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Os Monumentos Nacionais e a (des)construo da Histria. A S de Viseu. 1
ndice
1. Identificao e Justificao do Tema ................................................................................. 3
1.1 Contexto Histrico .......................................................................................................... 5
2. A construo historiogrfica da Catedral ............................................................................. 15
2.1 Os Dilogos Moraes e Polticos de Manuel Botelho Pereira .......................................... 15
2.2 A Historiografia dos Finais do Sculo XIX. De Francisco Manuel Correia a Maximiano
Arago ................................................................................................................................ 21
2.2.1. O Manuscrito de Francisco Manuel Correia ........................................................... 21
2.2.2. Maximiano Arago ................................................................................................ 23
2.3 Amorim Giro e a nova historiografia do Sculo XX ..................................................... 27
2.4 A Imagem da S Vista por Almeida Moreira.................................................................. 30
2.5. A Revista Beira Alta e o Novo Ciclo Historiogrfico .................................................... 32
2.6. ltimos avanos historiogrficos .................................................................................. 38
3. A DGEMN no Processo de (des)Construo da S de Viseu ................................................ 44
3.1. As Reparaes do Sculo XIX e os Primeiros Registos da 3 Repartio da Direco-
Geral das Belas-Artes .......................................................................................................... 44
...................................................................................... 47
3.2. A Origem da DGEMN e a execuo dos primeiros trabalhos na Catedral ...................... 50
3.3. A Instalao do Arquivo Distrital de Viseu na antiga Cadeia da Vila ............................ 56
3.4. Adaptao do Arquivo Distrital a Residncia Paroquial ................................................ 59
3.5. Um templo em transformao ....................................................................................... 60
3.5.1. A Ausncia da catedral viseense na comemorao do Duplo Centenrio ................ 67
3.6. A segunda fase das Obras de Conservao da S........................................................... 69
3.6.1. A recuperao do claustro gtico e a transferncia do rgo da S .......................... 74
3.6.2. As propostas da Junta de Provncia da Beira Alta para restauro da S ..................... 79
3.6.3. Os trabalhos de restauro na capela-mor e a constituio da cripta ........................... 84
3.7. A prossecuo dos trabalhos na Catedral ...................................................................... 85
3.7.1. Reabilitao do Adro da S .................................................................................... 88
3.7.2. A continuidade do bairro da S de Viseu ................................................................ 90
3.7.3 A zona de proteco................................................................................................ 92
3.8. A dcada de 60 e o abrandamento das Obras na Catedral .............................................. 93
3.9. O fim do Estado Novo e o retrocesso na conservao da catedral .................................. 97
4. Consideraes finais.......................................................................................................... 104
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Carlos Filipe Pereira Alves 2
Anexos ................................................................................................................................. 109
Documento 1..................................................................................................................... 109
Documento 2..................................................................................................................... 110
Documento 3..................................................................................................................... 111
Documento 4..................................................................................................................... 112
Documento 5..................................................................................................................... 113
Documento 6..................................................................................................................... 114
Documento 7..................................................................................................................... 115
Documento 8..................................................................................................................... 115
Documento 9..................................................................................................................... 116
Documento 10 ................................................................................................................... 118
Documento 11 ................................................................................................................... 121
Documento 12 ................................................................................................................... 122
Documento 13 ................................................................................................................... 124
Documento 14 ................................................................................................................... 125
Documento 15 ................................................................................................................... 126
Documento 16 ................................................................................................................... 129
Documento 17 ................................................................................................................... 131
Documento 18 ................................................................................................................... 132
Documento 19 ................................................................................................................... 133
Documento 20 ................................................................................................................... 134
Documento 21 ................................................................................................................... 135
Fontes ................................................................................................................................... 145
Fontes documentais ........................................................................................................... 145
Fontes iconogrficas ......................................................................................................... 145
BIBLIOGRAFIA GERAL .................................................................................................... 146
Agradecimentos .................................................................................................................... 150
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Os Monumentos Nacionais e a (des)construo da Histria. A S de Viseu. 3
1. Identificao e Justificao do Tema
O ingresso no segundo ciclo de estudos do curso de Histria da Arte, ao abrigo do
programa de Bolonha, permitiu-nos comear a desenvolver um trabalho de investigao
dedicado ao estudo da catedral de Santa Maria de Viseu.
A dissertao agora apresentada com o Monumentos Nacionais e a
cabo durante o ltimo ano de 2009, pois a limitao cronolgica imposta para a
realizao e entrega do estudo, no permite um trabalho mais ambicioso, susceptvel de
apurar a verdadeira origem e organizar uma monografia pormenorizada sobre to
enigmtico edifcio, como seria a nossa inteno inicial. Portanto, na hora de decidir o
tema a abordar nesta dissertao, e estimulado por um estudo editado pela revista
Monumentos dedicado s intervenes da Direco-Geral dos Edifcios e Monumentos
Nacionais, a escolha recaiu, dadas as limitaes anteriormente referidas, em
compreender qual a aco da DGEMN sobre a S de Viseu que hoje conhecemos1.
Para a escolha do tema contribuiu tambm a influncia de estudos j desenvolvidos
na rea do restauro praticado pela DGEMN, nomeadamente a tese de doutoramento de
Maria Joo Baptista Neto sobre a aco deste organismo de Estado, no que diz respeito
sua interveno no patrimnio portugus, no perodo compreendido entre a sua
criao at ao ano de 1960, e a tese de mestrado de Maria Leonor Botelho onde
analisada a interveno na S do Porto no Sculo XX2. Sendo assim, a novidade do
trabalho aqui apresentado reside na compreenso da aco da DGEMN na catedral de
Viseu, semelhana do que se passou com outras catedrais, igrejas e castelos do pas
durante a vigncia do Estado Novo.
Neste sentido entendemos integrar a S de Viseu na aco restauradora da DGEMN
entre 1921, data da primeira carta a alertar para a urgente interveno no edifcio, e
2001, altura em que terminaram as ltimas reparaes na catedral. Nestes oitenta anos
de obras registados na documentao guardada no fundo arquivstico da DGEMN,
podemos tomar contacto com relatrios do arquitecto que nos permitem acompanhar o
1 Cfr. FERNANDES, Maria; FIGUEIRINHAS, Laura; CARVALHO, Jos Maria Lobo de - Intervenes
da Direco-Geral dos Edifcios e Monumentos Nacionais, Monumentos, 13 (2000) 103-117. 2 Cfr. NETO, Maria Joo Baptista - Memria, Propaganda e Poder. O restauro dos Monumentos
Nacionais (1929-1960). Porto: FAUP, 2001; BOTELHO, Maria Leonor - A S do Porto no sculo XX.
Lisboa: Livros Horizonte, 2006.
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Carlos Filipe Pereira Alves 4
decorrer das intervenes atravs de memrias descritivas, relatrios de contas e
correspondncia expedida, onde noticiada e discutida a forma como se deve reger a
interveno.
No que concerne sua estrutura, esta dissertao contar com quatro captulos,
subdivididos em diversas temticas.
O primeiro ser destinado apresentao e identificao do tema em estudo. E
dentro deste ponto surgir, ainda, um contexto histrico, de forma a permitir a
compreenso do estado dos monumentos portugueses at criao da DGEMN, que
posteriormente se responsabilizar por eles.
O segundo captulo vai ao encontro da produo historiogrfica referente catedral,
partindo da anlise das informaes transmitidas na obra seiscentista de Manuel Botelho
Pereira e concluindo com as que, nos finais do sculo XIX, veiculam os escritos de
Maximiano de Arago e Francisco Manuel Correia. Estes trs autores, foram os
responsveis pelas primeiras teorias elaboradas acerca da origem e estabelecimento da
, pois, criados e as primeiras dcadas
do sculo XX viriam a conhecer, atravs do aparo de Amorim Giro e Almeida Moreira,
novas revelaes sobre a cidade e a catedral, baseadas no s na interpretao dos
escritos anteriores, mas tambm em investigaes recentes coincidentes com o incio da
interveno da Administrao Geral dos Edifcios e Monumentos Nacionais (AGEMN).
Em resultado disso, na dcada de quarenta surge a revista Beira Alta onde seriam dados
estampa, um conjunto de artigos respeitantes histria da cidade. Neles encontramos
tambm, notas e comentrios a propsito do decorrer das intervenes. Contudo, a
anlise destes comentrios sero includos no neste captulo, mas naquele destinado s
intervenes, onde podemos acompanhar mais de perto as reaces dos estudiosos e
investigadores em relao ao trabalho organizado pelos Monumentos Nacionais que se
impe confrontar com o estado das obras em curso. Para finalizar, analisaremos tambm
as ltimas tendncias historiogrficas sobre a catedral e em que ponto se encontra a
investigao actual.
O terceiro ponto desta dissertao abrange a questo mais importante deste estudo: a
interveno fsica da DGEMN na catedral. Procederemos ao estudo de cada passo dado
no restauro do monumento, coincidindo com os preceitos ideolgicos impostos pelo
Estado Novo e, tambm, o modo como as cartas e convenes internacionais vo influir
na interveno do monumento. O objectivo deste captulo desvendar quais os
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Os Monumentos Nacionais e a (des)construo da Histria. A S de Viseu. 5
intervenientes e quais as modificaes operadas no edifcio, tudo isto acompanhado por
uma forte componente grfica (plantas e fotografias), registadas nos principais
momentos da interveno.
O ltimo ponto destinado, naturalmente, s consideraes finais, ser apresentada
uma sinopse da passagem da DGEMN pela S de Viseu, tendo em vista a sua
contribuio para a recuperao da pureza original do edifcio, tentando esclarecer de
que modo essa interveno pode hoje em dia ser til para descortinar as origens da
catedral e comear a traar enfim, um novo rumo historiogrfico.
1.1 Contexto Histrico
Para uma correcta compreenso do perodo histrico onde se inscreve este estudo,
talvez seja necessrio recuar ao sculo XIX para analisarmos quais os organismos
intervenientes na deciso de restauro monumental, como se desenvolveu em Portugal a
poltica de proteco patrimonial, como foi gerida esta questo e quais as vicissitudes
por que passou at criao da DGEMN.
O incio do percurso de interiorizao por parte da sociedade portuguesa, da
necessidade da preservao do patrimnio cultural, ocorreu durante o sculo XIX. Neste
perodo o monumento adquiriu um valor histrico e documental, entendendo-se que a
sua dimenso histrica o produto de um conjunto de factores sociais, culturais e
polticos e no o simples acto de produo artstica3. A consciencializao da
sociedade para esta problemtica sedimentou-se, porm, num fenmeno isolado. Quer
isto dizer, que, na base desta sensibilizao no constavam movimentos de salvaguarda
do patrimnio, nem fenmenos de massas, mas sim uma pequena clula oriunda do
movimento romntico, gerada no ambiente da interveno pblica da intelectualidade
ilustrada dos finais do sculo XIX4. O reconhecimento da necessidade de transmisso de
um conjunto de valores patrimoniais, sobretudo monumentais, histricos e nacionais, s
geraes futuras foi, no entanto, a razo para o levantamento de vozes a favor da defesa
do p
3 Cfr. TOM, Miguel - Patrimnio e Restauro em Portugal (1920-1995). Porto: FAUP, 2002, p.15. 4 Cfr. CUSTDIO, Jorge - Salvaguarda do Patrimnio: antecedentes histricos. De Alexandre
Herculano Carta de Veneza (1837-1964), Catlogo da ex
IPPAR, 1993, pp. 33-71.
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Carlos Filipe Pereira Alves 6
estruturas familiares, econmicas e jurdicas de uma sociedade estvel, enraizada no
espao e no tempo5. Portanto, os acontecimentos histricos de uma nao vo
encontrar na arte a matriz para a constituio de uma conscincia de nacionalidade e de
patriotismo, que deve ser endereada e educada para as geraes futuras, no sentido de
preservar a memria histrica e consolidar o cdigo gentico da nao.
A Revoluo Liberal e a Guerra Civil (1832-1834) trouxeram ventos de mudana.
Com o desmantelamento da estrutura do Antigo Regime avizinharam-se novas
consequncias culturais, proporcionadas pelas profundas alteraes sociais. A nova
sociedade era o produto de fracturas institucionais e, mais do que isso, da necessidade
de procurar disposies culturais capazes de corresponder aos novos interesses e desejos
da comunidade. Dos diversos problemas emergentes na primeira metade de novecentos
sobressaa a questo dos valores patrimoniais de valor histrico, artstico, literrio e
cientfico que constituam a presena da sociedade do Antigo Regime, constituindo o
ano de 1834 um factor determinante na marcao definitiva da ruptura com o passado.
A lei da extino das ordens religiosas e a aquisio de bens culturais por parte de
entidades privadas acelerou o processo, por um lado, de deteriorao desses bens,
porque foram reutilizados para outros fins para a qual no foram concebidos, e, por
outro lado, permitiu em determinados casos perder por completo o rasto a muitas das
obras. A situao criada por este decreto originou, assim, um cenrio semelhante ao
vandalismo ps-revolucionrio em Frana6.
Deste contexto, emergiu a figura de Alexandre Herculano em defesa dos
monumentos nacionais, tendo presente na sua conscincia a noo de que as
convulses do aparelho social estavam a operar alteraes na herana histrica. Por
conseguinte ele reconheceu importncia da noo de patriotismo para salvar o que de
mais vlido ainda subsistia do antigo edifcio social acabado de ruir. Alexandre
Herculano seria o lder do movimento em defesa do patrimnio que faltava at ento em
Portugal, atravs do peridico , onde inciou uma rede de
5 Cfr. CHOAY, Franoise - Alegoria do Patrimnio. Lisboa: Ed. 70, 2006, p. 11. 6 , pp.103-124. O que aconteceu em Portugal em certa medida o resultado de uma
disposio da na
econmico dos bens adquiridos pelo povo, rapidamente os categorizaram como uma herana, sucesso e
patrimnio, porque estas antiguidades agora adquiridas, sob a pena de prejuzo financeiro era necessrio
conservar, e com base neste pensamento nasce a conscincia de conservao. Os efeitos revolucionrios
resultaram em puro vandalismo com igrejas incendiadas, esttuas derrubadas ou decapitadas e castelos
saqueados. No entanto, ao contrrio do que se passou em Portugal o mpeto revolucionrio francs
proporcionou a origem dos elementos necessrios para a constituio de uma poltica de conservao do
patrimnio monumental francs.
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Os Monumentos Nacionais e a (des)construo da Histria. A S de Viseu. 7
correspondncias a nvel nacional, e ao mesmo tempo chegaram sua posse relatos e
protestos sobre o que diariamente acontecia no pas, sobretudo em relao delapidao
dos bens nacionais decorrente do processo de desamortizao7. Alexandre Herculano
assumiu-se como defensor da herana cultural materializada no patrimnio,
vislumbrando-o como uma fonte de criatividade cultural e um meio de reviso ptria,
necessria para transmitir s geraes futuras. O prprio, em define-se
para se
esperar que mova os nimos dos seus concidados8. Este entendimento do significado
histrico dos monumentos deve-se a uma slida formao histrica de Herculano,
radicada nas principais correntes historiogrficas suas contemporneas.
Por outro lado, a criao de uma conscincia de defesa patrimonial susceptvel de
transmitir a mensagem de Herculano seria intil, caso o sistema de ensino
particularmente no ramo da educao artstica, atravs da formao de tcnicos
devidamente habilitados para a preservao e estudo dos monumentos, no atingisse um
grau de desenvolvimento considervel. Em Portugal, a Aula de Risco e a Academia de
Belas-Artes no conseguiram responder de forma positiva a esses anseios, sem ver que
em cursos superiores como o de arquitectura se carecia de determinados conhecimentos
tericos e prticos, como a matemtica ou a arte das construes. A juntar a isto
acrescia um deficiente desenvolvimento da historiografia portuguesa, principalmente a
nvel do conhecimento dos estilos medievos, o qual nos incios do sculo XIX era ainda
embrionrio, dificultando em grande medida a realizao de anlises pormenorizadas
aos monumentos e, por conseguinte, a associao das obras a perodos estilsticos ou
escolas regionais9.
No plano internacional, o avano da historiografia da arte dever-se-ia a nomes
como Gerville ou Caumont ao atriburem independncia ao estilo romnico em relao
ao gtico. Esse movimento teria correspondncia em Portugal em 1823, quando Cyrillo
Volkmar Machado distingue o romnico do gtico. Todavia, Alexandre Herculano,
apesar desta categorizao, continua a considerar a Idade Mdia como um todo, sem
classificaes estilsticas10
.
7 Cfr. CUSTDIO, Jorge - Salvaguarda do Patrimnio: , p. 34. 8 Cfr. HERCULANO, Alexandre - Monumentos Ptrios. In Opsculos, organizao, introduo e notas
de Jorge Custdio e Jos Manuel Garcia. Porto: Presena, 1982, pp. 175-219. 9 Cfr. TOM, Miguel - Patrimn , p. 20. 10 Idem, ibidem , p. 25.
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Carlos Filipe Pereira Alves 8
Porm, a renovao da educao artstica avana de acordo com as necessidades
suscitadas pela indstria e pelo fenmeno da industrializao disseminado a partir de
Inglaterra, durante a primeira metade do sculo XIX. As escolas de desenho, as escolas
de arte e as primeiras escolas de design, impulsionadas por William Morris, e a criao
de Escolas Superiores e Gerais de Arte Aplicada Indstria marcavam a diferena no
panorama internacional11
.
Em 1875, o Marqus de Sousa Holstein a propsito do atraso do ensino das artes
aplicadas indstria referiu em por ora
prestado a devida ateno a este to importante ramo do ensino12
. No entanto, neste
mesmo ano Sousa Holstein em conjunto com o arquitecto Joaquim Possidnio da Silva
e Luciano Cordeiro integram uma comisso para estudar a reforma do ensino e das
Belas-Artes e da Organizao dos museus, nomeada por Antnio Rodrigues Sampaio,
ensino das Belas-Artes j no correspondia aos fins da sua
instituio, sendo necessrio resolver com urgncia as questes da fundao de um
Museu de Belas-Artes e da proteco de monumentos histricos e objectos
arqueolgicos13
.
Coube a Passos Manuel, influenciado pelos modelos escolares franceses, contrariar
a tendncia para a estagnao do ensino e introduzir o ensino tcnico profissional em
Portugal, tendo como base as matrias leccionadas no Conservatoire des Arts et Mtiers
e da cole Polytechnique. A instruo primria conhece tambm uma remodelao no
seu programa curricular com a introduo da disciplina de desenho linear. Mas s
atravs de Antnio Augusto Aguiar, o ensino tcnico profissional com aplicao
indstria, demarca-se do ensino das Belas-Artes estabelecendo uma nova relao entre
arte e a indstria14
.
11 Em 1837, na Inglaterra foi criada a Normal School of Design, que j contava com dezasseis
departamentos em meados do sculo. Na sequncia da grande exposio mundial foi fundado o
Departement of Pratical Art, convertido, mais tarde, no Department of Science and Art. Ao mesmo tempo
foi criado o Victoria and Albert Museum, em Kensington, que funcionava como uma escola central de
desenho, donde irradiavam os modelos e os programas das numerosas School of Arts espalhadas pelo pas. Escolas elementares, de iniciao as Art Classes preparavam a admisso para essas escolas
atravs do ensino do desenho, desde o grau elementar at ao desenho de figuras. As Schools of Art foram,
tambm, fundamentalmente escolas de desenho, verificando-se nestas uma ntida predominncia do
elemento decorativo nas suas diferentes seces desenho, pintura ornamental, desenho aplicado e
modelao. 12 Cfr. COSTA, Luclia Verdelho da - Ernesto Korrodi 1889 1944 arquitectura, ensino e restauro do
patrimnio. Lisboa: Editorial Estampa, 1997, p. 26. 13 , p. 18. 14 , p. 32.
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Os Monumentos Nacionais e a (des)construo da Histria. A S de Viseu. 9
O esforo realizado na tentativa da modernizao do ensino, culminou em 1863,
sob o impulso de Joaquim Possidnio da Silva, com a fundao da Associao dos
Architectos Civis e Archelogos Portugueses destinada a ocupar-se
profisso, tanto na parte terica como prtica e bem assim da jurisprudncia e
administrao 15
. A sua interveno pautou-se logo de
incio pela criao do curso de fsica e qumica com aplicao indstria, partilha de
ideias com associaes internacionais de arquitectura, e participao em escavaes
arqueolgicas. O Marqus de Sousa Holstein, um dos scios amadores, prope logo, em
1866, a nomeao de uma comisso que tivesse a seu cargo a conservao dos
monumentos, desta feita orientada para o campo dos estudos histrico-arqueolgicos e
da defesa dos monumentos nacionais. Para a divulgao da investigao e difuso dos
trabalhos, foi publicado, a partir de 1874, o Boletim de Architectura e Archeologia.
Pouco tempo depois, em 1875, o interventivo Sousa Holstein teceu duras crticas ao
descrever o estado calamitoso dos monumentos, muitos deles arruinados ou mutilados.
As verbas destinadas a reparaes prioritrias eram inexistentes e os tcnicos no se
encontravam aptos a exercer o seu dever, e muito menos ainda, existia um inventrio
capaz de identificar os monumentos em risco e daqueles que necessitavam de
conservao. Na perspectica de pas no s rico dos seus caminhos-de-
ferro, das suas estradas, dos seus bancos; no seu activo devem ainda entrar os
monumentos que produziu o gnio do homem e, entre estes, ocupam eminente lugar as
criaes artsticas. Possu-las sem dvida uma glria; mas conserv-las
16.
O primeiro passo no sentido de salvaguardar os monumentos foi dado em 1880 pelo
Ministrio das Obras Pblicas ao solicitar Real Associao dos Architectos Civis e
Archelogos, assim designada a partir de 1872, a constituio de um inventrio para
classificar os primeiros edifcios como Monumentos Nacionais e, deste modo, proceder
sua proteco.
A Real Associao dos Architectos e Archelogos teve um papel importante no
desenvolvimento de uma forte corrente de opinio pblica em favor dos monumentos, o
que proporcionou a sua afectao ao Ministrio das Obras Pblicas, a partir de 1894.
Contudo, a afectao desta comisso ao Ministrio das Obras Pblicas cessou, para dar
lugar, em 1898, ao Conselho Superior dos Monumentos Nacionais com aptido para
15 , p. 74. 16 , p. 73.
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Carlos Filipe Pereira Alves 10
classificar os monumentos, elaborar monografias histrico-artsticas, reunir coleces e
modelos para as escolas e museus, e proceder aprovao e fiscalizao dos projectos
de conservao e restauro dos Monumentos Nacionais17
.
Em sntese, a conjuntura poltica e social, imposta pelo liberalismo colocou o
patrimnio portugus numa situao de risco, prontamente alertada por Alexandre
Herculano e Sousa Holstein, exigindo uma resposta rpida por parte de tcnicos e
pessoas especializadas para a salvaguarda dos bens culturais, de maneira a resgatarem-
nos da aco do camartelo. No entanto, a resposta no foi a esperada, uma vez que o
nvel de ensino ministrado na Academia de Belas-Artes no correspondia s
necessidades impostas pelos monumentos. A lacuna somente foi atenuada com a
reforma do ensino e com a fundao da Associao dos Architectos Civis e Archelogos
Portugueses, que, sem demora, tratou de coordenar uma nova conscincia sobre o
patrimnio artstico, devendo-se quela instituio as primeiras classificaes de
monumentos.
O incio do sculo XX marcou um perodo de viragem no que respeita
conservao patrimonial. Nas Ss de Coimbra, Guarda e Lisboa foram realizadas as
primeiras campanhas de restauro, rapidamente interrompidas pelos gastos inerentes com
a interveno. Logo em 1904, Rosendo Carvalheira na qualidade de presidente da Real
Associao participou no 6 Congresso Internacional de Arquitectos realizado em
Madrid, onde pela primeira vez foi regulamentado um conjunto de normas
internacionais que deviam ser aplicadas no restauro dos monumentos. O congresso
estabeleceu ainda directrizes especficas em matria de restauro, tais como, o
monumento retomar ao seu estilo primitivo, a fim de preservar a sua unidade estilstica,
mas tambm, respeitar todas as partes executadas em outros estilos sempre que
apresentem mrito artstico18
.
Em 1910, j sob o auspcio dos ventos republicanos, foi aprovada a primeira lista
de imveis classificados como Monumentos Nacionais, que desde logo sofreu crticas
da Real Associao por a considerar incompleta, pois deviam ser includos paos
episcopais e outros espaos arquitectnicos. Nesse mesmo ano, o Ministrio do
Fomento, principal responsvel pela defesa dos monumentos, legislou no sentido do
proteccionismo dos bens culturais portugueses e o resultado materializou-se com o
17 , p. 82. 18 , p. 86.
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Os Monumentos Nacionais e a (des)construo da Histria. A S de Viseu. 11
decreto-lei de 19 de Novembro de 1910, que proibiu a deteriorao dos monumentos,
assim como a sada de objectos do patrimnio artstico e histrico para o estrangeiro.
Todavia a instabilidade vivida pelo recm-criado governo republicano foi
dominada pela contenda entre esta nova ideologia e a Igreja. Desta vez, o governo
intensificou a aco anticlerical, pela revitalizao das antigas leis do Marqus de
Pombal e de Joaquim Antnio de Aguiar contra as ordens religiosas e, em especial,
contra a Companhia de Jesus. Consumada a vitria republicana, os conventos e
mosteiros foram vtimas de assaltos e pilhagens resultando inclusive na morte de
clrigos residentes nesses edifcios. Este conflito agravou-se pelo facto da Igreja acolher
ainda, e sobretudo nos meios rurais, ncleos de resistncia ao republicanismo. O Estado
declarou-se como o nico proprietrio dos templos e de todos os edifcios religiosos,
extinguiu as verbas para o culto, mandou entregar s juntas da parquia os recheios
mobilirios, e aos museus os objectos de valor histrico ou artstico19
. Os motivos de
ordem econmica foi outra das razes a apontar para se proceder nacionalizao dos
bens da igreja. As finanas eram satisfeitas no pela tomada dos templos, mas pelas
propriedades dos seus rendimentos, como os passais ou as fbricas das Igrejas matrizes
e os cabidos das catedrais.
Mais uma vez assistiu-se a um rude golpe na manuteno do equilbrio do
patrimnio nacional, o saque e a violncia perpetrada contra os clrigos acarretaram
consequncias danosas, resultado de um novo cmbio poltico. O Estado v-se
novamente responsvel por um infindvel nmero de bens que decide distribuir pelos
museus. Com tudo isto, as duas primeiras dcadas do sculo XX sentiram ainda a
inexistncia de uma sria reflexo sobre o patrimnio, situao que a Real Associao
tentou inverter atravs da sua seco de Conservao e Restaurao dos monumentos e
do conselho de arte nacional.
A reorganizao dos servios Artsticos e Arqueolgicos, inerente estruturao da
poltica republicana, culminou com a diviso do pas em trs circunscries: Lisboa,
Porto e Coimbra, frente das quais se encontrava um conselho de Arte e de
Arqueologia com funes consultivas e deliberativas. As principais competncias deste
organismo diziam respeito classificao dos monumentos da respectiva circunscrio,
a vigilncia pela sua conservao e a proposta ou apreciao dos projectos de reparao
19 Cfr. SERRO, Joaquim Verssimo - - Histria de Portugal,
vol. XII. Lisboa: Verbo, 1989, pp. 129-348.
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Carlos Filipe Pereira Alves 12
e restauro20
. Porm, as circunscries foram desmanteladas em 1932 e centralizadas na
Direco-Geral do Ensino Superior e das Belas-Artes, prevendo, no entanto, a hiptese
da elaborao de comisses consultivas de mbito municipal.
Ainda na tentativa da construo de um sistema administrativo capaz de suprir as
deficincias apresentadas pela questo da poltica patrimonial, surge em 1920, atravs
do Ministrio das Obras Pblicas, a Administrao Geral dos Edifcios e Monumentos
Nacionais (AGEMN), em substituio das direces regionais do mesmo ministrio21
.
Desta feita a AGEMN dotada de engenheiros civis, arquitectos e desenhadores, assume
a responsabilidade pela interveno no patrimnio arquitectnico e consegue, com uma
maior dotao oramental, proceder a um maior nmero de intervenes em relao ao
realizado no incio da centria. Rapidamente alguns edifcios de Lisboa e do norte do
pas sentiram a aco interventiva desta instituio. A simples reparao de telhados ou
a correco de determinadas patologias culminou com o aparecimento dos vestgios
primitivos em determinados conjuntos arquitectnicos. Em face destes resultados
optava-se por reintegrar e reconstituir determinados elementos baseados na sua feio
original. Este organismo foi dissolvido e substitudo pela 3 Repartio da Direco-
Geral de Belas-Artes, sob a tutela do ministro Alfredo Magalhes e chefiada por Ades
Bermudes.
O golpe militar de 28 de Maio de 1926 adejou novamente uma nuvem de
desconfiana sobre a poltica patrimonial, esclarecida trs anos depois com a fundao
da Direco-Geral dos Edifcios e Monumentos Nacionais (DGEMN), constituda pelos
funcionrios que transitaram da 3 Repartio da Direco-Geral das Belas-Artes.
Estava criado o organismo capaz de garantir a estabilidade e as directrizes para uma
rgida e direccionada interveno patrimonial, nunca encontradas at ento.
A instaurao de um novo regime poltico conduziu o pas para uma profunda
restaurao; restaurao poltica, econmica, social e patrimonial, sendo que esta
ltima, era o paradigma para a fundamentao e exaltao da ptria e dos seus heris. O
restauro dos monumentos permitiu, inclusive, servir de crtica ao descuido e negligncia
praticada por parte dos regimes anteriores, devido ao estado de abandono e profunda
degradao em que grande parte dos monumentos se encontrava.
A DGEMN aplicava a imagem da perfeita harmonia entre o binmio passado e
tradio histrica versus modernidade e progresso, para que o estatuto assumido pelos
20 Cfr. NETO, Maria Joo Baptista - , p. 95. 21 Cfr. TOM, Miguel - , p. 32.
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Os Monumentos Nacionais e a (des)construo da Histria. A S de Viseu. 13
monumentos seja indissocivel da inteno nacionalista de reconduzir Portugal na
tradio do seu glorioso passado22
.
Todavia, para a instrumentalizao patrimonial surtir efeito foi necessrio
redireccionar o ensino e, como tal, foi criada a Academia Portuguesa da Histria com
objectivos claros de uma reconstituio crtica do passado. Foi preponderante e urgente
corrigir a interpretao at agora feita da histria, e recorrer a novos mtodos de ensino
de modo a fazer sobressair os valores nacionalistas. Para o iderio estado-novista foi
essencial a recuperao da memria, patente na fundao da Nao, nos
Descobrimentos e na Restaurao, na qual os monumentos evocativos desses perodos
foram os principais alvos de interveno, enquanto momentos histricos, como a
dominao espanhola e os conturbados perodos entre 1820 e 1926, surgem como
perodos negros, dos quais Portugal apenas tinha de retirar o exemplo de no os
repetir23
.
A historiografia nacional retomou factos e figuras, com especial predileco pelas
personagens que encarnaram valores histrico-simblicos, criteriosamente
seleccionados. O ressurgimento nacional sado da revoluo de 1926 ganhou especial
dimenso dentro dos quadros da histria. Isto implicou que, tambm no campo do
patrimnio arquitectnico, se atribussem critrios de seleco, de acordo com os
valores histricos enunciados e muitas vezes contrrios dimenso artstica dos
imveis.
Os monumentos restaurados ilustravam a histria determinada pelo regime,
funcionando como testemunhos vivos que validavam os momentos de triunfo da nao
secular. O atavismo da nao e a luta desencadeada pela sua independncia eram
caractersticas do mais alto interesse que importava destacar nas intervenes dos
exemplares religiosos do nosso romnico rural, assim como os nossos castelos,
expoente mximo da independncia nacional.
As catedrais como legitimao do poder espiritual, que os primeiros reis souberam
utilizar como forma de organizar o espao territorial e estruturar social e
economicamente as terras at ento conquistadas, sero outro instrumento didctico na
esfera do ensino da histria a favor da vanglria da nao. Rapidamente o regime tirou
proveito do valor simblico destes monumentos, no mbito das comemoraes e
22 Cfr. NETO, Maria Joo Baptista - Memria, P , p. 18. 23 Cfr. BRITES, Joana Rita da Costa - a memria para um Estado Novo: restauro de
monumentos e ens . Biblos 3 (2005) 285-308.
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Carlos Filipe Pereira Alves 14
exposies evocativas, que se tornaram o veculo ideal e eficaz de aco
propagandstica da sua ideologia. Os monumentos agora intervencionados adquiriram
uma gramtica esttico-artstica de acordo com o perodo da sua fundao. O romnico,
o gtico e o manuelino vo ser os estilos privilegiados na matria de restauro
monumental, em grande medida devido sua conotao com os momentos ureos da
nao.
A escolha dada aos estilos artsticos e aos monumentos, no mbito do ensino, tinha
como principal objectivo, o reforo de um conjunto de valores nacionais, assim como
ilustrar o passado da ptria, alicerado na f crist e nos homens que haviam feito dele
motivo de orgulho. Pertenceu ao Estado Novo o papel de restaurar essa grandeza,
devendo assegurar essa memria, no s garantindo a leitura da histria nacional, como
tambm preservar e purificar as pedras que a contavam.
Em concluso, os noventa e cinco anos que antecederam a fundao da DGEMN
(1834-1929) foram caracterizados pela instabilidade, com consequncias danosas para o
patrimnio. No devemos esquecer, contudo, que na origem desta inconstncia
estiveram as convulses polticas, sociais e econmicas proporcionadas tanto pelo
perodo liberal como pela Repblica, dois regimes polticos incapazes de atribuir um
sentido ou rumo ao patrimnio portugus como conseguiu a DGEMN.
Sabemos de antemo como foi instrumentalizado o processo de interveno
monumental, de forma a construir uma nova histria, eliminando e despojando os
edifcios de perodos e marcas de outros tempos, seguindo metodologias e tcnicas de
restauro adequadas aos princpios do Estado Novo. Por outro lado, devemos tambm
reconhecer, que, embora a metodologia utilizada no fosse a mais correcta, foi a nica
capaz de resgatar os edifcios devolutos da irremedivel destruio a que foram votados
pelos anteriores governos.
Est claro que em tempos de crise o patrimnio relegado para segundo plano,
embora em ltimo recurso este seja recordado pela sua dimenso econmica capaz de
reanimar os cofres do Estado sendo por isso novamente valorizado, no pela sua
grandeza histrica enquanto representante de um momento marcante da histria da arte
ou da histria de um pas, mas sim, pelo valor econmico inerente sua afectao a
outras identidades. Tudo isto revelador da ausncia de um eficaz programa educativo
destinado formao cvica do povo portugus, no intuito de proteger e, naturalmente,
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Os Monumentos Nacionais e a (des)construo da Histria. A S de Viseu. 15
identificar-se com a sua matriz cultural. Este era, em suma, o panorama em que se
encontrava o patrimnio portugus ao tempo da DGEMN.
2. A Construo Historiogrfica da Catedral
2.1 Os Dilogos Moraes e Polticos de Manuel Botelho Pereira
A viagem pela historiografia viseense no sentido de apurar o enquadramento da
edificao da catedral comea com a crnica elaborada por Manuel Botelho Pereira, em
163024
. Nesta obra, a histria e a lenda confundem-se num discurso inflamado, onde
Botelho Pereira imprimiu s personagens histricas gloriosos feitos, desde os tempos da
Lusitnia, em que Viriato num combate fugaz conseguiu expulsar as tropas romanas da
Cava, passando, inclusive, pelo relato das fatdicas lutas proporcionadas por reis mouros
e cristos em sacrifcio da conquista da cidade.
Os Dilogos, assim designados por se construrem com base no dilogo entre um
estudante e um filsofo, acerca dos feitos histricos ocorridos em Viseu, constituem a
primeira pedra para a construo historiogrfica da cidade. A crnica estruturada em
cinco partes, inicia com os antepassados dos portugueses, a governao romana, a vinda
dos godos, a destruio dos mouros e, por fim, a presena dos cristos.
A leitura do texto revela informaes importantes da cidade ao tempo e permite a
constituio de um panorama histrico de Viseu, embora frgil, s complementado
pelos estudos surgidos no sculo XIX e que a seu tempo analisaremos.
O autor atribuiu um principal destaque antiguidade como se deduz das suas
palavras: de Viseu, que tendes por moderna; mas engano; antes eu a tenho por muito
e
25. Portanto, para justificar a
antiguidade de Viseu Botelho Pereira invoca a perda na memria dos tempos a origem
26.
24 Cfr. PEREIRA, Manuel Botelho Ribeiro - Dilogos Morais e Polticos. Viseu: Junta Distrital, 1955. 25 , p. 81. 26 , p. 87.
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Carlos Filipe Pereira Alves 16
Ao nosso estudo interessa, sobretudo, apurar e discernir alguns dos acontecimentos
relatados, nomeadamente no perodo de transio entre a capitulao mourisca e os
incios da dominao crist e quais as interpretaes elaboradas por Botelho Pereira.
Depois disso analisaremos tambm um pouco o percurso dos bispos e a sua influncia
na modelao arquitectnica da catedral.
Botelho Pereira diverge da sua linha narrativa na tentativa de descortinar a
toponmia da cidade, sugerindo uma primeira vez o nome de Vacca27
, devido sua
proximidade com a regio do Vouga, e logo de seguida, devido ocupao romana,
caracteriza a cidade com rtes, muros fuertes, barbacana, la han hecho
Frontonio e Flaco que este en lettras se allan. Pusieran-le nombre Viso que buena vista
28. Por conseguinte, verifica-se
no discurso de Manuel Botelho Pereira uma transposio para Viseu da fundao
mitolgica de Roma por Rmulo e Rmulo, mas desta vez com Frontonio e Flaco a
erigirem uma cidade que radica o seu nome na sua posio orogrfica, dotada de boas
capacidades defensivas, que em boa verdade hoje em dia tm sido reveladas.
A matriz da formao da diocese de Viseu, segundo este autor est prontamente
relacionada com a submisso do imprio romano ao catolicismo pela aco de
Constantino. Mas a constituio da diocese com um bispo a dirigir os seus destinos,
remonta somente ao perodo suevo-visigtico, com o bispo Remissol, sem fazer
qualquer aluso ao local onde se edificaria o primeiro templo conotado com a S29
.
A crnica introduz-nos de seguida um dado fundamental e at agora inexplicado
pela historiografia, ou seja, o contexto do aparecimento da igreja de S. Miguel do Fetal.
A esta igreja est associado o rei Rodrigo por nela se fazer sepultar. Conta Botelho
Pereira que o rei ao no querer desamparar a cidade agora despovoada, em virtude das
invases muulmanas radicou-se na igreja de S. Miguel do Fetal em hbito de ermito,
onde acabou por falecer e ser sepultado. Os autores posteriores a Botelho Pereira como
poderemos verificar mais frente apontam a igreja de S. Miguel do Fetal, como a
primitiva catedral de Viseu. Os dados at hoje apurados no nos permitem afirmar
categoricamente que assim seja, mas segundo as palavras proferidas nos Dilogos, esta
igreja surge descontextualizada no tempo imprimindo a ideia, de ter sido edificada
27 , p. 98. 28 Idem, , p. 106. 29 , p. 230.
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Os Monumentos Nacionais e a (des)construo da Histria. A S de Viseu. 17
durante o perodo suevo-visigtico e assistiu inclume queda do seu ltimo rei quando
a cidade sofreu as primeiras incurses rabes.
De facto a cidade submeteu-se ao poder sarraceno em 716 e esteve sob seu domnio
por quatro perodos, a saber: 716-734, 757-803, 811-842 e 999-1038. Durante este
tempo, correspondente grosso modo a cento e cinquenta anos, existiu uma empresa
construtiva para albergar os exrcitos rabes e cristos nesta dana de avanos e recuos
que foi o perodo da Reconquista e que ainda hoje continua por descortinar.
Contudo, o episdio onde se regista os primeiros indcios de uma construo militar
nesta poca est directamente relacionado com a morte de Afonso V de Leo, que aps
uma primeira e fracassada investida sobre a cidade, ao fazer um novo reconhecimento
das muralhas da cidade para detectar o melhor ponto de ataque, foi morto pelas hostes
muulmanas. No momento da reconquista da cidade por Fernando Magno, em 1058, e
como retaliao pelo rude golpe infligido pelos mouros junto das hostes crists a
pretexto da morte de Afonso V, tendo os rabes conhecimento de que Fernando Magno
reunira as suas tropas para o assalto final, depressa os defensores determinaram
fortalecer mui bem esta cidade, e prov-la de todo o necessrio, como quem lamentava
o cast30
.
Viseu capitulava para as foras crists dezoito dias depois do incio do cerco, e
segundo Botelho Pereira, rapidamente o Rei Leons tornou a fortificar a cidade o
melhor que pode, e deixou-a povoada de cristos, embora sem muralha capaz de
garantir a segurana da cidade, conhecendo-a somente no sculo XV por iniciativa de
D. Joo I e concludas durante o reinado de D. Afonso V31
.
Da obra Dilogos Moraes e Polticos de Botelho Pereira podemos retirar duas
ilaes: em primeiro lugar a referncia s estruturas arquitectnicas dominantes na
colina da S, embora o seu discurso parea envolto em alguma incongruncia, isto
porque numa primeira fase refere a existncia de um troo de muralhas onde o rei
Afonso V de Leo foi morto e posteriormente, aquando da reconquista definitiva por
Fernando Magno, ignora a presena dessas muralhas para destacar a aco do rei em
fortificar a cidade visto que
torres romanas, quais so as de menagem, e parte da do relgio32
e proceder ao seu
30 Idem, ibidem p. 291. 31
Sobre a construo das muralhas viseenses Cfr. SARAIVA, Ansio Miguel de Sousa - da guerra: dos conflitos Fernandino n, A Guerra e a Sociedade na Idade
Mdia. Actas das VI Jornadas Luso-Espanholas de Estudos Medievais. Coimbra: SPEM, 2009 (no prelo). 32 Cfr. PEREIRA, Manuel Botelho Ribeiro - Dilogos , p. 294.
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Carlos Filipe Pereira Alves 18
povoamento. A segunda ilao descende da questo da diocese. Botelho Pereira refere
que a fundao da diocese viseense remonta ao perodo suevo-visigtico, pese embora
no faa qualquer meno ao local onde se edificou o primeiro templo conotado com a
S. Portanto fica a dvida de como seria possvel ao tempo, e caso essas muralhas
existissem, algum ignor-las ao ponto de no as reconstruir? Talvez elas no
existissem e o nico ponto de refgio fosse mesmo o castelo.
At agora, tudo isto no passa de conjecturas, apenas passveis de ser
desmanteladas por provas documentais e arqueolgicas capazes de esclarecer melhor
estes indcios.
A partir deste momento a cidade encontrava-se sob domnio cristo no sofrendo
mais nenhum revs, uma vez que as foras muulmanas recuaram para sul instalando-se
em Coimbra. Nas palavras de Botelho Pereira, por esta altura, Viseu comeava a
projectar um novo espao em resultado da conquista. E volta a reforar que, em
consequncia da batalha somente resistiu o castelo com duas torres, correspondendo na
actualidade ao alado sul do complexo catedralcio.
O condado Portucalense governado por D. Henrique vai encontrar em Viseu o
cenrio perfeito para aplicao das reformas religiosas e polticas de influncia francesa,
agora empreendidas no territrio. Com efeito, a segunda metade do sculo XI assiste
reestruturao da poltica e da igreja peninsular, com a adopo dos costumes
monsticos cluniacenses, a imposio do ritual romano em substituio do ritual
hispnico e, por ltimo, reorganizao litrgica das dioceses33
. A reforma pretendida
pelo conde, teve logo as suas repercusses
por se edificar a S dentro delle por mandado do Conde D. Henrique, como hoje a
34.
Portanto, o conde D. Henrique pretende congregar no mesmo espao o poder
temporal com o poder espiritual, encontrando na estrutura militar j edificada um local
propcio para a edificao de um templo segundo os novos modelos arquitectnicos,
espelho da influncia da nobreza francesa, e dos Beneditinos de Cluny, ento
empenhados na implantao do rito litrgico romano em toda a cristandade35
.
33 Cfr. MATTOSO, Jos - . Rio de Mouro: Temas e Debates, 2007, p. 29-31. 34 Cfr. Nota 32. 35 Cfr. RODRIGUES, Jorge O mundo Romnico (sculos XI-XIII) , Histria da Arte Portuguesa, vol. 2, dir. Paulo Pereira, Rio de Mouro: Crculo de Leitores, 1997, p.17.
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Os Monumentos Nacionais e a (des)construo da Histria. A S de Viseu. 19
Na continuao dos Dilogos Moraes e Polticos de Botelho Pereira surge agora a
referncia residncia do prior S. Teotnio localizada no primeiro piso da S onde
posteriormente se instalou a casa do Captulo36
. Fica desta feita a indicao, de existir a
par da S, uma outra valncia arquitectnica relacionada com residncia do prior.
Sculos depois as lutas contra Castela, nos finais do sculo XIV, ficaram
igualmente registadas nesta crnica semelhana do que escreveu Ferno Lopes, Viseu
37. Mais uma vez reforado o carcter militar, na qual a S est inscrita, no
tempo de guerra, ao abrigar a populao da cidade por no existir mais nenhuma
estrutura defensiva38
.
Os Dilogos Moraes e Polticos assinalam ainda as modificaes operadas na
catedral durante os episcopados de D. Joo Vicente (1444-1463), D. Diogo Ortiz (1505-
1519), D. Miguel da Silva (1526-1547), D. Gonalo Pinheiro (1562-1567) e D. Jorge de
Atade (1568-1578).
A D. Joo Vicente (1444-1463) est relacionada a construo da capela de Jesus,
mesmo por baixo do local onde supostamente residiu o prior S. Teotnio e onde aquele
prelado fundador dos Lios se fez sepultar39
.
No entanto, a D. Diogo Ortiz (1505-1519) coube a responsabilidade de reformular
todo o edifcio a comear pela fac 40
portal e o mais frontespicio, que est entre as torres com a curiosa
41. E para culminar a coroao de to rico
episcopado em matria de obras registou-se a substituio do forro de madeira da igreja
pelas abbadas de ns que hoje em dia se podem contemplar.
Com D. Miguel da Silva (1526-1547) o gosto da renascena entra em Portugal e
materializou-se no claustro edificado na catedral viseense tendo o claustro medieval
sido substitudo por uma nova gramtica arquitectnica, que no mencionada nesta
crnica42
.
36 Cfr. PEREIRA, Manuel Ribeiro Botelho Dilogos Moraes e Polticos p. 305. 37 Idem, ibidem p. 415. 38 Idem, ibidem 39 Idem, ibidem p. 451. 40 Idem, ibidem . 464. 41 Idem, ibidem 42 , p. 475.
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Carlos Filipe Pereira Alves 20
A D. Gonalo Pinheiro (1562-1567) pertenceu a edificao da capela de S.
Sebastio, situada no canto sudeste do claustro, cuja abbada mostra as suas armas,
assim como a escadaria de acesso ao coro alto.
Por ltimo, nesta modelao espacial, durante o episcopado de D. Jorge de Atade
(1568-1578) construiu-se a sacristia e o corredor que parte dela para o coro na parte
norte da catedral.
Portanto, as concluses retiradas dos Dilogos Moraes e Polticos escritos no
sculo XVII arrogam-se como uma ferramenta importante para a construo
historiogrfica da cidade, por ser a primeira compilao histrica sobre Viseu, onde
apresentado um discurso contemplativo da antiguidade da cidade perdida na memria
dos tempos.
Ao revelar os primrdios do Cristianismo e a adeso da cidade ao novo culto,
Botelho Pereira introduziu a referncia igreja de S. Miguel do Fetal como refgio do
ltimo rei godo, sem, contudo, referir qual o papel deste templo na cidade poca.
Quando reflectiu sobre o domnio rabe em Viseu, relatou a existncia de uma estrutura
defensiva repartida entre muralhas e castelo, transparecendo a ideia de uma cidade bem
fortificada na colina da S na qual Fernando Magno se apodera somente do castelo,
esquecendo-se desta feita das muralhas como obstculo conquista da cidade.
O perodo condal foi o principal responsvel pela edificao da S romnica, luz
de uma nova poltica religiosa de influncia francesa, directamente relacionada com as
razes do conde D. Henrique, congregando no castelo recm-conquistado, em virtude da
sua favorvel posio geogrfica e defensiva, o poder espiritual e temporal.
Por ltimo, as descries fornecidas por Botelho Pereira permitem-nos fazer uma
pequena reconstituio das obras empreendidas no templo, durante os governos
episcopais dos sculos XV e XVI, onde foi impresso um novo desenho ao edifcio
apagando alguns dos seus traos primitivos.
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Os Monumentos Nacionais e a (des)construo da Histria. A S de Viseu. 21
2.2 A Historiografia dos Finais do Sculo XIX. De Francisco Manuel Correia a
Maximiano Arago
2.2.1. O Manuscrito de Francisco Manuel Correia
O final do sculo XIX presenteou-nos com dois estudos bastante distintos no seu
contedo e consistncia argumentativa mas igualmente importantes na definio da
histria da cidade e em particular da catedral viseense. Seguindo a ordem de publicao
dos trabalhos somos inicialmente conduzidos para o manuscrito de Francisco Manuel
Correia43
, elaborado em 1876 e reeditado pela revista Beira Alta, nos incios da dcada
de setenta, com comentrios de Alexandre de Lucena e Vale44
.
O pensamento de Francisco Correia apresenta algumas incongruncias, desde logo,
em relao toponmia de Viseu, por indicar num primeiro momento o nome de Viso
como o nome fundacional da cidade, por esta usufruir de condies geogrficas que
permitiam uma boa visibilidade dos seus arredores adoptando assim este nome. Em
seguida contra-argumenta a proposta toponmica apresentada anteriormente atravs da
assinatura do bispo Remissol no ano de 572, no segundo Conclio de Braga, onde se
intitula como bispo de visensis.
A parte mais importante deste manuscrito encontra-se no terceiro captulo destinado
, onde pela primeira vez somos confrontados com uma
tipologia arquitectnica
quatro torres nos ngulos e duas outras torres de menor capacidade do que aquelas, no
45. Francisco Manuel Correia associa a
fortificao ao perodo romano como tambm foi adiantado por Botelho Pereira.
Contudo, o quadrado equiltero que compunha a fortaleza foi sucessivamente
desmantelado ao longo do tempo mediante as obras de expanso fsica da catedral. Ou
seja, logo no sculo XII para a construo da cabeceira do templo foi necessrio demolir
o muro nascente, enquanto o muro poente, que fechava a outra parte do quadrado no
43 Sobre Francisco Manuel Correia importante traar a sua biografia para uma correcta interpretao do
seu trabalho. O autor nasceu em Viseu no ano de 1802 e aqui faleceu em 1882. Foi cnego da S e o
manuscrito resulta da sua curiosidade em desvendar o segredo da constituio do templo e seus anexos. A
observao directa e a anlise pormenorizada da arquitectura que constitua o complexo naquele perodo,
assim como os apontamentos que recolheu e estudou so a base para a elaborao do estudo. 44
Cfr. VALE, A. de Lucena e Beira Alta, 32-1 (1973) 3-49. 45 , p. 18.
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Carlos Filipe Pereira Alves 22
meio do adro da S foi arrasado muito mais tarde, apenas no sculo XVI. O alado sul
do complexo com as suas duas torres foi o nico vestgio dessa fortificao a chegar at
ao nosso tempo. As torres foram prontamente alienadas da sua funo militar, para no
canto sudeste o bispo D. Joo Homem (1391-1425) colocar os sinos, e na torre sudoeste,
o bispo D. Joo Gomes de Abreu (1464-1482) instalar o aljube eclesistico46
.
Mais uma vez na tentativa de compreender o processo de origem da catedral,
Francisco Manuel Correia elabora um discurso pouco claro, onde no consegue
discernir a relao existente entre a igreja de S. Miguel e a primitiva S referindo uma
cidade, como consta do tombo da catedral que a d muito distante de S. Miguel do
fetal47
. Por outro lado, Lucena e Vale no comentrio do manuscrito entrega a
responsabilidade pela edificao da catedral aos condes, mas agora a dvida residia em
apurar se a S romnica j existia ou no antes da Reconquista definitiva de Viseu48
. E
contnua, ao afirmar que no interior da fortaleza estava edificado um pao real habitado
pelos condes D. Henrique e D. Teresa e pelos primeiros reis de Portugal nas suas visitas
a Viseu, demolido quando se procedeu construo do actual claustro por D. Miguel da
Silva (1526-1547), apenas possvel atravs de uma doao de D. Joo III. E remata ao
afirmar que o local onde hoje se encontra a capela da Cruz, no extremo sudeste do
claustro, foi at ao sculo XVI terreno aberto, entre o templo e o pano ou troo da face
sul do primitivo castelo49
.
Todavia o manuscrito produzido por Francisco Manuel Correia introduz um novo
dado ignorado por Botelho Pereira, e diz respeito eventual existncia de um claustro
no lado norte do complexo catedralcio. Esse espao foi desmantelado para dar lugar
sacristia edificada por D. Jorge de Atade (1568-1578), na segunda metade sculo XVI,
onde relata terem encontrado dezasseis sepulturas sem letreiro50
.
Sobre o coro alto da S, Francisco Manuel Correia refere que este era o nico que
tinha a catedral possua at ao tempo da edificao da capela-mor e mais obras da dita
vacncia de 1639 a 1670. Refere-se ainda s cadeiras deste coro e ao facto de serem de
delicada construo em todo sentido, inicialmente decoradas com certos embutidos e a
madeira descoberta e sem tinta preta que depois lhe aplicaram. Este autor no soube
46 Idem, ibidem 47 Idem, ibidem 48 Cfr. VALE, A. de Lucena e - A catedral de Viseu. Viseu. [s.n], 1945. 49 Cfr. VALE, A. de Lucena e - 50 Idem, ibidem
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Os Monumentos Nacionais e a (des)construo da Histria. A S de Viseu. 23
identificar os acessos ao coro alto, anteriores edificao da escadaria pelo bispo D.
Gonalo Pinheiro (1562-1567), embora no exclua a possibilidade destes se realizarem
pela torre norte da fachada do edifcio por via de umas escadas em caracol ali existentes.
As actuais escadas como j dissemos mandadas edificar por D. Gonalo Pinheiro (1562-
1567) foram formadas na parte descoberta do templo onde caam as guas do telhado da
abbada da catedral. A construo das escadas proporcionou a edificao do baptistrio,
logo por baixo do patamar das mesmas, no lado esquerdo da entrada da S. O
baptistrio foi transferido da torre sul por ser um espao exguo, onde posteriormente
foi colocada a capela e altar pertencente casa dos fidalgos da prebenda de Npoles,
instituda pelo cnego Henrique de Lemos, e pertencente ao morgado de Moure.
Pese embora Francisco Manuel Correia apresente um discurso com algumas
fragilidades histricas, talvez fruto do seu tempo e da sua formao, ele teve o rasgo,
baseado nas suas observaes, de adiantar uma tipologia de planta, que como veremos
mais adiante pode ser importante na discusso da origem deste complexo
arquitectnico. A este autor tambm se deve a introduo de uma nova questo, a
respeito da existncia de um claustro na zona norte do complexo, onde predominavam
as sepulturas de bispos, desmantelado posteriormente por iniciativa de D. Jorge de
Atade (1568-1578) para a construo da sacristia.
2.2.2. Maximiano Arago
No final do sculo XIX, Maximiano Arago organizou um numeroso e exaustivo
conjunto de estudos relativos histria de Viseu, suas personalidades e instituies
polticas e religiosas de que em seguida daremos conta.
Dentro deste pormenorizado e exaustivo trabalho, abordaremos somente o perodo
da Reconquista e da governao condal at formao da monarquia, o qual, como j
vimos nos anteriores autores, foi o perodo mais intrigante e na qual ganha forma a
catedral de Viseu.
Maximiano Arago apontou 716 como ano da entrada dos muulmanos no
territrio luso e adiantou ainda a disputa intercalada da cidade por mouros e cristos.
Por conseguinte governava o rei Ramiro quando no seu regresso a Oviedo, logo aps a
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Carlos Filipe Pereira Alves 24
submisso de Viseu ao jugo cristo, uma aliana entre alcaides mouros fez novamente
guerra cidade recm-conquistada, no resistindo ao cerco mourisco e acabando por ser
destruda e os seus moradores passados a fio da espada.
Este autor conferiu a Afonso III de Leo a responsabilidade de povoar entre outras
cidades
51. Mais uma vez somos confrontados, semelhana do que
escreveu Botelho Pereira, com a possibilidade da existncia de uma cinta de muralhas,
ou a tentativa de edificao de uma muralha prontamente atacada pelo monarca de
52.
Tendo o rei cristo tomado conhecimento do sucedido, depressa fez guerra cruel
aos mouros e regressou cidade de Viseu para a reconquistar e reforar o seu carcter
militar com 53
.
Com a morte de Afonso III, o seu filho Ordonho II estabelece corte em Viseu at
914, altura em que partiu para Leo para suceder ao seu irmo. Na cidade permaneceu
tambm com a corte Ramiro II, irmo de Afonso IV, rei de Leo. A Ramiro II sucedeu o
seu filho Ordonho III que seguiu a tradio dos anteriores familiares e estabeleceu a sua
residncia e corte em Viseu.
Depois de mais um perodo de domnio cristo com a corte a instalar-se na cidade
s terras da beira atravs de Almansor. Quando
este tomou a cidade e destruiu-a escapando apenas as torres romanas. Viseu conhecia
agora o perodo mais longo de ocupao muulmana, onde procedeu-se sua
reedificao e aqui permaneceram os mouros, at conquista definitiva por parte de
Fernando Magno, em 105854
.
Todavia, surge novamente em Maximiano de Arago uma referncia s torres
romanas, tambm j mencionadas por Botelho Pereira e Francisco Manuel Correia, mas
agora atribui aos rabes a responsabilidade de uma construo durante o sculo X, no
sentido de restabelecer as defesas da cidade. Este autor reala que pese embora a cidade
possa ter estado durante muito tempo sob domnio muulmano no deixou de possuir
bispo, sem contudo identificar o lugar de culto. A anlise levada a cabo por Maximiano
51 Cfr. ARAGO, Maximiano Pereira da Fonseca e Vizeu: apontamentos histricos. Tomo I, Viseu:
Tipografia Popular, 1894, p. 132 52 Idem, ibidem 53 Idem, ibidem 54 Idem, ibidem
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Os Monumentos Nacionais e a (des)construo da Histria. A S de Viseu. 25
Arago inconclusiva na hora de referenciar o local onde foi edificada a primitiva S.
Mas menciona que os mouros aps a conquista da cidade, toleraram, em troca de
avultados tributos, a prtica religiosa por parte dos vencidos num templo modesto,
porque se porventura o tivessem grandioso, apoderavam-se dele e transformavam-no
em mesquita55
. Ao pequeno templo, mais uma vez se associa o nome da igreja de S.
Miguel do Fetal, a ltima morada do Rei Rodrigo, no rejeitando este autor a hiptese
dos suevos ou os godos serem os responsveis pela sua construo, numa das elevaes
da cidade, a mais central e mais acessvel maioria dos seus habitantes para poderem
praticar os seus actos religiosos.
Sobre o incidente da morte de Afonso V, Maximiano Arago no acrescenta nada
de novo em relao aos autores precedentes e refora at esta posio invocando
estudos de Alexandre Herculano, afirmando que o r
volta dos muros inimigos, uma besta partia, das ameias, e fere-56
.
Como sabemos, a conquista definitiva de Viseu foi obra de Fernando Magno, que,
uma vez ultrapassada a fronteira fsica constituda pelo rio Douro, procedeu submisso
de pequenos castelos e fortalezas, como foram os casos de Seia, Lamego e Tarouca57
.
Como consequncia da batalha travada em Viseu, esta ficou desprovida de populao,
sem muros e arrasada tendo escapado apenas as duas torres e o castelo. No entanto,
Maximiano Arago diverge da opinio dos restantes historiadores, por adiantar que
neste perodo a S estava dentro do castelo, sendo restaurada quando Fernando Magno a
conquista e na sua doao declarada como episcopal e entrega cidade tudo o que
58,
numa clara aluso ao couto doado S por Fernando Magno.
Que ilaes podemos retirar? Primeiro a partilha de opinio tanto por Botelho
Pereira como Maximiano Arago ao reflectirem sobre as movimentaes polticas e
militares no domnio do territrio viseense ao tempo da Reconquista, e como ficaram
reduzidas as defesas da cidade ao castelo e s suas torres. Em seguida, e ao contrrio do
pensamento de Botelho Pereira, que defendeu o facto da estrutura militar presente no
perodo condal ser fruto de uma construo romana, Maximiano Arago utiliza o
argumento da estncia das cortes leonesas em Viseu durante alguns perodos, para
55 Cfr. ARAGO, Maximiano Pereira da Fonseca e Viseu: instituies religiosas. Porto: tipografia
Sequeira, 1928, p. 444. 56 Cfr. ARAGO, Maximiano Pereira da Fonseca e Vizeu: apontamentos histricos, 57 Idem, ibidem 58 Idem, ibidem p. 175.
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Carlos Filipe Pereira Alves 26
justificar a necessidade da edificao de uma estrutura defensiva, materializada no
castelo que sobreviveu at ao perodo condal. E mesmo aps a conquista da cidade por
Almansor a construo ou reconstruo do castelo com a sua residncia foi avante
conhecendo o nico revs com a incurso de Fernando Magno.
Durante o perodo coincidente com a dominao condal, a S, na opinio deste
autor era parte integrante do castelo, sofrendo desta feita obras de ampliao e um
reforo estrutural com o levantamento de grossas paredes e esforadas colunas59
. Aps a
morte de D. Henrique, D. Teresa residiu por vrios momentos em Viseu, no palcio
que conjecturamos ser o mesmo habitado em tempos pelos reis de Leo, situado onde
hoje se acham os claustros da S, entre a antiga Torre do Relgio e a capela de Santo
Antnio. Sendo o local da cidade onde havia maior segurana, por se encontrar
encerrado dentro das fortificaes, muralhas e castelo, natural que os monarcas o
escolhessem para sua residncia.
Depois deste conturbado perodo, s durante o reinado de D. Dinis nos chegam
mais informaes sobre o complexo onde est inserido a catedral. O rei Lavrador
autoriza o bispo D. Egas (1289-1313) a construir
desta vila entre a torre e a S, derribando-se para isso as casas precisas, cuja pedra, telha
e madeira cada um poder levar, com tanto que fique uma em que se recolha o
60.
Ao escrever sobre as invases castelhanas que, como sabemos, resultaram em
grande perda para a cidade, Maximiano Arago estabeleceu ainda um interessante
raciocnio capaz de exemplificar o porqu da inexistncia de muros naquela poca. Ele
admite, e como j verificamos, a possibilidade de durante as lutas entre mouros e
cristos surgirem provenientes
dos reinados de Ramiro I, Afonso III e Afonso V. Depois no hesita em afirmar
categoricamente que no bero da monarquia, Viseu ainda estava cercada de muros,
porm, como se negligenciou a sua conservao, por se entender desnecessria em
virtude do distanciamento da cidade em relao fronteira, o tempo encarregou-se de
agravar a sua deteriorao, a ponto de no oferecerem resistncia alguma aquando das
invases castelhanas61
. Se realmente estas estruturas existiram, a incria associada
59 Cfr. ARAGO, Maximiano Pereira da Fonseca e Viseu: instituies religiosas 60
Cfr. ARAGO, Maximiano Pereira da Fonseca e Vizeu: apontamentos histricos. Tomo II, Viseu: Tipografia Popular, 1894, p. 76. 61 Idem, ibidem p. 130.
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aco do tempo remeteu para o complexo arquitectnico, onde estava implantada a S,
o papel de defender a cidade e os seus moradores, no momento em que foi chamada ao
cumprimento do seu dever, constituindo-se como um bastio inexpugnvel dando a
entender a dimenso e o poder da estrutura ali existente.
Acerca das obras realizadas na catedral durante os sculos seguintes, s devemos
acrescentar mais um importante apontamento e que colide directamente com o tema
abordado por esta dissertao, respeitante primeira interveno de restauro no edifcio
datada de 1875. Esta interveno vem no seguimento da aco dos cnegos da S,
durante a vacncia do sculo XVII , quando decidiram revestir com argamassa e cal todo
o templo. No acto de aplicao da argamassa as paredes e as colunas foram picadas para
a argamassa ter uma melhor adeso ao material de suporte. Depois da remoo da
argamassa ficaram unicamente as marcas do flagelo do escopo na pedra. O deputado
viseense Lus de Barros Coelho e Campos ficou tambm ligado histria da S por
conseguir desbloquear do governo em 1875 as verbas necessrias e os homens
incumbidos de estudar e restaurar a S62
.
2.3 Amorim Giro e a Nova Historiografia do Sculo XX
Do aparo de Amorim Giro surge na terceira dcada do sculo XX o estudo do
aglomerado urbano de Viseu, onde apresenta uma nova viso sobre as origens da cidade
e acrescenta novos dados ao processo de edificao da catedral63
. Este autor defende
que a cidade radica a sua origem numa povoao castreja semelhana dos j existentes
castros de Santa Luzia e Senhora do Crasto situados a poucos quilmetros do centro da
cidade. O castro de Viseu ter sido ocupado posteriormente pelos romanos e
consequentemente alvo da urbanizao caracterstica deste povo, transformando a
cidade num ponto de convergncia de vias que estabeleciam a ligao aos diversos
pontos ocupados pelos romanos em territrio luso.
62 As obras realizadas em especfico na catedral sero abordadas no captulo destinado s intervenes da
Direco-Geral do Edifcios e Monumentos Nacionais de forma a conseguirmos estabelecer um
raciocnio lgico do que foram as obras de restauro. 63 Cfr. GIRO, A. de Amorim - Viseu: estudo de uma aglomerao urbana. Coimbra: Coimbra Editora,
1925.
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Carlos Filipe Pereira Alves 28
Terminado o domnio romano, a presena das vias de comunicao terrestre foram
um importante meio de desenvolvimento e expanso da cidade medieval convertendo-a
num ponto de passagem obrigatrio para quem de leste rumasse costa ou de nordeste
para sul.
Perante isto a anlise elaborada por Amorim Giro conduziu-nos
irremediavelmente para a existncia de dois centros de grande importncia na cidade, de
onde o primitivo burgo irradiou em ondas concntricas acabando por encontrar-se
dificultando a interpretao da urbanizao da cidade. Eram estes dois ncleos o plo
romanizado, localizado na parte mais baixa da cidade, correspondendo sensivelmente
zona compreendida entre a Santa Cristina, Prebenda, Regueira, S. Miguel, Largo das
Freiras, Rua do Arco e Avenida Emdio Navarro, onde a orografia apresentava um fraco
declive permitindo uma maior facilidade na fixao populacional, assim como uma
correcta gesto dos recursos hdricos, no havendo a necessidade de canalizar gua para
o ponto mais elevado da cidade. O segundo plo constitudo pelo ncleo castrejo no
morro da S apresentava somente uma simples posio fortificada proveniente dos
tempos proto-histricos64
. No entanto o ponto mais seguro devido s suas condies
estratgicas era, naturalmente o stio mais elevado da cidade, e foi para esse ponto que
comeavam a convergir as atenes durante o perodo medieval.
Amorim Giro debateu-se com a questo da localizao da primitiva S de Viseu.
Sabendo da ocupao da ctedra episcopal desde meados do sculo VI, importa saber
onde se realizava ento o culto. Remeteu novamente as atenes para a igreja de S.
Miguel do Fetal, como a primeira catedral de Viseu, mas mais uma vez sem apresentar
provas para atestar tal situao, a no ser formulao da possibilidade da existncia de
um primitivo centro povoado cercado de muralha na Regueira e imediaes, onde o
templo principal se localizava intra-muros. Durante o perodo medieval o morro da S
tornou-se o centro de gravidade do burgo, com a consequente mudana de local do
edifcio catedralcio. No decorrer das suas observaes, Amorim Giro corrobora a
opinio de Maximiano de Arago quando ao referir-se tolerncia por parte dos mouros
em relao ao culto catlico na cidade, mediante o pagamento de pesados tributos, mas
desta vez aponta que o lugar de culto estava estabelecido na igreja de S. Miguel do
Fetal65
.
64 Idem, ibidem p. 22. 65 Idem, ibidem
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Os Monumentos Nacionais e a (des)construo da Histria. A S de Viseu. 29
Para o perodo relacionado com a Reconquista, Amorim Giro equaciona a hiptese
de ser ter construdo uma nova cintura de muralhas a defender o morro da S em
detrimento da muralha romana, em virtude do seu mau estado de conservao fruto das
invases dos povos germnicos.
Interessante reflexo, e por ns partilhada, elaborou este autor quando analisou a
carta de doao de Fernando Magno, posteriormente confirmada pelos condes D.
Henrique e D. Teresa, em 1110, onde aquele monarca coutou S uns terrenos dentro
dos muros velhos da cidade. Na interpretao de Amorim Giro este facto era o indcio
da danificao ou destruio daquela parte da cidade, devido sua localizao
geogrfica, como referimos atrs, este seria o ncleo romano mais povoado e
desenvolvido da cidade que, em contrapartida, no beneficiava de um sistema defensivo
totalmente eficaz e teria sido alvo de fortes ataques por parte das hostes muulmanas a
ponto de a arrasarem. Isto proporcionou aos reis leoneses a procura de uma fortificao
noutro ponto onde a defesa fosse mais fcil, e essa procura correspondeu ao local mais
elevado de Viseu onde existia uma fortificao primitiva66
.
Conquistada a cidade por Fernando Magno coube aos condes D. Henrique e D.
Teresa comear o projecto de edificao da catedral romnica. Contudo este autor
introduz novos dados em relao ao que sabemos at agora, sobre o complexo
arquitectnico onde se inscreve a S. Amorim Giro adianta que se procedeu, a par das
obras de construo do templo, construo de uma nova fortificao no alto onde ela
assenta e na perspectiva deste
67, com o objectivo de defender a catedral o pao condal e episcopal
que lhe ficava contguo. A carta de doao do rei D. Fernando, de 1370, e citada por
Amorim Giro pode esclarecer melhor o tipo de fortaleza construdo no local, ou seja, o
meu castello e alcacer desa
68. Portanto, a fortificao edificada a par da S pode muito bem ter sido o
castelo da cidade, visto no haver mais nenhuma estrutura capaz de garantir a defesa da
mesma, que agora comeava a ganhar novos contornos com a edificao de to
importante espao.
Ainda sobre as duas torres constituintes do alado sul do complexo, relacionadas
pela historiografia ao perodo romano, Amorim Giro corrige a sua designao
66
Idem, ibidem 67
Idem, ibidem 68 Idem, ibidem
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Carlos Filipe Pereira Alves 30
estilstica para Romnicas permitindo aos estudiosos posteriores delinear uma nova
viso sobre o templo.
Para finalizar, ao contrrio do percurso secundrio adquirido pelo morro da S na
dinmica da cidade, este converteu-se agora no epicentro da cidade, fruto do
enobrecimento do local e do seu engrandecimento em todos os quadrantes, embora
tivesse um especial pendor pelas zonas compreendidas entre ele e a parte velha da
cidade, correspondendo agora parte mais baixa.
2.4 A Imagem da S Vista por Almeida Moreira
Na sequncia dos estudos at ento organizados, surge em 1937 a primeira anlise
artstica da catedral viseense inserida num captulo autnomo de Imagens de Viseu, obra
organizada por Francisco de Almeida Moreira69
.
Este autor imprimiu um cunho muito pessoal e emotivo anlise artstica sobre a
catedral, onde incidiu especial destaque ao anacronismo da obra, como resultado das
constantes transformaes arquitectnicas operadas no edifcio. Invoca, inclusive, o
conde Raczynski para realar o particularismo da arte portuguesa nesse captulo da
diversidade artstica apresentada pelos monumentos portugueses.
Almeida Moreira concedeu especial nfase obra do prelado D. Diogo Ortiz (1505-
1519), por corresponder realizao da elegante abbada de ns em substituio da
velha cobertura de madeira proveniente ainda dos tempos primitivos da catedral. A
delicadeza do gtico expressa naquela abbada veio a repousar nas robustas colunas
romnicas conferindo ao espao redesenhado uma complementaridade e cumplicidade
artstica. Almeida Moreira dedicou ainda algumas pginas ao percurso biogrfico do
bispo D. Diogo Ortiz (1505-1519), destacando o seu papel como conselheiro dos reis D.
69 Cfr. MOREIRA, Francisco de Almeida - Imagens de Viseu. Viseu: [s.n], 1937, p. 53-79. Esta obra
uma viagem pelos monumentos mais emblemticos da cidade onde este autor revela alguns aspectos da sua histria. Francisco de Almeida Moreira foi uma insigne personalidade da cultura viseense. Fundador e
primeiro director do Museu de Gro Vasco, nasceu nesta cidade em 1873 e na sua casa do Soar de Cima
faleceu em 1939, onde reuniu um extraordinrio esplio de obras de arte, fruto da sua paixo pelo
coleccionismo e pela arte. Seguiu a carreira militar que rapidamente terminou devido aos seus problemas
de sade, para seguir o apelo da arte. Foi um dos fundadores do Instituto Etnolgico da Beira e foi scio
da Academia de Belas Arte de Madrid. Foi tambm o responsvel pela seco artstica dos pavilhes
portugueses na Exposio do Rio de Janeiro e o delegado ao congresso internacional de Histria da Arte,
que se realizou em Paris em 1921, assim como no Congresso Americanista de Roma, em 1926. Destaca-
se ainda, e como veremos adiante, a sua participao activa no processo de restauro da catedral.
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Afonso V, D. Joo II e D. Manuel I, dada a ligao e estima dos monarcas a este bispo.
Matemtico e interessado pela cincia astronmica, este bispo teve um importante papel
na tomada de deciso da descoberta do Novo Mundo, negando a Cristvo Colombo a
hiptese do reino portugus apadrinhar as suas descobertas. Ainda referente ao
episcopado de D. Diogo Ortiz (1505-1519) este autor invoca a riqueza da decorao
arquitectnica impressa na edificao da nova fachada, por ns j referenciada
anteriormente e destruda pelas intempries de 1635.
Sobre a actual fachada, Francisco de Almeida Moreira descreveu-a como uma obra
Moreno, de Sala70
. Talvez esta reaco e o demrito atribudo obra se devam a
um sentimento de nostalgia pelo facto de no optarem pela reconstruo da fachada que
tinha rudo. A nova fachada, com a sua sobriedade e geometria decorativa associada
forte componente iconogrfica, com a representao dos quatro evangelistas e de S.
Teotnio ao centro e Nossa Senhora da Assuno como padroeira de Portugal a assumir
o lugar cimeiro da fachada, contribuiu, por um lado, para a incumbncia de uma nova
forma de viver a religiosidade, e por outro lado acentuou ainda mais o anacronismo
artstico da catedral referido no incio.
O mesmo expresso em relao obra da capela-mor edificada durante o
episcopado de D. Joo de Melo (1673-1684) ao ser qualificada por Almeida Moreira de
por perder todo o seu carcter primitivo. Sobre a primitiva capela-
mor escreveu ainda
lados, alternado os contrafortes com as reentrncias, onde se abriam as esguias frestas,
com as suas molduras prprias, como ainda se v nos absdiolos, postas j a descoberto,
exteriormente, foi transformada e substituda por outra (que a actual) de forma
rec71
. O objectivo desta transformao seria a de conferir
maior luminosidade ao templo, defendendo este autor a necessidade de retomar forma
primitiva as janelas adulteradas durante a vacncia do sculo XVIII, etapa levada a cabo
entretanto pela DGEMN.
Em 1722 a catedral foi invadida pelo domnio da cal e do azulejo, todo edifcio fora
revestido no seu interior com este material e um silhar de azulejos provenientes de
Coimbra, onde estava retratada a vida de Cristo e de S. Teotnio. Somente aquando da
70 , p. 61. 71 , p. 62.
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Carlos Filipe Pereira Alves 32
visita a Viseu da rainha D. Amlia, em 1895, se procedeu remoo da cal que revestia
o templo.
Sobre os claustros da S, Almeida Moreira comunga da opinio dos autores at
agora referenciados, ao mencionarem a localizao naquele espao da residncia condal
demolida graas edificao do claustro renascentista.
Quando, em 1919, se procedeu remoo da cal a revestir a restante parte do
edifcio, apareceram os primeiros vestgios de um portal de arco apontado que
estabelecia a comunicao entre o templo e o claustro. O portal formado por doze
arquivoltas, que nascem aos grupos de duas de um baco simples, apresenta quatro
colunas de fustes cilndricos lisos sustentando de cada lado as ogivas. Nos capitis esto
representadas aves entrelaadas. A rematar o portal na parte superior est uma Virgem
com o Menino em granito de feio muito primitiva. O portal foi entaipado quando se
procedeu construo do claustro renascentista e j no sculo XVIII, naquele local,
procedeu-se construo de duas capelas destinadas ao arcanjo S. Miguel e a S. Jos.
Em sntese, podemos encarar esta imagem da catedral de Santa Maria elaborada por
Almeida Moreira como um nostlgico manifesto em favor do regresso ao estado
primitivo da catedral. Todas as obras administradas no edifcio, em certa medida, como
referiu o autor, contriburam para o acentuar do anacronismo artstico, foram
condenadas e reprimidas e pouco entendidas como um passo da evoluo artstica,
produto da necessidade de adaptao do templo s novas formas de culto por parte da
Igreja.
2.5. A Revista Beira Alta e o Novo Ciclo Historiogrfico
A dcada de quarenta do sculo XX marcou decisivamente a historiografia viseense
e principalmente o estudo da catedral, por dois motivos: em primeiro lugar atravs da
Revista Beira Alta fundada em 1942, que adquiriu um papel preponderante no
desenvolvimento da historiografia local e na difuso da cultura da Beira; em segundo
lugar de realar o primeiro trabalho monogrfico sobre a catedral de Viseu, da autoria
de Alexandre de Lucena e Vale, que de seguida passamos a analisar72
.
72 Cfr. VALE, Alexandre de Lucena e - A catedral de Viseu. Viseu: [s.n], 1945.
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A reflexo levada a cabo por Lucena e Vale consistiu numa compilao dos
principais estudos elaborados sobre a histria da cidade onde tentou apurar a origem da
catedral. Logo no incio, descartou a hiptese da S existir antes da conquista feita pelo
rei leons Fernando Magno, afirmando no ter uma base documental suficientemente
slida para poder afirmar tal situao. Esta estratgia por parte deste autor foi tambm
uma maneira de evitar introduzir na discusso o papel desempenhado pela igreja de S.
Miguel do Fetal no contexto da formao da diocese viseense.
Sendo assim refugiou-se na teoria elaborada por Francisco Manuel Correia onde no
local onde se veio a edificar a catedral estaria uma fortaleza de quatro panos ou faces,
resultado da dominao romana que, logo aps a conquista visigtica sofreu as
consequentes modificaes para albergar o templo catlico sendo edificado no alado
sul do complexo um pao para os futuros governadores de Viseu73
.
Todavia imputa a responsabilidade da construo do templo ao conde D. Henrique,
seguindo as matrizes arquitectnicas dos edifcios religiosos seus contemporneos, e
que o prprio importou para o condado portucalense, apresentando caractersticas
externas pesadas e severas, semelhante a um castelo militar do que propriamente, a uma
74, sendo tambm, um local para o refgio do
povo quando passou pelas tormentas da guerra.
Ao partir da anlise do portal sul da S, Lucena e Vale classifica a catedral como
um edifcio inseri