Download - TCC - Messiaen - Patricia de Carli - 2008
PATRICIA LIMA SILVA DE CARLI
Aspectos composicionais de “Île de Feu I” contidos nas interversões (ou permutações simétricas) de “Île de Feu II”
Trabalho de Conclusão de Curso do Bacharelado em Composição do Curso de Música, sob a orientação do Prof. Ms. Rogério Zaghi
QUATRE ÉTUDES DE RYTHME PARA PIANO SOLO
DE
OLIVIER MESSIAEN
PATRICIA LIMA SILVA DE CARLI
QUATRE ÉTUDES DE RYTHME PARA PIANO SOLO, DE OLIVIER MESSIAEN: Aspectos composicionais de “Île de Feu I” contidos nas interversões (ou permutações simétricas) de “Île de Feu II”
SÃO PAULO
2008
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UniFIAMFAAM PATRICIA LIMA SILVA DE CARLI
QUATRE ÉTUDES DE RYTHME PARA PIANO SOLO, DE OLIVIER MESSIAEN: Aspectos composicionais de “Île de Feu I” contidos nas interversões (ou permutações simétricas) de “Île de Feu II”
Monografia do Trabalho de Conclusão de Curso do Bacharelado em Composição do Curso de Música, sob a orientação do Prof. Ms. Rogério Zaghi.
SÃO PAULO
2008
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FICHA CATALOGRÁFICA
De Carli, Patricia L. S. Quatre Études de Rythme para piano solo, de Olivier Messiaen: Aspectos composicionais de “Île de Feu I” contidos nas interversões (ou permutações simétricas) de “Île de Feu II” / Patricia Lima Silva De Carli. São Paulo, SP: [s.n.], 2008. Orientador: Rogério Zaghi Trabalho de Conclusão de Curso da Graduação – UniFIAMFAAM, Curso de Música. Palavras–chave: Messiaen; Quatre Études de Rythme; Île de Feu; interversão; piano solo; música do século XX.
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PATRICIA LIMA SILVA DE CARLI
QUATRE ÉTUDES DE RYTHME PARA PIANO SOLO, DE OLIVIER MESSIAEN: Aspectos composicionais de “Île de Feu I” contidos nas interversões (ou permutações simétricas) de “Île de Feu II”
Monografia do Trabalho de Conclusão de Curso do Bacharelado em Composição do Curso de Música, sob a orientação do Prof. Ms. Rogério Zaghi. Defendido em 5 de dezembro de 2008 e aprovado pela banca examinadora constituída pelo Prof. Dr. Roberto Antonio Saltini, Prof. Dr. Sidney José Molina Junior e Prof. Ms. Rogério Zaghi.
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Dedico este trabalho À minha mãe, Christina
E ao meu professor, Rogério
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* * *
Inicialmente agradeço ao professor Ms. Rogério Zaghi, que me orienta e
contribui constantemente para o meu crescimento pessoal, intelectual e musical; e
que, com muito rigor, paciência e competência, corrigiu falhas e tornou este trabalho
sempre melhor a cada intervenção e sugestão.
Aos meus pais, Christina e Bruno, e meus irmãos, Luiza, Alberto e Fernanda,
pelo apoio, consideração e incentivo durante os quatro anos do curso.
Ao professor Saltini, pelas sugestões e livros emprestados.
Aos professores Reinaldo Calegari e Horácio Gouveia, pelas sugestões e pelas
teses e dissertações emprestadas.
A todos os professores da FAAM, que contribuíram para a minha formação
acadêmica. Agradeço especialmente aos meus professores de composição: Orlando
Mancini, Sérgio Molina, Sílvio Ferraz e Paulo von Zuben.
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"My faith is the grand drama of my life. I'm a believer, so I sing words of God to those who have no faith. I give bird songs to those who dwell in cities and have never heard them, make rhythms for those who know only military marches or jazz, and paint colours for those who see none". (Olivier Messiaen)
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RESUMO:
O trabalho inicia-se com uma breve contextualização na vida de Messiaen, seguindo com a explicação de suas técnicas de composição mais utilizadas: o canto de pássaros, os ritmos não retrogradáveis, as permutações simétricas em “Île de Feu II”, os modos de transposição limitada e a harmonia decorrente destes modos. O foco está nas duas peças “Île de Feu I” e “Île de Feu II” da obra Quatre Études de Rythme, que são analisadas e comentadas de acordo com os critérios composicionais utilizados pelo compositor abordados nos capítulos anteriores. O intuito do trabalho é abordar as técnicas da linguagem de Messiaen, utilizadas em “Île de Feu I”, e relacioná-las à técnica de permutação simétrica (ou interversões) de seu período de experimentação (aproximadamente 1950), aplicadas em “Île de Feu II”.
Palavras-chave: Messiaen; Quatre Études de Rythme; Île de Feu; interversão; piano solo; música do século XX. !
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ABSTRACT:
The current study aims to briefly explain the composition techniques of Olivier
Messiaen (1908 - 1992) and establish a relation among them through the analysis of two of the Four Rhythm Etudes, namely "Île de Feu I" and "Île de Feu II". It begins with Messiaens' biography, followed by an analysis of his mostly used composition techniques, such as the birdsong, the non-retrogradable-rhythms, the symmetric permutations (or rather, interversions) applied in "Ile de Feu II", the modes of limited transposition and the harmonic results arising thereunder. Such an analysis is focused on the two studies "Île de Feu I" and "Île de Feu II" comprised by the work Quatre Études de Rythme, which are studied and discussed according to the compositional criterion explained in the initial chapters. The objective of this study is to illustrate Messiaen's compositional techniques applied on "Ile de Feu I" and establish a relation between such techniques and the technique of symmetric permutation applied on "Île de Feu II", arising from his experimental period (around the 1950 decade, approximately).
Keywords: Messiaen; Quatre Études de Rythme; Île de Feu; interversion; solo piano; twentieth-century music.
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LISTA DE TABELAS Tabela 1- Deçi-tâlas - ritmos não retrogradáveis 28 Tabela 2 - Modos de Transposição Limitada - MODO I 34 Tabela 3 - Modos de Transposição Limitada - MODO II 35 Tabela 4 - Modos de Transposição Limitada - MODO III 36 Tabela 5 - Modos de Transposição Limitada - MODO IV 37 Tabela 6 - Modos de Transposição Limitada - MODO V 38 Tabela 7 - Modos de Transposição Limitada - MODO VI 39 Tabela 8 - Modos de Transposição Limitada - MODO VII 40 Tabela 9 – Construção dos modos de transposição limitada através de grupos de intervalos 42 Tabela 10 - “Île de Feu I” - Aspectos Gerais 51 Tabela 11 - “Île de Feu I” - Ritmo Palindrômico em larga escala 69 Tabela 12 - “Île de Feu II” - Aspectos Gerais 78 Tabela 13 - “Île de Feu II” - Permutação de alturas, durações, intensidades e articulações - Interversão I 99 Tabela 14 - “Île de Feu II” - Permutação de alturas, durações, intensidades e articulações - Interversão II 100 Tabela 15 - “Île de Feu II” - Permutação de alturas, durações, intensidades e articulações - Interversão III 100 Tabela 16 - “Île de Feu II” - Permutação de alturas, durações, intensidades e articulações - Interversão IV 101 Tabela 17 - “Île de Feu II” - Permutação de alturas, durações, intensidades e articulações - Interversão V 101 Tabela 18 - “Île de Feu II” - Permutação de alturas, durações, intensidades e articulações - Interversão VI 102 Tabela 19 - “Île de Feu II” - Permutação de alturas, durações, intensidades e articulações - Interversão VII 102 Tabela 20 - “Île de Feu II” - Permutação de alturas, durações, intensidades e articulações - Interversão VIII 103 Tabela 21 - “Île de Feu II” - Permutação de alturas, durações, intensidades e articulações - Interversão IX 103 Tabela 22 - “Île de Feu II” - Permutação de alturas, durações, intensidades e articulações - Interversão X 104
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LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1 – Dhênki 26 Exemplo 2 - Dhênki - aumentação 1 26 Exemplo 3 - Dhênki - aumentação 2 26 Exemplo 4 - Dhênki - diminuição 1 26 Exemplo 5 - Dhênki - diminuição 2 26 Exemplo 6 - Dhênki - diminuição 3 26 Exemplo 7 - Agregação do ponto de aumento nos valores extremos 1 26 Exemplo 8 - Agregação de semicolcheia nos valores extremos 2 26 Exemplo 9 - Agregação do ponto de aumento no valor central 27 Exemplo 10 - Agregação da fusa no valor central 27 Exemplo 11 - Agregação da semicolcheia nos valores extremos e do ponto de aumento no valor central 27 Exemplo 12 – Fragmento da peça Cantéyodjayâ, para piano solo - Ritmo não retrogradável aplicado em larga
escala 27 Exemplo 13 – Sobreposição de ritmos com longitude desigual - Le Verbe, para órgão 30 Exemplo 14 – Célula rítmica não retrogradável em sua forma “natural” 30 Exemplo 15 – Procedimentos rítmicos de aumentação e diminuição sobre o ritmo não retrogradável 31 Exemplo 16 – Sobreposição do motivo natural às suas diversas formas de aumentação e diminuição. 31 Exemplo 17 – Sobreposição de tema à sua própria retrogradação – Vingt Regards sur l’Enfant Jésus – “Regard
de l’Onction Terrible” 32 Exemplo 18 – Combat de la Mort et de la Vie – Melodia 44 Exemplo 19 - Combat de la Mort et de la Vie – Eliminação de notas 44 Exemplo 20 - “Île de Feu I” - Tema 52 Exemplo 21 - “Île de Feu I” - Tema (ritmos não retrogradáveis) 52 Exemplo 22 “Île de Feu I” - Ritmo Contra-Tema (m. esquerda) 52 Exemplo 23 - “Île de Feu I” - Primeira reexposição do Tema I 53 Exemplo 24 - “Île de Feu I” - 2ª reexposição do tema I 53 Exemplo 25 - “Île de Feu I” - 3ª reexposição do tema I 54 Exemplo 26 - “Île de Feu I” - 4ª reexposição do tema I 55 Exemplo 27 - “Île de Feu I” - Tema II - Primeiro período (c. 25-27) 56 Exemplo 28- “Île de Feu I” - Tema II - Segundo período (c. 28 -29) 56 Exemplo 29 - “Île de Feu I” - Período 1 - Reprise (c. 30 a 32) 57 Exemplo 30 - “Île de Feu I” - Período 2 - Reprise (c. 33-34 - Elisão com reexposição do tema I no início do c. 35)
58 Exemplo 31 - “Île de Feu I” - Ornamentos que se repetem sempre da mesma maneira na mão direita 58 Exemplo 32 – “Île de Feu I” –A e B sobrepostos com os períodos I e II. 59 Exemplo 33 - “Île de Feu I” – Gesto 1 - Representação do canto do Melro-Preto 60 Exemplo 34 - “Île de Feu I” – Motivo 1ª - Reexposição do canto do Melro-Preto de forma parcial 61 Exemplo 35 - “Île de Feu I” - Motivo 2 - intervalos de nonas e trítonos (exceção de 5J e 8J) 61 Exemplo 36 - “Île de Feu I” - Motivo 2a - Trítonos e Nonas menores dispostos harmonicamente 62 Exemplo 37 - “Île de Feu I” - Motivo rítmico-percussivo na região de extremo grave (m. e.) 63 Exemplo 38 – “Île de Feu I” - Ocorrência de ritmo não retrogradável no motivo rítmico-percussivo na região de
extremo grave (m. e.) 63 Exemplo 39 - “Île de Feu I” - Repetição do motivo rítmico-percussivo na região de extremo grave 64 Exemplo 40 – “Île de Feu I” - Motivo realizado no grave – harmonia de 4ªJ e 2ªM 64 Exemplo 41 - “Île de Feu I” - Flechas - exemplo 1 - Expansão 65 Exemplo 42 - Flechas - exemplo 2 66 Exemplo 43 - “Île de Feu I” - Flechas - Alternância com o tema principal 66 Exemplo 44 - “Île de Feu I” - Flechas - Conclusão 67 Exemplo 45 - “Île de Feu I” - Glissando - exemplo 1 – Glissando de acordes e arpejos 67 Exemplo 46 - “Île de Feu I” - Arpejo - exemplo 1 68 Exemplo 47 - “Île de Feu I” - Glissandi - exemplo 3 – escalas 68 Exemplo 48 - “Île de Feu I” - Presença de ritmos não retrogradáveis no tema 69 Exemplo 49 - “Île de Feu I” - "lamentação" (m. e.) 70 Exemplo 50 - “Île de Feu I” - Lamentação - Sobreposição de um ritmo à sua própria retrogradação 70 Exemplo 51 - “Île de Feu I” - Lamentação - Demonstração da sobreposição de um ritmo à sua própria
retrogradação 70 Exemplo 52 – “Île de Feu I” – 6a Transposição do VII modo de Transposição limitada 71 Exemplo 53 - “Île de Feu I” – 1a, 2a e 3a transposições do III Modo de Transposição limitada 71 Exemplo 54 - “Île de Feu I” - Acorde como seqüência harmônica - acordes de 4ªJ descendente 72 Exemplo 55 - “Île de Feu I” - Ocorrência da melodia Climacus resupinus 73 Exemplo 56 - “Île de Feu I” - Cânone simétrico gerando sentido vertical 73 Exemplo 57 - “Île de Feu I” - Harmonia - sobreposição de quartas e quintas - c. 10 e 11 74 Exemplo 58 - “Île de Feu I” - Harmonia - sobreposição de quartas e quintas - c. 12 75 Exemplo 59 - “Île de Feu I” - Harmonia - sobreposição de quartas e quintas, c. 20 75
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Exemplo 60 – “Île de Feu II” - Tema 79 Exemplo 61 - “Île de Feu II” – ritmos não retrogradáveis contidos no tema 79 Exemplo 62 - “Île de Feu II” – Primeira reexposição do tema (c. 28 – 34) 80 Exemplo 63 – “Île de Feu II” – Segunda reexposição do tema 81 Exemplo 64 - “Île de Feu II” – Terceira reexposição do tema 82 Exemplo 65 - “Île de Feu II” – Quarta reexposição do tema – fragmento do tema original 83 Exemplo 66 - “Île de Feu II” – Quarta reexposição do tema 83 Exemplo 67 - “Île de Feu II” – Quinta reexposição do tema – fragmento do tema original 84 Exemplo 68 - “Île de Feu II” – Quinta reexposição do tema 84 Exemplo 69 - “Île de Feu II” – Sexta reexposição do tema 85 Exemplo 70 - Exemplo de Permutação 86 Exemplo 71 - “Île de Feu II” – Permutação I 87 Exemplo 72 - “Île de Feu II” – Procedimento de permutação I 87 Exemplo 73 - “Île de Feu II” – Permutação II 87 Exemplo 74 - “Île de Feu II” – Procedimento de permutação II 88 Exemplo 75 - “Île de Feu II” – Permutação III 88 Exemplo 76 - “Île de Feu II” – Procedimento de permutação III 88 Exemplo 77 - “Île de Feu II” – Permutação IV 89 Exemplo 78 - “Île de Feu II” – Procedimento de permutação IV 89 Exemplo 79 - “Île de Feu II” – Permutação V 89 Exemplo 80 - “Île de Feu II” – Procedimento de permutação V 90 Exemplo 81 - “Île de Feu II” – Permutação VI 90 Exemplo 82 - “Île de Feu II” – Procedimento de permutação VI 90 Exemplo 83 - “Île de Feu II” – Permutação VII 91 Exemplo 84 - “Île de Feu II” – Procedimento de permutação VII 91 Exemplo 85 - “Île de Feu II” – Permutação VIII 91 Exemplo 86 - “Île de Feu II” – Procedimento de permutação VIII 92 Exemplo 87 - “Île de Feu II” – Permutação IX 92 Exemplo 88 - “Île de Feu II” – Procedimento de permutação IX 92 Exemplo 89 - “Île de Feu II” – Permutação X 93 Exemplo 90 - “Île de Feu II” – Procedimento de permutação X 93 Exemplo 91 - “Île de Feu II” – Interversão I 93 Exemplo 92 – Escala cromática ascendente de dó a si 94 Exemplo 93 – Interversão I 94 Exemplo 94 – - “Île de Feu II” – Tabela geral de serialização de ritmos 95 Exemplo 95 - “Île de Feu II” – Ritmos - Procedimento de permutação I 96 Exemplo 96 - Ritmos - Procedimento de permutação II 96 Exemplo 97 - Ritmos - Procedimento de permutação III 96 Exemplo 98 - Ritmos - Procedimento de permutação IV 97 Exemplo 99 - Ritmos - Procedimento de permutação V 97 Exemplo 100 - Ritmos - Procedimento de permutação VI 97 Exemplo 101 - Ritmos - Procedimento de permutação VII 98 Exemplo 102 - Ritmos - Procedimento de permutação VIII 98 Exemplo 103 - Ritmos - Procedimento de permutação IX 98 Exemplo 104 - Ritmos - Procedimento de permutação X 99 Exemplo 105 - Interversão I 100 Exemplo 106 - Interversão II 100 Exemplo 107 - Interversão III 101 Exemplo 108 - - Interversão IV 101 Exemplo 109 - Interversão V 102 Exemplo 110 - - Interversão VI 102 Exemplo 111 - Interversão VII 103 Exemplo 112 - Interversão VIII 103 Exemplo 113 - - Interversão IX 104 Exemplo 114 - - Interversão X 104
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LISTA DE SIGLAS/ABREVIATURAS
T – Intervalo de tom (2a maior)
St – Intervalo de semitom (2a menor)
! – Trítono (intervalo de 4a aumentada/5a diminuta)
m.d. – Mão direita
m.e. – Mão esquerda
s.a. – Sem articulação
M – Maior
m – Menor
J – Justa
dim – Diminuto(a)
MTL – Modo(s) de transposição limitada
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 14
1. CAPÍTULO I – A FÉ E A NATUREZA NA VIDA DE MESSIAEN ...................... 15
1.1. BIOGRAFIA E INFLUÊNCIAS ................................................................................................... 15
1.2. A FÉ............................................................................................................................................ 19
1.3. A NATUREZA ............................................................................................................................ 21
2. CAPÍTULO II - TÉCNICA COMPOSICIONAL E LINGUAGEM: TERMOS E DEFINIÇÕES............................................................................................................. 24
2.1. RITMO ........................................................................................................................................ 24 2.1.1. Notações Rítmicas ............................................................................................................... 24 2.1.2. Técnicas Composicionais de Aumentação, Diminuição e Agregação de Valores Aplicadas nos Ritmos Não Retrogradáveis....................................................................................................... 25 2.1.3. Polirritmia ............................................................................................................................. 28 2.1.4. Pedais Rítmicos ................................................................................................................... 33
2.2. MELODIA ................................................................................................................................... 33 2.2.1. Modos de Transposição Limitada ........................................................................................ 33 2.2.2. Relação dos modos de transposição limitada com os ritmos não retrogradáveis ............... 42 2.2.3. Melodia e Contornos Melódicos........................................................................................... 42 2.2.4. Desenvolvimento Melódico .................................................................................................. 43
2.3. HARMONIA ................................................................................................................................ 46 2.3.1. Utilização de acordes e suas abordagens ........................................................................... 46
3. CAPÍTULO III - ANÁLISE DE QUATRE ÉTUDES DE RYTHME PARA PIANO SOLO: “ÎLE DE FEU I” E “ÎLE DE FEU II” .............................................................. 48
3.1. “Île de Feu I”.............................................................................................................................. 50 3.1.1. Aspectos Gerais ................................................................................................................... 50 3.1.2. Temas unificadores e suas reexposições ............................................................................ 51 3.1.3. Motivos ................................................................................................................................. 60 3.1.4. Ritmos retrogradáveis e não-retrogradáveis e suas sobreposições .................................... 69 3.1.5. Modos de Transposição limitada ......................................................................................... 70 3.1.6. Harmonia.............................................................................................................................. 72
3.2. “Île de Feu II”............................................................................................................................. 77 3.2.1. Aspectos Gerais ................................................................................................................... 77 3.2.2. Tema unificador e suas reexposições e transformações..................................................... 79 3.2.3. Permutações Simétricas (Interversões) ............................................................................... 85 3.2.4. Tabelas resultantes de permutações simétricas.................................................................. 99
4. BIBLIOGRAFIA ................................................................................................ 107
5. ANEXO 1 .......................................................................................................... 109
6. ANEXO 2 .......................................................................................................... 115
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INTRODUÇÃO!
O objeto de estudo dessa pesquisa é a análise de duas peças para piano solo
contidas na obra Quatre Études de Rythme, de Olivier Messiaen (1908 - 1992): “Île
de Feu I” e “Île de Feu II”. Os Quatre Études de Rythme foram compostos em 1949 e
1950, período de experimentação composicional de Messiaen, no qual aplicou novas
técnicas em suas obras. O intuito é demonstrar os aspectos composicionais
anteriores a essa fase de experimentação e, em seguida, ilustrar a maneira como os
aplica em “Île de Feu I” e “Île de Feu II”, peça em que já insere uma nova técnica,
denominada “permutação simétrica”.
O trabalho inicia-se com um capítulo focado nas influências e biografia do
compositor. É importante ressaltar que a vida pessoal de Messiaen influenciou
diretamente em suas obras, principalmente a fé católica e a natureza, que estão
presentes claramente em boa parte de suas obras.
O segundo capítulo aborda as técnicas e procedimentos composicionais mais
utilizados por Messiaen, que são inseridos nas peças analisadas. No âmbito do
ritmo, serão expostos os tipos de notação rítmica utilizados, as técnicas de
aumentação e diminuição aplicadas aos ritmos não retrogradáveis, o princípio de
polirritmia e a utilização de pedais rítmicos. No item referente à melodia, serão
explicados os modos de transposição limitada, os tipos de melodia e contornos
melódicos e a maneira como são desenvolvidos na música de Messiaen. O último
item referente aos procedimentos composicionais trata da harmonia, utilização de
acordes e suas abordagens.
O terceiro e último capítulo trata da análise das duas peças, buscando
compreender a relação entre as técnicas composicionais iniciais (modos de
transposição limitada e ritmos não retrogradáveis) com as tardias (permutações
simétricas) e apontar as semelhanças presentes entre elas, principalmente em
relação à simetria.
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1. CAPÍTULO I – A FÉ E A NATUREZA NA VIDA DE MESSIAEN
1.1. BIOGRAFIA E INFLUÊNCIAS
Olivier Messiaen nasceu em Avignon, França, no dia 10 de dezembro de
1908. Seu pai, Pierre Messiaen, foi um professor de inglês muito conhecido pelas
suas traduções para o francês da obra completa de Shakespeare. Sua mãe, Cécile
Sauvage, foi poetisa. O próprio Messiaen viria a dizer que ela foi uma de suas
maiores influências artísticas ao longo de sua vida. Além desta grande inclinação
para a música, o filho desses literatos desde cedo desenvolveu um grande interesse
pela literatura.
Seu irmão, Alain, nasceu em 1913, data muito próxima ao estouro da Grande
Guerra, que se deu início em 1914. Devido a este fato, Cécile se mudou com os dois
filhos para Grenoble, onde Messiaen passou sua infância. Foi nessa cidade,
localizada no sudeste da França, onde se iniciou a sua carreira musical, começando
a compor aos sete anos de idade e a aprender a tocar piano de forma autodidata.
Essa região, próxima de Rhône-Alpes, foi de muita importância na vida de
Messiaen, pois foi lá que começou a desenvolver uma grande paixão pela natureza.
Poderemos observar essa influência em grande parte de sua obra. Além disso, um
fato notório foi esse interesse particular que fez com que sua música tivesse traços
bem marcantes e característicos de uma linguagem própria e única, ao invés de
seguir uma certa “escola”.
Por ter estudado sozinho na infância, criou aptidões naturais para a música
sem a necessidade de um professor. Teve muito interesse por pintura, literatura e,
do oriente (que passaria a conhecer mais tarde), lhe agradou não só a música, mas
também o teatro e a literatura. Foi a junção de todas essas artes que completou
Messiaen como músico.
No término da guerra, sua família se mudou para Nantes, situada no extremo
oeste da França, onde teve contato com o seu primeiro grande mestre, Jehan de
Gibon, que lhe ministrou aulas de piano e harmonia. Aos 10 anos de idade,
conheceu a obra Pélleas et Mélisande, de Claude Debussy. Este foi um grande
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acontecimento na trajetória de sua vida, pois essa ópera impressionista teve uma
importância marcante e decisiva no seu desenvolvimento como compositor.
No ano de 1919 sua família mudou-se novamente, desta vez para a capital da
França. Aos 11 anos de idade, Messiaen integrou o Conservatório de Paris, onde
estudou até 1930. Estudou piano com Georges Falkenberg, harmonia com Jean
Gallon, história da música com Maurice Emmanuel, percussão com Joseph Baggers,
composição com Paul Dukas e órgão com Marcel Dupré (JOHNSON, 1975, p. 10).
Ao longo dos anos de estudo no conservatório, adquiriu muitos primeiros
prêmios em diversas disciplinas, como fuga, acompanhamento, órgão, improvisação
e composição. Seus dons de improvisador o aproximaram um pouco mais de Dupré,
com quem teve aulas de órgão. Além do instrumento, ele apresentou a Messiaen,
juntamente com Maurice Emmanuel, os ritmos gregos, sobre os quais aprendeu a
improvisar mais tarde. Isso abriu um amplo campo de pesquisa em uma das áreas
de maior interesse de Messiaen: o ritmo. Aproximadamente na mesma época,
através de suas pesquisas, passou a conhecer a tabela dos 120 ritmos hindus
denominados deçî-tâlas.1
Em 1931, aos 22 anos de idade, foi nomeado organista da igreja La Sainte
Trinité (A Santa Trindade), em Paris. Essa carreira como organista foi
importantíssima e perdurou até o fim de sua vida, com exceção dos quatro anos que
ficou sem tocar em dois períodos: entre 1940-41, durante o cativeiro no campo de
concentração na Alemanha e, em 1964-66, período em que houve uma reforma do
órgão da igreja de Trindade (CALEGARI, 2003, p. 10). Além da imensa e notória
obra para órgão solo (escrita predominantemente na década de 30), a qualidade de
improvisação e domínio de escrita idiomática do instrumento também trouxeram
muitas inovações para sua escrita pianística.
Além de Dupré, um de seus mais importantes mestres foi Dukas, seu
professor de composição. Apresentou a Messiaen as técnicas de orquestração da
música francesa utilizadas principalmente por Ravel, Debussy e Berlioz (mais tarde
veremos um influxo notável de peças destes compositores em sua obra,
principalmente em termos de cor e timbre). Por exemplo, influências claras de
Debussy em Messiaen são notadas em Préludes (1929) para piano, a começar
1 Cf. Cap. 2.1.2.
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pelos títulos: Un Reflet dans le Vent (Um Reflexo no Vento), Les Sons Impalpables
du Rêve (Os Sons Impalpáveis do Sonho) e Chant d'Extase dans un Paysage Triste
(Canto de Êxtase em uma Paisagem Triste), podem ser comparados com alguns
títulos dos prelúdios de Debussy: Les Sons et les Parfums Tournent dans l'Air Du
Soir (Os Sons e Fragrâncias Envolvem o Ar Noturno), Le Vent dans la Plaine (O
Vento na Planície) e Feuilles Mortes (Folhas Mortas). Ambos possuem conotações
impressionistas de sinestesia e do cenário natural. Além da semelhança notável nos
títulos das peças, a música por si só apresenta muitas similaridades quanto à
harmonia, rítmica e predominância de andamentos lentos (CALEGARI, 2003, p. 10).
No entanto, Messiaen não aceitou ser apontado como continuador da obra de
Debussy. Apesar das semelhanças, o compositor já utilizava nesse momento um
aspecto composicional próprio de sua escrita: os modos de transposição limitada.2
No ano de 1936 Messiaen casou-se com a violinista Claire Delbos, a quem
dedicou o primeiro grande ciclo de canções Poèmes pour Mi (1936-37). Dois anos
depois, após o nascimento de seu filho Pascal, compôs mais um ciclo de canções
em homenagem a ele, intitulado Chants de Terre et de Ciel (Cantos da Terra e do
Céu). Ambos dizem respeito à vida familiar de Messiaen: o primeiro trata de
aspectos espirituais do casamento e o segundo da paternidade abordada de forma
similar (JOHNSON, 1975, p. 10).
Com o início da Segunda Guerra Mundial, Messiaen foi mobilizado como
soldado e serviu como enfermeiro até 1940 quando foi preso e levado para um
campo de prisioneiros na Alemanha. Durante sua permanência, escreveu uma de
suas obras mais promissoras, intitulada Quator pour la Fin du Temps (Quarteto para
o Fim dos Tempos - 1941), escrita para clarinete, violino, violoncelo e piano. A peça
foi executada pela primeira vez no campo de prisão em seu mesmo ano de
composição.
A década de 40 foi muito importante no período de formação do compositor.
Após ser libertado do campo de prisioneiros, em 1941 assumiu a cadeira de
harmonia no Conservatório de Paris. Paralelamente, ministrou aulas particulares
para alunos ilustres como Pierre Boulez, Karlheinz Stockhausen e Yvonne Loriod.
Aos poucos introduziu elementos de sua linguagem aos seus alunos, como os
2 Cf. Item 2.2.1.
18
modos de transposição limitada, ritmos gregos, deçî-tâlas hindus e, mais tarde, os
cantos de pássaros.
O contato com a pianista Yvonne Loriod foi um dos acontecimentos mais
importantes ocorridos na vida do compositor. Foi nessa época que escreveu as
obras mais importantes para piano, desde Préludes: Visions de l’Amen (Visões do
Amém), Vingt Regards sur l’Enfant Jésus (Vinte Olhares Sobre o Menino Jesus) e,
mais tarde, Catalogue d’Oiseaux (Catálogo de Pássaros).
Aos poucos, a afinidade de Messiaen por Loriod aumentou muito, pois juntos
acompanharam o intenso drama vivido pelo compositor, devido à grave doença na
qual encontrava sua esposa. Apesar de seu interesse por Loriod, seus princípios
éticos e religiosos o impediram de seguir em um relacionamento extraconjugal. Este
amor resultou em uma grande trilogia de obras que o próprio compositor intitulou de
Tristan et Yseult: Harawi (Tristão e Isolda - 1945), para canto e piano; Turangalîla-
Simphonie (1946-48) e Cinq Rechants (Cinco Refrões - 1949), para doze vozes
mistas (CALEGARI, 2003, p. 12).
Seu relacionamento com a pianista só pôde ser concretizado após 1959, com
a morte de sua esposa. Em 1962 casa-se com Loriod, que se torna a mais
importante intérprete de suas obras para piano.
Em 1943 Messiaen passou a dar aulas particulares de composição na casa
de Guy Delapierre. Em 1947 abandona as aulas para lecionar no conservatório
como professor de análise, estética e rítmica. Mais tarde foi nomeado oficialmente
como professor de composição no conservatório e permaneceu no cargo até 1966.
No período de 1949 a 1951, foi convidado para lecionar em festivais de verão
internacionais. No ano de 1949 ministrou um curso de análise rítmica, onde ensinou
jovens compositores a técnica de serialização de ritmos, alturas e dinâmicas
utilizadas na peça “Mode de Valeurs et d’Intensités”.
Após esses anos de intensa dedicação à academia e aos seus discípulos, o
compositor resolveu seguir em frente em suas novas experiências composicionais.
O novo período que se iniciou em 1952 foi chamado por muitos de “a década
pássaro”. Neste ano o compositor viveu em profunda solidão, o que o fez buscar
refúgio na natureza, com a qual sempre teve grande afinidade, pois viveu em
Rhônes-Alpes por boa parte de sua infância. Sua maior atração na natureza foi sem
19
dúvida o contato com pássaros. Seu professor Dukas dizia: “escutem os pássaros,
eles são grandes mestres” (MESSIAEN, 1944, p. 36).
Messiaen foi muito criticado, tanto positiva quanto negativamente. Alguns
acharam a sua música vulgar e de mau gosto. Por outro lado, outros a consideraram
de uma fineza inigualável devido à sua originalidade e o viam como um grande gênio
criativo. Isso ocorreu devido às particularidades de sua música, como
instrumentação não usual, tratamento peculiar de vozes e dissonâncias que, neste
momento, já haviam se tornado parte integrante do estilo messiânico.
1.2. A FÉ
O objetivo da religião é transmitir ao homem uma imagem simbólica, mas adequada, da realidade que lhe diz respeito, conformemente à suas necessidades reais e a seus interesses últimos, e lhe fornecer os meios para se superar e para realizar seu mais alto destino; este último não poderia ser deste mundo, dada a natureza de nosso espírito. (SCHUON, 2001, p. 25-26)
A religião foi um dos aspectos mais importantes na vida pessoal e artística de
Messiaen. Foi através da música que procurou ressaltar e expressar as verdades
sobre a fé católica, as quais sempre o impressionaram desde a sua infância. O
compositor qualificou os mistérios da fé como “contos de fadas, sucessivamente
misteriosos, dilacerantes, gloriosos, algumas vezes terrificantes, repousando sempre
em uma realidade luminosa e imutável”.3 Para ele, esta fé era essencial, e lamentou
por aqueles que não a abraçaram, conseqüentemente privando-se de uma
apreciação tão profunda quanto à compreensão de sua música (CALEGARI, 2003,
p. 19). A simbologia cristã formou o sujeito principal de grande parte de suas obras
escritas entre os anos de 1928 e 1944, e em algumas peças tardias.
Muitos consideraram a música de Messiaen como algo “místico”. No entanto,
ele mesmo não aceitou essa colocação, pois, para Messiaen, segundo Johnson, sua
música foi teológica4.
3 Harry HALBREICH, Olivier Messiaen, p. 40 Apud Reinaldo CALEGARI, Olivier Messiaen e a Música para o Fim do Tempo, p. 19. 4 Antoine GOLEA, Rencontres avec Olivier Messiaen, p. 47 Apud Robert S. JOHNSON, Messiaen, p. 40.
20
O Misticismo busca a anulação do ser que, em sua perfeição, é a contemplação do êxtase, unindo o ser humano à divindade. Messiaen, por outro lado, está preocupado com as verdades da fé católica que se relacionam com o ato de redenção de Deus no mundo através da encarnação e sacrifício de Cristo. É a relação de Deus com o ser humano que expressa, em sua música, esta orientação teológica, e não mística (JOHNSON, 1975, p. 40).5
Apesar de ter sido um músico religioso, Messiaen não publicou obras
compostas necessariamente para cultos, com exceção do breve moteto para coral a
quatro vozes acappella O Sacrum Convivium! (1937), composto em louvor ao
Santíssimo Sacramento. Em sua opinião, a única música propriamente litúrgica foi o
cantochão6.
Um reflexo nítido da fé de Messiaen contida em sua música pode ser
percebido através da situação na qual passou durante certo período de conflitos. Ao
contrário de muitos compositores que retrataram a tristeza e lamentação devido às
guerras mundiais, Messiaen expressou, em suas obras, alegria e esperança
(CALEGARI, 2003, p. 19).
A fé de Messiaen foi atribuída às suas obras, seja através da forma, textura,
instrumentação ou outros elementos possíveis de se criar uma relação simbólica.
Alguns números, por exemplo, possuíram certo significado para os teólogos da
Idade Média. Messiaen fez uma releitura dessas associações aplicando-as em sua
música.
O número três forma a base da estrutura textural de “Le Mystère de la Sainte Trinité” (Les Corps Glorieux) e “Regard du Fils sur le Fils” (Vingt Regards sur l’Enfant Jésus). Nesta última, o compositor fala sobre “três sonoridades, três modos, três ritmos, três linhas musicais sobrepostas entre si”. Também existe uma dualidade de texturas inerentes na peça – um cânone rítmico imposto no tema principal e o seu contraste utilizando canto de pássaros em seções alternadas, assim como a dualidade da forma binária em si próprio, as quais podem ser interpretadas como uma simbologia das duas
5 Do original em inglês: Mysticism seeks the annihilation of being which, in its perfection, is the contemplation of ecstasy and unites man to the Godhead. Messiaen, on the other hand, is concerned with the truths of the Catholic faith which relate to God’s act of redemption in the world by the Incarnation and Sacrifice of Christ. It is the expression of God’s relationship with man that gives his music its theological, rather than a mystical, orientantion. (tradução do autor) 6 Cantochão - (lat. Cantus planus) Na Idade Média, o canto monódico da liturgia cristã, cujo ritmo baseava-se apenas nos contornos das frases e acentuações. 2. Tipo de canto monódico utilizado em rituais litúrgicos, como o gregoriano, mais elaborado, e o ambrosiano, geralmente mais simples e a cappela. Sua notação desenvolveu símbolos especiais e neumáticos. Henrique A. Dourado. Dicionário de termos e expressões da Música.
21
naturezas de Cristo – humano e divino – inerentes em apenas uma pessoa. (JOHNSON, 1975, p. 41)7
A simbologia utilizada pelo compositor incorporou-se em suas obras de
diversas maneiras, como por exemplo: estrutura formal, tonalidades, modos, pedais
expandidos, ornamentações etc. A melodia em si não foi tão significativa no que diz
respeito à simbologia teológica, com exceção de algumas que foram feitas
inspirando-se no cantochão.
1.3. A NATUREZA
O vínculo de Messiaen com a natureza pode ser encontrado em praticamente
toda a sua obra, manifestado de diversas maneiras. Na obra Huit Préludes para
piano solo, por exemplo, os títulos têm caráteres descritivos que evocam a natureza,
referindo-se a ela de maneira mais abrangente. Pode-se exemplificar com as
seguintes obras: Chant d’Extase dans un Paysage Triste (Canto de Êxtase em uma
Paisagem Triste), Plainte Calme (Planície Calma) e Un Reflet dans le Vent (Um
Reflexo no Vento). Já o ciclo Des Canyons des Étoiles (Os Cânions das Estrelas) –
peça da maturidade composicional de Messiaen – refere-se aos astros.
A maioria das peças de Messiaen possui alguma conotação com a natureza,
seja através da paisagem, das cores, dos animais, dos astros etc. No entanto, é
preciso frisar que a maior influência em sua música foi, sem dúvida, os pássaros.
Através da mistura de seus cantos, os pássaros realizam pedais rítmicos extremamente refinados. Seus contornos melódicos, particularmente os dos Melros, superam em fantasia a imaginação humana. Levando em conta que os intervalos emitidos por eles não são temperados – ainda menores que o semitom -, e que é uma tentativa ridícula e vã tentar copiar literalmente a natureza, serão
7 No original em inglês: The number three forms the basis of the textural sctructure of ‘Le Mystère de la Sainte Trinité’ (Les Corps Glorieux), and ‘Regard du Fils sur le Fils’. In connection with the latter piece, he speaks of ‘three sonorities, three modes, three rythms, three strands of music superimposed on each other’. There is also a duality of textures inherent in the piece - a rhythmic canon with birdsong in alternate sections, as well as the duality of the two-part rhythmic canon itself, all of which can be taken as symbolic of the two natures of Christ - human and divine - inherent in one person. (tradução do autor)
22
dados alguns exemplos de melodias tipo “pássaro” (...).8 (MESSIAEN, 1944, p. 9)
Além de compositor, Messiaen foi também ornitólogo, o que lhe permitiu um
estudo ainda mais aprofundado na técnica de canto de pássaros de diversas
espécies, inclusive as mais exóticas, as quais teve a oportunidade de estudar e
conhecer a fundo ao longo de suas viagens a vários países ocidentais e orientais.
A década de 50 foi considerada a década “pássaro” (CALEGARI, 2003, p. 24)
no período composicional de Messiaen, pois foi o momento em que começou a
escrever suas peças com esta grande influência. Várias obras, inclusive os Quatre
Études de Rythme, utilizam técnicas de cantos de pássaros apenas como mais um
artifício composicional, e não como objetivo final. No entanto, algumas das obras
fizeram esta abordagem como foco principal, como por exemplo: Le Merle Noir (O
Melro-Preto - 1952), peça camerística para flauta e piano; Réveil des Oiseaux (O
Despertar dos Pássaros - 1953), para piano e orquestra; Oiseaux Éxotiques
(Pássaros Exóticos - 1955-56), peça orquestral; e Catalogue d’Oiseaux (Catálogo de
pássaros - 1956-58), para piano solo.
Messiaen evitava gravar os sons emitidos pelos pássaros. Procurava sempre
anotá-los como se fosse um exercício de percepção. Em entrevistas afirma que a
melhor hora para escutá-los é ao alvorecer e ao pôr do sol, pois são os momentos
em que as cores da natureza mais se reluzem e se destacam9.
Em Réveil des Oiseaux, por exemplo, abrange um período de tempo das três da manhã, passando pelo coral do amanhecer até o silêncio do meio-dia, e em Catalogue d’Oiseaux o longo movimento central, "La Rousserolle Effarvatte", começa à meia-noite e termina às três da manhã do dia seguinte, abrangendo dessa forma o nascer e o pôr do sol e terminando no ponto onde começou - na morte da noite.10 (JOHNSON, 1975, p. 116)
8No original em francês: “Paul Dukas disait: “Écoutez les oiseaux, ce sont de grands maîtres”. (...) Par le mélange de leurs chants, les oiseaux font des enchevêtrements de pedales rythmiques extrêmement raffinés. Leurs contours mélodiques, ceux des merles surtout, dépassent en fantaisie l’imagination humaine. Comme ils emploient des intervalles non temperés plus petits que le demi-ton, et qu’il est ridicule et vain de copier servilement la nature, nous allons donner quelques exemples de melodies genre “oiseau” (...). – (tradução do autor) 9 OLIVIER MESSIAEN: La Liturgie de Cristal. Direção: Olivier Mille. France: Juxtapositions, 2002. 1 filme (107 minutos), DVD, son, color. 10No original em inglês: “Reveil des Oiseaux, for instance, covers a period of time from 3 a.m. via the dawn chorus to the silence of midday, and in the “Catalogue des Oiseaux” the long middle movement, ‘La Rousserolle
23
Os pássaros possuem uma tessitura bem mais aguda do que qualquer
instrumento musical. É preciso adaptar os cantos para que se tornem possíveis de
serem executados em uma orquestra ou no piano. Portanto, cria-se uma espécie de
“tradução” dos cantos para os instrumentos musicais. A partir daí, Messiaen analisa
e compõe de forma idiomatizada para o instrumento utilizado.
Effarvatte’, begins at midnight and ends at 3 a.m. on the following day, thus covering sunrise and sunset and ending at the point where it began - in the dead of the night”. (tradução do autor)
24
2. CAPÍTULO II - TÉCNICA COMPOSICIONAL E LINGUAGEM: TERMOS E DEFINIÇÕES
2.1. RITMO
O estudo do ritmo é um dos aspectos mais importantes na música de
Messiaen. Como veremos a seguir, ele é desenvolvido de forma ágil, livre e flexível,
pois além de se basear no canto dos pássaros, transcrevendo-os com muito rigor,
conseqüentemente faz com que a sua utilização simples ou com sobreposições
cause a ausência de tempos regulares.
A construção das seqüências rítmicas é feita a partir da célula inicial, que
determinará a construção rítmica da peça, já que não existe uma obrigatoriedade de
métrica regular, nem de inclusão de barras de compasso.
2.1.1. Notações Rítmicas
É preciso saber que, por motivos práticos, as barras de compasso –
abominadas na concepção de Messiaen – podem ser inseridas em algumas peças
para facilitar a execução do intérprete. Devido a este motivo, Messiaen opta por
escrever diferentes notações rítmicas de acordo com a facilidade e quantidade de
instrumentos contidos na música.
Podemos introduzir três principais formas de notações possíveis: na primeira
delas não há compassos ou unidades de tempo. As barras divisórias servem apenas
para finalizar os acidentes anteriormente colocados. Esta notação, por ser a exata
expressão da concepção musical do compositor, é ideal para ser tocada por um
executante apenas; a segunda notação possível é mais apropriada para orquestra,
pois quando existem as mudanças rítmicas bruscas, suas fórmulas de compasso
também mudam11, facilitando a execução dos instrumentistas e do regente; a
terceira, e mais facilitada notação, é escrita em compassos regulares, através de
11 Um exemplo semelhante a este encontra-se na Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky. Sua fórmula de compasso muda constantemente de simples para composto, do regular para o irregular. Com as mudanças de compasso sempre notadas é possível estudar e aprender o ritmo complexo com mais facilidade do que por meio de síncopas inseridas em um compasso regular.
25
síncopas, com um ritmo que não tem relação alguma com a divisão métrica, fugindo,
portanto, da concepção do compositor.
Em Quatre Études de Rythme, o primeiro tipo de notação é utilizado
em “Île de Feu I” e, em “Île de Feu II”, intercala-se o primeiro com o terceiro tipo de
notação.
2.1.2. Técnicas Composicionais de Aumentação, Diminuição e Agregação de Valores Aplicadas nos Ritmos Não Retrogradáveis
É extraordinário pensar que os Hindus foram os primeiros a apontar para e se utilizarem - tanto ritmicamente quanto musicalmente - este princípio de não-retrogradação que é tão freqüentemente encontrado em nosso meio. Este é um princípio que vêm sido aplicado há tempos na arquitetura: assim em arte antiga, catedrais góticas e romanescas e até mesmo em arte moderna, os padrões decorativos ornamentando os umbrais dos portais são sempre duas figuras simetricamente inversas, margeando um motivo central. (...) Na natureza, temos um exemplo peculiar: as asas de uma borboleta. Quando borboletas estão circundadas em seus casulos, suas asas são dobradas e prendem-se uma à outra; o padrão em uma é então reproduzido na direção oposta na outra.12 13
Os ritmos não-retrogradáveis, também nomeados palindrômicos, tratam-se de
um conjunto de células, geralmente constituído de três valores, sempre dispostos de
maneira com que possa ser lido, indiferentemente, da esquerda para a direita ou
vice-versa.
Este conjunto palindrômico possui dois valores fixos em suas extremidades, e
seu interior “livre”, ou seja, com possibilidade de manipulação deste valor central
(através de aumentação, diminuição, agregação de valores etc.). Esta manipulação
pode ocorrer em suas extremidades de maneira igual (mantendo a característica
12 Claude Samuel. Conversations with Olivier Messiaen. p. 44, 1967 Apud http://algorithmiclife.com/2005/10/15/messiaen-and-non-retrograde-rhythms/ (Acesso em: 15/set/2008) 13 No original em inglês: It’s extraordinary to think that the Hindus were the first to point out and use - rhythmically and musically - this principle of non-retrogradation which is so often encountered around us. It’s a principle which has long been applied to architechture: thus in ancient art, gothic and romanesque cathedrals and even in modern art, the decorative figures ornamenting the pediments of the portals are nearly always two symmetrically inverse figures framing a neutral central motif. (...) In nature we have an exquisite example: the wings of a butterfly. (...)
26
principal do conjunto não retrogradável), em seu centro, ou em ambos ao mesmo
tempo. Considere, por exemplo, o ritmo hindu (deçi-tâla) n° 58, chamado Dhênki:
Exemplo 1 – Dhênki
Na figura acima, o deçi-tâla está em sua forma original. Aplica-se sobre ele
alguns procedimentos de aumentação e diminuição:
• Aumentação:
Exemplo 2 - Dhênki - aumentação 1
Exemplo 3 - Dhênki - aumentação 2
• Diminuição:
Exemplo 4 - Dhênki - diminuição 1
Exemplo 5 - Dhênki - diminuição 2
Exemplo 6 - Dhênki - diminuição 3
Além desses procedimentos, ainda podemos utilizar a agregação de
valores em suas extremidades (de maneira equilibrada, para que se possa manter a
característica de não retrogradável), em seu centro, ou em ambos:
• Agregação de valores:
! Em seus valores extremos
Exemplo 7 - Agregação do ponto de aumento nos valores extremos 1
Exemplo 8 - Agregação de semicolcheia nos valores extremos 2
27
! Em seu valor central
Exemplo 9 - Agregação do ponto de aumento no valor central
Exemplo 10 - Agregação da fusa no valor central
! Em ambos
Exemplo 11 - Agregação da semicolcheia nos valores extremos e do ponto de aumento no valor central
Através desses procedimentos composicionais, cria-se mais material rítmico
para ser utilizado na composição.14
Os ritmos não retrogradáveis, além de serem aplicados a conjuntos de
pequenos valores e células, também podem ser utilizados em maiores quantidades,
na forma especular, formando uma estrutura palindrômica em larga-escala.
Exemplo 12 – Fragmento da peça Cantéyodjayâ, para piano solo - Ritmo não retrogradável aplicado em larga escala
Encontramos, na tabela de 120 deçi-tâlas hindus, alguns ritmos não
retrogradáveis:
14 No capítulo 2.1.5. b) temos um exemplo comum de polirritmia na música de Messiaen, utilizando um ritmo não-retrogadável sobreposto às suas aumentações, diminuições etc.
28
n° Nome Notação rítmica
47 makaranda
51 vijaya
52 bindumâlî
58 dhenkî
26 tryasra varna
34 çarabhalîla,
80 pratimanthaka /
kollaka,
Tabela 1- Deçi-tâlas - ritmos não retrogradáveis
Messiaen utilizará diversos deçi-tâlas em suas composições, aplicando, sobre
eles, vários procedimentos composicionais que foram abordados anteriormente.
2.1.3. Polirritmia
O emprego simultâneo de métricas rítmicas sobrepostas é muito comum na
música de Messiaen, sendo um elemento característico de sua linguagem.
Explicação do termo: trata-se da inserção de síncopas em uma métrica normal, porém, sem alguma relação com ela. Sendo cauteloso com indicações de ligaduras, dinâmicas e acentos, colocando-os exatamente onde queremos que soem, o efeito de nossa música será causado no ouvinte. (essa notação possui o defeito de estar em contradição com a concepção rítmica do
29
compositor, [...], mas não há outra maneira de escrever certos tipos de exemplos). 15 (MESSIAEN, 1944, p. 17)
Existem diversas espécies de polirritmia. Citaremos aqui algumas delas:
a) Sobreposição de ritmos com longitude desigual
É importante sublinhar que quando são escritas duas seqüências
rítmicas de tamanhos diferentes, de acordo com a diferença de valores entre uma e
outra, pode surgir um ciclo natural que exija que estas tenham de ser repetidas um
certo número de vezes até voltarem à sua combinação inicial.
Este fato explica a concepção de ritmo na música de Messiaen. Se
existem dois ritmos de tamanhos diferentes sobrepostos, é naturalmente impossível
que uma barra de compasso seja inserida corretamente. Por isso, ele opta por retirá-
la de suas composições16. O exemplo a seguir foi retirado do livro Téchnique de Mon
Langage Musical (1944, p. 17), e ilustra justamente o assunto exposto acima.
O exemplo musical Le Verbe (Ex. 14), para órgão, está escrito no
terceiro modo de transposição limitada17. A parte superior repete um ritmo baseado
na adição e subtração do ponto de aumento, com um total de 10 semicolcheias. No
pentagrama inferior, tocado pela mão esquerda, um ritmo de 9 semicolcheias é
repetido. Serão necessárias 9 repetições do ritmo superior (indicado em vermelho) e
10 do inferior (indicado em azul) para que eles se reencontrem na posição inicial.
15 No original em francês: Explication de ce terme: il s'agit, au moyen de syncopes, d'inscrire dans une mesure normale, des rythmes qui n'ont aucun rapport avec elle. En multipliant les indications de liaisons, nuances, accents, là où nous les voulons exactement, l'effet de notre musique sera produit sur l'auditeur. (Cette notation a le défaut d'être en contradiction avec la conception rythmique du compositeur [...], mais certains exemples ne peuvent être écrits autrement) (tradução do autor). 16Alguns anos mais tarde, o compositor húngaro György Ligeti também utilizará o procedimento de polirritmia, optando por uma solução diferente: as barras de compasso, ao invés de serem eliminadas, dividem-se entre mão direita e esquerda, como em seu primeiro estudo para piano (1985), do primeiro livro. 17 Cf. cap. 2.2.1.
30
Exemplo 13 – Sobreposição de ritmos com longitude desigual - Le Verbe, para órgão
b) Sobreposição de um ritmo a uma de suas diferentes formas de
aumentação e diminuição
Esta espécie de polirritmia trata-se de fazer modificações rítmicas sobre um
motivo rítmico e, em seguida, sobrepor os resultados ao motivo original.
Como visto anteriormente no capítulo 2.1.2 (agregação de valores), Messiaen
cria diversas possibilidades rítmicas a partir de um motivo inicial. As transformações
ocorridas em cada motivo podem ser feitas a partir da agregação de uma nota, um
ponto de aumento ou um silêncio (pausa), criando assim uma infinidade de
possibilidades. O princípio de polirritmia, neste caso, consiste sobrepor este motivo
inicial (sem transformações com valores agregados) a qualquer uma destas
transformações decorrentes dele próprio.
O exemplo a seguir, retirado do livro Téchnique de Mon Langage Musical
(Técnica de Minha Linguagem Musical - 1944), trata-se da sobreposição um motivo
“natural” (sem transformações com agregações de valores) a motivos
transformados.
Supõe-se o ritmo:
Exemplo 14 – Célula rítmica não retrogradável em sua forma “natural”
Utilizando alguns dos procedimentos rítmicos de aumentação e diminuição no
motivo acima, obtemos a seguinte série (Ex. 16):
31
Exemplo 15 – Procedimentos rítmicos de aumentação e diminuição sobre o ritmo não retrogradável
Pode-se sobrepor estes resultados com o motivo inicial, obtendo a seguinte
seqüência rítmica:
Exemplo 16 – Sobreposição do motivo natural às suas diversas formas de aumentação e diminuição.
No Ex. 17 vê-se que o pentagrama inferior apresenta as formas do motivo
sem transformações. No pentagrama superior, as transformações deste motivo são
inseridas sob forma de sobreposição.
c) Sobreposição de um ritmo a sua própria retrogradação
Um exemplo claro de uma retrogradação da música de Messiaen está na obra
Vingt Regards sur l’Enfant Jésus (Vinte Olhares Sobre o Menino Jesus - 1944), mais
especificamente na peça “Regard de L’Onction Terrible” (O Olhar Sobre a Terrível
Unção), na qual o compositor sobrepõe literalmente um trecho rítmico a outro (Ex.
18 – CISCAR, 2004, p. VI Apêndice).
No trecho mencionado, a mão direita, a partir do compasso 3 (após a
pequena introdução de dois compassos), inicia o tema rítmico que se estenderá até
o compasso 17. Na mão esquerda, o mesmo tema rítmico é inserido integralmente
na sua forma retrogradada, a partir do compasso 15, em direção ao início da peça.
O eixo de encontro dessa sobreposição está situado no compasso 10.
32
Exemplo 17 – Sobreposição de tema à sua própria retrogradação – Vingt Regards sur l’Enfant Jésus – “Regard de l’Onction Terrible”
Legenda
- Introdução - Tema em sua posição “natural” - Tema retrogradado - Eixo de encontro
33
Em Quatre Études de Rythme, além das citadas acima, ocorrerão
polirritmias de modos originais da série sobrepostos com suas interversões
(permutações)18, retrogradações, inversões e diversas maneiras de combinação
entre elas.
2.1.4. Pedais Rítmicos
Esta técnica ocorre quase como conseqüência do emprego da polirritmia.
Trata-se de um ritmo que se repete incansavelmente em ostinato,
independentemente dos ritmos que o contornam (MESSIAEN, 1944, p. 24).
O emprego de pedais rítmicos é comum quando a peça apresenta uma
sobreposição de um ritmo à sua própria retrogradação (Ex. 18). Em Quatre Études,
essa técnica aparece em “Île de Feu I” e “Neumes Rythmiques”.
2.2. MELODIA
A melodia está acima de tudo. Ela, que é o elemento mais nobre da música, deve ser o foco principal de nossa pesquisa”.19 (MESSIAEN, 1944, p. 30)
2.2.1. Modos de Transposição Limitada
Os modos de transposição limitada são constituídos por sete escalas que
possuem relação intervalar distinta entre si, geralmente simétricas. Após um certo
número de transposições cromáticas que variam a cada modo, estes retornam às
mesmas notas da posição original, possuindo, desta forma, um número limitado de
transposições.
Pelo fato de cada modo ser feito a partir da escala temperada de doze sons, é
necessário verificar apenas a distância intervalar de semitons, não importando o tipo
de acidente ocorrente inserido, por exemplo: lá é equivalente a sol , dó é igual a si,
etc.
18 Cf. Item 3.2.3. 19 No original em francês: Primauté à la mélodie. Élément le plus noble de la musique, que la mélodie soit le but principal de nos recherches. (tradução do autor)
34
Na nomenclatura atribuída por Messiaen, é necessário observar que a palavra
transposição refere-se não apenas às transposições cromáticas dos modos, mas
também aos seus respectivos modos originais. O original de cada modo será
chamado de primeira transposição.
Eis os sete modos de transposição limitada de Messiaen (MESSIAEN, 1944,
p. 85):
MODO I
Modo original
Escala/intervalos
Número possível
de transposições 20 1 (original) + 1 2 transposições
Transposições
Escala/intervalos
Tabela 2 - Modos de Transposição Limitada - MODO I
O primeiro modo de transposição limitada não aparece pela primeira vez em
Messiaen. Também chamado de “escala de tons inteiros” ou “escala hexafônica”, já
foi muito utilizado por Claude Debussy e Paul Dukas. (MESSIAEN, 1944, p. 85)
Podemos notar uma regularidade neste modo, tendo em vista que todos os
seus intervalos são iguais (2a maior – 2 semitons). Portanto, constatamos que existe
simetria em sua construção.
20 O número de transposições inclui também o modo original (chamado de primeira transposição).
35
MODO II
Modo original
Escala/intervalos
Número possível
de transposições 1 (original) + 2 3 transposições
Transposições
Escala/intervalos
Tabela 3 - Modos de Transposição Limitada - MODO II
O segundo modo é constituído por uma escala octatônica, cujos intervalos se
distribuem da seguinte maneira:
St T St T St T St T
Desta forma, podemos constatar que a escala possui uma periodicidade
(CISCAR, 2003, p. 27) e uma simetria interna (dois grupos iguais de St T St T).
36
MODO III
Modo original
Escala/intervalos
Número possível
de transposições 1 (original) + 3 4 transposições
Transposições
Escala/intervalos
Tabela 4 - Modos de Transposição Limitada - MODO III
Assim como o segundo modo, o terceiro é também uma escala de oito notas,
desta vez com os intervalos dispostos de maneira diferente:
T St St T St St T St St
Também possui uma periodicidade e uma simetria interna (três grupos iguais
de T St St).
* * *
A partir do quarto modo de Messiaen, podemos denominá-lo, juntamente com
os modos seguintes, como grupo de trítonos (CISCAR, 2003, p. 28). O intervalo de
trítono (!) pode se transpor seis vezes, assim como os quatro últimos modos de
transposição limitada. Sempre que há transposições, é possível encontrar esse
intervalo na estrutura do modo.
37
MODO IV
Modo original
Escala/intervalos
Número possível
de transposições 1 (original) + 5 6 transposições
Transposições
Escala/intervalos
Tabela 5 - Modos de Transposição Limitada - MODO IV
A estrutura do quarto modo de Messiaen é a seguinte:
St St 3m St St St 3m St
Observamos a presença de dois grupos iguais (St St 3m St), gerando
novamente uma periodicidade no modo. A presença de eixos de simetria intrínsecos
ao modo ficam claros, tendo em vista a disposição dos intervalos de !.
38
MODO V
Modo original
Escala/intervalos
Número possível
de transposições 1 (original) + 5 6 transposições
Transposições
Escala/intervalos
Tabela 6 - Modos de Transposição Limitada - MODO V
Neste modo, os intervalos começam a se tornar mais distantes, com a
inserção da terça maior, que aparece pela primeira vez como intervalo consecutivo.
St 3M St St 3M St
Novamente percebemos a periodicidade do modo, com dois grupos
palindrômicos e simétricos (St 3M St).
39
MODO VI
Modo original
Escala/intervalos
Número possível
de transposições 1 (original) + 5 6 transposições
Transposições
Escala/intervalos
Tabela 7 - Modos de Transposição Limitada - MODO VI
Nota-se que o sexto modo possui uma similaridade muito grande com o
primeiro (escala de tons inteiros). A única diferença entre estes é o surgimento de
um novo ! decorrente da inserção de duas notas. A estrutura do sexto modo é a
seguinte:
T T St St T T St St
Composto por dois grupos simétricos iguais T T St St, podemos constatar a
existência de uma periodicidade.
40
MODO VII
Modo original
Escala/intervalos
Número possível
de transposições 1 (original) + 5 6 transposições
Transposições
Escala/intervalos
Tabela 8 - Modos de Transposição Limitada - MODO VII
O último modo de transposição limitada de Messiaen possui a seguinte
estrutura intervalar:
St St St T St St St St T St
Aparentemente, não encontramos simetria nas relações intervalares. Porém,
ao rotacionarmos21 o modo 4 vezes, obtemos:
St St St T St St St T St St
21 “Rotação” é o termo adotado por Pierre Boulez para descrever o procedimento em que a mudança da posição das notas ocorre através da repetida inserção da primeira no lugar da última.
41
Portanto, chegamos ao resultado de dois grupos idênticos com a estrutura
intervalar St St St T, o que faz do modo uma estrutura simétrica com periodicidade
constante em dois grupos.
Interpretando os modos de Messiaen como pequenos grupos, verificamos a
lógica de suas construções através de grupos intervalares específicos (CISCAR,
2003, p. 26). Estes serão indicados por cores representando cada intervalo:
MODOS E GRUPOS
INTERVALOS REPRESENTAÇÃO GRÁFICA
MODO I
Segunda maior
• dó – ré – mi – fá –
sol – lá
MODO II
Terça menor
• dó – mi – fá - lá – (do)
• ré – mi – sol – si
MODO III
Terça maior
• dó – mi – lá – dó
• ré – fá – si
• mi – sol – si
IV • dó – fá – dó
• ré – sol
• ré – lá
• fá – si
V • dó – fá - dó
• ré – sol
• fá - si
MODOS
IV, V, VI e VII
!
VI • dó – fá – dó
• ré – sol
• mi – lá
• fá – si
42
VII • dó – fá – dó
• ré – sol
• ré – lá
• mi – lá
• fá – si
Tabela 9 – Construção dos modos de transposição limitada através de grupos de intervalos
2.2.2. Relação dos modos de transposição limitada com os ritmos não retrogradáveis
Segundo Messiaen (1944, p. 92), a relação entre os modos de transposição
limitada e os ritmos não retrogradáveis dá-se através da simetria inerente a cada um
deles. Os modos de transposição limitada realizam, no sentido vertical (notas,
altura), aquilo que os ritmos não retrogradáveis realizam no sentido horizontal
(valores, ritmo).
De fato, os modos de Messiaen podem ser transpostos até certo ponto, pois
se se tentar seguir com as transposições, retorna-se às mesmas notas do modo em
sua posição original (observando enarmonicamente). Da mesma maneira, os ritmos
não retrogradáveis exprimirão a mesma seqüência de valores, tanto em ordem
retrogradada à inicialmente dada.
Os modos e os ritmos são divisíveis em grupos simétricos, com a diferença
que a simetria dos grupos rítmicos é uma simetria retrógrada. (MESSIAEN, 1944, p.
92)
2.2.3. Melodia e Contornos Melódicos
Messiaen busca melodias e contornos melódicos das mais variadas fontes
(cantochão, canto de pássaros, deçi tâlas hindus etc), lembrando que todas
possuem um denominador em comum: a flexibilidade rítmica. (CISCAR, 2003, p.23)
A partir de um intervalo, consegue desenvolver bastante material para aplicar
melodicamente em uma composição.
43
Como afirma o compositor (MESSIAEN, 1993, p. 36 Apud CISCAR, 2003, p.
22), o cantochão é uma mina inesgotável de contornos melódicos. Podemos
considerar como elementos fundamentais do cantochão os neumas22. Em “Île de
Feu I”, emprega-se o neuma climacus (Ex. 56).
O canto de pássaros constitui um capítulo muito importante na música de
Messiaen. Seu contato próximo com a natureza em sua infância foi um dos fatos
mais importantes que o fizeram desenvolver o seu interesse pelos pássaros.
A notação de cantos de pássaros não é exclusiva de Messiaen, pois já foi
utilizada por outros compositores, como Janequin (1485-1558), em Chant des
Oiseaux (Canto dos Pássaros); Edino Krieger (1928-), em Diálogo dos Pássaros;
Beethoven (1770–1827), na Sinfonia Pastoral; entre outros. Porém, a escuta e
notação de Messiaen é muito particular, pelo fato de não utilizar gravadores.
A principal característica dos cantos de pássaros consiste em seus contornos
melódicos ornamentados com flutuações rítmicas rápidas, flexíveis, isentos de
regularidade rítmica e caráter de improvisação (CISCAR, 2003, p. 23). Messiaen
atribui a esses contornos melódicos o nome de melodias “tipo-pássaro”.
Cabe ressaltar que o canto notado por Messiaen está suscetível a
transformações e tratamento, assim como qualquer material compositivo.
2.2.4. Desenvolvimento Melódico
Muitas das técnicas de desenvolvimento melódico aplicadas por Messiaen já
foram utilizadas por outros compositores. No entanto, como ele bebe das mais
diversas fontes, acaba combinando muitos materiais distintos e obtém novos
resultados.
22 Neuma - Sistema de sinais de notacão medieval (século VII), constituía a indicação para o intérprete acerca da direção melódica do cantochão e dos cantos das igrejas ortodoxas. Era formado por pequenos grupos compostos de número variável (entre um e cinco) de notas e possuía características próprias às diferentes tradições que a adotavam. Os neumas latinos são: apostropha, climacus, clivis, epiphonus, liquescens, oriscus, podatus, porrectus, pressus, punctum, quilisma (ou kilisma), salicus, scandicus, strophicus, torculus, tractalus e virga". (DOURADO, 2004, p. 225)
44
a) Eliminação de notas
O primeiro exemplo que Messiaen nos apresenta, em seu Téchnique, é o
procedimento de eliminação de notas.
Este procedimento consiste em dividir em partes uma melodia ou motivo
melódico e utilizar os fragmentos resultantes como material composicional, podendo
desenvolvê-lo, transformá-lo ou modificá-lo.
Os dois exemplos abaixo foram retirados do Téchnique, e mostram o
procedimento de eliminação na música de Messiaen:
Exemplo 18 – Combat de la Mort et de la Vie – Melodia
Exemplo 19 - Combat de la Mort et de la Vie – Eliminação de notas
45
b) Interversão de notas
Este procedimento consiste em variar a ordem das notas de uma melodia.
Veremos detalhadamente como Messiaen o aplica de forma sistemática em “Île de
Feu II”, no capítulo 3. (nota de rodapé. colocar exemplo e explicar ao menos para
que saibam do que se trata)
c) Ampliação ou redução de intervalo
Trata-se de manter um certo desenho de uma melodia e, em cada vez que
aparece novamente, ampliar ou reduzir a distância entre os intervalos. (CISCAR,
2003, p. 25)
d) Mudança de registro
Esta técnica consiste em manter a melodia em sua forma original – mantendo
as suas classes de alturas –, e modificar, em apenas algumas notas, o registro em
que é tocada. Por se tratar de uma mudança timbrística, é um procedimento de
desenvolvimento melódico diferente dos outros.
46
2.3. HARMONIA
2.3.1. Utilização de acordes e suas abordagens
a) Acordes realizados a partir da combinação de intervalos23
Messiaen cria acordes partindo de certos intervalos, por exemplo:
• Sobreposição de quartas (aumentadas e/ou justas)
• Sobreposição de quartas e quintas (quartas aumentadas ou
justas; quintas diminutas ou justas)
Estes acordes podem sobrepor-se variando a sua disposição, como veremos
nas duas peças analisadas neste trabalho. Messiaen utiliza também a sobreposição
de outros intervalos, porém, as quartas e quintas são consideradas mais
importantes, pois o ! está sempre presente. Como vimos no capítulo 2.2.1. (modos
de transposição limitada), o ! é intrínseco a todos os modos, portanto, está presente
constantemente na resultante harmônica.
b) Acorde como acompanhamento da melodia
Para que seja possível formar um todo coerente, Messiaen insere acordes
acompanhando exatamente o mesmo ritmo da melodia (podemos observar essa
ocorrencia em “Île de Feu I”). A intenção, nesse caso, não é "acompanhar" uma linha
melódica, mas sim, "identificar-se" com ela, reforçando o modo ou escala sobre a
qual foi composta, e dando-lhe sustentação e coloração. (BOULEZ, 1984, p. 289
Apud CISCAR, 2003, p. 36)
23 Baseado em Francisco J. C. Ciscar, Aproximación al Lenguaje de Olivier Messiaen: Análisis de la obra para piano Vingt Regards sur l’Enfant Jésus, p. 34
47
c) Acorde como resultado de seqüência intervalar
A técnica de criar acordes a partir de seqüências intervalares é muito comum
não apenas na música de Messiaen. Os acordes se formam a partir do movimento
de vozes que geram uma relação harmônica com o material utilizado
contrapontisticamente.
Os conceitos de aumentação e diminuição rítmica, aplicados em suas
melodias, servem tanto para criar novo material rítmico quanto material melódico e
harmônico. A melodia, ao se estender ou reduzir (ritmicamente), gera novas
combinações com outras melodias e, conseqüentemente, surgem novas harmonias.
Através dos modos de transposição limitada também é possível criar novas
harmonias. Podemos encontrar suas diversas ocorrências na música de Messiaen.
d) Cachos de acordes
(acordes como seqüência harmônica)
O encadeamento de acordes pode surgir a partir do movimento paralelo entre
vozes e pode ocasionar o deslizamento de acordes na forma cromática (como uma
seqüência real) ou na forma modal (seqüência modal). A sucessão de acordes
descendentes ou ascendentes mostram desenhos-pedal. (CISCAR, 2003, p. 35)
48
3. CAPÍTULO III - ANÁLISE DE QUATRE ÉTUDES DE RYTHME PARA PIANO SOLO: “ÎLE DE FEU I” E “ÎLE DE FEU II”
Os Quatre Études de Rythme – “Île de Feu I”, “Mode de Valeurs et d’Intensités”,
“Neumes Rythmiques” e “Île de Feu II” -, ao contrário de outras obras para piano
solo de Messiaen, como Vingt Regards sur l’Enfant Jésus e Visions de l’Amen, por
exemplo, não formam um ciclo.
Os quatro estudos foram compostos em períodos distintos e reunidos apenas
mais tarde. As peças “Mode de Valeurs et d’Intensités” e “Neumes Rythmiques”
foram compostas em 1949, e “Île de Feu I” e “Île de Feu II” em 1950 (JOHNSON,
1975, p. 104).
Neste capítulo será feita uma comparação entre as duas peças de mesmo título –
“Île de Feu I” e “Île de Feu II” –, buscando compreender as relações entre as duas; o
motivo pelo qual Messiaen optou por nomear “Île de Feu I” como o primeiro estudo,
e “Île de Feu II” como o último; e o porquê de uma das peças possuir técnicas da
escrita composicional “tradicional” de Messiaen (período anterior a 1949), e a outra
mergulhar num âmbito composicional tão distinto, como o do serialismo integral, que
é algo totalmente novo no período em que foram escritas.
49
Primeiro Estudo de Ritmo
“ÎLE DE FEU I”
50
3.1. “ÎLE DE FEU I”
3.1.1. Aspectos Gerais
A primeira peça dos Quatre Études de Rythme, dedicada à Nova-Guiné, é
constituída de 40 compassos, divididos em 6 seções: a primeira delas, com 4
compassos; a segunda, que se inicia no compasso 5 e finaliza no compasso 11; a
terceira, que vai do compasso 12 ao 19; a quarta, do compasso 20 ao 24; a quinta,
do compasso 25 ao 34; e a última, do compasso 35 ao fim.
As indicações de andamento e caráter se alteram bastante no decorrer da
peça. A primeira seção inicia com a indicação Presque Vif (quase rápido), depois
segue com Très Vif (muito rápido) e Vif (rápido); a segunda seção indica o
andamento Modéré (moderado); a terceira seção inicia-se novamente com o
andamento Presque Vif - com caráter expressivo – e termina com andamento
Modéré novamente; a terceira apresenta o andamento Très moderé, lourd (bastante
moderado, pesado), mudando rapidamente no compasso seguinte para Très Vif,
para chegar finalmente ao Vif, finalizando a seção; a quarta seção apresenta
novamente o andamento Très moderé, lourd, que permanece constante; a penúltima
seção apresenta somente o andamento Vif; e a última seção apresenta os
andamentos Modéré, Vif e Modéré, lourd.
Essa peça foi composta para a realização de um executante apenas. Logo,
sua escrita segue a primeira forma de notação rítmica de Messiaen24 e não
apresenta fórmula de compasso ou unidade de tempo fixa.
Quanto às indicações de dinâmica, o primeiro estudo de ritmo é marcado,
predominantemente, por dinâmicas forte e fortissimo. Indicações menos intensas
como mezzo-forte e piano são encontradas apenas em alguns finais de frase e,
excepcionalmente, no fim (compasso 36), onde há um crescendo de apenas dois
compassos, atingindo a dinâmica fortissimo.
Esquematizando de maneira resumida os aspectos gerais da peça, obtemos a
seguinte tabela:
24 Cf. Cap. 2.1.1.,
51
Se
çõe
s
Asp
ect
os
Ge
rais
Comp. Andamentos Caráteres Dinâmicas S
EÇ
ÃO
I 1 – 4
Presque Vif (quase rápido)
Très Vif (muito rápido) Vif (rápido)
Martélé (martelado) Percuté (percutido)
f sff
SE
ÇÃ
O
II 5 – 11 Modéré (moderado) Presque Vif (quase
rápido)
Oiseau (pássaro) Martelé (martelado)
Expressif (expressivo)
mf p
più f f
SE
ÇÃ
O
III
12 –19 Très Vif (muito rápido)
Vif (rápido) Résonance
(ressonância)
mf fff f
SE
ÇÃ
O
IV
20 – 24 Très modéré, lourd
(bastante moderado, pesado)
f ff fff
SE
ÇÃ
O
V
25 – 34 Vif (rápido) Violent (violento) f ff
SE
ÇÃ
O
VI
35 – 40
Modéré (moderado) Vif (rápido)
Modéré, lourd (moderado, pesado)
Oiseau (pássaro) Martelé (martelado)
mf f p ff
sfff sff
Tabela 10 - “Île de Feu I” - Aspectos Gerais
3.1.2. Temas unificadores e suas reexposições
“Île de Feu I” - dividida em 6 seções - é constituída, segundo Messiaen (1950,
p. 1), de dois temas principais. No entanto, é preciso observar que não existem
apenas dois temas unificadores. Sua construção baseia-se na apresentação clara
destes temas, seguidos por diversas combinações, tais como: inversões,
transposições, intervalos semelhantes, sobreposições etc. Além deles, notamos
outros temas e motivos importantes que se relacionam no decorrer da peça.
52
• TEMA I
O primeiro e mais importante tema inicia-se claramente na cabeça do primeiro
compasso da primeira seção e é tocado pela mão direita no registro grave, com
dinâmica forte e caráter martelé (martelado). Possui 4 valores rítmicos (semínima,
semicolcheia, colcheia e mínima) e 6 notas (dó , mi, fá, fá , sol e sol ). Nota-se em
suas extremidades o emprego de dois grupos de ritmos não retrogradáveis:
Exemplo 20 - “Île de Feu I” - Tema
Exemplo 21 - “Île de Feu I” - Tema (ritmos não retrogradáveis)
Na mão esquerda, a exposição é acompanhada por um motivo rítmico-
percussivo nas últimas três notas do piano, com o seguinte ritmo:
Exemplo 22 “Île de Feu I” - Ritmo Contra-Tema (m. esquerda)
Teremos, ao longo deste estudo, as seguintes reexposições/reconstruções do
primeiro tema:
53
a) Primeira reexposição do tema I – Seção II: Compassos 5 e 6
Exemplo 23 - “Île de Feu I” - Primeira reexposição do Tema I
No compasso 5 temos a primeira reexposição do tema I, ligeiramente mais
rápida, desta vez tocada na região médio-aguda. O tema agora passa a ser tocado
pela mão esquerda, enquanto a direita toca ornamentações estilo “pássaro”, este
que, segundo o compositor, pertence à espécie Turdus merula (Melro-preto).
b) Segunda reexposição do tema I – Seção III: Compasso 11
Exemplo 24 - “Île de Feu I” - 2ª reexposição do tema I
A segunda reexposição do primeiro tema ocorre no compasso 11, de forma
parcial.
54
Desta vez, a reexposição é tocada na mesma região que o tema original. A
rítmica é acompanhada literalmente pela mão direita, que toca acordes respectivos à
cada nota do tema.
Existem dois aspectos que diferem o tema original desta reexposição: a
dinâmica, que é predominantemente forte e diferencia claramente o tema original –
em dinâmica fff – de seu “acompanhamento” com a mão direita – em dinâmica mf; e
o registro, agudo na mão direita e grave na esquerda.
c) Terceira reexposição do tema I – Seção IV: Compasso 20
Exemplo 25 - “Île de Feu I” - 3ª reexposição do tema I
Previsivelmente, a próxima reexposição do tema ocorre no compasso 20,
onde marca o início da seção IV. Tocado com dobramento de oitavas novamente na
mão esquerda, desta vez é também harmonizado por ela. Intercalados com o tema,
ocorrem gestos executados nas extremidades aguda e grave do piano25. Assim
como a segunda reexposição, o tema aparece aqui de forma parcial, porém, apenas
com a supressão das duas últimas notas (ambas mi ). Ao invés de “resolver” em mi ,
termina uma segunda menor acima, ou seja, fá .
25 C.f. Item Motivos Percussivos, no item 3.1.3.
55
d) Quarta reexposição do tema I – Seção VI: Compasso 35
Exemplo 26 - “Île de Feu I” - 4ª reexposição do tema I
A quarta e última reexposição do tema da peça ocorre no início da seção VI,
no compasso 35. Aqui ocorre uma reprodução parcial da primeira reexposição do
compasso 5. Como a segunda reexposição, mantém as mesmas notas do tema.
• TEMA II
O segundo tema da peça inicia-se no compasso 25 e sua melodia é
caracterizada pelas oitavas paralelas. O primeiro período inicia-se no compasso 25 e
finaliza no compasso 27. o segundo encontra-se nos compassos 28 e 29.
Apesar de Messiaen afirmar (1950, p. 2), em sua análise da peça, que este é
um novo tema, não podemos descartar o fato de que possui similaridades com o
Tema I. A principal característica que podemos notar é o intervalo de terça maior
que se encontra no início dos dois temas, formado pelas notas mi e sol .
56
Exemplo 27 - “Île de Feu I” - Tema II - Primeiro período (c. 25-27)
Exemplo 28- “Île de Feu I” - Tema II - Segundo período (c. 28 -29)
57
! TEMA II - REPRISES E REPETIÇÕES
Após a exposição do primeiro e segundo períodos, há uma reprise de ambos:
nos compassos 30 a 32, referentes ao primeiro período; e nos compassos 33 e 34
para o segundo.
Exemplo 29 - “Île de Feu I” - Período 1 - Reprise (c. 30 a 32)
Na reprise do segundo período, a última nota (mi), tocada pela mão esquerda,
aparece aqui de forma elidida com a última reexposição do Tema I.
58
Exemplo 30 - “Île de Feu I” - Período 2 - Reprise (c. 33-34 - Elisão com reexposição do tema I no início do c. 35)
Quando inicia-se o tema II – tocado pela mão esquerda –, a mão direita
realiza uma seqüência de semicolcheias, nas quais algumas notas específicas
sofrem a inserção de apogiaturas de uma ou mais notas, comuns na escrita de
Messiaen.26 Nesse trecho, existem apogiaturas fixas para algumas notas
específicas:
Exemplo 31 - “Île de Feu I” - Ornamentos que se repetem sempre da mesma maneira na mão direita
26 Essas apogiaturas representam – na maior parte das vezes –, na música de Messiaen, o canto de pássaros. Poderemos ver exemplos de apogiaturas em muitas de suas obras da chamada “década pássaro” (1950), tais como: Oiseaux Exotiques (1956), para piano e orquestra; e Catalogue d’Oiseaux (1956-1958), para piano solo.
59
Essas semicolcheias da mão direita formam nitidamente um padrão através
de dois motivos, que aqui chamaremos de A e B. No entanto, eles não serão
tocados sempre da mesma maneira com o primeiro e segundo períodos.
Na primeira vez em que aparecem, estão em sua forma “original”. O A é
tocado exatamente sobre o primeiro período, e o tema B, sobre grande parte do
segundo período27.
Logo após a primeira exposição de A e B, aparecem sobrepostos com uma
pequena defasagem sobre os dois períodos, ou apenas um fragmento.
Exemplo 32 – “Île de Feu I” –A e B sobrepostos com os períodos I e II.
27 Neste trabalho, são adotadas pela autora as cores laranja, representando o tema A; e rosa escuro, representando o B.
60
3.1.3. Motivos
• CANTO DE PÁSSAROS: O MELRO-PRETO
Em “Île de Feu I”, Messiaen utiliza apenas uma passagem representando um
canto de pássaro. Na mão direita, na segunda seção, existem ornamentações estilo
“pássaro”, as quais, segundo o compositor, pertencem à espécie Turdus merula28.
Nota-se um padrão no final de cada trecho, que representa o canto, como um eco,
apresentando as notas lá -sol , terminando na dinâmica piano. As pausas logo após
estas notas mostram claramente as respirações entre os três trechos, colocando um
fim a cada um deles.
Exemplo 33 - “Île de Feu I” – Motivo 1 - Representação do canto do Melro-Preto
Legenda
- Terminações em lá/sol
- Pausa – representa final do trecho
- Respiração
28 Messiaen deixa muito claro que os cantos de pássaros notados em suas partituras representam a sua
idiomatização para o instrumento piano. Eles possuem tessituras que vão de quatro a sete oitavas mais agudas do que as do piano, tendo de ser, portanto, adaptados. Da mesma forma, as alturas de notas, mesmo transpostas, não são exatamente aquilo que os pássaros cantam, pois estes apresentam a afinação de ! de tom, enquanto o piano possui a limitação de ser afinado em semi-tons.
61
A volta ao tema pássaro ocorre na seção VI da peça, onde é retomado de
forma parcial (m. d.).
Exemplo 34 - “Île de Feu I” – Motivo 1ª - Reexposição do canto do Melro-Preto de forma parcial
• MOTIVO DE NONAS MENORES E TRÍTONOS29
Na primeira seção, logo após a exposição do tema, ocorre um arpejo tocado
na região aguda, variando com fortes dissonâncias em posições abertas, seguindo
uma certa regularidade:
9m, !, !, !, 9m, 9m, 9m, !, !, !, 9m, 9m, 8J, 9m, 9m, !, 5J.
Exemplo 35 - “Île de Feu I” - Motivo 2 - intervalos de nonas e trítonos (exceção de 5J e 8J)
Legenda
- Trítonos - Nonas Menores - Consonâncias (Quintas e Oitavas Justas)
29 Para facilitar o entendimento, sempre que houver uma referência a um intervalo cuja distância é de 13 semitons, darei o nome de 9ª menor, não importando quando este aparecer na forma de 8ª aumentada, por exemplo.
62
A mão esquerda apenas reforça, enfatizando algumas notas-chave tocadas
em uma oitava mais grave do piano.
Este motivo de nonas menores e trítonos aparecerá no início da seção III.
Nota-se que esta passagem pode ser a representação harmônica do primeiro motivo
exposto após o Tema I, na primeira seção. Nela, os intervalos 9m e ! são alternados
na forma de arpejo com apenas duas variações no fim que indicam intervalos
consonantes de 5ªJ e 8ªJ. Nesta segunda seção, estes intervalos também são
inseridos, de forma bem similar, porém, na forma harmônica, pois melódica e
harmonicamente notamos a presença dos dois intervalos dissonantes, como mostra
o exemplo a seguir (Ex. 37).
Exemplo 36 - “Île de Feu I” - Motivo 2a - Trítonos e Nonas menores dispostos harmonicamente
Legenda
- Trítonos - Nonas Menores
• MOTIVOS PERCUSSIVOS
Nesta peça, os recursos timbrísticos do piano são muito bem explorados. O
caráter percussivo em si não deve ser referida apenas às dinâmicas percuté
(percutido) e martelé (martelado). Além delas, que, devido às suas formas de ataque
já produzem um efeito de percussão no piano, é importante frisar as tessituras
utilizadas em sua ocorrência. Estes motivos são sempre tocados nas regiões
extremas do instrumento, nas quais o som já não é tão claro e nítido. Por essa
razão, obtém-se com sucesso o efeito desejado.
63
Na primeira seção, o tema é acompanhado por um motivo rítmico-percussivo
na região de extremo grave (últimas três notas do piano), com dinâmicas variáveis
(p, mf e f):
Exemplo 37 - “Île de Feu I” - Motivo rítmico-percussivo na região de extremo grave (m. e.)
Pode-se observar a ocorrência de um ritmo não retrogradável com pontos de
aumento agregados em suas extremidades em sua rítmica:
Exemplo 38 – “Île de Feu I” - Ocorrência de ritmo não retrogradável no motivo rítmico-percussivo na
região de extremo grave (m. e.)
Esta seqüência ocorre novamente de maneira parcial na seção IV (comp. 20):
64
Exemplo 39 - “Île de Feu I” - Repetição do motivo rítmico-percussivo na região de extremo grave
No compasso 4, o último antes de finalizar a primeira seção, um novo motivo
percussivo aparece na região grave extrema, com blocos harmônicos. Estes serão
tocados pela mão esquerda, utilizando os acordes com intervalos de 4ª Justa e 2ª
Maior30. No decorrer da peça, eles serão inseridos em suas diversas transposições.
Exemplo 40 – “Île de Feu I” - Motivo realizado no grave – harmonia de 4ªJ e 2ªM
30 Por enquanto, os acordes desta passagem apresentam os intervalos de 2ª maior, 4ª e 5ª justa. Ao longo da peça, quando este motivo for reexposto, não terá necessariamente esta exata distância intervalar, podendo variar de 2ª maior, menor; 4ª e 5ª justas ou ".
65
A relação intervalar deste motivo será retomada nos motivos de glissando e
jogo de teclas brancas-pretas – “Flechas” – que veremos a seguir.
• JOGO DE TECLAS BRANCAS-PRETAS (Acordes “Flecha” e
Glissandi)
o Acordes “Flecha”, ou “Flechas”
Em “Île de Feu I”, percebemos com uma certa freqüência a ocorrência de
motivos denominados “flechas” (MESSIAEN, 1950, p. 2), acordes de três notas que
possuem um intervalo de 2ªm e outro que pode ser uma 4ªJ, 5ªJ ou !.
No primeiro instante em que aparecem, surgem no meio do motivo percussivo
que vimos anteriormente (Ex. 41). No compasso 14, aparece de forma mais
expandida, ou seja, com alternância entre os intervalos de maior distância (5ªJ, 4ªJ
ou !) e os de menor distância (2ªm), não ocorrendo totalmente na forma
homofônica.
Exemplo 41 - “Île de Feu I” - Flechas - exemplo 1 - Expansão
No compasso 17 ocorre, em um pequeno motivo rítmico-percussivo, a
inserção de um acorde “flecha” na mão esquerda:
66
Exemplo 42 - Flechas - exemplo 2
Os acordes “flecha” aparecerão novamente na seção IV, compasso 20,
alternando com o tema principal da peça:
Exemplo 43 - “Île de Feu I” - Flechas - Alternância com o tema principal
Os acordes “flecha” também aparecem na última seção. Em sua finalização
fazem um movimento das regiões extremas para as médias como um glissando, até
a chegada ao centro do piano:
67
Exemplo 44 - “Île de Feu I” - Flechas - Conclusão
o Glissandi e arpejos
São inseridos diferentes tipos de glissando ao longo da peça, unificados
através de um elemento: o jogo de teclas brancas-pretas do piano.
Pode-se observar que, em todos os casos - com exceção de algumas notas
apenas – os glissandi (sejam de acordes, acordes com alternância de escalas ou
escalas “puras”) ocorrem de maneira que, enquanto uma mão toca apenas as notas
brancas do piano, a outra toca apenas as pretas.
No primeiro exemplo (seção III - comp. 13), temos um glissando de acordes
ascendentes que se alternam e culminam em dois acordes em semínima com arpejo
em movimento contrário (de fora para dentro):
Exemplo 45 - “Île de Feu I” - Glissando - exemplo 1 – Glissando de acordes e arpejos
68
No segundo exemplo (seção III - c. 15), o arpejo aparece de forma “natural”,
ou seja, melodicamente: a mão direita toca as teclas brancas, e a esquerda, as
pretas:
Exemplo 46 - “Île de Feu I” - Arpejo - exemplo 1
No terceiro exemplo de glissando (seção IV – c. 23), aparece, pela primeira
vez, a notação de glissando propriamente dita. Novamente a mão direita toca as
teclas brancas, e a esquerda, as pretas:
Exemplo 47 - “Île de Feu I” - Glissandi - exemplo 3 – escalas
* * *
Podemos perceber a semelhança dos acordes “flecha” com os glissandi. A
alternância de teclas brancas e pretas se dá nos dois casos de maneiras distintas.
Em um deles – nos acordes “flecha” – as teclas brancas e pretas podem ser tratadas
de forma alternada, com acordes que possuem somente teclas pretas tocadas
homofonicamente seguidas sempre de uma tecla branca, fazendo um movimento
descendente (Ex. 42), ou tocando a nota da região “branca” ao mesmo tempo em
que toca a região “preta” do piano (Ex. 47 e 48).
69
3.1.4. Ritmos retrogradáveis e não-retrogradáveis e suas sobreposições
É possível encontrarmos ritmos não-retrogadáveis em momentos da peça “Île
de Feu I”. A começar pelo tema (que manterá o mesmo ritmo em suas
reexposições), podemos indicar onde existem:
Exemplo 48 - “Île de Feu I” - Presença de ritmos não retrogradáveis no tema
Em todas as reexposições do tema podemos notar a presença dos ritmos não
retrogradáveis.
No compasso 7 (Ex. 50), a passagem da mão direita é composta por um
ritmo palindrômico (não retrogradável) em larga escala (Ex. 13 e tabela 11).
3 colcheias 2 semicolcheias 2 colcheias 2 semicolcheias 3 colcheias
Tabela 11 - “Île de Feu I” - Ritmo Palindrômico em larga escala
Enquanto ocorre o tema na mão direita, a esquerda acompanha com um
grupo de dois acordes que são repetidos três vezes quase da mesma maneira.
Segundo Messiaen (1950, p. 1), essa seqüência de acordes soa como uma
“lamentação”.
70
Exemplo 49 - “Île de Feu I” - "lamentação" (m. e.)
Quanto à rítmica, o trecho executado pela mão esquerda corresponde, nos
dois primeiros compassos, à exata retrogradação do ritmo da mão direita.
Exemplo 50 - “Île de Feu I” - Lamentação - Sobreposição de um ritmo à sua própria retrogradação
Exemplo 51 - “Île de Feu I” - Lamentação - Demonstração da sobreposição de um ritmo à sua própria
retrogradação
3.1.5. Modos de Transposição limitada
Em “Île de Feu I” observamos ocorrências dos modos de transposição
limitada apresentados anteriormente. É importante ressaltar que a análise é feita
baseando-se nos modos de forma enarmônica.
71
Exemplo 52 – “Île de Feu I” – 6a Transposição do VII modo de Transposição limitada
Legenda
- 6a Transposição do VII MTL
Exemplo 53 - “Île de Feu I” – 1a, 2a e 3a transposições do III Modo de Transposição limitada
Legenda
- 1a Transposição do III MTL
- 3a Transposição do III MTL
- 2a Transposição do III MTL
72
3.1.6. Harmonia
Em “Île de Feu I”, a harmonia se realiza de diversas maneiras, tais como:
a) Acorde como seqüência harmônica
O encadeamento de acordes ocorre mediante o movimento paralelo das vozes, resultando no deslizamento de um acorde de forma cromática (seqüência real) ou em função das notas do modo em questão (seqüência modal), formando, em certas ocasiões, diversos desenhos-pedal. (CISCAR, 2003, p. 33 e Apêndice XLIV)31
Observamos a ocorrência do acorde como seqüência harmônica no
compasso 14 (m.e.), no qual os intervalos de 4ªJ deslizam em movimento paralelo
descendente formando um desenho-pedal32:
Exemplo 54 - “Île de Feu I” - Acorde como seqüência harmônica - acordes de 4ªJ descendente
b) Acorde resultante de seqüência intervalar (movimento das vozes)
A análise vertical é quase sempre inerente à harmonia, porém, não se deve
obrigatoriamente realizá-la sempre dessa forma.
O resultado pode ser obtido através de contornos melódicos sobrepostos
entre si, gerando uma nova harmonia. No exemplo a seguir (c.18-19), temos um
31 No original em espanhol: El encadeamiento de acordes mediante el movimiento paralelo de las voces, da como resultado el deslizamiento de un acorde de forma cromática (secuencia real), o en función de las notas del modo elegido (secuencia modal), formando a su vez en ocasiones diversos diseños-pedal. (tradução do autor) 32 Cf .Item 2.3.1.
73
cânone de uma melodia proveniente do Canto Gregoriano, chamada Climacus
resupinus.
(...) Um cânone simétrico, na mão direita uma progressão de três notas (5ªJ e 3ªM), que são seqüenciadas. Na mão esquerda, uma progressão de quatro notas (3m, 6m e 3m) seqüenciadas – ambas notadas em grupos de seis – sugerindo o climacus resupinus do Canto Gregoriano.33 (MESSIAEN, 1950, p. 1)
Exemplo 55 - “Île de Feu I” - Ocorrência da melodia Climacus resupinus
Exemplo 56 - “Île de Feu I” - Cânone simétrico gerando sentido vertical
c) Sobreposição de quartas e quintas
Neste caso, o compositor cria acordes a partir dos intervalos de 4ª e 5ª (justas
ou como !) e os insere na peça na forma de encadeamento de acordes, transpondo-
os paralelamente em direção ascendente ou descendente. Eis alguns exemplos:
33
No original em francês: (...) Un canon symétrique de 3 en 3 notes (une quinte et une tierce majeure) à la m.d.; et à la m.g. de 4 en 4 notes (une tierce mineure, une sixte mineure, une tierce mineure), - de 6 en 6 valeurs – faisant penser au climacus resupinus du plain-chant (tradução do autor).
74
Exemplo 57 - “Île de Feu I” - Harmonia - sobreposição de quartas e quintas - c. 10 e 11
As cores diferenciadas (vermelho e azul) indicam encadeamentos paralelos.
No exemplo vermelho, os dois primeiros acordes são repetidos e, no terceiro, há
uma transposição de 2ªM abaixo. No azul, ocorrem os acordes paralelos em oitavas
(si – sol - si – sol - fá ), porém, com o seu centro móvel.34
Estes dois compassos, que encerram a seção, são compostos por 5 valores
de colcheia cada um, porém, notados de maneiras diferentes:
Compasso 1
Compasso 2
Novamente nota-se um padrão quanto à harmonia deste trecho. Os acordes
do contratempo seguem a estrutura harmônica de 4ªJ e 5ªdim, seguindo por uma
linha que, depois de repetida, é tocada em uma 2am abaixo.
No exemplo a seguir, o procedimento ocorre novamente, no acorde sol - dó
– sol através de uma transposição de segunda maior descendente apenas:
34 Legenda azul: No primeiro, terceiro e quarto acordes existe uma relação de segunda maior (ré , dó ). No segundo e no quinto, outra relação (fá e mi )
75
Exemplo 58 - “Île de Feu I” - Harmonia - sobreposição de quartas e quintas - c. 12
No compasso 20, a harmonização ocorre no próprio tema (ao invés do contra-
tema, como no exemplo 49). A sobreposição de intervalos de 4ª e 5ª está clara:
Exemplo 59 - “Île de Feu I” - Harmonia - sobreposição de quartas e quintas, c. 20
76
Quarto Estudo de Ritmo
“ÎLE DE FEU II”
77
3.2. “ÎLE DE FEU II”
O quarto estudo de ritmo, denominado “Île de Feu II”, fecha a seqüência dos
Quatre Études de Rythme, de Messiaen. Apesar de utilizar técnicas bastante
diferentes em cada uma, observa-se muitas semelhanças entre estas duas peças.
No decorrer da análise observaremos como Messiaen as unifica através de
certos procedimentos composicionais que, apesar de aparentarem grandes
diferenças entre si, apresentam uma raiz em comum.
3.2.1. Aspectos Gerais
Constituída de 138 compassos, o último estudo de ritmo é dividido em nove
seções e uma coda: a primeira seção possui 7 compassos; a segunda se inicia no
compasso 8, e segue até o 27; a terceira vai do compasso 28 ao 34; a quarta, do
compasso 35 ao 45; a quinta, do 46 ao 54; a sexta, do 55 ao 75; a sétima, do 76 ao
85; a oitava, do 86 ao 89; a nona, do 90 ao 131; e, por fim, a coda, do compasso 132
ao fim.
Podemos observar que existe um tema principal que será modificado e
alternado no decorrer da peça com as chamadas permutações simétricas35.
Se
çõe
s
Asp
ect
os
Ge
rais
Compasso Dinâmica Caráter Interversão
SEÇÃO I 1 – 7 mf, sf Vif et féroce (vivo e feroz)
SEÇÃO II 8 – 27 ff, f, p, m, f,
sfff I, II, III, IV
SEÇÃO III 28 – 34 ff, sff
SEÇÃO IV 35 – 45 mf, f, p, ff, V, VI, (VII),
35 Cf. Item 3.2.3.
78
sfff (VIII)
(elisão)
SEÇÃO V 46 – 54 f, p, ff, mf,
sfff VII, VIII
55 -
61 più f, ff, sff
Un peu moins vif (um
pouco menos vivo)
62 -
69
f, più f, mf,
p, ff
Encore un peu moins vif
(ainda menos vivo)
SEÇÃO VI 55 –
75
70 -
75 pp legato Vif (vivo)
SEÇÃO VII 76 – 85 ff, f, sfff, p,
fff, mf Vif et féroce (vivo e feroz) IX, X
fff
Un peu plus lent, et lourd
(um pouco mais lento e
pesado)
f Très vif (muito vivo
SEÇÃO VIII 86 – 89
mf, ff, sf, sff Vif et féroce (vivo e feroz)
più f, fff, sf,
sfff
Un peu moins vif (um
pouco menos vivo) SEÇÃO IX 90 – 131
f, p Vif (vivo)
più f, fff Un peu moins vif (um
pouco menos vivo)
fff, mf, sf, ff,
sff Modéré (moderado)
CODA 132 – 138
fff, sfff Très vif (muito vivo)
Tabela 12 - “Île de Feu II” - Aspectos Gerais
79
3.2.2. Tema unificador e suas reexposições e transformações
Assim como em “Île de Feu I”, o quarto estudo de ritmo de Messiaen nos
apresenta um tema que será reexposto diversas vezes ao longo da peça.
Exemplo 60 – “Île de Feu II” - Tema
Identifica-se a recorrência de ritmos não retrogradáveis em sua construção,
de forma similar à peça “Île de Feu I” (Ex. 22):
Exemplo 61 - “Île de Feu II” – ritmos não retrogradáveis contidos no tema
Pode-se observar uma semelhança com a estrutura de “Île de Feu I”, cujo
tema é reexposto algumas vezes, intercalando com outros materiais composicionais
(motivos percussivos, glissandi, cantos de pássaros, neumas etc).
80
Em “Île de Feu II”, o material composicional – utilizado na intercalação com as
reexposições do tema – constitui-se de permutações simétricas aplicadas sobre uma
série de doze sons.36
Primeiramente analisa-se a ocorrência de seis reexposições do tema
(excluindo a sua forma original).
a) Primeira reexposição do tema – Seção III: Compassos 28 ao 34
Exemplo 62 - “Île de Feu II” – Primeira reexposição do tema (c. 28 – 34)
A primeira reexposição do tema em “Île de Feu II” encontra-se na mão direita
no compasso 28, acompanhada com sua 7a Maior na voz inferior. Possui as mesmas
dinâmicas e articulações do tema original e segue até o compasso 34.
36 Cf. item. 3.2.3.
81
b) Segunda reexposição do tema – Seção VI: Compassos 55 ao 61
Exemplo 63 – “Île de Feu II” – Segunda reexposição do tema
No compasso 55 inicia-se a segunda reexposição do tema, desta vez tocada
pela mão esquerda no registro grave. Ocorre a harmonização de quartas (justas ou
aumentadas) e quintas (justas ou diminutas), próximo ao que ocorre em uma das
reexposições do tema I em “Île de Feu I”.37 As articulações e dinâmicas permanecem
como no tema original.
A mão direita deste trecho realiza semicolcheias harmonizadas com duas
notas cada uma. As apogiaturas inseridas para certos grupos de duas notas são as
mesmas sempre que o grupo se repete. Em “Île de Feu I” esse procedimento de
repetição das apogiaturas ocorre de forma semelhante na exposição do Tema II,
com a diferença que as semicolcheias aparecem sozinhas, e não são harmonizadas.
(ver ex. 33)
37 Cf. item 3.1.2. b)
82
c) Terceira reexposição do tema – Seção VII: Compassos 76 ao 85
Exemplo 64 - “Île de Feu II” – Terceira reexposição do tema
Todas as exposições do tema apareceram, até então, puras, sem a
intervenção de elementos composicionais distintos, com exceção do
acompanhamento que sempre aparece junto ao tema. Em sua terceira reexposição,
o tema ocorre na mão esquerda, em um registro extremamente grave, com o
dobramento de oitavas. Messiaen aplica este procedimento para que o tema seja
bem enfatizado.
Pela primeira vez na peça ocorre um procedimento semelhante ao que ocorre
no segundo estudo de ritmo pertencente à mesma obra, intitulado “Mode de Valeurs
et d’Intensités” (1949): a pauta convencional para o piano – na qual utiliza-se duas
claves – abre-se em três pautas38, nas quais serão tocadas as interversões IX e X,
simultaneamente com o tema, criando um pedal rítmico39. O ritmo do tema, apesar
de deslocado do compasso, permanece igual ao tema original.
Pelo fato de a densidade da peça ter mudado nesse ponto, o compositor
indica a dinâmica fff (além do dobramento de oitavas) para que o tema não
38 É importante ressaltar que Messiaen foi organista e que, naturalmente, ao escrever peças para piano, adaptou muitos aspectos da escrita organística para este instrumento, como por exemplo a abertura para três pautas, não muito comum da escrita pianística tradicional. Podemos citar diversas obras de grande importância no período composicional de Messiaen nas quais utiliza esse recurso: de Quatre Études de Rythme, “Mode de Valeurs et d’Intensités” (1949); de Vingt Regards sur l’Enfant Jésus (1944), “Regard du Père”, “l’Échange”, “Regard du Fils sur le Fils” e “Regard du Temps”; de Huit Préludes (1929), “La Colombe”, “Chant d’Extase dans un paysage Triste” e “Cloches d’Angoisse et Larmes d’Adieu” ; entre outras. 39 Cf. Item 2.1.4.
83
desapareça no meio dos outros dois elementos inseridos nas pautas superiores
(permutações simétricas IX e X).
d) Quarta reexposição do tema – Seção VIII: Compasso 86
Na quarta reexposição ocorre, pela primeira vez, a apresentação do tema de
forma parcial e com modificações em seu ritmo. As notas retiradas do tema principal
(incluindo as apogiaturas) aparecem como nos compassos 5 e 6 do tema original:
dó, mi, sol, ré, la, dó, ré, dó, sol, dó#, mi. O ritmo original é modificado,
transformando todos os valores em semicolcheias.
• FRAGMENTO DO TEMA ORIGINAL
(segunda metade – compassos 5 e 6)
Exemplo 65 - “Île de Feu II” – Quarta reexposição do tema – fragmento do tema original
• QUARTA REEXPOSIÇÃO DO TEMA
Exemplo 66 - “Île de Feu II” – Quarta reexposição do tema
84
e) Quinta reexposição do tema – Seção IX: Compassos 90 e 91
Na quarta exposição do tema, obtivemos a modificação rítmica de um
fragmento da segunda metade do tema (compassos 5 e 6). Na quinta reexposição
aplica-se o mesmo procedimento de redução a semicolcheias, porém, desta vez,
com a primeira metade do tema (c. 1 - 4).
• FRAGMENTO DO TEMA ORIGINAL
(primeira metade – compassos 1 a 4)
Exemplo 67 - “Île de Feu II” – Quinta reexposição do tema – fragmento do tema original
• QUINTA REEXPOSIÇÃO DO TEMA
Exemplo 68 - “Île de Feu II” – Quinta reexposição do tema
85
f) Sexta reexposição do tema – Coda: Compasso 132
Exemplo 69 - “Île de Feu II” – Sexta reexposição do tema
Na última reexposição do tema aplica-se exatamente o mesmo procedimento
que em d) Quarta reexposição do tema.
3.2.3. Permutações Simétricas (Interversões)
Prefiro insistir sobre um de meus outros elementos de minha linguagem, que é certamente um dos mais importantes: o emprego das permutações simétricas que encontramos em Chronocromie. Trata-se de um procedimento que corresponde exatamente ao que chamamos, dentro dos modos, de modos de transposição limitada e, no ritmo, de ritmos não retrogradáveis. É um procedimento que repousa sobre uma impossibilidade. São durações que se realizam dentro de uma certa ordem e que, não importa a direção em que lemos, sempre caímos na mesma ordem de valores. (...) Vocês sabem que com o número doze, comum no serialismo, é possível originar 479.001.600 permutações! Seriam necessários anos para escrevê-los. Ao passo que utilizamos o meu procedimento, podemos, com os números mais importantes – trinta e dois ou sessenta e quatro – obter as melhores permutações, eliminar as permutações secundárias que apenas causam repetições, e trabalhar sobre um número de permutações razoável, não muito longe do número de partida.40 (SAMUEL, 1999, p. 119 Apud CISCAR, 2003, p. 18)
40 No original em francês: Je préfère insister sur un de mes autres apports, qui est surement plus important: c'est l'emploi des permutations symétriques que l'on trouve dans ma Chronochromie. Il s'agît d'un procédé qui correspond exactement à ce que j'appelle, dans les modes, les modes à transpositions limitées, et, dans les rythmes, les rythmes non retrogradables. C'est un procédé que repose sur une impossibilité. Ce sont des durées qui se succèdent dans un certain ordre et que l'on relit toujours dans l'ordre de départ. (...) Vous savez qu'avec le chiffre douze, tellement aimé des sériels, le nombre des permutations est 479 001 600! Il faudrait des années
86
A permutação (ou interversão) consiste em modificar a ordem de termos
constituintes de uma série específica. Messiaen já havia utilizado essas
permutações em seu segundo estudo de ritmo, “Mode de Valeurs et d’Intensités”,
porém, em “Île de Feu II” utiliza-o de forma mais sistemática.
A técnica trata-se de permutar o centro de uma série, em formato de espiral,
partindo em direção às suas extremidades. Em Livre d’Orgue, Messiaen nomeia
esse processo de “permutação na forma de leque”, pois causa a sensação de “abrir
de dentro para fora” (JOHNSON, 1975, p. 109).
Exemplo 70 - Exemplo de Permutação
RESULTADO: G F H E I D J C K B L A
As permutações simétricas são utilizadas, em “Île de Feu II”, nas séries de
alturas e de durações (ritmo):
a) Permutação de alturas
A permutação rotacional ocorre, em alturas, a partir do sétimo item da série,
inserindo a espiral em sentido anti-horário. Aplicando esse procedimento, chegamos
a dez possíveis permutações da série.
pour les écrire. Tandis qu'avec mon procédé, on peut, avec des chiffres plus importants - trente-deux ou soixante-quatre - obtenir les meilleures permutations, supprimer les permutations secondaires qui n'aboutissent qu'à des répétitions, et travailler sur un nombre de permutations raisonnable, pas très loin du chiffre de départ (tradução do autor).
87
• Alturas - Permutação I
Exemplo 71 - “Île de Feu II” – Permutação I
Aplica-se o procedimento de permutação em espiral em sentido anti-horário, o
que resulta na próxima permutação da série.
Exemplo 72 - “Île de Feu II” – Procedimento de permutação I
• Alturas - Permutação II
Exemplo 73 - “Île de Feu II” – Permutação II
Aplica-se o procedimento de permutação em espiral em sentido anti-horário, o
que resulta na próxima permutação da série.
88
Exemplo 74 - “Île de Feu II” – Procedimento de permutação II
• Alturas - Permutação III
Exemplo 75 - “Île de Feu II” – Permutação III
Aplica-se o procedimento de permutação em espiral em sentido anti-horário, o
que resulta na próxima permutação da série.
Exemplo 76 - “Île de Feu II” – Procedimento de permutação III
• Alturas - Permutação IV
89
Exemplo 77 - “Île de Feu II” – Permutação IV
Aplica-se o procedimento de permutação em espiral em sentido anti-horário, o
que resulta na próxima permutação da série.
Exemplo 78 - “Île de Feu II” – Procedimento de permutação IV
• Alturas - Permutação V
Exemplo 79 - “Île de Feu II” – Permutação V
Aplica-se o procedimento de permutação em espiral em sentido anti-horário, o
que resulta na próxima permutação da série.
90
Exemplo 80 - “Île de Feu II” – Procedimento de permutação V
• Alturas - Permutação VI
Exemplo 81 - “Île de Feu II” – Permutação VI
Aplica-se o procedimento de permutação em espiral em sentido anti-horário, o
que resulta na próxima permutação da série.
Exemplo 82 - “Île de Feu II” – Procedimento de permutação VI
• Alturas - Permutação VII
91
Exemplo 83 - “Île de Feu II” – Permutação VII
Aplica-se o procedimento de permutação em espiral em sentido anti-horário, o
que resulta na próxima permutação da série.
Exemplo 84 - “Île de Feu II” – Procedimento de permutação VII
• Alturas - Permutação VIII
Exemplo 85 - “Île de Feu II” – Permutação VIII
Aplica-se o procedimento de permutação em espiral em sentido anti-horário, o
que resulta na próxima permutação da série.
92
Exemplo 86 - “Île de Feu II” – Procedimento de permutação VIII
• Alturas - Permutação IX
Exemplo 87 - “Île de Feu II” – Permutação IX
Aplica-se o procedimento de permutação em espiral em sentido anti-horário, o
que resulta na próxima permutação da série.
Exemplo 88 - “Île de Feu II” – Procedimento de permutação IX
• Alturas - Permutação X
93
Exemplo 89 - “Île de Feu II” – Permutação X
Na décima permutação, ao aplicar o procedimento de permutação, retornará à
seqüência inicial, de um a doze.
Exemplo 90 - “Île de Feu II” – Procedimento de permutação X
RESULTADO:
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
* * *
É importante ressaltar que Messiaen nos apresenta a primeira interversão de
altura como seqüência numérica do número um ao doze, porém, suas notas
parecem não possuir alguma relação com a numeração que lhes foi atribuída.
Exemplo 91 - “Île de Feu II” – Interversão I
94
Ao permutar todas as séries, notamos que a décima interversão é a escala
cromática ascendente de dó a si:
Exemplo 92 – Escala cromática ascendente de dó a si
Como foi abordado no capítulo sobre modos de transposição limitada,
podemos separá-los por grupos de 2aM, 3am, 3aM e !. Ao observarmos essa
seqüência, nota-se que Messiaen inicia os modos a partir do intervalo de 2aM, que
resulta na escala de tons inteiros. A escala cromática, utilizada como base das
interversões em “Île de Feu II”, poderia representar o modo que viria antes do
MODO I, aplicado por Messiaen, através dos grupos de segundas menores, pois
segue o mesmo princípio de simetria aplicado aos modos de transposição limitada
(nesse caso, com apenas uma transposição possível: a primeira transposição,
também chamada de transposição original).
Aplicando à escala cromática o procedimento de permutação em sentido anti-
horário, obtemos a seqüência de notas que diz respeito à primeira interversão de
alturas:
Exemplo 93 – Interversão I
Este é o procedimento a partir do qual Messiaen se apóia para chegar na
escala utilizada em “Île de Feu II”, pois é a partir dela (e não da escala cromática,
como na décima interversão) que nomeará a seqüência de um a doze, atribuindo-lhe
a função de interversão original (também chamada de primeira interversão).
b) Permutação de durações (ritmo)
95
A serialização de alturas é realizada a partir das notas de um certo modo ou
escala, atribuindo-lhe uma seqüência numérica. Neste caso, a escala cromática
possui doze sons: de dó a si. Por este fato, Messiaen opta por serializar os ritmos
também doze vezes.
A maneira que encontrou de serializá-los parte de um valor rítmico que é
tomado como unidade principal: a semicolcheia ( ).
O número 1 da série será atribuído a ele; o número 2, a dois valores de
semicolcheia (conseqüentemente, uma colcheia); o número 3 a três valores de
semicolcheia (logo, uma colcheia pontuada; e assim por diante).
A seguir, tabela referente aos valores rítmicos serializados:
Exemplo 94 – - “Île de Feu II” – Tabela geral de serialização de ritmos
A permutação de ritmos difere em apenas um aspecto em relação à de
alturas: a ordem inicial da série (chamada de primeira interversão ou permutação)
inicia com a seqüência descendente de doze a um.
A seguir, temos as permutações simétricas referentes ao ritmo em “Île de Feu
II”:
96
• Ritmos - Permutação I
Exemplo 95 - “Île de Feu II” – Ritmos - Procedimento de permutação I
• Ritmos - Permutação II
Exemplo 96 - Ritmos - Procedimento de permutação II
• Ritmos - Permutação III
Exemplo 97 - Ritmos - Procedimento de permutação III
97
• Ritmos - Permutação IV
Exemplo 98 - Ritmos - Procedimento de permutação IV
• Ritmos - Permutação V
Exemplo 99 - Ritmos - Procedimento de permutação V
• Ritmos - Permutação VI
Exemplo 100 - Ritmos - Procedimento de permutação VI
98
• Ritmos - Permutação VII
Exemplo 101 - Ritmos - Procedimento de permutação VII
• Ritmos - Permutação VIII
Exemplo 102 - Ritmos - Procedimento de permutação VIII
• Ritmos - Permutação IX
Exemplo 103 - Ritmos - Procedimento de permutação IX
99
• Ritmos - Permutação X
Exemplo 104 - Ritmos - Procedimento de permutação X
c) Articulações e dinâmicas
As articulações e dinâmicas inseridas na série não sofrem o procedimento de
permutação, como nas alturas e durações. Por existirem apenas quatro articulações
(três articulações mais a ausência do sinal de articulação) e cinco dinâmicas (p, mf, f,
ff, sfff), o compositor opta por inseri-las na série de forma fixa. Todas as ocorrências
de dinâmica e articulação são atribuídas a certa altura (que já é pré-associada a um
ritmo). No item 3.2.5. apresenta-se detalhadamente a tabela referente à serialização
de alturas, durações (ritmo), intensidades (dinâmicas) e articulações.
3.2.4. Tabelas resultantes de permutações simétricas
INTERVERSÃO I
Altura 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
Duração 6 7 5 8 4 9 3 10 2 11 1 12
Intensidade ff ff p mf p mf f f f ff ff sfff
Articulação s.a. s.a. s.a. s.a. s.a.
Tabela 13 - “Île de Feu II” - Permutação de alturas, durações, intensidades e articulações - Interversão I
100
RESULTADO:
Exemplo 105 - Interversão I
INTERVERSÃO II
Altura 7 6 8 5 9 4 10 3 11 2 12 1
Duração 3 9 10 4 2 8 11 5 1 7 12 6
Intensidade f mf f p f mf ff p ff ff sfff ff
Articulação s.a. s.a. s.a. s.a. s.a.
Tabela 14 - “Île de Feu II” - Permutação de alturas, durações, intensidades e articulações - Interversão II
RESULTADO:
Exemplo 106 - Interversão II
INTERVERSÃO III
Altura 10 4 3 9 11 5 2 8 12 6 1 7
Duração 11 8 5 2 1 4 7 10 12 9 6 3
Intensidade ff mf p f ff p ff f sfff mf ff f
Articulação s.a. s.a. s.a. s.a. s.a.
Tabela 15 - “Île de Feu II” - Permutação de alturas, durações, intensidades e articulações - Interversão III
101
RESULTADO:
Exemplo 107 - Interversão III
INTERVERSÃO IV
Altura 2 5 8 11 12 9 6 3 1 4 7 10
Duração 7 4 10 1 12 2 9 5 6 8 3 11
Intensidade ff p f ff sfff f mf p ff mf f ff
Articulação s.a. s.a. s.a. s.a. s.a.
Tabela 16 - “Île de Feu II” - Permutação de alturas, durações, intensidades e articulações - Interversão IV
RESULTADO:
Exemplo 108 - - Interversão IV
INTERVERSÃO V
Altura 6 9 3 12 1 11 4 8 7 5 10 2
Duração 9 2 5 12 6 1 8 10 3 4 11 7
Intensidade mf f p sfff ff ff mf f f p ff ff
Articulação s.a. s.a. s.a. s.a. s.a.
Tabela 17 - “Île de Feu II” - Permutação de alturas, durações, intensidades e articulações - Interversão V
102
RESULTADO:
Exemplo 109 - Interversão V
INTERVERSÃO VI
Altura 4 11 8 1 7 12 5 3 10 9 2 6
Duração 8 1 10 6 3 12 4 5 11 2 7 9
Intensidade mf ff f ff f sfff p p ff f ff mf
Articulação s.a. s.a. s.a. s.a. s.a.
Tabela 18 - “Île de Feu II” - Permutação de alturas, durações, intensidades e articulações - Interversão VI
RESULTADO:
Exemplo 110 - - Interversão VI
INTERVERSÃO VII
Altura 5 12 3 7 10 1 9 8 2 11 6 4
Duração 4 12 5 3 11 6 2 10 7 1 9 8
Intensidade p sfff p f ff ff f f ff ff mf mf
Articulação s.a. s.a. s.a. s.a. s.a.
Tabela 19 - “Île de Feu II” - Permutação de alturas, durações, intensidades e articulações - Interversão VII
103
RESULTADO:
Exemplo 111 - Interversão VII
INTERVERSÃO VIII
Altura 9 1 8 10 2 7 11 3 6 12 4 5
Duração 2 6 10 11 7 3 1 5 9 12 8 4
Intensidade f ff f ff ff f ff p mf sfff mf p
Articulação s.a. s.a. s.a. s.a. s.a.
Tabela 20 - “Île de Feu II” - Permutação de alturas, durações, intensidades e articulações - Interversão VIII
RESULTADO:
Exemplo 112 - Interversão VIII
INTERVERSÃO IX
Altura 11 7 3 2 6 10 12 8 4 1 5 9
Duração 1 3 5 7 9 11 12 10 8 6 4 2
Intensidade ff f p ff mf ff sfff f mf ff p f
Articulação s.a. s.a. s.a. s.a. s.a.
Tabela 21 - “Île de Feu II” - Permutação de alturas, durações, intensidades e articulações - Interversão IX
104
RESULTADO:
Exemplo 113 - - Interversão IX
INTERVERSÃO X
Altura 12 10 8 6 4 2 1 3 5 7 9 11
Duração 12 11 10 9 8 7 6 5 4 3 2 1
Intensidade sfff ff f mf mf ff ff p p f f ff
Articulação s.a. s.a. s.a. s.a. s.a.
Tabela 22 - “Île de Feu II” - Permutação de alturas, durações, intensidades e articulações - Interversão X
RESULTADO:
Exemplo 114 - - Interversão X
Ao permutar a décima interversão, a série retornará às mesmas notas da
primeira interversão.
105
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como pudemos constatar ao longo desse estudo sobre as peças “Île de Feu I”
e “Île de Feu II”, existem aspectos que as conectam, apesar de suas diferenças
aparentes.
Em “Île de Feu I”, observamos as técnicas adotadas por Messiaen, que já
haviam sido utilizadas anteriormente em outras obras: os ritmos não retrogradáveis,
os modos de transposição limitada, a harmonia em quartas e quintas, os cantos de
pássaros etc.
Cabe ressaltar que as duas técnicas mais relevantes de sua escrita
composicional foram os modos de transposição limitada e os ritmos não
retrogradáveis, que possuem uma característica em comum: a simetria.
Messiaen dá muita importância a essa simetria abordada em suas técnicas,
tendo em vista o capítulo que abre o Téchnique de mon Langage Musical, que fala
justamente do Charme das Impossibilidades, assim chamado por ele. Esse
“charme”, que diz respeito à simetria à qual estamos nos referindo, reside em certas
impossibilidades matemáticas nos domínios modal e rítmico. Os modos não podem
se transpor até certo ponto pois retornarão às mesmas notas; e os ritmos, ao se
retrogradarem, retornarão também à mesma ordem de valores inicialmente dada.
(MESSIAEN, 1944, p. 6).
O “Charme das Impossibilidades” pode ser encontrado nas permutações
simétricas em “Île de Feu II”, pois partem do mesmo princípio: ao aplicar o
procedimento certo número de vezes, a série, neste caso, retornará à mesma
seqüência inicialmente apresentada.
Curiosamente, “Île de Feu I” e “Île de Feu II” foram duas peças contidas nos
Quatre Études de Rythme, na primeira e última posições, respectivamente. Este fato
nos revela algo de muita importância: a simetria utilizada nos modos de transposição
limitada e nos ritmos não retrogradáveis retrata apenas um esboço do que viria em
“Île de Feu II”, na qual é inserida como principal foco e objetivo da peça, de maneira
sistematizada.
Outro aspecto em comum entre as duas peças diz respeito à estruturação de
cada uma. Em “Île de Feu I” existe um tema que se intercala com materiais
106
compositivos (motivos pianísticos, cantos de pássaros, etc.); a peça “Île de Feu II”,
por sua vez, nos apresenta a estrutura com um tema intercalado com outros
materiais compositivos: as permutações simétricas, ou interversões.
Através deste trabalho, observamos os aspectos composicionais que
Messiaen utilizou antes desse período de experimentação, e a maneira como
aplicou em sua música mantendo a relação de simetria, a partir da qual foram
gerados, e que foi utilizada como uma das principais ferramentas em suas
composições.
107
4. BIBLIOGRAFIA
• Livros JOHNSON, Robert S. Messiaen. Los Angeles: University of California Press, 1980. BERRY, Wallace T. Structural Functions in Music. Nova Iorque: Dover Publications, 1987. GRIFFITHS, Paul. A Música Moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 1987. LESTER, Joel. Analytic Approaches to Twentieth-Century Music. Nova Iorque: W. W. Norton & Company, 1989. MESSIAEN, Olivier. Téchnique de mon Langage Musical. Paris: Leduc, 1944. SCHUON, Frithjof. O Homem no Universo. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001. • Monografias (teses de doutorado e dissertações de mestrado) STOLP, Marelli. Messiaen's Approach To Time In Music. Pretoria: Universidade de Pretoria, 2006. CISCAR, Francisco J. C. Aproximación Al Lenguaje De Olivier Messiaen: Análisis De La Obra Para Piano Vingt Regards Sur L’enfant - Jesús. Espanha: Universidade de Valencia, 2004. CALEGARI, Reinaldo J. Olivier Messiaen e a música para o fim do Tempo: Aspectos de comunicação e linguagem composicional. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica, 2003. • Sites Malcolm Ball - Messiaen. França, 2008. Disponível em: <http://www.oliviermessiaen.org/messiaen2index.htm>. Acesso em: 10 mar. 2008. Ircam Centre Pompidou – Base de Documentation Sur la Musique Contemporaîne. França, 2008. Disponível em: <http://brahms.ircam.fr/index.php?id=2276>. Acesso em: 13 mai. 2008. Music Teachers Online Journal. Inglaterra, 2001. Disponível em: <http://www.musicteachers.co.uk/journal/index.php?issue=2000-10&file=messiaen&page=1>. Acesso em: 13 mai. 2008.
108
• Partituras MESSIAEN, Olivier. Mode de Valeurs d’Intensité. Paris: Leduc, 1949. 1 partitura. Piano. MESSIAEN, Olivier. Île de Feu I. Milão: Éditions Durand, 1950. 1 partitura. Piano. MESSIAEN, Olivier. Île de Feu 2. Milão: Éditions Durand, 1950. 1 partitura. Piano. MESSIAEN, Olivier. Neumes Rythmiques. Paris: Leduc, 1950. 1 partitura. Piano. • Vídeo OLIVIER MESSIAEN: La Liturgie de Cristal. Direção: Olivier Mille. France: Juxtapositions, 2002. 1 filme (107 minutos), DVD, son, color.
• Discografia MESSIAEN, Olivier. LORIOD, Yvonne. Vingt Regards sur l’Enfant Jésus, Petites Esquisses d’Oiseaux, Huit préludes, Quatre Études de Rythme. Paris: Erato Disques S.A., 1968. 3CD. MESSIAEN, Olivier. LORIOD, Yvonne. Messiaen Edition. Paris: Warner Classics, 2005, 18CD. MESSIAEN, Olivier, UGORSKI, Anatol. Catalogue d’oiseaux, La Fauvette des Jardins. Berlin: Deutsche Grammophon, 1993. 3CD.
109
5. ANEXO 1
MESSIAEN, Olivier. Île de Feu I. Milão: Éditions Durand, 1950. 1 partitura. Piano.
110
111
112
113
114
115
6. ANEXO 2
MESSIAEN, Olivier. Île de Feu 2. Milão: Éditions Durand, 1950. 1 partitura. Piano.
116
117
118
119
120
121
122
123
124
125
126