta obra de arte e na
verdade na gradaccedilatildeo a mais conveniente (Goethe 2005 126)
Em sua obra principal Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 46 a seus comentaacuterios do
Laocoonte que seratildeo acrescidos de exemplos no posterior volume de suplementos
Reconhece o avanccedilo feito por Lessing ao colocar no lugar de um fundamento
psicoloacutegico um fundamento puramente esteacutetico e critica ainda as teorias psicoloacutegicas e
fisioloacutegicas de seu tempo como as de Hirt e Fernow18
Para Schopenhauer apesar de
sua aproximaccedilatildeo do que seria uma ldquoexplicaccedilatildeo corretardquo da obra Lessing natildeo encontrou
o seu ponto exato qual seja a explicaccedilatildeo de que o grito natildeo pertence ao domiacutenio de
uma representaccedilatildeo escultoacuterica
Antes de qualquer investigaccedilatildeo psicoloacutegica e fisioloacutegica sobre se
Laocoonte em sua situaccedilatildeo poderia gritar ou natildeo deve-se decidir em
relaccedilatildeo ao grupo de esculturas o seguinte que nele o grito natildeo pode ser
exposto pelo motivo de que a exposiccedilatildeo do grito reside por inteiro fora
do domiacutenio da escultura (Schopenhauer MVR 2005 303)
Para Schopenhauer a simples exposiccedilatildeo que representaria o grito ou seja ldquoo
escancarar violento da bocardquo natildeo pode ocasionar o efeito que o grito mesmo enquanto
forma de expressatildeo ocasionaria O efeito que o grito pode causar em uma arte
descritiva atraveacutes do uso da imaginaccedilatildeo do leitor ou mesmo na arte representativa no
teatro tornar-se-ia motivo de riso caso seja representado por uma boca escancarada na
arte plaacutestica Schopenhauer utiliza-se do exemplo do Laocoonte para demonstrar a
necessidade do estabelecimento de fronteiras entre as artes que devido agrave suas formas
devem obedecer agraves competecircncias determinadas pelo objeto representado (no caso da
teoria schopenhaueriana as competecircncias seratildeo determinadas pelas ideacuteias a serem
representadas como veremos posteriormente) Esta preocupaccedilatildeo com os limites entre as
18
Segundo Schopenhauer Hirt (Horen 1797 parte 10) apresenta a explicaccedilatildeo de que Laocoonte natildeo grita
pois estaacute impossibilitado pela sufocaccedilatildeo que o leva agrave morte Fernow por sua vez faz uma amalgama das
opiniotildees de Winckelmann Lessing e Hirt
37
formas artiacutesticas presente na esteacutetica schopenhaueriana e no Laocoonte de Lessing foi
contudo como nos lembra Suzuki (Rosenfield 2001 36-56) ignorada por Goethe
(como podemos ver pelos elementos da poeacutetica aristoteacutelica utilizados pelo poeta para
explicar a escultura na citaccedilatildeo presente na paacutegina anterior) e seraacute posteriormente
tambeacutem desconsiderada por Nietzsche em seu projeto de uma obra de arte total
Diante do acima exposto ainda tratando de Lessing podemos perceber
que toda a discussatildeo acerca do Laocoonte foi desencadeada pela motivaccedilatildeo de defesa da
arte poeacutetica agrave qual Lessing dedicou sua vida como escritor diretor e criacutetico teatral
Desta forma a importacircncia de Lessing para o tema em questatildeo nesta dissertaccedilatildeo estaacute
mais ligado ao seu papel junto a um projeto de formaccedilatildeo de um teatro alematildeo e sua
interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica Enquanto teoacuterico e criacutetico do teatro o autor da
Dramaturgia de Hamburgo exerceu grande influecircncia na cultura posterior ao oferecer a
seu tempo uma nova interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica que vai de encontro agraves
interpretaccedilotildees francesas e de Gottsched que eram por sua vez inflexiacuteveis em relaccedilatildeo agraves
regras (das unidades de espaccedilo tempo e lugar do estatuto social dos personagens da
linguagem e do nuacutemero de atos) Lessing atento agraves necessidades de uma burguesia em
ascensatildeo que natildeo se identificava mais com as concepccedilotildees aristocraacuteticas do modelo de
teatro francecircs e imbuiacutedo na construccedilatildeo do projeto de formaccedilatildeo cultural de uma naccedilatildeo
fragmentada oferece atraveacutes de suas interpretaccedilotildees uma seacuterie de elementos que estaratildeo
presentes nas consideraccedilotildees de pensadores posteriores Dentre estes elementos podemos
destacar as seguintes uma discussatildeo acerca dos conceitos de mimese temor
compaixatildeo catarse a defesa da utilizaccedilatildeo de caracteres mistos a liberdade do gecircnio
ante as regras o enaltecimento dos teatros espanhol e inglecircs principalmente de
Shakespeare
38
Ao tratarmos do referido projeto de um teatro alematildeo e tambeacutem do
classicismo germacircnico dois nomes ainda satildeo fundamentais para sua formaccedilatildeo bem
como eacute incontestaacutevel sua influecircncia sobre Schopenhauer e o jovem Nietzsche19
satildeo
eles Goethe e Schiller O primeiro deles maior dos poetas do classicismo germacircnico
foi um ampliador do projeto Winckelmanniano ldquoPois Goethe pensa o ideal de beleza
natildeo soacute em relaccedilatildeo agrave pintura e agrave escultura mas tambeacutem e principalmente em relaccedilatildeo agrave
poesia ou agrave arte dramaacutetica ampliando as ideacuteias de Winckelmann nesse domiacutenio como
teoacuterico e como criador de obras teatraisrdquo (Machado 2006 14) Seu classicismo
impresso em seus textos teoacutericos e na forma e conteuacutedo de diversas de suas produccedilotildees
literaacuterias eacute o auge do projeto Winckelmanniano Podemos ver na esteira de Machado
(2006 14-22) que o ideal de beleza proposto por Winckelmann eacute ainda o que domina a
noccedilatildeo Goetheana dos gregos e eacute apoiado neste ideal que o poeta interpreta a arte do
mundo helecircnico e a apresenta como um exemplo para a arte de seu tempo Ressaltamos
poreacutem que dada a sua extrema heterogeneidade como nos adverte Butler (1958 85)
encontrar um senso de harmonia interna no todo da obra goetheana eacute tarefa tatildeo incerta
como determinar o grau de sua influecircncia no pensamento de nossos filoacutesofos No que se
refere a Schopenhauer entretanto natildeo podemos deixar de ressaltar que sua convivecircncia
com o poeta foi norteada pelas discussotildees cientiacuteficas e filosoacuteficas que ocupavam o palco
de seus estudos agrave eacutepoca Goethe dedicou vinte anos de sua vida ao estudo das cores e
sua obra Doutrina das cores eacute o resultado desta investigaccedilatildeo Ela atraiu o interesse do
jovem Schopenhauer que apoacutes alguns encontros com Goethe dedicou-se a escrever a
sua proacutepria teoria que divergia em diversos pontos da teoria do poeta fato que marcou o
fim da relaccedilatildeo amistosa dos mesmos Sobre este periacuteodo de convivecircncia
19
De acordo com Martin (1996) a obra desenvolvida por Nietzsche enquanto escritor e pensador eacute
demasiado complexa para ser reduzida ou atribuiacuteda a determinada influecircncia Entretanto em uma
estatiacutestica crua podemos ter o vislumbre desta influecircncia como se segue ldquoSchopenhauer eacute referenciado
394 vezes na obra de Nietzsche Wagner 327 vezes a Goethe existem 311 menccedilotildees Schiller encontra-se
em nono lugar com 126 menccedilotildeesrdquo (Martin 1996 5)
39
especificamente sobre o episodio citado Goethe vai escrever mais tarde conforme
citaccedilatildeo de Safranski
O Dr Schopenhauer foi para mim um amigo benevolente
Estivemos de acordo em muitas coisas mas foi impossiacutevel evitar ao final
um certo distanciamento como dois amigos que ateacute certo momento
caminharam juntos se datildeo a matildeo para despedir pois querem dirigir-se um
ao norte outro ao sul perdendo-se rapidamente de vista um ao outro
(apud Safranski 1991 265)
Ainda na esteira do movimento de estabelecimento de um projeto
artiacutestico nacional encontramos Schiller que ao lado de Goethe foi o responsaacutevel pelas
maiores obras do classicismo literaacuterio de Weimar Para o estudo em questatildeo o que mais
nos interessa em sua obra eacute o periacuteodo no qual antes do contato com Goethe Schiller
produz seus escritos teoacutericos sobre a trageacutedia Estes estudos podem ser considerados
em uma perspectiva histoacuterica como uma ponte entre a interpretaccedilatildeo da trageacutedia nos
moldes puramente aristoteacutelicos e a trageacutedia vista enquanto forma de arte que para
atingir o efeito dela esperado deve refletir a condiccedilatildeo traacutegica do homem pensada com
base em elementos retirados da filosofia moral e da esteacutetica kantiana Em seus textos
teoacutericos sobre a poesia traacutegica pertencentes ao periacuteodo que Schiller assume ter estado
sob influecircncia da filosofia kantiana ele descreve a trageacutedia como expressatildeo do sublime
ndash conceito extraiacutedo da criacutetica kantiana do juiacutezo ndash como a representaccedilatildeo sensiacutevel da
dicotomia entre a liberdade moral a vontade individual (vontade tomada enquanto
faculdade de pensar e agir livremente) por um lado e a necessidade natural e instintiva
por outro Vemos pela primeira vez em Schiller a utilizaccedilatildeo de categorias filosoacuteficas
kantianas na elaboraccedilatildeo de uma teoria da trageacutedia o que teraacute continuidade com as
teorias do idealismo absoluto e a do proacuteprio Schopenhauer Este eacute um momento
extremamente importante devido ao fato de marcar toda a reflexatildeo futura sobre o tema
ao fundar o deslocamento de uma interpretaccedilatildeo poeacutetica da trageacutedia baseada em
40
comentaacuterios da obra aristoteacutelica para uma interpretaccedilatildeo do traacutegico enquanto fenocircmeno
que descreve a situaccedilatildeo do homem no mundo De acordo com Machado ldquoEacute do
encontro de um grande dramaturgo como Schiller com a filosofia de Kant -
principalmente a sua eacutetica considerada como uma filosofia da liberdade e sua
esteacutetica no que diz respeito agrave teoria do juiacutezo sobre o sublime ndash que nasce a primeira
filosofia do traacutegico uma reflexatildeo filosoacutefica original que criou um tipo novo de
pensamento sobre a trageacutediardquo (Machado 2006 54) Na teoria schopenhaueriana da
trageacutedia podemos ver caracteriacutesticas da teoria schilleriana Primeiramente a presenccedila
marcante da influecircncia kantiana no que se refere ao sublime Em segundo lugar a
leitura da trageacutedia enquanto instrumento para a percepccedilatildeo de uma ordem moral do
mundo Tais caracteriacutesticas seratildeo aprofundadas no capiacutetulo posterior Vale antecipar que
na obra do jovem Nietzsche poderemos ver a exaltaccedilatildeo de Schiller em sua tentativa de
compreensatildeo do mundo helecircnico aleacutem do elogio agrave teoria schilleriana do coro Veremos
entretanto uma criacutetica acirrada no que se refere ao projeto de um teatro enquanto
instituiccedilatildeo moral
Neste capiacutetulo foram delineadas as principais influecircncias filosoacuteficas que
alicerccedilaram o sistema schopenhaueriano bem como esboccedilaram-se as diversas teorias
artiacutesticas que surgiram no periacuteodo em questatildeo teorias estas que propuseram mateacuteria
para a formaccedilatildeo do pensamento de nossos filoacutesofos A partir da cisatildeo entre fenocircmeno e
noumeno proposta por Kant e sua primeira criacutetica Schopenhauer elabora as matrizes de
seu sistema e para ilustraacute-lo encontra apoio na cosmologia platocircnica e no pensamento
oriental Vimos ainda que sua teoria esteacutetica eacute alimentada pela frequumlentaccedilatildeo agraves
categorias apresentadas por artistas teoacutericos e criacuteticos de arte de seu periacuteodo Por seu
turno vimos com Winckelmann a origem do estudo sobre os gregos e sua arte aleacutem do
estabelecimento destes como um modelo para a arte alematilde projeto este que foi
41
retomado por Lessing que por sua vez intensificou o estudo e propocircs um modelo de um
teatro nacional independente projeto que seraacute mais tarde revisitado e aprofundado por
Goethe e Schiller Esta apresentaccedilatildeo de influecircncias eacute imprescindiacutevel para identificarmos
a origem de certos elementos que satildeo fundamentais ao entendimento da proacutepria doutrina
schopenhaueriana tais como o caraacuteter moral de sua teoria esteacutetica sua preocupaccedilatildeo
com o estabelecimento de limite entre as artes sua interpretaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo da poeacutetica
sua utilizaccedilatildeo de conceitos esteacuteticos kantianos (sublime belo e desinteresse) sua
apreciaccedilatildeo das obras modernas seu reconhecimento da produccedilatildeo claacutessica seu desprezo
agrave filosofia de seu tempo Eacute tambeacutem atraveacutes do mapeamento aqui feito de algumas de
suas influecircncias mesmo que brevemente apontado que poderemos mais tarde
identificar alguns dos aspectos originais e singulares de sua teoria
Quanto agraves influecircncias presentes na teoria da trageacutedia do jovem Nietzsche
apontaremos complementos no capiacutetulo correspondente Eacute imprescindiacutevel dar destaque
no que se refere agrave obra nietzscheana agrave sua formaccedilatildeo filoloacutegica ao seu conviacutevio com
Richard Wagner e agrave sua leitura do proacuteprio Schopenhauer - e isto seraacute feito
posteriormente Esperamos ter deixado claro ateacute aqui que diferentemente de Zaratustra
Nietzsche natildeo desceu simplesmente de uma montanha mas faz parte de uma tradiccedilatildeo
histoacuterica assim como Schopenhauer e que a contextualizaccedilatildeo de suas teorias eacute
fundamental para a identificaccedilatildeo dos elementos ali presentes que singularmente se
originaram do sistema metafiacutesico da Vontade
42
2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU
SUBSTRATO METAFIacuteSICO
ldquoOra se todo mundo como representaccedilatildeo eacute
a visibilidade da Vontade a arte eacute o
clareamento dessa visibilidade a cacircmera
obscura que mostra os objetos mais
puramente permitindo-nos melhor abarcaacute-
los e compreendecirc-los eacute o teatro dentro do
teatro a peccedila dentro da peccedila em Hamletrdquo
(Schopenhauer)
Utilizando-se de uma metaacutefora retirada do Eacutedipo de Soacutefocles Schopenhauer nos
oferece um exemplo da caracteriacutestica de conexatildeo interna dos temas abordados em sua
obra20
ldquo minha filosofia eacute como a Tebas de cem portas desde todos os lados se pode
entrar e atraveacutes de todos se pode chegar por um caminho direto ateacute o centrordquo
(Schopenhauer 2002 4) Tendo em vista que nosso objetivo neste capiacutetulo eacute apresentar
a teoria schopenhaueriana da trageacutedia e seus fundamentos filosoacuteficos utilizaremo-nos
desta porta para termos acesso ao sistema schopenhaueriano Procuraremos percorrer o
20
Barboza define bem esta caracteriacutestica marcante da filosofia schopenhaueriana ldquoSchopenhauer eacute o
filoacutesofo da organicidade Procura-a porque com ela onde quer que se esteja no seu sistema estar-se-aacute
em toda parte O todo conteria as partes e seria contido por elas De uma metafiacutesica da efetividade se vai
para uma do belo desta para a da eacutetica que por sua vez pode remeter agrave muacutesica por seu turno a nos
enviar para a efetividade numa por assim dizer circularidade virtuosa A unidade natildeo se perde do
horizonte de observaccedilatildeordquo (Barboza 2001 137)
43
substrato metafiacutesico sustentador da teoria do traacutegico schopenhaueriana e perceber assim
a conectividade interna existente entre sua cosmologia sua teoria esteacutetica e sua eacutetica
De posse deste meacutetodo procuraremos destacar os conceitos fundamentais da teoria
traacutegica e de sua visatildeo de mundo que viratildeo posteriormente se fazer presentes tambeacutem
na obra do jovem Nietzsche
21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo
Agrave descriccedilatildeo das artes poeacuteticas Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 51 do primeiro
volume e o capiacutetulo 37 do segundo volume de sua obra principal Tais descriccedilotildees
encontram-se por sua vez ao final dos trechos dedicados agrave teoria esteacutetica (livro III de
MVR e sus complementos) e finalizam seus apontamentos do que podemos chamar na
esteira de Young (2005) das artes natildeo-musicais21
Em ambos os casos a teoria da
trageacutedia estaacute localizada ao final da apresentaccedilatildeo Esta localizaccedilatildeo juntamente com as
diversas citaccedilotildees e exemplos retirados de peccedilas traacutegicas das quais o filoacutesofo se utiliza ao
longo de seu trabalho nos permite ver a importacircncia da arte traacutegica para Schopenhauer
Em sua teoria artiacutestica existe uma hierarquizaccedilatildeo das artes que leva em consideraccedilatildeo a
capacidade de cada uma em apresentar um grau especiacutefico de objetivaccedilatildeo da vontade
Na cosmologia schopenhaueriana a vontade essecircncia do mundo identificada como
sendo a coisa-em-si kantiana manifesta-se (torna-se objeto de conhecimento) atraveacutes de
diversos graus ndash que exprimem a nitidez com que a vontade se manifesta para o
observador - representados pelos reinos da natureza e finalmente pelo homem Desta
forma ela se objetivaria no mundo inorgacircnico atraveacutes das forccedilas magneacuteticas e da
gravidade no mundo vegetal atraveacutes das funccedilotildees orgacircnicas no mundo animal atraveacutes
21
Como veremos mais adiante a muacutesica eacute uma exceccedilatildeo no sistema das artes schopenhaueriano pois natildeo
se relaciona a uma objetivaccedilatildeo da vontade mas expressa a proacutepria vontade e desta forma natildeo figura na
sistematizaccedilatildeo hieraacuterquica
44
dos instintos e dos motivos assim como o faz no homem A classificaccedilatildeo das artes
corresponde portanto a esta hierarquizaccedilatildeo cosmoloacutegica de objetivaccedilatildeo da vontade22
Sendo assim a arquitetura e a hidraacuteulica mostram a objetivaccedilatildeo da vontade no seu grau
mais baixo ao expor o jogo das forccedilas que caracterizam a mateacuteria tais como a gravidade
rigidez dureza resistecircncia luz A jardinagem e a pintura da natureza satildeo as formas
artiacutesticas cujo fim eacute a exposiccedilatildeo da objetivaccedilatildeo da vontade que se manifesta no reino
vegetal A pintura de animais encontra-se em um niacutevel superior pois o reino animal
objeto de sua representaccedilatildeo expotildee de forma mais evidente a vontade objetivada Temos
ainda as pinturas de retratos a pintura histoacuterica e a escultura que das artes plaacutesticas
formam a categoria superior cujo objeto eacute a exposiccedilatildeo da vontade no grau mais elevado
de sua cognoscibilidade o homem Esta mesma exposiccedilatildeo a do homem eacute tambeacutem o
objeto da arte poeacutetica que agrave diferenccedila das artes que fazem sua exposiccedilatildeo de modo
puramente intuitivo eacute auxiliada pela imaginaccedilatildeo No aacutepice das artes poeacuteticas
encontramos a trageacutedia a uacuteltima arte natildeo-musical a ser descrita A arte traacutegica eacute aquela
que possui a caracteriacutestica de por sua natureza representar de forma mais ilustrativa a
objetivaccedilatildeo mais desenvolvida da vontade a vida humana e suas relaccedilotildees Veremos
mais tarde que aleacutem de corresponder agrave hierarquia de objetivaccedilatildeo da vontade mais
desenvolvida a arte traacutegica ocupa um lugar especial na filosofia schopenhaueriana
devido agrave ldquograndeza de seu efeitordquo (Schopenhauer 2005 333) Diante do exposto
podemos depreender que a arte possui na filosofia schopenhaueriana um papel
cognitivo e a trageacutedia por sua vez eacute a forma artiacutestica que por sua competecircncia cognitiva
ocupa o primeiro lugar entre as artes natildeo musicais
22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo
22
Vemos aqui um exemplo da citada inter-conectividade existente no sistema schopenhaueriano tendo
em vista que a elaboraccedilatildeo de sua classificaccedilatildeo artiacutestica obedece ao construto metafiacutesico do livro II de
MVR e sua consequumlente cosmologia
45
A tarefa a que se propotildee o sistema schopenhaueriano eacute a decifraccedilatildeo do ldquoenigma
do mundordquo ie encontrar uma resposta agrave pergunta o que eacute o mundo Esta tarefa tem
origem no idealismo subjacente na primeira criacutetica kantiana e de certa forma era uma
tarefa da qual estava imbuiacutedo todo o pensamento filosoacutefico daquele periacuteodo ie por
decifraccedilatildeo do enigma do mundo podemos entender a decifraccedilatildeo da coisa-em-si
kantiana Temos daiacute o ponto de partida da filosofia de Schopenhauer o idealismo
transcendental do mundo fenomecircnico Sob o ponto de vista da representaccedilatildeo o mundo eacute
objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito agraves condiccedilotildees a priori do
entendimento que para o filoacutesofo satildeo as categorias do espaccedilo do tempo e da
causalidade
Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das formas a priori do entendimento eacute
interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos advindos da filosofia Platocircnica e oriental
como um mundo ilusoacuterio Conforme a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana Platatildeo jaacute
identificava esta caracteriacutestica ilusoacuteria do mundo em sua contraposiccedilatildeo teoacuterica entre o
mundo fiacutesico onde o devir impossibilitava a apreensatildeo do ser e o mundo das ideacuteias
onde haveria o verdadeiro encontro com o ser das coisas Ainda de acordo com a
interpretaccedilatildeo de Schopenhauer os livros sagrados indianos Vedas e Puranas faziam
esta distinccedilatildeo atraveacutes da noccedilatildeo do veacuteu de maia a consciecircncia humana seria envolvida
por um veacuteu o que resultaria em uma visatildeo oniacuterica do mundo e impediria assim a
percepccedilatildeo da realidade
Entretanto o mundo pode ainda ser conhecido atraveacutes de um segundo ponto de
vista como vontade Este eacute o ponto de vista que Schopenhauer utiliza-se para decifrar a
incognosciacutevel coisa-em-si kantiana Percorrendo uma ldquovia subterracircneardquo de modo
imanente Schopenhauer identifica nas accedilotildees do corpo bioloacutegico os atos da vontade
46
enquanto coisa-em-si e de forma analoacutegica a estabelece como essecircncia governante do
mundo Faz-se necessaacuterio aqui ressaltar como o fazem Brum (1998 23) e Rosset23
que
natildeo devemos interpretar esta analogia como uma visatildeo antropomoacuterfica do mundo Essa
essecircncia do mundo encontrada empiricamente natildeo eacute todavia um ente racional uma
ldquoalma do mundordquo Se por um lado o mundo fenomecircnico eacute aquele onde o princiacutepio de
razatildeo24
estabelece as normas de funcionamento um mundo natildeo-fenomecircnico mundo em
si enquanto vontade se expressa por sua alogicidade irracionalidade Grundlosigkeit
(falta de fundamento) Essa essecircncia irracional que manifesta-se nos diversos reinos e
indiviacuteduos do mundo eacute a raiz da visatildeo pessimista da existecircncia que de acordo com o
filoacutesofo pode ser a todo momento constatada empiricamente
As diversas manifestaccedilotildees da vontade suas objetidades carregam inerentemente
a sua iacutendole puro impulso cego vontade de vida insaciabilidade Notadamente o
mundo fenomecircnico objetivaccedilatildeo da vontade expressa a essecircncia desta vontade atraveacutes
de um conflito permanente Desenha-se um cenaacuterio de batalha onde cada objetidade da
vontade cada ser do mundo eacute orientado por sua essecircncia irracional desguarnecida de
qualquer telos ldquoAssim a vontade de vida crava continuamente os dentes na proacutepria
carne e em diferentes figuras eacute seu proacuteprio alimentordquo (Schopenhauer MVR 211) Este
fundamento ontoloacutegico a vontade determina assim o caraacuteter absurdo que a vida
humana toma na filosofia schopenhaueriana eterno esforccedilo carente de ordem ou
finalidade O ldquomecanismo internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens
marionetes guiados pela carecircncia
[]nenhuma satisfaccedilatildeo todavia eacute duradoura mas antes sempre eacute um
ponto de partida de um novo esforccedilo o qual por sua vez vemos travado em
toda parte de diferentes maneiras em toda parte lutando e assim portanto
23
[] natildeo haacute que transpor a experiecircncia da motivaccedilatildeo humana ao conjunto das forccedilas naturais para
compreender o segredo da natureza senatildeo o contraacuterio transpor o misteacuterio das forccedilas naturais ao conjunto
das motivaccedilotildees psicoloacutegicas para desvendar-se o segredo da vontade humana (Rosset 2005 31) 24
Princiacutepio tratado na tese de doutoramento de Schopenhauer SRQPRS bem como no livro I de MVR
O princiacutepio estabelece que todo acontecimento possui uma causa uma razatildeo de ser
47
sempre como sofrimento natildeo haacute nenhum fim uacuteltimo do esforccedilo portanto natildeo
haacute nenhuma medida e fim do sofrimento (Schopenhauer 2005 399)
Se carecircncia vontade e desejo satildeo a tocircnica da vida humana na maior parte do tempo e
satildeo experimentados como dor e infelicidade a felicidade por sua vez eacute definida
negativamente como um momento de ausecircncia daquela dor
Sentimos a dor e natildeo a ausecircncia da dor a inquietude e natildeo a
tranquumlilidade o medo e natildeo a seguranccedila Sentimos desejo como quando
temos fome e sede entretanto ao alimentarmo-nos estas sensaccedilotildees
deixam de existir para noacutes (MVR II 630)
Toda satisfaccedilatildeo momentacircnea de um querer eacute imediatamente suprimida por outro querer
ou se perdurar por algum tempo por menor que seja este transforma-se em teacutedio Um
ldquopecircndulo entre a dor e teacutediordquo eacute a definiccedilatildeo que Schopenhauer propotildee para a vida
humana Assim se daacute tambeacutem com a sauacutede a juventude e a liberdade Todos satildeo
conceitos definidos negativamente soacute os conhecemos atraveacutes de sua ausecircncia Este afatilde
por prolongar e conservar a vida essecircncia iacutentima de cada indiviacuteduo natildeo eacute contudo
resultado de uma observaccedilatildeo objetiva da mesma de um conhecimento que eleja a vida
como algo de valor a ser mantido e preservado e portanto os ldquo[] seres natildeo satildeo
atraiacutedos por algo que se lhes apresenta mas satildeo empurrados a elerdquo (MVR II 398) A
luta eterna observada nos diversos reinos da natureza a busca por alimento o esforccedilo da
procriaccedilatildeo se comparados aos momentos fugazes de satisfaccedilatildeo fazem da vida ldquoum
negoacutecio cujos investimentos natildeo cobrem nem de longe os custosrdquo (MVR II 399)
Em todas estas consideraccedilotildees se faz claro que a vontade de viver
natildeo eacute a consequecircncia do conhecimento da vida natildeo se trata de uma
bdquoconclusio ex praemissis‟ nem em geral eacute algo secundaacuterio antes
contudo eacute o primeiro e incondicionado a premissa de todas as premissas
e precisamente por isso aquilo do que haacute de partir a filosofia pois a
vontade de viver natildeo se apresenta como a consequumlecircncia do mundo senatildeo
o mundo como consequumlecircncia da vontade de viver (MVR II 405)
Um dos pontos essenciais a ser verificado nesta visatildeo de mundo eacute o
destronamento da razatildeo O ceacuterebro oacutergatildeo da razatildeo eacute o resultado de um esforccedilo da
48
vontade em seu percurso de objetivaccedilatildeo A racionalidade humana estaacute a serviccedilo da
vontade que eacute em sua essecircncia grundlos A razatildeo eacute ferramenta para que o homem
enquanto objetidade da vontade consiga satisfazer a seus anseios Em oposiccedilatildeo agrave
filosofia racionalista de entatildeo onde o ldquoreal eacute o racionalrdquo assistimos ao surgimento de
uma filosofia irracionalista das forccedilas inconscientes onde a razatildeo na medida em que eacute
mecanismo da vontade estaacute sempre a serviccedilo desta O comportamento humano eacute
naturalmente egoiacutesta voltado para os proacuteprios interesses e estes por sua vez satildeo
expressatildeo desta vontade aloacutegica desprovida de telos Schopenhauer se mostrava
consciente da singularidade desta sua biparticcedilatildeo do ego e da consequumlente visatildeo de
mundo que ela trouxe agrave luz e enfatizou isto em seus manuscritos berlinenses ldquo[] a
divisatildeo da mente o eu em duas partes diferentes - em vontade como parte essencial e
primaacuteria e em intelecto como secundaacuteria - eacute o grande princiacutepio e meacuterito de minha
filosofia e tambeacutem a principal diferenccedila dos demais sistemasrdquo (MR III 328)
Temos entatildeo os dois pontos de vista do mundo que fundamentam a visatildeo de
Schopenhauer e que posteriormente seratildeo transformados pela teoria nietzscheana da
trageacutedia nos dois impulsos da natureza o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco O primeiro deles eacute o
mundo da individualidade da pluralidade regido pelo que Schopenhauer vai chamar
utilizando-se de um termo retirado da escolaacutestica de principium individuationis
Nesse sentido servindo-me da antiga escolaacutestica denomino
tempo e espaccedilo pela expressatildeo principium individuationis que peccedilo para
o leitor guardar para sempre Tempo e espaccedilo satildeo os uacutenicos pelos quais
aquilo que eacute uno e igual conforme a essecircncia e o conceito aparece como
pluralidade de coisas que coexistem e se sucedem (MVR 171)
No segundo toto genere diferente do primeiro existe a vontade una indivisiacutevel natildeo
submetida ao princiacutepio de razatildeo e por isso sem fundamento
Em apoio a sua tese Schopenhauer invoca ao final do capiacutetulo 46 (Sobre a
nulidade e o sofrimento da vida) dos complementos de MVR a opiniatildeo de diversos
49
pensadores dentre eles Heroacutedoto Platatildeo Teoacutegnis Homero os tragedioacutegrafos gregos
Shakespeare Byron Voltaire Rousseau Faz-se importante neste momento ressaltar que
o filoacutesofo aponta a invenccedilatildeo da trageacutedia pelos gregos como uma expressatildeo desta visatildeo
de mundo ponto de vista que como veremos tambeacutem seraacute adotado pelo primeiro
Nietzsche
Ante tudo mencionarei que os gregos por mais distantes que
estivessem da visatildeo de mundo cristatilde e da alta Aacutesia e por muito que se
mantiveram sob o ponto de vista da afirmaccedilatildeo da vontade se fizeram
profundamente impressionados pela miseacuteria da existecircncia Isso eacute
demonstrado pela invenccedilatildeo da trageacutedia obra deles (MVR II 640)
23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana
Existe poreacutem uma forma de conhecimento que eacute ndash agrave diferenccedila daquela
subordinada ao princiacutepio de razatildeo que percebe os objetos em sua relaccedilatildeo com os outros
objetos do espaccedilo-tempo ndash uma forma mais universal pois mostra o objeto em sua
caracteriacutestica mais geral qual seja a de ser objeto para o sujeito A esta forma de
conhecimento Schopenhauer associa a apreciaccedilatildeo esteacutetica O seu objeto eacute a ideacuteia
platocircnica25
um grau determinado de objetivaccedilatildeo da coisa-em-si
Os diferentes graus de objetivaccedilatildeo da Vontade expressos em
inumeraacuteveis indiviacuteduos e que existem como seus protoacutetipos
inalcanccedilaacuteveis ou formas eternas das coisas que nunca aparecem no
tempo e no espaccedilo meacutedium do indiviacuteduo mas existem fixamente natildeo
submetidos a mudanccedila alguma satildeo e nunca vindo-a-ser enquanto as
coisas nascem e perecem sempre vecircm-a-ser e nunca satildeo os GRAUS DE
OBJETIVACcedilAtildeO DA VONTADE ia dizer natildeo satildeo outra coisa senatildeo as
IDEacuteIAS DE PLATAtildeO (MVR 191)
Esta instacircncia do conhecimento eacute alcanccedilada intuitivamente pela contemplaccedilatildeo
esteacutetica da natureza ou pela facilitaccedilatildeo de uma obra de arte Desta forma as obras de
25
Conforme o filoacutesofo ldquo A expressatildeo mais breve e sucinta daquele famoso dogma platocircnico foi dada por
Dioacutegenes Laeacutercio (II 12) Platatildeo ensina que as ideacuteias da natureza existem como protoacutetipos jaacute as demais
coisas apenas se assemelham a elas e satildeo suas coacutepiasrdquo (MVR 191)
50
arte na teoria schopenhaueriana satildeo uma exposiccedilatildeo destes graus de objetivaccedilatildeo da
vontade as ideacuteias Ao contraacuterio da criacutetica agrave arte presente na repuacuteblica platocircnica - onde a
arte seria uma coacutepia mais imperfeita da ideacuteia por retratar o mundo fenomecircnico sua
coacutepia direta - Schopenhauer aproxima as obras artiacutesticas das ideacuteias eternas as define
como suas expressotildees diretas Contudo a intuiccedilatildeo das ideacuteias exige um estado de
consciecircncia diferente do estado comum Neste uacuteltimo o aparelho cognitivo sob a eacutegide
da vontade estaacute voltado para a realizaccedilatildeo dos interesses individuais e entatildeo se
movimenta no mundo guiado por estes interesses ldquoCaso entretanto a Ideacuteia deva de
alguma maneira tornar-se conhecimento e ser conhecida pelo sujeito entatildeo isso soacute
pode ocorrer graccedilas agrave supressatildeo da individualidade no sujeito que conhecerdquo (MB 30)
A forma artiacutestica de conhecimento cujo possuidor eacute o denominado gecircnio estaacute
associada a um desprendimento das reacutedeas da vontade O gecircnio eacute entatildeo aquele que livre
dos interesses da vontade percebe as ideacuteias por traacutes dos objetos alheio aos princiacutepios
de razatildeo e de individuaccedilatildeo e traduz este objeto na obra de arte O observador esteacutetico eacute
portanto um partiacutecipe da genialidade na medida em que intui a ideacuteia por traz do objeto
observado conforme tambeacutem ao seu grau de desinteresse26
Durante a apreciaccedilatildeo
esteacutetica o homem se vecirc livre momentaneamente daquela parte de si que eacute a causadora
de todo o sofrimento individual e coletivo a vontade para transformar-se em um ldquopuro
sujeito de conhecimentordquo Este estado de satisfaccedilatildeo decorrente da suspensatildeo da vontade
individualizada eacute o sentimento do belo
Aquilo que se poderia nomear o lado mais belo e a pura alegria
da vida precisamente porque nos arranca da existecircncia real e nos
transforma em espectadores desinteressados diante dela eacute o puro
conhecimento que permanece alheio a todo querer eacute a fruiccedilatildeo do belo a
alegria autecircntica na arte Mas mesmo isso requer dispositivos raros e
cabe apenas a pouquiacutessimos e mesmo para estes eacute um sonho
passageiro (MVR 404)
26
Vemos nesta forma de associaccedilatildeo entre conhecimento e interesse mais uma heranccedila kantiana no caso
provinda da definiccedilatildeo de belo da criacutetica da faculdade de juiacutezo
51
- - - - - - - - - -
Ao descrever a apreciaccedilatildeo artiacutestica como um ato cognitivo Schopenhauer
preocupa-se em diferenciaacute-la do conhecimento cientiacutefico De fato boa parte das
consideraccedilotildees sobre a arte eacute dedicada ao esclarecimento desta diferenccedila
Podemos por conseguinte definir a arte como o modo de
consideraccedilatildeo das coisas independente do princiacutepio de razatildeo em oposiccedilatildeo
justamente agrave consideraccedilatildeo que o segue que eacute o caminho da experiecircncia e
da ciecircncia O modo de consideraccedilatildeo que seque o princiacutepio de razatildeo eacute o
racional o uacutenico que vale e que auxilia na vida praacutetica e na ciecircncia o
modo apartado do conteuacutedo do princiacutepio de razatildeo eacute o genial o uacutenico que
vale e que auxilia na arte (MB 59)
No caso da trageacutedia cujo objetivo eacute o conhecimento do homem e de suas relaccedilotildees a
ciecircncia que mais se assemelha a esta forma artiacutestica seria a histoacuteria Esta natildeo tem como
objetivo a demonstraccedilatildeo da essecircncia do homem em sua forma atemporal ou seja a
demonstraccedilatildeo daquilo que fundamenta toda accedilatildeo humana independente dos
acontecimentos empiacutericos
[ ]toda ciecircncia no sentido proacuteprio do termo compreendida como
conhecimento sistemaacutetico guiado pelo fio condutor do princiacutepio de
razatildeo parte sempre de dois dados baacutesicos um deles sem exceccedilatildeo eacute o
princiacutepio de razatildeo em uma de suas figuras como oacuterganon outro eacute o
objeto especiacutefico de cada uma delas enquanto problema (Schopenhauer
MVR 73)
Desta forma a histoacuteria teria a lei de motivaccedilatildeo e o os fatos humanos como oacuterganon e
problemas respectivamente Entretanto interessa a Schopenhauer um conhecimento
mais universal que soacute pode ser apresentado pela arte e que aponta por sua proximidade
agrave essecircncia daquilo que eacute a uma ldquoiacutendole imutaacutevelrdquo das manifestaccedilotildees
Podemos ver entatildeo que sendo consideradas como meios para o
conhecimento da essecircncia da humanidade arte poeacutetica e histoacuteria possuem todavia
objetos de conhecimento diferentes A primeira quando produzida pelo verdadeiro
gecircnio tenciona manifestar a ideacuteia por traacutes destes conceitos a ideacuteia de homem de
humanidade intuitivamente independentemente do princiacutepio de razatildeo do devir como
52
objeto puro de conhecimento alheio agrave corrente dos motivos em suas caracteriacutesticas
essenciais atemporais A histoacuteria por sua vez segue o rastro do princiacutepio de razatildeo
procurando apresentar o fenocircmeno humano em suas relaccedilotildees descrever-lhe em suas
situaccedilotildees particulares individuais empiacutericas Nas palavras de Schopenhauer
Arte e ciecircncia tecircm em uacuteltima instacircncia o mesmo estofo a saber
justamente o mundo tal como ele se posta diante de noacutes ou antes uma
parte destacada dele quanto ao todo do mundo soacute a filosofia o
considera Contudo a grande diferenccedila entre ciecircncia e arte reside na
maneira como elas consideram o mundo e trabalham seu estofo Tal
oposiccedilatildeo pode ser indicada com uma palavra a ciecircncia considera os
fenocircmenos do mundo seguindo o fio condutor do princiacutepio de razatildeo ao
passo que a arte coloca totalmente de lado o princiacutepio de razatildeo
independente dele para que assim a ideacuteia entre em cena
(SCHOPENHAUER MB 57)
Podemos notar que a valorizaccedilatildeo do que eacute imutaacutevel alheio agrave idealidade do tempo eacute a
raiz da valorizaccedilatildeo do conhecimento artiacutestico frente ao histoacuterico Este uacuteltimo natildeo visa o
acesso aos modelos eternos pois seu objeto satildeo os acontecimentos individuais do
mundo fenomecircnico que satildeo eventos meramente aparentes se considerarmos a
idealidade do tempo O que se manifesta no fluxo temporal do mundo fenomecircnico satildeo
sempre as mesmas formas eternas as ideacuteias entretanto com roupagens diferentes o
mesmo homem enquanto objetivaccedilatildeo da vontade a mesma humanidade Onde quer que
seja e em qualquer momento especiacutefico sua essecircncia eacute a mesma e esta essecircncia eacute o que
deve ser alvo de uma compreensatildeo privilegiada de entendimento e natildeo as suas diversas
manifestaccedilotildees Por este motivo Schopenhauer deixando explicito o seu chamado anti-
historicismo afirma que ldquose algueacutem jaacute lera Heroacutedoto jaacute estudara bastante histoacuteria e
efeitos filosoacuteficos Pois laacute jaacute estaacute tudo o que compotildee a posterior histoacuteria mundial a
atividade o obrar o sofrimento e o destino do gecircnero humano (Schopenhauer MVR
II 496) Podemos notar claramente a oposiccedilatildeo entre a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana
da histoacuteria e as tendecircncias de seu tempo principalmente presentes na filosofia de
Hegel Este de acordo com a criacutetica de Schopenhauer ignorando a filosofia critica de
53
Kant toma o fenocircmeno histoacuterico como coisa em si ao atribuir-lhe uma unidade de
consciecircncia Entretanto unidade de consciecircncia eacute um atributo dos indiviacuteduos e natildeo do
gecircnero humano Estas filosofias de acordo com o Schopenhauer satildeo frutos do realismo
otimista queldquo tomam o mundo como perfeitamente real e potildeem como fim do mesmo
uma miseraacutevel felicidade terrena (Schopenhauer MVR II 495)
- - - - - - - - - -
Colocando de lado o fio condutor do princiacutepio de razatildeo e mirando-se no
conhecimento da ideacuteia imutaacutevel atemporal encontramos a trageacutedia como fenocircmeno que
apresenta agrave intuiccedilatildeo o homem e sua condiccedilatildeo Eacute a forma de arte que tem como objeto o
grau mais elevado de objetivaccedilatildeo da vontade A intenccedilatildeo do artista traacutegico eacute de acordo
com Schopenhauer transmitir a ideacuteia intuiacuteda tarefa que seraacute bem sucedida de acordo
com a habilidade de utilizaccedilatildeo da teacutecnica artiacutestica por um lado e com a capacidade de
percepccedilatildeo esteacutetica do apreciador por outro O tragedioacutegrafo diferentemente do
historiador que relata os fatos empiacutericos explicitando seus motivos e consequumlecircncias
deve para obter o efeito esperado em sua obra expor uma situaccedilatildeo tal em que o homem
possa manifestar todas as suas potencialidades e dessa forma transmitir ao apreciador
esteacutetico a ideacuteia representada ldquoO poeta expotildee com escolha e intenccedilatildeo caracteres
significativos em situaccedilotildees significativas jaacute o historiador toma aos dois como eles
aparecemrdquo (Schopenhauer MVR 323) A qualidade da obra traacutegica seraacute julgada entatildeo
pela sua capacidade de representaccedilatildeo da ideacuteia de humanidade e Schopenhauer qualifica
as trageacutedias de acordo com esta capacidade Natildeo existe em seu sistema uma
consideraccedilatildeo histoacuterica da produccedilatildeo traacutegica Ele natildeo leva em consideraccedilatildeo as condiccedilotildees
histoacutericas no que se refere agrave origem ou mesmo quanto ao desenvolvimento desta forma
artiacutestica e a avalia unicamente conforme o seu efeito E neste ponto a trageacutedia apresenta
uma peculiaridade frente agraves demais artes ela eacute a forma de arte que provocaraacute o
54
sentimento do sublime Como vimos o correlato subjetivo de toda apreciaccedilatildeo esteacutetica eacute
o sentimento causado pela anulaccedilatildeo da vontade individual mediante a elevaccedilatildeo ao
estado de puro sujeito de conhecimento O sublime assim como o belo satildeo expressotildees
deste sentimento que se diferenciam unicamente por sua forma
Se tal estado surgiu por si mesmo na medida em que o objeto foi
solicitado e se apresentou ndash e fomos postos sem resistecircncia pelo mero
desaparecer da vontade da consciecircncia no estado do conhecer puro ndash ou
se primeiro foi despertado por elevaccedilatildeo livre consciente sobre a vontade
na medida em que o objeto contemplado tem com esta uma relaccedilatildeo
desfavoraacutevel hostil cuja prossecuccedilatildeo suprimiria a contemplaccedilatildeo ndash aiacute
reside a diferenccedila entre o belo e o sublime (MB 119)
A impressatildeo do sublime eacute portanto uma forma de colocar-se no estado do puro conhecer
ao nos depararmos com o objeto que por sua apresentaccedilatildeo sugere uma ldquorelaccedilatildeo hostilrdquo
com o indiviacuteduo27
Jaacute vimos que a visatildeo de mundo de Schopenhauer identifica a vida humana como
sofrimento infindaacutevel no entanto ao elaborar sua definiccedilatildeo da trageacutedia Schopenhauer
aponta para o desfecho moral de sua obra (livro IV de MVR) e afirma que a trageacutedia
melhor eacute aquela que expotildee a renuacutencia agrave vida O filoacutesofo compara obras contemporacircneas
agraves antigas e afirma sua preferecircncia por estas em decorrecircncia da capacidade que elas tecircm
de provocar esta a renuacutencia agrave vida Vejamos a descriccedilatildeo que Schopenhauer faz da
trageacutedia
No aacutepice da arte poeacutetica tanto no que se refere agrave grandeza do seu
efeito quanto agrave dificuldade da sua realizaccedilatildeo deve-se ver a trageacutedia e de
fato ela assim foi reconhecida Observe-se aqui algo de suma significaccedilatildeo
para toda a nossa visatildeo geral de mundo o objetivo dessa suprema
realizaccedilatildeo poeacutetica natildeo eacute outro senatildeo a exposiccedilatildeo do lado terriacutevel da vida
27
Vemos na teoria do sublime Schopenhaueriana mais uma vez a influecircncia de Kant Schopenhauer iraacute
identificar duas formas de sublime e utilizar-se-aacute dos termos kantianos ldquosublime dinacircmicordquo e ldquosublime
matemaacuteticordquo para diferenciaacute-los No primeiro o objeto de apreciaccedilatildeo se mostra a princiacutepio uma ameaccedila
ao observador ldquoum poder que suprimiria qualquer resistecircnciardquo(MB 104) No sublime matemaacutetico o
segundo o objeto eacute visto em sua incomensuraacutevel grandiosidade diante da qual o observador infere a sua
infimidade A afinidade entre Schopenhauer e a teoria criacutetica do juiacutezo eacute expressa em sua obra principal
ldquoDe longe o que haacute de mais excelente na criacutetica da faculdade de juiacutezo eacute a teoria do sublime Ela eacute
incomparavelmente mais bem sucedida que a teoria do belo e daacute natildeo apenas como esta o meacutetodo geral
da investigaccedilatildeo mas tambeacutem um trecho do correto caminho de maneira que embora natildeo forneccedila a
soluccedilatildeo propriamente dita do problema chega bem perto delardquo(MVR 660)
55
a saber o inominado sofrimento a miseacuteria humana o triunfo da maldade
o impeacuterio ciacutenico do acaso a queda inevitaacutevel do justo e do inocente E
em tudo isso se encontra uma indicaccedilatildeo significativa da iacutendole do mundo
e da existecircncia Eacute o conflito da Vontade consigo mesma que aqui
desdobrado plenamente no grau mais elevado de sua objetidade entra em
cena de maneira aterrorizante Ele se torna visiacutevel no sofrimento da
humanidade em parte produzido por acaso e erro que se apresentam
como os senhores do mundo e personificados como destino e perfiacutedia os
quais aparecem enquanto intencionalidade em parte advindo da
humanidade mesma por meio dos entrecruzados esforccedilos voluntaacuterios dos
indiviacuteduos e da maldade e perversatildeo da maioria Trata-se de uma uacutenica e
mesma Vontade que em todos vive e aparece cujos fenocircmenos
entretanto combatem entre si e se entredevoram [] Por fim esse
conhecimento no indiviacuteduo purificado e enobrecido pelo sofrimento
mesmo atinge o ponto no qual o fenocircmeno o veacuteu de maia natildeo mais o
ilude Ele vecirc atraveacutes da forma do fenocircmeno do principium
individuationis com o que tambeacutem expira o egoiacutesmo nele baseado Com
isso os ateacute entatildeo poderosos MOTIVOS perdem o seu poder e em vez
deles o conhecimento perfeito da essecircncia do mundo atuando como
quietivo da vontade produz a resignaccedilatildeo a renuacutencia natildeo apenas da vida
mas de toda a vontade de vida mesma (Schopenhauer MVR 333)
Percebemos nesta descriccedilatildeo que a trageacutedia aleacutem de expor a visatildeo de mundo construiacuteda
pelo filoacutesofo tem como fim uacuteltimo provocar um efeito moral no apreciador esteacutetico
qual seja a renuacutencia ao mundo Vejamos entatildeo a relaccedilatildeo entre a visatildeo de mundo
schopenhaueriana o efeito esteacutetico provocado pela trageacutedia e o projeto moral existente
por traacutes de suas teorias
24 A finalidade moral da trageacutedia
Para que possamos perceber a relaccedilatildeo intriacutenseca entre cosmologia metafiacutesica
arte e a eacutetica faz-se necessaacuterio uma pequena excursatildeo sobre esta uacuteltima Que todo o
sistema schopenhaueriano possui um viacutenculo inseparaacutevel com o seu projeto eacutetico eacute fato
que natildeo passa despercebido a seus comentadores Um projeto de juventude eacute descrito
por Safranski (1991 188-198) Young (2006 07 200) Aramayo (2001 56-59) e
Cartwright (Janaway 1999 252) como uma premissa no desenvolvimento da filosofia
56
schopenhaueriana trata-se do projeto de uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Young a descreve
como uma transcendecircncia do mundo ordinaacuterio para o ldquomundo verdadeirordquo Esta
consciecircncia melhor poderia ser experimentada atraveacutes da apreciaccedilatildeo artiacutestica e da
consciecircncia eacutetica ambas originadas do desvelamento de maia Assim Schopenhauer a
descreve conforme citaccedilatildeo de Young (2006 9) ldquopersonalidade e causalidade existem
neste mundo compreensiacutevel temporal sensorial Mas a consciecircncia melhor me leva a
um mundo onde nem personalidade nem sujeito ou objeto existem maisrdquo Safransky
descreve a consciecircncia melhor como um estado semelhante ao ecircxtase miacutestico
Este arrebatamento estaacute livre das coordenadas espaccedilo-temporais
cujo ponto de interseccedilatildeo eacute o eu corporal apartado do espaccedilo do tempo
do eu Os miacutesticos chamam a esta experiecircncia ldquonunc stansrdquo agora
permanente A intensidade deste presente natildeo conhece princiacutepio nem fim
e soacute pode desaparecer porque noacutes desaparecemos dele (Safransky1991
190)
Conforme Aramayo tanto a figura do gecircnio como a do santo satildeo expressotildees do
reconhecimento desta consciecircncia melhor e a filosofia de Schopenhauer pretende-se
uma terceira via que tambeacutem apontaria para este estado de consciecircncia A caracteriacutestica
primordial deste estado eacute o desprendimento dos desejos individuais e o comportamento
virtuoso que adveacutem deste desprendimento Eacute na esteira do entendimento desta
consciecircncia melhor que as bases eacutetico-metafiacutesicas do filoacutesofo foram elaboradas Em
apoio a esta afirmaccedilatildeo Aramayo apresenta duas citaccedilotildees a partir das quais em
momentos distintos de sua vida Schopenhauer apresenta seu projeto de identificaccedilatildeo
entre eacutetica e metafiacutesica Nos escritos de Juventude em 1813 vemos o projeto
Em meu espiacuterito encontra-se em gestaccedilatildeo uma filosofia onde
metafiacutesica e eacutetica devem constituir uma soacute coisa cuja dissociaccedilatildeo eacute tatildeo
errocircnea como agrave da alma e do corpo (Aramayo 2001 41)
Jaacute nos escritos tardios especificamente em seu ensaio de 1836 Sobre a vontade na
natureza veremos Schopenhauer identificar esta uniatildeo
57
Tatildeo soacute esta metafiacutesica que jaacute eacute eacutetica por si soacute ao estar construiacuteda
com esse material primordialmente eacutetico que se supotildee a vontade
constitui real e imediatamente um sustentaacuteculo para a eacutetica em vista de
que poderia haver colocado em minha metafiacutesica o nome de eacutetica (apud
Aramayo 2001 43)
Cartwright aponta ainda na uacuteltima obra schopenhaueriana de 1851 Parerga e
paralipomena a afirmaccedilatildeo de que a ldquosua real filosofia culminou em um ponto de vista
altamente eacutetico-metafiacutesicordquo (Janaway 1999 252)
Na filosofia schopenhaueriana como vimos o indiviacuteduo humano eacute uma
expressatildeo da objetidade da vontade e seu ponto de partida por natureza eacute a satisfaccedilatildeo
manutenccedilatildeo e o prolongamento desta vontade de vida Este estado de consciecircncia onde
todos os esforccedilos estatildeo voltados para a satisfaccedilatildeo da vontade individual eacute a causa de
todo o sofrimento do mundo Aprisionado agrave perspectiva fenomecircnica do mundo o
homem natildeo percebe a unidade da vontade e age de acordo com os motivos estabelecidos
pela sua proacutepria individualidade Para este homem existe uma separaccedilatildeo profunda entre
o proacuteprio eu e os objetos do mundo
Por meio da intuiccedilatildeo que o ceacuterebro efetua a partir dos dados do sentido
e portanto mediatamente conhecemos o proacuteprio corpo como um objeto no
espaccedilo e por meio do sentido interno conhecemos a seacuterie sucessiva de nossos
desejos e atos de vontade que surgem por ocasiatildeo dos motivos externos e
finalmente conhecemos os muacuteltiplos movimentos fortes ou fracos da proacutepria
vontade aos quais todos os sentimentos internos deixam-se reconduzir Isto eacute
tudo pois o conhecer natildeo eacute ele proacuteprio de novo conhecido (Schopenhauer
2001 213)
Eacute deste estado que surge todo o comportamento humano considerado pelo filoacutesofo
como comportamento antimoral Egoiacutesmo eacute o nome dado ao resultado da influecircncia do
princiacutepio de individuaccedilatildeo sobre o comportamento dos homens Este egoiacutesmo chega ao
extremo de o homem considerar-se o centro do mundo e transformar o seu querer em
mandamento para os objetos exteriores ldquoalguns homens seriam capazes de assassinar
um outro soacute para engraxar suas botas com a gordura delerdquo (SFM 124) Nestas
58
condiccedilotildees ldquose fosse dado pois a um indiviacuteduo escolher entre a sua proacutepria aniquilaccedilatildeo
e a do mundo nem preciso dizer para onde a maioria se inclinariardquo (SFM 121) Da
forma como ocorre com o egoiacutesmo a ilusatildeo fenomecircnica daacute origem a outro sentimento
o oacutedio Estes dois egoiacutesmo e oacutedio satildeo os princiacutepios originadores de todos os viacutecios do
homem Desta leitura pessimista da natureza humana Schopenhauer retira seu conceito
perspectivista das ideacuteias de bem e mal satildeo consideradas boas ou maacutes as coisas que
agradam ou desagradam agrave vontade do indiviacuteduo ldquoPortanto tudo o que eacute favoraacutevel agrave
vontade em alguma de suas exteriorizaccedilotildees e satisfaz seus fins eacute pensado pelo conceito
bom por mais diferentes que essas coisas possam ser noutros aspectosrdquo (MVR 459)
Este estado eacute definido por Schopenhauer como ldquoafirmaccedilatildeo da vontaderdquo nele o amor-
proacuteprio Eros dita as regras de comportamento Definido o Eros enquanto
fundamentador das accedilotildees antimorais humanas sendo este surgido de uma percepccedilatildeo
subordinada ao principium individuationis entendemos o motivo pelo qual o filoacutesofo
rejeita a validade de qualquer moral baseada em argumentos abstratos
Uma moral sem fundaccedilatildeo portanto um simples moralizar natildeo pode
fazer efeito pois natildeo motiva Uma moral entretanto que motiva soacute pode fazecirc-
lo atuando sobre o amor proacuteprio O que entretanto nasce daiacute natildeo tem valor
moral algum Segue-se assim que mediante moral e conhecimento abstrato em
geral nenhuma virtude autecircntica pode fazer efeito mas esta tem de brotar do
conhecimento intuitivo o qual reconhece no outro indiviacuteduo a mesma essecircncia
que a proacutepria (MVR 468)
Desta forma em contraposiccedilatildeo ao comportamento antimoral produzido
pela ilusatildeo causada pelo principium individuationis o filoacutesofo apresenta o outro lado da
moeda a accedilatildeo moral Esta seria a accedilatildeo praticada em funccedilatildeo do bem-estar de um outro
indiviacuteduo tendo em vista que as accedilotildees praticadas em funccedilatildeo do mal-estar do outro ou
do bem e mal estar de si mesmo satildeo justamente as accedilotildees antimorais baseadas no
egoiacutesmo ou no oacutedio ldquoTodo amor que natildeo eacute compaixatildeo eacute amor-proacuteprio Amor-proacuteprio eacute
59
Eros compaixatildeo eacute Aacutegaperdquo (MVR 478) Todo ato moral eacute por consequumlecircncia um ato de
compaixatildeo ou seja um ato que eacute praticado a partir da percepccedilatildeo do sofrimento do
outro Entretanto a percepccedilatildeo do sofrimento alheio natildeo eacute dada atraveacutes do conhecimento
abstrato E somente por uma percepccedilatildeo intuitiva direta do sofrimento do outro como o
meu proacuteprio sofrimento que surge a compaixatildeo Tal percepccedilatildeo assim como a
apreciaccedilatildeo esteacutetica tem origem em uma visatildeo que vai aleacutem do principium
individuationis Desfaz-se a ilusatildeo causada por este princiacutepio de que existe em realidade
um eu e um natildeo-eu ilusatildeo essa que eacute originada pelos condicionantes do conhecimento
tempo espaccedilo e causalidade Livre do principium individuationis natildeo haacute mais
diversidade natildeo existe mais indiviacuteduo passado futuro motivaccedilotildees existe apenas o
instante presente do ser a vontade Natildeo nos vemos mais como uma vontade separada de
outras ao contraacuterio vemos nos outros a mesma vontade pela qual somos Necessaacuterio
faz-se ressaltar que este conhecimento intuitivo que demonstra a unidade da vontade
em todo indiviacuteduo eacute entendimento de verdade tatildeo profundo que supera qualquer
especulaccedilatildeo abstrata do conhecimento e por isso seu efeito eacute marcante
Para o conhecimento que vecirc atraveacutes do principium individuationis uma
vida feliz no tempo presenteada pelo acaso ou conquistada deste pela
sabedoria em meio ao sofrimento de inumeraacuteveis outros eacute apenas um sonho de
mendigo no qual eacute um rei poreacutem tem de acordar e reconhecer que era tatildeo-soacute
uma ilusatildeo fugidia aquilo que o separava do sofrimento da sua vida (MVR
452)
A experimentaccedilatildeo deste estado de consciecircncia faz-nos perceber a vida como engano
luta infinita e provoca em noacutes a renuacutencia a esta mesma vida agrave vontade de viver O
homem natildeo mais afirma a sua essecircncia mas a repudia
Agrave semelhanccedila do estado de negaccedilatildeo da vontade o proacuteprio estado de
contemplaccedilatildeo esteacutetica pressupotildee um desinteresse pelos mandamentos da vontade
60
individual um desligamento do caraacuteter egoiacutestico do sujeito empiacuterico28
Para que possa
perceber a Ideacuteia por traacutes do objeto contemplado o observador deve estar em um estado
de consciecircncia que se vecirc livre dos grilhotildees da vontade Neste estado ele eacute alccedilado para
aleacutem da individualidade torna-se puro sujeito de conhecimento Para que este estado se
manifeste eacute imprescindiacutevel natildeo estar interessado nas relaccedilotildees do objeto apreciado seja
com outros objetos seja consigo mesmo O apreciador esteacutetico natildeo se preocupa com o
ldquoonderdquo o ldquocomordquo o ldquoporquecircrdquo dos objetos Estas formas de interjeiccedilatildeo sinalizam para a
relaccedilatildeo dos objetos com o mundo O apreciador esteacutetico no momento da apreciaccedilatildeo
tem em vista somente o ldquoquerdquo do objeto transforma-se em um ldquoolho que vecircrdquo livre do
princiacutepio de individuaccedilatildeo eacute o puro sujeito de conhecimento Vemos nestes dois estados
(o esteacutetico e o compassivo) exemplos de estados de consciecircncia que por suas
caracteriacutesticas de alccedilarem o indiviacuteduo a uma anulaccedilatildeo do sofrimento fazem parte do
projeto de juventude de estabelecer uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Percebemos entatildeo que a
consideraccedilatildeo esteacutetica e a consideraccedilatildeo eacutetica possuem em comum esta caracteriacutestica da
consciecircncia de se apartar do princiacutepio de individuaccedilatildeo
No caso da trageacutedia como descreve Schopenhauer seu fim uacuteltimo eacute despertar a
compaixatildeo no apreciador Desta forma o filoacutesofo associa agrave trageacutedia um efeito singular e
adverso das demais artes ou pelo menos reconhece na trageacutedia a arte capaz de
demonstrar a semelhanccedila entre os modos de consideraccedilatildeo artiacutestico e eacutetico Ao ilustrar o
conflito das vontades no mundo atraveacutes da exposiccedilatildeo do sofrimento humano a trageacutedia
cumpre seu papel artiacutestico ao expor a ideacuteia de humanidade Aleacutem deste atributo
podemos dizer que a trageacutedia tem que cumprir ainda seu papel moral ao causar no
28
Neste ponto de semelhanccedila eacute fundamental apontar mais uma vez a heranccedila kantiana Nas palavras de
Barboza (2001 82) ldquoA negaccedilatildeo da Vontade diante da beleza realmente obedece a uma leitura do
conceito criacutetico de desinteresse Quando Kant diz que o belo eacute aquilo que satisfaz bdquosem nenhum
interesse‟ o autor de O mundo leu essa expressatildeo como equivalente da negaccedilatildeo do querer visto que
interesse e motivo satildeo conceitos intercambiaacuteveis [] e a vontade neutraliza-se desinteressa-se ou seja eacute
indeterminaacutevel por motivos na contemplaccedilatildeo da Ideacuteia do belordquo
61
espectador a renuacutencia a toda vontade O modelo exemplar da trageacutedia eacute para
Schopenhauer a trageacutedia cristatilde onde o heroacutei conscientemente abandona o querer e
conseguintemente a vida Na trageacutedia antiga havia somente a identificaccedilatildeo do
sofrimento humano e sua exposiccedilatildeo A renuacutencia agrave vontade de vida eacute caracteriacutestica das
trageacutedias posteriores ao advento cristatildeo Schopenhauer exemplifica O priacutencipe de
Calderoacuten Gretchen em Fausto A Donzela de Orleans a Noiva de Messina etc Assim
ldquotoda a exposiccedilatildeo traacutegica eacute para o espectador um chamado agrave resignaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo livre
da Vontade de vida Somente a eacutetica pode tornar tudo isso mais compreensiacutevelrdquo (MB
223) Vemos entatildeo de forma clara na teoria da trageacutedia de Schopenhauer um momento
onde ocorre a coalizatildeo dos fundamentos metafiacutesicos de sua filosofia do pessimismo
originado nestes fundamentos e da atitude eacutetica existente por traacutes de seu pensamento
25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera
Faz-se necessaacuterio aqui uma incursatildeo sobre a teoria da muacutesica de Schopenhauer
tendo em vista de que ela ocuparaacute um papel decisivo na teoria nietzscheana da trageacutedia
As relaccedilotildees que Nietzsche estabelece entre a muacutesica a vontade as palavras e
finalmente a trageacutedia satildeo delineadas como veremos pela metafiacutesica schopenhaueriana
da muacutesica No intuito de perceber estas relaccedilotildees propomos aqui um breve esboccedilo da
teoria da muacutesica na filosofia de Schopenhauer
A filosofia da muacutesica encontra seu lugar ao final do terceiro livro de MVR bem
como no capiacutetulo 39 dos complementos fechando assim as consideraccedilotildees de
Schopenhauer sobre a metafiacutesica do belo e as artes29
29
Na esteira de Lydia Goehr (Jacquette 1996 200) ressaltamos que tendo em vista a influecircncia que sua
filosofia da muacutesica exerceu sobre o pensamento artiacutestico e filosoacutefico posterior e comparada agrave dimensatildeo
de sua obra as consideraccedilotildees sobre a muacutesica ocupam um espaccedilo diminuto em sua obra
62
Para o filoacutesofo da vontade a muacutesica eacute a arte que pela natureza de seu objeto de
expressatildeo natildeo encontra lugar apropriado dentro do sistema das demais artes Estas
conforme sua competecircncia em traduzir uma determinada objetidade da vontade uma
ideacuteia satildeo classificadas hierarquicamente A muacutesica entretanto figura aleacutem desta
hierarquizaccedilatildeo pois representa o conceitualmente irrepresentaacutevel ldquoa coacutepia de um
modelo que ele mesmo nunca pode ser representado imediatamenterdquo(MVR 338) a
Vontade mesma Esta arte eacute especialmente considerada devido agrave peculiaridade uacutenica de
seu efeito esteacutetico ldquoeacute uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente
sobre o mais iacutentimo do homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele
como se fora uma linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do
mundo intuitivordquo (MVR 336) A muacutesica estaacute aleacutem da intuiccedilatildeo pois representa aquilo
que estaacute aleacutem desta forma agrave semelhanccedila das ideacuteias que satildeo objetivaccedilotildees imediatas da
vontade a muacutesica eacute tambeacutem uma destas objetivaccedilotildees representaccedilatildeo imediata da coisa
em si O que o compositor apresenta atraveacutes da muacutesica eacute a essecircncia mais iacutentima do
mundo em uma ldquolinguagem natildeo compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo
magneacutetico fornece informaccedilotildees sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito
algumrdquo (MVR 342) Por estar em um acircmbito inalcanccedilaacutevel pelo conceito a muacutesica
atraveacutes de sua linguagem arrebata o homem de forma mais marcante e direta e ateacute
mesmo a explanaccedilatildeo sobre a muacutesica estaacute condenada agrave pobreza e agrave insuficiecircncia Desta
forma o filoacutesofo se utilizaraacute de uma analogia para explanar sobre a muacutesica ie
procederaacute a uma explicaccedilatildeo da muacutesica atraveacutes de um paralelismo entre ela as ideacuteias e o
mundo enquanto objetivaccedilotildees da vontade
Esta analogia expressa atraveacutes de diversos exemplos leva em consideraccedilatildeo que
em suas duas formas de objetivaccedilatildeo (o mundo e a muacutesica) a Vontade deixa transparecer
semelhanccedilas Na muacutesica os tons mais graves aproximam-se ao que satildeo no mundo os
63
graus mais baixos de objetivaccedilatildeo da vontade quais sejam a natureza inorgacircnica A lei
da harmonia estabelece que os tons agudos satildeo originados daquele tom mais grave
fundamental Da mesma forma no mundo os corpos tecircm como fonte e sustentaacuteculo a
natureza inorgacircnica ldquoagrave partir da qual tudo se eleva e desenvolverdquo(MB 230) As vozes
intermediaacuterias da melodia que estatildeo entre o baixo fundamental e a voz condutora
correspondem no mundo aos demais graus de objetivaccedilatildeo da vontade na natureza ldquoAs
vozes mais proacuteximas do baixo correspondem aos graus mais baixos ou seja os corpos
ainda inorgacircnicos poreacutem jaacute se exteriorizando de diversas maneiras As vozes mais
elevadas por sua vez representam os reinos vegetal e animalrdquo(MB 231)
O objeto de representaccedilatildeo da muacutesica eacute a Vontade e esta por sua vez eacute
intraduziacutevel atraveacutes das palavras da configuraccedilatildeo racional pois a razatildeo natildeo pode
alcanccedilar sua profundidade Trata-se de ldquouma linguagem universal cuja
compreensibilidade eacute inata e cuja clareza ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo
(MB 228) Diante desta caracteriacutestica cognitiva a muacutesica natildeo deve se inspirar no texto
nas palavras a natildeo ser para ilustraacute-las e conceder-lhes assim significaccedilatildeo mais
profunda A muacutesica natildeo deve ser composta com base em conceitos ou em objetos e
ocorrecircncias do mundo pois trata-se de uma expressatildeo da ordem do essencial do
universal ldquoela eacute a alma mais interior dessas ocorrecircncias sem o corpordquo (MB 235) Os
objetos e situaccedilotildees do mundo satildeo manifestaccedilotildees e portanto sua representaccedilatildeo
conceitual satildeo reproduccedilotildees circunstanciais da essecircncia do mundo expressa pela muacutesica
Daiacute se compreende o fato de a muacutesica realccedilar em cada
pintura sim em cada cena da vida efetiva e do mundo o
aparecimento de uma significaccedilatildeo mais elevada e tanto mais
quanto mais anaacuteloga eacute sua melodia ao espiacuterito iacutentimo do
fenocircmeno dado A muacutesica combina com tudo em todas as
exposiccedilotildees Nada lhe pode ser estranho pois exprime a essecircncia
de todas as coisas Caso se soe uma muacutesica que combine com
alguma cena da vida humana ou da natureza destituiacuteda de
conhecimento ou com alguma accedilatildeo acontecimento ambiente ou
64
alguma imagem ndash entatildeo ela revela o sentido secreto dessa cena e eacute
seu comentaacuterio mais correto e claro (MB 235)
Esta caracteriacutestica que daacute agrave muacutesica um privileacutegio cognitivo sobre as demais formas
artiacutesticas eacute o que delineia as consideraccedilotildees do filoacutesofo sobre a oacutepera30
A oacutepera ideal eacute
portanto aquela onde o livreto estaacute para a muacutesica como um exemplo para um conceito
geral A muacutesica tem a funccedilatildeo de expor ldquoo profundo e misterioso sobre a essecircncia
iacutentimardquo daquilo que a palavra exemplifica O compositor que maior ecircxito conseguiu
neste sentido conforme o filoacutesofo foi Rossini cuja ldquomuacutesica fala tatildeo distinta e
puramente a sua linguagem PROacutePRIA visto que quase natildeo precisa de palavras e por
conseguinte provoca todo o seu efeito mesmo se executada soacute com instrumentosrdquo
(MVR 344)
Vemos entatildeo a muacutesica como a mais profunda das artes cujo efeito eacute o mais
avassalador e que portanto quando conjugada com outras formas de expressatildeo como a
oacutepera deve formar a base e orientar a sua elaboraccedilatildeo Entretanto ao contraacuterio da
trageacutedia cujo fim eacute o estiacutemulo agrave renuacutencia da vontade de viver a muacutesica segundo a
metafiacutesica exposta por Schopenhauer ldquonatildeo faz mais do que agradar a vontade de viver
jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo seus ecircxitos e ao final expressa sua
satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509)
30
ldquoAo adotar esta atitude Schopenhauer transtorna toda a tradiccedilatildeo jaacute secular que havia afirmado natildeo
poucas vezes desde os tempos do nascimento da oacutepera o predomiacutenio da palavra sobre a muacutesica e em
consequumlecircncia a subordinaccedilatildeo desta uacuteltima agrave primeirardquo (Fubini 1988 289)
65
3 A teoria da trageacutedia do Jovem Nietzsche
Debalde espreitamos por uma raiz
vigorosamente ramificada por um pedaccedilo
de terra sadia e feacutertil por toda parte poacute
areia rigidez consunccedilatildeo Aqui um
solitaacuterio desconsolado natildeo poderia escolher
melhor siacutembolo do que o Cavaleiro com a
Morte e o Diabo como Duumlrer o desenhou o
cavaleiro arnesado com o olhar duro
brocircnzeo que sabe tomar o seu caminho
assustador imperturbado por seus
hediondos companheiros e natildeo obstante
desesperanccedilado sozinho com o seu corcel e
o seu catildeo Um tal cavaleiro duumlreriano foi
nosso Schopenhauer faltava-lhe qualquer
esperanccedila mas queria a verdade Natildeo haacute
quem se lhe iguale
(Nietzsche)
Neste capiacutetulo procuraremos apontar primeiramente o modo pelo qual se deu o
encontro entre Nietzsche e a filosofia de Schopenhauer Em um segundo momento
percorreremos o desenvolvimento histoacuterico das produccedilotildees nietzscheanas que
culminaram com a publicaccedilatildeo da obra que caracteriza o primeiro periacuteodo do filoacutesofo
qual seja O nascimento da trageacutedia a partir do espiacuterito da muacutesica Concluiremos entatildeo
apresentando um esboccedilo desta obra dando ecircnfase em todos os momentos aos
66
elementos que caracterizam sua teoria da trageacutedia especialmente agravequeles relacionados agrave
metafiacutesica schopenhaueriana da vontade
31 Schopenhauer e o jovem Nietzsche uma breve contextualizaccedilatildeo histoacuterica
Foram nos anos de universidade em Leipzig que Nietzsche se deparou com a
filosofia de Schopenhauer Este periacuteodo entre os anos de 1865 e 1869 eacute especialmente
importante devido ao fato de que nele podemos assistir ao surgimento de alguns
aspectos fundamentais ao projeto filosoacutefico de Nietzsche Janz descreve este periacuteodo
como aquele em que o filoacutesofo estabeleceu ldquoseus encontros espirituais determinantes a
partir dos quais se defrontou consigo mesmo e com sua tarefardquo(1987 151)
O primeiro contato do jovem Nietzsche com o mundo schopenhaueriano deu-se
em meados de outubro de 1865 pouco tempo apoacutes sua chegada a Leipzig O
arrebatamento causado no jovem estudante de filologia pelo encontro com a filosofia
schopenhaueriana eacute descrito por ele apoacutes dois anos da seguinte maneira
Sentia-me naquela eacutepoca desorientado solitaacuterio sem
princiacutepios sem esperanccedilas inconsolado e com algumas
experiecircncias dolorosas e decepccedilotildees Construir uma vida proacutepria e
adequada era para mim uma aspiraccedilatildeo que me ocupava da manhatilde
ateacute a noite No feliz apartamento em que vivia procurava
concentrar-me a mergulhar em mim mesmo e quando me
encontrava com amigos estes eram sempre Mushacke e Von
Gersdorff os quais por sua parte alentavam objetivos muito
semelhantes aos meus Creio que natildeo seraacute difiacutecil imaginar a
impressatildeo que nesta situaccedilatildeo me causou a leitura da obra
principal de Schopenhauer Encontrei um dia este livro no sebo do
velho Rohm Ignorando tudo sobre ele o tomei em minhas matildeos e
me pus a folheaacute-lo Natildeo sei que democircnio me sussurrou bdquoleve este
livro para a casa‟ Aconteceu de compraacute-lo apesar do meu usual
costume de natildeo me precipitar na compra de livros Uma vez em
casa num canto do sofaacute me lancei sobre o tesouro receacutem
adquirido e comecei a deixar que aquele gecircnio eneacutergico e sombrio
influiacutesse sobre mim Em cada linha sua gritava a renuacutencia
negaccedilatildeo resignaccedilatildeo tinha diante de mim um espelho no qual
podia contemplar o mundo a vida e meu proacuteprio acircnimo com uma
67
grandeza deprimente Um espelho desde o qual o olho solar da
arte me mirava desde sua absoluta falta de interesse Vi
enfermidade e cura desterro e refuacutegio inferno e paraiacuteso A
necessidade de autoconhecimento inclusive de auto-
experimentaccedilatildeo apoderou-se de mim com forccedila indomaacutevel
provas daquela mutaccedilatildeo profunda satildeo hoje todavia para mim as
paacuteginas desassossegadas e melancoacutelicas do diaacuterio que agravequela
eacutepoca escrevi com suas auto-acusaccedilotildees inuacuteteis e sua desesperada
busca de salvaccedilatildeo e reconstruccedilatildeo do inteiro nuacutecleo humano Na
medida em que propus a submeter todas as minhas caracteriacutesticas
e aspiraccedilotildees ao tribunal de uma sombria auto-depreciaccedilatildeo minha
atitude estava cheia de amargura possuiacuteda de um oacutedio injusto e
desenfreado contra mim mesmo Nem sequer renunciei agraves
mortificaccedilotildees corporais Obriguei-me com efeito durante
quatorze dias seguidos a deitar-me agraves duas da noite e acordar agraves
seis da manhatilde Uma excitaccedilatildeo nervosa muito singular se apoderou
assim de mim e quem sabe ateacute que grau de loucura haveria
chegado se natildeo tivesse modificado frente agravequele estado de
acircnimo os atrativos da vida da vaidade e o imperativo de retornar
a meus estudos regulares (conforme citaccedilatildeo de Janz 1987 158)
Da citaccedilatildeo podemos inferir a mudanccedila de acircnimo que o encontro com
Schopenhauer provocou A partir daquele momento diversas correspondecircncias datildeo-nos
ainda informaccedilotildees do impacto que a filosofia de Schopenhauer provocou na concepccedilatildeo
de mundo do jovem estudante Em algumas destas correspondecircncias vemos transparecer
a influecircncia atraveacutes da frequumlente utilizaccedilatildeo de um vocabulaacuterio schopenhaueriano bem
como das ideacuteias nelas expressas Assim acontece em carta enviada agrave sua matildee e irmatilde
datada de 5 de novembro de 1865 onde ao discorrer acerca da frivolidade da vida
humana o jovem Nietzsche conclui utilizando-se dos argumentos propostos pela eacutetica
schopenhaueriana
Existem dois caminhos ou se esforccedila e se acostuma a ser
o mais limitado que se possa e uma vez que se reduz o maacuteximo
possiacutevel a luz do espiacuterito se busque bens de fortuna e se viva com
os prazeres do mundo ou por outro lado se sabe que a vida eacute
miseraacutevel se sabe que somos seus escravos tanto mais quanto
mais procuramos dela gozar e por tanto se desprende dos bens da
vida exercita a sobriedade e se eacute austero consigo mesmo e cordial
com os demais ndash e isto porque sente compaixatildeo pelos
companheiros de miseacuteria ndash em uma palavra se vive de acordo
68
com as rigorosas exigecircncias do cristianismo primitivo (OC
470)
Vemos ainda em carta a Mushacke em 12 de julho de 1866 o impacto que a
interpretaccedilatildeo schopenhaueriana pessimista de mundo causou em Nietzsche ldquoDesde que
Schopenhauer nos retirou dos olhos a venda do otimismo as coisas satildeo percebidas
mais agudamente A vida eacute mais interessante ainda que mais feiardquo (conforme citaccedilatildeo
de Janz 1987 172) Percebemos tambeacutem a linguagem schopenhaueriana na descriccedilatildeo
dos momentos de contemplaccedilatildeo Eacute o caso da carta datada de 07 de abril de 1866 a
Gersdorf onde Nietzsche descreve seu estado que nos remeteraacute agrave contemplaccedilatildeo
artiacutestica na filosofia de Schopenhauer ao discorrer sobre os dias de veratildeo ldquo[] a
natureza se faz perfeita e noacutes tambeacutem entatildeo nos sentimos livres do poderio da vontade
sempre alerta e somos olho puro intuitivo desinteressadordquo (OC 472)
Estas influecircncias nortearam de forma definitiva as produccedilotildees acadecircmicas de
Nietzsche mesmos suas pesquisas filoloacutegicas A concepccedilatildeo traacutegica do mundo tornou-se
um feixe condutor para as reflexotildees do jovem filoacutelogo Seus companheiros no estudo da
obra de Schopenhauer eram Gersdorff e Mushacke Em carta agrave sua matildee de 01 de
fevereiro de 1866 Nietzsche deixa saber sobre a frequumlecircncia dos estudos ldquoCom
Gersdorff me encontro uma noite por semana para ler grego a cada duas semanas me
reuacuteno com ele e com Mushacke e nos entregamos a Schopenhauer Este filoacutesofo ocupa
uma posiccedilatildeo importante em meus pensamentos e estudos e meu respeito por ele cresce
incomparavelmenterdquo (OC 471) Se o conteuacutedo da filosofia schopenhaueriana foi
absorvido intensamente pelo jovem Nietzsche como podemos ver a partir dos trechos
transcritos acima a forma estiliacutestica tambeacutem se configura como preocupaccedilatildeo Em um
periacuteodo onde as pesquisas acadecircmicas exigiam o esforccedilo da escrita ali tambeacutem a
autoridade das regras schopenhauerianas exibia sua feiccedilatildeo Eacute tambeacutem em uma carta a
69
Gersdorff datada de 06 de abril de 1867 onde Nietzsche expotildee sua preocupaccedilatildeo com o
estilo
Nestas divagaccedilotildees quero redigir meu trabalho sobre as
fontes de Dioacutegenes Laeacutercio e estou todavia no iniacutecio Para seu
regozijo confessarei que o que mais me daacute trabalho eacute meu estilo
em alematildeo Agora me caem os veacuteus dos olhos e vejo que
durante muito tempo vivi em estado de inocecircncia estiliacutestica O
imperativo categoacuterico bdquodeves escrever‟ me foi despertado[] nos
ouvidos me soavam todos os preceitos estiliacutesticos de Lessing de
Lichtenberg e de Schopenhauer Meu uacutenico consolo eacute que estas
trecircs autoridades afirmavam unanimemente que eacute difiacutecil escrever
bem que por natureza ningueacutem tem um bom estilo e que haacute que
trabalhar e trabalhar para consegui-lo (OC 476)
Entretanto apesar do profundo arrebatamento causado pela filosofia de
Schopenhauer que fez com que o universo das preocupaccedilotildees do entatildeo jovem Nietzsche
se fundamentasse nos pressupostos da metafiacutesica schopenhaueriana outros elementos
tambeacutem fundamentais para o pensamento futuro do filoacutesofo foram tambeacutem neste
periacuteodo despertados Como apontam Dias (2009 42) Janaway (2007 16) e Lopes
(2008 27) jaacute neste periacuteodo que podemos tratar como um periacuteodo de despertar para o
pensamento filosoacutefico encontraacutevamos os elementos que a partir de Humano demasiado
humano conformaratildeo a criacutetica nietzscheana agrave filosofia de Schopenhauer Os
comentadores citados chamam a atenccedilatildeo para o fato de que embora nas obras
publicadas de Nietzsche possamos assistir a criacuteticas diretas a Schopenhauer somente
apoacutes Humano demasiado humano tais criacuteticas agrave filosofia schopenhaueriana surgiram
em um momento imediatamente posterior agrave descoberta da metafiacutesica da vontade Rosa
Maria Dias chama a atenccedilatildeo para os fragmentos poacutestumos e para a correspondecircncia que
agrave partir de 1867 trazem algumas criacuteticas agrave metafiacutesica da vontade Rogeacuterio Lopes e
Cristopher Janaway apontam que algumas destas criacuteticas estatildeo embasadas nas leituras
que o jovem Nietzsche fez de Friedrich A Lange Rudolf Haym Kuno Fischer dentre
outros Tais criacuteticas contudo natildeo afastaram o jovem Nietzsche do discipulado
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schopenhaueriano mas transformaram sua aceitaccedilatildeo do sistema da vontade No lugar de
uma defesa da consistecircncia loacutegica do sistema Nietzsche passou a adotar uma postura de
defesa da bdquonatureza edificante‟ e preponderantemente artiacutestica deste sistema Exemplos
desta postura podem ser encontrados tambeacutem na correspondecircncia daquele periacuteodo
Para escrever uma apologia a Schopenhauer eu tenho
unicamente que considerar o fato de que olho esta vida livre e
bravamente diante do fato de que encontrei um suporte para me
apoiar obviamente que isto natildeo eacute mais que uma apologia
totalmente individual Mas eacute como as coisas satildeo Se algueacutem
deseja refutar Schopenhauer para mim atraveacutes de argumentos
racionais murmuro em seu ouvido bdquoporeacutem meu amigo visotildees de
mundo natildeo satildeo criadas nem destruiacutedas pela loacutegica‟ (carta a
Deussen Outubro-Novembro de 1867 citada por Janaway
(200718))
Ou ainda em carta a Gersdorff onde apoacutes apresentar a criacutetica de Lange agrave metafiacutesica da
vontade Nietzsche conclui contra Haym ainda com os argumentos de Lange
Natildeo apenas a verdadeira essecircncia das coisas a coisa em si
eacute desconhecida para noacutes tambeacutem seu conceito eacute nada mais nada
menos que o uacuteltimo rebento de um contraste condicionado por
nossa organizaccedilatildeo do qual natildeo sabemos se conserva algum
significado fora de nossa experiecircncia Disso resulta pensa Lange
que os filoacutesofos natildeo devem ser importunados na medida em que
nos edificam A arte eacute livre tambeacutem na regiatildeo dos conceitos
Quem pretenderia refutar uma frase de Beethoven e acusar de erro
uma Madonna de Rafael Como vocecirc pode perceber o nosso
Schopenhauer resiste mesmo a este mais rigoroso ponto de vista
criacutetico ele se torna quase ainda mais valioso para noacutes Se filosofia
eacute arte entatildeo que Haym se anule diante de Schopenhauer se a
filosofia deve edificar entatildeo eu pelo menos natildeo conheccedilo nenhum
filoacutesofo que edifique mais do que nosso Schopenhauer (apud
Lopes 2008 86-87)
Vimos ateacute entatildeo que a descoberta de Schopenhauer provocou no jovem
estudante de filologia transformou sua forma de perceber o mundo e o influenciou de
forma definitiva a ponto de fazer com que Nietzsche se definisse como um seguidor e
divulgador da obra schopenhaueriana Contudo eacute no fim de seus anos de estudo em
Leipzig que o disciacutepulo de Schopenhauer iraacute se defrontar com a personalidade que lhe
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reforccedilaraacute de forma ainda mais contundente o selo da rotunda schopenhaueriana
Richard Wagner
Foi atraveacutes de seu amigo Brockhaus cuja esposa era irmatilde do muacutesico que em
novembro de 1868 Nietzsche encontrou-se pela primeira vez com Wagner A partir
daquele encontro se estabeleceria um relacionamento que de uma forma ou de outra
marcaraacute Nietzsche pelo resto de sua vida Em uma carta a seu amigo Erwin Rohde
Nietzsche descreve o primeiro encontro e sua perplexidade ao encontrar em Wagner um
admirador de Schopenhauer ldquo[]mantive com ele uma longa conversa sobre
Schopenhauer Ah Compreenderaacutes minha felicidade em ouvir-lhe falar com um
entusiasmo completamente indescritiacutevel ao qual ele agradecia como Schopenhauer
era o uacutenico filoacutesofo que havia compreendido a essecircncia da muacutesicardquo (Correspondecircncia
2007 21) A impressatildeo deste encontro eacute tambeacutem claramente visiacutevel atraveacutes de
correspondecircncia endereccedilada ao proacuteprio Wagner em maio de 1869 ldquoVeneradiacutessimo
senhor quanto tempo tive a intenccedilatildeo de lhe manifestar sem nenhuma timidez o grau de
gratidatildeo que sinto em relaccedilatildeo ao senhor pois realmente os melhores e mais elevados
momentos de minha vida se ligam ao seu nome e eu soacute conheccedilo mais um homem aleacutem
disso seu grande irmatildeo em espiacuterito Arthur Schopenhauer em quem penso com a
mesma veneraccedilatildeo ateacute senso religiosordquo (Correspondecircncia 2007 56) Como podemos
ver a pessoa de Wagner eacute associada agrave de Schopenhauer Esta associaccedilatildeo tornar-se-aacute
uma constante e poderaacute ser identificada ainda na fase tardia onde as criacuteticas a estes
pensadores e ao que eles entatildeo representavam se daraacute de forma inter-relacionada Este
primeiro encontro com Wagner conforme Janz (1987 22) foi um dos principais
motivos que levaram Nietzsche a aceitar em detrimento de outros planos que
formulava assumir a caacutetedra de filologia em Basel A proximidade de Tribschen
residecircncia dos Wagner e a possibilidade de uma convivecircncia com o muacutesico o
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inspiraram E assim aconteceu Ao mudar-se para Basel pocircde desfrutar de uma
convivecircncia constante com o casal Wagner Desde a chegada de Nietzsche ateacute a
mudanccedila de Wagner em 1872 encontravam-se com muita frequumlecircncia e os assuntos que
pautavam tais encontros eram amiuacutede arte muacutesica a literatura claacutessica e a filosofia de
Schopenhauer Wagner tornar-se-ia para Nietzsche a personificaccedilatildeo do gecircnio
schopenhaueriano aquele capaz de atraveacutes da muacutesica expor a essecircncia do mundo No
projeto wagneriano de ldquoarte totalrdquo Nietzsche pocircde vislumbrar a uniatildeo entre muacutesica e
filosofia e satisfazer assim em certa medida as expectativas oriundas da metafiacutesica da
vontade
32 O projeto subjacente ao Nascimento da Trageacutedia
Eacute famosa a passagem onde Nietzsche em carta a Deussen datada de janeiro de
1870 informa sobre seu estado de espiacuterito ldquo Ciecircncia arte e filosofia crescem agora
juntas em mim e de tal modo que um dia haverei de parir centaurosrdquo (Janz 1981 66)
Esta afirmaccedilatildeo eacute ilustrativa no que se refere ao ambiente onde o Nascimento da trageacutedia
foi gerado Podemos identificar claramente as figuras por detraacutes dos termos filosofia
arte e ciecircncia satildeo elas Schopenhauer Wagner e a filologia claacutessica Neste periacuteodo
Nietzsche entatildeo jovem professor de filologia estava imbuiacutedo pela pretensatildeo de poder
unir os estudos filoloacutegicos aos filosoacuteficos Sua preleccedilatildeo inicial Homero e a filologia
claacutessica em Basel nos daacute uma amostra desta pretensatildeo Ali podemos assistir a uma
aproximaccedilatildeo entre filologia e filosofia atraveacutes da proposta de uma leitura filosoacutefica do
mundo antigo ldquoCom isto quero expressar que toda atividade filoloacutegica deve estar
impregnada de uma concepccedilatildeo filosoacutefica do mundo na qual todo o particular e singular
seja visto como algo sem proveito e soacute permaneccedila de peacute a unidade do todordquo (OC 26)
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Sua escolha por trilhar caminhos mais proacuteximos agrave filosofia pode tambeacutem ser observada
pela tentativa frustrada de ocupar uma cadeira desta disciplina que se mostrou livre em
janeiro de 1871 Se por um lado podemos diagnosticar certa decepccedilatildeo e ateacute um
determinado desacircnimo na atividade acadecircmica por outro lado os laccedilos com os Wagner
se estreitavam cada vez mais No refuacutegio de Tribschen sob a aura de Richard Wagner
Nietzsche discorria sobre o mundo grego enquanto modelo de cultura e ouvia os planos
wagnerianos sobre seu projeto de uma obra de arte total Como pano de fundo destas
discussotildees a metafiacutesica da muacutesica schopenhaueriana e sua concepccedilatildeo traacutegica do mundo
Eacute em torno destes eixos formadores que vemos se materializar a primeira publicaccedilatildeo de
Nietzsche
O desenvolvimento das ideacuteias que formaratildeo a obra contudo se deu de forma
gradual Ao longo do periacuteodo compreendido entre a chegada de Nietzsche a Basel e a
publicaccedilatildeo de seu livro determinados trabalhos deixam transparecer o delineamento de
algumas das ideacuteias centrais da obra Satildeo eles O drama musical grego Soacutecrates e a
trageacutedia A visatildeo dionisiacuteaca do mundo e Introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles31
Em o drama musical grego conferecircncia puacuteblica datada de janeiro de 1870
Nietzsche efetua uma comparaccedilatildeo entre a arte traacutegica da antiguidade e as oacuteperas
modernas Estas de acordo com o filoacutesofo satildeo uma imperfeita ldquocaricatura do drama
musical antigordquo (VD 48) Muacutesica pintura escultura e poesia formavam um todo na
arte traacutegica da antiguidade Nas artes modernas por sua vez as formas artiacutesticas satildeo
fragmentadas fato que dificulta o entendimento da trageacutedia grega e que causaria
espanto ao apreciador de arte moderno A muacutesica teria para a trageacutedia antiga uma
31
Como ressaltam M S Silk e J P Stern em sua obra Nietzsche on tragedy (1981 59) o nascimento da
trageacutedia eacute composto de forma estrutural pelos conceitos encontrados nestes trabalhos O iniacutecio do livro
(sectsect1-10) eacute substancialmente baseado no ensaio a visatildeo dionisiacuteaca do mundo enquanto a sequumlecircncia
composta pelos paraacutegrafos 5 e 6 estaacute mais proacutexima da introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles O trecho
composto pelos paraacutegrafos 11 a 14 pode ser derivado diretamente da leitura Soacutecrates e a trageacutedia O resto
do livro eacute formado por uma amaacutelgama destes escritos Partes dispersas ainda satildeo formadas pelo ensaio do
drama musical grego
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importacircncia capital como elemento intensificador de seu efeito Podemos ver a intenccedilatildeo
por traacutes da anaacutelise nietzscheana da trageacutedia antiga em comparaccedilatildeo agrave opera Ao final da
conferecircncia no elogio que confere a Wagner o tiacutetulo de ldquoatual reformador da arterdquo bem
como na descriccedilatildeo de seu projeto de arte total retratado como um acontecimento que jaacute
teve lugar na trageacutedia da antiguidade claacutessica Nietzsche deixa claro seu engajamento ao
projeto wagneriano
No mecircs seguinte ao da citada conferecircncia uma segunda intitulada Soacutecrates e a
trageacutedia foi proferida por Nietzsche O assunto em pauta era a morte repentina da
trageacutedia grega Esta morte teria ocorrido pelas matildeos de Euriacutepides apoacutes uma decadecircncia
iniciada nos uacuteltimos periacuteodos das produccedilotildees de Eacutesquilo passando por Soacutefocles e
culminando com o advento da comeacutedia Tal decadecircncia teria sido provocada pela saiacuteda
de cena da muacutesica que de forma progressiva foi substituiacuteda pelo diaacutelogo racionalista
Soacutecrates ocupa aqui um lugar importante Eacute sua influecircncia sobre Euriacutepides que
transforma de uma forma definitiva a arte instintivamente musical da trageacutedia em uma
manifestaccedilatildeo do discurso eacutetico racionalista Esta ldquoesteacutetica racionalista e conscienterdquo
pode ser identificada no proacutelogo euripidiano e na inserccedilatildeo do deus ex machina
enquanto agentes de racionalizaccedilatildeo da obra artiacutestica A trageacutedia de Euriacutepides teria
assumido assim os pressupostos do racionalismo socraacuteticos ldquoVirtude eacute saber peca-se
somente por ignoracircncia O virtuoso eacute felizrdquo (VD 90) Esta assunccedilatildeo que liga a virtude
ao saber impotildee agrave trageacutedia um caraacuteter eacutetico alheio agrave sua caracteriacutestica puramente
esteacutetica O elemento culpa na dialeacutetica socraacutetica toma o lugar que era ocupado pela
compaixatildeo Jaacute podemos perceber nesta conferecircncia o esboccedilo da dicotomia que mais
tarde seraacute ilustrada atraveacutes dos deuses Apolo e Dioniso Os pares formadores da
dicotomia satildeo aqui expressos pela separaccedilatildeo entre instinto e razatildeo muacutesica e discurso
pessimismo e otimismo arte e ciecircncia
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Temos a primeira referecircncia agrave arte dionisiacuteaca como impulso formador da
trageacutedia e sua contraposiccedilatildeo agrave arte apoliacutenea nas aulas proferidas por Nietzsche no veratildeo
daquele mesmo ano Neste curso sobre a trageacutedia de Soacutefocles do qual temos a
introduccedilatildeo podemos ver o esforccedilo de Nietzsche em caracterizar e apontar as
peculiaridades da trageacutedia da antiguidade que a tornam um fenocircmeno uacutenico em
comparaccedilatildeo agraves trageacutedias modernas Tal discussatildeo demonstraraacute pelos aspectos ali
expostos a aproximaccedilatildeo de Nietzsche com autores do periacuteodo claacutessico alematildeo e
sobretudo da chamada querela entre antigos e modernos Vemos claramente a influecircncia
de Schiller e F A Schlegel em algumas das definiccedilotildees adotadas por Nietzsche
No texto denominado A visatildeo dionisiacuteaca do mundo jaacute podemos assistir a um
desenvolvimento das duas pulsotildees artiacutesticas que satildeo o nuacutecleo da interpretaccedilatildeo
nietzscheana da trageacutedia O apoliacuteneo e o dionisiacuteaco satildeo ali explicados no acircmbito de seu
surgimento no mundo helecircnico e simbolizam a uniatildeo entre verdade e beleza na forma de
arte traacutegica Sua descriccedilatildeo como veremos abaixo estaacute permeada de conceitos retirados
da filosofia schopenhaueriana que vatildeo desde a biparticcedilatildeo do mundo entre verdade e
aparecircncia perpassam as noccedilotildees de belo e sublime e apontam a trageacutedia e a muacutesica como
forma de arte superiores
Em janeiro de 1872 Nietzsche daacute luz a seu ldquoCentaurordquo sob o nome O nascimento
da trageacutedia atraveacutes do espiacuterito da muacutesica Em carta a Rohde datada de 23 de novembro
de 1871 podemos notar atraveacutes da ansiosa expectativa nietzscheana a amaacutelgama
formadora da obra ldquo Temo sempre que os filoacutelogos natildeo o queiram ler por causa da
muacutesica os muacutesicos por causa da filologia e os filoacutesofos por causa da muacutesica e da
filologia e sinto logo medo e compaixatildeo de mim mesmordquo (Correspondecircncia 2007 237)
33 A teoria da trageacutedia publicada
Como escopo geral da primeira obra de Nietzsche podemos dizer na esteira de
Silk e de Stern (1981 52) que ela se propunha a esclarecer o problema do nascimento e
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da morte da trageacutedia helecircnica Trageacutedia que por sua vez era a expressatildeo artiacutestica que
simbolizava um problema vital o de que sob uma superfiacutecie bela podiacuteamos ter acesso agrave
terriacutevel profundidade do ser Tal forma de arte poderia novamente vir agrave luz por uma
geraccedilatildeo criativa que ao combater a superficialidade moderna que reinava no mundo
germacircnico poderia produzir o renascimento moderno do mundo Helecircnico
Em sua essecircncia o nascimento da trageacutedia aponta para as divindades Apolo e
Dioniacutesio como ldquorepresentantes vivosrdquo de princiacutepios diacutespares que irrompem da proacutepria
natureza e que ao serem conciliados de certa forma tornaram possiacutevel que atraveacutes dos
atritos de tal uniatildeo a trageacutedia grega despontasse como manifestaccedilatildeo artiacutestica exemplar
do sublime Em linhas gerais a arte do ldquofigurador plaacutesticordquo estaria entatildeo associada ao
deus Apolo enquanto a arte ldquonatildeo figuradardquo a da muacutesica estaria associada ao deus
Dioniacutesio O apoliacuteneo eacute um impulso da vontade grega que ao almejar a vida a apresenta
transfiguradamente como um belo sonho plasmado no mundo dos deuses oliacutempicos O
princiacutepio apoliacuteneo seria aquele que estabeleceria a ordem a beleza estaacutetica e a clareza
dos limites O dionisiacuteaco eacute oriundo das festas do oriente e seu efeito eacute comparado ao da
embriaguecircs A ele cabe a sabedoria profunda da essecircncia da vida lugar do acaso do
impermanente do horriacutevel e do sofrimento A Apolo eacute facultado tecer o veacuteu que
encobre a sabedoria dionisiacuteaca e torna a vida suportaacutevel atraveacutes da ilusatildeo do sonho
Assim segundo Nietzsche o desenvolvimento contiacutenuo da arte estaacute vinculado agrave
duplicidade dos princiacutepios apoliacuteneo e dionisiacuteaco Perfazendo um caminho histoacuterico da
cultura grega podemos notar uma sobreposiccedilatildeo intermitente entre os impulsos divinos
Temos momentos onde o impulso apoliacuteneo se mostrou dominante e outros onde
Dioniacutesio recupera seu predomiacutenio O mundo oliacutempico homeacuterico com sua arte eacutepica e
sua escultura do periacuteodo doacuterico nascem a partir de uma necessidade de redenccedilatildeo para a
realidade de horror e sofrimento que o povo helecircnico presenciava Em substituiccedilatildeo ao
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mundo titacircnico temos o mundo dos deuses oliacutempicos exemplificadores de uma
existecircncia divinizada que exalta a vida Nas palavras de Nietzsche ldquoo grego conheceu
e sentiu os temores e os horrores do existir para que lhe fosse possiacutevel de algum modo
viver teve de colocar ali entre ele e a vida a resplendente criaccedilatildeo oniacuterica dos deuses
oliacutempicosrdquo (NT 36) Entretanto a sabedoria dionisiacuteaca portadora da visatildeo abismal do
ser natildeo pocircde ser contida por muito tempo e a muacutesica veiacuteculo da uniatildeo orgiaacutestica aos
poucos foi se infiltrando no mundo construiacutedo pelo divino Apolo Os gregos foram se
tornando conscientes de seu estado sonambuacutelico que sob a graccedila do deus Apolo enleva
e transporta pela extraordinaacuteria beleza natural ou esteacutetica Em um estado semelhante ao
do indiviacuteduo que restabelecido em suas forccedilas pelo efeito renovador do sono ao findar
de uma noite comeccedila a ouvir os sons a sua volta e aos poucos vai se despertando da
mesma forma os gregos comeccedilaram novamente a ouvir o sussurro do Sileno
companheiro de Dioniacutesio ldquoo melhor de tudo eacute para ti inteiramente inatingiacutevel natildeo ter
nascido e natildeo ser nada ser Depois disso poreacutem o melhor para ti eacute logo morrerrdquo
(NT 36) O artista que representa este retorno do dionisiacuteaco com a mesma envergadura
com que Homero representa as forccedilas apoliacuteneas eacute Arquiacuteloco Tomando-o como modelo
do gecircnio liacuterico Nietzsche faz uma descriccedilatildeo de seu processo de criaccedilatildeo Conforme a
metafiacutesica esteacutetica adotada por Nietzsche - que mais agrave frente veremos ser retirada da
esteacutetica schopenhaueriana - toda arte tem que ser objetiva livre dos interesses
individuais Nesta situaccedilatildeo a liacuterica que tem como objeto o eu do poeta seus desejos e
emoccedilotildees natildeo seria uma forma de arte Entretanto atraveacutes de uma descriccedilatildeo que Schiller
faz da inspiraccedilatildeo poeacutetica Nietzsche aponta o caminho para percebermos a liacuterica como
obra de arte e portanto objetivamente Conforme a passagem de Schiller citada por
Nietzsche (NT 44) ldquoo sentimento se me apresenta no comeccedilo sem um objeto claro e
determinado este soacute se forma mais tarde Uma certa disposiccedilatildeo musical de espiacuterito
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vem primeiro e somente depois eacute que se segue em mim a ideacuteia poeacuteticardquo Desta forma
Arquiacuteloco em seu processo criativo a princiacutepio entraria em um estado de consciecircncia
ou de criaccedilatildeo onde renunciaria agrave sua individualidade e dionisiacamente participaria do
uno-primordial ldquoabismo do serrdquo estado que por sua vez materializa-se atraveacutes da
representaccedilatildeo musical A muacutesica assim produzida seraacute condiccedilatildeo para o surgimento da
inspiraccedilatildeo que a posteriori daraacute nascimento atraveacutes da aplicaccedilatildeo das formas
apoliacuteneas agrave poesia liacuterica geacutermen da trageacutedia e dos ditirambos dramaacuteticos Esta uniatildeo da
poesia liacuterica com a muacutesica eacute uma expressatildeo sinteacutetica da relaccedilatildeo dos deuses Apolo e
Dioniacutesio Eacute no quinto capiacutetulo de sua obra que Nietzsche iraacute tratar da poesia liacuterica
Neste capiacutetulo o filoacutesofo se distancia de Schopenhauer em sua interpretaccedilatildeo do
fenocircmeno liacuterico Para Schopenhauer na citaccedilatildeo reproduzida por Nietzsche (NT 46) a
liacuterica eacute produzida atraveacutes de uma percepccedilatildeo da consciecircncia onde os estados da vontade
individualizada se alternam com o conhecimento objetivo Como vimos o poeta liacuterico
assistiria ao jogo do eu em sua afetaccedilatildeo emocional e descreveria este estado atraveacutes de
sua poesia Nietzsche ao descrever a liacuterica utiliza-se da teoria da muacutesica
schopenhaueriana qual seja o poeta liacuterico produz primeiramente a muacutesica como forma
geral de expressatildeo da vontade mesma e desta produccedilatildeo gera posteriormente o texto que
se torna um exemplificador do evento musical sua forma plaacutestica objetiva A muacutesica eacute
a aparecircncia da vontade e as imagens apoliacuteneas que dela se originaram satildeo conforme seu
espiacuterito A imagem e o conceito satildeo desta forma na liacuterica originados a partir da
muacutesica
Tem-se portanto na trageacutedia grega uma relaccedilatildeo de interdependecircncia que evoca
um aparente paradoxo ndash ou seja ao lado da necessidade esteacutetica da beleza Apolo exige
dos seus a medida (limites fronteiras do indiviacuteduo presentes no ldquonada em demasiardquo) e
o auto-conhecimento necessaacuterio para determinaacute-la (ldquoconhece-te a ti mesmordquo) o
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desmedido os excessos o dionisiacuteaco seriam identificados pelo apoliacuteneo como
democircnios de uma era preacute-apoliacutenea era dos Titatildes reminiscecircncias de barbarismo O
paradoxo estaacute em que para que o comedimento apoliacuteneo possa existir o desmedido
dionisiacuteaco faz-se necessaacuterio (na linguagem de Nietzsche como ldquosubstratordquo) assim
como para que o desmedido dionisiacuteaco possa existir faz-se necessaacuterio a existecircncia do
comedido do apoliacuteneo Natildeo obstante a trageacutedia grega depende da conjugaccedilatildeo destes
dois princiacutepios para existir ndash indo aleacutem poder-se-ia dizer que a proacutepria muacutesica compotildee
o princiacutepio primeiro que possibilita o surgimento da trageacutedia no jogo das formas
apoliacuteneo A trageacutedia eacute entatildeo definida como ldquoo coro dionisiacuteaco a descarregar-se sempre
de novo em um mundo de imagens apoliacuteneordquo (NT 60)
Em seu iniacutecio a trageacutedia grega era representada pelo coro traacutegico Este coro natildeo
era uma ldquorepresentaccedilatildeo constitucional do povordquo muito menos um espectador ideal
como o queria August Schlegel Nietzsche acompanha Schiller na definiccedilatildeo de que o
coro cria um terreno ideal para a manifestaccedilatildeo da arte O efeito da trageacutedia eacute a
manifestaccedilatildeo de um estado de unidade que transporta ao abismo do ser O coro eacute a
manifestaccedilatildeo deste sentimento da consciecircncia de que por traacutes da vida cotidiana haacute uma
realidade ldquoindestrutivelmente poderosa e cheia de alegriardquo (NT 55) Este eacute o consolo
metafiacutesico propiciado pela arte traacutegica Ao retornarmos deste estado o cotidiano nos
causa asco nojo Natildeo eacute possiacutevel interpretar mais o papel da vida comum A vida soacute
passa a se justificar atraveacutes da arte Perceba-se aiacute que o coro possui um papel
fundamental no processo O coro atua como impulso artiacutestico dionisiacuteaco em
contraposiccedilatildeo agrave forma apoliacutenea ou seja agraves imagens e agrave beleza plaacutestica Assim o
indiviacuteduo atraveacutes do coro tem para si revelado aquele substrato dionisiacuteaco encoberto
pela beleza e comedimento apoliacuteneos isto eacute ao indiviacuteduo era possiacutevel submergir na
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torrente dionisiacuteaca do auto-esquecimento permitindo-se pocircr de lado os preceitos
apoliacuteneos
E foi assim que em toda parte onde o dionisiacuteaco penetrou o apoliacuteneo
foi suspenso e aniquilado Mas eacute igualmente certo que laacute onde o primeiro
assalto foi suportado o prestiacutegio e a majestade do deus deacutelfico se externaram de
maneira mais riacutegida e ameaccediladora do que nunca(NT 41-42)
De acordo com Nietzsche as trageacutedias eram em seu iniacutecio representaccedilotildees do
sofrimento de Dioniacutesio Mesmo as trageacutedias do periacuteodo aacutetico traziam Dioniacutesio como
heroacutei traacutegico O sofrimento representado era o do despedaccedilamento de Dioniacutesio o deus
que sofreu o padecimento da individuaccedilatildeo causa de todo o sofrer O mito de Dioniacutesio eacute
interpretado aqui sob a luz da filosofia de Schopenhauer que apresenta a individuaccedilatildeo
como fonte do sofrimento ldquoNos pontos de vista aduzidos temos jaacute todas as partes
componentes de uma profunda e pessimista consideraccedilatildeo do mundo e ao mesmo tempo
a doutrina misteriosoacutefica da trageacutedia o conhecimento baacutesico da unidade de tudo o que
existe a consideraccedilatildeo da individuaccedilatildeo como a causa primeira do mal a arte como a
esperanccedila jubilosa de que possa ser rompido o feiticcedilo da individuaccedilatildeo como
pressentimento de uma unidade restabelecidardquo (NT 70)
Contudo ressalta Nietzsche a trageacutedia grega que como vimos desenvolve-se a
partir do embate contiacutenuo entre as representaccedilotildees dos deuses antiacutepodas ndash envolvidos em
um enfrentamento aparentemente sem fim ndash eacute reestruturada por Euriacutepides de forma a
diminuir o impacto do coro ou seja um golpe quase mortal para Dioniacutesio que
agonizante lanccedila matildeo de seus uacuteltimos esforccedilos O que em Euriacutepedes suscitou esta
reestruturaccedilatildeo que conforme Nietzsche eacute responsaacutevel pelo afastamento progressivo do
dionisiacuteaco tem suas origens no que o filoacutesofo chamou de uma ldquotendecircncia socraacuteticardquo O
socratismo euripidiano e a sua nova concepccedilatildeo esteacutetica satildeo as causadoras do
afastamento dos impulsos esteacuteticos primevos o dionisiacuteaco e o apoliacuteneo Em seu lugar o
discurso consciente passa a imperar O deus ex machina e os proacutelogos satildeo exemplos das
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interferecircncias racionais que datildeo novo tom agrave trageacutedia aacutetica Soacutecrates e seu racionalismo
expulsam da trageacutedia o conhecimento primevo dionisiacuteaco e estabelecem novas regras
esteacuteticas regras racionais que fazem com que o bom sinocircnimo do belo seja aquilo
alcanccedilado conscientemente
Se a trageacutedia grega foi para Nietzsche a manifestaccedilatildeo mais sublime de uma
forma artiacutestica isto se daacute em decorrecircncia do efeito por ela provocado qual seja o de
justificar o mundo enquanto fenocircmeno esteacutetico Foi exatamente o decliacutenio deste efeito
constatado pela produccedilatildeo racionalizada de Euriacutepides o responsaacutevel pela morte da
trageacutedia Ao fortalecer em demasia os princiacutepios racionais da forma Euriacutepides suprimiu
o dionisiacuteaco por meio da flacircmula que nas palavras de Nietzsche o tragedioacutegrafo
ldquolevava agrave testardquo ndash a saber uma espeacutecie de socratismo esteacutetico cujos princiacutepios se davam
a partir da remissatildeo do belo ao inteligiacutevel e deste ao virtuoso Identifica-se portanto a
racionalidade otimista socraacutetica como grande responsaacutevel pela supressatildeo do impulso
dionisiacuteaco Nietzsche alude agrave proximidade de convivecircncia entre Soacutecrates e Euriacutepides
para justificar a presenccedila do racionalismo nas obras Euripidianas Soacutecrates frequumlentava
o teatro somente para assistir agraves apresentaccedilotildees de Euriacutepides De todos os atenienses
Soacutecrates era apontado como o mais saacutebio e Euriacutepides como o segundo em sabedoria
Entretanto na contraposiccedilatildeo proposta por Nietzsche entre conhecimento instintivo e
racional Soacutecrates era descomunalmente racional ao contraacuterio do intuitivismo criativo
que reinava ateacute entatildeo Era questionando aos atenienses sobre seus atos que Soacutecrates
percebia que eles natildeo agiam conscientemente mas por intuiccedilatildeo A crenccedila socraacutetica de
que toda accedilatildeo boa deve ser consciente dominou o teatro atraveacutes de Euriacutepides Uma
chave para o entendimento da racionalidade socraacutetica segundo Nietzsche nos eacute
revelada pela ldquomonstruosa inversatildeordquo representada pela consciecircncia criacutetica de Soacutecrates ndash
ou seja a nota destoante em Soacutecrates revela-se pelo instinto criacutetico em contraposiccedilatildeo agrave
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consciecircncia criacutetica a consciecircncia criadora em contraposiccedilatildeo ao instinto como forccedila
criadora Intui-se assim o motivo pelo qual Soacutecrates natildeo compreendia a trageacutedia grega
- o dionisiacuteaco a tornava ininteligiacutevel para as exigecircncias racionalistas e criacuteticas da
ldquodialeacutetica otimistardquo socraacutetica ldquoA Soacutecrates [] parecia que a arte traacutegica nunca bdquodiz a
verdade‟ sem considerar o fato de que se dirigia agravequele que bdquonatildeo tem muito
entendimento‟ portanto natildeo aos filoacutesofos daiacute um duplo motivo para manter-se dela
afastadordquo(NT 87) Nietzsche compara Soacutecrates ao heroacutei euripidiano que
diferentemente (ateacute mesmo antagonicamente) agrave trageacutedia de Eacutesquilo e Soacutefocles ldquoprecisa
defender suas accedilotildees por meio da razatildeo e contra a razatildeordquo O que estaacute em jogo no
socratismo eacute a substituiccedilatildeo das verdades expressas miticamente religiosamente pelas
verdades loacutegicas A razatildeo tenta abarcar o todo e para isso desconsidera a arte e seus
impulsos A excelecircncia estaacute no saber e atraveacutes deste alcanccedila-se a felicidade erro do
otimismo racionalista Ilusatildeo da razatildeo que se acha soberana e independente A loacutegica
torna-se essecircncia da trageacutedia procura-se por relaccedilotildees causais e pelo bom telos O
diaacutelogo formata sua estrutura e expulsa seu fundamento musical O ldquoheroacutei dialeacuteticordquo eacute
portanto impulsionado pelo elemento otimista da dialeacutetica A justiccedila transcendental
presente nas obras Esquilianas ldquoeacute rebaixada ao niacutevel do raso e insolente princiacutepio da
bdquojusticcedila poeacutetica‟ com seu habitual deus ex machinardquo (NT 89) A racionalidade de
Soacutecrates atraveacutes de sua investigaccedilatildeo cientiacutefica da natureza de seu processo de
construccedilatildeo loacutegica da realidade daraacute origem ao que Nietzsche denominaraacute de ldquohomem
teoacutericordquo ou ldquohomem cientiacuteficordquo a quem a razatildeo ergue-se acima da proacutepria realidade ao
ponto mesmo de ndash e aiacute reside o proacuteprio otimismo ndash propor-se a tarefa de corrigir as
falhas da proacutepria realidade Mais ainda a razatildeo socraacutetica acena ao homem com a
promessa de conferir sentido agrave existecircncia pelo conhecimento e desta forma busca
justificar tal existecircncia
83
Em face ao pessimismo praacutetico eacute Soacutecrates o protoacutetipo do
otimista teoacuterico que na jaacute assinalada feacute na escrutabilidade da
natureza das coisas atribui ao saber e ao conhecimento a forccedila de
uma medicina universal e percebe no erro o mal em si mesmo
(NT 94)
Natildeo obstante o otimismo no conhecimento na racionalidade socraacutetica encontra seu
maior dragatildeo em sua proacutepria loacutegica interna Assim nas palavras de Nietzsche
[] a periferia do ciacuterculo da ciecircncia possui infinitos pontos
e enquanto natildeo for possiacutevel prever de maneira nenhuma como se
poderaacute alguma vez medir completamente o ciacuterculo o homem
nobre e dotado ainda antes de chegar ao meio de sua existecircncia
tropeccedila e de modo inevitaacutevel em tais pontos fronteiriccedilos da
periferia onde fixa o olhar no inesclareciacutevel Quando divisa aiacute
para seu susto como nesses limites a loacutegica passa a girar em
redor de si mesma e acaba por morder a proacutepria cauda ndash entatildeo
irrompe a nova forma de conhecimento o conhecimento traacutegico
que mesmo para ser apenas suportado precisa da arte como meio
de proteccedilatildeo e remeacutedio (NT 95)
Afigura-se-nos aqui o problema apontado por Nietzsche como o ldquoproblema da
ciecircncia mesmardquo a saber um problema que nos envolve a todos por abarcar (ou
contaminar) toda a cultura ocidental - isto eacute ainda mantemos o dionisiacuteaco agrave baila
ocupando diminuta posiccedilatildeo em detrimento ao culto acerbado ao racionalismo socraacutetico
A cultura socraacutetica impotildee-se pelo homem-teoacuterico e qualquer outra existecircncia que fuja
aos olhos perscrutadores de Soacutecrates deve ldquolutar penosamente para pocircr-se agrave sua altura
como existecircncia permitida e natildeo como existecircncia propostardquo
Nietzsche nos atenta para o fato de reconhecermos comumente no homem culto
erudito o homem douto saacutebio ndash consecutivamente o dionisiacuteaco a arte eacute colocada de
forma perifeacuterica de modo a nunca poder encontrar espaccedilo para superar sua condiccedilatildeo de
ldquoremeacutedio-arterdquo A vontade aacutevida faz seu caminho mesmo atraveacutes da completa falta de
respostas de fundamentos de sentido assim eacute preferiacutevel ao ser humano querer o nada
no sentido de ainda sim querer alguma coisa do que nada querer do que reconhecer a
84
falta de fundamentos da qual consistem em todos os tempos as ilusotildees que
costumeiramente adota-se como engodo ao absoluto sem-sentido da vida
Por fim Nietzsche atenta-nos para o fato de como o homem de seu tempo vem
perdendo a crenccedila na ciecircncia otimista socraacutetica isto eacute pressentindo que a cultura
racionalista socraacutetica torna-se iloacutegica ao vislumbraacute-la em seus horizontes afastando-se
de suas consequumlecircncias Nietzsche diagnostica na oacutepera de seu periacuteodo a subordinaccedilatildeo da
muacutesica agrave arte figurada agrave palavra e expotildee a expectativa de que possa haver no cansaccedilo e
na percepccedilatildeo do insucesso dos esforccedilos racionalistas um renascimento da trageacutedia
85
4 Conclusatildeo pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo
da vida
Retribui-se mal a um mestre continuando-
se sempre apenas aluno
(Nietzsche)
Natildeo podemos ver na filosofia schopenhaueriana qualquer instacircncia que
justifique a vida Ao conhecermos a sua essecircncia - a vontade cega e irracional que se
deixa ver atraveacutes das manifestaccedilotildees do seu querer incessante - percebemos o absurdo de
sua existecircncia e somos por essa percepccedilatildeo levados agrave sua negaccedilatildeo Nietzsche por sua
vez utilizando-se dos conceitos da filosofia de Schopenhauer procura em sua obra
justificar a vida e encontra esta justificaccedilatildeo na arte Nesta conclusatildeo da pesquisa
pretendemos entatildeo apresentar um esboccedilo do modo pelo qual alguns elementos da
filosofia schopenhaueriana foram utilizados no projeto do primeiro livro de Nietzsche e
explicitar o modo como estes elementos foram configurados no interior de seu projeto
Dentre estes elementos percorreremos o paralelo entre os pares dionisiacuteacoapoliacuteneo e
vontaderepresentaccedilatildeo os conceitos de arte e apreciaccedilatildeo esteacutetica e sua cisatildeo entre as
86
artes figurativas e a musical a especificidade da muacutesica o conceito de gecircnio e sua
divisatildeo e os limites da racionalidade e da ciecircncia
Jaacute no primeiro paraacutegrafo de NT a associaccedilatildeo entre os pares nietzscheanos do
dionisiacuteaco e apoliacuteneo e as visotildees de mundo schopenhauerianas satildeo expliacutecitas Nietzsche
define o impulso apoliacuteneo atraveacutes do sonho do princiacutepio de individuaccedilatildeo e o dionisiacuteaco
atraveacutes da embriaguez da consciecircncia de unidade da vontade do livrar-se do veacuteu de
maia Os deuses gregos tornam-se representativos destes estados schopenhauerianos de
consciecircncia Como vimos no capiacutetulo segundo desta dissertaccedilatildeo sob o ponto de vista da
representaccedilatildeo o mundo eacute objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito
agraves condiccedilotildees a priori do entendimento Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das
formas a priori do entendimento eacute interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos
advindos da filosofia Platocircnica e oriental como um mundo aparente ilusoacuterio artificial
O sonho efeito do encantamento apoliacuteneo eacute utilizado como metaacutefora da realidade
fenomecircnica no mundo Schopenhaueriano Os Vedas e Puranas tantas vezes citados por
Schopenhauer tratam o mundo como um sonho imposto pelo deus Maia o deus da
ilusatildeo que cobre a visatildeo do homem com seu veacuteu A mitologia oriental aludida por
Schopenhauer toma conta do mundo helecircnico em Nietzsche que transforma Apolo no
deus Maia o configurador de sonhos O sonho eacute utilizado como ilustraccedilatildeo da realidade
pelo fato de que durante o sonho natildeo sabemos estar sonhando O mundo dos sonhos nos
eacute naquele momento real Vemo-nos como indiviacuteduos e vemos o mundo da
individuaccedilatildeo e suas leis causais espaccedilo-temporais Somente o momento empiacuterico do
despertar informa-nos do sonho Haacute portanto uma identificaccedilatildeo do ldquoparentesco iacutentimo
entre vida e sonhordquo(MVR 60) Como ilustraccedilatildeo desta metaacutefora Schopenhauer elogia
ainda a obra do ldquovaterdquo Calderoacuten de La Barca A vida eacute sonho agrave qual denominaraacute como
um ldquodrama metafiacutesicordquo por expor esta faceta de seu sistema A consciecircncia de que a
87
vida eacute sonho eacute para Schopenhauer um despertar metafiacutesico cujo propiciador foi Kant
ao demonstrar o caraacuteter fenomecircnico do mundo Este despertar contudo natildeo causa
prazer O filoacutesofo e o gecircnio personagens que na metafiacutesica schopenhaueriana alcanccedilam
este despertar satildeo atormentados pela realidade com a qual se deparam qual seja a de
que a vida eacute puro sofrimento Eacute no intuito de deixar velada esta faceta da vida que
Apolo ofusca a visatildeo dos homens com seu mundo luminoso de sonho seu objetivo eacute
encobrir esta verdade aterrorizadora As artes natildeo musicais tanto na teoria de
Schopenhauer como na nietzscheana manteacutem o homem em um juacutebilo prazeroso
ocasionado pela contemplaccedilatildeo puramente objetiva Neste momento natildeo se percebe o
jogo da vontade individualizada somos afastados da realidade do querer insuflados
pela caracteriacutestica quietiva da apreciaccedilatildeo esteacutetica nas palavras de Nietzsche
encontramos na arte um ldquoremeacutedio-arterdquo32
Esta visatildeo do lado terriacutevel da vida ocasionada pelo despertar do dogmatismo
metafiacutesico na teoria schopenhaueriana eacute associada em NT agrave sabedoria dionisiacuteaca
Verificamos na descriccedilatildeo do impulso dionisiacuteaco os elementos que caracterizam a
vontade schopenhaueriana A visatildeo dionisiacuteaca do mundo carrega consigo o despertar
para o caraacuteter absurdo da vida Ao olhar para a proacutepria essecircncia o homem descobre-se
enquanto manifestaccedilatildeo de uma vontade aacutevida desprovida de telos O ldquomecanismo
internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens marionetes guiados pela
carecircncia Esta realidade eacute assustadora pois subtrai do horizonte todos os propoacutesitos da
vida individual Dioniacutesio trava aqui sua batalha contra Apolo ao apontar a ilusatildeo da
individuaccedilatildeo como mecanismo para uma fuga daquilo que em essecircncia somos Apesar
de seu caraacuteter aterrorizador a sabedoria dionisiacuteaca eacute acompanhada do deleite
32
Podemos ver aqui o nuacutecleo da dissenssatildeo entre as teorias dos dois filoacutesofos Para Schopenhauer este
remeacutedio eacute temporaacuterio e tatildeo logo o efeito da apreciaccedilatildeo esteacutetica se esvaia os interesses da vontade voltam
a agir sobre o indiviacuteduo e a vida de sofrimento continua seu percurso restando apenas o caminho da
negaccedilatildeo daquela vontade da vida mesma em direccedilatildeo ao nada Nietzsche ao contraacuterio aponta para uma
forma de cura atraveacutes do remeacutedio-arte ver a vida enquanto forma de arte afirmaacute-la
88
indescritiacutevel da celebraccedilatildeo da unidade com o todo ldquoSob a magia do dionisiacuteaco torna a
selar-se natildeo apenas o laccedilo de pessoa a pessoa mas tambeacutem a natureza alheada
inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de reconciliaccedilatildeo com seu filho
perdido o homemrdquo(NT 31) Se Apolo eacute representado como deus da forma da clareza
da individuaccedilatildeo e as artes patrocinadas por ele satildeo expressotildees destas caracteriacutesticas
Dioniacutesio por sua vez eacute o patrocinador da muacutesica expressatildeo fenomecircnica direta da
vontade Vemos em Nietzsche uma biparticcedilatildeo das artes que tambeacutem pode ser extraiacuteda
da metafiacutesica schopenhaueriana (artes natildeo-musicais e arte musical)
Para Schopenhauer as formas artiacutesticas natildeo-musicais ao provocarem uma visatildeo
puramente objetiva do objeto apreciado tecircm como caracteriacutestica fundamental a
libertaccedilatildeo da subjetividade e com ela dos anseios da vontade Durante esta forma de
apreciaccedilatildeo esteacutetica ldquosomos alforriados do desgraccedilado iacutempeto volitivo festejamos o
Sabbath dos trabalhos forccedilados do querer a roda de Iacutexion cessa de girarrdquo (MVR
267) A definiccedilatildeo nietzscheana para a funccedilatildeo da arte apoliacutenea se daacute da mesma maneira
qual seja ela deve ldquo [] livrar a vista de olhar no horror da noite e salvar o sujeito
graccedilas ao baacutelsamo da aparecircncia do espasmo dos movimentos do querer []rdquo (NT
117) A muacutesica por sua vez recebe um tratamento especial de Schopenhauer devido ao
seu efeito esteacutetico Se as demais artes satildeo um quietivo para a vontade a muacutesica ldquonatildeo faz
mais do que agradar a vontade de viver jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo
seus ecircxitos e ao final expressa sua satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509) Ela encontra-se
num niacutevel de valor superior ao das demais artes por tratar-se de representar a essecircncia
do mundo a vontade mesma Assim tambeacutem ela eacute tratada por Nietzsche como a arte
que representa a sabedoria dionisiacuteaca e faz o apreciador vivenciar a vontade mesma
Em seus escritos sobre a poesia e a oacutepera Schopenhauer alude agrave necessidade de
subordinar os conceitos e o texto agrave muacutesica para que estas artes tenham um efeito mais
89
arrebatador no apreciador esteacutetico Esta subordinaccedilatildeo eacute assumida por Nietzsche em sua
teoria da trageacutedia Nietzsche encontra na liacuterica a primeira manifestaccedilatildeo desta junccedilatildeo da
arte dionisiacuteaca com a arte apoliacutenea e aponta aiacute o geacutermen que daraacute origem agrave trageacutedia
Podemos perceber aqui uma subordinaccedilatildeo das artes natildeo-musicais agrave muacutesica que por sua
vez se espelha na subordinaccedilatildeo do mundo fenomecircnico ao mundo da coisa-em-si As
artes figurativas representam as ideacuteias objetivaccedilotildees imediatas da vontade e a muacutesica
representa a vontade mesma Na teoria da trageacutedia de Nietzsche esta subordinaccedilatildeo seraacute
mantida e assim reflete a configuraccedilatildeo da metafiacutesica schopenhaueriana A muacutesica ldquoeacute
uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente sobre o mais iacutentimo do
homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele como se fora uma
linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo (MVR
336) Desta forma uma arte que se pretenda formar a partir da integraccedilatildeo de elementos
de diversas formas artiacutesticas deve tomar a muacutesica como inspiraccedilatildeo tanto na teoria de
Schopenhauer como na de Nietzsche
Desta dicotomia das formas artiacutesticas que podemos perceber nos dois filoacutesofos
podemos depreender duas formas do gecircnio o apoliacuteneo ou contemplativo e o
compositor dionisiacuteaco Para Schopenhauer ldquoo compositor manifesta a essecircncia mais
iacutentima do mundo expressa a sabedoria mais profunda numa linguagem natildeo
compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo magneacutetico fornece informaccedilotildees
sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito algumrdquo (MVR 342) Podemos
vislumbrar ainda nesta descriccedilatildeo de Schopenhauer uma caracteriacutestica do que Nietzsche
mais tarde iraacute chamar de criaccedilatildeo inconsciente Em uma segunda passagem desta vez ao
final do capiacutetulo 39 do segundo volume de MVR vemos tambeacutem uma caracteriacutestica que
posteriormente tambeacutem seraacute ressaltada por Nietzsche como demarcaccedilatildeo do caraacuteter
dionisiacuteaco Schopenhauer se utiliza de uma passagem dos Vedas para descrever o prazer
90
provocado pela muacutesica como um prazer de participaccedilatildeo no todo33
Este ecircxtase da
comunhatildeo eacute um aspecto reiteradamente apontado por Nietzsche O gecircnio dionisiacuteaco eacute
para o jovem filoacutesofo aquele que tambeacutem absorvido pelo impulso dionisiacuteaco traduz
sua essecircncia em linguagem musical O tipo de gecircnio musical descrito eacute encontrado em
Schopenhauer nas encarnaccedilotildees de Rossini e Beethoven cujas obras operiacutesticas satildeo
norteadas pela produccedilatildeo musical e o livreto ocupa um lugar secundaacuterio Nietzsche
aponta um renascimento progressivo do gecircnio musical em seu tempo que se inicia com
Bach e tem continuidade em Beethoven mas que encontra sua forma mais bem acabada
em Richard Wagner
Apesar da tomarem caminhos diferentes no que tange ao objetivo da obra de arte
traacutegica Nietzsche e Schopenhauer mais uma vez em uniacutessono consideram-na todavia
como uma forma de entendimento superior ao apresentado pelo pensamento cientiacutefico
Como vimos anteriormente as ciecircncias no sistema schopenhaueriano seguem o
princiacutepio de razatildeo seu papel eacute apenas descritivo e consequumlentemente limitado ao
acircmbito daquele princiacutepio Transformam em conceitos abstratos o mundo intuitivo ao
descrevecirc-lo em sua aparecircncia e seguem o fio condutor do principio de razatildeo
apresentando as causas para cada fenocircmeno particular Desta forma as ciecircncias estatildeo
subordinadas ao mundo da aparecircncia e no que importa agrave essecircncia natildeo podem
demonstraacute-la As uacutenicas produccedilotildees humanas com esta capacidade satildeo a arte e a
filosofia e essas o fazem de forma indireta metafoacuterica A consideraccedilatildeo racional do
mundo estaacute enquanto presa ao acircmbito do fenocircmeno subordinada aos ditames da
vontade Esta ldquovontade aacutevida sempre encontra um meio atraveacutes de uma ilusatildeo
distendida sobre as coisas de prender agrave vida as suas criaturas e de obrigaacute-las a
prosseguir vivendordquo (NT 108) Nietzsche descreve trecircs formas pelas quais a vontade
33
ldquoE o delicioso que eacute uma classe de alegria chama-se assim o sumo Atman porque onde haacute uma
alegria esta eacute uma pequena parte de sua alegriardquo (MVR II 510)
91
manteacutem a vida A primeira delas eacute o ldquoveacuteu da beleza da arterdquo sustentado pelo impulso
apoliacuteneo Encontramo-la na epopeacuteia homeacuterica e nas artes figurativas A segunda eacute a
visatildeo traacutegica do mundo que encontra um consolo metafiacutesico na percepccedilatildeo de um
substrato comum aos fenocircmenos e que por consequumlecircncia abdica destes em funccedilatildeo da
vivecircncia daquele substrato A terceira forma de dominaccedilatildeo da vontade eacute a ciecircncia a
loacutegica socraacutetica que procura abarcar o mundo com sua razatildeo de acircnsia justificadora
Estas trecircs formas de coerccedilatildeo conforme sua predominacircncia em determinada cultura
formam o que Nietzsche iraacute denominar respectivamente de culturas artiacutestica traacutegica e
socraacutetica Correspondem historicamente agraves fases predominantemente helecircnica budista
ou alexandrina Fazendo um diagnoacutestico da cultura contemporacircnea Nietzsche a
identifica como uma cultura predominantemente alexandrina Diagnostica o seu ocaso a
partir da identificaccedilatildeo feita por Kant e Schopenhauer dos limites da ciecircncia do
desmascaramento das verdades eternas que amparam a visatildeo socraacutetica de mundo quais
sejam a visatildeo de que o tempo o espaccedilo e a causalidade satildeo leis universais e
incondicionais Esta criacutetica ao racionalismo eacute constante na obra schopenhaueriana
Percebemo-la claramente em suas investidas contra a filosofia de seu tempo e a
presunccedilatildeo nela presente de racionalmente abarcar o real
- - - - - - - - - -
Compostas por conceitos da metafiacutesica schopenhaueriana a teoria da trageacutedia de
Schopenhauer e a de Nietzsche apontam para caminhos diversos Em Schopenhauer a
trageacutedia eacute a arte cujo fim uacuteltimo eacute ao expor seu lado terriacutevel inspirar o apreciador agrave sua
renuacutencia Este lado terriacutevel espelho do mundo presentificador da vida humana e de
suas relaccedilotildees ocasiona atraveacutes do medo e da compaixatildeo a vontade de renuacutencia a essa
92
mesma vida Nietzsche introduz na trageacutedia o elemento da muacutesica schopenhaueriana34
A consequumlecircncia desta introduccedilatildeo eacute um plano mais profundo de entendimento que
apresenta a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com sua essecircncia Neste estado de consciecircncia
apartado de sua individualidade o sujeito jaacute se vecirc como um criador de mundos e vecirc no
mundo uma obra de arte sua Ao derivar o impulso apoliacuteneo do dionisiacuteaco35
Nietzsche
jaacute executou a renuacutencia do indiviacuteduo que agora passa a se ver como essecircncia e ao mundo
como fenocircmeno artiacutestico
34
Machado (2006 200) considera na esteira de Clemeacutent Rosset e de Jean-Marie Schaeffer a utilizaccedilatildeo
da teoria da apreciaccedilatildeo musical de Schopenhauer por Nietzsche como o elemento que sugeriraacute a
caracteriacutestica de afirmaccedilatildeo da vontade de sua filosofia da trageacutedia 35
ldquoNo efeito conjunto da trageacutedia o dionisiacuteaco recupera a preponderacircncia ela se encerra com um tom
que jamais poderia soar a partir do reino da arte apoliacutenea E com isso o engano apoliacuteneo se mostra como o
que ele eacute como o veacuteu que enquanto dura a trageacutedia envolve o autecircntico efeito dionisiacuteaco o qual
todavia eacute tatildeo poderoso que ao final impele o proacuteprio drama apoliacuteneo a uma esfera onde ele comeccedila a
falar com sabedoria dionisiacuteaca e onde nega a si mesmo e agrave sua visibilidade apoliacuteneardquo (NT 129)
93
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Schoumlfeld e Sara Sosa Miatello Buenos Aires Nueva visioacuten 1958
6
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo agraves pessoas que direta ou indiretamente ajudaram na elaboraccedilatildeo deste
trabalho
Agrave minha esposa pelo amor paciecircncia e apoio
Ao corpo docente do curso de mestrado e em especial ao meu co-orientador
cujo incentivo foi essencial agrave continuaccedilatildeo da pesquisa
Ao meu orientador pelas observaccedilotildees valiosas
Aos colegas de mestrado companheiros indispensaacuteveis nas diaacuterias procissotildees de
embriaguez dionisiacuteaca pelas labiriacutenticas ladeiras de Ouro Preto
7
A existecircncia eacute um episoacutedio do nada
Arthur Schopenhauer
8
RESUMO
O projeto que aqui se apresenta tem como objetivo principal percorrer as
teorias do traacutegico schopenhaueriana e nietzscheana no intuito de apresentar as
principais caracteriacutesticas de cada uma destas teorias Este percurso teraacute como ponto de
partida o fundamento metafiacutesico comum a elas qual seja a filosofia schopenhaueriana
da vontade Atraveacutes desta exposiccedilatildeo pretendemos demonstrar natildeo somente a real
amplitude da influecircncia de Schopenhauer nos primeiros escritos de Nietzsche mas
tambeacutem algumas das peculiaridades existentes em cada uma das citadas teorias
Palavras-chave Schopenhauer - Nietzsche - Trageacutedia - Traacutegico - Filosofia da
vontade
ABSTRACT
The research presented herein has as its ultimate goal to discuss the
theories of the tragedy developed by Schopenhauer and Nietzsche highlighting the
main characteristics ndash points of convergence and divergence ndash of both Our trajectory
shall start from the metaphysical foundations apparently displayed in both theories
which is ndash the schopenhauerian philosophy of the will Throughout our exposition we
intend to show not only that Schopenhauers philosophy had a huge impact in
Nietzsches first writings but also reveal the peculiarities beneath the development of
their aforementioned theories
Keywords Schopenhauer - Nietzsche - Tragedy - Tragic ndash Philosophy of the will
9
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO11
1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES NA
FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA 17
2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU
SUBSTRATO METAFIacuteSICO42
21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo43
22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo45
23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana49
24 A finalidade moral da trageacutedia56
25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera62
3 A TEORIA DA TRAGEacuteDIA DO JOVEM NIETZSCHE65
31 A influecircncia de Schopenhauer na obra do primeiro Nietzsche66
32 O projeto subjacente ao nascimento da trageacutedia72
33 A teoria da trageacutedia publicada75
4 CONCLUSAtildeO pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo da
vida85
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS93
10
ABREVIATURAS
Obras de Schopenhauer
MVR = Mundo como vontade e como representaccedilatildeo (2005)
MVR II ndash Mundo como vontade e como representaccedilatildeo volume II (2005)
MB = Metafiacutesica do belo (2003)
SOE = Sobre o ofiacutecio de Escritor (2005)
QRPRS = De la cuadruple raiz del principio de razon suficiente (1981)
PP = Parerga e paralipomena (1974)
SFM = Sobre o fundamento da moral (2001)
SFU = Sobre a filosofia universitaacuteria (2001)
Obras de Nietzsche
NT = O nascimento da trageacutedia (1992)
VD = Visatildeo dionisiacuteaca do mundo (2005)
CORRESPONDEcircNCIA = Correspondecircncias de Nietzsche (2007)
OC = Obras completas de Nietzsche (1963)
11
INTRODUCcedilAtildeO
ldquoDias sem nuacutemero nunca reservam a
ningueacutem nada mais que dissabores mais
proacuteximos da dor que da alegria Quanto aos
prazeres natildeo os discernimos e nossa vista os
buscaraacute em vatildeo logo que para nossa
desventura chegamos ao limite prefixado E
desde entatildeo o nosso aliacutevio uacutenico seraacute aquele
que daraacute a todos o mesmo fim na hora de
chegar de suacutebito o destino procedente do
tenebroso reino onde natildeo haacute cantos nem
liras onde natildeo haacute danccedilas ndash ou seja a morte
epiacutelogo de tudo Melhor seria natildeo haver
nascido como segunda escolha bom seria
voltar logo depois de ver a luz agrave mesma
regiatildeo de onde se veiordquo
(Soacutefocles)
As teorias sobre a trageacutedia de Schopenhauer e Nietzsche satildeo parte
indispensaacutevel no estudo da histoacuteria da filosofia da trageacutedia Dentre os diversos
pensadores contemporacircneos que tratam sobre o problema da trageacutedia e do traacutegico e que
deram visiacutevel destaque agraves teorias dos nossos filoacutesofos podemos destacar Walter
Benjamin1 e Peter Szondi
2 Entretanto nos trabalhos destes autores o problema do
1 BENJAMIN Walter Origem do drama barroco alematildeo Traduccedilatildeo Sergio Paulo Rouanet Satildeo Paulo
Brasiliense 2004
12
relacionamento e da interdependecircncia entre as filosofias de Schopenhauer e Nietzsche
natildeo eacute detalhado a contento Diante disto mesmo para um olhar historicamente
caracterizador torna-se vaacutelido um estudo comparado destas teorias que leve em
consideraccedilatildeo o quecirc ou o quanto haacute de comum em suas metafiacutesicas e a partir desta
perspectiva trace os aspectos coincidentes e dissidentes das mesmas mostrando seus
pontos de interdependecircncia e discrepacircncia muacutetua
Apesar de estar entre as teorias da trageacutedia mais estudadas do periacuteodo do
idealismo alematildeo a teoria Schopenhaueriana que eacute sempre analisada em relaccedilatildeo a seus
pressupostos metafiacutesicos ao ser vista sob outra perspectiva ganharia contornos
intensamente enriquecidos Esta perspectiva atraveacutes da qual nos propomos a examinar a
teoria do traacutegico do filoacutesofo eacute aquela que levaraacute em consideraccedilatildeo as influecircncias
histoacutericas culturais e filosoacuteficas que agiram diretamente sobre a esteacutetica do traacutegico
schopenhaueriana Ao lanccedilarmos um olhar sobre estas referidas influecircncias estaremos
abrindo caminho para uma melhor compreensatildeo sobre a teoria esteacutetica
schopenhaueriana o que conseguintemente refletiraacute em um juiacutezo mais adequado da
teoria nietzscheana
Para um entendimento mais eficiente das teorias propostas nas obras do
jovem Nietzsche parece-nos essencial o conhecimento de uma de suas mais decisivas
influecircncias a filosofia de Schopenhauer A analogia almejada erige-se na verdade
como meacutetodo de anaacutelise ou seja o que pretendemos eacute alcanccedilar uma maior compreensatildeo
dos problemas com os quais Nietzsche se deparou quando da elaboraccedilatildeo de sua primeira
obra e procurar identificar a existecircncia de alguma apropriaccedilatildeo eou adaptaccedilatildeo de alguns
conceitos da filosofia de Schopenhauer na resoluccedilatildeo destes problemas A necessidade
deste estudo comparativo torna-se ainda mais evidente quando e este eacute o caso
2 SZONDI Peter Ensaio sobre o Traacutegico Traduccedilatildeo Pedro Suumlssekind Rio de Janeiro Jorge Zahar
2005
13
defrontamo-nos com uma influecircncia que se apresenta tatildeo clara e assumidamente
admitida pelo autor Todavia natildeo se pretende aqui apenas a justaposiccedilatildeo de um
pensamento ao outro Apesar de ser identificaacutevel em toda a obra posterior de Nietzsche
encontra-se nos seus primeiros escritos sobretudo na obra O nascimento da trageacutedia
aquele momento discursivo no qual podemos apontar uma influecircncia mais direta da
filosofia de Schopenhauer
Dos trabalhos que fazem um estudo comparativo entre estes filoacutesofos a
maioria se ateacutem em identificar as diferenccedilas conceituais entre eles mais
especificamente no campo eacutetico e metafiacutesico Grosso modo tratam principalmente dos
problemas relativos agrave diferenciaccedilatildeo entre os conceitos de vontade nestes autores
vontade de viver e vontade de poder Estes estudos tecircm como foco a filosofia tardia de
Nietzsche onde este apesar da assumida influecircncia torna-se um criacutetico de
Schopenhauer A real extensatildeo da influecircncia deste filoacutesofo na primeira obra de
Nietzsche bem como o relacionamento entre suas teorias da trageacutedia permanecem
assim como territoacuterios ainda pouco explorados Ao lanccedilarmos olhar sobre esse
afastamento que Nietzsche mais tarde realizaraacute em relaccedilatildeo agrave filosofia
Schopenhaueriana verificamos mais uma vez a importacircncia do estudo de sua primeira
fase na qual poderemos detectar o referido afastamento
Podemos observar entretanto o crescimento do interesse no estudo da
obra O nascimento da trageacutedia de Nietzsche Nos uacuteltimos anos assistimos tambeacutem no
Brasil agrave publicaccedilatildeo de vaacuterios trabalhos que tecircm sob perspectiva a complexidade desse
seu primeiro livro Na bibliografia sugerida neste projeto constam publicaccedilotildees dos
seguintes autores Roberto Machado (2006) Rosa Maria Dias (2005 e 2009) Iracema
Macedo (2006) Marcio Joseacute Silveira Lima (2006) Estas publicaccedilotildees tratam temas
diversos da esteacutetica nietzscheana tais como a muacutesica a trageacutedia o traacutegico ou a
14
repercussatildeo do livro de Nietzsche e sua influecircncia wagneriana Podemos ver entretanto
naqueles e em outros trabalhos a constante chave de leitura que atribui a Schopenhauer
a influecircncia decisiva natildeo apenas sobre o jovem Nietzsche como usualmente se aponta
mas tambeacutem sobre um peculiar imbricamento entre metafiacutesica e esteacutetica o qual se
sustentaria sobre os ldquoimpulsos artiacutesticos da naturezardquo o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco Nos
termos de Dias (2005 27)
A oposiccedilatildeo apoliacutenea e dionisiacuteaca considerada no plano
metafiacutesico se daacute a partir da noccedilatildeo de vontade ou querer
estendida (sic) no sentido que a ela deu Schopenhauer de
ldquocentro e nuacutecleo do mundordquo ou ldquoforccedila que eternamente quer
deseja e aspirardquo () O mundo fenomecircnico como resultado
desse movimento do querer () faz um segundo movimento
dessa vez esteacutetico reproduzindo o movimento inicial que a
vontade realizou em direccedilatildeo agrave aparecircncia
Tendo em vista o fato de que as teorias sobre o traacutegico dos dois filoacutesofos tecircm como
ponto de partida o sistema metafiacutesico schopenhaueriano fica clara a necessidade de
analisar em cotejo estas teorias tendo como fio condutor o meacutetodo de investigaccedilatildeo ora
proposto
Aleacutem de um aprofundamento no problema da influecircncia de
Schopenhauer na obra esteacutetica de Nietzsche o estudo de suas teorias sobre o traacutegico nos
daraacute a oportunidade de identificar as peculiaridades de cada uma destas teorias bem
como de estabelecer a sua importacircncia histoacuterica para uma filosofia do traacutegico
Em um primeiro momento traccedilaremos um panorama histoacuterico que
objetiva entender o status quo da filosofia do traacutegico no periacuteodo anterior ao
desenvolvimento da teoria schopenhaueriana da trageacutedia Esta investigaccedilatildeo seraacute
norteada pelas referecircncias constantes na proacutepria obra de Schopenhauer bem como por
um levantamento biograacutefico do filoacutesofo ou seja trabalharemos somente os momentos
que satildeo fundamentais para uma melhor compreensatildeo da obra schopenhaueriana Dentre
15
estes momentos daremos ecircnfase aos seguintes pontos o estudo sobre o helenismo de
Winckelmann e sua repercussatildeo a criacutetica teatral de Lessing Schiller e Goethe seu
projeto de criaccedilatildeo de um teatro alematildeo e suas produccedilotildees dramaacuteticas
Traccedilado o panorama histoacuterico no qual se insere a teoria da trageacutedia
schopenhaueriana passaremos para o toacutepico seguinte a apresentaccedilatildeo do sistema
metafiacutesico de Schopenhauer no qual estaacute embasada a sua teoria da trageacutedia bem como
a teoria nietzscheana A apresentaccedilatildeo seraacute feita de forma a expor os aspectos gerais da
filosofia da vontade atendo-se aos pontos deste sistema que estatildeo intrinsecamente
relacionados agraves teorias da trageacutedia dos nossos autores
Apoacutes os passos descritos reuniremos em um esboccedilo geral as
caracteriacutesticas do relacionamento existente entre o jovem Nietzsche e a filosofia de
Schopenhauer Para tanto utilizaremo-nos das referecircncias que Nietzsche faz a
Schopenhauer em suas cartas e escritos de juventude Com esta pesquisa pretendemos
identificar a opiniatildeo que o jovem Nietzsche tinha sobre a filosofia de Schopenhauer e a
profundidade da influecircncia desta em sua primeira obra Percorreremos ainda o ambiente
circundante agrave primeira obra de Nietzsche no intuito de realccedilar alguns dos conceitos
formativos de O nascimento da trageacutedia
Estabelecida a ligaccedilatildeo entre os autores passaremos ao estudo do apoliacuteneo
e do dionisiacuteaco par conceitual que nos forneceraacute a chave para se fazer um estudo
comparativo entre os filoacutesofos Para cumprir esta etapa analisaremos O nascimento da
trageacutedia bem como escritos contemporacircneos a este livro atraveacutes dos quais poderemos
delinear melhor a significaccedilatildeo desta duplicidade de impulsos e visotildees de mundo
Delinearemos assim os contornos das definiccedilotildees fundamentais da esteacutetica nietzscheana
e procuraremos construir um paralelo entre o mundo dionisiacuteaco e o mundo metafiacutesico
da vontade schopenhaueriano Temos a intenccedilatildeo de demonstrar a origem desta
16
metafiacutesica da vontade ou seja o criticismo kantiano e sua importacircncia para o conceito
de dionisiacuteaco Demonstraremos tambeacutem as caracteriacutesticas do mundo fenomecircnico
schopenhaueriano em sua identidade com o apoliacuteneo nietzscheano retomando a
epistemologia de Schopenhauer
Realizada a aproximaccedilatildeo e expostas tanto as semelhanccedilas como as
particularidades dos conceitos principais dos dois autores percorreremos sempre
focando um estudo paralelo entre os filoacutesofos outros conceitos que encontram
similaridade em suas esteacuteticas Com esse intuito procuraremos identificar nos dois
filoacutesofos o destaque dado agrave muacutesica dentro de suas teorias e o lugar dado agraves outras artes
em suas obras Discorreremos sobre a criacutetica que eles em uniacutessono fazem ao que
nomeiam racionalismo dogmatismo e o otimismo Finalizadas as aproximaccedilotildees
voltaremos nossa atenccedilatildeo ao aspecto de dissensatildeo que propicia o afastamento
fundamental entre as teorias dos dois filoacutesofos o efeito da trageacutedia Com isto
demonstraremos que a base metafiacutesica comum quando alinhada a pressupostos
esteacuteticos distintos geraraacute a referida dissensatildeo
17
1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES
NA FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA
Por que minha filosofia natildeo encontrou
simpatia e interesse Porque a verdade natildeo
estaacute de acordo com a tagarelice dos tempos
(Schopenhauer)
Neste primeiro capiacutetulo objetivamos apresentar as fontes filosoacuteficas
incutidas no sistema schopenhaueriano no intuito de situar historicamente o surgimento
da filosofia da vontade e trazer agrave baila o seu ambiente circundante bem como as teorias
filosoacuteficas com as quais Schopenhauer se propotildee a dialogar Apontaremos inicialmente
as influecircncias filosoacuteficas assumidamente presentes no sistema schopenhaueriano bem
como aquelas que fundamentam sua metafiacutesica e consequumlentemente sua teoria esteacutetica
Em um segundo momento procuraremos fazer um breve esboccedilo do ambiente artiacutestico-
cultural que dominava o pensamento alematildeo de entatildeo com o qual direta ou
indiretamente Schopenhauer e o jovem Nietzsche se depararam Com isto esperamos
posteriormente demarcar as singularidades que caracterizam as teorias destes filoacutesofos
Ressaltamos todavia que natildeo se trata de um mapeamento completo das fontes que
influenciaram esses autores ndash tarefa que exigiria um esforccedilo bem maior do que aquele
18
proposto por esta pesquisa ndash e sim de um breve panorama que se pautaraacute nas influecircncias
marcantemente presentes em suas obras
No contato com a obra de Schopenhauer a primeira impressatildeo que natildeo
passa despercebida aos seus leitores eacute a qualidade de sua prosa3 Tal qualidade
revelada na diversidade de recursos literaacuterios utilizados pelo autor eacute produto da visiacutevel
erudiccedilatildeo cultivada pelo filoacutesofo Conhecedor do grego do latim e suas respectivas
literaturas Schopenhauer transitava ainda pela obras literaacuterias cientiacuteficas e filosoacuteficas
contemporacircneas em suas liacutenguas originais conhecia o inglecircs o italiano o francecircs e o
espanhol Em sua juventude conviveu com vaacuterias personalidades do meio cultural
germacircnico que frequumlentavam o salatildeo de sua matildee em Weimar dentre eles Goethe a
maior figura das letras germacircnicas com quem teve um relacionamento mais proacuteximo
Sua obra eacute repleta de citaccedilotildees de poetas dramaturgos e seu conhecimento das artes
plaacutesticas e da muacutesica natildeo satildeo superficiais Em suas viagens pela Europa pocircde admirar
diversas esculturas e pinturas e como ele proacuteprio dizia pocircde ler diretamente no ldquolivro
do mundordquo Essa erudiccedilatildeo pode ser notada mesmo diante do desconhecimento de sua
biografia pela observaccedilatildeo da enorme quantidade de citaccedilotildees e menccedilotildees que estatildeo
espalhadas no interior de suas obras traduzidas ou como em sua maior parte citadas
em suas respectivas liacutenguas Frequumlentava as mais diversas aacutereas de conhecimento de sua
eacutepoca como sustenta Aramayo
3 O cuidado com a qualidade da produccedilatildeo literaacuteria tanto no que se refere agrave clareza quanto agrave riqueza de
recursos linguumliacutesticos eacute uma das caracteriacutesticas que Schopenhauer e Nietzsche tecircm em comum Esta
qualidade torna-se mais evidente ainda quando seus trabalhos satildeo natildeo raramente comparados com os
escritos filosoacuteficos alematildees daquele periacuteodo principalmente aos de Fichte Schelling e Hegel O elogio agrave
prosa schopenhaueriana feito por literatos e filoacutesofos contemporacircneos influenciados por sua obra pode
ser ilustrado agrave exaustatildeo entre eles encontram-se Thomas Mann Goethe Wittgenstein e o proacuteprio
Nietzsche ldquoMas a imensa forccedila de penetraccedilatildeo deste pensamento explica-se antes de tudo pelo fato de o
autor ser ao lado de Nietzsche o maior entre os escritores filosoacuteficos alematildeesrdquo (Rosenfeld 1996 177)
Jorge Luis Borges em uma entrevista publicada por Die Welt em 25 de marccedilo de 1975 realizava esta
confissatildeo ltPara mim existe um escritor alematildeo ao qual prefiro Schopenhauer Sei que deveria dizer
Goethe poreacutem Schopenhauer me interessa muitiacutessimo mais Tanto que estudei alematildeo ndash que aprendi
sobre os versos de Heine ndash fundamental e especificamente para poder ler a Schopenhauer em sua proacutepria
liacutenguagt (Aramayo 2001 18)
19
ldquoEm sua busca pela verdade Schopenhauer natildeo desdenha
nenhum aliado Os dramaturgos novelistas e poetas estatildeo quando
menos em peacute de igualdade com os mais egreacutegios filoacutesofos A perspicaacutecia
de Shakespeare ou a genialidade de Voltaire e a sutileza de Goethe nada
devem para a eloquumlecircncia Platocircnica a precisatildeo de um Spinoza e o rigor
conceitual do admirado Kant Sua curiosidade natildeo conhece limites nem
prejuiacutezo algum e por esta razatildeo tampouco menospreza quando o
considera oportuno prestar suficiente atenccedilatildeo aos fenocircmenos
paranormais agrave hipnose ou ao caacutelculo cabaliacutestico se entende que em
algo isto pode servir-lhe para demonstrar sua tese ou avaliar algumas de
suas intuiccedilotildees E na mesma direccedilatildeo aponta seu grande empenho por
incorporar o pensamento das religiotildees orientais a nosso acervo cultural
na possibilidade de um enriquecimento muacutetuordquo (Aramayo 2001 14-15)
A comparaccedilatildeo feita atraveacutes de metaacuteforas4 paraacutebolas ou alegorias em
sua maioria retiradas de obras literaacuterias ou cientiacuteficas torna-se recurso literaacuterio
constantemente presente na obra do filoacutesofo e ao mesmo tempo termocircmetro de suas
influecircncias e de seu relacionamento com o pensamento de seus contemporacircneos Tais
recursos satildeo utilizados contudo com o objetivo consciente de construir conhecimento
de ilustrar a mateacuteria do seu pensamento Nas palavras do filoacutesofo ldquoAs comparaccedilotildees satildeo
de grande valor na medida em que reduzem uma relaccedilatildeo desconhecida a uma
conhecida Inclusive as comparaccedilotildees mais detalhadas transformadas em paraacutebola ou
alegoria satildeo somente a reduccedilatildeo de uma relaccedilatildeo qualquer agrave sua exposiccedilatildeo mais
simples ilustrativa e palpaacutevelrdquo (Schopenhauer SOE 86) Se o nosso objetivo eacute mostrar
as raiacutezes da filosofia de Schopenhauer ou seja as influecircncias que formaram a mateacuteria
de seu pensamento eacute sobre esta mateacuteria que devemos nos debruccedilar Natildeo podemos
contudo nos furtar a apontar a riqueza das fontes formalmente presentes em seus
escritos5 A percepccedilatildeo da presenccedila desta numerosa miscelacircnea de referecircncias dentro da
4 ldquoSua profusa e brilhante utilizaccedilatildeo das metaacuteforas eacute o que o converte sem duacutevida alguma em um grande
escritor cujo estilo se nos afigura tatildeo ameno quanto sugestivordquo (Aramayo 2001 54) 5 Mateacuteria e forma satildeo na concepccedilatildeo do filoacutesofo planos ou instacircncias da produccedilatildeo escrita que servem
como referecircncia para o julgamento de valor do pensamento de um autor ldquo Um livro nunca pode ser mais
do que a impressatildeo dos pensamentos do autor O valor desses pensamentos reside na mateacuteria ou seja
naquilo sobre o que ele pensou ou na forma isto eacute na elaboraccedilatildeo da mateacuteria naquilo que pensou a
respeitordquo (Schopenhauer SOE 11) A importacircncia dada agrave forma por Schopenhauer seraacute melhor
esclarecida quando posteriormente apresentarmos a caracteriacutestica fundamentalmente epistemoloacutegica de
toda produccedilatildeo artiacutestica dentro de sua metafiacutesica do belo
20
obra schopenhaueriana diz-nos algo sobre seu estilo e seu arcabouccedilo cultural
entretanto quando voltamo-nos para a busca das influecircncias diretamente presentes em
seu sistema ie agraves raiacutezes da mateacuteria de seu pensamento percebemos que elas natildeo satildeo
tatildeo numerosas
Uma leitura das fontes filosoacuteficas do sistema schopenhaueriano torna-se
diferentemente do que ocorre em outros sistemas de seu tempo menos trabalhosa por
dois motivos Primeiramente o autor natildeo esconde suas influecircncias mas ao contraacuterio
faz questatildeo de apontaacute-las citaacute-las e quando lhe parece necessaacuterio as critica ou exalta
Em segundo lugar o que facilita o mapeamento destas fontes eacute a caracteriacutestica de
unidade do sistema schopenhaueriano como um todo Apesar da longevidade do
filoacutesofo e da distacircncia temporal entre suas obras suas intuiccedilotildees fundamentais
continuaram sendo as mesmas ao longo de sua vida Nas palavras de Rosset
ldquoSchopenhauer eacute homem de um soacute livro o MVR e de um soacute pensamento (qualificado
por ele mesmo de ltpensamento uacutenicogt nas primeiras linhas de sua obra)rdquo (2005 35)6
Natildeo satildeo poreacutem coetacircneas as influecircncias que marcaram a obra do filoacutesofo
como talvez a constante menccedilatildeo a seus contemporacircneos possa sugerir Nas palavras do
filoacutesofo como citado por Lefranc (2005 17) ldquoPude amar prosseguir aperfeiccediloar a
minha obra soacute por ela mesma em tranquumlilidade completa ao abrigo de toda influecircncia
externa e meus contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes
permaneci estranhosrdquo Conhecia a filosofia de seu tempo todavia natildeo a tinha como
interlocutora na verdade a desdenhava satildeo famosas as criacuteticas de Schopenhauer contra
as filosofias de seus contemporacircneos principalmente as de Fichte Schelling e Hegel
6 Sobre a unidade da produccedilatildeo schopenhaueriana destacamos aleacutem de Rosset os apontamentos de outros
dois de seus maiores comentadores Arthur Huumlbscher e Alexis Philonenko Na introduccedilatildeo aos manuscritos
schopenhauerianos Huumlbscher aponta a importacircncia dos manuscritos na percepccedilatildeo desta unidade uma vez
que podemos notar em diversas fases da vida do filoacutesofo o desenvolvimento dos temas pontuais que
marcaram sua obra principal Vide Hubscher Introduction Manuscript Remains 1985 Alexis
Philonenko trata desta unidade no proacutelogo de sua obra Schopenhauer uma filosofia da trageacutedia
(Philonenko 1989 41-45)
21
(chamados de ldquoos trecircs sofistasrdquo) Quando faz referecircncias a eles comumente estaacute
imbuiacutedo de trecircs propoacutesitos criticar a qualidade formal de suas produccedilotildees
principalmente no que tange ao uso da liacutengua germacircnica apontar uma motivaccedilatildeo
individualista (subsistecircncia pessoal e status social) que existiria por traacutes de suas
elucubraccedilotildees filosoacuteficas e ressaltar a falta de atenccedilatildeo por parte daqueles filoacutesofos no
que se refere ao conteuacutedo da primeira criacutetica kantiana
Schopenhauer diagnosticava em seu tempo um periacuteodo de
empobrecimento da expressatildeo literaacuteria e do uso da liacutengua germacircnica e apontava como
os principais responsaacuteveis por estes acontecimentos os ldquoprofessores de filosofiardquo e seus
disciacutepulos As investidas schopenhauerianas contra a filosofia de seus contemporacircneos
podem ser encontrada em praticamente todas as suas obras mas estatildeo concentradas de
forma mais persistente em sua produccedilatildeo mais tardia na segunda ediccedilatildeo da QRPRS de
MVR em seus ensaios sobre a liberdade e o fundamento da moral e nos PP 7
Nesta
uacuteltima obra temos dedicados a estas criacuteticas alguns textos que podemos destacar Sobre
o ofiacutecio de escritor Da leitura e dos livros Da liacutengua e das palavras e Sobre a filosofia
universitaacuteria A liacutengua alematilde no que se refere agrave sua capacidade expressiva era tida em
mais alta consideraccedilatildeo por nosso filoacutesofo Afirmava que dentre as liacutenguas modernas
era ldquoa uacutenica na qual se pode escrever quase tatildeo bem quanto em grego ou em latimrdquo
(Schopenhauer SOE 72) Esta capacidade de expressatildeo de uma liacutengua eacute segundo o
filoacutesofo resultado de sua aptidatildeo em representar conceitos Desta forma na medida em
que surgem novos conceitos a elaboraccedilatildeo de novas palavras que os representem eacute um
sinal de evoluccedilatildeo adequaccedilatildeo e riqueza da liacutengua Entretanto para o filoacutesofo os
neologismos e adaptaccedilotildees criados por seus contemporacircneos natildeo eram resultados da
7 Muitos historiadores da filosofia bioacutegrafos e comentadores apontam que esta criacutetica adveacutem do
ressentimento pelo fracasso de Schopenhauer como docente na universidade de Berlim onde Hegel
reinava absoluto bem como da falta de reconhecimento de sua filosofia diante do sucesso dos professores
da mesma universidade
22
tentativa de representaccedilatildeo de novos conceitos mas ao contraacuterio eram comprovaccedilatildeo de
sua ldquopobreza de espiacuterito que a todo custo quer colocar algo no mercado e por natildeo ter
novos pensamentos chega com palavras novasrdquo (Schopenhauer SOE 129)
Schopenhauer condenava a atitude de seus contemporacircneos de utilizarem-se de
artifiacutecios como a natildeo designaccedilatildeo do caso a expressatildeo dos preteacuteritos por meio do
imperfeito a supressatildeo dos prefixos e outros subterfuacutegios para com isso disfarccedilar a sua
imprecisatildeo conceitual De acordo com Schopenhauer tratavam displicentemente a
liacutengua alematilde por dois motivos por natildeo possuiacuterem uma mateacuteria conceitualmente
relevante a ser expressa ou entatildeo para conscientemente causar a impressatildeo de que a
possuem e neste caso a responsabilidade pela natildeo compreensatildeo do texto seria atribuiacuteda
agrave incompetecircncia intelectual do leitor
Os que compotildeem discursos difiacuteceis obscuros enleados e
ambiacuteguos natildeo sabem ao certo o que querem dizer tecircm somente uma
consciecircncia vaga a esse respeito que luta primeiro por uma ideacuteia poreacutem
amiuacutede querem tambeacutem ocultar de si mesmos e dos outros que na
realidade eles natildeo tecircm nada a dizer Como Fichte Schelling e Hegel
querem parecer saber o que natildeo sabem pensar o que natildeo pensam e dizer
o que natildeo dizem Algueacutem que tenha algo correto a dizer se esforccedilaraacute por
exprimi-lo de maneira indistinta ou distinta (Schopenhauer SOE 39)
Podemos perceber entatildeo que ao criticar o estilo ldquoobscurordquo e ldquopomposordquo de seus
contemporacircneos Schopenhauer aponta como causa deste estilo natildeo somente a sua falta
de mateacuteria mas tambeacutem uma atitude consciente e arquitetadamente maldosa e com
toda a sua forccedila retoacuterica condena esta atitude
Nobre bdquoatualidade‟ magniacuteficos epiacutegonos geraccedilatildeo crescida no
leite materno da filosofia hegeliana Pela gloacuteria eterna quereis apertar
vossas garras em nossa antiga liacutengua para que a marca com um icnoacutelito
conserve para sempre o vestiacutegio de vossa existecircncia insiacutepida e sombria
Mas Dicirc Meliora Fora paquidermes fora Esta eacute a liacutengua alematilde Nela se
expressaram homens ou melhor nela cantaram grandes poetas e grandes
pensadores escreveram Arredai as patas Ou natildeo tereis o que comer (Soacute
isso os assusta) (Schopenhauer SOE 72-73)
23
A uacuteltima frase desta citaccedilatildeo nos eacute aclarada pelo texto Sobre a filosofia universitaacuteria
onde o filoacutesofo expotildee os argumentos de sua criacutetica agrave filosofia produzida em seu tempo
Para Schopenhauer os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo podem devido agrave sua funccedilatildeo
estatal se imiscuir do compromisso poliacutetico-religioso que seu cargo exige e
conseguintemente sustentados pelo Estado tratam de fazer sua apoteose Nas palavras
de Cacciola constantes na introduccedilatildeo agrave traduccedilatildeo brasileira do referido texto
ldquoSchopenhauer eacute um continuador da criacutetica romacircntica ao filisteiacutesmo que se origina em
Tieck A ironia que visa os homens de vida tatildeo regular como o reloacutegio lhe eacute bem
familiar O filisteu eacute o erudito pedante que soacute pensa na proacutepria vantagem O professor
de filosofia que pauta seus ensinamentos de acordo com os ditames do Estado e da
religiatildeo eacute o tipo acabado do filisteu A idolatria do Estado eacute a apoteose do filisteiacutesmo
(Schopenhauer SFU XXX) Por traacutes das ideacuteias dos ldquofiloacutesofos de profissatildeordquo estaria
incutido o retorno disfarccedilado da ldquoteologia judaicardquo de uma ldquopsicologia racionalrdquo da
ldquoliberdade da vontaderdquo e outros dogmas que de acordo com Schopenhauer refletem a
sua vocaccedilatildeo de trabalharem ldquoin maiorem Dei gloriamrdquo como exigido pela ideologia
estatal daquele periacuteodo Natildeo podem sob a pena de perderem o sustento financeiro
pessoal e familiar bem como sob o custo de perderem o status que o cargo lhes confere
contrariar os dogmas patronais
ldquo[] o intelecto dessa gente permanece fiel agrave sua destinaccedilatildeo
natural de trabalhar a serviccedilo da vontade como normalmente acontece
Mas por isso mesmo existe sempre uma intenccedilatildeo como fundamento do
seu agir e pensar eles tecircm fins o tempo todo e soacute tomam conhecimento
do que diz respeito a esses fins e portanto soacute do que corresponde a
esses fins A atividade do intelecto liberto da vontade condiccedilatildeo da pura
objetividade e por isso de todas as grandes realizaccedilotildees permanece-lhes
eternamente estranha ndash eacute uma faacutebula para seu coraccedilatildeordquo (Schopenhauer
SFU 63)
Desta forma os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo estariam voltados para a investigaccedilatildeo
objetiva da ldquoverdaderdquo a qual exigiria o distanciamento de todo e qualquer interesse
24
pessoal De acordo com o sistema schopenhaueriano tal distanciamento eacute um dom raro
com o qual a natureza a poucos contempla Na metafiacutesica schopenhaueriana a natureza
eacute aristocraacutetica O gecircnio eacute fenocircmeno raro seja ele filoacutesofo ou artista A percepccedilatildeo
objetiva do mundo alheia aos interesses pessoais da vontade individual eacute uma exceccedilatildeo
que soacute se manifesta raramente e as pessoas atadas aos interesses pessoais de sua
vontade natildeo podem reconhececirc-lo imediatamente Estes gecircnios produzidos pela natureza
seriam os verdadeiros educadores do mundo e os ldquoprofessores de filosofiardquo ao tentar
representar este papel que soacute agrave natureza cabe eleger causam-lhe repulsa
Tantas mentes comuns que se acham por cargo e profissatildeo no
dever de representar papeacuteis que a natureza nem ao menos lhes atribuiacutera e
de transportar cargas que exigem ombros de gigantes espirituais
oferecem na realidade um espetaacuteculo deveras lamentaacutevel Pois escutar
cantar os roucos e ver danccedilar os coxos eacute penoso mas ouvir filosofar a
mente limitada eacute insuportaacutevel (Schopenhauer SFU 34)
Prova do embotamento da capacidade de reconhecimento de uma produccedilatildeo genial era
para o filoacutesofo o fato de seus contemporacircneos ignorarem ou mesmo passarem agrave
margem do que seria a mais importante produccedilatildeo filosoacutefica do periacuteodo a cisatildeo entre o
real e o ideal perpetrada pela primeira criacutetica kantiana Esta era para o filoacutesofo a maior
prova do demeacuterito filosoacutefico de seus contemporacircneos preocupados com seus interesse
pessoais alheios a uma observaccedilatildeo objetiva do mundo natildeo levaram em consideraccedilatildeo os
limites impostos pela primeira criacutetica kantiana a toda investigaccedilatildeo racional
Depois de Kant ter cortado o nervo de todas as provas possiacuteveis
da teologia ndash tatildeo incisivamente que desde entatildeo ningueacutem mais pocircde
meter-se com elas ndash o esforccedilo filosoacutefico em quase cinquumlenta anos tem
consistido nas diversas tentativas de insinuar sutil e astuciosamente a
teologia e os escritos filosoacuteficos nada mais satildeo na sua maioria do que
tentativas infrutiacuteferas de reanimar um cadaacutever sem vida (Schopenhauer
SFU 81)
Natildeo nos interessa aqui adentrarmo-nos aos reais motivos existentes por
traacutes dos vitupeacuterios schopenhauerianos contra os pensadores de seu tempo nem
25
tampouco fazer juiacutezo valorativo sobre a importacircncia da filosofia da vontade em
comparaccedilatildeo ao idealismo absoluto Dentro do objetivo proposto qual seja situar
historicamente a filosofia da vontade e apontar suas influecircncias o importante eacute ressaltar
que a filosofia contemporacircnea a Schopenhauer natildeo fez efeito sobre a sua proacutepria a ponto
de modificaacute-la em seu conteuacutedo conforme esclarece o proacuteprio filoacutesofo ldquo [] meus
contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes permaneci
estranhosrdquo (apud Lefranc 2005 17) Eacute fundamental verificarmos que apesar do
sistema schopenhaueriano ter se desenvolvido agrave margem do idealismo de entatildeo seu
autor natildeo o desconhecia e muitas das ilustraccedilotildees e argumentaccedilotildees utilizadas por ele na
explicaccedilatildeo de suas teorias apoiavam-se nesta sua contenda com o seu tempo
Entretanto como a filosofia de seu tempo pretende-se herdeira do kantismo assim
tambeacutem procede Schopenhauer e a suas criacuteticas ao idealismo absoluto estatildeo
fundamentadas em sua pretensatildeo a uma heranccedila direta da filosofia kantiana Sobre a
heranccedila de Kant Schopenhauer esclarece ldquoEm todo caso natildeo reconheccedilo que tenha
acontecido algo na filosofia entre ele e mim por conseguinte ligo-me imediatamente a
elerdquo (Schopenhauer MVR 525)
Natildeo obstante as diversas criacuteticas ao retorno kantiano ao dogmatismo8
das quais a obra de Schopenhauer estaacute recheada sua admiraccedilatildeo por ele foi tambeacutem
abundantemente expressa Considerava-o ldquoa inteligecircncia mais original jaacute criada pela
naturezardquo (Schopenhauer SFU52) e afirmava que seus escritos capitais eram o ldquo[]
fenocircmeno mais importante que ocorreu ao longo dos uacuteltimos dois mil anos na filosofia
[]rdquo (Schopenhauer MVR 22) O maior reflexo desta admiraccedilatildeo pode ser observada
8 Nas palavras de Cacciola ldquoO criticismo de Kant teria segundo Schopenhauer perdido sua forccedila inicial
na segunda ediccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura Ou seja Schopenhauer acusa Kant de uma ldquorecaiacuteda no
dogmatismordquo por ter amenizado seu confronto com a teologia A ameaccedila dogmaacutetica jaacute configurada na
filosofia teoacuterica concretiza-se na Eacutetica de Kant quando esta acolhe como postulados Deus
imortalidade da alma e liberdade No poacutes-kantismo a importacircncia crescente atribuiacuteda agrave filosofia praacutetica
de Kant a expensas de sua criacutetica do conhecimento teria levado a uma espeacutecie de contaminaccedilatildeo da
razatildeo teoacuterica pela razatildeo praacutetica fazendo com que a primeira se transformasse num oacutergatildeo apto para
captar o Absolutordquo (Cacciola 1994 20)
26
no fato de que eacute da filosofia kantiana que Schopenhauer retira o leitmotiv para o
desenvolvimento da ideacuteia central9 de sua filosofia Esta ideacuteia central eacute aquela contida
concisamente no tiacutetulo de sua obra principal O mundo como vontade e como
representaccedilatildeo10
A dualidade formada entre representaccedilatildeo e vontade atraveacutes da qual
Schopenhauer acredita ter desvendado o ldquomisteacuteriordquo cosmoloacutegico eacute uma apropriaccedilatildeo
assumida dos conceitos kantianos de fenocircmeno e coisa-em-si respectivamente
Dizemos apropriaccedilatildeo pois aqueles conceitos satildeo acrescidos na filosofia
schopenhaueriana de caracteriacutesticas singulares Eacute com base nesta dualidade de
perspectivas de conhecimento do mundo inspirada na primeira criacutetica kantiana que o
filoacutesofo desenvolve as demais teorias que compotildeem seu sistema sejam elas a esteacutetica a
eacutetica a poliacutetica etc
Para Schopenhauer ldquoo maior meacuterito de Kant eacute a distinccedilatildeo entre
fenocircmeno e coisa-em-sirdquo (Schopenhauer MVR 526) Esta distinccedilatildeo foi o que
possibilitou a ldquorevoluccedilatildeo copernicanardquo realizada sobre o dogmatismo anterior A partir
daquele momento ldquoo mundo objetivo como o conhecemos natildeo pertence agrave essecircncia das
coisas em si mesmas mas eacute seu mero FENOcircMENO condicionado exatamente por
aquelas mesmas formas que se encontram a priori no intelecto
humanordquo(Schopenhauer MVR 530) Na teoria kantiana temos o espaccedilo e o tempo
como formas da sensibilidade que na filosofia de Schopenhauer satildeo associadas agrave
faculdade do entendimento juntamente com a causalidade uacutenica das doze categorias
kantianas do entendimento mantidas por Schopenhauer em seu sistema Desta forma o
mundo enquanto representaccedilatildeo eacute aquele que se apresenta para o sujeito enquanto objeto
9 Quando dizemos ideacuteia central havemos de lembrar que no sistema schopenhaueriano esta categorizaccedilatildeo
eacute singular (o tema seraacute tratado no iniacutecio do proacuteximo capiacutetulo) 10
A importacircncia que o filoacutesofo daacute ao tiacutetulo de uma obra eacute esclarecedora para a compreensatildeo da
importacircncia de sua ideacuteia central ldquoo que o sobrescrito deve ser para uma carta eacute o que um tiacutetulo deve ser
para um livro ou seja antes de tudo deve ter o objetivo de destinaacute-lo agrave parte do puacuteblico que pode se
interessar por seu conteuacutedo Sendo assim o tiacutetulo precisa ser caracteriacutestico e por ser naturalmente
breve deve ser conciso lacocircnico pregnante e se possiacutevel um monograma do conteuacutedordquo
(Schopenhauer SOE 09-10)
27
condicionado por estas trecircs formas presentes a priori no intelecto humano tempo
espaccedilo e causalidade Quanto ao mundo noumecircnico que dentro da teoria kantiana eacute um
ldquox desconhecidordquo Schopenhauer o explica atraveacutes da Vontade sua traduccedilatildeo da coisa-
em-si Essa dualidade que traz agrave tona a ldquocompleta diversidade entre o ideal e o realrdquo
(Schopenhauer MVR 527) doutrina que de acordo com Schopenhauer (MVR 528) foi
expressa por Kant de forma soacutebria calma demonstrada e incontestaacutevel jaacute havia sido
expressa tambeacutem em linguagem mais miacutetica e poeacutetica por outras duas doutrinas que
tambeacutem estatildeo profundamente presentes na obra Schopenhaueriana Platatildeo e os escritos
indianos dos Vedas e Puranas
Os estudos das obras de Platatildeo e Kant foram recomendaccedilatildeo de Schultze
um dos professores de Schopenhauer em Gottingen (Weissmann 1980 54) e formam os
pilares filosoacuteficos do sistema schopenhaueriano A separaccedilatildeo entre o real e o ideal
executada por Kant eacute vista tambeacutem na obra platocircnica Sua teoria das ideacuteias bem como
sua alegoria da caverna satildeo expressotildees de uma intuiccedilatildeo da existecircncia daquela separaccedilatildeo
O que Kant teria sistematizado a seu modo eacute a mesma verdade que ldquojaacute Platatildeo
incansavelmente repete e na maioria das vezes exprime em sua linguagem do seguinte
modo este mundo que aparece aos sentidos natildeo possui nenhum verdadeiro ser mas
apenas um incessante devir ele eacute e tambeacutem natildeo eacute sua apreensatildeo natildeo eacute tanto um
conhecimento mas uma ilusatildeordquo (Schopenhauer MVR 528)
Aleacutem de Platatildeo os livros sagrados dos indianos afirmavam esta ldquoilusatildeordquo
ldquofantasmagoriardquo do mundo e constituem tambeacutem uma fonte frequumlentemente utilizada
por Schopenhauer O contato do nosso filoacutesofo com o pensamento oriental se deu
quando do seu encontro com o orientalista Friedrich Majer no salatildeo de sua matildee em
28
Weimar A partir de entatildeo o interesse do filoacutesofo pelo pensamento oriental foi se
intensificando ao longo de sua vida 11
A mesma verdade representada de modo completamente outro eacute
tambeacutem uma doutrina capital dos vedas e puranas a saber a doutrina de
Maia pela qual natildeo se entende outra coisa senatildeo aquilo que Kant nomeia
o fenocircmeno em oposiccedilatildeo agrave coisa-em-si pois a obra de maia eacute
apresentada justamente como este mundo visiacutevel no qual estamos um
efeito maacutegico que aparece na existecircncia uma aparecircncia inconstante e
inessencial em si destituiacuteda de ser comparaacutevel agrave ilusatildeo de oacutetica e ao
sonho um veacuteu que envolve a consciecircncia humana um algo do qual eacute
igualmente falso e igualmente verdadeiro dizer que eacute ou natildeo eacute
(Schopenhauer MVR 528)
Estas trecircs doutrinas estavam admitidamente presentes quando da
elaboraccedilatildeo do nuacutecleo conceitual fundamental da posteriormente nominada Filosofia da
Vontade Entretanto aleacutem de formarem seu nuacutecleo conceitual podemos encontraacute-las
ainda posteriormente em outros instantes desta filosofia O pensamento oriental seraacute
figura fortemente presente na eacutetica schopenhaueriana desenvolvida no quarto livro do
Mundo onde o filoacutesofo adotaraacute como fundamento de sua eacutetica o sentimento da
compaixatildeo jaacute presente na doutrina budista Platatildeo e Kant satildeo ainda influecircncias
fundamentais como veremos no proacuteximo capiacutetulo da esteacutetica schopenhaueriana O
primeiro novamente atraveacutes de sua teoria das ideacuteias seraacute utilizado por Schopenhauer na
definiccedilatildeo do objeto artiacutestico Do segundo poderemos notar sua influecircncia nas teorias
schopenhauerianas do sublime da imaginaccedilatildeo e da contemplaccedilatildeo desinteressada todas
elas fundamentais agrave compreensatildeo da teoria da arte poeacutetica
- - - - - - - - - -
11
Suas fontes principais eram o Oupnekacutehat uma traduccedilatildeo latina dos vedas e o Asiatic Journals jornal
publicado pela sociedade asiaacutetica fundada em 1784 Para uma referecircncia completa das citaccedilotildees orientais
na obra de Schopenhauer veja o apecircndice do artigo de Moira Nicholls The influences of Eastern Thought
on Schopenhaueracutes Doctrine of the Thing-in-itself (in Janaway 1999 197-204)
29
Apresentadas as principais influecircncias teoacutericas do sistema
schopenhaueriano passemos a uma breve descriccedilatildeo do ambiente cultural que naquele
momento tinha como foco um projeto de fundaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para o teatro e a
literatura germacircnicas Tal projeto envolveu os mais importantes dramaturgos criacuteticos
escritores e pensadores do periacuteodo imediatamente anterior a Schopenhauer12
e eacute
tambeacutem posteriormente retomado por Nietzsche em seu Nascimento da Trageacutedia Sua
importacircncia para a filosofia da vontade pode ser medida pela recorrente referecircncia feita
a estes pensadores nas obras dos filoacutesofos Seu iniacutecio em meados do seacuteculo XVIII deu-
se pela influecircncia exercida pelo historiador da arte Johann J Winckelmann junto aos
escritores poetas e dramaturgos posteriores dentre eles Lessing Goethe e Schiller
A influecircncia winckelmanniana que de acordo com Butler (1958 11)
criou ondas cujo violento distuacuterbio ldquoainda varrem as praias do seacuteculo XXrdquo se pautou
em duas noccedilotildees fundamentais13
a imitaccedilatildeo dos antigos e o belo ideal Winckelmann
propunha um novo modelo no qual a arte germacircnica deveria se basear para atingir uma
grandiosidade rara e ldquoinimitaacutevelrdquo a imitaccedilatildeo dos gregos Por esta imitaccedilatildeo o
historiador natildeo propunha uma mera coacutepia das obras de arte gregas poreacutem uma imitaccedilatildeo
do modo de produccedilatildeo artiacutestica dos gregos qual seja sintetizar a beleza ideal descoberta
na observaccedilatildeo da diversidade objetiva da natureza Esta proposta de um retorno ao
modelo antigo coloca Winckelmann na esteira da conhecida querela entre antigos e
modernos e eacute a igniccedilatildeo para o periacuteodo literaacuterio conhecido como classicismo germacircnico
Esta disputa quanto agrave valorizaccedilatildeo das obras poeacuteticas antigas ou modernas estaraacute de um
modo ou de outro presente nas teorias schopenhaueriana e nietzscheana da trageacutedia
12
De acordo com Schopenhauer as obras de tais poetas e escritores assim como a filosofia de Kant satildeo
exemplos para os quais a literatura e a filosofia pobres de seu tempo deveriam se voltar No que se refere
ao uso da liacutengua ele aconselha ldquoLede vede qual liacutengua Winckelmann Lessing Klopstock Wieland
Goethe Buumlrger Schiller falaram e emulai-a mas natildeo fazei o mesmo com o jargatildeo estupidamente
excogitado pelos miseraacuteveis literatos atuais e entre eles pelos professores que vatildeo agrave escola de liacutenguardquo
(Schopenhauer SOE 57-58) 13
Esta duas noccedilotildees fundamentais satildeo ressaltadas por Suumlssekind e Machado em seus trabalhos sobre o
tema Veja Suumlssekind 2008 67-77 e Machado 2006 9-14
30
Como veremos posteriormente Schopenhauer privilegiaraacute a trageacutedia moderna em
detrimento da antiga argumentando que aquela cumpre com maior competecircncia o seu
objetivo enquanto forma de arte qual seja provocar repulsa agrave vontade de viver e
estimular sua negaccedilatildeo Apesar deste privileacutegio pelas obras traacutegicas modernas o filoacutesofo
natildeo deixa como seus contemporacircneos de ter os gregos como modelo e natildeo satildeo raros
seus elogios agraves produccedilotildees helecircnicas Para Schopenhauer Winckelmann foi para a
histoacuteria da arte assim como ele o eacute para a da filosofia um exemplo do modo epiciacuteclico
atraveacutes do qual a natureza de tempo em tempo faz avanccedilar o conhecimento do gecircnero
humano Para o filoacutesofo a retomada do projeto kantiano realizada pelo seu sistema eacute a
demonstraccedilatildeo de que entre ele e Kant nenhum conhecimento foi produzido Como
exemplo deste esquema epiciacuteclico na histoacuteria da arte Schopenhauer utiliza-se do
retorno de Winckelmann agrave beleza claacutessica o que nos mostra a importacircncia dada pelo
filoacutesofo agrave forma de arte grega bem como ao projeto inaugurado pelo historiador da arte
Apoacutes explicar o esquema epiciacuteclico da evoluccedilatildeo dos progressos humanos
Schopenhauer diz
Para quem deseja poreacutem ter uma prova do esquema geral dos
epiciclos aqui exposto com base na histoacuteria da arte basta observar a
escola de escultura de Bernini que florescia ainda no seacuteculo passado
particularmente em seu desenvolvimento francecircs sucessivo e que
representava a natureza comum em vez da beleza claacutessica e o decoro do
minueto francecircs em vez da simplicidade e da graccedila antigas Tal escola
faliu quando apoacutes a repreensatildeo de Winckelmann voltou-se agrave escola dos
antigos (Schopenhauer SOE 110)
Nietzsche por sua vez seguiraacute o caminho winckelmanniano de exaltaccedilatildeo da forma de
arte antiga apresentando a trageacutedia grega como modelo para a arte moderna e elogiando
a iniciativa de seus predecessores em valorizar e recuperar a arte helecircnica
31
Conviria que alguma vez se pesasse diante dos olhos de um juiz
insubornaacutevel em que tempo e em que homens o espiacuterito alematildeo se
esforccedilou mais vigorosamente por aprender dos gregos e se admitirmos
com confianccedila que esse louvor uacutenico deveria ser atribuiacutedo agrave nobiliacutessima
luta de Goethe Schiller e Winckelmann pela cultura haveria em todo
caso que acrescentar que desde aquele tempo e depois das influecircncias
imediatas daquela luta tornou-se cada vez mais fraca de maneira
incompreensiacutevel a aspiraccedilatildeo de se chegar por uma mesma via agrave cultura e
aos gregos (Nietzsche NT 120)
Podemos perceber entatildeo a importacircncia do helenismo proposto por Winckelmann no
pensamento germacircnico ao observarmos a sua duraccedilatildeo tendo em vista que mais de um
seacuteculo separa o historiador da arte e o filoacutesofo da vontade de poder o que confirma a
forccedila de suas propostas para uma cultura em formaccedilatildeo e justifica o epiacuteteto com o qual
Butler caracterizou este periacuteodo dizendo que nele vemos ldquoa tirania da Greacutecia sobre a
Alemanhardquo14
O segundo ponto fundamental da teoria da arte winckelmanniana o belo
ideal natildeo provocou menor interesse em seu tempo Este belo ideal era alcanccedilado a
partir da reuniatildeo em uma uacutenica obra harmocircnica daquilo que o artista observa de mais
belo na natureza
A natureza tem seus defeitos o corpo mais belo natildeo deixa de tecirc-los e
nele encontramos frequumlentemente partes que em outros satildeo mais belas ou
podem supor-se mais perfeitas [] Os gregos trataram de reunir as formas
elegantes de vaacuterios corpos belos como sabemos pelo diaacutelogo de Soacutecrates com o
ceacutelebre pintor Parrasio [] Esta seleccedilatildeo das partes belas e sua harmocircnica
associaccedilatildeo em uma soacute figura produziu a beleza ideal (Winckelmann 2002
130)
Tal beleza encontrou sua manifestaccedilatildeo primeira na Greacutecia do periacuteodo helecircnico devido
ao favorecimento das condiccedilotildees geograacutefico-climaacuteticas15
e poliacuteticas16
Aleacutem da beleza
14
Tiacutetulo de sua obra Butler 1958 15
Sobre a influecircncia climaacutetica Winckelmann deduz ldquoA natureza depois de haver se manifestado em
gradaccedilotildees extremas de frio e de calor se estabeleceu na Greacutecia como em seu centro e por isso reina
naquele paiacutes uma temperatura intermediaacuteria entre o inverno e o veratildeo E quanto mais se aproxima deste
centro mais claridade e serenidade oferece e suas obras se manifestam em formas mais graciosas e
amaacuteveis e com detalhes mais caracteriacutesticos e decididosrdquo (Winckelmann 2002106) 16
Sobre as condiccedilotildees poliacuteticas sejam elas patriarcais democraacuteticas ou tiracircnicas Winckelmann conclui o
seguinte ldquoCom relaccedilatildeo ao regime poliacutetico e o governo da Greacutecia a liberdade eacute uma das causas da
preeminecircncia dos gregos na arte Tambeacutem a liberdade parece ter estabelecido na Greacutecia a sua sede existia
32
formal retirada da diversidade das formas naturais eleitas as mais belas as obras gregas
eram exemplares devido agrave importacircncia dada pelos artistas agrave sua expressatildeo A obra de
arte deve sua forccedila tanto agrave beleza das formas quanto agrave expressatildeo da alma nela contida
De acordo com Winckelmann ldquoa expressatildeo de uma alma grande vai muito aleacutem da
plasmaccedilatildeo de uma bela naturezardquo isto ocorre devido ao fato de que para o historiador
da arte ldquona Greacutecia a sabedoria estendia a matildeo agrave arte e insuflava nas figuras almas
mais que comunsrdquo (Winckelmann 1958 19) As caracteriacutesticas que esta expressatildeo deve
possuir satildeo aquelas contidas na passagem mais famosa da obra de Winckelmann na
qual ele descreve ainda como exemplo daquela expressatildeo artiacutestica o grupo estatuaacuterio
do Laocoonte que por sua vez seraacute alvo de uma grande controveacutersia posterior da qual
participaratildeo dentre outros Lessing Herder Goethe Schelling e Schopenhauer
Reproduzimos a passagem de Winckelmann em sua integridade
A caracteriacutestica geral e principal das obras mestras gregas eacute uma
nobre simplicidade e uma serena grandeza tanto na atitude como na
expressatildeo Assim como nas profundidades o mar estaacute sempre calmo por
muito que se agite a superfiacutecie do mesmo modo a expressatildeo nas figuras
dos gregos mostra em meio a todas as paixotildees uma alma grande e
comedida Isso transmite o rosto do Laocoonte ndash e natildeo soacute o dele ndash em
meio agrave mais violenta dor O sofrimento que aparece em todos os
muacutesculos e fibras do corpo e que no baixo ventre contraiacutedo se
experimenta tatildeo intensamente que parecemos senti-lo natildeo se exterioriza
contudo mediante qualquer ira no rosto e em toda a atitude Natildeo lanccedila
um grito terriacutevel tal como Virgiacutelio cantou em seu Laocoonte A abertura
da boca natildeo o permitiria Mais parece um suspiro angustiado como o
descreve Sadolet A dor do corpo e a grandeza da alma estatildeo distribuiacutedos
com igual forccedila atraveacutes de toda a composiccedilatildeo da figura e em certa
medida estatildeo equilibrados Laocoonte sofre mas sofre como o
Filoctetes de Soacutefocles sua dor nos toca a alma mas desejariacuteamos poder
suportar essa dor com a grandeza desse homem (Winckelmann 1958
18-19 grifo nosso)
inclusive junto ao tronos de seus reis que governavam paternalmente a seus suacuteditos antes que mais
ilustrados gozassem do destino de uma completa liberdade Homero chama a Agamemnoacuten de pastor de
seus povos com o que queria designar sua ternura com seus subordinados e sua preocupaccedilatildeo constante
pela felicidade dos mesmos Eacute bem verdade que depois surgiram tiranos mas natildeo o foram mais para uma
determinada cidade e a naccedilatildeo inteira jamais reconheceu um soberano uacutenicordquo (Winckelmann 2002 109)
33
Desta famosa passagem retiramos dois momentos que especialmente nos interessam O
primeiro dele eacute a enunciaccedilatildeo que caracterizaraacute o ideal de beleza das obras gregas nobre
simplicidade e uma serena grandeza Este ideal winckelmanniano de beleza eacute o que
torna a arte grega nas palavras de Suumlssekind ldquoinimitaacutevel e ao mesmo tempo faz dela o
modelo a ser imitadordquo (Suumlssekind 2008 69) Interessa-nos especialmente devido agrave
influecircncia desta definiccedilatildeo para a teoria do jovem professor de filologia da Basileacuteia
Podemos ver ateacute mesmo pelo vocabulaacuterio utilizado para descrever a arte grega a
proximidade e a influecircncia exercida por estes conceitos nas teorias esteacuteticas do primeiro
Nietzsche Luminosidade serenidade harmonia satildeo alguns dos conceitos que
posteriormente seratildeo utilizados por Nietzsche ao definir o seu impulso artiacutestico
apoliacuteneo17
O segundo momento - quando Winckelmann defende o espiacuterito grego na
escultura do Laocoonte em contraposiccedilatildeo ao personagem de Virgiacutelio comparando esta
representaccedilatildeo escultural com o Filoctetes de Soacutefocles - seraacute o precursor do posterior
debate sobre as fronteiras que separam as formas de arte Para Winckelmann ldquoa nobre
simplicidade e a serena grandeza das estatuas gregas eacute tambeacutem a verdadeira
caracteriacutestica dos escritos gregos da melhor eacutepoca dos escritos da escola
socraacuteticardquo(Winckelmann 1958 31) O debate sugerido pela passagem do qual
participaraacute posteriormente o proacuteprio Schopenhauer seraacute iniciado por outro pensador
de grande importacircncia para o projeto cultural alematildeo Gotthold Ephraim Lessing
Lessing em sua obra Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da
poesia apresentaraacute a contenda que chegaraacute ateacute Schopenhauer Para Lessing o ponto de
discordacircncia com Winckelmann estaacute no motivo pelo qual na escultura o Laocoonte natildeo
17
Segundo Rodriges (2007 93-126) tambeacutem o conceito do impulso dionisiacuteaco estaria mesmo que em
germe presente nos estudos de Winckelmann Segundo seu artigo o mapeamento da origem e
desenvolvimento da discussatildeo sobre os citados impulsos artiacutesticos da natureza ou seja sobre a
importacircncia dos deuses Apolo e Dioniacutesio na cultura grega abrangeria necessariamente diversas aacutereas do
pensamento alematildeo desde Winckelmann dentre elas os estudos filoloacutegicos o movimento romacircntico e as
filosofias idealistas
34
apresenta as caracteriacutesticas de quem grita e lamenta Como vimos para Winckelmann o
conjunto estatuaacuterio em questatildeo eacute exemplar pelo fato de transmitir atraveacutes da atitude
estoacuteica diante da dor a grandeza de alma que seria a regra universal da verdadeira arte
grega Esta grandeza enquanto regra universal estaria ainda de acordo com o
historiador da arte presente tanto nas formas pictoacutericas como nas obras poeacuteticas
Contrapondo-se a Winckelman Lessing afirma - exemplificando atraveacutes de passagens
de poetas queridos ao proacuteprio Winckelmann como Homero e Soacutefocles - que em vaacuterios
momentos da poesia antiga diversos personagens dentre eles deuses e heroacuteis proferem
exaltados lamentos e gritos e isto natildeo lhes subtrai a grandeza da alma Sendo assim se
na poesialdquoo gritar na sensaccedilatildeo de dor corporal pode coexistir muito bem com uma
grande alma portanto a expressatildeo de uma tal alma natildeo pode ser a causa pela qual
apesar disso o artista natildeo quer imitar esse grito no seu maacutermore antes deve haver um
outro motivo por que aqui ele separa-se do seu rival o poeta que expressa esse grito
com o melhor propoacutesitordquo(Lessing 1998 86) O motivo pelo qual em sua representaccedilatildeo
estatuaacuteria o Laocoonte natildeo grita eacute para Lessing uma questatildeo de limitaccedilatildeo da forma de
expressatildeo escultoacuterica que ao se submeter agrave ldquolei da belezardquo natildeo pode representar o grito
desfigurador Em suas palavras
O mestre visava a suprema beleza sob as condiccedilotildees aceitas da dor
corporal Esta em toda a sua violecircncia desfiguradora era incompatiacutevel
com aquela Ele foi obrigado a reduzi-la ele foi obrigado a suavizar o
grito em suspiro natildeo porque o grito denuncia uma alma indigna mas
antes porque ele dispotildee a face de um modo asqueroso (Lessing 1998
92)
Devemos ressaltar que segundo a teoria artiacutestica de Lessing para quem as leis a que
devem obedecer a arte estatildeo ligadas agrave sua interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica a arte eacute
julgada atraveacutes do seu efeito Neste contexto ao conceder a seus personagens
caracteriacutesticas de humanidade como por exemplo a manifestaccedilatildeo da dor atraveacutes de
35
lamentos e gritos o poeta estaria aproximando o heroacutei traacutegico do puacuteblico a ser atingido
e consequumlentemente maximizando a identificaccedilatildeo entre eles e com isto o efeito
esperado qual seja a catarse atraveacutes do temor e da compaixatildeo Esta identificaccedilatildeo
alcanccedilada por via da demonstraccedilatildeo dos lamentos dos heroacuteis dramaacuteticos natildeo pode ser
obtida da mesma forma pelas artes pictoacutericas Nestas que satildeo expressotildees de um
momento uacutenico a beleza natildeo pode deixar de estar presente pois ela eacute um dos
ingredientes mais fundamentais do efeito buscado Na poesia o heroacutei natildeo seraacute
caracterizado em uma uacutenica accedilatildeo como ocorre na escultura Sendo assim o grito
narrado eacute apenas um momento do conjunto que iraacute definir o personagem
O Laocoonte de Virgiacutelio grita mas esse Laocoonte que grita eacute
justamente aquele que noacutes jaacute conhecemos e amamos como o patriota
mais cordato e o pai mais afetuoso Noacutes vinculamos o seu grito natildeo ao
seu caraacuteter mas antes apenas ao seu sofrimento insuportaacutevel Apenas
esse uacuteltimo noacutes ouvimos no seu grito e o poeta pode tornaacute-lo sensiacutevel
apenas graccedilas a esse grito (Lessing 1998 106)
Com isto tanto o escultor que suprime o grito quanto o poeta que o descreve ao
fazerem o fazem de acordo com as leis que regem suas respectivas formas de arte
Da contenda sobre o grito do Laocoonte e sua representaccedilatildeo escultoacuterica e
poeacutetica iratildeo participar ainda diversos pensadores Dentre os mais ilustres podemos
destacar Goethe cuja explicaccedilatildeo sobre a escultura proacutexima em muitos pontos da de
Lessing encontra-se nos Propileus Para o poeta o grupo estatuaacuterio ldquoesgota o seu objeto
e preenche com sucesso todas as condiccedilotildees da arterdquo (Goethe 2005126) Segundo
Goethe a escultura eacute limitada a um uacutenico momento da accedilatildeo e sua comparaccedilatildeo com a
poesia de Virgiacutelio eacute injusta O poeta a avalia assim como Lessing atraveacutes de seu efeito
ainda dentro das categorias poeacuteticas de Aristoacuteteles e destaca
O ser humano possui apenas trecircs sentimentos no sofrimento
proacuteprio e alheio o medo o terror e a compaixatildeo a previsatildeo temerosa de
um mal que se aproxima a percepccedilatildeo inesperada do sofrimento presente
36
e a participaccedilatildeo no sofrimento duradouro ou que passou todos os trecircs
sentimentos satildeo representados e suscitados por esta obra de arte e na
verdade na gradaccedilatildeo a mais conveniente (Goethe 2005 126)
Em sua obra principal Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 46 a seus comentaacuterios do
Laocoonte que seratildeo acrescidos de exemplos no posterior volume de suplementos
Reconhece o avanccedilo feito por Lessing ao colocar no lugar de um fundamento
psicoloacutegico um fundamento puramente esteacutetico e critica ainda as teorias psicoloacutegicas e
fisioloacutegicas de seu tempo como as de Hirt e Fernow18
Para Schopenhauer apesar de
sua aproximaccedilatildeo do que seria uma ldquoexplicaccedilatildeo corretardquo da obra Lessing natildeo encontrou
o seu ponto exato qual seja a explicaccedilatildeo de que o grito natildeo pertence ao domiacutenio de
uma representaccedilatildeo escultoacuterica
Antes de qualquer investigaccedilatildeo psicoloacutegica e fisioloacutegica sobre se
Laocoonte em sua situaccedilatildeo poderia gritar ou natildeo deve-se decidir em
relaccedilatildeo ao grupo de esculturas o seguinte que nele o grito natildeo pode ser
exposto pelo motivo de que a exposiccedilatildeo do grito reside por inteiro fora
do domiacutenio da escultura (Schopenhauer MVR 2005 303)
Para Schopenhauer a simples exposiccedilatildeo que representaria o grito ou seja ldquoo
escancarar violento da bocardquo natildeo pode ocasionar o efeito que o grito mesmo enquanto
forma de expressatildeo ocasionaria O efeito que o grito pode causar em uma arte
descritiva atraveacutes do uso da imaginaccedilatildeo do leitor ou mesmo na arte representativa no
teatro tornar-se-ia motivo de riso caso seja representado por uma boca escancarada na
arte plaacutestica Schopenhauer utiliza-se do exemplo do Laocoonte para demonstrar a
necessidade do estabelecimento de fronteiras entre as artes que devido agrave suas formas
devem obedecer agraves competecircncias determinadas pelo objeto representado (no caso da
teoria schopenhaueriana as competecircncias seratildeo determinadas pelas ideacuteias a serem
representadas como veremos posteriormente) Esta preocupaccedilatildeo com os limites entre as
18
Segundo Schopenhauer Hirt (Horen 1797 parte 10) apresenta a explicaccedilatildeo de que Laocoonte natildeo grita
pois estaacute impossibilitado pela sufocaccedilatildeo que o leva agrave morte Fernow por sua vez faz uma amalgama das
opiniotildees de Winckelmann Lessing e Hirt
37
formas artiacutesticas presente na esteacutetica schopenhaueriana e no Laocoonte de Lessing foi
contudo como nos lembra Suzuki (Rosenfield 2001 36-56) ignorada por Goethe
(como podemos ver pelos elementos da poeacutetica aristoteacutelica utilizados pelo poeta para
explicar a escultura na citaccedilatildeo presente na paacutegina anterior) e seraacute posteriormente
tambeacutem desconsiderada por Nietzsche em seu projeto de uma obra de arte total
Diante do acima exposto ainda tratando de Lessing podemos perceber
que toda a discussatildeo acerca do Laocoonte foi desencadeada pela motivaccedilatildeo de defesa da
arte poeacutetica agrave qual Lessing dedicou sua vida como escritor diretor e criacutetico teatral
Desta forma a importacircncia de Lessing para o tema em questatildeo nesta dissertaccedilatildeo estaacute
mais ligado ao seu papel junto a um projeto de formaccedilatildeo de um teatro alematildeo e sua
interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica Enquanto teoacuterico e criacutetico do teatro o autor da
Dramaturgia de Hamburgo exerceu grande influecircncia na cultura posterior ao oferecer a
seu tempo uma nova interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica que vai de encontro agraves
interpretaccedilotildees francesas e de Gottsched que eram por sua vez inflexiacuteveis em relaccedilatildeo agraves
regras (das unidades de espaccedilo tempo e lugar do estatuto social dos personagens da
linguagem e do nuacutemero de atos) Lessing atento agraves necessidades de uma burguesia em
ascensatildeo que natildeo se identificava mais com as concepccedilotildees aristocraacuteticas do modelo de
teatro francecircs e imbuiacutedo na construccedilatildeo do projeto de formaccedilatildeo cultural de uma naccedilatildeo
fragmentada oferece atraveacutes de suas interpretaccedilotildees uma seacuterie de elementos que estaratildeo
presentes nas consideraccedilotildees de pensadores posteriores Dentre estes elementos podemos
destacar as seguintes uma discussatildeo acerca dos conceitos de mimese temor
compaixatildeo catarse a defesa da utilizaccedilatildeo de caracteres mistos a liberdade do gecircnio
ante as regras o enaltecimento dos teatros espanhol e inglecircs principalmente de
Shakespeare
38
Ao tratarmos do referido projeto de um teatro alematildeo e tambeacutem do
classicismo germacircnico dois nomes ainda satildeo fundamentais para sua formaccedilatildeo bem
como eacute incontestaacutevel sua influecircncia sobre Schopenhauer e o jovem Nietzsche19
satildeo
eles Goethe e Schiller O primeiro deles maior dos poetas do classicismo germacircnico
foi um ampliador do projeto Winckelmanniano ldquoPois Goethe pensa o ideal de beleza
natildeo soacute em relaccedilatildeo agrave pintura e agrave escultura mas tambeacutem e principalmente em relaccedilatildeo agrave
poesia ou agrave arte dramaacutetica ampliando as ideacuteias de Winckelmann nesse domiacutenio como
teoacuterico e como criador de obras teatraisrdquo (Machado 2006 14) Seu classicismo
impresso em seus textos teoacutericos e na forma e conteuacutedo de diversas de suas produccedilotildees
literaacuterias eacute o auge do projeto Winckelmanniano Podemos ver na esteira de Machado
(2006 14-22) que o ideal de beleza proposto por Winckelmann eacute ainda o que domina a
noccedilatildeo Goetheana dos gregos e eacute apoiado neste ideal que o poeta interpreta a arte do
mundo helecircnico e a apresenta como um exemplo para a arte de seu tempo Ressaltamos
poreacutem que dada a sua extrema heterogeneidade como nos adverte Butler (1958 85)
encontrar um senso de harmonia interna no todo da obra goetheana eacute tarefa tatildeo incerta
como determinar o grau de sua influecircncia no pensamento de nossos filoacutesofos No que se
refere a Schopenhauer entretanto natildeo podemos deixar de ressaltar que sua convivecircncia
com o poeta foi norteada pelas discussotildees cientiacuteficas e filosoacuteficas que ocupavam o palco
de seus estudos agrave eacutepoca Goethe dedicou vinte anos de sua vida ao estudo das cores e
sua obra Doutrina das cores eacute o resultado desta investigaccedilatildeo Ela atraiu o interesse do
jovem Schopenhauer que apoacutes alguns encontros com Goethe dedicou-se a escrever a
sua proacutepria teoria que divergia em diversos pontos da teoria do poeta fato que marcou o
fim da relaccedilatildeo amistosa dos mesmos Sobre este periacuteodo de convivecircncia
19
De acordo com Martin (1996) a obra desenvolvida por Nietzsche enquanto escritor e pensador eacute
demasiado complexa para ser reduzida ou atribuiacuteda a determinada influecircncia Entretanto em uma
estatiacutestica crua podemos ter o vislumbre desta influecircncia como se segue ldquoSchopenhauer eacute referenciado
394 vezes na obra de Nietzsche Wagner 327 vezes a Goethe existem 311 menccedilotildees Schiller encontra-se
em nono lugar com 126 menccedilotildeesrdquo (Martin 1996 5)
39
especificamente sobre o episodio citado Goethe vai escrever mais tarde conforme
citaccedilatildeo de Safranski
O Dr Schopenhauer foi para mim um amigo benevolente
Estivemos de acordo em muitas coisas mas foi impossiacutevel evitar ao final
um certo distanciamento como dois amigos que ateacute certo momento
caminharam juntos se datildeo a matildeo para despedir pois querem dirigir-se um
ao norte outro ao sul perdendo-se rapidamente de vista um ao outro
(apud Safranski 1991 265)
Ainda na esteira do movimento de estabelecimento de um projeto
artiacutestico nacional encontramos Schiller que ao lado de Goethe foi o responsaacutevel pelas
maiores obras do classicismo literaacuterio de Weimar Para o estudo em questatildeo o que mais
nos interessa em sua obra eacute o periacuteodo no qual antes do contato com Goethe Schiller
produz seus escritos teoacutericos sobre a trageacutedia Estes estudos podem ser considerados
em uma perspectiva histoacuterica como uma ponte entre a interpretaccedilatildeo da trageacutedia nos
moldes puramente aristoteacutelicos e a trageacutedia vista enquanto forma de arte que para
atingir o efeito dela esperado deve refletir a condiccedilatildeo traacutegica do homem pensada com
base em elementos retirados da filosofia moral e da esteacutetica kantiana Em seus textos
teoacutericos sobre a poesia traacutegica pertencentes ao periacuteodo que Schiller assume ter estado
sob influecircncia da filosofia kantiana ele descreve a trageacutedia como expressatildeo do sublime
ndash conceito extraiacutedo da criacutetica kantiana do juiacutezo ndash como a representaccedilatildeo sensiacutevel da
dicotomia entre a liberdade moral a vontade individual (vontade tomada enquanto
faculdade de pensar e agir livremente) por um lado e a necessidade natural e instintiva
por outro Vemos pela primeira vez em Schiller a utilizaccedilatildeo de categorias filosoacuteficas
kantianas na elaboraccedilatildeo de uma teoria da trageacutedia o que teraacute continuidade com as
teorias do idealismo absoluto e a do proacuteprio Schopenhauer Este eacute um momento
extremamente importante devido ao fato de marcar toda a reflexatildeo futura sobre o tema
ao fundar o deslocamento de uma interpretaccedilatildeo poeacutetica da trageacutedia baseada em
40
comentaacuterios da obra aristoteacutelica para uma interpretaccedilatildeo do traacutegico enquanto fenocircmeno
que descreve a situaccedilatildeo do homem no mundo De acordo com Machado ldquoEacute do
encontro de um grande dramaturgo como Schiller com a filosofia de Kant -
principalmente a sua eacutetica considerada como uma filosofia da liberdade e sua
esteacutetica no que diz respeito agrave teoria do juiacutezo sobre o sublime ndash que nasce a primeira
filosofia do traacutegico uma reflexatildeo filosoacutefica original que criou um tipo novo de
pensamento sobre a trageacutediardquo (Machado 2006 54) Na teoria schopenhaueriana da
trageacutedia podemos ver caracteriacutesticas da teoria schilleriana Primeiramente a presenccedila
marcante da influecircncia kantiana no que se refere ao sublime Em segundo lugar a
leitura da trageacutedia enquanto instrumento para a percepccedilatildeo de uma ordem moral do
mundo Tais caracteriacutesticas seratildeo aprofundadas no capiacutetulo posterior Vale antecipar que
na obra do jovem Nietzsche poderemos ver a exaltaccedilatildeo de Schiller em sua tentativa de
compreensatildeo do mundo helecircnico aleacutem do elogio agrave teoria schilleriana do coro Veremos
entretanto uma criacutetica acirrada no que se refere ao projeto de um teatro enquanto
instituiccedilatildeo moral
Neste capiacutetulo foram delineadas as principais influecircncias filosoacuteficas que
alicerccedilaram o sistema schopenhaueriano bem como esboccedilaram-se as diversas teorias
artiacutesticas que surgiram no periacuteodo em questatildeo teorias estas que propuseram mateacuteria
para a formaccedilatildeo do pensamento de nossos filoacutesofos A partir da cisatildeo entre fenocircmeno e
noumeno proposta por Kant e sua primeira criacutetica Schopenhauer elabora as matrizes de
seu sistema e para ilustraacute-lo encontra apoio na cosmologia platocircnica e no pensamento
oriental Vimos ainda que sua teoria esteacutetica eacute alimentada pela frequumlentaccedilatildeo agraves
categorias apresentadas por artistas teoacutericos e criacuteticos de arte de seu periacuteodo Por seu
turno vimos com Winckelmann a origem do estudo sobre os gregos e sua arte aleacutem do
estabelecimento destes como um modelo para a arte alematilde projeto este que foi
41
retomado por Lessing que por sua vez intensificou o estudo e propocircs um modelo de um
teatro nacional independente projeto que seraacute mais tarde revisitado e aprofundado por
Goethe e Schiller Esta apresentaccedilatildeo de influecircncias eacute imprescindiacutevel para identificarmos
a origem de certos elementos que satildeo fundamentais ao entendimento da proacutepria doutrina
schopenhaueriana tais como o caraacuteter moral de sua teoria esteacutetica sua preocupaccedilatildeo
com o estabelecimento de limite entre as artes sua interpretaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo da poeacutetica
sua utilizaccedilatildeo de conceitos esteacuteticos kantianos (sublime belo e desinteresse) sua
apreciaccedilatildeo das obras modernas seu reconhecimento da produccedilatildeo claacutessica seu desprezo
agrave filosofia de seu tempo Eacute tambeacutem atraveacutes do mapeamento aqui feito de algumas de
suas influecircncias mesmo que brevemente apontado que poderemos mais tarde
identificar alguns dos aspectos originais e singulares de sua teoria
Quanto agraves influecircncias presentes na teoria da trageacutedia do jovem Nietzsche
apontaremos complementos no capiacutetulo correspondente Eacute imprescindiacutevel dar destaque
no que se refere agrave obra nietzscheana agrave sua formaccedilatildeo filoloacutegica ao seu conviacutevio com
Richard Wagner e agrave sua leitura do proacuteprio Schopenhauer - e isto seraacute feito
posteriormente Esperamos ter deixado claro ateacute aqui que diferentemente de Zaratustra
Nietzsche natildeo desceu simplesmente de uma montanha mas faz parte de uma tradiccedilatildeo
histoacuterica assim como Schopenhauer e que a contextualizaccedilatildeo de suas teorias eacute
fundamental para a identificaccedilatildeo dos elementos ali presentes que singularmente se
originaram do sistema metafiacutesico da Vontade
42
2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU
SUBSTRATO METAFIacuteSICO
ldquoOra se todo mundo como representaccedilatildeo eacute
a visibilidade da Vontade a arte eacute o
clareamento dessa visibilidade a cacircmera
obscura que mostra os objetos mais
puramente permitindo-nos melhor abarcaacute-
los e compreendecirc-los eacute o teatro dentro do
teatro a peccedila dentro da peccedila em Hamletrdquo
(Schopenhauer)
Utilizando-se de uma metaacutefora retirada do Eacutedipo de Soacutefocles Schopenhauer nos
oferece um exemplo da caracteriacutestica de conexatildeo interna dos temas abordados em sua
obra20
ldquo minha filosofia eacute como a Tebas de cem portas desde todos os lados se pode
entrar e atraveacutes de todos se pode chegar por um caminho direto ateacute o centrordquo
(Schopenhauer 2002 4) Tendo em vista que nosso objetivo neste capiacutetulo eacute apresentar
a teoria schopenhaueriana da trageacutedia e seus fundamentos filosoacuteficos utilizaremo-nos
desta porta para termos acesso ao sistema schopenhaueriano Procuraremos percorrer o
20
Barboza define bem esta caracteriacutestica marcante da filosofia schopenhaueriana ldquoSchopenhauer eacute o
filoacutesofo da organicidade Procura-a porque com ela onde quer que se esteja no seu sistema estar-se-aacute
em toda parte O todo conteria as partes e seria contido por elas De uma metafiacutesica da efetividade se vai
para uma do belo desta para a da eacutetica que por sua vez pode remeter agrave muacutesica por seu turno a nos
enviar para a efetividade numa por assim dizer circularidade virtuosa A unidade natildeo se perde do
horizonte de observaccedilatildeordquo (Barboza 2001 137)
43
substrato metafiacutesico sustentador da teoria do traacutegico schopenhaueriana e perceber assim
a conectividade interna existente entre sua cosmologia sua teoria esteacutetica e sua eacutetica
De posse deste meacutetodo procuraremos destacar os conceitos fundamentais da teoria
traacutegica e de sua visatildeo de mundo que viratildeo posteriormente se fazer presentes tambeacutem
na obra do jovem Nietzsche
21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo
Agrave descriccedilatildeo das artes poeacuteticas Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 51 do primeiro
volume e o capiacutetulo 37 do segundo volume de sua obra principal Tais descriccedilotildees
encontram-se por sua vez ao final dos trechos dedicados agrave teoria esteacutetica (livro III de
MVR e sus complementos) e finalizam seus apontamentos do que podemos chamar na
esteira de Young (2005) das artes natildeo-musicais21
Em ambos os casos a teoria da
trageacutedia estaacute localizada ao final da apresentaccedilatildeo Esta localizaccedilatildeo juntamente com as
diversas citaccedilotildees e exemplos retirados de peccedilas traacutegicas das quais o filoacutesofo se utiliza ao
longo de seu trabalho nos permite ver a importacircncia da arte traacutegica para Schopenhauer
Em sua teoria artiacutestica existe uma hierarquizaccedilatildeo das artes que leva em consideraccedilatildeo a
capacidade de cada uma em apresentar um grau especiacutefico de objetivaccedilatildeo da vontade
Na cosmologia schopenhaueriana a vontade essecircncia do mundo identificada como
sendo a coisa-em-si kantiana manifesta-se (torna-se objeto de conhecimento) atraveacutes de
diversos graus ndash que exprimem a nitidez com que a vontade se manifesta para o
observador - representados pelos reinos da natureza e finalmente pelo homem Desta
forma ela se objetivaria no mundo inorgacircnico atraveacutes das forccedilas magneacuteticas e da
gravidade no mundo vegetal atraveacutes das funccedilotildees orgacircnicas no mundo animal atraveacutes
21
Como veremos mais adiante a muacutesica eacute uma exceccedilatildeo no sistema das artes schopenhaueriano pois natildeo
se relaciona a uma objetivaccedilatildeo da vontade mas expressa a proacutepria vontade e desta forma natildeo figura na
sistematizaccedilatildeo hieraacuterquica
44
dos instintos e dos motivos assim como o faz no homem A classificaccedilatildeo das artes
corresponde portanto a esta hierarquizaccedilatildeo cosmoloacutegica de objetivaccedilatildeo da vontade22
Sendo assim a arquitetura e a hidraacuteulica mostram a objetivaccedilatildeo da vontade no seu grau
mais baixo ao expor o jogo das forccedilas que caracterizam a mateacuteria tais como a gravidade
rigidez dureza resistecircncia luz A jardinagem e a pintura da natureza satildeo as formas
artiacutesticas cujo fim eacute a exposiccedilatildeo da objetivaccedilatildeo da vontade que se manifesta no reino
vegetal A pintura de animais encontra-se em um niacutevel superior pois o reino animal
objeto de sua representaccedilatildeo expotildee de forma mais evidente a vontade objetivada Temos
ainda as pinturas de retratos a pintura histoacuterica e a escultura que das artes plaacutesticas
formam a categoria superior cujo objeto eacute a exposiccedilatildeo da vontade no grau mais elevado
de sua cognoscibilidade o homem Esta mesma exposiccedilatildeo a do homem eacute tambeacutem o
objeto da arte poeacutetica que agrave diferenccedila das artes que fazem sua exposiccedilatildeo de modo
puramente intuitivo eacute auxiliada pela imaginaccedilatildeo No aacutepice das artes poeacuteticas
encontramos a trageacutedia a uacuteltima arte natildeo-musical a ser descrita A arte traacutegica eacute aquela
que possui a caracteriacutestica de por sua natureza representar de forma mais ilustrativa a
objetivaccedilatildeo mais desenvolvida da vontade a vida humana e suas relaccedilotildees Veremos
mais tarde que aleacutem de corresponder agrave hierarquia de objetivaccedilatildeo da vontade mais
desenvolvida a arte traacutegica ocupa um lugar especial na filosofia schopenhaueriana
devido agrave ldquograndeza de seu efeitordquo (Schopenhauer 2005 333) Diante do exposto
podemos depreender que a arte possui na filosofia schopenhaueriana um papel
cognitivo e a trageacutedia por sua vez eacute a forma artiacutestica que por sua competecircncia cognitiva
ocupa o primeiro lugar entre as artes natildeo musicais
22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo
22
Vemos aqui um exemplo da citada inter-conectividade existente no sistema schopenhaueriano tendo
em vista que a elaboraccedilatildeo de sua classificaccedilatildeo artiacutestica obedece ao construto metafiacutesico do livro II de
MVR e sua consequumlente cosmologia
45
A tarefa a que se propotildee o sistema schopenhaueriano eacute a decifraccedilatildeo do ldquoenigma
do mundordquo ie encontrar uma resposta agrave pergunta o que eacute o mundo Esta tarefa tem
origem no idealismo subjacente na primeira criacutetica kantiana e de certa forma era uma
tarefa da qual estava imbuiacutedo todo o pensamento filosoacutefico daquele periacuteodo ie por
decifraccedilatildeo do enigma do mundo podemos entender a decifraccedilatildeo da coisa-em-si
kantiana Temos daiacute o ponto de partida da filosofia de Schopenhauer o idealismo
transcendental do mundo fenomecircnico Sob o ponto de vista da representaccedilatildeo o mundo eacute
objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito agraves condiccedilotildees a priori do
entendimento que para o filoacutesofo satildeo as categorias do espaccedilo do tempo e da
causalidade
Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das formas a priori do entendimento eacute
interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos advindos da filosofia Platocircnica e oriental
como um mundo ilusoacuterio Conforme a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana Platatildeo jaacute
identificava esta caracteriacutestica ilusoacuteria do mundo em sua contraposiccedilatildeo teoacuterica entre o
mundo fiacutesico onde o devir impossibilitava a apreensatildeo do ser e o mundo das ideacuteias
onde haveria o verdadeiro encontro com o ser das coisas Ainda de acordo com a
interpretaccedilatildeo de Schopenhauer os livros sagrados indianos Vedas e Puranas faziam
esta distinccedilatildeo atraveacutes da noccedilatildeo do veacuteu de maia a consciecircncia humana seria envolvida
por um veacuteu o que resultaria em uma visatildeo oniacuterica do mundo e impediria assim a
percepccedilatildeo da realidade
Entretanto o mundo pode ainda ser conhecido atraveacutes de um segundo ponto de
vista como vontade Este eacute o ponto de vista que Schopenhauer utiliza-se para decifrar a
incognosciacutevel coisa-em-si kantiana Percorrendo uma ldquovia subterracircneardquo de modo
imanente Schopenhauer identifica nas accedilotildees do corpo bioloacutegico os atos da vontade
46
enquanto coisa-em-si e de forma analoacutegica a estabelece como essecircncia governante do
mundo Faz-se necessaacuterio aqui ressaltar como o fazem Brum (1998 23) e Rosset23
que
natildeo devemos interpretar esta analogia como uma visatildeo antropomoacuterfica do mundo Essa
essecircncia do mundo encontrada empiricamente natildeo eacute todavia um ente racional uma
ldquoalma do mundordquo Se por um lado o mundo fenomecircnico eacute aquele onde o princiacutepio de
razatildeo24
estabelece as normas de funcionamento um mundo natildeo-fenomecircnico mundo em
si enquanto vontade se expressa por sua alogicidade irracionalidade Grundlosigkeit
(falta de fundamento) Essa essecircncia irracional que manifesta-se nos diversos reinos e
indiviacuteduos do mundo eacute a raiz da visatildeo pessimista da existecircncia que de acordo com o
filoacutesofo pode ser a todo momento constatada empiricamente
As diversas manifestaccedilotildees da vontade suas objetidades carregam inerentemente
a sua iacutendole puro impulso cego vontade de vida insaciabilidade Notadamente o
mundo fenomecircnico objetivaccedilatildeo da vontade expressa a essecircncia desta vontade atraveacutes
de um conflito permanente Desenha-se um cenaacuterio de batalha onde cada objetidade da
vontade cada ser do mundo eacute orientado por sua essecircncia irracional desguarnecida de
qualquer telos ldquoAssim a vontade de vida crava continuamente os dentes na proacutepria
carne e em diferentes figuras eacute seu proacuteprio alimentordquo (Schopenhauer MVR 211) Este
fundamento ontoloacutegico a vontade determina assim o caraacuteter absurdo que a vida
humana toma na filosofia schopenhaueriana eterno esforccedilo carente de ordem ou
finalidade O ldquomecanismo internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens
marionetes guiados pela carecircncia
[]nenhuma satisfaccedilatildeo todavia eacute duradoura mas antes sempre eacute um
ponto de partida de um novo esforccedilo o qual por sua vez vemos travado em
toda parte de diferentes maneiras em toda parte lutando e assim portanto
23
[] natildeo haacute que transpor a experiecircncia da motivaccedilatildeo humana ao conjunto das forccedilas naturais para
compreender o segredo da natureza senatildeo o contraacuterio transpor o misteacuterio das forccedilas naturais ao conjunto
das motivaccedilotildees psicoloacutegicas para desvendar-se o segredo da vontade humana (Rosset 2005 31) 24
Princiacutepio tratado na tese de doutoramento de Schopenhauer SRQPRS bem como no livro I de MVR
O princiacutepio estabelece que todo acontecimento possui uma causa uma razatildeo de ser
47
sempre como sofrimento natildeo haacute nenhum fim uacuteltimo do esforccedilo portanto natildeo
haacute nenhuma medida e fim do sofrimento (Schopenhauer 2005 399)
Se carecircncia vontade e desejo satildeo a tocircnica da vida humana na maior parte do tempo e
satildeo experimentados como dor e infelicidade a felicidade por sua vez eacute definida
negativamente como um momento de ausecircncia daquela dor
Sentimos a dor e natildeo a ausecircncia da dor a inquietude e natildeo a
tranquumlilidade o medo e natildeo a seguranccedila Sentimos desejo como quando
temos fome e sede entretanto ao alimentarmo-nos estas sensaccedilotildees
deixam de existir para noacutes (MVR II 630)
Toda satisfaccedilatildeo momentacircnea de um querer eacute imediatamente suprimida por outro querer
ou se perdurar por algum tempo por menor que seja este transforma-se em teacutedio Um
ldquopecircndulo entre a dor e teacutediordquo eacute a definiccedilatildeo que Schopenhauer propotildee para a vida
humana Assim se daacute tambeacutem com a sauacutede a juventude e a liberdade Todos satildeo
conceitos definidos negativamente soacute os conhecemos atraveacutes de sua ausecircncia Este afatilde
por prolongar e conservar a vida essecircncia iacutentima de cada indiviacuteduo natildeo eacute contudo
resultado de uma observaccedilatildeo objetiva da mesma de um conhecimento que eleja a vida
como algo de valor a ser mantido e preservado e portanto os ldquo[] seres natildeo satildeo
atraiacutedos por algo que se lhes apresenta mas satildeo empurrados a elerdquo (MVR II 398) A
luta eterna observada nos diversos reinos da natureza a busca por alimento o esforccedilo da
procriaccedilatildeo se comparados aos momentos fugazes de satisfaccedilatildeo fazem da vida ldquoum
negoacutecio cujos investimentos natildeo cobrem nem de longe os custosrdquo (MVR II 399)
Em todas estas consideraccedilotildees se faz claro que a vontade de viver
natildeo eacute a consequecircncia do conhecimento da vida natildeo se trata de uma
bdquoconclusio ex praemissis‟ nem em geral eacute algo secundaacuterio antes
contudo eacute o primeiro e incondicionado a premissa de todas as premissas
e precisamente por isso aquilo do que haacute de partir a filosofia pois a
vontade de viver natildeo se apresenta como a consequumlecircncia do mundo senatildeo
o mundo como consequumlecircncia da vontade de viver (MVR II 405)
Um dos pontos essenciais a ser verificado nesta visatildeo de mundo eacute o
destronamento da razatildeo O ceacuterebro oacutergatildeo da razatildeo eacute o resultado de um esforccedilo da
48
vontade em seu percurso de objetivaccedilatildeo A racionalidade humana estaacute a serviccedilo da
vontade que eacute em sua essecircncia grundlos A razatildeo eacute ferramenta para que o homem
enquanto objetidade da vontade consiga satisfazer a seus anseios Em oposiccedilatildeo agrave
filosofia racionalista de entatildeo onde o ldquoreal eacute o racionalrdquo assistimos ao surgimento de
uma filosofia irracionalista das forccedilas inconscientes onde a razatildeo na medida em que eacute
mecanismo da vontade estaacute sempre a serviccedilo desta O comportamento humano eacute
naturalmente egoiacutesta voltado para os proacuteprios interesses e estes por sua vez satildeo
expressatildeo desta vontade aloacutegica desprovida de telos Schopenhauer se mostrava
consciente da singularidade desta sua biparticcedilatildeo do ego e da consequumlente visatildeo de
mundo que ela trouxe agrave luz e enfatizou isto em seus manuscritos berlinenses ldquo[] a
divisatildeo da mente o eu em duas partes diferentes - em vontade como parte essencial e
primaacuteria e em intelecto como secundaacuteria - eacute o grande princiacutepio e meacuterito de minha
filosofia e tambeacutem a principal diferenccedila dos demais sistemasrdquo (MR III 328)
Temos entatildeo os dois pontos de vista do mundo que fundamentam a visatildeo de
Schopenhauer e que posteriormente seratildeo transformados pela teoria nietzscheana da
trageacutedia nos dois impulsos da natureza o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco O primeiro deles eacute o
mundo da individualidade da pluralidade regido pelo que Schopenhauer vai chamar
utilizando-se de um termo retirado da escolaacutestica de principium individuationis
Nesse sentido servindo-me da antiga escolaacutestica denomino
tempo e espaccedilo pela expressatildeo principium individuationis que peccedilo para
o leitor guardar para sempre Tempo e espaccedilo satildeo os uacutenicos pelos quais
aquilo que eacute uno e igual conforme a essecircncia e o conceito aparece como
pluralidade de coisas que coexistem e se sucedem (MVR 171)
No segundo toto genere diferente do primeiro existe a vontade una indivisiacutevel natildeo
submetida ao princiacutepio de razatildeo e por isso sem fundamento
Em apoio a sua tese Schopenhauer invoca ao final do capiacutetulo 46 (Sobre a
nulidade e o sofrimento da vida) dos complementos de MVR a opiniatildeo de diversos
49
pensadores dentre eles Heroacutedoto Platatildeo Teoacutegnis Homero os tragedioacutegrafos gregos
Shakespeare Byron Voltaire Rousseau Faz-se importante neste momento ressaltar que
o filoacutesofo aponta a invenccedilatildeo da trageacutedia pelos gregos como uma expressatildeo desta visatildeo
de mundo ponto de vista que como veremos tambeacutem seraacute adotado pelo primeiro
Nietzsche
Ante tudo mencionarei que os gregos por mais distantes que
estivessem da visatildeo de mundo cristatilde e da alta Aacutesia e por muito que se
mantiveram sob o ponto de vista da afirmaccedilatildeo da vontade se fizeram
profundamente impressionados pela miseacuteria da existecircncia Isso eacute
demonstrado pela invenccedilatildeo da trageacutedia obra deles (MVR II 640)
23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana
Existe poreacutem uma forma de conhecimento que eacute ndash agrave diferenccedila daquela
subordinada ao princiacutepio de razatildeo que percebe os objetos em sua relaccedilatildeo com os outros
objetos do espaccedilo-tempo ndash uma forma mais universal pois mostra o objeto em sua
caracteriacutestica mais geral qual seja a de ser objeto para o sujeito A esta forma de
conhecimento Schopenhauer associa a apreciaccedilatildeo esteacutetica O seu objeto eacute a ideacuteia
platocircnica25
um grau determinado de objetivaccedilatildeo da coisa-em-si
Os diferentes graus de objetivaccedilatildeo da Vontade expressos em
inumeraacuteveis indiviacuteduos e que existem como seus protoacutetipos
inalcanccedilaacuteveis ou formas eternas das coisas que nunca aparecem no
tempo e no espaccedilo meacutedium do indiviacuteduo mas existem fixamente natildeo
submetidos a mudanccedila alguma satildeo e nunca vindo-a-ser enquanto as
coisas nascem e perecem sempre vecircm-a-ser e nunca satildeo os GRAUS DE
OBJETIVACcedilAtildeO DA VONTADE ia dizer natildeo satildeo outra coisa senatildeo as
IDEacuteIAS DE PLATAtildeO (MVR 191)
Esta instacircncia do conhecimento eacute alcanccedilada intuitivamente pela contemplaccedilatildeo
esteacutetica da natureza ou pela facilitaccedilatildeo de uma obra de arte Desta forma as obras de
25
Conforme o filoacutesofo ldquo A expressatildeo mais breve e sucinta daquele famoso dogma platocircnico foi dada por
Dioacutegenes Laeacutercio (II 12) Platatildeo ensina que as ideacuteias da natureza existem como protoacutetipos jaacute as demais
coisas apenas se assemelham a elas e satildeo suas coacutepiasrdquo (MVR 191)
50
arte na teoria schopenhaueriana satildeo uma exposiccedilatildeo destes graus de objetivaccedilatildeo da
vontade as ideacuteias Ao contraacuterio da criacutetica agrave arte presente na repuacuteblica platocircnica - onde a
arte seria uma coacutepia mais imperfeita da ideacuteia por retratar o mundo fenomecircnico sua
coacutepia direta - Schopenhauer aproxima as obras artiacutesticas das ideacuteias eternas as define
como suas expressotildees diretas Contudo a intuiccedilatildeo das ideacuteias exige um estado de
consciecircncia diferente do estado comum Neste uacuteltimo o aparelho cognitivo sob a eacutegide
da vontade estaacute voltado para a realizaccedilatildeo dos interesses individuais e entatildeo se
movimenta no mundo guiado por estes interesses ldquoCaso entretanto a Ideacuteia deva de
alguma maneira tornar-se conhecimento e ser conhecida pelo sujeito entatildeo isso soacute
pode ocorrer graccedilas agrave supressatildeo da individualidade no sujeito que conhecerdquo (MB 30)
A forma artiacutestica de conhecimento cujo possuidor eacute o denominado gecircnio estaacute
associada a um desprendimento das reacutedeas da vontade O gecircnio eacute entatildeo aquele que livre
dos interesses da vontade percebe as ideacuteias por traacutes dos objetos alheio aos princiacutepios
de razatildeo e de individuaccedilatildeo e traduz este objeto na obra de arte O observador esteacutetico eacute
portanto um partiacutecipe da genialidade na medida em que intui a ideacuteia por traz do objeto
observado conforme tambeacutem ao seu grau de desinteresse26
Durante a apreciaccedilatildeo
esteacutetica o homem se vecirc livre momentaneamente daquela parte de si que eacute a causadora
de todo o sofrimento individual e coletivo a vontade para transformar-se em um ldquopuro
sujeito de conhecimentordquo Este estado de satisfaccedilatildeo decorrente da suspensatildeo da vontade
individualizada eacute o sentimento do belo
Aquilo que se poderia nomear o lado mais belo e a pura alegria
da vida precisamente porque nos arranca da existecircncia real e nos
transforma em espectadores desinteressados diante dela eacute o puro
conhecimento que permanece alheio a todo querer eacute a fruiccedilatildeo do belo a
alegria autecircntica na arte Mas mesmo isso requer dispositivos raros e
cabe apenas a pouquiacutessimos e mesmo para estes eacute um sonho
passageiro (MVR 404)
26
Vemos nesta forma de associaccedilatildeo entre conhecimento e interesse mais uma heranccedila kantiana no caso
provinda da definiccedilatildeo de belo da criacutetica da faculdade de juiacutezo
51
- - - - - - - - - -
Ao descrever a apreciaccedilatildeo artiacutestica como um ato cognitivo Schopenhauer
preocupa-se em diferenciaacute-la do conhecimento cientiacutefico De fato boa parte das
consideraccedilotildees sobre a arte eacute dedicada ao esclarecimento desta diferenccedila
Podemos por conseguinte definir a arte como o modo de
consideraccedilatildeo das coisas independente do princiacutepio de razatildeo em oposiccedilatildeo
justamente agrave consideraccedilatildeo que o segue que eacute o caminho da experiecircncia e
da ciecircncia O modo de consideraccedilatildeo que seque o princiacutepio de razatildeo eacute o
racional o uacutenico que vale e que auxilia na vida praacutetica e na ciecircncia o
modo apartado do conteuacutedo do princiacutepio de razatildeo eacute o genial o uacutenico que
vale e que auxilia na arte (MB 59)
No caso da trageacutedia cujo objetivo eacute o conhecimento do homem e de suas relaccedilotildees a
ciecircncia que mais se assemelha a esta forma artiacutestica seria a histoacuteria Esta natildeo tem como
objetivo a demonstraccedilatildeo da essecircncia do homem em sua forma atemporal ou seja a
demonstraccedilatildeo daquilo que fundamenta toda accedilatildeo humana independente dos
acontecimentos empiacutericos
[ ]toda ciecircncia no sentido proacuteprio do termo compreendida como
conhecimento sistemaacutetico guiado pelo fio condutor do princiacutepio de
razatildeo parte sempre de dois dados baacutesicos um deles sem exceccedilatildeo eacute o
princiacutepio de razatildeo em uma de suas figuras como oacuterganon outro eacute o
objeto especiacutefico de cada uma delas enquanto problema (Schopenhauer
MVR 73)
Desta forma a histoacuteria teria a lei de motivaccedilatildeo e o os fatos humanos como oacuterganon e
problemas respectivamente Entretanto interessa a Schopenhauer um conhecimento
mais universal que soacute pode ser apresentado pela arte e que aponta por sua proximidade
agrave essecircncia daquilo que eacute a uma ldquoiacutendole imutaacutevelrdquo das manifestaccedilotildees
Podemos ver entatildeo que sendo consideradas como meios para o
conhecimento da essecircncia da humanidade arte poeacutetica e histoacuteria possuem todavia
objetos de conhecimento diferentes A primeira quando produzida pelo verdadeiro
gecircnio tenciona manifestar a ideacuteia por traacutes destes conceitos a ideacuteia de homem de
humanidade intuitivamente independentemente do princiacutepio de razatildeo do devir como
52
objeto puro de conhecimento alheio agrave corrente dos motivos em suas caracteriacutesticas
essenciais atemporais A histoacuteria por sua vez segue o rastro do princiacutepio de razatildeo
procurando apresentar o fenocircmeno humano em suas relaccedilotildees descrever-lhe em suas
situaccedilotildees particulares individuais empiacutericas Nas palavras de Schopenhauer
Arte e ciecircncia tecircm em uacuteltima instacircncia o mesmo estofo a saber
justamente o mundo tal como ele se posta diante de noacutes ou antes uma
parte destacada dele quanto ao todo do mundo soacute a filosofia o
considera Contudo a grande diferenccedila entre ciecircncia e arte reside na
maneira como elas consideram o mundo e trabalham seu estofo Tal
oposiccedilatildeo pode ser indicada com uma palavra a ciecircncia considera os
fenocircmenos do mundo seguindo o fio condutor do princiacutepio de razatildeo ao
passo que a arte coloca totalmente de lado o princiacutepio de razatildeo
independente dele para que assim a ideacuteia entre em cena
(SCHOPENHAUER MB 57)
Podemos notar que a valorizaccedilatildeo do que eacute imutaacutevel alheio agrave idealidade do tempo eacute a
raiz da valorizaccedilatildeo do conhecimento artiacutestico frente ao histoacuterico Este uacuteltimo natildeo visa o
acesso aos modelos eternos pois seu objeto satildeo os acontecimentos individuais do
mundo fenomecircnico que satildeo eventos meramente aparentes se considerarmos a
idealidade do tempo O que se manifesta no fluxo temporal do mundo fenomecircnico satildeo
sempre as mesmas formas eternas as ideacuteias entretanto com roupagens diferentes o
mesmo homem enquanto objetivaccedilatildeo da vontade a mesma humanidade Onde quer que
seja e em qualquer momento especiacutefico sua essecircncia eacute a mesma e esta essecircncia eacute o que
deve ser alvo de uma compreensatildeo privilegiada de entendimento e natildeo as suas diversas
manifestaccedilotildees Por este motivo Schopenhauer deixando explicito o seu chamado anti-
historicismo afirma que ldquose algueacutem jaacute lera Heroacutedoto jaacute estudara bastante histoacuteria e
efeitos filosoacuteficos Pois laacute jaacute estaacute tudo o que compotildee a posterior histoacuteria mundial a
atividade o obrar o sofrimento e o destino do gecircnero humano (Schopenhauer MVR
II 496) Podemos notar claramente a oposiccedilatildeo entre a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana
da histoacuteria e as tendecircncias de seu tempo principalmente presentes na filosofia de
Hegel Este de acordo com a criacutetica de Schopenhauer ignorando a filosofia critica de
53
Kant toma o fenocircmeno histoacuterico como coisa em si ao atribuir-lhe uma unidade de
consciecircncia Entretanto unidade de consciecircncia eacute um atributo dos indiviacuteduos e natildeo do
gecircnero humano Estas filosofias de acordo com o Schopenhauer satildeo frutos do realismo
otimista queldquo tomam o mundo como perfeitamente real e potildeem como fim do mesmo
uma miseraacutevel felicidade terrena (Schopenhauer MVR II 495)
- - - - - - - - - -
Colocando de lado o fio condutor do princiacutepio de razatildeo e mirando-se no
conhecimento da ideacuteia imutaacutevel atemporal encontramos a trageacutedia como fenocircmeno que
apresenta agrave intuiccedilatildeo o homem e sua condiccedilatildeo Eacute a forma de arte que tem como objeto o
grau mais elevado de objetivaccedilatildeo da vontade A intenccedilatildeo do artista traacutegico eacute de acordo
com Schopenhauer transmitir a ideacuteia intuiacuteda tarefa que seraacute bem sucedida de acordo
com a habilidade de utilizaccedilatildeo da teacutecnica artiacutestica por um lado e com a capacidade de
percepccedilatildeo esteacutetica do apreciador por outro O tragedioacutegrafo diferentemente do
historiador que relata os fatos empiacutericos explicitando seus motivos e consequumlecircncias
deve para obter o efeito esperado em sua obra expor uma situaccedilatildeo tal em que o homem
possa manifestar todas as suas potencialidades e dessa forma transmitir ao apreciador
esteacutetico a ideacuteia representada ldquoO poeta expotildee com escolha e intenccedilatildeo caracteres
significativos em situaccedilotildees significativas jaacute o historiador toma aos dois como eles
aparecemrdquo (Schopenhauer MVR 323) A qualidade da obra traacutegica seraacute julgada entatildeo
pela sua capacidade de representaccedilatildeo da ideacuteia de humanidade e Schopenhauer qualifica
as trageacutedias de acordo com esta capacidade Natildeo existe em seu sistema uma
consideraccedilatildeo histoacuterica da produccedilatildeo traacutegica Ele natildeo leva em consideraccedilatildeo as condiccedilotildees
histoacutericas no que se refere agrave origem ou mesmo quanto ao desenvolvimento desta forma
artiacutestica e a avalia unicamente conforme o seu efeito E neste ponto a trageacutedia apresenta
uma peculiaridade frente agraves demais artes ela eacute a forma de arte que provocaraacute o
54
sentimento do sublime Como vimos o correlato subjetivo de toda apreciaccedilatildeo esteacutetica eacute
o sentimento causado pela anulaccedilatildeo da vontade individual mediante a elevaccedilatildeo ao
estado de puro sujeito de conhecimento O sublime assim como o belo satildeo expressotildees
deste sentimento que se diferenciam unicamente por sua forma
Se tal estado surgiu por si mesmo na medida em que o objeto foi
solicitado e se apresentou ndash e fomos postos sem resistecircncia pelo mero
desaparecer da vontade da consciecircncia no estado do conhecer puro ndash ou
se primeiro foi despertado por elevaccedilatildeo livre consciente sobre a vontade
na medida em que o objeto contemplado tem com esta uma relaccedilatildeo
desfavoraacutevel hostil cuja prossecuccedilatildeo suprimiria a contemplaccedilatildeo ndash aiacute
reside a diferenccedila entre o belo e o sublime (MB 119)
A impressatildeo do sublime eacute portanto uma forma de colocar-se no estado do puro conhecer
ao nos depararmos com o objeto que por sua apresentaccedilatildeo sugere uma ldquorelaccedilatildeo hostilrdquo
com o indiviacuteduo27
Jaacute vimos que a visatildeo de mundo de Schopenhauer identifica a vida humana como
sofrimento infindaacutevel no entanto ao elaborar sua definiccedilatildeo da trageacutedia Schopenhauer
aponta para o desfecho moral de sua obra (livro IV de MVR) e afirma que a trageacutedia
melhor eacute aquela que expotildee a renuacutencia agrave vida O filoacutesofo compara obras contemporacircneas
agraves antigas e afirma sua preferecircncia por estas em decorrecircncia da capacidade que elas tecircm
de provocar esta a renuacutencia agrave vida Vejamos a descriccedilatildeo que Schopenhauer faz da
trageacutedia
No aacutepice da arte poeacutetica tanto no que se refere agrave grandeza do seu
efeito quanto agrave dificuldade da sua realizaccedilatildeo deve-se ver a trageacutedia e de
fato ela assim foi reconhecida Observe-se aqui algo de suma significaccedilatildeo
para toda a nossa visatildeo geral de mundo o objetivo dessa suprema
realizaccedilatildeo poeacutetica natildeo eacute outro senatildeo a exposiccedilatildeo do lado terriacutevel da vida
27
Vemos na teoria do sublime Schopenhaueriana mais uma vez a influecircncia de Kant Schopenhauer iraacute
identificar duas formas de sublime e utilizar-se-aacute dos termos kantianos ldquosublime dinacircmicordquo e ldquosublime
matemaacuteticordquo para diferenciaacute-los No primeiro o objeto de apreciaccedilatildeo se mostra a princiacutepio uma ameaccedila
ao observador ldquoum poder que suprimiria qualquer resistecircnciardquo(MB 104) No sublime matemaacutetico o
segundo o objeto eacute visto em sua incomensuraacutevel grandiosidade diante da qual o observador infere a sua
infimidade A afinidade entre Schopenhauer e a teoria criacutetica do juiacutezo eacute expressa em sua obra principal
ldquoDe longe o que haacute de mais excelente na criacutetica da faculdade de juiacutezo eacute a teoria do sublime Ela eacute
incomparavelmente mais bem sucedida que a teoria do belo e daacute natildeo apenas como esta o meacutetodo geral
da investigaccedilatildeo mas tambeacutem um trecho do correto caminho de maneira que embora natildeo forneccedila a
soluccedilatildeo propriamente dita do problema chega bem perto delardquo(MVR 660)
55
a saber o inominado sofrimento a miseacuteria humana o triunfo da maldade
o impeacuterio ciacutenico do acaso a queda inevitaacutevel do justo e do inocente E
em tudo isso se encontra uma indicaccedilatildeo significativa da iacutendole do mundo
e da existecircncia Eacute o conflito da Vontade consigo mesma que aqui
desdobrado plenamente no grau mais elevado de sua objetidade entra em
cena de maneira aterrorizante Ele se torna visiacutevel no sofrimento da
humanidade em parte produzido por acaso e erro que se apresentam
como os senhores do mundo e personificados como destino e perfiacutedia os
quais aparecem enquanto intencionalidade em parte advindo da
humanidade mesma por meio dos entrecruzados esforccedilos voluntaacuterios dos
indiviacuteduos e da maldade e perversatildeo da maioria Trata-se de uma uacutenica e
mesma Vontade que em todos vive e aparece cujos fenocircmenos
entretanto combatem entre si e se entredevoram [] Por fim esse
conhecimento no indiviacuteduo purificado e enobrecido pelo sofrimento
mesmo atinge o ponto no qual o fenocircmeno o veacuteu de maia natildeo mais o
ilude Ele vecirc atraveacutes da forma do fenocircmeno do principium
individuationis com o que tambeacutem expira o egoiacutesmo nele baseado Com
isso os ateacute entatildeo poderosos MOTIVOS perdem o seu poder e em vez
deles o conhecimento perfeito da essecircncia do mundo atuando como
quietivo da vontade produz a resignaccedilatildeo a renuacutencia natildeo apenas da vida
mas de toda a vontade de vida mesma (Schopenhauer MVR 333)
Percebemos nesta descriccedilatildeo que a trageacutedia aleacutem de expor a visatildeo de mundo construiacuteda
pelo filoacutesofo tem como fim uacuteltimo provocar um efeito moral no apreciador esteacutetico
qual seja a renuacutencia ao mundo Vejamos entatildeo a relaccedilatildeo entre a visatildeo de mundo
schopenhaueriana o efeito esteacutetico provocado pela trageacutedia e o projeto moral existente
por traacutes de suas teorias
24 A finalidade moral da trageacutedia
Para que possamos perceber a relaccedilatildeo intriacutenseca entre cosmologia metafiacutesica
arte e a eacutetica faz-se necessaacuterio uma pequena excursatildeo sobre esta uacuteltima Que todo o
sistema schopenhaueriano possui um viacutenculo inseparaacutevel com o seu projeto eacutetico eacute fato
que natildeo passa despercebido a seus comentadores Um projeto de juventude eacute descrito
por Safranski (1991 188-198) Young (2006 07 200) Aramayo (2001 56-59) e
Cartwright (Janaway 1999 252) como uma premissa no desenvolvimento da filosofia
56
schopenhaueriana trata-se do projeto de uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Young a descreve
como uma transcendecircncia do mundo ordinaacuterio para o ldquomundo verdadeirordquo Esta
consciecircncia melhor poderia ser experimentada atraveacutes da apreciaccedilatildeo artiacutestica e da
consciecircncia eacutetica ambas originadas do desvelamento de maia Assim Schopenhauer a
descreve conforme citaccedilatildeo de Young (2006 9) ldquopersonalidade e causalidade existem
neste mundo compreensiacutevel temporal sensorial Mas a consciecircncia melhor me leva a
um mundo onde nem personalidade nem sujeito ou objeto existem maisrdquo Safransky
descreve a consciecircncia melhor como um estado semelhante ao ecircxtase miacutestico
Este arrebatamento estaacute livre das coordenadas espaccedilo-temporais
cujo ponto de interseccedilatildeo eacute o eu corporal apartado do espaccedilo do tempo
do eu Os miacutesticos chamam a esta experiecircncia ldquonunc stansrdquo agora
permanente A intensidade deste presente natildeo conhece princiacutepio nem fim
e soacute pode desaparecer porque noacutes desaparecemos dele (Safransky1991
190)
Conforme Aramayo tanto a figura do gecircnio como a do santo satildeo expressotildees do
reconhecimento desta consciecircncia melhor e a filosofia de Schopenhauer pretende-se
uma terceira via que tambeacutem apontaria para este estado de consciecircncia A caracteriacutestica
primordial deste estado eacute o desprendimento dos desejos individuais e o comportamento
virtuoso que adveacutem deste desprendimento Eacute na esteira do entendimento desta
consciecircncia melhor que as bases eacutetico-metafiacutesicas do filoacutesofo foram elaboradas Em
apoio a esta afirmaccedilatildeo Aramayo apresenta duas citaccedilotildees a partir das quais em
momentos distintos de sua vida Schopenhauer apresenta seu projeto de identificaccedilatildeo
entre eacutetica e metafiacutesica Nos escritos de Juventude em 1813 vemos o projeto
Em meu espiacuterito encontra-se em gestaccedilatildeo uma filosofia onde
metafiacutesica e eacutetica devem constituir uma soacute coisa cuja dissociaccedilatildeo eacute tatildeo
errocircnea como agrave da alma e do corpo (Aramayo 2001 41)
Jaacute nos escritos tardios especificamente em seu ensaio de 1836 Sobre a vontade na
natureza veremos Schopenhauer identificar esta uniatildeo
57
Tatildeo soacute esta metafiacutesica que jaacute eacute eacutetica por si soacute ao estar construiacuteda
com esse material primordialmente eacutetico que se supotildee a vontade
constitui real e imediatamente um sustentaacuteculo para a eacutetica em vista de
que poderia haver colocado em minha metafiacutesica o nome de eacutetica (apud
Aramayo 2001 43)
Cartwright aponta ainda na uacuteltima obra schopenhaueriana de 1851 Parerga e
paralipomena a afirmaccedilatildeo de que a ldquosua real filosofia culminou em um ponto de vista
altamente eacutetico-metafiacutesicordquo (Janaway 1999 252)
Na filosofia schopenhaueriana como vimos o indiviacuteduo humano eacute uma
expressatildeo da objetidade da vontade e seu ponto de partida por natureza eacute a satisfaccedilatildeo
manutenccedilatildeo e o prolongamento desta vontade de vida Este estado de consciecircncia onde
todos os esforccedilos estatildeo voltados para a satisfaccedilatildeo da vontade individual eacute a causa de
todo o sofrimento do mundo Aprisionado agrave perspectiva fenomecircnica do mundo o
homem natildeo percebe a unidade da vontade e age de acordo com os motivos estabelecidos
pela sua proacutepria individualidade Para este homem existe uma separaccedilatildeo profunda entre
o proacuteprio eu e os objetos do mundo
Por meio da intuiccedilatildeo que o ceacuterebro efetua a partir dos dados do sentido
e portanto mediatamente conhecemos o proacuteprio corpo como um objeto no
espaccedilo e por meio do sentido interno conhecemos a seacuterie sucessiva de nossos
desejos e atos de vontade que surgem por ocasiatildeo dos motivos externos e
finalmente conhecemos os muacuteltiplos movimentos fortes ou fracos da proacutepria
vontade aos quais todos os sentimentos internos deixam-se reconduzir Isto eacute
tudo pois o conhecer natildeo eacute ele proacuteprio de novo conhecido (Schopenhauer
2001 213)
Eacute deste estado que surge todo o comportamento humano considerado pelo filoacutesofo
como comportamento antimoral Egoiacutesmo eacute o nome dado ao resultado da influecircncia do
princiacutepio de individuaccedilatildeo sobre o comportamento dos homens Este egoiacutesmo chega ao
extremo de o homem considerar-se o centro do mundo e transformar o seu querer em
mandamento para os objetos exteriores ldquoalguns homens seriam capazes de assassinar
um outro soacute para engraxar suas botas com a gordura delerdquo (SFM 124) Nestas
58
condiccedilotildees ldquose fosse dado pois a um indiviacuteduo escolher entre a sua proacutepria aniquilaccedilatildeo
e a do mundo nem preciso dizer para onde a maioria se inclinariardquo (SFM 121) Da
forma como ocorre com o egoiacutesmo a ilusatildeo fenomecircnica daacute origem a outro sentimento
o oacutedio Estes dois egoiacutesmo e oacutedio satildeo os princiacutepios originadores de todos os viacutecios do
homem Desta leitura pessimista da natureza humana Schopenhauer retira seu conceito
perspectivista das ideacuteias de bem e mal satildeo consideradas boas ou maacutes as coisas que
agradam ou desagradam agrave vontade do indiviacuteduo ldquoPortanto tudo o que eacute favoraacutevel agrave
vontade em alguma de suas exteriorizaccedilotildees e satisfaz seus fins eacute pensado pelo conceito
bom por mais diferentes que essas coisas possam ser noutros aspectosrdquo (MVR 459)
Este estado eacute definido por Schopenhauer como ldquoafirmaccedilatildeo da vontaderdquo nele o amor-
proacuteprio Eros dita as regras de comportamento Definido o Eros enquanto
fundamentador das accedilotildees antimorais humanas sendo este surgido de uma percepccedilatildeo
subordinada ao principium individuationis entendemos o motivo pelo qual o filoacutesofo
rejeita a validade de qualquer moral baseada em argumentos abstratos
Uma moral sem fundaccedilatildeo portanto um simples moralizar natildeo pode
fazer efeito pois natildeo motiva Uma moral entretanto que motiva soacute pode fazecirc-
lo atuando sobre o amor proacuteprio O que entretanto nasce daiacute natildeo tem valor
moral algum Segue-se assim que mediante moral e conhecimento abstrato em
geral nenhuma virtude autecircntica pode fazer efeito mas esta tem de brotar do
conhecimento intuitivo o qual reconhece no outro indiviacuteduo a mesma essecircncia
que a proacutepria (MVR 468)
Desta forma em contraposiccedilatildeo ao comportamento antimoral produzido
pela ilusatildeo causada pelo principium individuationis o filoacutesofo apresenta o outro lado da
moeda a accedilatildeo moral Esta seria a accedilatildeo praticada em funccedilatildeo do bem-estar de um outro
indiviacuteduo tendo em vista que as accedilotildees praticadas em funccedilatildeo do mal-estar do outro ou
do bem e mal estar de si mesmo satildeo justamente as accedilotildees antimorais baseadas no
egoiacutesmo ou no oacutedio ldquoTodo amor que natildeo eacute compaixatildeo eacute amor-proacuteprio Amor-proacuteprio eacute
59
Eros compaixatildeo eacute Aacutegaperdquo (MVR 478) Todo ato moral eacute por consequumlecircncia um ato de
compaixatildeo ou seja um ato que eacute praticado a partir da percepccedilatildeo do sofrimento do
outro Entretanto a percepccedilatildeo do sofrimento alheio natildeo eacute dada atraveacutes do conhecimento
abstrato E somente por uma percepccedilatildeo intuitiva direta do sofrimento do outro como o
meu proacuteprio sofrimento que surge a compaixatildeo Tal percepccedilatildeo assim como a
apreciaccedilatildeo esteacutetica tem origem em uma visatildeo que vai aleacutem do principium
individuationis Desfaz-se a ilusatildeo causada por este princiacutepio de que existe em realidade
um eu e um natildeo-eu ilusatildeo essa que eacute originada pelos condicionantes do conhecimento
tempo espaccedilo e causalidade Livre do principium individuationis natildeo haacute mais
diversidade natildeo existe mais indiviacuteduo passado futuro motivaccedilotildees existe apenas o
instante presente do ser a vontade Natildeo nos vemos mais como uma vontade separada de
outras ao contraacuterio vemos nos outros a mesma vontade pela qual somos Necessaacuterio
faz-se ressaltar que este conhecimento intuitivo que demonstra a unidade da vontade
em todo indiviacuteduo eacute entendimento de verdade tatildeo profundo que supera qualquer
especulaccedilatildeo abstrata do conhecimento e por isso seu efeito eacute marcante
Para o conhecimento que vecirc atraveacutes do principium individuationis uma
vida feliz no tempo presenteada pelo acaso ou conquistada deste pela
sabedoria em meio ao sofrimento de inumeraacuteveis outros eacute apenas um sonho de
mendigo no qual eacute um rei poreacutem tem de acordar e reconhecer que era tatildeo-soacute
uma ilusatildeo fugidia aquilo que o separava do sofrimento da sua vida (MVR
452)
A experimentaccedilatildeo deste estado de consciecircncia faz-nos perceber a vida como engano
luta infinita e provoca em noacutes a renuacutencia a esta mesma vida agrave vontade de viver O
homem natildeo mais afirma a sua essecircncia mas a repudia
Agrave semelhanccedila do estado de negaccedilatildeo da vontade o proacuteprio estado de
contemplaccedilatildeo esteacutetica pressupotildee um desinteresse pelos mandamentos da vontade
60
individual um desligamento do caraacuteter egoiacutestico do sujeito empiacuterico28
Para que possa
perceber a Ideacuteia por traacutes do objeto contemplado o observador deve estar em um estado
de consciecircncia que se vecirc livre dos grilhotildees da vontade Neste estado ele eacute alccedilado para
aleacutem da individualidade torna-se puro sujeito de conhecimento Para que este estado se
manifeste eacute imprescindiacutevel natildeo estar interessado nas relaccedilotildees do objeto apreciado seja
com outros objetos seja consigo mesmo O apreciador esteacutetico natildeo se preocupa com o
ldquoonderdquo o ldquocomordquo o ldquoporquecircrdquo dos objetos Estas formas de interjeiccedilatildeo sinalizam para a
relaccedilatildeo dos objetos com o mundo O apreciador esteacutetico no momento da apreciaccedilatildeo
tem em vista somente o ldquoquerdquo do objeto transforma-se em um ldquoolho que vecircrdquo livre do
princiacutepio de individuaccedilatildeo eacute o puro sujeito de conhecimento Vemos nestes dois estados
(o esteacutetico e o compassivo) exemplos de estados de consciecircncia que por suas
caracteriacutesticas de alccedilarem o indiviacuteduo a uma anulaccedilatildeo do sofrimento fazem parte do
projeto de juventude de estabelecer uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Percebemos entatildeo que a
consideraccedilatildeo esteacutetica e a consideraccedilatildeo eacutetica possuem em comum esta caracteriacutestica da
consciecircncia de se apartar do princiacutepio de individuaccedilatildeo
No caso da trageacutedia como descreve Schopenhauer seu fim uacuteltimo eacute despertar a
compaixatildeo no apreciador Desta forma o filoacutesofo associa agrave trageacutedia um efeito singular e
adverso das demais artes ou pelo menos reconhece na trageacutedia a arte capaz de
demonstrar a semelhanccedila entre os modos de consideraccedilatildeo artiacutestico e eacutetico Ao ilustrar o
conflito das vontades no mundo atraveacutes da exposiccedilatildeo do sofrimento humano a trageacutedia
cumpre seu papel artiacutestico ao expor a ideacuteia de humanidade Aleacutem deste atributo
podemos dizer que a trageacutedia tem que cumprir ainda seu papel moral ao causar no
28
Neste ponto de semelhanccedila eacute fundamental apontar mais uma vez a heranccedila kantiana Nas palavras de
Barboza (2001 82) ldquoA negaccedilatildeo da Vontade diante da beleza realmente obedece a uma leitura do
conceito criacutetico de desinteresse Quando Kant diz que o belo eacute aquilo que satisfaz bdquosem nenhum
interesse‟ o autor de O mundo leu essa expressatildeo como equivalente da negaccedilatildeo do querer visto que
interesse e motivo satildeo conceitos intercambiaacuteveis [] e a vontade neutraliza-se desinteressa-se ou seja eacute
indeterminaacutevel por motivos na contemplaccedilatildeo da Ideacuteia do belordquo
61
espectador a renuacutencia a toda vontade O modelo exemplar da trageacutedia eacute para
Schopenhauer a trageacutedia cristatilde onde o heroacutei conscientemente abandona o querer e
conseguintemente a vida Na trageacutedia antiga havia somente a identificaccedilatildeo do
sofrimento humano e sua exposiccedilatildeo A renuacutencia agrave vontade de vida eacute caracteriacutestica das
trageacutedias posteriores ao advento cristatildeo Schopenhauer exemplifica O priacutencipe de
Calderoacuten Gretchen em Fausto A Donzela de Orleans a Noiva de Messina etc Assim
ldquotoda a exposiccedilatildeo traacutegica eacute para o espectador um chamado agrave resignaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo livre
da Vontade de vida Somente a eacutetica pode tornar tudo isso mais compreensiacutevelrdquo (MB
223) Vemos entatildeo de forma clara na teoria da trageacutedia de Schopenhauer um momento
onde ocorre a coalizatildeo dos fundamentos metafiacutesicos de sua filosofia do pessimismo
originado nestes fundamentos e da atitude eacutetica existente por traacutes de seu pensamento
25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera
Faz-se necessaacuterio aqui uma incursatildeo sobre a teoria da muacutesica de Schopenhauer
tendo em vista de que ela ocuparaacute um papel decisivo na teoria nietzscheana da trageacutedia
As relaccedilotildees que Nietzsche estabelece entre a muacutesica a vontade as palavras e
finalmente a trageacutedia satildeo delineadas como veremos pela metafiacutesica schopenhaueriana
da muacutesica No intuito de perceber estas relaccedilotildees propomos aqui um breve esboccedilo da
teoria da muacutesica na filosofia de Schopenhauer
A filosofia da muacutesica encontra seu lugar ao final do terceiro livro de MVR bem
como no capiacutetulo 39 dos complementos fechando assim as consideraccedilotildees de
Schopenhauer sobre a metafiacutesica do belo e as artes29
29
Na esteira de Lydia Goehr (Jacquette 1996 200) ressaltamos que tendo em vista a influecircncia que sua
filosofia da muacutesica exerceu sobre o pensamento artiacutestico e filosoacutefico posterior e comparada agrave dimensatildeo
de sua obra as consideraccedilotildees sobre a muacutesica ocupam um espaccedilo diminuto em sua obra
62
Para o filoacutesofo da vontade a muacutesica eacute a arte que pela natureza de seu objeto de
expressatildeo natildeo encontra lugar apropriado dentro do sistema das demais artes Estas
conforme sua competecircncia em traduzir uma determinada objetidade da vontade uma
ideacuteia satildeo classificadas hierarquicamente A muacutesica entretanto figura aleacutem desta
hierarquizaccedilatildeo pois representa o conceitualmente irrepresentaacutevel ldquoa coacutepia de um
modelo que ele mesmo nunca pode ser representado imediatamenterdquo(MVR 338) a
Vontade mesma Esta arte eacute especialmente considerada devido agrave peculiaridade uacutenica de
seu efeito esteacutetico ldquoeacute uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente
sobre o mais iacutentimo do homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele
como se fora uma linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do
mundo intuitivordquo (MVR 336) A muacutesica estaacute aleacutem da intuiccedilatildeo pois representa aquilo
que estaacute aleacutem desta forma agrave semelhanccedila das ideacuteias que satildeo objetivaccedilotildees imediatas da
vontade a muacutesica eacute tambeacutem uma destas objetivaccedilotildees representaccedilatildeo imediata da coisa
em si O que o compositor apresenta atraveacutes da muacutesica eacute a essecircncia mais iacutentima do
mundo em uma ldquolinguagem natildeo compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo
magneacutetico fornece informaccedilotildees sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito
algumrdquo (MVR 342) Por estar em um acircmbito inalcanccedilaacutevel pelo conceito a muacutesica
atraveacutes de sua linguagem arrebata o homem de forma mais marcante e direta e ateacute
mesmo a explanaccedilatildeo sobre a muacutesica estaacute condenada agrave pobreza e agrave insuficiecircncia Desta
forma o filoacutesofo se utilizaraacute de uma analogia para explanar sobre a muacutesica ie
procederaacute a uma explicaccedilatildeo da muacutesica atraveacutes de um paralelismo entre ela as ideacuteias e o
mundo enquanto objetivaccedilotildees da vontade
Esta analogia expressa atraveacutes de diversos exemplos leva em consideraccedilatildeo que
em suas duas formas de objetivaccedilatildeo (o mundo e a muacutesica) a Vontade deixa transparecer
semelhanccedilas Na muacutesica os tons mais graves aproximam-se ao que satildeo no mundo os
63
graus mais baixos de objetivaccedilatildeo da vontade quais sejam a natureza inorgacircnica A lei
da harmonia estabelece que os tons agudos satildeo originados daquele tom mais grave
fundamental Da mesma forma no mundo os corpos tecircm como fonte e sustentaacuteculo a
natureza inorgacircnica ldquoagrave partir da qual tudo se eleva e desenvolverdquo(MB 230) As vozes
intermediaacuterias da melodia que estatildeo entre o baixo fundamental e a voz condutora
correspondem no mundo aos demais graus de objetivaccedilatildeo da vontade na natureza ldquoAs
vozes mais proacuteximas do baixo correspondem aos graus mais baixos ou seja os corpos
ainda inorgacircnicos poreacutem jaacute se exteriorizando de diversas maneiras As vozes mais
elevadas por sua vez representam os reinos vegetal e animalrdquo(MB 231)
O objeto de representaccedilatildeo da muacutesica eacute a Vontade e esta por sua vez eacute
intraduziacutevel atraveacutes das palavras da configuraccedilatildeo racional pois a razatildeo natildeo pode
alcanccedilar sua profundidade Trata-se de ldquouma linguagem universal cuja
compreensibilidade eacute inata e cuja clareza ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo
(MB 228) Diante desta caracteriacutestica cognitiva a muacutesica natildeo deve se inspirar no texto
nas palavras a natildeo ser para ilustraacute-las e conceder-lhes assim significaccedilatildeo mais
profunda A muacutesica natildeo deve ser composta com base em conceitos ou em objetos e
ocorrecircncias do mundo pois trata-se de uma expressatildeo da ordem do essencial do
universal ldquoela eacute a alma mais interior dessas ocorrecircncias sem o corpordquo (MB 235) Os
objetos e situaccedilotildees do mundo satildeo manifestaccedilotildees e portanto sua representaccedilatildeo
conceitual satildeo reproduccedilotildees circunstanciais da essecircncia do mundo expressa pela muacutesica
Daiacute se compreende o fato de a muacutesica realccedilar em cada
pintura sim em cada cena da vida efetiva e do mundo o
aparecimento de uma significaccedilatildeo mais elevada e tanto mais
quanto mais anaacuteloga eacute sua melodia ao espiacuterito iacutentimo do
fenocircmeno dado A muacutesica combina com tudo em todas as
exposiccedilotildees Nada lhe pode ser estranho pois exprime a essecircncia
de todas as coisas Caso se soe uma muacutesica que combine com
alguma cena da vida humana ou da natureza destituiacuteda de
conhecimento ou com alguma accedilatildeo acontecimento ambiente ou
64
alguma imagem ndash entatildeo ela revela o sentido secreto dessa cena e eacute
seu comentaacuterio mais correto e claro (MB 235)
Esta caracteriacutestica que daacute agrave muacutesica um privileacutegio cognitivo sobre as demais formas
artiacutesticas eacute o que delineia as consideraccedilotildees do filoacutesofo sobre a oacutepera30
A oacutepera ideal eacute
portanto aquela onde o livreto estaacute para a muacutesica como um exemplo para um conceito
geral A muacutesica tem a funccedilatildeo de expor ldquoo profundo e misterioso sobre a essecircncia
iacutentimardquo daquilo que a palavra exemplifica O compositor que maior ecircxito conseguiu
neste sentido conforme o filoacutesofo foi Rossini cuja ldquomuacutesica fala tatildeo distinta e
puramente a sua linguagem PROacutePRIA visto que quase natildeo precisa de palavras e por
conseguinte provoca todo o seu efeito mesmo se executada soacute com instrumentosrdquo
(MVR 344)
Vemos entatildeo a muacutesica como a mais profunda das artes cujo efeito eacute o mais
avassalador e que portanto quando conjugada com outras formas de expressatildeo como a
oacutepera deve formar a base e orientar a sua elaboraccedilatildeo Entretanto ao contraacuterio da
trageacutedia cujo fim eacute o estiacutemulo agrave renuacutencia da vontade de viver a muacutesica segundo a
metafiacutesica exposta por Schopenhauer ldquonatildeo faz mais do que agradar a vontade de viver
jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo seus ecircxitos e ao final expressa sua
satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509)
30
ldquoAo adotar esta atitude Schopenhauer transtorna toda a tradiccedilatildeo jaacute secular que havia afirmado natildeo
poucas vezes desde os tempos do nascimento da oacutepera o predomiacutenio da palavra sobre a muacutesica e em
consequumlecircncia a subordinaccedilatildeo desta uacuteltima agrave primeirardquo (Fubini 1988 289)
65
3 A teoria da trageacutedia do Jovem Nietzsche
Debalde espreitamos por uma raiz
vigorosamente ramificada por um pedaccedilo
de terra sadia e feacutertil por toda parte poacute
areia rigidez consunccedilatildeo Aqui um
solitaacuterio desconsolado natildeo poderia escolher
melhor siacutembolo do que o Cavaleiro com a
Morte e o Diabo como Duumlrer o desenhou o
cavaleiro arnesado com o olhar duro
brocircnzeo que sabe tomar o seu caminho
assustador imperturbado por seus
hediondos companheiros e natildeo obstante
desesperanccedilado sozinho com o seu corcel e
o seu catildeo Um tal cavaleiro duumlreriano foi
nosso Schopenhauer faltava-lhe qualquer
esperanccedila mas queria a verdade Natildeo haacute
quem se lhe iguale
(Nietzsche)
Neste capiacutetulo procuraremos apontar primeiramente o modo pelo qual se deu o
encontro entre Nietzsche e a filosofia de Schopenhauer Em um segundo momento
percorreremos o desenvolvimento histoacuterico das produccedilotildees nietzscheanas que
culminaram com a publicaccedilatildeo da obra que caracteriza o primeiro periacuteodo do filoacutesofo
qual seja O nascimento da trageacutedia a partir do espiacuterito da muacutesica Concluiremos entatildeo
apresentando um esboccedilo desta obra dando ecircnfase em todos os momentos aos
66
elementos que caracterizam sua teoria da trageacutedia especialmente agravequeles relacionados agrave
metafiacutesica schopenhaueriana da vontade
31 Schopenhauer e o jovem Nietzsche uma breve contextualizaccedilatildeo histoacuterica
Foram nos anos de universidade em Leipzig que Nietzsche se deparou com a
filosofia de Schopenhauer Este periacuteodo entre os anos de 1865 e 1869 eacute especialmente
importante devido ao fato de que nele podemos assistir ao surgimento de alguns
aspectos fundamentais ao projeto filosoacutefico de Nietzsche Janz descreve este periacuteodo
como aquele em que o filoacutesofo estabeleceu ldquoseus encontros espirituais determinantes a
partir dos quais se defrontou consigo mesmo e com sua tarefardquo(1987 151)
O primeiro contato do jovem Nietzsche com o mundo schopenhaueriano deu-se
em meados de outubro de 1865 pouco tempo apoacutes sua chegada a Leipzig O
arrebatamento causado no jovem estudante de filologia pelo encontro com a filosofia
schopenhaueriana eacute descrito por ele apoacutes dois anos da seguinte maneira
Sentia-me naquela eacutepoca desorientado solitaacuterio sem
princiacutepios sem esperanccedilas inconsolado e com algumas
experiecircncias dolorosas e decepccedilotildees Construir uma vida proacutepria e
adequada era para mim uma aspiraccedilatildeo que me ocupava da manhatilde
ateacute a noite No feliz apartamento em que vivia procurava
concentrar-me a mergulhar em mim mesmo e quando me
encontrava com amigos estes eram sempre Mushacke e Von
Gersdorff os quais por sua parte alentavam objetivos muito
semelhantes aos meus Creio que natildeo seraacute difiacutecil imaginar a
impressatildeo que nesta situaccedilatildeo me causou a leitura da obra
principal de Schopenhauer Encontrei um dia este livro no sebo do
velho Rohm Ignorando tudo sobre ele o tomei em minhas matildeos e
me pus a folheaacute-lo Natildeo sei que democircnio me sussurrou bdquoleve este
livro para a casa‟ Aconteceu de compraacute-lo apesar do meu usual
costume de natildeo me precipitar na compra de livros Uma vez em
casa num canto do sofaacute me lancei sobre o tesouro receacutem
adquirido e comecei a deixar que aquele gecircnio eneacutergico e sombrio
influiacutesse sobre mim Em cada linha sua gritava a renuacutencia
negaccedilatildeo resignaccedilatildeo tinha diante de mim um espelho no qual
podia contemplar o mundo a vida e meu proacuteprio acircnimo com uma
67
grandeza deprimente Um espelho desde o qual o olho solar da
arte me mirava desde sua absoluta falta de interesse Vi
enfermidade e cura desterro e refuacutegio inferno e paraiacuteso A
necessidade de autoconhecimento inclusive de auto-
experimentaccedilatildeo apoderou-se de mim com forccedila indomaacutevel
provas daquela mutaccedilatildeo profunda satildeo hoje todavia para mim as
paacuteginas desassossegadas e melancoacutelicas do diaacuterio que agravequela
eacutepoca escrevi com suas auto-acusaccedilotildees inuacuteteis e sua desesperada
busca de salvaccedilatildeo e reconstruccedilatildeo do inteiro nuacutecleo humano Na
medida em que propus a submeter todas as minhas caracteriacutesticas
e aspiraccedilotildees ao tribunal de uma sombria auto-depreciaccedilatildeo minha
atitude estava cheia de amargura possuiacuteda de um oacutedio injusto e
desenfreado contra mim mesmo Nem sequer renunciei agraves
mortificaccedilotildees corporais Obriguei-me com efeito durante
quatorze dias seguidos a deitar-me agraves duas da noite e acordar agraves
seis da manhatilde Uma excitaccedilatildeo nervosa muito singular se apoderou
assim de mim e quem sabe ateacute que grau de loucura haveria
chegado se natildeo tivesse modificado frente agravequele estado de
acircnimo os atrativos da vida da vaidade e o imperativo de retornar
a meus estudos regulares (conforme citaccedilatildeo de Janz 1987 158)
Da citaccedilatildeo podemos inferir a mudanccedila de acircnimo que o encontro com
Schopenhauer provocou A partir daquele momento diversas correspondecircncias datildeo-nos
ainda informaccedilotildees do impacto que a filosofia de Schopenhauer provocou na concepccedilatildeo
de mundo do jovem estudante Em algumas destas correspondecircncias vemos transparecer
a influecircncia atraveacutes da frequumlente utilizaccedilatildeo de um vocabulaacuterio schopenhaueriano bem
como das ideacuteias nelas expressas Assim acontece em carta enviada agrave sua matildee e irmatilde
datada de 5 de novembro de 1865 onde ao discorrer acerca da frivolidade da vida
humana o jovem Nietzsche conclui utilizando-se dos argumentos propostos pela eacutetica
schopenhaueriana
Existem dois caminhos ou se esforccedila e se acostuma a ser
o mais limitado que se possa e uma vez que se reduz o maacuteximo
possiacutevel a luz do espiacuterito se busque bens de fortuna e se viva com
os prazeres do mundo ou por outro lado se sabe que a vida eacute
miseraacutevel se sabe que somos seus escravos tanto mais quanto
mais procuramos dela gozar e por tanto se desprende dos bens da
vida exercita a sobriedade e se eacute austero consigo mesmo e cordial
com os demais ndash e isto porque sente compaixatildeo pelos
companheiros de miseacuteria ndash em uma palavra se vive de acordo
68
com as rigorosas exigecircncias do cristianismo primitivo (OC
470)
Vemos ainda em carta a Mushacke em 12 de julho de 1866 o impacto que a
interpretaccedilatildeo schopenhaueriana pessimista de mundo causou em Nietzsche ldquoDesde que
Schopenhauer nos retirou dos olhos a venda do otimismo as coisas satildeo percebidas
mais agudamente A vida eacute mais interessante ainda que mais feiardquo (conforme citaccedilatildeo
de Janz 1987 172) Percebemos tambeacutem a linguagem schopenhaueriana na descriccedilatildeo
dos momentos de contemplaccedilatildeo Eacute o caso da carta datada de 07 de abril de 1866 a
Gersdorf onde Nietzsche descreve seu estado que nos remeteraacute agrave contemplaccedilatildeo
artiacutestica na filosofia de Schopenhauer ao discorrer sobre os dias de veratildeo ldquo[] a
natureza se faz perfeita e noacutes tambeacutem entatildeo nos sentimos livres do poderio da vontade
sempre alerta e somos olho puro intuitivo desinteressadordquo (OC 472)
Estas influecircncias nortearam de forma definitiva as produccedilotildees acadecircmicas de
Nietzsche mesmos suas pesquisas filoloacutegicas A concepccedilatildeo traacutegica do mundo tornou-se
um feixe condutor para as reflexotildees do jovem filoacutelogo Seus companheiros no estudo da
obra de Schopenhauer eram Gersdorff e Mushacke Em carta agrave sua matildee de 01 de
fevereiro de 1866 Nietzsche deixa saber sobre a frequumlecircncia dos estudos ldquoCom
Gersdorff me encontro uma noite por semana para ler grego a cada duas semanas me
reuacuteno com ele e com Mushacke e nos entregamos a Schopenhauer Este filoacutesofo ocupa
uma posiccedilatildeo importante em meus pensamentos e estudos e meu respeito por ele cresce
incomparavelmenterdquo (OC 471) Se o conteuacutedo da filosofia schopenhaueriana foi
absorvido intensamente pelo jovem Nietzsche como podemos ver a partir dos trechos
transcritos acima a forma estiliacutestica tambeacutem se configura como preocupaccedilatildeo Em um
periacuteodo onde as pesquisas acadecircmicas exigiam o esforccedilo da escrita ali tambeacutem a
autoridade das regras schopenhauerianas exibia sua feiccedilatildeo Eacute tambeacutem em uma carta a
69
Gersdorff datada de 06 de abril de 1867 onde Nietzsche expotildee sua preocupaccedilatildeo com o
estilo
Nestas divagaccedilotildees quero redigir meu trabalho sobre as
fontes de Dioacutegenes Laeacutercio e estou todavia no iniacutecio Para seu
regozijo confessarei que o que mais me daacute trabalho eacute meu estilo
em alematildeo Agora me caem os veacuteus dos olhos e vejo que
durante muito tempo vivi em estado de inocecircncia estiliacutestica O
imperativo categoacuterico bdquodeves escrever‟ me foi despertado[] nos
ouvidos me soavam todos os preceitos estiliacutesticos de Lessing de
Lichtenberg e de Schopenhauer Meu uacutenico consolo eacute que estas
trecircs autoridades afirmavam unanimemente que eacute difiacutecil escrever
bem que por natureza ningueacutem tem um bom estilo e que haacute que
trabalhar e trabalhar para consegui-lo (OC 476)
Entretanto apesar do profundo arrebatamento causado pela filosofia de
Schopenhauer que fez com que o universo das preocupaccedilotildees do entatildeo jovem Nietzsche
se fundamentasse nos pressupostos da metafiacutesica schopenhaueriana outros elementos
tambeacutem fundamentais para o pensamento futuro do filoacutesofo foram tambeacutem neste
periacuteodo despertados Como apontam Dias (2009 42) Janaway (2007 16) e Lopes
(2008 27) jaacute neste periacuteodo que podemos tratar como um periacuteodo de despertar para o
pensamento filosoacutefico encontraacutevamos os elementos que a partir de Humano demasiado
humano conformaratildeo a criacutetica nietzscheana agrave filosofia de Schopenhauer Os
comentadores citados chamam a atenccedilatildeo para o fato de que embora nas obras
publicadas de Nietzsche possamos assistir a criacuteticas diretas a Schopenhauer somente
apoacutes Humano demasiado humano tais criacuteticas agrave filosofia schopenhaueriana surgiram
em um momento imediatamente posterior agrave descoberta da metafiacutesica da vontade Rosa
Maria Dias chama a atenccedilatildeo para os fragmentos poacutestumos e para a correspondecircncia que
agrave partir de 1867 trazem algumas criacuteticas agrave metafiacutesica da vontade Rogeacuterio Lopes e
Cristopher Janaway apontam que algumas destas criacuteticas estatildeo embasadas nas leituras
que o jovem Nietzsche fez de Friedrich A Lange Rudolf Haym Kuno Fischer dentre
outros Tais criacuteticas contudo natildeo afastaram o jovem Nietzsche do discipulado
70
schopenhaueriano mas transformaram sua aceitaccedilatildeo do sistema da vontade No lugar de
uma defesa da consistecircncia loacutegica do sistema Nietzsche passou a adotar uma postura de
defesa da bdquonatureza edificante‟ e preponderantemente artiacutestica deste sistema Exemplos
desta postura podem ser encontrados tambeacutem na correspondecircncia daquele periacuteodo
Para escrever uma apologia a Schopenhauer eu tenho
unicamente que considerar o fato de que olho esta vida livre e
bravamente diante do fato de que encontrei um suporte para me
apoiar obviamente que isto natildeo eacute mais que uma apologia
totalmente individual Mas eacute como as coisas satildeo Se algueacutem
deseja refutar Schopenhauer para mim atraveacutes de argumentos
racionais murmuro em seu ouvido bdquoporeacutem meu amigo visotildees de
mundo natildeo satildeo criadas nem destruiacutedas pela loacutegica‟ (carta a
Deussen Outubro-Novembro de 1867 citada por Janaway
(200718))
Ou ainda em carta a Gersdorff onde apoacutes apresentar a criacutetica de Lange agrave metafiacutesica da
vontade Nietzsche conclui contra Haym ainda com os argumentos de Lange
Natildeo apenas a verdadeira essecircncia das coisas a coisa em si
eacute desconhecida para noacutes tambeacutem seu conceito eacute nada mais nada
menos que o uacuteltimo rebento de um contraste condicionado por
nossa organizaccedilatildeo do qual natildeo sabemos se conserva algum
significado fora de nossa experiecircncia Disso resulta pensa Lange
que os filoacutesofos natildeo devem ser importunados na medida em que
nos edificam A arte eacute livre tambeacutem na regiatildeo dos conceitos
Quem pretenderia refutar uma frase de Beethoven e acusar de erro
uma Madonna de Rafael Como vocecirc pode perceber o nosso
Schopenhauer resiste mesmo a este mais rigoroso ponto de vista
criacutetico ele se torna quase ainda mais valioso para noacutes Se filosofia
eacute arte entatildeo que Haym se anule diante de Schopenhauer se a
filosofia deve edificar entatildeo eu pelo menos natildeo conheccedilo nenhum
filoacutesofo que edifique mais do que nosso Schopenhauer (apud
Lopes 2008 86-87)
Vimos ateacute entatildeo que a descoberta de Schopenhauer provocou no jovem
estudante de filologia transformou sua forma de perceber o mundo e o influenciou de
forma definitiva a ponto de fazer com que Nietzsche se definisse como um seguidor e
divulgador da obra schopenhaueriana Contudo eacute no fim de seus anos de estudo em
Leipzig que o disciacutepulo de Schopenhauer iraacute se defrontar com a personalidade que lhe
71
reforccedilaraacute de forma ainda mais contundente o selo da rotunda schopenhaueriana
Richard Wagner
Foi atraveacutes de seu amigo Brockhaus cuja esposa era irmatilde do muacutesico que em
novembro de 1868 Nietzsche encontrou-se pela primeira vez com Wagner A partir
daquele encontro se estabeleceria um relacionamento que de uma forma ou de outra
marcaraacute Nietzsche pelo resto de sua vida Em uma carta a seu amigo Erwin Rohde
Nietzsche descreve o primeiro encontro e sua perplexidade ao encontrar em Wagner um
admirador de Schopenhauer ldquo[]mantive com ele uma longa conversa sobre
Schopenhauer Ah Compreenderaacutes minha felicidade em ouvir-lhe falar com um
entusiasmo completamente indescritiacutevel ao qual ele agradecia como Schopenhauer
era o uacutenico filoacutesofo que havia compreendido a essecircncia da muacutesicardquo (Correspondecircncia
2007 21) A impressatildeo deste encontro eacute tambeacutem claramente visiacutevel atraveacutes de
correspondecircncia endereccedilada ao proacuteprio Wagner em maio de 1869 ldquoVeneradiacutessimo
senhor quanto tempo tive a intenccedilatildeo de lhe manifestar sem nenhuma timidez o grau de
gratidatildeo que sinto em relaccedilatildeo ao senhor pois realmente os melhores e mais elevados
momentos de minha vida se ligam ao seu nome e eu soacute conheccedilo mais um homem aleacutem
disso seu grande irmatildeo em espiacuterito Arthur Schopenhauer em quem penso com a
mesma veneraccedilatildeo ateacute senso religiosordquo (Correspondecircncia 2007 56) Como podemos
ver a pessoa de Wagner eacute associada agrave de Schopenhauer Esta associaccedilatildeo tornar-se-aacute
uma constante e poderaacute ser identificada ainda na fase tardia onde as criacuteticas a estes
pensadores e ao que eles entatildeo representavam se daraacute de forma inter-relacionada Este
primeiro encontro com Wagner conforme Janz (1987 22) foi um dos principais
motivos que levaram Nietzsche a aceitar em detrimento de outros planos que
formulava assumir a caacutetedra de filologia em Basel A proximidade de Tribschen
residecircncia dos Wagner e a possibilidade de uma convivecircncia com o muacutesico o
72
inspiraram E assim aconteceu Ao mudar-se para Basel pocircde desfrutar de uma
convivecircncia constante com o casal Wagner Desde a chegada de Nietzsche ateacute a
mudanccedila de Wagner em 1872 encontravam-se com muita frequumlecircncia e os assuntos que
pautavam tais encontros eram amiuacutede arte muacutesica a literatura claacutessica e a filosofia de
Schopenhauer Wagner tornar-se-ia para Nietzsche a personificaccedilatildeo do gecircnio
schopenhaueriano aquele capaz de atraveacutes da muacutesica expor a essecircncia do mundo No
projeto wagneriano de ldquoarte totalrdquo Nietzsche pocircde vislumbrar a uniatildeo entre muacutesica e
filosofia e satisfazer assim em certa medida as expectativas oriundas da metafiacutesica da
vontade
32 O projeto subjacente ao Nascimento da Trageacutedia
Eacute famosa a passagem onde Nietzsche em carta a Deussen datada de janeiro de
1870 informa sobre seu estado de espiacuterito ldquo Ciecircncia arte e filosofia crescem agora
juntas em mim e de tal modo que um dia haverei de parir centaurosrdquo (Janz 1981 66)
Esta afirmaccedilatildeo eacute ilustrativa no que se refere ao ambiente onde o Nascimento da trageacutedia
foi gerado Podemos identificar claramente as figuras por detraacutes dos termos filosofia
arte e ciecircncia satildeo elas Schopenhauer Wagner e a filologia claacutessica Neste periacuteodo
Nietzsche entatildeo jovem professor de filologia estava imbuiacutedo pela pretensatildeo de poder
unir os estudos filoloacutegicos aos filosoacuteficos Sua preleccedilatildeo inicial Homero e a filologia
claacutessica em Basel nos daacute uma amostra desta pretensatildeo Ali podemos assistir a uma
aproximaccedilatildeo entre filologia e filosofia atraveacutes da proposta de uma leitura filosoacutefica do
mundo antigo ldquoCom isto quero expressar que toda atividade filoloacutegica deve estar
impregnada de uma concepccedilatildeo filosoacutefica do mundo na qual todo o particular e singular
seja visto como algo sem proveito e soacute permaneccedila de peacute a unidade do todordquo (OC 26)
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Sua escolha por trilhar caminhos mais proacuteximos agrave filosofia pode tambeacutem ser observada
pela tentativa frustrada de ocupar uma cadeira desta disciplina que se mostrou livre em
janeiro de 1871 Se por um lado podemos diagnosticar certa decepccedilatildeo e ateacute um
determinado desacircnimo na atividade acadecircmica por outro lado os laccedilos com os Wagner
se estreitavam cada vez mais No refuacutegio de Tribschen sob a aura de Richard Wagner
Nietzsche discorria sobre o mundo grego enquanto modelo de cultura e ouvia os planos
wagnerianos sobre seu projeto de uma obra de arte total Como pano de fundo destas
discussotildees a metafiacutesica da muacutesica schopenhaueriana e sua concepccedilatildeo traacutegica do mundo
Eacute em torno destes eixos formadores que vemos se materializar a primeira publicaccedilatildeo de
Nietzsche
O desenvolvimento das ideacuteias que formaratildeo a obra contudo se deu de forma
gradual Ao longo do periacuteodo compreendido entre a chegada de Nietzsche a Basel e a
publicaccedilatildeo de seu livro determinados trabalhos deixam transparecer o delineamento de
algumas das ideacuteias centrais da obra Satildeo eles O drama musical grego Soacutecrates e a
trageacutedia A visatildeo dionisiacuteaca do mundo e Introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles31
Em o drama musical grego conferecircncia puacuteblica datada de janeiro de 1870
Nietzsche efetua uma comparaccedilatildeo entre a arte traacutegica da antiguidade e as oacuteperas
modernas Estas de acordo com o filoacutesofo satildeo uma imperfeita ldquocaricatura do drama
musical antigordquo (VD 48) Muacutesica pintura escultura e poesia formavam um todo na
arte traacutegica da antiguidade Nas artes modernas por sua vez as formas artiacutesticas satildeo
fragmentadas fato que dificulta o entendimento da trageacutedia grega e que causaria
espanto ao apreciador de arte moderno A muacutesica teria para a trageacutedia antiga uma
31
Como ressaltam M S Silk e J P Stern em sua obra Nietzsche on tragedy (1981 59) o nascimento da
trageacutedia eacute composto de forma estrutural pelos conceitos encontrados nestes trabalhos O iniacutecio do livro
(sectsect1-10) eacute substancialmente baseado no ensaio a visatildeo dionisiacuteaca do mundo enquanto a sequumlecircncia
composta pelos paraacutegrafos 5 e 6 estaacute mais proacutexima da introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles O trecho
composto pelos paraacutegrafos 11 a 14 pode ser derivado diretamente da leitura Soacutecrates e a trageacutedia O resto
do livro eacute formado por uma amaacutelgama destes escritos Partes dispersas ainda satildeo formadas pelo ensaio do
drama musical grego
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importacircncia capital como elemento intensificador de seu efeito Podemos ver a intenccedilatildeo
por traacutes da anaacutelise nietzscheana da trageacutedia antiga em comparaccedilatildeo agrave opera Ao final da
conferecircncia no elogio que confere a Wagner o tiacutetulo de ldquoatual reformador da arterdquo bem
como na descriccedilatildeo de seu projeto de arte total retratado como um acontecimento que jaacute
teve lugar na trageacutedia da antiguidade claacutessica Nietzsche deixa claro seu engajamento ao
projeto wagneriano
No mecircs seguinte ao da citada conferecircncia uma segunda intitulada Soacutecrates e a
trageacutedia foi proferida por Nietzsche O assunto em pauta era a morte repentina da
trageacutedia grega Esta morte teria ocorrido pelas matildeos de Euriacutepides apoacutes uma decadecircncia
iniciada nos uacuteltimos periacuteodos das produccedilotildees de Eacutesquilo passando por Soacutefocles e
culminando com o advento da comeacutedia Tal decadecircncia teria sido provocada pela saiacuteda
de cena da muacutesica que de forma progressiva foi substituiacuteda pelo diaacutelogo racionalista
Soacutecrates ocupa aqui um lugar importante Eacute sua influecircncia sobre Euriacutepides que
transforma de uma forma definitiva a arte instintivamente musical da trageacutedia em uma
manifestaccedilatildeo do discurso eacutetico racionalista Esta ldquoesteacutetica racionalista e conscienterdquo
pode ser identificada no proacutelogo euripidiano e na inserccedilatildeo do deus ex machina
enquanto agentes de racionalizaccedilatildeo da obra artiacutestica A trageacutedia de Euriacutepides teria
assumido assim os pressupostos do racionalismo socraacuteticos ldquoVirtude eacute saber peca-se
somente por ignoracircncia O virtuoso eacute felizrdquo (VD 90) Esta assunccedilatildeo que liga a virtude
ao saber impotildee agrave trageacutedia um caraacuteter eacutetico alheio agrave sua caracteriacutestica puramente
esteacutetica O elemento culpa na dialeacutetica socraacutetica toma o lugar que era ocupado pela
compaixatildeo Jaacute podemos perceber nesta conferecircncia o esboccedilo da dicotomia que mais
tarde seraacute ilustrada atraveacutes dos deuses Apolo e Dioniso Os pares formadores da
dicotomia satildeo aqui expressos pela separaccedilatildeo entre instinto e razatildeo muacutesica e discurso
pessimismo e otimismo arte e ciecircncia
75
Temos a primeira referecircncia agrave arte dionisiacuteaca como impulso formador da
trageacutedia e sua contraposiccedilatildeo agrave arte apoliacutenea nas aulas proferidas por Nietzsche no veratildeo
daquele mesmo ano Neste curso sobre a trageacutedia de Soacutefocles do qual temos a
introduccedilatildeo podemos ver o esforccedilo de Nietzsche em caracterizar e apontar as
peculiaridades da trageacutedia da antiguidade que a tornam um fenocircmeno uacutenico em
comparaccedilatildeo agraves trageacutedias modernas Tal discussatildeo demonstraraacute pelos aspectos ali
expostos a aproximaccedilatildeo de Nietzsche com autores do periacuteodo claacutessico alematildeo e
sobretudo da chamada querela entre antigos e modernos Vemos claramente a influecircncia
de Schiller e F A Schlegel em algumas das definiccedilotildees adotadas por Nietzsche
No texto denominado A visatildeo dionisiacuteaca do mundo jaacute podemos assistir a um
desenvolvimento das duas pulsotildees artiacutesticas que satildeo o nuacutecleo da interpretaccedilatildeo
nietzscheana da trageacutedia O apoliacuteneo e o dionisiacuteaco satildeo ali explicados no acircmbito de seu
surgimento no mundo helecircnico e simbolizam a uniatildeo entre verdade e beleza na forma de
arte traacutegica Sua descriccedilatildeo como veremos abaixo estaacute permeada de conceitos retirados
da filosofia schopenhaueriana que vatildeo desde a biparticcedilatildeo do mundo entre verdade e
aparecircncia perpassam as noccedilotildees de belo e sublime e apontam a trageacutedia e a muacutesica como
forma de arte superiores
Em janeiro de 1872 Nietzsche daacute luz a seu ldquoCentaurordquo sob o nome O nascimento
da trageacutedia atraveacutes do espiacuterito da muacutesica Em carta a Rohde datada de 23 de novembro
de 1871 podemos notar atraveacutes da ansiosa expectativa nietzscheana a amaacutelgama
formadora da obra ldquo Temo sempre que os filoacutelogos natildeo o queiram ler por causa da
muacutesica os muacutesicos por causa da filologia e os filoacutesofos por causa da muacutesica e da
filologia e sinto logo medo e compaixatildeo de mim mesmordquo (Correspondecircncia 2007 237)
33 A teoria da trageacutedia publicada
Como escopo geral da primeira obra de Nietzsche podemos dizer na esteira de
Silk e de Stern (1981 52) que ela se propunha a esclarecer o problema do nascimento e
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da morte da trageacutedia helecircnica Trageacutedia que por sua vez era a expressatildeo artiacutestica que
simbolizava um problema vital o de que sob uma superfiacutecie bela podiacuteamos ter acesso agrave
terriacutevel profundidade do ser Tal forma de arte poderia novamente vir agrave luz por uma
geraccedilatildeo criativa que ao combater a superficialidade moderna que reinava no mundo
germacircnico poderia produzir o renascimento moderno do mundo Helecircnico
Em sua essecircncia o nascimento da trageacutedia aponta para as divindades Apolo e
Dioniacutesio como ldquorepresentantes vivosrdquo de princiacutepios diacutespares que irrompem da proacutepria
natureza e que ao serem conciliados de certa forma tornaram possiacutevel que atraveacutes dos
atritos de tal uniatildeo a trageacutedia grega despontasse como manifestaccedilatildeo artiacutestica exemplar
do sublime Em linhas gerais a arte do ldquofigurador plaacutesticordquo estaria entatildeo associada ao
deus Apolo enquanto a arte ldquonatildeo figuradardquo a da muacutesica estaria associada ao deus
Dioniacutesio O apoliacuteneo eacute um impulso da vontade grega que ao almejar a vida a apresenta
transfiguradamente como um belo sonho plasmado no mundo dos deuses oliacutempicos O
princiacutepio apoliacuteneo seria aquele que estabeleceria a ordem a beleza estaacutetica e a clareza
dos limites O dionisiacuteaco eacute oriundo das festas do oriente e seu efeito eacute comparado ao da
embriaguecircs A ele cabe a sabedoria profunda da essecircncia da vida lugar do acaso do
impermanente do horriacutevel e do sofrimento A Apolo eacute facultado tecer o veacuteu que
encobre a sabedoria dionisiacuteaca e torna a vida suportaacutevel atraveacutes da ilusatildeo do sonho
Assim segundo Nietzsche o desenvolvimento contiacutenuo da arte estaacute vinculado agrave
duplicidade dos princiacutepios apoliacuteneo e dionisiacuteaco Perfazendo um caminho histoacuterico da
cultura grega podemos notar uma sobreposiccedilatildeo intermitente entre os impulsos divinos
Temos momentos onde o impulso apoliacuteneo se mostrou dominante e outros onde
Dioniacutesio recupera seu predomiacutenio O mundo oliacutempico homeacuterico com sua arte eacutepica e
sua escultura do periacuteodo doacuterico nascem a partir de uma necessidade de redenccedilatildeo para a
realidade de horror e sofrimento que o povo helecircnico presenciava Em substituiccedilatildeo ao
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mundo titacircnico temos o mundo dos deuses oliacutempicos exemplificadores de uma
existecircncia divinizada que exalta a vida Nas palavras de Nietzsche ldquoo grego conheceu
e sentiu os temores e os horrores do existir para que lhe fosse possiacutevel de algum modo
viver teve de colocar ali entre ele e a vida a resplendente criaccedilatildeo oniacuterica dos deuses
oliacutempicosrdquo (NT 36) Entretanto a sabedoria dionisiacuteaca portadora da visatildeo abismal do
ser natildeo pocircde ser contida por muito tempo e a muacutesica veiacuteculo da uniatildeo orgiaacutestica aos
poucos foi se infiltrando no mundo construiacutedo pelo divino Apolo Os gregos foram se
tornando conscientes de seu estado sonambuacutelico que sob a graccedila do deus Apolo enleva
e transporta pela extraordinaacuteria beleza natural ou esteacutetica Em um estado semelhante ao
do indiviacuteduo que restabelecido em suas forccedilas pelo efeito renovador do sono ao findar
de uma noite comeccedila a ouvir os sons a sua volta e aos poucos vai se despertando da
mesma forma os gregos comeccedilaram novamente a ouvir o sussurro do Sileno
companheiro de Dioniacutesio ldquoo melhor de tudo eacute para ti inteiramente inatingiacutevel natildeo ter
nascido e natildeo ser nada ser Depois disso poreacutem o melhor para ti eacute logo morrerrdquo
(NT 36) O artista que representa este retorno do dionisiacuteaco com a mesma envergadura
com que Homero representa as forccedilas apoliacuteneas eacute Arquiacuteloco Tomando-o como modelo
do gecircnio liacuterico Nietzsche faz uma descriccedilatildeo de seu processo de criaccedilatildeo Conforme a
metafiacutesica esteacutetica adotada por Nietzsche - que mais agrave frente veremos ser retirada da
esteacutetica schopenhaueriana - toda arte tem que ser objetiva livre dos interesses
individuais Nesta situaccedilatildeo a liacuterica que tem como objeto o eu do poeta seus desejos e
emoccedilotildees natildeo seria uma forma de arte Entretanto atraveacutes de uma descriccedilatildeo que Schiller
faz da inspiraccedilatildeo poeacutetica Nietzsche aponta o caminho para percebermos a liacuterica como
obra de arte e portanto objetivamente Conforme a passagem de Schiller citada por
Nietzsche (NT 44) ldquoo sentimento se me apresenta no comeccedilo sem um objeto claro e
determinado este soacute se forma mais tarde Uma certa disposiccedilatildeo musical de espiacuterito
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vem primeiro e somente depois eacute que se segue em mim a ideacuteia poeacuteticardquo Desta forma
Arquiacuteloco em seu processo criativo a princiacutepio entraria em um estado de consciecircncia
ou de criaccedilatildeo onde renunciaria agrave sua individualidade e dionisiacamente participaria do
uno-primordial ldquoabismo do serrdquo estado que por sua vez materializa-se atraveacutes da
representaccedilatildeo musical A muacutesica assim produzida seraacute condiccedilatildeo para o surgimento da
inspiraccedilatildeo que a posteriori daraacute nascimento atraveacutes da aplicaccedilatildeo das formas
apoliacuteneas agrave poesia liacuterica geacutermen da trageacutedia e dos ditirambos dramaacuteticos Esta uniatildeo da
poesia liacuterica com a muacutesica eacute uma expressatildeo sinteacutetica da relaccedilatildeo dos deuses Apolo e
Dioniacutesio Eacute no quinto capiacutetulo de sua obra que Nietzsche iraacute tratar da poesia liacuterica
Neste capiacutetulo o filoacutesofo se distancia de Schopenhauer em sua interpretaccedilatildeo do
fenocircmeno liacuterico Para Schopenhauer na citaccedilatildeo reproduzida por Nietzsche (NT 46) a
liacuterica eacute produzida atraveacutes de uma percepccedilatildeo da consciecircncia onde os estados da vontade
individualizada se alternam com o conhecimento objetivo Como vimos o poeta liacuterico
assistiria ao jogo do eu em sua afetaccedilatildeo emocional e descreveria este estado atraveacutes de
sua poesia Nietzsche ao descrever a liacuterica utiliza-se da teoria da muacutesica
schopenhaueriana qual seja o poeta liacuterico produz primeiramente a muacutesica como forma
geral de expressatildeo da vontade mesma e desta produccedilatildeo gera posteriormente o texto que
se torna um exemplificador do evento musical sua forma plaacutestica objetiva A muacutesica eacute
a aparecircncia da vontade e as imagens apoliacuteneas que dela se originaram satildeo conforme seu
espiacuterito A imagem e o conceito satildeo desta forma na liacuterica originados a partir da
muacutesica
Tem-se portanto na trageacutedia grega uma relaccedilatildeo de interdependecircncia que evoca
um aparente paradoxo ndash ou seja ao lado da necessidade esteacutetica da beleza Apolo exige
dos seus a medida (limites fronteiras do indiviacuteduo presentes no ldquonada em demasiardquo) e
o auto-conhecimento necessaacuterio para determinaacute-la (ldquoconhece-te a ti mesmordquo) o
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desmedido os excessos o dionisiacuteaco seriam identificados pelo apoliacuteneo como
democircnios de uma era preacute-apoliacutenea era dos Titatildes reminiscecircncias de barbarismo O
paradoxo estaacute em que para que o comedimento apoliacuteneo possa existir o desmedido
dionisiacuteaco faz-se necessaacuterio (na linguagem de Nietzsche como ldquosubstratordquo) assim
como para que o desmedido dionisiacuteaco possa existir faz-se necessaacuterio a existecircncia do
comedido do apoliacuteneo Natildeo obstante a trageacutedia grega depende da conjugaccedilatildeo destes
dois princiacutepios para existir ndash indo aleacutem poder-se-ia dizer que a proacutepria muacutesica compotildee
o princiacutepio primeiro que possibilita o surgimento da trageacutedia no jogo das formas
apoliacuteneo A trageacutedia eacute entatildeo definida como ldquoo coro dionisiacuteaco a descarregar-se sempre
de novo em um mundo de imagens apoliacuteneordquo (NT 60)
Em seu iniacutecio a trageacutedia grega era representada pelo coro traacutegico Este coro natildeo
era uma ldquorepresentaccedilatildeo constitucional do povordquo muito menos um espectador ideal
como o queria August Schlegel Nietzsche acompanha Schiller na definiccedilatildeo de que o
coro cria um terreno ideal para a manifestaccedilatildeo da arte O efeito da trageacutedia eacute a
manifestaccedilatildeo de um estado de unidade que transporta ao abismo do ser O coro eacute a
manifestaccedilatildeo deste sentimento da consciecircncia de que por traacutes da vida cotidiana haacute uma
realidade ldquoindestrutivelmente poderosa e cheia de alegriardquo (NT 55) Este eacute o consolo
metafiacutesico propiciado pela arte traacutegica Ao retornarmos deste estado o cotidiano nos
causa asco nojo Natildeo eacute possiacutevel interpretar mais o papel da vida comum A vida soacute
passa a se justificar atraveacutes da arte Perceba-se aiacute que o coro possui um papel
fundamental no processo O coro atua como impulso artiacutestico dionisiacuteaco em
contraposiccedilatildeo agrave forma apoliacutenea ou seja agraves imagens e agrave beleza plaacutestica Assim o
indiviacuteduo atraveacutes do coro tem para si revelado aquele substrato dionisiacuteaco encoberto
pela beleza e comedimento apoliacuteneos isto eacute ao indiviacuteduo era possiacutevel submergir na
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torrente dionisiacuteaca do auto-esquecimento permitindo-se pocircr de lado os preceitos
apoliacuteneos
E foi assim que em toda parte onde o dionisiacuteaco penetrou o apoliacuteneo
foi suspenso e aniquilado Mas eacute igualmente certo que laacute onde o primeiro
assalto foi suportado o prestiacutegio e a majestade do deus deacutelfico se externaram de
maneira mais riacutegida e ameaccediladora do que nunca(NT 41-42)
De acordo com Nietzsche as trageacutedias eram em seu iniacutecio representaccedilotildees do
sofrimento de Dioniacutesio Mesmo as trageacutedias do periacuteodo aacutetico traziam Dioniacutesio como
heroacutei traacutegico O sofrimento representado era o do despedaccedilamento de Dioniacutesio o deus
que sofreu o padecimento da individuaccedilatildeo causa de todo o sofrer O mito de Dioniacutesio eacute
interpretado aqui sob a luz da filosofia de Schopenhauer que apresenta a individuaccedilatildeo
como fonte do sofrimento ldquoNos pontos de vista aduzidos temos jaacute todas as partes
componentes de uma profunda e pessimista consideraccedilatildeo do mundo e ao mesmo tempo
a doutrina misteriosoacutefica da trageacutedia o conhecimento baacutesico da unidade de tudo o que
existe a consideraccedilatildeo da individuaccedilatildeo como a causa primeira do mal a arte como a
esperanccedila jubilosa de que possa ser rompido o feiticcedilo da individuaccedilatildeo como
pressentimento de uma unidade restabelecidardquo (NT 70)
Contudo ressalta Nietzsche a trageacutedia grega que como vimos desenvolve-se a
partir do embate contiacutenuo entre as representaccedilotildees dos deuses antiacutepodas ndash envolvidos em
um enfrentamento aparentemente sem fim ndash eacute reestruturada por Euriacutepides de forma a
diminuir o impacto do coro ou seja um golpe quase mortal para Dioniacutesio que
agonizante lanccedila matildeo de seus uacuteltimos esforccedilos O que em Euriacutepedes suscitou esta
reestruturaccedilatildeo que conforme Nietzsche eacute responsaacutevel pelo afastamento progressivo do
dionisiacuteaco tem suas origens no que o filoacutesofo chamou de uma ldquotendecircncia socraacuteticardquo O
socratismo euripidiano e a sua nova concepccedilatildeo esteacutetica satildeo as causadoras do
afastamento dos impulsos esteacuteticos primevos o dionisiacuteaco e o apoliacuteneo Em seu lugar o
discurso consciente passa a imperar O deus ex machina e os proacutelogos satildeo exemplos das
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interferecircncias racionais que datildeo novo tom agrave trageacutedia aacutetica Soacutecrates e seu racionalismo
expulsam da trageacutedia o conhecimento primevo dionisiacuteaco e estabelecem novas regras
esteacuteticas regras racionais que fazem com que o bom sinocircnimo do belo seja aquilo
alcanccedilado conscientemente
Se a trageacutedia grega foi para Nietzsche a manifestaccedilatildeo mais sublime de uma
forma artiacutestica isto se daacute em decorrecircncia do efeito por ela provocado qual seja o de
justificar o mundo enquanto fenocircmeno esteacutetico Foi exatamente o decliacutenio deste efeito
constatado pela produccedilatildeo racionalizada de Euriacutepides o responsaacutevel pela morte da
trageacutedia Ao fortalecer em demasia os princiacutepios racionais da forma Euriacutepides suprimiu
o dionisiacuteaco por meio da flacircmula que nas palavras de Nietzsche o tragedioacutegrafo
ldquolevava agrave testardquo ndash a saber uma espeacutecie de socratismo esteacutetico cujos princiacutepios se davam
a partir da remissatildeo do belo ao inteligiacutevel e deste ao virtuoso Identifica-se portanto a
racionalidade otimista socraacutetica como grande responsaacutevel pela supressatildeo do impulso
dionisiacuteaco Nietzsche alude agrave proximidade de convivecircncia entre Soacutecrates e Euriacutepides
para justificar a presenccedila do racionalismo nas obras Euripidianas Soacutecrates frequumlentava
o teatro somente para assistir agraves apresentaccedilotildees de Euriacutepides De todos os atenienses
Soacutecrates era apontado como o mais saacutebio e Euriacutepides como o segundo em sabedoria
Entretanto na contraposiccedilatildeo proposta por Nietzsche entre conhecimento instintivo e
racional Soacutecrates era descomunalmente racional ao contraacuterio do intuitivismo criativo
que reinava ateacute entatildeo Era questionando aos atenienses sobre seus atos que Soacutecrates
percebia que eles natildeo agiam conscientemente mas por intuiccedilatildeo A crenccedila socraacutetica de
que toda accedilatildeo boa deve ser consciente dominou o teatro atraveacutes de Euriacutepides Uma
chave para o entendimento da racionalidade socraacutetica segundo Nietzsche nos eacute
revelada pela ldquomonstruosa inversatildeordquo representada pela consciecircncia criacutetica de Soacutecrates ndash
ou seja a nota destoante em Soacutecrates revela-se pelo instinto criacutetico em contraposiccedilatildeo agrave
82
consciecircncia criacutetica a consciecircncia criadora em contraposiccedilatildeo ao instinto como forccedila
criadora Intui-se assim o motivo pelo qual Soacutecrates natildeo compreendia a trageacutedia grega
- o dionisiacuteaco a tornava ininteligiacutevel para as exigecircncias racionalistas e criacuteticas da
ldquodialeacutetica otimistardquo socraacutetica ldquoA Soacutecrates [] parecia que a arte traacutegica nunca bdquodiz a
verdade‟ sem considerar o fato de que se dirigia agravequele que bdquonatildeo tem muito
entendimento‟ portanto natildeo aos filoacutesofos daiacute um duplo motivo para manter-se dela
afastadordquo(NT 87) Nietzsche compara Soacutecrates ao heroacutei euripidiano que
diferentemente (ateacute mesmo antagonicamente) agrave trageacutedia de Eacutesquilo e Soacutefocles ldquoprecisa
defender suas accedilotildees por meio da razatildeo e contra a razatildeordquo O que estaacute em jogo no
socratismo eacute a substituiccedilatildeo das verdades expressas miticamente religiosamente pelas
verdades loacutegicas A razatildeo tenta abarcar o todo e para isso desconsidera a arte e seus
impulsos A excelecircncia estaacute no saber e atraveacutes deste alcanccedila-se a felicidade erro do
otimismo racionalista Ilusatildeo da razatildeo que se acha soberana e independente A loacutegica
torna-se essecircncia da trageacutedia procura-se por relaccedilotildees causais e pelo bom telos O
diaacutelogo formata sua estrutura e expulsa seu fundamento musical O ldquoheroacutei dialeacuteticordquo eacute
portanto impulsionado pelo elemento otimista da dialeacutetica A justiccedila transcendental
presente nas obras Esquilianas ldquoeacute rebaixada ao niacutevel do raso e insolente princiacutepio da
bdquojusticcedila poeacutetica‟ com seu habitual deus ex machinardquo (NT 89) A racionalidade de
Soacutecrates atraveacutes de sua investigaccedilatildeo cientiacutefica da natureza de seu processo de
construccedilatildeo loacutegica da realidade daraacute origem ao que Nietzsche denominaraacute de ldquohomem
teoacutericordquo ou ldquohomem cientiacuteficordquo a quem a razatildeo ergue-se acima da proacutepria realidade ao
ponto mesmo de ndash e aiacute reside o proacuteprio otimismo ndash propor-se a tarefa de corrigir as
falhas da proacutepria realidade Mais ainda a razatildeo socraacutetica acena ao homem com a
promessa de conferir sentido agrave existecircncia pelo conhecimento e desta forma busca
justificar tal existecircncia
83
Em face ao pessimismo praacutetico eacute Soacutecrates o protoacutetipo do
otimista teoacuterico que na jaacute assinalada feacute na escrutabilidade da
natureza das coisas atribui ao saber e ao conhecimento a forccedila de
uma medicina universal e percebe no erro o mal em si mesmo
(NT 94)
Natildeo obstante o otimismo no conhecimento na racionalidade socraacutetica encontra seu
maior dragatildeo em sua proacutepria loacutegica interna Assim nas palavras de Nietzsche
[] a periferia do ciacuterculo da ciecircncia possui infinitos pontos
e enquanto natildeo for possiacutevel prever de maneira nenhuma como se
poderaacute alguma vez medir completamente o ciacuterculo o homem
nobre e dotado ainda antes de chegar ao meio de sua existecircncia
tropeccedila e de modo inevitaacutevel em tais pontos fronteiriccedilos da
periferia onde fixa o olhar no inesclareciacutevel Quando divisa aiacute
para seu susto como nesses limites a loacutegica passa a girar em
redor de si mesma e acaba por morder a proacutepria cauda ndash entatildeo
irrompe a nova forma de conhecimento o conhecimento traacutegico
que mesmo para ser apenas suportado precisa da arte como meio
de proteccedilatildeo e remeacutedio (NT 95)
Afigura-se-nos aqui o problema apontado por Nietzsche como o ldquoproblema da
ciecircncia mesmardquo a saber um problema que nos envolve a todos por abarcar (ou
contaminar) toda a cultura ocidental - isto eacute ainda mantemos o dionisiacuteaco agrave baila
ocupando diminuta posiccedilatildeo em detrimento ao culto acerbado ao racionalismo socraacutetico
A cultura socraacutetica impotildee-se pelo homem-teoacuterico e qualquer outra existecircncia que fuja
aos olhos perscrutadores de Soacutecrates deve ldquolutar penosamente para pocircr-se agrave sua altura
como existecircncia permitida e natildeo como existecircncia propostardquo
Nietzsche nos atenta para o fato de reconhecermos comumente no homem culto
erudito o homem douto saacutebio ndash consecutivamente o dionisiacuteaco a arte eacute colocada de
forma perifeacuterica de modo a nunca poder encontrar espaccedilo para superar sua condiccedilatildeo de
ldquoremeacutedio-arterdquo A vontade aacutevida faz seu caminho mesmo atraveacutes da completa falta de
respostas de fundamentos de sentido assim eacute preferiacutevel ao ser humano querer o nada
no sentido de ainda sim querer alguma coisa do que nada querer do que reconhecer a
84
falta de fundamentos da qual consistem em todos os tempos as ilusotildees que
costumeiramente adota-se como engodo ao absoluto sem-sentido da vida
Por fim Nietzsche atenta-nos para o fato de como o homem de seu tempo vem
perdendo a crenccedila na ciecircncia otimista socraacutetica isto eacute pressentindo que a cultura
racionalista socraacutetica torna-se iloacutegica ao vislumbraacute-la em seus horizontes afastando-se
de suas consequumlecircncias Nietzsche diagnostica na oacutepera de seu periacuteodo a subordinaccedilatildeo da
muacutesica agrave arte figurada agrave palavra e expotildee a expectativa de que possa haver no cansaccedilo e
na percepccedilatildeo do insucesso dos esforccedilos racionalistas um renascimento da trageacutedia
85
4 Conclusatildeo pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo
da vida
Retribui-se mal a um mestre continuando-
se sempre apenas aluno
(Nietzsche)
Natildeo podemos ver na filosofia schopenhaueriana qualquer instacircncia que
justifique a vida Ao conhecermos a sua essecircncia - a vontade cega e irracional que se
deixa ver atraveacutes das manifestaccedilotildees do seu querer incessante - percebemos o absurdo de
sua existecircncia e somos por essa percepccedilatildeo levados agrave sua negaccedilatildeo Nietzsche por sua
vez utilizando-se dos conceitos da filosofia de Schopenhauer procura em sua obra
justificar a vida e encontra esta justificaccedilatildeo na arte Nesta conclusatildeo da pesquisa
pretendemos entatildeo apresentar um esboccedilo do modo pelo qual alguns elementos da
filosofia schopenhaueriana foram utilizados no projeto do primeiro livro de Nietzsche e
explicitar o modo como estes elementos foram configurados no interior de seu projeto
Dentre estes elementos percorreremos o paralelo entre os pares dionisiacuteacoapoliacuteneo e
vontaderepresentaccedilatildeo os conceitos de arte e apreciaccedilatildeo esteacutetica e sua cisatildeo entre as
86
artes figurativas e a musical a especificidade da muacutesica o conceito de gecircnio e sua
divisatildeo e os limites da racionalidade e da ciecircncia
Jaacute no primeiro paraacutegrafo de NT a associaccedilatildeo entre os pares nietzscheanos do
dionisiacuteaco e apoliacuteneo e as visotildees de mundo schopenhauerianas satildeo expliacutecitas Nietzsche
define o impulso apoliacuteneo atraveacutes do sonho do princiacutepio de individuaccedilatildeo e o dionisiacuteaco
atraveacutes da embriaguez da consciecircncia de unidade da vontade do livrar-se do veacuteu de
maia Os deuses gregos tornam-se representativos destes estados schopenhauerianos de
consciecircncia Como vimos no capiacutetulo segundo desta dissertaccedilatildeo sob o ponto de vista da
representaccedilatildeo o mundo eacute objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito
agraves condiccedilotildees a priori do entendimento Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das
formas a priori do entendimento eacute interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos
advindos da filosofia Platocircnica e oriental como um mundo aparente ilusoacuterio artificial
O sonho efeito do encantamento apoliacuteneo eacute utilizado como metaacutefora da realidade
fenomecircnica no mundo Schopenhaueriano Os Vedas e Puranas tantas vezes citados por
Schopenhauer tratam o mundo como um sonho imposto pelo deus Maia o deus da
ilusatildeo que cobre a visatildeo do homem com seu veacuteu A mitologia oriental aludida por
Schopenhauer toma conta do mundo helecircnico em Nietzsche que transforma Apolo no
deus Maia o configurador de sonhos O sonho eacute utilizado como ilustraccedilatildeo da realidade
pelo fato de que durante o sonho natildeo sabemos estar sonhando O mundo dos sonhos nos
eacute naquele momento real Vemo-nos como indiviacuteduos e vemos o mundo da
individuaccedilatildeo e suas leis causais espaccedilo-temporais Somente o momento empiacuterico do
despertar informa-nos do sonho Haacute portanto uma identificaccedilatildeo do ldquoparentesco iacutentimo
entre vida e sonhordquo(MVR 60) Como ilustraccedilatildeo desta metaacutefora Schopenhauer elogia
ainda a obra do ldquovaterdquo Calderoacuten de La Barca A vida eacute sonho agrave qual denominaraacute como
um ldquodrama metafiacutesicordquo por expor esta faceta de seu sistema A consciecircncia de que a
87
vida eacute sonho eacute para Schopenhauer um despertar metafiacutesico cujo propiciador foi Kant
ao demonstrar o caraacuteter fenomecircnico do mundo Este despertar contudo natildeo causa
prazer O filoacutesofo e o gecircnio personagens que na metafiacutesica schopenhaueriana alcanccedilam
este despertar satildeo atormentados pela realidade com a qual se deparam qual seja a de
que a vida eacute puro sofrimento Eacute no intuito de deixar velada esta faceta da vida que
Apolo ofusca a visatildeo dos homens com seu mundo luminoso de sonho seu objetivo eacute
encobrir esta verdade aterrorizadora As artes natildeo musicais tanto na teoria de
Schopenhauer como na nietzscheana manteacutem o homem em um juacutebilo prazeroso
ocasionado pela contemplaccedilatildeo puramente objetiva Neste momento natildeo se percebe o
jogo da vontade individualizada somos afastados da realidade do querer insuflados
pela caracteriacutestica quietiva da apreciaccedilatildeo esteacutetica nas palavras de Nietzsche
encontramos na arte um ldquoremeacutedio-arterdquo32
Esta visatildeo do lado terriacutevel da vida ocasionada pelo despertar do dogmatismo
metafiacutesico na teoria schopenhaueriana eacute associada em NT agrave sabedoria dionisiacuteaca
Verificamos na descriccedilatildeo do impulso dionisiacuteaco os elementos que caracterizam a
vontade schopenhaueriana A visatildeo dionisiacuteaca do mundo carrega consigo o despertar
para o caraacuteter absurdo da vida Ao olhar para a proacutepria essecircncia o homem descobre-se
enquanto manifestaccedilatildeo de uma vontade aacutevida desprovida de telos O ldquomecanismo
internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens marionetes guiados pela
carecircncia Esta realidade eacute assustadora pois subtrai do horizonte todos os propoacutesitos da
vida individual Dioniacutesio trava aqui sua batalha contra Apolo ao apontar a ilusatildeo da
individuaccedilatildeo como mecanismo para uma fuga daquilo que em essecircncia somos Apesar
de seu caraacuteter aterrorizador a sabedoria dionisiacuteaca eacute acompanhada do deleite
32
Podemos ver aqui o nuacutecleo da dissenssatildeo entre as teorias dos dois filoacutesofos Para Schopenhauer este
remeacutedio eacute temporaacuterio e tatildeo logo o efeito da apreciaccedilatildeo esteacutetica se esvaia os interesses da vontade voltam
a agir sobre o indiviacuteduo e a vida de sofrimento continua seu percurso restando apenas o caminho da
negaccedilatildeo daquela vontade da vida mesma em direccedilatildeo ao nada Nietzsche ao contraacuterio aponta para uma
forma de cura atraveacutes do remeacutedio-arte ver a vida enquanto forma de arte afirmaacute-la
88
indescritiacutevel da celebraccedilatildeo da unidade com o todo ldquoSob a magia do dionisiacuteaco torna a
selar-se natildeo apenas o laccedilo de pessoa a pessoa mas tambeacutem a natureza alheada
inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de reconciliaccedilatildeo com seu filho
perdido o homemrdquo(NT 31) Se Apolo eacute representado como deus da forma da clareza
da individuaccedilatildeo e as artes patrocinadas por ele satildeo expressotildees destas caracteriacutesticas
Dioniacutesio por sua vez eacute o patrocinador da muacutesica expressatildeo fenomecircnica direta da
vontade Vemos em Nietzsche uma biparticcedilatildeo das artes que tambeacutem pode ser extraiacuteda
da metafiacutesica schopenhaueriana (artes natildeo-musicais e arte musical)
Para Schopenhauer as formas artiacutesticas natildeo-musicais ao provocarem uma visatildeo
puramente objetiva do objeto apreciado tecircm como caracteriacutestica fundamental a
libertaccedilatildeo da subjetividade e com ela dos anseios da vontade Durante esta forma de
apreciaccedilatildeo esteacutetica ldquosomos alforriados do desgraccedilado iacutempeto volitivo festejamos o
Sabbath dos trabalhos forccedilados do querer a roda de Iacutexion cessa de girarrdquo (MVR
267) A definiccedilatildeo nietzscheana para a funccedilatildeo da arte apoliacutenea se daacute da mesma maneira
qual seja ela deve ldquo [] livrar a vista de olhar no horror da noite e salvar o sujeito
graccedilas ao baacutelsamo da aparecircncia do espasmo dos movimentos do querer []rdquo (NT
117) A muacutesica por sua vez recebe um tratamento especial de Schopenhauer devido ao
seu efeito esteacutetico Se as demais artes satildeo um quietivo para a vontade a muacutesica ldquonatildeo faz
mais do que agradar a vontade de viver jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo
seus ecircxitos e ao final expressa sua satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509) Ela encontra-se
num niacutevel de valor superior ao das demais artes por tratar-se de representar a essecircncia
do mundo a vontade mesma Assim tambeacutem ela eacute tratada por Nietzsche como a arte
que representa a sabedoria dionisiacuteaca e faz o apreciador vivenciar a vontade mesma
Em seus escritos sobre a poesia e a oacutepera Schopenhauer alude agrave necessidade de
subordinar os conceitos e o texto agrave muacutesica para que estas artes tenham um efeito mais
89
arrebatador no apreciador esteacutetico Esta subordinaccedilatildeo eacute assumida por Nietzsche em sua
teoria da trageacutedia Nietzsche encontra na liacuterica a primeira manifestaccedilatildeo desta junccedilatildeo da
arte dionisiacuteaca com a arte apoliacutenea e aponta aiacute o geacutermen que daraacute origem agrave trageacutedia
Podemos perceber aqui uma subordinaccedilatildeo das artes natildeo-musicais agrave muacutesica que por sua
vez se espelha na subordinaccedilatildeo do mundo fenomecircnico ao mundo da coisa-em-si As
artes figurativas representam as ideacuteias objetivaccedilotildees imediatas da vontade e a muacutesica
representa a vontade mesma Na teoria da trageacutedia de Nietzsche esta subordinaccedilatildeo seraacute
mantida e assim reflete a configuraccedilatildeo da metafiacutesica schopenhaueriana A muacutesica ldquoeacute
uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente sobre o mais iacutentimo do
homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele como se fora uma
linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo (MVR
336) Desta forma uma arte que se pretenda formar a partir da integraccedilatildeo de elementos
de diversas formas artiacutesticas deve tomar a muacutesica como inspiraccedilatildeo tanto na teoria de
Schopenhauer como na de Nietzsche
Desta dicotomia das formas artiacutesticas que podemos perceber nos dois filoacutesofos
podemos depreender duas formas do gecircnio o apoliacuteneo ou contemplativo e o
compositor dionisiacuteaco Para Schopenhauer ldquoo compositor manifesta a essecircncia mais
iacutentima do mundo expressa a sabedoria mais profunda numa linguagem natildeo
compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo magneacutetico fornece informaccedilotildees
sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito algumrdquo (MVR 342) Podemos
vislumbrar ainda nesta descriccedilatildeo de Schopenhauer uma caracteriacutestica do que Nietzsche
mais tarde iraacute chamar de criaccedilatildeo inconsciente Em uma segunda passagem desta vez ao
final do capiacutetulo 39 do segundo volume de MVR vemos tambeacutem uma caracteriacutestica que
posteriormente tambeacutem seraacute ressaltada por Nietzsche como demarcaccedilatildeo do caraacuteter
dionisiacuteaco Schopenhauer se utiliza de uma passagem dos Vedas para descrever o prazer
90
provocado pela muacutesica como um prazer de participaccedilatildeo no todo33
Este ecircxtase da
comunhatildeo eacute um aspecto reiteradamente apontado por Nietzsche O gecircnio dionisiacuteaco eacute
para o jovem filoacutesofo aquele que tambeacutem absorvido pelo impulso dionisiacuteaco traduz
sua essecircncia em linguagem musical O tipo de gecircnio musical descrito eacute encontrado em
Schopenhauer nas encarnaccedilotildees de Rossini e Beethoven cujas obras operiacutesticas satildeo
norteadas pela produccedilatildeo musical e o livreto ocupa um lugar secundaacuterio Nietzsche
aponta um renascimento progressivo do gecircnio musical em seu tempo que se inicia com
Bach e tem continuidade em Beethoven mas que encontra sua forma mais bem acabada
em Richard Wagner
Apesar da tomarem caminhos diferentes no que tange ao objetivo da obra de arte
traacutegica Nietzsche e Schopenhauer mais uma vez em uniacutessono consideram-na todavia
como uma forma de entendimento superior ao apresentado pelo pensamento cientiacutefico
Como vimos anteriormente as ciecircncias no sistema schopenhaueriano seguem o
princiacutepio de razatildeo seu papel eacute apenas descritivo e consequumlentemente limitado ao
acircmbito daquele princiacutepio Transformam em conceitos abstratos o mundo intuitivo ao
descrevecirc-lo em sua aparecircncia e seguem o fio condutor do principio de razatildeo
apresentando as causas para cada fenocircmeno particular Desta forma as ciecircncias estatildeo
subordinadas ao mundo da aparecircncia e no que importa agrave essecircncia natildeo podem
demonstraacute-la As uacutenicas produccedilotildees humanas com esta capacidade satildeo a arte e a
filosofia e essas o fazem de forma indireta metafoacuterica A consideraccedilatildeo racional do
mundo estaacute enquanto presa ao acircmbito do fenocircmeno subordinada aos ditames da
vontade Esta ldquovontade aacutevida sempre encontra um meio atraveacutes de uma ilusatildeo
distendida sobre as coisas de prender agrave vida as suas criaturas e de obrigaacute-las a
prosseguir vivendordquo (NT 108) Nietzsche descreve trecircs formas pelas quais a vontade
33
ldquoE o delicioso que eacute uma classe de alegria chama-se assim o sumo Atman porque onde haacute uma
alegria esta eacute uma pequena parte de sua alegriardquo (MVR II 510)
91
manteacutem a vida A primeira delas eacute o ldquoveacuteu da beleza da arterdquo sustentado pelo impulso
apoliacuteneo Encontramo-la na epopeacuteia homeacuterica e nas artes figurativas A segunda eacute a
visatildeo traacutegica do mundo que encontra um consolo metafiacutesico na percepccedilatildeo de um
substrato comum aos fenocircmenos e que por consequumlecircncia abdica destes em funccedilatildeo da
vivecircncia daquele substrato A terceira forma de dominaccedilatildeo da vontade eacute a ciecircncia a
loacutegica socraacutetica que procura abarcar o mundo com sua razatildeo de acircnsia justificadora
Estas trecircs formas de coerccedilatildeo conforme sua predominacircncia em determinada cultura
formam o que Nietzsche iraacute denominar respectivamente de culturas artiacutestica traacutegica e
socraacutetica Correspondem historicamente agraves fases predominantemente helecircnica budista
ou alexandrina Fazendo um diagnoacutestico da cultura contemporacircnea Nietzsche a
identifica como uma cultura predominantemente alexandrina Diagnostica o seu ocaso a
partir da identificaccedilatildeo feita por Kant e Schopenhauer dos limites da ciecircncia do
desmascaramento das verdades eternas que amparam a visatildeo socraacutetica de mundo quais
sejam a visatildeo de que o tempo o espaccedilo e a causalidade satildeo leis universais e
incondicionais Esta criacutetica ao racionalismo eacute constante na obra schopenhaueriana
Percebemo-la claramente em suas investidas contra a filosofia de seu tempo e a
presunccedilatildeo nela presente de racionalmente abarcar o real
- - - - - - - - - -
Compostas por conceitos da metafiacutesica schopenhaueriana a teoria da trageacutedia de
Schopenhauer e a de Nietzsche apontam para caminhos diversos Em Schopenhauer a
trageacutedia eacute a arte cujo fim uacuteltimo eacute ao expor seu lado terriacutevel inspirar o apreciador agrave sua
renuacutencia Este lado terriacutevel espelho do mundo presentificador da vida humana e de
suas relaccedilotildees ocasiona atraveacutes do medo e da compaixatildeo a vontade de renuacutencia a essa
92
mesma vida Nietzsche introduz na trageacutedia o elemento da muacutesica schopenhaueriana34
A consequumlecircncia desta introduccedilatildeo eacute um plano mais profundo de entendimento que
apresenta a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com sua essecircncia Neste estado de consciecircncia
apartado de sua individualidade o sujeito jaacute se vecirc como um criador de mundos e vecirc no
mundo uma obra de arte sua Ao derivar o impulso apoliacuteneo do dionisiacuteaco35
Nietzsche
jaacute executou a renuacutencia do indiviacuteduo que agora passa a se ver como essecircncia e ao mundo
como fenocircmeno artiacutestico
34
Machado (2006 200) considera na esteira de Clemeacutent Rosset e de Jean-Marie Schaeffer a utilizaccedilatildeo
da teoria da apreciaccedilatildeo musical de Schopenhauer por Nietzsche como o elemento que sugeriraacute a
caracteriacutestica de afirmaccedilatildeo da vontade de sua filosofia da trageacutedia 35
ldquoNo efeito conjunto da trageacutedia o dionisiacuteaco recupera a preponderacircncia ela se encerra com um tom
que jamais poderia soar a partir do reino da arte apoliacutenea E com isso o engano apoliacuteneo se mostra como o
que ele eacute como o veacuteu que enquanto dura a trageacutedia envolve o autecircntico efeito dionisiacuteaco o qual
todavia eacute tatildeo poderoso que ao final impele o proacuteprio drama apoliacuteneo a uma esfera onde ele comeccedila a
falar com sabedoria dionisiacuteaca e onde nega a si mesmo e agrave sua visibilidade apoliacuteneardquo (NT 129)
93
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7
A existecircncia eacute um episoacutedio do nada
Arthur Schopenhauer
8
RESUMO
O projeto que aqui se apresenta tem como objetivo principal percorrer as
teorias do traacutegico schopenhaueriana e nietzscheana no intuito de apresentar as
principais caracteriacutesticas de cada uma destas teorias Este percurso teraacute como ponto de
partida o fundamento metafiacutesico comum a elas qual seja a filosofia schopenhaueriana
da vontade Atraveacutes desta exposiccedilatildeo pretendemos demonstrar natildeo somente a real
amplitude da influecircncia de Schopenhauer nos primeiros escritos de Nietzsche mas
tambeacutem algumas das peculiaridades existentes em cada uma das citadas teorias
Palavras-chave Schopenhauer - Nietzsche - Trageacutedia - Traacutegico - Filosofia da
vontade
ABSTRACT
The research presented herein has as its ultimate goal to discuss the
theories of the tragedy developed by Schopenhauer and Nietzsche highlighting the
main characteristics ndash points of convergence and divergence ndash of both Our trajectory
shall start from the metaphysical foundations apparently displayed in both theories
which is ndash the schopenhauerian philosophy of the will Throughout our exposition we
intend to show not only that Schopenhauers philosophy had a huge impact in
Nietzsches first writings but also reveal the peculiarities beneath the development of
their aforementioned theories
Keywords Schopenhauer - Nietzsche - Tragedy - Tragic ndash Philosophy of the will
9
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO11
1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES NA
FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA 17
2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU
SUBSTRATO METAFIacuteSICO42
21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo43
22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo45
23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana49
24 A finalidade moral da trageacutedia56
25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera62
3 A TEORIA DA TRAGEacuteDIA DO JOVEM NIETZSCHE65
31 A influecircncia de Schopenhauer na obra do primeiro Nietzsche66
32 O projeto subjacente ao nascimento da trageacutedia72
33 A teoria da trageacutedia publicada75
4 CONCLUSAtildeO pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo da
vida85
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS93
10
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CORRESPONDEcircNCIA = Correspondecircncias de Nietzsche (2007)
OC = Obras completas de Nietzsche (1963)
11
INTRODUCcedilAtildeO
ldquoDias sem nuacutemero nunca reservam a
ningueacutem nada mais que dissabores mais
proacuteximos da dor que da alegria Quanto aos
prazeres natildeo os discernimos e nossa vista os
buscaraacute em vatildeo logo que para nossa
desventura chegamos ao limite prefixado E
desde entatildeo o nosso aliacutevio uacutenico seraacute aquele
que daraacute a todos o mesmo fim na hora de
chegar de suacutebito o destino procedente do
tenebroso reino onde natildeo haacute cantos nem
liras onde natildeo haacute danccedilas ndash ou seja a morte
epiacutelogo de tudo Melhor seria natildeo haver
nascido como segunda escolha bom seria
voltar logo depois de ver a luz agrave mesma
regiatildeo de onde se veiordquo
(Soacutefocles)
As teorias sobre a trageacutedia de Schopenhauer e Nietzsche satildeo parte
indispensaacutevel no estudo da histoacuteria da filosofia da trageacutedia Dentre os diversos
pensadores contemporacircneos que tratam sobre o problema da trageacutedia e do traacutegico e que
deram visiacutevel destaque agraves teorias dos nossos filoacutesofos podemos destacar Walter
Benjamin1 e Peter Szondi
2 Entretanto nos trabalhos destes autores o problema do
1 BENJAMIN Walter Origem do drama barroco alematildeo Traduccedilatildeo Sergio Paulo Rouanet Satildeo Paulo
Brasiliense 2004
12
relacionamento e da interdependecircncia entre as filosofias de Schopenhauer e Nietzsche
natildeo eacute detalhado a contento Diante disto mesmo para um olhar historicamente
caracterizador torna-se vaacutelido um estudo comparado destas teorias que leve em
consideraccedilatildeo o quecirc ou o quanto haacute de comum em suas metafiacutesicas e a partir desta
perspectiva trace os aspectos coincidentes e dissidentes das mesmas mostrando seus
pontos de interdependecircncia e discrepacircncia muacutetua
Apesar de estar entre as teorias da trageacutedia mais estudadas do periacuteodo do
idealismo alematildeo a teoria Schopenhaueriana que eacute sempre analisada em relaccedilatildeo a seus
pressupostos metafiacutesicos ao ser vista sob outra perspectiva ganharia contornos
intensamente enriquecidos Esta perspectiva atraveacutes da qual nos propomos a examinar a
teoria do traacutegico do filoacutesofo eacute aquela que levaraacute em consideraccedilatildeo as influecircncias
histoacutericas culturais e filosoacuteficas que agiram diretamente sobre a esteacutetica do traacutegico
schopenhaueriana Ao lanccedilarmos um olhar sobre estas referidas influecircncias estaremos
abrindo caminho para uma melhor compreensatildeo sobre a teoria esteacutetica
schopenhaueriana o que conseguintemente refletiraacute em um juiacutezo mais adequado da
teoria nietzscheana
Para um entendimento mais eficiente das teorias propostas nas obras do
jovem Nietzsche parece-nos essencial o conhecimento de uma de suas mais decisivas
influecircncias a filosofia de Schopenhauer A analogia almejada erige-se na verdade
como meacutetodo de anaacutelise ou seja o que pretendemos eacute alcanccedilar uma maior compreensatildeo
dos problemas com os quais Nietzsche se deparou quando da elaboraccedilatildeo de sua primeira
obra e procurar identificar a existecircncia de alguma apropriaccedilatildeo eou adaptaccedilatildeo de alguns
conceitos da filosofia de Schopenhauer na resoluccedilatildeo destes problemas A necessidade
deste estudo comparativo torna-se ainda mais evidente quando e este eacute o caso
2 SZONDI Peter Ensaio sobre o Traacutegico Traduccedilatildeo Pedro Suumlssekind Rio de Janeiro Jorge Zahar
2005
13
defrontamo-nos com uma influecircncia que se apresenta tatildeo clara e assumidamente
admitida pelo autor Todavia natildeo se pretende aqui apenas a justaposiccedilatildeo de um
pensamento ao outro Apesar de ser identificaacutevel em toda a obra posterior de Nietzsche
encontra-se nos seus primeiros escritos sobretudo na obra O nascimento da trageacutedia
aquele momento discursivo no qual podemos apontar uma influecircncia mais direta da
filosofia de Schopenhauer
Dos trabalhos que fazem um estudo comparativo entre estes filoacutesofos a
maioria se ateacutem em identificar as diferenccedilas conceituais entre eles mais
especificamente no campo eacutetico e metafiacutesico Grosso modo tratam principalmente dos
problemas relativos agrave diferenciaccedilatildeo entre os conceitos de vontade nestes autores
vontade de viver e vontade de poder Estes estudos tecircm como foco a filosofia tardia de
Nietzsche onde este apesar da assumida influecircncia torna-se um criacutetico de
Schopenhauer A real extensatildeo da influecircncia deste filoacutesofo na primeira obra de
Nietzsche bem como o relacionamento entre suas teorias da trageacutedia permanecem
assim como territoacuterios ainda pouco explorados Ao lanccedilarmos olhar sobre esse
afastamento que Nietzsche mais tarde realizaraacute em relaccedilatildeo agrave filosofia
Schopenhaueriana verificamos mais uma vez a importacircncia do estudo de sua primeira
fase na qual poderemos detectar o referido afastamento
Podemos observar entretanto o crescimento do interesse no estudo da
obra O nascimento da trageacutedia de Nietzsche Nos uacuteltimos anos assistimos tambeacutem no
Brasil agrave publicaccedilatildeo de vaacuterios trabalhos que tecircm sob perspectiva a complexidade desse
seu primeiro livro Na bibliografia sugerida neste projeto constam publicaccedilotildees dos
seguintes autores Roberto Machado (2006) Rosa Maria Dias (2005 e 2009) Iracema
Macedo (2006) Marcio Joseacute Silveira Lima (2006) Estas publicaccedilotildees tratam temas
diversos da esteacutetica nietzscheana tais como a muacutesica a trageacutedia o traacutegico ou a
14
repercussatildeo do livro de Nietzsche e sua influecircncia wagneriana Podemos ver entretanto
naqueles e em outros trabalhos a constante chave de leitura que atribui a Schopenhauer
a influecircncia decisiva natildeo apenas sobre o jovem Nietzsche como usualmente se aponta
mas tambeacutem sobre um peculiar imbricamento entre metafiacutesica e esteacutetica o qual se
sustentaria sobre os ldquoimpulsos artiacutesticos da naturezardquo o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco Nos
termos de Dias (2005 27)
A oposiccedilatildeo apoliacutenea e dionisiacuteaca considerada no plano
metafiacutesico se daacute a partir da noccedilatildeo de vontade ou querer
estendida (sic) no sentido que a ela deu Schopenhauer de
ldquocentro e nuacutecleo do mundordquo ou ldquoforccedila que eternamente quer
deseja e aspirardquo () O mundo fenomecircnico como resultado
desse movimento do querer () faz um segundo movimento
dessa vez esteacutetico reproduzindo o movimento inicial que a
vontade realizou em direccedilatildeo agrave aparecircncia
Tendo em vista o fato de que as teorias sobre o traacutegico dos dois filoacutesofos tecircm como
ponto de partida o sistema metafiacutesico schopenhaueriano fica clara a necessidade de
analisar em cotejo estas teorias tendo como fio condutor o meacutetodo de investigaccedilatildeo ora
proposto
Aleacutem de um aprofundamento no problema da influecircncia de
Schopenhauer na obra esteacutetica de Nietzsche o estudo de suas teorias sobre o traacutegico nos
daraacute a oportunidade de identificar as peculiaridades de cada uma destas teorias bem
como de estabelecer a sua importacircncia histoacuterica para uma filosofia do traacutegico
Em um primeiro momento traccedilaremos um panorama histoacuterico que
objetiva entender o status quo da filosofia do traacutegico no periacuteodo anterior ao
desenvolvimento da teoria schopenhaueriana da trageacutedia Esta investigaccedilatildeo seraacute
norteada pelas referecircncias constantes na proacutepria obra de Schopenhauer bem como por
um levantamento biograacutefico do filoacutesofo ou seja trabalharemos somente os momentos
que satildeo fundamentais para uma melhor compreensatildeo da obra schopenhaueriana Dentre
15
estes momentos daremos ecircnfase aos seguintes pontos o estudo sobre o helenismo de
Winckelmann e sua repercussatildeo a criacutetica teatral de Lessing Schiller e Goethe seu
projeto de criaccedilatildeo de um teatro alematildeo e suas produccedilotildees dramaacuteticas
Traccedilado o panorama histoacuterico no qual se insere a teoria da trageacutedia
schopenhaueriana passaremos para o toacutepico seguinte a apresentaccedilatildeo do sistema
metafiacutesico de Schopenhauer no qual estaacute embasada a sua teoria da trageacutedia bem como
a teoria nietzscheana A apresentaccedilatildeo seraacute feita de forma a expor os aspectos gerais da
filosofia da vontade atendo-se aos pontos deste sistema que estatildeo intrinsecamente
relacionados agraves teorias da trageacutedia dos nossos autores
Apoacutes os passos descritos reuniremos em um esboccedilo geral as
caracteriacutesticas do relacionamento existente entre o jovem Nietzsche e a filosofia de
Schopenhauer Para tanto utilizaremo-nos das referecircncias que Nietzsche faz a
Schopenhauer em suas cartas e escritos de juventude Com esta pesquisa pretendemos
identificar a opiniatildeo que o jovem Nietzsche tinha sobre a filosofia de Schopenhauer e a
profundidade da influecircncia desta em sua primeira obra Percorreremos ainda o ambiente
circundante agrave primeira obra de Nietzsche no intuito de realccedilar alguns dos conceitos
formativos de O nascimento da trageacutedia
Estabelecida a ligaccedilatildeo entre os autores passaremos ao estudo do apoliacuteneo
e do dionisiacuteaco par conceitual que nos forneceraacute a chave para se fazer um estudo
comparativo entre os filoacutesofos Para cumprir esta etapa analisaremos O nascimento da
trageacutedia bem como escritos contemporacircneos a este livro atraveacutes dos quais poderemos
delinear melhor a significaccedilatildeo desta duplicidade de impulsos e visotildees de mundo
Delinearemos assim os contornos das definiccedilotildees fundamentais da esteacutetica nietzscheana
e procuraremos construir um paralelo entre o mundo dionisiacuteaco e o mundo metafiacutesico
da vontade schopenhaueriano Temos a intenccedilatildeo de demonstrar a origem desta
16
metafiacutesica da vontade ou seja o criticismo kantiano e sua importacircncia para o conceito
de dionisiacuteaco Demonstraremos tambeacutem as caracteriacutesticas do mundo fenomecircnico
schopenhaueriano em sua identidade com o apoliacuteneo nietzscheano retomando a
epistemologia de Schopenhauer
Realizada a aproximaccedilatildeo e expostas tanto as semelhanccedilas como as
particularidades dos conceitos principais dos dois autores percorreremos sempre
focando um estudo paralelo entre os filoacutesofos outros conceitos que encontram
similaridade em suas esteacuteticas Com esse intuito procuraremos identificar nos dois
filoacutesofos o destaque dado agrave muacutesica dentro de suas teorias e o lugar dado agraves outras artes
em suas obras Discorreremos sobre a criacutetica que eles em uniacutessono fazem ao que
nomeiam racionalismo dogmatismo e o otimismo Finalizadas as aproximaccedilotildees
voltaremos nossa atenccedilatildeo ao aspecto de dissensatildeo que propicia o afastamento
fundamental entre as teorias dos dois filoacutesofos o efeito da trageacutedia Com isto
demonstraremos que a base metafiacutesica comum quando alinhada a pressupostos
esteacuteticos distintos geraraacute a referida dissensatildeo
17
1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES
NA FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA
Por que minha filosofia natildeo encontrou
simpatia e interesse Porque a verdade natildeo
estaacute de acordo com a tagarelice dos tempos
(Schopenhauer)
Neste primeiro capiacutetulo objetivamos apresentar as fontes filosoacuteficas
incutidas no sistema schopenhaueriano no intuito de situar historicamente o surgimento
da filosofia da vontade e trazer agrave baila o seu ambiente circundante bem como as teorias
filosoacuteficas com as quais Schopenhauer se propotildee a dialogar Apontaremos inicialmente
as influecircncias filosoacuteficas assumidamente presentes no sistema schopenhaueriano bem
como aquelas que fundamentam sua metafiacutesica e consequumlentemente sua teoria esteacutetica
Em um segundo momento procuraremos fazer um breve esboccedilo do ambiente artiacutestico-
cultural que dominava o pensamento alematildeo de entatildeo com o qual direta ou
indiretamente Schopenhauer e o jovem Nietzsche se depararam Com isto esperamos
posteriormente demarcar as singularidades que caracterizam as teorias destes filoacutesofos
Ressaltamos todavia que natildeo se trata de um mapeamento completo das fontes que
influenciaram esses autores ndash tarefa que exigiria um esforccedilo bem maior do que aquele
18
proposto por esta pesquisa ndash e sim de um breve panorama que se pautaraacute nas influecircncias
marcantemente presentes em suas obras
No contato com a obra de Schopenhauer a primeira impressatildeo que natildeo
passa despercebida aos seus leitores eacute a qualidade de sua prosa3 Tal qualidade
revelada na diversidade de recursos literaacuterios utilizados pelo autor eacute produto da visiacutevel
erudiccedilatildeo cultivada pelo filoacutesofo Conhecedor do grego do latim e suas respectivas
literaturas Schopenhauer transitava ainda pela obras literaacuterias cientiacuteficas e filosoacuteficas
contemporacircneas em suas liacutenguas originais conhecia o inglecircs o italiano o francecircs e o
espanhol Em sua juventude conviveu com vaacuterias personalidades do meio cultural
germacircnico que frequumlentavam o salatildeo de sua matildee em Weimar dentre eles Goethe a
maior figura das letras germacircnicas com quem teve um relacionamento mais proacuteximo
Sua obra eacute repleta de citaccedilotildees de poetas dramaturgos e seu conhecimento das artes
plaacutesticas e da muacutesica natildeo satildeo superficiais Em suas viagens pela Europa pocircde admirar
diversas esculturas e pinturas e como ele proacuteprio dizia pocircde ler diretamente no ldquolivro
do mundordquo Essa erudiccedilatildeo pode ser notada mesmo diante do desconhecimento de sua
biografia pela observaccedilatildeo da enorme quantidade de citaccedilotildees e menccedilotildees que estatildeo
espalhadas no interior de suas obras traduzidas ou como em sua maior parte citadas
em suas respectivas liacutenguas Frequumlentava as mais diversas aacutereas de conhecimento de sua
eacutepoca como sustenta Aramayo
3 O cuidado com a qualidade da produccedilatildeo literaacuteria tanto no que se refere agrave clareza quanto agrave riqueza de
recursos linguumliacutesticos eacute uma das caracteriacutesticas que Schopenhauer e Nietzsche tecircm em comum Esta
qualidade torna-se mais evidente ainda quando seus trabalhos satildeo natildeo raramente comparados com os
escritos filosoacuteficos alematildees daquele periacuteodo principalmente aos de Fichte Schelling e Hegel O elogio agrave
prosa schopenhaueriana feito por literatos e filoacutesofos contemporacircneos influenciados por sua obra pode
ser ilustrado agrave exaustatildeo entre eles encontram-se Thomas Mann Goethe Wittgenstein e o proacuteprio
Nietzsche ldquoMas a imensa forccedila de penetraccedilatildeo deste pensamento explica-se antes de tudo pelo fato de o
autor ser ao lado de Nietzsche o maior entre os escritores filosoacuteficos alematildeesrdquo (Rosenfeld 1996 177)
Jorge Luis Borges em uma entrevista publicada por Die Welt em 25 de marccedilo de 1975 realizava esta
confissatildeo ltPara mim existe um escritor alematildeo ao qual prefiro Schopenhauer Sei que deveria dizer
Goethe poreacutem Schopenhauer me interessa muitiacutessimo mais Tanto que estudei alematildeo ndash que aprendi
sobre os versos de Heine ndash fundamental e especificamente para poder ler a Schopenhauer em sua proacutepria
liacutenguagt (Aramayo 2001 18)
19
ldquoEm sua busca pela verdade Schopenhauer natildeo desdenha
nenhum aliado Os dramaturgos novelistas e poetas estatildeo quando
menos em peacute de igualdade com os mais egreacutegios filoacutesofos A perspicaacutecia
de Shakespeare ou a genialidade de Voltaire e a sutileza de Goethe nada
devem para a eloquumlecircncia Platocircnica a precisatildeo de um Spinoza e o rigor
conceitual do admirado Kant Sua curiosidade natildeo conhece limites nem
prejuiacutezo algum e por esta razatildeo tampouco menospreza quando o
considera oportuno prestar suficiente atenccedilatildeo aos fenocircmenos
paranormais agrave hipnose ou ao caacutelculo cabaliacutestico se entende que em
algo isto pode servir-lhe para demonstrar sua tese ou avaliar algumas de
suas intuiccedilotildees E na mesma direccedilatildeo aponta seu grande empenho por
incorporar o pensamento das religiotildees orientais a nosso acervo cultural
na possibilidade de um enriquecimento muacutetuordquo (Aramayo 2001 14-15)
A comparaccedilatildeo feita atraveacutes de metaacuteforas4 paraacutebolas ou alegorias em
sua maioria retiradas de obras literaacuterias ou cientiacuteficas torna-se recurso literaacuterio
constantemente presente na obra do filoacutesofo e ao mesmo tempo termocircmetro de suas
influecircncias e de seu relacionamento com o pensamento de seus contemporacircneos Tais
recursos satildeo utilizados contudo com o objetivo consciente de construir conhecimento
de ilustrar a mateacuteria do seu pensamento Nas palavras do filoacutesofo ldquoAs comparaccedilotildees satildeo
de grande valor na medida em que reduzem uma relaccedilatildeo desconhecida a uma
conhecida Inclusive as comparaccedilotildees mais detalhadas transformadas em paraacutebola ou
alegoria satildeo somente a reduccedilatildeo de uma relaccedilatildeo qualquer agrave sua exposiccedilatildeo mais
simples ilustrativa e palpaacutevelrdquo (Schopenhauer SOE 86) Se o nosso objetivo eacute mostrar
as raiacutezes da filosofia de Schopenhauer ou seja as influecircncias que formaram a mateacuteria
de seu pensamento eacute sobre esta mateacuteria que devemos nos debruccedilar Natildeo podemos
contudo nos furtar a apontar a riqueza das fontes formalmente presentes em seus
escritos5 A percepccedilatildeo da presenccedila desta numerosa miscelacircnea de referecircncias dentro da
4 ldquoSua profusa e brilhante utilizaccedilatildeo das metaacuteforas eacute o que o converte sem duacutevida alguma em um grande
escritor cujo estilo se nos afigura tatildeo ameno quanto sugestivordquo (Aramayo 2001 54) 5 Mateacuteria e forma satildeo na concepccedilatildeo do filoacutesofo planos ou instacircncias da produccedilatildeo escrita que servem
como referecircncia para o julgamento de valor do pensamento de um autor ldquo Um livro nunca pode ser mais
do que a impressatildeo dos pensamentos do autor O valor desses pensamentos reside na mateacuteria ou seja
naquilo sobre o que ele pensou ou na forma isto eacute na elaboraccedilatildeo da mateacuteria naquilo que pensou a
respeitordquo (Schopenhauer SOE 11) A importacircncia dada agrave forma por Schopenhauer seraacute melhor
esclarecida quando posteriormente apresentarmos a caracteriacutestica fundamentalmente epistemoloacutegica de
toda produccedilatildeo artiacutestica dentro de sua metafiacutesica do belo
20
obra schopenhaueriana diz-nos algo sobre seu estilo e seu arcabouccedilo cultural
entretanto quando voltamo-nos para a busca das influecircncias diretamente presentes em
seu sistema ie agraves raiacutezes da mateacuteria de seu pensamento percebemos que elas natildeo satildeo
tatildeo numerosas
Uma leitura das fontes filosoacuteficas do sistema schopenhaueriano torna-se
diferentemente do que ocorre em outros sistemas de seu tempo menos trabalhosa por
dois motivos Primeiramente o autor natildeo esconde suas influecircncias mas ao contraacuterio
faz questatildeo de apontaacute-las citaacute-las e quando lhe parece necessaacuterio as critica ou exalta
Em segundo lugar o que facilita o mapeamento destas fontes eacute a caracteriacutestica de
unidade do sistema schopenhaueriano como um todo Apesar da longevidade do
filoacutesofo e da distacircncia temporal entre suas obras suas intuiccedilotildees fundamentais
continuaram sendo as mesmas ao longo de sua vida Nas palavras de Rosset
ldquoSchopenhauer eacute homem de um soacute livro o MVR e de um soacute pensamento (qualificado
por ele mesmo de ltpensamento uacutenicogt nas primeiras linhas de sua obra)rdquo (2005 35)6
Natildeo satildeo poreacutem coetacircneas as influecircncias que marcaram a obra do filoacutesofo
como talvez a constante menccedilatildeo a seus contemporacircneos possa sugerir Nas palavras do
filoacutesofo como citado por Lefranc (2005 17) ldquoPude amar prosseguir aperfeiccediloar a
minha obra soacute por ela mesma em tranquumlilidade completa ao abrigo de toda influecircncia
externa e meus contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes
permaneci estranhosrdquo Conhecia a filosofia de seu tempo todavia natildeo a tinha como
interlocutora na verdade a desdenhava satildeo famosas as criacuteticas de Schopenhauer contra
as filosofias de seus contemporacircneos principalmente as de Fichte Schelling e Hegel
6 Sobre a unidade da produccedilatildeo schopenhaueriana destacamos aleacutem de Rosset os apontamentos de outros
dois de seus maiores comentadores Arthur Huumlbscher e Alexis Philonenko Na introduccedilatildeo aos manuscritos
schopenhauerianos Huumlbscher aponta a importacircncia dos manuscritos na percepccedilatildeo desta unidade uma vez
que podemos notar em diversas fases da vida do filoacutesofo o desenvolvimento dos temas pontuais que
marcaram sua obra principal Vide Hubscher Introduction Manuscript Remains 1985 Alexis
Philonenko trata desta unidade no proacutelogo de sua obra Schopenhauer uma filosofia da trageacutedia
(Philonenko 1989 41-45)
21
(chamados de ldquoos trecircs sofistasrdquo) Quando faz referecircncias a eles comumente estaacute
imbuiacutedo de trecircs propoacutesitos criticar a qualidade formal de suas produccedilotildees
principalmente no que tange ao uso da liacutengua germacircnica apontar uma motivaccedilatildeo
individualista (subsistecircncia pessoal e status social) que existiria por traacutes de suas
elucubraccedilotildees filosoacuteficas e ressaltar a falta de atenccedilatildeo por parte daqueles filoacutesofos no
que se refere ao conteuacutedo da primeira criacutetica kantiana
Schopenhauer diagnosticava em seu tempo um periacuteodo de
empobrecimento da expressatildeo literaacuteria e do uso da liacutengua germacircnica e apontava como
os principais responsaacuteveis por estes acontecimentos os ldquoprofessores de filosofiardquo e seus
disciacutepulos As investidas schopenhauerianas contra a filosofia de seus contemporacircneos
podem ser encontrada em praticamente todas as suas obras mas estatildeo concentradas de
forma mais persistente em sua produccedilatildeo mais tardia na segunda ediccedilatildeo da QRPRS de
MVR em seus ensaios sobre a liberdade e o fundamento da moral e nos PP 7
Nesta
uacuteltima obra temos dedicados a estas criacuteticas alguns textos que podemos destacar Sobre
o ofiacutecio de escritor Da leitura e dos livros Da liacutengua e das palavras e Sobre a filosofia
universitaacuteria A liacutengua alematilde no que se refere agrave sua capacidade expressiva era tida em
mais alta consideraccedilatildeo por nosso filoacutesofo Afirmava que dentre as liacutenguas modernas
era ldquoa uacutenica na qual se pode escrever quase tatildeo bem quanto em grego ou em latimrdquo
(Schopenhauer SOE 72) Esta capacidade de expressatildeo de uma liacutengua eacute segundo o
filoacutesofo resultado de sua aptidatildeo em representar conceitos Desta forma na medida em
que surgem novos conceitos a elaboraccedilatildeo de novas palavras que os representem eacute um
sinal de evoluccedilatildeo adequaccedilatildeo e riqueza da liacutengua Entretanto para o filoacutesofo os
neologismos e adaptaccedilotildees criados por seus contemporacircneos natildeo eram resultados da
7 Muitos historiadores da filosofia bioacutegrafos e comentadores apontam que esta criacutetica adveacutem do
ressentimento pelo fracasso de Schopenhauer como docente na universidade de Berlim onde Hegel
reinava absoluto bem como da falta de reconhecimento de sua filosofia diante do sucesso dos professores
da mesma universidade
22
tentativa de representaccedilatildeo de novos conceitos mas ao contraacuterio eram comprovaccedilatildeo de
sua ldquopobreza de espiacuterito que a todo custo quer colocar algo no mercado e por natildeo ter
novos pensamentos chega com palavras novasrdquo (Schopenhauer SOE 129)
Schopenhauer condenava a atitude de seus contemporacircneos de utilizarem-se de
artifiacutecios como a natildeo designaccedilatildeo do caso a expressatildeo dos preteacuteritos por meio do
imperfeito a supressatildeo dos prefixos e outros subterfuacutegios para com isso disfarccedilar a sua
imprecisatildeo conceitual De acordo com Schopenhauer tratavam displicentemente a
liacutengua alematilde por dois motivos por natildeo possuiacuterem uma mateacuteria conceitualmente
relevante a ser expressa ou entatildeo para conscientemente causar a impressatildeo de que a
possuem e neste caso a responsabilidade pela natildeo compreensatildeo do texto seria atribuiacuteda
agrave incompetecircncia intelectual do leitor
Os que compotildeem discursos difiacuteceis obscuros enleados e
ambiacuteguos natildeo sabem ao certo o que querem dizer tecircm somente uma
consciecircncia vaga a esse respeito que luta primeiro por uma ideacuteia poreacutem
amiuacutede querem tambeacutem ocultar de si mesmos e dos outros que na
realidade eles natildeo tecircm nada a dizer Como Fichte Schelling e Hegel
querem parecer saber o que natildeo sabem pensar o que natildeo pensam e dizer
o que natildeo dizem Algueacutem que tenha algo correto a dizer se esforccedilaraacute por
exprimi-lo de maneira indistinta ou distinta (Schopenhauer SOE 39)
Podemos perceber entatildeo que ao criticar o estilo ldquoobscurordquo e ldquopomposordquo de seus
contemporacircneos Schopenhauer aponta como causa deste estilo natildeo somente a sua falta
de mateacuteria mas tambeacutem uma atitude consciente e arquitetadamente maldosa e com
toda a sua forccedila retoacuterica condena esta atitude
Nobre bdquoatualidade‟ magniacuteficos epiacutegonos geraccedilatildeo crescida no
leite materno da filosofia hegeliana Pela gloacuteria eterna quereis apertar
vossas garras em nossa antiga liacutengua para que a marca com um icnoacutelito
conserve para sempre o vestiacutegio de vossa existecircncia insiacutepida e sombria
Mas Dicirc Meliora Fora paquidermes fora Esta eacute a liacutengua alematilde Nela se
expressaram homens ou melhor nela cantaram grandes poetas e grandes
pensadores escreveram Arredai as patas Ou natildeo tereis o que comer (Soacute
isso os assusta) (Schopenhauer SOE 72-73)
23
A uacuteltima frase desta citaccedilatildeo nos eacute aclarada pelo texto Sobre a filosofia universitaacuteria
onde o filoacutesofo expotildee os argumentos de sua criacutetica agrave filosofia produzida em seu tempo
Para Schopenhauer os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo podem devido agrave sua funccedilatildeo
estatal se imiscuir do compromisso poliacutetico-religioso que seu cargo exige e
conseguintemente sustentados pelo Estado tratam de fazer sua apoteose Nas palavras
de Cacciola constantes na introduccedilatildeo agrave traduccedilatildeo brasileira do referido texto
ldquoSchopenhauer eacute um continuador da criacutetica romacircntica ao filisteiacutesmo que se origina em
Tieck A ironia que visa os homens de vida tatildeo regular como o reloacutegio lhe eacute bem
familiar O filisteu eacute o erudito pedante que soacute pensa na proacutepria vantagem O professor
de filosofia que pauta seus ensinamentos de acordo com os ditames do Estado e da
religiatildeo eacute o tipo acabado do filisteu A idolatria do Estado eacute a apoteose do filisteiacutesmo
(Schopenhauer SFU XXX) Por traacutes das ideacuteias dos ldquofiloacutesofos de profissatildeordquo estaria
incutido o retorno disfarccedilado da ldquoteologia judaicardquo de uma ldquopsicologia racionalrdquo da
ldquoliberdade da vontaderdquo e outros dogmas que de acordo com Schopenhauer refletem a
sua vocaccedilatildeo de trabalharem ldquoin maiorem Dei gloriamrdquo como exigido pela ideologia
estatal daquele periacuteodo Natildeo podem sob a pena de perderem o sustento financeiro
pessoal e familiar bem como sob o custo de perderem o status que o cargo lhes confere
contrariar os dogmas patronais
ldquo[] o intelecto dessa gente permanece fiel agrave sua destinaccedilatildeo
natural de trabalhar a serviccedilo da vontade como normalmente acontece
Mas por isso mesmo existe sempre uma intenccedilatildeo como fundamento do
seu agir e pensar eles tecircm fins o tempo todo e soacute tomam conhecimento
do que diz respeito a esses fins e portanto soacute do que corresponde a
esses fins A atividade do intelecto liberto da vontade condiccedilatildeo da pura
objetividade e por isso de todas as grandes realizaccedilotildees permanece-lhes
eternamente estranha ndash eacute uma faacutebula para seu coraccedilatildeordquo (Schopenhauer
SFU 63)
Desta forma os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo estariam voltados para a investigaccedilatildeo
objetiva da ldquoverdaderdquo a qual exigiria o distanciamento de todo e qualquer interesse
24
pessoal De acordo com o sistema schopenhaueriano tal distanciamento eacute um dom raro
com o qual a natureza a poucos contempla Na metafiacutesica schopenhaueriana a natureza
eacute aristocraacutetica O gecircnio eacute fenocircmeno raro seja ele filoacutesofo ou artista A percepccedilatildeo
objetiva do mundo alheia aos interesses pessoais da vontade individual eacute uma exceccedilatildeo
que soacute se manifesta raramente e as pessoas atadas aos interesses pessoais de sua
vontade natildeo podem reconhececirc-lo imediatamente Estes gecircnios produzidos pela natureza
seriam os verdadeiros educadores do mundo e os ldquoprofessores de filosofiardquo ao tentar
representar este papel que soacute agrave natureza cabe eleger causam-lhe repulsa
Tantas mentes comuns que se acham por cargo e profissatildeo no
dever de representar papeacuteis que a natureza nem ao menos lhes atribuiacutera e
de transportar cargas que exigem ombros de gigantes espirituais
oferecem na realidade um espetaacuteculo deveras lamentaacutevel Pois escutar
cantar os roucos e ver danccedilar os coxos eacute penoso mas ouvir filosofar a
mente limitada eacute insuportaacutevel (Schopenhauer SFU 34)
Prova do embotamento da capacidade de reconhecimento de uma produccedilatildeo genial era
para o filoacutesofo o fato de seus contemporacircneos ignorarem ou mesmo passarem agrave
margem do que seria a mais importante produccedilatildeo filosoacutefica do periacuteodo a cisatildeo entre o
real e o ideal perpetrada pela primeira criacutetica kantiana Esta era para o filoacutesofo a maior
prova do demeacuterito filosoacutefico de seus contemporacircneos preocupados com seus interesse
pessoais alheios a uma observaccedilatildeo objetiva do mundo natildeo levaram em consideraccedilatildeo os
limites impostos pela primeira criacutetica kantiana a toda investigaccedilatildeo racional
Depois de Kant ter cortado o nervo de todas as provas possiacuteveis
da teologia ndash tatildeo incisivamente que desde entatildeo ningueacutem mais pocircde
meter-se com elas ndash o esforccedilo filosoacutefico em quase cinquumlenta anos tem
consistido nas diversas tentativas de insinuar sutil e astuciosamente a
teologia e os escritos filosoacuteficos nada mais satildeo na sua maioria do que
tentativas infrutiacuteferas de reanimar um cadaacutever sem vida (Schopenhauer
SFU 81)
Natildeo nos interessa aqui adentrarmo-nos aos reais motivos existentes por
traacutes dos vitupeacuterios schopenhauerianos contra os pensadores de seu tempo nem
25
tampouco fazer juiacutezo valorativo sobre a importacircncia da filosofia da vontade em
comparaccedilatildeo ao idealismo absoluto Dentro do objetivo proposto qual seja situar
historicamente a filosofia da vontade e apontar suas influecircncias o importante eacute ressaltar
que a filosofia contemporacircnea a Schopenhauer natildeo fez efeito sobre a sua proacutepria a ponto
de modificaacute-la em seu conteuacutedo conforme esclarece o proacuteprio filoacutesofo ldquo [] meus
contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes permaneci
estranhosrdquo (apud Lefranc 2005 17) Eacute fundamental verificarmos que apesar do
sistema schopenhaueriano ter se desenvolvido agrave margem do idealismo de entatildeo seu
autor natildeo o desconhecia e muitas das ilustraccedilotildees e argumentaccedilotildees utilizadas por ele na
explicaccedilatildeo de suas teorias apoiavam-se nesta sua contenda com o seu tempo
Entretanto como a filosofia de seu tempo pretende-se herdeira do kantismo assim
tambeacutem procede Schopenhauer e a suas criacuteticas ao idealismo absoluto estatildeo
fundamentadas em sua pretensatildeo a uma heranccedila direta da filosofia kantiana Sobre a
heranccedila de Kant Schopenhauer esclarece ldquoEm todo caso natildeo reconheccedilo que tenha
acontecido algo na filosofia entre ele e mim por conseguinte ligo-me imediatamente a
elerdquo (Schopenhauer MVR 525)
Natildeo obstante as diversas criacuteticas ao retorno kantiano ao dogmatismo8
das quais a obra de Schopenhauer estaacute recheada sua admiraccedilatildeo por ele foi tambeacutem
abundantemente expressa Considerava-o ldquoa inteligecircncia mais original jaacute criada pela
naturezardquo (Schopenhauer SFU52) e afirmava que seus escritos capitais eram o ldquo[]
fenocircmeno mais importante que ocorreu ao longo dos uacuteltimos dois mil anos na filosofia
[]rdquo (Schopenhauer MVR 22) O maior reflexo desta admiraccedilatildeo pode ser observada
8 Nas palavras de Cacciola ldquoO criticismo de Kant teria segundo Schopenhauer perdido sua forccedila inicial
na segunda ediccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura Ou seja Schopenhauer acusa Kant de uma ldquorecaiacuteda no
dogmatismordquo por ter amenizado seu confronto com a teologia A ameaccedila dogmaacutetica jaacute configurada na
filosofia teoacuterica concretiza-se na Eacutetica de Kant quando esta acolhe como postulados Deus
imortalidade da alma e liberdade No poacutes-kantismo a importacircncia crescente atribuiacuteda agrave filosofia praacutetica
de Kant a expensas de sua criacutetica do conhecimento teria levado a uma espeacutecie de contaminaccedilatildeo da
razatildeo teoacuterica pela razatildeo praacutetica fazendo com que a primeira se transformasse num oacutergatildeo apto para
captar o Absolutordquo (Cacciola 1994 20)
26
no fato de que eacute da filosofia kantiana que Schopenhauer retira o leitmotiv para o
desenvolvimento da ideacuteia central9 de sua filosofia Esta ideacuteia central eacute aquela contida
concisamente no tiacutetulo de sua obra principal O mundo como vontade e como
representaccedilatildeo10
A dualidade formada entre representaccedilatildeo e vontade atraveacutes da qual
Schopenhauer acredita ter desvendado o ldquomisteacuteriordquo cosmoloacutegico eacute uma apropriaccedilatildeo
assumida dos conceitos kantianos de fenocircmeno e coisa-em-si respectivamente
Dizemos apropriaccedilatildeo pois aqueles conceitos satildeo acrescidos na filosofia
schopenhaueriana de caracteriacutesticas singulares Eacute com base nesta dualidade de
perspectivas de conhecimento do mundo inspirada na primeira criacutetica kantiana que o
filoacutesofo desenvolve as demais teorias que compotildeem seu sistema sejam elas a esteacutetica a
eacutetica a poliacutetica etc
Para Schopenhauer ldquoo maior meacuterito de Kant eacute a distinccedilatildeo entre
fenocircmeno e coisa-em-sirdquo (Schopenhauer MVR 526) Esta distinccedilatildeo foi o que
possibilitou a ldquorevoluccedilatildeo copernicanardquo realizada sobre o dogmatismo anterior A partir
daquele momento ldquoo mundo objetivo como o conhecemos natildeo pertence agrave essecircncia das
coisas em si mesmas mas eacute seu mero FENOcircMENO condicionado exatamente por
aquelas mesmas formas que se encontram a priori no intelecto
humanordquo(Schopenhauer MVR 530) Na teoria kantiana temos o espaccedilo e o tempo
como formas da sensibilidade que na filosofia de Schopenhauer satildeo associadas agrave
faculdade do entendimento juntamente com a causalidade uacutenica das doze categorias
kantianas do entendimento mantidas por Schopenhauer em seu sistema Desta forma o
mundo enquanto representaccedilatildeo eacute aquele que se apresenta para o sujeito enquanto objeto
9 Quando dizemos ideacuteia central havemos de lembrar que no sistema schopenhaueriano esta categorizaccedilatildeo
eacute singular (o tema seraacute tratado no iniacutecio do proacuteximo capiacutetulo) 10
A importacircncia que o filoacutesofo daacute ao tiacutetulo de uma obra eacute esclarecedora para a compreensatildeo da
importacircncia de sua ideacuteia central ldquoo que o sobrescrito deve ser para uma carta eacute o que um tiacutetulo deve ser
para um livro ou seja antes de tudo deve ter o objetivo de destinaacute-lo agrave parte do puacuteblico que pode se
interessar por seu conteuacutedo Sendo assim o tiacutetulo precisa ser caracteriacutestico e por ser naturalmente
breve deve ser conciso lacocircnico pregnante e se possiacutevel um monograma do conteuacutedordquo
(Schopenhauer SOE 09-10)
27
condicionado por estas trecircs formas presentes a priori no intelecto humano tempo
espaccedilo e causalidade Quanto ao mundo noumecircnico que dentro da teoria kantiana eacute um
ldquox desconhecidordquo Schopenhauer o explica atraveacutes da Vontade sua traduccedilatildeo da coisa-
em-si Essa dualidade que traz agrave tona a ldquocompleta diversidade entre o ideal e o realrdquo
(Schopenhauer MVR 527) doutrina que de acordo com Schopenhauer (MVR 528) foi
expressa por Kant de forma soacutebria calma demonstrada e incontestaacutevel jaacute havia sido
expressa tambeacutem em linguagem mais miacutetica e poeacutetica por outras duas doutrinas que
tambeacutem estatildeo profundamente presentes na obra Schopenhaueriana Platatildeo e os escritos
indianos dos Vedas e Puranas
Os estudos das obras de Platatildeo e Kant foram recomendaccedilatildeo de Schultze
um dos professores de Schopenhauer em Gottingen (Weissmann 1980 54) e formam os
pilares filosoacuteficos do sistema schopenhaueriano A separaccedilatildeo entre o real e o ideal
executada por Kant eacute vista tambeacutem na obra platocircnica Sua teoria das ideacuteias bem como
sua alegoria da caverna satildeo expressotildees de uma intuiccedilatildeo da existecircncia daquela separaccedilatildeo
O que Kant teria sistematizado a seu modo eacute a mesma verdade que ldquojaacute Platatildeo
incansavelmente repete e na maioria das vezes exprime em sua linguagem do seguinte
modo este mundo que aparece aos sentidos natildeo possui nenhum verdadeiro ser mas
apenas um incessante devir ele eacute e tambeacutem natildeo eacute sua apreensatildeo natildeo eacute tanto um
conhecimento mas uma ilusatildeordquo (Schopenhauer MVR 528)
Aleacutem de Platatildeo os livros sagrados dos indianos afirmavam esta ldquoilusatildeordquo
ldquofantasmagoriardquo do mundo e constituem tambeacutem uma fonte frequumlentemente utilizada
por Schopenhauer O contato do nosso filoacutesofo com o pensamento oriental se deu
quando do seu encontro com o orientalista Friedrich Majer no salatildeo de sua matildee em
28
Weimar A partir de entatildeo o interesse do filoacutesofo pelo pensamento oriental foi se
intensificando ao longo de sua vida 11
A mesma verdade representada de modo completamente outro eacute
tambeacutem uma doutrina capital dos vedas e puranas a saber a doutrina de
Maia pela qual natildeo se entende outra coisa senatildeo aquilo que Kant nomeia
o fenocircmeno em oposiccedilatildeo agrave coisa-em-si pois a obra de maia eacute
apresentada justamente como este mundo visiacutevel no qual estamos um
efeito maacutegico que aparece na existecircncia uma aparecircncia inconstante e
inessencial em si destituiacuteda de ser comparaacutevel agrave ilusatildeo de oacutetica e ao
sonho um veacuteu que envolve a consciecircncia humana um algo do qual eacute
igualmente falso e igualmente verdadeiro dizer que eacute ou natildeo eacute
(Schopenhauer MVR 528)
Estas trecircs doutrinas estavam admitidamente presentes quando da
elaboraccedilatildeo do nuacutecleo conceitual fundamental da posteriormente nominada Filosofia da
Vontade Entretanto aleacutem de formarem seu nuacutecleo conceitual podemos encontraacute-las
ainda posteriormente em outros instantes desta filosofia O pensamento oriental seraacute
figura fortemente presente na eacutetica schopenhaueriana desenvolvida no quarto livro do
Mundo onde o filoacutesofo adotaraacute como fundamento de sua eacutetica o sentimento da
compaixatildeo jaacute presente na doutrina budista Platatildeo e Kant satildeo ainda influecircncias
fundamentais como veremos no proacuteximo capiacutetulo da esteacutetica schopenhaueriana O
primeiro novamente atraveacutes de sua teoria das ideacuteias seraacute utilizado por Schopenhauer na
definiccedilatildeo do objeto artiacutestico Do segundo poderemos notar sua influecircncia nas teorias
schopenhauerianas do sublime da imaginaccedilatildeo e da contemplaccedilatildeo desinteressada todas
elas fundamentais agrave compreensatildeo da teoria da arte poeacutetica
- - - - - - - - - -
11
Suas fontes principais eram o Oupnekacutehat uma traduccedilatildeo latina dos vedas e o Asiatic Journals jornal
publicado pela sociedade asiaacutetica fundada em 1784 Para uma referecircncia completa das citaccedilotildees orientais
na obra de Schopenhauer veja o apecircndice do artigo de Moira Nicholls The influences of Eastern Thought
on Schopenhaueracutes Doctrine of the Thing-in-itself (in Janaway 1999 197-204)
29
Apresentadas as principais influecircncias teoacutericas do sistema
schopenhaueriano passemos a uma breve descriccedilatildeo do ambiente cultural que naquele
momento tinha como foco um projeto de fundaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para o teatro e a
literatura germacircnicas Tal projeto envolveu os mais importantes dramaturgos criacuteticos
escritores e pensadores do periacuteodo imediatamente anterior a Schopenhauer12
e eacute
tambeacutem posteriormente retomado por Nietzsche em seu Nascimento da Trageacutedia Sua
importacircncia para a filosofia da vontade pode ser medida pela recorrente referecircncia feita
a estes pensadores nas obras dos filoacutesofos Seu iniacutecio em meados do seacuteculo XVIII deu-
se pela influecircncia exercida pelo historiador da arte Johann J Winckelmann junto aos
escritores poetas e dramaturgos posteriores dentre eles Lessing Goethe e Schiller
A influecircncia winckelmanniana que de acordo com Butler (1958 11)
criou ondas cujo violento distuacuterbio ldquoainda varrem as praias do seacuteculo XXrdquo se pautou
em duas noccedilotildees fundamentais13
a imitaccedilatildeo dos antigos e o belo ideal Winckelmann
propunha um novo modelo no qual a arte germacircnica deveria se basear para atingir uma
grandiosidade rara e ldquoinimitaacutevelrdquo a imitaccedilatildeo dos gregos Por esta imitaccedilatildeo o
historiador natildeo propunha uma mera coacutepia das obras de arte gregas poreacutem uma imitaccedilatildeo
do modo de produccedilatildeo artiacutestica dos gregos qual seja sintetizar a beleza ideal descoberta
na observaccedilatildeo da diversidade objetiva da natureza Esta proposta de um retorno ao
modelo antigo coloca Winckelmann na esteira da conhecida querela entre antigos e
modernos e eacute a igniccedilatildeo para o periacuteodo literaacuterio conhecido como classicismo germacircnico
Esta disputa quanto agrave valorizaccedilatildeo das obras poeacuteticas antigas ou modernas estaraacute de um
modo ou de outro presente nas teorias schopenhaueriana e nietzscheana da trageacutedia
12
De acordo com Schopenhauer as obras de tais poetas e escritores assim como a filosofia de Kant satildeo
exemplos para os quais a literatura e a filosofia pobres de seu tempo deveriam se voltar No que se refere
ao uso da liacutengua ele aconselha ldquoLede vede qual liacutengua Winckelmann Lessing Klopstock Wieland
Goethe Buumlrger Schiller falaram e emulai-a mas natildeo fazei o mesmo com o jargatildeo estupidamente
excogitado pelos miseraacuteveis literatos atuais e entre eles pelos professores que vatildeo agrave escola de liacutenguardquo
(Schopenhauer SOE 57-58) 13
Esta duas noccedilotildees fundamentais satildeo ressaltadas por Suumlssekind e Machado em seus trabalhos sobre o
tema Veja Suumlssekind 2008 67-77 e Machado 2006 9-14
30
Como veremos posteriormente Schopenhauer privilegiaraacute a trageacutedia moderna em
detrimento da antiga argumentando que aquela cumpre com maior competecircncia o seu
objetivo enquanto forma de arte qual seja provocar repulsa agrave vontade de viver e
estimular sua negaccedilatildeo Apesar deste privileacutegio pelas obras traacutegicas modernas o filoacutesofo
natildeo deixa como seus contemporacircneos de ter os gregos como modelo e natildeo satildeo raros
seus elogios agraves produccedilotildees helecircnicas Para Schopenhauer Winckelmann foi para a
histoacuteria da arte assim como ele o eacute para a da filosofia um exemplo do modo epiciacuteclico
atraveacutes do qual a natureza de tempo em tempo faz avanccedilar o conhecimento do gecircnero
humano Para o filoacutesofo a retomada do projeto kantiano realizada pelo seu sistema eacute a
demonstraccedilatildeo de que entre ele e Kant nenhum conhecimento foi produzido Como
exemplo deste esquema epiciacuteclico na histoacuteria da arte Schopenhauer utiliza-se do
retorno de Winckelmann agrave beleza claacutessica o que nos mostra a importacircncia dada pelo
filoacutesofo agrave forma de arte grega bem como ao projeto inaugurado pelo historiador da arte
Apoacutes explicar o esquema epiciacuteclico da evoluccedilatildeo dos progressos humanos
Schopenhauer diz
Para quem deseja poreacutem ter uma prova do esquema geral dos
epiciclos aqui exposto com base na histoacuteria da arte basta observar a
escola de escultura de Bernini que florescia ainda no seacuteculo passado
particularmente em seu desenvolvimento francecircs sucessivo e que
representava a natureza comum em vez da beleza claacutessica e o decoro do
minueto francecircs em vez da simplicidade e da graccedila antigas Tal escola
faliu quando apoacutes a repreensatildeo de Winckelmann voltou-se agrave escola dos
antigos (Schopenhauer SOE 110)
Nietzsche por sua vez seguiraacute o caminho winckelmanniano de exaltaccedilatildeo da forma de
arte antiga apresentando a trageacutedia grega como modelo para a arte moderna e elogiando
a iniciativa de seus predecessores em valorizar e recuperar a arte helecircnica
31
Conviria que alguma vez se pesasse diante dos olhos de um juiz
insubornaacutevel em que tempo e em que homens o espiacuterito alematildeo se
esforccedilou mais vigorosamente por aprender dos gregos e se admitirmos
com confianccedila que esse louvor uacutenico deveria ser atribuiacutedo agrave nobiliacutessima
luta de Goethe Schiller e Winckelmann pela cultura haveria em todo
caso que acrescentar que desde aquele tempo e depois das influecircncias
imediatas daquela luta tornou-se cada vez mais fraca de maneira
incompreensiacutevel a aspiraccedilatildeo de se chegar por uma mesma via agrave cultura e
aos gregos (Nietzsche NT 120)
Podemos perceber entatildeo a importacircncia do helenismo proposto por Winckelmann no
pensamento germacircnico ao observarmos a sua duraccedilatildeo tendo em vista que mais de um
seacuteculo separa o historiador da arte e o filoacutesofo da vontade de poder o que confirma a
forccedila de suas propostas para uma cultura em formaccedilatildeo e justifica o epiacuteteto com o qual
Butler caracterizou este periacuteodo dizendo que nele vemos ldquoa tirania da Greacutecia sobre a
Alemanhardquo14
O segundo ponto fundamental da teoria da arte winckelmanniana o belo
ideal natildeo provocou menor interesse em seu tempo Este belo ideal era alcanccedilado a
partir da reuniatildeo em uma uacutenica obra harmocircnica daquilo que o artista observa de mais
belo na natureza
A natureza tem seus defeitos o corpo mais belo natildeo deixa de tecirc-los e
nele encontramos frequumlentemente partes que em outros satildeo mais belas ou
podem supor-se mais perfeitas [] Os gregos trataram de reunir as formas
elegantes de vaacuterios corpos belos como sabemos pelo diaacutelogo de Soacutecrates com o
ceacutelebre pintor Parrasio [] Esta seleccedilatildeo das partes belas e sua harmocircnica
associaccedilatildeo em uma soacute figura produziu a beleza ideal (Winckelmann 2002
130)
Tal beleza encontrou sua manifestaccedilatildeo primeira na Greacutecia do periacuteodo helecircnico devido
ao favorecimento das condiccedilotildees geograacutefico-climaacuteticas15
e poliacuteticas16
Aleacutem da beleza
14
Tiacutetulo de sua obra Butler 1958 15
Sobre a influecircncia climaacutetica Winckelmann deduz ldquoA natureza depois de haver se manifestado em
gradaccedilotildees extremas de frio e de calor se estabeleceu na Greacutecia como em seu centro e por isso reina
naquele paiacutes uma temperatura intermediaacuteria entre o inverno e o veratildeo E quanto mais se aproxima deste
centro mais claridade e serenidade oferece e suas obras se manifestam em formas mais graciosas e
amaacuteveis e com detalhes mais caracteriacutesticos e decididosrdquo (Winckelmann 2002106) 16
Sobre as condiccedilotildees poliacuteticas sejam elas patriarcais democraacuteticas ou tiracircnicas Winckelmann conclui o
seguinte ldquoCom relaccedilatildeo ao regime poliacutetico e o governo da Greacutecia a liberdade eacute uma das causas da
preeminecircncia dos gregos na arte Tambeacutem a liberdade parece ter estabelecido na Greacutecia a sua sede existia
32
formal retirada da diversidade das formas naturais eleitas as mais belas as obras gregas
eram exemplares devido agrave importacircncia dada pelos artistas agrave sua expressatildeo A obra de
arte deve sua forccedila tanto agrave beleza das formas quanto agrave expressatildeo da alma nela contida
De acordo com Winckelmann ldquoa expressatildeo de uma alma grande vai muito aleacutem da
plasmaccedilatildeo de uma bela naturezardquo isto ocorre devido ao fato de que para o historiador
da arte ldquona Greacutecia a sabedoria estendia a matildeo agrave arte e insuflava nas figuras almas
mais que comunsrdquo (Winckelmann 1958 19) As caracteriacutesticas que esta expressatildeo deve
possuir satildeo aquelas contidas na passagem mais famosa da obra de Winckelmann na
qual ele descreve ainda como exemplo daquela expressatildeo artiacutestica o grupo estatuaacuterio
do Laocoonte que por sua vez seraacute alvo de uma grande controveacutersia posterior da qual
participaratildeo dentre outros Lessing Herder Goethe Schelling e Schopenhauer
Reproduzimos a passagem de Winckelmann em sua integridade
A caracteriacutestica geral e principal das obras mestras gregas eacute uma
nobre simplicidade e uma serena grandeza tanto na atitude como na
expressatildeo Assim como nas profundidades o mar estaacute sempre calmo por
muito que se agite a superfiacutecie do mesmo modo a expressatildeo nas figuras
dos gregos mostra em meio a todas as paixotildees uma alma grande e
comedida Isso transmite o rosto do Laocoonte ndash e natildeo soacute o dele ndash em
meio agrave mais violenta dor O sofrimento que aparece em todos os
muacutesculos e fibras do corpo e que no baixo ventre contraiacutedo se
experimenta tatildeo intensamente que parecemos senti-lo natildeo se exterioriza
contudo mediante qualquer ira no rosto e em toda a atitude Natildeo lanccedila
um grito terriacutevel tal como Virgiacutelio cantou em seu Laocoonte A abertura
da boca natildeo o permitiria Mais parece um suspiro angustiado como o
descreve Sadolet A dor do corpo e a grandeza da alma estatildeo distribuiacutedos
com igual forccedila atraveacutes de toda a composiccedilatildeo da figura e em certa
medida estatildeo equilibrados Laocoonte sofre mas sofre como o
Filoctetes de Soacutefocles sua dor nos toca a alma mas desejariacuteamos poder
suportar essa dor com a grandeza desse homem (Winckelmann 1958
18-19 grifo nosso)
inclusive junto ao tronos de seus reis que governavam paternalmente a seus suacuteditos antes que mais
ilustrados gozassem do destino de uma completa liberdade Homero chama a Agamemnoacuten de pastor de
seus povos com o que queria designar sua ternura com seus subordinados e sua preocupaccedilatildeo constante
pela felicidade dos mesmos Eacute bem verdade que depois surgiram tiranos mas natildeo o foram mais para uma
determinada cidade e a naccedilatildeo inteira jamais reconheceu um soberano uacutenicordquo (Winckelmann 2002 109)
33
Desta famosa passagem retiramos dois momentos que especialmente nos interessam O
primeiro dele eacute a enunciaccedilatildeo que caracterizaraacute o ideal de beleza das obras gregas nobre
simplicidade e uma serena grandeza Este ideal winckelmanniano de beleza eacute o que
torna a arte grega nas palavras de Suumlssekind ldquoinimitaacutevel e ao mesmo tempo faz dela o
modelo a ser imitadordquo (Suumlssekind 2008 69) Interessa-nos especialmente devido agrave
influecircncia desta definiccedilatildeo para a teoria do jovem professor de filologia da Basileacuteia
Podemos ver ateacute mesmo pelo vocabulaacuterio utilizado para descrever a arte grega a
proximidade e a influecircncia exercida por estes conceitos nas teorias esteacuteticas do primeiro
Nietzsche Luminosidade serenidade harmonia satildeo alguns dos conceitos que
posteriormente seratildeo utilizados por Nietzsche ao definir o seu impulso artiacutestico
apoliacuteneo17
O segundo momento - quando Winckelmann defende o espiacuterito grego na
escultura do Laocoonte em contraposiccedilatildeo ao personagem de Virgiacutelio comparando esta
representaccedilatildeo escultural com o Filoctetes de Soacutefocles - seraacute o precursor do posterior
debate sobre as fronteiras que separam as formas de arte Para Winckelmann ldquoa nobre
simplicidade e a serena grandeza das estatuas gregas eacute tambeacutem a verdadeira
caracteriacutestica dos escritos gregos da melhor eacutepoca dos escritos da escola
socraacuteticardquo(Winckelmann 1958 31) O debate sugerido pela passagem do qual
participaraacute posteriormente o proacuteprio Schopenhauer seraacute iniciado por outro pensador
de grande importacircncia para o projeto cultural alematildeo Gotthold Ephraim Lessing
Lessing em sua obra Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da
poesia apresentaraacute a contenda que chegaraacute ateacute Schopenhauer Para Lessing o ponto de
discordacircncia com Winckelmann estaacute no motivo pelo qual na escultura o Laocoonte natildeo
17
Segundo Rodriges (2007 93-126) tambeacutem o conceito do impulso dionisiacuteaco estaria mesmo que em
germe presente nos estudos de Winckelmann Segundo seu artigo o mapeamento da origem e
desenvolvimento da discussatildeo sobre os citados impulsos artiacutesticos da natureza ou seja sobre a
importacircncia dos deuses Apolo e Dioniacutesio na cultura grega abrangeria necessariamente diversas aacutereas do
pensamento alematildeo desde Winckelmann dentre elas os estudos filoloacutegicos o movimento romacircntico e as
filosofias idealistas
34
apresenta as caracteriacutesticas de quem grita e lamenta Como vimos para Winckelmann o
conjunto estatuaacuterio em questatildeo eacute exemplar pelo fato de transmitir atraveacutes da atitude
estoacuteica diante da dor a grandeza de alma que seria a regra universal da verdadeira arte
grega Esta grandeza enquanto regra universal estaria ainda de acordo com o
historiador da arte presente tanto nas formas pictoacutericas como nas obras poeacuteticas
Contrapondo-se a Winckelman Lessing afirma - exemplificando atraveacutes de passagens
de poetas queridos ao proacuteprio Winckelmann como Homero e Soacutefocles - que em vaacuterios
momentos da poesia antiga diversos personagens dentre eles deuses e heroacuteis proferem
exaltados lamentos e gritos e isto natildeo lhes subtrai a grandeza da alma Sendo assim se
na poesialdquoo gritar na sensaccedilatildeo de dor corporal pode coexistir muito bem com uma
grande alma portanto a expressatildeo de uma tal alma natildeo pode ser a causa pela qual
apesar disso o artista natildeo quer imitar esse grito no seu maacutermore antes deve haver um
outro motivo por que aqui ele separa-se do seu rival o poeta que expressa esse grito
com o melhor propoacutesitordquo(Lessing 1998 86) O motivo pelo qual em sua representaccedilatildeo
estatuaacuteria o Laocoonte natildeo grita eacute para Lessing uma questatildeo de limitaccedilatildeo da forma de
expressatildeo escultoacuterica que ao se submeter agrave ldquolei da belezardquo natildeo pode representar o grito
desfigurador Em suas palavras
O mestre visava a suprema beleza sob as condiccedilotildees aceitas da dor
corporal Esta em toda a sua violecircncia desfiguradora era incompatiacutevel
com aquela Ele foi obrigado a reduzi-la ele foi obrigado a suavizar o
grito em suspiro natildeo porque o grito denuncia uma alma indigna mas
antes porque ele dispotildee a face de um modo asqueroso (Lessing 1998
92)
Devemos ressaltar que segundo a teoria artiacutestica de Lessing para quem as leis a que
devem obedecer a arte estatildeo ligadas agrave sua interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica a arte eacute
julgada atraveacutes do seu efeito Neste contexto ao conceder a seus personagens
caracteriacutesticas de humanidade como por exemplo a manifestaccedilatildeo da dor atraveacutes de
35
lamentos e gritos o poeta estaria aproximando o heroacutei traacutegico do puacuteblico a ser atingido
e consequumlentemente maximizando a identificaccedilatildeo entre eles e com isto o efeito
esperado qual seja a catarse atraveacutes do temor e da compaixatildeo Esta identificaccedilatildeo
alcanccedilada por via da demonstraccedilatildeo dos lamentos dos heroacuteis dramaacuteticos natildeo pode ser
obtida da mesma forma pelas artes pictoacutericas Nestas que satildeo expressotildees de um
momento uacutenico a beleza natildeo pode deixar de estar presente pois ela eacute um dos
ingredientes mais fundamentais do efeito buscado Na poesia o heroacutei natildeo seraacute
caracterizado em uma uacutenica accedilatildeo como ocorre na escultura Sendo assim o grito
narrado eacute apenas um momento do conjunto que iraacute definir o personagem
O Laocoonte de Virgiacutelio grita mas esse Laocoonte que grita eacute
justamente aquele que noacutes jaacute conhecemos e amamos como o patriota
mais cordato e o pai mais afetuoso Noacutes vinculamos o seu grito natildeo ao
seu caraacuteter mas antes apenas ao seu sofrimento insuportaacutevel Apenas
esse uacuteltimo noacutes ouvimos no seu grito e o poeta pode tornaacute-lo sensiacutevel
apenas graccedilas a esse grito (Lessing 1998 106)
Com isto tanto o escultor que suprime o grito quanto o poeta que o descreve ao
fazerem o fazem de acordo com as leis que regem suas respectivas formas de arte
Da contenda sobre o grito do Laocoonte e sua representaccedilatildeo escultoacuterica e
poeacutetica iratildeo participar ainda diversos pensadores Dentre os mais ilustres podemos
destacar Goethe cuja explicaccedilatildeo sobre a escultura proacutexima em muitos pontos da de
Lessing encontra-se nos Propileus Para o poeta o grupo estatuaacuterio ldquoesgota o seu objeto
e preenche com sucesso todas as condiccedilotildees da arterdquo (Goethe 2005126) Segundo
Goethe a escultura eacute limitada a um uacutenico momento da accedilatildeo e sua comparaccedilatildeo com a
poesia de Virgiacutelio eacute injusta O poeta a avalia assim como Lessing atraveacutes de seu efeito
ainda dentro das categorias poeacuteticas de Aristoacuteteles e destaca
O ser humano possui apenas trecircs sentimentos no sofrimento
proacuteprio e alheio o medo o terror e a compaixatildeo a previsatildeo temerosa de
um mal que se aproxima a percepccedilatildeo inesperada do sofrimento presente
36
e a participaccedilatildeo no sofrimento duradouro ou que passou todos os trecircs
sentimentos satildeo representados e suscitados por esta obra de arte e na
verdade na gradaccedilatildeo a mais conveniente (Goethe 2005 126)
Em sua obra principal Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 46 a seus comentaacuterios do
Laocoonte que seratildeo acrescidos de exemplos no posterior volume de suplementos
Reconhece o avanccedilo feito por Lessing ao colocar no lugar de um fundamento
psicoloacutegico um fundamento puramente esteacutetico e critica ainda as teorias psicoloacutegicas e
fisioloacutegicas de seu tempo como as de Hirt e Fernow18
Para Schopenhauer apesar de
sua aproximaccedilatildeo do que seria uma ldquoexplicaccedilatildeo corretardquo da obra Lessing natildeo encontrou
o seu ponto exato qual seja a explicaccedilatildeo de que o grito natildeo pertence ao domiacutenio de
uma representaccedilatildeo escultoacuterica
Antes de qualquer investigaccedilatildeo psicoloacutegica e fisioloacutegica sobre se
Laocoonte em sua situaccedilatildeo poderia gritar ou natildeo deve-se decidir em
relaccedilatildeo ao grupo de esculturas o seguinte que nele o grito natildeo pode ser
exposto pelo motivo de que a exposiccedilatildeo do grito reside por inteiro fora
do domiacutenio da escultura (Schopenhauer MVR 2005 303)
Para Schopenhauer a simples exposiccedilatildeo que representaria o grito ou seja ldquoo
escancarar violento da bocardquo natildeo pode ocasionar o efeito que o grito mesmo enquanto
forma de expressatildeo ocasionaria O efeito que o grito pode causar em uma arte
descritiva atraveacutes do uso da imaginaccedilatildeo do leitor ou mesmo na arte representativa no
teatro tornar-se-ia motivo de riso caso seja representado por uma boca escancarada na
arte plaacutestica Schopenhauer utiliza-se do exemplo do Laocoonte para demonstrar a
necessidade do estabelecimento de fronteiras entre as artes que devido agrave suas formas
devem obedecer agraves competecircncias determinadas pelo objeto representado (no caso da
teoria schopenhaueriana as competecircncias seratildeo determinadas pelas ideacuteias a serem
representadas como veremos posteriormente) Esta preocupaccedilatildeo com os limites entre as
18
Segundo Schopenhauer Hirt (Horen 1797 parte 10) apresenta a explicaccedilatildeo de que Laocoonte natildeo grita
pois estaacute impossibilitado pela sufocaccedilatildeo que o leva agrave morte Fernow por sua vez faz uma amalgama das
opiniotildees de Winckelmann Lessing e Hirt
37
formas artiacutesticas presente na esteacutetica schopenhaueriana e no Laocoonte de Lessing foi
contudo como nos lembra Suzuki (Rosenfield 2001 36-56) ignorada por Goethe
(como podemos ver pelos elementos da poeacutetica aristoteacutelica utilizados pelo poeta para
explicar a escultura na citaccedilatildeo presente na paacutegina anterior) e seraacute posteriormente
tambeacutem desconsiderada por Nietzsche em seu projeto de uma obra de arte total
Diante do acima exposto ainda tratando de Lessing podemos perceber
que toda a discussatildeo acerca do Laocoonte foi desencadeada pela motivaccedilatildeo de defesa da
arte poeacutetica agrave qual Lessing dedicou sua vida como escritor diretor e criacutetico teatral
Desta forma a importacircncia de Lessing para o tema em questatildeo nesta dissertaccedilatildeo estaacute
mais ligado ao seu papel junto a um projeto de formaccedilatildeo de um teatro alematildeo e sua
interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica Enquanto teoacuterico e criacutetico do teatro o autor da
Dramaturgia de Hamburgo exerceu grande influecircncia na cultura posterior ao oferecer a
seu tempo uma nova interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica que vai de encontro agraves
interpretaccedilotildees francesas e de Gottsched que eram por sua vez inflexiacuteveis em relaccedilatildeo agraves
regras (das unidades de espaccedilo tempo e lugar do estatuto social dos personagens da
linguagem e do nuacutemero de atos) Lessing atento agraves necessidades de uma burguesia em
ascensatildeo que natildeo se identificava mais com as concepccedilotildees aristocraacuteticas do modelo de
teatro francecircs e imbuiacutedo na construccedilatildeo do projeto de formaccedilatildeo cultural de uma naccedilatildeo
fragmentada oferece atraveacutes de suas interpretaccedilotildees uma seacuterie de elementos que estaratildeo
presentes nas consideraccedilotildees de pensadores posteriores Dentre estes elementos podemos
destacar as seguintes uma discussatildeo acerca dos conceitos de mimese temor
compaixatildeo catarse a defesa da utilizaccedilatildeo de caracteres mistos a liberdade do gecircnio
ante as regras o enaltecimento dos teatros espanhol e inglecircs principalmente de
Shakespeare
38
Ao tratarmos do referido projeto de um teatro alematildeo e tambeacutem do
classicismo germacircnico dois nomes ainda satildeo fundamentais para sua formaccedilatildeo bem
como eacute incontestaacutevel sua influecircncia sobre Schopenhauer e o jovem Nietzsche19
satildeo
eles Goethe e Schiller O primeiro deles maior dos poetas do classicismo germacircnico
foi um ampliador do projeto Winckelmanniano ldquoPois Goethe pensa o ideal de beleza
natildeo soacute em relaccedilatildeo agrave pintura e agrave escultura mas tambeacutem e principalmente em relaccedilatildeo agrave
poesia ou agrave arte dramaacutetica ampliando as ideacuteias de Winckelmann nesse domiacutenio como
teoacuterico e como criador de obras teatraisrdquo (Machado 2006 14) Seu classicismo
impresso em seus textos teoacutericos e na forma e conteuacutedo de diversas de suas produccedilotildees
literaacuterias eacute o auge do projeto Winckelmanniano Podemos ver na esteira de Machado
(2006 14-22) que o ideal de beleza proposto por Winckelmann eacute ainda o que domina a
noccedilatildeo Goetheana dos gregos e eacute apoiado neste ideal que o poeta interpreta a arte do
mundo helecircnico e a apresenta como um exemplo para a arte de seu tempo Ressaltamos
poreacutem que dada a sua extrema heterogeneidade como nos adverte Butler (1958 85)
encontrar um senso de harmonia interna no todo da obra goetheana eacute tarefa tatildeo incerta
como determinar o grau de sua influecircncia no pensamento de nossos filoacutesofos No que se
refere a Schopenhauer entretanto natildeo podemos deixar de ressaltar que sua convivecircncia
com o poeta foi norteada pelas discussotildees cientiacuteficas e filosoacuteficas que ocupavam o palco
de seus estudos agrave eacutepoca Goethe dedicou vinte anos de sua vida ao estudo das cores e
sua obra Doutrina das cores eacute o resultado desta investigaccedilatildeo Ela atraiu o interesse do
jovem Schopenhauer que apoacutes alguns encontros com Goethe dedicou-se a escrever a
sua proacutepria teoria que divergia em diversos pontos da teoria do poeta fato que marcou o
fim da relaccedilatildeo amistosa dos mesmos Sobre este periacuteodo de convivecircncia
19
De acordo com Martin (1996) a obra desenvolvida por Nietzsche enquanto escritor e pensador eacute
demasiado complexa para ser reduzida ou atribuiacuteda a determinada influecircncia Entretanto em uma
estatiacutestica crua podemos ter o vislumbre desta influecircncia como se segue ldquoSchopenhauer eacute referenciado
394 vezes na obra de Nietzsche Wagner 327 vezes a Goethe existem 311 menccedilotildees Schiller encontra-se
em nono lugar com 126 menccedilotildeesrdquo (Martin 1996 5)
39
especificamente sobre o episodio citado Goethe vai escrever mais tarde conforme
citaccedilatildeo de Safranski
O Dr Schopenhauer foi para mim um amigo benevolente
Estivemos de acordo em muitas coisas mas foi impossiacutevel evitar ao final
um certo distanciamento como dois amigos que ateacute certo momento
caminharam juntos se datildeo a matildeo para despedir pois querem dirigir-se um
ao norte outro ao sul perdendo-se rapidamente de vista um ao outro
(apud Safranski 1991 265)
Ainda na esteira do movimento de estabelecimento de um projeto
artiacutestico nacional encontramos Schiller que ao lado de Goethe foi o responsaacutevel pelas
maiores obras do classicismo literaacuterio de Weimar Para o estudo em questatildeo o que mais
nos interessa em sua obra eacute o periacuteodo no qual antes do contato com Goethe Schiller
produz seus escritos teoacutericos sobre a trageacutedia Estes estudos podem ser considerados
em uma perspectiva histoacuterica como uma ponte entre a interpretaccedilatildeo da trageacutedia nos
moldes puramente aristoteacutelicos e a trageacutedia vista enquanto forma de arte que para
atingir o efeito dela esperado deve refletir a condiccedilatildeo traacutegica do homem pensada com
base em elementos retirados da filosofia moral e da esteacutetica kantiana Em seus textos
teoacutericos sobre a poesia traacutegica pertencentes ao periacuteodo que Schiller assume ter estado
sob influecircncia da filosofia kantiana ele descreve a trageacutedia como expressatildeo do sublime
ndash conceito extraiacutedo da criacutetica kantiana do juiacutezo ndash como a representaccedilatildeo sensiacutevel da
dicotomia entre a liberdade moral a vontade individual (vontade tomada enquanto
faculdade de pensar e agir livremente) por um lado e a necessidade natural e instintiva
por outro Vemos pela primeira vez em Schiller a utilizaccedilatildeo de categorias filosoacuteficas
kantianas na elaboraccedilatildeo de uma teoria da trageacutedia o que teraacute continuidade com as
teorias do idealismo absoluto e a do proacuteprio Schopenhauer Este eacute um momento
extremamente importante devido ao fato de marcar toda a reflexatildeo futura sobre o tema
ao fundar o deslocamento de uma interpretaccedilatildeo poeacutetica da trageacutedia baseada em
40
comentaacuterios da obra aristoteacutelica para uma interpretaccedilatildeo do traacutegico enquanto fenocircmeno
que descreve a situaccedilatildeo do homem no mundo De acordo com Machado ldquoEacute do
encontro de um grande dramaturgo como Schiller com a filosofia de Kant -
principalmente a sua eacutetica considerada como uma filosofia da liberdade e sua
esteacutetica no que diz respeito agrave teoria do juiacutezo sobre o sublime ndash que nasce a primeira
filosofia do traacutegico uma reflexatildeo filosoacutefica original que criou um tipo novo de
pensamento sobre a trageacutediardquo (Machado 2006 54) Na teoria schopenhaueriana da
trageacutedia podemos ver caracteriacutesticas da teoria schilleriana Primeiramente a presenccedila
marcante da influecircncia kantiana no que se refere ao sublime Em segundo lugar a
leitura da trageacutedia enquanto instrumento para a percepccedilatildeo de uma ordem moral do
mundo Tais caracteriacutesticas seratildeo aprofundadas no capiacutetulo posterior Vale antecipar que
na obra do jovem Nietzsche poderemos ver a exaltaccedilatildeo de Schiller em sua tentativa de
compreensatildeo do mundo helecircnico aleacutem do elogio agrave teoria schilleriana do coro Veremos
entretanto uma criacutetica acirrada no que se refere ao projeto de um teatro enquanto
instituiccedilatildeo moral
Neste capiacutetulo foram delineadas as principais influecircncias filosoacuteficas que
alicerccedilaram o sistema schopenhaueriano bem como esboccedilaram-se as diversas teorias
artiacutesticas que surgiram no periacuteodo em questatildeo teorias estas que propuseram mateacuteria
para a formaccedilatildeo do pensamento de nossos filoacutesofos A partir da cisatildeo entre fenocircmeno e
noumeno proposta por Kant e sua primeira criacutetica Schopenhauer elabora as matrizes de
seu sistema e para ilustraacute-lo encontra apoio na cosmologia platocircnica e no pensamento
oriental Vimos ainda que sua teoria esteacutetica eacute alimentada pela frequumlentaccedilatildeo agraves
categorias apresentadas por artistas teoacutericos e criacuteticos de arte de seu periacuteodo Por seu
turno vimos com Winckelmann a origem do estudo sobre os gregos e sua arte aleacutem do
estabelecimento destes como um modelo para a arte alematilde projeto este que foi
41
retomado por Lessing que por sua vez intensificou o estudo e propocircs um modelo de um
teatro nacional independente projeto que seraacute mais tarde revisitado e aprofundado por
Goethe e Schiller Esta apresentaccedilatildeo de influecircncias eacute imprescindiacutevel para identificarmos
a origem de certos elementos que satildeo fundamentais ao entendimento da proacutepria doutrina
schopenhaueriana tais como o caraacuteter moral de sua teoria esteacutetica sua preocupaccedilatildeo
com o estabelecimento de limite entre as artes sua interpretaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo da poeacutetica
sua utilizaccedilatildeo de conceitos esteacuteticos kantianos (sublime belo e desinteresse) sua
apreciaccedilatildeo das obras modernas seu reconhecimento da produccedilatildeo claacutessica seu desprezo
agrave filosofia de seu tempo Eacute tambeacutem atraveacutes do mapeamento aqui feito de algumas de
suas influecircncias mesmo que brevemente apontado que poderemos mais tarde
identificar alguns dos aspectos originais e singulares de sua teoria
Quanto agraves influecircncias presentes na teoria da trageacutedia do jovem Nietzsche
apontaremos complementos no capiacutetulo correspondente Eacute imprescindiacutevel dar destaque
no que se refere agrave obra nietzscheana agrave sua formaccedilatildeo filoloacutegica ao seu conviacutevio com
Richard Wagner e agrave sua leitura do proacuteprio Schopenhauer - e isto seraacute feito
posteriormente Esperamos ter deixado claro ateacute aqui que diferentemente de Zaratustra
Nietzsche natildeo desceu simplesmente de uma montanha mas faz parte de uma tradiccedilatildeo
histoacuterica assim como Schopenhauer e que a contextualizaccedilatildeo de suas teorias eacute
fundamental para a identificaccedilatildeo dos elementos ali presentes que singularmente se
originaram do sistema metafiacutesico da Vontade
42
2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU
SUBSTRATO METAFIacuteSICO
ldquoOra se todo mundo como representaccedilatildeo eacute
a visibilidade da Vontade a arte eacute o
clareamento dessa visibilidade a cacircmera
obscura que mostra os objetos mais
puramente permitindo-nos melhor abarcaacute-
los e compreendecirc-los eacute o teatro dentro do
teatro a peccedila dentro da peccedila em Hamletrdquo
(Schopenhauer)
Utilizando-se de uma metaacutefora retirada do Eacutedipo de Soacutefocles Schopenhauer nos
oferece um exemplo da caracteriacutestica de conexatildeo interna dos temas abordados em sua
obra20
ldquo minha filosofia eacute como a Tebas de cem portas desde todos os lados se pode
entrar e atraveacutes de todos se pode chegar por um caminho direto ateacute o centrordquo
(Schopenhauer 2002 4) Tendo em vista que nosso objetivo neste capiacutetulo eacute apresentar
a teoria schopenhaueriana da trageacutedia e seus fundamentos filosoacuteficos utilizaremo-nos
desta porta para termos acesso ao sistema schopenhaueriano Procuraremos percorrer o
20
Barboza define bem esta caracteriacutestica marcante da filosofia schopenhaueriana ldquoSchopenhauer eacute o
filoacutesofo da organicidade Procura-a porque com ela onde quer que se esteja no seu sistema estar-se-aacute
em toda parte O todo conteria as partes e seria contido por elas De uma metafiacutesica da efetividade se vai
para uma do belo desta para a da eacutetica que por sua vez pode remeter agrave muacutesica por seu turno a nos
enviar para a efetividade numa por assim dizer circularidade virtuosa A unidade natildeo se perde do
horizonte de observaccedilatildeordquo (Barboza 2001 137)
43
substrato metafiacutesico sustentador da teoria do traacutegico schopenhaueriana e perceber assim
a conectividade interna existente entre sua cosmologia sua teoria esteacutetica e sua eacutetica
De posse deste meacutetodo procuraremos destacar os conceitos fundamentais da teoria
traacutegica e de sua visatildeo de mundo que viratildeo posteriormente se fazer presentes tambeacutem
na obra do jovem Nietzsche
21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo
Agrave descriccedilatildeo das artes poeacuteticas Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 51 do primeiro
volume e o capiacutetulo 37 do segundo volume de sua obra principal Tais descriccedilotildees
encontram-se por sua vez ao final dos trechos dedicados agrave teoria esteacutetica (livro III de
MVR e sus complementos) e finalizam seus apontamentos do que podemos chamar na
esteira de Young (2005) das artes natildeo-musicais21
Em ambos os casos a teoria da
trageacutedia estaacute localizada ao final da apresentaccedilatildeo Esta localizaccedilatildeo juntamente com as
diversas citaccedilotildees e exemplos retirados de peccedilas traacutegicas das quais o filoacutesofo se utiliza ao
longo de seu trabalho nos permite ver a importacircncia da arte traacutegica para Schopenhauer
Em sua teoria artiacutestica existe uma hierarquizaccedilatildeo das artes que leva em consideraccedilatildeo a
capacidade de cada uma em apresentar um grau especiacutefico de objetivaccedilatildeo da vontade
Na cosmologia schopenhaueriana a vontade essecircncia do mundo identificada como
sendo a coisa-em-si kantiana manifesta-se (torna-se objeto de conhecimento) atraveacutes de
diversos graus ndash que exprimem a nitidez com que a vontade se manifesta para o
observador - representados pelos reinos da natureza e finalmente pelo homem Desta
forma ela se objetivaria no mundo inorgacircnico atraveacutes das forccedilas magneacuteticas e da
gravidade no mundo vegetal atraveacutes das funccedilotildees orgacircnicas no mundo animal atraveacutes
21
Como veremos mais adiante a muacutesica eacute uma exceccedilatildeo no sistema das artes schopenhaueriano pois natildeo
se relaciona a uma objetivaccedilatildeo da vontade mas expressa a proacutepria vontade e desta forma natildeo figura na
sistematizaccedilatildeo hieraacuterquica
44
dos instintos e dos motivos assim como o faz no homem A classificaccedilatildeo das artes
corresponde portanto a esta hierarquizaccedilatildeo cosmoloacutegica de objetivaccedilatildeo da vontade22
Sendo assim a arquitetura e a hidraacuteulica mostram a objetivaccedilatildeo da vontade no seu grau
mais baixo ao expor o jogo das forccedilas que caracterizam a mateacuteria tais como a gravidade
rigidez dureza resistecircncia luz A jardinagem e a pintura da natureza satildeo as formas
artiacutesticas cujo fim eacute a exposiccedilatildeo da objetivaccedilatildeo da vontade que se manifesta no reino
vegetal A pintura de animais encontra-se em um niacutevel superior pois o reino animal
objeto de sua representaccedilatildeo expotildee de forma mais evidente a vontade objetivada Temos
ainda as pinturas de retratos a pintura histoacuterica e a escultura que das artes plaacutesticas
formam a categoria superior cujo objeto eacute a exposiccedilatildeo da vontade no grau mais elevado
de sua cognoscibilidade o homem Esta mesma exposiccedilatildeo a do homem eacute tambeacutem o
objeto da arte poeacutetica que agrave diferenccedila das artes que fazem sua exposiccedilatildeo de modo
puramente intuitivo eacute auxiliada pela imaginaccedilatildeo No aacutepice das artes poeacuteticas
encontramos a trageacutedia a uacuteltima arte natildeo-musical a ser descrita A arte traacutegica eacute aquela
que possui a caracteriacutestica de por sua natureza representar de forma mais ilustrativa a
objetivaccedilatildeo mais desenvolvida da vontade a vida humana e suas relaccedilotildees Veremos
mais tarde que aleacutem de corresponder agrave hierarquia de objetivaccedilatildeo da vontade mais
desenvolvida a arte traacutegica ocupa um lugar especial na filosofia schopenhaueriana
devido agrave ldquograndeza de seu efeitordquo (Schopenhauer 2005 333) Diante do exposto
podemos depreender que a arte possui na filosofia schopenhaueriana um papel
cognitivo e a trageacutedia por sua vez eacute a forma artiacutestica que por sua competecircncia cognitiva
ocupa o primeiro lugar entre as artes natildeo musicais
22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo
22
Vemos aqui um exemplo da citada inter-conectividade existente no sistema schopenhaueriano tendo
em vista que a elaboraccedilatildeo de sua classificaccedilatildeo artiacutestica obedece ao construto metafiacutesico do livro II de
MVR e sua consequumlente cosmologia
45
A tarefa a que se propotildee o sistema schopenhaueriano eacute a decifraccedilatildeo do ldquoenigma
do mundordquo ie encontrar uma resposta agrave pergunta o que eacute o mundo Esta tarefa tem
origem no idealismo subjacente na primeira criacutetica kantiana e de certa forma era uma
tarefa da qual estava imbuiacutedo todo o pensamento filosoacutefico daquele periacuteodo ie por
decifraccedilatildeo do enigma do mundo podemos entender a decifraccedilatildeo da coisa-em-si
kantiana Temos daiacute o ponto de partida da filosofia de Schopenhauer o idealismo
transcendental do mundo fenomecircnico Sob o ponto de vista da representaccedilatildeo o mundo eacute
objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito agraves condiccedilotildees a priori do
entendimento que para o filoacutesofo satildeo as categorias do espaccedilo do tempo e da
causalidade
Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das formas a priori do entendimento eacute
interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos advindos da filosofia Platocircnica e oriental
como um mundo ilusoacuterio Conforme a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana Platatildeo jaacute
identificava esta caracteriacutestica ilusoacuteria do mundo em sua contraposiccedilatildeo teoacuterica entre o
mundo fiacutesico onde o devir impossibilitava a apreensatildeo do ser e o mundo das ideacuteias
onde haveria o verdadeiro encontro com o ser das coisas Ainda de acordo com a
interpretaccedilatildeo de Schopenhauer os livros sagrados indianos Vedas e Puranas faziam
esta distinccedilatildeo atraveacutes da noccedilatildeo do veacuteu de maia a consciecircncia humana seria envolvida
por um veacuteu o que resultaria em uma visatildeo oniacuterica do mundo e impediria assim a
percepccedilatildeo da realidade
Entretanto o mundo pode ainda ser conhecido atraveacutes de um segundo ponto de
vista como vontade Este eacute o ponto de vista que Schopenhauer utiliza-se para decifrar a
incognosciacutevel coisa-em-si kantiana Percorrendo uma ldquovia subterracircneardquo de modo
imanente Schopenhauer identifica nas accedilotildees do corpo bioloacutegico os atos da vontade
46
enquanto coisa-em-si e de forma analoacutegica a estabelece como essecircncia governante do
mundo Faz-se necessaacuterio aqui ressaltar como o fazem Brum (1998 23) e Rosset23
que
natildeo devemos interpretar esta analogia como uma visatildeo antropomoacuterfica do mundo Essa
essecircncia do mundo encontrada empiricamente natildeo eacute todavia um ente racional uma
ldquoalma do mundordquo Se por um lado o mundo fenomecircnico eacute aquele onde o princiacutepio de
razatildeo24
estabelece as normas de funcionamento um mundo natildeo-fenomecircnico mundo em
si enquanto vontade se expressa por sua alogicidade irracionalidade Grundlosigkeit
(falta de fundamento) Essa essecircncia irracional que manifesta-se nos diversos reinos e
indiviacuteduos do mundo eacute a raiz da visatildeo pessimista da existecircncia que de acordo com o
filoacutesofo pode ser a todo momento constatada empiricamente
As diversas manifestaccedilotildees da vontade suas objetidades carregam inerentemente
a sua iacutendole puro impulso cego vontade de vida insaciabilidade Notadamente o
mundo fenomecircnico objetivaccedilatildeo da vontade expressa a essecircncia desta vontade atraveacutes
de um conflito permanente Desenha-se um cenaacuterio de batalha onde cada objetidade da
vontade cada ser do mundo eacute orientado por sua essecircncia irracional desguarnecida de
qualquer telos ldquoAssim a vontade de vida crava continuamente os dentes na proacutepria
carne e em diferentes figuras eacute seu proacuteprio alimentordquo (Schopenhauer MVR 211) Este
fundamento ontoloacutegico a vontade determina assim o caraacuteter absurdo que a vida
humana toma na filosofia schopenhaueriana eterno esforccedilo carente de ordem ou
finalidade O ldquomecanismo internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens
marionetes guiados pela carecircncia
[]nenhuma satisfaccedilatildeo todavia eacute duradoura mas antes sempre eacute um
ponto de partida de um novo esforccedilo o qual por sua vez vemos travado em
toda parte de diferentes maneiras em toda parte lutando e assim portanto
23
[] natildeo haacute que transpor a experiecircncia da motivaccedilatildeo humana ao conjunto das forccedilas naturais para
compreender o segredo da natureza senatildeo o contraacuterio transpor o misteacuterio das forccedilas naturais ao conjunto
das motivaccedilotildees psicoloacutegicas para desvendar-se o segredo da vontade humana (Rosset 2005 31) 24
Princiacutepio tratado na tese de doutoramento de Schopenhauer SRQPRS bem como no livro I de MVR
O princiacutepio estabelece que todo acontecimento possui uma causa uma razatildeo de ser
47
sempre como sofrimento natildeo haacute nenhum fim uacuteltimo do esforccedilo portanto natildeo
haacute nenhuma medida e fim do sofrimento (Schopenhauer 2005 399)
Se carecircncia vontade e desejo satildeo a tocircnica da vida humana na maior parte do tempo e
satildeo experimentados como dor e infelicidade a felicidade por sua vez eacute definida
negativamente como um momento de ausecircncia daquela dor
Sentimos a dor e natildeo a ausecircncia da dor a inquietude e natildeo a
tranquumlilidade o medo e natildeo a seguranccedila Sentimos desejo como quando
temos fome e sede entretanto ao alimentarmo-nos estas sensaccedilotildees
deixam de existir para noacutes (MVR II 630)
Toda satisfaccedilatildeo momentacircnea de um querer eacute imediatamente suprimida por outro querer
ou se perdurar por algum tempo por menor que seja este transforma-se em teacutedio Um
ldquopecircndulo entre a dor e teacutediordquo eacute a definiccedilatildeo que Schopenhauer propotildee para a vida
humana Assim se daacute tambeacutem com a sauacutede a juventude e a liberdade Todos satildeo
conceitos definidos negativamente soacute os conhecemos atraveacutes de sua ausecircncia Este afatilde
por prolongar e conservar a vida essecircncia iacutentima de cada indiviacuteduo natildeo eacute contudo
resultado de uma observaccedilatildeo objetiva da mesma de um conhecimento que eleja a vida
como algo de valor a ser mantido e preservado e portanto os ldquo[] seres natildeo satildeo
atraiacutedos por algo que se lhes apresenta mas satildeo empurrados a elerdquo (MVR II 398) A
luta eterna observada nos diversos reinos da natureza a busca por alimento o esforccedilo da
procriaccedilatildeo se comparados aos momentos fugazes de satisfaccedilatildeo fazem da vida ldquoum
negoacutecio cujos investimentos natildeo cobrem nem de longe os custosrdquo (MVR II 399)
Em todas estas consideraccedilotildees se faz claro que a vontade de viver
natildeo eacute a consequecircncia do conhecimento da vida natildeo se trata de uma
bdquoconclusio ex praemissis‟ nem em geral eacute algo secundaacuterio antes
contudo eacute o primeiro e incondicionado a premissa de todas as premissas
e precisamente por isso aquilo do que haacute de partir a filosofia pois a
vontade de viver natildeo se apresenta como a consequumlecircncia do mundo senatildeo
o mundo como consequumlecircncia da vontade de viver (MVR II 405)
Um dos pontos essenciais a ser verificado nesta visatildeo de mundo eacute o
destronamento da razatildeo O ceacuterebro oacutergatildeo da razatildeo eacute o resultado de um esforccedilo da
48
vontade em seu percurso de objetivaccedilatildeo A racionalidade humana estaacute a serviccedilo da
vontade que eacute em sua essecircncia grundlos A razatildeo eacute ferramenta para que o homem
enquanto objetidade da vontade consiga satisfazer a seus anseios Em oposiccedilatildeo agrave
filosofia racionalista de entatildeo onde o ldquoreal eacute o racionalrdquo assistimos ao surgimento de
uma filosofia irracionalista das forccedilas inconscientes onde a razatildeo na medida em que eacute
mecanismo da vontade estaacute sempre a serviccedilo desta O comportamento humano eacute
naturalmente egoiacutesta voltado para os proacuteprios interesses e estes por sua vez satildeo
expressatildeo desta vontade aloacutegica desprovida de telos Schopenhauer se mostrava
consciente da singularidade desta sua biparticcedilatildeo do ego e da consequumlente visatildeo de
mundo que ela trouxe agrave luz e enfatizou isto em seus manuscritos berlinenses ldquo[] a
divisatildeo da mente o eu em duas partes diferentes - em vontade como parte essencial e
primaacuteria e em intelecto como secundaacuteria - eacute o grande princiacutepio e meacuterito de minha
filosofia e tambeacutem a principal diferenccedila dos demais sistemasrdquo (MR III 328)
Temos entatildeo os dois pontos de vista do mundo que fundamentam a visatildeo de
Schopenhauer e que posteriormente seratildeo transformados pela teoria nietzscheana da
trageacutedia nos dois impulsos da natureza o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco O primeiro deles eacute o
mundo da individualidade da pluralidade regido pelo que Schopenhauer vai chamar
utilizando-se de um termo retirado da escolaacutestica de principium individuationis
Nesse sentido servindo-me da antiga escolaacutestica denomino
tempo e espaccedilo pela expressatildeo principium individuationis que peccedilo para
o leitor guardar para sempre Tempo e espaccedilo satildeo os uacutenicos pelos quais
aquilo que eacute uno e igual conforme a essecircncia e o conceito aparece como
pluralidade de coisas que coexistem e se sucedem (MVR 171)
No segundo toto genere diferente do primeiro existe a vontade una indivisiacutevel natildeo
submetida ao princiacutepio de razatildeo e por isso sem fundamento
Em apoio a sua tese Schopenhauer invoca ao final do capiacutetulo 46 (Sobre a
nulidade e o sofrimento da vida) dos complementos de MVR a opiniatildeo de diversos
49
pensadores dentre eles Heroacutedoto Platatildeo Teoacutegnis Homero os tragedioacutegrafos gregos
Shakespeare Byron Voltaire Rousseau Faz-se importante neste momento ressaltar que
o filoacutesofo aponta a invenccedilatildeo da trageacutedia pelos gregos como uma expressatildeo desta visatildeo
de mundo ponto de vista que como veremos tambeacutem seraacute adotado pelo primeiro
Nietzsche
Ante tudo mencionarei que os gregos por mais distantes que
estivessem da visatildeo de mundo cristatilde e da alta Aacutesia e por muito que se
mantiveram sob o ponto de vista da afirmaccedilatildeo da vontade se fizeram
profundamente impressionados pela miseacuteria da existecircncia Isso eacute
demonstrado pela invenccedilatildeo da trageacutedia obra deles (MVR II 640)
23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana
Existe poreacutem uma forma de conhecimento que eacute ndash agrave diferenccedila daquela
subordinada ao princiacutepio de razatildeo que percebe os objetos em sua relaccedilatildeo com os outros
objetos do espaccedilo-tempo ndash uma forma mais universal pois mostra o objeto em sua
caracteriacutestica mais geral qual seja a de ser objeto para o sujeito A esta forma de
conhecimento Schopenhauer associa a apreciaccedilatildeo esteacutetica O seu objeto eacute a ideacuteia
platocircnica25
um grau determinado de objetivaccedilatildeo da coisa-em-si
Os diferentes graus de objetivaccedilatildeo da Vontade expressos em
inumeraacuteveis indiviacuteduos e que existem como seus protoacutetipos
inalcanccedilaacuteveis ou formas eternas das coisas que nunca aparecem no
tempo e no espaccedilo meacutedium do indiviacuteduo mas existem fixamente natildeo
submetidos a mudanccedila alguma satildeo e nunca vindo-a-ser enquanto as
coisas nascem e perecem sempre vecircm-a-ser e nunca satildeo os GRAUS DE
OBJETIVACcedilAtildeO DA VONTADE ia dizer natildeo satildeo outra coisa senatildeo as
IDEacuteIAS DE PLATAtildeO (MVR 191)
Esta instacircncia do conhecimento eacute alcanccedilada intuitivamente pela contemplaccedilatildeo
esteacutetica da natureza ou pela facilitaccedilatildeo de uma obra de arte Desta forma as obras de
25
Conforme o filoacutesofo ldquo A expressatildeo mais breve e sucinta daquele famoso dogma platocircnico foi dada por
Dioacutegenes Laeacutercio (II 12) Platatildeo ensina que as ideacuteias da natureza existem como protoacutetipos jaacute as demais
coisas apenas se assemelham a elas e satildeo suas coacutepiasrdquo (MVR 191)
50
arte na teoria schopenhaueriana satildeo uma exposiccedilatildeo destes graus de objetivaccedilatildeo da
vontade as ideacuteias Ao contraacuterio da criacutetica agrave arte presente na repuacuteblica platocircnica - onde a
arte seria uma coacutepia mais imperfeita da ideacuteia por retratar o mundo fenomecircnico sua
coacutepia direta - Schopenhauer aproxima as obras artiacutesticas das ideacuteias eternas as define
como suas expressotildees diretas Contudo a intuiccedilatildeo das ideacuteias exige um estado de
consciecircncia diferente do estado comum Neste uacuteltimo o aparelho cognitivo sob a eacutegide
da vontade estaacute voltado para a realizaccedilatildeo dos interesses individuais e entatildeo se
movimenta no mundo guiado por estes interesses ldquoCaso entretanto a Ideacuteia deva de
alguma maneira tornar-se conhecimento e ser conhecida pelo sujeito entatildeo isso soacute
pode ocorrer graccedilas agrave supressatildeo da individualidade no sujeito que conhecerdquo (MB 30)
A forma artiacutestica de conhecimento cujo possuidor eacute o denominado gecircnio estaacute
associada a um desprendimento das reacutedeas da vontade O gecircnio eacute entatildeo aquele que livre
dos interesses da vontade percebe as ideacuteias por traacutes dos objetos alheio aos princiacutepios
de razatildeo e de individuaccedilatildeo e traduz este objeto na obra de arte O observador esteacutetico eacute
portanto um partiacutecipe da genialidade na medida em que intui a ideacuteia por traz do objeto
observado conforme tambeacutem ao seu grau de desinteresse26
Durante a apreciaccedilatildeo
esteacutetica o homem se vecirc livre momentaneamente daquela parte de si que eacute a causadora
de todo o sofrimento individual e coletivo a vontade para transformar-se em um ldquopuro
sujeito de conhecimentordquo Este estado de satisfaccedilatildeo decorrente da suspensatildeo da vontade
individualizada eacute o sentimento do belo
Aquilo que se poderia nomear o lado mais belo e a pura alegria
da vida precisamente porque nos arranca da existecircncia real e nos
transforma em espectadores desinteressados diante dela eacute o puro
conhecimento que permanece alheio a todo querer eacute a fruiccedilatildeo do belo a
alegria autecircntica na arte Mas mesmo isso requer dispositivos raros e
cabe apenas a pouquiacutessimos e mesmo para estes eacute um sonho
passageiro (MVR 404)
26
Vemos nesta forma de associaccedilatildeo entre conhecimento e interesse mais uma heranccedila kantiana no caso
provinda da definiccedilatildeo de belo da criacutetica da faculdade de juiacutezo
51
- - - - - - - - - -
Ao descrever a apreciaccedilatildeo artiacutestica como um ato cognitivo Schopenhauer
preocupa-se em diferenciaacute-la do conhecimento cientiacutefico De fato boa parte das
consideraccedilotildees sobre a arte eacute dedicada ao esclarecimento desta diferenccedila
Podemos por conseguinte definir a arte como o modo de
consideraccedilatildeo das coisas independente do princiacutepio de razatildeo em oposiccedilatildeo
justamente agrave consideraccedilatildeo que o segue que eacute o caminho da experiecircncia e
da ciecircncia O modo de consideraccedilatildeo que seque o princiacutepio de razatildeo eacute o
racional o uacutenico que vale e que auxilia na vida praacutetica e na ciecircncia o
modo apartado do conteuacutedo do princiacutepio de razatildeo eacute o genial o uacutenico que
vale e que auxilia na arte (MB 59)
No caso da trageacutedia cujo objetivo eacute o conhecimento do homem e de suas relaccedilotildees a
ciecircncia que mais se assemelha a esta forma artiacutestica seria a histoacuteria Esta natildeo tem como
objetivo a demonstraccedilatildeo da essecircncia do homem em sua forma atemporal ou seja a
demonstraccedilatildeo daquilo que fundamenta toda accedilatildeo humana independente dos
acontecimentos empiacutericos
[ ]toda ciecircncia no sentido proacuteprio do termo compreendida como
conhecimento sistemaacutetico guiado pelo fio condutor do princiacutepio de
razatildeo parte sempre de dois dados baacutesicos um deles sem exceccedilatildeo eacute o
princiacutepio de razatildeo em uma de suas figuras como oacuterganon outro eacute o
objeto especiacutefico de cada uma delas enquanto problema (Schopenhauer
MVR 73)
Desta forma a histoacuteria teria a lei de motivaccedilatildeo e o os fatos humanos como oacuterganon e
problemas respectivamente Entretanto interessa a Schopenhauer um conhecimento
mais universal que soacute pode ser apresentado pela arte e que aponta por sua proximidade
agrave essecircncia daquilo que eacute a uma ldquoiacutendole imutaacutevelrdquo das manifestaccedilotildees
Podemos ver entatildeo que sendo consideradas como meios para o
conhecimento da essecircncia da humanidade arte poeacutetica e histoacuteria possuem todavia
objetos de conhecimento diferentes A primeira quando produzida pelo verdadeiro
gecircnio tenciona manifestar a ideacuteia por traacutes destes conceitos a ideacuteia de homem de
humanidade intuitivamente independentemente do princiacutepio de razatildeo do devir como
52
objeto puro de conhecimento alheio agrave corrente dos motivos em suas caracteriacutesticas
essenciais atemporais A histoacuteria por sua vez segue o rastro do princiacutepio de razatildeo
procurando apresentar o fenocircmeno humano em suas relaccedilotildees descrever-lhe em suas
situaccedilotildees particulares individuais empiacutericas Nas palavras de Schopenhauer
Arte e ciecircncia tecircm em uacuteltima instacircncia o mesmo estofo a saber
justamente o mundo tal como ele se posta diante de noacutes ou antes uma
parte destacada dele quanto ao todo do mundo soacute a filosofia o
considera Contudo a grande diferenccedila entre ciecircncia e arte reside na
maneira como elas consideram o mundo e trabalham seu estofo Tal
oposiccedilatildeo pode ser indicada com uma palavra a ciecircncia considera os
fenocircmenos do mundo seguindo o fio condutor do princiacutepio de razatildeo ao
passo que a arte coloca totalmente de lado o princiacutepio de razatildeo
independente dele para que assim a ideacuteia entre em cena
(SCHOPENHAUER MB 57)
Podemos notar que a valorizaccedilatildeo do que eacute imutaacutevel alheio agrave idealidade do tempo eacute a
raiz da valorizaccedilatildeo do conhecimento artiacutestico frente ao histoacuterico Este uacuteltimo natildeo visa o
acesso aos modelos eternos pois seu objeto satildeo os acontecimentos individuais do
mundo fenomecircnico que satildeo eventos meramente aparentes se considerarmos a
idealidade do tempo O que se manifesta no fluxo temporal do mundo fenomecircnico satildeo
sempre as mesmas formas eternas as ideacuteias entretanto com roupagens diferentes o
mesmo homem enquanto objetivaccedilatildeo da vontade a mesma humanidade Onde quer que
seja e em qualquer momento especiacutefico sua essecircncia eacute a mesma e esta essecircncia eacute o que
deve ser alvo de uma compreensatildeo privilegiada de entendimento e natildeo as suas diversas
manifestaccedilotildees Por este motivo Schopenhauer deixando explicito o seu chamado anti-
historicismo afirma que ldquose algueacutem jaacute lera Heroacutedoto jaacute estudara bastante histoacuteria e
efeitos filosoacuteficos Pois laacute jaacute estaacute tudo o que compotildee a posterior histoacuteria mundial a
atividade o obrar o sofrimento e o destino do gecircnero humano (Schopenhauer MVR
II 496) Podemos notar claramente a oposiccedilatildeo entre a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana
da histoacuteria e as tendecircncias de seu tempo principalmente presentes na filosofia de
Hegel Este de acordo com a criacutetica de Schopenhauer ignorando a filosofia critica de
53
Kant toma o fenocircmeno histoacuterico como coisa em si ao atribuir-lhe uma unidade de
consciecircncia Entretanto unidade de consciecircncia eacute um atributo dos indiviacuteduos e natildeo do
gecircnero humano Estas filosofias de acordo com o Schopenhauer satildeo frutos do realismo
otimista queldquo tomam o mundo como perfeitamente real e potildeem como fim do mesmo
uma miseraacutevel felicidade terrena (Schopenhauer MVR II 495)
- - - - - - - - - -
Colocando de lado o fio condutor do princiacutepio de razatildeo e mirando-se no
conhecimento da ideacuteia imutaacutevel atemporal encontramos a trageacutedia como fenocircmeno que
apresenta agrave intuiccedilatildeo o homem e sua condiccedilatildeo Eacute a forma de arte que tem como objeto o
grau mais elevado de objetivaccedilatildeo da vontade A intenccedilatildeo do artista traacutegico eacute de acordo
com Schopenhauer transmitir a ideacuteia intuiacuteda tarefa que seraacute bem sucedida de acordo
com a habilidade de utilizaccedilatildeo da teacutecnica artiacutestica por um lado e com a capacidade de
percepccedilatildeo esteacutetica do apreciador por outro O tragedioacutegrafo diferentemente do
historiador que relata os fatos empiacutericos explicitando seus motivos e consequumlecircncias
deve para obter o efeito esperado em sua obra expor uma situaccedilatildeo tal em que o homem
possa manifestar todas as suas potencialidades e dessa forma transmitir ao apreciador
esteacutetico a ideacuteia representada ldquoO poeta expotildee com escolha e intenccedilatildeo caracteres
significativos em situaccedilotildees significativas jaacute o historiador toma aos dois como eles
aparecemrdquo (Schopenhauer MVR 323) A qualidade da obra traacutegica seraacute julgada entatildeo
pela sua capacidade de representaccedilatildeo da ideacuteia de humanidade e Schopenhauer qualifica
as trageacutedias de acordo com esta capacidade Natildeo existe em seu sistema uma
consideraccedilatildeo histoacuterica da produccedilatildeo traacutegica Ele natildeo leva em consideraccedilatildeo as condiccedilotildees
histoacutericas no que se refere agrave origem ou mesmo quanto ao desenvolvimento desta forma
artiacutestica e a avalia unicamente conforme o seu efeito E neste ponto a trageacutedia apresenta
uma peculiaridade frente agraves demais artes ela eacute a forma de arte que provocaraacute o
54
sentimento do sublime Como vimos o correlato subjetivo de toda apreciaccedilatildeo esteacutetica eacute
o sentimento causado pela anulaccedilatildeo da vontade individual mediante a elevaccedilatildeo ao
estado de puro sujeito de conhecimento O sublime assim como o belo satildeo expressotildees
deste sentimento que se diferenciam unicamente por sua forma
Se tal estado surgiu por si mesmo na medida em que o objeto foi
solicitado e se apresentou ndash e fomos postos sem resistecircncia pelo mero
desaparecer da vontade da consciecircncia no estado do conhecer puro ndash ou
se primeiro foi despertado por elevaccedilatildeo livre consciente sobre a vontade
na medida em que o objeto contemplado tem com esta uma relaccedilatildeo
desfavoraacutevel hostil cuja prossecuccedilatildeo suprimiria a contemplaccedilatildeo ndash aiacute
reside a diferenccedila entre o belo e o sublime (MB 119)
A impressatildeo do sublime eacute portanto uma forma de colocar-se no estado do puro conhecer
ao nos depararmos com o objeto que por sua apresentaccedilatildeo sugere uma ldquorelaccedilatildeo hostilrdquo
com o indiviacuteduo27
Jaacute vimos que a visatildeo de mundo de Schopenhauer identifica a vida humana como
sofrimento infindaacutevel no entanto ao elaborar sua definiccedilatildeo da trageacutedia Schopenhauer
aponta para o desfecho moral de sua obra (livro IV de MVR) e afirma que a trageacutedia
melhor eacute aquela que expotildee a renuacutencia agrave vida O filoacutesofo compara obras contemporacircneas
agraves antigas e afirma sua preferecircncia por estas em decorrecircncia da capacidade que elas tecircm
de provocar esta a renuacutencia agrave vida Vejamos a descriccedilatildeo que Schopenhauer faz da
trageacutedia
No aacutepice da arte poeacutetica tanto no que se refere agrave grandeza do seu
efeito quanto agrave dificuldade da sua realizaccedilatildeo deve-se ver a trageacutedia e de
fato ela assim foi reconhecida Observe-se aqui algo de suma significaccedilatildeo
para toda a nossa visatildeo geral de mundo o objetivo dessa suprema
realizaccedilatildeo poeacutetica natildeo eacute outro senatildeo a exposiccedilatildeo do lado terriacutevel da vida
27
Vemos na teoria do sublime Schopenhaueriana mais uma vez a influecircncia de Kant Schopenhauer iraacute
identificar duas formas de sublime e utilizar-se-aacute dos termos kantianos ldquosublime dinacircmicordquo e ldquosublime
matemaacuteticordquo para diferenciaacute-los No primeiro o objeto de apreciaccedilatildeo se mostra a princiacutepio uma ameaccedila
ao observador ldquoum poder que suprimiria qualquer resistecircnciardquo(MB 104) No sublime matemaacutetico o
segundo o objeto eacute visto em sua incomensuraacutevel grandiosidade diante da qual o observador infere a sua
infimidade A afinidade entre Schopenhauer e a teoria criacutetica do juiacutezo eacute expressa em sua obra principal
ldquoDe longe o que haacute de mais excelente na criacutetica da faculdade de juiacutezo eacute a teoria do sublime Ela eacute
incomparavelmente mais bem sucedida que a teoria do belo e daacute natildeo apenas como esta o meacutetodo geral
da investigaccedilatildeo mas tambeacutem um trecho do correto caminho de maneira que embora natildeo forneccedila a
soluccedilatildeo propriamente dita do problema chega bem perto delardquo(MVR 660)
55
a saber o inominado sofrimento a miseacuteria humana o triunfo da maldade
o impeacuterio ciacutenico do acaso a queda inevitaacutevel do justo e do inocente E
em tudo isso se encontra uma indicaccedilatildeo significativa da iacutendole do mundo
e da existecircncia Eacute o conflito da Vontade consigo mesma que aqui
desdobrado plenamente no grau mais elevado de sua objetidade entra em
cena de maneira aterrorizante Ele se torna visiacutevel no sofrimento da
humanidade em parte produzido por acaso e erro que se apresentam
como os senhores do mundo e personificados como destino e perfiacutedia os
quais aparecem enquanto intencionalidade em parte advindo da
humanidade mesma por meio dos entrecruzados esforccedilos voluntaacuterios dos
indiviacuteduos e da maldade e perversatildeo da maioria Trata-se de uma uacutenica e
mesma Vontade que em todos vive e aparece cujos fenocircmenos
entretanto combatem entre si e se entredevoram [] Por fim esse
conhecimento no indiviacuteduo purificado e enobrecido pelo sofrimento
mesmo atinge o ponto no qual o fenocircmeno o veacuteu de maia natildeo mais o
ilude Ele vecirc atraveacutes da forma do fenocircmeno do principium
individuationis com o que tambeacutem expira o egoiacutesmo nele baseado Com
isso os ateacute entatildeo poderosos MOTIVOS perdem o seu poder e em vez
deles o conhecimento perfeito da essecircncia do mundo atuando como
quietivo da vontade produz a resignaccedilatildeo a renuacutencia natildeo apenas da vida
mas de toda a vontade de vida mesma (Schopenhauer MVR 333)
Percebemos nesta descriccedilatildeo que a trageacutedia aleacutem de expor a visatildeo de mundo construiacuteda
pelo filoacutesofo tem como fim uacuteltimo provocar um efeito moral no apreciador esteacutetico
qual seja a renuacutencia ao mundo Vejamos entatildeo a relaccedilatildeo entre a visatildeo de mundo
schopenhaueriana o efeito esteacutetico provocado pela trageacutedia e o projeto moral existente
por traacutes de suas teorias
24 A finalidade moral da trageacutedia
Para que possamos perceber a relaccedilatildeo intriacutenseca entre cosmologia metafiacutesica
arte e a eacutetica faz-se necessaacuterio uma pequena excursatildeo sobre esta uacuteltima Que todo o
sistema schopenhaueriano possui um viacutenculo inseparaacutevel com o seu projeto eacutetico eacute fato
que natildeo passa despercebido a seus comentadores Um projeto de juventude eacute descrito
por Safranski (1991 188-198) Young (2006 07 200) Aramayo (2001 56-59) e
Cartwright (Janaway 1999 252) como uma premissa no desenvolvimento da filosofia
56
schopenhaueriana trata-se do projeto de uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Young a descreve
como uma transcendecircncia do mundo ordinaacuterio para o ldquomundo verdadeirordquo Esta
consciecircncia melhor poderia ser experimentada atraveacutes da apreciaccedilatildeo artiacutestica e da
consciecircncia eacutetica ambas originadas do desvelamento de maia Assim Schopenhauer a
descreve conforme citaccedilatildeo de Young (2006 9) ldquopersonalidade e causalidade existem
neste mundo compreensiacutevel temporal sensorial Mas a consciecircncia melhor me leva a
um mundo onde nem personalidade nem sujeito ou objeto existem maisrdquo Safransky
descreve a consciecircncia melhor como um estado semelhante ao ecircxtase miacutestico
Este arrebatamento estaacute livre das coordenadas espaccedilo-temporais
cujo ponto de interseccedilatildeo eacute o eu corporal apartado do espaccedilo do tempo
do eu Os miacutesticos chamam a esta experiecircncia ldquonunc stansrdquo agora
permanente A intensidade deste presente natildeo conhece princiacutepio nem fim
e soacute pode desaparecer porque noacutes desaparecemos dele (Safransky1991
190)
Conforme Aramayo tanto a figura do gecircnio como a do santo satildeo expressotildees do
reconhecimento desta consciecircncia melhor e a filosofia de Schopenhauer pretende-se
uma terceira via que tambeacutem apontaria para este estado de consciecircncia A caracteriacutestica
primordial deste estado eacute o desprendimento dos desejos individuais e o comportamento
virtuoso que adveacutem deste desprendimento Eacute na esteira do entendimento desta
consciecircncia melhor que as bases eacutetico-metafiacutesicas do filoacutesofo foram elaboradas Em
apoio a esta afirmaccedilatildeo Aramayo apresenta duas citaccedilotildees a partir das quais em
momentos distintos de sua vida Schopenhauer apresenta seu projeto de identificaccedilatildeo
entre eacutetica e metafiacutesica Nos escritos de Juventude em 1813 vemos o projeto
Em meu espiacuterito encontra-se em gestaccedilatildeo uma filosofia onde
metafiacutesica e eacutetica devem constituir uma soacute coisa cuja dissociaccedilatildeo eacute tatildeo
errocircnea como agrave da alma e do corpo (Aramayo 2001 41)
Jaacute nos escritos tardios especificamente em seu ensaio de 1836 Sobre a vontade na
natureza veremos Schopenhauer identificar esta uniatildeo
57
Tatildeo soacute esta metafiacutesica que jaacute eacute eacutetica por si soacute ao estar construiacuteda
com esse material primordialmente eacutetico que se supotildee a vontade
constitui real e imediatamente um sustentaacuteculo para a eacutetica em vista de
que poderia haver colocado em minha metafiacutesica o nome de eacutetica (apud
Aramayo 2001 43)
Cartwright aponta ainda na uacuteltima obra schopenhaueriana de 1851 Parerga e
paralipomena a afirmaccedilatildeo de que a ldquosua real filosofia culminou em um ponto de vista
altamente eacutetico-metafiacutesicordquo (Janaway 1999 252)
Na filosofia schopenhaueriana como vimos o indiviacuteduo humano eacute uma
expressatildeo da objetidade da vontade e seu ponto de partida por natureza eacute a satisfaccedilatildeo
manutenccedilatildeo e o prolongamento desta vontade de vida Este estado de consciecircncia onde
todos os esforccedilos estatildeo voltados para a satisfaccedilatildeo da vontade individual eacute a causa de
todo o sofrimento do mundo Aprisionado agrave perspectiva fenomecircnica do mundo o
homem natildeo percebe a unidade da vontade e age de acordo com os motivos estabelecidos
pela sua proacutepria individualidade Para este homem existe uma separaccedilatildeo profunda entre
o proacuteprio eu e os objetos do mundo
Por meio da intuiccedilatildeo que o ceacuterebro efetua a partir dos dados do sentido
e portanto mediatamente conhecemos o proacuteprio corpo como um objeto no
espaccedilo e por meio do sentido interno conhecemos a seacuterie sucessiva de nossos
desejos e atos de vontade que surgem por ocasiatildeo dos motivos externos e
finalmente conhecemos os muacuteltiplos movimentos fortes ou fracos da proacutepria
vontade aos quais todos os sentimentos internos deixam-se reconduzir Isto eacute
tudo pois o conhecer natildeo eacute ele proacuteprio de novo conhecido (Schopenhauer
2001 213)
Eacute deste estado que surge todo o comportamento humano considerado pelo filoacutesofo
como comportamento antimoral Egoiacutesmo eacute o nome dado ao resultado da influecircncia do
princiacutepio de individuaccedilatildeo sobre o comportamento dos homens Este egoiacutesmo chega ao
extremo de o homem considerar-se o centro do mundo e transformar o seu querer em
mandamento para os objetos exteriores ldquoalguns homens seriam capazes de assassinar
um outro soacute para engraxar suas botas com a gordura delerdquo (SFM 124) Nestas
58
condiccedilotildees ldquose fosse dado pois a um indiviacuteduo escolher entre a sua proacutepria aniquilaccedilatildeo
e a do mundo nem preciso dizer para onde a maioria se inclinariardquo (SFM 121) Da
forma como ocorre com o egoiacutesmo a ilusatildeo fenomecircnica daacute origem a outro sentimento
o oacutedio Estes dois egoiacutesmo e oacutedio satildeo os princiacutepios originadores de todos os viacutecios do
homem Desta leitura pessimista da natureza humana Schopenhauer retira seu conceito
perspectivista das ideacuteias de bem e mal satildeo consideradas boas ou maacutes as coisas que
agradam ou desagradam agrave vontade do indiviacuteduo ldquoPortanto tudo o que eacute favoraacutevel agrave
vontade em alguma de suas exteriorizaccedilotildees e satisfaz seus fins eacute pensado pelo conceito
bom por mais diferentes que essas coisas possam ser noutros aspectosrdquo (MVR 459)
Este estado eacute definido por Schopenhauer como ldquoafirmaccedilatildeo da vontaderdquo nele o amor-
proacuteprio Eros dita as regras de comportamento Definido o Eros enquanto
fundamentador das accedilotildees antimorais humanas sendo este surgido de uma percepccedilatildeo
subordinada ao principium individuationis entendemos o motivo pelo qual o filoacutesofo
rejeita a validade de qualquer moral baseada em argumentos abstratos
Uma moral sem fundaccedilatildeo portanto um simples moralizar natildeo pode
fazer efeito pois natildeo motiva Uma moral entretanto que motiva soacute pode fazecirc-
lo atuando sobre o amor proacuteprio O que entretanto nasce daiacute natildeo tem valor
moral algum Segue-se assim que mediante moral e conhecimento abstrato em
geral nenhuma virtude autecircntica pode fazer efeito mas esta tem de brotar do
conhecimento intuitivo o qual reconhece no outro indiviacuteduo a mesma essecircncia
que a proacutepria (MVR 468)
Desta forma em contraposiccedilatildeo ao comportamento antimoral produzido
pela ilusatildeo causada pelo principium individuationis o filoacutesofo apresenta o outro lado da
moeda a accedilatildeo moral Esta seria a accedilatildeo praticada em funccedilatildeo do bem-estar de um outro
indiviacuteduo tendo em vista que as accedilotildees praticadas em funccedilatildeo do mal-estar do outro ou
do bem e mal estar de si mesmo satildeo justamente as accedilotildees antimorais baseadas no
egoiacutesmo ou no oacutedio ldquoTodo amor que natildeo eacute compaixatildeo eacute amor-proacuteprio Amor-proacuteprio eacute
59
Eros compaixatildeo eacute Aacutegaperdquo (MVR 478) Todo ato moral eacute por consequumlecircncia um ato de
compaixatildeo ou seja um ato que eacute praticado a partir da percepccedilatildeo do sofrimento do
outro Entretanto a percepccedilatildeo do sofrimento alheio natildeo eacute dada atraveacutes do conhecimento
abstrato E somente por uma percepccedilatildeo intuitiva direta do sofrimento do outro como o
meu proacuteprio sofrimento que surge a compaixatildeo Tal percepccedilatildeo assim como a
apreciaccedilatildeo esteacutetica tem origem em uma visatildeo que vai aleacutem do principium
individuationis Desfaz-se a ilusatildeo causada por este princiacutepio de que existe em realidade
um eu e um natildeo-eu ilusatildeo essa que eacute originada pelos condicionantes do conhecimento
tempo espaccedilo e causalidade Livre do principium individuationis natildeo haacute mais
diversidade natildeo existe mais indiviacuteduo passado futuro motivaccedilotildees existe apenas o
instante presente do ser a vontade Natildeo nos vemos mais como uma vontade separada de
outras ao contraacuterio vemos nos outros a mesma vontade pela qual somos Necessaacuterio
faz-se ressaltar que este conhecimento intuitivo que demonstra a unidade da vontade
em todo indiviacuteduo eacute entendimento de verdade tatildeo profundo que supera qualquer
especulaccedilatildeo abstrata do conhecimento e por isso seu efeito eacute marcante
Para o conhecimento que vecirc atraveacutes do principium individuationis uma
vida feliz no tempo presenteada pelo acaso ou conquistada deste pela
sabedoria em meio ao sofrimento de inumeraacuteveis outros eacute apenas um sonho de
mendigo no qual eacute um rei poreacutem tem de acordar e reconhecer que era tatildeo-soacute
uma ilusatildeo fugidia aquilo que o separava do sofrimento da sua vida (MVR
452)
A experimentaccedilatildeo deste estado de consciecircncia faz-nos perceber a vida como engano
luta infinita e provoca em noacutes a renuacutencia a esta mesma vida agrave vontade de viver O
homem natildeo mais afirma a sua essecircncia mas a repudia
Agrave semelhanccedila do estado de negaccedilatildeo da vontade o proacuteprio estado de
contemplaccedilatildeo esteacutetica pressupotildee um desinteresse pelos mandamentos da vontade
60
individual um desligamento do caraacuteter egoiacutestico do sujeito empiacuterico28
Para que possa
perceber a Ideacuteia por traacutes do objeto contemplado o observador deve estar em um estado
de consciecircncia que se vecirc livre dos grilhotildees da vontade Neste estado ele eacute alccedilado para
aleacutem da individualidade torna-se puro sujeito de conhecimento Para que este estado se
manifeste eacute imprescindiacutevel natildeo estar interessado nas relaccedilotildees do objeto apreciado seja
com outros objetos seja consigo mesmo O apreciador esteacutetico natildeo se preocupa com o
ldquoonderdquo o ldquocomordquo o ldquoporquecircrdquo dos objetos Estas formas de interjeiccedilatildeo sinalizam para a
relaccedilatildeo dos objetos com o mundo O apreciador esteacutetico no momento da apreciaccedilatildeo
tem em vista somente o ldquoquerdquo do objeto transforma-se em um ldquoolho que vecircrdquo livre do
princiacutepio de individuaccedilatildeo eacute o puro sujeito de conhecimento Vemos nestes dois estados
(o esteacutetico e o compassivo) exemplos de estados de consciecircncia que por suas
caracteriacutesticas de alccedilarem o indiviacuteduo a uma anulaccedilatildeo do sofrimento fazem parte do
projeto de juventude de estabelecer uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Percebemos entatildeo que a
consideraccedilatildeo esteacutetica e a consideraccedilatildeo eacutetica possuem em comum esta caracteriacutestica da
consciecircncia de se apartar do princiacutepio de individuaccedilatildeo
No caso da trageacutedia como descreve Schopenhauer seu fim uacuteltimo eacute despertar a
compaixatildeo no apreciador Desta forma o filoacutesofo associa agrave trageacutedia um efeito singular e
adverso das demais artes ou pelo menos reconhece na trageacutedia a arte capaz de
demonstrar a semelhanccedila entre os modos de consideraccedilatildeo artiacutestico e eacutetico Ao ilustrar o
conflito das vontades no mundo atraveacutes da exposiccedilatildeo do sofrimento humano a trageacutedia
cumpre seu papel artiacutestico ao expor a ideacuteia de humanidade Aleacutem deste atributo
podemos dizer que a trageacutedia tem que cumprir ainda seu papel moral ao causar no
28
Neste ponto de semelhanccedila eacute fundamental apontar mais uma vez a heranccedila kantiana Nas palavras de
Barboza (2001 82) ldquoA negaccedilatildeo da Vontade diante da beleza realmente obedece a uma leitura do
conceito criacutetico de desinteresse Quando Kant diz que o belo eacute aquilo que satisfaz bdquosem nenhum
interesse‟ o autor de O mundo leu essa expressatildeo como equivalente da negaccedilatildeo do querer visto que
interesse e motivo satildeo conceitos intercambiaacuteveis [] e a vontade neutraliza-se desinteressa-se ou seja eacute
indeterminaacutevel por motivos na contemplaccedilatildeo da Ideacuteia do belordquo
61
espectador a renuacutencia a toda vontade O modelo exemplar da trageacutedia eacute para
Schopenhauer a trageacutedia cristatilde onde o heroacutei conscientemente abandona o querer e
conseguintemente a vida Na trageacutedia antiga havia somente a identificaccedilatildeo do
sofrimento humano e sua exposiccedilatildeo A renuacutencia agrave vontade de vida eacute caracteriacutestica das
trageacutedias posteriores ao advento cristatildeo Schopenhauer exemplifica O priacutencipe de
Calderoacuten Gretchen em Fausto A Donzela de Orleans a Noiva de Messina etc Assim
ldquotoda a exposiccedilatildeo traacutegica eacute para o espectador um chamado agrave resignaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo livre
da Vontade de vida Somente a eacutetica pode tornar tudo isso mais compreensiacutevelrdquo (MB
223) Vemos entatildeo de forma clara na teoria da trageacutedia de Schopenhauer um momento
onde ocorre a coalizatildeo dos fundamentos metafiacutesicos de sua filosofia do pessimismo
originado nestes fundamentos e da atitude eacutetica existente por traacutes de seu pensamento
25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera
Faz-se necessaacuterio aqui uma incursatildeo sobre a teoria da muacutesica de Schopenhauer
tendo em vista de que ela ocuparaacute um papel decisivo na teoria nietzscheana da trageacutedia
As relaccedilotildees que Nietzsche estabelece entre a muacutesica a vontade as palavras e
finalmente a trageacutedia satildeo delineadas como veremos pela metafiacutesica schopenhaueriana
da muacutesica No intuito de perceber estas relaccedilotildees propomos aqui um breve esboccedilo da
teoria da muacutesica na filosofia de Schopenhauer
A filosofia da muacutesica encontra seu lugar ao final do terceiro livro de MVR bem
como no capiacutetulo 39 dos complementos fechando assim as consideraccedilotildees de
Schopenhauer sobre a metafiacutesica do belo e as artes29
29
Na esteira de Lydia Goehr (Jacquette 1996 200) ressaltamos que tendo em vista a influecircncia que sua
filosofia da muacutesica exerceu sobre o pensamento artiacutestico e filosoacutefico posterior e comparada agrave dimensatildeo
de sua obra as consideraccedilotildees sobre a muacutesica ocupam um espaccedilo diminuto em sua obra
62
Para o filoacutesofo da vontade a muacutesica eacute a arte que pela natureza de seu objeto de
expressatildeo natildeo encontra lugar apropriado dentro do sistema das demais artes Estas
conforme sua competecircncia em traduzir uma determinada objetidade da vontade uma
ideacuteia satildeo classificadas hierarquicamente A muacutesica entretanto figura aleacutem desta
hierarquizaccedilatildeo pois representa o conceitualmente irrepresentaacutevel ldquoa coacutepia de um
modelo que ele mesmo nunca pode ser representado imediatamenterdquo(MVR 338) a
Vontade mesma Esta arte eacute especialmente considerada devido agrave peculiaridade uacutenica de
seu efeito esteacutetico ldquoeacute uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente
sobre o mais iacutentimo do homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele
como se fora uma linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do
mundo intuitivordquo (MVR 336) A muacutesica estaacute aleacutem da intuiccedilatildeo pois representa aquilo
que estaacute aleacutem desta forma agrave semelhanccedila das ideacuteias que satildeo objetivaccedilotildees imediatas da
vontade a muacutesica eacute tambeacutem uma destas objetivaccedilotildees representaccedilatildeo imediata da coisa
em si O que o compositor apresenta atraveacutes da muacutesica eacute a essecircncia mais iacutentima do
mundo em uma ldquolinguagem natildeo compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo
magneacutetico fornece informaccedilotildees sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito
algumrdquo (MVR 342) Por estar em um acircmbito inalcanccedilaacutevel pelo conceito a muacutesica
atraveacutes de sua linguagem arrebata o homem de forma mais marcante e direta e ateacute
mesmo a explanaccedilatildeo sobre a muacutesica estaacute condenada agrave pobreza e agrave insuficiecircncia Desta
forma o filoacutesofo se utilizaraacute de uma analogia para explanar sobre a muacutesica ie
procederaacute a uma explicaccedilatildeo da muacutesica atraveacutes de um paralelismo entre ela as ideacuteias e o
mundo enquanto objetivaccedilotildees da vontade
Esta analogia expressa atraveacutes de diversos exemplos leva em consideraccedilatildeo que
em suas duas formas de objetivaccedilatildeo (o mundo e a muacutesica) a Vontade deixa transparecer
semelhanccedilas Na muacutesica os tons mais graves aproximam-se ao que satildeo no mundo os
63
graus mais baixos de objetivaccedilatildeo da vontade quais sejam a natureza inorgacircnica A lei
da harmonia estabelece que os tons agudos satildeo originados daquele tom mais grave
fundamental Da mesma forma no mundo os corpos tecircm como fonte e sustentaacuteculo a
natureza inorgacircnica ldquoagrave partir da qual tudo se eleva e desenvolverdquo(MB 230) As vozes
intermediaacuterias da melodia que estatildeo entre o baixo fundamental e a voz condutora
correspondem no mundo aos demais graus de objetivaccedilatildeo da vontade na natureza ldquoAs
vozes mais proacuteximas do baixo correspondem aos graus mais baixos ou seja os corpos
ainda inorgacircnicos poreacutem jaacute se exteriorizando de diversas maneiras As vozes mais
elevadas por sua vez representam os reinos vegetal e animalrdquo(MB 231)
O objeto de representaccedilatildeo da muacutesica eacute a Vontade e esta por sua vez eacute
intraduziacutevel atraveacutes das palavras da configuraccedilatildeo racional pois a razatildeo natildeo pode
alcanccedilar sua profundidade Trata-se de ldquouma linguagem universal cuja
compreensibilidade eacute inata e cuja clareza ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo
(MB 228) Diante desta caracteriacutestica cognitiva a muacutesica natildeo deve se inspirar no texto
nas palavras a natildeo ser para ilustraacute-las e conceder-lhes assim significaccedilatildeo mais
profunda A muacutesica natildeo deve ser composta com base em conceitos ou em objetos e
ocorrecircncias do mundo pois trata-se de uma expressatildeo da ordem do essencial do
universal ldquoela eacute a alma mais interior dessas ocorrecircncias sem o corpordquo (MB 235) Os
objetos e situaccedilotildees do mundo satildeo manifestaccedilotildees e portanto sua representaccedilatildeo
conceitual satildeo reproduccedilotildees circunstanciais da essecircncia do mundo expressa pela muacutesica
Daiacute se compreende o fato de a muacutesica realccedilar em cada
pintura sim em cada cena da vida efetiva e do mundo o
aparecimento de uma significaccedilatildeo mais elevada e tanto mais
quanto mais anaacuteloga eacute sua melodia ao espiacuterito iacutentimo do
fenocircmeno dado A muacutesica combina com tudo em todas as
exposiccedilotildees Nada lhe pode ser estranho pois exprime a essecircncia
de todas as coisas Caso se soe uma muacutesica que combine com
alguma cena da vida humana ou da natureza destituiacuteda de
conhecimento ou com alguma accedilatildeo acontecimento ambiente ou
64
alguma imagem ndash entatildeo ela revela o sentido secreto dessa cena e eacute
seu comentaacuterio mais correto e claro (MB 235)
Esta caracteriacutestica que daacute agrave muacutesica um privileacutegio cognitivo sobre as demais formas
artiacutesticas eacute o que delineia as consideraccedilotildees do filoacutesofo sobre a oacutepera30
A oacutepera ideal eacute
portanto aquela onde o livreto estaacute para a muacutesica como um exemplo para um conceito
geral A muacutesica tem a funccedilatildeo de expor ldquoo profundo e misterioso sobre a essecircncia
iacutentimardquo daquilo que a palavra exemplifica O compositor que maior ecircxito conseguiu
neste sentido conforme o filoacutesofo foi Rossini cuja ldquomuacutesica fala tatildeo distinta e
puramente a sua linguagem PROacutePRIA visto que quase natildeo precisa de palavras e por
conseguinte provoca todo o seu efeito mesmo se executada soacute com instrumentosrdquo
(MVR 344)
Vemos entatildeo a muacutesica como a mais profunda das artes cujo efeito eacute o mais
avassalador e que portanto quando conjugada com outras formas de expressatildeo como a
oacutepera deve formar a base e orientar a sua elaboraccedilatildeo Entretanto ao contraacuterio da
trageacutedia cujo fim eacute o estiacutemulo agrave renuacutencia da vontade de viver a muacutesica segundo a
metafiacutesica exposta por Schopenhauer ldquonatildeo faz mais do que agradar a vontade de viver
jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo seus ecircxitos e ao final expressa sua
satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509)
30
ldquoAo adotar esta atitude Schopenhauer transtorna toda a tradiccedilatildeo jaacute secular que havia afirmado natildeo
poucas vezes desde os tempos do nascimento da oacutepera o predomiacutenio da palavra sobre a muacutesica e em
consequumlecircncia a subordinaccedilatildeo desta uacuteltima agrave primeirardquo (Fubini 1988 289)
65
3 A teoria da trageacutedia do Jovem Nietzsche
Debalde espreitamos por uma raiz
vigorosamente ramificada por um pedaccedilo
de terra sadia e feacutertil por toda parte poacute
areia rigidez consunccedilatildeo Aqui um
solitaacuterio desconsolado natildeo poderia escolher
melhor siacutembolo do que o Cavaleiro com a
Morte e o Diabo como Duumlrer o desenhou o
cavaleiro arnesado com o olhar duro
brocircnzeo que sabe tomar o seu caminho
assustador imperturbado por seus
hediondos companheiros e natildeo obstante
desesperanccedilado sozinho com o seu corcel e
o seu catildeo Um tal cavaleiro duumlreriano foi
nosso Schopenhauer faltava-lhe qualquer
esperanccedila mas queria a verdade Natildeo haacute
quem se lhe iguale
(Nietzsche)
Neste capiacutetulo procuraremos apontar primeiramente o modo pelo qual se deu o
encontro entre Nietzsche e a filosofia de Schopenhauer Em um segundo momento
percorreremos o desenvolvimento histoacuterico das produccedilotildees nietzscheanas que
culminaram com a publicaccedilatildeo da obra que caracteriza o primeiro periacuteodo do filoacutesofo
qual seja O nascimento da trageacutedia a partir do espiacuterito da muacutesica Concluiremos entatildeo
apresentando um esboccedilo desta obra dando ecircnfase em todos os momentos aos
66
elementos que caracterizam sua teoria da trageacutedia especialmente agravequeles relacionados agrave
metafiacutesica schopenhaueriana da vontade
31 Schopenhauer e o jovem Nietzsche uma breve contextualizaccedilatildeo histoacuterica
Foram nos anos de universidade em Leipzig que Nietzsche se deparou com a
filosofia de Schopenhauer Este periacuteodo entre os anos de 1865 e 1869 eacute especialmente
importante devido ao fato de que nele podemos assistir ao surgimento de alguns
aspectos fundamentais ao projeto filosoacutefico de Nietzsche Janz descreve este periacuteodo
como aquele em que o filoacutesofo estabeleceu ldquoseus encontros espirituais determinantes a
partir dos quais se defrontou consigo mesmo e com sua tarefardquo(1987 151)
O primeiro contato do jovem Nietzsche com o mundo schopenhaueriano deu-se
em meados de outubro de 1865 pouco tempo apoacutes sua chegada a Leipzig O
arrebatamento causado no jovem estudante de filologia pelo encontro com a filosofia
schopenhaueriana eacute descrito por ele apoacutes dois anos da seguinte maneira
Sentia-me naquela eacutepoca desorientado solitaacuterio sem
princiacutepios sem esperanccedilas inconsolado e com algumas
experiecircncias dolorosas e decepccedilotildees Construir uma vida proacutepria e
adequada era para mim uma aspiraccedilatildeo que me ocupava da manhatilde
ateacute a noite No feliz apartamento em que vivia procurava
concentrar-me a mergulhar em mim mesmo e quando me
encontrava com amigos estes eram sempre Mushacke e Von
Gersdorff os quais por sua parte alentavam objetivos muito
semelhantes aos meus Creio que natildeo seraacute difiacutecil imaginar a
impressatildeo que nesta situaccedilatildeo me causou a leitura da obra
principal de Schopenhauer Encontrei um dia este livro no sebo do
velho Rohm Ignorando tudo sobre ele o tomei em minhas matildeos e
me pus a folheaacute-lo Natildeo sei que democircnio me sussurrou bdquoleve este
livro para a casa‟ Aconteceu de compraacute-lo apesar do meu usual
costume de natildeo me precipitar na compra de livros Uma vez em
casa num canto do sofaacute me lancei sobre o tesouro receacutem
adquirido e comecei a deixar que aquele gecircnio eneacutergico e sombrio
influiacutesse sobre mim Em cada linha sua gritava a renuacutencia
negaccedilatildeo resignaccedilatildeo tinha diante de mim um espelho no qual
podia contemplar o mundo a vida e meu proacuteprio acircnimo com uma
67
grandeza deprimente Um espelho desde o qual o olho solar da
arte me mirava desde sua absoluta falta de interesse Vi
enfermidade e cura desterro e refuacutegio inferno e paraiacuteso A
necessidade de autoconhecimento inclusive de auto-
experimentaccedilatildeo apoderou-se de mim com forccedila indomaacutevel
provas daquela mutaccedilatildeo profunda satildeo hoje todavia para mim as
paacuteginas desassossegadas e melancoacutelicas do diaacuterio que agravequela
eacutepoca escrevi com suas auto-acusaccedilotildees inuacuteteis e sua desesperada
busca de salvaccedilatildeo e reconstruccedilatildeo do inteiro nuacutecleo humano Na
medida em que propus a submeter todas as minhas caracteriacutesticas
e aspiraccedilotildees ao tribunal de uma sombria auto-depreciaccedilatildeo minha
atitude estava cheia de amargura possuiacuteda de um oacutedio injusto e
desenfreado contra mim mesmo Nem sequer renunciei agraves
mortificaccedilotildees corporais Obriguei-me com efeito durante
quatorze dias seguidos a deitar-me agraves duas da noite e acordar agraves
seis da manhatilde Uma excitaccedilatildeo nervosa muito singular se apoderou
assim de mim e quem sabe ateacute que grau de loucura haveria
chegado se natildeo tivesse modificado frente agravequele estado de
acircnimo os atrativos da vida da vaidade e o imperativo de retornar
a meus estudos regulares (conforme citaccedilatildeo de Janz 1987 158)
Da citaccedilatildeo podemos inferir a mudanccedila de acircnimo que o encontro com
Schopenhauer provocou A partir daquele momento diversas correspondecircncias datildeo-nos
ainda informaccedilotildees do impacto que a filosofia de Schopenhauer provocou na concepccedilatildeo
de mundo do jovem estudante Em algumas destas correspondecircncias vemos transparecer
a influecircncia atraveacutes da frequumlente utilizaccedilatildeo de um vocabulaacuterio schopenhaueriano bem
como das ideacuteias nelas expressas Assim acontece em carta enviada agrave sua matildee e irmatilde
datada de 5 de novembro de 1865 onde ao discorrer acerca da frivolidade da vida
humana o jovem Nietzsche conclui utilizando-se dos argumentos propostos pela eacutetica
schopenhaueriana
Existem dois caminhos ou se esforccedila e se acostuma a ser
o mais limitado que se possa e uma vez que se reduz o maacuteximo
possiacutevel a luz do espiacuterito se busque bens de fortuna e se viva com
os prazeres do mundo ou por outro lado se sabe que a vida eacute
miseraacutevel se sabe que somos seus escravos tanto mais quanto
mais procuramos dela gozar e por tanto se desprende dos bens da
vida exercita a sobriedade e se eacute austero consigo mesmo e cordial
com os demais ndash e isto porque sente compaixatildeo pelos
companheiros de miseacuteria ndash em uma palavra se vive de acordo
68
com as rigorosas exigecircncias do cristianismo primitivo (OC
470)
Vemos ainda em carta a Mushacke em 12 de julho de 1866 o impacto que a
interpretaccedilatildeo schopenhaueriana pessimista de mundo causou em Nietzsche ldquoDesde que
Schopenhauer nos retirou dos olhos a venda do otimismo as coisas satildeo percebidas
mais agudamente A vida eacute mais interessante ainda que mais feiardquo (conforme citaccedilatildeo
de Janz 1987 172) Percebemos tambeacutem a linguagem schopenhaueriana na descriccedilatildeo
dos momentos de contemplaccedilatildeo Eacute o caso da carta datada de 07 de abril de 1866 a
Gersdorf onde Nietzsche descreve seu estado que nos remeteraacute agrave contemplaccedilatildeo
artiacutestica na filosofia de Schopenhauer ao discorrer sobre os dias de veratildeo ldquo[] a
natureza se faz perfeita e noacutes tambeacutem entatildeo nos sentimos livres do poderio da vontade
sempre alerta e somos olho puro intuitivo desinteressadordquo (OC 472)
Estas influecircncias nortearam de forma definitiva as produccedilotildees acadecircmicas de
Nietzsche mesmos suas pesquisas filoloacutegicas A concepccedilatildeo traacutegica do mundo tornou-se
um feixe condutor para as reflexotildees do jovem filoacutelogo Seus companheiros no estudo da
obra de Schopenhauer eram Gersdorff e Mushacke Em carta agrave sua matildee de 01 de
fevereiro de 1866 Nietzsche deixa saber sobre a frequumlecircncia dos estudos ldquoCom
Gersdorff me encontro uma noite por semana para ler grego a cada duas semanas me
reuacuteno com ele e com Mushacke e nos entregamos a Schopenhauer Este filoacutesofo ocupa
uma posiccedilatildeo importante em meus pensamentos e estudos e meu respeito por ele cresce
incomparavelmenterdquo (OC 471) Se o conteuacutedo da filosofia schopenhaueriana foi
absorvido intensamente pelo jovem Nietzsche como podemos ver a partir dos trechos
transcritos acima a forma estiliacutestica tambeacutem se configura como preocupaccedilatildeo Em um
periacuteodo onde as pesquisas acadecircmicas exigiam o esforccedilo da escrita ali tambeacutem a
autoridade das regras schopenhauerianas exibia sua feiccedilatildeo Eacute tambeacutem em uma carta a
69
Gersdorff datada de 06 de abril de 1867 onde Nietzsche expotildee sua preocupaccedilatildeo com o
estilo
Nestas divagaccedilotildees quero redigir meu trabalho sobre as
fontes de Dioacutegenes Laeacutercio e estou todavia no iniacutecio Para seu
regozijo confessarei que o que mais me daacute trabalho eacute meu estilo
em alematildeo Agora me caem os veacuteus dos olhos e vejo que
durante muito tempo vivi em estado de inocecircncia estiliacutestica O
imperativo categoacuterico bdquodeves escrever‟ me foi despertado[] nos
ouvidos me soavam todos os preceitos estiliacutesticos de Lessing de
Lichtenberg e de Schopenhauer Meu uacutenico consolo eacute que estas
trecircs autoridades afirmavam unanimemente que eacute difiacutecil escrever
bem que por natureza ningueacutem tem um bom estilo e que haacute que
trabalhar e trabalhar para consegui-lo (OC 476)
Entretanto apesar do profundo arrebatamento causado pela filosofia de
Schopenhauer que fez com que o universo das preocupaccedilotildees do entatildeo jovem Nietzsche
se fundamentasse nos pressupostos da metafiacutesica schopenhaueriana outros elementos
tambeacutem fundamentais para o pensamento futuro do filoacutesofo foram tambeacutem neste
periacuteodo despertados Como apontam Dias (2009 42) Janaway (2007 16) e Lopes
(2008 27) jaacute neste periacuteodo que podemos tratar como um periacuteodo de despertar para o
pensamento filosoacutefico encontraacutevamos os elementos que a partir de Humano demasiado
humano conformaratildeo a criacutetica nietzscheana agrave filosofia de Schopenhauer Os
comentadores citados chamam a atenccedilatildeo para o fato de que embora nas obras
publicadas de Nietzsche possamos assistir a criacuteticas diretas a Schopenhauer somente
apoacutes Humano demasiado humano tais criacuteticas agrave filosofia schopenhaueriana surgiram
em um momento imediatamente posterior agrave descoberta da metafiacutesica da vontade Rosa
Maria Dias chama a atenccedilatildeo para os fragmentos poacutestumos e para a correspondecircncia que
agrave partir de 1867 trazem algumas criacuteticas agrave metafiacutesica da vontade Rogeacuterio Lopes e
Cristopher Janaway apontam que algumas destas criacuteticas estatildeo embasadas nas leituras
que o jovem Nietzsche fez de Friedrich A Lange Rudolf Haym Kuno Fischer dentre
outros Tais criacuteticas contudo natildeo afastaram o jovem Nietzsche do discipulado
70
schopenhaueriano mas transformaram sua aceitaccedilatildeo do sistema da vontade No lugar de
uma defesa da consistecircncia loacutegica do sistema Nietzsche passou a adotar uma postura de
defesa da bdquonatureza edificante‟ e preponderantemente artiacutestica deste sistema Exemplos
desta postura podem ser encontrados tambeacutem na correspondecircncia daquele periacuteodo
Para escrever uma apologia a Schopenhauer eu tenho
unicamente que considerar o fato de que olho esta vida livre e
bravamente diante do fato de que encontrei um suporte para me
apoiar obviamente que isto natildeo eacute mais que uma apologia
totalmente individual Mas eacute como as coisas satildeo Se algueacutem
deseja refutar Schopenhauer para mim atraveacutes de argumentos
racionais murmuro em seu ouvido bdquoporeacutem meu amigo visotildees de
mundo natildeo satildeo criadas nem destruiacutedas pela loacutegica‟ (carta a
Deussen Outubro-Novembro de 1867 citada por Janaway
(200718))
Ou ainda em carta a Gersdorff onde apoacutes apresentar a criacutetica de Lange agrave metafiacutesica da
vontade Nietzsche conclui contra Haym ainda com os argumentos de Lange
Natildeo apenas a verdadeira essecircncia das coisas a coisa em si
eacute desconhecida para noacutes tambeacutem seu conceito eacute nada mais nada
menos que o uacuteltimo rebento de um contraste condicionado por
nossa organizaccedilatildeo do qual natildeo sabemos se conserva algum
significado fora de nossa experiecircncia Disso resulta pensa Lange
que os filoacutesofos natildeo devem ser importunados na medida em que
nos edificam A arte eacute livre tambeacutem na regiatildeo dos conceitos
Quem pretenderia refutar uma frase de Beethoven e acusar de erro
uma Madonna de Rafael Como vocecirc pode perceber o nosso
Schopenhauer resiste mesmo a este mais rigoroso ponto de vista
criacutetico ele se torna quase ainda mais valioso para noacutes Se filosofia
eacute arte entatildeo que Haym se anule diante de Schopenhauer se a
filosofia deve edificar entatildeo eu pelo menos natildeo conheccedilo nenhum
filoacutesofo que edifique mais do que nosso Schopenhauer (apud
Lopes 2008 86-87)
Vimos ateacute entatildeo que a descoberta de Schopenhauer provocou no jovem
estudante de filologia transformou sua forma de perceber o mundo e o influenciou de
forma definitiva a ponto de fazer com que Nietzsche se definisse como um seguidor e
divulgador da obra schopenhaueriana Contudo eacute no fim de seus anos de estudo em
Leipzig que o disciacutepulo de Schopenhauer iraacute se defrontar com a personalidade que lhe
71
reforccedilaraacute de forma ainda mais contundente o selo da rotunda schopenhaueriana
Richard Wagner
Foi atraveacutes de seu amigo Brockhaus cuja esposa era irmatilde do muacutesico que em
novembro de 1868 Nietzsche encontrou-se pela primeira vez com Wagner A partir
daquele encontro se estabeleceria um relacionamento que de uma forma ou de outra
marcaraacute Nietzsche pelo resto de sua vida Em uma carta a seu amigo Erwin Rohde
Nietzsche descreve o primeiro encontro e sua perplexidade ao encontrar em Wagner um
admirador de Schopenhauer ldquo[]mantive com ele uma longa conversa sobre
Schopenhauer Ah Compreenderaacutes minha felicidade em ouvir-lhe falar com um
entusiasmo completamente indescritiacutevel ao qual ele agradecia como Schopenhauer
era o uacutenico filoacutesofo que havia compreendido a essecircncia da muacutesicardquo (Correspondecircncia
2007 21) A impressatildeo deste encontro eacute tambeacutem claramente visiacutevel atraveacutes de
correspondecircncia endereccedilada ao proacuteprio Wagner em maio de 1869 ldquoVeneradiacutessimo
senhor quanto tempo tive a intenccedilatildeo de lhe manifestar sem nenhuma timidez o grau de
gratidatildeo que sinto em relaccedilatildeo ao senhor pois realmente os melhores e mais elevados
momentos de minha vida se ligam ao seu nome e eu soacute conheccedilo mais um homem aleacutem
disso seu grande irmatildeo em espiacuterito Arthur Schopenhauer em quem penso com a
mesma veneraccedilatildeo ateacute senso religiosordquo (Correspondecircncia 2007 56) Como podemos
ver a pessoa de Wagner eacute associada agrave de Schopenhauer Esta associaccedilatildeo tornar-se-aacute
uma constante e poderaacute ser identificada ainda na fase tardia onde as criacuteticas a estes
pensadores e ao que eles entatildeo representavam se daraacute de forma inter-relacionada Este
primeiro encontro com Wagner conforme Janz (1987 22) foi um dos principais
motivos que levaram Nietzsche a aceitar em detrimento de outros planos que
formulava assumir a caacutetedra de filologia em Basel A proximidade de Tribschen
residecircncia dos Wagner e a possibilidade de uma convivecircncia com o muacutesico o
72
inspiraram E assim aconteceu Ao mudar-se para Basel pocircde desfrutar de uma
convivecircncia constante com o casal Wagner Desde a chegada de Nietzsche ateacute a
mudanccedila de Wagner em 1872 encontravam-se com muita frequumlecircncia e os assuntos que
pautavam tais encontros eram amiuacutede arte muacutesica a literatura claacutessica e a filosofia de
Schopenhauer Wagner tornar-se-ia para Nietzsche a personificaccedilatildeo do gecircnio
schopenhaueriano aquele capaz de atraveacutes da muacutesica expor a essecircncia do mundo No
projeto wagneriano de ldquoarte totalrdquo Nietzsche pocircde vislumbrar a uniatildeo entre muacutesica e
filosofia e satisfazer assim em certa medida as expectativas oriundas da metafiacutesica da
vontade
32 O projeto subjacente ao Nascimento da Trageacutedia
Eacute famosa a passagem onde Nietzsche em carta a Deussen datada de janeiro de
1870 informa sobre seu estado de espiacuterito ldquo Ciecircncia arte e filosofia crescem agora
juntas em mim e de tal modo que um dia haverei de parir centaurosrdquo (Janz 1981 66)
Esta afirmaccedilatildeo eacute ilustrativa no que se refere ao ambiente onde o Nascimento da trageacutedia
foi gerado Podemos identificar claramente as figuras por detraacutes dos termos filosofia
arte e ciecircncia satildeo elas Schopenhauer Wagner e a filologia claacutessica Neste periacuteodo
Nietzsche entatildeo jovem professor de filologia estava imbuiacutedo pela pretensatildeo de poder
unir os estudos filoloacutegicos aos filosoacuteficos Sua preleccedilatildeo inicial Homero e a filologia
claacutessica em Basel nos daacute uma amostra desta pretensatildeo Ali podemos assistir a uma
aproximaccedilatildeo entre filologia e filosofia atraveacutes da proposta de uma leitura filosoacutefica do
mundo antigo ldquoCom isto quero expressar que toda atividade filoloacutegica deve estar
impregnada de uma concepccedilatildeo filosoacutefica do mundo na qual todo o particular e singular
seja visto como algo sem proveito e soacute permaneccedila de peacute a unidade do todordquo (OC 26)
73
Sua escolha por trilhar caminhos mais proacuteximos agrave filosofia pode tambeacutem ser observada
pela tentativa frustrada de ocupar uma cadeira desta disciplina que se mostrou livre em
janeiro de 1871 Se por um lado podemos diagnosticar certa decepccedilatildeo e ateacute um
determinado desacircnimo na atividade acadecircmica por outro lado os laccedilos com os Wagner
se estreitavam cada vez mais No refuacutegio de Tribschen sob a aura de Richard Wagner
Nietzsche discorria sobre o mundo grego enquanto modelo de cultura e ouvia os planos
wagnerianos sobre seu projeto de uma obra de arte total Como pano de fundo destas
discussotildees a metafiacutesica da muacutesica schopenhaueriana e sua concepccedilatildeo traacutegica do mundo
Eacute em torno destes eixos formadores que vemos se materializar a primeira publicaccedilatildeo de
Nietzsche
O desenvolvimento das ideacuteias que formaratildeo a obra contudo se deu de forma
gradual Ao longo do periacuteodo compreendido entre a chegada de Nietzsche a Basel e a
publicaccedilatildeo de seu livro determinados trabalhos deixam transparecer o delineamento de
algumas das ideacuteias centrais da obra Satildeo eles O drama musical grego Soacutecrates e a
trageacutedia A visatildeo dionisiacuteaca do mundo e Introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles31
Em o drama musical grego conferecircncia puacuteblica datada de janeiro de 1870
Nietzsche efetua uma comparaccedilatildeo entre a arte traacutegica da antiguidade e as oacuteperas
modernas Estas de acordo com o filoacutesofo satildeo uma imperfeita ldquocaricatura do drama
musical antigordquo (VD 48) Muacutesica pintura escultura e poesia formavam um todo na
arte traacutegica da antiguidade Nas artes modernas por sua vez as formas artiacutesticas satildeo
fragmentadas fato que dificulta o entendimento da trageacutedia grega e que causaria
espanto ao apreciador de arte moderno A muacutesica teria para a trageacutedia antiga uma
31
Como ressaltam M S Silk e J P Stern em sua obra Nietzsche on tragedy (1981 59) o nascimento da
trageacutedia eacute composto de forma estrutural pelos conceitos encontrados nestes trabalhos O iniacutecio do livro
(sectsect1-10) eacute substancialmente baseado no ensaio a visatildeo dionisiacuteaca do mundo enquanto a sequumlecircncia
composta pelos paraacutegrafos 5 e 6 estaacute mais proacutexima da introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles O trecho
composto pelos paraacutegrafos 11 a 14 pode ser derivado diretamente da leitura Soacutecrates e a trageacutedia O resto
do livro eacute formado por uma amaacutelgama destes escritos Partes dispersas ainda satildeo formadas pelo ensaio do
drama musical grego
74
importacircncia capital como elemento intensificador de seu efeito Podemos ver a intenccedilatildeo
por traacutes da anaacutelise nietzscheana da trageacutedia antiga em comparaccedilatildeo agrave opera Ao final da
conferecircncia no elogio que confere a Wagner o tiacutetulo de ldquoatual reformador da arterdquo bem
como na descriccedilatildeo de seu projeto de arte total retratado como um acontecimento que jaacute
teve lugar na trageacutedia da antiguidade claacutessica Nietzsche deixa claro seu engajamento ao
projeto wagneriano
No mecircs seguinte ao da citada conferecircncia uma segunda intitulada Soacutecrates e a
trageacutedia foi proferida por Nietzsche O assunto em pauta era a morte repentina da
trageacutedia grega Esta morte teria ocorrido pelas matildeos de Euriacutepides apoacutes uma decadecircncia
iniciada nos uacuteltimos periacuteodos das produccedilotildees de Eacutesquilo passando por Soacutefocles e
culminando com o advento da comeacutedia Tal decadecircncia teria sido provocada pela saiacuteda
de cena da muacutesica que de forma progressiva foi substituiacuteda pelo diaacutelogo racionalista
Soacutecrates ocupa aqui um lugar importante Eacute sua influecircncia sobre Euriacutepides que
transforma de uma forma definitiva a arte instintivamente musical da trageacutedia em uma
manifestaccedilatildeo do discurso eacutetico racionalista Esta ldquoesteacutetica racionalista e conscienterdquo
pode ser identificada no proacutelogo euripidiano e na inserccedilatildeo do deus ex machina
enquanto agentes de racionalizaccedilatildeo da obra artiacutestica A trageacutedia de Euriacutepides teria
assumido assim os pressupostos do racionalismo socraacuteticos ldquoVirtude eacute saber peca-se
somente por ignoracircncia O virtuoso eacute felizrdquo (VD 90) Esta assunccedilatildeo que liga a virtude
ao saber impotildee agrave trageacutedia um caraacuteter eacutetico alheio agrave sua caracteriacutestica puramente
esteacutetica O elemento culpa na dialeacutetica socraacutetica toma o lugar que era ocupado pela
compaixatildeo Jaacute podemos perceber nesta conferecircncia o esboccedilo da dicotomia que mais
tarde seraacute ilustrada atraveacutes dos deuses Apolo e Dioniso Os pares formadores da
dicotomia satildeo aqui expressos pela separaccedilatildeo entre instinto e razatildeo muacutesica e discurso
pessimismo e otimismo arte e ciecircncia
75
Temos a primeira referecircncia agrave arte dionisiacuteaca como impulso formador da
trageacutedia e sua contraposiccedilatildeo agrave arte apoliacutenea nas aulas proferidas por Nietzsche no veratildeo
daquele mesmo ano Neste curso sobre a trageacutedia de Soacutefocles do qual temos a
introduccedilatildeo podemos ver o esforccedilo de Nietzsche em caracterizar e apontar as
peculiaridades da trageacutedia da antiguidade que a tornam um fenocircmeno uacutenico em
comparaccedilatildeo agraves trageacutedias modernas Tal discussatildeo demonstraraacute pelos aspectos ali
expostos a aproximaccedilatildeo de Nietzsche com autores do periacuteodo claacutessico alematildeo e
sobretudo da chamada querela entre antigos e modernos Vemos claramente a influecircncia
de Schiller e F A Schlegel em algumas das definiccedilotildees adotadas por Nietzsche
No texto denominado A visatildeo dionisiacuteaca do mundo jaacute podemos assistir a um
desenvolvimento das duas pulsotildees artiacutesticas que satildeo o nuacutecleo da interpretaccedilatildeo
nietzscheana da trageacutedia O apoliacuteneo e o dionisiacuteaco satildeo ali explicados no acircmbito de seu
surgimento no mundo helecircnico e simbolizam a uniatildeo entre verdade e beleza na forma de
arte traacutegica Sua descriccedilatildeo como veremos abaixo estaacute permeada de conceitos retirados
da filosofia schopenhaueriana que vatildeo desde a biparticcedilatildeo do mundo entre verdade e
aparecircncia perpassam as noccedilotildees de belo e sublime e apontam a trageacutedia e a muacutesica como
forma de arte superiores
Em janeiro de 1872 Nietzsche daacute luz a seu ldquoCentaurordquo sob o nome O nascimento
da trageacutedia atraveacutes do espiacuterito da muacutesica Em carta a Rohde datada de 23 de novembro
de 1871 podemos notar atraveacutes da ansiosa expectativa nietzscheana a amaacutelgama
formadora da obra ldquo Temo sempre que os filoacutelogos natildeo o queiram ler por causa da
muacutesica os muacutesicos por causa da filologia e os filoacutesofos por causa da muacutesica e da
filologia e sinto logo medo e compaixatildeo de mim mesmordquo (Correspondecircncia 2007 237)
33 A teoria da trageacutedia publicada
Como escopo geral da primeira obra de Nietzsche podemos dizer na esteira de
Silk e de Stern (1981 52) que ela se propunha a esclarecer o problema do nascimento e
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da morte da trageacutedia helecircnica Trageacutedia que por sua vez era a expressatildeo artiacutestica que
simbolizava um problema vital o de que sob uma superfiacutecie bela podiacuteamos ter acesso agrave
terriacutevel profundidade do ser Tal forma de arte poderia novamente vir agrave luz por uma
geraccedilatildeo criativa que ao combater a superficialidade moderna que reinava no mundo
germacircnico poderia produzir o renascimento moderno do mundo Helecircnico
Em sua essecircncia o nascimento da trageacutedia aponta para as divindades Apolo e
Dioniacutesio como ldquorepresentantes vivosrdquo de princiacutepios diacutespares que irrompem da proacutepria
natureza e que ao serem conciliados de certa forma tornaram possiacutevel que atraveacutes dos
atritos de tal uniatildeo a trageacutedia grega despontasse como manifestaccedilatildeo artiacutestica exemplar
do sublime Em linhas gerais a arte do ldquofigurador plaacutesticordquo estaria entatildeo associada ao
deus Apolo enquanto a arte ldquonatildeo figuradardquo a da muacutesica estaria associada ao deus
Dioniacutesio O apoliacuteneo eacute um impulso da vontade grega que ao almejar a vida a apresenta
transfiguradamente como um belo sonho plasmado no mundo dos deuses oliacutempicos O
princiacutepio apoliacuteneo seria aquele que estabeleceria a ordem a beleza estaacutetica e a clareza
dos limites O dionisiacuteaco eacute oriundo das festas do oriente e seu efeito eacute comparado ao da
embriaguecircs A ele cabe a sabedoria profunda da essecircncia da vida lugar do acaso do
impermanente do horriacutevel e do sofrimento A Apolo eacute facultado tecer o veacuteu que
encobre a sabedoria dionisiacuteaca e torna a vida suportaacutevel atraveacutes da ilusatildeo do sonho
Assim segundo Nietzsche o desenvolvimento contiacutenuo da arte estaacute vinculado agrave
duplicidade dos princiacutepios apoliacuteneo e dionisiacuteaco Perfazendo um caminho histoacuterico da
cultura grega podemos notar uma sobreposiccedilatildeo intermitente entre os impulsos divinos
Temos momentos onde o impulso apoliacuteneo se mostrou dominante e outros onde
Dioniacutesio recupera seu predomiacutenio O mundo oliacutempico homeacuterico com sua arte eacutepica e
sua escultura do periacuteodo doacuterico nascem a partir de uma necessidade de redenccedilatildeo para a
realidade de horror e sofrimento que o povo helecircnico presenciava Em substituiccedilatildeo ao
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mundo titacircnico temos o mundo dos deuses oliacutempicos exemplificadores de uma
existecircncia divinizada que exalta a vida Nas palavras de Nietzsche ldquoo grego conheceu
e sentiu os temores e os horrores do existir para que lhe fosse possiacutevel de algum modo
viver teve de colocar ali entre ele e a vida a resplendente criaccedilatildeo oniacuterica dos deuses
oliacutempicosrdquo (NT 36) Entretanto a sabedoria dionisiacuteaca portadora da visatildeo abismal do
ser natildeo pocircde ser contida por muito tempo e a muacutesica veiacuteculo da uniatildeo orgiaacutestica aos
poucos foi se infiltrando no mundo construiacutedo pelo divino Apolo Os gregos foram se
tornando conscientes de seu estado sonambuacutelico que sob a graccedila do deus Apolo enleva
e transporta pela extraordinaacuteria beleza natural ou esteacutetica Em um estado semelhante ao
do indiviacuteduo que restabelecido em suas forccedilas pelo efeito renovador do sono ao findar
de uma noite comeccedila a ouvir os sons a sua volta e aos poucos vai se despertando da
mesma forma os gregos comeccedilaram novamente a ouvir o sussurro do Sileno
companheiro de Dioniacutesio ldquoo melhor de tudo eacute para ti inteiramente inatingiacutevel natildeo ter
nascido e natildeo ser nada ser Depois disso poreacutem o melhor para ti eacute logo morrerrdquo
(NT 36) O artista que representa este retorno do dionisiacuteaco com a mesma envergadura
com que Homero representa as forccedilas apoliacuteneas eacute Arquiacuteloco Tomando-o como modelo
do gecircnio liacuterico Nietzsche faz uma descriccedilatildeo de seu processo de criaccedilatildeo Conforme a
metafiacutesica esteacutetica adotada por Nietzsche - que mais agrave frente veremos ser retirada da
esteacutetica schopenhaueriana - toda arte tem que ser objetiva livre dos interesses
individuais Nesta situaccedilatildeo a liacuterica que tem como objeto o eu do poeta seus desejos e
emoccedilotildees natildeo seria uma forma de arte Entretanto atraveacutes de uma descriccedilatildeo que Schiller
faz da inspiraccedilatildeo poeacutetica Nietzsche aponta o caminho para percebermos a liacuterica como
obra de arte e portanto objetivamente Conforme a passagem de Schiller citada por
Nietzsche (NT 44) ldquoo sentimento se me apresenta no comeccedilo sem um objeto claro e
determinado este soacute se forma mais tarde Uma certa disposiccedilatildeo musical de espiacuterito
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vem primeiro e somente depois eacute que se segue em mim a ideacuteia poeacuteticardquo Desta forma
Arquiacuteloco em seu processo criativo a princiacutepio entraria em um estado de consciecircncia
ou de criaccedilatildeo onde renunciaria agrave sua individualidade e dionisiacamente participaria do
uno-primordial ldquoabismo do serrdquo estado que por sua vez materializa-se atraveacutes da
representaccedilatildeo musical A muacutesica assim produzida seraacute condiccedilatildeo para o surgimento da
inspiraccedilatildeo que a posteriori daraacute nascimento atraveacutes da aplicaccedilatildeo das formas
apoliacuteneas agrave poesia liacuterica geacutermen da trageacutedia e dos ditirambos dramaacuteticos Esta uniatildeo da
poesia liacuterica com a muacutesica eacute uma expressatildeo sinteacutetica da relaccedilatildeo dos deuses Apolo e
Dioniacutesio Eacute no quinto capiacutetulo de sua obra que Nietzsche iraacute tratar da poesia liacuterica
Neste capiacutetulo o filoacutesofo se distancia de Schopenhauer em sua interpretaccedilatildeo do
fenocircmeno liacuterico Para Schopenhauer na citaccedilatildeo reproduzida por Nietzsche (NT 46) a
liacuterica eacute produzida atraveacutes de uma percepccedilatildeo da consciecircncia onde os estados da vontade
individualizada se alternam com o conhecimento objetivo Como vimos o poeta liacuterico
assistiria ao jogo do eu em sua afetaccedilatildeo emocional e descreveria este estado atraveacutes de
sua poesia Nietzsche ao descrever a liacuterica utiliza-se da teoria da muacutesica
schopenhaueriana qual seja o poeta liacuterico produz primeiramente a muacutesica como forma
geral de expressatildeo da vontade mesma e desta produccedilatildeo gera posteriormente o texto que
se torna um exemplificador do evento musical sua forma plaacutestica objetiva A muacutesica eacute
a aparecircncia da vontade e as imagens apoliacuteneas que dela se originaram satildeo conforme seu
espiacuterito A imagem e o conceito satildeo desta forma na liacuterica originados a partir da
muacutesica
Tem-se portanto na trageacutedia grega uma relaccedilatildeo de interdependecircncia que evoca
um aparente paradoxo ndash ou seja ao lado da necessidade esteacutetica da beleza Apolo exige
dos seus a medida (limites fronteiras do indiviacuteduo presentes no ldquonada em demasiardquo) e
o auto-conhecimento necessaacuterio para determinaacute-la (ldquoconhece-te a ti mesmordquo) o
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desmedido os excessos o dionisiacuteaco seriam identificados pelo apoliacuteneo como
democircnios de uma era preacute-apoliacutenea era dos Titatildes reminiscecircncias de barbarismo O
paradoxo estaacute em que para que o comedimento apoliacuteneo possa existir o desmedido
dionisiacuteaco faz-se necessaacuterio (na linguagem de Nietzsche como ldquosubstratordquo) assim
como para que o desmedido dionisiacuteaco possa existir faz-se necessaacuterio a existecircncia do
comedido do apoliacuteneo Natildeo obstante a trageacutedia grega depende da conjugaccedilatildeo destes
dois princiacutepios para existir ndash indo aleacutem poder-se-ia dizer que a proacutepria muacutesica compotildee
o princiacutepio primeiro que possibilita o surgimento da trageacutedia no jogo das formas
apoliacuteneo A trageacutedia eacute entatildeo definida como ldquoo coro dionisiacuteaco a descarregar-se sempre
de novo em um mundo de imagens apoliacuteneordquo (NT 60)
Em seu iniacutecio a trageacutedia grega era representada pelo coro traacutegico Este coro natildeo
era uma ldquorepresentaccedilatildeo constitucional do povordquo muito menos um espectador ideal
como o queria August Schlegel Nietzsche acompanha Schiller na definiccedilatildeo de que o
coro cria um terreno ideal para a manifestaccedilatildeo da arte O efeito da trageacutedia eacute a
manifestaccedilatildeo de um estado de unidade que transporta ao abismo do ser O coro eacute a
manifestaccedilatildeo deste sentimento da consciecircncia de que por traacutes da vida cotidiana haacute uma
realidade ldquoindestrutivelmente poderosa e cheia de alegriardquo (NT 55) Este eacute o consolo
metafiacutesico propiciado pela arte traacutegica Ao retornarmos deste estado o cotidiano nos
causa asco nojo Natildeo eacute possiacutevel interpretar mais o papel da vida comum A vida soacute
passa a se justificar atraveacutes da arte Perceba-se aiacute que o coro possui um papel
fundamental no processo O coro atua como impulso artiacutestico dionisiacuteaco em
contraposiccedilatildeo agrave forma apoliacutenea ou seja agraves imagens e agrave beleza plaacutestica Assim o
indiviacuteduo atraveacutes do coro tem para si revelado aquele substrato dionisiacuteaco encoberto
pela beleza e comedimento apoliacuteneos isto eacute ao indiviacuteduo era possiacutevel submergir na
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torrente dionisiacuteaca do auto-esquecimento permitindo-se pocircr de lado os preceitos
apoliacuteneos
E foi assim que em toda parte onde o dionisiacuteaco penetrou o apoliacuteneo
foi suspenso e aniquilado Mas eacute igualmente certo que laacute onde o primeiro
assalto foi suportado o prestiacutegio e a majestade do deus deacutelfico se externaram de
maneira mais riacutegida e ameaccediladora do que nunca(NT 41-42)
De acordo com Nietzsche as trageacutedias eram em seu iniacutecio representaccedilotildees do
sofrimento de Dioniacutesio Mesmo as trageacutedias do periacuteodo aacutetico traziam Dioniacutesio como
heroacutei traacutegico O sofrimento representado era o do despedaccedilamento de Dioniacutesio o deus
que sofreu o padecimento da individuaccedilatildeo causa de todo o sofrer O mito de Dioniacutesio eacute
interpretado aqui sob a luz da filosofia de Schopenhauer que apresenta a individuaccedilatildeo
como fonte do sofrimento ldquoNos pontos de vista aduzidos temos jaacute todas as partes
componentes de uma profunda e pessimista consideraccedilatildeo do mundo e ao mesmo tempo
a doutrina misteriosoacutefica da trageacutedia o conhecimento baacutesico da unidade de tudo o que
existe a consideraccedilatildeo da individuaccedilatildeo como a causa primeira do mal a arte como a
esperanccedila jubilosa de que possa ser rompido o feiticcedilo da individuaccedilatildeo como
pressentimento de uma unidade restabelecidardquo (NT 70)
Contudo ressalta Nietzsche a trageacutedia grega que como vimos desenvolve-se a
partir do embate contiacutenuo entre as representaccedilotildees dos deuses antiacutepodas ndash envolvidos em
um enfrentamento aparentemente sem fim ndash eacute reestruturada por Euriacutepides de forma a
diminuir o impacto do coro ou seja um golpe quase mortal para Dioniacutesio que
agonizante lanccedila matildeo de seus uacuteltimos esforccedilos O que em Euriacutepedes suscitou esta
reestruturaccedilatildeo que conforme Nietzsche eacute responsaacutevel pelo afastamento progressivo do
dionisiacuteaco tem suas origens no que o filoacutesofo chamou de uma ldquotendecircncia socraacuteticardquo O
socratismo euripidiano e a sua nova concepccedilatildeo esteacutetica satildeo as causadoras do
afastamento dos impulsos esteacuteticos primevos o dionisiacuteaco e o apoliacuteneo Em seu lugar o
discurso consciente passa a imperar O deus ex machina e os proacutelogos satildeo exemplos das
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interferecircncias racionais que datildeo novo tom agrave trageacutedia aacutetica Soacutecrates e seu racionalismo
expulsam da trageacutedia o conhecimento primevo dionisiacuteaco e estabelecem novas regras
esteacuteticas regras racionais que fazem com que o bom sinocircnimo do belo seja aquilo
alcanccedilado conscientemente
Se a trageacutedia grega foi para Nietzsche a manifestaccedilatildeo mais sublime de uma
forma artiacutestica isto se daacute em decorrecircncia do efeito por ela provocado qual seja o de
justificar o mundo enquanto fenocircmeno esteacutetico Foi exatamente o decliacutenio deste efeito
constatado pela produccedilatildeo racionalizada de Euriacutepides o responsaacutevel pela morte da
trageacutedia Ao fortalecer em demasia os princiacutepios racionais da forma Euriacutepides suprimiu
o dionisiacuteaco por meio da flacircmula que nas palavras de Nietzsche o tragedioacutegrafo
ldquolevava agrave testardquo ndash a saber uma espeacutecie de socratismo esteacutetico cujos princiacutepios se davam
a partir da remissatildeo do belo ao inteligiacutevel e deste ao virtuoso Identifica-se portanto a
racionalidade otimista socraacutetica como grande responsaacutevel pela supressatildeo do impulso
dionisiacuteaco Nietzsche alude agrave proximidade de convivecircncia entre Soacutecrates e Euriacutepides
para justificar a presenccedila do racionalismo nas obras Euripidianas Soacutecrates frequumlentava
o teatro somente para assistir agraves apresentaccedilotildees de Euriacutepides De todos os atenienses
Soacutecrates era apontado como o mais saacutebio e Euriacutepides como o segundo em sabedoria
Entretanto na contraposiccedilatildeo proposta por Nietzsche entre conhecimento instintivo e
racional Soacutecrates era descomunalmente racional ao contraacuterio do intuitivismo criativo
que reinava ateacute entatildeo Era questionando aos atenienses sobre seus atos que Soacutecrates
percebia que eles natildeo agiam conscientemente mas por intuiccedilatildeo A crenccedila socraacutetica de
que toda accedilatildeo boa deve ser consciente dominou o teatro atraveacutes de Euriacutepides Uma
chave para o entendimento da racionalidade socraacutetica segundo Nietzsche nos eacute
revelada pela ldquomonstruosa inversatildeordquo representada pela consciecircncia criacutetica de Soacutecrates ndash
ou seja a nota destoante em Soacutecrates revela-se pelo instinto criacutetico em contraposiccedilatildeo agrave
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consciecircncia criacutetica a consciecircncia criadora em contraposiccedilatildeo ao instinto como forccedila
criadora Intui-se assim o motivo pelo qual Soacutecrates natildeo compreendia a trageacutedia grega
- o dionisiacuteaco a tornava ininteligiacutevel para as exigecircncias racionalistas e criacuteticas da
ldquodialeacutetica otimistardquo socraacutetica ldquoA Soacutecrates [] parecia que a arte traacutegica nunca bdquodiz a
verdade‟ sem considerar o fato de que se dirigia agravequele que bdquonatildeo tem muito
entendimento‟ portanto natildeo aos filoacutesofos daiacute um duplo motivo para manter-se dela
afastadordquo(NT 87) Nietzsche compara Soacutecrates ao heroacutei euripidiano que
diferentemente (ateacute mesmo antagonicamente) agrave trageacutedia de Eacutesquilo e Soacutefocles ldquoprecisa
defender suas accedilotildees por meio da razatildeo e contra a razatildeordquo O que estaacute em jogo no
socratismo eacute a substituiccedilatildeo das verdades expressas miticamente religiosamente pelas
verdades loacutegicas A razatildeo tenta abarcar o todo e para isso desconsidera a arte e seus
impulsos A excelecircncia estaacute no saber e atraveacutes deste alcanccedila-se a felicidade erro do
otimismo racionalista Ilusatildeo da razatildeo que se acha soberana e independente A loacutegica
torna-se essecircncia da trageacutedia procura-se por relaccedilotildees causais e pelo bom telos O
diaacutelogo formata sua estrutura e expulsa seu fundamento musical O ldquoheroacutei dialeacuteticordquo eacute
portanto impulsionado pelo elemento otimista da dialeacutetica A justiccedila transcendental
presente nas obras Esquilianas ldquoeacute rebaixada ao niacutevel do raso e insolente princiacutepio da
bdquojusticcedila poeacutetica‟ com seu habitual deus ex machinardquo (NT 89) A racionalidade de
Soacutecrates atraveacutes de sua investigaccedilatildeo cientiacutefica da natureza de seu processo de
construccedilatildeo loacutegica da realidade daraacute origem ao que Nietzsche denominaraacute de ldquohomem
teoacutericordquo ou ldquohomem cientiacuteficordquo a quem a razatildeo ergue-se acima da proacutepria realidade ao
ponto mesmo de ndash e aiacute reside o proacuteprio otimismo ndash propor-se a tarefa de corrigir as
falhas da proacutepria realidade Mais ainda a razatildeo socraacutetica acena ao homem com a
promessa de conferir sentido agrave existecircncia pelo conhecimento e desta forma busca
justificar tal existecircncia
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Em face ao pessimismo praacutetico eacute Soacutecrates o protoacutetipo do
otimista teoacuterico que na jaacute assinalada feacute na escrutabilidade da
natureza das coisas atribui ao saber e ao conhecimento a forccedila de
uma medicina universal e percebe no erro o mal em si mesmo
(NT 94)
Natildeo obstante o otimismo no conhecimento na racionalidade socraacutetica encontra seu
maior dragatildeo em sua proacutepria loacutegica interna Assim nas palavras de Nietzsche
[] a periferia do ciacuterculo da ciecircncia possui infinitos pontos
e enquanto natildeo for possiacutevel prever de maneira nenhuma como se
poderaacute alguma vez medir completamente o ciacuterculo o homem
nobre e dotado ainda antes de chegar ao meio de sua existecircncia
tropeccedila e de modo inevitaacutevel em tais pontos fronteiriccedilos da
periferia onde fixa o olhar no inesclareciacutevel Quando divisa aiacute
para seu susto como nesses limites a loacutegica passa a girar em
redor de si mesma e acaba por morder a proacutepria cauda ndash entatildeo
irrompe a nova forma de conhecimento o conhecimento traacutegico
que mesmo para ser apenas suportado precisa da arte como meio
de proteccedilatildeo e remeacutedio (NT 95)
Afigura-se-nos aqui o problema apontado por Nietzsche como o ldquoproblema da
ciecircncia mesmardquo a saber um problema que nos envolve a todos por abarcar (ou
contaminar) toda a cultura ocidental - isto eacute ainda mantemos o dionisiacuteaco agrave baila
ocupando diminuta posiccedilatildeo em detrimento ao culto acerbado ao racionalismo socraacutetico
A cultura socraacutetica impotildee-se pelo homem-teoacuterico e qualquer outra existecircncia que fuja
aos olhos perscrutadores de Soacutecrates deve ldquolutar penosamente para pocircr-se agrave sua altura
como existecircncia permitida e natildeo como existecircncia propostardquo
Nietzsche nos atenta para o fato de reconhecermos comumente no homem culto
erudito o homem douto saacutebio ndash consecutivamente o dionisiacuteaco a arte eacute colocada de
forma perifeacuterica de modo a nunca poder encontrar espaccedilo para superar sua condiccedilatildeo de
ldquoremeacutedio-arterdquo A vontade aacutevida faz seu caminho mesmo atraveacutes da completa falta de
respostas de fundamentos de sentido assim eacute preferiacutevel ao ser humano querer o nada
no sentido de ainda sim querer alguma coisa do que nada querer do que reconhecer a
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falta de fundamentos da qual consistem em todos os tempos as ilusotildees que
costumeiramente adota-se como engodo ao absoluto sem-sentido da vida
Por fim Nietzsche atenta-nos para o fato de como o homem de seu tempo vem
perdendo a crenccedila na ciecircncia otimista socraacutetica isto eacute pressentindo que a cultura
racionalista socraacutetica torna-se iloacutegica ao vislumbraacute-la em seus horizontes afastando-se
de suas consequumlecircncias Nietzsche diagnostica na oacutepera de seu periacuteodo a subordinaccedilatildeo da
muacutesica agrave arte figurada agrave palavra e expotildee a expectativa de que possa haver no cansaccedilo e
na percepccedilatildeo do insucesso dos esforccedilos racionalistas um renascimento da trageacutedia
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4 Conclusatildeo pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo
da vida
Retribui-se mal a um mestre continuando-
se sempre apenas aluno
(Nietzsche)
Natildeo podemos ver na filosofia schopenhaueriana qualquer instacircncia que
justifique a vida Ao conhecermos a sua essecircncia - a vontade cega e irracional que se
deixa ver atraveacutes das manifestaccedilotildees do seu querer incessante - percebemos o absurdo de
sua existecircncia e somos por essa percepccedilatildeo levados agrave sua negaccedilatildeo Nietzsche por sua
vez utilizando-se dos conceitos da filosofia de Schopenhauer procura em sua obra
justificar a vida e encontra esta justificaccedilatildeo na arte Nesta conclusatildeo da pesquisa
pretendemos entatildeo apresentar um esboccedilo do modo pelo qual alguns elementos da
filosofia schopenhaueriana foram utilizados no projeto do primeiro livro de Nietzsche e
explicitar o modo como estes elementos foram configurados no interior de seu projeto
Dentre estes elementos percorreremos o paralelo entre os pares dionisiacuteacoapoliacuteneo e
vontaderepresentaccedilatildeo os conceitos de arte e apreciaccedilatildeo esteacutetica e sua cisatildeo entre as
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artes figurativas e a musical a especificidade da muacutesica o conceito de gecircnio e sua
divisatildeo e os limites da racionalidade e da ciecircncia
Jaacute no primeiro paraacutegrafo de NT a associaccedilatildeo entre os pares nietzscheanos do
dionisiacuteaco e apoliacuteneo e as visotildees de mundo schopenhauerianas satildeo expliacutecitas Nietzsche
define o impulso apoliacuteneo atraveacutes do sonho do princiacutepio de individuaccedilatildeo e o dionisiacuteaco
atraveacutes da embriaguez da consciecircncia de unidade da vontade do livrar-se do veacuteu de
maia Os deuses gregos tornam-se representativos destes estados schopenhauerianos de
consciecircncia Como vimos no capiacutetulo segundo desta dissertaccedilatildeo sob o ponto de vista da
representaccedilatildeo o mundo eacute objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito
agraves condiccedilotildees a priori do entendimento Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das
formas a priori do entendimento eacute interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos
advindos da filosofia Platocircnica e oriental como um mundo aparente ilusoacuterio artificial
O sonho efeito do encantamento apoliacuteneo eacute utilizado como metaacutefora da realidade
fenomecircnica no mundo Schopenhaueriano Os Vedas e Puranas tantas vezes citados por
Schopenhauer tratam o mundo como um sonho imposto pelo deus Maia o deus da
ilusatildeo que cobre a visatildeo do homem com seu veacuteu A mitologia oriental aludida por
Schopenhauer toma conta do mundo helecircnico em Nietzsche que transforma Apolo no
deus Maia o configurador de sonhos O sonho eacute utilizado como ilustraccedilatildeo da realidade
pelo fato de que durante o sonho natildeo sabemos estar sonhando O mundo dos sonhos nos
eacute naquele momento real Vemo-nos como indiviacuteduos e vemos o mundo da
individuaccedilatildeo e suas leis causais espaccedilo-temporais Somente o momento empiacuterico do
despertar informa-nos do sonho Haacute portanto uma identificaccedilatildeo do ldquoparentesco iacutentimo
entre vida e sonhordquo(MVR 60) Como ilustraccedilatildeo desta metaacutefora Schopenhauer elogia
ainda a obra do ldquovaterdquo Calderoacuten de La Barca A vida eacute sonho agrave qual denominaraacute como
um ldquodrama metafiacutesicordquo por expor esta faceta de seu sistema A consciecircncia de que a
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vida eacute sonho eacute para Schopenhauer um despertar metafiacutesico cujo propiciador foi Kant
ao demonstrar o caraacuteter fenomecircnico do mundo Este despertar contudo natildeo causa
prazer O filoacutesofo e o gecircnio personagens que na metafiacutesica schopenhaueriana alcanccedilam
este despertar satildeo atormentados pela realidade com a qual se deparam qual seja a de
que a vida eacute puro sofrimento Eacute no intuito de deixar velada esta faceta da vida que
Apolo ofusca a visatildeo dos homens com seu mundo luminoso de sonho seu objetivo eacute
encobrir esta verdade aterrorizadora As artes natildeo musicais tanto na teoria de
Schopenhauer como na nietzscheana manteacutem o homem em um juacutebilo prazeroso
ocasionado pela contemplaccedilatildeo puramente objetiva Neste momento natildeo se percebe o
jogo da vontade individualizada somos afastados da realidade do querer insuflados
pela caracteriacutestica quietiva da apreciaccedilatildeo esteacutetica nas palavras de Nietzsche
encontramos na arte um ldquoremeacutedio-arterdquo32
Esta visatildeo do lado terriacutevel da vida ocasionada pelo despertar do dogmatismo
metafiacutesico na teoria schopenhaueriana eacute associada em NT agrave sabedoria dionisiacuteaca
Verificamos na descriccedilatildeo do impulso dionisiacuteaco os elementos que caracterizam a
vontade schopenhaueriana A visatildeo dionisiacuteaca do mundo carrega consigo o despertar
para o caraacuteter absurdo da vida Ao olhar para a proacutepria essecircncia o homem descobre-se
enquanto manifestaccedilatildeo de uma vontade aacutevida desprovida de telos O ldquomecanismo
internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens marionetes guiados pela
carecircncia Esta realidade eacute assustadora pois subtrai do horizonte todos os propoacutesitos da
vida individual Dioniacutesio trava aqui sua batalha contra Apolo ao apontar a ilusatildeo da
individuaccedilatildeo como mecanismo para uma fuga daquilo que em essecircncia somos Apesar
de seu caraacuteter aterrorizador a sabedoria dionisiacuteaca eacute acompanhada do deleite
32
Podemos ver aqui o nuacutecleo da dissenssatildeo entre as teorias dos dois filoacutesofos Para Schopenhauer este
remeacutedio eacute temporaacuterio e tatildeo logo o efeito da apreciaccedilatildeo esteacutetica se esvaia os interesses da vontade voltam
a agir sobre o indiviacuteduo e a vida de sofrimento continua seu percurso restando apenas o caminho da
negaccedilatildeo daquela vontade da vida mesma em direccedilatildeo ao nada Nietzsche ao contraacuterio aponta para uma
forma de cura atraveacutes do remeacutedio-arte ver a vida enquanto forma de arte afirmaacute-la
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indescritiacutevel da celebraccedilatildeo da unidade com o todo ldquoSob a magia do dionisiacuteaco torna a
selar-se natildeo apenas o laccedilo de pessoa a pessoa mas tambeacutem a natureza alheada
inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de reconciliaccedilatildeo com seu filho
perdido o homemrdquo(NT 31) Se Apolo eacute representado como deus da forma da clareza
da individuaccedilatildeo e as artes patrocinadas por ele satildeo expressotildees destas caracteriacutesticas
Dioniacutesio por sua vez eacute o patrocinador da muacutesica expressatildeo fenomecircnica direta da
vontade Vemos em Nietzsche uma biparticcedilatildeo das artes que tambeacutem pode ser extraiacuteda
da metafiacutesica schopenhaueriana (artes natildeo-musicais e arte musical)
Para Schopenhauer as formas artiacutesticas natildeo-musicais ao provocarem uma visatildeo
puramente objetiva do objeto apreciado tecircm como caracteriacutestica fundamental a
libertaccedilatildeo da subjetividade e com ela dos anseios da vontade Durante esta forma de
apreciaccedilatildeo esteacutetica ldquosomos alforriados do desgraccedilado iacutempeto volitivo festejamos o
Sabbath dos trabalhos forccedilados do querer a roda de Iacutexion cessa de girarrdquo (MVR
267) A definiccedilatildeo nietzscheana para a funccedilatildeo da arte apoliacutenea se daacute da mesma maneira
qual seja ela deve ldquo [] livrar a vista de olhar no horror da noite e salvar o sujeito
graccedilas ao baacutelsamo da aparecircncia do espasmo dos movimentos do querer []rdquo (NT
117) A muacutesica por sua vez recebe um tratamento especial de Schopenhauer devido ao
seu efeito esteacutetico Se as demais artes satildeo um quietivo para a vontade a muacutesica ldquonatildeo faz
mais do que agradar a vontade de viver jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo
seus ecircxitos e ao final expressa sua satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509) Ela encontra-se
num niacutevel de valor superior ao das demais artes por tratar-se de representar a essecircncia
do mundo a vontade mesma Assim tambeacutem ela eacute tratada por Nietzsche como a arte
que representa a sabedoria dionisiacuteaca e faz o apreciador vivenciar a vontade mesma
Em seus escritos sobre a poesia e a oacutepera Schopenhauer alude agrave necessidade de
subordinar os conceitos e o texto agrave muacutesica para que estas artes tenham um efeito mais
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arrebatador no apreciador esteacutetico Esta subordinaccedilatildeo eacute assumida por Nietzsche em sua
teoria da trageacutedia Nietzsche encontra na liacuterica a primeira manifestaccedilatildeo desta junccedilatildeo da
arte dionisiacuteaca com a arte apoliacutenea e aponta aiacute o geacutermen que daraacute origem agrave trageacutedia
Podemos perceber aqui uma subordinaccedilatildeo das artes natildeo-musicais agrave muacutesica que por sua
vez se espelha na subordinaccedilatildeo do mundo fenomecircnico ao mundo da coisa-em-si As
artes figurativas representam as ideacuteias objetivaccedilotildees imediatas da vontade e a muacutesica
representa a vontade mesma Na teoria da trageacutedia de Nietzsche esta subordinaccedilatildeo seraacute
mantida e assim reflete a configuraccedilatildeo da metafiacutesica schopenhaueriana A muacutesica ldquoeacute
uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente sobre o mais iacutentimo do
homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele como se fora uma
linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo (MVR
336) Desta forma uma arte que se pretenda formar a partir da integraccedilatildeo de elementos
de diversas formas artiacutesticas deve tomar a muacutesica como inspiraccedilatildeo tanto na teoria de
Schopenhauer como na de Nietzsche
Desta dicotomia das formas artiacutesticas que podemos perceber nos dois filoacutesofos
podemos depreender duas formas do gecircnio o apoliacuteneo ou contemplativo e o
compositor dionisiacuteaco Para Schopenhauer ldquoo compositor manifesta a essecircncia mais
iacutentima do mundo expressa a sabedoria mais profunda numa linguagem natildeo
compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo magneacutetico fornece informaccedilotildees
sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito algumrdquo (MVR 342) Podemos
vislumbrar ainda nesta descriccedilatildeo de Schopenhauer uma caracteriacutestica do que Nietzsche
mais tarde iraacute chamar de criaccedilatildeo inconsciente Em uma segunda passagem desta vez ao
final do capiacutetulo 39 do segundo volume de MVR vemos tambeacutem uma caracteriacutestica que
posteriormente tambeacutem seraacute ressaltada por Nietzsche como demarcaccedilatildeo do caraacuteter
dionisiacuteaco Schopenhauer se utiliza de uma passagem dos Vedas para descrever o prazer
90
provocado pela muacutesica como um prazer de participaccedilatildeo no todo33
Este ecircxtase da
comunhatildeo eacute um aspecto reiteradamente apontado por Nietzsche O gecircnio dionisiacuteaco eacute
para o jovem filoacutesofo aquele que tambeacutem absorvido pelo impulso dionisiacuteaco traduz
sua essecircncia em linguagem musical O tipo de gecircnio musical descrito eacute encontrado em
Schopenhauer nas encarnaccedilotildees de Rossini e Beethoven cujas obras operiacutesticas satildeo
norteadas pela produccedilatildeo musical e o livreto ocupa um lugar secundaacuterio Nietzsche
aponta um renascimento progressivo do gecircnio musical em seu tempo que se inicia com
Bach e tem continuidade em Beethoven mas que encontra sua forma mais bem acabada
em Richard Wagner
Apesar da tomarem caminhos diferentes no que tange ao objetivo da obra de arte
traacutegica Nietzsche e Schopenhauer mais uma vez em uniacutessono consideram-na todavia
como uma forma de entendimento superior ao apresentado pelo pensamento cientiacutefico
Como vimos anteriormente as ciecircncias no sistema schopenhaueriano seguem o
princiacutepio de razatildeo seu papel eacute apenas descritivo e consequumlentemente limitado ao
acircmbito daquele princiacutepio Transformam em conceitos abstratos o mundo intuitivo ao
descrevecirc-lo em sua aparecircncia e seguem o fio condutor do principio de razatildeo
apresentando as causas para cada fenocircmeno particular Desta forma as ciecircncias estatildeo
subordinadas ao mundo da aparecircncia e no que importa agrave essecircncia natildeo podem
demonstraacute-la As uacutenicas produccedilotildees humanas com esta capacidade satildeo a arte e a
filosofia e essas o fazem de forma indireta metafoacuterica A consideraccedilatildeo racional do
mundo estaacute enquanto presa ao acircmbito do fenocircmeno subordinada aos ditames da
vontade Esta ldquovontade aacutevida sempre encontra um meio atraveacutes de uma ilusatildeo
distendida sobre as coisas de prender agrave vida as suas criaturas e de obrigaacute-las a
prosseguir vivendordquo (NT 108) Nietzsche descreve trecircs formas pelas quais a vontade
33
ldquoE o delicioso que eacute uma classe de alegria chama-se assim o sumo Atman porque onde haacute uma
alegria esta eacute uma pequena parte de sua alegriardquo (MVR II 510)
91
manteacutem a vida A primeira delas eacute o ldquoveacuteu da beleza da arterdquo sustentado pelo impulso
apoliacuteneo Encontramo-la na epopeacuteia homeacuterica e nas artes figurativas A segunda eacute a
visatildeo traacutegica do mundo que encontra um consolo metafiacutesico na percepccedilatildeo de um
substrato comum aos fenocircmenos e que por consequumlecircncia abdica destes em funccedilatildeo da
vivecircncia daquele substrato A terceira forma de dominaccedilatildeo da vontade eacute a ciecircncia a
loacutegica socraacutetica que procura abarcar o mundo com sua razatildeo de acircnsia justificadora
Estas trecircs formas de coerccedilatildeo conforme sua predominacircncia em determinada cultura
formam o que Nietzsche iraacute denominar respectivamente de culturas artiacutestica traacutegica e
socraacutetica Correspondem historicamente agraves fases predominantemente helecircnica budista
ou alexandrina Fazendo um diagnoacutestico da cultura contemporacircnea Nietzsche a
identifica como uma cultura predominantemente alexandrina Diagnostica o seu ocaso a
partir da identificaccedilatildeo feita por Kant e Schopenhauer dos limites da ciecircncia do
desmascaramento das verdades eternas que amparam a visatildeo socraacutetica de mundo quais
sejam a visatildeo de que o tempo o espaccedilo e a causalidade satildeo leis universais e
incondicionais Esta criacutetica ao racionalismo eacute constante na obra schopenhaueriana
Percebemo-la claramente em suas investidas contra a filosofia de seu tempo e a
presunccedilatildeo nela presente de racionalmente abarcar o real
- - - - - - - - - -
Compostas por conceitos da metafiacutesica schopenhaueriana a teoria da trageacutedia de
Schopenhauer e a de Nietzsche apontam para caminhos diversos Em Schopenhauer a
trageacutedia eacute a arte cujo fim uacuteltimo eacute ao expor seu lado terriacutevel inspirar o apreciador agrave sua
renuacutencia Este lado terriacutevel espelho do mundo presentificador da vida humana e de
suas relaccedilotildees ocasiona atraveacutes do medo e da compaixatildeo a vontade de renuacutencia a essa
92
mesma vida Nietzsche introduz na trageacutedia o elemento da muacutesica schopenhaueriana34
A consequumlecircncia desta introduccedilatildeo eacute um plano mais profundo de entendimento que
apresenta a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com sua essecircncia Neste estado de consciecircncia
apartado de sua individualidade o sujeito jaacute se vecirc como um criador de mundos e vecirc no
mundo uma obra de arte sua Ao derivar o impulso apoliacuteneo do dionisiacuteaco35
Nietzsche
jaacute executou a renuacutencia do indiviacuteduo que agora passa a se ver como essecircncia e ao mundo
como fenocircmeno artiacutestico
34
Machado (2006 200) considera na esteira de Clemeacutent Rosset e de Jean-Marie Schaeffer a utilizaccedilatildeo
da teoria da apreciaccedilatildeo musical de Schopenhauer por Nietzsche como o elemento que sugeriraacute a
caracteriacutestica de afirmaccedilatildeo da vontade de sua filosofia da trageacutedia 35
ldquoNo efeito conjunto da trageacutedia o dionisiacuteaco recupera a preponderacircncia ela se encerra com um tom
que jamais poderia soar a partir do reino da arte apoliacutenea E com isso o engano apoliacuteneo se mostra como o
que ele eacute como o veacuteu que enquanto dura a trageacutedia envolve o autecircntico efeito dionisiacuteaco o qual
todavia eacute tatildeo poderoso que ao final impele o proacuteprio drama apoliacuteneo a uma esfera onde ele comeccedila a
falar com sabedoria dionisiacuteaca e onde nega a si mesmo e agrave sua visibilidade apoliacuteneardquo (NT 129)
93
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8
RESUMO
O projeto que aqui se apresenta tem como objetivo principal percorrer as
teorias do traacutegico schopenhaueriana e nietzscheana no intuito de apresentar as
principais caracteriacutesticas de cada uma destas teorias Este percurso teraacute como ponto de
partida o fundamento metafiacutesico comum a elas qual seja a filosofia schopenhaueriana
da vontade Atraveacutes desta exposiccedilatildeo pretendemos demonstrar natildeo somente a real
amplitude da influecircncia de Schopenhauer nos primeiros escritos de Nietzsche mas
tambeacutem algumas das peculiaridades existentes em cada uma das citadas teorias
Palavras-chave Schopenhauer - Nietzsche - Trageacutedia - Traacutegico - Filosofia da
vontade
ABSTRACT
The research presented herein has as its ultimate goal to discuss the
theories of the tragedy developed by Schopenhauer and Nietzsche highlighting the
main characteristics ndash points of convergence and divergence ndash of both Our trajectory
shall start from the metaphysical foundations apparently displayed in both theories
which is ndash the schopenhauerian philosophy of the will Throughout our exposition we
intend to show not only that Schopenhauers philosophy had a huge impact in
Nietzsches first writings but also reveal the peculiarities beneath the development of
their aforementioned theories
Keywords Schopenhauer - Nietzsche - Tragedy - Tragic ndash Philosophy of the will
9
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO11
1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES NA
FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA 17
2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU
SUBSTRATO METAFIacuteSICO42
21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo43
22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo45
23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana49
24 A finalidade moral da trageacutedia56
25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera62
3 A TEORIA DA TRAGEacuteDIA DO JOVEM NIETZSCHE65
31 A influecircncia de Schopenhauer na obra do primeiro Nietzsche66
32 O projeto subjacente ao nascimento da trageacutedia72
33 A teoria da trageacutedia publicada75
4 CONCLUSAtildeO pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo da
vida85
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS93
10
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PP = Parerga e paralipomena (1974)
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SFU = Sobre a filosofia universitaacuteria (2001)
Obras de Nietzsche
NT = O nascimento da trageacutedia (1992)
VD = Visatildeo dionisiacuteaca do mundo (2005)
CORRESPONDEcircNCIA = Correspondecircncias de Nietzsche (2007)
OC = Obras completas de Nietzsche (1963)
11
INTRODUCcedilAtildeO
ldquoDias sem nuacutemero nunca reservam a
ningueacutem nada mais que dissabores mais
proacuteximos da dor que da alegria Quanto aos
prazeres natildeo os discernimos e nossa vista os
buscaraacute em vatildeo logo que para nossa
desventura chegamos ao limite prefixado E
desde entatildeo o nosso aliacutevio uacutenico seraacute aquele
que daraacute a todos o mesmo fim na hora de
chegar de suacutebito o destino procedente do
tenebroso reino onde natildeo haacute cantos nem
liras onde natildeo haacute danccedilas ndash ou seja a morte
epiacutelogo de tudo Melhor seria natildeo haver
nascido como segunda escolha bom seria
voltar logo depois de ver a luz agrave mesma
regiatildeo de onde se veiordquo
(Soacutefocles)
As teorias sobre a trageacutedia de Schopenhauer e Nietzsche satildeo parte
indispensaacutevel no estudo da histoacuteria da filosofia da trageacutedia Dentre os diversos
pensadores contemporacircneos que tratam sobre o problema da trageacutedia e do traacutegico e que
deram visiacutevel destaque agraves teorias dos nossos filoacutesofos podemos destacar Walter
Benjamin1 e Peter Szondi
2 Entretanto nos trabalhos destes autores o problema do
1 BENJAMIN Walter Origem do drama barroco alematildeo Traduccedilatildeo Sergio Paulo Rouanet Satildeo Paulo
Brasiliense 2004
12
relacionamento e da interdependecircncia entre as filosofias de Schopenhauer e Nietzsche
natildeo eacute detalhado a contento Diante disto mesmo para um olhar historicamente
caracterizador torna-se vaacutelido um estudo comparado destas teorias que leve em
consideraccedilatildeo o quecirc ou o quanto haacute de comum em suas metafiacutesicas e a partir desta
perspectiva trace os aspectos coincidentes e dissidentes das mesmas mostrando seus
pontos de interdependecircncia e discrepacircncia muacutetua
Apesar de estar entre as teorias da trageacutedia mais estudadas do periacuteodo do
idealismo alematildeo a teoria Schopenhaueriana que eacute sempre analisada em relaccedilatildeo a seus
pressupostos metafiacutesicos ao ser vista sob outra perspectiva ganharia contornos
intensamente enriquecidos Esta perspectiva atraveacutes da qual nos propomos a examinar a
teoria do traacutegico do filoacutesofo eacute aquela que levaraacute em consideraccedilatildeo as influecircncias
histoacutericas culturais e filosoacuteficas que agiram diretamente sobre a esteacutetica do traacutegico
schopenhaueriana Ao lanccedilarmos um olhar sobre estas referidas influecircncias estaremos
abrindo caminho para uma melhor compreensatildeo sobre a teoria esteacutetica
schopenhaueriana o que conseguintemente refletiraacute em um juiacutezo mais adequado da
teoria nietzscheana
Para um entendimento mais eficiente das teorias propostas nas obras do
jovem Nietzsche parece-nos essencial o conhecimento de uma de suas mais decisivas
influecircncias a filosofia de Schopenhauer A analogia almejada erige-se na verdade
como meacutetodo de anaacutelise ou seja o que pretendemos eacute alcanccedilar uma maior compreensatildeo
dos problemas com os quais Nietzsche se deparou quando da elaboraccedilatildeo de sua primeira
obra e procurar identificar a existecircncia de alguma apropriaccedilatildeo eou adaptaccedilatildeo de alguns
conceitos da filosofia de Schopenhauer na resoluccedilatildeo destes problemas A necessidade
deste estudo comparativo torna-se ainda mais evidente quando e este eacute o caso
2 SZONDI Peter Ensaio sobre o Traacutegico Traduccedilatildeo Pedro Suumlssekind Rio de Janeiro Jorge Zahar
2005
13
defrontamo-nos com uma influecircncia que se apresenta tatildeo clara e assumidamente
admitida pelo autor Todavia natildeo se pretende aqui apenas a justaposiccedilatildeo de um
pensamento ao outro Apesar de ser identificaacutevel em toda a obra posterior de Nietzsche
encontra-se nos seus primeiros escritos sobretudo na obra O nascimento da trageacutedia
aquele momento discursivo no qual podemos apontar uma influecircncia mais direta da
filosofia de Schopenhauer
Dos trabalhos que fazem um estudo comparativo entre estes filoacutesofos a
maioria se ateacutem em identificar as diferenccedilas conceituais entre eles mais
especificamente no campo eacutetico e metafiacutesico Grosso modo tratam principalmente dos
problemas relativos agrave diferenciaccedilatildeo entre os conceitos de vontade nestes autores
vontade de viver e vontade de poder Estes estudos tecircm como foco a filosofia tardia de
Nietzsche onde este apesar da assumida influecircncia torna-se um criacutetico de
Schopenhauer A real extensatildeo da influecircncia deste filoacutesofo na primeira obra de
Nietzsche bem como o relacionamento entre suas teorias da trageacutedia permanecem
assim como territoacuterios ainda pouco explorados Ao lanccedilarmos olhar sobre esse
afastamento que Nietzsche mais tarde realizaraacute em relaccedilatildeo agrave filosofia
Schopenhaueriana verificamos mais uma vez a importacircncia do estudo de sua primeira
fase na qual poderemos detectar o referido afastamento
Podemos observar entretanto o crescimento do interesse no estudo da
obra O nascimento da trageacutedia de Nietzsche Nos uacuteltimos anos assistimos tambeacutem no
Brasil agrave publicaccedilatildeo de vaacuterios trabalhos que tecircm sob perspectiva a complexidade desse
seu primeiro livro Na bibliografia sugerida neste projeto constam publicaccedilotildees dos
seguintes autores Roberto Machado (2006) Rosa Maria Dias (2005 e 2009) Iracema
Macedo (2006) Marcio Joseacute Silveira Lima (2006) Estas publicaccedilotildees tratam temas
diversos da esteacutetica nietzscheana tais como a muacutesica a trageacutedia o traacutegico ou a
14
repercussatildeo do livro de Nietzsche e sua influecircncia wagneriana Podemos ver entretanto
naqueles e em outros trabalhos a constante chave de leitura que atribui a Schopenhauer
a influecircncia decisiva natildeo apenas sobre o jovem Nietzsche como usualmente se aponta
mas tambeacutem sobre um peculiar imbricamento entre metafiacutesica e esteacutetica o qual se
sustentaria sobre os ldquoimpulsos artiacutesticos da naturezardquo o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco Nos
termos de Dias (2005 27)
A oposiccedilatildeo apoliacutenea e dionisiacuteaca considerada no plano
metafiacutesico se daacute a partir da noccedilatildeo de vontade ou querer
estendida (sic) no sentido que a ela deu Schopenhauer de
ldquocentro e nuacutecleo do mundordquo ou ldquoforccedila que eternamente quer
deseja e aspirardquo () O mundo fenomecircnico como resultado
desse movimento do querer () faz um segundo movimento
dessa vez esteacutetico reproduzindo o movimento inicial que a
vontade realizou em direccedilatildeo agrave aparecircncia
Tendo em vista o fato de que as teorias sobre o traacutegico dos dois filoacutesofos tecircm como
ponto de partida o sistema metafiacutesico schopenhaueriano fica clara a necessidade de
analisar em cotejo estas teorias tendo como fio condutor o meacutetodo de investigaccedilatildeo ora
proposto
Aleacutem de um aprofundamento no problema da influecircncia de
Schopenhauer na obra esteacutetica de Nietzsche o estudo de suas teorias sobre o traacutegico nos
daraacute a oportunidade de identificar as peculiaridades de cada uma destas teorias bem
como de estabelecer a sua importacircncia histoacuterica para uma filosofia do traacutegico
Em um primeiro momento traccedilaremos um panorama histoacuterico que
objetiva entender o status quo da filosofia do traacutegico no periacuteodo anterior ao
desenvolvimento da teoria schopenhaueriana da trageacutedia Esta investigaccedilatildeo seraacute
norteada pelas referecircncias constantes na proacutepria obra de Schopenhauer bem como por
um levantamento biograacutefico do filoacutesofo ou seja trabalharemos somente os momentos
que satildeo fundamentais para uma melhor compreensatildeo da obra schopenhaueriana Dentre
15
estes momentos daremos ecircnfase aos seguintes pontos o estudo sobre o helenismo de
Winckelmann e sua repercussatildeo a criacutetica teatral de Lessing Schiller e Goethe seu
projeto de criaccedilatildeo de um teatro alematildeo e suas produccedilotildees dramaacuteticas
Traccedilado o panorama histoacuterico no qual se insere a teoria da trageacutedia
schopenhaueriana passaremos para o toacutepico seguinte a apresentaccedilatildeo do sistema
metafiacutesico de Schopenhauer no qual estaacute embasada a sua teoria da trageacutedia bem como
a teoria nietzscheana A apresentaccedilatildeo seraacute feita de forma a expor os aspectos gerais da
filosofia da vontade atendo-se aos pontos deste sistema que estatildeo intrinsecamente
relacionados agraves teorias da trageacutedia dos nossos autores
Apoacutes os passos descritos reuniremos em um esboccedilo geral as
caracteriacutesticas do relacionamento existente entre o jovem Nietzsche e a filosofia de
Schopenhauer Para tanto utilizaremo-nos das referecircncias que Nietzsche faz a
Schopenhauer em suas cartas e escritos de juventude Com esta pesquisa pretendemos
identificar a opiniatildeo que o jovem Nietzsche tinha sobre a filosofia de Schopenhauer e a
profundidade da influecircncia desta em sua primeira obra Percorreremos ainda o ambiente
circundante agrave primeira obra de Nietzsche no intuito de realccedilar alguns dos conceitos
formativos de O nascimento da trageacutedia
Estabelecida a ligaccedilatildeo entre os autores passaremos ao estudo do apoliacuteneo
e do dionisiacuteaco par conceitual que nos forneceraacute a chave para se fazer um estudo
comparativo entre os filoacutesofos Para cumprir esta etapa analisaremos O nascimento da
trageacutedia bem como escritos contemporacircneos a este livro atraveacutes dos quais poderemos
delinear melhor a significaccedilatildeo desta duplicidade de impulsos e visotildees de mundo
Delinearemos assim os contornos das definiccedilotildees fundamentais da esteacutetica nietzscheana
e procuraremos construir um paralelo entre o mundo dionisiacuteaco e o mundo metafiacutesico
da vontade schopenhaueriano Temos a intenccedilatildeo de demonstrar a origem desta
16
metafiacutesica da vontade ou seja o criticismo kantiano e sua importacircncia para o conceito
de dionisiacuteaco Demonstraremos tambeacutem as caracteriacutesticas do mundo fenomecircnico
schopenhaueriano em sua identidade com o apoliacuteneo nietzscheano retomando a
epistemologia de Schopenhauer
Realizada a aproximaccedilatildeo e expostas tanto as semelhanccedilas como as
particularidades dos conceitos principais dos dois autores percorreremos sempre
focando um estudo paralelo entre os filoacutesofos outros conceitos que encontram
similaridade em suas esteacuteticas Com esse intuito procuraremos identificar nos dois
filoacutesofos o destaque dado agrave muacutesica dentro de suas teorias e o lugar dado agraves outras artes
em suas obras Discorreremos sobre a criacutetica que eles em uniacutessono fazem ao que
nomeiam racionalismo dogmatismo e o otimismo Finalizadas as aproximaccedilotildees
voltaremos nossa atenccedilatildeo ao aspecto de dissensatildeo que propicia o afastamento
fundamental entre as teorias dos dois filoacutesofos o efeito da trageacutedia Com isto
demonstraremos que a base metafiacutesica comum quando alinhada a pressupostos
esteacuteticos distintos geraraacute a referida dissensatildeo
17
1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES
NA FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA
Por que minha filosofia natildeo encontrou
simpatia e interesse Porque a verdade natildeo
estaacute de acordo com a tagarelice dos tempos
(Schopenhauer)
Neste primeiro capiacutetulo objetivamos apresentar as fontes filosoacuteficas
incutidas no sistema schopenhaueriano no intuito de situar historicamente o surgimento
da filosofia da vontade e trazer agrave baila o seu ambiente circundante bem como as teorias
filosoacuteficas com as quais Schopenhauer se propotildee a dialogar Apontaremos inicialmente
as influecircncias filosoacuteficas assumidamente presentes no sistema schopenhaueriano bem
como aquelas que fundamentam sua metafiacutesica e consequumlentemente sua teoria esteacutetica
Em um segundo momento procuraremos fazer um breve esboccedilo do ambiente artiacutestico-
cultural que dominava o pensamento alematildeo de entatildeo com o qual direta ou
indiretamente Schopenhauer e o jovem Nietzsche se depararam Com isto esperamos
posteriormente demarcar as singularidades que caracterizam as teorias destes filoacutesofos
Ressaltamos todavia que natildeo se trata de um mapeamento completo das fontes que
influenciaram esses autores ndash tarefa que exigiria um esforccedilo bem maior do que aquele
18
proposto por esta pesquisa ndash e sim de um breve panorama que se pautaraacute nas influecircncias
marcantemente presentes em suas obras
No contato com a obra de Schopenhauer a primeira impressatildeo que natildeo
passa despercebida aos seus leitores eacute a qualidade de sua prosa3 Tal qualidade
revelada na diversidade de recursos literaacuterios utilizados pelo autor eacute produto da visiacutevel
erudiccedilatildeo cultivada pelo filoacutesofo Conhecedor do grego do latim e suas respectivas
literaturas Schopenhauer transitava ainda pela obras literaacuterias cientiacuteficas e filosoacuteficas
contemporacircneas em suas liacutenguas originais conhecia o inglecircs o italiano o francecircs e o
espanhol Em sua juventude conviveu com vaacuterias personalidades do meio cultural
germacircnico que frequumlentavam o salatildeo de sua matildee em Weimar dentre eles Goethe a
maior figura das letras germacircnicas com quem teve um relacionamento mais proacuteximo
Sua obra eacute repleta de citaccedilotildees de poetas dramaturgos e seu conhecimento das artes
plaacutesticas e da muacutesica natildeo satildeo superficiais Em suas viagens pela Europa pocircde admirar
diversas esculturas e pinturas e como ele proacuteprio dizia pocircde ler diretamente no ldquolivro
do mundordquo Essa erudiccedilatildeo pode ser notada mesmo diante do desconhecimento de sua
biografia pela observaccedilatildeo da enorme quantidade de citaccedilotildees e menccedilotildees que estatildeo
espalhadas no interior de suas obras traduzidas ou como em sua maior parte citadas
em suas respectivas liacutenguas Frequumlentava as mais diversas aacutereas de conhecimento de sua
eacutepoca como sustenta Aramayo
3 O cuidado com a qualidade da produccedilatildeo literaacuteria tanto no que se refere agrave clareza quanto agrave riqueza de
recursos linguumliacutesticos eacute uma das caracteriacutesticas que Schopenhauer e Nietzsche tecircm em comum Esta
qualidade torna-se mais evidente ainda quando seus trabalhos satildeo natildeo raramente comparados com os
escritos filosoacuteficos alematildees daquele periacuteodo principalmente aos de Fichte Schelling e Hegel O elogio agrave
prosa schopenhaueriana feito por literatos e filoacutesofos contemporacircneos influenciados por sua obra pode
ser ilustrado agrave exaustatildeo entre eles encontram-se Thomas Mann Goethe Wittgenstein e o proacuteprio
Nietzsche ldquoMas a imensa forccedila de penetraccedilatildeo deste pensamento explica-se antes de tudo pelo fato de o
autor ser ao lado de Nietzsche o maior entre os escritores filosoacuteficos alematildeesrdquo (Rosenfeld 1996 177)
Jorge Luis Borges em uma entrevista publicada por Die Welt em 25 de marccedilo de 1975 realizava esta
confissatildeo ltPara mim existe um escritor alematildeo ao qual prefiro Schopenhauer Sei que deveria dizer
Goethe poreacutem Schopenhauer me interessa muitiacutessimo mais Tanto que estudei alematildeo ndash que aprendi
sobre os versos de Heine ndash fundamental e especificamente para poder ler a Schopenhauer em sua proacutepria
liacutenguagt (Aramayo 2001 18)
19
ldquoEm sua busca pela verdade Schopenhauer natildeo desdenha
nenhum aliado Os dramaturgos novelistas e poetas estatildeo quando
menos em peacute de igualdade com os mais egreacutegios filoacutesofos A perspicaacutecia
de Shakespeare ou a genialidade de Voltaire e a sutileza de Goethe nada
devem para a eloquumlecircncia Platocircnica a precisatildeo de um Spinoza e o rigor
conceitual do admirado Kant Sua curiosidade natildeo conhece limites nem
prejuiacutezo algum e por esta razatildeo tampouco menospreza quando o
considera oportuno prestar suficiente atenccedilatildeo aos fenocircmenos
paranormais agrave hipnose ou ao caacutelculo cabaliacutestico se entende que em
algo isto pode servir-lhe para demonstrar sua tese ou avaliar algumas de
suas intuiccedilotildees E na mesma direccedilatildeo aponta seu grande empenho por
incorporar o pensamento das religiotildees orientais a nosso acervo cultural
na possibilidade de um enriquecimento muacutetuordquo (Aramayo 2001 14-15)
A comparaccedilatildeo feita atraveacutes de metaacuteforas4 paraacutebolas ou alegorias em
sua maioria retiradas de obras literaacuterias ou cientiacuteficas torna-se recurso literaacuterio
constantemente presente na obra do filoacutesofo e ao mesmo tempo termocircmetro de suas
influecircncias e de seu relacionamento com o pensamento de seus contemporacircneos Tais
recursos satildeo utilizados contudo com o objetivo consciente de construir conhecimento
de ilustrar a mateacuteria do seu pensamento Nas palavras do filoacutesofo ldquoAs comparaccedilotildees satildeo
de grande valor na medida em que reduzem uma relaccedilatildeo desconhecida a uma
conhecida Inclusive as comparaccedilotildees mais detalhadas transformadas em paraacutebola ou
alegoria satildeo somente a reduccedilatildeo de uma relaccedilatildeo qualquer agrave sua exposiccedilatildeo mais
simples ilustrativa e palpaacutevelrdquo (Schopenhauer SOE 86) Se o nosso objetivo eacute mostrar
as raiacutezes da filosofia de Schopenhauer ou seja as influecircncias que formaram a mateacuteria
de seu pensamento eacute sobre esta mateacuteria que devemos nos debruccedilar Natildeo podemos
contudo nos furtar a apontar a riqueza das fontes formalmente presentes em seus
escritos5 A percepccedilatildeo da presenccedila desta numerosa miscelacircnea de referecircncias dentro da
4 ldquoSua profusa e brilhante utilizaccedilatildeo das metaacuteforas eacute o que o converte sem duacutevida alguma em um grande
escritor cujo estilo se nos afigura tatildeo ameno quanto sugestivordquo (Aramayo 2001 54) 5 Mateacuteria e forma satildeo na concepccedilatildeo do filoacutesofo planos ou instacircncias da produccedilatildeo escrita que servem
como referecircncia para o julgamento de valor do pensamento de um autor ldquo Um livro nunca pode ser mais
do que a impressatildeo dos pensamentos do autor O valor desses pensamentos reside na mateacuteria ou seja
naquilo sobre o que ele pensou ou na forma isto eacute na elaboraccedilatildeo da mateacuteria naquilo que pensou a
respeitordquo (Schopenhauer SOE 11) A importacircncia dada agrave forma por Schopenhauer seraacute melhor
esclarecida quando posteriormente apresentarmos a caracteriacutestica fundamentalmente epistemoloacutegica de
toda produccedilatildeo artiacutestica dentro de sua metafiacutesica do belo
20
obra schopenhaueriana diz-nos algo sobre seu estilo e seu arcabouccedilo cultural
entretanto quando voltamo-nos para a busca das influecircncias diretamente presentes em
seu sistema ie agraves raiacutezes da mateacuteria de seu pensamento percebemos que elas natildeo satildeo
tatildeo numerosas
Uma leitura das fontes filosoacuteficas do sistema schopenhaueriano torna-se
diferentemente do que ocorre em outros sistemas de seu tempo menos trabalhosa por
dois motivos Primeiramente o autor natildeo esconde suas influecircncias mas ao contraacuterio
faz questatildeo de apontaacute-las citaacute-las e quando lhe parece necessaacuterio as critica ou exalta
Em segundo lugar o que facilita o mapeamento destas fontes eacute a caracteriacutestica de
unidade do sistema schopenhaueriano como um todo Apesar da longevidade do
filoacutesofo e da distacircncia temporal entre suas obras suas intuiccedilotildees fundamentais
continuaram sendo as mesmas ao longo de sua vida Nas palavras de Rosset
ldquoSchopenhauer eacute homem de um soacute livro o MVR e de um soacute pensamento (qualificado
por ele mesmo de ltpensamento uacutenicogt nas primeiras linhas de sua obra)rdquo (2005 35)6
Natildeo satildeo poreacutem coetacircneas as influecircncias que marcaram a obra do filoacutesofo
como talvez a constante menccedilatildeo a seus contemporacircneos possa sugerir Nas palavras do
filoacutesofo como citado por Lefranc (2005 17) ldquoPude amar prosseguir aperfeiccediloar a
minha obra soacute por ela mesma em tranquumlilidade completa ao abrigo de toda influecircncia
externa e meus contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes
permaneci estranhosrdquo Conhecia a filosofia de seu tempo todavia natildeo a tinha como
interlocutora na verdade a desdenhava satildeo famosas as criacuteticas de Schopenhauer contra
as filosofias de seus contemporacircneos principalmente as de Fichte Schelling e Hegel
6 Sobre a unidade da produccedilatildeo schopenhaueriana destacamos aleacutem de Rosset os apontamentos de outros
dois de seus maiores comentadores Arthur Huumlbscher e Alexis Philonenko Na introduccedilatildeo aos manuscritos
schopenhauerianos Huumlbscher aponta a importacircncia dos manuscritos na percepccedilatildeo desta unidade uma vez
que podemos notar em diversas fases da vida do filoacutesofo o desenvolvimento dos temas pontuais que
marcaram sua obra principal Vide Hubscher Introduction Manuscript Remains 1985 Alexis
Philonenko trata desta unidade no proacutelogo de sua obra Schopenhauer uma filosofia da trageacutedia
(Philonenko 1989 41-45)
21
(chamados de ldquoos trecircs sofistasrdquo) Quando faz referecircncias a eles comumente estaacute
imbuiacutedo de trecircs propoacutesitos criticar a qualidade formal de suas produccedilotildees
principalmente no que tange ao uso da liacutengua germacircnica apontar uma motivaccedilatildeo
individualista (subsistecircncia pessoal e status social) que existiria por traacutes de suas
elucubraccedilotildees filosoacuteficas e ressaltar a falta de atenccedilatildeo por parte daqueles filoacutesofos no
que se refere ao conteuacutedo da primeira criacutetica kantiana
Schopenhauer diagnosticava em seu tempo um periacuteodo de
empobrecimento da expressatildeo literaacuteria e do uso da liacutengua germacircnica e apontava como
os principais responsaacuteveis por estes acontecimentos os ldquoprofessores de filosofiardquo e seus
disciacutepulos As investidas schopenhauerianas contra a filosofia de seus contemporacircneos
podem ser encontrada em praticamente todas as suas obras mas estatildeo concentradas de
forma mais persistente em sua produccedilatildeo mais tardia na segunda ediccedilatildeo da QRPRS de
MVR em seus ensaios sobre a liberdade e o fundamento da moral e nos PP 7
Nesta
uacuteltima obra temos dedicados a estas criacuteticas alguns textos que podemos destacar Sobre
o ofiacutecio de escritor Da leitura e dos livros Da liacutengua e das palavras e Sobre a filosofia
universitaacuteria A liacutengua alematilde no que se refere agrave sua capacidade expressiva era tida em
mais alta consideraccedilatildeo por nosso filoacutesofo Afirmava que dentre as liacutenguas modernas
era ldquoa uacutenica na qual se pode escrever quase tatildeo bem quanto em grego ou em latimrdquo
(Schopenhauer SOE 72) Esta capacidade de expressatildeo de uma liacutengua eacute segundo o
filoacutesofo resultado de sua aptidatildeo em representar conceitos Desta forma na medida em
que surgem novos conceitos a elaboraccedilatildeo de novas palavras que os representem eacute um
sinal de evoluccedilatildeo adequaccedilatildeo e riqueza da liacutengua Entretanto para o filoacutesofo os
neologismos e adaptaccedilotildees criados por seus contemporacircneos natildeo eram resultados da
7 Muitos historiadores da filosofia bioacutegrafos e comentadores apontam que esta criacutetica adveacutem do
ressentimento pelo fracasso de Schopenhauer como docente na universidade de Berlim onde Hegel
reinava absoluto bem como da falta de reconhecimento de sua filosofia diante do sucesso dos professores
da mesma universidade
22
tentativa de representaccedilatildeo de novos conceitos mas ao contraacuterio eram comprovaccedilatildeo de
sua ldquopobreza de espiacuterito que a todo custo quer colocar algo no mercado e por natildeo ter
novos pensamentos chega com palavras novasrdquo (Schopenhauer SOE 129)
Schopenhauer condenava a atitude de seus contemporacircneos de utilizarem-se de
artifiacutecios como a natildeo designaccedilatildeo do caso a expressatildeo dos preteacuteritos por meio do
imperfeito a supressatildeo dos prefixos e outros subterfuacutegios para com isso disfarccedilar a sua
imprecisatildeo conceitual De acordo com Schopenhauer tratavam displicentemente a
liacutengua alematilde por dois motivos por natildeo possuiacuterem uma mateacuteria conceitualmente
relevante a ser expressa ou entatildeo para conscientemente causar a impressatildeo de que a
possuem e neste caso a responsabilidade pela natildeo compreensatildeo do texto seria atribuiacuteda
agrave incompetecircncia intelectual do leitor
Os que compotildeem discursos difiacuteceis obscuros enleados e
ambiacuteguos natildeo sabem ao certo o que querem dizer tecircm somente uma
consciecircncia vaga a esse respeito que luta primeiro por uma ideacuteia poreacutem
amiuacutede querem tambeacutem ocultar de si mesmos e dos outros que na
realidade eles natildeo tecircm nada a dizer Como Fichte Schelling e Hegel
querem parecer saber o que natildeo sabem pensar o que natildeo pensam e dizer
o que natildeo dizem Algueacutem que tenha algo correto a dizer se esforccedilaraacute por
exprimi-lo de maneira indistinta ou distinta (Schopenhauer SOE 39)
Podemos perceber entatildeo que ao criticar o estilo ldquoobscurordquo e ldquopomposordquo de seus
contemporacircneos Schopenhauer aponta como causa deste estilo natildeo somente a sua falta
de mateacuteria mas tambeacutem uma atitude consciente e arquitetadamente maldosa e com
toda a sua forccedila retoacuterica condena esta atitude
Nobre bdquoatualidade‟ magniacuteficos epiacutegonos geraccedilatildeo crescida no
leite materno da filosofia hegeliana Pela gloacuteria eterna quereis apertar
vossas garras em nossa antiga liacutengua para que a marca com um icnoacutelito
conserve para sempre o vestiacutegio de vossa existecircncia insiacutepida e sombria
Mas Dicirc Meliora Fora paquidermes fora Esta eacute a liacutengua alematilde Nela se
expressaram homens ou melhor nela cantaram grandes poetas e grandes
pensadores escreveram Arredai as patas Ou natildeo tereis o que comer (Soacute
isso os assusta) (Schopenhauer SOE 72-73)
23
A uacuteltima frase desta citaccedilatildeo nos eacute aclarada pelo texto Sobre a filosofia universitaacuteria
onde o filoacutesofo expotildee os argumentos de sua criacutetica agrave filosofia produzida em seu tempo
Para Schopenhauer os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo podem devido agrave sua funccedilatildeo
estatal se imiscuir do compromisso poliacutetico-religioso que seu cargo exige e
conseguintemente sustentados pelo Estado tratam de fazer sua apoteose Nas palavras
de Cacciola constantes na introduccedilatildeo agrave traduccedilatildeo brasileira do referido texto
ldquoSchopenhauer eacute um continuador da criacutetica romacircntica ao filisteiacutesmo que se origina em
Tieck A ironia que visa os homens de vida tatildeo regular como o reloacutegio lhe eacute bem
familiar O filisteu eacute o erudito pedante que soacute pensa na proacutepria vantagem O professor
de filosofia que pauta seus ensinamentos de acordo com os ditames do Estado e da
religiatildeo eacute o tipo acabado do filisteu A idolatria do Estado eacute a apoteose do filisteiacutesmo
(Schopenhauer SFU XXX) Por traacutes das ideacuteias dos ldquofiloacutesofos de profissatildeordquo estaria
incutido o retorno disfarccedilado da ldquoteologia judaicardquo de uma ldquopsicologia racionalrdquo da
ldquoliberdade da vontaderdquo e outros dogmas que de acordo com Schopenhauer refletem a
sua vocaccedilatildeo de trabalharem ldquoin maiorem Dei gloriamrdquo como exigido pela ideologia
estatal daquele periacuteodo Natildeo podem sob a pena de perderem o sustento financeiro
pessoal e familiar bem como sob o custo de perderem o status que o cargo lhes confere
contrariar os dogmas patronais
ldquo[] o intelecto dessa gente permanece fiel agrave sua destinaccedilatildeo
natural de trabalhar a serviccedilo da vontade como normalmente acontece
Mas por isso mesmo existe sempre uma intenccedilatildeo como fundamento do
seu agir e pensar eles tecircm fins o tempo todo e soacute tomam conhecimento
do que diz respeito a esses fins e portanto soacute do que corresponde a
esses fins A atividade do intelecto liberto da vontade condiccedilatildeo da pura
objetividade e por isso de todas as grandes realizaccedilotildees permanece-lhes
eternamente estranha ndash eacute uma faacutebula para seu coraccedilatildeordquo (Schopenhauer
SFU 63)
Desta forma os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo estariam voltados para a investigaccedilatildeo
objetiva da ldquoverdaderdquo a qual exigiria o distanciamento de todo e qualquer interesse
24
pessoal De acordo com o sistema schopenhaueriano tal distanciamento eacute um dom raro
com o qual a natureza a poucos contempla Na metafiacutesica schopenhaueriana a natureza
eacute aristocraacutetica O gecircnio eacute fenocircmeno raro seja ele filoacutesofo ou artista A percepccedilatildeo
objetiva do mundo alheia aos interesses pessoais da vontade individual eacute uma exceccedilatildeo
que soacute se manifesta raramente e as pessoas atadas aos interesses pessoais de sua
vontade natildeo podem reconhececirc-lo imediatamente Estes gecircnios produzidos pela natureza
seriam os verdadeiros educadores do mundo e os ldquoprofessores de filosofiardquo ao tentar
representar este papel que soacute agrave natureza cabe eleger causam-lhe repulsa
Tantas mentes comuns que se acham por cargo e profissatildeo no
dever de representar papeacuteis que a natureza nem ao menos lhes atribuiacutera e
de transportar cargas que exigem ombros de gigantes espirituais
oferecem na realidade um espetaacuteculo deveras lamentaacutevel Pois escutar
cantar os roucos e ver danccedilar os coxos eacute penoso mas ouvir filosofar a
mente limitada eacute insuportaacutevel (Schopenhauer SFU 34)
Prova do embotamento da capacidade de reconhecimento de uma produccedilatildeo genial era
para o filoacutesofo o fato de seus contemporacircneos ignorarem ou mesmo passarem agrave
margem do que seria a mais importante produccedilatildeo filosoacutefica do periacuteodo a cisatildeo entre o
real e o ideal perpetrada pela primeira criacutetica kantiana Esta era para o filoacutesofo a maior
prova do demeacuterito filosoacutefico de seus contemporacircneos preocupados com seus interesse
pessoais alheios a uma observaccedilatildeo objetiva do mundo natildeo levaram em consideraccedilatildeo os
limites impostos pela primeira criacutetica kantiana a toda investigaccedilatildeo racional
Depois de Kant ter cortado o nervo de todas as provas possiacuteveis
da teologia ndash tatildeo incisivamente que desde entatildeo ningueacutem mais pocircde
meter-se com elas ndash o esforccedilo filosoacutefico em quase cinquumlenta anos tem
consistido nas diversas tentativas de insinuar sutil e astuciosamente a
teologia e os escritos filosoacuteficos nada mais satildeo na sua maioria do que
tentativas infrutiacuteferas de reanimar um cadaacutever sem vida (Schopenhauer
SFU 81)
Natildeo nos interessa aqui adentrarmo-nos aos reais motivos existentes por
traacutes dos vitupeacuterios schopenhauerianos contra os pensadores de seu tempo nem
25
tampouco fazer juiacutezo valorativo sobre a importacircncia da filosofia da vontade em
comparaccedilatildeo ao idealismo absoluto Dentro do objetivo proposto qual seja situar
historicamente a filosofia da vontade e apontar suas influecircncias o importante eacute ressaltar
que a filosofia contemporacircnea a Schopenhauer natildeo fez efeito sobre a sua proacutepria a ponto
de modificaacute-la em seu conteuacutedo conforme esclarece o proacuteprio filoacutesofo ldquo [] meus
contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes permaneci
estranhosrdquo (apud Lefranc 2005 17) Eacute fundamental verificarmos que apesar do
sistema schopenhaueriano ter se desenvolvido agrave margem do idealismo de entatildeo seu
autor natildeo o desconhecia e muitas das ilustraccedilotildees e argumentaccedilotildees utilizadas por ele na
explicaccedilatildeo de suas teorias apoiavam-se nesta sua contenda com o seu tempo
Entretanto como a filosofia de seu tempo pretende-se herdeira do kantismo assim
tambeacutem procede Schopenhauer e a suas criacuteticas ao idealismo absoluto estatildeo
fundamentadas em sua pretensatildeo a uma heranccedila direta da filosofia kantiana Sobre a
heranccedila de Kant Schopenhauer esclarece ldquoEm todo caso natildeo reconheccedilo que tenha
acontecido algo na filosofia entre ele e mim por conseguinte ligo-me imediatamente a
elerdquo (Schopenhauer MVR 525)
Natildeo obstante as diversas criacuteticas ao retorno kantiano ao dogmatismo8
das quais a obra de Schopenhauer estaacute recheada sua admiraccedilatildeo por ele foi tambeacutem
abundantemente expressa Considerava-o ldquoa inteligecircncia mais original jaacute criada pela
naturezardquo (Schopenhauer SFU52) e afirmava que seus escritos capitais eram o ldquo[]
fenocircmeno mais importante que ocorreu ao longo dos uacuteltimos dois mil anos na filosofia
[]rdquo (Schopenhauer MVR 22) O maior reflexo desta admiraccedilatildeo pode ser observada
8 Nas palavras de Cacciola ldquoO criticismo de Kant teria segundo Schopenhauer perdido sua forccedila inicial
na segunda ediccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura Ou seja Schopenhauer acusa Kant de uma ldquorecaiacuteda no
dogmatismordquo por ter amenizado seu confronto com a teologia A ameaccedila dogmaacutetica jaacute configurada na
filosofia teoacuterica concretiza-se na Eacutetica de Kant quando esta acolhe como postulados Deus
imortalidade da alma e liberdade No poacutes-kantismo a importacircncia crescente atribuiacuteda agrave filosofia praacutetica
de Kant a expensas de sua criacutetica do conhecimento teria levado a uma espeacutecie de contaminaccedilatildeo da
razatildeo teoacuterica pela razatildeo praacutetica fazendo com que a primeira se transformasse num oacutergatildeo apto para
captar o Absolutordquo (Cacciola 1994 20)
26
no fato de que eacute da filosofia kantiana que Schopenhauer retira o leitmotiv para o
desenvolvimento da ideacuteia central9 de sua filosofia Esta ideacuteia central eacute aquela contida
concisamente no tiacutetulo de sua obra principal O mundo como vontade e como
representaccedilatildeo10
A dualidade formada entre representaccedilatildeo e vontade atraveacutes da qual
Schopenhauer acredita ter desvendado o ldquomisteacuteriordquo cosmoloacutegico eacute uma apropriaccedilatildeo
assumida dos conceitos kantianos de fenocircmeno e coisa-em-si respectivamente
Dizemos apropriaccedilatildeo pois aqueles conceitos satildeo acrescidos na filosofia
schopenhaueriana de caracteriacutesticas singulares Eacute com base nesta dualidade de
perspectivas de conhecimento do mundo inspirada na primeira criacutetica kantiana que o
filoacutesofo desenvolve as demais teorias que compotildeem seu sistema sejam elas a esteacutetica a
eacutetica a poliacutetica etc
Para Schopenhauer ldquoo maior meacuterito de Kant eacute a distinccedilatildeo entre
fenocircmeno e coisa-em-sirdquo (Schopenhauer MVR 526) Esta distinccedilatildeo foi o que
possibilitou a ldquorevoluccedilatildeo copernicanardquo realizada sobre o dogmatismo anterior A partir
daquele momento ldquoo mundo objetivo como o conhecemos natildeo pertence agrave essecircncia das
coisas em si mesmas mas eacute seu mero FENOcircMENO condicionado exatamente por
aquelas mesmas formas que se encontram a priori no intelecto
humanordquo(Schopenhauer MVR 530) Na teoria kantiana temos o espaccedilo e o tempo
como formas da sensibilidade que na filosofia de Schopenhauer satildeo associadas agrave
faculdade do entendimento juntamente com a causalidade uacutenica das doze categorias
kantianas do entendimento mantidas por Schopenhauer em seu sistema Desta forma o
mundo enquanto representaccedilatildeo eacute aquele que se apresenta para o sujeito enquanto objeto
9 Quando dizemos ideacuteia central havemos de lembrar que no sistema schopenhaueriano esta categorizaccedilatildeo
eacute singular (o tema seraacute tratado no iniacutecio do proacuteximo capiacutetulo) 10
A importacircncia que o filoacutesofo daacute ao tiacutetulo de uma obra eacute esclarecedora para a compreensatildeo da
importacircncia de sua ideacuteia central ldquoo que o sobrescrito deve ser para uma carta eacute o que um tiacutetulo deve ser
para um livro ou seja antes de tudo deve ter o objetivo de destinaacute-lo agrave parte do puacuteblico que pode se
interessar por seu conteuacutedo Sendo assim o tiacutetulo precisa ser caracteriacutestico e por ser naturalmente
breve deve ser conciso lacocircnico pregnante e se possiacutevel um monograma do conteuacutedordquo
(Schopenhauer SOE 09-10)
27
condicionado por estas trecircs formas presentes a priori no intelecto humano tempo
espaccedilo e causalidade Quanto ao mundo noumecircnico que dentro da teoria kantiana eacute um
ldquox desconhecidordquo Schopenhauer o explica atraveacutes da Vontade sua traduccedilatildeo da coisa-
em-si Essa dualidade que traz agrave tona a ldquocompleta diversidade entre o ideal e o realrdquo
(Schopenhauer MVR 527) doutrina que de acordo com Schopenhauer (MVR 528) foi
expressa por Kant de forma soacutebria calma demonstrada e incontestaacutevel jaacute havia sido
expressa tambeacutem em linguagem mais miacutetica e poeacutetica por outras duas doutrinas que
tambeacutem estatildeo profundamente presentes na obra Schopenhaueriana Platatildeo e os escritos
indianos dos Vedas e Puranas
Os estudos das obras de Platatildeo e Kant foram recomendaccedilatildeo de Schultze
um dos professores de Schopenhauer em Gottingen (Weissmann 1980 54) e formam os
pilares filosoacuteficos do sistema schopenhaueriano A separaccedilatildeo entre o real e o ideal
executada por Kant eacute vista tambeacutem na obra platocircnica Sua teoria das ideacuteias bem como
sua alegoria da caverna satildeo expressotildees de uma intuiccedilatildeo da existecircncia daquela separaccedilatildeo
O que Kant teria sistematizado a seu modo eacute a mesma verdade que ldquojaacute Platatildeo
incansavelmente repete e na maioria das vezes exprime em sua linguagem do seguinte
modo este mundo que aparece aos sentidos natildeo possui nenhum verdadeiro ser mas
apenas um incessante devir ele eacute e tambeacutem natildeo eacute sua apreensatildeo natildeo eacute tanto um
conhecimento mas uma ilusatildeordquo (Schopenhauer MVR 528)
Aleacutem de Platatildeo os livros sagrados dos indianos afirmavam esta ldquoilusatildeordquo
ldquofantasmagoriardquo do mundo e constituem tambeacutem uma fonte frequumlentemente utilizada
por Schopenhauer O contato do nosso filoacutesofo com o pensamento oriental se deu
quando do seu encontro com o orientalista Friedrich Majer no salatildeo de sua matildee em
28
Weimar A partir de entatildeo o interesse do filoacutesofo pelo pensamento oriental foi se
intensificando ao longo de sua vida 11
A mesma verdade representada de modo completamente outro eacute
tambeacutem uma doutrina capital dos vedas e puranas a saber a doutrina de
Maia pela qual natildeo se entende outra coisa senatildeo aquilo que Kant nomeia
o fenocircmeno em oposiccedilatildeo agrave coisa-em-si pois a obra de maia eacute
apresentada justamente como este mundo visiacutevel no qual estamos um
efeito maacutegico que aparece na existecircncia uma aparecircncia inconstante e
inessencial em si destituiacuteda de ser comparaacutevel agrave ilusatildeo de oacutetica e ao
sonho um veacuteu que envolve a consciecircncia humana um algo do qual eacute
igualmente falso e igualmente verdadeiro dizer que eacute ou natildeo eacute
(Schopenhauer MVR 528)
Estas trecircs doutrinas estavam admitidamente presentes quando da
elaboraccedilatildeo do nuacutecleo conceitual fundamental da posteriormente nominada Filosofia da
Vontade Entretanto aleacutem de formarem seu nuacutecleo conceitual podemos encontraacute-las
ainda posteriormente em outros instantes desta filosofia O pensamento oriental seraacute
figura fortemente presente na eacutetica schopenhaueriana desenvolvida no quarto livro do
Mundo onde o filoacutesofo adotaraacute como fundamento de sua eacutetica o sentimento da
compaixatildeo jaacute presente na doutrina budista Platatildeo e Kant satildeo ainda influecircncias
fundamentais como veremos no proacuteximo capiacutetulo da esteacutetica schopenhaueriana O
primeiro novamente atraveacutes de sua teoria das ideacuteias seraacute utilizado por Schopenhauer na
definiccedilatildeo do objeto artiacutestico Do segundo poderemos notar sua influecircncia nas teorias
schopenhauerianas do sublime da imaginaccedilatildeo e da contemplaccedilatildeo desinteressada todas
elas fundamentais agrave compreensatildeo da teoria da arte poeacutetica
- - - - - - - - - -
11
Suas fontes principais eram o Oupnekacutehat uma traduccedilatildeo latina dos vedas e o Asiatic Journals jornal
publicado pela sociedade asiaacutetica fundada em 1784 Para uma referecircncia completa das citaccedilotildees orientais
na obra de Schopenhauer veja o apecircndice do artigo de Moira Nicholls The influences of Eastern Thought
on Schopenhaueracutes Doctrine of the Thing-in-itself (in Janaway 1999 197-204)
29
Apresentadas as principais influecircncias teoacutericas do sistema
schopenhaueriano passemos a uma breve descriccedilatildeo do ambiente cultural que naquele
momento tinha como foco um projeto de fundaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para o teatro e a
literatura germacircnicas Tal projeto envolveu os mais importantes dramaturgos criacuteticos
escritores e pensadores do periacuteodo imediatamente anterior a Schopenhauer12
e eacute
tambeacutem posteriormente retomado por Nietzsche em seu Nascimento da Trageacutedia Sua
importacircncia para a filosofia da vontade pode ser medida pela recorrente referecircncia feita
a estes pensadores nas obras dos filoacutesofos Seu iniacutecio em meados do seacuteculo XVIII deu-
se pela influecircncia exercida pelo historiador da arte Johann J Winckelmann junto aos
escritores poetas e dramaturgos posteriores dentre eles Lessing Goethe e Schiller
A influecircncia winckelmanniana que de acordo com Butler (1958 11)
criou ondas cujo violento distuacuterbio ldquoainda varrem as praias do seacuteculo XXrdquo se pautou
em duas noccedilotildees fundamentais13
a imitaccedilatildeo dos antigos e o belo ideal Winckelmann
propunha um novo modelo no qual a arte germacircnica deveria se basear para atingir uma
grandiosidade rara e ldquoinimitaacutevelrdquo a imitaccedilatildeo dos gregos Por esta imitaccedilatildeo o
historiador natildeo propunha uma mera coacutepia das obras de arte gregas poreacutem uma imitaccedilatildeo
do modo de produccedilatildeo artiacutestica dos gregos qual seja sintetizar a beleza ideal descoberta
na observaccedilatildeo da diversidade objetiva da natureza Esta proposta de um retorno ao
modelo antigo coloca Winckelmann na esteira da conhecida querela entre antigos e
modernos e eacute a igniccedilatildeo para o periacuteodo literaacuterio conhecido como classicismo germacircnico
Esta disputa quanto agrave valorizaccedilatildeo das obras poeacuteticas antigas ou modernas estaraacute de um
modo ou de outro presente nas teorias schopenhaueriana e nietzscheana da trageacutedia
12
De acordo com Schopenhauer as obras de tais poetas e escritores assim como a filosofia de Kant satildeo
exemplos para os quais a literatura e a filosofia pobres de seu tempo deveriam se voltar No que se refere
ao uso da liacutengua ele aconselha ldquoLede vede qual liacutengua Winckelmann Lessing Klopstock Wieland
Goethe Buumlrger Schiller falaram e emulai-a mas natildeo fazei o mesmo com o jargatildeo estupidamente
excogitado pelos miseraacuteveis literatos atuais e entre eles pelos professores que vatildeo agrave escola de liacutenguardquo
(Schopenhauer SOE 57-58) 13
Esta duas noccedilotildees fundamentais satildeo ressaltadas por Suumlssekind e Machado em seus trabalhos sobre o
tema Veja Suumlssekind 2008 67-77 e Machado 2006 9-14
30
Como veremos posteriormente Schopenhauer privilegiaraacute a trageacutedia moderna em
detrimento da antiga argumentando que aquela cumpre com maior competecircncia o seu
objetivo enquanto forma de arte qual seja provocar repulsa agrave vontade de viver e
estimular sua negaccedilatildeo Apesar deste privileacutegio pelas obras traacutegicas modernas o filoacutesofo
natildeo deixa como seus contemporacircneos de ter os gregos como modelo e natildeo satildeo raros
seus elogios agraves produccedilotildees helecircnicas Para Schopenhauer Winckelmann foi para a
histoacuteria da arte assim como ele o eacute para a da filosofia um exemplo do modo epiciacuteclico
atraveacutes do qual a natureza de tempo em tempo faz avanccedilar o conhecimento do gecircnero
humano Para o filoacutesofo a retomada do projeto kantiano realizada pelo seu sistema eacute a
demonstraccedilatildeo de que entre ele e Kant nenhum conhecimento foi produzido Como
exemplo deste esquema epiciacuteclico na histoacuteria da arte Schopenhauer utiliza-se do
retorno de Winckelmann agrave beleza claacutessica o que nos mostra a importacircncia dada pelo
filoacutesofo agrave forma de arte grega bem como ao projeto inaugurado pelo historiador da arte
Apoacutes explicar o esquema epiciacuteclico da evoluccedilatildeo dos progressos humanos
Schopenhauer diz
Para quem deseja poreacutem ter uma prova do esquema geral dos
epiciclos aqui exposto com base na histoacuteria da arte basta observar a
escola de escultura de Bernini que florescia ainda no seacuteculo passado
particularmente em seu desenvolvimento francecircs sucessivo e que
representava a natureza comum em vez da beleza claacutessica e o decoro do
minueto francecircs em vez da simplicidade e da graccedila antigas Tal escola
faliu quando apoacutes a repreensatildeo de Winckelmann voltou-se agrave escola dos
antigos (Schopenhauer SOE 110)
Nietzsche por sua vez seguiraacute o caminho winckelmanniano de exaltaccedilatildeo da forma de
arte antiga apresentando a trageacutedia grega como modelo para a arte moderna e elogiando
a iniciativa de seus predecessores em valorizar e recuperar a arte helecircnica
31
Conviria que alguma vez se pesasse diante dos olhos de um juiz
insubornaacutevel em que tempo e em que homens o espiacuterito alematildeo se
esforccedilou mais vigorosamente por aprender dos gregos e se admitirmos
com confianccedila que esse louvor uacutenico deveria ser atribuiacutedo agrave nobiliacutessima
luta de Goethe Schiller e Winckelmann pela cultura haveria em todo
caso que acrescentar que desde aquele tempo e depois das influecircncias
imediatas daquela luta tornou-se cada vez mais fraca de maneira
incompreensiacutevel a aspiraccedilatildeo de se chegar por uma mesma via agrave cultura e
aos gregos (Nietzsche NT 120)
Podemos perceber entatildeo a importacircncia do helenismo proposto por Winckelmann no
pensamento germacircnico ao observarmos a sua duraccedilatildeo tendo em vista que mais de um
seacuteculo separa o historiador da arte e o filoacutesofo da vontade de poder o que confirma a
forccedila de suas propostas para uma cultura em formaccedilatildeo e justifica o epiacuteteto com o qual
Butler caracterizou este periacuteodo dizendo que nele vemos ldquoa tirania da Greacutecia sobre a
Alemanhardquo14
O segundo ponto fundamental da teoria da arte winckelmanniana o belo
ideal natildeo provocou menor interesse em seu tempo Este belo ideal era alcanccedilado a
partir da reuniatildeo em uma uacutenica obra harmocircnica daquilo que o artista observa de mais
belo na natureza
A natureza tem seus defeitos o corpo mais belo natildeo deixa de tecirc-los e
nele encontramos frequumlentemente partes que em outros satildeo mais belas ou
podem supor-se mais perfeitas [] Os gregos trataram de reunir as formas
elegantes de vaacuterios corpos belos como sabemos pelo diaacutelogo de Soacutecrates com o
ceacutelebre pintor Parrasio [] Esta seleccedilatildeo das partes belas e sua harmocircnica
associaccedilatildeo em uma soacute figura produziu a beleza ideal (Winckelmann 2002
130)
Tal beleza encontrou sua manifestaccedilatildeo primeira na Greacutecia do periacuteodo helecircnico devido
ao favorecimento das condiccedilotildees geograacutefico-climaacuteticas15
e poliacuteticas16
Aleacutem da beleza
14
Tiacutetulo de sua obra Butler 1958 15
Sobre a influecircncia climaacutetica Winckelmann deduz ldquoA natureza depois de haver se manifestado em
gradaccedilotildees extremas de frio e de calor se estabeleceu na Greacutecia como em seu centro e por isso reina
naquele paiacutes uma temperatura intermediaacuteria entre o inverno e o veratildeo E quanto mais se aproxima deste
centro mais claridade e serenidade oferece e suas obras se manifestam em formas mais graciosas e
amaacuteveis e com detalhes mais caracteriacutesticos e decididosrdquo (Winckelmann 2002106) 16
Sobre as condiccedilotildees poliacuteticas sejam elas patriarcais democraacuteticas ou tiracircnicas Winckelmann conclui o
seguinte ldquoCom relaccedilatildeo ao regime poliacutetico e o governo da Greacutecia a liberdade eacute uma das causas da
preeminecircncia dos gregos na arte Tambeacutem a liberdade parece ter estabelecido na Greacutecia a sua sede existia
32
formal retirada da diversidade das formas naturais eleitas as mais belas as obras gregas
eram exemplares devido agrave importacircncia dada pelos artistas agrave sua expressatildeo A obra de
arte deve sua forccedila tanto agrave beleza das formas quanto agrave expressatildeo da alma nela contida
De acordo com Winckelmann ldquoa expressatildeo de uma alma grande vai muito aleacutem da
plasmaccedilatildeo de uma bela naturezardquo isto ocorre devido ao fato de que para o historiador
da arte ldquona Greacutecia a sabedoria estendia a matildeo agrave arte e insuflava nas figuras almas
mais que comunsrdquo (Winckelmann 1958 19) As caracteriacutesticas que esta expressatildeo deve
possuir satildeo aquelas contidas na passagem mais famosa da obra de Winckelmann na
qual ele descreve ainda como exemplo daquela expressatildeo artiacutestica o grupo estatuaacuterio
do Laocoonte que por sua vez seraacute alvo de uma grande controveacutersia posterior da qual
participaratildeo dentre outros Lessing Herder Goethe Schelling e Schopenhauer
Reproduzimos a passagem de Winckelmann em sua integridade
A caracteriacutestica geral e principal das obras mestras gregas eacute uma
nobre simplicidade e uma serena grandeza tanto na atitude como na
expressatildeo Assim como nas profundidades o mar estaacute sempre calmo por
muito que se agite a superfiacutecie do mesmo modo a expressatildeo nas figuras
dos gregos mostra em meio a todas as paixotildees uma alma grande e
comedida Isso transmite o rosto do Laocoonte ndash e natildeo soacute o dele ndash em
meio agrave mais violenta dor O sofrimento que aparece em todos os
muacutesculos e fibras do corpo e que no baixo ventre contraiacutedo se
experimenta tatildeo intensamente que parecemos senti-lo natildeo se exterioriza
contudo mediante qualquer ira no rosto e em toda a atitude Natildeo lanccedila
um grito terriacutevel tal como Virgiacutelio cantou em seu Laocoonte A abertura
da boca natildeo o permitiria Mais parece um suspiro angustiado como o
descreve Sadolet A dor do corpo e a grandeza da alma estatildeo distribuiacutedos
com igual forccedila atraveacutes de toda a composiccedilatildeo da figura e em certa
medida estatildeo equilibrados Laocoonte sofre mas sofre como o
Filoctetes de Soacutefocles sua dor nos toca a alma mas desejariacuteamos poder
suportar essa dor com a grandeza desse homem (Winckelmann 1958
18-19 grifo nosso)
inclusive junto ao tronos de seus reis que governavam paternalmente a seus suacuteditos antes que mais
ilustrados gozassem do destino de uma completa liberdade Homero chama a Agamemnoacuten de pastor de
seus povos com o que queria designar sua ternura com seus subordinados e sua preocupaccedilatildeo constante
pela felicidade dos mesmos Eacute bem verdade que depois surgiram tiranos mas natildeo o foram mais para uma
determinada cidade e a naccedilatildeo inteira jamais reconheceu um soberano uacutenicordquo (Winckelmann 2002 109)
33
Desta famosa passagem retiramos dois momentos que especialmente nos interessam O
primeiro dele eacute a enunciaccedilatildeo que caracterizaraacute o ideal de beleza das obras gregas nobre
simplicidade e uma serena grandeza Este ideal winckelmanniano de beleza eacute o que
torna a arte grega nas palavras de Suumlssekind ldquoinimitaacutevel e ao mesmo tempo faz dela o
modelo a ser imitadordquo (Suumlssekind 2008 69) Interessa-nos especialmente devido agrave
influecircncia desta definiccedilatildeo para a teoria do jovem professor de filologia da Basileacuteia
Podemos ver ateacute mesmo pelo vocabulaacuterio utilizado para descrever a arte grega a
proximidade e a influecircncia exercida por estes conceitos nas teorias esteacuteticas do primeiro
Nietzsche Luminosidade serenidade harmonia satildeo alguns dos conceitos que
posteriormente seratildeo utilizados por Nietzsche ao definir o seu impulso artiacutestico
apoliacuteneo17
O segundo momento - quando Winckelmann defende o espiacuterito grego na
escultura do Laocoonte em contraposiccedilatildeo ao personagem de Virgiacutelio comparando esta
representaccedilatildeo escultural com o Filoctetes de Soacutefocles - seraacute o precursor do posterior
debate sobre as fronteiras que separam as formas de arte Para Winckelmann ldquoa nobre
simplicidade e a serena grandeza das estatuas gregas eacute tambeacutem a verdadeira
caracteriacutestica dos escritos gregos da melhor eacutepoca dos escritos da escola
socraacuteticardquo(Winckelmann 1958 31) O debate sugerido pela passagem do qual
participaraacute posteriormente o proacuteprio Schopenhauer seraacute iniciado por outro pensador
de grande importacircncia para o projeto cultural alematildeo Gotthold Ephraim Lessing
Lessing em sua obra Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da
poesia apresentaraacute a contenda que chegaraacute ateacute Schopenhauer Para Lessing o ponto de
discordacircncia com Winckelmann estaacute no motivo pelo qual na escultura o Laocoonte natildeo
17
Segundo Rodriges (2007 93-126) tambeacutem o conceito do impulso dionisiacuteaco estaria mesmo que em
germe presente nos estudos de Winckelmann Segundo seu artigo o mapeamento da origem e
desenvolvimento da discussatildeo sobre os citados impulsos artiacutesticos da natureza ou seja sobre a
importacircncia dos deuses Apolo e Dioniacutesio na cultura grega abrangeria necessariamente diversas aacutereas do
pensamento alematildeo desde Winckelmann dentre elas os estudos filoloacutegicos o movimento romacircntico e as
filosofias idealistas
34
apresenta as caracteriacutesticas de quem grita e lamenta Como vimos para Winckelmann o
conjunto estatuaacuterio em questatildeo eacute exemplar pelo fato de transmitir atraveacutes da atitude
estoacuteica diante da dor a grandeza de alma que seria a regra universal da verdadeira arte
grega Esta grandeza enquanto regra universal estaria ainda de acordo com o
historiador da arte presente tanto nas formas pictoacutericas como nas obras poeacuteticas
Contrapondo-se a Winckelman Lessing afirma - exemplificando atraveacutes de passagens
de poetas queridos ao proacuteprio Winckelmann como Homero e Soacutefocles - que em vaacuterios
momentos da poesia antiga diversos personagens dentre eles deuses e heroacuteis proferem
exaltados lamentos e gritos e isto natildeo lhes subtrai a grandeza da alma Sendo assim se
na poesialdquoo gritar na sensaccedilatildeo de dor corporal pode coexistir muito bem com uma
grande alma portanto a expressatildeo de uma tal alma natildeo pode ser a causa pela qual
apesar disso o artista natildeo quer imitar esse grito no seu maacutermore antes deve haver um
outro motivo por que aqui ele separa-se do seu rival o poeta que expressa esse grito
com o melhor propoacutesitordquo(Lessing 1998 86) O motivo pelo qual em sua representaccedilatildeo
estatuaacuteria o Laocoonte natildeo grita eacute para Lessing uma questatildeo de limitaccedilatildeo da forma de
expressatildeo escultoacuterica que ao se submeter agrave ldquolei da belezardquo natildeo pode representar o grito
desfigurador Em suas palavras
O mestre visava a suprema beleza sob as condiccedilotildees aceitas da dor
corporal Esta em toda a sua violecircncia desfiguradora era incompatiacutevel
com aquela Ele foi obrigado a reduzi-la ele foi obrigado a suavizar o
grito em suspiro natildeo porque o grito denuncia uma alma indigna mas
antes porque ele dispotildee a face de um modo asqueroso (Lessing 1998
92)
Devemos ressaltar que segundo a teoria artiacutestica de Lessing para quem as leis a que
devem obedecer a arte estatildeo ligadas agrave sua interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica a arte eacute
julgada atraveacutes do seu efeito Neste contexto ao conceder a seus personagens
caracteriacutesticas de humanidade como por exemplo a manifestaccedilatildeo da dor atraveacutes de
35
lamentos e gritos o poeta estaria aproximando o heroacutei traacutegico do puacuteblico a ser atingido
e consequumlentemente maximizando a identificaccedilatildeo entre eles e com isto o efeito
esperado qual seja a catarse atraveacutes do temor e da compaixatildeo Esta identificaccedilatildeo
alcanccedilada por via da demonstraccedilatildeo dos lamentos dos heroacuteis dramaacuteticos natildeo pode ser
obtida da mesma forma pelas artes pictoacutericas Nestas que satildeo expressotildees de um
momento uacutenico a beleza natildeo pode deixar de estar presente pois ela eacute um dos
ingredientes mais fundamentais do efeito buscado Na poesia o heroacutei natildeo seraacute
caracterizado em uma uacutenica accedilatildeo como ocorre na escultura Sendo assim o grito
narrado eacute apenas um momento do conjunto que iraacute definir o personagem
O Laocoonte de Virgiacutelio grita mas esse Laocoonte que grita eacute
justamente aquele que noacutes jaacute conhecemos e amamos como o patriota
mais cordato e o pai mais afetuoso Noacutes vinculamos o seu grito natildeo ao
seu caraacuteter mas antes apenas ao seu sofrimento insuportaacutevel Apenas
esse uacuteltimo noacutes ouvimos no seu grito e o poeta pode tornaacute-lo sensiacutevel
apenas graccedilas a esse grito (Lessing 1998 106)
Com isto tanto o escultor que suprime o grito quanto o poeta que o descreve ao
fazerem o fazem de acordo com as leis que regem suas respectivas formas de arte
Da contenda sobre o grito do Laocoonte e sua representaccedilatildeo escultoacuterica e
poeacutetica iratildeo participar ainda diversos pensadores Dentre os mais ilustres podemos
destacar Goethe cuja explicaccedilatildeo sobre a escultura proacutexima em muitos pontos da de
Lessing encontra-se nos Propileus Para o poeta o grupo estatuaacuterio ldquoesgota o seu objeto
e preenche com sucesso todas as condiccedilotildees da arterdquo (Goethe 2005126) Segundo
Goethe a escultura eacute limitada a um uacutenico momento da accedilatildeo e sua comparaccedilatildeo com a
poesia de Virgiacutelio eacute injusta O poeta a avalia assim como Lessing atraveacutes de seu efeito
ainda dentro das categorias poeacuteticas de Aristoacuteteles e destaca
O ser humano possui apenas trecircs sentimentos no sofrimento
proacuteprio e alheio o medo o terror e a compaixatildeo a previsatildeo temerosa de
um mal que se aproxima a percepccedilatildeo inesperada do sofrimento presente
36
e a participaccedilatildeo no sofrimento duradouro ou que passou todos os trecircs
sentimentos satildeo representados e suscitados por esta obra de arte e na
verdade na gradaccedilatildeo a mais conveniente (Goethe 2005 126)
Em sua obra principal Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 46 a seus comentaacuterios do
Laocoonte que seratildeo acrescidos de exemplos no posterior volume de suplementos
Reconhece o avanccedilo feito por Lessing ao colocar no lugar de um fundamento
psicoloacutegico um fundamento puramente esteacutetico e critica ainda as teorias psicoloacutegicas e
fisioloacutegicas de seu tempo como as de Hirt e Fernow18
Para Schopenhauer apesar de
sua aproximaccedilatildeo do que seria uma ldquoexplicaccedilatildeo corretardquo da obra Lessing natildeo encontrou
o seu ponto exato qual seja a explicaccedilatildeo de que o grito natildeo pertence ao domiacutenio de
uma representaccedilatildeo escultoacuterica
Antes de qualquer investigaccedilatildeo psicoloacutegica e fisioloacutegica sobre se
Laocoonte em sua situaccedilatildeo poderia gritar ou natildeo deve-se decidir em
relaccedilatildeo ao grupo de esculturas o seguinte que nele o grito natildeo pode ser
exposto pelo motivo de que a exposiccedilatildeo do grito reside por inteiro fora
do domiacutenio da escultura (Schopenhauer MVR 2005 303)
Para Schopenhauer a simples exposiccedilatildeo que representaria o grito ou seja ldquoo
escancarar violento da bocardquo natildeo pode ocasionar o efeito que o grito mesmo enquanto
forma de expressatildeo ocasionaria O efeito que o grito pode causar em uma arte
descritiva atraveacutes do uso da imaginaccedilatildeo do leitor ou mesmo na arte representativa no
teatro tornar-se-ia motivo de riso caso seja representado por uma boca escancarada na
arte plaacutestica Schopenhauer utiliza-se do exemplo do Laocoonte para demonstrar a
necessidade do estabelecimento de fronteiras entre as artes que devido agrave suas formas
devem obedecer agraves competecircncias determinadas pelo objeto representado (no caso da
teoria schopenhaueriana as competecircncias seratildeo determinadas pelas ideacuteias a serem
representadas como veremos posteriormente) Esta preocupaccedilatildeo com os limites entre as
18
Segundo Schopenhauer Hirt (Horen 1797 parte 10) apresenta a explicaccedilatildeo de que Laocoonte natildeo grita
pois estaacute impossibilitado pela sufocaccedilatildeo que o leva agrave morte Fernow por sua vez faz uma amalgama das
opiniotildees de Winckelmann Lessing e Hirt
37
formas artiacutesticas presente na esteacutetica schopenhaueriana e no Laocoonte de Lessing foi
contudo como nos lembra Suzuki (Rosenfield 2001 36-56) ignorada por Goethe
(como podemos ver pelos elementos da poeacutetica aristoteacutelica utilizados pelo poeta para
explicar a escultura na citaccedilatildeo presente na paacutegina anterior) e seraacute posteriormente
tambeacutem desconsiderada por Nietzsche em seu projeto de uma obra de arte total
Diante do acima exposto ainda tratando de Lessing podemos perceber
que toda a discussatildeo acerca do Laocoonte foi desencadeada pela motivaccedilatildeo de defesa da
arte poeacutetica agrave qual Lessing dedicou sua vida como escritor diretor e criacutetico teatral
Desta forma a importacircncia de Lessing para o tema em questatildeo nesta dissertaccedilatildeo estaacute
mais ligado ao seu papel junto a um projeto de formaccedilatildeo de um teatro alematildeo e sua
interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica Enquanto teoacuterico e criacutetico do teatro o autor da
Dramaturgia de Hamburgo exerceu grande influecircncia na cultura posterior ao oferecer a
seu tempo uma nova interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica que vai de encontro agraves
interpretaccedilotildees francesas e de Gottsched que eram por sua vez inflexiacuteveis em relaccedilatildeo agraves
regras (das unidades de espaccedilo tempo e lugar do estatuto social dos personagens da
linguagem e do nuacutemero de atos) Lessing atento agraves necessidades de uma burguesia em
ascensatildeo que natildeo se identificava mais com as concepccedilotildees aristocraacuteticas do modelo de
teatro francecircs e imbuiacutedo na construccedilatildeo do projeto de formaccedilatildeo cultural de uma naccedilatildeo
fragmentada oferece atraveacutes de suas interpretaccedilotildees uma seacuterie de elementos que estaratildeo
presentes nas consideraccedilotildees de pensadores posteriores Dentre estes elementos podemos
destacar as seguintes uma discussatildeo acerca dos conceitos de mimese temor
compaixatildeo catarse a defesa da utilizaccedilatildeo de caracteres mistos a liberdade do gecircnio
ante as regras o enaltecimento dos teatros espanhol e inglecircs principalmente de
Shakespeare
38
Ao tratarmos do referido projeto de um teatro alematildeo e tambeacutem do
classicismo germacircnico dois nomes ainda satildeo fundamentais para sua formaccedilatildeo bem
como eacute incontestaacutevel sua influecircncia sobre Schopenhauer e o jovem Nietzsche19
satildeo
eles Goethe e Schiller O primeiro deles maior dos poetas do classicismo germacircnico
foi um ampliador do projeto Winckelmanniano ldquoPois Goethe pensa o ideal de beleza
natildeo soacute em relaccedilatildeo agrave pintura e agrave escultura mas tambeacutem e principalmente em relaccedilatildeo agrave
poesia ou agrave arte dramaacutetica ampliando as ideacuteias de Winckelmann nesse domiacutenio como
teoacuterico e como criador de obras teatraisrdquo (Machado 2006 14) Seu classicismo
impresso em seus textos teoacutericos e na forma e conteuacutedo de diversas de suas produccedilotildees
literaacuterias eacute o auge do projeto Winckelmanniano Podemos ver na esteira de Machado
(2006 14-22) que o ideal de beleza proposto por Winckelmann eacute ainda o que domina a
noccedilatildeo Goetheana dos gregos e eacute apoiado neste ideal que o poeta interpreta a arte do
mundo helecircnico e a apresenta como um exemplo para a arte de seu tempo Ressaltamos
poreacutem que dada a sua extrema heterogeneidade como nos adverte Butler (1958 85)
encontrar um senso de harmonia interna no todo da obra goetheana eacute tarefa tatildeo incerta
como determinar o grau de sua influecircncia no pensamento de nossos filoacutesofos No que se
refere a Schopenhauer entretanto natildeo podemos deixar de ressaltar que sua convivecircncia
com o poeta foi norteada pelas discussotildees cientiacuteficas e filosoacuteficas que ocupavam o palco
de seus estudos agrave eacutepoca Goethe dedicou vinte anos de sua vida ao estudo das cores e
sua obra Doutrina das cores eacute o resultado desta investigaccedilatildeo Ela atraiu o interesse do
jovem Schopenhauer que apoacutes alguns encontros com Goethe dedicou-se a escrever a
sua proacutepria teoria que divergia em diversos pontos da teoria do poeta fato que marcou o
fim da relaccedilatildeo amistosa dos mesmos Sobre este periacuteodo de convivecircncia
19
De acordo com Martin (1996) a obra desenvolvida por Nietzsche enquanto escritor e pensador eacute
demasiado complexa para ser reduzida ou atribuiacuteda a determinada influecircncia Entretanto em uma
estatiacutestica crua podemos ter o vislumbre desta influecircncia como se segue ldquoSchopenhauer eacute referenciado
394 vezes na obra de Nietzsche Wagner 327 vezes a Goethe existem 311 menccedilotildees Schiller encontra-se
em nono lugar com 126 menccedilotildeesrdquo (Martin 1996 5)
39
especificamente sobre o episodio citado Goethe vai escrever mais tarde conforme
citaccedilatildeo de Safranski
O Dr Schopenhauer foi para mim um amigo benevolente
Estivemos de acordo em muitas coisas mas foi impossiacutevel evitar ao final
um certo distanciamento como dois amigos que ateacute certo momento
caminharam juntos se datildeo a matildeo para despedir pois querem dirigir-se um
ao norte outro ao sul perdendo-se rapidamente de vista um ao outro
(apud Safranski 1991 265)
Ainda na esteira do movimento de estabelecimento de um projeto
artiacutestico nacional encontramos Schiller que ao lado de Goethe foi o responsaacutevel pelas
maiores obras do classicismo literaacuterio de Weimar Para o estudo em questatildeo o que mais
nos interessa em sua obra eacute o periacuteodo no qual antes do contato com Goethe Schiller
produz seus escritos teoacutericos sobre a trageacutedia Estes estudos podem ser considerados
em uma perspectiva histoacuterica como uma ponte entre a interpretaccedilatildeo da trageacutedia nos
moldes puramente aristoteacutelicos e a trageacutedia vista enquanto forma de arte que para
atingir o efeito dela esperado deve refletir a condiccedilatildeo traacutegica do homem pensada com
base em elementos retirados da filosofia moral e da esteacutetica kantiana Em seus textos
teoacutericos sobre a poesia traacutegica pertencentes ao periacuteodo que Schiller assume ter estado
sob influecircncia da filosofia kantiana ele descreve a trageacutedia como expressatildeo do sublime
ndash conceito extraiacutedo da criacutetica kantiana do juiacutezo ndash como a representaccedilatildeo sensiacutevel da
dicotomia entre a liberdade moral a vontade individual (vontade tomada enquanto
faculdade de pensar e agir livremente) por um lado e a necessidade natural e instintiva
por outro Vemos pela primeira vez em Schiller a utilizaccedilatildeo de categorias filosoacuteficas
kantianas na elaboraccedilatildeo de uma teoria da trageacutedia o que teraacute continuidade com as
teorias do idealismo absoluto e a do proacuteprio Schopenhauer Este eacute um momento
extremamente importante devido ao fato de marcar toda a reflexatildeo futura sobre o tema
ao fundar o deslocamento de uma interpretaccedilatildeo poeacutetica da trageacutedia baseada em
40
comentaacuterios da obra aristoteacutelica para uma interpretaccedilatildeo do traacutegico enquanto fenocircmeno
que descreve a situaccedilatildeo do homem no mundo De acordo com Machado ldquoEacute do
encontro de um grande dramaturgo como Schiller com a filosofia de Kant -
principalmente a sua eacutetica considerada como uma filosofia da liberdade e sua
esteacutetica no que diz respeito agrave teoria do juiacutezo sobre o sublime ndash que nasce a primeira
filosofia do traacutegico uma reflexatildeo filosoacutefica original que criou um tipo novo de
pensamento sobre a trageacutediardquo (Machado 2006 54) Na teoria schopenhaueriana da
trageacutedia podemos ver caracteriacutesticas da teoria schilleriana Primeiramente a presenccedila
marcante da influecircncia kantiana no que se refere ao sublime Em segundo lugar a
leitura da trageacutedia enquanto instrumento para a percepccedilatildeo de uma ordem moral do
mundo Tais caracteriacutesticas seratildeo aprofundadas no capiacutetulo posterior Vale antecipar que
na obra do jovem Nietzsche poderemos ver a exaltaccedilatildeo de Schiller em sua tentativa de
compreensatildeo do mundo helecircnico aleacutem do elogio agrave teoria schilleriana do coro Veremos
entretanto uma criacutetica acirrada no que se refere ao projeto de um teatro enquanto
instituiccedilatildeo moral
Neste capiacutetulo foram delineadas as principais influecircncias filosoacuteficas que
alicerccedilaram o sistema schopenhaueriano bem como esboccedilaram-se as diversas teorias
artiacutesticas que surgiram no periacuteodo em questatildeo teorias estas que propuseram mateacuteria
para a formaccedilatildeo do pensamento de nossos filoacutesofos A partir da cisatildeo entre fenocircmeno e
noumeno proposta por Kant e sua primeira criacutetica Schopenhauer elabora as matrizes de
seu sistema e para ilustraacute-lo encontra apoio na cosmologia platocircnica e no pensamento
oriental Vimos ainda que sua teoria esteacutetica eacute alimentada pela frequumlentaccedilatildeo agraves
categorias apresentadas por artistas teoacutericos e criacuteticos de arte de seu periacuteodo Por seu
turno vimos com Winckelmann a origem do estudo sobre os gregos e sua arte aleacutem do
estabelecimento destes como um modelo para a arte alematilde projeto este que foi
41
retomado por Lessing que por sua vez intensificou o estudo e propocircs um modelo de um
teatro nacional independente projeto que seraacute mais tarde revisitado e aprofundado por
Goethe e Schiller Esta apresentaccedilatildeo de influecircncias eacute imprescindiacutevel para identificarmos
a origem de certos elementos que satildeo fundamentais ao entendimento da proacutepria doutrina
schopenhaueriana tais como o caraacuteter moral de sua teoria esteacutetica sua preocupaccedilatildeo
com o estabelecimento de limite entre as artes sua interpretaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo da poeacutetica
sua utilizaccedilatildeo de conceitos esteacuteticos kantianos (sublime belo e desinteresse) sua
apreciaccedilatildeo das obras modernas seu reconhecimento da produccedilatildeo claacutessica seu desprezo
agrave filosofia de seu tempo Eacute tambeacutem atraveacutes do mapeamento aqui feito de algumas de
suas influecircncias mesmo que brevemente apontado que poderemos mais tarde
identificar alguns dos aspectos originais e singulares de sua teoria
Quanto agraves influecircncias presentes na teoria da trageacutedia do jovem Nietzsche
apontaremos complementos no capiacutetulo correspondente Eacute imprescindiacutevel dar destaque
no que se refere agrave obra nietzscheana agrave sua formaccedilatildeo filoloacutegica ao seu conviacutevio com
Richard Wagner e agrave sua leitura do proacuteprio Schopenhauer - e isto seraacute feito
posteriormente Esperamos ter deixado claro ateacute aqui que diferentemente de Zaratustra
Nietzsche natildeo desceu simplesmente de uma montanha mas faz parte de uma tradiccedilatildeo
histoacuterica assim como Schopenhauer e que a contextualizaccedilatildeo de suas teorias eacute
fundamental para a identificaccedilatildeo dos elementos ali presentes que singularmente se
originaram do sistema metafiacutesico da Vontade
42
2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU
SUBSTRATO METAFIacuteSICO
ldquoOra se todo mundo como representaccedilatildeo eacute
a visibilidade da Vontade a arte eacute o
clareamento dessa visibilidade a cacircmera
obscura que mostra os objetos mais
puramente permitindo-nos melhor abarcaacute-
los e compreendecirc-los eacute o teatro dentro do
teatro a peccedila dentro da peccedila em Hamletrdquo
(Schopenhauer)
Utilizando-se de uma metaacutefora retirada do Eacutedipo de Soacutefocles Schopenhauer nos
oferece um exemplo da caracteriacutestica de conexatildeo interna dos temas abordados em sua
obra20
ldquo minha filosofia eacute como a Tebas de cem portas desde todos os lados se pode
entrar e atraveacutes de todos se pode chegar por um caminho direto ateacute o centrordquo
(Schopenhauer 2002 4) Tendo em vista que nosso objetivo neste capiacutetulo eacute apresentar
a teoria schopenhaueriana da trageacutedia e seus fundamentos filosoacuteficos utilizaremo-nos
desta porta para termos acesso ao sistema schopenhaueriano Procuraremos percorrer o
20
Barboza define bem esta caracteriacutestica marcante da filosofia schopenhaueriana ldquoSchopenhauer eacute o
filoacutesofo da organicidade Procura-a porque com ela onde quer que se esteja no seu sistema estar-se-aacute
em toda parte O todo conteria as partes e seria contido por elas De uma metafiacutesica da efetividade se vai
para uma do belo desta para a da eacutetica que por sua vez pode remeter agrave muacutesica por seu turno a nos
enviar para a efetividade numa por assim dizer circularidade virtuosa A unidade natildeo se perde do
horizonte de observaccedilatildeordquo (Barboza 2001 137)
43
substrato metafiacutesico sustentador da teoria do traacutegico schopenhaueriana e perceber assim
a conectividade interna existente entre sua cosmologia sua teoria esteacutetica e sua eacutetica
De posse deste meacutetodo procuraremos destacar os conceitos fundamentais da teoria
traacutegica e de sua visatildeo de mundo que viratildeo posteriormente se fazer presentes tambeacutem
na obra do jovem Nietzsche
21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo
Agrave descriccedilatildeo das artes poeacuteticas Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 51 do primeiro
volume e o capiacutetulo 37 do segundo volume de sua obra principal Tais descriccedilotildees
encontram-se por sua vez ao final dos trechos dedicados agrave teoria esteacutetica (livro III de
MVR e sus complementos) e finalizam seus apontamentos do que podemos chamar na
esteira de Young (2005) das artes natildeo-musicais21
Em ambos os casos a teoria da
trageacutedia estaacute localizada ao final da apresentaccedilatildeo Esta localizaccedilatildeo juntamente com as
diversas citaccedilotildees e exemplos retirados de peccedilas traacutegicas das quais o filoacutesofo se utiliza ao
longo de seu trabalho nos permite ver a importacircncia da arte traacutegica para Schopenhauer
Em sua teoria artiacutestica existe uma hierarquizaccedilatildeo das artes que leva em consideraccedilatildeo a
capacidade de cada uma em apresentar um grau especiacutefico de objetivaccedilatildeo da vontade
Na cosmologia schopenhaueriana a vontade essecircncia do mundo identificada como
sendo a coisa-em-si kantiana manifesta-se (torna-se objeto de conhecimento) atraveacutes de
diversos graus ndash que exprimem a nitidez com que a vontade se manifesta para o
observador - representados pelos reinos da natureza e finalmente pelo homem Desta
forma ela se objetivaria no mundo inorgacircnico atraveacutes das forccedilas magneacuteticas e da
gravidade no mundo vegetal atraveacutes das funccedilotildees orgacircnicas no mundo animal atraveacutes
21
Como veremos mais adiante a muacutesica eacute uma exceccedilatildeo no sistema das artes schopenhaueriano pois natildeo
se relaciona a uma objetivaccedilatildeo da vontade mas expressa a proacutepria vontade e desta forma natildeo figura na
sistematizaccedilatildeo hieraacuterquica
44
dos instintos e dos motivos assim como o faz no homem A classificaccedilatildeo das artes
corresponde portanto a esta hierarquizaccedilatildeo cosmoloacutegica de objetivaccedilatildeo da vontade22
Sendo assim a arquitetura e a hidraacuteulica mostram a objetivaccedilatildeo da vontade no seu grau
mais baixo ao expor o jogo das forccedilas que caracterizam a mateacuteria tais como a gravidade
rigidez dureza resistecircncia luz A jardinagem e a pintura da natureza satildeo as formas
artiacutesticas cujo fim eacute a exposiccedilatildeo da objetivaccedilatildeo da vontade que se manifesta no reino
vegetal A pintura de animais encontra-se em um niacutevel superior pois o reino animal
objeto de sua representaccedilatildeo expotildee de forma mais evidente a vontade objetivada Temos
ainda as pinturas de retratos a pintura histoacuterica e a escultura que das artes plaacutesticas
formam a categoria superior cujo objeto eacute a exposiccedilatildeo da vontade no grau mais elevado
de sua cognoscibilidade o homem Esta mesma exposiccedilatildeo a do homem eacute tambeacutem o
objeto da arte poeacutetica que agrave diferenccedila das artes que fazem sua exposiccedilatildeo de modo
puramente intuitivo eacute auxiliada pela imaginaccedilatildeo No aacutepice das artes poeacuteticas
encontramos a trageacutedia a uacuteltima arte natildeo-musical a ser descrita A arte traacutegica eacute aquela
que possui a caracteriacutestica de por sua natureza representar de forma mais ilustrativa a
objetivaccedilatildeo mais desenvolvida da vontade a vida humana e suas relaccedilotildees Veremos
mais tarde que aleacutem de corresponder agrave hierarquia de objetivaccedilatildeo da vontade mais
desenvolvida a arte traacutegica ocupa um lugar especial na filosofia schopenhaueriana
devido agrave ldquograndeza de seu efeitordquo (Schopenhauer 2005 333) Diante do exposto
podemos depreender que a arte possui na filosofia schopenhaueriana um papel
cognitivo e a trageacutedia por sua vez eacute a forma artiacutestica que por sua competecircncia cognitiva
ocupa o primeiro lugar entre as artes natildeo musicais
22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo
22
Vemos aqui um exemplo da citada inter-conectividade existente no sistema schopenhaueriano tendo
em vista que a elaboraccedilatildeo de sua classificaccedilatildeo artiacutestica obedece ao construto metafiacutesico do livro II de
MVR e sua consequumlente cosmologia
45
A tarefa a que se propotildee o sistema schopenhaueriano eacute a decifraccedilatildeo do ldquoenigma
do mundordquo ie encontrar uma resposta agrave pergunta o que eacute o mundo Esta tarefa tem
origem no idealismo subjacente na primeira criacutetica kantiana e de certa forma era uma
tarefa da qual estava imbuiacutedo todo o pensamento filosoacutefico daquele periacuteodo ie por
decifraccedilatildeo do enigma do mundo podemos entender a decifraccedilatildeo da coisa-em-si
kantiana Temos daiacute o ponto de partida da filosofia de Schopenhauer o idealismo
transcendental do mundo fenomecircnico Sob o ponto de vista da representaccedilatildeo o mundo eacute
objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito agraves condiccedilotildees a priori do
entendimento que para o filoacutesofo satildeo as categorias do espaccedilo do tempo e da
causalidade
Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das formas a priori do entendimento eacute
interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos advindos da filosofia Platocircnica e oriental
como um mundo ilusoacuterio Conforme a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana Platatildeo jaacute
identificava esta caracteriacutestica ilusoacuteria do mundo em sua contraposiccedilatildeo teoacuterica entre o
mundo fiacutesico onde o devir impossibilitava a apreensatildeo do ser e o mundo das ideacuteias
onde haveria o verdadeiro encontro com o ser das coisas Ainda de acordo com a
interpretaccedilatildeo de Schopenhauer os livros sagrados indianos Vedas e Puranas faziam
esta distinccedilatildeo atraveacutes da noccedilatildeo do veacuteu de maia a consciecircncia humana seria envolvida
por um veacuteu o que resultaria em uma visatildeo oniacuterica do mundo e impediria assim a
percepccedilatildeo da realidade
Entretanto o mundo pode ainda ser conhecido atraveacutes de um segundo ponto de
vista como vontade Este eacute o ponto de vista que Schopenhauer utiliza-se para decifrar a
incognosciacutevel coisa-em-si kantiana Percorrendo uma ldquovia subterracircneardquo de modo
imanente Schopenhauer identifica nas accedilotildees do corpo bioloacutegico os atos da vontade
46
enquanto coisa-em-si e de forma analoacutegica a estabelece como essecircncia governante do
mundo Faz-se necessaacuterio aqui ressaltar como o fazem Brum (1998 23) e Rosset23
que
natildeo devemos interpretar esta analogia como uma visatildeo antropomoacuterfica do mundo Essa
essecircncia do mundo encontrada empiricamente natildeo eacute todavia um ente racional uma
ldquoalma do mundordquo Se por um lado o mundo fenomecircnico eacute aquele onde o princiacutepio de
razatildeo24
estabelece as normas de funcionamento um mundo natildeo-fenomecircnico mundo em
si enquanto vontade se expressa por sua alogicidade irracionalidade Grundlosigkeit
(falta de fundamento) Essa essecircncia irracional que manifesta-se nos diversos reinos e
indiviacuteduos do mundo eacute a raiz da visatildeo pessimista da existecircncia que de acordo com o
filoacutesofo pode ser a todo momento constatada empiricamente
As diversas manifestaccedilotildees da vontade suas objetidades carregam inerentemente
a sua iacutendole puro impulso cego vontade de vida insaciabilidade Notadamente o
mundo fenomecircnico objetivaccedilatildeo da vontade expressa a essecircncia desta vontade atraveacutes
de um conflito permanente Desenha-se um cenaacuterio de batalha onde cada objetidade da
vontade cada ser do mundo eacute orientado por sua essecircncia irracional desguarnecida de
qualquer telos ldquoAssim a vontade de vida crava continuamente os dentes na proacutepria
carne e em diferentes figuras eacute seu proacuteprio alimentordquo (Schopenhauer MVR 211) Este
fundamento ontoloacutegico a vontade determina assim o caraacuteter absurdo que a vida
humana toma na filosofia schopenhaueriana eterno esforccedilo carente de ordem ou
finalidade O ldquomecanismo internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens
marionetes guiados pela carecircncia
[]nenhuma satisfaccedilatildeo todavia eacute duradoura mas antes sempre eacute um
ponto de partida de um novo esforccedilo o qual por sua vez vemos travado em
toda parte de diferentes maneiras em toda parte lutando e assim portanto
23
[] natildeo haacute que transpor a experiecircncia da motivaccedilatildeo humana ao conjunto das forccedilas naturais para
compreender o segredo da natureza senatildeo o contraacuterio transpor o misteacuterio das forccedilas naturais ao conjunto
das motivaccedilotildees psicoloacutegicas para desvendar-se o segredo da vontade humana (Rosset 2005 31) 24
Princiacutepio tratado na tese de doutoramento de Schopenhauer SRQPRS bem como no livro I de MVR
O princiacutepio estabelece que todo acontecimento possui uma causa uma razatildeo de ser
47
sempre como sofrimento natildeo haacute nenhum fim uacuteltimo do esforccedilo portanto natildeo
haacute nenhuma medida e fim do sofrimento (Schopenhauer 2005 399)
Se carecircncia vontade e desejo satildeo a tocircnica da vida humana na maior parte do tempo e
satildeo experimentados como dor e infelicidade a felicidade por sua vez eacute definida
negativamente como um momento de ausecircncia daquela dor
Sentimos a dor e natildeo a ausecircncia da dor a inquietude e natildeo a
tranquumlilidade o medo e natildeo a seguranccedila Sentimos desejo como quando
temos fome e sede entretanto ao alimentarmo-nos estas sensaccedilotildees
deixam de existir para noacutes (MVR II 630)
Toda satisfaccedilatildeo momentacircnea de um querer eacute imediatamente suprimida por outro querer
ou se perdurar por algum tempo por menor que seja este transforma-se em teacutedio Um
ldquopecircndulo entre a dor e teacutediordquo eacute a definiccedilatildeo que Schopenhauer propotildee para a vida
humana Assim se daacute tambeacutem com a sauacutede a juventude e a liberdade Todos satildeo
conceitos definidos negativamente soacute os conhecemos atraveacutes de sua ausecircncia Este afatilde
por prolongar e conservar a vida essecircncia iacutentima de cada indiviacuteduo natildeo eacute contudo
resultado de uma observaccedilatildeo objetiva da mesma de um conhecimento que eleja a vida
como algo de valor a ser mantido e preservado e portanto os ldquo[] seres natildeo satildeo
atraiacutedos por algo que se lhes apresenta mas satildeo empurrados a elerdquo (MVR II 398) A
luta eterna observada nos diversos reinos da natureza a busca por alimento o esforccedilo da
procriaccedilatildeo se comparados aos momentos fugazes de satisfaccedilatildeo fazem da vida ldquoum
negoacutecio cujos investimentos natildeo cobrem nem de longe os custosrdquo (MVR II 399)
Em todas estas consideraccedilotildees se faz claro que a vontade de viver
natildeo eacute a consequecircncia do conhecimento da vida natildeo se trata de uma
bdquoconclusio ex praemissis‟ nem em geral eacute algo secundaacuterio antes
contudo eacute o primeiro e incondicionado a premissa de todas as premissas
e precisamente por isso aquilo do que haacute de partir a filosofia pois a
vontade de viver natildeo se apresenta como a consequumlecircncia do mundo senatildeo
o mundo como consequumlecircncia da vontade de viver (MVR II 405)
Um dos pontos essenciais a ser verificado nesta visatildeo de mundo eacute o
destronamento da razatildeo O ceacuterebro oacutergatildeo da razatildeo eacute o resultado de um esforccedilo da
48
vontade em seu percurso de objetivaccedilatildeo A racionalidade humana estaacute a serviccedilo da
vontade que eacute em sua essecircncia grundlos A razatildeo eacute ferramenta para que o homem
enquanto objetidade da vontade consiga satisfazer a seus anseios Em oposiccedilatildeo agrave
filosofia racionalista de entatildeo onde o ldquoreal eacute o racionalrdquo assistimos ao surgimento de
uma filosofia irracionalista das forccedilas inconscientes onde a razatildeo na medida em que eacute
mecanismo da vontade estaacute sempre a serviccedilo desta O comportamento humano eacute
naturalmente egoiacutesta voltado para os proacuteprios interesses e estes por sua vez satildeo
expressatildeo desta vontade aloacutegica desprovida de telos Schopenhauer se mostrava
consciente da singularidade desta sua biparticcedilatildeo do ego e da consequumlente visatildeo de
mundo que ela trouxe agrave luz e enfatizou isto em seus manuscritos berlinenses ldquo[] a
divisatildeo da mente o eu em duas partes diferentes - em vontade como parte essencial e
primaacuteria e em intelecto como secundaacuteria - eacute o grande princiacutepio e meacuterito de minha
filosofia e tambeacutem a principal diferenccedila dos demais sistemasrdquo (MR III 328)
Temos entatildeo os dois pontos de vista do mundo que fundamentam a visatildeo de
Schopenhauer e que posteriormente seratildeo transformados pela teoria nietzscheana da
trageacutedia nos dois impulsos da natureza o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco O primeiro deles eacute o
mundo da individualidade da pluralidade regido pelo que Schopenhauer vai chamar
utilizando-se de um termo retirado da escolaacutestica de principium individuationis
Nesse sentido servindo-me da antiga escolaacutestica denomino
tempo e espaccedilo pela expressatildeo principium individuationis que peccedilo para
o leitor guardar para sempre Tempo e espaccedilo satildeo os uacutenicos pelos quais
aquilo que eacute uno e igual conforme a essecircncia e o conceito aparece como
pluralidade de coisas que coexistem e se sucedem (MVR 171)
No segundo toto genere diferente do primeiro existe a vontade una indivisiacutevel natildeo
submetida ao princiacutepio de razatildeo e por isso sem fundamento
Em apoio a sua tese Schopenhauer invoca ao final do capiacutetulo 46 (Sobre a
nulidade e o sofrimento da vida) dos complementos de MVR a opiniatildeo de diversos
49
pensadores dentre eles Heroacutedoto Platatildeo Teoacutegnis Homero os tragedioacutegrafos gregos
Shakespeare Byron Voltaire Rousseau Faz-se importante neste momento ressaltar que
o filoacutesofo aponta a invenccedilatildeo da trageacutedia pelos gregos como uma expressatildeo desta visatildeo
de mundo ponto de vista que como veremos tambeacutem seraacute adotado pelo primeiro
Nietzsche
Ante tudo mencionarei que os gregos por mais distantes que
estivessem da visatildeo de mundo cristatilde e da alta Aacutesia e por muito que se
mantiveram sob o ponto de vista da afirmaccedilatildeo da vontade se fizeram
profundamente impressionados pela miseacuteria da existecircncia Isso eacute
demonstrado pela invenccedilatildeo da trageacutedia obra deles (MVR II 640)
23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana
Existe poreacutem uma forma de conhecimento que eacute ndash agrave diferenccedila daquela
subordinada ao princiacutepio de razatildeo que percebe os objetos em sua relaccedilatildeo com os outros
objetos do espaccedilo-tempo ndash uma forma mais universal pois mostra o objeto em sua
caracteriacutestica mais geral qual seja a de ser objeto para o sujeito A esta forma de
conhecimento Schopenhauer associa a apreciaccedilatildeo esteacutetica O seu objeto eacute a ideacuteia
platocircnica25
um grau determinado de objetivaccedilatildeo da coisa-em-si
Os diferentes graus de objetivaccedilatildeo da Vontade expressos em
inumeraacuteveis indiviacuteduos e que existem como seus protoacutetipos
inalcanccedilaacuteveis ou formas eternas das coisas que nunca aparecem no
tempo e no espaccedilo meacutedium do indiviacuteduo mas existem fixamente natildeo
submetidos a mudanccedila alguma satildeo e nunca vindo-a-ser enquanto as
coisas nascem e perecem sempre vecircm-a-ser e nunca satildeo os GRAUS DE
OBJETIVACcedilAtildeO DA VONTADE ia dizer natildeo satildeo outra coisa senatildeo as
IDEacuteIAS DE PLATAtildeO (MVR 191)
Esta instacircncia do conhecimento eacute alcanccedilada intuitivamente pela contemplaccedilatildeo
esteacutetica da natureza ou pela facilitaccedilatildeo de uma obra de arte Desta forma as obras de
25
Conforme o filoacutesofo ldquo A expressatildeo mais breve e sucinta daquele famoso dogma platocircnico foi dada por
Dioacutegenes Laeacutercio (II 12) Platatildeo ensina que as ideacuteias da natureza existem como protoacutetipos jaacute as demais
coisas apenas se assemelham a elas e satildeo suas coacutepiasrdquo (MVR 191)
50
arte na teoria schopenhaueriana satildeo uma exposiccedilatildeo destes graus de objetivaccedilatildeo da
vontade as ideacuteias Ao contraacuterio da criacutetica agrave arte presente na repuacuteblica platocircnica - onde a
arte seria uma coacutepia mais imperfeita da ideacuteia por retratar o mundo fenomecircnico sua
coacutepia direta - Schopenhauer aproxima as obras artiacutesticas das ideacuteias eternas as define
como suas expressotildees diretas Contudo a intuiccedilatildeo das ideacuteias exige um estado de
consciecircncia diferente do estado comum Neste uacuteltimo o aparelho cognitivo sob a eacutegide
da vontade estaacute voltado para a realizaccedilatildeo dos interesses individuais e entatildeo se
movimenta no mundo guiado por estes interesses ldquoCaso entretanto a Ideacuteia deva de
alguma maneira tornar-se conhecimento e ser conhecida pelo sujeito entatildeo isso soacute
pode ocorrer graccedilas agrave supressatildeo da individualidade no sujeito que conhecerdquo (MB 30)
A forma artiacutestica de conhecimento cujo possuidor eacute o denominado gecircnio estaacute
associada a um desprendimento das reacutedeas da vontade O gecircnio eacute entatildeo aquele que livre
dos interesses da vontade percebe as ideacuteias por traacutes dos objetos alheio aos princiacutepios
de razatildeo e de individuaccedilatildeo e traduz este objeto na obra de arte O observador esteacutetico eacute
portanto um partiacutecipe da genialidade na medida em que intui a ideacuteia por traz do objeto
observado conforme tambeacutem ao seu grau de desinteresse26
Durante a apreciaccedilatildeo
esteacutetica o homem se vecirc livre momentaneamente daquela parte de si que eacute a causadora
de todo o sofrimento individual e coletivo a vontade para transformar-se em um ldquopuro
sujeito de conhecimentordquo Este estado de satisfaccedilatildeo decorrente da suspensatildeo da vontade
individualizada eacute o sentimento do belo
Aquilo que se poderia nomear o lado mais belo e a pura alegria
da vida precisamente porque nos arranca da existecircncia real e nos
transforma em espectadores desinteressados diante dela eacute o puro
conhecimento que permanece alheio a todo querer eacute a fruiccedilatildeo do belo a
alegria autecircntica na arte Mas mesmo isso requer dispositivos raros e
cabe apenas a pouquiacutessimos e mesmo para estes eacute um sonho
passageiro (MVR 404)
26
Vemos nesta forma de associaccedilatildeo entre conhecimento e interesse mais uma heranccedila kantiana no caso
provinda da definiccedilatildeo de belo da criacutetica da faculdade de juiacutezo
51
- - - - - - - - - -
Ao descrever a apreciaccedilatildeo artiacutestica como um ato cognitivo Schopenhauer
preocupa-se em diferenciaacute-la do conhecimento cientiacutefico De fato boa parte das
consideraccedilotildees sobre a arte eacute dedicada ao esclarecimento desta diferenccedila
Podemos por conseguinte definir a arte como o modo de
consideraccedilatildeo das coisas independente do princiacutepio de razatildeo em oposiccedilatildeo
justamente agrave consideraccedilatildeo que o segue que eacute o caminho da experiecircncia e
da ciecircncia O modo de consideraccedilatildeo que seque o princiacutepio de razatildeo eacute o
racional o uacutenico que vale e que auxilia na vida praacutetica e na ciecircncia o
modo apartado do conteuacutedo do princiacutepio de razatildeo eacute o genial o uacutenico que
vale e que auxilia na arte (MB 59)
No caso da trageacutedia cujo objetivo eacute o conhecimento do homem e de suas relaccedilotildees a
ciecircncia que mais se assemelha a esta forma artiacutestica seria a histoacuteria Esta natildeo tem como
objetivo a demonstraccedilatildeo da essecircncia do homem em sua forma atemporal ou seja a
demonstraccedilatildeo daquilo que fundamenta toda accedilatildeo humana independente dos
acontecimentos empiacutericos
[ ]toda ciecircncia no sentido proacuteprio do termo compreendida como
conhecimento sistemaacutetico guiado pelo fio condutor do princiacutepio de
razatildeo parte sempre de dois dados baacutesicos um deles sem exceccedilatildeo eacute o
princiacutepio de razatildeo em uma de suas figuras como oacuterganon outro eacute o
objeto especiacutefico de cada uma delas enquanto problema (Schopenhauer
MVR 73)
Desta forma a histoacuteria teria a lei de motivaccedilatildeo e o os fatos humanos como oacuterganon e
problemas respectivamente Entretanto interessa a Schopenhauer um conhecimento
mais universal que soacute pode ser apresentado pela arte e que aponta por sua proximidade
agrave essecircncia daquilo que eacute a uma ldquoiacutendole imutaacutevelrdquo das manifestaccedilotildees
Podemos ver entatildeo que sendo consideradas como meios para o
conhecimento da essecircncia da humanidade arte poeacutetica e histoacuteria possuem todavia
objetos de conhecimento diferentes A primeira quando produzida pelo verdadeiro
gecircnio tenciona manifestar a ideacuteia por traacutes destes conceitos a ideacuteia de homem de
humanidade intuitivamente independentemente do princiacutepio de razatildeo do devir como
52
objeto puro de conhecimento alheio agrave corrente dos motivos em suas caracteriacutesticas
essenciais atemporais A histoacuteria por sua vez segue o rastro do princiacutepio de razatildeo
procurando apresentar o fenocircmeno humano em suas relaccedilotildees descrever-lhe em suas
situaccedilotildees particulares individuais empiacutericas Nas palavras de Schopenhauer
Arte e ciecircncia tecircm em uacuteltima instacircncia o mesmo estofo a saber
justamente o mundo tal como ele se posta diante de noacutes ou antes uma
parte destacada dele quanto ao todo do mundo soacute a filosofia o
considera Contudo a grande diferenccedila entre ciecircncia e arte reside na
maneira como elas consideram o mundo e trabalham seu estofo Tal
oposiccedilatildeo pode ser indicada com uma palavra a ciecircncia considera os
fenocircmenos do mundo seguindo o fio condutor do princiacutepio de razatildeo ao
passo que a arte coloca totalmente de lado o princiacutepio de razatildeo
independente dele para que assim a ideacuteia entre em cena
(SCHOPENHAUER MB 57)
Podemos notar que a valorizaccedilatildeo do que eacute imutaacutevel alheio agrave idealidade do tempo eacute a
raiz da valorizaccedilatildeo do conhecimento artiacutestico frente ao histoacuterico Este uacuteltimo natildeo visa o
acesso aos modelos eternos pois seu objeto satildeo os acontecimentos individuais do
mundo fenomecircnico que satildeo eventos meramente aparentes se considerarmos a
idealidade do tempo O que se manifesta no fluxo temporal do mundo fenomecircnico satildeo
sempre as mesmas formas eternas as ideacuteias entretanto com roupagens diferentes o
mesmo homem enquanto objetivaccedilatildeo da vontade a mesma humanidade Onde quer que
seja e em qualquer momento especiacutefico sua essecircncia eacute a mesma e esta essecircncia eacute o que
deve ser alvo de uma compreensatildeo privilegiada de entendimento e natildeo as suas diversas
manifestaccedilotildees Por este motivo Schopenhauer deixando explicito o seu chamado anti-
historicismo afirma que ldquose algueacutem jaacute lera Heroacutedoto jaacute estudara bastante histoacuteria e
efeitos filosoacuteficos Pois laacute jaacute estaacute tudo o que compotildee a posterior histoacuteria mundial a
atividade o obrar o sofrimento e o destino do gecircnero humano (Schopenhauer MVR
II 496) Podemos notar claramente a oposiccedilatildeo entre a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana
da histoacuteria e as tendecircncias de seu tempo principalmente presentes na filosofia de
Hegel Este de acordo com a criacutetica de Schopenhauer ignorando a filosofia critica de
53
Kant toma o fenocircmeno histoacuterico como coisa em si ao atribuir-lhe uma unidade de
consciecircncia Entretanto unidade de consciecircncia eacute um atributo dos indiviacuteduos e natildeo do
gecircnero humano Estas filosofias de acordo com o Schopenhauer satildeo frutos do realismo
otimista queldquo tomam o mundo como perfeitamente real e potildeem como fim do mesmo
uma miseraacutevel felicidade terrena (Schopenhauer MVR II 495)
- - - - - - - - - -
Colocando de lado o fio condutor do princiacutepio de razatildeo e mirando-se no
conhecimento da ideacuteia imutaacutevel atemporal encontramos a trageacutedia como fenocircmeno que
apresenta agrave intuiccedilatildeo o homem e sua condiccedilatildeo Eacute a forma de arte que tem como objeto o
grau mais elevado de objetivaccedilatildeo da vontade A intenccedilatildeo do artista traacutegico eacute de acordo
com Schopenhauer transmitir a ideacuteia intuiacuteda tarefa que seraacute bem sucedida de acordo
com a habilidade de utilizaccedilatildeo da teacutecnica artiacutestica por um lado e com a capacidade de
percepccedilatildeo esteacutetica do apreciador por outro O tragedioacutegrafo diferentemente do
historiador que relata os fatos empiacutericos explicitando seus motivos e consequumlecircncias
deve para obter o efeito esperado em sua obra expor uma situaccedilatildeo tal em que o homem
possa manifestar todas as suas potencialidades e dessa forma transmitir ao apreciador
esteacutetico a ideacuteia representada ldquoO poeta expotildee com escolha e intenccedilatildeo caracteres
significativos em situaccedilotildees significativas jaacute o historiador toma aos dois como eles
aparecemrdquo (Schopenhauer MVR 323) A qualidade da obra traacutegica seraacute julgada entatildeo
pela sua capacidade de representaccedilatildeo da ideacuteia de humanidade e Schopenhauer qualifica
as trageacutedias de acordo com esta capacidade Natildeo existe em seu sistema uma
consideraccedilatildeo histoacuterica da produccedilatildeo traacutegica Ele natildeo leva em consideraccedilatildeo as condiccedilotildees
histoacutericas no que se refere agrave origem ou mesmo quanto ao desenvolvimento desta forma
artiacutestica e a avalia unicamente conforme o seu efeito E neste ponto a trageacutedia apresenta
uma peculiaridade frente agraves demais artes ela eacute a forma de arte que provocaraacute o
54
sentimento do sublime Como vimos o correlato subjetivo de toda apreciaccedilatildeo esteacutetica eacute
o sentimento causado pela anulaccedilatildeo da vontade individual mediante a elevaccedilatildeo ao
estado de puro sujeito de conhecimento O sublime assim como o belo satildeo expressotildees
deste sentimento que se diferenciam unicamente por sua forma
Se tal estado surgiu por si mesmo na medida em que o objeto foi
solicitado e se apresentou ndash e fomos postos sem resistecircncia pelo mero
desaparecer da vontade da consciecircncia no estado do conhecer puro ndash ou
se primeiro foi despertado por elevaccedilatildeo livre consciente sobre a vontade
na medida em que o objeto contemplado tem com esta uma relaccedilatildeo
desfavoraacutevel hostil cuja prossecuccedilatildeo suprimiria a contemplaccedilatildeo ndash aiacute
reside a diferenccedila entre o belo e o sublime (MB 119)
A impressatildeo do sublime eacute portanto uma forma de colocar-se no estado do puro conhecer
ao nos depararmos com o objeto que por sua apresentaccedilatildeo sugere uma ldquorelaccedilatildeo hostilrdquo
com o indiviacuteduo27
Jaacute vimos que a visatildeo de mundo de Schopenhauer identifica a vida humana como
sofrimento infindaacutevel no entanto ao elaborar sua definiccedilatildeo da trageacutedia Schopenhauer
aponta para o desfecho moral de sua obra (livro IV de MVR) e afirma que a trageacutedia
melhor eacute aquela que expotildee a renuacutencia agrave vida O filoacutesofo compara obras contemporacircneas
agraves antigas e afirma sua preferecircncia por estas em decorrecircncia da capacidade que elas tecircm
de provocar esta a renuacutencia agrave vida Vejamos a descriccedilatildeo que Schopenhauer faz da
trageacutedia
No aacutepice da arte poeacutetica tanto no que se refere agrave grandeza do seu
efeito quanto agrave dificuldade da sua realizaccedilatildeo deve-se ver a trageacutedia e de
fato ela assim foi reconhecida Observe-se aqui algo de suma significaccedilatildeo
para toda a nossa visatildeo geral de mundo o objetivo dessa suprema
realizaccedilatildeo poeacutetica natildeo eacute outro senatildeo a exposiccedilatildeo do lado terriacutevel da vida
27
Vemos na teoria do sublime Schopenhaueriana mais uma vez a influecircncia de Kant Schopenhauer iraacute
identificar duas formas de sublime e utilizar-se-aacute dos termos kantianos ldquosublime dinacircmicordquo e ldquosublime
matemaacuteticordquo para diferenciaacute-los No primeiro o objeto de apreciaccedilatildeo se mostra a princiacutepio uma ameaccedila
ao observador ldquoum poder que suprimiria qualquer resistecircnciardquo(MB 104) No sublime matemaacutetico o
segundo o objeto eacute visto em sua incomensuraacutevel grandiosidade diante da qual o observador infere a sua
infimidade A afinidade entre Schopenhauer e a teoria criacutetica do juiacutezo eacute expressa em sua obra principal
ldquoDe longe o que haacute de mais excelente na criacutetica da faculdade de juiacutezo eacute a teoria do sublime Ela eacute
incomparavelmente mais bem sucedida que a teoria do belo e daacute natildeo apenas como esta o meacutetodo geral
da investigaccedilatildeo mas tambeacutem um trecho do correto caminho de maneira que embora natildeo forneccedila a
soluccedilatildeo propriamente dita do problema chega bem perto delardquo(MVR 660)
55
a saber o inominado sofrimento a miseacuteria humana o triunfo da maldade
o impeacuterio ciacutenico do acaso a queda inevitaacutevel do justo e do inocente E
em tudo isso se encontra uma indicaccedilatildeo significativa da iacutendole do mundo
e da existecircncia Eacute o conflito da Vontade consigo mesma que aqui
desdobrado plenamente no grau mais elevado de sua objetidade entra em
cena de maneira aterrorizante Ele se torna visiacutevel no sofrimento da
humanidade em parte produzido por acaso e erro que se apresentam
como os senhores do mundo e personificados como destino e perfiacutedia os
quais aparecem enquanto intencionalidade em parte advindo da
humanidade mesma por meio dos entrecruzados esforccedilos voluntaacuterios dos
indiviacuteduos e da maldade e perversatildeo da maioria Trata-se de uma uacutenica e
mesma Vontade que em todos vive e aparece cujos fenocircmenos
entretanto combatem entre si e se entredevoram [] Por fim esse
conhecimento no indiviacuteduo purificado e enobrecido pelo sofrimento
mesmo atinge o ponto no qual o fenocircmeno o veacuteu de maia natildeo mais o
ilude Ele vecirc atraveacutes da forma do fenocircmeno do principium
individuationis com o que tambeacutem expira o egoiacutesmo nele baseado Com
isso os ateacute entatildeo poderosos MOTIVOS perdem o seu poder e em vez
deles o conhecimento perfeito da essecircncia do mundo atuando como
quietivo da vontade produz a resignaccedilatildeo a renuacutencia natildeo apenas da vida
mas de toda a vontade de vida mesma (Schopenhauer MVR 333)
Percebemos nesta descriccedilatildeo que a trageacutedia aleacutem de expor a visatildeo de mundo construiacuteda
pelo filoacutesofo tem como fim uacuteltimo provocar um efeito moral no apreciador esteacutetico
qual seja a renuacutencia ao mundo Vejamos entatildeo a relaccedilatildeo entre a visatildeo de mundo
schopenhaueriana o efeito esteacutetico provocado pela trageacutedia e o projeto moral existente
por traacutes de suas teorias
24 A finalidade moral da trageacutedia
Para que possamos perceber a relaccedilatildeo intriacutenseca entre cosmologia metafiacutesica
arte e a eacutetica faz-se necessaacuterio uma pequena excursatildeo sobre esta uacuteltima Que todo o
sistema schopenhaueriano possui um viacutenculo inseparaacutevel com o seu projeto eacutetico eacute fato
que natildeo passa despercebido a seus comentadores Um projeto de juventude eacute descrito
por Safranski (1991 188-198) Young (2006 07 200) Aramayo (2001 56-59) e
Cartwright (Janaway 1999 252) como uma premissa no desenvolvimento da filosofia
56
schopenhaueriana trata-se do projeto de uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Young a descreve
como uma transcendecircncia do mundo ordinaacuterio para o ldquomundo verdadeirordquo Esta
consciecircncia melhor poderia ser experimentada atraveacutes da apreciaccedilatildeo artiacutestica e da
consciecircncia eacutetica ambas originadas do desvelamento de maia Assim Schopenhauer a
descreve conforme citaccedilatildeo de Young (2006 9) ldquopersonalidade e causalidade existem
neste mundo compreensiacutevel temporal sensorial Mas a consciecircncia melhor me leva a
um mundo onde nem personalidade nem sujeito ou objeto existem maisrdquo Safransky
descreve a consciecircncia melhor como um estado semelhante ao ecircxtase miacutestico
Este arrebatamento estaacute livre das coordenadas espaccedilo-temporais
cujo ponto de interseccedilatildeo eacute o eu corporal apartado do espaccedilo do tempo
do eu Os miacutesticos chamam a esta experiecircncia ldquonunc stansrdquo agora
permanente A intensidade deste presente natildeo conhece princiacutepio nem fim
e soacute pode desaparecer porque noacutes desaparecemos dele (Safransky1991
190)
Conforme Aramayo tanto a figura do gecircnio como a do santo satildeo expressotildees do
reconhecimento desta consciecircncia melhor e a filosofia de Schopenhauer pretende-se
uma terceira via que tambeacutem apontaria para este estado de consciecircncia A caracteriacutestica
primordial deste estado eacute o desprendimento dos desejos individuais e o comportamento
virtuoso que adveacutem deste desprendimento Eacute na esteira do entendimento desta
consciecircncia melhor que as bases eacutetico-metafiacutesicas do filoacutesofo foram elaboradas Em
apoio a esta afirmaccedilatildeo Aramayo apresenta duas citaccedilotildees a partir das quais em
momentos distintos de sua vida Schopenhauer apresenta seu projeto de identificaccedilatildeo
entre eacutetica e metafiacutesica Nos escritos de Juventude em 1813 vemos o projeto
Em meu espiacuterito encontra-se em gestaccedilatildeo uma filosofia onde
metafiacutesica e eacutetica devem constituir uma soacute coisa cuja dissociaccedilatildeo eacute tatildeo
errocircnea como agrave da alma e do corpo (Aramayo 2001 41)
Jaacute nos escritos tardios especificamente em seu ensaio de 1836 Sobre a vontade na
natureza veremos Schopenhauer identificar esta uniatildeo
57
Tatildeo soacute esta metafiacutesica que jaacute eacute eacutetica por si soacute ao estar construiacuteda
com esse material primordialmente eacutetico que se supotildee a vontade
constitui real e imediatamente um sustentaacuteculo para a eacutetica em vista de
que poderia haver colocado em minha metafiacutesica o nome de eacutetica (apud
Aramayo 2001 43)
Cartwright aponta ainda na uacuteltima obra schopenhaueriana de 1851 Parerga e
paralipomena a afirmaccedilatildeo de que a ldquosua real filosofia culminou em um ponto de vista
altamente eacutetico-metafiacutesicordquo (Janaway 1999 252)
Na filosofia schopenhaueriana como vimos o indiviacuteduo humano eacute uma
expressatildeo da objetidade da vontade e seu ponto de partida por natureza eacute a satisfaccedilatildeo
manutenccedilatildeo e o prolongamento desta vontade de vida Este estado de consciecircncia onde
todos os esforccedilos estatildeo voltados para a satisfaccedilatildeo da vontade individual eacute a causa de
todo o sofrimento do mundo Aprisionado agrave perspectiva fenomecircnica do mundo o
homem natildeo percebe a unidade da vontade e age de acordo com os motivos estabelecidos
pela sua proacutepria individualidade Para este homem existe uma separaccedilatildeo profunda entre
o proacuteprio eu e os objetos do mundo
Por meio da intuiccedilatildeo que o ceacuterebro efetua a partir dos dados do sentido
e portanto mediatamente conhecemos o proacuteprio corpo como um objeto no
espaccedilo e por meio do sentido interno conhecemos a seacuterie sucessiva de nossos
desejos e atos de vontade que surgem por ocasiatildeo dos motivos externos e
finalmente conhecemos os muacuteltiplos movimentos fortes ou fracos da proacutepria
vontade aos quais todos os sentimentos internos deixam-se reconduzir Isto eacute
tudo pois o conhecer natildeo eacute ele proacuteprio de novo conhecido (Schopenhauer
2001 213)
Eacute deste estado que surge todo o comportamento humano considerado pelo filoacutesofo
como comportamento antimoral Egoiacutesmo eacute o nome dado ao resultado da influecircncia do
princiacutepio de individuaccedilatildeo sobre o comportamento dos homens Este egoiacutesmo chega ao
extremo de o homem considerar-se o centro do mundo e transformar o seu querer em
mandamento para os objetos exteriores ldquoalguns homens seriam capazes de assassinar
um outro soacute para engraxar suas botas com a gordura delerdquo (SFM 124) Nestas
58
condiccedilotildees ldquose fosse dado pois a um indiviacuteduo escolher entre a sua proacutepria aniquilaccedilatildeo
e a do mundo nem preciso dizer para onde a maioria se inclinariardquo (SFM 121) Da
forma como ocorre com o egoiacutesmo a ilusatildeo fenomecircnica daacute origem a outro sentimento
o oacutedio Estes dois egoiacutesmo e oacutedio satildeo os princiacutepios originadores de todos os viacutecios do
homem Desta leitura pessimista da natureza humana Schopenhauer retira seu conceito
perspectivista das ideacuteias de bem e mal satildeo consideradas boas ou maacutes as coisas que
agradam ou desagradam agrave vontade do indiviacuteduo ldquoPortanto tudo o que eacute favoraacutevel agrave
vontade em alguma de suas exteriorizaccedilotildees e satisfaz seus fins eacute pensado pelo conceito
bom por mais diferentes que essas coisas possam ser noutros aspectosrdquo (MVR 459)
Este estado eacute definido por Schopenhauer como ldquoafirmaccedilatildeo da vontaderdquo nele o amor-
proacuteprio Eros dita as regras de comportamento Definido o Eros enquanto
fundamentador das accedilotildees antimorais humanas sendo este surgido de uma percepccedilatildeo
subordinada ao principium individuationis entendemos o motivo pelo qual o filoacutesofo
rejeita a validade de qualquer moral baseada em argumentos abstratos
Uma moral sem fundaccedilatildeo portanto um simples moralizar natildeo pode
fazer efeito pois natildeo motiva Uma moral entretanto que motiva soacute pode fazecirc-
lo atuando sobre o amor proacuteprio O que entretanto nasce daiacute natildeo tem valor
moral algum Segue-se assim que mediante moral e conhecimento abstrato em
geral nenhuma virtude autecircntica pode fazer efeito mas esta tem de brotar do
conhecimento intuitivo o qual reconhece no outro indiviacuteduo a mesma essecircncia
que a proacutepria (MVR 468)
Desta forma em contraposiccedilatildeo ao comportamento antimoral produzido
pela ilusatildeo causada pelo principium individuationis o filoacutesofo apresenta o outro lado da
moeda a accedilatildeo moral Esta seria a accedilatildeo praticada em funccedilatildeo do bem-estar de um outro
indiviacuteduo tendo em vista que as accedilotildees praticadas em funccedilatildeo do mal-estar do outro ou
do bem e mal estar de si mesmo satildeo justamente as accedilotildees antimorais baseadas no
egoiacutesmo ou no oacutedio ldquoTodo amor que natildeo eacute compaixatildeo eacute amor-proacuteprio Amor-proacuteprio eacute
59
Eros compaixatildeo eacute Aacutegaperdquo (MVR 478) Todo ato moral eacute por consequumlecircncia um ato de
compaixatildeo ou seja um ato que eacute praticado a partir da percepccedilatildeo do sofrimento do
outro Entretanto a percepccedilatildeo do sofrimento alheio natildeo eacute dada atraveacutes do conhecimento
abstrato E somente por uma percepccedilatildeo intuitiva direta do sofrimento do outro como o
meu proacuteprio sofrimento que surge a compaixatildeo Tal percepccedilatildeo assim como a
apreciaccedilatildeo esteacutetica tem origem em uma visatildeo que vai aleacutem do principium
individuationis Desfaz-se a ilusatildeo causada por este princiacutepio de que existe em realidade
um eu e um natildeo-eu ilusatildeo essa que eacute originada pelos condicionantes do conhecimento
tempo espaccedilo e causalidade Livre do principium individuationis natildeo haacute mais
diversidade natildeo existe mais indiviacuteduo passado futuro motivaccedilotildees existe apenas o
instante presente do ser a vontade Natildeo nos vemos mais como uma vontade separada de
outras ao contraacuterio vemos nos outros a mesma vontade pela qual somos Necessaacuterio
faz-se ressaltar que este conhecimento intuitivo que demonstra a unidade da vontade
em todo indiviacuteduo eacute entendimento de verdade tatildeo profundo que supera qualquer
especulaccedilatildeo abstrata do conhecimento e por isso seu efeito eacute marcante
Para o conhecimento que vecirc atraveacutes do principium individuationis uma
vida feliz no tempo presenteada pelo acaso ou conquistada deste pela
sabedoria em meio ao sofrimento de inumeraacuteveis outros eacute apenas um sonho de
mendigo no qual eacute um rei poreacutem tem de acordar e reconhecer que era tatildeo-soacute
uma ilusatildeo fugidia aquilo que o separava do sofrimento da sua vida (MVR
452)
A experimentaccedilatildeo deste estado de consciecircncia faz-nos perceber a vida como engano
luta infinita e provoca em noacutes a renuacutencia a esta mesma vida agrave vontade de viver O
homem natildeo mais afirma a sua essecircncia mas a repudia
Agrave semelhanccedila do estado de negaccedilatildeo da vontade o proacuteprio estado de
contemplaccedilatildeo esteacutetica pressupotildee um desinteresse pelos mandamentos da vontade
60
individual um desligamento do caraacuteter egoiacutestico do sujeito empiacuterico28
Para que possa
perceber a Ideacuteia por traacutes do objeto contemplado o observador deve estar em um estado
de consciecircncia que se vecirc livre dos grilhotildees da vontade Neste estado ele eacute alccedilado para
aleacutem da individualidade torna-se puro sujeito de conhecimento Para que este estado se
manifeste eacute imprescindiacutevel natildeo estar interessado nas relaccedilotildees do objeto apreciado seja
com outros objetos seja consigo mesmo O apreciador esteacutetico natildeo se preocupa com o
ldquoonderdquo o ldquocomordquo o ldquoporquecircrdquo dos objetos Estas formas de interjeiccedilatildeo sinalizam para a
relaccedilatildeo dos objetos com o mundo O apreciador esteacutetico no momento da apreciaccedilatildeo
tem em vista somente o ldquoquerdquo do objeto transforma-se em um ldquoolho que vecircrdquo livre do
princiacutepio de individuaccedilatildeo eacute o puro sujeito de conhecimento Vemos nestes dois estados
(o esteacutetico e o compassivo) exemplos de estados de consciecircncia que por suas
caracteriacutesticas de alccedilarem o indiviacuteduo a uma anulaccedilatildeo do sofrimento fazem parte do
projeto de juventude de estabelecer uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Percebemos entatildeo que a
consideraccedilatildeo esteacutetica e a consideraccedilatildeo eacutetica possuem em comum esta caracteriacutestica da
consciecircncia de se apartar do princiacutepio de individuaccedilatildeo
No caso da trageacutedia como descreve Schopenhauer seu fim uacuteltimo eacute despertar a
compaixatildeo no apreciador Desta forma o filoacutesofo associa agrave trageacutedia um efeito singular e
adverso das demais artes ou pelo menos reconhece na trageacutedia a arte capaz de
demonstrar a semelhanccedila entre os modos de consideraccedilatildeo artiacutestico e eacutetico Ao ilustrar o
conflito das vontades no mundo atraveacutes da exposiccedilatildeo do sofrimento humano a trageacutedia
cumpre seu papel artiacutestico ao expor a ideacuteia de humanidade Aleacutem deste atributo
podemos dizer que a trageacutedia tem que cumprir ainda seu papel moral ao causar no
28
Neste ponto de semelhanccedila eacute fundamental apontar mais uma vez a heranccedila kantiana Nas palavras de
Barboza (2001 82) ldquoA negaccedilatildeo da Vontade diante da beleza realmente obedece a uma leitura do
conceito criacutetico de desinteresse Quando Kant diz que o belo eacute aquilo que satisfaz bdquosem nenhum
interesse‟ o autor de O mundo leu essa expressatildeo como equivalente da negaccedilatildeo do querer visto que
interesse e motivo satildeo conceitos intercambiaacuteveis [] e a vontade neutraliza-se desinteressa-se ou seja eacute
indeterminaacutevel por motivos na contemplaccedilatildeo da Ideacuteia do belordquo
61
espectador a renuacutencia a toda vontade O modelo exemplar da trageacutedia eacute para
Schopenhauer a trageacutedia cristatilde onde o heroacutei conscientemente abandona o querer e
conseguintemente a vida Na trageacutedia antiga havia somente a identificaccedilatildeo do
sofrimento humano e sua exposiccedilatildeo A renuacutencia agrave vontade de vida eacute caracteriacutestica das
trageacutedias posteriores ao advento cristatildeo Schopenhauer exemplifica O priacutencipe de
Calderoacuten Gretchen em Fausto A Donzela de Orleans a Noiva de Messina etc Assim
ldquotoda a exposiccedilatildeo traacutegica eacute para o espectador um chamado agrave resignaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo livre
da Vontade de vida Somente a eacutetica pode tornar tudo isso mais compreensiacutevelrdquo (MB
223) Vemos entatildeo de forma clara na teoria da trageacutedia de Schopenhauer um momento
onde ocorre a coalizatildeo dos fundamentos metafiacutesicos de sua filosofia do pessimismo
originado nestes fundamentos e da atitude eacutetica existente por traacutes de seu pensamento
25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera
Faz-se necessaacuterio aqui uma incursatildeo sobre a teoria da muacutesica de Schopenhauer
tendo em vista de que ela ocuparaacute um papel decisivo na teoria nietzscheana da trageacutedia
As relaccedilotildees que Nietzsche estabelece entre a muacutesica a vontade as palavras e
finalmente a trageacutedia satildeo delineadas como veremos pela metafiacutesica schopenhaueriana
da muacutesica No intuito de perceber estas relaccedilotildees propomos aqui um breve esboccedilo da
teoria da muacutesica na filosofia de Schopenhauer
A filosofia da muacutesica encontra seu lugar ao final do terceiro livro de MVR bem
como no capiacutetulo 39 dos complementos fechando assim as consideraccedilotildees de
Schopenhauer sobre a metafiacutesica do belo e as artes29
29
Na esteira de Lydia Goehr (Jacquette 1996 200) ressaltamos que tendo em vista a influecircncia que sua
filosofia da muacutesica exerceu sobre o pensamento artiacutestico e filosoacutefico posterior e comparada agrave dimensatildeo
de sua obra as consideraccedilotildees sobre a muacutesica ocupam um espaccedilo diminuto em sua obra
62
Para o filoacutesofo da vontade a muacutesica eacute a arte que pela natureza de seu objeto de
expressatildeo natildeo encontra lugar apropriado dentro do sistema das demais artes Estas
conforme sua competecircncia em traduzir uma determinada objetidade da vontade uma
ideacuteia satildeo classificadas hierarquicamente A muacutesica entretanto figura aleacutem desta
hierarquizaccedilatildeo pois representa o conceitualmente irrepresentaacutevel ldquoa coacutepia de um
modelo que ele mesmo nunca pode ser representado imediatamenterdquo(MVR 338) a
Vontade mesma Esta arte eacute especialmente considerada devido agrave peculiaridade uacutenica de
seu efeito esteacutetico ldquoeacute uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente
sobre o mais iacutentimo do homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele
como se fora uma linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do
mundo intuitivordquo (MVR 336) A muacutesica estaacute aleacutem da intuiccedilatildeo pois representa aquilo
que estaacute aleacutem desta forma agrave semelhanccedila das ideacuteias que satildeo objetivaccedilotildees imediatas da
vontade a muacutesica eacute tambeacutem uma destas objetivaccedilotildees representaccedilatildeo imediata da coisa
em si O que o compositor apresenta atraveacutes da muacutesica eacute a essecircncia mais iacutentima do
mundo em uma ldquolinguagem natildeo compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo
magneacutetico fornece informaccedilotildees sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito
algumrdquo (MVR 342) Por estar em um acircmbito inalcanccedilaacutevel pelo conceito a muacutesica
atraveacutes de sua linguagem arrebata o homem de forma mais marcante e direta e ateacute
mesmo a explanaccedilatildeo sobre a muacutesica estaacute condenada agrave pobreza e agrave insuficiecircncia Desta
forma o filoacutesofo se utilizaraacute de uma analogia para explanar sobre a muacutesica ie
procederaacute a uma explicaccedilatildeo da muacutesica atraveacutes de um paralelismo entre ela as ideacuteias e o
mundo enquanto objetivaccedilotildees da vontade
Esta analogia expressa atraveacutes de diversos exemplos leva em consideraccedilatildeo que
em suas duas formas de objetivaccedilatildeo (o mundo e a muacutesica) a Vontade deixa transparecer
semelhanccedilas Na muacutesica os tons mais graves aproximam-se ao que satildeo no mundo os
63
graus mais baixos de objetivaccedilatildeo da vontade quais sejam a natureza inorgacircnica A lei
da harmonia estabelece que os tons agudos satildeo originados daquele tom mais grave
fundamental Da mesma forma no mundo os corpos tecircm como fonte e sustentaacuteculo a
natureza inorgacircnica ldquoagrave partir da qual tudo se eleva e desenvolverdquo(MB 230) As vozes
intermediaacuterias da melodia que estatildeo entre o baixo fundamental e a voz condutora
correspondem no mundo aos demais graus de objetivaccedilatildeo da vontade na natureza ldquoAs
vozes mais proacuteximas do baixo correspondem aos graus mais baixos ou seja os corpos
ainda inorgacircnicos poreacutem jaacute se exteriorizando de diversas maneiras As vozes mais
elevadas por sua vez representam os reinos vegetal e animalrdquo(MB 231)
O objeto de representaccedilatildeo da muacutesica eacute a Vontade e esta por sua vez eacute
intraduziacutevel atraveacutes das palavras da configuraccedilatildeo racional pois a razatildeo natildeo pode
alcanccedilar sua profundidade Trata-se de ldquouma linguagem universal cuja
compreensibilidade eacute inata e cuja clareza ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo
(MB 228) Diante desta caracteriacutestica cognitiva a muacutesica natildeo deve se inspirar no texto
nas palavras a natildeo ser para ilustraacute-las e conceder-lhes assim significaccedilatildeo mais
profunda A muacutesica natildeo deve ser composta com base em conceitos ou em objetos e
ocorrecircncias do mundo pois trata-se de uma expressatildeo da ordem do essencial do
universal ldquoela eacute a alma mais interior dessas ocorrecircncias sem o corpordquo (MB 235) Os
objetos e situaccedilotildees do mundo satildeo manifestaccedilotildees e portanto sua representaccedilatildeo
conceitual satildeo reproduccedilotildees circunstanciais da essecircncia do mundo expressa pela muacutesica
Daiacute se compreende o fato de a muacutesica realccedilar em cada
pintura sim em cada cena da vida efetiva e do mundo o
aparecimento de uma significaccedilatildeo mais elevada e tanto mais
quanto mais anaacuteloga eacute sua melodia ao espiacuterito iacutentimo do
fenocircmeno dado A muacutesica combina com tudo em todas as
exposiccedilotildees Nada lhe pode ser estranho pois exprime a essecircncia
de todas as coisas Caso se soe uma muacutesica que combine com
alguma cena da vida humana ou da natureza destituiacuteda de
conhecimento ou com alguma accedilatildeo acontecimento ambiente ou
64
alguma imagem ndash entatildeo ela revela o sentido secreto dessa cena e eacute
seu comentaacuterio mais correto e claro (MB 235)
Esta caracteriacutestica que daacute agrave muacutesica um privileacutegio cognitivo sobre as demais formas
artiacutesticas eacute o que delineia as consideraccedilotildees do filoacutesofo sobre a oacutepera30
A oacutepera ideal eacute
portanto aquela onde o livreto estaacute para a muacutesica como um exemplo para um conceito
geral A muacutesica tem a funccedilatildeo de expor ldquoo profundo e misterioso sobre a essecircncia
iacutentimardquo daquilo que a palavra exemplifica O compositor que maior ecircxito conseguiu
neste sentido conforme o filoacutesofo foi Rossini cuja ldquomuacutesica fala tatildeo distinta e
puramente a sua linguagem PROacutePRIA visto que quase natildeo precisa de palavras e por
conseguinte provoca todo o seu efeito mesmo se executada soacute com instrumentosrdquo
(MVR 344)
Vemos entatildeo a muacutesica como a mais profunda das artes cujo efeito eacute o mais
avassalador e que portanto quando conjugada com outras formas de expressatildeo como a
oacutepera deve formar a base e orientar a sua elaboraccedilatildeo Entretanto ao contraacuterio da
trageacutedia cujo fim eacute o estiacutemulo agrave renuacutencia da vontade de viver a muacutesica segundo a
metafiacutesica exposta por Schopenhauer ldquonatildeo faz mais do que agradar a vontade de viver
jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo seus ecircxitos e ao final expressa sua
satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509)
30
ldquoAo adotar esta atitude Schopenhauer transtorna toda a tradiccedilatildeo jaacute secular que havia afirmado natildeo
poucas vezes desde os tempos do nascimento da oacutepera o predomiacutenio da palavra sobre a muacutesica e em
consequumlecircncia a subordinaccedilatildeo desta uacuteltima agrave primeirardquo (Fubini 1988 289)
65
3 A teoria da trageacutedia do Jovem Nietzsche
Debalde espreitamos por uma raiz
vigorosamente ramificada por um pedaccedilo
de terra sadia e feacutertil por toda parte poacute
areia rigidez consunccedilatildeo Aqui um
solitaacuterio desconsolado natildeo poderia escolher
melhor siacutembolo do que o Cavaleiro com a
Morte e o Diabo como Duumlrer o desenhou o
cavaleiro arnesado com o olhar duro
brocircnzeo que sabe tomar o seu caminho
assustador imperturbado por seus
hediondos companheiros e natildeo obstante
desesperanccedilado sozinho com o seu corcel e
o seu catildeo Um tal cavaleiro duumlreriano foi
nosso Schopenhauer faltava-lhe qualquer
esperanccedila mas queria a verdade Natildeo haacute
quem se lhe iguale
(Nietzsche)
Neste capiacutetulo procuraremos apontar primeiramente o modo pelo qual se deu o
encontro entre Nietzsche e a filosofia de Schopenhauer Em um segundo momento
percorreremos o desenvolvimento histoacuterico das produccedilotildees nietzscheanas que
culminaram com a publicaccedilatildeo da obra que caracteriza o primeiro periacuteodo do filoacutesofo
qual seja O nascimento da trageacutedia a partir do espiacuterito da muacutesica Concluiremos entatildeo
apresentando um esboccedilo desta obra dando ecircnfase em todos os momentos aos
66
elementos que caracterizam sua teoria da trageacutedia especialmente agravequeles relacionados agrave
metafiacutesica schopenhaueriana da vontade
31 Schopenhauer e o jovem Nietzsche uma breve contextualizaccedilatildeo histoacuterica
Foram nos anos de universidade em Leipzig que Nietzsche se deparou com a
filosofia de Schopenhauer Este periacuteodo entre os anos de 1865 e 1869 eacute especialmente
importante devido ao fato de que nele podemos assistir ao surgimento de alguns
aspectos fundamentais ao projeto filosoacutefico de Nietzsche Janz descreve este periacuteodo
como aquele em que o filoacutesofo estabeleceu ldquoseus encontros espirituais determinantes a
partir dos quais se defrontou consigo mesmo e com sua tarefardquo(1987 151)
O primeiro contato do jovem Nietzsche com o mundo schopenhaueriano deu-se
em meados de outubro de 1865 pouco tempo apoacutes sua chegada a Leipzig O
arrebatamento causado no jovem estudante de filologia pelo encontro com a filosofia
schopenhaueriana eacute descrito por ele apoacutes dois anos da seguinte maneira
Sentia-me naquela eacutepoca desorientado solitaacuterio sem
princiacutepios sem esperanccedilas inconsolado e com algumas
experiecircncias dolorosas e decepccedilotildees Construir uma vida proacutepria e
adequada era para mim uma aspiraccedilatildeo que me ocupava da manhatilde
ateacute a noite No feliz apartamento em que vivia procurava
concentrar-me a mergulhar em mim mesmo e quando me
encontrava com amigos estes eram sempre Mushacke e Von
Gersdorff os quais por sua parte alentavam objetivos muito
semelhantes aos meus Creio que natildeo seraacute difiacutecil imaginar a
impressatildeo que nesta situaccedilatildeo me causou a leitura da obra
principal de Schopenhauer Encontrei um dia este livro no sebo do
velho Rohm Ignorando tudo sobre ele o tomei em minhas matildeos e
me pus a folheaacute-lo Natildeo sei que democircnio me sussurrou bdquoleve este
livro para a casa‟ Aconteceu de compraacute-lo apesar do meu usual
costume de natildeo me precipitar na compra de livros Uma vez em
casa num canto do sofaacute me lancei sobre o tesouro receacutem
adquirido e comecei a deixar que aquele gecircnio eneacutergico e sombrio
influiacutesse sobre mim Em cada linha sua gritava a renuacutencia
negaccedilatildeo resignaccedilatildeo tinha diante de mim um espelho no qual
podia contemplar o mundo a vida e meu proacuteprio acircnimo com uma
67
grandeza deprimente Um espelho desde o qual o olho solar da
arte me mirava desde sua absoluta falta de interesse Vi
enfermidade e cura desterro e refuacutegio inferno e paraiacuteso A
necessidade de autoconhecimento inclusive de auto-
experimentaccedilatildeo apoderou-se de mim com forccedila indomaacutevel
provas daquela mutaccedilatildeo profunda satildeo hoje todavia para mim as
paacuteginas desassossegadas e melancoacutelicas do diaacuterio que agravequela
eacutepoca escrevi com suas auto-acusaccedilotildees inuacuteteis e sua desesperada
busca de salvaccedilatildeo e reconstruccedilatildeo do inteiro nuacutecleo humano Na
medida em que propus a submeter todas as minhas caracteriacutesticas
e aspiraccedilotildees ao tribunal de uma sombria auto-depreciaccedilatildeo minha
atitude estava cheia de amargura possuiacuteda de um oacutedio injusto e
desenfreado contra mim mesmo Nem sequer renunciei agraves
mortificaccedilotildees corporais Obriguei-me com efeito durante
quatorze dias seguidos a deitar-me agraves duas da noite e acordar agraves
seis da manhatilde Uma excitaccedilatildeo nervosa muito singular se apoderou
assim de mim e quem sabe ateacute que grau de loucura haveria
chegado se natildeo tivesse modificado frente agravequele estado de
acircnimo os atrativos da vida da vaidade e o imperativo de retornar
a meus estudos regulares (conforme citaccedilatildeo de Janz 1987 158)
Da citaccedilatildeo podemos inferir a mudanccedila de acircnimo que o encontro com
Schopenhauer provocou A partir daquele momento diversas correspondecircncias datildeo-nos
ainda informaccedilotildees do impacto que a filosofia de Schopenhauer provocou na concepccedilatildeo
de mundo do jovem estudante Em algumas destas correspondecircncias vemos transparecer
a influecircncia atraveacutes da frequumlente utilizaccedilatildeo de um vocabulaacuterio schopenhaueriano bem
como das ideacuteias nelas expressas Assim acontece em carta enviada agrave sua matildee e irmatilde
datada de 5 de novembro de 1865 onde ao discorrer acerca da frivolidade da vida
humana o jovem Nietzsche conclui utilizando-se dos argumentos propostos pela eacutetica
schopenhaueriana
Existem dois caminhos ou se esforccedila e se acostuma a ser
o mais limitado que se possa e uma vez que se reduz o maacuteximo
possiacutevel a luz do espiacuterito se busque bens de fortuna e se viva com
os prazeres do mundo ou por outro lado se sabe que a vida eacute
miseraacutevel se sabe que somos seus escravos tanto mais quanto
mais procuramos dela gozar e por tanto se desprende dos bens da
vida exercita a sobriedade e se eacute austero consigo mesmo e cordial
com os demais ndash e isto porque sente compaixatildeo pelos
companheiros de miseacuteria ndash em uma palavra se vive de acordo
68
com as rigorosas exigecircncias do cristianismo primitivo (OC
470)
Vemos ainda em carta a Mushacke em 12 de julho de 1866 o impacto que a
interpretaccedilatildeo schopenhaueriana pessimista de mundo causou em Nietzsche ldquoDesde que
Schopenhauer nos retirou dos olhos a venda do otimismo as coisas satildeo percebidas
mais agudamente A vida eacute mais interessante ainda que mais feiardquo (conforme citaccedilatildeo
de Janz 1987 172) Percebemos tambeacutem a linguagem schopenhaueriana na descriccedilatildeo
dos momentos de contemplaccedilatildeo Eacute o caso da carta datada de 07 de abril de 1866 a
Gersdorf onde Nietzsche descreve seu estado que nos remeteraacute agrave contemplaccedilatildeo
artiacutestica na filosofia de Schopenhauer ao discorrer sobre os dias de veratildeo ldquo[] a
natureza se faz perfeita e noacutes tambeacutem entatildeo nos sentimos livres do poderio da vontade
sempre alerta e somos olho puro intuitivo desinteressadordquo (OC 472)
Estas influecircncias nortearam de forma definitiva as produccedilotildees acadecircmicas de
Nietzsche mesmos suas pesquisas filoloacutegicas A concepccedilatildeo traacutegica do mundo tornou-se
um feixe condutor para as reflexotildees do jovem filoacutelogo Seus companheiros no estudo da
obra de Schopenhauer eram Gersdorff e Mushacke Em carta agrave sua matildee de 01 de
fevereiro de 1866 Nietzsche deixa saber sobre a frequumlecircncia dos estudos ldquoCom
Gersdorff me encontro uma noite por semana para ler grego a cada duas semanas me
reuacuteno com ele e com Mushacke e nos entregamos a Schopenhauer Este filoacutesofo ocupa
uma posiccedilatildeo importante em meus pensamentos e estudos e meu respeito por ele cresce
incomparavelmenterdquo (OC 471) Se o conteuacutedo da filosofia schopenhaueriana foi
absorvido intensamente pelo jovem Nietzsche como podemos ver a partir dos trechos
transcritos acima a forma estiliacutestica tambeacutem se configura como preocupaccedilatildeo Em um
periacuteodo onde as pesquisas acadecircmicas exigiam o esforccedilo da escrita ali tambeacutem a
autoridade das regras schopenhauerianas exibia sua feiccedilatildeo Eacute tambeacutem em uma carta a
69
Gersdorff datada de 06 de abril de 1867 onde Nietzsche expotildee sua preocupaccedilatildeo com o
estilo
Nestas divagaccedilotildees quero redigir meu trabalho sobre as
fontes de Dioacutegenes Laeacutercio e estou todavia no iniacutecio Para seu
regozijo confessarei que o que mais me daacute trabalho eacute meu estilo
em alematildeo Agora me caem os veacuteus dos olhos e vejo que
durante muito tempo vivi em estado de inocecircncia estiliacutestica O
imperativo categoacuterico bdquodeves escrever‟ me foi despertado[] nos
ouvidos me soavam todos os preceitos estiliacutesticos de Lessing de
Lichtenberg e de Schopenhauer Meu uacutenico consolo eacute que estas
trecircs autoridades afirmavam unanimemente que eacute difiacutecil escrever
bem que por natureza ningueacutem tem um bom estilo e que haacute que
trabalhar e trabalhar para consegui-lo (OC 476)
Entretanto apesar do profundo arrebatamento causado pela filosofia de
Schopenhauer que fez com que o universo das preocupaccedilotildees do entatildeo jovem Nietzsche
se fundamentasse nos pressupostos da metafiacutesica schopenhaueriana outros elementos
tambeacutem fundamentais para o pensamento futuro do filoacutesofo foram tambeacutem neste
periacuteodo despertados Como apontam Dias (2009 42) Janaway (2007 16) e Lopes
(2008 27) jaacute neste periacuteodo que podemos tratar como um periacuteodo de despertar para o
pensamento filosoacutefico encontraacutevamos os elementos que a partir de Humano demasiado
humano conformaratildeo a criacutetica nietzscheana agrave filosofia de Schopenhauer Os
comentadores citados chamam a atenccedilatildeo para o fato de que embora nas obras
publicadas de Nietzsche possamos assistir a criacuteticas diretas a Schopenhauer somente
apoacutes Humano demasiado humano tais criacuteticas agrave filosofia schopenhaueriana surgiram
em um momento imediatamente posterior agrave descoberta da metafiacutesica da vontade Rosa
Maria Dias chama a atenccedilatildeo para os fragmentos poacutestumos e para a correspondecircncia que
agrave partir de 1867 trazem algumas criacuteticas agrave metafiacutesica da vontade Rogeacuterio Lopes e
Cristopher Janaway apontam que algumas destas criacuteticas estatildeo embasadas nas leituras
que o jovem Nietzsche fez de Friedrich A Lange Rudolf Haym Kuno Fischer dentre
outros Tais criacuteticas contudo natildeo afastaram o jovem Nietzsche do discipulado
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schopenhaueriano mas transformaram sua aceitaccedilatildeo do sistema da vontade No lugar de
uma defesa da consistecircncia loacutegica do sistema Nietzsche passou a adotar uma postura de
defesa da bdquonatureza edificante‟ e preponderantemente artiacutestica deste sistema Exemplos
desta postura podem ser encontrados tambeacutem na correspondecircncia daquele periacuteodo
Para escrever uma apologia a Schopenhauer eu tenho
unicamente que considerar o fato de que olho esta vida livre e
bravamente diante do fato de que encontrei um suporte para me
apoiar obviamente que isto natildeo eacute mais que uma apologia
totalmente individual Mas eacute como as coisas satildeo Se algueacutem
deseja refutar Schopenhauer para mim atraveacutes de argumentos
racionais murmuro em seu ouvido bdquoporeacutem meu amigo visotildees de
mundo natildeo satildeo criadas nem destruiacutedas pela loacutegica‟ (carta a
Deussen Outubro-Novembro de 1867 citada por Janaway
(200718))
Ou ainda em carta a Gersdorff onde apoacutes apresentar a criacutetica de Lange agrave metafiacutesica da
vontade Nietzsche conclui contra Haym ainda com os argumentos de Lange
Natildeo apenas a verdadeira essecircncia das coisas a coisa em si
eacute desconhecida para noacutes tambeacutem seu conceito eacute nada mais nada
menos que o uacuteltimo rebento de um contraste condicionado por
nossa organizaccedilatildeo do qual natildeo sabemos se conserva algum
significado fora de nossa experiecircncia Disso resulta pensa Lange
que os filoacutesofos natildeo devem ser importunados na medida em que
nos edificam A arte eacute livre tambeacutem na regiatildeo dos conceitos
Quem pretenderia refutar uma frase de Beethoven e acusar de erro
uma Madonna de Rafael Como vocecirc pode perceber o nosso
Schopenhauer resiste mesmo a este mais rigoroso ponto de vista
criacutetico ele se torna quase ainda mais valioso para noacutes Se filosofia
eacute arte entatildeo que Haym se anule diante de Schopenhauer se a
filosofia deve edificar entatildeo eu pelo menos natildeo conheccedilo nenhum
filoacutesofo que edifique mais do que nosso Schopenhauer (apud
Lopes 2008 86-87)
Vimos ateacute entatildeo que a descoberta de Schopenhauer provocou no jovem
estudante de filologia transformou sua forma de perceber o mundo e o influenciou de
forma definitiva a ponto de fazer com que Nietzsche se definisse como um seguidor e
divulgador da obra schopenhaueriana Contudo eacute no fim de seus anos de estudo em
Leipzig que o disciacutepulo de Schopenhauer iraacute se defrontar com a personalidade que lhe
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reforccedilaraacute de forma ainda mais contundente o selo da rotunda schopenhaueriana
Richard Wagner
Foi atraveacutes de seu amigo Brockhaus cuja esposa era irmatilde do muacutesico que em
novembro de 1868 Nietzsche encontrou-se pela primeira vez com Wagner A partir
daquele encontro se estabeleceria um relacionamento que de uma forma ou de outra
marcaraacute Nietzsche pelo resto de sua vida Em uma carta a seu amigo Erwin Rohde
Nietzsche descreve o primeiro encontro e sua perplexidade ao encontrar em Wagner um
admirador de Schopenhauer ldquo[]mantive com ele uma longa conversa sobre
Schopenhauer Ah Compreenderaacutes minha felicidade em ouvir-lhe falar com um
entusiasmo completamente indescritiacutevel ao qual ele agradecia como Schopenhauer
era o uacutenico filoacutesofo que havia compreendido a essecircncia da muacutesicardquo (Correspondecircncia
2007 21) A impressatildeo deste encontro eacute tambeacutem claramente visiacutevel atraveacutes de
correspondecircncia endereccedilada ao proacuteprio Wagner em maio de 1869 ldquoVeneradiacutessimo
senhor quanto tempo tive a intenccedilatildeo de lhe manifestar sem nenhuma timidez o grau de
gratidatildeo que sinto em relaccedilatildeo ao senhor pois realmente os melhores e mais elevados
momentos de minha vida se ligam ao seu nome e eu soacute conheccedilo mais um homem aleacutem
disso seu grande irmatildeo em espiacuterito Arthur Schopenhauer em quem penso com a
mesma veneraccedilatildeo ateacute senso religiosordquo (Correspondecircncia 2007 56) Como podemos
ver a pessoa de Wagner eacute associada agrave de Schopenhauer Esta associaccedilatildeo tornar-se-aacute
uma constante e poderaacute ser identificada ainda na fase tardia onde as criacuteticas a estes
pensadores e ao que eles entatildeo representavam se daraacute de forma inter-relacionada Este
primeiro encontro com Wagner conforme Janz (1987 22) foi um dos principais
motivos que levaram Nietzsche a aceitar em detrimento de outros planos que
formulava assumir a caacutetedra de filologia em Basel A proximidade de Tribschen
residecircncia dos Wagner e a possibilidade de uma convivecircncia com o muacutesico o
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inspiraram E assim aconteceu Ao mudar-se para Basel pocircde desfrutar de uma
convivecircncia constante com o casal Wagner Desde a chegada de Nietzsche ateacute a
mudanccedila de Wagner em 1872 encontravam-se com muita frequumlecircncia e os assuntos que
pautavam tais encontros eram amiuacutede arte muacutesica a literatura claacutessica e a filosofia de
Schopenhauer Wagner tornar-se-ia para Nietzsche a personificaccedilatildeo do gecircnio
schopenhaueriano aquele capaz de atraveacutes da muacutesica expor a essecircncia do mundo No
projeto wagneriano de ldquoarte totalrdquo Nietzsche pocircde vislumbrar a uniatildeo entre muacutesica e
filosofia e satisfazer assim em certa medida as expectativas oriundas da metafiacutesica da
vontade
32 O projeto subjacente ao Nascimento da Trageacutedia
Eacute famosa a passagem onde Nietzsche em carta a Deussen datada de janeiro de
1870 informa sobre seu estado de espiacuterito ldquo Ciecircncia arte e filosofia crescem agora
juntas em mim e de tal modo que um dia haverei de parir centaurosrdquo (Janz 1981 66)
Esta afirmaccedilatildeo eacute ilustrativa no que se refere ao ambiente onde o Nascimento da trageacutedia
foi gerado Podemos identificar claramente as figuras por detraacutes dos termos filosofia
arte e ciecircncia satildeo elas Schopenhauer Wagner e a filologia claacutessica Neste periacuteodo
Nietzsche entatildeo jovem professor de filologia estava imbuiacutedo pela pretensatildeo de poder
unir os estudos filoloacutegicos aos filosoacuteficos Sua preleccedilatildeo inicial Homero e a filologia
claacutessica em Basel nos daacute uma amostra desta pretensatildeo Ali podemos assistir a uma
aproximaccedilatildeo entre filologia e filosofia atraveacutes da proposta de uma leitura filosoacutefica do
mundo antigo ldquoCom isto quero expressar que toda atividade filoloacutegica deve estar
impregnada de uma concepccedilatildeo filosoacutefica do mundo na qual todo o particular e singular
seja visto como algo sem proveito e soacute permaneccedila de peacute a unidade do todordquo (OC 26)
73
Sua escolha por trilhar caminhos mais proacuteximos agrave filosofia pode tambeacutem ser observada
pela tentativa frustrada de ocupar uma cadeira desta disciplina que se mostrou livre em
janeiro de 1871 Se por um lado podemos diagnosticar certa decepccedilatildeo e ateacute um
determinado desacircnimo na atividade acadecircmica por outro lado os laccedilos com os Wagner
se estreitavam cada vez mais No refuacutegio de Tribschen sob a aura de Richard Wagner
Nietzsche discorria sobre o mundo grego enquanto modelo de cultura e ouvia os planos
wagnerianos sobre seu projeto de uma obra de arte total Como pano de fundo destas
discussotildees a metafiacutesica da muacutesica schopenhaueriana e sua concepccedilatildeo traacutegica do mundo
Eacute em torno destes eixos formadores que vemos se materializar a primeira publicaccedilatildeo de
Nietzsche
O desenvolvimento das ideacuteias que formaratildeo a obra contudo se deu de forma
gradual Ao longo do periacuteodo compreendido entre a chegada de Nietzsche a Basel e a
publicaccedilatildeo de seu livro determinados trabalhos deixam transparecer o delineamento de
algumas das ideacuteias centrais da obra Satildeo eles O drama musical grego Soacutecrates e a
trageacutedia A visatildeo dionisiacuteaca do mundo e Introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles31
Em o drama musical grego conferecircncia puacuteblica datada de janeiro de 1870
Nietzsche efetua uma comparaccedilatildeo entre a arte traacutegica da antiguidade e as oacuteperas
modernas Estas de acordo com o filoacutesofo satildeo uma imperfeita ldquocaricatura do drama
musical antigordquo (VD 48) Muacutesica pintura escultura e poesia formavam um todo na
arte traacutegica da antiguidade Nas artes modernas por sua vez as formas artiacutesticas satildeo
fragmentadas fato que dificulta o entendimento da trageacutedia grega e que causaria
espanto ao apreciador de arte moderno A muacutesica teria para a trageacutedia antiga uma
31
Como ressaltam M S Silk e J P Stern em sua obra Nietzsche on tragedy (1981 59) o nascimento da
trageacutedia eacute composto de forma estrutural pelos conceitos encontrados nestes trabalhos O iniacutecio do livro
(sectsect1-10) eacute substancialmente baseado no ensaio a visatildeo dionisiacuteaca do mundo enquanto a sequumlecircncia
composta pelos paraacutegrafos 5 e 6 estaacute mais proacutexima da introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles O trecho
composto pelos paraacutegrafos 11 a 14 pode ser derivado diretamente da leitura Soacutecrates e a trageacutedia O resto
do livro eacute formado por uma amaacutelgama destes escritos Partes dispersas ainda satildeo formadas pelo ensaio do
drama musical grego
74
importacircncia capital como elemento intensificador de seu efeito Podemos ver a intenccedilatildeo
por traacutes da anaacutelise nietzscheana da trageacutedia antiga em comparaccedilatildeo agrave opera Ao final da
conferecircncia no elogio que confere a Wagner o tiacutetulo de ldquoatual reformador da arterdquo bem
como na descriccedilatildeo de seu projeto de arte total retratado como um acontecimento que jaacute
teve lugar na trageacutedia da antiguidade claacutessica Nietzsche deixa claro seu engajamento ao
projeto wagneriano
No mecircs seguinte ao da citada conferecircncia uma segunda intitulada Soacutecrates e a
trageacutedia foi proferida por Nietzsche O assunto em pauta era a morte repentina da
trageacutedia grega Esta morte teria ocorrido pelas matildeos de Euriacutepides apoacutes uma decadecircncia
iniciada nos uacuteltimos periacuteodos das produccedilotildees de Eacutesquilo passando por Soacutefocles e
culminando com o advento da comeacutedia Tal decadecircncia teria sido provocada pela saiacuteda
de cena da muacutesica que de forma progressiva foi substituiacuteda pelo diaacutelogo racionalista
Soacutecrates ocupa aqui um lugar importante Eacute sua influecircncia sobre Euriacutepides que
transforma de uma forma definitiva a arte instintivamente musical da trageacutedia em uma
manifestaccedilatildeo do discurso eacutetico racionalista Esta ldquoesteacutetica racionalista e conscienterdquo
pode ser identificada no proacutelogo euripidiano e na inserccedilatildeo do deus ex machina
enquanto agentes de racionalizaccedilatildeo da obra artiacutestica A trageacutedia de Euriacutepides teria
assumido assim os pressupostos do racionalismo socraacuteticos ldquoVirtude eacute saber peca-se
somente por ignoracircncia O virtuoso eacute felizrdquo (VD 90) Esta assunccedilatildeo que liga a virtude
ao saber impotildee agrave trageacutedia um caraacuteter eacutetico alheio agrave sua caracteriacutestica puramente
esteacutetica O elemento culpa na dialeacutetica socraacutetica toma o lugar que era ocupado pela
compaixatildeo Jaacute podemos perceber nesta conferecircncia o esboccedilo da dicotomia que mais
tarde seraacute ilustrada atraveacutes dos deuses Apolo e Dioniso Os pares formadores da
dicotomia satildeo aqui expressos pela separaccedilatildeo entre instinto e razatildeo muacutesica e discurso
pessimismo e otimismo arte e ciecircncia
75
Temos a primeira referecircncia agrave arte dionisiacuteaca como impulso formador da
trageacutedia e sua contraposiccedilatildeo agrave arte apoliacutenea nas aulas proferidas por Nietzsche no veratildeo
daquele mesmo ano Neste curso sobre a trageacutedia de Soacutefocles do qual temos a
introduccedilatildeo podemos ver o esforccedilo de Nietzsche em caracterizar e apontar as
peculiaridades da trageacutedia da antiguidade que a tornam um fenocircmeno uacutenico em
comparaccedilatildeo agraves trageacutedias modernas Tal discussatildeo demonstraraacute pelos aspectos ali
expostos a aproximaccedilatildeo de Nietzsche com autores do periacuteodo claacutessico alematildeo e
sobretudo da chamada querela entre antigos e modernos Vemos claramente a influecircncia
de Schiller e F A Schlegel em algumas das definiccedilotildees adotadas por Nietzsche
No texto denominado A visatildeo dionisiacuteaca do mundo jaacute podemos assistir a um
desenvolvimento das duas pulsotildees artiacutesticas que satildeo o nuacutecleo da interpretaccedilatildeo
nietzscheana da trageacutedia O apoliacuteneo e o dionisiacuteaco satildeo ali explicados no acircmbito de seu
surgimento no mundo helecircnico e simbolizam a uniatildeo entre verdade e beleza na forma de
arte traacutegica Sua descriccedilatildeo como veremos abaixo estaacute permeada de conceitos retirados
da filosofia schopenhaueriana que vatildeo desde a biparticcedilatildeo do mundo entre verdade e
aparecircncia perpassam as noccedilotildees de belo e sublime e apontam a trageacutedia e a muacutesica como
forma de arte superiores
Em janeiro de 1872 Nietzsche daacute luz a seu ldquoCentaurordquo sob o nome O nascimento
da trageacutedia atraveacutes do espiacuterito da muacutesica Em carta a Rohde datada de 23 de novembro
de 1871 podemos notar atraveacutes da ansiosa expectativa nietzscheana a amaacutelgama
formadora da obra ldquo Temo sempre que os filoacutelogos natildeo o queiram ler por causa da
muacutesica os muacutesicos por causa da filologia e os filoacutesofos por causa da muacutesica e da
filologia e sinto logo medo e compaixatildeo de mim mesmordquo (Correspondecircncia 2007 237)
33 A teoria da trageacutedia publicada
Como escopo geral da primeira obra de Nietzsche podemos dizer na esteira de
Silk e de Stern (1981 52) que ela se propunha a esclarecer o problema do nascimento e
76
da morte da trageacutedia helecircnica Trageacutedia que por sua vez era a expressatildeo artiacutestica que
simbolizava um problema vital o de que sob uma superfiacutecie bela podiacuteamos ter acesso agrave
terriacutevel profundidade do ser Tal forma de arte poderia novamente vir agrave luz por uma
geraccedilatildeo criativa que ao combater a superficialidade moderna que reinava no mundo
germacircnico poderia produzir o renascimento moderno do mundo Helecircnico
Em sua essecircncia o nascimento da trageacutedia aponta para as divindades Apolo e
Dioniacutesio como ldquorepresentantes vivosrdquo de princiacutepios diacutespares que irrompem da proacutepria
natureza e que ao serem conciliados de certa forma tornaram possiacutevel que atraveacutes dos
atritos de tal uniatildeo a trageacutedia grega despontasse como manifestaccedilatildeo artiacutestica exemplar
do sublime Em linhas gerais a arte do ldquofigurador plaacutesticordquo estaria entatildeo associada ao
deus Apolo enquanto a arte ldquonatildeo figuradardquo a da muacutesica estaria associada ao deus
Dioniacutesio O apoliacuteneo eacute um impulso da vontade grega que ao almejar a vida a apresenta
transfiguradamente como um belo sonho plasmado no mundo dos deuses oliacutempicos O
princiacutepio apoliacuteneo seria aquele que estabeleceria a ordem a beleza estaacutetica e a clareza
dos limites O dionisiacuteaco eacute oriundo das festas do oriente e seu efeito eacute comparado ao da
embriaguecircs A ele cabe a sabedoria profunda da essecircncia da vida lugar do acaso do
impermanente do horriacutevel e do sofrimento A Apolo eacute facultado tecer o veacuteu que
encobre a sabedoria dionisiacuteaca e torna a vida suportaacutevel atraveacutes da ilusatildeo do sonho
Assim segundo Nietzsche o desenvolvimento contiacutenuo da arte estaacute vinculado agrave
duplicidade dos princiacutepios apoliacuteneo e dionisiacuteaco Perfazendo um caminho histoacuterico da
cultura grega podemos notar uma sobreposiccedilatildeo intermitente entre os impulsos divinos
Temos momentos onde o impulso apoliacuteneo se mostrou dominante e outros onde
Dioniacutesio recupera seu predomiacutenio O mundo oliacutempico homeacuterico com sua arte eacutepica e
sua escultura do periacuteodo doacuterico nascem a partir de uma necessidade de redenccedilatildeo para a
realidade de horror e sofrimento que o povo helecircnico presenciava Em substituiccedilatildeo ao
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mundo titacircnico temos o mundo dos deuses oliacutempicos exemplificadores de uma
existecircncia divinizada que exalta a vida Nas palavras de Nietzsche ldquoo grego conheceu
e sentiu os temores e os horrores do existir para que lhe fosse possiacutevel de algum modo
viver teve de colocar ali entre ele e a vida a resplendente criaccedilatildeo oniacuterica dos deuses
oliacutempicosrdquo (NT 36) Entretanto a sabedoria dionisiacuteaca portadora da visatildeo abismal do
ser natildeo pocircde ser contida por muito tempo e a muacutesica veiacuteculo da uniatildeo orgiaacutestica aos
poucos foi se infiltrando no mundo construiacutedo pelo divino Apolo Os gregos foram se
tornando conscientes de seu estado sonambuacutelico que sob a graccedila do deus Apolo enleva
e transporta pela extraordinaacuteria beleza natural ou esteacutetica Em um estado semelhante ao
do indiviacuteduo que restabelecido em suas forccedilas pelo efeito renovador do sono ao findar
de uma noite comeccedila a ouvir os sons a sua volta e aos poucos vai se despertando da
mesma forma os gregos comeccedilaram novamente a ouvir o sussurro do Sileno
companheiro de Dioniacutesio ldquoo melhor de tudo eacute para ti inteiramente inatingiacutevel natildeo ter
nascido e natildeo ser nada ser Depois disso poreacutem o melhor para ti eacute logo morrerrdquo
(NT 36) O artista que representa este retorno do dionisiacuteaco com a mesma envergadura
com que Homero representa as forccedilas apoliacuteneas eacute Arquiacuteloco Tomando-o como modelo
do gecircnio liacuterico Nietzsche faz uma descriccedilatildeo de seu processo de criaccedilatildeo Conforme a
metafiacutesica esteacutetica adotada por Nietzsche - que mais agrave frente veremos ser retirada da
esteacutetica schopenhaueriana - toda arte tem que ser objetiva livre dos interesses
individuais Nesta situaccedilatildeo a liacuterica que tem como objeto o eu do poeta seus desejos e
emoccedilotildees natildeo seria uma forma de arte Entretanto atraveacutes de uma descriccedilatildeo que Schiller
faz da inspiraccedilatildeo poeacutetica Nietzsche aponta o caminho para percebermos a liacuterica como
obra de arte e portanto objetivamente Conforme a passagem de Schiller citada por
Nietzsche (NT 44) ldquoo sentimento se me apresenta no comeccedilo sem um objeto claro e
determinado este soacute se forma mais tarde Uma certa disposiccedilatildeo musical de espiacuterito
78
vem primeiro e somente depois eacute que se segue em mim a ideacuteia poeacuteticardquo Desta forma
Arquiacuteloco em seu processo criativo a princiacutepio entraria em um estado de consciecircncia
ou de criaccedilatildeo onde renunciaria agrave sua individualidade e dionisiacamente participaria do
uno-primordial ldquoabismo do serrdquo estado que por sua vez materializa-se atraveacutes da
representaccedilatildeo musical A muacutesica assim produzida seraacute condiccedilatildeo para o surgimento da
inspiraccedilatildeo que a posteriori daraacute nascimento atraveacutes da aplicaccedilatildeo das formas
apoliacuteneas agrave poesia liacuterica geacutermen da trageacutedia e dos ditirambos dramaacuteticos Esta uniatildeo da
poesia liacuterica com a muacutesica eacute uma expressatildeo sinteacutetica da relaccedilatildeo dos deuses Apolo e
Dioniacutesio Eacute no quinto capiacutetulo de sua obra que Nietzsche iraacute tratar da poesia liacuterica
Neste capiacutetulo o filoacutesofo se distancia de Schopenhauer em sua interpretaccedilatildeo do
fenocircmeno liacuterico Para Schopenhauer na citaccedilatildeo reproduzida por Nietzsche (NT 46) a
liacuterica eacute produzida atraveacutes de uma percepccedilatildeo da consciecircncia onde os estados da vontade
individualizada se alternam com o conhecimento objetivo Como vimos o poeta liacuterico
assistiria ao jogo do eu em sua afetaccedilatildeo emocional e descreveria este estado atraveacutes de
sua poesia Nietzsche ao descrever a liacuterica utiliza-se da teoria da muacutesica
schopenhaueriana qual seja o poeta liacuterico produz primeiramente a muacutesica como forma
geral de expressatildeo da vontade mesma e desta produccedilatildeo gera posteriormente o texto que
se torna um exemplificador do evento musical sua forma plaacutestica objetiva A muacutesica eacute
a aparecircncia da vontade e as imagens apoliacuteneas que dela se originaram satildeo conforme seu
espiacuterito A imagem e o conceito satildeo desta forma na liacuterica originados a partir da
muacutesica
Tem-se portanto na trageacutedia grega uma relaccedilatildeo de interdependecircncia que evoca
um aparente paradoxo ndash ou seja ao lado da necessidade esteacutetica da beleza Apolo exige
dos seus a medida (limites fronteiras do indiviacuteduo presentes no ldquonada em demasiardquo) e
o auto-conhecimento necessaacuterio para determinaacute-la (ldquoconhece-te a ti mesmordquo) o
79
desmedido os excessos o dionisiacuteaco seriam identificados pelo apoliacuteneo como
democircnios de uma era preacute-apoliacutenea era dos Titatildes reminiscecircncias de barbarismo O
paradoxo estaacute em que para que o comedimento apoliacuteneo possa existir o desmedido
dionisiacuteaco faz-se necessaacuterio (na linguagem de Nietzsche como ldquosubstratordquo) assim
como para que o desmedido dionisiacuteaco possa existir faz-se necessaacuterio a existecircncia do
comedido do apoliacuteneo Natildeo obstante a trageacutedia grega depende da conjugaccedilatildeo destes
dois princiacutepios para existir ndash indo aleacutem poder-se-ia dizer que a proacutepria muacutesica compotildee
o princiacutepio primeiro que possibilita o surgimento da trageacutedia no jogo das formas
apoliacuteneo A trageacutedia eacute entatildeo definida como ldquoo coro dionisiacuteaco a descarregar-se sempre
de novo em um mundo de imagens apoliacuteneordquo (NT 60)
Em seu iniacutecio a trageacutedia grega era representada pelo coro traacutegico Este coro natildeo
era uma ldquorepresentaccedilatildeo constitucional do povordquo muito menos um espectador ideal
como o queria August Schlegel Nietzsche acompanha Schiller na definiccedilatildeo de que o
coro cria um terreno ideal para a manifestaccedilatildeo da arte O efeito da trageacutedia eacute a
manifestaccedilatildeo de um estado de unidade que transporta ao abismo do ser O coro eacute a
manifestaccedilatildeo deste sentimento da consciecircncia de que por traacutes da vida cotidiana haacute uma
realidade ldquoindestrutivelmente poderosa e cheia de alegriardquo (NT 55) Este eacute o consolo
metafiacutesico propiciado pela arte traacutegica Ao retornarmos deste estado o cotidiano nos
causa asco nojo Natildeo eacute possiacutevel interpretar mais o papel da vida comum A vida soacute
passa a se justificar atraveacutes da arte Perceba-se aiacute que o coro possui um papel
fundamental no processo O coro atua como impulso artiacutestico dionisiacuteaco em
contraposiccedilatildeo agrave forma apoliacutenea ou seja agraves imagens e agrave beleza plaacutestica Assim o
indiviacuteduo atraveacutes do coro tem para si revelado aquele substrato dionisiacuteaco encoberto
pela beleza e comedimento apoliacuteneos isto eacute ao indiviacuteduo era possiacutevel submergir na
80
torrente dionisiacuteaca do auto-esquecimento permitindo-se pocircr de lado os preceitos
apoliacuteneos
E foi assim que em toda parte onde o dionisiacuteaco penetrou o apoliacuteneo
foi suspenso e aniquilado Mas eacute igualmente certo que laacute onde o primeiro
assalto foi suportado o prestiacutegio e a majestade do deus deacutelfico se externaram de
maneira mais riacutegida e ameaccediladora do que nunca(NT 41-42)
De acordo com Nietzsche as trageacutedias eram em seu iniacutecio representaccedilotildees do
sofrimento de Dioniacutesio Mesmo as trageacutedias do periacuteodo aacutetico traziam Dioniacutesio como
heroacutei traacutegico O sofrimento representado era o do despedaccedilamento de Dioniacutesio o deus
que sofreu o padecimento da individuaccedilatildeo causa de todo o sofrer O mito de Dioniacutesio eacute
interpretado aqui sob a luz da filosofia de Schopenhauer que apresenta a individuaccedilatildeo
como fonte do sofrimento ldquoNos pontos de vista aduzidos temos jaacute todas as partes
componentes de uma profunda e pessimista consideraccedilatildeo do mundo e ao mesmo tempo
a doutrina misteriosoacutefica da trageacutedia o conhecimento baacutesico da unidade de tudo o que
existe a consideraccedilatildeo da individuaccedilatildeo como a causa primeira do mal a arte como a
esperanccedila jubilosa de que possa ser rompido o feiticcedilo da individuaccedilatildeo como
pressentimento de uma unidade restabelecidardquo (NT 70)
Contudo ressalta Nietzsche a trageacutedia grega que como vimos desenvolve-se a
partir do embate contiacutenuo entre as representaccedilotildees dos deuses antiacutepodas ndash envolvidos em
um enfrentamento aparentemente sem fim ndash eacute reestruturada por Euriacutepides de forma a
diminuir o impacto do coro ou seja um golpe quase mortal para Dioniacutesio que
agonizante lanccedila matildeo de seus uacuteltimos esforccedilos O que em Euriacutepedes suscitou esta
reestruturaccedilatildeo que conforme Nietzsche eacute responsaacutevel pelo afastamento progressivo do
dionisiacuteaco tem suas origens no que o filoacutesofo chamou de uma ldquotendecircncia socraacuteticardquo O
socratismo euripidiano e a sua nova concepccedilatildeo esteacutetica satildeo as causadoras do
afastamento dos impulsos esteacuteticos primevos o dionisiacuteaco e o apoliacuteneo Em seu lugar o
discurso consciente passa a imperar O deus ex machina e os proacutelogos satildeo exemplos das
81
interferecircncias racionais que datildeo novo tom agrave trageacutedia aacutetica Soacutecrates e seu racionalismo
expulsam da trageacutedia o conhecimento primevo dionisiacuteaco e estabelecem novas regras
esteacuteticas regras racionais que fazem com que o bom sinocircnimo do belo seja aquilo
alcanccedilado conscientemente
Se a trageacutedia grega foi para Nietzsche a manifestaccedilatildeo mais sublime de uma
forma artiacutestica isto se daacute em decorrecircncia do efeito por ela provocado qual seja o de
justificar o mundo enquanto fenocircmeno esteacutetico Foi exatamente o decliacutenio deste efeito
constatado pela produccedilatildeo racionalizada de Euriacutepides o responsaacutevel pela morte da
trageacutedia Ao fortalecer em demasia os princiacutepios racionais da forma Euriacutepides suprimiu
o dionisiacuteaco por meio da flacircmula que nas palavras de Nietzsche o tragedioacutegrafo
ldquolevava agrave testardquo ndash a saber uma espeacutecie de socratismo esteacutetico cujos princiacutepios se davam
a partir da remissatildeo do belo ao inteligiacutevel e deste ao virtuoso Identifica-se portanto a
racionalidade otimista socraacutetica como grande responsaacutevel pela supressatildeo do impulso
dionisiacuteaco Nietzsche alude agrave proximidade de convivecircncia entre Soacutecrates e Euriacutepides
para justificar a presenccedila do racionalismo nas obras Euripidianas Soacutecrates frequumlentava
o teatro somente para assistir agraves apresentaccedilotildees de Euriacutepides De todos os atenienses
Soacutecrates era apontado como o mais saacutebio e Euriacutepides como o segundo em sabedoria
Entretanto na contraposiccedilatildeo proposta por Nietzsche entre conhecimento instintivo e
racional Soacutecrates era descomunalmente racional ao contraacuterio do intuitivismo criativo
que reinava ateacute entatildeo Era questionando aos atenienses sobre seus atos que Soacutecrates
percebia que eles natildeo agiam conscientemente mas por intuiccedilatildeo A crenccedila socraacutetica de
que toda accedilatildeo boa deve ser consciente dominou o teatro atraveacutes de Euriacutepides Uma
chave para o entendimento da racionalidade socraacutetica segundo Nietzsche nos eacute
revelada pela ldquomonstruosa inversatildeordquo representada pela consciecircncia criacutetica de Soacutecrates ndash
ou seja a nota destoante em Soacutecrates revela-se pelo instinto criacutetico em contraposiccedilatildeo agrave
82
consciecircncia criacutetica a consciecircncia criadora em contraposiccedilatildeo ao instinto como forccedila
criadora Intui-se assim o motivo pelo qual Soacutecrates natildeo compreendia a trageacutedia grega
- o dionisiacuteaco a tornava ininteligiacutevel para as exigecircncias racionalistas e criacuteticas da
ldquodialeacutetica otimistardquo socraacutetica ldquoA Soacutecrates [] parecia que a arte traacutegica nunca bdquodiz a
verdade‟ sem considerar o fato de que se dirigia agravequele que bdquonatildeo tem muito
entendimento‟ portanto natildeo aos filoacutesofos daiacute um duplo motivo para manter-se dela
afastadordquo(NT 87) Nietzsche compara Soacutecrates ao heroacutei euripidiano que
diferentemente (ateacute mesmo antagonicamente) agrave trageacutedia de Eacutesquilo e Soacutefocles ldquoprecisa
defender suas accedilotildees por meio da razatildeo e contra a razatildeordquo O que estaacute em jogo no
socratismo eacute a substituiccedilatildeo das verdades expressas miticamente religiosamente pelas
verdades loacutegicas A razatildeo tenta abarcar o todo e para isso desconsidera a arte e seus
impulsos A excelecircncia estaacute no saber e atraveacutes deste alcanccedila-se a felicidade erro do
otimismo racionalista Ilusatildeo da razatildeo que se acha soberana e independente A loacutegica
torna-se essecircncia da trageacutedia procura-se por relaccedilotildees causais e pelo bom telos O
diaacutelogo formata sua estrutura e expulsa seu fundamento musical O ldquoheroacutei dialeacuteticordquo eacute
portanto impulsionado pelo elemento otimista da dialeacutetica A justiccedila transcendental
presente nas obras Esquilianas ldquoeacute rebaixada ao niacutevel do raso e insolente princiacutepio da
bdquojusticcedila poeacutetica‟ com seu habitual deus ex machinardquo (NT 89) A racionalidade de
Soacutecrates atraveacutes de sua investigaccedilatildeo cientiacutefica da natureza de seu processo de
construccedilatildeo loacutegica da realidade daraacute origem ao que Nietzsche denominaraacute de ldquohomem
teoacutericordquo ou ldquohomem cientiacuteficordquo a quem a razatildeo ergue-se acima da proacutepria realidade ao
ponto mesmo de ndash e aiacute reside o proacuteprio otimismo ndash propor-se a tarefa de corrigir as
falhas da proacutepria realidade Mais ainda a razatildeo socraacutetica acena ao homem com a
promessa de conferir sentido agrave existecircncia pelo conhecimento e desta forma busca
justificar tal existecircncia
83
Em face ao pessimismo praacutetico eacute Soacutecrates o protoacutetipo do
otimista teoacuterico que na jaacute assinalada feacute na escrutabilidade da
natureza das coisas atribui ao saber e ao conhecimento a forccedila de
uma medicina universal e percebe no erro o mal em si mesmo
(NT 94)
Natildeo obstante o otimismo no conhecimento na racionalidade socraacutetica encontra seu
maior dragatildeo em sua proacutepria loacutegica interna Assim nas palavras de Nietzsche
[] a periferia do ciacuterculo da ciecircncia possui infinitos pontos
e enquanto natildeo for possiacutevel prever de maneira nenhuma como se
poderaacute alguma vez medir completamente o ciacuterculo o homem
nobre e dotado ainda antes de chegar ao meio de sua existecircncia
tropeccedila e de modo inevitaacutevel em tais pontos fronteiriccedilos da
periferia onde fixa o olhar no inesclareciacutevel Quando divisa aiacute
para seu susto como nesses limites a loacutegica passa a girar em
redor de si mesma e acaba por morder a proacutepria cauda ndash entatildeo
irrompe a nova forma de conhecimento o conhecimento traacutegico
que mesmo para ser apenas suportado precisa da arte como meio
de proteccedilatildeo e remeacutedio (NT 95)
Afigura-se-nos aqui o problema apontado por Nietzsche como o ldquoproblema da
ciecircncia mesmardquo a saber um problema que nos envolve a todos por abarcar (ou
contaminar) toda a cultura ocidental - isto eacute ainda mantemos o dionisiacuteaco agrave baila
ocupando diminuta posiccedilatildeo em detrimento ao culto acerbado ao racionalismo socraacutetico
A cultura socraacutetica impotildee-se pelo homem-teoacuterico e qualquer outra existecircncia que fuja
aos olhos perscrutadores de Soacutecrates deve ldquolutar penosamente para pocircr-se agrave sua altura
como existecircncia permitida e natildeo como existecircncia propostardquo
Nietzsche nos atenta para o fato de reconhecermos comumente no homem culto
erudito o homem douto saacutebio ndash consecutivamente o dionisiacuteaco a arte eacute colocada de
forma perifeacuterica de modo a nunca poder encontrar espaccedilo para superar sua condiccedilatildeo de
ldquoremeacutedio-arterdquo A vontade aacutevida faz seu caminho mesmo atraveacutes da completa falta de
respostas de fundamentos de sentido assim eacute preferiacutevel ao ser humano querer o nada
no sentido de ainda sim querer alguma coisa do que nada querer do que reconhecer a
84
falta de fundamentos da qual consistem em todos os tempos as ilusotildees que
costumeiramente adota-se como engodo ao absoluto sem-sentido da vida
Por fim Nietzsche atenta-nos para o fato de como o homem de seu tempo vem
perdendo a crenccedila na ciecircncia otimista socraacutetica isto eacute pressentindo que a cultura
racionalista socraacutetica torna-se iloacutegica ao vislumbraacute-la em seus horizontes afastando-se
de suas consequumlecircncias Nietzsche diagnostica na oacutepera de seu periacuteodo a subordinaccedilatildeo da
muacutesica agrave arte figurada agrave palavra e expotildee a expectativa de que possa haver no cansaccedilo e
na percepccedilatildeo do insucesso dos esforccedilos racionalistas um renascimento da trageacutedia
85
4 Conclusatildeo pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo
da vida
Retribui-se mal a um mestre continuando-
se sempre apenas aluno
(Nietzsche)
Natildeo podemos ver na filosofia schopenhaueriana qualquer instacircncia que
justifique a vida Ao conhecermos a sua essecircncia - a vontade cega e irracional que se
deixa ver atraveacutes das manifestaccedilotildees do seu querer incessante - percebemos o absurdo de
sua existecircncia e somos por essa percepccedilatildeo levados agrave sua negaccedilatildeo Nietzsche por sua
vez utilizando-se dos conceitos da filosofia de Schopenhauer procura em sua obra
justificar a vida e encontra esta justificaccedilatildeo na arte Nesta conclusatildeo da pesquisa
pretendemos entatildeo apresentar um esboccedilo do modo pelo qual alguns elementos da
filosofia schopenhaueriana foram utilizados no projeto do primeiro livro de Nietzsche e
explicitar o modo como estes elementos foram configurados no interior de seu projeto
Dentre estes elementos percorreremos o paralelo entre os pares dionisiacuteacoapoliacuteneo e
vontaderepresentaccedilatildeo os conceitos de arte e apreciaccedilatildeo esteacutetica e sua cisatildeo entre as
86
artes figurativas e a musical a especificidade da muacutesica o conceito de gecircnio e sua
divisatildeo e os limites da racionalidade e da ciecircncia
Jaacute no primeiro paraacutegrafo de NT a associaccedilatildeo entre os pares nietzscheanos do
dionisiacuteaco e apoliacuteneo e as visotildees de mundo schopenhauerianas satildeo expliacutecitas Nietzsche
define o impulso apoliacuteneo atraveacutes do sonho do princiacutepio de individuaccedilatildeo e o dionisiacuteaco
atraveacutes da embriaguez da consciecircncia de unidade da vontade do livrar-se do veacuteu de
maia Os deuses gregos tornam-se representativos destes estados schopenhauerianos de
consciecircncia Como vimos no capiacutetulo segundo desta dissertaccedilatildeo sob o ponto de vista da
representaccedilatildeo o mundo eacute objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito
agraves condiccedilotildees a priori do entendimento Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das
formas a priori do entendimento eacute interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos
advindos da filosofia Platocircnica e oriental como um mundo aparente ilusoacuterio artificial
O sonho efeito do encantamento apoliacuteneo eacute utilizado como metaacutefora da realidade
fenomecircnica no mundo Schopenhaueriano Os Vedas e Puranas tantas vezes citados por
Schopenhauer tratam o mundo como um sonho imposto pelo deus Maia o deus da
ilusatildeo que cobre a visatildeo do homem com seu veacuteu A mitologia oriental aludida por
Schopenhauer toma conta do mundo helecircnico em Nietzsche que transforma Apolo no
deus Maia o configurador de sonhos O sonho eacute utilizado como ilustraccedilatildeo da realidade
pelo fato de que durante o sonho natildeo sabemos estar sonhando O mundo dos sonhos nos
eacute naquele momento real Vemo-nos como indiviacuteduos e vemos o mundo da
individuaccedilatildeo e suas leis causais espaccedilo-temporais Somente o momento empiacuterico do
despertar informa-nos do sonho Haacute portanto uma identificaccedilatildeo do ldquoparentesco iacutentimo
entre vida e sonhordquo(MVR 60) Como ilustraccedilatildeo desta metaacutefora Schopenhauer elogia
ainda a obra do ldquovaterdquo Calderoacuten de La Barca A vida eacute sonho agrave qual denominaraacute como
um ldquodrama metafiacutesicordquo por expor esta faceta de seu sistema A consciecircncia de que a
87
vida eacute sonho eacute para Schopenhauer um despertar metafiacutesico cujo propiciador foi Kant
ao demonstrar o caraacuteter fenomecircnico do mundo Este despertar contudo natildeo causa
prazer O filoacutesofo e o gecircnio personagens que na metafiacutesica schopenhaueriana alcanccedilam
este despertar satildeo atormentados pela realidade com a qual se deparam qual seja a de
que a vida eacute puro sofrimento Eacute no intuito de deixar velada esta faceta da vida que
Apolo ofusca a visatildeo dos homens com seu mundo luminoso de sonho seu objetivo eacute
encobrir esta verdade aterrorizadora As artes natildeo musicais tanto na teoria de
Schopenhauer como na nietzscheana manteacutem o homem em um juacutebilo prazeroso
ocasionado pela contemplaccedilatildeo puramente objetiva Neste momento natildeo se percebe o
jogo da vontade individualizada somos afastados da realidade do querer insuflados
pela caracteriacutestica quietiva da apreciaccedilatildeo esteacutetica nas palavras de Nietzsche
encontramos na arte um ldquoremeacutedio-arterdquo32
Esta visatildeo do lado terriacutevel da vida ocasionada pelo despertar do dogmatismo
metafiacutesico na teoria schopenhaueriana eacute associada em NT agrave sabedoria dionisiacuteaca
Verificamos na descriccedilatildeo do impulso dionisiacuteaco os elementos que caracterizam a
vontade schopenhaueriana A visatildeo dionisiacuteaca do mundo carrega consigo o despertar
para o caraacuteter absurdo da vida Ao olhar para a proacutepria essecircncia o homem descobre-se
enquanto manifestaccedilatildeo de uma vontade aacutevida desprovida de telos O ldquomecanismo
internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens marionetes guiados pela
carecircncia Esta realidade eacute assustadora pois subtrai do horizonte todos os propoacutesitos da
vida individual Dioniacutesio trava aqui sua batalha contra Apolo ao apontar a ilusatildeo da
individuaccedilatildeo como mecanismo para uma fuga daquilo que em essecircncia somos Apesar
de seu caraacuteter aterrorizador a sabedoria dionisiacuteaca eacute acompanhada do deleite
32
Podemos ver aqui o nuacutecleo da dissenssatildeo entre as teorias dos dois filoacutesofos Para Schopenhauer este
remeacutedio eacute temporaacuterio e tatildeo logo o efeito da apreciaccedilatildeo esteacutetica se esvaia os interesses da vontade voltam
a agir sobre o indiviacuteduo e a vida de sofrimento continua seu percurso restando apenas o caminho da
negaccedilatildeo daquela vontade da vida mesma em direccedilatildeo ao nada Nietzsche ao contraacuterio aponta para uma
forma de cura atraveacutes do remeacutedio-arte ver a vida enquanto forma de arte afirmaacute-la
88
indescritiacutevel da celebraccedilatildeo da unidade com o todo ldquoSob a magia do dionisiacuteaco torna a
selar-se natildeo apenas o laccedilo de pessoa a pessoa mas tambeacutem a natureza alheada
inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de reconciliaccedilatildeo com seu filho
perdido o homemrdquo(NT 31) Se Apolo eacute representado como deus da forma da clareza
da individuaccedilatildeo e as artes patrocinadas por ele satildeo expressotildees destas caracteriacutesticas
Dioniacutesio por sua vez eacute o patrocinador da muacutesica expressatildeo fenomecircnica direta da
vontade Vemos em Nietzsche uma biparticcedilatildeo das artes que tambeacutem pode ser extraiacuteda
da metafiacutesica schopenhaueriana (artes natildeo-musicais e arte musical)
Para Schopenhauer as formas artiacutesticas natildeo-musicais ao provocarem uma visatildeo
puramente objetiva do objeto apreciado tecircm como caracteriacutestica fundamental a
libertaccedilatildeo da subjetividade e com ela dos anseios da vontade Durante esta forma de
apreciaccedilatildeo esteacutetica ldquosomos alforriados do desgraccedilado iacutempeto volitivo festejamos o
Sabbath dos trabalhos forccedilados do querer a roda de Iacutexion cessa de girarrdquo (MVR
267) A definiccedilatildeo nietzscheana para a funccedilatildeo da arte apoliacutenea se daacute da mesma maneira
qual seja ela deve ldquo [] livrar a vista de olhar no horror da noite e salvar o sujeito
graccedilas ao baacutelsamo da aparecircncia do espasmo dos movimentos do querer []rdquo (NT
117) A muacutesica por sua vez recebe um tratamento especial de Schopenhauer devido ao
seu efeito esteacutetico Se as demais artes satildeo um quietivo para a vontade a muacutesica ldquonatildeo faz
mais do que agradar a vontade de viver jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo
seus ecircxitos e ao final expressa sua satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509) Ela encontra-se
num niacutevel de valor superior ao das demais artes por tratar-se de representar a essecircncia
do mundo a vontade mesma Assim tambeacutem ela eacute tratada por Nietzsche como a arte
que representa a sabedoria dionisiacuteaca e faz o apreciador vivenciar a vontade mesma
Em seus escritos sobre a poesia e a oacutepera Schopenhauer alude agrave necessidade de
subordinar os conceitos e o texto agrave muacutesica para que estas artes tenham um efeito mais
89
arrebatador no apreciador esteacutetico Esta subordinaccedilatildeo eacute assumida por Nietzsche em sua
teoria da trageacutedia Nietzsche encontra na liacuterica a primeira manifestaccedilatildeo desta junccedilatildeo da
arte dionisiacuteaca com a arte apoliacutenea e aponta aiacute o geacutermen que daraacute origem agrave trageacutedia
Podemos perceber aqui uma subordinaccedilatildeo das artes natildeo-musicais agrave muacutesica que por sua
vez se espelha na subordinaccedilatildeo do mundo fenomecircnico ao mundo da coisa-em-si As
artes figurativas representam as ideacuteias objetivaccedilotildees imediatas da vontade e a muacutesica
representa a vontade mesma Na teoria da trageacutedia de Nietzsche esta subordinaccedilatildeo seraacute
mantida e assim reflete a configuraccedilatildeo da metafiacutesica schopenhaueriana A muacutesica ldquoeacute
uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente sobre o mais iacutentimo do
homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele como se fora uma
linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo (MVR
336) Desta forma uma arte que se pretenda formar a partir da integraccedilatildeo de elementos
de diversas formas artiacutesticas deve tomar a muacutesica como inspiraccedilatildeo tanto na teoria de
Schopenhauer como na de Nietzsche
Desta dicotomia das formas artiacutesticas que podemos perceber nos dois filoacutesofos
podemos depreender duas formas do gecircnio o apoliacuteneo ou contemplativo e o
compositor dionisiacuteaco Para Schopenhauer ldquoo compositor manifesta a essecircncia mais
iacutentima do mundo expressa a sabedoria mais profunda numa linguagem natildeo
compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo magneacutetico fornece informaccedilotildees
sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito algumrdquo (MVR 342) Podemos
vislumbrar ainda nesta descriccedilatildeo de Schopenhauer uma caracteriacutestica do que Nietzsche
mais tarde iraacute chamar de criaccedilatildeo inconsciente Em uma segunda passagem desta vez ao
final do capiacutetulo 39 do segundo volume de MVR vemos tambeacutem uma caracteriacutestica que
posteriormente tambeacutem seraacute ressaltada por Nietzsche como demarcaccedilatildeo do caraacuteter
dionisiacuteaco Schopenhauer se utiliza de uma passagem dos Vedas para descrever o prazer
90
provocado pela muacutesica como um prazer de participaccedilatildeo no todo33
Este ecircxtase da
comunhatildeo eacute um aspecto reiteradamente apontado por Nietzsche O gecircnio dionisiacuteaco eacute
para o jovem filoacutesofo aquele que tambeacutem absorvido pelo impulso dionisiacuteaco traduz
sua essecircncia em linguagem musical O tipo de gecircnio musical descrito eacute encontrado em
Schopenhauer nas encarnaccedilotildees de Rossini e Beethoven cujas obras operiacutesticas satildeo
norteadas pela produccedilatildeo musical e o livreto ocupa um lugar secundaacuterio Nietzsche
aponta um renascimento progressivo do gecircnio musical em seu tempo que se inicia com
Bach e tem continuidade em Beethoven mas que encontra sua forma mais bem acabada
em Richard Wagner
Apesar da tomarem caminhos diferentes no que tange ao objetivo da obra de arte
traacutegica Nietzsche e Schopenhauer mais uma vez em uniacutessono consideram-na todavia
como uma forma de entendimento superior ao apresentado pelo pensamento cientiacutefico
Como vimos anteriormente as ciecircncias no sistema schopenhaueriano seguem o
princiacutepio de razatildeo seu papel eacute apenas descritivo e consequumlentemente limitado ao
acircmbito daquele princiacutepio Transformam em conceitos abstratos o mundo intuitivo ao
descrevecirc-lo em sua aparecircncia e seguem o fio condutor do principio de razatildeo
apresentando as causas para cada fenocircmeno particular Desta forma as ciecircncias estatildeo
subordinadas ao mundo da aparecircncia e no que importa agrave essecircncia natildeo podem
demonstraacute-la As uacutenicas produccedilotildees humanas com esta capacidade satildeo a arte e a
filosofia e essas o fazem de forma indireta metafoacuterica A consideraccedilatildeo racional do
mundo estaacute enquanto presa ao acircmbito do fenocircmeno subordinada aos ditames da
vontade Esta ldquovontade aacutevida sempre encontra um meio atraveacutes de uma ilusatildeo
distendida sobre as coisas de prender agrave vida as suas criaturas e de obrigaacute-las a
prosseguir vivendordquo (NT 108) Nietzsche descreve trecircs formas pelas quais a vontade
33
ldquoE o delicioso que eacute uma classe de alegria chama-se assim o sumo Atman porque onde haacute uma
alegria esta eacute uma pequena parte de sua alegriardquo (MVR II 510)
91
manteacutem a vida A primeira delas eacute o ldquoveacuteu da beleza da arterdquo sustentado pelo impulso
apoliacuteneo Encontramo-la na epopeacuteia homeacuterica e nas artes figurativas A segunda eacute a
visatildeo traacutegica do mundo que encontra um consolo metafiacutesico na percepccedilatildeo de um
substrato comum aos fenocircmenos e que por consequumlecircncia abdica destes em funccedilatildeo da
vivecircncia daquele substrato A terceira forma de dominaccedilatildeo da vontade eacute a ciecircncia a
loacutegica socraacutetica que procura abarcar o mundo com sua razatildeo de acircnsia justificadora
Estas trecircs formas de coerccedilatildeo conforme sua predominacircncia em determinada cultura
formam o que Nietzsche iraacute denominar respectivamente de culturas artiacutestica traacutegica e
socraacutetica Correspondem historicamente agraves fases predominantemente helecircnica budista
ou alexandrina Fazendo um diagnoacutestico da cultura contemporacircnea Nietzsche a
identifica como uma cultura predominantemente alexandrina Diagnostica o seu ocaso a
partir da identificaccedilatildeo feita por Kant e Schopenhauer dos limites da ciecircncia do
desmascaramento das verdades eternas que amparam a visatildeo socraacutetica de mundo quais
sejam a visatildeo de que o tempo o espaccedilo e a causalidade satildeo leis universais e
incondicionais Esta criacutetica ao racionalismo eacute constante na obra schopenhaueriana
Percebemo-la claramente em suas investidas contra a filosofia de seu tempo e a
presunccedilatildeo nela presente de racionalmente abarcar o real
- - - - - - - - - -
Compostas por conceitos da metafiacutesica schopenhaueriana a teoria da trageacutedia de
Schopenhauer e a de Nietzsche apontam para caminhos diversos Em Schopenhauer a
trageacutedia eacute a arte cujo fim uacuteltimo eacute ao expor seu lado terriacutevel inspirar o apreciador agrave sua
renuacutencia Este lado terriacutevel espelho do mundo presentificador da vida humana e de
suas relaccedilotildees ocasiona atraveacutes do medo e da compaixatildeo a vontade de renuacutencia a essa
92
mesma vida Nietzsche introduz na trageacutedia o elemento da muacutesica schopenhaueriana34
A consequumlecircncia desta introduccedilatildeo eacute um plano mais profundo de entendimento que
apresenta a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com sua essecircncia Neste estado de consciecircncia
apartado de sua individualidade o sujeito jaacute se vecirc como um criador de mundos e vecirc no
mundo uma obra de arte sua Ao derivar o impulso apoliacuteneo do dionisiacuteaco35
Nietzsche
jaacute executou a renuacutencia do indiviacuteduo que agora passa a se ver como essecircncia e ao mundo
como fenocircmeno artiacutestico
34
Machado (2006 200) considera na esteira de Clemeacutent Rosset e de Jean-Marie Schaeffer a utilizaccedilatildeo
da teoria da apreciaccedilatildeo musical de Schopenhauer por Nietzsche como o elemento que sugeriraacute a
caracteriacutestica de afirmaccedilatildeo da vontade de sua filosofia da trageacutedia 35
ldquoNo efeito conjunto da trageacutedia o dionisiacuteaco recupera a preponderacircncia ela se encerra com um tom
que jamais poderia soar a partir do reino da arte apoliacutenea E com isso o engano apoliacuteneo se mostra como o
que ele eacute como o veacuteu que enquanto dura a trageacutedia envolve o autecircntico efeito dionisiacuteaco o qual
todavia eacute tatildeo poderoso que ao final impele o proacuteprio drama apoliacuteneo a uma esfera onde ele comeccedila a
falar com sabedoria dionisiacuteaca e onde nega a si mesmo e agrave sua visibilidade apoliacuteneardquo (NT 129)
93
BIBLIOGRAFIA
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Gonzalez Vicen Buenos Aires Aguilar 1963
O nascimento da trageacutedia ou helenismo e pessimismo Traduccedilatildeo J Guinsburg Satildeo
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Correspondecircncia Volume II Versatildeo em espantildeol Joseacute Manuel Romero Cuevas y Marco
Parmeggiani Madrid Trotta 2007
Obras de Schopenhauer
De la cuadruple raiz del principio de razoacuten suficiente Versatildeo em espanhol Leopoldo
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Traduccedilatildeo Mario da Gama Kury 5ordf Ed Rio de Janeiro Jorge Zahar 2004
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9
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO11
1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES NA
FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA 17
2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU
SUBSTRATO METAFIacuteSICO42
21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo43
22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo45
23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana49
24 A finalidade moral da trageacutedia56
25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera62
3 A TEORIA DA TRAGEacuteDIA DO JOVEM NIETZSCHE65
31 A influecircncia de Schopenhauer na obra do primeiro Nietzsche66
32 O projeto subjacente ao nascimento da trageacutedia72
33 A teoria da trageacutedia publicada75
4 CONCLUSAtildeO pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo da
vida85
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS93
10
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MVR II ndash Mundo como vontade e como representaccedilatildeo volume II (2005)
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SOE = Sobre o ofiacutecio de Escritor (2005)
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PP = Parerga e paralipomena (1974)
SFM = Sobre o fundamento da moral (2001)
SFU = Sobre a filosofia universitaacuteria (2001)
Obras de Nietzsche
NT = O nascimento da trageacutedia (1992)
VD = Visatildeo dionisiacuteaca do mundo (2005)
CORRESPONDEcircNCIA = Correspondecircncias de Nietzsche (2007)
OC = Obras completas de Nietzsche (1963)
11
INTRODUCcedilAtildeO
ldquoDias sem nuacutemero nunca reservam a
ningueacutem nada mais que dissabores mais
proacuteximos da dor que da alegria Quanto aos
prazeres natildeo os discernimos e nossa vista os
buscaraacute em vatildeo logo que para nossa
desventura chegamos ao limite prefixado E
desde entatildeo o nosso aliacutevio uacutenico seraacute aquele
que daraacute a todos o mesmo fim na hora de
chegar de suacutebito o destino procedente do
tenebroso reino onde natildeo haacute cantos nem
liras onde natildeo haacute danccedilas ndash ou seja a morte
epiacutelogo de tudo Melhor seria natildeo haver
nascido como segunda escolha bom seria
voltar logo depois de ver a luz agrave mesma
regiatildeo de onde se veiordquo
(Soacutefocles)
As teorias sobre a trageacutedia de Schopenhauer e Nietzsche satildeo parte
indispensaacutevel no estudo da histoacuteria da filosofia da trageacutedia Dentre os diversos
pensadores contemporacircneos que tratam sobre o problema da trageacutedia e do traacutegico e que
deram visiacutevel destaque agraves teorias dos nossos filoacutesofos podemos destacar Walter
Benjamin1 e Peter Szondi
2 Entretanto nos trabalhos destes autores o problema do
1 BENJAMIN Walter Origem do drama barroco alematildeo Traduccedilatildeo Sergio Paulo Rouanet Satildeo Paulo
Brasiliense 2004
12
relacionamento e da interdependecircncia entre as filosofias de Schopenhauer e Nietzsche
natildeo eacute detalhado a contento Diante disto mesmo para um olhar historicamente
caracterizador torna-se vaacutelido um estudo comparado destas teorias que leve em
consideraccedilatildeo o quecirc ou o quanto haacute de comum em suas metafiacutesicas e a partir desta
perspectiva trace os aspectos coincidentes e dissidentes das mesmas mostrando seus
pontos de interdependecircncia e discrepacircncia muacutetua
Apesar de estar entre as teorias da trageacutedia mais estudadas do periacuteodo do
idealismo alematildeo a teoria Schopenhaueriana que eacute sempre analisada em relaccedilatildeo a seus
pressupostos metafiacutesicos ao ser vista sob outra perspectiva ganharia contornos
intensamente enriquecidos Esta perspectiva atraveacutes da qual nos propomos a examinar a
teoria do traacutegico do filoacutesofo eacute aquela que levaraacute em consideraccedilatildeo as influecircncias
histoacutericas culturais e filosoacuteficas que agiram diretamente sobre a esteacutetica do traacutegico
schopenhaueriana Ao lanccedilarmos um olhar sobre estas referidas influecircncias estaremos
abrindo caminho para uma melhor compreensatildeo sobre a teoria esteacutetica
schopenhaueriana o que conseguintemente refletiraacute em um juiacutezo mais adequado da
teoria nietzscheana
Para um entendimento mais eficiente das teorias propostas nas obras do
jovem Nietzsche parece-nos essencial o conhecimento de uma de suas mais decisivas
influecircncias a filosofia de Schopenhauer A analogia almejada erige-se na verdade
como meacutetodo de anaacutelise ou seja o que pretendemos eacute alcanccedilar uma maior compreensatildeo
dos problemas com os quais Nietzsche se deparou quando da elaboraccedilatildeo de sua primeira
obra e procurar identificar a existecircncia de alguma apropriaccedilatildeo eou adaptaccedilatildeo de alguns
conceitos da filosofia de Schopenhauer na resoluccedilatildeo destes problemas A necessidade
deste estudo comparativo torna-se ainda mais evidente quando e este eacute o caso
2 SZONDI Peter Ensaio sobre o Traacutegico Traduccedilatildeo Pedro Suumlssekind Rio de Janeiro Jorge Zahar
2005
13
defrontamo-nos com uma influecircncia que se apresenta tatildeo clara e assumidamente
admitida pelo autor Todavia natildeo se pretende aqui apenas a justaposiccedilatildeo de um
pensamento ao outro Apesar de ser identificaacutevel em toda a obra posterior de Nietzsche
encontra-se nos seus primeiros escritos sobretudo na obra O nascimento da trageacutedia
aquele momento discursivo no qual podemos apontar uma influecircncia mais direta da
filosofia de Schopenhauer
Dos trabalhos que fazem um estudo comparativo entre estes filoacutesofos a
maioria se ateacutem em identificar as diferenccedilas conceituais entre eles mais
especificamente no campo eacutetico e metafiacutesico Grosso modo tratam principalmente dos
problemas relativos agrave diferenciaccedilatildeo entre os conceitos de vontade nestes autores
vontade de viver e vontade de poder Estes estudos tecircm como foco a filosofia tardia de
Nietzsche onde este apesar da assumida influecircncia torna-se um criacutetico de
Schopenhauer A real extensatildeo da influecircncia deste filoacutesofo na primeira obra de
Nietzsche bem como o relacionamento entre suas teorias da trageacutedia permanecem
assim como territoacuterios ainda pouco explorados Ao lanccedilarmos olhar sobre esse
afastamento que Nietzsche mais tarde realizaraacute em relaccedilatildeo agrave filosofia
Schopenhaueriana verificamos mais uma vez a importacircncia do estudo de sua primeira
fase na qual poderemos detectar o referido afastamento
Podemos observar entretanto o crescimento do interesse no estudo da
obra O nascimento da trageacutedia de Nietzsche Nos uacuteltimos anos assistimos tambeacutem no
Brasil agrave publicaccedilatildeo de vaacuterios trabalhos que tecircm sob perspectiva a complexidade desse
seu primeiro livro Na bibliografia sugerida neste projeto constam publicaccedilotildees dos
seguintes autores Roberto Machado (2006) Rosa Maria Dias (2005 e 2009) Iracema
Macedo (2006) Marcio Joseacute Silveira Lima (2006) Estas publicaccedilotildees tratam temas
diversos da esteacutetica nietzscheana tais como a muacutesica a trageacutedia o traacutegico ou a
14
repercussatildeo do livro de Nietzsche e sua influecircncia wagneriana Podemos ver entretanto
naqueles e em outros trabalhos a constante chave de leitura que atribui a Schopenhauer
a influecircncia decisiva natildeo apenas sobre o jovem Nietzsche como usualmente se aponta
mas tambeacutem sobre um peculiar imbricamento entre metafiacutesica e esteacutetica o qual se
sustentaria sobre os ldquoimpulsos artiacutesticos da naturezardquo o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco Nos
termos de Dias (2005 27)
A oposiccedilatildeo apoliacutenea e dionisiacuteaca considerada no plano
metafiacutesico se daacute a partir da noccedilatildeo de vontade ou querer
estendida (sic) no sentido que a ela deu Schopenhauer de
ldquocentro e nuacutecleo do mundordquo ou ldquoforccedila que eternamente quer
deseja e aspirardquo () O mundo fenomecircnico como resultado
desse movimento do querer () faz um segundo movimento
dessa vez esteacutetico reproduzindo o movimento inicial que a
vontade realizou em direccedilatildeo agrave aparecircncia
Tendo em vista o fato de que as teorias sobre o traacutegico dos dois filoacutesofos tecircm como
ponto de partida o sistema metafiacutesico schopenhaueriano fica clara a necessidade de
analisar em cotejo estas teorias tendo como fio condutor o meacutetodo de investigaccedilatildeo ora
proposto
Aleacutem de um aprofundamento no problema da influecircncia de
Schopenhauer na obra esteacutetica de Nietzsche o estudo de suas teorias sobre o traacutegico nos
daraacute a oportunidade de identificar as peculiaridades de cada uma destas teorias bem
como de estabelecer a sua importacircncia histoacuterica para uma filosofia do traacutegico
Em um primeiro momento traccedilaremos um panorama histoacuterico que
objetiva entender o status quo da filosofia do traacutegico no periacuteodo anterior ao
desenvolvimento da teoria schopenhaueriana da trageacutedia Esta investigaccedilatildeo seraacute
norteada pelas referecircncias constantes na proacutepria obra de Schopenhauer bem como por
um levantamento biograacutefico do filoacutesofo ou seja trabalharemos somente os momentos
que satildeo fundamentais para uma melhor compreensatildeo da obra schopenhaueriana Dentre
15
estes momentos daremos ecircnfase aos seguintes pontos o estudo sobre o helenismo de
Winckelmann e sua repercussatildeo a criacutetica teatral de Lessing Schiller e Goethe seu
projeto de criaccedilatildeo de um teatro alematildeo e suas produccedilotildees dramaacuteticas
Traccedilado o panorama histoacuterico no qual se insere a teoria da trageacutedia
schopenhaueriana passaremos para o toacutepico seguinte a apresentaccedilatildeo do sistema
metafiacutesico de Schopenhauer no qual estaacute embasada a sua teoria da trageacutedia bem como
a teoria nietzscheana A apresentaccedilatildeo seraacute feita de forma a expor os aspectos gerais da
filosofia da vontade atendo-se aos pontos deste sistema que estatildeo intrinsecamente
relacionados agraves teorias da trageacutedia dos nossos autores
Apoacutes os passos descritos reuniremos em um esboccedilo geral as
caracteriacutesticas do relacionamento existente entre o jovem Nietzsche e a filosofia de
Schopenhauer Para tanto utilizaremo-nos das referecircncias que Nietzsche faz a
Schopenhauer em suas cartas e escritos de juventude Com esta pesquisa pretendemos
identificar a opiniatildeo que o jovem Nietzsche tinha sobre a filosofia de Schopenhauer e a
profundidade da influecircncia desta em sua primeira obra Percorreremos ainda o ambiente
circundante agrave primeira obra de Nietzsche no intuito de realccedilar alguns dos conceitos
formativos de O nascimento da trageacutedia
Estabelecida a ligaccedilatildeo entre os autores passaremos ao estudo do apoliacuteneo
e do dionisiacuteaco par conceitual que nos forneceraacute a chave para se fazer um estudo
comparativo entre os filoacutesofos Para cumprir esta etapa analisaremos O nascimento da
trageacutedia bem como escritos contemporacircneos a este livro atraveacutes dos quais poderemos
delinear melhor a significaccedilatildeo desta duplicidade de impulsos e visotildees de mundo
Delinearemos assim os contornos das definiccedilotildees fundamentais da esteacutetica nietzscheana
e procuraremos construir um paralelo entre o mundo dionisiacuteaco e o mundo metafiacutesico
da vontade schopenhaueriano Temos a intenccedilatildeo de demonstrar a origem desta
16
metafiacutesica da vontade ou seja o criticismo kantiano e sua importacircncia para o conceito
de dionisiacuteaco Demonstraremos tambeacutem as caracteriacutesticas do mundo fenomecircnico
schopenhaueriano em sua identidade com o apoliacuteneo nietzscheano retomando a
epistemologia de Schopenhauer
Realizada a aproximaccedilatildeo e expostas tanto as semelhanccedilas como as
particularidades dos conceitos principais dos dois autores percorreremos sempre
focando um estudo paralelo entre os filoacutesofos outros conceitos que encontram
similaridade em suas esteacuteticas Com esse intuito procuraremos identificar nos dois
filoacutesofos o destaque dado agrave muacutesica dentro de suas teorias e o lugar dado agraves outras artes
em suas obras Discorreremos sobre a criacutetica que eles em uniacutessono fazem ao que
nomeiam racionalismo dogmatismo e o otimismo Finalizadas as aproximaccedilotildees
voltaremos nossa atenccedilatildeo ao aspecto de dissensatildeo que propicia o afastamento
fundamental entre as teorias dos dois filoacutesofos o efeito da trageacutedia Com isto
demonstraremos que a base metafiacutesica comum quando alinhada a pressupostos
esteacuteticos distintos geraraacute a referida dissensatildeo
17
1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES
NA FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA
Por que minha filosofia natildeo encontrou
simpatia e interesse Porque a verdade natildeo
estaacute de acordo com a tagarelice dos tempos
(Schopenhauer)
Neste primeiro capiacutetulo objetivamos apresentar as fontes filosoacuteficas
incutidas no sistema schopenhaueriano no intuito de situar historicamente o surgimento
da filosofia da vontade e trazer agrave baila o seu ambiente circundante bem como as teorias
filosoacuteficas com as quais Schopenhauer se propotildee a dialogar Apontaremos inicialmente
as influecircncias filosoacuteficas assumidamente presentes no sistema schopenhaueriano bem
como aquelas que fundamentam sua metafiacutesica e consequumlentemente sua teoria esteacutetica
Em um segundo momento procuraremos fazer um breve esboccedilo do ambiente artiacutestico-
cultural que dominava o pensamento alematildeo de entatildeo com o qual direta ou
indiretamente Schopenhauer e o jovem Nietzsche se depararam Com isto esperamos
posteriormente demarcar as singularidades que caracterizam as teorias destes filoacutesofos
Ressaltamos todavia que natildeo se trata de um mapeamento completo das fontes que
influenciaram esses autores ndash tarefa que exigiria um esforccedilo bem maior do que aquele
18
proposto por esta pesquisa ndash e sim de um breve panorama que se pautaraacute nas influecircncias
marcantemente presentes em suas obras
No contato com a obra de Schopenhauer a primeira impressatildeo que natildeo
passa despercebida aos seus leitores eacute a qualidade de sua prosa3 Tal qualidade
revelada na diversidade de recursos literaacuterios utilizados pelo autor eacute produto da visiacutevel
erudiccedilatildeo cultivada pelo filoacutesofo Conhecedor do grego do latim e suas respectivas
literaturas Schopenhauer transitava ainda pela obras literaacuterias cientiacuteficas e filosoacuteficas
contemporacircneas em suas liacutenguas originais conhecia o inglecircs o italiano o francecircs e o
espanhol Em sua juventude conviveu com vaacuterias personalidades do meio cultural
germacircnico que frequumlentavam o salatildeo de sua matildee em Weimar dentre eles Goethe a
maior figura das letras germacircnicas com quem teve um relacionamento mais proacuteximo
Sua obra eacute repleta de citaccedilotildees de poetas dramaturgos e seu conhecimento das artes
plaacutesticas e da muacutesica natildeo satildeo superficiais Em suas viagens pela Europa pocircde admirar
diversas esculturas e pinturas e como ele proacuteprio dizia pocircde ler diretamente no ldquolivro
do mundordquo Essa erudiccedilatildeo pode ser notada mesmo diante do desconhecimento de sua
biografia pela observaccedilatildeo da enorme quantidade de citaccedilotildees e menccedilotildees que estatildeo
espalhadas no interior de suas obras traduzidas ou como em sua maior parte citadas
em suas respectivas liacutenguas Frequumlentava as mais diversas aacutereas de conhecimento de sua
eacutepoca como sustenta Aramayo
3 O cuidado com a qualidade da produccedilatildeo literaacuteria tanto no que se refere agrave clareza quanto agrave riqueza de
recursos linguumliacutesticos eacute uma das caracteriacutesticas que Schopenhauer e Nietzsche tecircm em comum Esta
qualidade torna-se mais evidente ainda quando seus trabalhos satildeo natildeo raramente comparados com os
escritos filosoacuteficos alematildees daquele periacuteodo principalmente aos de Fichte Schelling e Hegel O elogio agrave
prosa schopenhaueriana feito por literatos e filoacutesofos contemporacircneos influenciados por sua obra pode
ser ilustrado agrave exaustatildeo entre eles encontram-se Thomas Mann Goethe Wittgenstein e o proacuteprio
Nietzsche ldquoMas a imensa forccedila de penetraccedilatildeo deste pensamento explica-se antes de tudo pelo fato de o
autor ser ao lado de Nietzsche o maior entre os escritores filosoacuteficos alematildeesrdquo (Rosenfeld 1996 177)
Jorge Luis Borges em uma entrevista publicada por Die Welt em 25 de marccedilo de 1975 realizava esta
confissatildeo ltPara mim existe um escritor alematildeo ao qual prefiro Schopenhauer Sei que deveria dizer
Goethe poreacutem Schopenhauer me interessa muitiacutessimo mais Tanto que estudei alematildeo ndash que aprendi
sobre os versos de Heine ndash fundamental e especificamente para poder ler a Schopenhauer em sua proacutepria
liacutenguagt (Aramayo 2001 18)
19
ldquoEm sua busca pela verdade Schopenhauer natildeo desdenha
nenhum aliado Os dramaturgos novelistas e poetas estatildeo quando
menos em peacute de igualdade com os mais egreacutegios filoacutesofos A perspicaacutecia
de Shakespeare ou a genialidade de Voltaire e a sutileza de Goethe nada
devem para a eloquumlecircncia Platocircnica a precisatildeo de um Spinoza e o rigor
conceitual do admirado Kant Sua curiosidade natildeo conhece limites nem
prejuiacutezo algum e por esta razatildeo tampouco menospreza quando o
considera oportuno prestar suficiente atenccedilatildeo aos fenocircmenos
paranormais agrave hipnose ou ao caacutelculo cabaliacutestico se entende que em
algo isto pode servir-lhe para demonstrar sua tese ou avaliar algumas de
suas intuiccedilotildees E na mesma direccedilatildeo aponta seu grande empenho por
incorporar o pensamento das religiotildees orientais a nosso acervo cultural
na possibilidade de um enriquecimento muacutetuordquo (Aramayo 2001 14-15)
A comparaccedilatildeo feita atraveacutes de metaacuteforas4 paraacutebolas ou alegorias em
sua maioria retiradas de obras literaacuterias ou cientiacuteficas torna-se recurso literaacuterio
constantemente presente na obra do filoacutesofo e ao mesmo tempo termocircmetro de suas
influecircncias e de seu relacionamento com o pensamento de seus contemporacircneos Tais
recursos satildeo utilizados contudo com o objetivo consciente de construir conhecimento
de ilustrar a mateacuteria do seu pensamento Nas palavras do filoacutesofo ldquoAs comparaccedilotildees satildeo
de grande valor na medida em que reduzem uma relaccedilatildeo desconhecida a uma
conhecida Inclusive as comparaccedilotildees mais detalhadas transformadas em paraacutebola ou
alegoria satildeo somente a reduccedilatildeo de uma relaccedilatildeo qualquer agrave sua exposiccedilatildeo mais
simples ilustrativa e palpaacutevelrdquo (Schopenhauer SOE 86) Se o nosso objetivo eacute mostrar
as raiacutezes da filosofia de Schopenhauer ou seja as influecircncias que formaram a mateacuteria
de seu pensamento eacute sobre esta mateacuteria que devemos nos debruccedilar Natildeo podemos
contudo nos furtar a apontar a riqueza das fontes formalmente presentes em seus
escritos5 A percepccedilatildeo da presenccedila desta numerosa miscelacircnea de referecircncias dentro da
4 ldquoSua profusa e brilhante utilizaccedilatildeo das metaacuteforas eacute o que o converte sem duacutevida alguma em um grande
escritor cujo estilo se nos afigura tatildeo ameno quanto sugestivordquo (Aramayo 2001 54) 5 Mateacuteria e forma satildeo na concepccedilatildeo do filoacutesofo planos ou instacircncias da produccedilatildeo escrita que servem
como referecircncia para o julgamento de valor do pensamento de um autor ldquo Um livro nunca pode ser mais
do que a impressatildeo dos pensamentos do autor O valor desses pensamentos reside na mateacuteria ou seja
naquilo sobre o que ele pensou ou na forma isto eacute na elaboraccedilatildeo da mateacuteria naquilo que pensou a
respeitordquo (Schopenhauer SOE 11) A importacircncia dada agrave forma por Schopenhauer seraacute melhor
esclarecida quando posteriormente apresentarmos a caracteriacutestica fundamentalmente epistemoloacutegica de
toda produccedilatildeo artiacutestica dentro de sua metafiacutesica do belo
20
obra schopenhaueriana diz-nos algo sobre seu estilo e seu arcabouccedilo cultural
entretanto quando voltamo-nos para a busca das influecircncias diretamente presentes em
seu sistema ie agraves raiacutezes da mateacuteria de seu pensamento percebemos que elas natildeo satildeo
tatildeo numerosas
Uma leitura das fontes filosoacuteficas do sistema schopenhaueriano torna-se
diferentemente do que ocorre em outros sistemas de seu tempo menos trabalhosa por
dois motivos Primeiramente o autor natildeo esconde suas influecircncias mas ao contraacuterio
faz questatildeo de apontaacute-las citaacute-las e quando lhe parece necessaacuterio as critica ou exalta
Em segundo lugar o que facilita o mapeamento destas fontes eacute a caracteriacutestica de
unidade do sistema schopenhaueriano como um todo Apesar da longevidade do
filoacutesofo e da distacircncia temporal entre suas obras suas intuiccedilotildees fundamentais
continuaram sendo as mesmas ao longo de sua vida Nas palavras de Rosset
ldquoSchopenhauer eacute homem de um soacute livro o MVR e de um soacute pensamento (qualificado
por ele mesmo de ltpensamento uacutenicogt nas primeiras linhas de sua obra)rdquo (2005 35)6
Natildeo satildeo poreacutem coetacircneas as influecircncias que marcaram a obra do filoacutesofo
como talvez a constante menccedilatildeo a seus contemporacircneos possa sugerir Nas palavras do
filoacutesofo como citado por Lefranc (2005 17) ldquoPude amar prosseguir aperfeiccediloar a
minha obra soacute por ela mesma em tranquumlilidade completa ao abrigo de toda influecircncia
externa e meus contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes
permaneci estranhosrdquo Conhecia a filosofia de seu tempo todavia natildeo a tinha como
interlocutora na verdade a desdenhava satildeo famosas as criacuteticas de Schopenhauer contra
as filosofias de seus contemporacircneos principalmente as de Fichte Schelling e Hegel
6 Sobre a unidade da produccedilatildeo schopenhaueriana destacamos aleacutem de Rosset os apontamentos de outros
dois de seus maiores comentadores Arthur Huumlbscher e Alexis Philonenko Na introduccedilatildeo aos manuscritos
schopenhauerianos Huumlbscher aponta a importacircncia dos manuscritos na percepccedilatildeo desta unidade uma vez
que podemos notar em diversas fases da vida do filoacutesofo o desenvolvimento dos temas pontuais que
marcaram sua obra principal Vide Hubscher Introduction Manuscript Remains 1985 Alexis
Philonenko trata desta unidade no proacutelogo de sua obra Schopenhauer uma filosofia da trageacutedia
(Philonenko 1989 41-45)
21
(chamados de ldquoos trecircs sofistasrdquo) Quando faz referecircncias a eles comumente estaacute
imbuiacutedo de trecircs propoacutesitos criticar a qualidade formal de suas produccedilotildees
principalmente no que tange ao uso da liacutengua germacircnica apontar uma motivaccedilatildeo
individualista (subsistecircncia pessoal e status social) que existiria por traacutes de suas
elucubraccedilotildees filosoacuteficas e ressaltar a falta de atenccedilatildeo por parte daqueles filoacutesofos no
que se refere ao conteuacutedo da primeira criacutetica kantiana
Schopenhauer diagnosticava em seu tempo um periacuteodo de
empobrecimento da expressatildeo literaacuteria e do uso da liacutengua germacircnica e apontava como
os principais responsaacuteveis por estes acontecimentos os ldquoprofessores de filosofiardquo e seus
disciacutepulos As investidas schopenhauerianas contra a filosofia de seus contemporacircneos
podem ser encontrada em praticamente todas as suas obras mas estatildeo concentradas de
forma mais persistente em sua produccedilatildeo mais tardia na segunda ediccedilatildeo da QRPRS de
MVR em seus ensaios sobre a liberdade e o fundamento da moral e nos PP 7
Nesta
uacuteltima obra temos dedicados a estas criacuteticas alguns textos que podemos destacar Sobre
o ofiacutecio de escritor Da leitura e dos livros Da liacutengua e das palavras e Sobre a filosofia
universitaacuteria A liacutengua alematilde no que se refere agrave sua capacidade expressiva era tida em
mais alta consideraccedilatildeo por nosso filoacutesofo Afirmava que dentre as liacutenguas modernas
era ldquoa uacutenica na qual se pode escrever quase tatildeo bem quanto em grego ou em latimrdquo
(Schopenhauer SOE 72) Esta capacidade de expressatildeo de uma liacutengua eacute segundo o
filoacutesofo resultado de sua aptidatildeo em representar conceitos Desta forma na medida em
que surgem novos conceitos a elaboraccedilatildeo de novas palavras que os representem eacute um
sinal de evoluccedilatildeo adequaccedilatildeo e riqueza da liacutengua Entretanto para o filoacutesofo os
neologismos e adaptaccedilotildees criados por seus contemporacircneos natildeo eram resultados da
7 Muitos historiadores da filosofia bioacutegrafos e comentadores apontam que esta criacutetica adveacutem do
ressentimento pelo fracasso de Schopenhauer como docente na universidade de Berlim onde Hegel
reinava absoluto bem como da falta de reconhecimento de sua filosofia diante do sucesso dos professores
da mesma universidade
22
tentativa de representaccedilatildeo de novos conceitos mas ao contraacuterio eram comprovaccedilatildeo de
sua ldquopobreza de espiacuterito que a todo custo quer colocar algo no mercado e por natildeo ter
novos pensamentos chega com palavras novasrdquo (Schopenhauer SOE 129)
Schopenhauer condenava a atitude de seus contemporacircneos de utilizarem-se de
artifiacutecios como a natildeo designaccedilatildeo do caso a expressatildeo dos preteacuteritos por meio do
imperfeito a supressatildeo dos prefixos e outros subterfuacutegios para com isso disfarccedilar a sua
imprecisatildeo conceitual De acordo com Schopenhauer tratavam displicentemente a
liacutengua alematilde por dois motivos por natildeo possuiacuterem uma mateacuteria conceitualmente
relevante a ser expressa ou entatildeo para conscientemente causar a impressatildeo de que a
possuem e neste caso a responsabilidade pela natildeo compreensatildeo do texto seria atribuiacuteda
agrave incompetecircncia intelectual do leitor
Os que compotildeem discursos difiacuteceis obscuros enleados e
ambiacuteguos natildeo sabem ao certo o que querem dizer tecircm somente uma
consciecircncia vaga a esse respeito que luta primeiro por uma ideacuteia poreacutem
amiuacutede querem tambeacutem ocultar de si mesmos e dos outros que na
realidade eles natildeo tecircm nada a dizer Como Fichte Schelling e Hegel
querem parecer saber o que natildeo sabem pensar o que natildeo pensam e dizer
o que natildeo dizem Algueacutem que tenha algo correto a dizer se esforccedilaraacute por
exprimi-lo de maneira indistinta ou distinta (Schopenhauer SOE 39)
Podemos perceber entatildeo que ao criticar o estilo ldquoobscurordquo e ldquopomposordquo de seus
contemporacircneos Schopenhauer aponta como causa deste estilo natildeo somente a sua falta
de mateacuteria mas tambeacutem uma atitude consciente e arquitetadamente maldosa e com
toda a sua forccedila retoacuterica condena esta atitude
Nobre bdquoatualidade‟ magniacuteficos epiacutegonos geraccedilatildeo crescida no
leite materno da filosofia hegeliana Pela gloacuteria eterna quereis apertar
vossas garras em nossa antiga liacutengua para que a marca com um icnoacutelito
conserve para sempre o vestiacutegio de vossa existecircncia insiacutepida e sombria
Mas Dicirc Meliora Fora paquidermes fora Esta eacute a liacutengua alematilde Nela se
expressaram homens ou melhor nela cantaram grandes poetas e grandes
pensadores escreveram Arredai as patas Ou natildeo tereis o que comer (Soacute
isso os assusta) (Schopenhauer SOE 72-73)
23
A uacuteltima frase desta citaccedilatildeo nos eacute aclarada pelo texto Sobre a filosofia universitaacuteria
onde o filoacutesofo expotildee os argumentos de sua criacutetica agrave filosofia produzida em seu tempo
Para Schopenhauer os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo podem devido agrave sua funccedilatildeo
estatal se imiscuir do compromisso poliacutetico-religioso que seu cargo exige e
conseguintemente sustentados pelo Estado tratam de fazer sua apoteose Nas palavras
de Cacciola constantes na introduccedilatildeo agrave traduccedilatildeo brasileira do referido texto
ldquoSchopenhauer eacute um continuador da criacutetica romacircntica ao filisteiacutesmo que se origina em
Tieck A ironia que visa os homens de vida tatildeo regular como o reloacutegio lhe eacute bem
familiar O filisteu eacute o erudito pedante que soacute pensa na proacutepria vantagem O professor
de filosofia que pauta seus ensinamentos de acordo com os ditames do Estado e da
religiatildeo eacute o tipo acabado do filisteu A idolatria do Estado eacute a apoteose do filisteiacutesmo
(Schopenhauer SFU XXX) Por traacutes das ideacuteias dos ldquofiloacutesofos de profissatildeordquo estaria
incutido o retorno disfarccedilado da ldquoteologia judaicardquo de uma ldquopsicologia racionalrdquo da
ldquoliberdade da vontaderdquo e outros dogmas que de acordo com Schopenhauer refletem a
sua vocaccedilatildeo de trabalharem ldquoin maiorem Dei gloriamrdquo como exigido pela ideologia
estatal daquele periacuteodo Natildeo podem sob a pena de perderem o sustento financeiro
pessoal e familiar bem como sob o custo de perderem o status que o cargo lhes confere
contrariar os dogmas patronais
ldquo[] o intelecto dessa gente permanece fiel agrave sua destinaccedilatildeo
natural de trabalhar a serviccedilo da vontade como normalmente acontece
Mas por isso mesmo existe sempre uma intenccedilatildeo como fundamento do
seu agir e pensar eles tecircm fins o tempo todo e soacute tomam conhecimento
do que diz respeito a esses fins e portanto soacute do que corresponde a
esses fins A atividade do intelecto liberto da vontade condiccedilatildeo da pura
objetividade e por isso de todas as grandes realizaccedilotildees permanece-lhes
eternamente estranha ndash eacute uma faacutebula para seu coraccedilatildeordquo (Schopenhauer
SFU 63)
Desta forma os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo estariam voltados para a investigaccedilatildeo
objetiva da ldquoverdaderdquo a qual exigiria o distanciamento de todo e qualquer interesse
24
pessoal De acordo com o sistema schopenhaueriano tal distanciamento eacute um dom raro
com o qual a natureza a poucos contempla Na metafiacutesica schopenhaueriana a natureza
eacute aristocraacutetica O gecircnio eacute fenocircmeno raro seja ele filoacutesofo ou artista A percepccedilatildeo
objetiva do mundo alheia aos interesses pessoais da vontade individual eacute uma exceccedilatildeo
que soacute se manifesta raramente e as pessoas atadas aos interesses pessoais de sua
vontade natildeo podem reconhececirc-lo imediatamente Estes gecircnios produzidos pela natureza
seriam os verdadeiros educadores do mundo e os ldquoprofessores de filosofiardquo ao tentar
representar este papel que soacute agrave natureza cabe eleger causam-lhe repulsa
Tantas mentes comuns que se acham por cargo e profissatildeo no
dever de representar papeacuteis que a natureza nem ao menos lhes atribuiacutera e
de transportar cargas que exigem ombros de gigantes espirituais
oferecem na realidade um espetaacuteculo deveras lamentaacutevel Pois escutar
cantar os roucos e ver danccedilar os coxos eacute penoso mas ouvir filosofar a
mente limitada eacute insuportaacutevel (Schopenhauer SFU 34)
Prova do embotamento da capacidade de reconhecimento de uma produccedilatildeo genial era
para o filoacutesofo o fato de seus contemporacircneos ignorarem ou mesmo passarem agrave
margem do que seria a mais importante produccedilatildeo filosoacutefica do periacuteodo a cisatildeo entre o
real e o ideal perpetrada pela primeira criacutetica kantiana Esta era para o filoacutesofo a maior
prova do demeacuterito filosoacutefico de seus contemporacircneos preocupados com seus interesse
pessoais alheios a uma observaccedilatildeo objetiva do mundo natildeo levaram em consideraccedilatildeo os
limites impostos pela primeira criacutetica kantiana a toda investigaccedilatildeo racional
Depois de Kant ter cortado o nervo de todas as provas possiacuteveis
da teologia ndash tatildeo incisivamente que desde entatildeo ningueacutem mais pocircde
meter-se com elas ndash o esforccedilo filosoacutefico em quase cinquumlenta anos tem
consistido nas diversas tentativas de insinuar sutil e astuciosamente a
teologia e os escritos filosoacuteficos nada mais satildeo na sua maioria do que
tentativas infrutiacuteferas de reanimar um cadaacutever sem vida (Schopenhauer
SFU 81)
Natildeo nos interessa aqui adentrarmo-nos aos reais motivos existentes por
traacutes dos vitupeacuterios schopenhauerianos contra os pensadores de seu tempo nem
25
tampouco fazer juiacutezo valorativo sobre a importacircncia da filosofia da vontade em
comparaccedilatildeo ao idealismo absoluto Dentro do objetivo proposto qual seja situar
historicamente a filosofia da vontade e apontar suas influecircncias o importante eacute ressaltar
que a filosofia contemporacircnea a Schopenhauer natildeo fez efeito sobre a sua proacutepria a ponto
de modificaacute-la em seu conteuacutedo conforme esclarece o proacuteprio filoacutesofo ldquo [] meus
contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes permaneci
estranhosrdquo (apud Lefranc 2005 17) Eacute fundamental verificarmos que apesar do
sistema schopenhaueriano ter se desenvolvido agrave margem do idealismo de entatildeo seu
autor natildeo o desconhecia e muitas das ilustraccedilotildees e argumentaccedilotildees utilizadas por ele na
explicaccedilatildeo de suas teorias apoiavam-se nesta sua contenda com o seu tempo
Entretanto como a filosofia de seu tempo pretende-se herdeira do kantismo assim
tambeacutem procede Schopenhauer e a suas criacuteticas ao idealismo absoluto estatildeo
fundamentadas em sua pretensatildeo a uma heranccedila direta da filosofia kantiana Sobre a
heranccedila de Kant Schopenhauer esclarece ldquoEm todo caso natildeo reconheccedilo que tenha
acontecido algo na filosofia entre ele e mim por conseguinte ligo-me imediatamente a
elerdquo (Schopenhauer MVR 525)
Natildeo obstante as diversas criacuteticas ao retorno kantiano ao dogmatismo8
das quais a obra de Schopenhauer estaacute recheada sua admiraccedilatildeo por ele foi tambeacutem
abundantemente expressa Considerava-o ldquoa inteligecircncia mais original jaacute criada pela
naturezardquo (Schopenhauer SFU52) e afirmava que seus escritos capitais eram o ldquo[]
fenocircmeno mais importante que ocorreu ao longo dos uacuteltimos dois mil anos na filosofia
[]rdquo (Schopenhauer MVR 22) O maior reflexo desta admiraccedilatildeo pode ser observada
8 Nas palavras de Cacciola ldquoO criticismo de Kant teria segundo Schopenhauer perdido sua forccedila inicial
na segunda ediccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura Ou seja Schopenhauer acusa Kant de uma ldquorecaiacuteda no
dogmatismordquo por ter amenizado seu confronto com a teologia A ameaccedila dogmaacutetica jaacute configurada na
filosofia teoacuterica concretiza-se na Eacutetica de Kant quando esta acolhe como postulados Deus
imortalidade da alma e liberdade No poacutes-kantismo a importacircncia crescente atribuiacuteda agrave filosofia praacutetica
de Kant a expensas de sua criacutetica do conhecimento teria levado a uma espeacutecie de contaminaccedilatildeo da
razatildeo teoacuterica pela razatildeo praacutetica fazendo com que a primeira se transformasse num oacutergatildeo apto para
captar o Absolutordquo (Cacciola 1994 20)
26
no fato de que eacute da filosofia kantiana que Schopenhauer retira o leitmotiv para o
desenvolvimento da ideacuteia central9 de sua filosofia Esta ideacuteia central eacute aquela contida
concisamente no tiacutetulo de sua obra principal O mundo como vontade e como
representaccedilatildeo10
A dualidade formada entre representaccedilatildeo e vontade atraveacutes da qual
Schopenhauer acredita ter desvendado o ldquomisteacuteriordquo cosmoloacutegico eacute uma apropriaccedilatildeo
assumida dos conceitos kantianos de fenocircmeno e coisa-em-si respectivamente
Dizemos apropriaccedilatildeo pois aqueles conceitos satildeo acrescidos na filosofia
schopenhaueriana de caracteriacutesticas singulares Eacute com base nesta dualidade de
perspectivas de conhecimento do mundo inspirada na primeira criacutetica kantiana que o
filoacutesofo desenvolve as demais teorias que compotildeem seu sistema sejam elas a esteacutetica a
eacutetica a poliacutetica etc
Para Schopenhauer ldquoo maior meacuterito de Kant eacute a distinccedilatildeo entre
fenocircmeno e coisa-em-sirdquo (Schopenhauer MVR 526) Esta distinccedilatildeo foi o que
possibilitou a ldquorevoluccedilatildeo copernicanardquo realizada sobre o dogmatismo anterior A partir
daquele momento ldquoo mundo objetivo como o conhecemos natildeo pertence agrave essecircncia das
coisas em si mesmas mas eacute seu mero FENOcircMENO condicionado exatamente por
aquelas mesmas formas que se encontram a priori no intelecto
humanordquo(Schopenhauer MVR 530) Na teoria kantiana temos o espaccedilo e o tempo
como formas da sensibilidade que na filosofia de Schopenhauer satildeo associadas agrave
faculdade do entendimento juntamente com a causalidade uacutenica das doze categorias
kantianas do entendimento mantidas por Schopenhauer em seu sistema Desta forma o
mundo enquanto representaccedilatildeo eacute aquele que se apresenta para o sujeito enquanto objeto
9 Quando dizemos ideacuteia central havemos de lembrar que no sistema schopenhaueriano esta categorizaccedilatildeo
eacute singular (o tema seraacute tratado no iniacutecio do proacuteximo capiacutetulo) 10
A importacircncia que o filoacutesofo daacute ao tiacutetulo de uma obra eacute esclarecedora para a compreensatildeo da
importacircncia de sua ideacuteia central ldquoo que o sobrescrito deve ser para uma carta eacute o que um tiacutetulo deve ser
para um livro ou seja antes de tudo deve ter o objetivo de destinaacute-lo agrave parte do puacuteblico que pode se
interessar por seu conteuacutedo Sendo assim o tiacutetulo precisa ser caracteriacutestico e por ser naturalmente
breve deve ser conciso lacocircnico pregnante e se possiacutevel um monograma do conteuacutedordquo
(Schopenhauer SOE 09-10)
27
condicionado por estas trecircs formas presentes a priori no intelecto humano tempo
espaccedilo e causalidade Quanto ao mundo noumecircnico que dentro da teoria kantiana eacute um
ldquox desconhecidordquo Schopenhauer o explica atraveacutes da Vontade sua traduccedilatildeo da coisa-
em-si Essa dualidade que traz agrave tona a ldquocompleta diversidade entre o ideal e o realrdquo
(Schopenhauer MVR 527) doutrina que de acordo com Schopenhauer (MVR 528) foi
expressa por Kant de forma soacutebria calma demonstrada e incontestaacutevel jaacute havia sido
expressa tambeacutem em linguagem mais miacutetica e poeacutetica por outras duas doutrinas que
tambeacutem estatildeo profundamente presentes na obra Schopenhaueriana Platatildeo e os escritos
indianos dos Vedas e Puranas
Os estudos das obras de Platatildeo e Kant foram recomendaccedilatildeo de Schultze
um dos professores de Schopenhauer em Gottingen (Weissmann 1980 54) e formam os
pilares filosoacuteficos do sistema schopenhaueriano A separaccedilatildeo entre o real e o ideal
executada por Kant eacute vista tambeacutem na obra platocircnica Sua teoria das ideacuteias bem como
sua alegoria da caverna satildeo expressotildees de uma intuiccedilatildeo da existecircncia daquela separaccedilatildeo
O que Kant teria sistematizado a seu modo eacute a mesma verdade que ldquojaacute Platatildeo
incansavelmente repete e na maioria das vezes exprime em sua linguagem do seguinte
modo este mundo que aparece aos sentidos natildeo possui nenhum verdadeiro ser mas
apenas um incessante devir ele eacute e tambeacutem natildeo eacute sua apreensatildeo natildeo eacute tanto um
conhecimento mas uma ilusatildeordquo (Schopenhauer MVR 528)
Aleacutem de Platatildeo os livros sagrados dos indianos afirmavam esta ldquoilusatildeordquo
ldquofantasmagoriardquo do mundo e constituem tambeacutem uma fonte frequumlentemente utilizada
por Schopenhauer O contato do nosso filoacutesofo com o pensamento oriental se deu
quando do seu encontro com o orientalista Friedrich Majer no salatildeo de sua matildee em
28
Weimar A partir de entatildeo o interesse do filoacutesofo pelo pensamento oriental foi se
intensificando ao longo de sua vida 11
A mesma verdade representada de modo completamente outro eacute
tambeacutem uma doutrina capital dos vedas e puranas a saber a doutrina de
Maia pela qual natildeo se entende outra coisa senatildeo aquilo que Kant nomeia
o fenocircmeno em oposiccedilatildeo agrave coisa-em-si pois a obra de maia eacute
apresentada justamente como este mundo visiacutevel no qual estamos um
efeito maacutegico que aparece na existecircncia uma aparecircncia inconstante e
inessencial em si destituiacuteda de ser comparaacutevel agrave ilusatildeo de oacutetica e ao
sonho um veacuteu que envolve a consciecircncia humana um algo do qual eacute
igualmente falso e igualmente verdadeiro dizer que eacute ou natildeo eacute
(Schopenhauer MVR 528)
Estas trecircs doutrinas estavam admitidamente presentes quando da
elaboraccedilatildeo do nuacutecleo conceitual fundamental da posteriormente nominada Filosofia da
Vontade Entretanto aleacutem de formarem seu nuacutecleo conceitual podemos encontraacute-las
ainda posteriormente em outros instantes desta filosofia O pensamento oriental seraacute
figura fortemente presente na eacutetica schopenhaueriana desenvolvida no quarto livro do
Mundo onde o filoacutesofo adotaraacute como fundamento de sua eacutetica o sentimento da
compaixatildeo jaacute presente na doutrina budista Platatildeo e Kant satildeo ainda influecircncias
fundamentais como veremos no proacuteximo capiacutetulo da esteacutetica schopenhaueriana O
primeiro novamente atraveacutes de sua teoria das ideacuteias seraacute utilizado por Schopenhauer na
definiccedilatildeo do objeto artiacutestico Do segundo poderemos notar sua influecircncia nas teorias
schopenhauerianas do sublime da imaginaccedilatildeo e da contemplaccedilatildeo desinteressada todas
elas fundamentais agrave compreensatildeo da teoria da arte poeacutetica
- - - - - - - - - -
11
Suas fontes principais eram o Oupnekacutehat uma traduccedilatildeo latina dos vedas e o Asiatic Journals jornal
publicado pela sociedade asiaacutetica fundada em 1784 Para uma referecircncia completa das citaccedilotildees orientais
na obra de Schopenhauer veja o apecircndice do artigo de Moira Nicholls The influences of Eastern Thought
on Schopenhaueracutes Doctrine of the Thing-in-itself (in Janaway 1999 197-204)
29
Apresentadas as principais influecircncias teoacutericas do sistema
schopenhaueriano passemos a uma breve descriccedilatildeo do ambiente cultural que naquele
momento tinha como foco um projeto de fundaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para o teatro e a
literatura germacircnicas Tal projeto envolveu os mais importantes dramaturgos criacuteticos
escritores e pensadores do periacuteodo imediatamente anterior a Schopenhauer12
e eacute
tambeacutem posteriormente retomado por Nietzsche em seu Nascimento da Trageacutedia Sua
importacircncia para a filosofia da vontade pode ser medida pela recorrente referecircncia feita
a estes pensadores nas obras dos filoacutesofos Seu iniacutecio em meados do seacuteculo XVIII deu-
se pela influecircncia exercida pelo historiador da arte Johann J Winckelmann junto aos
escritores poetas e dramaturgos posteriores dentre eles Lessing Goethe e Schiller
A influecircncia winckelmanniana que de acordo com Butler (1958 11)
criou ondas cujo violento distuacuterbio ldquoainda varrem as praias do seacuteculo XXrdquo se pautou
em duas noccedilotildees fundamentais13
a imitaccedilatildeo dos antigos e o belo ideal Winckelmann
propunha um novo modelo no qual a arte germacircnica deveria se basear para atingir uma
grandiosidade rara e ldquoinimitaacutevelrdquo a imitaccedilatildeo dos gregos Por esta imitaccedilatildeo o
historiador natildeo propunha uma mera coacutepia das obras de arte gregas poreacutem uma imitaccedilatildeo
do modo de produccedilatildeo artiacutestica dos gregos qual seja sintetizar a beleza ideal descoberta
na observaccedilatildeo da diversidade objetiva da natureza Esta proposta de um retorno ao
modelo antigo coloca Winckelmann na esteira da conhecida querela entre antigos e
modernos e eacute a igniccedilatildeo para o periacuteodo literaacuterio conhecido como classicismo germacircnico
Esta disputa quanto agrave valorizaccedilatildeo das obras poeacuteticas antigas ou modernas estaraacute de um
modo ou de outro presente nas teorias schopenhaueriana e nietzscheana da trageacutedia
12
De acordo com Schopenhauer as obras de tais poetas e escritores assim como a filosofia de Kant satildeo
exemplos para os quais a literatura e a filosofia pobres de seu tempo deveriam se voltar No que se refere
ao uso da liacutengua ele aconselha ldquoLede vede qual liacutengua Winckelmann Lessing Klopstock Wieland
Goethe Buumlrger Schiller falaram e emulai-a mas natildeo fazei o mesmo com o jargatildeo estupidamente
excogitado pelos miseraacuteveis literatos atuais e entre eles pelos professores que vatildeo agrave escola de liacutenguardquo
(Schopenhauer SOE 57-58) 13
Esta duas noccedilotildees fundamentais satildeo ressaltadas por Suumlssekind e Machado em seus trabalhos sobre o
tema Veja Suumlssekind 2008 67-77 e Machado 2006 9-14
30
Como veremos posteriormente Schopenhauer privilegiaraacute a trageacutedia moderna em
detrimento da antiga argumentando que aquela cumpre com maior competecircncia o seu
objetivo enquanto forma de arte qual seja provocar repulsa agrave vontade de viver e
estimular sua negaccedilatildeo Apesar deste privileacutegio pelas obras traacutegicas modernas o filoacutesofo
natildeo deixa como seus contemporacircneos de ter os gregos como modelo e natildeo satildeo raros
seus elogios agraves produccedilotildees helecircnicas Para Schopenhauer Winckelmann foi para a
histoacuteria da arte assim como ele o eacute para a da filosofia um exemplo do modo epiciacuteclico
atraveacutes do qual a natureza de tempo em tempo faz avanccedilar o conhecimento do gecircnero
humano Para o filoacutesofo a retomada do projeto kantiano realizada pelo seu sistema eacute a
demonstraccedilatildeo de que entre ele e Kant nenhum conhecimento foi produzido Como
exemplo deste esquema epiciacuteclico na histoacuteria da arte Schopenhauer utiliza-se do
retorno de Winckelmann agrave beleza claacutessica o que nos mostra a importacircncia dada pelo
filoacutesofo agrave forma de arte grega bem como ao projeto inaugurado pelo historiador da arte
Apoacutes explicar o esquema epiciacuteclico da evoluccedilatildeo dos progressos humanos
Schopenhauer diz
Para quem deseja poreacutem ter uma prova do esquema geral dos
epiciclos aqui exposto com base na histoacuteria da arte basta observar a
escola de escultura de Bernini que florescia ainda no seacuteculo passado
particularmente em seu desenvolvimento francecircs sucessivo e que
representava a natureza comum em vez da beleza claacutessica e o decoro do
minueto francecircs em vez da simplicidade e da graccedila antigas Tal escola
faliu quando apoacutes a repreensatildeo de Winckelmann voltou-se agrave escola dos
antigos (Schopenhauer SOE 110)
Nietzsche por sua vez seguiraacute o caminho winckelmanniano de exaltaccedilatildeo da forma de
arte antiga apresentando a trageacutedia grega como modelo para a arte moderna e elogiando
a iniciativa de seus predecessores em valorizar e recuperar a arte helecircnica
31
Conviria que alguma vez se pesasse diante dos olhos de um juiz
insubornaacutevel em que tempo e em que homens o espiacuterito alematildeo se
esforccedilou mais vigorosamente por aprender dos gregos e se admitirmos
com confianccedila que esse louvor uacutenico deveria ser atribuiacutedo agrave nobiliacutessima
luta de Goethe Schiller e Winckelmann pela cultura haveria em todo
caso que acrescentar que desde aquele tempo e depois das influecircncias
imediatas daquela luta tornou-se cada vez mais fraca de maneira
incompreensiacutevel a aspiraccedilatildeo de se chegar por uma mesma via agrave cultura e
aos gregos (Nietzsche NT 120)
Podemos perceber entatildeo a importacircncia do helenismo proposto por Winckelmann no
pensamento germacircnico ao observarmos a sua duraccedilatildeo tendo em vista que mais de um
seacuteculo separa o historiador da arte e o filoacutesofo da vontade de poder o que confirma a
forccedila de suas propostas para uma cultura em formaccedilatildeo e justifica o epiacuteteto com o qual
Butler caracterizou este periacuteodo dizendo que nele vemos ldquoa tirania da Greacutecia sobre a
Alemanhardquo14
O segundo ponto fundamental da teoria da arte winckelmanniana o belo
ideal natildeo provocou menor interesse em seu tempo Este belo ideal era alcanccedilado a
partir da reuniatildeo em uma uacutenica obra harmocircnica daquilo que o artista observa de mais
belo na natureza
A natureza tem seus defeitos o corpo mais belo natildeo deixa de tecirc-los e
nele encontramos frequumlentemente partes que em outros satildeo mais belas ou
podem supor-se mais perfeitas [] Os gregos trataram de reunir as formas
elegantes de vaacuterios corpos belos como sabemos pelo diaacutelogo de Soacutecrates com o
ceacutelebre pintor Parrasio [] Esta seleccedilatildeo das partes belas e sua harmocircnica
associaccedilatildeo em uma soacute figura produziu a beleza ideal (Winckelmann 2002
130)
Tal beleza encontrou sua manifestaccedilatildeo primeira na Greacutecia do periacuteodo helecircnico devido
ao favorecimento das condiccedilotildees geograacutefico-climaacuteticas15
e poliacuteticas16
Aleacutem da beleza
14
Tiacutetulo de sua obra Butler 1958 15
Sobre a influecircncia climaacutetica Winckelmann deduz ldquoA natureza depois de haver se manifestado em
gradaccedilotildees extremas de frio e de calor se estabeleceu na Greacutecia como em seu centro e por isso reina
naquele paiacutes uma temperatura intermediaacuteria entre o inverno e o veratildeo E quanto mais se aproxima deste
centro mais claridade e serenidade oferece e suas obras se manifestam em formas mais graciosas e
amaacuteveis e com detalhes mais caracteriacutesticos e decididosrdquo (Winckelmann 2002106) 16
Sobre as condiccedilotildees poliacuteticas sejam elas patriarcais democraacuteticas ou tiracircnicas Winckelmann conclui o
seguinte ldquoCom relaccedilatildeo ao regime poliacutetico e o governo da Greacutecia a liberdade eacute uma das causas da
preeminecircncia dos gregos na arte Tambeacutem a liberdade parece ter estabelecido na Greacutecia a sua sede existia
32
formal retirada da diversidade das formas naturais eleitas as mais belas as obras gregas
eram exemplares devido agrave importacircncia dada pelos artistas agrave sua expressatildeo A obra de
arte deve sua forccedila tanto agrave beleza das formas quanto agrave expressatildeo da alma nela contida
De acordo com Winckelmann ldquoa expressatildeo de uma alma grande vai muito aleacutem da
plasmaccedilatildeo de uma bela naturezardquo isto ocorre devido ao fato de que para o historiador
da arte ldquona Greacutecia a sabedoria estendia a matildeo agrave arte e insuflava nas figuras almas
mais que comunsrdquo (Winckelmann 1958 19) As caracteriacutesticas que esta expressatildeo deve
possuir satildeo aquelas contidas na passagem mais famosa da obra de Winckelmann na
qual ele descreve ainda como exemplo daquela expressatildeo artiacutestica o grupo estatuaacuterio
do Laocoonte que por sua vez seraacute alvo de uma grande controveacutersia posterior da qual
participaratildeo dentre outros Lessing Herder Goethe Schelling e Schopenhauer
Reproduzimos a passagem de Winckelmann em sua integridade
A caracteriacutestica geral e principal das obras mestras gregas eacute uma
nobre simplicidade e uma serena grandeza tanto na atitude como na
expressatildeo Assim como nas profundidades o mar estaacute sempre calmo por
muito que se agite a superfiacutecie do mesmo modo a expressatildeo nas figuras
dos gregos mostra em meio a todas as paixotildees uma alma grande e
comedida Isso transmite o rosto do Laocoonte ndash e natildeo soacute o dele ndash em
meio agrave mais violenta dor O sofrimento que aparece em todos os
muacutesculos e fibras do corpo e que no baixo ventre contraiacutedo se
experimenta tatildeo intensamente que parecemos senti-lo natildeo se exterioriza
contudo mediante qualquer ira no rosto e em toda a atitude Natildeo lanccedila
um grito terriacutevel tal como Virgiacutelio cantou em seu Laocoonte A abertura
da boca natildeo o permitiria Mais parece um suspiro angustiado como o
descreve Sadolet A dor do corpo e a grandeza da alma estatildeo distribuiacutedos
com igual forccedila atraveacutes de toda a composiccedilatildeo da figura e em certa
medida estatildeo equilibrados Laocoonte sofre mas sofre como o
Filoctetes de Soacutefocles sua dor nos toca a alma mas desejariacuteamos poder
suportar essa dor com a grandeza desse homem (Winckelmann 1958
18-19 grifo nosso)
inclusive junto ao tronos de seus reis que governavam paternalmente a seus suacuteditos antes que mais
ilustrados gozassem do destino de uma completa liberdade Homero chama a Agamemnoacuten de pastor de
seus povos com o que queria designar sua ternura com seus subordinados e sua preocupaccedilatildeo constante
pela felicidade dos mesmos Eacute bem verdade que depois surgiram tiranos mas natildeo o foram mais para uma
determinada cidade e a naccedilatildeo inteira jamais reconheceu um soberano uacutenicordquo (Winckelmann 2002 109)
33
Desta famosa passagem retiramos dois momentos que especialmente nos interessam O
primeiro dele eacute a enunciaccedilatildeo que caracterizaraacute o ideal de beleza das obras gregas nobre
simplicidade e uma serena grandeza Este ideal winckelmanniano de beleza eacute o que
torna a arte grega nas palavras de Suumlssekind ldquoinimitaacutevel e ao mesmo tempo faz dela o
modelo a ser imitadordquo (Suumlssekind 2008 69) Interessa-nos especialmente devido agrave
influecircncia desta definiccedilatildeo para a teoria do jovem professor de filologia da Basileacuteia
Podemos ver ateacute mesmo pelo vocabulaacuterio utilizado para descrever a arte grega a
proximidade e a influecircncia exercida por estes conceitos nas teorias esteacuteticas do primeiro
Nietzsche Luminosidade serenidade harmonia satildeo alguns dos conceitos que
posteriormente seratildeo utilizados por Nietzsche ao definir o seu impulso artiacutestico
apoliacuteneo17
O segundo momento - quando Winckelmann defende o espiacuterito grego na
escultura do Laocoonte em contraposiccedilatildeo ao personagem de Virgiacutelio comparando esta
representaccedilatildeo escultural com o Filoctetes de Soacutefocles - seraacute o precursor do posterior
debate sobre as fronteiras que separam as formas de arte Para Winckelmann ldquoa nobre
simplicidade e a serena grandeza das estatuas gregas eacute tambeacutem a verdadeira
caracteriacutestica dos escritos gregos da melhor eacutepoca dos escritos da escola
socraacuteticardquo(Winckelmann 1958 31) O debate sugerido pela passagem do qual
participaraacute posteriormente o proacuteprio Schopenhauer seraacute iniciado por outro pensador
de grande importacircncia para o projeto cultural alematildeo Gotthold Ephraim Lessing
Lessing em sua obra Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da
poesia apresentaraacute a contenda que chegaraacute ateacute Schopenhauer Para Lessing o ponto de
discordacircncia com Winckelmann estaacute no motivo pelo qual na escultura o Laocoonte natildeo
17
Segundo Rodriges (2007 93-126) tambeacutem o conceito do impulso dionisiacuteaco estaria mesmo que em
germe presente nos estudos de Winckelmann Segundo seu artigo o mapeamento da origem e
desenvolvimento da discussatildeo sobre os citados impulsos artiacutesticos da natureza ou seja sobre a
importacircncia dos deuses Apolo e Dioniacutesio na cultura grega abrangeria necessariamente diversas aacutereas do
pensamento alematildeo desde Winckelmann dentre elas os estudos filoloacutegicos o movimento romacircntico e as
filosofias idealistas
34
apresenta as caracteriacutesticas de quem grita e lamenta Como vimos para Winckelmann o
conjunto estatuaacuterio em questatildeo eacute exemplar pelo fato de transmitir atraveacutes da atitude
estoacuteica diante da dor a grandeza de alma que seria a regra universal da verdadeira arte
grega Esta grandeza enquanto regra universal estaria ainda de acordo com o
historiador da arte presente tanto nas formas pictoacutericas como nas obras poeacuteticas
Contrapondo-se a Winckelman Lessing afirma - exemplificando atraveacutes de passagens
de poetas queridos ao proacuteprio Winckelmann como Homero e Soacutefocles - que em vaacuterios
momentos da poesia antiga diversos personagens dentre eles deuses e heroacuteis proferem
exaltados lamentos e gritos e isto natildeo lhes subtrai a grandeza da alma Sendo assim se
na poesialdquoo gritar na sensaccedilatildeo de dor corporal pode coexistir muito bem com uma
grande alma portanto a expressatildeo de uma tal alma natildeo pode ser a causa pela qual
apesar disso o artista natildeo quer imitar esse grito no seu maacutermore antes deve haver um
outro motivo por que aqui ele separa-se do seu rival o poeta que expressa esse grito
com o melhor propoacutesitordquo(Lessing 1998 86) O motivo pelo qual em sua representaccedilatildeo
estatuaacuteria o Laocoonte natildeo grita eacute para Lessing uma questatildeo de limitaccedilatildeo da forma de
expressatildeo escultoacuterica que ao se submeter agrave ldquolei da belezardquo natildeo pode representar o grito
desfigurador Em suas palavras
O mestre visava a suprema beleza sob as condiccedilotildees aceitas da dor
corporal Esta em toda a sua violecircncia desfiguradora era incompatiacutevel
com aquela Ele foi obrigado a reduzi-la ele foi obrigado a suavizar o
grito em suspiro natildeo porque o grito denuncia uma alma indigna mas
antes porque ele dispotildee a face de um modo asqueroso (Lessing 1998
92)
Devemos ressaltar que segundo a teoria artiacutestica de Lessing para quem as leis a que
devem obedecer a arte estatildeo ligadas agrave sua interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica a arte eacute
julgada atraveacutes do seu efeito Neste contexto ao conceder a seus personagens
caracteriacutesticas de humanidade como por exemplo a manifestaccedilatildeo da dor atraveacutes de
35
lamentos e gritos o poeta estaria aproximando o heroacutei traacutegico do puacuteblico a ser atingido
e consequumlentemente maximizando a identificaccedilatildeo entre eles e com isto o efeito
esperado qual seja a catarse atraveacutes do temor e da compaixatildeo Esta identificaccedilatildeo
alcanccedilada por via da demonstraccedilatildeo dos lamentos dos heroacuteis dramaacuteticos natildeo pode ser
obtida da mesma forma pelas artes pictoacutericas Nestas que satildeo expressotildees de um
momento uacutenico a beleza natildeo pode deixar de estar presente pois ela eacute um dos
ingredientes mais fundamentais do efeito buscado Na poesia o heroacutei natildeo seraacute
caracterizado em uma uacutenica accedilatildeo como ocorre na escultura Sendo assim o grito
narrado eacute apenas um momento do conjunto que iraacute definir o personagem
O Laocoonte de Virgiacutelio grita mas esse Laocoonte que grita eacute
justamente aquele que noacutes jaacute conhecemos e amamos como o patriota
mais cordato e o pai mais afetuoso Noacutes vinculamos o seu grito natildeo ao
seu caraacuteter mas antes apenas ao seu sofrimento insuportaacutevel Apenas
esse uacuteltimo noacutes ouvimos no seu grito e o poeta pode tornaacute-lo sensiacutevel
apenas graccedilas a esse grito (Lessing 1998 106)
Com isto tanto o escultor que suprime o grito quanto o poeta que o descreve ao
fazerem o fazem de acordo com as leis que regem suas respectivas formas de arte
Da contenda sobre o grito do Laocoonte e sua representaccedilatildeo escultoacuterica e
poeacutetica iratildeo participar ainda diversos pensadores Dentre os mais ilustres podemos
destacar Goethe cuja explicaccedilatildeo sobre a escultura proacutexima em muitos pontos da de
Lessing encontra-se nos Propileus Para o poeta o grupo estatuaacuterio ldquoesgota o seu objeto
e preenche com sucesso todas as condiccedilotildees da arterdquo (Goethe 2005126) Segundo
Goethe a escultura eacute limitada a um uacutenico momento da accedilatildeo e sua comparaccedilatildeo com a
poesia de Virgiacutelio eacute injusta O poeta a avalia assim como Lessing atraveacutes de seu efeito
ainda dentro das categorias poeacuteticas de Aristoacuteteles e destaca
O ser humano possui apenas trecircs sentimentos no sofrimento
proacuteprio e alheio o medo o terror e a compaixatildeo a previsatildeo temerosa de
um mal que se aproxima a percepccedilatildeo inesperada do sofrimento presente
36
e a participaccedilatildeo no sofrimento duradouro ou que passou todos os trecircs
sentimentos satildeo representados e suscitados por esta obra de arte e na
verdade na gradaccedilatildeo a mais conveniente (Goethe 2005 126)
Em sua obra principal Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 46 a seus comentaacuterios do
Laocoonte que seratildeo acrescidos de exemplos no posterior volume de suplementos
Reconhece o avanccedilo feito por Lessing ao colocar no lugar de um fundamento
psicoloacutegico um fundamento puramente esteacutetico e critica ainda as teorias psicoloacutegicas e
fisioloacutegicas de seu tempo como as de Hirt e Fernow18
Para Schopenhauer apesar de
sua aproximaccedilatildeo do que seria uma ldquoexplicaccedilatildeo corretardquo da obra Lessing natildeo encontrou
o seu ponto exato qual seja a explicaccedilatildeo de que o grito natildeo pertence ao domiacutenio de
uma representaccedilatildeo escultoacuterica
Antes de qualquer investigaccedilatildeo psicoloacutegica e fisioloacutegica sobre se
Laocoonte em sua situaccedilatildeo poderia gritar ou natildeo deve-se decidir em
relaccedilatildeo ao grupo de esculturas o seguinte que nele o grito natildeo pode ser
exposto pelo motivo de que a exposiccedilatildeo do grito reside por inteiro fora
do domiacutenio da escultura (Schopenhauer MVR 2005 303)
Para Schopenhauer a simples exposiccedilatildeo que representaria o grito ou seja ldquoo
escancarar violento da bocardquo natildeo pode ocasionar o efeito que o grito mesmo enquanto
forma de expressatildeo ocasionaria O efeito que o grito pode causar em uma arte
descritiva atraveacutes do uso da imaginaccedilatildeo do leitor ou mesmo na arte representativa no
teatro tornar-se-ia motivo de riso caso seja representado por uma boca escancarada na
arte plaacutestica Schopenhauer utiliza-se do exemplo do Laocoonte para demonstrar a
necessidade do estabelecimento de fronteiras entre as artes que devido agrave suas formas
devem obedecer agraves competecircncias determinadas pelo objeto representado (no caso da
teoria schopenhaueriana as competecircncias seratildeo determinadas pelas ideacuteias a serem
representadas como veremos posteriormente) Esta preocupaccedilatildeo com os limites entre as
18
Segundo Schopenhauer Hirt (Horen 1797 parte 10) apresenta a explicaccedilatildeo de que Laocoonte natildeo grita
pois estaacute impossibilitado pela sufocaccedilatildeo que o leva agrave morte Fernow por sua vez faz uma amalgama das
opiniotildees de Winckelmann Lessing e Hirt
37
formas artiacutesticas presente na esteacutetica schopenhaueriana e no Laocoonte de Lessing foi
contudo como nos lembra Suzuki (Rosenfield 2001 36-56) ignorada por Goethe
(como podemos ver pelos elementos da poeacutetica aristoteacutelica utilizados pelo poeta para
explicar a escultura na citaccedilatildeo presente na paacutegina anterior) e seraacute posteriormente
tambeacutem desconsiderada por Nietzsche em seu projeto de uma obra de arte total
Diante do acima exposto ainda tratando de Lessing podemos perceber
que toda a discussatildeo acerca do Laocoonte foi desencadeada pela motivaccedilatildeo de defesa da
arte poeacutetica agrave qual Lessing dedicou sua vida como escritor diretor e criacutetico teatral
Desta forma a importacircncia de Lessing para o tema em questatildeo nesta dissertaccedilatildeo estaacute
mais ligado ao seu papel junto a um projeto de formaccedilatildeo de um teatro alematildeo e sua
interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica Enquanto teoacuterico e criacutetico do teatro o autor da
Dramaturgia de Hamburgo exerceu grande influecircncia na cultura posterior ao oferecer a
seu tempo uma nova interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica que vai de encontro agraves
interpretaccedilotildees francesas e de Gottsched que eram por sua vez inflexiacuteveis em relaccedilatildeo agraves
regras (das unidades de espaccedilo tempo e lugar do estatuto social dos personagens da
linguagem e do nuacutemero de atos) Lessing atento agraves necessidades de uma burguesia em
ascensatildeo que natildeo se identificava mais com as concepccedilotildees aristocraacuteticas do modelo de
teatro francecircs e imbuiacutedo na construccedilatildeo do projeto de formaccedilatildeo cultural de uma naccedilatildeo
fragmentada oferece atraveacutes de suas interpretaccedilotildees uma seacuterie de elementos que estaratildeo
presentes nas consideraccedilotildees de pensadores posteriores Dentre estes elementos podemos
destacar as seguintes uma discussatildeo acerca dos conceitos de mimese temor
compaixatildeo catarse a defesa da utilizaccedilatildeo de caracteres mistos a liberdade do gecircnio
ante as regras o enaltecimento dos teatros espanhol e inglecircs principalmente de
Shakespeare
38
Ao tratarmos do referido projeto de um teatro alematildeo e tambeacutem do
classicismo germacircnico dois nomes ainda satildeo fundamentais para sua formaccedilatildeo bem
como eacute incontestaacutevel sua influecircncia sobre Schopenhauer e o jovem Nietzsche19
satildeo
eles Goethe e Schiller O primeiro deles maior dos poetas do classicismo germacircnico
foi um ampliador do projeto Winckelmanniano ldquoPois Goethe pensa o ideal de beleza
natildeo soacute em relaccedilatildeo agrave pintura e agrave escultura mas tambeacutem e principalmente em relaccedilatildeo agrave
poesia ou agrave arte dramaacutetica ampliando as ideacuteias de Winckelmann nesse domiacutenio como
teoacuterico e como criador de obras teatraisrdquo (Machado 2006 14) Seu classicismo
impresso em seus textos teoacutericos e na forma e conteuacutedo de diversas de suas produccedilotildees
literaacuterias eacute o auge do projeto Winckelmanniano Podemos ver na esteira de Machado
(2006 14-22) que o ideal de beleza proposto por Winckelmann eacute ainda o que domina a
noccedilatildeo Goetheana dos gregos e eacute apoiado neste ideal que o poeta interpreta a arte do
mundo helecircnico e a apresenta como um exemplo para a arte de seu tempo Ressaltamos
poreacutem que dada a sua extrema heterogeneidade como nos adverte Butler (1958 85)
encontrar um senso de harmonia interna no todo da obra goetheana eacute tarefa tatildeo incerta
como determinar o grau de sua influecircncia no pensamento de nossos filoacutesofos No que se
refere a Schopenhauer entretanto natildeo podemos deixar de ressaltar que sua convivecircncia
com o poeta foi norteada pelas discussotildees cientiacuteficas e filosoacuteficas que ocupavam o palco
de seus estudos agrave eacutepoca Goethe dedicou vinte anos de sua vida ao estudo das cores e
sua obra Doutrina das cores eacute o resultado desta investigaccedilatildeo Ela atraiu o interesse do
jovem Schopenhauer que apoacutes alguns encontros com Goethe dedicou-se a escrever a
sua proacutepria teoria que divergia em diversos pontos da teoria do poeta fato que marcou o
fim da relaccedilatildeo amistosa dos mesmos Sobre este periacuteodo de convivecircncia
19
De acordo com Martin (1996) a obra desenvolvida por Nietzsche enquanto escritor e pensador eacute
demasiado complexa para ser reduzida ou atribuiacuteda a determinada influecircncia Entretanto em uma
estatiacutestica crua podemos ter o vislumbre desta influecircncia como se segue ldquoSchopenhauer eacute referenciado
394 vezes na obra de Nietzsche Wagner 327 vezes a Goethe existem 311 menccedilotildees Schiller encontra-se
em nono lugar com 126 menccedilotildeesrdquo (Martin 1996 5)
39
especificamente sobre o episodio citado Goethe vai escrever mais tarde conforme
citaccedilatildeo de Safranski
O Dr Schopenhauer foi para mim um amigo benevolente
Estivemos de acordo em muitas coisas mas foi impossiacutevel evitar ao final
um certo distanciamento como dois amigos que ateacute certo momento
caminharam juntos se datildeo a matildeo para despedir pois querem dirigir-se um
ao norte outro ao sul perdendo-se rapidamente de vista um ao outro
(apud Safranski 1991 265)
Ainda na esteira do movimento de estabelecimento de um projeto
artiacutestico nacional encontramos Schiller que ao lado de Goethe foi o responsaacutevel pelas
maiores obras do classicismo literaacuterio de Weimar Para o estudo em questatildeo o que mais
nos interessa em sua obra eacute o periacuteodo no qual antes do contato com Goethe Schiller
produz seus escritos teoacutericos sobre a trageacutedia Estes estudos podem ser considerados
em uma perspectiva histoacuterica como uma ponte entre a interpretaccedilatildeo da trageacutedia nos
moldes puramente aristoteacutelicos e a trageacutedia vista enquanto forma de arte que para
atingir o efeito dela esperado deve refletir a condiccedilatildeo traacutegica do homem pensada com
base em elementos retirados da filosofia moral e da esteacutetica kantiana Em seus textos
teoacutericos sobre a poesia traacutegica pertencentes ao periacuteodo que Schiller assume ter estado
sob influecircncia da filosofia kantiana ele descreve a trageacutedia como expressatildeo do sublime
ndash conceito extraiacutedo da criacutetica kantiana do juiacutezo ndash como a representaccedilatildeo sensiacutevel da
dicotomia entre a liberdade moral a vontade individual (vontade tomada enquanto
faculdade de pensar e agir livremente) por um lado e a necessidade natural e instintiva
por outro Vemos pela primeira vez em Schiller a utilizaccedilatildeo de categorias filosoacuteficas
kantianas na elaboraccedilatildeo de uma teoria da trageacutedia o que teraacute continuidade com as
teorias do idealismo absoluto e a do proacuteprio Schopenhauer Este eacute um momento
extremamente importante devido ao fato de marcar toda a reflexatildeo futura sobre o tema
ao fundar o deslocamento de uma interpretaccedilatildeo poeacutetica da trageacutedia baseada em
40
comentaacuterios da obra aristoteacutelica para uma interpretaccedilatildeo do traacutegico enquanto fenocircmeno
que descreve a situaccedilatildeo do homem no mundo De acordo com Machado ldquoEacute do
encontro de um grande dramaturgo como Schiller com a filosofia de Kant -
principalmente a sua eacutetica considerada como uma filosofia da liberdade e sua
esteacutetica no que diz respeito agrave teoria do juiacutezo sobre o sublime ndash que nasce a primeira
filosofia do traacutegico uma reflexatildeo filosoacutefica original que criou um tipo novo de
pensamento sobre a trageacutediardquo (Machado 2006 54) Na teoria schopenhaueriana da
trageacutedia podemos ver caracteriacutesticas da teoria schilleriana Primeiramente a presenccedila
marcante da influecircncia kantiana no que se refere ao sublime Em segundo lugar a
leitura da trageacutedia enquanto instrumento para a percepccedilatildeo de uma ordem moral do
mundo Tais caracteriacutesticas seratildeo aprofundadas no capiacutetulo posterior Vale antecipar que
na obra do jovem Nietzsche poderemos ver a exaltaccedilatildeo de Schiller em sua tentativa de
compreensatildeo do mundo helecircnico aleacutem do elogio agrave teoria schilleriana do coro Veremos
entretanto uma criacutetica acirrada no que se refere ao projeto de um teatro enquanto
instituiccedilatildeo moral
Neste capiacutetulo foram delineadas as principais influecircncias filosoacuteficas que
alicerccedilaram o sistema schopenhaueriano bem como esboccedilaram-se as diversas teorias
artiacutesticas que surgiram no periacuteodo em questatildeo teorias estas que propuseram mateacuteria
para a formaccedilatildeo do pensamento de nossos filoacutesofos A partir da cisatildeo entre fenocircmeno e
noumeno proposta por Kant e sua primeira criacutetica Schopenhauer elabora as matrizes de
seu sistema e para ilustraacute-lo encontra apoio na cosmologia platocircnica e no pensamento
oriental Vimos ainda que sua teoria esteacutetica eacute alimentada pela frequumlentaccedilatildeo agraves
categorias apresentadas por artistas teoacutericos e criacuteticos de arte de seu periacuteodo Por seu
turno vimos com Winckelmann a origem do estudo sobre os gregos e sua arte aleacutem do
estabelecimento destes como um modelo para a arte alematilde projeto este que foi
41
retomado por Lessing que por sua vez intensificou o estudo e propocircs um modelo de um
teatro nacional independente projeto que seraacute mais tarde revisitado e aprofundado por
Goethe e Schiller Esta apresentaccedilatildeo de influecircncias eacute imprescindiacutevel para identificarmos
a origem de certos elementos que satildeo fundamentais ao entendimento da proacutepria doutrina
schopenhaueriana tais como o caraacuteter moral de sua teoria esteacutetica sua preocupaccedilatildeo
com o estabelecimento de limite entre as artes sua interpretaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo da poeacutetica
sua utilizaccedilatildeo de conceitos esteacuteticos kantianos (sublime belo e desinteresse) sua
apreciaccedilatildeo das obras modernas seu reconhecimento da produccedilatildeo claacutessica seu desprezo
agrave filosofia de seu tempo Eacute tambeacutem atraveacutes do mapeamento aqui feito de algumas de
suas influecircncias mesmo que brevemente apontado que poderemos mais tarde
identificar alguns dos aspectos originais e singulares de sua teoria
Quanto agraves influecircncias presentes na teoria da trageacutedia do jovem Nietzsche
apontaremos complementos no capiacutetulo correspondente Eacute imprescindiacutevel dar destaque
no que se refere agrave obra nietzscheana agrave sua formaccedilatildeo filoloacutegica ao seu conviacutevio com
Richard Wagner e agrave sua leitura do proacuteprio Schopenhauer - e isto seraacute feito
posteriormente Esperamos ter deixado claro ateacute aqui que diferentemente de Zaratustra
Nietzsche natildeo desceu simplesmente de uma montanha mas faz parte de uma tradiccedilatildeo
histoacuterica assim como Schopenhauer e que a contextualizaccedilatildeo de suas teorias eacute
fundamental para a identificaccedilatildeo dos elementos ali presentes que singularmente se
originaram do sistema metafiacutesico da Vontade
42
2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU
SUBSTRATO METAFIacuteSICO
ldquoOra se todo mundo como representaccedilatildeo eacute
a visibilidade da Vontade a arte eacute o
clareamento dessa visibilidade a cacircmera
obscura que mostra os objetos mais
puramente permitindo-nos melhor abarcaacute-
los e compreendecirc-los eacute o teatro dentro do
teatro a peccedila dentro da peccedila em Hamletrdquo
(Schopenhauer)
Utilizando-se de uma metaacutefora retirada do Eacutedipo de Soacutefocles Schopenhauer nos
oferece um exemplo da caracteriacutestica de conexatildeo interna dos temas abordados em sua
obra20
ldquo minha filosofia eacute como a Tebas de cem portas desde todos os lados se pode
entrar e atraveacutes de todos se pode chegar por um caminho direto ateacute o centrordquo
(Schopenhauer 2002 4) Tendo em vista que nosso objetivo neste capiacutetulo eacute apresentar
a teoria schopenhaueriana da trageacutedia e seus fundamentos filosoacuteficos utilizaremo-nos
desta porta para termos acesso ao sistema schopenhaueriano Procuraremos percorrer o
20
Barboza define bem esta caracteriacutestica marcante da filosofia schopenhaueriana ldquoSchopenhauer eacute o
filoacutesofo da organicidade Procura-a porque com ela onde quer que se esteja no seu sistema estar-se-aacute
em toda parte O todo conteria as partes e seria contido por elas De uma metafiacutesica da efetividade se vai
para uma do belo desta para a da eacutetica que por sua vez pode remeter agrave muacutesica por seu turno a nos
enviar para a efetividade numa por assim dizer circularidade virtuosa A unidade natildeo se perde do
horizonte de observaccedilatildeordquo (Barboza 2001 137)
43
substrato metafiacutesico sustentador da teoria do traacutegico schopenhaueriana e perceber assim
a conectividade interna existente entre sua cosmologia sua teoria esteacutetica e sua eacutetica
De posse deste meacutetodo procuraremos destacar os conceitos fundamentais da teoria
traacutegica e de sua visatildeo de mundo que viratildeo posteriormente se fazer presentes tambeacutem
na obra do jovem Nietzsche
21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo
Agrave descriccedilatildeo das artes poeacuteticas Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 51 do primeiro
volume e o capiacutetulo 37 do segundo volume de sua obra principal Tais descriccedilotildees
encontram-se por sua vez ao final dos trechos dedicados agrave teoria esteacutetica (livro III de
MVR e sus complementos) e finalizam seus apontamentos do que podemos chamar na
esteira de Young (2005) das artes natildeo-musicais21
Em ambos os casos a teoria da
trageacutedia estaacute localizada ao final da apresentaccedilatildeo Esta localizaccedilatildeo juntamente com as
diversas citaccedilotildees e exemplos retirados de peccedilas traacutegicas das quais o filoacutesofo se utiliza ao
longo de seu trabalho nos permite ver a importacircncia da arte traacutegica para Schopenhauer
Em sua teoria artiacutestica existe uma hierarquizaccedilatildeo das artes que leva em consideraccedilatildeo a
capacidade de cada uma em apresentar um grau especiacutefico de objetivaccedilatildeo da vontade
Na cosmologia schopenhaueriana a vontade essecircncia do mundo identificada como
sendo a coisa-em-si kantiana manifesta-se (torna-se objeto de conhecimento) atraveacutes de
diversos graus ndash que exprimem a nitidez com que a vontade se manifesta para o
observador - representados pelos reinos da natureza e finalmente pelo homem Desta
forma ela se objetivaria no mundo inorgacircnico atraveacutes das forccedilas magneacuteticas e da
gravidade no mundo vegetal atraveacutes das funccedilotildees orgacircnicas no mundo animal atraveacutes
21
Como veremos mais adiante a muacutesica eacute uma exceccedilatildeo no sistema das artes schopenhaueriano pois natildeo
se relaciona a uma objetivaccedilatildeo da vontade mas expressa a proacutepria vontade e desta forma natildeo figura na
sistematizaccedilatildeo hieraacuterquica
44
dos instintos e dos motivos assim como o faz no homem A classificaccedilatildeo das artes
corresponde portanto a esta hierarquizaccedilatildeo cosmoloacutegica de objetivaccedilatildeo da vontade22
Sendo assim a arquitetura e a hidraacuteulica mostram a objetivaccedilatildeo da vontade no seu grau
mais baixo ao expor o jogo das forccedilas que caracterizam a mateacuteria tais como a gravidade
rigidez dureza resistecircncia luz A jardinagem e a pintura da natureza satildeo as formas
artiacutesticas cujo fim eacute a exposiccedilatildeo da objetivaccedilatildeo da vontade que se manifesta no reino
vegetal A pintura de animais encontra-se em um niacutevel superior pois o reino animal
objeto de sua representaccedilatildeo expotildee de forma mais evidente a vontade objetivada Temos
ainda as pinturas de retratos a pintura histoacuterica e a escultura que das artes plaacutesticas
formam a categoria superior cujo objeto eacute a exposiccedilatildeo da vontade no grau mais elevado
de sua cognoscibilidade o homem Esta mesma exposiccedilatildeo a do homem eacute tambeacutem o
objeto da arte poeacutetica que agrave diferenccedila das artes que fazem sua exposiccedilatildeo de modo
puramente intuitivo eacute auxiliada pela imaginaccedilatildeo No aacutepice das artes poeacuteticas
encontramos a trageacutedia a uacuteltima arte natildeo-musical a ser descrita A arte traacutegica eacute aquela
que possui a caracteriacutestica de por sua natureza representar de forma mais ilustrativa a
objetivaccedilatildeo mais desenvolvida da vontade a vida humana e suas relaccedilotildees Veremos
mais tarde que aleacutem de corresponder agrave hierarquia de objetivaccedilatildeo da vontade mais
desenvolvida a arte traacutegica ocupa um lugar especial na filosofia schopenhaueriana
devido agrave ldquograndeza de seu efeitordquo (Schopenhauer 2005 333) Diante do exposto
podemos depreender que a arte possui na filosofia schopenhaueriana um papel
cognitivo e a trageacutedia por sua vez eacute a forma artiacutestica que por sua competecircncia cognitiva
ocupa o primeiro lugar entre as artes natildeo musicais
22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo
22
Vemos aqui um exemplo da citada inter-conectividade existente no sistema schopenhaueriano tendo
em vista que a elaboraccedilatildeo de sua classificaccedilatildeo artiacutestica obedece ao construto metafiacutesico do livro II de
MVR e sua consequumlente cosmologia
45
A tarefa a que se propotildee o sistema schopenhaueriano eacute a decifraccedilatildeo do ldquoenigma
do mundordquo ie encontrar uma resposta agrave pergunta o que eacute o mundo Esta tarefa tem
origem no idealismo subjacente na primeira criacutetica kantiana e de certa forma era uma
tarefa da qual estava imbuiacutedo todo o pensamento filosoacutefico daquele periacuteodo ie por
decifraccedilatildeo do enigma do mundo podemos entender a decifraccedilatildeo da coisa-em-si
kantiana Temos daiacute o ponto de partida da filosofia de Schopenhauer o idealismo
transcendental do mundo fenomecircnico Sob o ponto de vista da representaccedilatildeo o mundo eacute
objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito agraves condiccedilotildees a priori do
entendimento que para o filoacutesofo satildeo as categorias do espaccedilo do tempo e da
causalidade
Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das formas a priori do entendimento eacute
interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos advindos da filosofia Platocircnica e oriental
como um mundo ilusoacuterio Conforme a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana Platatildeo jaacute
identificava esta caracteriacutestica ilusoacuteria do mundo em sua contraposiccedilatildeo teoacuterica entre o
mundo fiacutesico onde o devir impossibilitava a apreensatildeo do ser e o mundo das ideacuteias
onde haveria o verdadeiro encontro com o ser das coisas Ainda de acordo com a
interpretaccedilatildeo de Schopenhauer os livros sagrados indianos Vedas e Puranas faziam
esta distinccedilatildeo atraveacutes da noccedilatildeo do veacuteu de maia a consciecircncia humana seria envolvida
por um veacuteu o que resultaria em uma visatildeo oniacuterica do mundo e impediria assim a
percepccedilatildeo da realidade
Entretanto o mundo pode ainda ser conhecido atraveacutes de um segundo ponto de
vista como vontade Este eacute o ponto de vista que Schopenhauer utiliza-se para decifrar a
incognosciacutevel coisa-em-si kantiana Percorrendo uma ldquovia subterracircneardquo de modo
imanente Schopenhauer identifica nas accedilotildees do corpo bioloacutegico os atos da vontade
46
enquanto coisa-em-si e de forma analoacutegica a estabelece como essecircncia governante do
mundo Faz-se necessaacuterio aqui ressaltar como o fazem Brum (1998 23) e Rosset23
que
natildeo devemos interpretar esta analogia como uma visatildeo antropomoacuterfica do mundo Essa
essecircncia do mundo encontrada empiricamente natildeo eacute todavia um ente racional uma
ldquoalma do mundordquo Se por um lado o mundo fenomecircnico eacute aquele onde o princiacutepio de
razatildeo24
estabelece as normas de funcionamento um mundo natildeo-fenomecircnico mundo em
si enquanto vontade se expressa por sua alogicidade irracionalidade Grundlosigkeit
(falta de fundamento) Essa essecircncia irracional que manifesta-se nos diversos reinos e
indiviacuteduos do mundo eacute a raiz da visatildeo pessimista da existecircncia que de acordo com o
filoacutesofo pode ser a todo momento constatada empiricamente
As diversas manifestaccedilotildees da vontade suas objetidades carregam inerentemente
a sua iacutendole puro impulso cego vontade de vida insaciabilidade Notadamente o
mundo fenomecircnico objetivaccedilatildeo da vontade expressa a essecircncia desta vontade atraveacutes
de um conflito permanente Desenha-se um cenaacuterio de batalha onde cada objetidade da
vontade cada ser do mundo eacute orientado por sua essecircncia irracional desguarnecida de
qualquer telos ldquoAssim a vontade de vida crava continuamente os dentes na proacutepria
carne e em diferentes figuras eacute seu proacuteprio alimentordquo (Schopenhauer MVR 211) Este
fundamento ontoloacutegico a vontade determina assim o caraacuteter absurdo que a vida
humana toma na filosofia schopenhaueriana eterno esforccedilo carente de ordem ou
finalidade O ldquomecanismo internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens
marionetes guiados pela carecircncia
[]nenhuma satisfaccedilatildeo todavia eacute duradoura mas antes sempre eacute um
ponto de partida de um novo esforccedilo o qual por sua vez vemos travado em
toda parte de diferentes maneiras em toda parte lutando e assim portanto
23
[] natildeo haacute que transpor a experiecircncia da motivaccedilatildeo humana ao conjunto das forccedilas naturais para
compreender o segredo da natureza senatildeo o contraacuterio transpor o misteacuterio das forccedilas naturais ao conjunto
das motivaccedilotildees psicoloacutegicas para desvendar-se o segredo da vontade humana (Rosset 2005 31) 24
Princiacutepio tratado na tese de doutoramento de Schopenhauer SRQPRS bem como no livro I de MVR
O princiacutepio estabelece que todo acontecimento possui uma causa uma razatildeo de ser
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sempre como sofrimento natildeo haacute nenhum fim uacuteltimo do esforccedilo portanto natildeo
haacute nenhuma medida e fim do sofrimento (Schopenhauer 2005 399)
Se carecircncia vontade e desejo satildeo a tocircnica da vida humana na maior parte do tempo e
satildeo experimentados como dor e infelicidade a felicidade por sua vez eacute definida
negativamente como um momento de ausecircncia daquela dor
Sentimos a dor e natildeo a ausecircncia da dor a inquietude e natildeo a
tranquumlilidade o medo e natildeo a seguranccedila Sentimos desejo como quando
temos fome e sede entretanto ao alimentarmo-nos estas sensaccedilotildees
deixam de existir para noacutes (MVR II 630)
Toda satisfaccedilatildeo momentacircnea de um querer eacute imediatamente suprimida por outro querer
ou se perdurar por algum tempo por menor que seja este transforma-se em teacutedio Um
ldquopecircndulo entre a dor e teacutediordquo eacute a definiccedilatildeo que Schopenhauer propotildee para a vida
humana Assim se daacute tambeacutem com a sauacutede a juventude e a liberdade Todos satildeo
conceitos definidos negativamente soacute os conhecemos atraveacutes de sua ausecircncia Este afatilde
por prolongar e conservar a vida essecircncia iacutentima de cada indiviacuteduo natildeo eacute contudo
resultado de uma observaccedilatildeo objetiva da mesma de um conhecimento que eleja a vida
como algo de valor a ser mantido e preservado e portanto os ldquo[] seres natildeo satildeo
atraiacutedos por algo que se lhes apresenta mas satildeo empurrados a elerdquo (MVR II 398) A
luta eterna observada nos diversos reinos da natureza a busca por alimento o esforccedilo da
procriaccedilatildeo se comparados aos momentos fugazes de satisfaccedilatildeo fazem da vida ldquoum
negoacutecio cujos investimentos natildeo cobrem nem de longe os custosrdquo (MVR II 399)
Em todas estas consideraccedilotildees se faz claro que a vontade de viver
natildeo eacute a consequecircncia do conhecimento da vida natildeo se trata de uma
bdquoconclusio ex praemissis‟ nem em geral eacute algo secundaacuterio antes
contudo eacute o primeiro e incondicionado a premissa de todas as premissas
e precisamente por isso aquilo do que haacute de partir a filosofia pois a
vontade de viver natildeo se apresenta como a consequumlecircncia do mundo senatildeo
o mundo como consequumlecircncia da vontade de viver (MVR II 405)
Um dos pontos essenciais a ser verificado nesta visatildeo de mundo eacute o
destronamento da razatildeo O ceacuterebro oacutergatildeo da razatildeo eacute o resultado de um esforccedilo da
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vontade em seu percurso de objetivaccedilatildeo A racionalidade humana estaacute a serviccedilo da
vontade que eacute em sua essecircncia grundlos A razatildeo eacute ferramenta para que o homem
enquanto objetidade da vontade consiga satisfazer a seus anseios Em oposiccedilatildeo agrave
filosofia racionalista de entatildeo onde o ldquoreal eacute o racionalrdquo assistimos ao surgimento de
uma filosofia irracionalista das forccedilas inconscientes onde a razatildeo na medida em que eacute
mecanismo da vontade estaacute sempre a serviccedilo desta O comportamento humano eacute
naturalmente egoiacutesta voltado para os proacuteprios interesses e estes por sua vez satildeo
expressatildeo desta vontade aloacutegica desprovida de telos Schopenhauer se mostrava
consciente da singularidade desta sua biparticcedilatildeo do ego e da consequumlente visatildeo de
mundo que ela trouxe agrave luz e enfatizou isto em seus manuscritos berlinenses ldquo[] a
divisatildeo da mente o eu em duas partes diferentes - em vontade como parte essencial e
primaacuteria e em intelecto como secundaacuteria - eacute o grande princiacutepio e meacuterito de minha
filosofia e tambeacutem a principal diferenccedila dos demais sistemasrdquo (MR III 328)
Temos entatildeo os dois pontos de vista do mundo que fundamentam a visatildeo de
Schopenhauer e que posteriormente seratildeo transformados pela teoria nietzscheana da
trageacutedia nos dois impulsos da natureza o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco O primeiro deles eacute o
mundo da individualidade da pluralidade regido pelo que Schopenhauer vai chamar
utilizando-se de um termo retirado da escolaacutestica de principium individuationis
Nesse sentido servindo-me da antiga escolaacutestica denomino
tempo e espaccedilo pela expressatildeo principium individuationis que peccedilo para
o leitor guardar para sempre Tempo e espaccedilo satildeo os uacutenicos pelos quais
aquilo que eacute uno e igual conforme a essecircncia e o conceito aparece como
pluralidade de coisas que coexistem e se sucedem (MVR 171)
No segundo toto genere diferente do primeiro existe a vontade una indivisiacutevel natildeo
submetida ao princiacutepio de razatildeo e por isso sem fundamento
Em apoio a sua tese Schopenhauer invoca ao final do capiacutetulo 46 (Sobre a
nulidade e o sofrimento da vida) dos complementos de MVR a opiniatildeo de diversos
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pensadores dentre eles Heroacutedoto Platatildeo Teoacutegnis Homero os tragedioacutegrafos gregos
Shakespeare Byron Voltaire Rousseau Faz-se importante neste momento ressaltar que
o filoacutesofo aponta a invenccedilatildeo da trageacutedia pelos gregos como uma expressatildeo desta visatildeo
de mundo ponto de vista que como veremos tambeacutem seraacute adotado pelo primeiro
Nietzsche
Ante tudo mencionarei que os gregos por mais distantes que
estivessem da visatildeo de mundo cristatilde e da alta Aacutesia e por muito que se
mantiveram sob o ponto de vista da afirmaccedilatildeo da vontade se fizeram
profundamente impressionados pela miseacuteria da existecircncia Isso eacute
demonstrado pela invenccedilatildeo da trageacutedia obra deles (MVR II 640)
23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana
Existe poreacutem uma forma de conhecimento que eacute ndash agrave diferenccedila daquela
subordinada ao princiacutepio de razatildeo que percebe os objetos em sua relaccedilatildeo com os outros
objetos do espaccedilo-tempo ndash uma forma mais universal pois mostra o objeto em sua
caracteriacutestica mais geral qual seja a de ser objeto para o sujeito A esta forma de
conhecimento Schopenhauer associa a apreciaccedilatildeo esteacutetica O seu objeto eacute a ideacuteia
platocircnica25
um grau determinado de objetivaccedilatildeo da coisa-em-si
Os diferentes graus de objetivaccedilatildeo da Vontade expressos em
inumeraacuteveis indiviacuteduos e que existem como seus protoacutetipos
inalcanccedilaacuteveis ou formas eternas das coisas que nunca aparecem no
tempo e no espaccedilo meacutedium do indiviacuteduo mas existem fixamente natildeo
submetidos a mudanccedila alguma satildeo e nunca vindo-a-ser enquanto as
coisas nascem e perecem sempre vecircm-a-ser e nunca satildeo os GRAUS DE
OBJETIVACcedilAtildeO DA VONTADE ia dizer natildeo satildeo outra coisa senatildeo as
IDEacuteIAS DE PLATAtildeO (MVR 191)
Esta instacircncia do conhecimento eacute alcanccedilada intuitivamente pela contemplaccedilatildeo
esteacutetica da natureza ou pela facilitaccedilatildeo de uma obra de arte Desta forma as obras de
25
Conforme o filoacutesofo ldquo A expressatildeo mais breve e sucinta daquele famoso dogma platocircnico foi dada por
Dioacutegenes Laeacutercio (II 12) Platatildeo ensina que as ideacuteias da natureza existem como protoacutetipos jaacute as demais
coisas apenas se assemelham a elas e satildeo suas coacutepiasrdquo (MVR 191)
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arte na teoria schopenhaueriana satildeo uma exposiccedilatildeo destes graus de objetivaccedilatildeo da
vontade as ideacuteias Ao contraacuterio da criacutetica agrave arte presente na repuacuteblica platocircnica - onde a
arte seria uma coacutepia mais imperfeita da ideacuteia por retratar o mundo fenomecircnico sua
coacutepia direta - Schopenhauer aproxima as obras artiacutesticas das ideacuteias eternas as define
como suas expressotildees diretas Contudo a intuiccedilatildeo das ideacuteias exige um estado de
consciecircncia diferente do estado comum Neste uacuteltimo o aparelho cognitivo sob a eacutegide
da vontade estaacute voltado para a realizaccedilatildeo dos interesses individuais e entatildeo se
movimenta no mundo guiado por estes interesses ldquoCaso entretanto a Ideacuteia deva de
alguma maneira tornar-se conhecimento e ser conhecida pelo sujeito entatildeo isso soacute
pode ocorrer graccedilas agrave supressatildeo da individualidade no sujeito que conhecerdquo (MB 30)
A forma artiacutestica de conhecimento cujo possuidor eacute o denominado gecircnio estaacute
associada a um desprendimento das reacutedeas da vontade O gecircnio eacute entatildeo aquele que livre
dos interesses da vontade percebe as ideacuteias por traacutes dos objetos alheio aos princiacutepios
de razatildeo e de individuaccedilatildeo e traduz este objeto na obra de arte O observador esteacutetico eacute
portanto um partiacutecipe da genialidade na medida em que intui a ideacuteia por traz do objeto
observado conforme tambeacutem ao seu grau de desinteresse26
Durante a apreciaccedilatildeo
esteacutetica o homem se vecirc livre momentaneamente daquela parte de si que eacute a causadora
de todo o sofrimento individual e coletivo a vontade para transformar-se em um ldquopuro
sujeito de conhecimentordquo Este estado de satisfaccedilatildeo decorrente da suspensatildeo da vontade
individualizada eacute o sentimento do belo
Aquilo que se poderia nomear o lado mais belo e a pura alegria
da vida precisamente porque nos arranca da existecircncia real e nos
transforma em espectadores desinteressados diante dela eacute o puro
conhecimento que permanece alheio a todo querer eacute a fruiccedilatildeo do belo a
alegria autecircntica na arte Mas mesmo isso requer dispositivos raros e
cabe apenas a pouquiacutessimos e mesmo para estes eacute um sonho
passageiro (MVR 404)
26
Vemos nesta forma de associaccedilatildeo entre conhecimento e interesse mais uma heranccedila kantiana no caso
provinda da definiccedilatildeo de belo da criacutetica da faculdade de juiacutezo
51
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Ao descrever a apreciaccedilatildeo artiacutestica como um ato cognitivo Schopenhauer
preocupa-se em diferenciaacute-la do conhecimento cientiacutefico De fato boa parte das
consideraccedilotildees sobre a arte eacute dedicada ao esclarecimento desta diferenccedila
Podemos por conseguinte definir a arte como o modo de
consideraccedilatildeo das coisas independente do princiacutepio de razatildeo em oposiccedilatildeo
justamente agrave consideraccedilatildeo que o segue que eacute o caminho da experiecircncia e
da ciecircncia O modo de consideraccedilatildeo que seque o princiacutepio de razatildeo eacute o
racional o uacutenico que vale e que auxilia na vida praacutetica e na ciecircncia o
modo apartado do conteuacutedo do princiacutepio de razatildeo eacute o genial o uacutenico que
vale e que auxilia na arte (MB 59)
No caso da trageacutedia cujo objetivo eacute o conhecimento do homem e de suas relaccedilotildees a
ciecircncia que mais se assemelha a esta forma artiacutestica seria a histoacuteria Esta natildeo tem como
objetivo a demonstraccedilatildeo da essecircncia do homem em sua forma atemporal ou seja a
demonstraccedilatildeo daquilo que fundamenta toda accedilatildeo humana independente dos
acontecimentos empiacutericos
[ ]toda ciecircncia no sentido proacuteprio do termo compreendida como
conhecimento sistemaacutetico guiado pelo fio condutor do princiacutepio de
razatildeo parte sempre de dois dados baacutesicos um deles sem exceccedilatildeo eacute o
princiacutepio de razatildeo em uma de suas figuras como oacuterganon outro eacute o
objeto especiacutefico de cada uma delas enquanto problema (Schopenhauer
MVR 73)
Desta forma a histoacuteria teria a lei de motivaccedilatildeo e o os fatos humanos como oacuterganon e
problemas respectivamente Entretanto interessa a Schopenhauer um conhecimento
mais universal que soacute pode ser apresentado pela arte e que aponta por sua proximidade
agrave essecircncia daquilo que eacute a uma ldquoiacutendole imutaacutevelrdquo das manifestaccedilotildees
Podemos ver entatildeo que sendo consideradas como meios para o
conhecimento da essecircncia da humanidade arte poeacutetica e histoacuteria possuem todavia
objetos de conhecimento diferentes A primeira quando produzida pelo verdadeiro
gecircnio tenciona manifestar a ideacuteia por traacutes destes conceitos a ideacuteia de homem de
humanidade intuitivamente independentemente do princiacutepio de razatildeo do devir como
52
objeto puro de conhecimento alheio agrave corrente dos motivos em suas caracteriacutesticas
essenciais atemporais A histoacuteria por sua vez segue o rastro do princiacutepio de razatildeo
procurando apresentar o fenocircmeno humano em suas relaccedilotildees descrever-lhe em suas
situaccedilotildees particulares individuais empiacutericas Nas palavras de Schopenhauer
Arte e ciecircncia tecircm em uacuteltima instacircncia o mesmo estofo a saber
justamente o mundo tal como ele se posta diante de noacutes ou antes uma
parte destacada dele quanto ao todo do mundo soacute a filosofia o
considera Contudo a grande diferenccedila entre ciecircncia e arte reside na
maneira como elas consideram o mundo e trabalham seu estofo Tal
oposiccedilatildeo pode ser indicada com uma palavra a ciecircncia considera os
fenocircmenos do mundo seguindo o fio condutor do princiacutepio de razatildeo ao
passo que a arte coloca totalmente de lado o princiacutepio de razatildeo
independente dele para que assim a ideacuteia entre em cena
(SCHOPENHAUER MB 57)
Podemos notar que a valorizaccedilatildeo do que eacute imutaacutevel alheio agrave idealidade do tempo eacute a
raiz da valorizaccedilatildeo do conhecimento artiacutestico frente ao histoacuterico Este uacuteltimo natildeo visa o
acesso aos modelos eternos pois seu objeto satildeo os acontecimentos individuais do
mundo fenomecircnico que satildeo eventos meramente aparentes se considerarmos a
idealidade do tempo O que se manifesta no fluxo temporal do mundo fenomecircnico satildeo
sempre as mesmas formas eternas as ideacuteias entretanto com roupagens diferentes o
mesmo homem enquanto objetivaccedilatildeo da vontade a mesma humanidade Onde quer que
seja e em qualquer momento especiacutefico sua essecircncia eacute a mesma e esta essecircncia eacute o que
deve ser alvo de uma compreensatildeo privilegiada de entendimento e natildeo as suas diversas
manifestaccedilotildees Por este motivo Schopenhauer deixando explicito o seu chamado anti-
historicismo afirma que ldquose algueacutem jaacute lera Heroacutedoto jaacute estudara bastante histoacuteria e
efeitos filosoacuteficos Pois laacute jaacute estaacute tudo o que compotildee a posterior histoacuteria mundial a
atividade o obrar o sofrimento e o destino do gecircnero humano (Schopenhauer MVR
II 496) Podemos notar claramente a oposiccedilatildeo entre a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana
da histoacuteria e as tendecircncias de seu tempo principalmente presentes na filosofia de
Hegel Este de acordo com a criacutetica de Schopenhauer ignorando a filosofia critica de
53
Kant toma o fenocircmeno histoacuterico como coisa em si ao atribuir-lhe uma unidade de
consciecircncia Entretanto unidade de consciecircncia eacute um atributo dos indiviacuteduos e natildeo do
gecircnero humano Estas filosofias de acordo com o Schopenhauer satildeo frutos do realismo
otimista queldquo tomam o mundo como perfeitamente real e potildeem como fim do mesmo
uma miseraacutevel felicidade terrena (Schopenhauer MVR II 495)
- - - - - - - - - -
Colocando de lado o fio condutor do princiacutepio de razatildeo e mirando-se no
conhecimento da ideacuteia imutaacutevel atemporal encontramos a trageacutedia como fenocircmeno que
apresenta agrave intuiccedilatildeo o homem e sua condiccedilatildeo Eacute a forma de arte que tem como objeto o
grau mais elevado de objetivaccedilatildeo da vontade A intenccedilatildeo do artista traacutegico eacute de acordo
com Schopenhauer transmitir a ideacuteia intuiacuteda tarefa que seraacute bem sucedida de acordo
com a habilidade de utilizaccedilatildeo da teacutecnica artiacutestica por um lado e com a capacidade de
percepccedilatildeo esteacutetica do apreciador por outro O tragedioacutegrafo diferentemente do
historiador que relata os fatos empiacutericos explicitando seus motivos e consequumlecircncias
deve para obter o efeito esperado em sua obra expor uma situaccedilatildeo tal em que o homem
possa manifestar todas as suas potencialidades e dessa forma transmitir ao apreciador
esteacutetico a ideacuteia representada ldquoO poeta expotildee com escolha e intenccedilatildeo caracteres
significativos em situaccedilotildees significativas jaacute o historiador toma aos dois como eles
aparecemrdquo (Schopenhauer MVR 323) A qualidade da obra traacutegica seraacute julgada entatildeo
pela sua capacidade de representaccedilatildeo da ideacuteia de humanidade e Schopenhauer qualifica
as trageacutedias de acordo com esta capacidade Natildeo existe em seu sistema uma
consideraccedilatildeo histoacuterica da produccedilatildeo traacutegica Ele natildeo leva em consideraccedilatildeo as condiccedilotildees
histoacutericas no que se refere agrave origem ou mesmo quanto ao desenvolvimento desta forma
artiacutestica e a avalia unicamente conforme o seu efeito E neste ponto a trageacutedia apresenta
uma peculiaridade frente agraves demais artes ela eacute a forma de arte que provocaraacute o
54
sentimento do sublime Como vimos o correlato subjetivo de toda apreciaccedilatildeo esteacutetica eacute
o sentimento causado pela anulaccedilatildeo da vontade individual mediante a elevaccedilatildeo ao
estado de puro sujeito de conhecimento O sublime assim como o belo satildeo expressotildees
deste sentimento que se diferenciam unicamente por sua forma
Se tal estado surgiu por si mesmo na medida em que o objeto foi
solicitado e se apresentou ndash e fomos postos sem resistecircncia pelo mero
desaparecer da vontade da consciecircncia no estado do conhecer puro ndash ou
se primeiro foi despertado por elevaccedilatildeo livre consciente sobre a vontade
na medida em que o objeto contemplado tem com esta uma relaccedilatildeo
desfavoraacutevel hostil cuja prossecuccedilatildeo suprimiria a contemplaccedilatildeo ndash aiacute
reside a diferenccedila entre o belo e o sublime (MB 119)
A impressatildeo do sublime eacute portanto uma forma de colocar-se no estado do puro conhecer
ao nos depararmos com o objeto que por sua apresentaccedilatildeo sugere uma ldquorelaccedilatildeo hostilrdquo
com o indiviacuteduo27
Jaacute vimos que a visatildeo de mundo de Schopenhauer identifica a vida humana como
sofrimento infindaacutevel no entanto ao elaborar sua definiccedilatildeo da trageacutedia Schopenhauer
aponta para o desfecho moral de sua obra (livro IV de MVR) e afirma que a trageacutedia
melhor eacute aquela que expotildee a renuacutencia agrave vida O filoacutesofo compara obras contemporacircneas
agraves antigas e afirma sua preferecircncia por estas em decorrecircncia da capacidade que elas tecircm
de provocar esta a renuacutencia agrave vida Vejamos a descriccedilatildeo que Schopenhauer faz da
trageacutedia
No aacutepice da arte poeacutetica tanto no que se refere agrave grandeza do seu
efeito quanto agrave dificuldade da sua realizaccedilatildeo deve-se ver a trageacutedia e de
fato ela assim foi reconhecida Observe-se aqui algo de suma significaccedilatildeo
para toda a nossa visatildeo geral de mundo o objetivo dessa suprema
realizaccedilatildeo poeacutetica natildeo eacute outro senatildeo a exposiccedilatildeo do lado terriacutevel da vida
27
Vemos na teoria do sublime Schopenhaueriana mais uma vez a influecircncia de Kant Schopenhauer iraacute
identificar duas formas de sublime e utilizar-se-aacute dos termos kantianos ldquosublime dinacircmicordquo e ldquosublime
matemaacuteticordquo para diferenciaacute-los No primeiro o objeto de apreciaccedilatildeo se mostra a princiacutepio uma ameaccedila
ao observador ldquoum poder que suprimiria qualquer resistecircnciardquo(MB 104) No sublime matemaacutetico o
segundo o objeto eacute visto em sua incomensuraacutevel grandiosidade diante da qual o observador infere a sua
infimidade A afinidade entre Schopenhauer e a teoria criacutetica do juiacutezo eacute expressa em sua obra principal
ldquoDe longe o que haacute de mais excelente na criacutetica da faculdade de juiacutezo eacute a teoria do sublime Ela eacute
incomparavelmente mais bem sucedida que a teoria do belo e daacute natildeo apenas como esta o meacutetodo geral
da investigaccedilatildeo mas tambeacutem um trecho do correto caminho de maneira que embora natildeo forneccedila a
soluccedilatildeo propriamente dita do problema chega bem perto delardquo(MVR 660)
55
a saber o inominado sofrimento a miseacuteria humana o triunfo da maldade
o impeacuterio ciacutenico do acaso a queda inevitaacutevel do justo e do inocente E
em tudo isso se encontra uma indicaccedilatildeo significativa da iacutendole do mundo
e da existecircncia Eacute o conflito da Vontade consigo mesma que aqui
desdobrado plenamente no grau mais elevado de sua objetidade entra em
cena de maneira aterrorizante Ele se torna visiacutevel no sofrimento da
humanidade em parte produzido por acaso e erro que se apresentam
como os senhores do mundo e personificados como destino e perfiacutedia os
quais aparecem enquanto intencionalidade em parte advindo da
humanidade mesma por meio dos entrecruzados esforccedilos voluntaacuterios dos
indiviacuteduos e da maldade e perversatildeo da maioria Trata-se de uma uacutenica e
mesma Vontade que em todos vive e aparece cujos fenocircmenos
entretanto combatem entre si e se entredevoram [] Por fim esse
conhecimento no indiviacuteduo purificado e enobrecido pelo sofrimento
mesmo atinge o ponto no qual o fenocircmeno o veacuteu de maia natildeo mais o
ilude Ele vecirc atraveacutes da forma do fenocircmeno do principium
individuationis com o que tambeacutem expira o egoiacutesmo nele baseado Com
isso os ateacute entatildeo poderosos MOTIVOS perdem o seu poder e em vez
deles o conhecimento perfeito da essecircncia do mundo atuando como
quietivo da vontade produz a resignaccedilatildeo a renuacutencia natildeo apenas da vida
mas de toda a vontade de vida mesma (Schopenhauer MVR 333)
Percebemos nesta descriccedilatildeo que a trageacutedia aleacutem de expor a visatildeo de mundo construiacuteda
pelo filoacutesofo tem como fim uacuteltimo provocar um efeito moral no apreciador esteacutetico
qual seja a renuacutencia ao mundo Vejamos entatildeo a relaccedilatildeo entre a visatildeo de mundo
schopenhaueriana o efeito esteacutetico provocado pela trageacutedia e o projeto moral existente
por traacutes de suas teorias
24 A finalidade moral da trageacutedia
Para que possamos perceber a relaccedilatildeo intriacutenseca entre cosmologia metafiacutesica
arte e a eacutetica faz-se necessaacuterio uma pequena excursatildeo sobre esta uacuteltima Que todo o
sistema schopenhaueriano possui um viacutenculo inseparaacutevel com o seu projeto eacutetico eacute fato
que natildeo passa despercebido a seus comentadores Um projeto de juventude eacute descrito
por Safranski (1991 188-198) Young (2006 07 200) Aramayo (2001 56-59) e
Cartwright (Janaway 1999 252) como uma premissa no desenvolvimento da filosofia
56
schopenhaueriana trata-se do projeto de uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Young a descreve
como uma transcendecircncia do mundo ordinaacuterio para o ldquomundo verdadeirordquo Esta
consciecircncia melhor poderia ser experimentada atraveacutes da apreciaccedilatildeo artiacutestica e da
consciecircncia eacutetica ambas originadas do desvelamento de maia Assim Schopenhauer a
descreve conforme citaccedilatildeo de Young (2006 9) ldquopersonalidade e causalidade existem
neste mundo compreensiacutevel temporal sensorial Mas a consciecircncia melhor me leva a
um mundo onde nem personalidade nem sujeito ou objeto existem maisrdquo Safransky
descreve a consciecircncia melhor como um estado semelhante ao ecircxtase miacutestico
Este arrebatamento estaacute livre das coordenadas espaccedilo-temporais
cujo ponto de interseccedilatildeo eacute o eu corporal apartado do espaccedilo do tempo
do eu Os miacutesticos chamam a esta experiecircncia ldquonunc stansrdquo agora
permanente A intensidade deste presente natildeo conhece princiacutepio nem fim
e soacute pode desaparecer porque noacutes desaparecemos dele (Safransky1991
190)
Conforme Aramayo tanto a figura do gecircnio como a do santo satildeo expressotildees do
reconhecimento desta consciecircncia melhor e a filosofia de Schopenhauer pretende-se
uma terceira via que tambeacutem apontaria para este estado de consciecircncia A caracteriacutestica
primordial deste estado eacute o desprendimento dos desejos individuais e o comportamento
virtuoso que adveacutem deste desprendimento Eacute na esteira do entendimento desta
consciecircncia melhor que as bases eacutetico-metafiacutesicas do filoacutesofo foram elaboradas Em
apoio a esta afirmaccedilatildeo Aramayo apresenta duas citaccedilotildees a partir das quais em
momentos distintos de sua vida Schopenhauer apresenta seu projeto de identificaccedilatildeo
entre eacutetica e metafiacutesica Nos escritos de Juventude em 1813 vemos o projeto
Em meu espiacuterito encontra-se em gestaccedilatildeo uma filosofia onde
metafiacutesica e eacutetica devem constituir uma soacute coisa cuja dissociaccedilatildeo eacute tatildeo
errocircnea como agrave da alma e do corpo (Aramayo 2001 41)
Jaacute nos escritos tardios especificamente em seu ensaio de 1836 Sobre a vontade na
natureza veremos Schopenhauer identificar esta uniatildeo
57
Tatildeo soacute esta metafiacutesica que jaacute eacute eacutetica por si soacute ao estar construiacuteda
com esse material primordialmente eacutetico que se supotildee a vontade
constitui real e imediatamente um sustentaacuteculo para a eacutetica em vista de
que poderia haver colocado em minha metafiacutesica o nome de eacutetica (apud
Aramayo 2001 43)
Cartwright aponta ainda na uacuteltima obra schopenhaueriana de 1851 Parerga e
paralipomena a afirmaccedilatildeo de que a ldquosua real filosofia culminou em um ponto de vista
altamente eacutetico-metafiacutesicordquo (Janaway 1999 252)
Na filosofia schopenhaueriana como vimos o indiviacuteduo humano eacute uma
expressatildeo da objetidade da vontade e seu ponto de partida por natureza eacute a satisfaccedilatildeo
manutenccedilatildeo e o prolongamento desta vontade de vida Este estado de consciecircncia onde
todos os esforccedilos estatildeo voltados para a satisfaccedilatildeo da vontade individual eacute a causa de
todo o sofrimento do mundo Aprisionado agrave perspectiva fenomecircnica do mundo o
homem natildeo percebe a unidade da vontade e age de acordo com os motivos estabelecidos
pela sua proacutepria individualidade Para este homem existe uma separaccedilatildeo profunda entre
o proacuteprio eu e os objetos do mundo
Por meio da intuiccedilatildeo que o ceacuterebro efetua a partir dos dados do sentido
e portanto mediatamente conhecemos o proacuteprio corpo como um objeto no
espaccedilo e por meio do sentido interno conhecemos a seacuterie sucessiva de nossos
desejos e atos de vontade que surgem por ocasiatildeo dos motivos externos e
finalmente conhecemos os muacuteltiplos movimentos fortes ou fracos da proacutepria
vontade aos quais todos os sentimentos internos deixam-se reconduzir Isto eacute
tudo pois o conhecer natildeo eacute ele proacuteprio de novo conhecido (Schopenhauer
2001 213)
Eacute deste estado que surge todo o comportamento humano considerado pelo filoacutesofo
como comportamento antimoral Egoiacutesmo eacute o nome dado ao resultado da influecircncia do
princiacutepio de individuaccedilatildeo sobre o comportamento dos homens Este egoiacutesmo chega ao
extremo de o homem considerar-se o centro do mundo e transformar o seu querer em
mandamento para os objetos exteriores ldquoalguns homens seriam capazes de assassinar
um outro soacute para engraxar suas botas com a gordura delerdquo (SFM 124) Nestas
58
condiccedilotildees ldquose fosse dado pois a um indiviacuteduo escolher entre a sua proacutepria aniquilaccedilatildeo
e a do mundo nem preciso dizer para onde a maioria se inclinariardquo (SFM 121) Da
forma como ocorre com o egoiacutesmo a ilusatildeo fenomecircnica daacute origem a outro sentimento
o oacutedio Estes dois egoiacutesmo e oacutedio satildeo os princiacutepios originadores de todos os viacutecios do
homem Desta leitura pessimista da natureza humana Schopenhauer retira seu conceito
perspectivista das ideacuteias de bem e mal satildeo consideradas boas ou maacutes as coisas que
agradam ou desagradam agrave vontade do indiviacuteduo ldquoPortanto tudo o que eacute favoraacutevel agrave
vontade em alguma de suas exteriorizaccedilotildees e satisfaz seus fins eacute pensado pelo conceito
bom por mais diferentes que essas coisas possam ser noutros aspectosrdquo (MVR 459)
Este estado eacute definido por Schopenhauer como ldquoafirmaccedilatildeo da vontaderdquo nele o amor-
proacuteprio Eros dita as regras de comportamento Definido o Eros enquanto
fundamentador das accedilotildees antimorais humanas sendo este surgido de uma percepccedilatildeo
subordinada ao principium individuationis entendemos o motivo pelo qual o filoacutesofo
rejeita a validade de qualquer moral baseada em argumentos abstratos
Uma moral sem fundaccedilatildeo portanto um simples moralizar natildeo pode
fazer efeito pois natildeo motiva Uma moral entretanto que motiva soacute pode fazecirc-
lo atuando sobre o amor proacuteprio O que entretanto nasce daiacute natildeo tem valor
moral algum Segue-se assim que mediante moral e conhecimento abstrato em
geral nenhuma virtude autecircntica pode fazer efeito mas esta tem de brotar do
conhecimento intuitivo o qual reconhece no outro indiviacuteduo a mesma essecircncia
que a proacutepria (MVR 468)
Desta forma em contraposiccedilatildeo ao comportamento antimoral produzido
pela ilusatildeo causada pelo principium individuationis o filoacutesofo apresenta o outro lado da
moeda a accedilatildeo moral Esta seria a accedilatildeo praticada em funccedilatildeo do bem-estar de um outro
indiviacuteduo tendo em vista que as accedilotildees praticadas em funccedilatildeo do mal-estar do outro ou
do bem e mal estar de si mesmo satildeo justamente as accedilotildees antimorais baseadas no
egoiacutesmo ou no oacutedio ldquoTodo amor que natildeo eacute compaixatildeo eacute amor-proacuteprio Amor-proacuteprio eacute
59
Eros compaixatildeo eacute Aacutegaperdquo (MVR 478) Todo ato moral eacute por consequumlecircncia um ato de
compaixatildeo ou seja um ato que eacute praticado a partir da percepccedilatildeo do sofrimento do
outro Entretanto a percepccedilatildeo do sofrimento alheio natildeo eacute dada atraveacutes do conhecimento
abstrato E somente por uma percepccedilatildeo intuitiva direta do sofrimento do outro como o
meu proacuteprio sofrimento que surge a compaixatildeo Tal percepccedilatildeo assim como a
apreciaccedilatildeo esteacutetica tem origem em uma visatildeo que vai aleacutem do principium
individuationis Desfaz-se a ilusatildeo causada por este princiacutepio de que existe em realidade
um eu e um natildeo-eu ilusatildeo essa que eacute originada pelos condicionantes do conhecimento
tempo espaccedilo e causalidade Livre do principium individuationis natildeo haacute mais
diversidade natildeo existe mais indiviacuteduo passado futuro motivaccedilotildees existe apenas o
instante presente do ser a vontade Natildeo nos vemos mais como uma vontade separada de
outras ao contraacuterio vemos nos outros a mesma vontade pela qual somos Necessaacuterio
faz-se ressaltar que este conhecimento intuitivo que demonstra a unidade da vontade
em todo indiviacuteduo eacute entendimento de verdade tatildeo profundo que supera qualquer
especulaccedilatildeo abstrata do conhecimento e por isso seu efeito eacute marcante
Para o conhecimento que vecirc atraveacutes do principium individuationis uma
vida feliz no tempo presenteada pelo acaso ou conquistada deste pela
sabedoria em meio ao sofrimento de inumeraacuteveis outros eacute apenas um sonho de
mendigo no qual eacute um rei poreacutem tem de acordar e reconhecer que era tatildeo-soacute
uma ilusatildeo fugidia aquilo que o separava do sofrimento da sua vida (MVR
452)
A experimentaccedilatildeo deste estado de consciecircncia faz-nos perceber a vida como engano
luta infinita e provoca em noacutes a renuacutencia a esta mesma vida agrave vontade de viver O
homem natildeo mais afirma a sua essecircncia mas a repudia
Agrave semelhanccedila do estado de negaccedilatildeo da vontade o proacuteprio estado de
contemplaccedilatildeo esteacutetica pressupotildee um desinteresse pelos mandamentos da vontade
60
individual um desligamento do caraacuteter egoiacutestico do sujeito empiacuterico28
Para que possa
perceber a Ideacuteia por traacutes do objeto contemplado o observador deve estar em um estado
de consciecircncia que se vecirc livre dos grilhotildees da vontade Neste estado ele eacute alccedilado para
aleacutem da individualidade torna-se puro sujeito de conhecimento Para que este estado se
manifeste eacute imprescindiacutevel natildeo estar interessado nas relaccedilotildees do objeto apreciado seja
com outros objetos seja consigo mesmo O apreciador esteacutetico natildeo se preocupa com o
ldquoonderdquo o ldquocomordquo o ldquoporquecircrdquo dos objetos Estas formas de interjeiccedilatildeo sinalizam para a
relaccedilatildeo dos objetos com o mundo O apreciador esteacutetico no momento da apreciaccedilatildeo
tem em vista somente o ldquoquerdquo do objeto transforma-se em um ldquoolho que vecircrdquo livre do
princiacutepio de individuaccedilatildeo eacute o puro sujeito de conhecimento Vemos nestes dois estados
(o esteacutetico e o compassivo) exemplos de estados de consciecircncia que por suas
caracteriacutesticas de alccedilarem o indiviacuteduo a uma anulaccedilatildeo do sofrimento fazem parte do
projeto de juventude de estabelecer uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Percebemos entatildeo que a
consideraccedilatildeo esteacutetica e a consideraccedilatildeo eacutetica possuem em comum esta caracteriacutestica da
consciecircncia de se apartar do princiacutepio de individuaccedilatildeo
No caso da trageacutedia como descreve Schopenhauer seu fim uacuteltimo eacute despertar a
compaixatildeo no apreciador Desta forma o filoacutesofo associa agrave trageacutedia um efeito singular e
adverso das demais artes ou pelo menos reconhece na trageacutedia a arte capaz de
demonstrar a semelhanccedila entre os modos de consideraccedilatildeo artiacutestico e eacutetico Ao ilustrar o
conflito das vontades no mundo atraveacutes da exposiccedilatildeo do sofrimento humano a trageacutedia
cumpre seu papel artiacutestico ao expor a ideacuteia de humanidade Aleacutem deste atributo
podemos dizer que a trageacutedia tem que cumprir ainda seu papel moral ao causar no
28
Neste ponto de semelhanccedila eacute fundamental apontar mais uma vez a heranccedila kantiana Nas palavras de
Barboza (2001 82) ldquoA negaccedilatildeo da Vontade diante da beleza realmente obedece a uma leitura do
conceito criacutetico de desinteresse Quando Kant diz que o belo eacute aquilo que satisfaz bdquosem nenhum
interesse‟ o autor de O mundo leu essa expressatildeo como equivalente da negaccedilatildeo do querer visto que
interesse e motivo satildeo conceitos intercambiaacuteveis [] e a vontade neutraliza-se desinteressa-se ou seja eacute
indeterminaacutevel por motivos na contemplaccedilatildeo da Ideacuteia do belordquo
61
espectador a renuacutencia a toda vontade O modelo exemplar da trageacutedia eacute para
Schopenhauer a trageacutedia cristatilde onde o heroacutei conscientemente abandona o querer e
conseguintemente a vida Na trageacutedia antiga havia somente a identificaccedilatildeo do
sofrimento humano e sua exposiccedilatildeo A renuacutencia agrave vontade de vida eacute caracteriacutestica das
trageacutedias posteriores ao advento cristatildeo Schopenhauer exemplifica O priacutencipe de
Calderoacuten Gretchen em Fausto A Donzela de Orleans a Noiva de Messina etc Assim
ldquotoda a exposiccedilatildeo traacutegica eacute para o espectador um chamado agrave resignaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo livre
da Vontade de vida Somente a eacutetica pode tornar tudo isso mais compreensiacutevelrdquo (MB
223) Vemos entatildeo de forma clara na teoria da trageacutedia de Schopenhauer um momento
onde ocorre a coalizatildeo dos fundamentos metafiacutesicos de sua filosofia do pessimismo
originado nestes fundamentos e da atitude eacutetica existente por traacutes de seu pensamento
25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera
Faz-se necessaacuterio aqui uma incursatildeo sobre a teoria da muacutesica de Schopenhauer
tendo em vista de que ela ocuparaacute um papel decisivo na teoria nietzscheana da trageacutedia
As relaccedilotildees que Nietzsche estabelece entre a muacutesica a vontade as palavras e
finalmente a trageacutedia satildeo delineadas como veremos pela metafiacutesica schopenhaueriana
da muacutesica No intuito de perceber estas relaccedilotildees propomos aqui um breve esboccedilo da
teoria da muacutesica na filosofia de Schopenhauer
A filosofia da muacutesica encontra seu lugar ao final do terceiro livro de MVR bem
como no capiacutetulo 39 dos complementos fechando assim as consideraccedilotildees de
Schopenhauer sobre a metafiacutesica do belo e as artes29
29
Na esteira de Lydia Goehr (Jacquette 1996 200) ressaltamos que tendo em vista a influecircncia que sua
filosofia da muacutesica exerceu sobre o pensamento artiacutestico e filosoacutefico posterior e comparada agrave dimensatildeo
de sua obra as consideraccedilotildees sobre a muacutesica ocupam um espaccedilo diminuto em sua obra
62
Para o filoacutesofo da vontade a muacutesica eacute a arte que pela natureza de seu objeto de
expressatildeo natildeo encontra lugar apropriado dentro do sistema das demais artes Estas
conforme sua competecircncia em traduzir uma determinada objetidade da vontade uma
ideacuteia satildeo classificadas hierarquicamente A muacutesica entretanto figura aleacutem desta
hierarquizaccedilatildeo pois representa o conceitualmente irrepresentaacutevel ldquoa coacutepia de um
modelo que ele mesmo nunca pode ser representado imediatamenterdquo(MVR 338) a
Vontade mesma Esta arte eacute especialmente considerada devido agrave peculiaridade uacutenica de
seu efeito esteacutetico ldquoeacute uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente
sobre o mais iacutentimo do homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele
como se fora uma linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do
mundo intuitivordquo (MVR 336) A muacutesica estaacute aleacutem da intuiccedilatildeo pois representa aquilo
que estaacute aleacutem desta forma agrave semelhanccedila das ideacuteias que satildeo objetivaccedilotildees imediatas da
vontade a muacutesica eacute tambeacutem uma destas objetivaccedilotildees representaccedilatildeo imediata da coisa
em si O que o compositor apresenta atraveacutes da muacutesica eacute a essecircncia mais iacutentima do
mundo em uma ldquolinguagem natildeo compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo
magneacutetico fornece informaccedilotildees sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito
algumrdquo (MVR 342) Por estar em um acircmbito inalcanccedilaacutevel pelo conceito a muacutesica
atraveacutes de sua linguagem arrebata o homem de forma mais marcante e direta e ateacute
mesmo a explanaccedilatildeo sobre a muacutesica estaacute condenada agrave pobreza e agrave insuficiecircncia Desta
forma o filoacutesofo se utilizaraacute de uma analogia para explanar sobre a muacutesica ie
procederaacute a uma explicaccedilatildeo da muacutesica atraveacutes de um paralelismo entre ela as ideacuteias e o
mundo enquanto objetivaccedilotildees da vontade
Esta analogia expressa atraveacutes de diversos exemplos leva em consideraccedilatildeo que
em suas duas formas de objetivaccedilatildeo (o mundo e a muacutesica) a Vontade deixa transparecer
semelhanccedilas Na muacutesica os tons mais graves aproximam-se ao que satildeo no mundo os
63
graus mais baixos de objetivaccedilatildeo da vontade quais sejam a natureza inorgacircnica A lei
da harmonia estabelece que os tons agudos satildeo originados daquele tom mais grave
fundamental Da mesma forma no mundo os corpos tecircm como fonte e sustentaacuteculo a
natureza inorgacircnica ldquoagrave partir da qual tudo se eleva e desenvolverdquo(MB 230) As vozes
intermediaacuterias da melodia que estatildeo entre o baixo fundamental e a voz condutora
correspondem no mundo aos demais graus de objetivaccedilatildeo da vontade na natureza ldquoAs
vozes mais proacuteximas do baixo correspondem aos graus mais baixos ou seja os corpos
ainda inorgacircnicos poreacutem jaacute se exteriorizando de diversas maneiras As vozes mais
elevadas por sua vez representam os reinos vegetal e animalrdquo(MB 231)
O objeto de representaccedilatildeo da muacutesica eacute a Vontade e esta por sua vez eacute
intraduziacutevel atraveacutes das palavras da configuraccedilatildeo racional pois a razatildeo natildeo pode
alcanccedilar sua profundidade Trata-se de ldquouma linguagem universal cuja
compreensibilidade eacute inata e cuja clareza ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo
(MB 228) Diante desta caracteriacutestica cognitiva a muacutesica natildeo deve se inspirar no texto
nas palavras a natildeo ser para ilustraacute-las e conceder-lhes assim significaccedilatildeo mais
profunda A muacutesica natildeo deve ser composta com base em conceitos ou em objetos e
ocorrecircncias do mundo pois trata-se de uma expressatildeo da ordem do essencial do
universal ldquoela eacute a alma mais interior dessas ocorrecircncias sem o corpordquo (MB 235) Os
objetos e situaccedilotildees do mundo satildeo manifestaccedilotildees e portanto sua representaccedilatildeo
conceitual satildeo reproduccedilotildees circunstanciais da essecircncia do mundo expressa pela muacutesica
Daiacute se compreende o fato de a muacutesica realccedilar em cada
pintura sim em cada cena da vida efetiva e do mundo o
aparecimento de uma significaccedilatildeo mais elevada e tanto mais
quanto mais anaacuteloga eacute sua melodia ao espiacuterito iacutentimo do
fenocircmeno dado A muacutesica combina com tudo em todas as
exposiccedilotildees Nada lhe pode ser estranho pois exprime a essecircncia
de todas as coisas Caso se soe uma muacutesica que combine com
alguma cena da vida humana ou da natureza destituiacuteda de
conhecimento ou com alguma accedilatildeo acontecimento ambiente ou
64
alguma imagem ndash entatildeo ela revela o sentido secreto dessa cena e eacute
seu comentaacuterio mais correto e claro (MB 235)
Esta caracteriacutestica que daacute agrave muacutesica um privileacutegio cognitivo sobre as demais formas
artiacutesticas eacute o que delineia as consideraccedilotildees do filoacutesofo sobre a oacutepera30
A oacutepera ideal eacute
portanto aquela onde o livreto estaacute para a muacutesica como um exemplo para um conceito
geral A muacutesica tem a funccedilatildeo de expor ldquoo profundo e misterioso sobre a essecircncia
iacutentimardquo daquilo que a palavra exemplifica O compositor que maior ecircxito conseguiu
neste sentido conforme o filoacutesofo foi Rossini cuja ldquomuacutesica fala tatildeo distinta e
puramente a sua linguagem PROacutePRIA visto que quase natildeo precisa de palavras e por
conseguinte provoca todo o seu efeito mesmo se executada soacute com instrumentosrdquo
(MVR 344)
Vemos entatildeo a muacutesica como a mais profunda das artes cujo efeito eacute o mais
avassalador e que portanto quando conjugada com outras formas de expressatildeo como a
oacutepera deve formar a base e orientar a sua elaboraccedilatildeo Entretanto ao contraacuterio da
trageacutedia cujo fim eacute o estiacutemulo agrave renuacutencia da vontade de viver a muacutesica segundo a
metafiacutesica exposta por Schopenhauer ldquonatildeo faz mais do que agradar a vontade de viver
jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo seus ecircxitos e ao final expressa sua
satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509)
30
ldquoAo adotar esta atitude Schopenhauer transtorna toda a tradiccedilatildeo jaacute secular que havia afirmado natildeo
poucas vezes desde os tempos do nascimento da oacutepera o predomiacutenio da palavra sobre a muacutesica e em
consequumlecircncia a subordinaccedilatildeo desta uacuteltima agrave primeirardquo (Fubini 1988 289)
65
3 A teoria da trageacutedia do Jovem Nietzsche
Debalde espreitamos por uma raiz
vigorosamente ramificada por um pedaccedilo
de terra sadia e feacutertil por toda parte poacute
areia rigidez consunccedilatildeo Aqui um
solitaacuterio desconsolado natildeo poderia escolher
melhor siacutembolo do que o Cavaleiro com a
Morte e o Diabo como Duumlrer o desenhou o
cavaleiro arnesado com o olhar duro
brocircnzeo que sabe tomar o seu caminho
assustador imperturbado por seus
hediondos companheiros e natildeo obstante
desesperanccedilado sozinho com o seu corcel e
o seu catildeo Um tal cavaleiro duumlreriano foi
nosso Schopenhauer faltava-lhe qualquer
esperanccedila mas queria a verdade Natildeo haacute
quem se lhe iguale
(Nietzsche)
Neste capiacutetulo procuraremos apontar primeiramente o modo pelo qual se deu o
encontro entre Nietzsche e a filosofia de Schopenhauer Em um segundo momento
percorreremos o desenvolvimento histoacuterico das produccedilotildees nietzscheanas que
culminaram com a publicaccedilatildeo da obra que caracteriza o primeiro periacuteodo do filoacutesofo
qual seja O nascimento da trageacutedia a partir do espiacuterito da muacutesica Concluiremos entatildeo
apresentando um esboccedilo desta obra dando ecircnfase em todos os momentos aos
66
elementos que caracterizam sua teoria da trageacutedia especialmente agravequeles relacionados agrave
metafiacutesica schopenhaueriana da vontade
31 Schopenhauer e o jovem Nietzsche uma breve contextualizaccedilatildeo histoacuterica
Foram nos anos de universidade em Leipzig que Nietzsche se deparou com a
filosofia de Schopenhauer Este periacuteodo entre os anos de 1865 e 1869 eacute especialmente
importante devido ao fato de que nele podemos assistir ao surgimento de alguns
aspectos fundamentais ao projeto filosoacutefico de Nietzsche Janz descreve este periacuteodo
como aquele em que o filoacutesofo estabeleceu ldquoseus encontros espirituais determinantes a
partir dos quais se defrontou consigo mesmo e com sua tarefardquo(1987 151)
O primeiro contato do jovem Nietzsche com o mundo schopenhaueriano deu-se
em meados de outubro de 1865 pouco tempo apoacutes sua chegada a Leipzig O
arrebatamento causado no jovem estudante de filologia pelo encontro com a filosofia
schopenhaueriana eacute descrito por ele apoacutes dois anos da seguinte maneira
Sentia-me naquela eacutepoca desorientado solitaacuterio sem
princiacutepios sem esperanccedilas inconsolado e com algumas
experiecircncias dolorosas e decepccedilotildees Construir uma vida proacutepria e
adequada era para mim uma aspiraccedilatildeo que me ocupava da manhatilde
ateacute a noite No feliz apartamento em que vivia procurava
concentrar-me a mergulhar em mim mesmo e quando me
encontrava com amigos estes eram sempre Mushacke e Von
Gersdorff os quais por sua parte alentavam objetivos muito
semelhantes aos meus Creio que natildeo seraacute difiacutecil imaginar a
impressatildeo que nesta situaccedilatildeo me causou a leitura da obra
principal de Schopenhauer Encontrei um dia este livro no sebo do
velho Rohm Ignorando tudo sobre ele o tomei em minhas matildeos e
me pus a folheaacute-lo Natildeo sei que democircnio me sussurrou bdquoleve este
livro para a casa‟ Aconteceu de compraacute-lo apesar do meu usual
costume de natildeo me precipitar na compra de livros Uma vez em
casa num canto do sofaacute me lancei sobre o tesouro receacutem
adquirido e comecei a deixar que aquele gecircnio eneacutergico e sombrio
influiacutesse sobre mim Em cada linha sua gritava a renuacutencia
negaccedilatildeo resignaccedilatildeo tinha diante de mim um espelho no qual
podia contemplar o mundo a vida e meu proacuteprio acircnimo com uma
67
grandeza deprimente Um espelho desde o qual o olho solar da
arte me mirava desde sua absoluta falta de interesse Vi
enfermidade e cura desterro e refuacutegio inferno e paraiacuteso A
necessidade de autoconhecimento inclusive de auto-
experimentaccedilatildeo apoderou-se de mim com forccedila indomaacutevel
provas daquela mutaccedilatildeo profunda satildeo hoje todavia para mim as
paacuteginas desassossegadas e melancoacutelicas do diaacuterio que agravequela
eacutepoca escrevi com suas auto-acusaccedilotildees inuacuteteis e sua desesperada
busca de salvaccedilatildeo e reconstruccedilatildeo do inteiro nuacutecleo humano Na
medida em que propus a submeter todas as minhas caracteriacutesticas
e aspiraccedilotildees ao tribunal de uma sombria auto-depreciaccedilatildeo minha
atitude estava cheia de amargura possuiacuteda de um oacutedio injusto e
desenfreado contra mim mesmo Nem sequer renunciei agraves
mortificaccedilotildees corporais Obriguei-me com efeito durante
quatorze dias seguidos a deitar-me agraves duas da noite e acordar agraves
seis da manhatilde Uma excitaccedilatildeo nervosa muito singular se apoderou
assim de mim e quem sabe ateacute que grau de loucura haveria
chegado se natildeo tivesse modificado frente agravequele estado de
acircnimo os atrativos da vida da vaidade e o imperativo de retornar
a meus estudos regulares (conforme citaccedilatildeo de Janz 1987 158)
Da citaccedilatildeo podemos inferir a mudanccedila de acircnimo que o encontro com
Schopenhauer provocou A partir daquele momento diversas correspondecircncias datildeo-nos
ainda informaccedilotildees do impacto que a filosofia de Schopenhauer provocou na concepccedilatildeo
de mundo do jovem estudante Em algumas destas correspondecircncias vemos transparecer
a influecircncia atraveacutes da frequumlente utilizaccedilatildeo de um vocabulaacuterio schopenhaueriano bem
como das ideacuteias nelas expressas Assim acontece em carta enviada agrave sua matildee e irmatilde
datada de 5 de novembro de 1865 onde ao discorrer acerca da frivolidade da vida
humana o jovem Nietzsche conclui utilizando-se dos argumentos propostos pela eacutetica
schopenhaueriana
Existem dois caminhos ou se esforccedila e se acostuma a ser
o mais limitado que se possa e uma vez que se reduz o maacuteximo
possiacutevel a luz do espiacuterito se busque bens de fortuna e se viva com
os prazeres do mundo ou por outro lado se sabe que a vida eacute
miseraacutevel se sabe que somos seus escravos tanto mais quanto
mais procuramos dela gozar e por tanto se desprende dos bens da
vida exercita a sobriedade e se eacute austero consigo mesmo e cordial
com os demais ndash e isto porque sente compaixatildeo pelos
companheiros de miseacuteria ndash em uma palavra se vive de acordo
68
com as rigorosas exigecircncias do cristianismo primitivo (OC
470)
Vemos ainda em carta a Mushacke em 12 de julho de 1866 o impacto que a
interpretaccedilatildeo schopenhaueriana pessimista de mundo causou em Nietzsche ldquoDesde que
Schopenhauer nos retirou dos olhos a venda do otimismo as coisas satildeo percebidas
mais agudamente A vida eacute mais interessante ainda que mais feiardquo (conforme citaccedilatildeo
de Janz 1987 172) Percebemos tambeacutem a linguagem schopenhaueriana na descriccedilatildeo
dos momentos de contemplaccedilatildeo Eacute o caso da carta datada de 07 de abril de 1866 a
Gersdorf onde Nietzsche descreve seu estado que nos remeteraacute agrave contemplaccedilatildeo
artiacutestica na filosofia de Schopenhauer ao discorrer sobre os dias de veratildeo ldquo[] a
natureza se faz perfeita e noacutes tambeacutem entatildeo nos sentimos livres do poderio da vontade
sempre alerta e somos olho puro intuitivo desinteressadordquo (OC 472)
Estas influecircncias nortearam de forma definitiva as produccedilotildees acadecircmicas de
Nietzsche mesmos suas pesquisas filoloacutegicas A concepccedilatildeo traacutegica do mundo tornou-se
um feixe condutor para as reflexotildees do jovem filoacutelogo Seus companheiros no estudo da
obra de Schopenhauer eram Gersdorff e Mushacke Em carta agrave sua matildee de 01 de
fevereiro de 1866 Nietzsche deixa saber sobre a frequumlecircncia dos estudos ldquoCom
Gersdorff me encontro uma noite por semana para ler grego a cada duas semanas me
reuacuteno com ele e com Mushacke e nos entregamos a Schopenhauer Este filoacutesofo ocupa
uma posiccedilatildeo importante em meus pensamentos e estudos e meu respeito por ele cresce
incomparavelmenterdquo (OC 471) Se o conteuacutedo da filosofia schopenhaueriana foi
absorvido intensamente pelo jovem Nietzsche como podemos ver a partir dos trechos
transcritos acima a forma estiliacutestica tambeacutem se configura como preocupaccedilatildeo Em um
periacuteodo onde as pesquisas acadecircmicas exigiam o esforccedilo da escrita ali tambeacutem a
autoridade das regras schopenhauerianas exibia sua feiccedilatildeo Eacute tambeacutem em uma carta a
69
Gersdorff datada de 06 de abril de 1867 onde Nietzsche expotildee sua preocupaccedilatildeo com o
estilo
Nestas divagaccedilotildees quero redigir meu trabalho sobre as
fontes de Dioacutegenes Laeacutercio e estou todavia no iniacutecio Para seu
regozijo confessarei que o que mais me daacute trabalho eacute meu estilo
em alematildeo Agora me caem os veacuteus dos olhos e vejo que
durante muito tempo vivi em estado de inocecircncia estiliacutestica O
imperativo categoacuterico bdquodeves escrever‟ me foi despertado[] nos
ouvidos me soavam todos os preceitos estiliacutesticos de Lessing de
Lichtenberg e de Schopenhauer Meu uacutenico consolo eacute que estas
trecircs autoridades afirmavam unanimemente que eacute difiacutecil escrever
bem que por natureza ningueacutem tem um bom estilo e que haacute que
trabalhar e trabalhar para consegui-lo (OC 476)
Entretanto apesar do profundo arrebatamento causado pela filosofia de
Schopenhauer que fez com que o universo das preocupaccedilotildees do entatildeo jovem Nietzsche
se fundamentasse nos pressupostos da metafiacutesica schopenhaueriana outros elementos
tambeacutem fundamentais para o pensamento futuro do filoacutesofo foram tambeacutem neste
periacuteodo despertados Como apontam Dias (2009 42) Janaway (2007 16) e Lopes
(2008 27) jaacute neste periacuteodo que podemos tratar como um periacuteodo de despertar para o
pensamento filosoacutefico encontraacutevamos os elementos que a partir de Humano demasiado
humano conformaratildeo a criacutetica nietzscheana agrave filosofia de Schopenhauer Os
comentadores citados chamam a atenccedilatildeo para o fato de que embora nas obras
publicadas de Nietzsche possamos assistir a criacuteticas diretas a Schopenhauer somente
apoacutes Humano demasiado humano tais criacuteticas agrave filosofia schopenhaueriana surgiram
em um momento imediatamente posterior agrave descoberta da metafiacutesica da vontade Rosa
Maria Dias chama a atenccedilatildeo para os fragmentos poacutestumos e para a correspondecircncia que
agrave partir de 1867 trazem algumas criacuteticas agrave metafiacutesica da vontade Rogeacuterio Lopes e
Cristopher Janaway apontam que algumas destas criacuteticas estatildeo embasadas nas leituras
que o jovem Nietzsche fez de Friedrich A Lange Rudolf Haym Kuno Fischer dentre
outros Tais criacuteticas contudo natildeo afastaram o jovem Nietzsche do discipulado
70
schopenhaueriano mas transformaram sua aceitaccedilatildeo do sistema da vontade No lugar de
uma defesa da consistecircncia loacutegica do sistema Nietzsche passou a adotar uma postura de
defesa da bdquonatureza edificante‟ e preponderantemente artiacutestica deste sistema Exemplos
desta postura podem ser encontrados tambeacutem na correspondecircncia daquele periacuteodo
Para escrever uma apologia a Schopenhauer eu tenho
unicamente que considerar o fato de que olho esta vida livre e
bravamente diante do fato de que encontrei um suporte para me
apoiar obviamente que isto natildeo eacute mais que uma apologia
totalmente individual Mas eacute como as coisas satildeo Se algueacutem
deseja refutar Schopenhauer para mim atraveacutes de argumentos
racionais murmuro em seu ouvido bdquoporeacutem meu amigo visotildees de
mundo natildeo satildeo criadas nem destruiacutedas pela loacutegica‟ (carta a
Deussen Outubro-Novembro de 1867 citada por Janaway
(200718))
Ou ainda em carta a Gersdorff onde apoacutes apresentar a criacutetica de Lange agrave metafiacutesica da
vontade Nietzsche conclui contra Haym ainda com os argumentos de Lange
Natildeo apenas a verdadeira essecircncia das coisas a coisa em si
eacute desconhecida para noacutes tambeacutem seu conceito eacute nada mais nada
menos que o uacuteltimo rebento de um contraste condicionado por
nossa organizaccedilatildeo do qual natildeo sabemos se conserva algum
significado fora de nossa experiecircncia Disso resulta pensa Lange
que os filoacutesofos natildeo devem ser importunados na medida em que
nos edificam A arte eacute livre tambeacutem na regiatildeo dos conceitos
Quem pretenderia refutar uma frase de Beethoven e acusar de erro
uma Madonna de Rafael Como vocecirc pode perceber o nosso
Schopenhauer resiste mesmo a este mais rigoroso ponto de vista
criacutetico ele se torna quase ainda mais valioso para noacutes Se filosofia
eacute arte entatildeo que Haym se anule diante de Schopenhauer se a
filosofia deve edificar entatildeo eu pelo menos natildeo conheccedilo nenhum
filoacutesofo que edifique mais do que nosso Schopenhauer (apud
Lopes 2008 86-87)
Vimos ateacute entatildeo que a descoberta de Schopenhauer provocou no jovem
estudante de filologia transformou sua forma de perceber o mundo e o influenciou de
forma definitiva a ponto de fazer com que Nietzsche se definisse como um seguidor e
divulgador da obra schopenhaueriana Contudo eacute no fim de seus anos de estudo em
Leipzig que o disciacutepulo de Schopenhauer iraacute se defrontar com a personalidade que lhe
71
reforccedilaraacute de forma ainda mais contundente o selo da rotunda schopenhaueriana
Richard Wagner
Foi atraveacutes de seu amigo Brockhaus cuja esposa era irmatilde do muacutesico que em
novembro de 1868 Nietzsche encontrou-se pela primeira vez com Wagner A partir
daquele encontro se estabeleceria um relacionamento que de uma forma ou de outra
marcaraacute Nietzsche pelo resto de sua vida Em uma carta a seu amigo Erwin Rohde
Nietzsche descreve o primeiro encontro e sua perplexidade ao encontrar em Wagner um
admirador de Schopenhauer ldquo[]mantive com ele uma longa conversa sobre
Schopenhauer Ah Compreenderaacutes minha felicidade em ouvir-lhe falar com um
entusiasmo completamente indescritiacutevel ao qual ele agradecia como Schopenhauer
era o uacutenico filoacutesofo que havia compreendido a essecircncia da muacutesicardquo (Correspondecircncia
2007 21) A impressatildeo deste encontro eacute tambeacutem claramente visiacutevel atraveacutes de
correspondecircncia endereccedilada ao proacuteprio Wagner em maio de 1869 ldquoVeneradiacutessimo
senhor quanto tempo tive a intenccedilatildeo de lhe manifestar sem nenhuma timidez o grau de
gratidatildeo que sinto em relaccedilatildeo ao senhor pois realmente os melhores e mais elevados
momentos de minha vida se ligam ao seu nome e eu soacute conheccedilo mais um homem aleacutem
disso seu grande irmatildeo em espiacuterito Arthur Schopenhauer em quem penso com a
mesma veneraccedilatildeo ateacute senso religiosordquo (Correspondecircncia 2007 56) Como podemos
ver a pessoa de Wagner eacute associada agrave de Schopenhauer Esta associaccedilatildeo tornar-se-aacute
uma constante e poderaacute ser identificada ainda na fase tardia onde as criacuteticas a estes
pensadores e ao que eles entatildeo representavam se daraacute de forma inter-relacionada Este
primeiro encontro com Wagner conforme Janz (1987 22) foi um dos principais
motivos que levaram Nietzsche a aceitar em detrimento de outros planos que
formulava assumir a caacutetedra de filologia em Basel A proximidade de Tribschen
residecircncia dos Wagner e a possibilidade de uma convivecircncia com o muacutesico o
72
inspiraram E assim aconteceu Ao mudar-se para Basel pocircde desfrutar de uma
convivecircncia constante com o casal Wagner Desde a chegada de Nietzsche ateacute a
mudanccedila de Wagner em 1872 encontravam-se com muita frequumlecircncia e os assuntos que
pautavam tais encontros eram amiuacutede arte muacutesica a literatura claacutessica e a filosofia de
Schopenhauer Wagner tornar-se-ia para Nietzsche a personificaccedilatildeo do gecircnio
schopenhaueriano aquele capaz de atraveacutes da muacutesica expor a essecircncia do mundo No
projeto wagneriano de ldquoarte totalrdquo Nietzsche pocircde vislumbrar a uniatildeo entre muacutesica e
filosofia e satisfazer assim em certa medida as expectativas oriundas da metafiacutesica da
vontade
32 O projeto subjacente ao Nascimento da Trageacutedia
Eacute famosa a passagem onde Nietzsche em carta a Deussen datada de janeiro de
1870 informa sobre seu estado de espiacuterito ldquo Ciecircncia arte e filosofia crescem agora
juntas em mim e de tal modo que um dia haverei de parir centaurosrdquo (Janz 1981 66)
Esta afirmaccedilatildeo eacute ilustrativa no que se refere ao ambiente onde o Nascimento da trageacutedia
foi gerado Podemos identificar claramente as figuras por detraacutes dos termos filosofia
arte e ciecircncia satildeo elas Schopenhauer Wagner e a filologia claacutessica Neste periacuteodo
Nietzsche entatildeo jovem professor de filologia estava imbuiacutedo pela pretensatildeo de poder
unir os estudos filoloacutegicos aos filosoacuteficos Sua preleccedilatildeo inicial Homero e a filologia
claacutessica em Basel nos daacute uma amostra desta pretensatildeo Ali podemos assistir a uma
aproximaccedilatildeo entre filologia e filosofia atraveacutes da proposta de uma leitura filosoacutefica do
mundo antigo ldquoCom isto quero expressar que toda atividade filoloacutegica deve estar
impregnada de uma concepccedilatildeo filosoacutefica do mundo na qual todo o particular e singular
seja visto como algo sem proveito e soacute permaneccedila de peacute a unidade do todordquo (OC 26)
73
Sua escolha por trilhar caminhos mais proacuteximos agrave filosofia pode tambeacutem ser observada
pela tentativa frustrada de ocupar uma cadeira desta disciplina que se mostrou livre em
janeiro de 1871 Se por um lado podemos diagnosticar certa decepccedilatildeo e ateacute um
determinado desacircnimo na atividade acadecircmica por outro lado os laccedilos com os Wagner
se estreitavam cada vez mais No refuacutegio de Tribschen sob a aura de Richard Wagner
Nietzsche discorria sobre o mundo grego enquanto modelo de cultura e ouvia os planos
wagnerianos sobre seu projeto de uma obra de arte total Como pano de fundo destas
discussotildees a metafiacutesica da muacutesica schopenhaueriana e sua concepccedilatildeo traacutegica do mundo
Eacute em torno destes eixos formadores que vemos se materializar a primeira publicaccedilatildeo de
Nietzsche
O desenvolvimento das ideacuteias que formaratildeo a obra contudo se deu de forma
gradual Ao longo do periacuteodo compreendido entre a chegada de Nietzsche a Basel e a
publicaccedilatildeo de seu livro determinados trabalhos deixam transparecer o delineamento de
algumas das ideacuteias centrais da obra Satildeo eles O drama musical grego Soacutecrates e a
trageacutedia A visatildeo dionisiacuteaca do mundo e Introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles31
Em o drama musical grego conferecircncia puacuteblica datada de janeiro de 1870
Nietzsche efetua uma comparaccedilatildeo entre a arte traacutegica da antiguidade e as oacuteperas
modernas Estas de acordo com o filoacutesofo satildeo uma imperfeita ldquocaricatura do drama
musical antigordquo (VD 48) Muacutesica pintura escultura e poesia formavam um todo na
arte traacutegica da antiguidade Nas artes modernas por sua vez as formas artiacutesticas satildeo
fragmentadas fato que dificulta o entendimento da trageacutedia grega e que causaria
espanto ao apreciador de arte moderno A muacutesica teria para a trageacutedia antiga uma
31
Como ressaltam M S Silk e J P Stern em sua obra Nietzsche on tragedy (1981 59) o nascimento da
trageacutedia eacute composto de forma estrutural pelos conceitos encontrados nestes trabalhos O iniacutecio do livro
(sectsect1-10) eacute substancialmente baseado no ensaio a visatildeo dionisiacuteaca do mundo enquanto a sequumlecircncia
composta pelos paraacutegrafos 5 e 6 estaacute mais proacutexima da introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles O trecho
composto pelos paraacutegrafos 11 a 14 pode ser derivado diretamente da leitura Soacutecrates e a trageacutedia O resto
do livro eacute formado por uma amaacutelgama destes escritos Partes dispersas ainda satildeo formadas pelo ensaio do
drama musical grego
74
importacircncia capital como elemento intensificador de seu efeito Podemos ver a intenccedilatildeo
por traacutes da anaacutelise nietzscheana da trageacutedia antiga em comparaccedilatildeo agrave opera Ao final da
conferecircncia no elogio que confere a Wagner o tiacutetulo de ldquoatual reformador da arterdquo bem
como na descriccedilatildeo de seu projeto de arte total retratado como um acontecimento que jaacute
teve lugar na trageacutedia da antiguidade claacutessica Nietzsche deixa claro seu engajamento ao
projeto wagneriano
No mecircs seguinte ao da citada conferecircncia uma segunda intitulada Soacutecrates e a
trageacutedia foi proferida por Nietzsche O assunto em pauta era a morte repentina da
trageacutedia grega Esta morte teria ocorrido pelas matildeos de Euriacutepides apoacutes uma decadecircncia
iniciada nos uacuteltimos periacuteodos das produccedilotildees de Eacutesquilo passando por Soacutefocles e
culminando com o advento da comeacutedia Tal decadecircncia teria sido provocada pela saiacuteda
de cena da muacutesica que de forma progressiva foi substituiacuteda pelo diaacutelogo racionalista
Soacutecrates ocupa aqui um lugar importante Eacute sua influecircncia sobre Euriacutepides que
transforma de uma forma definitiva a arte instintivamente musical da trageacutedia em uma
manifestaccedilatildeo do discurso eacutetico racionalista Esta ldquoesteacutetica racionalista e conscienterdquo
pode ser identificada no proacutelogo euripidiano e na inserccedilatildeo do deus ex machina
enquanto agentes de racionalizaccedilatildeo da obra artiacutestica A trageacutedia de Euriacutepides teria
assumido assim os pressupostos do racionalismo socraacuteticos ldquoVirtude eacute saber peca-se
somente por ignoracircncia O virtuoso eacute felizrdquo (VD 90) Esta assunccedilatildeo que liga a virtude
ao saber impotildee agrave trageacutedia um caraacuteter eacutetico alheio agrave sua caracteriacutestica puramente
esteacutetica O elemento culpa na dialeacutetica socraacutetica toma o lugar que era ocupado pela
compaixatildeo Jaacute podemos perceber nesta conferecircncia o esboccedilo da dicotomia que mais
tarde seraacute ilustrada atraveacutes dos deuses Apolo e Dioniso Os pares formadores da
dicotomia satildeo aqui expressos pela separaccedilatildeo entre instinto e razatildeo muacutesica e discurso
pessimismo e otimismo arte e ciecircncia
75
Temos a primeira referecircncia agrave arte dionisiacuteaca como impulso formador da
trageacutedia e sua contraposiccedilatildeo agrave arte apoliacutenea nas aulas proferidas por Nietzsche no veratildeo
daquele mesmo ano Neste curso sobre a trageacutedia de Soacutefocles do qual temos a
introduccedilatildeo podemos ver o esforccedilo de Nietzsche em caracterizar e apontar as
peculiaridades da trageacutedia da antiguidade que a tornam um fenocircmeno uacutenico em
comparaccedilatildeo agraves trageacutedias modernas Tal discussatildeo demonstraraacute pelos aspectos ali
expostos a aproximaccedilatildeo de Nietzsche com autores do periacuteodo claacutessico alematildeo e
sobretudo da chamada querela entre antigos e modernos Vemos claramente a influecircncia
de Schiller e F A Schlegel em algumas das definiccedilotildees adotadas por Nietzsche
No texto denominado A visatildeo dionisiacuteaca do mundo jaacute podemos assistir a um
desenvolvimento das duas pulsotildees artiacutesticas que satildeo o nuacutecleo da interpretaccedilatildeo
nietzscheana da trageacutedia O apoliacuteneo e o dionisiacuteaco satildeo ali explicados no acircmbito de seu
surgimento no mundo helecircnico e simbolizam a uniatildeo entre verdade e beleza na forma de
arte traacutegica Sua descriccedilatildeo como veremos abaixo estaacute permeada de conceitos retirados
da filosofia schopenhaueriana que vatildeo desde a biparticcedilatildeo do mundo entre verdade e
aparecircncia perpassam as noccedilotildees de belo e sublime e apontam a trageacutedia e a muacutesica como
forma de arte superiores
Em janeiro de 1872 Nietzsche daacute luz a seu ldquoCentaurordquo sob o nome O nascimento
da trageacutedia atraveacutes do espiacuterito da muacutesica Em carta a Rohde datada de 23 de novembro
de 1871 podemos notar atraveacutes da ansiosa expectativa nietzscheana a amaacutelgama
formadora da obra ldquo Temo sempre que os filoacutelogos natildeo o queiram ler por causa da
muacutesica os muacutesicos por causa da filologia e os filoacutesofos por causa da muacutesica e da
filologia e sinto logo medo e compaixatildeo de mim mesmordquo (Correspondecircncia 2007 237)
33 A teoria da trageacutedia publicada
Como escopo geral da primeira obra de Nietzsche podemos dizer na esteira de
Silk e de Stern (1981 52) que ela se propunha a esclarecer o problema do nascimento e
76
da morte da trageacutedia helecircnica Trageacutedia que por sua vez era a expressatildeo artiacutestica que
simbolizava um problema vital o de que sob uma superfiacutecie bela podiacuteamos ter acesso agrave
terriacutevel profundidade do ser Tal forma de arte poderia novamente vir agrave luz por uma
geraccedilatildeo criativa que ao combater a superficialidade moderna que reinava no mundo
germacircnico poderia produzir o renascimento moderno do mundo Helecircnico
Em sua essecircncia o nascimento da trageacutedia aponta para as divindades Apolo e
Dioniacutesio como ldquorepresentantes vivosrdquo de princiacutepios diacutespares que irrompem da proacutepria
natureza e que ao serem conciliados de certa forma tornaram possiacutevel que atraveacutes dos
atritos de tal uniatildeo a trageacutedia grega despontasse como manifestaccedilatildeo artiacutestica exemplar
do sublime Em linhas gerais a arte do ldquofigurador plaacutesticordquo estaria entatildeo associada ao
deus Apolo enquanto a arte ldquonatildeo figuradardquo a da muacutesica estaria associada ao deus
Dioniacutesio O apoliacuteneo eacute um impulso da vontade grega que ao almejar a vida a apresenta
transfiguradamente como um belo sonho plasmado no mundo dos deuses oliacutempicos O
princiacutepio apoliacuteneo seria aquele que estabeleceria a ordem a beleza estaacutetica e a clareza
dos limites O dionisiacuteaco eacute oriundo das festas do oriente e seu efeito eacute comparado ao da
embriaguecircs A ele cabe a sabedoria profunda da essecircncia da vida lugar do acaso do
impermanente do horriacutevel e do sofrimento A Apolo eacute facultado tecer o veacuteu que
encobre a sabedoria dionisiacuteaca e torna a vida suportaacutevel atraveacutes da ilusatildeo do sonho
Assim segundo Nietzsche o desenvolvimento contiacutenuo da arte estaacute vinculado agrave
duplicidade dos princiacutepios apoliacuteneo e dionisiacuteaco Perfazendo um caminho histoacuterico da
cultura grega podemos notar uma sobreposiccedilatildeo intermitente entre os impulsos divinos
Temos momentos onde o impulso apoliacuteneo se mostrou dominante e outros onde
Dioniacutesio recupera seu predomiacutenio O mundo oliacutempico homeacuterico com sua arte eacutepica e
sua escultura do periacuteodo doacuterico nascem a partir de uma necessidade de redenccedilatildeo para a
realidade de horror e sofrimento que o povo helecircnico presenciava Em substituiccedilatildeo ao
77
mundo titacircnico temos o mundo dos deuses oliacutempicos exemplificadores de uma
existecircncia divinizada que exalta a vida Nas palavras de Nietzsche ldquoo grego conheceu
e sentiu os temores e os horrores do existir para que lhe fosse possiacutevel de algum modo
viver teve de colocar ali entre ele e a vida a resplendente criaccedilatildeo oniacuterica dos deuses
oliacutempicosrdquo (NT 36) Entretanto a sabedoria dionisiacuteaca portadora da visatildeo abismal do
ser natildeo pocircde ser contida por muito tempo e a muacutesica veiacuteculo da uniatildeo orgiaacutestica aos
poucos foi se infiltrando no mundo construiacutedo pelo divino Apolo Os gregos foram se
tornando conscientes de seu estado sonambuacutelico que sob a graccedila do deus Apolo enleva
e transporta pela extraordinaacuteria beleza natural ou esteacutetica Em um estado semelhante ao
do indiviacuteduo que restabelecido em suas forccedilas pelo efeito renovador do sono ao findar
de uma noite comeccedila a ouvir os sons a sua volta e aos poucos vai se despertando da
mesma forma os gregos comeccedilaram novamente a ouvir o sussurro do Sileno
companheiro de Dioniacutesio ldquoo melhor de tudo eacute para ti inteiramente inatingiacutevel natildeo ter
nascido e natildeo ser nada ser Depois disso poreacutem o melhor para ti eacute logo morrerrdquo
(NT 36) O artista que representa este retorno do dionisiacuteaco com a mesma envergadura
com que Homero representa as forccedilas apoliacuteneas eacute Arquiacuteloco Tomando-o como modelo
do gecircnio liacuterico Nietzsche faz uma descriccedilatildeo de seu processo de criaccedilatildeo Conforme a
metafiacutesica esteacutetica adotada por Nietzsche - que mais agrave frente veremos ser retirada da
esteacutetica schopenhaueriana - toda arte tem que ser objetiva livre dos interesses
individuais Nesta situaccedilatildeo a liacuterica que tem como objeto o eu do poeta seus desejos e
emoccedilotildees natildeo seria uma forma de arte Entretanto atraveacutes de uma descriccedilatildeo que Schiller
faz da inspiraccedilatildeo poeacutetica Nietzsche aponta o caminho para percebermos a liacuterica como
obra de arte e portanto objetivamente Conforme a passagem de Schiller citada por
Nietzsche (NT 44) ldquoo sentimento se me apresenta no comeccedilo sem um objeto claro e
determinado este soacute se forma mais tarde Uma certa disposiccedilatildeo musical de espiacuterito
78
vem primeiro e somente depois eacute que se segue em mim a ideacuteia poeacuteticardquo Desta forma
Arquiacuteloco em seu processo criativo a princiacutepio entraria em um estado de consciecircncia
ou de criaccedilatildeo onde renunciaria agrave sua individualidade e dionisiacamente participaria do
uno-primordial ldquoabismo do serrdquo estado que por sua vez materializa-se atraveacutes da
representaccedilatildeo musical A muacutesica assim produzida seraacute condiccedilatildeo para o surgimento da
inspiraccedilatildeo que a posteriori daraacute nascimento atraveacutes da aplicaccedilatildeo das formas
apoliacuteneas agrave poesia liacuterica geacutermen da trageacutedia e dos ditirambos dramaacuteticos Esta uniatildeo da
poesia liacuterica com a muacutesica eacute uma expressatildeo sinteacutetica da relaccedilatildeo dos deuses Apolo e
Dioniacutesio Eacute no quinto capiacutetulo de sua obra que Nietzsche iraacute tratar da poesia liacuterica
Neste capiacutetulo o filoacutesofo se distancia de Schopenhauer em sua interpretaccedilatildeo do
fenocircmeno liacuterico Para Schopenhauer na citaccedilatildeo reproduzida por Nietzsche (NT 46) a
liacuterica eacute produzida atraveacutes de uma percepccedilatildeo da consciecircncia onde os estados da vontade
individualizada se alternam com o conhecimento objetivo Como vimos o poeta liacuterico
assistiria ao jogo do eu em sua afetaccedilatildeo emocional e descreveria este estado atraveacutes de
sua poesia Nietzsche ao descrever a liacuterica utiliza-se da teoria da muacutesica
schopenhaueriana qual seja o poeta liacuterico produz primeiramente a muacutesica como forma
geral de expressatildeo da vontade mesma e desta produccedilatildeo gera posteriormente o texto que
se torna um exemplificador do evento musical sua forma plaacutestica objetiva A muacutesica eacute
a aparecircncia da vontade e as imagens apoliacuteneas que dela se originaram satildeo conforme seu
espiacuterito A imagem e o conceito satildeo desta forma na liacuterica originados a partir da
muacutesica
Tem-se portanto na trageacutedia grega uma relaccedilatildeo de interdependecircncia que evoca
um aparente paradoxo ndash ou seja ao lado da necessidade esteacutetica da beleza Apolo exige
dos seus a medida (limites fronteiras do indiviacuteduo presentes no ldquonada em demasiardquo) e
o auto-conhecimento necessaacuterio para determinaacute-la (ldquoconhece-te a ti mesmordquo) o
79
desmedido os excessos o dionisiacuteaco seriam identificados pelo apoliacuteneo como
democircnios de uma era preacute-apoliacutenea era dos Titatildes reminiscecircncias de barbarismo O
paradoxo estaacute em que para que o comedimento apoliacuteneo possa existir o desmedido
dionisiacuteaco faz-se necessaacuterio (na linguagem de Nietzsche como ldquosubstratordquo) assim
como para que o desmedido dionisiacuteaco possa existir faz-se necessaacuterio a existecircncia do
comedido do apoliacuteneo Natildeo obstante a trageacutedia grega depende da conjugaccedilatildeo destes
dois princiacutepios para existir ndash indo aleacutem poder-se-ia dizer que a proacutepria muacutesica compotildee
o princiacutepio primeiro que possibilita o surgimento da trageacutedia no jogo das formas
apoliacuteneo A trageacutedia eacute entatildeo definida como ldquoo coro dionisiacuteaco a descarregar-se sempre
de novo em um mundo de imagens apoliacuteneordquo (NT 60)
Em seu iniacutecio a trageacutedia grega era representada pelo coro traacutegico Este coro natildeo
era uma ldquorepresentaccedilatildeo constitucional do povordquo muito menos um espectador ideal
como o queria August Schlegel Nietzsche acompanha Schiller na definiccedilatildeo de que o
coro cria um terreno ideal para a manifestaccedilatildeo da arte O efeito da trageacutedia eacute a
manifestaccedilatildeo de um estado de unidade que transporta ao abismo do ser O coro eacute a
manifestaccedilatildeo deste sentimento da consciecircncia de que por traacutes da vida cotidiana haacute uma
realidade ldquoindestrutivelmente poderosa e cheia de alegriardquo (NT 55) Este eacute o consolo
metafiacutesico propiciado pela arte traacutegica Ao retornarmos deste estado o cotidiano nos
causa asco nojo Natildeo eacute possiacutevel interpretar mais o papel da vida comum A vida soacute
passa a se justificar atraveacutes da arte Perceba-se aiacute que o coro possui um papel
fundamental no processo O coro atua como impulso artiacutestico dionisiacuteaco em
contraposiccedilatildeo agrave forma apoliacutenea ou seja agraves imagens e agrave beleza plaacutestica Assim o
indiviacuteduo atraveacutes do coro tem para si revelado aquele substrato dionisiacuteaco encoberto
pela beleza e comedimento apoliacuteneos isto eacute ao indiviacuteduo era possiacutevel submergir na
80
torrente dionisiacuteaca do auto-esquecimento permitindo-se pocircr de lado os preceitos
apoliacuteneos
E foi assim que em toda parte onde o dionisiacuteaco penetrou o apoliacuteneo
foi suspenso e aniquilado Mas eacute igualmente certo que laacute onde o primeiro
assalto foi suportado o prestiacutegio e a majestade do deus deacutelfico se externaram de
maneira mais riacutegida e ameaccediladora do que nunca(NT 41-42)
De acordo com Nietzsche as trageacutedias eram em seu iniacutecio representaccedilotildees do
sofrimento de Dioniacutesio Mesmo as trageacutedias do periacuteodo aacutetico traziam Dioniacutesio como
heroacutei traacutegico O sofrimento representado era o do despedaccedilamento de Dioniacutesio o deus
que sofreu o padecimento da individuaccedilatildeo causa de todo o sofrer O mito de Dioniacutesio eacute
interpretado aqui sob a luz da filosofia de Schopenhauer que apresenta a individuaccedilatildeo
como fonte do sofrimento ldquoNos pontos de vista aduzidos temos jaacute todas as partes
componentes de uma profunda e pessimista consideraccedilatildeo do mundo e ao mesmo tempo
a doutrina misteriosoacutefica da trageacutedia o conhecimento baacutesico da unidade de tudo o que
existe a consideraccedilatildeo da individuaccedilatildeo como a causa primeira do mal a arte como a
esperanccedila jubilosa de que possa ser rompido o feiticcedilo da individuaccedilatildeo como
pressentimento de uma unidade restabelecidardquo (NT 70)
Contudo ressalta Nietzsche a trageacutedia grega que como vimos desenvolve-se a
partir do embate contiacutenuo entre as representaccedilotildees dos deuses antiacutepodas ndash envolvidos em
um enfrentamento aparentemente sem fim ndash eacute reestruturada por Euriacutepides de forma a
diminuir o impacto do coro ou seja um golpe quase mortal para Dioniacutesio que
agonizante lanccedila matildeo de seus uacuteltimos esforccedilos O que em Euriacutepedes suscitou esta
reestruturaccedilatildeo que conforme Nietzsche eacute responsaacutevel pelo afastamento progressivo do
dionisiacuteaco tem suas origens no que o filoacutesofo chamou de uma ldquotendecircncia socraacuteticardquo O
socratismo euripidiano e a sua nova concepccedilatildeo esteacutetica satildeo as causadoras do
afastamento dos impulsos esteacuteticos primevos o dionisiacuteaco e o apoliacuteneo Em seu lugar o
discurso consciente passa a imperar O deus ex machina e os proacutelogos satildeo exemplos das
81
interferecircncias racionais que datildeo novo tom agrave trageacutedia aacutetica Soacutecrates e seu racionalismo
expulsam da trageacutedia o conhecimento primevo dionisiacuteaco e estabelecem novas regras
esteacuteticas regras racionais que fazem com que o bom sinocircnimo do belo seja aquilo
alcanccedilado conscientemente
Se a trageacutedia grega foi para Nietzsche a manifestaccedilatildeo mais sublime de uma
forma artiacutestica isto se daacute em decorrecircncia do efeito por ela provocado qual seja o de
justificar o mundo enquanto fenocircmeno esteacutetico Foi exatamente o decliacutenio deste efeito
constatado pela produccedilatildeo racionalizada de Euriacutepides o responsaacutevel pela morte da
trageacutedia Ao fortalecer em demasia os princiacutepios racionais da forma Euriacutepides suprimiu
o dionisiacuteaco por meio da flacircmula que nas palavras de Nietzsche o tragedioacutegrafo
ldquolevava agrave testardquo ndash a saber uma espeacutecie de socratismo esteacutetico cujos princiacutepios se davam
a partir da remissatildeo do belo ao inteligiacutevel e deste ao virtuoso Identifica-se portanto a
racionalidade otimista socraacutetica como grande responsaacutevel pela supressatildeo do impulso
dionisiacuteaco Nietzsche alude agrave proximidade de convivecircncia entre Soacutecrates e Euriacutepides
para justificar a presenccedila do racionalismo nas obras Euripidianas Soacutecrates frequumlentava
o teatro somente para assistir agraves apresentaccedilotildees de Euriacutepides De todos os atenienses
Soacutecrates era apontado como o mais saacutebio e Euriacutepides como o segundo em sabedoria
Entretanto na contraposiccedilatildeo proposta por Nietzsche entre conhecimento instintivo e
racional Soacutecrates era descomunalmente racional ao contraacuterio do intuitivismo criativo
que reinava ateacute entatildeo Era questionando aos atenienses sobre seus atos que Soacutecrates
percebia que eles natildeo agiam conscientemente mas por intuiccedilatildeo A crenccedila socraacutetica de
que toda accedilatildeo boa deve ser consciente dominou o teatro atraveacutes de Euriacutepides Uma
chave para o entendimento da racionalidade socraacutetica segundo Nietzsche nos eacute
revelada pela ldquomonstruosa inversatildeordquo representada pela consciecircncia criacutetica de Soacutecrates ndash
ou seja a nota destoante em Soacutecrates revela-se pelo instinto criacutetico em contraposiccedilatildeo agrave
82
consciecircncia criacutetica a consciecircncia criadora em contraposiccedilatildeo ao instinto como forccedila
criadora Intui-se assim o motivo pelo qual Soacutecrates natildeo compreendia a trageacutedia grega
- o dionisiacuteaco a tornava ininteligiacutevel para as exigecircncias racionalistas e criacuteticas da
ldquodialeacutetica otimistardquo socraacutetica ldquoA Soacutecrates [] parecia que a arte traacutegica nunca bdquodiz a
verdade‟ sem considerar o fato de que se dirigia agravequele que bdquonatildeo tem muito
entendimento‟ portanto natildeo aos filoacutesofos daiacute um duplo motivo para manter-se dela
afastadordquo(NT 87) Nietzsche compara Soacutecrates ao heroacutei euripidiano que
diferentemente (ateacute mesmo antagonicamente) agrave trageacutedia de Eacutesquilo e Soacutefocles ldquoprecisa
defender suas accedilotildees por meio da razatildeo e contra a razatildeordquo O que estaacute em jogo no
socratismo eacute a substituiccedilatildeo das verdades expressas miticamente religiosamente pelas
verdades loacutegicas A razatildeo tenta abarcar o todo e para isso desconsidera a arte e seus
impulsos A excelecircncia estaacute no saber e atraveacutes deste alcanccedila-se a felicidade erro do
otimismo racionalista Ilusatildeo da razatildeo que se acha soberana e independente A loacutegica
torna-se essecircncia da trageacutedia procura-se por relaccedilotildees causais e pelo bom telos O
diaacutelogo formata sua estrutura e expulsa seu fundamento musical O ldquoheroacutei dialeacuteticordquo eacute
portanto impulsionado pelo elemento otimista da dialeacutetica A justiccedila transcendental
presente nas obras Esquilianas ldquoeacute rebaixada ao niacutevel do raso e insolente princiacutepio da
bdquojusticcedila poeacutetica‟ com seu habitual deus ex machinardquo (NT 89) A racionalidade de
Soacutecrates atraveacutes de sua investigaccedilatildeo cientiacutefica da natureza de seu processo de
construccedilatildeo loacutegica da realidade daraacute origem ao que Nietzsche denominaraacute de ldquohomem
teoacutericordquo ou ldquohomem cientiacuteficordquo a quem a razatildeo ergue-se acima da proacutepria realidade ao
ponto mesmo de ndash e aiacute reside o proacuteprio otimismo ndash propor-se a tarefa de corrigir as
falhas da proacutepria realidade Mais ainda a razatildeo socraacutetica acena ao homem com a
promessa de conferir sentido agrave existecircncia pelo conhecimento e desta forma busca
justificar tal existecircncia
83
Em face ao pessimismo praacutetico eacute Soacutecrates o protoacutetipo do
otimista teoacuterico que na jaacute assinalada feacute na escrutabilidade da
natureza das coisas atribui ao saber e ao conhecimento a forccedila de
uma medicina universal e percebe no erro o mal em si mesmo
(NT 94)
Natildeo obstante o otimismo no conhecimento na racionalidade socraacutetica encontra seu
maior dragatildeo em sua proacutepria loacutegica interna Assim nas palavras de Nietzsche
[] a periferia do ciacuterculo da ciecircncia possui infinitos pontos
e enquanto natildeo for possiacutevel prever de maneira nenhuma como se
poderaacute alguma vez medir completamente o ciacuterculo o homem
nobre e dotado ainda antes de chegar ao meio de sua existecircncia
tropeccedila e de modo inevitaacutevel em tais pontos fronteiriccedilos da
periferia onde fixa o olhar no inesclareciacutevel Quando divisa aiacute
para seu susto como nesses limites a loacutegica passa a girar em
redor de si mesma e acaba por morder a proacutepria cauda ndash entatildeo
irrompe a nova forma de conhecimento o conhecimento traacutegico
que mesmo para ser apenas suportado precisa da arte como meio
de proteccedilatildeo e remeacutedio (NT 95)
Afigura-se-nos aqui o problema apontado por Nietzsche como o ldquoproblema da
ciecircncia mesmardquo a saber um problema que nos envolve a todos por abarcar (ou
contaminar) toda a cultura ocidental - isto eacute ainda mantemos o dionisiacuteaco agrave baila
ocupando diminuta posiccedilatildeo em detrimento ao culto acerbado ao racionalismo socraacutetico
A cultura socraacutetica impotildee-se pelo homem-teoacuterico e qualquer outra existecircncia que fuja
aos olhos perscrutadores de Soacutecrates deve ldquolutar penosamente para pocircr-se agrave sua altura
como existecircncia permitida e natildeo como existecircncia propostardquo
Nietzsche nos atenta para o fato de reconhecermos comumente no homem culto
erudito o homem douto saacutebio ndash consecutivamente o dionisiacuteaco a arte eacute colocada de
forma perifeacuterica de modo a nunca poder encontrar espaccedilo para superar sua condiccedilatildeo de
ldquoremeacutedio-arterdquo A vontade aacutevida faz seu caminho mesmo atraveacutes da completa falta de
respostas de fundamentos de sentido assim eacute preferiacutevel ao ser humano querer o nada
no sentido de ainda sim querer alguma coisa do que nada querer do que reconhecer a
84
falta de fundamentos da qual consistem em todos os tempos as ilusotildees que
costumeiramente adota-se como engodo ao absoluto sem-sentido da vida
Por fim Nietzsche atenta-nos para o fato de como o homem de seu tempo vem
perdendo a crenccedila na ciecircncia otimista socraacutetica isto eacute pressentindo que a cultura
racionalista socraacutetica torna-se iloacutegica ao vislumbraacute-la em seus horizontes afastando-se
de suas consequumlecircncias Nietzsche diagnostica na oacutepera de seu periacuteodo a subordinaccedilatildeo da
muacutesica agrave arte figurada agrave palavra e expotildee a expectativa de que possa haver no cansaccedilo e
na percepccedilatildeo do insucesso dos esforccedilos racionalistas um renascimento da trageacutedia
85
4 Conclusatildeo pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo
da vida
Retribui-se mal a um mestre continuando-
se sempre apenas aluno
(Nietzsche)
Natildeo podemos ver na filosofia schopenhaueriana qualquer instacircncia que
justifique a vida Ao conhecermos a sua essecircncia - a vontade cega e irracional que se
deixa ver atraveacutes das manifestaccedilotildees do seu querer incessante - percebemos o absurdo de
sua existecircncia e somos por essa percepccedilatildeo levados agrave sua negaccedilatildeo Nietzsche por sua
vez utilizando-se dos conceitos da filosofia de Schopenhauer procura em sua obra
justificar a vida e encontra esta justificaccedilatildeo na arte Nesta conclusatildeo da pesquisa
pretendemos entatildeo apresentar um esboccedilo do modo pelo qual alguns elementos da
filosofia schopenhaueriana foram utilizados no projeto do primeiro livro de Nietzsche e
explicitar o modo como estes elementos foram configurados no interior de seu projeto
Dentre estes elementos percorreremos o paralelo entre os pares dionisiacuteacoapoliacuteneo e
vontaderepresentaccedilatildeo os conceitos de arte e apreciaccedilatildeo esteacutetica e sua cisatildeo entre as
86
artes figurativas e a musical a especificidade da muacutesica o conceito de gecircnio e sua
divisatildeo e os limites da racionalidade e da ciecircncia
Jaacute no primeiro paraacutegrafo de NT a associaccedilatildeo entre os pares nietzscheanos do
dionisiacuteaco e apoliacuteneo e as visotildees de mundo schopenhauerianas satildeo expliacutecitas Nietzsche
define o impulso apoliacuteneo atraveacutes do sonho do princiacutepio de individuaccedilatildeo e o dionisiacuteaco
atraveacutes da embriaguez da consciecircncia de unidade da vontade do livrar-se do veacuteu de
maia Os deuses gregos tornam-se representativos destes estados schopenhauerianos de
consciecircncia Como vimos no capiacutetulo segundo desta dissertaccedilatildeo sob o ponto de vista da
representaccedilatildeo o mundo eacute objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito
agraves condiccedilotildees a priori do entendimento Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das
formas a priori do entendimento eacute interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos
advindos da filosofia Platocircnica e oriental como um mundo aparente ilusoacuterio artificial
O sonho efeito do encantamento apoliacuteneo eacute utilizado como metaacutefora da realidade
fenomecircnica no mundo Schopenhaueriano Os Vedas e Puranas tantas vezes citados por
Schopenhauer tratam o mundo como um sonho imposto pelo deus Maia o deus da
ilusatildeo que cobre a visatildeo do homem com seu veacuteu A mitologia oriental aludida por
Schopenhauer toma conta do mundo helecircnico em Nietzsche que transforma Apolo no
deus Maia o configurador de sonhos O sonho eacute utilizado como ilustraccedilatildeo da realidade
pelo fato de que durante o sonho natildeo sabemos estar sonhando O mundo dos sonhos nos
eacute naquele momento real Vemo-nos como indiviacuteduos e vemos o mundo da
individuaccedilatildeo e suas leis causais espaccedilo-temporais Somente o momento empiacuterico do
despertar informa-nos do sonho Haacute portanto uma identificaccedilatildeo do ldquoparentesco iacutentimo
entre vida e sonhordquo(MVR 60) Como ilustraccedilatildeo desta metaacutefora Schopenhauer elogia
ainda a obra do ldquovaterdquo Calderoacuten de La Barca A vida eacute sonho agrave qual denominaraacute como
um ldquodrama metafiacutesicordquo por expor esta faceta de seu sistema A consciecircncia de que a
87
vida eacute sonho eacute para Schopenhauer um despertar metafiacutesico cujo propiciador foi Kant
ao demonstrar o caraacuteter fenomecircnico do mundo Este despertar contudo natildeo causa
prazer O filoacutesofo e o gecircnio personagens que na metafiacutesica schopenhaueriana alcanccedilam
este despertar satildeo atormentados pela realidade com a qual se deparam qual seja a de
que a vida eacute puro sofrimento Eacute no intuito de deixar velada esta faceta da vida que
Apolo ofusca a visatildeo dos homens com seu mundo luminoso de sonho seu objetivo eacute
encobrir esta verdade aterrorizadora As artes natildeo musicais tanto na teoria de
Schopenhauer como na nietzscheana manteacutem o homem em um juacutebilo prazeroso
ocasionado pela contemplaccedilatildeo puramente objetiva Neste momento natildeo se percebe o
jogo da vontade individualizada somos afastados da realidade do querer insuflados
pela caracteriacutestica quietiva da apreciaccedilatildeo esteacutetica nas palavras de Nietzsche
encontramos na arte um ldquoremeacutedio-arterdquo32
Esta visatildeo do lado terriacutevel da vida ocasionada pelo despertar do dogmatismo
metafiacutesico na teoria schopenhaueriana eacute associada em NT agrave sabedoria dionisiacuteaca
Verificamos na descriccedilatildeo do impulso dionisiacuteaco os elementos que caracterizam a
vontade schopenhaueriana A visatildeo dionisiacuteaca do mundo carrega consigo o despertar
para o caraacuteter absurdo da vida Ao olhar para a proacutepria essecircncia o homem descobre-se
enquanto manifestaccedilatildeo de uma vontade aacutevida desprovida de telos O ldquomecanismo
internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens marionetes guiados pela
carecircncia Esta realidade eacute assustadora pois subtrai do horizonte todos os propoacutesitos da
vida individual Dioniacutesio trava aqui sua batalha contra Apolo ao apontar a ilusatildeo da
individuaccedilatildeo como mecanismo para uma fuga daquilo que em essecircncia somos Apesar
de seu caraacuteter aterrorizador a sabedoria dionisiacuteaca eacute acompanhada do deleite
32
Podemos ver aqui o nuacutecleo da dissenssatildeo entre as teorias dos dois filoacutesofos Para Schopenhauer este
remeacutedio eacute temporaacuterio e tatildeo logo o efeito da apreciaccedilatildeo esteacutetica se esvaia os interesses da vontade voltam
a agir sobre o indiviacuteduo e a vida de sofrimento continua seu percurso restando apenas o caminho da
negaccedilatildeo daquela vontade da vida mesma em direccedilatildeo ao nada Nietzsche ao contraacuterio aponta para uma
forma de cura atraveacutes do remeacutedio-arte ver a vida enquanto forma de arte afirmaacute-la
88
indescritiacutevel da celebraccedilatildeo da unidade com o todo ldquoSob a magia do dionisiacuteaco torna a
selar-se natildeo apenas o laccedilo de pessoa a pessoa mas tambeacutem a natureza alheada
inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de reconciliaccedilatildeo com seu filho
perdido o homemrdquo(NT 31) Se Apolo eacute representado como deus da forma da clareza
da individuaccedilatildeo e as artes patrocinadas por ele satildeo expressotildees destas caracteriacutesticas
Dioniacutesio por sua vez eacute o patrocinador da muacutesica expressatildeo fenomecircnica direta da
vontade Vemos em Nietzsche uma biparticcedilatildeo das artes que tambeacutem pode ser extraiacuteda
da metafiacutesica schopenhaueriana (artes natildeo-musicais e arte musical)
Para Schopenhauer as formas artiacutesticas natildeo-musicais ao provocarem uma visatildeo
puramente objetiva do objeto apreciado tecircm como caracteriacutestica fundamental a
libertaccedilatildeo da subjetividade e com ela dos anseios da vontade Durante esta forma de
apreciaccedilatildeo esteacutetica ldquosomos alforriados do desgraccedilado iacutempeto volitivo festejamos o
Sabbath dos trabalhos forccedilados do querer a roda de Iacutexion cessa de girarrdquo (MVR
267) A definiccedilatildeo nietzscheana para a funccedilatildeo da arte apoliacutenea se daacute da mesma maneira
qual seja ela deve ldquo [] livrar a vista de olhar no horror da noite e salvar o sujeito
graccedilas ao baacutelsamo da aparecircncia do espasmo dos movimentos do querer []rdquo (NT
117) A muacutesica por sua vez recebe um tratamento especial de Schopenhauer devido ao
seu efeito esteacutetico Se as demais artes satildeo um quietivo para a vontade a muacutesica ldquonatildeo faz
mais do que agradar a vontade de viver jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo
seus ecircxitos e ao final expressa sua satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509) Ela encontra-se
num niacutevel de valor superior ao das demais artes por tratar-se de representar a essecircncia
do mundo a vontade mesma Assim tambeacutem ela eacute tratada por Nietzsche como a arte
que representa a sabedoria dionisiacuteaca e faz o apreciador vivenciar a vontade mesma
Em seus escritos sobre a poesia e a oacutepera Schopenhauer alude agrave necessidade de
subordinar os conceitos e o texto agrave muacutesica para que estas artes tenham um efeito mais
89
arrebatador no apreciador esteacutetico Esta subordinaccedilatildeo eacute assumida por Nietzsche em sua
teoria da trageacutedia Nietzsche encontra na liacuterica a primeira manifestaccedilatildeo desta junccedilatildeo da
arte dionisiacuteaca com a arte apoliacutenea e aponta aiacute o geacutermen que daraacute origem agrave trageacutedia
Podemos perceber aqui uma subordinaccedilatildeo das artes natildeo-musicais agrave muacutesica que por sua
vez se espelha na subordinaccedilatildeo do mundo fenomecircnico ao mundo da coisa-em-si As
artes figurativas representam as ideacuteias objetivaccedilotildees imediatas da vontade e a muacutesica
representa a vontade mesma Na teoria da trageacutedia de Nietzsche esta subordinaccedilatildeo seraacute
mantida e assim reflete a configuraccedilatildeo da metafiacutesica schopenhaueriana A muacutesica ldquoeacute
uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente sobre o mais iacutentimo do
homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele como se fora uma
linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo (MVR
336) Desta forma uma arte que se pretenda formar a partir da integraccedilatildeo de elementos
de diversas formas artiacutesticas deve tomar a muacutesica como inspiraccedilatildeo tanto na teoria de
Schopenhauer como na de Nietzsche
Desta dicotomia das formas artiacutesticas que podemos perceber nos dois filoacutesofos
podemos depreender duas formas do gecircnio o apoliacuteneo ou contemplativo e o
compositor dionisiacuteaco Para Schopenhauer ldquoo compositor manifesta a essecircncia mais
iacutentima do mundo expressa a sabedoria mais profunda numa linguagem natildeo
compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo magneacutetico fornece informaccedilotildees
sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito algumrdquo (MVR 342) Podemos
vislumbrar ainda nesta descriccedilatildeo de Schopenhauer uma caracteriacutestica do que Nietzsche
mais tarde iraacute chamar de criaccedilatildeo inconsciente Em uma segunda passagem desta vez ao
final do capiacutetulo 39 do segundo volume de MVR vemos tambeacutem uma caracteriacutestica que
posteriormente tambeacutem seraacute ressaltada por Nietzsche como demarcaccedilatildeo do caraacuteter
dionisiacuteaco Schopenhauer se utiliza de uma passagem dos Vedas para descrever o prazer
90
provocado pela muacutesica como um prazer de participaccedilatildeo no todo33
Este ecircxtase da
comunhatildeo eacute um aspecto reiteradamente apontado por Nietzsche O gecircnio dionisiacuteaco eacute
para o jovem filoacutesofo aquele que tambeacutem absorvido pelo impulso dionisiacuteaco traduz
sua essecircncia em linguagem musical O tipo de gecircnio musical descrito eacute encontrado em
Schopenhauer nas encarnaccedilotildees de Rossini e Beethoven cujas obras operiacutesticas satildeo
norteadas pela produccedilatildeo musical e o livreto ocupa um lugar secundaacuterio Nietzsche
aponta um renascimento progressivo do gecircnio musical em seu tempo que se inicia com
Bach e tem continuidade em Beethoven mas que encontra sua forma mais bem acabada
em Richard Wagner
Apesar da tomarem caminhos diferentes no que tange ao objetivo da obra de arte
traacutegica Nietzsche e Schopenhauer mais uma vez em uniacutessono consideram-na todavia
como uma forma de entendimento superior ao apresentado pelo pensamento cientiacutefico
Como vimos anteriormente as ciecircncias no sistema schopenhaueriano seguem o
princiacutepio de razatildeo seu papel eacute apenas descritivo e consequumlentemente limitado ao
acircmbito daquele princiacutepio Transformam em conceitos abstratos o mundo intuitivo ao
descrevecirc-lo em sua aparecircncia e seguem o fio condutor do principio de razatildeo
apresentando as causas para cada fenocircmeno particular Desta forma as ciecircncias estatildeo
subordinadas ao mundo da aparecircncia e no que importa agrave essecircncia natildeo podem
demonstraacute-la As uacutenicas produccedilotildees humanas com esta capacidade satildeo a arte e a
filosofia e essas o fazem de forma indireta metafoacuterica A consideraccedilatildeo racional do
mundo estaacute enquanto presa ao acircmbito do fenocircmeno subordinada aos ditames da
vontade Esta ldquovontade aacutevida sempre encontra um meio atraveacutes de uma ilusatildeo
distendida sobre as coisas de prender agrave vida as suas criaturas e de obrigaacute-las a
prosseguir vivendordquo (NT 108) Nietzsche descreve trecircs formas pelas quais a vontade
33
ldquoE o delicioso que eacute uma classe de alegria chama-se assim o sumo Atman porque onde haacute uma
alegria esta eacute uma pequena parte de sua alegriardquo (MVR II 510)
91
manteacutem a vida A primeira delas eacute o ldquoveacuteu da beleza da arterdquo sustentado pelo impulso
apoliacuteneo Encontramo-la na epopeacuteia homeacuterica e nas artes figurativas A segunda eacute a
visatildeo traacutegica do mundo que encontra um consolo metafiacutesico na percepccedilatildeo de um
substrato comum aos fenocircmenos e que por consequumlecircncia abdica destes em funccedilatildeo da
vivecircncia daquele substrato A terceira forma de dominaccedilatildeo da vontade eacute a ciecircncia a
loacutegica socraacutetica que procura abarcar o mundo com sua razatildeo de acircnsia justificadora
Estas trecircs formas de coerccedilatildeo conforme sua predominacircncia em determinada cultura
formam o que Nietzsche iraacute denominar respectivamente de culturas artiacutestica traacutegica e
socraacutetica Correspondem historicamente agraves fases predominantemente helecircnica budista
ou alexandrina Fazendo um diagnoacutestico da cultura contemporacircnea Nietzsche a
identifica como uma cultura predominantemente alexandrina Diagnostica o seu ocaso a
partir da identificaccedilatildeo feita por Kant e Schopenhauer dos limites da ciecircncia do
desmascaramento das verdades eternas que amparam a visatildeo socraacutetica de mundo quais
sejam a visatildeo de que o tempo o espaccedilo e a causalidade satildeo leis universais e
incondicionais Esta criacutetica ao racionalismo eacute constante na obra schopenhaueriana
Percebemo-la claramente em suas investidas contra a filosofia de seu tempo e a
presunccedilatildeo nela presente de racionalmente abarcar o real
- - - - - - - - - -
Compostas por conceitos da metafiacutesica schopenhaueriana a teoria da trageacutedia de
Schopenhauer e a de Nietzsche apontam para caminhos diversos Em Schopenhauer a
trageacutedia eacute a arte cujo fim uacuteltimo eacute ao expor seu lado terriacutevel inspirar o apreciador agrave sua
renuacutencia Este lado terriacutevel espelho do mundo presentificador da vida humana e de
suas relaccedilotildees ocasiona atraveacutes do medo e da compaixatildeo a vontade de renuacutencia a essa
92
mesma vida Nietzsche introduz na trageacutedia o elemento da muacutesica schopenhaueriana34
A consequumlecircncia desta introduccedilatildeo eacute um plano mais profundo de entendimento que
apresenta a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com sua essecircncia Neste estado de consciecircncia
apartado de sua individualidade o sujeito jaacute se vecirc como um criador de mundos e vecirc no
mundo uma obra de arte sua Ao derivar o impulso apoliacuteneo do dionisiacuteaco35
Nietzsche
jaacute executou a renuacutencia do indiviacuteduo que agora passa a se ver como essecircncia e ao mundo
como fenocircmeno artiacutestico
34
Machado (2006 200) considera na esteira de Clemeacutent Rosset e de Jean-Marie Schaeffer a utilizaccedilatildeo
da teoria da apreciaccedilatildeo musical de Schopenhauer por Nietzsche como o elemento que sugeriraacute a
caracteriacutestica de afirmaccedilatildeo da vontade de sua filosofia da trageacutedia 35
ldquoNo efeito conjunto da trageacutedia o dionisiacuteaco recupera a preponderacircncia ela se encerra com um tom
que jamais poderia soar a partir do reino da arte apoliacutenea E com isso o engano apoliacuteneo se mostra como o
que ele eacute como o veacuteu que enquanto dura a trageacutedia envolve o autecircntico efeito dionisiacuteaco o qual
todavia eacute tatildeo poderoso que ao final impele o proacuteprio drama apoliacuteneo a uma esfera onde ele comeccedila a
falar com sabedoria dionisiacuteaca e onde nega a si mesmo e agrave sua visibilidade apoliacuteneardquo (NT 129)
93
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