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Dados de Catalogao na Publicao (CIP) Internacional (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Plato. Dilogos / Plato ; seleo de textos de Jos Amrico Motta
Pessanha ; traduo e notas de Jos Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e Joo Cruz Costa. 5. ed. So Paulo : Nova Cultural, 1991. (Os pensadores)
Inclui vida e obra de Plato. Bibliografia. Contedo: O Banquete Fdon Sofista Poltico. ISBN 85-13-00215-1
1. Filosofia antiga 2. Literatura grega 3. Plato I. Pessanha, Jos Amrico Motta, 1932- II. Ttulo, m. Ttulo: 0 Banquete. IV. Ttulo: Fdon. V. Ttulo: Sofista. VI. Ttulo: Poltico. VII. Srie.
CDD-184 -180.92
91-0201 - 888
ndices para catlogo sistemtico: 1. Filosofia platnica 184 2. Filsofos antigos : Biografia e obra 180.92 3. Literatura grega antiga : Poligrafia 888 4. Plato : Obras filosficas 184 5. Poligrafia : Literatura grega antiga 888
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CONTRA-CAPA PLATO Os gregos antigos inventaram a democracia, a noo de cidadania e foram os primeiros a
sentir e expor a necessidade de ultrapassar o terreno das meras opinies, os ensinamentos dos mitos e as crenas supersticiosas. Propuseram-se a atingir um conhecimento verdadeiro, um saber efetivamente cientfico. Nessa busca, Plato, que cria sua Academia em 387 a.C. em Atenas, tem papel fundamental. Apura a dialtica socrtica para torn-la apta a desenvolver um saber sistemtico, capaz de se alar do sensvel para o inteligvel o mundo das idias. Sua influncia, uma das mais profundas da histria do pensamento, ainda hoje encontra-se no horizonte de toda investigao terica.
NESTE VOLUME
O BANQUETE Scrates, Agato, Alcibades e outros conversam a respeito do amor. Para Scrates, o amor
um meio de atingir a viso do princpio eterno de todas as coisas belas, o belo em si.
FDON Na priso, espera da cicuta, Scrates debate sobre a morte. 0 dilogo relata o caminho
socrtico, retomado e desenvolvido por Plato: o conhecimento como reminiscncia e a doutrina das idias.
SOFISTA A oposio verdade-erro, inerente ao combate socrtico-platnico aos sofistas (vistos como
mercadores de falsidades), renova-se nessa etapa final do platonismo. POLTICO Plato retoma um dos temas centrais de sua reflexo filosfica: a caracterizao do poltico e
da arte de governar.
Nesta srie esto as idias fundamentais que, nos ltimos 25 sculos, ajudaram a construir a civilizao. A escolha de autores procura refletir a pluralidade de temas e de interpretaes que compem o pensamento filosfico. A seleo de textos busca, nas fontes originais, uma viso abrangente e equilibrada da Filosofia e de sua contribuio ao conhecimento do homem e do universo.
ISBN 85-13-00214-3 ISBN 85-13-00215-1
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PLATO
DILOGOS
O BANQUETE FDON
SOFISTA POLTICO
Seleo de textos de Jos Amrico Motta Pessanha Traduo e notas de Jos Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e Joo Cruz Costa
NOVA CULTURAL 1991
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Ttulos originais:
(O Banquete) (Fdon) (Sofista)
(Poltico)
Copyright desta edio, Editora Nova Cultural Ltda., So Paulo, 1972. - 2a ed., 1978. - 3? ed.. 1983.
4a ed., 1987. - 5a ed., 1991. Av. Brigadeiro Faria Lima, 2000 3? andar
CEP 01452 - So Paulo, SP - Brasil. Tradues publicadas sob licena da Editora Bertrand Brasil S.A., Rio de Janeiro (O Banquete) e da Editora Glob.o S.A., So Paulo
{Fdon, Sofista, Poltico). Direitos, exclusivos sobre "Plato Vida e Obra",
Editora Nova Cultural Ltda., So Paulo.
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PLATO
VIDA E OBRA
Consultoria: Jos Amrico Motta Pessanha
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"Outrora na minha juventude experimentei o que tantos jovens
experimentaram. Tinha o projeto de, no dia em que pudesse dispor de mim
prprio, imediatamente intervir na poltica." Quem assim escreve, em cerca de 354
a.C, o setuagenrio Plato, numa de suas cartas a carta VII, endereada aos
parentes e amigos de Dion de Siracusa.
O interesse de Plato pelos assuntos polticos decorria, em parte, de
circunstncias de sua vida; mas era tambm uma atitude compreensvel num grego
de seu tempo. Toda a vida cultural da Grcia antiga desenvolveu-se estreitamente,
vinculada aos acontecimentos da cidade-Estado, a polis. Essa vinculao resultava
fundamentalmente da organizao poltica, constituda por uma constelao de
cidades-Estados fortemente ciosas de suas peculiaridades, de suas tradies, de seus
deuses e heris. A prpria dimenso da cidade-Estado impunha, de sada, grande
solidariedade entre seus habitantes, facilitando a ao coercitiva dos padres de
conduta; ao mesmo tempo, propiciava polis o desenvolvimento de uma fisionomia
particular, inconfundvel, que era o orgulho e o patrimnio comum de seus
cidados. O fenmeno geogrfico e o poltico associavam-se de tal modo que, na
lngua grega, polis era, ao mesmo tempo, uma expresso geogrfica e uma expresso
poltica, designando tanto o lugar da cidade quanto a populao submetida
mesma soberania. Compreende-se, assim, por que um grego antigo pensava a si
mesmo antes de tudo como um cidado ou como um "animal poltico".
Essa ligao estreita entre o homem grego e a polis transparece na vida e no
pensamento dos filsofos. J Tales de Mileto (sculo VI a.C), segundo o historiador
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Herdoto, teria desempenhado importante papel na poltica de seu tempo,
tentando induzir os gregos da Jnia a se unirem numa federao e, assim, poderem
oferecer resistncia ameaa persa que ento se configurava. Desse modo, com
Tales que a tradio considera o ponto inicial da investigao cientfico-
filosfica ocidental teria comeado tambm a linhagem dos filsofos-polticos e
dos filsofos-legisladores, cuja vida e cuja obra desenvolveram-se em ntima
conexo com os destinos da polis. No prprio vocabulrio dos primeiros filsofos
manifesta-se essa conexo: muitas das palavras que empregam sugerem
experincias de cunho originariamente social, generalizadas para explicar a
organizao do cosmo. Por outro lado, a estrutura poltica fornece ao pensador
esquemas interpretativos: a polis monrquica corresponde uma interpretao do
processo cosmognico entendido como o desdobramento ou a transformao de
um nico princpio (arque), tal como aparece nas primeiras cosmogonias filosficas.
Com o tempo, esses esquemas interpretativos vo, porm, se alterando, em parte
pela dinmica inerente ao pensamento filosfico, em parte como reflexo das novas
formas de vida poltica. A instaurao do regime democrtico em Atenas e em
outras cidades suscita novos temas para a investigao e sugere novos quadros
explicativos: o filsofo Empdocles de Agrigento lder democrtico em sua
cidade concebe a organizao do universo como resultante do jogo de mltiplas
"razes" regidas pela isonomia (igualdade perante a lei). Ao monismo corporalista dos
primeiros pensadores pode ento suceder o pluralismo: o cosmo compreendido
imagem da pluralidade de poderes da polis democrtica.
Na Assemblia, quem pede a palavra?
Entre 460 e 430 a.C, Atenas, sob o governo de Pricles, atingiu o apogeu de
sua vida poltica e cultural, tornando-se a cidade-Estado mais proeminente da
Grcia. Essa situao fora conquistada sobretudo depois das guerras mdicas,
quando Atenas liderou a defesa do mundo grego e derrotou os persas. Libertando
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as cidades gregas da sia Menor e apoiando-se sobre poderosa confederao
martima, Atenas teve seu prestgio aumentado; enquanto expandia e fortalecia seu
imperialismo, internamente aprimorava a experincia democrtica, instaurada desde
508 a.C. pela revolta popular chefiada por Clste-nes. Pela primeira vez na histria,
o governo passara a ser exercido pelo povo, que, diretamente, na Assemblia
(Ekklesia), .decidia os destinos da polis. Mas, na verdade, a democracia ateniense
apresentava srias limitaes. Em primeiro lugar, nem todos podiam participar dos
debates da Assemblia: apenas os que possuam direitos de cidadania. Essa
discriminao exclua das resolues polticas a maior parte dos habitantes da polis:
as mulheres, os estrangeiros, os escravos. Em conseqncia, constitua uma minoria
o demos (povo) que assumira o poder em Atenas.
A democracia ateniense era, na verdade, uma forma atenuada de oligarquia
(governo dos olgoi, de poucos), j que somente aquela pequena parcela da
populao os "cidados" usufrua dos privilgios da igualdade perante a lei e
do direito de falar nos debates da Assemblia (isegoria). As decises polticas
estavam, porm, na dependncia de interferncias ainda mais restritas, pois na
prpria Assemblia nem todos tinham os mesmos recursos de atuao. Lido o
relatrio dos projetos levados ordem do dia, o arauto pronunciava a frmula
tradicional: "Quem pede a palavra?" Segundo o princpio da isegoria, qualquer
cidado tinha o direito de responder a esse apelo. Mas, de fato, apenas poucos o
faziam. Os que possuam dons de oratria associados ao conhecimento dos
negcios pblicos, os hbeis no raciocinar e no usar a voz e o gesto, estes que
obtinham ascendncia sobre o auditrio, impunham seus pontos de vista atravs da
persuao retrica e lideravam as decises. A eloqncia tornou-se, assim, uma
verdadeira potncia em Atenas; sem ter necessidade de nenhum ttulo oficial, o
orador exercia uma espcie de funo no Estado. Se alm de orador era um homem
de ao como Pricles tornava-se, durante algum tempo, o verdadeiro chefe
poltico.
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O cuidado dos democratas em impedir que o poder retornasse s mos da
antiga aristocracia e outra vez se centralizasse, reassumindo carter vitalcio e
hereditrio, acabava por erigir obstculos prpria democracia. A preocupao em
preservar a pureza das instituies democrticas, defendendo-as das faces
adversrias derrotadas mas sempre atuantes e prontas a tentar recuperar antigos
privilgios , levou os democratas a estabelecer inclusive uma durao limitada
para o exerccio das funes pblicas. Para que nenhum magistrado se acostumasse
ao poder e nele quisesse se perpetuar, as funes pblicas duravam apenas um ano.
Alm disso adotou-se a tiragem de sorte para a escolha dos ocupantes daquelas
funes, com exceo dos comandos militares, dos ocupantes de cargos financeiros
e dos que exerciam comisses tcnicas que exigissem competncia especial. Com o
processo de tiragem de sorte que parece estranho e irracional mentalidade
afeita administrao pblica moderna a democracia grega procurava defender-
se firmando o poder nas mos da Assemblia dos cidados. Tais escrpulos,
porm, vinham tornar ainda mais instveis e flutuantes as decises polticas. O
comparecimento Assemblia era freqentemente escasso, j que, em condies
normais, muitos cidados preferiam ocupar-se de seus negcios particulares; os que
compareciam aos debates estavam sujeitos s influncias dos oradores mais hbeis,
que faziam oscilar as decises; finalmente, a curta durao das funes pblicas
aumentava mais ainda a dificuldade de se desenvolver uma linha poltica estvel,
contnua, duradoura.
As deficincias do regime democrtico ateniense tornaram-se patentes para
alguns pensadores, que se empenharam em corrigi-las. Se a liberdade
proporcionada aos cidados era um patrimnio caro a ser preservado, a estabilidade
poltica exemplificada por outros pases, como o Egito, parecia invejvel. Sem falar
que, dentro da prpria Grcia, o militarismo de Esparta sugeria uma soluo
poltica baseada no sacrifcio das liberdades individuais em nome da disciplina e da
ordem social.
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A crtica democracia ateniense e a procura de solues polticas do mundo
grego foram preocupaes centrais da vida e da obra daquele que por muitos
considerado o maior pensador da Antigidade: Plato. Nele, filosofia e ao poltica
estiveram permanentemente interligadas, pois alimentou sempre a convico de que
"... os males no cessaro para os humanos antes que a raa dos puros e autnticos
filsofos chegue ao poder, ou antes que os chefes das cidades, por uma divina
graa, ponham-se a filosofar verdadeiramente" (Carta VII).
Entre a filosofia e a poltica
Plato nasceu em Atenas em 428-7 a.C. e morreu em 348-7 a.C. Essas datas
so bastantes significativas: seu nascimento ocorreu no ano seguinte ao da morte de
Pricles; seu falecimento deu-se dez anos antes da batalha de Queronia, que
assegurou a Filipe da Macednia a conquista do mundo grego. A vida de Plato
transcorreu, portanto, entre a fase urea da democracia ateniense e o final do
perodo helnico: sua obra filosfica representar, em vrios aspectos, a expanso
de um pensamento alimentado pelo clima de liberdade e de apogeu poltico
Filho de Ariston e de Perictione, Plato pertencia a tradicionais famlias de
Atenas e estava ligado, sobretudo pelo lado materno, a figuras eminentes do mundo
poltico. Sua me descendia de Slon, o grande legislador, e era irm de Crmides e
prima de Crtias, dois dos Trinta Tiranos que dominaram a cidade durante algum
tempo. Alm disso, em segundas npcias Perictione casara-se com Pirilampo,
personagem de destaque na poca de Pricles. Desse modo, se Plato em geral
manifesta desapreo pelos polticos de seu tempo, ele o faz como algum que viveu
nos bastidores das encenaes polticas desde a infncia. Suas crticas democracia
ateniense pressupunham um conhecimento direto das manobras polticas e de seus
verdadeiros motivos.
Segundo o depoimento de Aristteles, Plato, na juventude, teria conhecido
Crtilo, que, adotando as idias de Herclito de feso sobre a mudana permanente
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de todas as coisas e certamente interpretando de forma parcial e empobrecida a
tese heracltica , afirmava a impossibilidade de qualquer conhecimento estvel.
Os dados dos sentidos teriam validade instantnea e fugaz, o que tornava intil e
ilegtima qualquer afirmativa sobre a realidade: quando se tentava exprimir algo,
este j deixara de ser o que parecia no momento anterior. Na verso apresentada
por Crtilo, o incessante movimento das coisas tornava-se um empecilho cincia
e ao, que no podiam dispensar bases estveis. Buscando justamente estabelecer
esses fundamentos seguros para o conhecimento e para a ao, Plato
desenvolver, na fase inicial de sua filosofia, teses que tendem a sustentar a
realidade no intemporal e no esttico. S posteriormente seu pensamento ir
reabilitar e reabsorver o movimento e a transformao, tentando estabelecer a
sntese entre a tradio eletica (que negava a racionalidade de qualquer mudana) e
a heracltica (que afirmava o fluxo contnuo de todas as coisas).
Mas o grande acontecimento da mocidade de Plato foi o encontro com
Scrates. Na poca da oligarquia dos Trinta (entre os quais estavam Crmides e
Crtias), os governantes haviam tentado fazer de Scrates cmplice na execuo de
Leon de Salamina, cujos bens desejavam confiscar. Scrates recusou-se a participar
da trama indigna e, evidentemente, deixou de ser visto com simpatia pelos tiranos.
Mais tarde, j reinstaurado o regime democrtico em Atenas, Scrates foi acusado
de corromper a juventude, por difundir idias contrrias religio tradicional, e
condenado a morrer bebendo cicuta.
Plato, que seguira os debates de Scrates e que o considerava como
escrever no Fdon "o mais sbio e o mais justo dos homens", pde acompanhar
de perto o tratamento que seu mestre recebera de ambas as faces polticas.
Parecia no existir em Atenas um partido no qual um homem que no quisesse
abrir mo de princpios ticos pudesse se integrar. Diante da injustia sofrida por
Scrates, aprofunda-se o desencanto de Plato com aquela poltica e com aquela
democracia: "Vendo isso e vendo os homens que conduziam a poltica, quanto
mais considerava as leis e os costumes, quanto mais avanava em idade, tanto mais
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difcil me pareceu administrar os negcios de Estado" (Carta VII). Mas o impacto
causado por Scrates no pensamento e na vida de Plato teve tambm outra
significado, este de repercusses ainda mais duradouras: com Scrates, o jovem
Plato pudera sentir a necessidade de fundamentar qualquer atividade em conceitos
claros e seguros. Por intermdio de Scrates e de sua incessante ao como
perquiridor de conscincias e de crtico de idias vagas ou preconcebidas, o
primado da poltica torna-se, para Plato, o primado da verdade, da cincia. Se o
interesse de Plato foi inicialmente dirigido para a poltica, atravs da influncia de
Scrates ele reconhece que o importante no era fazer poltica, qualquer poltica,
mas a poltica. Por isso que justamente se recusa a participar, na mocidade, de
atividades polticas: primeiro tem de encontrar os fundamentos tericos da ao
poltica e de toda ao para orient-la retamente. A filosofia para Plato
representou, assim, de incio, a ao entravada, a que se renuncia apenas para poder
vir a ser realizada com plenitude de conscincia.
Depois da morte de Scrates, disperso o ncleo que se congregara em torno
do mestre, Plato viaja. Visita Megara, onde Euclides, que tambm pertencera ao
grupo socrtico, fundara uma escola filosfica, vinculando socratismo e eleatismo.
Vai ao sul da Itlia (Magna Grcia), onde convive com Arquitas de Tarento. O
famoso matemtico e poltico pitagrico d-lhe um exemplo vivo de sbio-
governante, que ele depois apontar, na Repblica, como soluo ideal para os
problemas polticos. Na Siclia, em Siracusa, conquista a amizade e a inteira
confiana de Dion, cunhado do tirano Dionsio. Essa ligao com Dion talvez o
mais forte lao afetivo da vida de Plato representa tambm o incio de
reiteradas tentativas para interferir na vida poltica de Siracusa. Plato visita ainda o
norte da frica, mas de sua ida ao Egito quase nada se sabe com segurana. Certo
que, em Cirene, inteirou-se das pesquisas matemticas desenvolvidas por Teodoro,
particularmente as referentes aos "irracionais" (grandezas, como V2, cujo valor
exato no se podia determinar). Os irracionais matemticos inspiraro vrias
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doutrinas platnicas, pois representam uma "justa medida" que nenhuma
linguagem consegue exaurir.
Nessa poca Plato compe seus primeiros Dilogos, geralmente chamados
"dilogos socrticos", pois tm em Scrates a personagem central. Entre esses
dilogos est a Apologia de Scrates, que pretende reproduzir a defesa feita pelo
prprio Scrates diante da Assemblia que o julgou e condenou. Porm, de certa
forma, outros dilogos dessa fase constituem tambm defesas que Plato faz de seu
mestre, mostrando que nem era mpio nem pervertia os jovens. Nessa categoria
podem ser includos o Crton, o Laques, o Lsis, o Crmides e o Eutfron. Dentre os
primeiros dilogos situam-se ainda o Hpias Menor (talvez tambm o Hpias Maior), o
Protgoras, o Grgias nos quais aparecem os grandes sofistas e o lon. possvel
que, tambm nessa poca, Plato tenha comeado a escrever a Repblica. Em geral,
os "dilogos socrticos" desenvolvem discusses sobre tica, procurando definir
determinada virtude (coragem, Laques; piedade, Eutfron; amizade, Lsis;
autocontrole, Crmides). Mas so dilogos aporticos, ou seja, fazem o levantamento
de diferentes modos de se conceituar aquelas virtudes, denunciam a fragilidade
dessas conceituaes, mas deixam a questo aberta, inconclusa. Isso possivelmente
estaria relacionado ao objetivo do prprio Scrates, que se preocupava antes com o
desencadeamento do conhecimento de si mesmo e no propriamente com
definies de conceitos. De qualquer modo, algumas teses socrticas bsicas podem
ser encontradas nesses dilogos, como a da identificao da virtude com certo tipo
de conhecimento e a da unidade de todas as virtudes. Os outros dilogos dessa fase
manifestam duas preocupaes que permanecero constantes na obra platnica: o
problema poltico (como no Crmides) e o do papel que a retrica pode
desempenhar na tica e na educao (Grgias, Protgoras, os dois Hpias).
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A Academia ou Siracusa?
Cerca de 387 a.C. Plato funda em Atenas a Academia, sua prpria escola de
investigao cientfica e filosfica. O acontecimento da mxima importncia para
a histria do pensamento ocidental. Plato torna-se o primeiro dirigente de uma
instituio permanente, voltada para a pesquisa original e concebida como
conjugao de esforos de um grupo que v no conhecimento algo vivo e dinmico
e no um corpo de doutrinas a serem simplesmente resguardadas e transmitidas. O
que se sabe das atividades da Academia, bem como a obra escrita de Plato e as
notcias sobre seu ensinamento oral, testemunham sobre essa concepo da
atividade intelectual: antes de tudo busca a inquietao, reformulao permanente e
multiplicao das vias de abordagem dos problemas, a filosofia sendo
fundamentalmente filosofar esforo para pensar mais profunda e claramente.
Nessa mesma poca, em Atenas, Iscrates dirige um outro estabelecimento
de educao superior. Mas Iscrates seguindo a linha dos sofistas pretende
educar o aspirante vida pblica, dotando-o de recursos retricos. Nada de cincia
abstrata: bastava munir o educando de "pontos de vista", que ele deveria saber
defender de forma persuasiva. Numa democracia dirigida de fato por oradores, a
instituio de Iscrates indiscutivelmente desenvolve uma educao realista,
atendendo s necessidades do momento. Mas outra a perspectiva da Academia.
Para Plato a poltica no se limita prtica, insegura e circunstancial. Deve
pressupor a investigao sistemtica dos fundamentos da conduta humana
como Scrates ensinara. Porm, suas bases ltimas no se limitariam ao plano
psicolgico e tico: os fundamentos da ao requerem uma explicao global da
realidade, na qual aquela conduta se desenrola. Depois de suas viagens, quando
freqentou centros pitagricos de pesquisa cientfica, Plato via na matemtica a
promessa de um caminho que ultrapassaria as aporias socrticas as perguntas
que Scrates fazia, mas afinal deixava sem resposta e conduziria certeza. A
educao deveria, em ltima instncia, basear-se numa episteme (cincia) e ultrapassar
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o plano instvel da opinio (doxa). E a poltica poderia deixar de ser o jogo fortuito
de aes motivadas por interesses nem sempre claros e freqentemente pouco
dignos, para se transformar numa ao iluminada pela verdade e um gesto criador
de harmonia, justia e beleza.
Durante cerca de vinte anos, Plato dedica-se ao magistrio e composio
de suas obras. Sob forte influncia do pitagorismo, escreve os "dilogos de
transio", que justamente marcam segundo muitos intrpretes o progressivo
desligamento das posies originariamente socrticas e a formulao de uma
filosofia prpria, a partir da nova soluo para o problema do conhecimento,
representada pela doutrina das idias: formas incorpreas e transcendentes que
seriam os modelos dos objetos sensveis. Essas novas formulaes aparecem em
vrios dilogos: Mnon, Fdon, Banquete, Repblica, Fedro. Do mesmo perodo o
Eutidemo, que procura estabelecer a distino entre a dialtica socrtica (que Plato
adota e pretende desenvolver) e a erstica, ou arte das discusses lgicas sutis e da
disputa verbal, que se tornara a preocupao central da escola de Euclides de
Megara. J no Menexeno o tema poltico reaparece, atravs da stira a Pricles.
Particular importncia apresenta, entre os dilogos dessa fase, o Crtilo, no qual
abrindo perspectivas que ainda hoje a filosofia e a lingstica exploram Plato
investiga a possibilidade de extrair a verdade filosfica da estrutura da linguagem.
Mas um fato interrompe a produo filosfica de Plato e seu magistrio na
Academia. Novamente o apelo de Siracusa e da prtica poltica: em 367 a.C. morre
Dionsio I, o tirano, que ento sucedido por Dionsio II. Dion chama Plato a
Siracusa. Parece o momento propcio para se tentar reformar a vida poltica da
cidade. Numa polis governada por um nico indivduo, parece bastar convenc-lo
para que tudo se encaminhe da maneira almejada e correta. Esse pensamento faz
Plato afinal decidir-se, como confessa na Carta Vil, a atender os rogos de Dion.
Para muitos historiadores, Plato vai ento a Siracusa tentar aplicar
praticamente os ideais polticos que, a essa altura, j havia configurado na Repblica.
Isso no parece muito provvel. Siracusa, considerada a mais luxuriosa cidade do
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mundo grego, no por seus costumes, o local indicado para Plato tentar
concretizar o modelo poltico proposto na Repblica e que representa um esforo de
racionalizao das funes pblicas e da estrutura social. Voltando a Siracusa, o
objetivo de Plato seria outro, bem mais prtico e realista: com viso de verdadeiro
estadista, preocupa-o o conjunto do mundo grego. Seu intento, tudo leva a crer, o
de preparar o jovem tirano para refrear o avano dos cartagineses e, se possvel,
expuls-los da Siclia, onde j esto instalados. Siracusa poderia transformar-se no
centro de forte monarquia constitucional, que abarcaria o conjunto das
comunidades gregas do oeste da Siclia. E o mundo grego, fortalecido por essa
unio, poderia opor resistncia ao estrangeiro invasor. Mas a misso de Plato
fracassa: no consegue mudar as disposies de Dionsio II. Apenas consegue que
ele se ligue, em relaes de amizade, a Arquitas de Tarento, dando um passo em
direo ao ideal poltico de unificar essa parte do mundo helnico.
Essa segunda tentativa poltica malograda deve ter interrompido a
composio da srie de dilogos constituda pelo Parmnides, Teeteto, Sofista e Poltico.
Dilogos da plena maturidade intelectual de Plato, neles as primeiras formulaes
da "doutrina das idias" (como, por exemplo, apareciam no Fdon) comeam a ser
revistas e todo o pensamento platnico reestrutura-se a partir de bases
epistemolgicas mais exigentes e seguras. Ao mesmo tempo, as fronteiras entre o
pensamento do prprio Plato e do seu mestre tornam-se mais ntidas, de tal modo
que, no Parmnides, em lugar de Scrates conduzir e dominar a discusso ele aparece
jovem e inseguro diante de um Parmnides que, levantando dificuldades teoria
das idias, deixa-o embaraado. Costuma-se ver nessa inverso do papel atribudo a
Scrates nos dilogos o indcio de que o platonismo j avanara para alm das
concepes socrticas, que o haviam inicialmente inspirado
Mas a crise que o Parmnides parece instaurar na teoria das idias no significa
que Plato desiste dessa doutrina. No Teeteto, a discusso sobre o problema do
conhecimento e as crticas identificao do conhecimento com a sensao
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posio que a atribuda ao sofista Protgoras de Abdera leva reafirmao de
que o conhecimento verdadeiro no pode dispensar a fundamentao nas idias:
E esse mundo de essncias estveis e perenes que o dilogo chamado
Sofista investiga. Ao examinar as bases da distino entre verdade e erro, apresenta
aguda crtica da atividade docente dos sofistas, acusados de criar e difundir imagens
falsas, simulacros da verdade J o Poltico retoma a tese de que o ideal para a polis
seria a existncia de um rei filsofo, que inclusive pudesse governar sem
necessidade de leis.
A preocupao poltica que reaparece ao longo dos dilogos continua a ter
seu contraponto no campo prtico. Atravs da Carta VII sabe-se que Plato volta
uma vez mais a Siracusa, pressionado por Dion e por Arquitas e a convite de
Dionsio II, que se declara disposto a seguir sua orientao filosfica. A essa altura
Dion havia sido banido de Siracusa pelo tirano, mas longe de sua ptria continua a
alimentar o ideal de reformar sua cidade, para nela instaurar um regime que aliasse,
como prescrevia Plato, a autoridade e a liberdade.
Essa nova incurso de Plato a Siracusa foi decepcionante. Dionsio no
cumpriu nenhuma de suas promessas: nem modificou sua conduta poltica, nem
trouxe de volta Dion, nem se entregou ao estudo srio da filosofia. Apesar disso
quis reter Plato em Siracusa, e o filsofo s consegue afinal sair de l graas
interferncia de seus amigos de Tarento. Ao regressar, Plato encontra Dion, que
prepara uma expedio contra Dionsio. A expedio inicialmente tem xito: afinal
Dion consegue livrar sua cidade da tirania que a oprime. Dion, entretanto, comea
a encontrar oposies s reformas que quer introduzir e, em meio s perturbaes
que passam a agitar a vida poltica da cidade, acaba trado por seus prprios amigos
e assassinado. E o que pior para Plato: o mandante do crime, Calipos, um
ateniense ligado Academia e que fora com Dion para Siracusa.
Perdido o amigo, encerrada a aventura poltica de Siracusa, restam a Plato
os debates da Academia e a elaborao de sua obra escrita. Resta-lhe o principal: o
seu mundo de idias.
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Manifestando uma vida espiritual inquieta, em reelaborao permanente, as
ltimas obras de Plato levantam novos problemas ou reexaminam os antigos sob
outros ngulos. Ao Sofista e ao Poltico deveria seguir-se o Filsofo, dilogo que teria
novamente Scrates como personagem central. Mas no chegou a ser escrito. Em
seu lugar surgiram o Timeu e o Crtias, que deveriam fazer parte de uma trilogia que
ficou inacabada (o Hermocrates seria o terceiro). O Timeu constitui um vasto mito
cosmognico, no qual Plato revelando a crescente influncia do matematismo
pitagrico descreve a origem do universo. O Crtias apresenta um Estado
semelhante ao descrito na Repblica , identificando-o com a Atenas pr-histrica,
que teria salvo o mundo mediterrneo da invaso dos habitantes de Atlas.
Da fase final da obra de Plato ainda o Filebo, que retoma o tema da
felicidade humana, tratado luz das ltimas formulaes do platonismo. Ao
morrer, Plato deixa interminada uma grande obra: as Leis. Retomando o problema
poltico e alterando teses expressas anteriormente na Repblica, Plato prope, em
sua ltima obra, uma conciliao entre monarquia constitucional e democracia. O
interesse juvenil pelos assuntos polticos acompanhou-o at o fim de sua vida. Mas
o aprofundamento da conscincia poltica significou um longo itinerrio que
permitiu a construo da primeira grande sntese filosfica do pensamento antigo e
abriu horizontes de pesquisa ainda hoje explorados, servindo de inspirao e de
estmulo a grandes aventuras do esprito.
O mundo perfeito das idias
"Admitamos pois o que me servir de ponto de partida e de base que
existe um Belo em si e por si, um Bom, um Grande, e assim por diante. Se
admitires a existncia dessas coisas, se concordares comigo, esperarei que elas me
permitiro tornar-te clara a causa, que assim descobrirs, que faz com que a alma
seja imortal." Scrates quem fala a Cebes, no Fdon, dilogo no qual Plato,
descrevendo os ltimos instantes de vida e as ltimas conversaes de seu mestre,
-
pouco antes de beber a cicuta, atribui-lhe explicitamente uma nova linha de
resoluo de antigos problemas filosficos e cientficos: a doutrina das idias.
Pouco antes, no mesmo dilogo, Scrates declarara: "... Eis o caminho que segui.
Coloco em cada caso um princpio, aquele que julgo o mais slido, e tudo o que
parece estar em consonncia com ele quer se trate de causas ou de qualquer
outra coisa
admito como verdadeiro, admitindo como falso o que com ele no
concorda". Aquela afirmao de que existe um Belo em si, um Bom em si ou um
Grande em si surge, dentro do desenvolvimento da filosofia platnica, justamente
no momento em que esta segundo a maioria dos intrpretes comea a
assumir fisionomia prpria e se distingue do socratismo. Essa separao teria
ocorrido no ponto em que a formulao da noo de idia, como essncia existente
em si
independente das coisas e do intelecto humano , representa a adoo,
por Plato, de um mtodo de pesquisa de ndole matemtica. Colocar um princpio
e aceitar como verdadeiro o que est em consonncia com ele, rejeitando o que lhe
est em desacordo como afirmara Scrates significa pensar "como
gemetra", que prope hipteses das quais extrai as conseqncias lgicas. E o
que Plato prope atravs da boca de Scrates: remontar do condicionado (os
problemas a serem resolvidos ou as coisas a serem explicadas) condio (a
hiptese explicativa), visando antes de tudo a estabelecer uma relao de
conseqncia lgica entre as duas proposies (a que exprime o problema e a que
exprime sua hipottica resoluo). Provisoriamente deixa-se de lado a questo de
saber se a condio ela prpria auto-sustentvel ou se exige o recurso a condies
mais amplas ou bsicas que a condicionem. De sada, o importante verificar o que
est em consonncia com o princpio proposto. Todavia o platonismo no se
deter a: o exame da primeira hiptese que resulta da aplicao do "mtodo dos
gemetras" a existncia de entidades em si, as idias, causas inteligveis do que os
sentidos apreendem
-
remeter a outras hipteses que a condicionam. O pensamento de Plato
ir se construindo, assim, como um jogo de hipteses interligadas. Ao relativismo
dos sofistas, Plato ope no uma afirmao de verdade simplria e dogmtica. A
busca de uma condio incondicionada para o conhecimento, o encontro com o
absoluto fundamento da verdade (que s ento se distingue do erro e da fantasia),
para Plato no o ponto de partida mas a meta a ser alcanada. Porm s se chegar
a depois que se atravesse todo o campo do possvel. O absoluto, o no-hipottico,
habita alm das ltimas hipteses.
Nos primeiros dilogos os da "fase socrtica" j se buscava algo de
idntico e uno que estaria por trs das mltiplas maneiras de se entender conceitos
como "temperana" ou "coragem". Mas esse mesmo que existiria em diversas coisas
no era ainda uma entidade metafsica, algo que existisse em si e por si. No Eutfron
que as palavras idia e eidos aparecem empregadas, pela primeira vez, numa
acepo propriamente platnica. Ambas aquelas palavras so derivadas de um
verbo cujo significado "ver" e tm, assim, como acepo originria, a de "forma
visvel" (primariamente no sentido de "formato" ou "figura"). Ao que parece, j
estavam integradas ao vocabulrio dos pitagricos, com o sentido de modelo
geomtrico ou figura.
Nos dilogos da primeira fase, que parecem reproduzir as conversaes do
prprio Scrates, a procura do mesmo, alm de ficar restrita busca de um
denominador comum no nvel da significao das palavras, limitava-se a debates
sobre questes morais. Esses debates no eram conclusivos: deixavam os
problemas enriquecidos e revoltos, com isso denunciando a fragilidade ou a
parcialidade dos pontos de vista confrontados. Ao chegar a esse ponto, a dialtica
socrtica podia dar-se por satisfeita, na medida em que seu objetivo seria o
dramtico embate das conscincias, condio para o autoconhecimento. J em
Plato a partir da fase do Fdon a dialtica vai progressivamente perdendo o
interesse humano imediato e a dramaticidade, para se converter, cada vez com mais
apoio em recursos matemticos, num mtodo impessoal e terico, que visa aos
-
prprios problemas e no apenas sondagem da conscincia dos interlocutores.
Torna-se uma pesquisa das interligaes entre as idias, chegando, na fase final do
platonismo, a ser considerada um tipo de "metrtica" ou arte das medidas e das
propores.
"Admitamos pois o que me servir de ponto de partida e de base que
existe um Belo em si e por si, um Bom, um Grande, e assim por diante." Essas
palavras, que Plato faz Scrates dizer no Fdon, representam uma mudana de
direo da investigao filosfica em relao aos pensadores do passado. A
explicao do mundo fsico, desde os filsofos da escola de Mileto, convertia-se na
procura de uma situao primordial que justificaria, em seu desdobramento, a
situao presente do cosmo. Antes, a gua (Tales), o ilimitado (Anaximandro), o
"tudo junto" (Anaxgoras) depois, devido a diferentes processos de
transformao ou de redistribuio espacial, o universo em seu aspecto atual. A
explicao filosfica representava, assim, o encontro de um princpio (arque)
originrio, e era, por isso mesmo, movida por interesse arcaizante, de busca das
razes, de desvelamento das origens. Com Plato essa ndole retrospectiva e
"horizontal" da investigao substituda pela perspectiva "vertical" e ascendente
que prope, seguindo a sugesto do mtodo dos gemetras, as idias como causas
intemporais para os objetos sensveis. O que belo, mais ou menos belo, belo
porque existe um belo pleno, o Belo que, intemporalmente, explica todos os casos e
graus particulares de beleza, como a condio sustenta a inteligibilidade do
condicionado.
Atravs dos dilogos, Plato vai caracterizando essas causas inteligveis dos
objetos fsicos que ele chama de idias ou formas. Elas seriam incorpreas e invisveis
o que significa dizer justamente que no est na matria a razo de sua
inteligibilidade. Seriam reais, eternas e sempre idnticas a si mesmas, escapando
corroso do tempo, que torna perecveis os objetos fsicos. Merecem por isso
mesmo, o qualificativo de "divinas", qualificativo que os filsofos anteriores j
atribuam arque. Perfeitas e imutveis, as idias constituiriam os modelos ou
-
paradigmas dos quais as coisas materiais seriam apenas cpias imperfeitas e
transitrias. Seriam, pois, tipos ideais, a transcender o plano mutvel dos objetos
fsicos.
A afirmativa de que o mundo material se torna compreensvel atravs da
hiptese das idias deixa, porm, em suspenso um problema decisivo: o da
possibilidade de se conhecer essas realidades invisveis e incorpreas. Com efeito, o
que inicialmente foi tomado como hiptese explicativa a existncia do mundo
das idias no basta a si mesmo. preciso que se admita um conhecimento das
idias incorpreas que antecede ao conhecimento fornecido pelos sentidos, que s
alcanam o corpreo. No Mnon Plato expe a doutrina de que o intelecto pode
apreender as idias porque tambm ele , como as idias, incorpreo. A alma
humana, antes do nascimento antes de prender-se ao crcere do corpo , teria
contemplado as idias enquanto seguia o cortejo dos deuses. Encarnada, perde a
possibilidade de contato direto com os arqutipos incorpreos, mas diante de suas
cpias os objetos sensveis pode ir gradativamente recuperando o
conhecimento das idias. Conhecer seria ento lembrar, reconhecer. A hiptese da
reminiscncia vem, assim, sustentar a hiptese da existncia do mundo das formas.
Mas, por sua vez, implica outra doutrina, que a condiciona: a da preexistncia da
alma em relao ao corpo, a da incorruptibilidade dessa alma incorprea e,
portanto, a da sua imortalidade. Essa imortalidade, de que Scrates no teve certeza
nos primeiros dilogos, converte-se, na construo do platonismo, numa condio
para a cincia, para a explicao inteligvel do mundo fsico.
Mas se a doutrina da reminiscncia liga a alma s idias e justifica que o
homem as conhea, como explicar o relacionamento entre as formas e os objetos
fsicos, entre o incorpreo e o seu oposto, o corpreo? Essa uma questo que o
prprio Plato levanta no dilogo Parmnides. Antes ainda suscita outro problema,
que est na base daquele e que no havia sido esclarecido nas obras anteriores:
afinal, de que h idias?
-
Os exemplos de idias apresentados no Fdon so extrados ou da esfera dos
valores estticos e morais (o Belo, o Bom), ou das relaes matemticas (o Grande).
De fato, desses dois campos que o platonismo vai colher preferencialmente os
pontos de apoio para propor um mundo de modelos transcendentes. Isso
compreensvel, uma vez que a variao de mais e menos (mais belo, menos belo;
maior, menor) parece sugerir a referncia a um padro absoluto, a uma "justa
medida" (o Belo, o Grande). Todavia, j no Crtilo, onde aparece a primeira
afirmao da transcendncia das idias, ela feita a propsito da idia referente a
um objeto fsico, a um artefato, a naveta. No Parmnides o problema ainda mais se
agua ao fazer-se a pergunta: h uma forma correspondente ao fogo (realidade
fsica e natural), uma forma correspondente ao lodo (objeto fsico "inferior")?
Valores negativos ou realidades abjetas teriam um modelo no plano das essncias
divinas? O que est a em questo , na verdade, o significado que o mundo fsico
tem enquanto corpreo; se cpia, o que lhe confere o estatuto de cpia, distanciando-
o do arqutipo? Se sua causa inteligvel o mundo das idias, o que constitui isto
que lhe d concreo e materialidade?
Num primeiro momento, de dialtica ascendente, impulsionada pelo mtodo
inspirado no procedimento dos matemticos, Plato deixara de lado,
provisoriamente, a natureza do sensvel enquanto sensvel. Mas na etapa final de
seu pensamento, animada tambm por uma dialtica descendente que procura
vincular o inteligvel ao sensvel, essa questo assume crescente interesse,
motivando a cosmogonia e a fsica do Timeu. Tambm no ensinamento oral dessa
fase segundo o depoimento de Aristteles Plato ocupou-se do mesmo
problema, embora tratando-o noutra direo, ao investigar as idias relativas aos
objetos de arte.
A relao existente entre as formas e os objetos fsicos que lhe so
correspondentes a outra grande questo levantada pelo Parmnides. Plato
pretende resolv-la atravs de duas noes fundamentais: a de participao e a de
imitao. No Parmnides o prprio Plato formula muitas das objees que
-
pensadores posteriores (inclusive Aristteles) faro a essas noes. E, se ao longo
da evoluo de seu pensamento, permanentemente aprofundou, esclareceu ou refez
o significado de participao e de imitao, jamais abriu mo da transcendncia das
idias.
A doutrina platnica da imitao (mmesis) difere da que os pitagricos
propunham desde o sculo VI a.C. Desenvolvendo um pensamento fundamentado
nas investigaes matemticas, os primitivos pitagricos afirmavam que "todas as
coisas so nmeros", entendendo como nmeros realidades corpreas, constitudas
por unidades indecomponveis que eram ao mesmo tempo o mnimo de corpo e o
mnimo de extenso. As coisas imitariam os nmeros, para os pitagricos, numa
acepo plenamente realista: os objetos refletiriam exteriormente sua constituio
numrica interior. A mmesis, no pitagorismo, apresentara portanto um carter de
imanncia: o modelo e a cpia esto ambos no plano concreto; so as duas faces
interna (apreendida racionalmente) e externa (apreendida pelos sentidos) da
mesma realidade. Com Plato a noo de imitao adquire acepo metafsica,
como lgica decorrncia do "distanciamento" entre o plano sensvel e o inteligvel.
Os objetos fsicos mltiplos, concretos e perecveis aparecem como cpias
imperfeitas dos arqutipos ideais, in-corpreos e perenes. O mundo sensvel seria
uma imitao do mundo inteligvel, pois todo o universo, segundo a cosmogonia
do Timeu, seria resultante da ao de um divino arteso (demiurgo) que teria dado
forma, pelo menos at certo ponto, a uma matria-prima (a "causa errante"),
tomando por modelo as idias eternas. A arte divina teria produzido as obras da
natureza e tambm as imagens dessas obras (como o reflexo do fogo numa parede).
Analogamente, a arte humana produz de dupla maneira: o homem tanto constri
uma casa real como, na condio de pintor, pode reproduzir num quadro a imagem
dessa casa. O artista aparece por isso, na Repblica, como "criador de aparncias". O
problema da imitao torna-se mais complexo quando referido aos objetos de arte,
objetos artificiais, artefatos. Faz-se ento a distino entre graus intermedirios de
imitao: o objeto natural imita a idia que lhe correspondente e a arte imita, por
-
sua vez, aquela imitao. A relao cpia-modelo usada metafisicamente por Plato
para explicar a relao sensvel-inteligvel reaparece assim em sua concepo
esttica e justifica as restries feitas aos artistas na Repblica. Particularmente os
poetas, como Homero, so a apresentados como fazendo "simulacros com
simulacros, afastados da verdade". No caso das artes plsticas, Plato recusa a
utilizao dos recursos da perspectiva, que ento se difundiam e lhe pareciam a
sofistica na arte, pois acentuavam a "iluso de realidade". A arte imitativa deveria
preservar o carter de cpia de seus produtos, no querendo confundi-los com os
objetos reais. Outro caminho para as artes plsticas seria tentar reproduzir a
verdadeira realidade das formas incorpreas , o que coloca Plato, segundo
alguns intrpretes, como antecipador da arte abstrata.
O itinerrio da sombra luz
Na Repblica, a organizao da cidade ideal apia-se numa diviso racional do
trabalho. Como reformador social, Plato considera que a justia depende da
diversidade de funes exercidas por trs classes distintas: a dos artesos, dedicados
produo de bens materiais; a dos soldados, encarregados de defender a cidade; a
dos guardies, incumbidos de zelar pela observncia das leis. Produo, defesa,
administrao interna estas as trs funes essenciais da cidade. E o importante
no que uma classe usufrua de uma felicidade superior, mas que toda a cidade seja
feliz. O indivduo faria parte da cidade para poder cumprir sua funo social e nisso
consiste ser justo: em cumprir a prpria funo.
A reorganizao da cidade, para transform-la em reino da justia, exige
naturalmente reformas radicais. A famlia, por exemplo, deveria desaparecer para
que as mulheres fossem comuns a todos os guardies; as crianas seriam educadas
pela cidade e a procriao deveria ser regulada de modo a preservar a eugenia; para
evitar os laos familiares egostas, nenhuma criana conheceria seu verdadeiro pai e
-
nenhum pai seu verdadeiro filho; a execuo dos trabalhos no levaria em conta
distino de sexo mas to-somente a diversidade das aptides naturais.
A efetivao dessa utopia social dependeria fundamentalmente, por outro
lado, de um cuidadoso sistema educativo, que permitisse a cada classe desenvolver
as virtudes indispensveis ao exerccio de suas atribuies. Mas a cidade ideal s
poderia surgir se o governo supremo fosse confiado a reis-filsofos. Esses chefes
de Estado seriam escolhidos dentre os melhores guardies e submetidos a diversas
provas que permitiriam avaliar seu patriotismo e sua resistncia. Mas,
principalmente, deveriam realizar uma srie de estudos para poderem atingir a
cincia, ou seja, o conhecimento das idias, elevando-se at seu fundamento
supremo: a idia do Bem.
A discusso em torno da cidade ideal cede ento lugar, na Repblica, a duas
apresentaes sintticas de como se desdobraria o conhecimento humano ao
ascender at a contemplao do mundo das essncias: o esquema da linha dividida
e a alegoria da caverna.
Uma linha dividida em dois segmentos (AB, BC), um representando o plano,
sensvel e outro o plano inteligvel, serve a Scrates (a certamente apenas porta-voz
de Plato) para tornar visualizvel a ascese dialtica. Esses dois segmentos
apresentam subdivises correspondentes a diferentes tipos de objetos sensveis e
inteligveis e, conseqentemente, a modalidades diversas de conhecimento:
O processo de conhecimento representa a progressiva passagem das
sombras e imagens turvas ao luminoso universo das idias, atravessando etapas
intermedirias. Cada fase encontra sua fundamentao e resoluo na fase seguinte.
O que no visto claramente no plano sensvel (e s pode ser objeto de conjetura)
transforma-se em objeto de crena quando se tem condio de percepo ntida.
Assim, o animal que na obscuridade "parece um gato" revela-se de fato um gato
quando se acende a luz. Mas essa evidncia sensvel ainda pertence ao domnio da
opinio: uma crena (pstis), pois a certeza s pode advir de uma demonstrao
racional e, portanto, depois que se penetra na esfera do conhecimento inteligvel.
-
No plano sensvel o conhecimento no ultrapassa o nvel da opinio, da
plausibilidade. A primeira etapa do conhecimento inteligvel representada pela
dinoia, conhecimento discursivo e mediatizador, que estabelece ligaes racionais:
o conhecimento tpico das matemticas. O conhecimento sensvel deve
fundamentar-se nesse patamar que lhe est sobreposto e lhe d sustentao. Isso
significa que, para Plato (sugesto que o Renascimento desenvolver), o
conhecimento do mundo fsico deve ser construdo com instrumental matemtico.
Mas os conhecimentos matemticos no constituem, no platonismo, o pice da
cincia. So ainda uma forma de inteligibilidade primeira, marcada por
compromissos com o plano sensvel: as entidades matemticas so mltiplas (faz-se
um clculo ou uma demonstrao geomtrica utilizando-se diversos 3 ou vrios
tringulos); alm disso a prpria representatividade manifesta um liame do plano
matemtico com a sensibilidade, a denunciar seu carter de intermedirio entre a
percepo sensvel e a inteligibilidade plena. Esta s se alcana quando, alm das
entidades matemticas, chega-se evidncia puramente intelectual (nesis) das idias.
No se trata mais de vrios 3, mas da essncia mesma de "trindade", que confere
sentido queles seus reflexos matemticos; no se trata mais de tringulos de
vrios tipos , mas da "triangularidade" que neles se efetiva, sem se esgotar em
nenhum deles. Chega-se assim ao domnio das formas, dialtica que se apresenta
como uma metamatemtica. Finalmente, no cume do mundo das idias, a
superessncia do Bem daria sustentao a todo o edifcio das formas puras e
incorpreas. Princpio de conhecimento (do ponto de vista do sujeito) e de
cognoscibilidade (do ponto de vista do objeto), o Bem exerce papel anlogo ao que
o Sol possui no plano sensvel e material. Princpio de realidade ele que
confere s coisas essncia e existncia, transmutando em estrutura real a tessitura
inicialmente hipottica das idias. Superessncia o absoluto irrelacionvel e por
isso mesmo indefinvel: dele como dos irracionais matemticos s se podem
ter indicaes aproximadas, como as que se obtm de uma "justa medida". Do
carter indefinvel do Bem necessariamente decorre um senso agudo da limitao
-
da palavra, que perpassa toda a obra platnica e est expresso particularmente no
Fedro e na Carta VII.
A alegoria da caverna dramatiza a ascese do conhecimento, complementando
o esquema da linha dividida. Descreve um prisioneiro que contempla, no fundo de
uma caverna, os reflexos de simulacros que sem que ele possa ver so
transportados frente de um fogo artificial. Como sempre viu essas projees de
artefatos, toma-os por realidade e permanece iludido. A situao desmonta-se e
inverte-se desde que o prisioneiro se liberta: reconhece o engano em que
permanecera, descobre a "encenao" que at ento o enganara e, depois de galgar
a rampa que conduz sada da caverna, pode l fora comear a contemplar a
verdadeira realidade. Aos poucos, ele, que fora habituado sombra, vai podendo
olhar o mundo real: primeiro atravs de reflexos como o do cu estrelado
refletido na superfcie das guas tranqilas , at finalmente ter condies para
olhar diretamente o Sol, fonte de toda luz e de toda realidade.
Essa alegoria de mltipla dimenso pode ser vista tanto como fabulao
da ascese religiosa, como da filosfica e cientfica guarda ainda uma conotao
poltica, que o contexto da Repblica no permite negligenciar. Aquele que se liberta
das iluses e se eleva viso da realidade o que pode e deve governar para libertar
os outros prisioneiros das sombras: o filsofo-poltico, aquele que faz de sua
sabedoria um instrumento de libertao de conscincias e de justia social, aquele
que faz da procura da verdade uma arte de desprestidigitao, um desilusionismo.
O aspecto emocional que a alegoria da caverna ressalta no processo de
converso das conscincias luz tambm est apresentado no Banquete. A ascese ao
mundo das idias a descrita particularmente no discurso que Scrates atribui a
Diotima de Mantinia como uma "ascese ertica". Eros desempenha em relao
aos sentimentos e s emoes o mesmo papel de intermedirio que as entidades
matemticas representam para a vida intelectual. Ele comanda a subida por via da
atrao que a beleza dos corpos exerce sobre os sentidos e remete, afinal,
contemplao do Belo supremo, o Belo em si.
-
A construo do conhecimento constitui, assim, no platonismo, uma
conjugao de intelecto e emoo, de razo e vontade: a episteme fruto de
inteligncia e de amor.
Cronologia
508 a.C. A revolta popular liderada por Clstenes instaura a democracia em
Atenas.
490-479 a.C. Atenas toma parte nas guerras mdicas (contra os persas).
460-430 a.C. Perodo de apogeu de Atenas, no qual ocorre o governo de
Pricles.
460 a.C. (aproximadamente) Chega a Atenas o filsofo Anaxgoras de
Clazmena, que, embora protegido por Pricles, afinal tem de deixar a cidade,
devido s perseguies suscitadas por suas idias, contrrias religiosidade popular
e oficial.
432 a.C. Irrompe a guerra do Peloponeso: entre Atenas e Esparta.
428-427 a.C. Nasce Plato em Atenas.
399 a.C. Julgado pela Assemblia popular de Atenas, Scrates condenado a
morrer bebendo cicuta.
388 a.C. (aproximadamente) Plato viaja: Magna Grcia (sul da Itlia, Siclia); em
Siracusa, conhece Dion, cunhado do tirano Dionsio I; convive com Euclides em Megara; vai a
drene (onde toma cincia das pesquisas matemticas de Teodoro) e visita o Egito.
387 a.C. Plato funda, em Atenas, a Academia.
367 a.C. Morre Dionsio I, de Siracusa, sendo sucedido por seu filho Dionsio
II. Segunda viagem de Plato a Siracusa.
361 a.C. Terceira viagem a Siracusa.
348-347 a.C. Plato morre em Atenas.
338 a.C. Filipe da Macednia conquista a Grcia, vitorioso na batalha de
Queronia.
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Bibliografia
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Belles-Lettres, Paris, 1920. Em Ingls: The Dialogues of Plato, trad. de
Benjamim Jowett, Oxford, 4.a ed., 1953.
BRUN, JEAN: Platon et l'Acadmie, Presses Universitaires de France, Paris, 1960.
SCHUHL, PIERRE-MAXIME: LOeuvre de Platon, Hachette, Paris, 1954.
CHTELET, F.: Platon, Gallimard, 1965.
KOYR, A.: Introduction Ia Lecture de Platon, Gallimard, Paris, 1962.
SCHAERER, R.: La Question Platonicienne, Mmories de l'Universit de Neuch-tel X,
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ROBIN, L.: Platon, nova edio pstuma com bibliografia atual Paris, P.U.F.,
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MILHAUD, G.: Philosophes Gomtres de Ia Grce, Livro II Plato, Alcan, Paris, 1900.
MUGLER, C: Platon et Ia Recherche Mathmatique de son poque, Strasbourg-Zurich,
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MICHEL, P. H.: De Pythagore Euclide, Belles-Lettres, Paris, 1950.
MOREAU, J.: Le Sens du Platonisme, Les Belles-Lettres, Paris, 1967.
Ross, DAVID: Plato's Theory of Ideas, Oxford, 1953.
CHERNISS: Aristotle's Criticism of Plato and the Academy, John Hopkins Press,
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TAYLOR, A. E.: Plato, Meridian Books, Nova York, 1956.
CORNFORD, F. M.: Plato's Theory of Knowledge, Routledge & Kegan Paul Ltd.,
Londres.
FIELD, G. C: Plato and his Contemporaries, Methuen, Londres, 1.aed., 1930.
GOLDSCHMIDT, V.: Les Dialogues de Platon, Presses Universitaires de France, 1947.
GOLDSCHMIDT, V.: A Religio de Plato, Difuso Europia do Livro, 1970.
-
O BANQUETE Traduo e Notas de Jos Cavalcante de Souza
Texto, traduo e notas
Para a presente traduo servi-me dos textos de J. Burnet, da Bibliotheca Oxoniensis
(Oxford) e de L. Robin, da coleo "Les Belles Lettres". Como comecei a trabalhar com o
primeiro, serviu-me ele naturalmente de primeiro fundamento, ao qual apliquei algumas lies do
segundo, que mais recente1 e que oferece um aparato crtico bem mais rico. O confronto dessas
duas excelentes edies possibilitou-me mesmo a apresentao de um terceiro texto, que representa
uma tentativa de aproveitamento do que elas tm de melhor, e que espero poder ser um dia
aproveitado numa edio bilinge. Na impossibilidade de o fazer agora, julgo todavia que no ser
de todo fora de interesse, sobretudo para a apreciao da traduo, prestar algum esclarecimento
sobre a maneira como se preparam as edies modernas dos textos gregos.
O estabelecimento de um texto grego antigo um trabalho primeira vista altamente
maante, sem dvida alguma rduo, mas afinal capaz de suscitar profundo interesse e mesmo
empolgar o esprito de quem se disponha a abord-lo. Um editor moderno encontra-se em face de
vrias edies anteriores, de uma profuso de manuscritos medievais, de alguns papiros e uma
quantidade de citaes de autores antigos. Tudo isso perfaz a tradio do texto que ele se dispe a
reapresentar. Numa extenso de dois mil e tantos anos, as vicissitudes da histria fizeram-na
seccionar-se em etapas com desenvolvimento prprio, sob o qual se dissimulam os sinais de sua
continuidade. Assim, ele tem que levar em conta uma tradio antiga, uma tradio medieval e
mesmo, podemos acrescentar, uma tradio moderna. Cada uma delas reclama um tratamento
especial, a se efetuar todavia sempre em correlao com as demais.
1 De 1929, enquanto que a de Burnet de 1901. (N. do T.)
-
Os documentos que lhe vo servir de base so os da tradio medieval, os manuscritos. A
quantidade destes considervel para uma boa parte dos autores gregos, mas seu valor
naturalmente desigual. Impe-se um trabalho de seleo e classificao em que se procure o liame
perdido da tradio antiga, e em que portanto o testemunho dos papiros e das citaes dos autores
antigos podem muitas vezes ser de grande prstimo. Alm desse cotejo precioso com os restos
da tradio antiga, muitas vezes a cincia da tradio moderna, iniciada com as
primeiras edies do Renascimento, que corrige as insuficincias das duas tradies precedentes.
Atravs dos dados e instrumentos de interpretao dessas trs tradies que se exerce o esforo
para reconstituir o texto que possa representar o mais possvel o prprio texto de um autor dos
sculos V ou IV, por exemplo, esforo capaz, como foi dito acima, de estimular poderosamente a
curiosidade intelectual.
No que se refere a Plato2, contam-se atualmente 150 manuscritos de suas obras. Sem
dvida, sua seleo e classificao j se encontra em estabelecimento mais ou menos definitivo,
depois do trabalho sucessivo de vrios editores e crticos, a partir do Renascimento. medida que
se foram sucedendo as edies, foi-se elevando o nmero dos manuscritos consultados e colacionados,
o que evidentemente complicava cada vez mais o trabalho crtico. Essa dificuldade culminou com a
atividade extraordinria de Immanuel Bekker, que no comeo do sculo XIX colacionou 77
manuscritos, sobre os quais baseou sua edio, provida de dois volumes de Commentaria
Critica, aparecidos em 19233.
Os crticos e editores seguintes sentiram ento a necessidade de simplificar o aparato crtico
resultante de um to grande acervo de documentos, que s poderia estorvar, em lugar de facilitar o
seu uso proveitoso. Foi ento que surgiu a idia de remontar origem dos manuscritos medievais e
de, em funo dessa origem, proceder sua classificao. Tal projeto tomou logo a forma de uma
procura do arqutipo, isto , do manuscrito da tradio antiga do qual proviriam todos os
manuscritos medievais. Em funo do arqutipo foram os manuscritos agrupados em famlias,
cujas caractersticas procurou-se explicar pelas vrias lies que ele apresentava, em notas abaixo
ou margem do texto. As variantes do arqutipo denotariam, assim, que se tratava de uma
edio erudita, e portanto representante das melhores correntes da tradio antiga do texto
2 Todas as informaes sobre o texto de Plato foram tiradas do belo livro de Alline, Histoire du Texte de Platon, Edouard Champion, 1915.
(N. do T.) 3 Essa edio a vulgata dos aparatos crticos. V. Alline, op. cit., p. 317. (N. do T.)
-
platnico. Tais correntes estariam, desse modo, representadas pelas vrias famlias de manuscritos
medievais, e assim, por conseguinte, teramos garantida a continuidade entre a tradio antiga e a
moderna, aparentemente quebrada.
A luz dessa teoria foi possvel a utilizao metdica dos manuscritos. Agrupados em
famlias, apenas os melhores, os mais representativos de cada uma delas foram tomados para
colao e referncia. De uma primeira destaca-se o Bodleianus 39, da Biblioteca de Oxford,
tambm chamado Clarkianus, do nome do mineralogista ingls, Edw. D. Clarke, que o adquiriu
juntamente com outros do mosteiro de Patmos, em comeos do sculo XIX. Esse manuscrito data
do fim do sculo IX ou do comeo do seguinte, e contm apenas o primeiro dos dois volumes que
geralmente perfazem, nos manuscritos, as obras completas de Plato. Os aparatos crticos desde
Schanz, um dos grandes estudiosos do texto platnico, assinalam-no com a sigla B. Uma segunda
famlia tem dois principais representantes, que se complementam; o Parisinus gr. 1807 (sigla A),
da mesma poca que o Bodleianus, e que ao contrrio deste tem apenas o segundo volume; e o
Venetus, append. class. 4, n. 1 (sigla T), da Biblioteca de S. Marcos de Veneza, que parece
derivar-se do primeiro e data do fim do sculo XI ou comeo do seguinte. Enfim, uma terceira
famlia representada pelo Vindobonensis 54, sup-plem.philo. gr. 7 (sigla W), que data
provavelmente do sculo XII.
Qualquer outro manuscrito porventura utilizado no estabelecimento de um texto ser
sempre a ttulo suplementar e como representante de uma tradio especial dentro de uma das trs
famlias acima referidas. Por exemplo, no caso do Banquete, enquanto Burnet utiliza apenas os
manuscritos B, T e W, Robin serve-se, alm desses, do Vindobonensis 21 (sigla Y), cujas lies
em parte se aproximam da tradio AT, em parte da de B. Ao lado desses manuscritos4, os
nossos dois editores conferem tambm o Papyrus Oxyrhynchus n. 843, que contm um texto
integral do Banquete, a partir de 201 a 1. A esses textos de base acrescentam-se as citaes dos
autores antigos (que com o Papyrus Oxyrhynchus representam a tradio antiga, designada
tambm de indireta pela crtica) e as correes dos crticos e editores modernos. esse o material
que figura num aparato crtico, condensado em algumas linhas abaixo do texto.
4 As correes que esses manuscritos apresentam so indicadas por Burnet com a letra minscula (b, t, w) e por Robin com as mesmas
maisculas, mas com o expoente 2 (B2, T2, W2). (N. do T.)
-
As edies de Burnet e de Robin apresentam em seu texto muitas concordncias. Ambas
se efetuaram ao termo de uma longa evoluo da crtica de texto, e em conseqncia trazem ambas
um trao comum que as diferencia da maioria das edies do sculo XIX, e que uma acentuada
prudncia na adoo das correes modernas, abundantes entre os editores do sculo anterior. O
aparato crtico de ambas, particularmente o de Robin, bem mais rico a esse respeito, d bem uma
idia disso. O texto de Robin, quanto escolha das lies, parece mais conservador ainda que o de
Burnet, mais respeitador da tradio dos manuscritos, o mesmo no ocorrendo porm quanto
pontuao do texto e disposio dos pargrafos, que ele procura apresentar moda dos livros
modernos. Tal procedimento, justificvel alis diante da irregularidade que os manuscritos
apresentam a este respeito como alis a tradio antiga , se tem a vantagem da clareza,
muitas vezes afeta o estilo ou mesmo o sentido de certas passagens do texto. A dissimulao do
estilo particularmente sensvel aqui no Banquete, nos discursos de Pausnias e de Alcibades,
em que uma pontuao moderna reduz os longos perodos do primeiro e disciplina as frases
naturalmente desordenadas do segundo. Esse motivo levou-me afinal a conservar o texto de Burnet
como base, embora adotando um maior nmero de lies de Robin.
Em algumas dificuldades da traduo vali-me das tradues francesas de L. Robin ("Les
Belles Lettres ") e de Emile Chambry (Edies Garnier), assim como em uns poucos casos da
traduo latina de B. B. Hirschig, da coleo Didot. Todavia, cumpre-me declarar, com o risco
embora de parecer incorrer em pecado de fatuidade, o prazer especial que me deu a verso direta do
texto grego ao vernculo, cujas genunas possibilidades de expresso me parecem ofuscadas e
ameaadas no tradutor brasileiro de textos gregos e latinos pelo prestgio das grandes lnguas
modernas da cultura ocidental. bem provvel que a presente traduo nada tenha de
excepcional, e que o seu autor, em muitos torneios de frases e em muita escolha de palavra, tenha
sido vtima da falta de disciplina e de tradio que est porventura alegando nesse setor da nossa
atividade intelectual. No entanto, em alguma passagem ele ter talvez acertado, e esse parco
resultado poder dar uma idia do que seria uma reao especial nossa a um texto helnico, que
conhecemos geralmente atravs da sensibilidade e da elucubrao do francs, do ingls, do alemo,
etc. Nossa lngua tem necessariamente uma maleabilidade especial, uma peculiar distribuio do
vocabulrio, uma maneira prpria de utilizar as imagens e de proceder s abstraes, e todos esses
-
aspectos da sua capacidade expressiva podem ser poderosamente estimulados pelo verdadeiro desafio
que as qualidades de um texto grego muitas vezes representam para uma traduo. A linguagem
filosfica sobretudo, e em particular a linguagem de Plato, oferece sob esse aspecto um vastssimo
campo para experincias dessa natureza. Alguns exemplos do Banquete ilustram muito bem esse
tipo especial de dificuldades que o tradutor pode encontrar e para as quais ele acaba muitas vezes
recorrendo s notas explicativas. No entanto, se estas so inevitveis numa traduo moderna, no
absolutamente inevitvel que sejam as mesmas em todas as lnguas modernas. Fazer com que se
manifestasse nesta traduo justamente a diferena que acusa a reao prpria e o carter de nossa
lngua, eis o objetivo sempre presente do tradutor.
Quanto s pequenas notas explicativas, do elas naturalmente um rpido esclarecimento
sobre nomes e fatos da civilizao helnica aparecidos no contexto do Banquete, mas o que elas
almejam sobretudo ajudar compreenso desta obra platnica, ao mesmo tempo em seus trechos
caractersticos e em seu conjunto. Alguns anos de ensino de literatura grega levaram-me curiosa
constatao da impacincia e desateno com que uma inteligncia moderna l um dilogo
platnico. Quem quiser por si mesmo tirar a prova disso, procure a uma primeira leitura resumir
qualquer um desses dilogos, mesmo dos menores, e depois confira o seu resumo com uma segunda
leitura. Foi a vontade de ajudar o leitor moderno nesse ponto que inspirou a maioria das notas.
Finalmente devo assinalar que, no obstante a modstia de contedo e de propores deste
trabalho, eu no teria sido capaz de efetu-lo sem a constante orientao do Prof. Aubreton, cujas
observaes levaram-me a sucessivos retoques, particularmente na traduo e na confeco das
notas. A ele, por conseguinte, quero deixar expressos, com a minha admirao, os mais sinceros
agradecimentos.
J. C. de Souza
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Apolodoro1 e um Companheiro
APOLODORO
Creio que a respeito do que que-reis saber no estou sem preparo. Com
efeito, subia eu h pouco cidade, vindo de minha casa em Falero2, quando um
conhecido atrs de mim avistou-me e de longe me chamou, exclamando em tom de
brincadeira3: "Falerino! Eh, tu, Apolodoro! No me esperas?" Parei e esperei. E ele
disse-me: "Apolodoro, h pouco mesmo eu te procurava, desejando informar-me
do encontro de Agato, Scrates, Alcibades, e dos demais que ento assistiram ao
banquete4, e saber dos seus discursos sobre o amor, como foram eles. Contou-mos
uma outra pessoa que os tinha ouvido de Fnix, o filho de Filipe, e que disse que
tambm tu sabias. Ele porm nada tinha de claro a dizer. Conta-me ento, pois s o
mais apontado a relatar as palavras do teu companheiro. E antes de tudo,
continuou, dize-me se tu mesmo estiveste presente quele encontro ou no." E eu
respondi-lhe: " muitssimo provvel que nada de claro te contou o teu narrador,
se presumes que foi h pouco que se realizou esse encontro de que me falas, de
modo a tambm eu estar presente. Presumo, sim, disse ele. De onde, Glauco?,
tornei-lhe. No sabes que h muitos anos Agato no est na terra, e desde que eu
freqento Scrates e tenho o cuidado de cada dia saber o que ele diz ou faz, ainda
no se passaram trs anos5? Anteriormente, rodando ao acaso e pensando que fazia
alguma coisa, eu era mais miservel que qualquer outro, e no menos que tu agora,
se crs que tudo se deve fazer de preferncia filosofia"6. "No fiques zombando,
1O interlocutor de Scrates no est s. (N. do T.) 2 Porto de Atenas, ao sul do Pireu, a menos de 6 km da cidade. (N. do T.)
3 A brincadeira consiste no tom solene da interpelao, dado pelo patronmico e pelo emprego do demonstrativo em vez do pronome pessoal.
(N. do T.) 4 Literalmente, jantar coletivo. Depois da refeio propriamente dita que havia o simpsio, i.e., "bebida em conjunto", acompanhado das
mais variadas diverses, entre as quais as competies literrias. (N. do T.) 5 Entre a data da realizao do banquete (v. infra 173a) e a da sua narrao por Apolodoro medeiam portanto muitos anos. Tanto quanto um
indcio cronolgico, essa notcia vale como uma curiosa ilustrao da importncia da memria na cultura da poca. V. infra 173 b e cf. Fdon, 57a-b (N. do T.) 6 O entusiasmo de Apolodoro, raiando o ridculo, constitui sem dvida o primeiro trao do retrato que o Banquete nos d de um Scrates
capaz de suscitar desencontradas adeses, e nesse sentido uma hbil antecipao da atitude de Alcibades, tambm ridcula, mas noutra perspectiva. Cf. infra 222 c-d (N. do T.)
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tornou ele, mas antes dize-me quando se deu esse encontro". "Quando ramos
crianas ainda, respondi-lhe, e com sua primeira tragdia. Agato vencera o
concurso7, um dia depois de ter sacrificado pela vitria, ele e os coristas8. Faz muito
tempo ento, ao que parece, disse ele. Mas quem te contou? O prprio Scrates?
No, por Zeus, respondi-lhe, mas o que justamente contou a Fnix. Foi um certo
Aristodemo, de Cidateneo, pequeno, sempre descalo9; ele assistira reunio,
amante de Scrates que era, dos mais fervorosos a meu ver. No deixei todavia de
interrogar o prprio Scrates sobre a narrao que lhe ouvi, e este me confirmou o
que o outro me contara. Por que ento no me contas-te? tornou-me ele;
perfeitamente apropriado o caminho da cidade a que falem e ouam os que nele
transitam."
E assim que, enquanto caminhvamos, fazamos nossa conversa girar sobre
isso, de modo que, como disse ao incio, no me encontro sem preparo. Se
portanto preciso que tambm a vs vos conte, devo faz-lo. Eu, alis, quando
sobre filosofia digo eu mesmo algumas palavras ou as ouo de outro, afora o
proveito que creio tirar, alegro-me ao extremo; quando, porm, se trata de outros
assuntos, sobretudo dos vossos, de homens ricos e negociantes, a mim mesmo me
irrito e de vs me apiedo, os meus companheiros, que pensais fazer algo quando
nada fazeis. Talvez tambm vs me considereis infeliz, e creio que verdade o que
presumis; eu, todavia, quanto a vs, no presumo, mas bem sei.
COMPANHEIRO
s sempre o mesmo, Apolodoro! Sempre te ests maldizendo, assim
como aos outros; e me pareces que assim sem mais consideras a todos os outros
infelizes, salvo Scrates, e a comear por ti mesmo. Donde que pegaste este
apelido de mole, no sei eu; pois em tuas conversas s sempre assim, contigo e com
os outros esbravejas, exceto com Scrates.
APOLODORO
7 Em 416, no arcontado de Eufemo. V. supra nota 5. (N. do T.)
8 Os que formavam o coro de sua tragdia. (N. do T.)
9 Tal como o prprio Scrates (v. infra 174a). Sem dvida, outra indicao do fascnio que Scrates exercia sobre os amigos. (N do T.)
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Carssimo, e assim to evidente que, pensando desse modo tanto de
mim como de ti, estou eu delirando e desatinando?
COMPANHEIRO
No vale a pena, Apolodoro,
brigar por isso agora; ao contrrio, o que eu te pedia, no deixes de faz-lo;
conta quais foram os discursos.
APOLODORO
Foram eles em verdade mais ou menos assim. . . Mas antes do comeo,
conforme me ia contando Aristodemo, que tambm eu tentarei contar-vos.
Disse ele que o encontrara Scrates, banhado e calado com as sandlias, o
que poucas vezes fazia; perguntou-lhe ento onde ia assim to bonito.
Respondeu-lhe Scrates: Ao jantar em casa de Agato. Ontem eu o evitei,
nas cerimnias da vitria, por medo da multido; mas concordei em comparecer
hoje. E eis por que me embelezei assim, a fim de ir belo casa de um belo. E tu
disse ele que tal te dispores a ir sem convite ao jantar?
Como quiseres tornou-lhe o outro.
Segue-me, ento continuou Scrates e estraguemos o provrbio,
alterando-o assim: "A festins de bravos10, bravos vo livremente." Ora, Homero
parece no s estragar mas at desrespeitar este provrbio; pois tendo feito de
Agameno um homem excepcionalmente bravo na guerra, e de Menelau um "mole
lanceiro", no momento em que Agameno fazia um sacrifcio e se banqueteava, ele
imaginou Menelau chegado sem convite, um mais fraco ao festim de um mais
bravo.11
Ao ouvir isso o outro disse: provvel, todavia, Scrates, que no
como tu dizes, mas como Homero, eu esteja para ir como um vulgar ao festim de
um sbio, sem convite. V ento, se me levas, o que deves dizer por mim, pois no
concordarei em chegar sem convite, mas sim convidado por ti.
10 Ilada, XVII, 587, "de bravos" coincide com o nome do poeta Agato, O provrbio homrico fica estragado, primeiramente por se
subentender de Agato, e tambm pelo fato de o prprio Scrates se qualificar de bravo, contra o hbito de sua irnica modstia. (N. do T.) 11
A "mais fraco" e "mais bravo" correspondem no texto grego simplesmente os comparativos de "ruim" e "bom". Tal relao deixa-nos ver assim, sob a capa de uma crtica ao grande poeta o aspecto fundamental do pensamento de Scrates, i.e., sua constante referncia idia do bem. Outra indicao dramtica, sem dvida, e preludia a doutrina da atrao universal do bom e do belo. V. infra 205d-e. (N. do T.)
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Pondo-nos os dois a caminho12 disse Scrates decidiremos o que
dizer. Avante!
Aps se entreterem em tais conversas, dizia Aristodemo, eles partem.
Scrates ento, como que ocupando o seu esprito consigo mesmo, caminhava
atrasado, e como o outro se detivesse para aguard-lo, ele lhe pede que avance.
Chegado casa de Agato, encontra a porta aberta e a lhe ocorre, dizia ele, um
incidente cmico. Pois logo vem-lhe ao encontro, l de dentro, um dos servos, que
o leva onde se reclinavam13 os outros, e assim ele os encontra no momento de se
servirem; logo que o viu, Agato exclamou: Aristodemo ! Em boa hora chegas
para jantares conosco ! Se vieste por algum outro motivo, deixa-o para depois, pois
ontem eu te procurava para te convidar e no fui capaz de te ver. Mas. . . e
Scrates, como que no no-lo trazes?
Voltando-me ento prosseguiu ele em parte alguma vejo Scrates a
me seguir; disse-lhe eu ento que vinha com Scrates, por ele convidado ao jantar.
Muito bem fizeste disse Agato; mas onde est esse homem?
H pouco ele vinha atrs de mim; eu prprio pergunto espantado onde
estaria ele.
No vais procurar Scrates e traz-lo aqui, menino14? exclamou
Agato. E tu, Aristodemo, reclina-te ao lado de Erixmaco.
Enquanto o servo lhe faz abluo para que se ponha mesa, vem um outro
anunciar: Esse Scrates retirou-se em frente dos vizinhos e parou; por mais que
eu o chame no quer entrar.
estranho o que dizes exclamou Agato; vai cham-lo! E no mo
largues!
Disse ento Aristodemo: Mas no!
12 Outra alterao de um verso homrico tambm tornado proverbial (Ilada, X, 224), em que o (= um pelo outro) substitudo por
(= a caminho). (N. do T.) 13
Em longos divas, que geralmente comportavam dois convivas, s vezes trs. (N. do T.) 14
Agato est falando a um servo, tal como muitas vezes um patro entre ns fala com empregado. (N. do T.)
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Deixai-o! um hbito seu esse15: s vezes retira-se onde quer que se
encontre, e fica parado. Vir logo porm, segundo creio. No o incomodeis
portanto, mas deixai-o.
Pois bem, que assim se faa, se teu parecer tornou Agato. E
vocs, meninos, atendam aos convivas. Vocs bem servem o que lhes apraz,
quando ningum os vigia, o que jamais fiz; agora portanto, como se tambm eu
fosse por vocs convidado ao jantar, como estes outros, sirvam-nos a fim de que os
louvemos.
Depois disso continuou Aristodemo puseram-se a jantar, sem que
Scrates entrasse. Agato muitas vezes manda cham-lo, mas o amigo no o deixa.
Enfim ele chega, sem ter demorado muito como era seu costume, mas exatamente
quando estavam no meio da refeio. Agato, que se encontrava reclinado sozinho
no ltimo leito16, exclama: Aqui, Scrates! Reclina-te ao meu lado, a fim de que
ao teu contato desfrute eu da sbia idia que te ocorreu em frente de casa. Pois
evidente que a encontraste, e que a tens, pois no terias desistido antes.
Scrates ento senta-se e diz: Seria bom, Agato, se de tal natureza fosse a
sabedoria que do mais cheio escorresse ao mais vazio, quando um ao outro nos
tocssemos, como a gua dos copos que pelo fio de l escorre17 do mais cheio ao
mais vazio. Se assim tambm a sabedoria, muito aprecio reclinar-me ao teu lado,
pois creio que de ti serei cumulado com uma vasta e bela sabedoria. A minha seria
um tanto ordinria, ou mesmo duvidosa como um sonho, enquanto que a tua
brilhante e muito desenvolvida, ela que de tua mocidade to intensamente brilhou,
tornando-se anteontem manifesta a mais de trinta mil gregos que a testemunharam.
15 curiosa essa explicao de um hbito socrtico a amigos de Scrates, tanto mais que, um pouco abaixo (dl-2), Agato revela estar
familiarizado com ele. Isso denuncia a fico platnica, e em particular a inteno de sugerir desde j a. capacidade socrtica para as longas concentraes de esprito, como a que Alcibades contar em seu discurso (220c-d). (N. do T.) 16
Os divas do banquete se dispunham em forma de uma ferradura. No extremo esquerdo ficava o anfitrio, que punha sua direita o hspede de honra. o lugar que Agato oferece a Scrates. (N.doT.) 17
Sem dvida um processo de purificao da gua. Aristfanes (Vespas, 701-702) refere-se ao mesmo processo, mas com relao ao leo. (N.doT.)
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s um insolente, Scrates disse Agato. Quanto a isso, logo mais
decidiremos eu e tu da nossa sabedoria, tomando Dioniso por juiz18; agora porm,
primeiro apronta-te para o jantar.
Depois disso continuou Aristodemo reclinou-se Scrates e jantou
como os outros; fizeram ento libaes e, depois dos hinos ao deus e dos ritos de
costume, voltam-se bebida. Pausnias ento comea a falar mais ou menos assim:
Bem, senhores, qual o modo mais cmodo de bebermos? Eu por mim digo-vos
que estou muito indisposto com a bebedeira de ontem, e preciso tomar flego e
creio que tambm a maioria dos senhores, pois estveis l; vede ento de que modo
poderamos beber o mais comodamente possvel.
Aristfanes disse ento: bom o que dizes, Pausnias, que de qualquer
modo arranjemos um meio de facilitar a bebida, pois tambm eu sou dos que
ontem nela se afogaram.
Ouviu-os Erixmaco, o filho de Acmeno, e lhes disse: Tendes razo!
Mas de um de vs ainda preciso ouvir como se sente para resistir bebida; no ,
Agato?
Absolutamente disse este tambm eu no me sinto capaz.
Uma bela ocasio seria para ns, ao que parece continuou Erixmaco
para mim, para Aristodemo, Fedro e os outros, se vs os mais capazes de beber
desistis agora; ns, com efeito, somos sempre incapazes; quanto a Scrates, eu o
excetuo do que digo, que ele capaz de ambas as coisas e se contentar com o que
quer que fizermos19. Ora, como nenhum dos presentes parece disposto a beber
muito vinho, talvez, se a respeito do que a embriaguez eu dissesse o que ela ,
seria menos desagradvel. Pois para mim eis uma evidncia que me veio da prtica
da medicina: esse um mal terrvel para os homens, a embriaguez; e nem eu
prprio desejaria beber muito nem a outro eu o aconselharia, sobretudo a quem
est com ressaca da vspera.
18 Patrono dos concursos teatrais e deus do vinho, Dioniso apropriadamente mencionado por Agato como o rbitro natural da prxima
competio entre os convivas, no simpsio propriamente dito. (N. do T.) 19
A o socrtica, i.e., o domnio dos apetites e sentidos do corpo, resiste tanto fadiga e dor como ao prazer (v. infra 220a), :al como Plato queria que fossem os guardies da sua cidade ideal. V. Repblica III, 413d-e. iN. doT.)
-
Na verdade exclamou a seguir Fedro de Mirrinote20 eu costumo
dar-te ateno, principalmente em tudo que dizes de medicina; e agora, se bem
decidirem, tambm estes o faro. Ouvindo isso, concordam todos em no passar a
reunio embriagados, mas bebendo cada um a seu bel-prazer21.
Como ento continuou Erixmaco isso que se decide, beber cada
um quanto quiser, sem que nada seja forado, o que sugiro ento que mandemos
embora a flautista que acabou de chegar, que ela v flautear para si mesma, se
quiser, ou para as mulheres l dentro; quanto a ns, com discursos devemos fazer
nossa reunio hoje; e que discursos eis o que, se vos apraz, desejo propor-vos.
Todos ento declaram que lhes apraz e o convidam a fazer a proposio.
Disse ento Erixmaco: O exrdio de meu discurso como a Melanipa22 de
Eurpides; pois no minha, mas aqui de Fedro a histria que vou dizer. Fedro,
com efeito, freqentemente me diz irritado: No estranho, Erixmaco, que
para outros deuses haja hinos e pes, feitos pelos poetas, enquanto que ao Amor
todavia, um deus to venervel e to grande, jamais um s dos poetas que tanto se
engrandeceram fez sequer um encmio23? Se queres, observa tambm os bons
sofistas: a Hrcules e a outros eles compem louvores em prosa, como o excelente
Prdico24 e isso menos de admirar, que eu j me deparei com o livro de um
sbio25 em que o sal recebe um admirvel elogio, por sua utilidade; e outras coisas
desse tipo em grande nmero poderiam ser elogiadas; assim portanto, enquanto em
tais ninharias despendem tanto esforo, ao Amor nenhum homem at o dia de hoje
teve a coragem de celebr-lo condignamente, a tal ponto negligenciado um to
grande deus! Ora, tais palavras parece que Fedro as diz com razo. Assim, no s
20 Um dos numerosos demos (no tempo de Herdoto 100), i.e., distritos em que se subdividia a populao de tica. (N. do T.)
21 Geralmente o , i.e., o chefe do simpsio, eleito pelos convivas, determinava o programa da bebida, fixando inclusive o grau
de mistura do vinho a ser obrigatoriamente ingerido. V. infra 213e, 9-10. (N. do T.) 22
Melanipa, a Sbia, tragdia perdida de Eurpedes, que tambm escreveu Melanipa, a Prisioneira. Erixmaco refere-se ao verso (frag. 487 Wagner) : no minha a histria, mas de minha me. (N. do T.) 23
Isto , uma composio potica, consagrada exclusivamente ao louvor de um deus ou de um heri. Um elogio potico belssimo, embora no esprito da tragdia, encontra-se no famoso 3 estsimo da Antgona de Sfocles, 783-800. (N. do T.) 24
Natural de Ceos, nasceu por volta de 465. Preocupou-se especialmente com o estudo do vocabulrio. No Protgoras (315d) Scrates chama-o de Tntalo, aludindo ao seu tormento na procura da expresso exata. (N. do T.) 25
O sbio em questo talvez Polcrates, o mesmo autor do panfleto que justificava a condenao de Scrates e que tambm escrevera peas retricas de elogio panela, aos ratos, aos seixos. (N. do T.)
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eu desejo apresentar-lhe a minha quota26 e satisfaz-lo como ao mesmo tempo,
parece-me que nos convm, aqui presentes, venerar o deus. Se ento tambm a vs
vos parece assim, poderamos muito bem entreter nosso tempo em discursos; acho
que cada um de ns, da esquerda para a direita, deve fazer um discurso de louvor
ao Amor, o mais belo que puder, e que Fedro deve comear primeiro, j que est
na ponta e o pai da idia.
Ningum contra ti votar, Erixmaco disse Scrates. Pois nem
certamente me recusaria eu, que afirmo em nada mais ser entendido seno nas
questes de amor, nem sem dvida Agato e Pausnias, nem tampouco
Aristfanes, cuja ocupao toda em torno de Dioniso e de Afrodite, nem
qualquer outro destes que estou vendo aqui. Contudo, no igual a situao dos
que ficamos nos ltimos lugares; todavia, se os que esto antes falarem de modo
suficiente e belo, bastar. Vamos pois, que em boa sorte comece Fedro e faa o seu
elogio do Amor.
Estas palavras tiveram a aprovao de todos os outros, que tambm
aderiram s exortaes de Scrates. Sem dvida, de tudo que cada um deles disse,
nem Aristodemo se lembrava bem, nem por minha vez eu me lembro de tudo o
que ele disse; mas o mais importante, e daqueles que me pareceu que valia a pena
lembrar, de cada um deles eu vos direi o seu discurso.
Primeiramente, tal como agora estou dizendo, disse ele