Download - PITZ_A Vontade Geral em Rousseau.pdf
-
GELAZIO PITZ
A Vontade Geral Segundo Jean-Jacques Rousseau: Uma fundamentao moral da poltica
FLORIANPOLIS, JUNHO DE 2004
-
Universidade Federal de Santa Catarina Centro de Filosofia e Cincias Humanas
Programa de Ps-Graduao em Filosofia Dissertao de Mestrado
A Vontade Geral Segundo Jean-Jacques Rousseau: Uma fundamentao moral da poltica
Gelazio Pitz
FLORIANPOLIS, JUNHO DE 2004
-
Universidade Federal de Santa Catarina Centro de Filosofia e Cincias Humanas
Programa de Ps-Graduao em Filosofia Dissertao de Mestrado
A Vontade Geral Segundo Jean-Jacques Rousseau: Uma fundamentao moral da poltica
Dissertao de Mestrado, apresentada ao colegiado do Curso de Mestrado em Filosofia rea de concentrao tica e Filosofia Poltica, do Centro de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, como exigncia obteno do ttulo de Mestre em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Selvino Jos Assmann
FLORIANPOLIS, JUNHO DE 2004
-
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA UFSC
CURSO DE MESTRADO EM FILOSOFIA
A Comisso Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertao
A Vontade Geral Segundo Jean-Jacques Rousseau: Uma fundamentao moral da poltica
Por
GELAZIO PITZ
Como Requisito parcial `a obteno do Titulo de Mestre em Filosofia
Comisso Examinadora: ________________________________ Dr. Luiz Vicente Vieira
________________________________ Dra. Sara ________________________________ Dr. Selvino Jose Assmann
-
Nada escrever jamais o que eu mesmo no produza e,
modesto, dizer minha altiva musa: seja do teu pomar teu
prprio pomar o que tu colhas, embora fruto, flor, ou
simplesmente folhas ( Edmond Rostand )
-
RESUMO
A teoria poltica de Rousseau deve ser compreendida a partir da anlise de trs momentos tericos distintos que esto coerentemente encadeados. Num primeiro momento, como autor do Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, Rousseau produz, mesmo que por um mtodo hipottico, uma reflexo realista sobre a realidade humana, quanto sua evoluo e organizao social, econmica e poltica. o trabalho da constatao, compreenso e crtica ao real atravs de sua deduo abstrata. O segundo momento lhe possibilita, tendo por base o primeiro, uma reflexo acerca do ideal para onde deseja, deve (moralmente pela via poltica) e pode evoluir a sociedade humana. o momento da proposta para uma transformao ideal da realidade constatada no primeiro momento. Passamos a nos deparar com um Rousseau romntico, sonhador e, portanto, extremamente idealista, presente no Do Contrato Social. Neste segundo momento sua reflexo se d no sentido de esclarecer que no basta apenas ter sido capaz de compreender e explicar a realidade, mas tambm, que preciso ser capaz de inquietar-se com o que se constatou e no medir esforos para propor a construo da melhor sociedade possvel para o gnero humano. Prope como ideal aquela sociedade que considera como nico fundamento legtimo vontade geral. E, finalmente no terceiro momento, Rousseau se depara novamente com o real, no entanto, agora sentindo-se na obrigao de agir tendo em vista tudo o que j analisou, criticou e props. o momento da transformao do real, tendo em vista a aplicao do ideal, dentro dos limites do possvel. a ocasio em que se cobre com as vestes do legislador ou do conselheiro e ento percebe as significativas distncias que separam uma teoria da sua aplicao prtica. Palavras-chave: Vontade Geral, tica, Poltica
-
ABSTRACT
The political theory of Rousseau must be understood through the analysis of three distinct theoretical moments, which are consistently linked. In the first moment, as the author of Discours sur lOrigene de lIngalit Parmis les Hommes, Rousseau creates, although using a hypotactic method, a realistic reflection regarding the human reality, its evolution and social, political and economic organization. Its the work of finding, understanding and criticizing the concrete through its abstract deduction. The second moment enables him, having the first as basis, a reflection regarding the ideal to where it wishes, must (morally through the political way) and can the human society develop. Its the moment to propose an ideal transformation of the reality encountered in the first moment. We start to face a romantic, dreamer Rosseau, and therefore extremely idealistic, present in Do Contrato Social. In this second moment his reflection is in the sense of clarifying that its not enough to be able to understand and explain the reality, but it is also necessary to feel disturbed with what you have just discovered and make enormous efforts to propose the construction of the best society possible for the human being. He proposes as ideal the society that considers as its only basis the general will. And finally, in the third moment, Rosseau faces the reality again, but now he is feeling the necessity of acting, having in mind everything that had already been analyzed, criticized and proposed by him. Its the moment of transformation of the real, beyond the limits of the possibilities. Its the opportunity to cover with the garments of the counselor or legislator and then realize the significant distances that separate the theory and its practical application. Key-words: General Will, Ethics, Politics.
-
SUMRIO
INTRODUO
08
CAPTULO I ROUSSEAU: SEU ESTILO E SUA ANLISE SOBRE O PROCESSO DE FORMAO DA SOCIEDADE
15
1. Rousseau, um outro olhar 15
2. A origem e a formao da sociedade segundo Jean-Jacques-
Rousseau
23
3. Sobre a possibilidade de reconstruo da sociedade pela via poltica 34 CAPTULO II ROUSSEAU E A IDIA DE VONTADE GERAL
42
1. A vontade geral como o fundamento tico do Contrato Social
42
2. A Vontade Geral no Contrato Social e o Exerccio da Liberdade Moral 46
3. Duas Formas de Consenso: a vontade geral e a vontade de todos 49
4. A Poltica e sua Funo Pedaggica na Formao Moral do Cidado 57
5. Sobre o Absolutismo da Idia de Vontade Geral 66 CAPTULO III JEAN-JACQUES ROUSSEAU E SUA SOCIEDADE POSSVEL, SEGUNDO O SEU TEMPO E A SUA TEORIA
74
1. O conselheiro dos corsos e a utopia possvel sob certos aspectos
74
2. Consideraes sobre a Polnia: a difcil realizao da utopia 91 CONSIDERAES FINAIS
99
REFERNCIAS
108
-
INTRODUO
Na leitura do Contrato Social, de Jean-Jacques Rousseau, a idia de vontade
geral merece especial ateno, se pretendermos buscar uma melhor compreenso
sobre conceitos como liberdade, tica, poltica, e saber qual a inteno de Rousseau
ao propor o contrato social, enquanto instrumento destinado a garantir que as relaes
polticas e sociais sejam livres.
Sempre que se faz algum estudo centrado no Contrato Social do referido
autor, o tema da liberdade vem, pois, tona como inspirador de um debate especial,
seja a partir da tica pura e simples das relaes humanas, seja com a preocupao de
se entender as relaes dos cidados com as instituies polticas.
Portanto, parece impossvel elaborar uma reflexo com rigor filosfico sobre as
obras de Rousseau relacionadas a temas como educao, sociedade e poltica, sem
que seja dada especial relevncia questo da liberdade humana.
Nesta proposta de trabalho, nossa preocupao central no se volta para a
idia de liberdade como tal, mas, especificamente em investigar o princpio ( tico ) da
liberdade, que neste caso j est posto como sendo a vontade geral, e em mostrar
porque este princpio , segundo Rousseau, o nico ponto possvel para o
estabelecimento e o constante exerccio da liberdade poltica, e quais as controvrsias
que existem em torno desta idia desse pensador genebrino.
Rousseau concebe o homem bom por natureza e culpa a sociedade pela sua
corrupo. Esta concepo de Rousseau, que ser mais detalhadamente apresentada
no primeiro captulo deste trabalho, parece ser o ponto de partida para a compreenso
-
9
de toda a sua teoria poltica, que procura justificar a necessidade da construo de
uma nova sociedade, fundamentada no princpio da vontade geral.
Para melhor compreendermos como Rousseau concebe a essncia humana
como naturalmente boa, nos apoiamos, pois, no primeiro momento deste trabalho,
numa obra que seguramente nos fornecer as reflexes previamente elaboradas por
Jean-Jacques e que nos encaminharo para a compreenso do porqu da idia de
vontade geral como essncia da sua proposta poltica, que a questo central desta
dissertao, tratada no segundo captulo deste trabalho. Por isso, pensamos ser
necessrio fazer, num primeiro momento uma anlise do seu segundo discurso,
intitulado Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os
Homens.
Importante, no entanto, entendermos porque aquele que defende o homem
bom como sendo aquele que vivia antes da civilizao, no estado natural, desfrutando
da sua natureza e da natureza circundante e ali sendo bom por natureza, vem a
defender com tanto vigor a primazia da sociedade sobre o indivduo. Como
compreender esse paradoxo? Se a sociedade corrompe e causa do mal, por que
no propor o retorno do homem sua individualidade e natureza, e no o contrrio?
Rousseau est convencido de que retornar ao estado primitivo constitui-se
uma impossibilidade, pelo menos nos moldes da vida primitiva, no entanto, igualmente
est convencido de que uma nova sociedade possvel e que o caminho a ser
percorrido visando a sua construo o caminho da poltica. Somente por ela o
homem capaz de restabelecer com sua essncia, que em germe ainda est l, na
essncia da sua natureza, embora ofuscada, oculta e reprimida.
-
10
No segundo captulo deste trabalho estaremos discutindo sobre esta idia que
, conforme j dissemos, o cerne da proposta poltica de Rousseau e deste trabalho,
uma vez que a idia de vontade geral, aparece como decisiva e como divisor de guas
em sua poca, na teoria poltica deste autor.
a partir da comparao que o autor do Do Contrato Social faz entre a idia
de vontade geral e a idia de vontade de todos que nos ser possvel mergulhar na
essncia do entendimento da sua proposta e compreender como este pensador
concebe uma nova e radical democracia, uma nova atitude poltica e, enfim, uma nova
sociedade e quais so os novos valores por ele propostos, e assim encaminharmos
nossas reflexes que certamente revigoraro em ns a tenso entre o ideal e o
possvel em se tratando de proposta poltica.
Duas atitudes bem distintas tm sido comuns em relao idia de vontade
geral de Rousseau: de um lado a atitude de contestao, no sentido de uma quase
negao da sua possibilidade e viabilidade. Esta atitude manifesta por aqueles que
consideram o autor do Contrato Social defensor de uma teoria abstrata e
excessivamente romntica e utpica.
Do outro lado esto os admiradores, ou seja, aqueles que vem na idia de
vontade geral, a mais pura concepo de um ideal poltico, que reconhecem nela o seu
teor utpico, que no entanto nem por isso deixam de reconhec-la como uma proposta
para a construo de uma nova sociedade, sendo secundria a discusso de ser ela
plenamente ou parcialmente possvel.
Ressalvamos, no entanto, que o principal objetivo deste trabalho, no se
prope a tensionar e nem a resolver esta questo.
-
11
Em relao a isso, h ainda includo neste trabalho uma outra via de
interpretao, apoiada sobretudo nas reflexes de Hanah Arendt, que apresenta um
Rousseau totalitrio,
no terceiro captulo deste trabalho, onde apresentaremos uma anlise de
duas de suas obras destinadas a realidades vividas e no to somente concebidas,
que encontraremos novos elementos para aperfeioarmos nosso entendimento a
respeito dessa tenso.
A partir da leitura da sua obra Projeto de Constituio para a Crsega, por
alguns momentos nos vem a sensao de que em Rousseau h um idealismo
realmente possvel. O prprio Rousseau, estar nos falando, que em relao
Crsega, a cujo povo dirigiu alguns conselhos, muito do seu ideal concebido no
Contrato Social ainda pode ali se concretizar.
Essa sensao volta a entrar em crise quando em uma rpida anlise da obra
Consideraes Sobre o Governo da Polnia e Sua Reforma Projetada, feita neste
trabalho tambm no captulo terceiro, Rousseau reconhece como na Polnia a
realizao do seu ideal provavelmente encontraria ainda mais srios obstculos, na
tentativa da sua efetivao.
Analisaremos nesse terceiro momento como Rousseau responde a uma
oportunidade que lhe oferecida, para redigir uma proposta com vistas a realidades
concretas, contemporneas e localizadas ( Crsega e Polnia ), oportunizando-lhe a
aplicao da sua teoria ou de confrontar o que prega sua teoria e o que de fato
possvel na prtica. o momento de refletirmos sobre a polmica a respeito de ser sua
teoria apenas um ideal, ou se, alm de um ideal, tambm uma possibilidade concreta
ou, se h necessidade de buscarmos um meio termo entre o ideal e o real, ou, testar e
-
12
saber at que ponto o ideal vivel totalmente ou apenas parcialmente e, se for o caso,
como e em que momento e lugar isso ser possvel ou no, ou ainda sabermos, se
definitivamente ficam comprovados os equvocos de Rousseau, fornecendo assim
subsdios a seus crticos que o consideravam to somente um ludibriado pela sua
prpria utopia da igualdade e justia radical, construda sobre, segundo eles, a
metafsica idia de vontade geral, e um desorientado pensador perdido em suas
incoerncias e contradies. Ou ainda poderemos aproveitar a oportunidade para, a
partir de tudo isso, divagarmos em qualquer outra direo.
Essa trajetria de anlise, a partir da estruturao destes trs captulos , pois,
o que teremos em mente ao longo deste trabalho, no sentido de fazermos, mesmo que
de forma rpida, porm, no carecendo de correo, alguns esclarecimentos a respeito
do tema poltico central da sua teoria poltica que a democracia concebida a partir da
soberania da vontade geral, ou seja a idia de uma fundamentao moral da liberdade
poltica.
Para esta pesquisa bibliogrfica adotaremos um mtodo de leitura que
chamaramos de cronolgico-evolutiva, orientando nossa reflexo e anlise para
seguir uma seqncia no tempo em que foram concebidas as obras e as idias do
autor em questo, e de certa forma tambm a evoluo das mesmas, mesmo que para
isso tenhamos que, muito mais apresentar nossa interpretao e a de comentadores,
no que diz respeito ao real, ao ideal e ao possvel, uma vez que em nenhuma das trs
obras centrais deste trabalho, Rousseau tenha registrado uma reviso de sua
concepo em relao ao que prope o seu plano ideal e ao que percebe como
possvel. Quando muito, apenas possvel perceber suas dificuldades em fazer essa
-
13
transposio quando convidado para aconselhar os corsos e especialmente quando
convidado a propor uma legislao Polnia.
Percebe-se sim, ao longo de suas obras, o que poderamos chamar de uma
evoluo em suas concepes, embora outros entendam serem isso fortes
contradies ou incoerncias.
Diante disso, indispensvel que se registre que o pensamento de Rousseau
no segue um estilo clculo, em que os textos so concebidos dentro de uma lgica
padronizada ou formal.
Na leitura das obras de Rousseau necessrio que tenhamos o cuidado de
dar reflexo a liberdade, no sentido de lermos Rousseau como um autor cujo texto
est sempre em construo e para o qual a contradio um valor e, por que no
dizer, um mrito da razo em sua capacidade de produzir.
Ressaltemos ainda que nossa anlise foi construda essencialmente a partir de
leituras de obras do prprio autor, traduzidas para a Lngua Portuguesa, a citar,
especialmente, o Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre
os Homens, Do Contrato Social, Consideraes Sobre o Governo da Polnia e sua
Reforma Projetada, Projeto de Constituio para a Crsega e O Emlio, ou, Da
Educao.
Para reforarmos nossa reflexo recorremos a alguns importantes
comentadores brasileiros e estrangeiros j traduzidos para a nossa lngua.
Em relao a isto, consideramos fundamental a contribuio de Lus Roberto
Salinas fortes, cuja estrutura e eixo temtico adotamos em nossa elaborao.
Reconhecemos o quanto seria enriquecedor se pudssemos ter includo ainda
reflexes feitas por outros renomados comentadores cujas obras ou textos ainda no
-
14
esto traduzidas, especialmente as de lngua francesa. Eis esta, infelizmente, uma
grande limitao do autor deste trabalho, ou seja, a incapacidade de entender com
segurana textos da lngua francesa.
-
15
CAPTULO I
ROUSSEAU: SEU ESTILO E SUA ANLISE SOBRE O PROCESSO DE FORMAO
DA SOCIEDADE
1. Rousseau, um outro olhar
Dentre os filsofos contratualistas, Rousseau indiscutivelmente uma
singularidade no que se refere s inmeras possibilidades que o seu pensamento
engendra, devido no-linearidade no modo de expor suas idias, possibilitando
mltiplas interpretaes, devido ao ponto do qual parte para construir seu sistema de
idias polticas, que revolucionaram a tradio moderna e liberal, ento vigente, embora
no necessariamente rompessem com a mesma.
Tudo isso e muito mais fornece o terreno comum da modernidade sobre o qual Rousseau caminha de brao dado com seus predecessores e contemporneos liberais. No rejeita os novos princpios, mas os radicaliza ao refletir sobre eles com base na mais ampla das perspectivas (BLOOM, 1990, p. 168).
No entanto, seu modo no-linear de argumentar e sua forma no-padronizada
de pensar e as supostas contradies presentes, as idas e voltas do seu pensamento,
no permitem to facilmente criar bons argumentos para classificar sua teoria como
incoerente e desconexa1.
1 Conforme Marilena Chau, no prefcio de obra de Salinas Fortes (Lus Roberto), no ensaio 21,
Rousseau: da teoria prtica, No h, pois, incoerncia no escritor poltico Rousseau, ao contrrio, h uma extrema ateno utilidade, ao interesse e eficcia da ao do seu ouvinte particular, levando-o a retomar de maneira sempre diferenciada os universais postos no plano da pureza abstrata exigida pela teoria, enquanto poltica transcendental (CHAU apud FORTES, 1976, p. 16).
-
16
Se por um lado o seu pensamento esboa uma proposta idealista de sociedade
que se deva pretender construir2 como alternativa ao agregado social da simples
justaposio de egosmos , at ento constatada pelos sentidos e rejeitada pelo filtro
da razo desse genebrino, em contrapartida, muito realista e objetivo enquanto
registra e analisa esta mesma sociedade3 e pragmtico, enquanto prope o que
possvel4 se atingir ou construir a partir dela.
No pelo simples estatuto jurdico que se regulam as relaes entre os seus membros, que uma repblica se distingue de simples agregado. O que distingue estas duas formas de ordenao social a natureza do lao pelo qual se prendem uns aos outros os seus membros. Numa ptria, os associados possuem todos uma s vontade e um s interesse, ao passo que na outra forma de associao a unio que se verifica no vai alm da simples justaposio dos egosmos individuais (FORTES, 1976, p. 90).
Enquanto o pensamento vigente, em sua poca, concorria para a glorificao
das novas descobertas da cincia e da arte, conseqncias da ainda capacidade da
razo humana, que, conseqentemente, junto com o avano nas relaes comerciais,
gerou o progresso da humanidade, Rousseau analisa cautelosa e criticamente essa
empolgao, questionando o significado do progresso e da evoluo. Assim escreve no
segundo discurso ( DD ):
Os homens so maus uma experincia triste e contnua dispensa provas; no entanto, o homem naturalmente bom creio t-lo demonstrado; o que, pois, poder t-lo depravado a esse ponto seno as mudanas sobrevindas em sua constituio, os progressos que fez e os conhecimentos que adquiriu? Por mais que se admire a sociedade humana, no ser menos verdadeiro que ela necessariamente leva os homens a se odiarem entre si, medida que seus interesses se cruzam, a aparentemente se prestarem servios e a realmente se
2 Idia predominante no Contrato Social. 5Trata-se da sua anlise realista sobre a sociedade feita no Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos
da Desigualdade Entre os Homens. 4 Refere-se ao desafio de Rousseau ao ser convidado para emitir orientaes para a Polnia e a Ilha da
Crsega.
-
17
causarem todos os males imaginveis. Que se poder pensar de um comrcio no qual a razo de cada particular lhe dita mximas diferentemente contrrias s que a razo pura prega ao corpo da sociedade e onde cada um encontra seu lucro na felicidade de outrem? (ROUSSEAU, DD; 2000, p. 127).
Aponta como necessrio se estabelecer, para o entendimento da sociedade, da
forma como foi constituda, como ponto de partida, o referencial que considerasse a
possibilidade de se compreender a situao humana em estgio primitivo e pr-social e
comparar esse momento com o momento posterior, qual seja, o do homem social,
considerando ainda a necessidade de compreenso das questes relacionadas ao
progresso da razo, das tcnicas, da linguagem e das relaes de trocas. Segundo
Allan Bloom (1990, p. 168): A tarefa de Rousseau, portanto, no devolver ao homem
a sua condio original, mas legitimar os resultados da fora e da fraude, persuadir os
homens de que h uma ordem social possvel to benfica quanto justa.
Rousseau inova quanto ao mtodo, enquanto despreza a necessidade de se
construir filosoficamente um entendimento da realidade a partir de uma base histrica
ou de uma base jusnaturalista que confundia o processo civilizatrio como sendo
natural, ou ainda, que levasse em conta a base lgico-racional mecanicista de Hobbes.
Segundo Starobinski (1991, p. 36):
Os fatos histricos no justificam nada, a histria no tem legitimidade moral, e Rousseau no hesita em condenar, em nome dos valores eternos, o mecanismo histrico do qual mostrou a necessidade, e que estendeu s prprias funes morais.
-
18
Jean-Jacques secundarizava tambm as informaes bblicas e as crnicas,
bem como qualquer necessidade de verificao positiva5 dos fatos que afirmava,
esboando suas anlises, tendo por base um mtodo hipottico-dedutivo6.
Comecemos, pois, por afastar todos os fatos, pois eles no se prendem questo. No se devem considerar as pesquisas, em que se pode entrar nesse assunto, como verdades histricas, mas somente como raciocnios hipotticos e condicionais, mais apropriados a esclarecer a natureza das coisas que mostrar a verdadeira origem e semelhantes quelas que, todos os dias, fazem nossos fsicos sobre a formao do mundo. A religio nos ordena a crer que, tendo o prprio Deus tirado os homens do estado de natureza logo depois da criao, so eles desiguais porque assim o desejou; ela no nos probe, no entanto, de formar conjeturas extradas unicamente da natureza do homem e dos seres que o circundam, acerca do que se teria transformado o gnero humano se fora abandonado a si mesmo (ROUSSEAU, DD; 2000, p. 52-53).
Em relao ao seu pensamento, caracterizado por idias romnticas e
idealistas e, por vezes radicais, em sua essncia, Rousseau inova, sobretudo, enquanto
apresenta um contedo qualificado quanto aos fundamentos, o ponto de onde faz partir
sua anlise, elaborando raciocnios hipotticos, que consideram o problema desde o
grau zero e caracterizadas as idias por uma abordagem muito especial e radical em
relao s reflexes que at ento vinham sendo apresentadas, opondo-se tendncia
do pensamento vigente, criticando, entre outras, a base da qual os filsofos de at
ento faziam brotar suas reflexes, apontando-a como erro primrio. Nas palavras do
prprio Rousseau ( ROUSSEAU, DD; 2000, p. 52), ...todos, falando incessantemente de
necessidade, avidez, opresso, desejo e orgulho, transportaram para o estado de
natureza idias que tinham adquirido em sociedade; falavam do homem selvagem e
descreviam o homem civil.
5 ... Mas diferena do esforo filosfico do sculo XIX, e em contraste com as pretenses positivistas
de alguns dos seus contemporneos, Rousseau procura fundar um julgamento moral referente histria, de preferncia a estabelecer um saber antropolgico (STAROBINSKI, 1991, p. 36).
-
19
Outra marca sua foi a de contestar a sociedade enquanto tal, se considerada a
maneira como ela foi e se encontrava estruturada, culpando-a pela corrupo do
homem, ao mesmo tempo em que acredita numa sociedade justa que o homem ser
capaz de construir. Sustenta, alm disso, que pela sociedade que o homem se
corrompe, e que somente na sociedade poder aspirar justia.
Ao contrrio, pois, do que muitos possam argumentar, de que Rousseau seja
um constante crtico da sociedade, das instituies e da poltica, vendo-as com
pessimismo e nostalgia, marca suas reflexes polticas com paixo e f numa nova
sociedade, atribuindo poltica a possibilidade de (r) estabelecer as boas relaes civis
e resgatar a justia, dom divino ao qual o homem se fechou, conferindo-lhe valor de
religio, conforme ele prprio enuncia no DO Contrato Social: Toda justia vem de
Deus, que a sua nica fonte; se soubssemos, porm, receb-la de to alto, no
teramos necessidade nem de governo, nem de leis (ROUSSEAU, 2000; CS p. 105).
No captulo VIII do livro quarto, defende, inclusive, a idia da necessidade de
se instituir uma religio civil, entendendo que a poltica deve ser assumida como uma f
que se professa. Se algum, depois de ter reconhecido esses dogmas, conduzir-se
como se no cresce neles, deve ser punido com a morte, pois cometeu o maior de
todos os crimes mentiu s leis (ROUSSEAU, 2000; CS, p. 241).
Assim, supe ser a poltica o melhor caminho para a salvao do homem,
enquanto via nela a nica forma de libertao do homem e a possibilidade de conquista
da sociedade dos sonhos.
6 Ver: VIEIRA, 1997, p. 47-51.
-
20
Quando, a partir da anlise do Discurso sobre a desigualdade, se poderia
pensar que tudo estivesse consumado e seria hora de depor as armas e entregar-se
ao conformismo de se aceitar o que se tem, buscando to somente evitar seu
agravamento e, quando muito, talvez crer na possibilidade de algumas melhoras ou
consertos, aqui e ali, Rousseau elabora uma obra de cunho poltico7, marcada pela
proposta de esperana no ser humano enquanto tal, apresentando uma proposta com o
intuito de redimir o homem a partir da prpria sociedade, que inicialmente tratada
como fonte do mal humano.
A lucidez, ao contrrio do que muitos possam afirmar, no parece lhe faltar;
pelo contrrio, somente ela lhe poderia conferir a capacidade de, numa reflexo
equilibrada, iluminar-lhe a mente para uma viso transparente e uma anlise crtica a
respeito da realidade, ao mesmo tempo em que o torna capaz de alar vos e ousar
propor um ideal de projeto para as sociedades humanas (Do Contrato Social) e de novo
retornar ao plano da realidade possvel, demonstrando capacidade de recuo, quando a
realidade o tornar necessrio (Consideraes sobre o Governo da Polnia e Projeto de
Constituio para a Crsega).
Segundo Rousseau, at ento os filsofos construram suas anlises
procurando essencialmente compreender e explicar o homem, tendo preferencialmente
presente sua condio de ser j civilizado8 dentro de uma sociedade, de certa forma j
evoluda. A partir dela a explicavam, entendendo que do jeito que as coisas
aconteciam, poderiam ser justificadas, considerando a essncia da natureza humana
7 Trata-se do Contrato social. 8 Ver nota de rodap 11 deste trabalho, referente citao de um trecho do Discurso sobre a Desigualdade e nota de rodap 13.
-
21
de qualidade corruptvel (marcadamente m)9 por definio. Tal como tudo se encontra
estruturado, justifica as desigualdades introduzidas pela propriedade10 como
pertencente ao curso natural e meritrio do agir humano ao longo dos tempos, entre
tantas outras teorias at ento expostas, sem a preocupao com essa anlise radical,
no sentido de construir o argumento a partir da raiz do problema.
Rousseau, como j mencionado anteriormente, vai raiz do problema,
buscando o verdadeiro fundamento para esses conceitos, argumentando que a
compreenso da realidade deve partir de uma anlise que tem como ponto de partida o
perodo pr-embrionrio, embrionrio e de gestao e gerao da sociedade com a
qual nos deparamos.
Feito isso, somente possvel concluir o quanto e porque injusta a sociedade
que temos diante dos nossos olhos e o quanto s instituies no correspondem ao
que devem ser:
Os filsofos que examinaram os fundamentos da sociedade sentiram todos a necessidade de voltar at o estado de natureza, mas nenhum deles chegou at l. Uns no hesitaram em supor, no homem, nesse estado, a noo do justo e do injusto, sem se preocuparem com mostrar que ele deveria ter essa noo, nem que ela lhe fosse til. Outros falaram do direito natural que cada um tem de conservar o que lhe pertence, sem explicar o que entendiam por pertencer. Outros, dando inicialmente ao mais forte a autoridade sobre o mais fraco, logo fizeram nascer o governo, sem se lembrarem do tempo que deveria decorrer antes que pudesse existir entre os homens o sentido das palavras autoridade e governo11 (ROUSSEAU, DD; 2000, p. 52).
9 o caso de Hobbes, que conceitua o homem como sendo mau por natureza. 10 Locke, que entende ser a propriedade justificvel, dentre outras, por razes de mrito. 11 Com esse trecho do incio do Discurso sobre a Desigualdade, Rousseau tambm apresenta sua crtica
e preocupao em relao aos mtodos at ento empregados para a anlise da realidade, afirmando terem todos partido de um princpio no sustentvel, alegando, portanto, que todas as teorias j pecavam por partirem de uma base estabelecida artificialmente.
-
22
Um Rousseau melanclico e pessimista tambm visvel, ao se considerar que
Jean-Jacques no v qualquer perspectiva para a soluo do homem a partir da
sociedade com a qual se depara. De fato, a v como uma impossibilidade de
construo do novo homem para a nova sociedade. Sob essa perspectiva, no h erro
algum em se afirmar que Rousseau pessimista em relao civilizao e
possibilidade de evoluo e progresso dos povos.
O otimismo somente aflora com sua proposta que supe a possibilidade da
eliminao do modelo de sociedade existente, para que ento seja construda uma
nova sociedade, sustentada pelas instituies construdas a partir do soberano valor
estabelecido pela vontade geral.
A contradio bvia da negao e da defesa da sociedade faz parte do seu
modo de pensar a poltica. Nisso no h qualquer incoerncia, apenas um estilo que
pode at funcionar didaticamente bem, enquanto esboa seu pensamento, fazendo uso
do mtodo da negao, ou seja, da crtica sobre o que se tem, para que assim fique de
fato claro qual , e o porqu da sua proposta. uma proposta que primeiro nega e
supe a destruio12 para, em seguida, construir o novo.
Deste modo, no restam dvidas de que a radicalidade de Rousseau est tanto
em negar quanto em propor.
Segundo Hobbes13, para o mal humano no h soluo e condio dada pela
natureza. Rousseau, pelo contrrio, concebe o homem naturalmente livre da condio
12 Talvez, se analisado em seu contexto geral, no conjunto da sua obra, principalmente as Consideraes
Sobre o Governo da Polnia, seja mais correto empregar no lugar do termo destruio, termos mais amenso como desconstruo ou at reforma da sociedade.
13 No iremos, sobretudo, concluir com Hobbes que, por no ter nenhuma idia da bondade, seja o homem naturalmente mau; que seja corrupto porque no conhece a virtude; que nem sempre recusa a seus semelhantes servios que no cr dever-lhes; nem que, devido ao direito que se atribui com
-
23
de ser o pecado original um atributo natural inerente sua natureza, e, de forma
imediata, identifica o mal como fato inerente civilizao e o homem, enquanto
pertencente a este estado, est sempre sujeito a esta, agora,14 a inevitvel fatalidade. A
civilizao , portanto, para Rousseau, uma espcie de sinnimo de corrupo e
pecado.
Ora, nada mais meigo que o homem em seu estado primitivo quando, colocado pela natureza a igual distncia da estupidez dos brutos e das luzes funestas do homem civil, e compelido tanto pelo instinto quanto pela razo a defender-se do mal que o ameaa, impelido pela piedade natural de fazer mal a algum sem ser a isso levado por alguma coisa ou mesmo depois de atingido por algum mal (ROUSSEAU, DD; 2000, p. 93).
Concebe o homem livre por natureza e corrompido pelo processo civilizatrio.
Para Rousseau, o pecado humano no um ato que se comete sozinho e, de forma
alguma, parte constitutiva da identidade do homem no que se refere sua essncia
natural, mas sempre na medida em que ele estabelece relaes com os seus
semelhantes, por necessidades sociais, e no naturais.
2. A Origem e a Formao da Sociedade segundo Jean-Jacques Rousseau
A obra Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os
Homens nos possibilita importantes reflexes acerca do pensamento poltico de Jean-
Jacques Rousseau. Serve de base para a leitura do Do Contrato Social, que, por sua
razo relativamente s coisas de que necessita, loucamente imagine ser o proprietrio do universo inteiro (ROUSSEAU, 2000, p. 75-76).
14 J que pertence ao mundo da civilizao.
-
24
vez, apresenta o ideal de poltica, proposto por Rousseau, pois nessa obra, preliminar
leitura do Do Contrato Social, o autor genebrino nos apresenta a sociedade como a
v, ou seja, real e, conseqentemente, corrompida, desigual e, portanto, injusta.
A partir da leitura da primeira obra referida, percebemos a anlise de Rousseau
a respeito da impossibilidade de, a partir da sociedade que se tem, pretender construir
uma nova, apenas reformando-a com o intuito de que se corrijam as desigualdades e
outras distores, de modo a se conseguir, enfim, estabelecer uma sociedade justa,
sem que se deva fazer sucumbir as slidas estruturas injustas estabelecidas pelos
privilegiados das sociedades e com as quais e sobre as quais as relaes polticas (e
humanas) injustas evoluram ao longo dos tempos.
Desta forma, preocupa-se em rejeitar o modelo de sociedade posto, uma vez
que impossvel a prtica do bem se se mantiverem presentes e vivos os velhos vcios
que a conduziram a tal estado.
Como seria possvel se pretender uma sociedade justa, mantendo-se
conservado o produtor de todas as injustias, que a propriedade, causa primeira de
todas as desigualdades? Como aspirar justia, se ela depende intimamente da
necessidade de se impedir o progresso da desigualdade? Como isso se torna possvel,
se as desigualdades existentes possibilitam aos desiguais, em vantagens, muito mais e
melhores condies para no somente mant-las como tambm ainda e cada vez mais
ampli-las? E como aspirar a uma sociedade justa, conservando os corrompidos
costumes e se, sobretudo, mantivermos essa sociedade respaldada e protegida pelo
casulo das velhas instituies15, que, em momento algum foram concebidas para a
15 No se trata aqui, neste trabalho, de uma abordagem das instituies em geral e sim, especificamente
das crticas de Rousseau s instituies polticas em geral e a forma como at ento vinham sendo
-
25
justia, pela e para a soberania da vontade geral, mas to somente para proteger os
ricos e fortes proprietrios, acometidos pelo constante sentimento de fraqueza e
insegurana diante das iminentes incertezas e ameaas sobre suas posses? Enfim,
como justificar as desigualdades, quando se pretende a justia?
Rousseau crtico da sociedade da razo, das cincias e das artes, do
comrcio, enfim, do progresso, por ela estampar no homem a sua condio adquirida
para uma vida em constante convivncia com o mal. Por ela e com ela o mal aflorou, e
nela se desenvolve. Sendo o homem social, , tambm, conseqentemente,
corrompido e na sociedade que ali est, sente-se tambm constantemente tentado
prtica do mal.
Poder-se-ia, em coerncia a Rousseau, afirmar que a natureza do mal a
sociedade, contudo, isso no equivale necessariamente a que a sociedade deva
naturalmente ser a perpetuao do mal, ou ainda, que o mal seja invencvel.
Na busca da formulao do conceito de sociedade, Rousseau hipoteticamente
a analisa em diferentes estgios da sua evoluo ou progresso.
Analisando o homem no estado de natureza, considera-o um ser primitivo,
isolado e, portanto, bom. Prefere caracteriz-lo assim por entender ser impossvel
conceb-lo de natureza m.
Na verdade, nem o atributo bom lhe seria apropriado, uma vez que no se
tratar de nesse estado se poder contar com a possibilidade de imaginar pertinente ao
homem o bem em oposio ao mal. A qualidade de ser bom somente seria aplicvel
se, em contrapartida, pudssemos tambm caracteriz-lo como sendo mau, o que no
concebidas e justificadas, como por exemplo as leis ou o contrato. o modo de pensar a sociedade a partir da sua origem e justific-la ao longo dos tempos at a sua poca e tambm o agir poltico, ou
-
26
possvel, pois se encontra em estado pr-social e, portanto, pr-moral. Como a
moralidade, tambm esses antagonismos, nesse estado, simplesmente inexistem. Mais
acertado atribuir-lhes as qualidades de ingenuidade, inocncia e pureza.
No estado de natureza, o homem no tem qualquer conscincia, nem no
sentido moral, nem no sentido de domnio racional, uma vez que sua razo no passa
de pura virtualidade16. No tem, pois, conscincia do outro e somente o procura por
uma determinao da lei natural que o impele relao sexual, no sendo, pois, esta
ainda uma relao social e, sim, puramente natural.
O Homem selvagem, privado de toda espcie de luzes, s experimenta as paixes desta ltima espcie, no ultrapassando, pois, seus desejos e suas necessidades fsicas. Os nicos bens que conhece no universo so a alimentao, uma fmea e o repouso; os nicos males que teme, a dor e a fome. Digo a dor e no a morte, pois jamais o animal saber o que morrer, sendo o conhecimento da morte e seus terrores uma das primeiras aquisies feitas pelo homem ao distanciar-se da condio animal (ROUSSEAU, DD; 2000, p. 66).
Segundo Salinas Fortes (1976, p. 117), referindo-se ao homem no estado de
natureza, o indivduo conhece o outro como puro objeto de satisfao sexual igual aos
outros objetos que a natureza lhe oferece para o atendimento das suas necessidades.
Para alm das diferenas fsicas, duas caractersticas importantes, segundo
Rousseau, distinguem, j nesse estado, o homem dos demais animais: a liberdade e a
perfectibilidade.
A liberdade a condio que faz a mquina humana diferenciar-se da mquina
animal. O homem executa as suas aes como o nico agente livre na natureza,
seja, as prticas poltica que sero alvos diretos das crticas do filsofo genebrino.
16 FORTES, 1976, p. 117.
-
27
enquanto os demais animais seguem to somente as leis impostas pela natureza de
fora sobre eles.
Em cada animal vejo somente uma mquina engenhosa a quem a natureza conferiu sentidos para recompor-se por si mesma e para defender-se, at certo ponto, de tudo quanto tende a destru-la ou estrag-la. Percebo as mesmas coisas na mquina humana, com a diferena de tudo fazer sozinha a natureza nas operaes do animal, enquanto o homem executa as suas como agente livre (ROUSSEAU, DD; 2000, p. 64).
A perfectibilidade manifesta-se na evoluo natural e fsica e na evoluo
artificial identificada pela corrupo do esprito, provocada pela razo. Assim, pois, uma
primeira caracterstica da perfectibilidade se manifesta pelas habilidades naturais que
tm os homens de sobressarem em determinadas situaes e que os outros animais
no possuem. Uma segunda manifesta-se pela diferenciao dos talentos naturais que
distinguem os prprios homens entre si e, finalmente, a capacidade espiritual (racional)
que nele posteriormente se desenvolver, distanciando-o, bruscamente dos demais
animais, convertendo-se numa poderosa arma e a maior fonte para a sua corrupo e,
portanto, do mal da humanidade.
(...) haveria uma outra qualidade muito especial que os distinguiria e a respeito da qual no pode haver contestao, a faculdade de aperfeioar-se , faculdade que, com o auxlio das circunstncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e se encontra entre ns, tanto na espcie quanto no indivduo (ROUSSEAU, DD; 2000, p. 64-65).
Neste estado, o homem somente cultiva o amor de si, que consiste em viver
bem segundo sua natureza. O sentimento de piedade o impede de praticar o mal ao
outro, conformando seu agir lei natural:
-
28
(...) a piedade representa um sentimento natural que, moderando em cada indivduo a ao do amor de si mesmo, concorre para a conservao mtua de toda espcie. Ela nos faz, sem reflexo socorrer aqueles que vemos sofrer (ROUSSEAU, DD; 2000, p. 78-79).
Com a fixao de residncia, se d o passo seguinte da evoluo, quando o
indivduo comea a reconhecer o outro e vai descobrindo sua identidade com ele,
identificando-se como pertencente mesma espcie. O homem passa a prestar mais
ateno no seu semelhante, aliado ou concorrente, ocorrendo com isso tambm a
evoluo nos sentimentos, despertando nele atitudes de preferncia de um indivduo
em relao ao outro, que, inicialmente, ocorrem com vistas nas diferenas naturais,
como habilidade, talentos, destreza e, posteriormente, na posio social, no poder e na
riqueza.
A partir desse momento, as relaes humanas passam a adquirir suas
primeiras caractersticas sociais, ocorrendo uma maior estabilizao das relaes
sociais. Os indivduos sentem-se pertencentes mesma espcie. Passam a sentir o
outro, vendo-o como aliado ou como concorrente. Passam os homens a relacionar-se
com mais intimidade.
Dois sentimentos evoludos aparecem, o amor conjugal e o amor paterno, que,
por sua vez, daro origem primeira sociedade humana: a famlia, que, pois, a mais
antiga sociedade e a nica natural. Origina-se no amor conjugal, que por sua vez,
decorre de uma necessidade instintiva, sendo por isso natural, e perpetua-se enquanto
houver dependncia entre seus membros. Se essa unio for mantida slida e
duradoura, isso se deve conveno entre seus membros. Assim enuncia:
A mais antiga de todas as sociedades e a nica natural, a da famlia; ainda assim s se prendem os filhos ao pai enquanto dele necessitam para a prpria
-
29
conservao. Desde que tal necessidade cessa, desfaz-se o liame natural. Os filhos, isentos da obedincia que devem ao pai, e este, isento dos cuidados que deve aos filhos, voltam todos a ser igualmente independentes. Se continuam unidos, j no natural, mas voluntariamente, e a prpria famlia se mantm por conveno (ROUSSEAU, CS; 2000, p. 55).
Esse processo, ao mesmo tempo que, por um lado, aproxima os homens
fazendo-os descobrirem-se como semelhantes e pertencentes mesma espcie, aos
poucos, os leva a diferenciarem-se um do outro, a estranharem-se, fazendo com que o
amor-de-si, sentimento natural humano, ceda espao, lentamente, ao amor-prprio,
sentimento egosta.
No entanto, mesmo aqui o homem ainda conserva uma significativa pureza e
ainda est muito longe da corrupo real.
Segundo Rousseau, nem mesmo a instituio da propriedade, em si, a maior
responsvel pelo auge da corrupo humana.
Essas diferenas so de vrias espcies. Mas a riqueza, a nobreza ou a condio, o poder e o mrito pessoal, sendo, em geral, as distines pessoais pelas quais as pessoas se medem na sociedade, provarei que o acordo ou o conflito dessas foras diversas so a indicao mais certa de um Estado bem ou mal constitudo; mostrarei depois que entre esses quatro tipos de desigualdade, constituindo as qualidades pessoais, a origem de todas as outras, a riqueza a ltima a que por fim elas se seduzem, porque, sendo a mais imediatamente til ao bem-estar e a mais fcil de comunicar-se, servem-se dela com toda facilidade para comprar todo o resto ( ROUSSEAU, CS; 2000, p. 111).
Para ele, as primeiras desigualdades entre os homens foram motivadas pelas
diferenas naturais, quais sejam, de habilidade de produzir mais que o outro, a
inteligncia, a fora, ou at mesmo a preferncia pela beleza. Portanto, como a
propriedade, produziram a desigualdade.
-
30
O que aprofundou o processo de corrupo do homem foi sua evoluo
cultural, fazendo evoluir seus costumes, despertando nele o sentimento de estima e a
necessidade de distinguir cada homem um do outro, necessitando parecer ser17 o que
na verdade no era. E este o ponto central, segundo Rousseau, para entendermos a
sociedade que temos e, obrigatoriamente a rejeitarmos se o nosso critrio de
convivncia social for a justia e o bem.
O problema da corrupo do homem, para Rousseau, est no fato de aqueles
que, pelas suas capacidades naturais destacadas, foram capazes de produzir mais,
para aprofundar as desigualdades, passaram a instituir a idia de admirao riqueza,
alterando para isso as crenas e os valores dominantes na sociedade. Cada um
comeou a olhar os outros e a desejar ser ele prprio olhado, passando assim a estima
pblica e a ter um preo (ROUSSEAU, DD; 2000, p. 92).
A corrupo dos costumes foi, pois, decisiva para o passo seguinte, que levaria
a uma corrupo mais aprofundada da sociedade.
Agora, sim, a propriedade privada passa a ser a vil da sociedade, no
entendimento de Jean-Jacques, uma vez que este processo de evoluo (dos
costumes) que roubou dos homens todos os outros sentimentos de estima, at ento
relacionados com as diferenas naturais e, portanto, sentimentos ainda muito prximos
do homem natural, para, atravs da conscincia corrompida, passar a despertar a
necessidade da propriedade, do acmulo de riquezas.
O sentimento de estima, que at ento era do homem para o homem, com
suas qualidades advindas da natureza, passa agora a ser destinado, no ao que o
17 Para proveito prprio, foi preciso mostrar-se diferente do que na realidade era, ser e parecer tornaram-
se duas coisas totalmente diferentes. Dessa distino resultaram o fausto majestoso, a astcia
-
31
homem e pode e, sim, ao que o homem tem e pode. Quando Rousseau afirma que
com a necessidade de estima o homem passa a ter um preo, est, na verdade,
dizendo que o homem se rebaixou qualidade de produto, desprezando o valor de sua
essncia natural. O homem se compara, pois, a uma coisa qualquer, e a propriedade (a
riqueza) passa a simbolizar esse valor indispensvel.
Se, com a passagem do estado natural para a civilizao, deu-se a corrupo
em germe, j no estado social ela encontrou vcios que possibilitaram sua evoluo. A
sociedade, contudo, mantidos os costumes, no to corrompidos, e considerando a
propriedade como apenas mais uma das diferenas (ou desigualdades) entre os
homens, sem que por ela fosse desenvolvido sentimento de estima maior, ainda se
encontrava em estado no to agravado, em se tratando de corrupo.
O batismo na corrupo, pois, acontece quando o homem desenvolve como
valor, incorporando-o s suas crenas, a necessidade artificial de acumular riquezas. A
corrupo dos costumes decisiva para fazer avanar a passos largos a corrupo do
homem que, assim, resulta na corrupo da sociedade em grau, agora, ainda mais
evoludo.
A anlise de Rousseau est destinada a explicar a sociedade na maneira
como surgiu, evoluiu e se estruturou at sua poca, ou seja, a sociedade das posses
geradoras de desigualdades e das convenes e leis que as mantm (as
desigualdades) e as perpetuam. Entende ser a propriedade a responsvel por esse
processo que se instalou de forma sutil e que se perpetuou pela explorao por ela
possibilitada: O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo
enganadora e todos os vcios que lhes formam o cortejo (ROUSSEAU,DD; 2000, p. 97).
-
32
cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto meu e encontrou pessoas
suficientemente simples para acredit-lo (ROUSSEAU, DD; 2000, p. 87).
uma anlise hipottico-dedutiva feita considerando hipoteticamente a histria
desde os mais longnquos tempos at a sua contemporaneidade, refletindo ainda a
partir da realidade posta diante dos seus prprios olhos, num movimento, sem o
compromisso de coerncia com a sucessividade cronolgica dos fatos histricos.
Por importante que seja, para bem julgar o estado natural do homem, consider-lo desde sua origem e examin-lo, por assim dizer, no primeiro embrio da espcie, no seguirei sua organizao atravs de seus desenvolvimentos sucessivos (ROUSSEAU, DD; 2000, p. 57).
O Discurso sobre a Origem da Desigualdade apresenta, assim, um Rousseau
transparente e realista, crtico, emprico e simplesmente analista e, neste sentido,
diferente do Rousseau sonhador, idealista e romntico, que encontramos no Do
Contrato Social, e cuja idia parece predominar em nossas mentes sempre que nos
referimos a este ilustre cidado de Genebra.
Talvez essa clareza com que elaborou sua reflexo sobre a situao posta
(sociedade que temos), desperte ou reforce nele a convico de que toda essa
realidade fosse artificial e que a realidade real do ser humano se encontrasse na
possibilidade do que ele um dia j foi e ao que se poderia voltar a ser, embora no da
mesma forma como antes.
A temtica de Rousseau em sua crtica sociedade, que a situao social do
homem o afasta da sua natureza, ou seja, que viver em sociedade, da forma como ela
est constituda, incompatvel com sua essncia originria. Assim afirma Starobinski
(1991, p. 36): A sociedade civilizada, desenvolvendo sempre mais sua oposio
-
33
natureza, obscurece a relao imediata das conscincias: a perda da transparncia
original vai de par com a alienao do homem nas coisas materiais.
A sociedade de ento sufocou as qualidades humanas da estima, da
benevolncia e da piedade ao prximo, que poderiam ser molas mestras, tendo-se em
vista uma sociedade justa e, de fato, muito mais prxima da sociedade a que se deve
aspirar. O amor-prprio18 torna-se sentimento predominante na alma humana, em
detrimento do amor-de-si19.
A sociedade posta cada vez mais estimula o gosto pelas coisas, fazendo do
homem um eterno escravo ou, pelo menos, dependente de posses que, nas
circunstncias em que vive, lhe conferem, simultaneamente, a estranha sensao de
segurana e insegurana.
Essa sociedade menos se preocupa com o ser do homem do que com o seu
ter. Assim, enquanto as relaes humanas deveriam ser estabelecidas tendo por
fundamento os sentimentos naturais de benevolncia, estima, piedade no cultivo do
amor de si, acabam se pautando na necessidade de se preterir, quando a esse ponto
se chegar, os verdadeiros valores humanos, para se apegar aos valores suprfluos20,
atribuindo-lhes carter de essencialidade.
Avaliando esta questo, Jean Starobinski (1991, p. 35) assim escreve:
A estima e a benevolncia constituem um lao pelo qual os homens se renem imediatamente: nada se interpe entre as conscincias, elas se oferecem espontaneamente numa evidncia total. Em compensao, os laos ordenados pelo interesse pessoal perderam esse carter imediato. A relao j no mais se estabelece diretamente de conscincia para conscincia: ela agora passa
18 Sentimento negativo identificado com a idia de egosmo. 19 Ao contrrio da idia de amor prprio, identificado por Rousseau como sentimento de desapego
pessoal em benefcio do bem da coletividade. 20 As posses, enfim, os bens materiais.
-
34
por coisas. A perverso que da provm no apenas do fato de que as coisas se interpem entre as conscincias, mas tambm do fato de que os homens, deixando de identificar seu interesse com sua existncia pessoal, identificam-no doravante com os objetos interpostos que acreditam indispensveis sua felicidade. O eu do homem social no se reconhece mais em si mesmo, mas se busca no exterior, entre as coisas; seus meios se tornam seu fim.
Para Rousseau, o homem no mais compartilha com seus semelhantes sua
existncia, com possibilidade de satisfao e realizao mtua e total e, sim, pela
necessidade de proteo, preocupando-se essencialmente em dar garantias sua
existncia por meio do acmulo das posses.
3. Sobre a Possibilidade de Reconstruo da Sociedade pela via Poltica
Envolto nesse mundo do progresso, essencialmente identificado com as
posses que estimulam a constante concorrncia, cujos valores essenciais esto nas
coisas materiais e no no ser de cada um, o homem se v constantemente inseguro,
desprotegido e ameaado. Sente-se constantemente ameaado a perder tudo que com
sacrifcios ou logro acumulou e, em conseqncia disso, sente ameaada sua prpria
vida.
O mesmo ocorre com aquele que nada tem. Sente-se escravo da cultura
construda ao longo dos tempos, geradora de uma presso social, de que para quem
nada tem resta somente a dependncia e/ou a escravido. Isso, de fato, na prtica,
constitui visivelmente a realidade. Onde, pois, est o ser humano em sua essncia?
Diante das complicaes surgidas com o aparecimento da propriedade, que
lanou o ser humano numa constante sensao de insegurana e o corrompeu no
-
35
esprito e no agir, as estruturas injustas da sociedade, com as quais coexiste,
evidentemente, no lhe permitiro o exerccio moral e poltico justo21, devendo, pois
procurar transpor essa situao, para desconstruir todo o sistema corrupto construdo
ao longo dos tempos.
Convivendo com essa situao, o homem, lamentavelmente, aprofundou o
processo de corrupo sempre em ascendncia e buscou, por mecanismos de
persuaso das mentes ingnuas, fazer crer que havia necessidade de se
estabelecerem regras e valores que conferissem a cada um dentro do emaranhado
complexo social meios e garantias de boa convivncia.
Assim, em algum momento da histria, aps institudo o valor da propriedade
como uma crena, algum homem concebe, a partir de um raciocnio e argumento
falacioso, destinado a seu semelhante, a quem pretende persuadir, a necessidade das
leis, das instituies polticas, enfim, do Estado. D-se pois os passos definitivos para a
corrupo do homem em seu grau mais elevado.
A criao das leis, foi pois o recurso que viria resolver esta situao desconfortvel. Com elas todos estariam em iguais condies, pois como ao proprietrio se dava garantias, quem nada possua contentava-se com a idia de que a propriedade era algo a se aspirar e, uma vez conquistada, lhe estaria garantido de antemo sua proteo. O mesmo valia para a propriedade do seu
21 Salinas Fortes (1976, p. 96), ao referir-se necessidade que tm os homens do estabelecimento do
contrato e das instituies polticas, afirma: Os homens, neste estgio da sua evoluo, so incapazes de saber, espontaneamente, em que consiste de maneira concreta o bem comum, cuja busca permanente o fim da associao poltica. J em outra passagem, agora no Contrato social, referindo-se necessidade do legislador, Rousseau (2000, p. 108) afirma que o prprio povo, que segundo ele, conforme j foi esclarecido neste trabalho, representa a melhor unio, tambm encontra dificuldades e cegueiras para legislar, cogitando que O povo por si, quer sempre o bem, mas por si nem sempre o encontra. A vontade geral sempre certa, mas o julgamento que a orienta nem sempre esclarecido. Conclui-se, pois, o quanto para Jean-Jacques, difcil obter a justia, considerando a sociedade que se tem, que visivelmente injusta e, portanto, obviamente distante das aspiraes da vontade geral. Se, pois, para Rousseau, at a prpria vontade geral, para ele a nica fonte de justia, pode errar, ento parece ser segura e verdadeira a concluso de que o exerccio moral e poltico justo ser significativamente dificultado, se se considerar a sociedade que a est.
-
36
corpo. A partir de um pacto, inicialmente, institui-se posteriormente as leis e o governo, sempre em favor dos ricos. Pelo pacto social demos existncia e vida ao corpo poltico (ROUSSEAU, DD; 2000, p. 105).
Para Rousseau, o suposto contrato, foi mais um artifcio para manter a
sociedade que temos tal como se apresenta22, ou seja, injusta e necessria para alguns
poucos ricos, pois os ricos, sobretudo, com certeza, logo perceberam quanto lhes era
desvantajosa uma guerra perptua, cujos gastos s eles pagavam e na qual tanto o
risco da sua vida como o dos bens particulares eram comuns (ROUSSEAU; DD, 2000,
p. 99). Os pobres, segundo ele, tambm viram no contrato alguma proteo,
provavelmente, persuadidos pelo eficiente discurso, que tinha por objetivo perpetuar a
iluso de se pretender a justia com a criao de convenes, que por sua vez,
converteram-se em instrumentos prticos destinados to somente a manter o que
existe, ou seja, uma sociedade desigual e, conseqentemente, injusta.
certo que o Estado de rico e de pobre foi autorizado pela primeira poca, ou seja, com o estabelecimento do direito de propriedade. So os ricos que fundam a sociedade civil, na esperana de preservarem suas propriedades dos ataques dos pobres (FORTES, 1976, p. 119).
Muito mais que estabelecer a justia tem-se notado historicamente que essas
convenes destinavam-se a encobrir as injustias, dando legitimidade e instituindo as
desigualdades como pertencendo ao curso natural da evoluo humana.
uma falcia que induz ao erro de pensar que todo aquele que tem, o tem por
mrito e aquisio justa.
Isso obscurece o problema original apresentado hipoteticamente por Rousseau,
qual seja, de ser a origem da sociedade uma usurpao, portanto, uma aquisio
22 Entende-se aqui a sociedade na poca de Rousseau, sob o crivo da sua anlise.
-
37
injusta, porm, justificada como justa e de direito, legitimando desta forma um
emaranhado de injustias tanto no campo do agir humano, voltado para a necessidade
de acumular para se proteger como em nvel de conscincia que agora, corrompida ou
ludibriada com a concepo da propriedade, com o tempo justificada como de mrito,
se tenha tornado fato inerente capacidade natural humana:
O singular dessa alienao que a comunidade, aceitando os bens dos particulares, longe de despoj-los, no fez seno assegurar a posse legtima, cambiando a usurpao por um direito verdadeiro, e o gozo pela propriedade (ROUSSEAU, CS; 2000, p. 81).
Para Rousseau, o discurso por um ideal social pretexto para se instituir
definitivamente prticas individualistas, tornando-se assim o agir humano ainda mais
distante do seu original, inocente e puro estado de natureza.
Individualmente, encontraram-se solues para os problemas, porm,
socialmente ainda mais distante da justia (social) se ficou.
Contudo, no inteiramente irreal o fato de que se todos renunciarem sob
alguns aspectos, no final, todos ganharo com as instituies legais, pois essas
concesses, alis, foram necessrias de ambas as partes, para que os pactos e
contratos acontecessem e, em troca, fosse possvel garantir no final as vantagens e o
logro (constantes). Nas palavras de Salinas Fortes: Mesmo para os pobres o
estabelecimento poltico oferece suas vantagens e isto, alis, que torna o logro
possvel (FORTES, 1976, p. 85)
O que Rousseau sustenta que essa espcie de pacto, destinado ao bem
comum, que somente foi possvel devido s concesses feitas pela vontade de todos e
que teve sua origem numa necessidade social das vontades somadas, no entanto, no
-
38
correspondeu, na prtica, aos desejos e s necessidades da vontade de todos. Acabou
por assegurar, por concesso dos que tm e dos que nada tm, portanto, de todos, to
somente os ameaados privilgios dos proprietrios, nicos sob constante ameaa de
perdas.
O mal est na sociedade, mas isso no deve necessariamente significar que a
sociedade , ou deva, obrigatoriamente ser m. Apenas este o fato, isto , o que se
sucedeu historicamente e que a est, estabelecido pelo ser humano.
E por que m? Porque os homens corromperam sua essncia, destruindo a
igualdade natural, permitindo e criando condies para a perpetuao da desigualdade,
fruto da cultura, do mau uso da razo, das habilidades naturais e da capacidade de
aperfeioar-se naturalmente, que foram to somente capazes de afastar o ser humano
da sua natureza.
H, sem dvida, uma justia universal emanada somente da razo; tal justia, porm, deve ser recproca para ser admitida entre ns. Considerando-se humanamente as coisas, as leis da justia, dada a falta de sano natural, tornam-se vs para os homens; s fazem o bem do mau e o mal do justo, pois este as observa com todos sem que ningum as observe com ele. So, pois, necessrias convenes e leis para unir os direitos aos deveres, e conduzir a justia ao seu objetivo. No estado de natureza, no qual tudo comum, nada devo queles a quem nada prometi; s reconheo como de outrem aquilo que me intil. Isso no acontece no estado civil, no qual todos os direitos so fixados pela lei (ROUSSEAU, CS; 2000, p. 105-106).
Para Rousseau, se num primeiro momento o desejo e ambio humana
conduziram o homem para fora de seu estado natural, corrompendo-o ao instituir a
propriedade, nos momentos seguintes, as instituies polticas, garantidas pelas leis e
abrigadas sob as asas do Estado, encarregaram-se de mant-lo em tal situao ou
ainda mais aprofundar a situao de desigualdade.
-
39
Se seguirmos o processo da desigualdade nessas diferentes revolues, verificaremos ter constitudo seu primeiro termo o estabelecimento da lei e do direito de propriedade; a instituio da magistratura o segundo; sendo o terceiro e ltimo a transformao do poder legtimo em poder arbitrrio. Assim, o estado de rico e de pobre foi autorizado pela primeira poca; o de poderoso e de fraco pela segunda; e, pela terceira, o de senhor e de escravo que o ltimo grau da desigualdade e o termo em que todos os outros se resolvem, at que novas revolues dissolvam completamente o governo ou o aproximem da instituio legtima (ROUSSEAU, DD; 2000, p. 110).
Para Rousseau, tudo que ali est, desta forma construdo, no serve.
necessrio ir essncia da natureza do homem e assim construir um homem
politicamente novo. Portanto, necessrio transformar as conscincias pela
reconstruo moral do cidado. A moral a qualidade social que deve fundamentar a
transformao do cidado capaz de novas prticas que levaro construo das
verdadeiras instituies polticas, capazes de unir os direitos aos deveres, como o
deseja o filsofo genebrino. Porm, somente pela ao poltica e tica que se obter
a sociedade justa.
Pela moral se transformam as conscincias, porm somente esta
transformao no suficiente. Somente o novo agir poltico23 capaz de fundar novas
instituies polticas, compor um novo governo e substituir o agregado social pelo
povo unido pela vontade geral, razo nica de se constituir o governo, as leis e o
Estado.
A ordem poltica , na sua essncia, uma ordem moral e convencional caracterizada pela liberdade e igualdade de cada um dos membros que a compem. Entre os fatores que compem esta totalidade a parte e o todo prevalece uma certa ordem, uma certa hierarquia necessria que a melhor possvel: para que a liberdade de cada parte e a sua igualdade sejam garantidas, necessrio que as partes se subordinem ao todo, que as pessoas
23 Se os homens fossem diferentes do que so, ou seja, se no tivessem, neste momento da sua
evoluo, interesses contraditrios, o predomnio do interesse comum no encontraria obstculo e a poltica deixaria de ser uma arte. Sendo o que so, a mediao da poltica necessria (FORTES,1976, p. 94).
-
40
fsicas estejam subordinadas pessoa moral. O corpo poltico , assim, a totalidade na qual pessoas fsicas esto submetidas pessoa moral. A vontade da ordem , qual todas as outras devem estar subordinadas, a vontade desta pessoa moral ou vontade geral (FORTES, 1976, p. 90).
Rousseau entende que se foram as relaes polticas, tal como o homem as
estabeleceu ao longo dos tempos, responsveis pelo destino infeliz da natureza
humana, tambm ser por elas que o homem deve pretender almejar a justia e
desconstruir para em seguida, reconstruir a sociedade.
Se for possvel construir uma nova histria, essa possibilidade se encontra na
histria que se construir pelas novas relaes polticas e no to somente na
possibilidade da converso moral do ser humano, pretendida pelo discurso tico.
necessrio, sobretudo, construir o novo homem poltico, que dar origem nova
poltica, capaz de solapar os fundamentos injustos sobre os quais a sociedade foi
construda e sobre os quais, ao longo dos tempos, a sociedade evoluiu.
Nem o melhor discurso e nem a melhor doutrina moral ser capaz de construir
uma sociedade justa, se forem mantidos os alicerces das injustias, aqueles que
perpetuam as desigualdades, como, por exemplo, a manuteno do direito ilimitado
propriedade e o vcio das conscincias que a buscam como forma de se obter
admirao e estima e, quaisquer outros responsveis pela manuteno ou alargamento
do fosso que separa os ricos dos pobres, garantindo aos primeiros privilgios em
relao aos segundos.
O pacto firmado a partir da vontade de todos, isto , das vontades particulares
somadas para se obter o corpo poltico, deve ceder seu lugar ao pacto (contrato)
-
41
estabelecido sob os desgnios da vontade geral24, a qual por sua vez no simplesmente
soma as vontades particulares uma a uma, mas to somente retm o supra sumo, isto
, a essncia de todas as vontades unidas numa s, cujo maior valor a vontade
coletiva, a moral coletiva.
Para haver uma sociedade justa, somente possvel com a soberania da vontade
geral, no pode haver superior e inferior, poderosos e oprimidos, livres e escravos.
Todos os contratantes devem poder agir sobretudo com igualdade e liberdade, o que
no se tem percebido na sociedade que Rousseau tomou como objeto real da sua
anlise. Essa sociedade aquela que ainda est por ser proposta como um ideal a se
alcanar. o que ir propor em Do Contrato Social, cuja essncia da proposta a
vontade geral, de que falaremos no prximo captulo.
24 A vontade geral no geral apenas por ser de todos, mas por ser a mesma vontade. (FORTES, 1976, p. 88).
-
42
CAPTULO II
ROUSSEAU E A IDIA DE VONTADE GERAL
1. A Vontade Geral como o Fundamento tico do Contrato Social
A proposta de construir uma sociedade a partir da vontade geral, defendida pelo
filsofo genebrino Jean-Jacques Rousseau, em sua clebre obra intitulada Do Contrato
Social, apresenta uma idia inovadora e fundamental para o entendimento das
relaes do homem em sociedade. Ela alicera eticamente o contrato, entendendo a
liberdade no motivada por coaes internas, nem por impulsos instintivo-naturais ou
por desejos momentneos, mas um contrato que preserve e viabilize o exerccio de
uma liberdade consistente e consciente.
Para Rousseau, a vontade geral pura expresso da liberdade humana, pois ela
apresenta uma concepo de justia no somente como busca da eqidade, ou seja,
simplesmente o equilbrio social, prevalecendo a vontade da maioria, mas, porque ele a
identifica como o liame social , tal conceito significa que Rousseau revela uma
preocupao com a natureza humana no que se refere ao bem viver social (e,
conseqentemente, tambm individual) e a construo e preservao de sua liberdade.
A idia de bem, identificada na vontade geral, a sua base, em contraposio idia de
justia como eqidade.
Rousseau apresenta, assim, com a idia de vontade geral, a concepo de
direito que procura considerar a natureza social humana em sua forma mais abrangente,
-
43
ao mesmo tempo mais profunda e mais coerente possvel com a natureza social de cada
ser humano, respeitando nele e nos outros aquilo que primordial, a vontade geral, alm
de respeitar em cada sociedade em particular a mesma vontade geral, quando prope
qualquer acordo em forma de contrato social. O contrato social, nas palavras de Norberto
Bobbio (1997, p. 15-16):
Faz a sociedade no mais um fato natural, a existir independentemente da vontade dos indivduos, mas um corpo artificial, criado pelos indivduos a sua imagem e semelhana e para a satisfao de seus interesses e carncias e o mais amplo exerccio de seus direitos.
Trata-se, pois, da idia de contrato, visando atender as exigncias da
convivncia social como um todo, e no apoiar-se na idia de uma racionalidade de
contrato voltada to somente para a eqidade, onde prevalece a idia de justia sobre a
idia do bem, com o fim de buscar solues apenas de ordem prtica para as questes e
dilemas com os quais os indivduos e/ou cidados se deparam no seu cotidiano.
Quando Rousseau fala em vontade geral - que ele prprio sustenta no ser,
simplesmente, a soma de todas as vontades particulares - ele pensa em um contrato
concebido e elaborado a partir de um argumento que considera sempre o homem como
um ser essencialmente de convivncia social e que como tal precisa ser respeitado no
apenas como pertencente a uma maioria cujo contrato social vem a proteger, mas como
um ser que partilha uma vontade geral sobre a qual o contrato encontra sua base slida.
No se entende por vontade geral aquilo que comum a todos os homens quanto
sua natureza humana, nem aquilo que da natureza social para qualquer homem em
qualquer sociedade, mas aquilo que o interesse comum, para aqueles indivduos de
cada sociedade em particular.
-
44
Isto significa que o contrato social a causa e a conseqncia de uma
elaborao cuidadosa, preocupada no somente com a justia e a eqidade, como j
mencionado anteriormente, mas tambm como a realizao do bem enquanto essncia
originada do ntimo de cada homem.
Desta forma, o contrato um processo permanente de construo com a
preocupao de se ir at as entranhas, isto , at o limite ltimo para uma compreenso
real e coerente da vontade geral de cada sociedade. Este o esforo no sentido de
buscar aquilo, e que talvez j seja o aquilo equivalente vontade geral.
A partir desta essncia, qualquer contrato e qualquer forma de direito pode
progredir e se complexificar, tornando-se um sistema abrangente, amplo, porm slido,
uma vez que foi construdo sobre uma base slida e a esta base se mantm fiel. Todo
contrato elaborado conforme esta concepo no privilegia uma maioria, mas a unnime
vontade de todos os cidados contratantes.
Segundo Salinas Fortes, o entendimento de contrato social, em Rousseau, no
corresponde a um esqueleto de idias j pr-estabelecidas, que ento sero adaptadas
sociedade e, sim, devem emanar da essncia da sociedade. Nas palavras de Salinas:
O corpo poltico no assim apenas um sistema de relaes jurdicas entre os
indivduos: este sistema apenas a sua ossatura. Mais do que isto, trata-se de uma
realidade essencialmente de ordem afetiva (FORTES, 1976, p. 89).
Assim, quanto mais o contrato se aproximar daquilo que, segundo Rousseau, a
expresso ntima da vontade geral, tanto mais ele ser coerente e tanto mais ser a
expresso da liberdade de cada sociedade e, sobretudo, tanto mais garantir da forma
mais justa e desejada a liberdade de cada um dos seus contratantes e tanto menos
necessitar de foras coercitivas.
-
45
No existe contrato por natureza. A liberdade individual natural garantida a
cada ser humano por nascimento, no entanto, sua liberdade social s pode ser garantida
por meio de um contrato social que seja uma vontade geral. Assim, o contrato social
deve conter essencialmente a expresso da natureza social de cada grupo (sociedade) e
somente desta forma estar ele a servio da harmonia e, sobretudo, em defesa da
verdadeira liberdade de cada indivduo, em cada sociedade.
Desta forma, as relaes entre os homens obedecem sempre a uma voz interna
da conscincia enquanto apelo para o exerccio do supremo bem. A vontade geral a
nica possibilidade de estabelecer as relaes a partir de uma base moral. Jean-Jacques
est to convencido dessa idia que no admite que nela se possa conceber a
possibilidade de vir a errar, quando em Do Contrato Social enuncia:
Conclui-se do precedente que a vontade geral sempre certa e tende sempre utilidade pblica; donde no se segue, contudo, que as deliberaes do povo tenham sempre a mesma exatido. Deseja-se sempre o prprio bem, mas nem sempre se sabe onde ele prprio est. Jamais se corrompe o povo, mas freqentemente o enganam e s ento ele parece desejar o que mau. (ROUSSEAU, CS; 2000, p. 91).
A vontade geral , pois, a radicalizao da vontade humana, enquanto uma
vontade em exerccio na ao poltica, pois a atividade poltica que tenha por base esse
contrato acontece como realizao de um dever moral e no como o simples
cumprimento de obrigaes legais.
-
46
2. A Vontade Geral no Contrato Social e o Exerccio da Liberdade Moral
Considerando o que at aqui foi dito, sabemos, pois, que em Rousseau a idia
de contrato, entendido como vontade geral, no uma alienao da liberdade, se esta,
por sua vez, for analisada no como ausncia de princpios, ou apenas uma prova
formal e materializada da desconfiana entre os seres racionais, mas, sim, como o meio
para garantir o seu exerccio e ainda como importante instrumento para a prtica da
justia social, uma vez que a possibilidade de o homem retornar a viver como bom
selvagem, no primitivo e inocente estado de natureza, passa a ser por ele descartada.
O que o homem perde pelo contrato social a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto aventura e pode alcanar. O que com ele ganha a liberdade civil e a propriedade de tudo que possui. A fim de no fazer um julgamento errado dessas compensaes, impe-se distinguir entre a liberdade natural, que s conhece limites nas foras do indivduo, e a liberdade civil, que se limita pela vontade geral, e, mais, distinguir a posse, que no seno o efeito da fora ou o direito do primeiro ocupante, da propriedade que s pode fundar-se num ttulo positivo. Poder-se-ia, a propsito do que ficou acima, acrescentar aquisio do estado civil a liberdade moral, nica a tornar o homem verdadeiramente senhor de si mesmo, porque o impulso do puro apetite escravido, e a obedincia lei que se estatuiu a si mesma liberdade. (ROUSSEAU, CS; 2000, p. 77-78)
Pelo fato de termos que conceber a realidade humana dentro da idia de seres
racionais de vivncia coletiva, no pode o homem ser concebido isoladamente, como
ser em particular, mas sempre dentro de uma realidade coletiva, o que o prprio
Rousseau, apesar de desejar a volta do homem ao estado de natureza ( situao de
bom selvagem), j admitia. Assim, o contrato social vem a ser o meio autodeterminado
pela sociedade como um todo, e a garantia do exerccio da liberdade civil e moral e a
sntese de todas as vontades individuais e coletivas inalienveis.
-
47
Para o autor genebrino, um contrato no deve significar alienao de liberdade e,
sim, a garantia de corretos meios para a sua prtica, se concebido conforme o seu ideal
de vontade geral. O contrato social deve, pois, ser a representao da vontade geral
humana, entendida como a essncia do desejo humano pela essncia da vida em
sociedade. Portanto, o contrato no mais seria simbolizado como uma tesoura que poda
e/ou restringe a liberdade, mas como um veculo desejado para a realizao de um fim
que a liberdade.
Se se conceber, segundo Jean-Jacques, o contrato como sendo a permanente
elaborao da vontade racional, isto , da vontade humana geral, em sua essncia
racional, no se deve conceber na idia do mesmo (o contrato) nada que no possa ser
demonstrado como um princpio da vontade universal (princpio da vontade racional), que
esta liberdade entendida como uma ao que se pratica em respeito a si prprio e a
toda a humanidade. Assim, a liberdade exercida no meio seria aquela que primeiro teria
sido subjetivamente aceita e querida a partir de um princpio geral e irrefutvel.
Portanto, em sua origem e essncia, o contrato no ser um peso ou uma
imposio externa, interpretado como concorrente da liberdade humana, mas, sim, como
garantia de que a liberdade ali est contida e garantida. A liberdade concebida a partir de
uma elaborao exclusivamente pessoal, como meio para um outro fim, no seria, nesse
sentido, liberdade.
Estariam ento explicitadas e redigidas todas as formas do agir humano que
preservariam a moralidade e possibilitariam a convivncia realmente harmoniosa (uma
utopia, de certa forma) entre os seres racionais. Ficaria assim claro qual seria o fim e
qual seria o meio. Fim e meio seriam uma s realidade, uma vez que contrato e vontade
geral se confundem, por serem um processo permanente.
-
48
O contrato social, que tem por base a vontade geral, deve, pois, ser a sntese e
a essncia de todas as vontades (e no simplesmente a soma) que cada ser em
particular tenha.
Rousseau parte de um princpio universal comum ao ser humano racional,
fazendo com que este homem ou este povo tenha uma base comum e segura que o
obrigue, no verdadeiro sentido da palavra, a no aceitar esta obrigao de obedecer.
Para qualquer obedincia que no seja um cumprimento de um dever moral, justifica-se,
em cumprimento do dever moral, uma no obedincia De acordo com suas prprias
palavras:
Quando um povo obrigado a obedecer e o faz, age acertadamente; assim que pode sacudir esse jugo e o faz, age melhor ainda, porque, recuperando a liberdade pelo mesmo direito por que lha arrebataram, ou tem ele o direito de retom-la ou no o tinham de subtra-la25 (ROUSSEAU, CS; 2000, p. 53).
Quando Rousseau prope o contrato social, ele no o prope como uma mera
alternativa que venha amenizar ou aliviar o jugo. Ele, evidentemente, busca solucionar
radicalmente o problema da liberdade, buscando um princpio universal para
regulamentar as relaes humanas. Por isso, o contrato no deve, de forma alguma,
ser concebido no sentido de que cada indivduo tenha por meio dele garantido seus
interesses de essncia particular. A vontade particular pode at estar assegurada no
contrato, mas no porque ela a priori uma vontade particular e, sim, porque em sua
essncia ela , e concorda com o que Rousseau chama de vontade geral, ou uma
25 Essa expresso pode ser reforada por aquela expresso kantiana, que afirma: Conservar a sua
prpria vida um dever, e alm disso todos ns temos uma imediata inclinao nesse sentido. Mas, por isto mesmo, o cuidado angustioso que a maior parte dos homens pe nisso no tem um valor intrnseco, e a mxima que rege esse cuidado carece de um contedo moral (KANT, 1980, p. 42).
-
49
vontade comum a todos os cidados, irmanados por uma fora comum intrnseca que
os move, a partir dos mesmos princpios, para um s fim compartilhado na essncia por
todos os envolvidos nessa relao de seres especiais.
Enfim, cada um dando-se a todos no se d a ningum e, no existindo um associado sobre o qual no se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo, ganha-se o equivalente de tudo que se perde, e maior fora para conservar o que se tem. Se separar-se, pois, do pacto social aquilo que no pertence sua essncia, ver-se- que ele se reduz aos seguintes termos: cada um de ns pe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a direo suprema da vontade geral, e recebemos, enquanto corpo, cada membro como parte indivisvel do todo. Imediatamente, esse ato de associao produz, em lugar da pessoa particular de cada contratante, um corpo moral e coletivo (ROUSSEAU, CS; 2000, p. 70-71).
A essncia do contrato no , pois, a resoluo de situaes conflitantes, mas,
to somente a possibilidade da realizao da natureza humana que , na essncia, um
ser coletivo.
3. Duas Formas de Consenso: a vontade geral e a vontade de todos
Rousseau, no captulo III do livro segundo, da obra Do Contrato Social, faz uma
comparao entre a idia de vontade geral e a de vontade de todos, onde,
conseqentemente, nos apresenta claras diferenas entre essas duas idias.
Analisando comparativamente essas duas idias devemos aceitar que esse
esclarecimento se torna ainda mais interessante se a elas acrescentarmos, seja a fim
de esclarecer mais essa idia, a partir de uma interpretao extrada de Rousseau, seja
apenas com o intuito de criar um trilho, que faz ir e vir nossa reflexo sobre essas
-
50
duas idias, a do consenso, que preciso dizer, Rousseau, em momento algum, neste
captulo, a ela faz referncia explcita, o que, no entanto, no nos impede de traz-la
para o debate, e a partir desse acrscimo, enriquecer a compreenso sobre ambas as
idias ali apresentadas.
Falar de Rousseau, da sua idia de contrato, sem fazer referncia idia de
vontade geral, o mesmo que ignorar que algum dia ele produziu alguma reflexo
tangente idia de contrato. Seria mais interessante que Rousseau jamais fosse lido.
Penso que da mesma forma cabvel o raciocnio de que impossvel falar e expor a
idia de vontade geral sem compar-la com a de vontade de todos, e sem, mesmo que,
pelo menos, subentendidamente, refletir sobre a idia de consenso.
Em relao a essa idia, visivelmente claro que Rousseau, com a idia de
vontade geral radicaliza (ou super-valoriza) a idia de consenso, embora no coloque
essa idia (o consenso) no centro de suas reflexes.
Essa radicalizao claramente perceptvel, quando, logo no incio do terceiro
captulo do livro segundo, ele afirma: a vontade geral sempre certa e tende sempre
utilidade pblica; donde no se segue, contudo, que as deliberaes do povo tenham
sempre a mesma exatido (ROUSSEAU, CS; 2000, p. 91) e, mais adiante: (...) se
quando o povo suficientemente informado delibera, no tivessem nenhuma comunicao
entre si, do grande nmero de pequenas diferenas resultaria sempre a vontade geral e
a deliberao seria sempre boa (ROUSSEAU, CS; 2000, p. 92).
A partir disso podemos afirmar que Rousseau introduz uma idia de consenso
que no se apia somente no aspecto quantitativo, mas, sobretudo, no aspecto
qualitativo do que se deseja. A vontade geral um fio que, na busca do consenso, liga
todas, as vontades sem ser nenhuma delas em particular, mas cada uma delas em
-
51
comunho com todas simultaneamente. A vontade geral um consenso absoluto e de
base natural que traduz essncia de todas as vontades. Este consenso qualitativo,
pois no se limita apenas a soma dos votos dos indivduos particulares na assemblia do
povo, nem tampouco a soma das vontades particulares dos entes contratantes. Ele
qualitativo porque expressa a vontade pblica que, ao mesmo tempo, geral e particular,
isto , presente em cada um e em todos simultaneamente. Por outro lado, tambm
quantitativo porque no admite qualquer excluso, tanto na elaborao quanto na
execuo.
Essa nova idia de consenso explicita uma ruptura com a idia liberal de
consenso que alis a que comumente se pratica entre ns, em nossas assemblias,
eleies, ... enfim, deliberaes conjuntas.
O consenso por ns praticado tem sua base, se trouxermos Rousseau para esse
debate, na idia de vontade de todos, atravs do qual no se busca o ideal mas o
possvel. Porm, no o que possvel conforme um ideal geral, mas o possvel conforme
o ideal das vontades particulares. Citando Rousseau, ele assim enuncia: H comumente
muita diferena entre a vontade de todos e a vontade geral. Esta se prende somente ao
interesse comum; a outra, ao interesse privado, e no passa da soma das vontades
particulares (ROUSSEAU; CS, 2000, p. 91).
O consenso da vontade de todos , pois, um consenso fragmentado e