UNIVERSIDADE DE SO PAULO
ESCOLA DE COMUNICAES E ARTES CENTRO DE ESTUDOS LATINO AMERICANOS SOBRE CULTURA E COMUNICAO
Reflexes acerca da integrao cultural latino-americana
O caso da Telesur
Guilherme Gonsales Rocca e Souza
Abril de 2017
Trabalho de concluso de curso apresentado como requisito parcial para obteno do ttulo de Especialista em Mdia, Informao e Cultura sob orientao do Prof. Dr. Alexandre Barbosa
Reflexes acerca da integrao cultural latino-americana: o caso da Telesur. 1
Guilherme Gonsales Rocca e Souza 2
RESUMO
Na dcada de 2000, os governos progressistas latino-americanos tiveram a chance de desenvolver projetos de integrao para alm das questes comerciais e aduaneiras, caracterstica principal da integrao experimentada na dcada anterior. A Aliana Bolivariana para as Amricas (Alba) um bloco que segue as aspiraes bolivarianas de seu lder, Hugo Chvez, como objetivo fundamental de sua poltica externa para a regio. Nesse contexto, surge a emissora de televiso multiestatal Telesur como poltica pblica de comunicao e ferramenta contra-hegemnica para integrao cultural latino-americana. Diante dos avanos neoliberais e suas rupturas, entretanto, passa-se a questionar o papel Telesur como fator de integrao cultural na regio.
Palavras-chave: Telesur; Unasul; Integrao regional; Integrao cultural; Brasil; Venezuela
RESUMN
En la dcada de 2000, los gobiernos progresistas de Amrica Latina tuvieron la oportunidad de desarrollar proyectos de integracin ms all de las cuestiones de comercio y aduanas, principal caracterstica de la integracin experimentada en la dcada anterior. La Alianza Bolivariana para las Amricas (Alba) es un bloque que sigue las aspiraciones bolivarianas de su lder, Hugo Chvez, como objetivo primero de su poltica exterior para la regin. En este contexto, apareci la estacin de televisin multiestatal "Telesur" como poltica de comunicacin pblica y herramienta contrahegemnica para la integracin cultural latinoamericana. Sin embargo, los avances neoliberales y sus rupturas ponen en cuestin el rol de Telesur como factor de integracin cultural en la regin.
Palabras clave: Telesur, Unasur, Integracin regional; Integracin cultural; Brasil; Venezuela
ABSTRACT
In the 2000s, progressive Latin American governments had the chance to develop integration projects beyond trade and customs issues, the main feature of the integration experienced in the previous decade. The Bolivarian Alliance for the Americas (Alba) is a bloc that follows the Bolivarian aspirations of its leader, Hugo Chvez, as a fundamental objective of its foreign policy for the region. In this context, the multistate television station "Telesur" emerges as a
1 Trabalho de concluso de curso apresentado como condio para obteno do ttulo de Especialista em Mdia, Informao e Cultura. 2 Bacharel em Relaes Internacionais pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo e ps-graduado em Mdia, Informao e Cultura pelo Celacc - ECA/USP
1
communication public policy and a counter-hegemonic tool for Latin American cultural integration. In the face of neoliberal advances and their ruptures, however, Telesur's role is questioned as a factor of cultural integration for the region.
Keywords: Telesur; Unasur; Regional integration; Cultural integration; Brazil; Venezuela
2
1. Introduo
No dia 24 de Julho de 2005, aniversrio de Simn Bolvar libertador latino-americano
de ideais integracionistas , inaugura sua transmisso a Telesur, emissora multiestatal cuja
metade das aes (51%) pertence Venezuela. Com o slogan Nosso Norte o Sul, a escolha
da data de lanamento no mera coincidncia, o desejo de dar voz aos povos da regio, desde
a prpria regio, por meio da transformao social calcada no ideal bolivariano de integrao.
Essa bandeira tambm foi empunhada pelo ento presidente venezuelano Hugo Chvez em um
contexto em que governos progressistas da regio buscavam novas propostas de arranjos para a
cooperao e organizao regional por meio de projetos como a Unio das Naes Sul
Americanas (Unasur) e a Aliana Bolivariana das Amricas (Alba).
Esses arranjos so consequncia direta das falncias das polticas econmicas
neoliberalizantes dos anos 90, regidas pelo Consenso de Washington, que impulsionaram
integraes a servio exclusivo do mercado, como o Mercado Comum do Sul (Mercosul) e
Comunidade Andina de Naes (Can). Dentre algumas caractersticas desse perodo, destaca-se
o aumento das concentraes de produo e mercado de grupos miditicos na conjuntura de
privatizaes e desregulao. Como escreveu Dnis de Moraes em seu livro Vozes abertas da
Amrica Latina (2011), 60% do faturamento total dos mercados e das audincias esto na mo de
quatro megagrupos: Globo, Televisa, Cisneros e Clarn.
Tendo em vista o papel estratgico dos sistemas de comunicao, Moraes narra a saga
dos novos governos progressistas na reestruturao em maior ou menor grau de seus mapas
comunicacionais, com especial ateno s polticas pblicas que da surgiram. O autor vale-se do
conceito de hegemonia de Gramsci, tambm usado neste artigo, para explicar os consensos
sociais a partir das mdias, ou seja: a conquista do consenso e da liderana poltica envolve a
capacidade de um determinado bloco de classes de articular um conjunto de fatores que o
credenciam a dirigir moral e culturalmente, e de modo sustentado, a sociedade como um todo.
(GRAMSCI apud MORAES, 2011, p.47) Mais do que dominao coercitiva, a hegemonia deve
ser compreendida como um processo de direo poltica, ideolgica e cultural, podendo ser
reeditada e modificada pois est permanentemente sendo desafiada por outras presses sociais.
(CANCLINI, 1988; MORAES, 2011).
3
Adiantando quase doze anos desde a primeira transmisso da Telesur, o contexto em que
se pe a regio completamente diferente: golpes de Estado em Honduras, Paraguai e Brasil;
incessantes assdios internacionais e da oposio na Venezuela, alm do isolacionismo sofrido
por parte dos outros pases na regio; crescimento da oposio conservadora na Bolvia e
Equador com uma recente vitria do candidato de esquerda Lenin Moreno, indicado pelo
ex-presidente Rafael Correa, por pouco mais de 200 mil votos; e a derrota da esquerda nas
eleies argentinas. A isso se somam a eleio de Donald Trump nos Estados Unidos, sugerindo
era de isolacionismo por parte do pas; e a sada do Reino Unido da Unio Europeia, que arrefece
as expectativas de projetos de integrao para os prximos anos.
Diante do refluxo dos governos progressistas latino-americanos, este artigo questiona se
a Telesur, apesar dos trabalhos valiosos para a globalizao da cultura como contraponto
globalizao de mercados proposta pela agenda neoliberal, perde capacidade de ser agente
integrador da Amrica Latina.
A fim de refletir sobre tal questo, e considerando que as polticas comunicacionais
massivas esto sendo pensadas, produzidas, exibidas e distribudas sob as lgicas do mercado
capitalista e da rentabilidade, as contribuies de Jess Martn-Barbero para o pensamento da
comunicao latino-americana tornam-se imprescindveis compreenso dos pontos que aqui
sero explorados. O autor, ao deparar com uma choa-favela [...], feita de pau-a-pique mas com
transmissores de rdio e antenas de televiso (BARBERO, 1997, p. 12), prope uma mudana
de paradigma presente em seu livro Dos meios s mediaes de 1987 pensando a
comunicao a partir da cultura. A reorganizao dos conceitos de popular e de massas
acaba por deslocar a metodologia para rever o processo inteiro da comunicao a partir de seu
outro lado, o da recepo, o das resistncias que a tm seu lugar, o da apropriao a partir de
seus usos. (BARBERO, 1997, p. 12) Assim, passa-se a investigar a comunico a partir das
mediaes lugar entre a produo e recepo da mensagem onde a materialidade social e a
expressividade cultural (famlia, temporalidade, competncia cultural) se delimitam e se
configuram.
Com esses aportes, Barbero reflete em seu livro Ofcio de cartgrafo (2002) acerca de
uma agenda de pesquisa que considere as transformaes comunicacionais da Amrica Latina e
4
sua insero na modernidade por meio das indstrias culturais audiovisuais majoritariamente
guiadas pela lei do lucro em uma complexa reorganizao hegemnica. No mesmo sentido, as
valiosas contribuies de Nestor Canclini em seu livro Latino-americanos procura de um lugar
neste sculo, de 2002, corroboram a compreenso no s dos elementos que unem ou unificam a
Amrica Latina, mas tambm na formulao de uma nova pergunta ao observar os fluxos de
nacionais egressos da regio: Quem quer ser latino-americano?. A partir dela, o autor investiga
os processos que se entrecruzam na tal identidade regional, principalmente no que diz respeito
ao papel das indstrias culturais locais e transnacionais.
Apropriando-se dessas conceituaes, este artigo tem como objetivo analisar as
contribuies da Telesur para a integrao cultural latino-americana. Para tal, valer-se-, na
primeira parte, de levantamento bibliogrfico acerca dos projetos de integrao regional
latino-americanos desde os anos 90. Na segunda, ponderar sobre as conceituaes de
globalizao e indstrias culturais de Canclini e Barbero relacionadas a alguns projetos regionais
apresentados na primeira parte, considerando as duas vises distintas entre Brasil e Venezuela
acerca do papel da integrao. A terceira parte, por fim, apresentar dados coletados acerca do
contedo do noticirio teleSur Notcias e os analisar de maneira majoritariamente
quantitativa.
2. Integrao regional latino-america
A partir dos anos 90, arranjos de integrao se multiplicaram pelo mundo. Igualmente na
Amrica Latina, tais arranjos ganharam corpo e adeses devido ao crescente interesse pelo
processo de globalizao, [...] [e] busca na integrao regional [por] uma maior insero das
economias latino-americanas na economia internacional. (BRAGA, 2002, p. 3). Para refletir
acerca dos projetos de integrao na regio, pode-se classific-los em trs momentos: o
regionalismo aberto, o regionalismo ps-liberal e o momento atual de incertezas.
2.1. O regionalismo aberto
As polticas liberalizantes desta poca traduziram-se em modelos de integrao que
5
tiveram como caracterstica principal a busca por mercados comuns e unies aduaneiras
reflexo do pacote de recomendaes formuladas pelos Estados Unidos e que acabaram por
assumir papel determinante nas polticas econmicas e sociais dos pases latino-americanos. O
Consenso de Washington de 1989, como ficou conhecido, representou o auge do neoliberalismo
na regio ao longo desta dcada, caracterizando o processo de integrao destes pases como
regionalismo aberto. Os principais exemplos deste tipo de regionalismo so o Sistema de
Integrao Centro-americano (Sica), a Comunidade Andina (Can) e o Mercado Comum do Sul
(Mercosul).
possvel dizer que os esquemas de integrao regionais desta poca se confundiam com
as diretrizes das polticas econmicas. Sanahuja (2012) aponta que a expresso deste modelo de
regionalismo aberto pode ser considerada como a resposta das demandas de dinmicas
crescentes, como as da regionalizao econmica e da globalizao, relacionada s polticas do
Consenso de Washington. Assim, caracterstica prpria das polticas liberalizantes o objetivo
de dar aos mercados, no marco da integrao, uma maior funo na promoo de eficincia na
competitividade internacional (SANAHUJA, 2012). O surgimento do Mercosul e o
fortalecimento da Can tiveram, portanto, como objetivo principal promover insero das
economias dos pases sul-americanos no sistema econmico internacional (SARAIVA, 2010a).
Logo, a preocupao com uma agenda comercial e liberalizante acaba por colocar em segundo
plano esforos referentes a diferentes agendas.
A origem do Mercosul remete a 1985, quando os presidentes do Brasil (Sarney) e da
Argentina (Alfonsn) firmaram a Declarao de Iguau, e a 1986 quando assinaram o Programa
de Integrao Econmica. Neste momento, os acordos eram voltados para a integrao de setores
industriais estratgicos com caracterstica de complementao. Em 1991, com a aproximao do
Uruguai e do Paraguai, assinou-se o Tratado de Assuno, que deu origem ao Mercosul e que
pretendia, j em 1994, criar uma unio aduaneira que seria a base para o mercado comum do
arranjo (OLIVEIRA; SALGADO, 2011).
2.2. O regionalismo ps-liberal
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Se verdade que os esquemas de integrao regionais se confundiam com as diretrizes
das polticas econmicas, tambm verdade dizer que o fracasso destas polticas no final da
dcada de 1990 desencadeou questionamentos acerca do carter comercial de tais esquemas.
Dessa forma, a preocupao com o crescimento interno dos pases em desenvolvimento levou
busca de uma insero que se distanciava do padro liberal, em nome de objetivos de
desenvolvimento, reduo da pobreza e outros. Paralelamente, o deslocamento do poder
esquerda e a procura por novas prioridades que no o comrcio marcaram este contexto de
transio e caracterizam o momento ps-liberal da integrao latino-americana (RIOS;
VEIGA, 2008).
Para Saraiva (2010a), o modelo de abertura das economias passou a dar espao a um
mais orientado para polticas industriais nacionais, prximo do neodesenvolvimentismo (p. 4),
de modo que a caracterstica comercialista dos processos de integrao regional foi sendo
substituda por uma mais cooperativa. Alm disso, muitos governos da regio, com vistas a
reconstruir os seus respectivos regimes polticos nacionais, buscaram novos padres para
promover uma insero de setores que estavam, at ento, na margem da poltica de integrao
(SARAIVA, 2010a).
No contexto internacional, dois fatores colaboraram para a caminhada em direo a um
regionalismo ps-liberal: de um lado, a presena de novos atores que aumentaram as demandas
por produtos da regio como commodities, principalmente por parte da China, reduzindo a
importncia do comrcio intra-regional para a maioria dos pases na Amrica do Sul. De outro, o
considervel afastamento dos Estados Unidos em relao regio devido guerra global contra
o terrorismo como consequncia dos acontecimentos do 11 de setembro, que colocou a Amrica
Latina em lugar cada vez menos prioritrio. Os Estados Unidos se limitaram a uma relao mais
orientada para temas como comrcio e investimento, assinando tratados de livre comrcio com
vrios pases e deixando de ser to intrusivos nas questes polticas. Com tais fatores, criaram-se
condies para uma maior margem de manobra internacional para os pases da Amrica Latina
(MARTNEZ; SERBN; JNIOR, 2012, p.12, traduo nossa), com destaque busca de uma
agenda para gerir as consequncias dos processos da liberalizao da dcada anterior e seus
impactos negativos e com os avanos em termos de economia e desenvolvimento social nesses
7
pases impulsionando cada vez mais polticas exteriores que prezassem por maior autonomia
regional e internacional (MARTNEZ; SERBN; JNIOR, 2012), e no s pela simples insero
no mercado global.
A Aliana Bolivariana para as Amricas (Alba) um dos exemplos deste regionalismo:
foi anunciada pelo ento presidente venezuelano, Hugo Chvez, em dezembro de 2001 durante a
III Reunio da Associao de Estados do Caribe, promovendo um modelo de integrao baseado
na solidariedade, cooperao e complementaridade (RUIZ, 2010b). O projeto iniciou com pases
da Amrica Central e Caribe como Cuba, Dominica, Nicargua, So Vicente e Granadinas, e
pases da Amrica do Sul, como Equador, Bolvia e Venezuela. Como aponta Ruiz (2010b), a 3
proposta comeou a ganhar contedo a partir de 2002, se formulando como alternativa ao projeto
estadunidense da Alca. Desde 2004, em um encontro em Havana com Morales, Chvez e Fidel, a
iniciativa foi relanada para alm de uma alternativa Alca. A Alba consolidou-se como
iniciativa regional representando um modelo de integrao em que se evidencia o aspecto
anticapitalista e anti-imperialista , apesar de no desconsiderar iniciativas de tipo comercial . 4 5
A Unio das Naes Sul-americanas (Unasul), por sua vez, surge como um marco do
regionalismo e configura o maior arranjo da regio, abarcando os 12 pases do subcontinente. O
projeto reflexo do esforo da diplomacia brasileira em buscar autonomia (SANAHUJA, 2012)
somado ao ativismo da Venezuela de Hugo Chvez a partir do ano de 2004. Na Unasul, 6
inseriu-se uma vasta gama de assuntos em sua agenda, sinalizando, desde ento, a essncia
poltica que o arranjo iria seguir. 7
As iniciativas da Alba e Unasul se conformam no contexto do desenho ps-liberal do
3 Hoje fazem parte da Alba Cuba, Bolvia, Nicargua, Dominica, Equador, Antigua e Barbuda, Santa Lcia, So Cristvo e Nevis e So Vicente e Granadinas. 4 Como ficou evidente nos discursos das lideranas do bloco, que este artigo no explorar. Para entender mais, ver Ruiz (2010b). 5 O projeto apresenta iniciativas de comrcio compensado [...] que se unem programas de cooperao em matria de energtica e social, assim como iniciativas de integrao produtiva. (RUIZ, 2010a; 114), como o Tratado de Comrcio de los Pueblos (Tcp), com inclinao cooperao econmica. 6 As diferenas entre as polticas exteriores do Brasil e Venezuela para a integrao sul e latino-americana sero abordadas no prximo captulo. 7 A Unio das Naes Sul-Americanas se tornou uma organizao dotada de personalidade jurdica internacional a partir da aprovao do Tratado Constitutivo da Unasul pelos 12 Estados membros e se configura por uma srie de rgos, funes e objetivos especficos que no podero ser analisados neste trabalho. Para compreender mais, ver Tratado Constitutivo da Unasul, 2008.
8
https://pt.wikipedia.org/wiki/Equadorhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Dominicahttps://pt.wikipedia.org/wiki/Nicar%C3%A1guahttps://pt.wikipedia.org/wiki/Antigua_e_Barbuda
regionalismo e na mudana de paradigma da integrao. Apesar das diferenas entre os dois
projetos, importante ressaltar que ambos representam a politizao das relaes exteriores
com menos nfase na agenda comercial e de liberalizao econmica; expressam um retorno do
Estado na poltica, muitas vezes descrita como neodesenvolvimentismo (SANAHUJA 2012;
SARAIVA, 2010a); buscam maior autonomia frente ao mercado; trazem o tema da cooperao
em instituies de dilogo multilateral; apresentam crescente ateno nos temas sociais de
integrao; e, por fim, buscam formas de promover uma maior participao de atores
no-estatais e legitimao social dos processos de integrao (SANAHUJA, 2012).
2.3. Contradies no espao de integrao latino-americano
Apesar dos esforos de integrao e as mudanas de paradigma no cenrio de integrao
na Amrica do Sul, foi possvel constatar ao final da dcada de 2000 que em nvel regional se
ha expresado, al mismo tiempo, en una mayor heterogeneidad las realidades econmicas y
sociales de los pases de la regin (MARTNEZ; SERBN; JNIOR, 2012, p. 11). Como aponta
Saraiva (2010a), a integrao da parte sul do continente no se constituiu com contornos claros,
ela apresentou uma grande diversidade de modelos econmicos e de integrao refletida nos
diversos arranjos existentes na regio. Deste modo, duas tendncias de insero internacional
podem ser sublinhadas nos processos de integrao latino-americanos da dcada passada.
De um lado, o eixo do regionalismo aberto que representa a abertura dos mercados por
meio de tratados de livre comrcio (Tlc) com os Estados Unidos, sendo na sua maioria pases da
costa do Pacfico. Ruiz (2010b) aponta que este eixo pode ser representado pelo Tratado
Norte-americano de Livre Comrcio (Nafta), formado por Estados Unidos, Canad e Mxico. O
modelo de integrao do Nafta prope a regulao de setores como a propriedade intelectual, as
compras governamentais e as normas ambientais e de trabalho relacionadas com o comrcio. Os
propulsores do regionalismo aberto desse acordo Estados Unidos apostaram em tentativas
para expandir este modelo a outros pases do continente por meio da Alca sem muito sucesso
mas continuou a celebrar Tlcs como os que acordou com Chile, Peru e Colmbia.
De outro lado, encontram-se os pases que criticam o modelo de integrao aberta
seguida pelo grupo anterior; nessa crtica se observam duas orientaes distintas: a primeira
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constitui o eixo revisionista representado pelos pases do Mercosul em sua maioria. Apesar do
bloco regional ter surgido sob a lgica de integrao comercial e da abertura de mercado, sofreu
uma transformao para se converter em um processo com uma dimenso social e produtiva
(RUIZ, 2010b, p. 45, traduo nossa). O modelo de integrao econmica passou por revises na
ltima dcada, e o Mercosul acompanhou as tendncias da construo de um novo regionalismo
sul-americano, onde o Brasil vem exercendo maior liderana (RUIZ, 2010b). O Mercosul
apresenta hoje um perfil distinto daquele apresentado nos anos 90, e est se moldando em um
perfil mais social e poltico, como mostram a criao do Parlamento do Mercosul, em 2006, e do
Fundo de Convergncia Estrutural e Fortalecimento Institucional do Mercosul, o Focem, em
2004. (OLIVEIRA; SALGADO, 2011, p. 8). A segunda tendncia forma o eixo
anti-sistmico, representado pelos pases da Alba liderados pela Venezuela. Este grupo se
descreve como no-capitalista, propondo uma clara ruptura com o modelo de regionalismo
aberto, bem como o objetivo de incentivar uma integrao baseada na complementao,
cooperao e solidariedade (RUIZ, 2010b).
2.4. Dilemas e desafios: o momento atual
Os ventos que sopram na Amrica Latina desde o incio desta dcada apontam para
direes diferentes daquelas seguidas nos ltimos quinze anos. Colaboram para este quadro os
golpes de Estado sofridos por Dilma Rousseff no Brasil em 2016, Fernando Lugo no Paraguai
em 2012, Manuel Zelaya em Honduras em 2009; o contnuo vai-e-vem poltico na Venezuela
somado ao assdio internacional e ao isolamento do governo de Maduro (MARTINS, 2017); as
tentativas de golpe sofrida por Rafael Correa no Equador e os constantes mal-estares com os
militares; e a derrota do kirchnerismo em 2015 nas eleies argentinas. No cenrio internacional,
a eleio de Donald Trump levanta dvidas acerca do futuro da poltica externa comercial
estadunidense e o aprofundamento da crise econmica global, bem como a virada chinesa para
seu mercado interno, diminuem as altas demandas por commodities com que se acostumaram os
pases latino-americanos. Por fim, o alinhamento comercial mais forte com os pases do norte por
parte da Argentina, Peru, Chile, Colmbia, Paraguai, e agora Brasil, sinaliza um novo avano da
agenda neoliberal na regio.
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A descontinuao de governos progressistas e a crescente oposio que alguns destes
vem sofrendo evidenciam a retomada, em primeiro momento, das problemticas domsticas
em detrimento das regionais, deixando de lado as agendas continentais comuns que outrora
constituam aes presidenciais recorrentes na Amrica Latina (ROSALES, 2017). Como
reflexo, as polarizaes e contradies deste contexto no fazem avanar a agenda de integrao
da Unasul tampouco deixam que seus membros acordem sobre seu prximo Secretrio-Geral
(ROSALES, 2017). tambm no cenrio do Mercosul, como aponta Rosales (2017), que os
desencontros e desafios so mais evidentes para as foras integracionistas, como ficou visvel no
boicote presidncia pro tempore da Venezuela e na criao de duas categorias de
Estado-membro: fundadores e aderentes . Se, por um lado, a situao atual evidencia que os 8
precursores da mudana poltica esto dispostos a desconsiderar o desenvolvimento da ltima
dcada e meia, para o qual esto dispostos inclusive a desconhecer normas fundamentais do
acervo jurdico do Mercosul e normas bsica da diplomacia e direito internacional. (ROSALES,
2017, p. 2, traduo nossa), por outro demonstra que a estrutura social [gerada] por governos
progressistas no resultou em escudo suficiente para evitar que os dios e intolerncias polticas
pudessem debilitar quando no impulsionar os nimos integracionistas em benefcio dos que
sempre quiseram nos dividir. (ROSALES, 2017, p. 2, traduo nossa).
As declaraes do presidente Trump revelam a tendncia mais protecionista (e tambm
isolacionista) de alguns pases do centro econmico, apontando um retrocesso da liberalizao
comercial por meio dos mega tratados (NAVARRO, 2017; MARTINS, 2017; KAN, 2017). Para 9
Martins (2017), o mais provvel que Trump pressione negociaes de acordos bilaterais com
o propsito de obter mais vantagens e evitar a criao de um espao institucional multilateral.
(p. 6, traduo nossa). Dessa maneira, a convergncia dos pases em uma regionalizao aos
moldes do regionalismo aberto dos anos 90 como a proposta pela Aliana do Pacfico com
Chile, Colmbia, Peru, Costa Rica e Mxico tambm segue com futuro incerto.
8 Para compreender mais como se articularam os boicotes Venezuela no mbito do Mercosul por parte da Argentina, Paraguai, e depois Brasil e Uruguai, ver ROSALES, 2017. 9 Tais como o TLC entre Mercosul e Unio Europia, o Acordo Transpacfico de Cooperao Econmica (TPP), que engloba o Chile, Peru e Mxico, e o Acordo sobre Comrcio de Servios (TISA).
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Como os pases da Amrica Latina iro reconstruir suas relaes comerciais com a China
e se recuperaro da crise econmica global so especulaes igualmente embrionrias. Conorado
(2017), ao pensar em projetos autnomos de integrao latino-americana e caribenho, se
pergunta se:
a conjuntura de questionamentos sobre a Ordem Mundial hegemnica, caracterizada por tenses e contradies entre a globalizao neoliberal ortodoxa e protecionismos nacionalistas de corte conservador, abre potencialidades para a integrao autnoma da Amrica Latina e do Caribe (p. 10, traduo nossa).
O que est em crise o multilateralismo e a perspectiva de integrao, inclusive as
construdas nos ltimos quinze anos pelos governos progressistas. Como pontua Conorado
(2017), a prpria sada da Inglaterra da Unio Europeia (Brexit) e a eleio de Trump apontam
para esta crise das integraes.
3. Integrao cultural: algumas ponderaes
Com o objetivo de refletir acerca do papel da cultura na integrao latino-americana,
preciso compreender como a globalizao opera em nossa regio e quais so os subsdios que
suas complexidades e contradies oferecem no que tange os atores das indstrias culturais.
Neste captulo, algumas contribuies de Canclini e Barbero sero analisadas luz das projetos
de integraes j citados anteriormente: Mercosul e Unasul.
3.1. Globalizao e indstrias culturais
Globalizao no sujeito nem um ator social, escreve Canclini (2008), mas sim
processo no qual se movem os atores que podem orient-lo em diferentes direes.
(CANCLINI, 2008, p. 101) Barbero (2004) acrescenta: a globalizao no um processo nico.
Apesar da predominncia do processo financeiro na globalizao, ela se coloca como articulao
de diversos processos rumo variadas direes que tambm podem ser contraditrias. Nesses
movimentos, as tecnologias da informao possuem um papel crucial, pois ao mesmo tempo
que intercomunicam os lugares, transformam o sentido do lugar no mundo. (BARBERO, 2004,
12
p. 270) Como afirma o autor, os paradigmas da modernidade centrais da cincias sociais o
Estado-nao, territrio, regio, etc j no do conta de explicar histrica e teoricamente toda a
realidade em que esto inseridos hoje indivduos e classes, naes e nacionalidades, culturas e
civilizaes. (BARBERO, 2004, p. 270)
Canclini (2008) afirma que a globalizao polivalente, pois inclui negcios
especulativos e tambm migraes em massa, comrcio fluido, maior penria econmica e
processos internacionais por violao de direitos humanos. (p. 25) Ao pensar na Amrica
Latina, o autor cita as migraes como um movimento de globalizao no mercadolgico,
evidenciando que o alto nmero de nacionais que vivem nos Estados Unidos ou Europa, e at
mesmo em outros pases latino-americanos, cria uma imagem de nossa regio que no est
completa na Amrica Latina. Sua imagem devolvida por espelhos dispersos no arquiplago das
migraes. (CANCLINI, 2008, p. 25) No que tange o mercado, a globalizao pode ser
percebida em dois cenrios na Amrica Latina, segundo Barbero (2002): o da abertura nacional
exigida pelo modelo neoliberal hegemnico e o da integrao regional em que pases buscam se
inserir competitivamente no novo mercado mundial. Ele acrescenta: entrar na "sociedade de
mercado" requisito para a entrada na "sociedade da informao". (BARBERO, 2004, p. 363)
Isso conforma o que o terico chama de desintegrao social e poltica do nacional, quando o
mercado se torna o princpio organizador da sociedade em seu conjunto.
Assim, a globalizao redefine as relaes entre centro e periferia: no mais em
movimentos de invaso, seno transformaes que se produzem desde e no nacional e ainda no
local. (BARBERO, 2004, p. 362) De dentro de cada pas que a economia e cultura se
mundializam. Para Barbero (2004), no est em jogo mais a difuso de produtos, mas a
rearticulao das relaes entre pases mediante uma descentralizao que concentra poder
econmico e uma deslocalizao que hbrida as culturas. (p. 362)
Alm disso, o autor pontua que ao produzir hibridizaes novas que caducam as
demarcaes entre o culto e o popular, o tradicional e o moderno, o pertencente e o aliengena, as
indstrias culturais reorganizam as identidades coletivas e formas de diferenciao simblica, ou
seja, dos processos de diferenciao e reconhecimento dos sujeitos que conformam as diversas
agrupaes sociais e tambm as dinmicas de indiferenciao dos mercados. (BARBERO,
13
2004, p. 359), acarretando uma complexa reorganizao da hegemonia. As contradies que
dinamizam a complexidade cultural da sociedade no incio deste novo sculo exige pensar o
lugar das indstrias culturais para alm do conceito inicial Frankfurtiano, aponta Barbero (2004).
O autor concebe estas indstrias como:
[...] lugares de condensao e interao de redes culturais mltiplas, de encruzamento de diferentes espaos da produo social, conformados por dispositivos complexos que no so de ordem meramente tecnolgica, mercantil ou poltica, e nos quais pesam menos as filiaes que as alianas, as pesadas mquinas de fabricao que as sinuosas trajetrias de circulao, e em que os estratagemas de apropriao devem ser levados em conta tanto quanto as lgicas da propriedade." (BARBERO, 2004, p. 358-359)
As indstrias culturais e os meios de comunicao de massa, se entendidos por
superao das barreiras e dissoluo das fronteiras (BARBERO, 2004, p. 380), so
movimentos poderosos de integrao. Canclini (2008) concorda: as viagens e exlios no so a
nica forma de difuso da cultura, mas tambm [difunde-se cultura] pelo modo como a
reorganizao de mercados musicais, televisivos e cinematogrficos reestrutura os estilos de vida
e desagrega imaginrios comuns. (p. 34). Isso posto, as polticas culturais estatais, que se
concentram em preservar patrimnios e promover as artes elitistas com modelos
majoritariamente de difuso, tm desconhecido e desconsiderado o papel central das indstrias
culturais principalmente as audiovisuais na cultura cotidiana das maiorias. (BARBERO,
2004). O espao pblico est sendo recriado pelos meios de comunicao. E visto que os acordos
econmicos de integrao costumam reduzir-se ao livre comrcio como veremos no
subcaptulo a seguir a integrao cultural restringe-se s telenovelas, msicas e vdeos
difundidas com critrio comercial pelas empresas transnacionais que controlam os mercados
regionais. (CANCLINI, 2008, p. 119). Sem a elaborao de regras ou polticas pblicas
culturais, o processo de convergncia multimdia est sendo deixado quase inteiramente nas
mos de mega-empresas de comunicao, sem abrir novas oportunidades para rdios e televises
independentes. (CANCLINI, 2008, p. 119)
14
3.2. Polticas culturais no Mercosul e Unasul
Canclini (2008) e Barbero (2004), ao analisar e pensar as estratgias de integrao para a
Amrica Latina, observaram o espao cultural da regio no contexto da virada do milnio e da
crise do neoliberalismo. A partir da, traaram suas crticas ao modelo de integrao estritamente
comercial que estava posto. Comeando pelo Mercosul, Barbero (2004) comenta que o Tratado
de Assuno de 1991 que deu origem ao bloco sequer citava expressamente o termo cultura;
somente no final desta dcada que os debates sobre o tema passaram a ingressar a agenda do
Mercosul, mesmo que de maneira mais retrica que pratica (SOARES, 2008). Ainda assim,
acrescenta Barbero (2004), as polticas culturais que se formaram eram orientadas para
homologao de legislaes, para a proteo do patrimnio, para a constituio de redes de
informao e em geral para a difuso da alta cultura. (p. 337) Como pontua o autor, isso se
expressa na assinatura do Protocolo de Integrao Cultural do Mercosul, em 1996, e a
consequente criao do selo Mercosul Cultural que facilitava os trmites alfandegrios para a
exibio de artes plsticas, das edies co-financiadas, das bolsas para jovens artistas do
programa de intercmbio de escritores. (BARBERO, 2004, p. 337) De todo modo, as questes
que envolviam polticas culturais foram colocadas como anexo ao Tratado. (BARBERO, 2004)
A revitalizao do sempre conflituoso Mercosul como coloca Canclini (2008, p. 117)
acompanhou os desejos da poltica externa brasileira sobre a qual se debater mais a frente
na formao de um espao econmico unificado, alicerado no livre comrcio e em projetos de
infraestrutura, o aprofundamento da aliana estratgica com a Argentina, com a consolidao da
Unio Aduaneira, e o aprofundamento das relaes econmicas e comerciais com os pases do
norte da Amrica do Sul (como o ingresso da Venezuela em 2012) (KLEMI; MENEZES, 2016,
p. 136) e no paradigma do regionalismo ps-liberal do captulo anterior, ou seja, com
multiplicidade de temas e o retorno do Estado na poltica (SANAHUJA, 2012). No que diz
respeito ao avano institucional mercosulino em polticas culturais, Canclini (2012) ressalta os
esforos de aliana no campo audiovisual, os quais acabaram por se concentrar mais no campo
de declaraes de interesse que em elaborao de programas. Soares (2008) expe que as
atividades culturais identificadas em alguns casos [...] limitam-se a exposies, feiras,
congressos ou outros eventos culturais eventuais ou de curto prazo. (p. 66) e tampouco possuem
15
polticas culturais externas voltadas aos pases do bloco nos seus ministrios de Relaes
Exteriores e de Cultura (SOARES, 2008).
No marco da Unasul, o tema cultura constitutivo do leque temtico abarcado pelo
projeto desde seu Tratado Constitutivo, que cita o termo cultura trs vezes. No prembulo do
projeto, na rubrica objetivos do terceiro artigo e no 17 item da rubrica objetivos especficos,
tambm no artigo 3, onde afirma: a promoo da diversidade cultural e das expresses da
memria e dos conhecimentos e saberes dos povos da regio, para o fortalecimento de suas
identidades;. (TRATADO CONSTITUTIVO DA UNASUL, 2008)
O fato dessas menes estarem presentes como objetivos de construo de uma
identidade sul-americana, inclusive compreendendo e promovendo a diversidade cultural, no
significou, entretanto, que muito foi conseguido em termos de polticas culturais. Para Canclini
(2008), a paisagem sociocultural da dcada de 2000 no mostra mudanas estruturais notveis
apesar da chegada ao poder de governos mais orientados esquerda, seno um reagrupamentos
tticos dentro das tendncias globalizadoras conduzidas com estilo neoliberal. (CANCLINI,
2008, p, 118) Segundo o autor, os pases da regio continuaram aceitando as regras do
mercado, e com receio de espantar investidores, furtaram-se de qualquer transformao
estrutural. (CANCLINI, 2008) 10
3.3. Venezuela e Brasil: duas vises de integrao
Apesar do terico argentino no ter includo a Venezuela na lista de pases que buscaram
inovaes estruturais, no que se refere poltica externa, alguns embates referentes ao
entendimento de qual papel deveria ter uma integrao subcontinental no marco da Unasul
notadamente entre Venezuela e Brasil podem dar pistas acerca do sucesso ou fracasso de
algumas das poucas polticas culturais e comunicacionais transnacionais na regio.
Pode-se dizer que a Amrica do Sul se tornou objeto das polticas integracionistas, por
parte do Brasil, com a adeso do Mxico ao Nafta, o que ampliou o receio a respeito do poder de
10 Apesar de Canclini no incluir a Venezuela na lista de pases que buscaram inovaes estruturais, necessrio se aprofundar acerca das mudanas promovidas pelo governo de Hugo Chvez nos anos iniciais de seu governo, que este artigo no explorar.
16
atrao dos Estados Unidos sobre os pases da regio. O Brasil participou de maneira ativa em 11
grande parte do processo de integrao da regio a fim consolidar sua posio de influncia.
Pode-se dizer, portanto, que o modelo adotado nas iniciativas de integrao responde, em grande
medida, forma como o Brasil entendia o papel que a Amrica do Sul deveria desempenhar no
mundo globalizado. (RUIZ, 2010a)
As primeiras reunies com presidentes sul-americanos , convocadas pelo ento 12
presidente Fernando Henrique Cardoso, almejavam convergir o comrcio da regio a partir do
Mercosul e do Can, com a ampliao da participao para o Chile, Guiana e Suriname,
consolidando desta forma um espao econmico comercial ampliado (COMUNICADO DE
BRASLIA, 2000), alm de lanamento de uma agenda de metas de infraestrutura para a regio:
o Iirsa (Iniciativa para a Integrao da Infraestrutura Regional Sul-Americana). A iniciativa 13
mostrou ser elemento crucial na estratgia brasileira de relanar a integrao no mbito da
Amrica do Sul com objetivo de interconectar a regio (RUIZ, 2010a). A eleio de Lula em
2003 trouxe consigo uma corrente autonomista para a poltica externa brasileira que reduziu a
convico nos regimes internacionais e acreditou no fortalecimento da presena brasileira na
poltica internacional (MENDONA, 2012), ou seja, apostou tanto em uma maior insero 14
internacional do Brasil, quanto na capacidade da criao de um bloco que tambm pudesse fazer
frente no contexto internacional. (SARAIVA, 2010b) Este governo aprofundou a formalizao
da Comunidade em 2004, fortalecendo o carter poltico da integrao e institucionalizando o
11 Essa reao mais pragmtica indica que a presena regional e internacional do Brasil tem sido percebida de maneira crescente como um processo intimamente conectado emergncia da Amrica do Sul como um grupo particular na comunidade internacional. (HISRT; LIMA, 2006, p. 29 apud RUIZ, 2009, p. 104) 12 Essas reunies formaram a Comunidade Sul-Americana (Casa), que se transformaria em Unasul em 2007. 13 O projeto propunha a construo de um sistema de infraestrutura bsica como a construo de estradas e vias fluviais com o objetivo de interconectar a regio (RUIZ, 2010a), ou seja, prover melhorias nas reas de transporte, comunicao e energia. 14 A linha mais autonomista de poltica externa do governo Lula se contrape linha mais pragmtica do governo Fernando Henrique. A autonomia pela participao do governo anterior aceitava a agenda das potncias internacionais (menos no projeto do Alca) como objetivo de insero, ao passo que a autonomia pela diversificao do governo Lula manteve as polticas multilaterais com nfase na soberania nacional, o que em muitos casos gerou tenses com os pases desenvolvidos. (MENDONA, 2012, p. 373)
17
dilogo multilateral.
A partir desse ano, o ento presidente venezuelano, Hugo Chvez, se volta para o Sul e
ao projeto da Casa aps um perodo de grandes conflitos polticos internos e de crise econmica
(RUIZ, 2010a). importante, pois, elucidar alguns pontos da poltica externa do pas sob a
liderana de Chvez a fim de entender seu papel na conformao da Unasul e sua viso acerca de
um projeto integracionista na regio. Ruiz (2010a) as separa em quatro: a) luta contra a ordem
unipolar; b) cooperao sul-sul; c) promoo da integrao latino-americana a partir do ideal
bolivariano; e d) rechao s polticas neoliberalistas e capitalistas . 15
De modo geral, Chvez via o projeto de Comunidade Sul-americana apresentado pelo
Brasil de maneira positiva, segundo Ruiz (2010a), no entanto, algumas objees foram
apresentadas pelo lder. A primeira delas era que a denominao Comunidade no traduzia a
fora do projeto poltico que uma integrao de propores continentais deveria ter (Agencia
EFE, 2006 apud RUIZ, 2010a); para Chvez, a Amrica do Sul era una sola nacin, preferindo
o nome de Unio do Sul (RUIZ, 2010), e j em 2006 sugeriu o nome de Unasur, acatado
futuramente. A segunda era a convergncia da Can e do Mercosul, pois a crtica direta aos
vetores neoliberalizantes de integrao meta original da poltica externa venezuelana. E a
terceira era a agenda do IIRSA, pois, segundo Ruiz (2010a) citando Zibechi (2006), Chvez
acreditava esta iniciativa acabaria por favorecer as grandes multinacionais do norte (ou at
mesmo do sul) que tinham o objetivo de exportar os recursos do continente. De maneira
consciente ou no, o presidente venezuelano criticava os principais pontos do projeto de
integrao impulsionados pela poltica externa brasileira. (RUIZ, 2010)
O ativismo venezuelano a partir de 2004 teve como resultado a criao de uma Unasul
com diferentes objetivos para alm daqueles apresentado na lgica inicial da Casa (convergncia
econmica a ser consolidada por meio de uma integrao tcnica, energtica e de infraestrutura),
acrescentando temticas de integrao poltica, social, econmica cooperativa, ambiental e
cultural.
Apesar dos avanos sem precedentes nas questes de defesa e segurana regional , a 16
15 Apesar destas polticas estarem interligadas, este artigo no se aprofundar em suas descries. Para compreender mais, ver Ruiz, 2010a. 16 Para compreender mais, ver Saraiva (2010a).
18
Unasul no aprofundou sua institucionalidade (SARAIVA, 2010a) e mostrou avanos justamente
nas reas estratgicas da diplomacia brasileira desde a Casa, como na agenda do Iirsa, com um
aumento da participao do Estado no sentido de direcionar as foras de mercado para setores
especficos, o que conduziu a uma participao mais ativa do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econmico e Social (Bndes), inclusive com financiamentos a empresas
brasileiras, j consolidadas no territrio nacional. (RIOS; VEIGA, 2008; COUTO; PADULA,
2012)
3.4. A Telesur
importante pontuar que o projeto da multiestatal Telesur ecoa as metas da poltica
externa venezuelana, calcadas no ideal integracionista de Simn Bolvar diversas vezes
resgatado por Hugo Chvez desde sua ascenso ao poder. (NOGUEIRA; RIBEIRO, 2013). No,
pois, o bolivarianismo de outrora genrica percepo coletiva de unidade poltica na
formao de uma confederao interamericana de Estados (SARAIVA, 2007 apud NOGUEIRA,
2012, p. 84) mas o como definido por Muller-Rojas (2001), citado por Nogueira (2012), um
espao no qual atribudo um contedo metafrico sociedade venezuelana (p. 85), ou mesmo
como definiu Lander (2005), tambm citado por Nogueira (2012), um contedo simblico
integrador de reconstruo do sentido da histria nacional e continental do que contedos
propriamente ditos de um projeto poltico ou econmico para o pas. (p. 85) Nesse contexto, os
meios de comunicao de massa, tal qual a Telesur, adquirem grande importncia no sentido de
se estabelecer um discurso de integrao homogeneizador baseando-se na veiculao de
smbolos e valores compartilhados por Estados que supostamente teriam um passado
(experincias e memria) e um presente (ocupao de uma posio no hegemnica na Amrica)
comuns. (NOGUEIRA, 2012, p. 85)
O canal, no ar desde 2005, uma sociedade financiada pelos governos da Venezuela
com 51% de cotas , Cuba, Argentina, Bolvia, Equador e Nicargua. (MORAES, 2011). De
acordo com o site da emissora, citado por Moraes (2011), o principal compromisso construir
um canal de televiso que permita a todos os habitantes desta vasta regio difundir seus prprios
valores, divulgar sua prpria imagem, debater suas prprias ideias e transmitir seus prprios
19
contedos, livre e equitativamente. (p. 75) Desta forma, a emissora se apresenta como
alternativa ao discurso dos oligoplios miditicos, ampliando o leque de vozes se propondo a
abrir espao a temas, causas e movimentos sociais geralmente tratados com desconfiana ou
discriminados pela mdia tradicional. (MORAES, 2011, p. 75-76)
A transmisso do canal via satlite com sinal disponibilizado gratuitamente a
emissoras pblicas, privadas, educativas e comunitrias [da regio] (MORAES, 2011, p. 76) e,
desde 2009, distribui sinal para Frana, Espanha, Repblica Tcheca, Hungria, Hungria, norte da
frica e Oriente Mdio, como informa Moraes (2011). A emissora possui correspondentes em
quase todos o pases da Amrica Latina e tambm na Europa, frica e sia, alm das cidades de
Washington e Los Angeles (MORAES, 2011; NOGUEIRA, 2009), e possui acordos com a rede
rabe Al-Jazeera, o Canal France International e a BBC. (MORAES, 2011) Seu contedo pode
ser acessado pelo site , podendo tambm ser baixador por meio da
tecnologia de streaming. Alm disso, como informa o autor, alguns programas podem ser vistos
na pgina da Telesur atravs de redes sociais como Facebook, Youtube, Dailymotion e BlipTV.
(p. 77) Por fim, e emissora assessorada por prestigiosos intelectuais latino-americanos e
internacionais como Eduardo Galeano (falecido em 2015), Tariq Ali, entre outros. (MORAES,
2011; NOGUEIRA, 2009)
O canal, que j foi comparado a Al-Jazeera e Euronews, uma tentativa ambiciosa,
portanto, de facilitar uma integrao geopoltica latino-americana com evidente vis
anti-imperialista, (CANIZALES; LUGO-OCANDO, 2008 apud MATOS, 2012) que tem bases
na poltica externa de embate venezuelana. Matos (2012), citando Canizales e Lugo-Ocando
(2008), acrescenta que existe ansiedade em torno do projeto por parte das elites colombianas e
venezuelanas e vista como um veculo ideolgico de aliana com Cuba contra os Estados
Unidos. (p. 153, traduo nossa) Como alternativa aos fluxos de informaes europeus e
estadunidenses, a Telesur parte, de acordo com Matos (2012) da diplomacia pblica do pas e
tem como objetivo servir a seus interesses nacionais (p. 153, traduo nossa). Assim, a retrica
mais esquerda do canal acabou por afastar o suporte brasileiro Telesur, concentrando-se no
seu prprio projeto de mdia estatal. (CANIZALES; LUGO-OCANDO, 2008 apud MATOS,
2012)
20
4. A Telesur: alguns dados e reflexes
Este artigo expor alguns dados do programa teleSUR Notcias coletados em 8
programas do dia 18 de novembro de 2016 a 06 de janeiro de 2017 em uma breve anlise
majoritariamente quantitativa. Sero apresentados tambm dados de outros pesquisadores, bem
como uma reflexo levando em conta sua capacidade de criar consenso contra-hegemnico.
4.1. O teleSUR Notcias
O programa teleSUR Notcias um noticirio que dura aproximadamente 30 minutos e
vai ao ar diversas vezes ao longo do dia, desde a manh madrugada, com uma mdia de 9
notcias por programa durante o perodo analisado. Todos os programas analisados foram
exibidos a partir das 15h30, horrio de Caracas. Em primeiro lugar, a predominncia de assuntos
relacionados a pases latinos-americanos evidente, como se pode observar no grfico 01
abaixo:
Grfico 01: Origem temtica
21
Como destaca Moraes (2011), citando a fala do jornalista Ignacio Ramonet em uma
entrevista no ano de inaugurao da Telesur (2005), a emissora aparece como primeiro canal
autctone de alcance continental (p. 79) e ainda acrescenta: Os nicos que se captavam eram
as verses para a audincia latina das grandes redes estadunidenses [...]. Tnhamos assim o caso
escandaloso de todo um continente consumindo uma imagem de si mesmo produzida fora da
esfera de seu imaginrio. [...] Telesur a resposta. (RAMONET, 2005 apud MORAES, 2011, p.
79)
Em relao origem temtica latino-americana do noticirio, foram citados 14 pases no
total: Argentina, Bolvia, Brasil, Chile, Colmbia, Costa Rica, Cuba, El Salvador, Equador,
Haiti, Mxico, Paraguai, Peru e Venezuela. Alm desses, duas categorias foram criadas. A
multinacional, quando a notcia trata de dois ou mais pases, e a latino-americana, quando o tema
se refere a todo o subcontinente, como se pode inferir no grfico 02 abaixo:
Grfico 02: pases citados em porcentagem
Os dois pases mais citados so, portanto, Colmbia e Venezuela, sendo o primeiro citado
mais que o dobro em relao ao segundo.
22
Em relao ao que se abordou nos noticirios, 11 eixos temticos foram classificados.
So eles: acidentes, cultura, falecimentos/homenagens, greves/marchas/protestos,
imigrao/refugiado, meio-ambiente, social, terrorismo, violncia, poltica venezuelana e poltica
internacional. O grfico 03 revela a porcentagem que se foi dedicada por assunto:
Grfico 03: Temticas abordadas
O tema social o mais explorado, seguido por poltica domstica e poltica
internacional." Vale ressaltar que estes trs juntos representam quase 60% da temtica do
noticirio no perodo analisado.
Em grande medida, a temtica social deu voz aos movimentos sociais, suas lutas,
reivindicaes, denncias e conquistas durante o perodo analisado. Isso confirma a proposta da
emissora de abrir espao a temas, causas e movimentos sociais geralmente tratados com
desconfiana ou discriminados pela mdia tradicional. (MORAES, 2011, p. 75-76) como
mostrado no captulo anterior. A fala de Pascoal Serrano (2010), formulador da linha editorial da
Telesur, citado por Moraes (2011), durante uma entrevista evidencia essas propostas:
23
[...] nossa obrigao pesquisar o que pensam os grupos sociais afetados [...] A eles devemos dar a voz para que expressem sua posio, o que no nos impede de escutar as opinies oficiais. [...] Ns s pretendemos transmitir sua voz ao mundo, dizer a verdade silenciada pelos grandes meios [...]. (SERRANO, 2010 apud MORAES, 2011, p. 77)
No que diz respeito aos outros dois eixos temticos citados, poltica domstica se ateve
s polticas governamentais ou poltica formal de um pas, ao passo que poltica internacional
referiu-se principalmente s relaes poltico-econmicas de dois ou mais pases, seja em
mbitos multilaterais ou no. importante sublinhar que quase 1/3 desta temtica foi dedicada
ao Mercosul, denunciando o recente boicote Venezuela, como visto no primeiro captulo deste
trabalho.
Dados de outros pesquisadores complementam a reflexo sobre os contedos veiculados
pela Telesur. Moraes (2011) aponta que 80% da programao de contedo informativo e os
outro 20% representam filmes e documentrios independentes produzidos na regio. O autor
detalha:
[..] 80% da programao da Telesur tem contedo informativo (telejornais, mesas-redondas, entrevistas, documentrios, reportagens especiais, dossis, sries histricas, perfis). Os 20% restantes so preenchidos por, muitos deles exibidos pela primeira vez em televiso, pois no tinham vez nas emissoras comerciais. A emissora no veicula publicidade comercial. (MORAES, 2011, p. 76)
Nogueira (2009), cita a pesquisa das suecas Sal e Terenius (2008) para debater alguns
dados. As autoras acompanharam os contedos da Telesur na internet, um total de 130
programas, entre os dias 10 a 16 de dezembro de 2007 e apontaram que:
[...] em relao aos gneros de programas, a Telesur cumpre claramente com seu carter educativo (e no veicula nem soap opera nem telenovela);
[...] quanto representao geogrfica dos programas produzidos, a Telesur Venezuela realizou 168 programas; a Argentina, 21; Colmbia, 12; Uruguai, 12; Mxico, 6; Cuba, 6; Equador, 2; Chile, 1; Europa, 1 e
24
Brasil, 1. A principal produtora de material veiculado , portanto, a prpria Telesur; [...] quanto s notcias internacionais, a Telesur produz apenas 23% delas, utilizando-se da produo das agncias internacionais APTN (46%), Reuters (22%), Al-Jazeera (7%) e VTV (2%). (SAL; TERENIUS, 2008) apud NOGUEIRA, 2009, p. 11)
Resumidamente, este levantamento evidencia a tentativa da emissora, j em seu segundo
ano de existncia, de incluir a produo de programas de outros pases, inclusive de regies
externas ao subcontinente, como a Europa, bem como diversificar a origem de fontes
internacionais em detrimento de grupos internacionais mainstream.
J em seu segundo ano, a emissora transmitia programas produzidos em oito pases
latino-americanos, como demonstrado na pesquisa de Sal e Terenius (2008), citadas por
Nogueira (2009). Esta autora, que acompanha desde 2006 a programao da Telesur nos meios
virtuais afirma que:
[...] os contedos difundidos reforam os ideais bolivarianistas de integrao, abrem espao para camadas sociais e pases sem voz no cenrio internacional e fortalecem a possibilidade de um imaginrio cultural compartilhado que entende que unidade e heterogeneidade no so termos contraditrios politicamente. (NOGUEIRA, 2012, p. 92-93)
Para a autora, portanto, isso revela no s a inteno de instaurar a pluralidade de vozes
da regio no marco da emissora, mas ao lado de contedos de cunhos polticos e simblicos
fortes to preciosos ao ideal integracionistas (NOGUEIRA, 2012, p. 92) parecem tambm
auxiliar no fortalecimento da Telesur como um agente de fomento integrao. (PEREIRA,
2006 apud NOGUEIRA, 2012, p. 91)
4.2. Contra-hegemonia: elementos para reflexo
Os dados analisados neste captulo corroboram as tentativas da Telesur de conquistar
pluralidade de vozes e de circular produes regionais sobre a prpria Amrica Latina. No
sentido de encontrar essa comunicao, Moraes (2011) aponta que fundamental
25
convencimento social sobre a necessidade de espaos mais livres de informao e opinio e,
principalmente, de polticas pblicas que promovam a diversificao de fontes emissoras e a
multiplicao dos pontos de vista. (p. 49) Assim, em contraposio s polticas privadas e
comerciais que regem os meios comunicacionais de massa, o autor d nfase s polticas
pblicas na busca de uma perspectiva comunicacional e cultural democrtica e igualitria. (p.
49) Calcados no conceito de hegemonia de Gramsci (2002c; 1999) e seus desdobramentos, o
autor traa os caminhos das mdias estatais latino-americanas, inclusive os da Telesur.
Visto que no uma construo monoltica, a hegemonia, como descrita por Moraes
(2011), o resultado das medies de foras entre blocos de classes em dado contexto histrico,
traduzindo formas variveis de conservao ou reverso do domnio material e imaterial (p. 48),
podendo ser remoldada e reelaborada por meio de movimentos contra-hegemnicos tanto na
sociedade civil quanto na poltica. (MORAES, 2011) Aceita-se, portanto, novas formas de ao
poltica no sentido de movimentar outros interesses que no os do Estado e das classes
dominantes (GRAMSCI, 1999 apud MORAES, 2011, p. 48). No desafio de se expandir a
compreenso pblica sobre a necessidade de transformao, progressiva ou permanentemente, as
relaes de poder e as sociais (MORAES, 2011), reconhece-se o Estado como instncia capaz
de resguardar o interesse coletivo nos processos prticas e dinmicas comunicacionais, no cotejo
com os desgnios do mercado. (p. 50)
5. Consideraes finais
No percurso da reflexo acerca do papel da Telesur para a integrao cultural
latino-americana, alguns pontos importantes foram apresentadas por este trabalho e merecem
destaque. O primeiro trata dos trs momentos de integrao regional desde os anos 1990: o
regionalismo aberto, o ps-liberal e a atualidade. A Alba e a Unasul so expresses do
regionalismo ps-liberal e representam o desejo de se integrar para alm do mercado
diferentemente do que propunha o regionalismo aberto mas no expressam uma viso nica
sobre como essa integrao deveria se dar. A diversidade de modelos econmicos e de
integrao da dcada de 2000 foi ainda mais aprofundadas pelas rupturas, golpes, reformulao
26
de mercados. Esses fatores causaram, alm de instabilidades, incertezas sobre o futuro conjunto
da regio e, de certa forma, puseram em xeque os processos de integrao.
O segundo ponto demonstrou que o Mercosul e a Unasul no implementaram polticas
culturais relevantes. No caso do primeiro projeto, essas polticas foram tratadas em documentos
anexos com carter majoritariamente de difuso e conservao. Contrastando com esse cenrio,
surgiu a Telesur, emissora multiestatal, apoiada por grande parte dos pases signatrios da Alba.
Tendo a Venezuela como maior acionista, o canal fruto da poltica externa, calcada nos ideais
bolivarianos, de Hugo Chvez, em que a integrao latino-americana aparece como premissa. Os
embates entre dois lderes regionais Brasil e Venezuela acerca da construo do projeto da
Unasul evidenciaram vises de poltica exterior distintas de integrao regional. A do Brasil, por
sua vez, mais ligada convergncia de mercados e fortalecimento da infraestrutura. O terceiro e
ltimo ponto confirmou, por meio de anlise de dados coletados do programa teleSur Notcias
e de outros pesquisadores, a relevncia da Amrica Latina para a Telesur, bem como o destaque
dado aos temas sociais, confirmando a capacidade contra-hegemnica da emissora.
Em seus 12 anos de existncia, a emissora representou uma oportunidade de construir um
espao pblico comum latino-americano sem precedentes. No entanto, diante das incertezas que
escalam na regio e, principalmente, na Venezuela, detentora de 51% das aes da emissora,
possvel dizer que o canal perde capacidade de ser agente integrador da regio em termos
comunicacionais e culturais. verdade que os outros pases sul-americanos da Alba Bolvia e
Equador que promoveram as reformas mais estruturais em comparao a outros pases da
regio (inclusive na democratizao da mdia) ainda resistem apesar do aumento da oposio
conservadora em seus territrios. A recente vitria de Lenin Moron, candidato governista, nas
eleies equatorianas foi comparada pelo pensador marxista, Atilio Born, vitria do Exrcito
Vermelho sobre Hitler na batalha de Stalingrado durante a Segunda Guerra Mundial, que acabou
por impedir o exrcito nazista de repor suas foras e os levou inexorvel derrota. Esse alento,
contudo, no anula outro elemento importante que corrobora as dificuldades conjunturais da
atualidade: a viso da poltica externa brasileira acerca da integrao latino-americana na dcada
passada.
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Os escritos deste trabalho evidenciaram que as polticas culturais no fizerem parte dos
objetivos primrios do Brasil no que tangia a integrao latino-americana. A liderana regional
era alavanca para a liderana global, e foi esse caminho que o pas seguiu. Em contraposio ao
bolivarianismo venezuelano, o pas versou mais vontade poltica (e econmica) a projetos que
convergiam os mercados e davam vantagens estratgicas a suas empresas em integraes
estruturais. Como consequncia, o pas acabou se afastando de alguns projetos da liderana
venezuelana, notadamente a Telesur.
Para alm dos obstculos da integrao cultural no mbito dos Estados, na sociedade civil
borbulham outras dinmicas que se mobilizam uma integrao cultural desta regio, dentre elas
pequenas empresas miditicas, ONGs, associaes comunitrias, etc. fundamental, portanto,
continuar alimentando uma teoria comunicacional latina-americana que seja capaz de destrinchar
as complexidades regionais luz da globalizao e da concentrao miditica a fim de fortalecer
a capacidade de integrao cultural e dar sobrevida quilo que Barbero (2004) chama de novos
atores e formas de comunicao: radioemissoras e televises regionais, municipais e
comunitrias ou os grupos de produo de vdeo popular. (p. 379)
Por um lado, a sociedade civil pode continuar pressionando governos para a conformao
de polticas pblicas culturais voltadas para amrica latina que vo alm das lgicas de difuso e
conservao. Por outro, pode se articular por conta prpria, inclusive por vias no institucionais,
interpoladas pelos movimentos sociais, pois a cultura digital j permite circular bens culturais
dessa forma, engendrando capacidades de pr em relao as demandas do local e as ofertas do
global, encontrando brechas nos grandes conglomerados de comunicao e criando misturas e
hibridizaes com grande capacidade criativa.
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