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SANTIAGO DE COMPOSTELA: HISTÓRIA E CONTEMPORANEIDADE
Flavia de Brito Panazzolo1
Eduardo Taborda de Jesus2
RESUMO
Apresentar a história do apóstolo São Tiago para situar o leitor no contexto das
peregrinações a Santiago de Compostela e analisar como a Igreja Católica, através dos
bispos espanhóis e franceses, compreende a hospitalidade desenvolvida pelos autóctones
durante o Caminho de Santiago. A reflexão teórica aqui proposta confronta o material
histórico pesquisado com documentação recente publicada, que visa orientar os moradores
e trabalhadores das regiões em que passam esses peregrinos. Conclui-se que essa
peregrinação – mesmo tendo tido início ainda na idade média – permanece atual e no
âmbito da hospitalidade recebe atenção da instituição religiosa envolvida não apenas no
espaço da catedral de Santiago, mas também no percurso que leva os peregrinos até seu
destino.
PALAVRAS-CHAVE: Hospitalidade, Peregrinação, Religião Católica, Santiago de
Compostela, Espanha.
RESUMO EXPANDIDO
Uma breve contextualização histórica do personagem de São Tiago é realizada para orientar
o leitor para qual local, afinal, se deslocam os peregrinos que vão a Santiago de
Compostela, na Espanha. Esse resgate apresenta informações da vida e morte de São Tiago,
bem como particularidades que tornaram Compostela um centro de peregrinação católica
1 Mestra. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, PUCRS, Porto Alegre-RS, Brasil.
Currículo: http://lattes.cnpq.br/8819645761578946 E-mail:[email protected]
2 Mestre. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Turismo e Hospitalidade, Universidade de Caxias
Do Sul. Currículo: http://lattes.cnpq.br/2909404522185386 E-Mail: [email protected]
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ainda na idade média. Após situar o leitor no tempo e espaço do objeto alvo do estudo, fez-
se a análise sobre a forma como a Igreja Católica, na voz dos bispos franceses e espanhóis
das localidades que pertencem ao Caminho de Santiago, entendem e recomendam que seja
pensado e executado algumas das ações de hospitalidade durante o Caminho, por parte dos
agentes envolvidos diretamente com os peregrinos. Esse levantamento focou nos aspectos
da hospitalidade humana e hospitalidade espiritual apresentada pelos bispos e a importância
para a fé católica que exista a chamada ‘hospitalidade cristã’ no percurso do Caminho de
Santiago.
Tiago foi um dos doze apóstolos de Jesus Cristo, e conforme a história foi canonizado e
chamado Santiago Maior para se diferenciar dos outros santos com o mesmo nome. Tiago
era filho de Zebedeu e Salomé, e irmão do apóstolo São João Evangelista. Era pescador
igual seu pai e irmão. Trabalhava no Mar da Galileia com André e Simão Pedro quando
fora chamado por Jesus. (Mateus, 4,21-22; Lucas,5,10). Segunda a tradição bíblica, Tiago
era um dos discípulos mais próximos de Jesus de Nazaré e esteva presente em várias
ocasiões importantes. Após a ressurreição de Cristo, os apóstolos saíram da Judéia e foram
espalhar a palavra de Deus em terras desconhecidas. Tiago, frustrado com as perseguições
que Cristo sofreu, decidiu seguir para um lugar onde não houvesse perseguições, e decidiu
que Finisterra, região a oeste da Europa, seria um bom lugar para começar. Após passar por
muitas dificuldades, Tiago chegou a Íria Flavia, onde decidiu começar seu trabalho de
evangelização. Durante seis anos permaneceu nesta região, e decidiu que seria a hora de
retornar a Palestina para contar como foi seu processo de evangelização nesta localidade.
Chegando a Jerusalém foi perseguido por Herodes Agrippa, preso e sentenciado à morte por
decapitação, no ano de 44 D.C. Seus restos mortais foram abandonados no deserto, e
recolhidos pelos seus amigos da região da Íria Flavia que o embalsamaram e o levaram até
a Espanha, deixando-o em uma tumba discreta na região.
A tradição jacobeia ou Revelatio, do milagroso descobrimento da tumba de São Tiago,
registrada em vários textos medievais como nas fontes escritas Martirológicos de Floro de
Lyon (cerca de 830 d.c.) (Menaca, 1995, p. 223) que conta o relato maravilhoso que o
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ermitão de nome Pelágio. O ermitão Pelágio, era um homem solitário da região de Solovio,
observou durante algumas noites várias luzes estranhas que estavam sobre um bosque
próximo a sua casa. Pelágio interpretou estas luzes como sendo um aviso do céu e logo em
seguida relatou o acontecido ao Bispo Teodomiro de Iria, que era na época a mais alta
autoridade religiosa da região. Conforme a tradição, após alguns dias de jejum e orações, o
Bispo Teodomiro entrou no bosque em busca de uma resposta e encontrou o sepulcro com
os restos mortais do apóstolo São Tiago. Neste momento o mito acaba de nascer. (Lopez
Alsina, 1988, p.119-120). Nesta época não importava se realmente o corpo ali encontrado
fosse de São Tiago Maior, mas a presença de um corpo apostólico elevava a importância da
localidade. Em seguida, a notícia foi levada ao Rei Afonso II que mandou construir uma
capela e um monastério na região. Logo após as construções ficarem prontas o próprio Rei
Alfonso II realizou uma caminhada até o local, nascendo assim um dos centros mais
importantes de peregrinação: o Caminho de Santiago de Compostela. (Singul, 1999, p.39)
No início do Caminho de Santiago, entre os anos de 820-830, os primeiros peregrinos
foram as personalidades da corte asturiana e o próprio Rei Alfonso II. O início da cidade
com capacidade para receber as pessoas está ligado diretamente com o fenômeno da
peregrinação. (Singul, 1999, p.40). No ano de 844, outro fenômeno aconteceu na região de
Santiago de Compostela. O Rei Ramiro I de Astúrias (católico) se enfrentou com as tropas
muçulmanas de Abderramán II em clara desvantagem numérica. Em plena luta, o apóstolo
Santiago aparece sobre um cavalo branco, e ajuda os católicos na luta, fazendo-os
vencedores. Assim toda a Europa se voltava ao culto e aos restos mortais do apóstolo,
levando milhares de peregrinos até a basílica de Santiago. (Singul, 1999, p. 42)
Durante o século X, já temos notícia dos primeiros peregrinos estrangeiros. Em Compostela
documenta-se a presença de Bretenaldo franco, vizinho da cidade em 930, habitante de
terra própria, na qual constrói uma vivenda (Portela & Pallares, 1993, p. 120-121). Um
grupo grande de clérigos francos também cruzou no ano de 950 o norte da península em
direção a Compostela, além dos peregrinos aristocratas de várias regiões. Existem muitos
caminhos para se chegar até a cidade de Santiago, e a mais tradicional é a rota que parte da
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França, de Saint-Jean-Pied-de-Port, que fica aproximadamente 868 quilômetros a pé
chamado caminho primitivo, que era uma antiga rota comercial romana. Outras rotas
também se tornaram importantes, como o caminho Português, o caminho Inglês, o caminho
do Norte, entre outros. Todas as rotas possuem uma história, com caminhos antigos, vilas
de pescadores ou agricultores, igrejas, monastérios, lindas paisagens e muitas comunidades.
Estas longas caminhadas são chamadas de peregrinação, que deriva do vocabulário latino
peregrinus que quer dizer: “O estrangeiro, aquele que vive alhures e que não pertence à
sociedade autóctone estabelecida, ou seja, é aquele que percorre um espaço e, neste espaço,
encontra o Outro”. (Dupront, 1987).
A peregrinação além de uma jornada física e espiritual está presente em várias religiões e
culturas. A pessoa que se sujeita a esta caminhada, busca um ritual que envolve devoção e
culto. Busca encontrar um “outro”, algo que possa responder as suas perguntas e dúvidas.
Conforme Steil (2003: 30): “Como se pode observar, se, por um lado, a peregrinação se
exprime na história como um exercício de encontro com o ‘outro’, o estrangeiro, por outro,
aponta para a busca mística de si, como uma jornada de santificação que encontra seu ponto
de chegada no reconhecimento de uma divindade que se manifesta no interior de cada
devoto”. O ato de peregrinar é considerado por muitos, inerente à natureza humana.
(JARRET, 2000). Encontra-se em diversas religiões, desde os egípcios que peregrinavam
até ao Oráculo de Amon, os gregos ao Oráculo de Apollo, os astecas à Quetzalcôatl, os
incas à cidade de Cuzco, entre outros. Mas foi com o surgimento das religiões monoteístas
que as peregrinações tiveram um grande impulso, mudando os objetivos e interesses.
(Jarret, 2000).
Na contemporaneidade, e de forma mais específica na contemporaneidade do Caminho de
Santiago, a religião católica busca utilizar de seus locais sagrados, e dos caminhos que
levam a esses locais, momentos de evangelização e formação católica. Para tal, uma das
formas mais condizentes com a própria prática da religiosidade cristã é a prática da
hospitalidade dos agentes envolvidos no Caminho. Dessa forma, a hospitalidade na Igreja
Católica encontra uma maneira peculiar de ser pensada para o peregrino. (De Jesus, 2014).
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Reunidos em 2017, os bispos espanhóis e franceses das localidades pertencentes ao
Caminho de Santiago divulgaram a “Carta pastoral de los obispos del Camino de Santiago
de Francia y España”. Essa carta tem como um dos objetivos delinear o significado da
hospitalidade cristã, e de que forma essa pode transmitir os valores religiosos a que o
Caminho de Santiago se origina. Encontra-se descrito que “En los caminos de
peregrinación, como el de Santiago de Compostela, se oferece la hospitalidad, humana y
espiritual, a muchos hombres y mujeres que buscan a Dios...” (2017:05). Os bispos do
Caminho de Santiago iniciam sua carta por diferenciar as interpretações entre a
hospitalidade humana e a hospitalidade espiritual.
Essa Hospitalidade espiritual é necessária, na visão dos bispos, “cuando los heridos en el
alma emprenden largas peregrinaciones a pie, en caballo o bicicleta, desean reencontrar la
esperanza, equilibrio y sentido en su vida, presienten que se abrirá una puerta, la puerta de
la misericordia, cuyo nombre es: Hospitalidad.” (2017, p.5). Os feridos da alma que se
lançam em caminho e que buscam equilíbrio e sentido para sua vida são os peregrinos-alvo
dessa Hospitalidade que não deseja apenas propiciar um bem humano e físico, mas algo
que também possa curar as “feridas da alma” desse viajante. Por ser um Caminho que leva
a uma localidade católica, os bispos aprofundam a ideia da hospitalidade espiritual a uma
Hospitalidade Cristã. Essa Hospitalidade Cristã deve fazer com que o peregrino se sinta
acolhido e reconfortado em suas singularidades religiosas, num caminho que tem origem no
Cristianismo. Essas ações são “signos externos de la hospitalidad cristiana deben ser
visibles en los albergues, sin ser exagerados. Tiene que haber crucifijos en la entrada y en
las salas, alguna imagen del apóstol Santiago, y folletos explicando su vida. Alguna imagen
de la Virgen, si es posible que sea la representación de alguna Virgen local. Biblias - en
varios idiomas - y, si se quiere, ejemplares de los últimos escritos de los papas.” (2017, p.
8-9).
Por ser um caminho católico, seria coerente que os agentes envolvidos no processo
tivessem algum mínimo de formação para compreender o significado desses deslocamentos
para a matiz religiosa envolvida. Mesmo aceitando-se que nem todos os viajantes são
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católicos, essa peregrinação está envolta em um ambiente do catolicismo, e para esses que a
ela pertencem é proposto diferenciais simbólicos que dão, no decorrer da peregrinação,
possibilidades de encontro consigo mesmo e com novas formas de encarar a vida. “El mero
hecho de estar bautizado y ser un católico practicante no es suficiente para ser «hospitalero
cristiano». Es necesaria una formación que permita profundizar en la fe propia: ¿Soy capaz
de hablar de Dios? Y ¿con sencillez de corazón y coherencia de vida ante Dios? (2017,
p.11).
O risco de confundirem-se as ações católicas de hospitalidade com práticas automáticas
e/ou invasivas também foram alertadas pelos bispos nessa Carta. Para eles “El hospitalero
cristiano no es un periodista ni un psicólogo. Los periodistas exigen respuestas inmediatas,
opiniones sobre la marcha, que el entrevistado aporte, sin reflexionarlo, sus sentimientos
acerca del hecho que acaba de ocurrir, que lo haga en caliente” (2017, p. 11). Entende-se a
necessária liberdade que o peregrino deve ter de, ao seu tempo e ao seu próprio ritmo,
compreender todas as fases relativas a suas buscas nesse deslocamento. Uma palavra dita
de forma equivocada ou um julgamento apressado pode influenciar negativamente nas
compreensões do viajante, que acaba por atrapalhar o encontro das respostas internas da
pessoa. “El hospitalero cristiano tiene que dar testimonio de su fe de dos formas por lo
menos. En primer lugar, por el ejemplo. Y no sólo por el hecho de estar en un albergue
«cristiano». Su acogida debe de ser abierta, fraternal y alegre para todos y cualquiera que
llegue, sin distinciones, aunque el caminante esté de mal humor, tenga mal carácter, huela
mal, sea hasta agresivo. En cada peregrino que aparezca, el hospitalero verá a Cristo, verá
la obra del Creador, y lo acogerá en su casa.” (2017, p. 12).
É proposto a existência de um olhar diferenciado por parte do peregrino, para que esse
entenda a ação de hospitalidade e acolhida que ocorre durante o Caminho como uma forma
de identificação divina através de atos humanos daqueles que entram em contato com o
peregrino durante o deslocamento. “En el camino hacia Santiago, el caminante, el
extranjero, debe percibir que está en marcha hacia la esperanza. Cada etapa le acerca a la
esperanza. Cada hospitalero es un testigo de esa esperanza, del amor de Dios, del perdón
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del pecado, de la humanidad redimida. Su forma de ser, las modalidades de su acogida, la
alegría profunda que debe irradiar, testimonian su fe.” (2017, p. 13).
Desde o século XII, a peregrinação a Santiago de Compostela atingiu grande importância
na Europa, alterando profundamente o sentido da busca pela fé. O turismo religioso e de
peregrinação movimenta hoje milhões de pessoas, e Santiago de Compostela se tornou um
lugar de fé tornando legítimo o culto a Jacobeu e a peregrinação. O peregrino é aquela
pessoa que cuja motivação pessoal é a fé, que através do esforço físico percorrido por rotas
estabelecidas busca chegar à reta final, alcançar a Catedral de Santiago. Para se alcançar o
destino final, o peregrino percorre a pé muitos quilômetros desde a cidade que se escolhe
começar até a tão desejada Santiago. Mas para isso, o peregrino conta com hospedagens ao
longo das cidades, que oferecem conforto para o corpo e para a alma.
Essas hospedagens recebem orientações por parte da instituição religiosa envolvida – no
caso o catolicismo – para que exista uma coerência entre o que o peregrino encontra pelo
caminho e o fato de realizar um deslocamento que nasce e se mantém dentro de uma
religião. Percebe-se que nem todos os peregrinos são católicos, mas por ser um caminho
que conduz a uma Catedral católica, os bispos franceses e espanhóis assumem esse cuidado
ao orientar algumas diretrizes aos moradores e trabalhadores das regiões por onde passam
esses viajantes.
REFERÊNCIAS
Carta Pastoral de Los Obispos Del Camino de Santiago de Francia Y España. (2017).
Acogida y hospitalidad en el camino de Santiago. Fundación Catedral de Santiago.
Santiago de Compostela.
De Jesus, E. T. (2014). História e gestão do turismo católico: Pastoralis quoad turismum.
Porto Alegre: DM.
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Jarret, B. (2000) The Catolic Encyclopedia. In: New Advent. Disponível em:
www.newadvent.org.
López Alsina, F.A. (1993). Sé Compostelá e a Catedral de Santiago na Idade Media. A
Catedral de Santiago. (Obra coletiva) Laracha: Xuntanza Editorial, p.13-41.
Menaca, M.D (1995). Dos problemas diferentes sobre Santiago en España, su predicación y
su sepultura. Actas... Congresso de Estudios Jacobeos. Santiago de Compostela:
Xunta de Galicia. p.209-236.
Portela, E., Pallares, M.C. (1993). Al final del Camino. La acogida de peregrinos em
Compostela. De Galicia em la Edad Media. Sociedad, Espacio y Poder. Santiago:
Xunta de Galicia, 1993, p.119-135.
Singul, F. (1999), O Caminho de Santiago: a peregrinação ocidental na Idade Média, Rio
de Janeiro: UERJ.