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N13 JULHO 2018|ISSN: 2304-0688
CONSELHO DE REDACO
Director: Incio Valentim (ISPSN) Angola
Secretria de Redao: Ftima Sousa Rodrigues (ISPSN) Angola
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EDITORIAL
AS LEIS DA PERIFERIA E A CIDADE FILOSFICA
Nos ltimos tempos temos vivido um surto gritante de insegurana na cidade. A preocupao
com a questo da segurana ultrapassou aquela de encontrar um emprego, alis, razo mais
do que suficiente, porque s os vivos podem trabalhar, s aqueles que esto em boas
condies fsicas podem trabalhar. A periferia criou novas leis e na base destas leis que todo
o mundo vive: a lei do medo, a lei do estar-sem-estar, enfim, a lei do aprisionamento na
liberdade. Parece que a periferia tomou conta da cidade, porque provavelmente poucas
vezes ela foi escutada sem o entardecer do verniz. O infractor visto como perifrico e como
delinquente e esquecemos que a prpria cidade pode ser perifrica a partir do momento que
no responde s expectativas da cidade. Nenhum cidado espera do poltico (salvo aquele
que tremendamente ingnuo) a honestidade, a integridade ou honradez, porque tambm
ele sabe que no tem todas estas qualidades, alis, no tem e parece que no lhes
preocupam tanto, desde que os seus problemas sejam resolvidos. E, isso que ele espera do
poltico. Espera que este resolva os seus problemas e a insegurana um destes problemas
que ele espera que o poltico resolva. A no resoluo do problema tambm conduz cidade
na linguagem perifrica, naquilo que no o centro, no est no centro e no faz o centro,
no to importante quanto o centro. Nunca nos perguntamos se os verdadeiros
delinquentes so aquelas pessoas que violam as leis da cidade de modo explcito, porque
invadem as nossas casas, porque apropriam-se dos nossos bens dentro e fora de casa.
Provavelmente no sejam os verdadeiros delinquentes. Porque os piores delinquentes podem
ser aqueles que no tm a conscincia trgica, no tm conscincia infeliz, como diz Spinoza.
Dormem, mas dormem porque no pensam nos outros, porque no se revem nos outros e
porque criaram uma legitimidade prpria para a sua forma de violncia e nisto se parecem
com os proponentes da violncia perifrica. De modo que, s o genealogista pode salvar a
cidade das suas duas violncias: a violncia daqueles que esto estampados como violentos e
a violncia daqueles que dormem apesar de serem tremendamente violentos. O genealogista
o filsofo, diz o Nietzsche de Foucault e de Deleuze, mas no aquele filsofo que aceita que
todo o mundo olhe para ele como aquele que reflecte nas coisas ou que medita nas coisas,
como se as outras reas do saber no reflectissem, no meditassem. O genealogista aquele
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que traz um comeo, que cria um comeo e que reinventa um comeo a partir da dor e da
cura. A cidade deve ser filosfica no para fazer aquilo que j foi feito, aquilo que j foi criado.
O genealogista no pode aceitar os conceitos que servem apenas para o limpar e fazer
brilhar numa falsa luminosidade. O genealogista deve dar a cidade o entendimento do
entristecimento. O genealogista enquanto educador no traz apenas a reflexo e a
contemplao, traz sobretudo para a cidade o entristecimento porque vem para dizer aos
outros aquilo que eles no querem ouvir, vem para dizer aquilo que mais ningum diria. por
isso que a resposta filosfica deve ser dura contrariamente s outras reas do saber, porque
uma resposta que consiste no entristecimento. A filosofia como educao encara um
entristecimento, mas um entristecimento alegre porque conduz libertao. Ela oferece-nos
a possibilidade de perguntarmo-nos, o que somos, o que fazemos e se a nossa resposta for
honesta connosco mesmo poderemos fazer um bom trabalho para a cidade. O genealogista
um incomodador, s pode incomodar e s deve incomodar para a libertao, tem que
proporcionar aos outros um comportamento de Lisias de Fedro. Ter vergonha do que se
pensa saber.
Por ltimo, dizer que esta 13 edio contm alguns artigos publicados na revista OPINIO
FILOSFICA da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (PUCRS), traz as mais
variadas reflexes no mbito acadmico-cientfico.
A este respeito o Professor Flaviano Kambalu reflecte sobre o conceito de pessoa, a sua
complexidade e a sua relao com a unidade africana. Tenta encontrar os princpios e os
fundamentos metafsicos que podem sustentar a possibilidade da unio.
O Dr. Nlando Faustino reactualiza ao histrico pensador das independncias ( sua maneira)
Frantz Fanon. Atravs da obra Os condenados da terra de Fanon, faz uma leitura
desconstrutivista da colonizao vista como uma oportunidade para a civilizao. Recusa com
Fanon, a ideia de que a colonizao igual a civilizao e paganismo igual a selvageria e
defende precisamente a ideia da despersonalizao imanente do processo colonializador.
Por sua vez, Incio Valentim lana a interrogao sobre a educao e o processo educativo
liberal em frica. Discute a ideia da possibilidade de educar e com quem ser educado.
Os Doutores Abel da Silva e Irene Moiss Inculo pensam a educao desde a perspectiva no
universitria a partir do cunho da lei. Procuram compreender e destacar a negatividade de
uma interveno excessiva dos elementos no autorizados no processo educativo.
Incio Valentim
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NDICE
EDITORIAL ...................................................................................................................................... 4
ARTIGOS ........................................................................................................................................ 7
FILOSOFIA
O CONCEITO DE PESSOA E A METAFSICA DA UNIDADE AFRICANA ........................................................... 8
FLAVIANO LOURENO KAMBALU
HISTRIA
A COLONIZAO, UMA REFERNCIA HISTORICIZANTE DO DISCURSO SOBRE A DESCOLONIZAO DE FRICA: UMA PROVOCAO FILOSFICA A PARTIR DE FRANTZ FANON ............................................................... 20
NLANDU MATONDO FAUSTINO
PEDAGOGIA
O QUE APRENDER E COM QUEM APRENDER NUMA EDUCAO LIBERAL EM FRICA? .................... 44
INCIO VALENTIM
EDUCAO
CARACTERIZAO DO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM NO UNIVERSITRIO ANGOLANO. DESAFIOS E PERSPECTIVAS ..................................................................................................................... 62
ABEL JOS DA SILVA
IRENE JAMBA INAKULO MOISS
NORMAS DE PUBLICAO 72
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FILOSOFIA O CONCEITO DE PESSOA E A METAFSICA DA UNIDADE AFRICANA
FLAVIANO LOURENO KAMBALU a
Resumo
A vocao unidade uma caracterstica natural da pessoa humana porquanto esta
essencialmente livre, relacional e dialogante. A frica um complexo e heterogneo mosaico
de povos, lnguas, raas, culturas, etnias e religies, cujo fundamento metafsico de origem
representa uma unidade indivisvel na realidade histrica. O fundamento metafsico de origem
importante porquanto em todos os campos tudo o que une os seres humanos mais forte do
que o que os separa. Nisto, o dilogo necessrio para superar os preconceitos e
desentendimentos histricos, as divises, intolerncias e fundamentalismos que infelizmente
se vo intensificando na actualidade. O dilogo, conducente unidade, no obriga, mas se
move no respeito da liberdade da pessoa e da soberania de cada Estado. Enfim, trata-se de um
dilogo sincero e fecundo que reconhecendo toda a legtima diversidade promove o respeito, a
concrdia e a colaborao.
Palavras-chave: Pessoa humana, frica, Fundamento Metafsico, Fundamento Metafsico e
Dilogo.
Abstract
The vocation to unity is a natural feature of the human because it is essentially free, relational
and dialoguing. Africa is a complex and heterogeneous mosaic of peoples, languages, races,
cultures, ethnic groups and religions, whose metaphysical foundation of origin represents an
indivisible unity in historical reality. The metaphysical basis of origin is important because in
all fields everything that unites human beings is stronger than what divides them. In this,
dialogue is necessary to overcome the historical prejudices and disagreements, the divisions,
intolerances and fundamentalisms that unfortunately are intensifying at the present time. The
a Doutor em Filosofia. Religioso Saletino e Decano da Faculdade de Direito da Universidade Katiavala Bwila,
Benguela Angola
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dialog, leading to the unit, doesnt oblige, but moves in respect of freedom of the person and
of the sovereignty of each State. At last, it is a sincere dialog and fruitful that acknowledging
all the legitimate diversity promotes respect, harmony and collaboration.
Keywords: The Human Person, Africa, Metaphysical foundation, Metaphysical foundation
and Dialogue.
Premissa
No actual contexto de crescente e incisiva globalizao difcil subtrair-se ao dever ou
necessidade de prestar conta de si mesmos. Neste clima cultural tambm a unidade africana
chamada a justificar-se, ou seja, a justificar o seu direito de continuar a ser. primeira vista
poderia parecer que a sua justificao no seja hoje um problema, visto que cada vez mais
difuso o uso do termo unidade e da expresso unio africana. Mas urge reflectir nesta unidade
luz da filosofia para lhe compreender o seu verdadeiro significado.
Aprendemos com Nicola Abbagnano que nada do que humano estranho filosofia []
alis esta o mesmo homem que se interroga a si mesmo e procura as razes e o fundamento
do seu ser.1 Esta a filosofia na sua adeso existncia humana e ao mesmo tempo na sua
amplitude em relao aos problemas do homem. No de um homem que vive no rano mas
do homem concreto que na sua vida experimenta nsias e insuficincias, alegrias e
esperanas, tristezas e angstias.2 Portanto, todas as coisas so susceptveis de reflexo
filosfica, inclusive a prpria unidade africana exige filosofar.
De facto, filosofar examinar a realidade, e isso, de um modo ou de outro, todos fazemos
constantemente. Ao se tentar resolver os problemas globais, sociais ou pessoais, impossvel
se abster da racionalidade. Entretanto h uma gama de situaes onde a razo no pode
avanar por falta, ou excesso de dados, o que impossibilita decises objectivas. Entra em cena
ento a parte subjectiva humana, mais especificamente a Intuio, como meio de direccionar
nosso foco de entendimento e apontar caminhos a serem trilhados pela racionalidade.
S que, actualmente, a filosofia passa por uma perda de identidade. Existe uma verdadeira
inflao do termo filosofia e, como toda a inflao, sintoma de queda de valores, de crise
difusa e profunda. Hoje o termo filosofia indica muitas vezes coisas difceis, prprias do
hiperurnio e no o homem que, no aceitando passivamente as informaes fornecidas pela
experincia imediata, desenvolve uma postura de questionamento prprio sobre a realidade,
interroga-se a si mesmo e metodolgica e ordenadamente procura as razes e o fundamento
1 N. ABBAGNANO, Storia della filosofia I, UTET, Torino 1963, p. XVII.
2 Cf. CONCLIO VATICANO II, Gaudium et Spes, n. 1.
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do seu ser, buscando, como faziam os gregos, um instrumento fundamental e o nico
racionalmente possvel, para a soluo dos problemas da vida.
A confuso com relao filosofia, e a desinformao geral, que permeia mesmo o meio
acadmico, chega a ponto de permitir o surgimento de propostas quimricas no sentido de se
eliminar a Filosofia. Entretanto, cincia alguma pode se ocupar da macro realidade. O
empirismo no pode ser aplicado civilizao humana, mente, ao total. Quem estabelece a
comunicao entre todos os segmentos do conhecimento continua a ser a filosofia. Cremos ser
este o quadro em que se deve inserir a reflexo sobre a unidade africana, que aqui fazemos
partindo da metafsica do termo pessoa.
Tal reflexo se torna urgente sobretudo se olharmos para os problemas que cada vez mais vo
desafiando a unidade do continente africano. H uma verdade, hoje admitida por quase todos
e at pelos mais preconceituosos arquelogos, de que a humanidade e a civilizao
desenvolveram-se na noite dos tempos no bero deste continente gigantesco chamado frica3.
Temos conscincia de que a frica um imenso continente com situaes muito diversas; um
complexo e heterogneo mosaico de povos, lnguas, raas, culturas, etnias e religies, mesmo
dentro das mesmas fronteiras polticas. Embora esta imensido nos aconselhe a no fazer
generalizaes na avaliao dos problemas no nos impede de buscar e propor solues aos
problemas inerentes falta de unidade que a nosso ver pode podem assentar sobre o conceito
de pessoa.
1. Breve excursus histrico-filosfico do conceito de pessoa
1.1 A densidade semntico-etimolgica do termo pessoa
A densidade semntica do termo pessoa formou-se no tempo graas ao contributo cultural de
muitos files de reflexo. O conceito de pessoa tem, pois, um percurso rico, quanto complexo.
De recordar que na antiguidade greco-romana no se encontra bem claro o conceito de pessoa.
Todavia, seria incorrecto pensar que o conceito de pessoa tenha nascido nos nossos dias.
Etimologicamente, e segundo algumas pesquisas atentas, os primeiros indcios do termo
pessoa encontram-se no mbito da cultura etrusca. De facto, o termo phersu, utilizado nos
ritos em honra de Phersepona e que significaria mscara4 passou a significar o indivduo
3 Cf. Carlos SERRANO Maurcio WALDMAN, Memria dfrica. A temtica africana em sala de aula,
Cortez Editora, So Paulo 20082, p. 75. Cf. Tambm, Luigi TRANFO, Africa. La transizione. Tra sfruttamento e
indifferenza, E.M.I., Bologna 1995, p. 269; Pedro F. MIGUEL, frica. Uma viso global, Viverein, Roma 2013,
p. 11. 4 Cf. Maurice NDONCELLE, Prosopon et persona dans lantiquit classique. Essai de bilan linguistique, in
Revue des sciences religieuses XXII (1948) 277-299; A. MILANO, Persona in teologia, Dehoniane, Napoli
1984, pp. 16-71.
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mascarado, a personagem que o actor representa no drama, ou seja, o indivduo humano,
moral e social5.
Nesta senda do indivduo mascarado, Edith Stein observa que visto que nas comdias e nas
tragdias se representavam personagens famosos, o nome pessoa foi imposto para significar
sujeitos que tinham um papel na sociedade, por isso, alguns definem a pessoa como uma
hipstase marcada por uma qualificada conexo com a sua dignidade 6.
No encontra fundamento adequado a etimologia proposta por Bocio, que liga pessoa ao
verbo personare, aludindo amplificao da voz de quem fala por detrs da mscara. Assim,
pessoa , segundo Bocio, decta est volvatur sonus 7. Tambm no correcto afirmar que
pessoa seja a contraco de per se una, como quereria a proposta de Alano di Lilla8.
1.2 O percurso evolutivo do conceito de pessoa
Com Ccero e Sneca, a evoluo do conceito de pessoa deu passos importantes sem,
contudo, chegar definio hodierna.
Do segundo sculo em diante, o conceito de pessoa entra no uso corrente, na onda do esforo
de clarificao exigida pelas controvrsias teolgicas sobre o dogma trinitrio. Porm, foi
com Bocio que o conceito de pessoa adquire o actual contedo terico. E isto no contexto da
clarificao conceitual sobre as questes teorticas que emergiam da doutrina sobre a
Trindade.
Segundo Bocio persona est rationalis naturae individua substantia (pessoa substncia
individual de natureza racional) 9. Bocio elabora esta definio, servindo-se do patrimnio
filosfico grego e latino. De facto, ele sistematiza os conceitos latinos de persona, natura e
substantia, estabelecendo uma equivalncia com os vocbulos gregos , ,
que na oscilao terminolgica do tempo eram usados de maneira equvoca e
confusa.
Com Bocio, a natura toma definitivamente o lugar de , entendida como essncia, e
substantia passa a traduzir o grego 10
. So poucos os filsofos que, no medievo, no
5 Cf. Maurice NDONCELLE, Prosopon et persona dans lantiquit classique. Essai de bilan linguistique, op.
cit., pp. 298-299. 6 Edith STEIN, Essere finito e essere eterno. Per una elevavazione al senso dellessere, Citt Nuova, Roma
1988, p. 380. 7 S. BOEZIO, Liber de duabus naturis, III; PL 64, 1344.
8 Cf. Enrico BERTI, Il concetto di persona nella storia del pensiero filosofico, in AA.VV., Persona e
personalismo. Aspetti filosofici e teologici, Fondazione Lanza, Padova 1992, p. 43. 9 S. BOEZIO, Liber de duabus naturis, III; PL 64, 1343.
10 Cf. Claudio MICAELLI, Natura e Persona nel Contra Eutychen et Nestorium di Boezio: Osservazioni
su alcuni problemi filosofici e linguistici, in Luca OBERTELLO (a cura di), Atti del Congresso Internazionale di
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tinham encontrado a definio de Bocio satisfatria, porque essa interpretava a realidade que
se tentava definir, precisando-lhe o significado.
Esta definio, pessoa substncia individual de natureza racional que, durante o medievo,
faz cultura e caracteriza a tradio teolgica latina, surge sob o impulso das disputas contra os
nestorianos, os quais sustentavam que, em Cristo havia duas naturezas e duas pessoas em
unio permanente e moral; e contra os monofisistas que sustentavam a existncia em Cristo de
uma s natureza, a divina11
.
Na definio de Bocio, o termo pessoa tem um sentido mais especfico e refere-se estrutura
fundamental e metafsica do indivduo, ou seja, substncia individual dotada de uma
natureza racional. Quer dizer, nem todos os seres naturais so pessoas, mas apenas aqueles
substanciais.
Por isso, a pessoa substncia individual. individual porque tem caractersticas que a
distinguem dos outros indivduos da mesma espcie; caractersticas que no so definveis
nem comunicveis aos outros. substncia porque existente em si, por si e em nenhum
outro. Dizer substncia individual significa, portanto, dizer que a pessoa no tem necessidade,
para existir, de aderir a um outro ser, e contm no seu quid alguma coisa de
incomunicabilidade, que divide com nenhum outro12
.
A pessoa igualmente de natureza racional. O seu conhecer no impresso na matria, nem
limitado por essa. Dizer natureza racional significa, por isso, que a pessoa no s exerce as
actividades conexas natureza, mas tem a capacidade de desenvolv-las, capacidade possuda
por natureza, ou seja com o nascimento13
. A pessoa , pois, o gau mais elevado de ser
substancial, porque essa consciente do seu ser substncia individual.
Toda a pessoa , portanto, antes de mais um indivduo. Mas ao mesmo tempo, muito mais que
indivduo, porque no uma personagem, mas uma substncia individual, que possui em si
uma certa dignidade em razo da sua racionalidade. Por isso, no basta afirmar que a pessoa
Studi Boeziani (Pavia 5-8 ott. 1980), Herder, Roma 1981, p. 336. 11
Fruto destas disputas a obra de Bocio Liber de persona et duabus naturis contra Eutychen et Nestorium,
cujo objectivo imediato foi aquele de combater as heresias de Eutique e Nestrio. De recordar, porm, que desde
os primeiros sculos do cristianismo o conceito de pessoa oferece grande importncia com Tertuliano, os Padres
Capadcios, S. Agostinho e S. Joo Damasceno nos interrogativos teorticos que emergiam da Revelao e nas
controvrsias teolgicas acerca do dogma trinitrio. Tais controvrsias se concluram com a frmula das trs
pessoas ou hipstases na nica substncia, ou natureza divina. Os Padres da Igreja, separando de maneira
definitiva o conceito de da referencia personagem
trgica ou cmica, deram flego a um aprofundamento do
conceito de pessoa tambm na reflexo filosfica (cf. Gregorio DI NISSA, La grande catechesi, CItt Nuova,
Roma 1982, p. 51; Gregorio NAZIANZENO, I cinque discorsi teologici, CItt Nuova, Roma 1986, p. 175).
12 Cf. San Tommaso DAQUINO, Questiones disputatae, De potentia, q. 9, a. 2; ID., Summa Theologiae, I, q.
29, a. 13
Cf. E. BERTI, Il concetto di persona nella storia del pensiero filosofico, op. cit., p. 48.
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algo de individual e nem mesmo que uma substncia ou uma natureza, para defini-la do
ponto de vista metafsico.
Visto que a individualidade acidente, isto , pertence quilo que existe como perfeio e
caracterstica de um sujeito, e enquanto a substncia e a natureza indicam o que prprio da
espcie, ocorre a substncia individual de uma natureza racional, para que exista pessoa.
Ocorre, portanto, que se refira a uma substncia individualizada de um ser racional, para que
exista pessoa do ponto de vista metafsico. Somente um ser racional pode corresponder
dignidade de pessoa, porque pessoa , enfim, um ser em si, que no pode ser substitudo por
um outro e que capaz de operaes prprias e racionais.
Revisitando o pensamento precedente e partindo do esquema e da frmula de Bocio, So
Toms elabora a sua definio de pessoa como subsistens in rationali natura 14
.
Com a frmula subsistens in rationali natura, So Toms evidencia no s o aspecto comum
pressuposto universalmente aceite da pessoa assim como expresso pela substncia
individual da definio de Bocio, mas evidencia sobretudo aquele individual, isto , o
existente considerado na acepo mais prpria, ou seja o seu ser nico e irrepetvel. De facto,
na definio de Bocio a substncia individual, parece ser concebida como individualidade. A
individualidade, porm, determinao da coisa e no ainda do quem; uma conotao
natural da pessoa e no da mesma pessoa.
So Toms condensa o conceito de pessoa nos termos subsistente e racional para indicar o
que de mais nobre e perfeito h no universo; e por isso afirma: persona significat id quod est
perfectissimum in tota natura, scilicet subsistens in rationali natura 15
.
Pessoa a natureza racional que existe num indivduo concreto. Por isso, somente aquilo que
subsistente numa natureza racional pode ser chamado pessoa. E o subsistir de maneira
individual na natureza racional que confere a dignidade pessoa, ou seja, quia magnae
dignitatis est in rationali natura subsistens ideo omne individuum rationalis naturae dicitur
persona 16
.
De tudo isto emerge que a nobreza da pessoa humana no a abstracta razo como parece
indicar a natureza racional da definio de Bocio mas a racionalidade possuda por um
subsistente, ou seja, de um ser concreto. E este em virtude de um actus essendi prprio, que
confere actualidade substncia e s suas determinaes. Tudo isto que a pessoa sabe, quer e
faz, brota do prprio acto em virtude do qual aquilo que .
14
Cf. S. Tommaso DAQUINO, Summa Theologiae, I, q. 29, a. 3. c. 15
Ibidem. 16
Ibidem.
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Da elaborao de So Toms compreende-se essencialmente o carcter racional da pessoa;
racional enquanto capaz de ser consciente do prprio ser17
. A pessoa todo o indivduo de
natureza racional, livre, atravessado por tradies e culturas, responsvel, relacional,
inteligente, volitivo, dialogante e por isso, fundamento de unidade entre indivduos e povos.
2. Do conceito da pessoa construo da unidade africana
Antes da conquista das independncias os colonos procuravam inflamar as diferenas
fechando as colnias em si mesmas, num clima de reserva ciumenta, de distncia e quase de
desconfiana. Com as independncias os encontros entre pases antigamente colonizados se
multiplicaram e o clima tornou-se de abertura e de colaborao. E com a criao da
Organizao da Unidade Africana (OUA), que veio desempenhar o papel extremamente
precioso de lugar de encontros, de rgo de dilogo e de troca de experincias entre Chefes de
Estado e de Governo africanos, o esforo para a unidade se exprimiu de modo mais visvel.
Contudo, a vocao unidade uma caracterstica natural da pessoa humana porquanto esta
essencialmente livre, relacional e dialogante. E enquanto essencialmente relacionais e
dialogantes existem nos homens aqueles elementos comuns que constituem a sua natureza e
que os distinguem das outras espcies de seres. Todos os homens tm as mesmas tendncias e
exigncias fundamentais quanto ao anlito da unidade. Todo o homem chamado comunho
e est aberto comunicao e ao dilogo.
O homem capaz, pois, de intercmbio, de dar-se aos outros e deles receber, porque a sua
natureza o abre comunho, comunicao e unidade. A sua natureza relacional e
dialogante no apenas uma necessidade mas sobretudo um dom que o ambiente que o
impede de continuar fechado e isolado no egosmo e aberto aos conflitos. De facto, o homem
aquilo que pela sua inconfundvel individualidade, mas tambm pelo seu ser aberto ao
outro e s realidades extrnsecas, por causa da sua sociabilidade. A sociabilidade , pois, uma
expresso da sua humanidade, e a unidade, uma sua actuao.
Por isso, a unidade africana pressupe a unio consciente entre africanos, e o comum e
orgnico esforo, para conseguir o bem humano integral. A unidade africana, na base da
descoberta da comum humanidade, articula-se na corresponsabilidade generosa de todos para
com todos, e em cada povo africano tomar sobre si as dificuldades e os problemas dos outros
17
Muitas vezes o termo racional confuso com o termo intelectual. Na verdade intelecto e razo diferem. O
intelectual um conhecimento simples e imediato, enquanto o racional passa de um conhecimento simples para
um mais complexo (cf. S. Tommaso DAQUINO, Summa Theologiae, I, q. 59, a. 1).
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povos do continente para alcanar o bem comum18
.
Enfim, a unidade encontra a sua raiz na essncia metafsica da pessoa humana e exprime, por
conseguinte a estrutura ontolgica dos africanos e diz respeito prpria possibilidade da sua
realizao. Por isso, as divises e os conflitos lupescos no fazem parte da normalidade
africana.
Portanto, apesar de frica ser um imenso continente com situaes muito diversas; um
complexo e heterogneo mosaico de povos, lnguas, raas, culturas, etnias e religies, mesmo
dentro das mesmas fronteiras polticas, o continente africano explica-se como unidade na
diversidade. E enquanto africanos reconhecemos que a unidade nos garantida
metafisicamente pela origem, pelo facto mesmo de sermos africanos do Cabo ao Cairo, de
Dar es-Salaam a Dakar mas sobretudo pelo facto de sermos pessoas humanas.
O fundamento metafsico de origem representa uma unidade indivisvel na realidade histrica,
uma fora inspiradora e enriquecedora para os africanos que pode mesmo superar as
diversidades presentes nos Estados africanos, a incomunicabilidade geogrfica, a hipocrisia,
as tenses e os desejos separatistas, e conduzir a um compromisso claro entre os africanos,
respeitando as suas diversidades e os seus interesses recprocos; empenhando num projecto
comum para uma frica mais humana e mais social, em que reinem sempre o respeito mtuo,
o reconhecimento e a proteco dos direitos humanos fundamentais e se faa valer o lado
melhor dos africanos, os valores basilares da paz, da justia, da liberdade, da tolerncia, da
participao e da solidariedade. Este fundamento metafsico de origem importante
porquanto em todos os campos tudo o que une os seres humanos mais forte do que o que os
separa.
Contudo, a unidade africana deve ser construda e aprofundada de forma dinmica e
incessante, porque os pressupostos da unio, representados pelos factores geogrficos; pela
multiplicidade das tradies regionais, nacionais, culturais e religiosas; pelos interesses
econmicos, trocas econmicas pacficas e seguras; pela herana e tradies socioculturais
africanas mais autnticas, em si no bastam para criar a unio poltica. necessrio voltarmos
metafsica da unidade e reelaborar juntos a histria da frica que alm das muito boas
experincias de unidade ainda caracterizada, nalguns casos, por desentendimentos, lutas
fratricidas entre etnias e at por conflitos blicos.
Com razo, Kwame Nkrumah, apelava, na sua obra A frica deve unir-se, unidade, no
tanto para indicar a necessidade ou condio de estar unidos, mas sobretudo o acto de se unir
18
Cf. L. F. KAMBALU, A democracia personalista. Os fundamentos onto-antropolgicos da poltica luz de
Pietro Pavan, Paulinas, Lisboa 2012, pp. 51-64.
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porque os pressupostos geogrficos e econmicos, por si s, no bastam para criar a unio.
Ocorrem instituies vinculativas bem como vontade e conscincia de pertena, a um mesmo
continente chamado frica. A conscincia deve preceder formao poltica da unidade
africana que no se poder alcanar de forma duradoira sem valores comuns. Outrossim,
ocorre recordar que a unidade em si um bem somente quando ordenada, quando responde
razo objectiva da verdade, da justia e do bem. O mesmo dizer que a unidade um bem
que vale tanto quanto respeita o que h de valor nas partes que a compem.
A unidade perde valor quando se realiza de modo macio, esmagador, absoluto, destruidor e
totalitrio abolindo o espao que permite o dilogo, destruindo desta forma a esfera em que os
homens agem, tomam decises comuns e operam colaborando. Por isso, sem liberdade nem
dilogo a unidade africana seria impossvel porque a frica no seria mais o espao onde cada
indivduo aos outros as prprias capacidades em vista do bem comum, segundo princpios de
igualdade substancial. Neste sentido a frica seria um conjunto de indivduos e por
conseguinte um conjunto de Estados sem laos entre si. Cada um veria o outro no como um
semelhante, com quem chamado a relacionar-se e tomar iniciativas, mas um inimigo de
quem se defender.
Enfim, para reconstruir a unidade africana deve-se partir da pessoa humana e ocorre uma
poltica que envolva todas as pessoas e foras a todos os nveis na busca do bem comum, ou
seja, na busca daquele conjunto de elementos essenciais que respondem s exigncias
intrnsecas e imutveis da natureza humana. Trata-se, pois, de condies econmicas,
jurdicas, morais e religiosas que tornam possvel e favorecem o conseguimento pleno e fcil
do desenvolvimento integral das pessoas.
As exigncias histricas e os significados de unidade so sempre mutveis. Mudam conforme
se entenda o que leva os homens a unirem-se, a nvel ontolgico e histrico, ou seja,
consoante a efectiva existncia daquele princpio originrio em cada homem e povo ou
consoante o plano social, poltico, religioso e cultural em que se actua a unidade. De facto,
no poucas vezes, os prprios acontecimentos histricos e as prprias diferenas exigem que
se redefinam os instrumentos polticos para construir uma nova ordem inspirada numa nova
filosofia de relaes entre povos e Estados, que vo alm do que no passado no foi possvel.
Tais diferenas podem provir de uma profunda oposio e de uma divergncia quanto ao fim.
As diferenas podem provir tambm de uma dupla viso de um mesmo objectivo. Seja qual
for a origem das diferenas a atitude sadia compreender as realidades e promover o dilogo
e ver como as prprias diferenas permitem situar melhor o objecto.
Por isso, mister que nos diversos mbitos, questes e temas sobre os quais incumbe o risco
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da diviso, os africanos usem a mesma linguagem e falem a uma s voz, cultivando e
empenhando-se intensa, livre e conscientemente ao dilogo.
O dilogo fundamental para a vida poltica sobretudo quando exerce a funo da busca da
verdade e do bem. No caso da frica o dilogo torna-se uma exigncia insubstituvel para
superar as divises, intolerncias e fundamentalismos que, infelizmente se vo intensificando
na actualidade. O dilogo igualmente fundamental para superar os preconceitos e
desentendimentos histricos, culturais, raciais, sociais e religiosos e promover e concretizar a
unidade, a justia e a paz, no s por causa do pluralismo tnico, cultural, racial, social e
religioso do continente, mas sobretudo por causa do seu pluralismo poltico, pois, atravs do
dilogo cada indivduo ou povo enriquece o prprio ponto de vista e converge para as noes
de verdade e de bem humano e se empenha a potenci-las corresponsavelmente para a
unidade.
O dilogo tambm essencial para a unidade poltica, social e econmica e o
desenvolvimento integral dos povos e dos Estados africanos, pois, tal como os povos tambm
os Estados tm necessidade uns dos outros para se encontrarem a si prprios e no encontro
com os outros se realizarem plenamente. Por isso, o isolamento seria um impedimento
insupervel para a unidade e a realizao do prprio continente africano.
Tal dilogo deve basear-se em valores, princpios e normas aceites, e deve ser assegurado por
um sistema constitucional e de direito; pela promoo da justia, da paz e da liberdade para o
continente africano; pela experincia da verdade e pela busca constante de compreenso dos
fundamentos que tm plasmado a Unio Africana.
O dilogo no se processa sem dificuldades e alcanvel atravs da discusso e
argumentao; reconhecvel por todos a partir de um comum confronto que se funda sobre a
dignidade pessoa humana e possvel a diversos nveis: no plano da experincia quotidiana
para as questes sociais, comunitrias, familiares, ticas e ecolgicas; no plano do encontro
das culturas para o respeito e o melhor conhecimento recproco; no plano desportivo para o
cultivo do sentimento de pertena a um todo continental; no plano poltico para questes que
dizem respeito segurana econmica, cultural e jurdica; no plano militar para questes que
dizem respeito garantia da segurana e integridade territorial bem como erradicao de
conflitos em frica.
Trata-se de um dilogo gradual e sempre pronto a recomear. Um dilogo que no obriga, mas
se move no respeito da liberdade pessoal e civil e da soberania de cada Estado; trata-se de um
dilogo que no apenas instrumental nem nasce de tcticas ou de interesses, mas um dilogo
sincero e fecundo que reconhecendo toda a legtima diversidade promove o respeito, a
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concrdia e a colaborao.
Enfim, trata-se de uma actividade que apresenta motivaes, exigncias e dignidade prpria e
implica um mtuo esforo de compreenso por parte dos interlocutores que se compreendem
verdadeiramente quando descobrem, alm dos laos que os unem e os integram uns aos outros
e dos valores a eles comuns, as razes ideais em que cada um deles se inspira para realiz-los.
Outrossim, tal dilogo destina-se a produzir efeitos extraordinariamente benficos, como o
aumento da maturidade dos africanos numa penetrao mais autntica da complexa
realidade do mundo hodierno em que a frica se move a resoluo dos problemas, a
superao dos desafios relacionados com a unidade e a luta pela prosperidade e felicidade de
todas as naes bem como pela segurana e bem-estar do continente africano.
Tudo isso levanta muitos e difceis problemas de ordem econmica, social e poltica. Porm,
est de facto que diante das diferenas e dos antagonismos que o continente africano vive
actualmente, s a conscincia da comum humanidade e o dilogo franco, lcido e proveitoso
pode permitir construir um caminho de tolerncia e aceitao mtuas para a realizao de uma
convivncia respeitosa e articulada na reciprocidade sobre o fundamento da dignidade da
pessoa humana, da mobilidade interna, da integrao scio-econmica do continente e do
florescimento de um mercado interno. Isto far tambm com que os africanos no sejam
meros fornecedores de matrias-primas aos outros continentes e consumidores de produtos
estrangeiros, mas produtores e consumidores de produtos do seu prprio continente.
Um dilogo no inibido por complexos de superioridade ou de inferioridade, mas um dilogo
franco na base da conscincia de pessoas humanas e do respeito recproco. De facto, sem
dilogo franco no h progresso porquanto o progresso liberdade, e somente a verdade que
pode exprimir-se nos torna livres.
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HISTRIA A COLONIZAO, UMA REFERNCIA HISTORICIZANTE DO DISCURSO
SOBRE A DESCOLONIZAO DE FRICA: UMA PROVOCAO FILOSFICA
A PARTIR DE FRANTZ FANON
NLANDU MATONDO FAUSTINO a
Resumo
O presente trabalho procurou desconstruir, a partir das teses de Frantz Fanon, sobretudo
aquelas formuladas nos Condenados da Terra, a ideia de uma suposta misso civilizadora
subjacente na inteno colonizadora consubstanciada na equao colonizao igual a
civilizao e paganismo igual a selvageria. Partindo de uma indagao da validade criticvel
da equao em epgrafe, cruzou os factos s doutrinas que versam sobre o fenmeno da
colonizao de frica, e chegou a depreender, com uma certa objectividade, de que a
colonizao em frica, tal ficou visto por Fanon, foi mais um movimento de
despersonalizao e de coisificao dos africanos em geral e, dos negros, em particular do que
um projecto de humanizao e de emancipao dos indgenas de frica negra. Ficou, portanto
evidente, ao longo deste trabalho, de que a colonizao foi uma violncia que extraiu a sua
originalidade na substantivao do colonizado. Uma violncia que, no s, presidiu ao arranjo
do mundo colonial, como tambm, ritmou e alimentou a destruio antropolgica e ontolgica
do negro-africano, incluindo todas as suas formas sociais; arrasou completamente os seus
sistemas de referncias econmicas, os seus modos essendi et operandi e decretou a crise
scio-cultural dos povos negros de frica.
Palavras-chaves: colonizao, civilizao, violncia, despersonalizao, descolonizao,
emancipao.
Abstract
The present study sought to deconstruct, from the theses of Frantz Fanon, especially those
formulated in "The Wretched of the Earth, the idea of a supposed civilizing mission
underlying the colonizing intention embodied in the equation "colonization equal to
civilization and paganism equal to savagery. Crossed the facts to the doctrines that focus on
a Doutorando em Filosofia na Universidade de vora; Mestre em Cincias da Educao pela mesma
Universidade; Mestre em Filosofia pela Universidade Gregoriana e Docente na Universidade Catlica de
Angola.
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the phenomenon of colonisation of Africa, this was seen by Fanon, was more a movement of
depersonalization of Africans in general, and the negroes, in particular than a draft of
humanization and emancipation of the peoples of black Africa. Therefore became evident
throughout this work, that the colonization was a violence that drew its originality of the
colonized.
A violence that not only presided over the arrangement of the colonial world, as well as
marked and fed the anthropological and ontological destruction of black African, including all
its social forms; wiped out completely their systems of economic references, their modes
"essendi et operandi" and decreed the socio-cultural crisis of the black people of Africa.
Key words: colonization, civilization, violence, depersonalization, decolonisation,
emancipation.
Introduo
A reflexo em torno dos desafios da descolonizao em frica continua actual e actuante em
qualquer discurso intelectual ou poltico sobre o estado da nao de muitos Estados africanos,
passados que so, aproximadamente, seis dcadas desde que muitos deles se tornaram
independentes. Esta actualidade pode, todavia, no parecer evidente quando o enfoque do
discurso for a colonizao. De facto, pode parecer anacrnico e mesmo sintomtico falar da
colonizao para tentar justificar, a qualquer preo, o subdesenvolvimento e a instabilidade
sociopoltica, na actualidade, de muitos Estados africanos independentes. Bom ou malgrado,
essa sensao de anacronismo que sugere uma espcie de pok, em torno do fenmeno
colonial, perde a sua legitimidade na medida em que a pertinncia do discurso sobre a
descolonizao de frica torna, ipsis verbi, procedente o discurso sobre a colonizao. Ou
seja, toda a fala em torno da descolonizao sugere, de uma ou de outra forma, uma incurso
sobre a colonizao. Vamos, ao longo deste trabalho, procurar descortinar o conceito de
colonizao na tentativa de perceber as diversas nuances que encerra e a natureza do
trampolim que pode sugerir nossa cogitao sobre a descolonizao. Para o efeito,
propomos a seguinte estrutura: 1. Em busca do justo significado do conceito de colonizao a
partir da analtica de Fanon; 2. Indagando sobre a validade criticvel da equao colonizao
igual a civilizao; 3. Do entendimento terico dos conceitos em anlise a uma possvel
deduo da sua correlao; 4. Da anlise de algumas doutrinas e factos a uma possvel
verificao da equao de partida; 5. A colonizao como projecto de modernizao de
frica: clarividncia ou equvoco? 6. Desconstruindo o mito de uma civilizao humanista,
erguida na recusa do humano enquanto diferente; 7. A compartimentao maniquesta do
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mundo colonial uma anttese pretenso de uma suposta misso emancipadora dos
africanos subjacente na inteno colonizadora.
1. Em busca do justo significado do conceito de colonizao a partir da sua analtica
em Fanon
No possvel falar da descolonizao em Fanon, sem falar da colonizao, enquanto
referncia inofuscvel e movimento historicizante que confere corpo e sentido, matria e
forma a qualquer anlise crtica do projecto de descolonizao de frica. Esta , de resto, a
lgica que suporta o argumento de Fanon, que passamos a transcrever:
a descolonizao [] um processo histrico [], no pode ser
compreendida, no encontra a sua inteligibilidade, no se torna transparente
para si mesma, seno na exacta medida em que se faz discernvel o
movimento historicizante que lhe d forma e contedo a opresso colonial.
(Fanon, 1968, p. 26 ou Fanon, 2002, p. 452).
Desde esta perspectiva, a anlise sobre a colonizao ganha uma particular relevncia, na
medida em que se nos apresenta, no s, como fundamento a partir do qual se pode erguer
qualquer avaliao sobre as metas e objectivos que configuram o horizonte teleolgico da luta
dos africanos, rumo sua efectiva emancipao e reintegrao no universalismo humano,
mas, tambm, como pretexto para (re) pensar o caminho de superao das novas formas de
colonizao que grassam ainda frica e que, em si, constituem um verdadeiro impasse para
uma descolonizao efectiva do continente africano. Importa, desde j, sublinhar que esta
reflexo de tipo histrico no encontra o seu real significado na descrio dos factos que ela
encerra, nem na narrao histrica que a constitui. O seu real alcance reside na sua capacidade
de sugerir um conjunto de questionamentos em torno deste grande desiderato a
descolonizao vislumbrado pelos africanos, passados que so cinquenta e sete anos, aps a
morte de Fanon.
Tem-se, com efeito, e no poucas vezes, associado a colonizao de frica a um projecto
civilizador ou modernizador que ter sido frustrado ou interrompido por uma espcie de
ambio irracional dos africanos, admitindo-se, deste modo, a hiptese segundo a qual a
colonizao ter sido um projecto interrompido de civilizao (modernizao) da frica e
dos africanos. De recordar que o discurso sobre o colonialismo de Aim Csaire resulta,
precisamente, da necessidade de dissertar sobre uma possvel analogia entre a colonizao e
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a civilizao. Provocao ou no, mas o simples facto de lhe ter sido solicitado discorrer
sobre o binmio colonizao-civilizao pelo Franco-Senegals Alioune Diop, fundador e
Director da Revista Prsence Africaine em Paris, 1950, insinua a existncia de tendncias
que aproximavam a colonizao civilizao. Esta provocao, tal como nos parece ser, no
deixa de ser, no plano metodolgico, um bom ponto de partida para uma discusso mais
objectiva e crtica da concepo fanoniana do colonialismo, porquanto nos permite lanar a
discusso levantando uma srie de perguntas, tais como: 1. possvel sustentar, por via de
argumentao, uma provvel analogia entre os dois conceitos em anlise, a saber: colonizao
e civilizao? 2. Ter havido, realmente, um plano colonial de civilizar ou modernizar a
frica em proveito dos africanos? 3. Era sensato legitimar a opresso colonial a partir dos
progressos alcanados nas colnias de frica durante a administrao colonial? Dito de outro
modo Ser que os nveis de desenvolvimento conseguidos em vrios domnios: social,
administrativo, tecnolgico e poltico, sob o regime colonial, conferiam, efectivamente, a
merecida dignidade a frica e aos africanos? 4. Ter a frica, realmente, recusado o
desenvolvimento, como diria Axel Kabu, ao engajar-se na luta pela descolonizao? 5. E hoje,
em plena era ps-colonial, podero os africanos afirmar, com realismo, franqueza e
frontalidade, que os ideais que nortearam o projecto da descolonizao foram alcanados? 6.
Ter alguma razo de ser o postulado, segundo o qual, o projecto de descolonizao ter sido
abortado, na sua menor idade, admitindo-se, deste modo, um possvel equvoco entre os
lderes e os intelectuais africanos que tero confundido as independncias (enquanto meio)
com a descolonizao (enquanto fim da longa marcha, usando a expresso de Ren Dumont,
rumo a um continente mais humano, mais livre, mais autnomo, mais justo, e mais prspero)?
Ao longo desta reflexo, tentaremos identificar alguns elementos de resposta a estas
perguntas, tendo como principal suporte a obra de Frantz Fanon.
2. Indagando sobre a validade criticvel da equao colonizao igual civilizao
Qual ter sido o verdadeiro retrato do colonialismo: um processo de civilizao dos
chamados indgenas ou um movimento de despersonalizao e de coisificao dos povos
africanos? evidente que, para Fanon, esta questo nem sequer merece ser colocada. De
facto, o jovem martinicano bastante incisivo e objectivo na sua anlise. Para ele, a
colonizao , antes de mais, uma violncia, conceito que, de resto, d ttulo ao I captulo
do Les Damns de la Terre (Fanon, 1968, p.23 ou 2002, p.448). Na sua ptica, a violncia foi,
precisamente, o elemento estratgico e estruturante da lgica colonial. Trata-se de uma
violncia que extrai sua originalidade na substantificao do colonizado que a prpria
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situao colonial segrega e alimenta. Alis, o encontro entre o colonizador e o colonizado, diz
Fanon, teve sempre o retrato de violncia e nunca foi expresso de uma vontade civilizadora
ou humanizadora. Pode se ler em Fanon que a colonizao a categorizao de um encontro
que
se desenrolou sob o signo da violncia e sua coabitao ou melhor,
a explorao do colonizado pelo colono foi levada a cabo com
grande reforo de baionetas e canhes [] A violncia [] presidiu
ao arranjo do mundo colonial, [] ritmou incansavelmente a
destruio das formas sociais indgenas, [] arrasou completamente
os sistemas de referncias da economia, os modos da aparncia e do
vesturio do colonizado (Fanon, 1968, pp. 26 e 30).
possvel aproximar, em boa verdade, uma situao de uma clara alienao antropolgica,
fazendo f descrio de Fanon, a um projecto de civilizao, sem cair em sofismas que
desemboquem numa contradio? De notar que este mesmo entendimento de Fanon
corroborado pelo seu antigo mestre, Aim Csaire, que parafraseamos nos seguintes termos: a
colonizao, enquanto violncia, no sentido mais bruto da palavra, uma autntica anttese da
civilizao, ela, por natureza, desciviliza, simultaneamente, o colonizador e o colonizado. A
colonizao legitima o ilegtimo e normaliza o anormal: pode-se matar, vontade, na
Indochina, torturar em Madagscar, prender na frica negra, seviciar nas Antilhas (cfr.
Csaire, 1978, pp. 7 e 14). No preciso muita hermenutica para apreender nos dizeres de
Sartre de que a violncia constitui o modus operandi prprio do sistema colonial que nem
as suas geniais trapaas conseguem disfarar. A peculiaridade do agir colonial distancia a
colonizao da civilizao. E para deixar tudo a nu, Sartre faz a seguinte inconfidncia:
nossos soldados no ultramar rechaam o universalismo metropolitano,
aplicam ao gnero humano o numerus clausus; uma vez que ningum pode
sem crime espoliar seu semelhante, escraviz-lo ou mat-lo, eles do por
assente que o colonizado no o semelhante do homem. Nossa tropa de
choque recebeu a misso de transformar essa certeza abstrata em realidade: a
ordem rebaixar os habitantes do territrio anexado ao nvel do macaco
superior para justificar que o colono os trate como bestas de carga [] nada
deve ser poupado para liquidar as suas tradies, para substituir a lngua deles
pela nossa, para destruir a sua cultura sem lhes dar a nossa (Sartre, Les
Damns, 1961, p 9)
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Esta violncia que parte do plano simblico conceitual atingiu o seu ponto auge com
desterramento dos indgenas feitos estrangeiros na sua prpria terra, como foi o caso do
cdigo civil imposto aos argelinos, visando regular o direito propriedade e herana com a
nica finalidade de desterrar os autctones, tirando-lhes o que de mais precioso tinha a sua
prpria terra. De realar que o referido cdigo tinha aprovado a titularidade comum de terras
entre a classe-mdia francesa e a sociedade tribal, como estratgia de expropriao de terras
aos autctones, atravs de polticas especulativas. (cfr. Sartre, 1967, p.39).
Desde este ponto de vista pode-se aferir que os modus essendi et operandi do colonialismo
configuravam, em certa medida, aquilo que Sartre chamou de imoralidade narcisista da
ambio ocidental da qual emerge o impulso que modifica, inevitavelmente, qualquer
indivduo que adere dinmica colonial, dando-lhe boa conscincia e boas razes de ver no
outro (no branco) um simples animal. Esta constatao sartriana valida, sem qualquer
sombra de dvida, a convico de Csaire para quem o colonialismo brutalidade,
intimidao, crueldade, sadismo, choque, violao, roubo, desprezo, culturas obrigatrias,
desconfiana, massas aviltadas, ausncia de contacto humano, relaes de dominao e de
submisso que transformam o negro colonizado em criado, ajudante, comitre e instrumento de
produo (cfr. Csaire, 1978, p.25). A partir destes pressupostos torna-se, de facto, foroso
concluir que no existe, tal como defende Fanon, qualquer sustentabilidade, quer
argumentacional, quer factual para a validao da equao colonizao igual civilizao,
pois os factos atestam que colonizao o oposto de civilizao. Mas uma dmarche
etimolgica dos conceitos pode sugerir um outro entendimento que no plano terico
conceitual aproxima os dois conceitos em abordagem.
3. Do entendimento terico dos conceitos em anlise a uma possvel deduo da sua correlao
Para fundamentar, com maior objectividade, o alcance da deduo decorrente da narrativa de
Fanon em relao a conjecturada correlao entre os dois conceitos em anlise, pareceu-nos
mister recorrer ao estudo definicional dos referidos conceitos, no sentido de os tornar mais
inteligveis para, da, depreender o seu justo significado e, consequentemente, confirmar ou
infirmar a suposta correlao entre ambas. Convm, no entanto, sublinhar que o carcter
polissmico dos conceitos em epgrafe no nos permite ignorar o facto de que no to fcil,
quer do ponto de vista conceitual, quer do ponto de vista factual, traar a linha de
convergncia ou de divergncia entre eles, pois o prprio carcter multidisciplinar que o
conceito de civilizao envolve, hoje, confere-lhe uma enorme complexidade que dificulta
qualquer entendimento homogneo, linear e conclusivo. Acresce-se a este dado o facto de
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que, nos dias que correm, o conceito de civilizao reivindicado como objeto de estudo da
antropologia, da cincia, da cultura, do direito, da histria, da filosofia poltica, da sociologia
poltica, da religio, etc., proporcionando-lhe um enquadramento epistmico bastante
complexo que recusa qualquer unicidade semntica. No entanto, um recuo estratgico e
metodolgico ao sculo das luzes, onde o significado do termo civilizao emergiu da
prpria raiz etimolgica do conceito civilis, civis cujo entendimento remetia aco
de tornar civil ou urbano, pode permitir uma espcie de unidade de sentido a partir do qual se
pode fundamentar a possvel analogia conceitual destes dois termos.
A Enciclopdia Luso Brasileira da Cultura no foge muito desta percepo quando define a
colonizao como um fenmeno sociopoltico baseado na dependncia de um grupo humano
ou de um territrio a um outro que exerce nele influncias demogrficas, econmicas,
culturais, sociais ou polticas. Entendimento luz do qual alguns tericos, nos sculos XIX e
XX, basearam a sua definio de colonizao como atividade pela qual um povo de cultura
superior ocupa e organiza, por conta prpria, um territrio habitado por povos de cultura
inferior, estendendo a sua soberania, desfrutando do solo e organizando as terras ocupadas,
segundo o princpio da civilizao. Observa-se, aqui, a misso civilizadora subjacente ao
conceito da colonizao, enquanto fenmeno sociopoltico, cuja meta levar as colnias ao
desenvolvimento cultural, social, econmico e cientfico, ou seja, modernizao do territrio
ocupado. Este , de resto, o significado que decorre do entendimento filolgico do conceito de
colonizao cuja estrutura originria se funda em torno de dois pressupostos basilares,
nomeadamente: o cultivo da terra, isto , o desenvolvimento econmico, e o cultivo dos
homens, ou seja, a promoo sociocultural e econmica das populaes consideradas na
posio receptiva (cfr. Enciclopdia Luso Brasileira da Cultura, n5, p.996ss).
De salientar que o conceito de civilizao emergiu, e muito provavelmente, antes de qualquer
outro pas, no contexto sociocultural francs e fazia referncia, essencialmente, a trs
dimenses que vale a pena enumerar: a primeira era referente ao primado da vida em
comunidade sobre a vida solitria; a segunda fazia aluso ao primado da vida na cidade sobre
a vida no campo; a ltima reportava-se ao primado do homem polido pela cultura sobre o
selvagem, isto , o homem moderno distinguido pela cincia e pela tcnica, sobre o brbaro
(cfr. Enciclopdia LB da Cultura, n5). Neste contexto terico-conceitual, civilizar era, de
facto, sinnimo de trabalhar na integrao dos indgenas na comunidade metropolitana, na
modernizao da vida do campo, isto , levando as condies da cidade ao campo (energia
elctrica, gua potvel, educao escolar, assistncia mdica e medicamentosa) e na polio
do brbaro pela chamada cultura, cientfica e tecnolgica.
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Este parece ser o entendimento mais vivel para o exame a que nos propusemos, da
correlao destes dois vocbulos. O facto desta mesma perspectiva encontrar suporte e
sustentabilidade epistmica no Dicionrio da Lngua Portuguesa Contempornea, editorial
Verbo, acresce, ainda mais, o nosso interesse por esta perspectiva (cfr. 2001, p.833). Segundo
o Dicionrio, ora referenciado, a civilizao a aco ou o resultado de transmitir
conhecimentos, comportamentos e tcnicas consideradas desejveis numa sociedade moderna.
Por conseguinte, civilizar dar caractersticas prprias de sociedades tcnicas, cientfica e
economicamente desenvolvidas a sociedades primitivas; ou, ainda, dar hbitos e ajudar a
desenvolver comportamentos desejveis numa sociedade desenvolvida. Conclui-se, pois, que,
do ponto de vista conceitual ou definicional, existem razes para fundamentar a presumvel
correlao entre os conceitos de colonizao e civilizao. Mas a no homogeneidade de
compreenso na interpretao e aplicao destes conceitos, partida, polissmicos e
multidisciplinares, e o seu claro antagonismo factual evidenciado nas descries fanonianas,
obrigam-nos a dar um passo a mais, espreitando algumas doutrinas e factos que marcaram e
continuam a marcar o discurso sobre o colonialismo.
4. Da anlise de algumas doutrinas e factos uma possvel verificao da equao de
partida
Se possvel aferir, do ponto de vista definicional, uma certa correlao analgica entre os
conceitos que fundam a nossa equao de partida, tal como ficou patenteado no ponto
anterior, do ponto de vista doutrinal e factual, esta correlao carece de uma anlise
minuciosa que permita apurar se a propenso civilizadora inerente ao conceito de colonizao,
pelo menos no plano terico-conceitual, conseguiu vincar como aspecto norteador da aco
colonial, ou ter, por alguma razo, ficado ofuscada durante o processo colonial. Impe-se-
nos, a este nvel, retomar o ponto de vista de Fanon, para quem a colonizao , antes de
mais, uma violncia que se consubstancia na animalizao e na aniquilao dos (negros)
colonizados. Para sustentar o seu argumento, Fanon comea por relembrar a atitude do colono
que, em vrias circunstncias, fez recurso a uma linguagem zoolgica, usando expresses
como: [] hordas, fedor, bulcio [] e quando os quisesse descrever com mais exatido
[] recorria constantemente ao bestirio para designar os negros (Fanon, 1968, p. 31 ou
2002, p. 456). Esta animalizao do colonizado , para Fanon, a expresso mais eloquente de
uma violncia absoluta que desenraza o aviltado de sua humanidade. E para reforar a sua
criatividade narcisista e alimentar o seu instinto nihilista, o colono via-se na necessidade de
encontrar novos atributos que pudessem explicitar, da melhor maneira possvel, a real
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dimenso semntica subjacente nos conceitos de indgena e selvagem que, em si, j no
eram suficientes para exprimir a mesquinhez que representavam os selvagens negros de
frica, entre outros:
demografia galopante, massas histricas, rostos de onde fugiu qualquer trao
de humanidade, corpos obesos que no se assemelham mais a nada, corte sem
cabea nem cauda, crianas que do a impresso de no pertencerem a
ningum, preguia estendida ao sol, ritmo vegetal (Fanon, 1968, p. 32 ou
Fanon, 2002, p.457)
A validade histrica desta narrativa fanoniana suscita o seguinte questionamento: sensato
falar de um projecto de civilizao de animais sem converter a prpria racionalidade
civilizadora numa irracionalidade animal? Para tentar justificar a paradoxal irracionalidade
animal de uma civilizao cuja racionalidade o epicentro da sua aco, muitos preferiram
considerar as afirmaes de Fanon de irresponsveis e repletas de inverdades, qualificando o
prprio Fanon de agitador e instigador da violncia, ante a sua incisiva caracterizao do
sistema colonial. Dentre outros, podemos citar Alain Finkierkraut, cujo pensamento, mais do
que uma anttese s teses de Fanon, uma tentativa de demonstrao da derrota do projecto da
descolonizao; Pirre Bourdieu, de quem procedem muitos dos adjectivos qualificativos que
pesam sobre Fanon, paradoxalmente considerado por Micheal Burawoy (2010, p. 109),
como um dos autores que figuram da lista dos intelectuais como Albert Camus, Simone de
Beauvoir, Germaine Tillion, Jasques Amrouche e outros que, como Fanon e Sartre, tiveram a
ousadia de denunciar, cada um sua maneira, a violncia inerente ao sistema colonial,
forjando novas noes de identidade poltica que continuam a influenciar o debate poltico na
actualidade.
No seu marxismo encontra Bourdieu, Burawoy procura mostrar que, apesar da enorme
distncia que separa o quadro terico-reflexivo de Bourdieu e Fanon, nomeadamente o
marxismo terceiro-mundista, de um lado, e a teoria da modernizao, de outro lado, o
pensamento destes dois autores apresenta inmeras similitudes, sobretudo, entre o Fanon do
Le Damns de la terre, de 1961, e o Bourdieu de Sociologie de lAlgerie, de 1958. Embora
no seja objecto deste debate, julgamos oportuno e procedente mencionar, a ttulo de
exemplo, algum extracto da obra de Bourdieu que descreve a violncia como uma das
caractersticas intrnsecas natureza prpria do sistema colonial e nos termos muito
semelhantes aqueles que aparecem nas pginas 26 e 30 do Le Damns de la terre, de Fanon
(cfr. 1968), ao afirmar:
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o sistema colonial, enquanto tal, no poder ser destrudo seno atravs de
um questionamento radical. Todas as mutaes so submetidas lei de tudo
ou nada. Este facto est na conscincia, pelo menos, de forma confusa, quer
entre os membros da sociedade dominante, quer entre os membros da
sociedade dominada [] Mas preciso admitir que o primeiro e nico
questionamento radical do sistema aquele que o prprio sistema engendrou,
isto , a revoluo contra os princpios que o fundaram [] A situao
colonial criou o desprezvel e ao mesmo tempo o desprezo; mas criou,
tambm, a revolta contra o desprezo. Assim, cresce, cada vez mais, a tenso
que divide a sociedade no seu conjunto (Bourdieu, 1958, pp. 28 e 129).
Fica aqui o retrato de tanta similitude entre Fanon e Bourdieu, numa clara aproximao da
colonizao violncia. De facto, a violncia simblica e real depreendida em muitos
cenrios e discursos sobre o colonialismo como uma marca distintiva do sistema colonial.
Vrios so os etnlogos e idelogos que, nas entrelinhas do seu pensamento, conferem uma
certa razo a um tal pressuposto. Alfred de Vigny, por exemplo, faz jus a esta violncia
simblica ao afirmar, sem rodeios, que o mundo no europeu um mundo animal, mundo dos
brbaros, mundo da morte e, consequentemente, uma ameaa ao mundo europeu. Partindo
deste postulado, deduz-se que, para De Vigny, a colonizao era um processo compulsivo de
civilizao, isto , uma opo para a vida e, tal como diz se se prefere a vida morte, tem de
se preferir a civilizao barbaridade, que no apenas um reino animal e de morte, mas,
tambm, uma ameaa civilizao. Em virtude disto, conclui De Vigny, nenhum povo tem o
direito de permanecer brbaro ao lado das naes civilizadas. Depreende-se daqui que a
nica lgica vlida a disjuntiva, to be or not to be, como diria Shakespeare, that is the
question (cfr. De Vigny, 2003, p.87).
Esta apreciao lacnica de Alfred de Vigny ganha maior clareza com Folliet que, como De
Vigny, tambm considera a colonizao como uma obra civilizadora, uma espcie de direito e
dever das sociedades evoludas. Folliet baseia o seu argumento nas caractersticas
heterogneas das sociedades, isto , nos desnveis existentes entre as sociedades colonizadas e
colonizadoras, quer nos planos econmico, administrativo, cultural, social e poltico, quer nos
planos cientfico e tecnolgico. Daqui resulta o entendimento segundo o qual a colonizao
seria, possivelmente, o processo de supresso destes desnveis sociais, com o auxlio das
sociedades mais desenvolvidas. Pelo que a manuteno destes desnveis, como forma
hegemnica de controlo ou de manuteno de superioridade, foge do mbito da colonizao
para desembocar no campo de aco do colonialismo (cfr. Folliet, 1932, p. 75). caso para
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dizer que o entendimento terico de Folliet apresenta uma diferena ntida entre a colonizao
que seria, para o autor, o sinnimo de civilizao e o colonialismo que pode ser visto como
processo de explorao e subjugao das sociedades subdesenvolvidas pelas sociedades
desenvolvidas.
Mas preciso dizer que, se do ponto de vista conceitual, Folliet deu um tamanho salto
qualitativo, propiciador de uma possvel coabitao pacfica entre o colono e o colonizador,
aludindo misso civilizadora da colonizao, do ponto de vista prtico, o discurso follietiano
deu lugar a muitas ambiguidades; sobretudo, quando o prprio autor considera a colonizao
como forma mais vivel de se tirar o melhor proveito dos recursos naturais mal parados em
territrios subdesenvolvidos e valoriz-los para o bem-comum da humanidade, sem definir as
regras, nem as modalidades ou os vnculos contractuais para tal. Com efeito, Folliet considera
um dado assente que as naes economicamente mais evoludas tm o direito de explorar as
riquezas ignoradas ou desprezadas pelos povos selvagens (Folliet, 1932, pp. 101 e 268). E
para no camuflar a sua veia colonial consubstanciada no instinto de violncia, Folliet
defende a necessidade da manuteno das desigualdades entre o colonizador e o colonizado,
numa clara opo pelo colonialismo em detrimento da colonizao, contrariando a sua prpria
doutrina, com o seguinte posicionamento:
a desigualdade deve reinar a favor dos colonizadores, de modo que o sujeito
colonizado no passe, numa vontade de vingana, a esquecer a sua
heteronomia absoluta; , portanto, til e necessrio que as mais vastas
propriedades, as mais ricas indstrias, os mais frutuosos comrcios pertenam
aos representantes da raa superior (Folliet, 1932, p.228).
Uma possvel deduo leva-nos, por um lado, a aferir a inadequao da equao de partida
com os aspectos doutrinais e factuais tomados como pressupostos analticos da questo em
estudo e a considerar, por outro lado, a emergncia da categoria de dominao como outro
elemento caracterstico da estratgia colonial na relao colonizado/colonizador. Este
princpio que , em si mesmo, o elemento estruturante da tenso e, ao mesmo tempo,
provocador da dialctica do senhor e do escravo, permite-nos um salto para o exame da
possibilidade de um plano colonial de civilizar ou de modernizar a frica em proveito dos
africanos.
5. A colonizao como projecto de modernizao de frica: clarividncia ou equvoco?
possvel compatibilizar o instinto de dominao com a vontade de promover ou de
emancipar? Guillaume Surna, num movimento contrrio ao nosso itinerrio, apresenta um
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discurso capaz de relanar a discusso. No seu artigo intitulado Psycanalyse et
anticolonialisme, Surna lamenta o desperdcio de uma oportunidade que teria resultado num
possvel encontro inter-civilizacional frutfero, e que, no entanto, ter sido frustrado pela
vontade dominadora do instinto colonial. Os textos surenianos insinuam que, do ponto de
vista prtico, a civilizao europeia nunca teve qualquer plano de promover, nem de
reconhecer as outras civilizaes como parceiras importantes para um crescimento conjunto.
A sua ambio foi sempre de conhecer para dominar e subjugar, como ficou explicitado nesta
passagem:
este encontro de civilizaes to diferentes poderia ter sido o momento de um
intercmbio fecundo e de um enriquecimento mtuo, como lamentou o
antroplogo francs Claude Levi-Strauss. Mas para a metafsica europeia,
desde a Grcia antiga, o saber foi sempre o equivalente de maitriser, isto ,
de dominar. As coisas e os animais foram desbatizados para serem mutilados
sob os conceitos com partculas latinas e gregas. Os locais geogrficos
receberam nomes que evocam a velha Europa e que os tornam ridculos por
falta de qualquer relao com os espritos que os habitavam outrora (Surna,
1943, p. 4).
Diga-se, pois, de passagem, que foi assim na Grcia antiga, foi assim at ao sculo XX, e
nada justifica que no continue assim nos dias que ho-de vir. Mas a questo : qual o destino
que o instinto dominador das naes pode proporcionar espcie humana? Convm recordar
que, num passado mais recente da histria da Europa, a colonizao assumiu o carcter de
dominao dos povos e dos seus recursos naturais. Os europeus sempre mostraram-se mais
interessados com uma partenognese profunda dos africanos para os submeter mais
facilmente e no para os civilizar. De facto, desde o incio do sculo XVII, com as grandes
navegaes e os descobrimentos das amricas, o interesse em explorar e conquistar novas
terras ganhou um enorme vigor na Europa e, com ele, emergiu tambm a chamada
colonizao de explorao e de povoamento. A primeira forma de colonizao foi o momento
no qual prevaleceram os interesses mercantis no quadro em que as colnias tinham uma
utilidade meramente lucrativa junto da metrpole. A segunda acontecia de maneira
espontnea, mas tendo como factor motivacional o surgimento de uma actividade econmica
com garantias de melhorar a qualidade de vida de quem a acorria.
Muitos estudos mostram que, no continente africano, este tipo de colonizao foi sempre
acompanhado de desterramento de zonas arveis ou de pastagem dos autctones, bem como
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da supresso dos eventuais direitos que detinham1. Embora referindo-se a um contexto muito
mais pretrito ao de Fanon, Csaire, Sartre e outros, Iva Cabral traz ao de cima a ideia de
dominao e de explorao como elementos catalisadores do interesse europeu em frica,
ajudando, assim, na desconstruo da hiptese de um possvel plano colonial para o
desenvolvimento de frica e dos africanos. De facto, Iva Cabral afirma que a experincia
ultramarina se resumia na conquista das praas do Norte de frica e na fixao de guarnies
e que os europeus arriscavam viver por tempo indeterminado nos territrios tropicais de
frica, no pelo desejo de levar a civilizao s terras longnquas de frica, mas por causa
dos inmeros privilgios econmicos e sociais que tinham, os quais incluam, em alguns
casos, a sociedade escravocrata de produo no Atlntico (cfr. 2015, p.25).
Este suporte histrico que Iva Cabral empresta ao nosso argumento de tipo dedutivo encontra
um reforo na posio de Sartre que introduz um outro elemento de enorme utilidade na nossa
anlise sobre as categorias de dominao e explorao como sustentculos da aco
colonizadora, quando, num tom autocrtico, apontando o dedo aos seus irmos europeus,
pinta, sem complexo nem contemplaes, o verdadeiro retrato da Europa colonial, permitindo
a apreenso da razo mais profunda e mobilizadora de toda a ofensiva opresso contra os
autctones em territrios colonizados, sobretudo em frica, nestes termos:
sabeis muito bem que somos exploradores. Sabeis que nos apoderamos do
ouro e dos metais e, posteriormente, do petrleo dos continentes novos e que
os trouxemos para as velhas metrpoles. Com excelentes resultados: palcios,
catedrais, capitais industriais [] A Europa, empanturrada de riquezas,
concedeu de jure a humanidade a todos os seus habitantes; entre ns
lucramos com a explorao colonial (Fanon, 1968: p. 17).
Se tomamos a srio as diversas constataes dos autores supra mencionados, torna-se
insustentvel a hiptese de um suposto projecto de desenvolvimento colonial a favor dos
africanos e da frica, num contexto de explorao no seu sentido mais radical e mais bruto do
termo, isto , uma explorao no s de recursos naturais dos territrios colonizados, mas
tambm do seu prprio capital humano. Num tal contexto, aproximar a colonizao da
civilizao admitir, partida, uma ambiguidade semntica na compreenso destes dois
conceitos. Reagindo a respeito de uma tal ambiguidade, Csaire diz que a colonizao no
deve ser confundida com uma empresa filantrpica, nem com uma nobre vontade de recuar as
fronteiras da ignorncia, da doena, da tirania e, at mesmo, da propagao de Deus e, muito
1 Cfr. https://pt.wikipedia.og/wiki/colonizao. Enciclopdia livre, 15/02/2017
https://pt.wikipedia.og/wiki/colonizao
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menos, com uma poltica de extenso dos direitos do povo colonizado, como pretendeu o
pedantismo cristo, que concebeu o referido equvoco, ao enunciar uma equao tica e
religiosamente desonesta e politicamente pretensiosa: cristianismo igual a civilizao e
paganismo igual a selvajaria, tornando-se, assim, responsvel pelas consequncias
abominveis decorrentes dos actos coloniais, cujas vtimas seriam os ndios, os amarelos e os
negros (cfr. Csaire, 1978, pp.14-15).
Pode se depreender dos textos de Csaire que a colonizao a manifestao, sem precedente,
da ganncia do aventureiro e do pirata, do comerciante e do armador, do pesquisador de ouro
e do mercado, do apetite e da fora, tendo por detrs a sombra malfica projetada de uma
forma de civilizao que, a dado momento da sua histria, se viu obrigada, internamente, a
alargar escala mundial a concorrncia das suas economias. Se no, como se pode perceber
que a Frana, em particular, e a Europa, em geral, conseguissem, progressivamente, tal como
alude Dino Constantini, transformar os princpios democrticos e humanistas, to-reclamados
naquela circunscrio do globo, em instrumentos de justificao de dominao, com regulares
violaes, nas colnias, dando lugar a uma degenerao sem precedente de uma suposta
misso civilizadora da Europa em frica (cfr. Constatini, 2008, pp. 33 e 53)? Para pr a nu
o paradoxo de uma civilizao dita humanista, mas, na prtica, contestadora da prpria
humanidade no diferente, Constatini evoca o cdigo civil de 1791, que coloca as colnias
fora do direito comum, institucionalizando uma ciso social, juridicamente fundamentada,
entre as populaes brancas e negras, legitimando, ao mesmo tempo, a violncia, primeiro, no
plano simblico e, posteriormente no plano concreto, numa clara declarao de recusa de
reconhecimento e de integrao dos negros na vida da metrpole. preciso dizer que esta
fragmentao social, legitimada pelo cdigo civil supra citado, serviu de base para a
consagrao de uma nova compreenso do conceito da humanidade que reduziria os
direitos humanos a direitos de cidadania, reservando-os apenas aos europeus.
o paradoxo, no caso da Frana, de uma Repblica que nunca deixou de contestar contra a
violncia de que tinha sido vtima em 1871, cegamente transformada numa autntica mquina
de violncia contra outros humanos, sem qualquer fundamento legtimo (cfr. Constatini, 2008,
p. 286). a contradio de uma civilizao ocidental defensora de direitos humanos, mas que
no hesita de reduzir os outros humanos categoria de sub-humanos; a estratgia de um
imaginrio ideolgico que, no plano psicolgico, confere legitimidade a todas as barbries dos
colonizadores sobre os colonizados; a ironia de uma civilizao cuja linha de demarcao
com a barbaridade no explcita. Nem mesmo a dignidade humana, universal e abstracta,
apregoada pelos moralistas desta civilizao, como um dos valores mais sublimes entre os
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humanos, em especial, pela religio crist, mais consagrada ao servio do imperialismo do
que de Deus, na ptica de Csaire, conseguiu dissimular a violncia contra o colonizado.
6. Desmistificando o mito de uma civilizao humanista erguida na recusa do
diferente
Parece ter ficado evidente que a colonizao se identificou mais com uma dinmica de
explorao dos povos colonizados do que com um projecto de integrao dos indgenas na
metrpole. Iva Cabral ajuda-nos, mais uma vez, a perceber como a lgica do lucro presidiu a
todas as estratgias e legislaes coloniais. Numa perspectiva simplesmente histrica, a autora
apresenta alguns dados que nos permitem conferir uma certa validade a muitos dos
enunciados de Fanon que concedem sentido e substncia a este trabalho. Com efeito, Iva
Cabral afirma que as decises polticas do regime colonial criavam condies para que os
filhos da mdia e baixa nobreza portuguesa, neste particular, mercadores e aventureiros
vislumbrassem no territrio recm-descoberto uma oportunidade e um trampolim para o vasto
mercado africano cujo acesso se abria na costa ocidental do continente e para os lucros que as
mercadorias, da advindas, poderiam trazer (cfr. Cabral, 2015, p.27).
lgico conjecturar que, num tal jogo de lucro fcil, que no podia no contar com os
recursos naturais e com o capital humano africanos, como meios ideais para minimizar os
custos e maximizar os lucros, a preocupao pela integrao dos africanos no clube dos
evoludos e emancipados seria uma espcie de atentado ao esprito de negcio. Este postulado
encontra a sua sustentabilidade no discurso de Joseph de Maistre que radicaliza a atitude da
recusa do outro o diferente, feito uma ameaa para o ns ideologicamente construdo e
consagrado como o nico paradigma possvel de humanidade na seguinte declarao:
havia uma extrema verdade neste primeiro movimento dos europeus que se
recusaram, no sculo de Colombo, em reconhecer seus semelhantes, homens
degradados que povoavam o novo mundo [] Era impossvel fixar um
instante do olhar no selvagem sem ler o antema escrito, no digo somente na
sua alma, mas, at na forma exterior do seu corpo (De Maistre, Joseph, Apud.
Csaire, 1978, p. 33).
Esta declarao deixa transparecer uma inferncia lgica quase irrefutvel de que o referido
antema dos indgenas s no se consumou ao extermnio, na perspectiva do colono, por
razes de ndole puramente utilitarista, como se depreende nesta passagem do j citado autor
nesta transcrio de Csaire:
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sob o ponto de vista de seleco, consideraria deplorvel o desenvolvimento
numrico [] dos elementos amarelos e negros, que seriam de eliminao
difcil. Se, todavia, a sociedade futura se organizar numa base dualista, com
uma classe dolico-loira dirigente e uma classe de raa inferior confiada
mais grosseira mo-de-obra, possvel que este ltimo papel incumba aos
elementos amarelos e negros. Neste caso, alis, no seria um embarao, mas
uma vantagem para os dolico-loiros (De Maistre, Joseph, Apud. Csaire,
1978, p. 33).
Fica desvendado, nestes dizeres do De Maistre, o retrato do narcismo nihilista de muitos
artistas da europa colonial, consubstanciado na ideia e na pretenso de uma raa superior que
se julga no direito de combater todo o tipo de risco de contgio. o drama de uma Europa
feita refm pelo seu prprio mito de pureza civilizacional uniracial; um mito enganoso,
pretensioso e pernicioso que pe em causa a aspirao de uma poltica enquanto exigncia de
construo de uma comunidade humana na qual a conscincia da diversidade dos humanos e a
necessidade da reciprocidade entre os diferentes se tornam uma condio sine qua non da
prosperidade e da sobrevivncia da prpria espcie humana. Lamentavelmente, este
entendimento da poltica como espao intermedirio onde se joga a liberdade e interaco dos
humanos, enquanto seres iguais e autnomos , constantemente, posto em causa, como diz
Martha Nussbaum, pelos apologistas deste mito que, em todas as sociedades, alimentam uma
falsa convico de pureza etnocntrica ou classecntrica, geradora de violncia contra os
excludos (cfr. Nussbaum, 2010, p. 48), comprometendo a possibilidade de fazer da poltica o
lugar por excelncia da profundidade humana.
Para compreender as mais profundas motivaes que levam os indivduos a um tal instinto
nihilista, Nussbaum recorre ao pensamento de Mahatma Gandhi, que examina a possvel
conexo existente entre os domnios psicolgico e poltico. Com efeito, Gandhi conclura que
os desejos gananciosos, o instinto de agresso e a ansiedade narcisista so empecilhos para a
edificao de uma verdadeira civilizao humana. Pelo que a luta poltica pela construo de
uma civilizao humana, assente nos pilares da liberdade, empatia e igualdade deve ser
precedida de uma luta contra o medo do outro, a ganncia e o instinto de agresso narcisista
intrnsecos em cada indivduo (cfr. Nussbaum, 2010, pp. 48-50). E se partimos da hiptese de
que o sucesso destas propagandas narcisistas que arrastam multides ao dio, ao genocdio e
instrumentalizao dos outros, tidos como da raa inferior ou sub-humana, ocorre mais em
contextos de pouca capacidade crtica ou de uma intelectualidade materialista ou
ventrloque, usando a expresso de Fabien Eboussi Boulaga, isto , de uma intelectualidade
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corrupta, desprovida de princpios ticos e humanistas, foroso concluir que por mais que a
Europa colonial quisesse apostar num projeto de civilizao dos africanos, no teria condies
efectivas de o fazer ante a sua ganncia e arrogncia eurocentristas, encorajadas por uma
jactncia ostensiva feito veneno, instalado na veia de muitos europeus cegos pela avidez do
lucro cuja solidificao se d com o asselvajamento dos africanos, em geral, e dos negros, em
particular.
, precisamente, este instinto egosta e materialista que transparece na maneira como Ernest
Renan concebe o colonialismo. Para ele, o colonialismo uma necessidade