Versão On-line ISBN 978-85-8015-076-6Cadernos PDE
OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSENA PERSPECTIVA DO PROFESSOR PDE
Artigos
Memória de ontem, memórias de hoje: o Colégio Poliv alente de Londrina
segundo as lembranças de seus alunos
Sônia Aparecida Camargo
Orientadora: Regina Célia Alegro
Resumo: o objetivo geral que norteou o projeto, culminando no presente artigo, foi envolver os alunos e incentivá-los a pesquisar a memória do Colégio e refletir sobre as narrativas encontradas. Para alcançar esse objetivo destacamos as narrativas sobre o Colégio Polivalente de Londrina, segundo as lembranças de alunos que frequentaram esta instituição de ensino, em diversos momentos de sua história, de tal modo a confrontá-las entre si, isto é, confrontar as narrativas dos ex-alunos e dos atuais, entre as lembranças daqueles de “ontem” e os de “hoje”. A partir de tal confronto foi possível sensibilizar os atuais alunos do Colégio Polivalente para a pertinência histórica dos relatos de memória, bem como para a construção de uma identidade de comunidade escolar.
Palavras-Chaves: Memória e História. Lembranças. Colégio Polivalente.
Introdução
O presente artigo se insere no tema geral da história e seu ensino, atuando
principalmente na articulação entre história e memória. Daí a importância de
contrapor as memórias e seus registros de outras épocas com a memória atual dos
alunos, de modo a sensibilizá-los que a história não é apenas o registro e
preservação científica do passado, mas um reinterpretar e ressignificar a própria
história presente, que pode auxiliá-los na formação de uma identidade e de senso de
comunidade, pelo menos a partir do local em que estudam, no caso, o Colégio
Polivalente.
Para dar conta desse objetivo geral, procurei, além das considerações sobre
a questão da memória, principalmente a partir dos trabalhos de Maurice Halbwachs
e de Ecléa Bosi, coletar entrevistas de ex-alunos do Colégio Polivalente, pelas quais
pude analisar as narrativas de suas memórias. Vale ressaltar que, as coletas de
dados e narrativas de memória foram realizadas pelos estudantes participantes do
projeto, devidamente preparados e por mim acompanhados.
Refletindo sobre a questão da memória
No Brasil, um importante referencial nos estudos sobre a memória, ainda que
não o seja exclusivamente, é o livro de Ecléa Bosi, Memória e Sociedade:
Lembranças de velhos, publicado em 1987. Naquele livro, a autora justifica as
razões que a fizeram escolher a coleta e análise das memórias de pessoas anciãs:
Nota-se a coerência do pensamento de Halbwachs: O que regue, em última instância, a atividade mnêmica é a função social exercida aqui e agora pelo sujeito que lembra. Há um momento em que o homem maduro deixa de ser um membro ativo da sociedade, deixa de ser um propulsor da vida presente de seu grupo: neste momento de velhice social resta-lhe, no entanto, uma função própria: a de lembrar. [...] O que se poderia, no entanto, verificar, na sociedade em que vivemos, é a hipótese mais geral de que o homem ativo (independentemente da sua idade) se ocupa menos em lembrar, exerce menos frequentemente a atividade da memória ao passo que o homem já afastado dos afazeres mais prementes do quotidiano se dá mais habitualmente a refacção do seu passado (BOSI, 1987, p. 23s).
O acento deve ser, ao que parece, mais sobre a função social do indivíduo
que lembra do que na hipótese de que ao idoso resta somente, como sua função
social, lembrar. Por que, então, não examinar, por exemplo, a memória dos jovens?
Considerando a regra geral dos quadros sociais da memória, todos os indivíduos –
como agentes sociais sempre inseridos e interagindo em grupos – lembram. Não há
então razão para limitar os estudos, as análises e os “testes” das hipóteses de
Halbwachs às memórias de velhos. Halbwachs mesmo considera a amplitude de
suas hipóteses no capítulo III, “A reconstrução do passado”, dos Cadres Sociaux de
la Mémoire, quando compara a memória individual de uma criança com a memória
de um adulto sobre a leitura de um livro. Esta relação nos coloca, em seus traços
gerais, na questão de como os jovens lembram e a partir de quais quadros sociais.
Considerando esta questão geral, assim como a afirmação de Bosi já
mencionada, é muito importante determinar quais são as funções sociais do
indivíduo jovem nos grupos e pelos grupos com os quais se insere e interage.
Assim, podemos compreender a necessidade de uma delimitação pela qual
podemos experimentar as hipóteses de Halbwachs na análise da memória de
jovens: de jovens de outrora, isto é, já adultos, que em sua juventude frequentaram
na condição de estudantes, o Colégio Polivalente; mas também de jovens de hoje –
que são alunos do Ensino Médio desse mesmo Colégio. Este “confronto” de
lembranças é de extrema importância, uma vez que não se trata apenas de coletar
lembranças passadas narradas por indivíduos deslocados de um grupo, por mais
interessante que as mesmas possam ser, mas que poderá permitir dados capitais
para a reconstrução e ressignificação histórica (THOMPSON, 1992, p. 43) a partir
das memórias tomadas como evidências para a interpretação histórica.
A memória como fonte histórica
Fala-se muito sobre a memória, pelo menos desde os gregos, principalmente
Homero, Hesíodo, Platão e Aristóteles, com a tematização do Mnêmo. Antes
mesmo, se considerarmos Mnemosine, a deusa da memória (LE GOFF, 1992, p.
437; Bosi, 1987, p. 47). A caracterização mais superficial da memória a situa na
Psicologia. No entanto, ela foi objeto de estudo e de pesquisa em diversos campos
do conhecimento humano, como na História (THOMSON, FRISCH e HAMILTON,
1996; ROUSSO, 1996; e NORA, 1993) e a Sociologia e Antropologia. Maurice
Halbwachs, em particular nos livros Les Cadres Sociaux de la Mémoire (Os Quadros
Sociais da Memória, 1925) e La Mémoire Collective (A Memória Coletiva, 1950)1,
desenvolve estudo sistemático e exaustivo sobre a memória que aqui tomamos
como orientador.
Halbwachs mostrou – a despeito de seu grande mestre, o filósofo Henri
Bergson – que a memória não é um processo de reconstituição do passado com o
qual o indivíduo mantém ou estabelece uma linha de continuidade (a presença do
passado no presente), como uma espécie de condição de ser “inexpugnável”. Ao
contrário, Halbwachs defendeu que a memória é uma retomada do passado, mas
uma retomada reconstrutiva: a memória é um trabalho de reconstrução do passado,
das experiências vividas em um tempo que não retorna mais, a partir dos
referenciais sociais que interagem e intercondicionam a vida atual desse agente
social no processo de rememorar, de lembrança. Assim, uma primeira característica
dessa concepção halbwachsiana de memória é sua condição social: é por sua
condição social que Halbwachs não estuda a memória mesma, mas os quadros
sociais da memória. Ecléa Bosi, professora na Universidade de São Paulo, afirma:
Nessa linha de pesquisa, as relações a serem determinadas já não ficarão adstritas ao mundo da pessoa (relações entre corpo e espírito, por exemplo), mas perseguirão a realidade interpessoal das instituições sociais. A memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a família, com a classe social, com a escola, com a igreja, com a profissão; enfim, com os
1 Vamos nos apoiar aqui e em nossa pesquisa na tradução brasileira do livro, de 1990, conforme mencionado nas referências bibliográficas.
grupos de convívio e de intimidade e os grupos de referência peculiares a esse indivíduo (BOSI, 1987, p. 17).
Halbwachs mesmo é bastante explícito ao afirmar que o lembrar, como
reprodução, é muito diferente da hipótese de Bergson sobre o encontrar; quer dizer,
de restabelecer uma linha de continuidade entre o passado e o presente. Para
Halbwachs, o lembrar é, antes, uma reconstrução do passado que obtém sucesso
ou não, se ele tem um sistema de representações que baste:
Essas [as representações atuais], combinadas com tais noções antigas cujo livro mesmo nos remete a uma rica provisão, bastam em alguns casos, senão para recriar uma lembrança, ao menos para desenhar aí o esquema que, para o espírito, é-lhe equivalente. Não é então necessário que a lembrança perdure, posto que a consciência atual possui em si mesma e encontra ao seu redor os meios de fabricá-la. Se ela não o reproduz, é porque estes meios são insuficientes. Não é que ela seja um obstáculo a uma lembrança real que queria se mostrar: é que entre as concepções de um adulto e de uma criança há imensas diferenças (HALBWACHS, 1994, p. 92).
E, em A Memória Coletiva, Halbwachs reforça esta ideia da natureza social do
processo de lembrar, afirmando que:
Não é suficiente reconstituir peça por peça a imagem de um acontecimento do passado para se obter uma lembrança. É necessário que esta reconstrução se opere a partir de dados ou de noções comuns que se encontram tanto no nosso espírito como no dos outros, porque elas passam incessantemente desses para aquele e reciprocamente, o que só é possível se fizeram e continuam a fazer parte de uma mesma sociedade. Somente assim podemos compreender que uma lembrança possa ser ao mesmo tempo reconhecida e reconstruída (HALBWACHS, 1990, p. 34).
Este “sistema de representações atuais” são os quadros sociais que permitem
o processo de reconstrução do passado por sua lembrança; quer dizer, por sua
memória. Halbwachs defende que o quadro é determinado pela interação do
indivíduo com os grupos sociais nos quais se insere; e tais grupos são
caracterizados por sua “visão de mundo”, por suas estruturas de pensamento e de
memória sobre as pessoas, os fatos e os valores que se impõe àquele que participa
aí, como um projeto sócio-ideológico, ou que o indivíduo se constrange a assimilar,
por exemplo, desde sua primeira infância na família.
É possível a identificação de alguns traços que caracterizam o conceito de
“quadro social da memória”, principalmente no sentido de que a memória individual é
memória social; quer dizer, de que assimilamos em nossas lembranças elementos
afetivos e emocionais que não vêm exclusivamente de nossa idiossincrasia psíquica,
mas sim de nossa interação com os sistemas de valores, projetos, visões de mundo
dos grupos sociais nos quais nos encontramos inseridos. Desse modo, pode-se
afirmar que a memória coletiva e os seus quadros sociais são como que sistemas
lógicos e de sentido, e de cronologia, que antecipam a lembrança, criando para o
indivíduo que lembra um sistema geral do passado clamando o papel e o lugar da
lembrança particular. Esses traços são:
(a) O quadro social da memória é um sistema, ou um conjunto variado de
sistemas que podem ser integrados, ou mesmo em condições de conflito e
tensão, mas que, no entanto, são íntimos ao indivíduo, independente se
ele tem consciência desses sistemas. Frequentemente, nós não temos
consciência, ou ao menos não temos a clareza dos preconceitos que
assimilamos, mesmo quando nos estimamos livres de quaisquer
preconceitos. Essa familiaridade independe então da consciência dos
sistemas que adotamos ou que estamos inseridos; ela se caracteriza por
sua função condicionante de nossas memórias do passado. É daí que
advém o caráter social de nossas memórias e lembranças:
A sucessão de lembranças, mesmo aquelas que são as mais pessoais, explica-se sempre pelas mudanças que se produzem em nossas relações com os diversos meios coletivos, isto é, em definitivo, pelas transformações desses meios, cada um tomado à parte, e em seu conjunto (HALBWACHS, 1990, p. 51).
(b) Aparentemente, o quadro social da memória mais básica é a linguagem.
Todo o quadro social se limita a um contexto espaço-temporal.
Hipoteticamente, a ausência desse contexto espaço-temporal não implica
numa ausência de quadros; ela implica na condição virtual, isto é, possível
dos quadros. Não importa como, algum sistema de visão de mundo, ou de
valores, ou quaisquer outros (assim como nossas lembranças oníricas),
são mediatizadas pela linguagem – como um sistema de signos, cuja
característica fundamental não é somente sua função comunicativa, mas
principalmente que ele confere certa objetividade e impessoalidade à
linguagem mesma e também a outros sistemas convencionais
(Halbwachs, 1994, p. 76). A linguagem inteira não constrange uma única
massa de lembranças em todos os indivíduos de um mesmo grupo, por
causa da posição que o indivíduo ocupa naquele grupo, assim como em
outros grupos que aquele mesmo indivíduo se insere e interage:
Dessa massa de lembranças comuns e que se apoiam uma sobre a outra, não são as mesmas que aparecerão com mais intensidade para cada um deles. Diríamos voluntariamente que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda conforme a localização que ali eu ocupo, e que este lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho com outros meios (HALBWACHS, 1990, p. 24).
Esse “ponto de vista”, como Halbwachs define a memória individual em
relação à memória coletiva, é notável na esfera específica da linguagem, quer dizer,
da narração. Uma definição grosseira: a narração é a performance do individual no
exercício de narrar alguma coisa; dito de outro modo, é pela individualização da
narração que o indivíduo se converte em sujeito da narração mesma; ela é assim o
espaço linguístico – o narrativo – no qual o indivíduo constitui sua identidade
subjetiva, bem como sua constituição subjetiva depende também de outros
elementos interativos provenientes dos grupos sociais em que o indivíduo se insere.
Este fenômeno pode se exemplificar pelos procedimentos autobiográficos, ou
mesmo quando incitado numa entrevista:
Recordar a própria vida é fundamental para nosso sentimento de identidade; continuar lidando com essa lembrança pode fortalecer, ou recapturar, a auto-confiança. [...] Os sociólogos também assinalaram a dimensão confessional da entrevista de história de vida e, em parte por que grande parcela de seu trabalho tem sido feito com indivíduos de comportamento desviante que muitas vezes são isolados como pessoas, têm se defrontado, de modo especial, com reações inesperadamente calorosas dadas a um “ouvido solidário” (THOMPSON, 1992, p. 208).
A narração de si mesmo, convém observar, é um processo que, do ponto de
vista sociológico e histórico, apenas é possível pela mediação entre o indivíduo e
seus grupos sociais. Ela é possível quando tem por referencial o grupo social no
qual o indivíduo se insere e, então, o indivíduo se constitui. Assim, a narrativa é um
espaço sócio-linguístico em que o indivíduo se constitui ao mesmo tempo como
personagem e autor/sujeito da narrativa, em que o personagem e o autor coincidem.
E a narrativa de si mesmo é também uma espécie de construção artificial de um
sistema de sentido a partir do grupo social em que o indivíduo que lembra está
inserido. A redescoberta da memória, a construção social da memória se dá então a
partir do grupo, como Bosi nos fala:
Quando um grupo trabalha intensamente em conjunto, há uma tendência de criar esquemas coerentes de narração e de interpretação dos fatos, verdadeiros “universos de discurso”, “universos de significado”, que dão ao material de base uma forma histórica própria, uma versão consagrada dos acontecimentos (BOSI, 1987, p. 27)
Isto é importante para se entender qual, ou quais as correlações, que ser
firma entre memória e história. Como Halbwachs observa ainda em A Memória
Coletiva, “não é na história aprendida, é na história vivida que se apoia nossa
memória” (1990, p.60). Quer dizer: a nossa memória individual, nossas lembranças
têm uma origem mais social que individual, na medida em que, enquanto membros
de um coletivo, as vivemos como se fossem nossas. Por assim dizer, as herdamos,
como observa Bosi:
É preciso reconhecer que muitas de nossas lembranças, ou mesmo de nossas ideias, não são originais: foram inspiradas nas conversas com os outros. Com o correr do tempo, elas passam a ter uma história dentro da gente, acompanham a nossa vida e são enriquecidas por experiências e embates. Parecem tão nossas que ficaríamos surpresos se nos dissessem seu ponto exato da entrada em nossa vida. Elas foram formuladas por outrem, e nós, simplesmente, as incorporamos ao nosso cabedal. Na maioria dos casos, creio que esse não seja um processo consciente. (BOSI, 1987, p. 331).
Percurso da pesquisa
O projeto foi organizado com o objetivo de envolver os alunos e incentivá-los
a pesquisar a memória do Colégio. Para tanto, iniciamos apresentando o objetivo de
nosso trabalho e o que buscávamos ao debruçarmos sobre as lembranças dos ex-
alunos. Iniciando os trabalhos, nossa primeira aula constituiu-se de uma discussão
ampla sobre o que pensavam sobre história, memória, participação, narrativa e
como essas questões estão presentes em nossas vidas. Após este primeiro
momento, seguimos com um aprofundamento dos conceitos estudando pequenos
textos.
No segundo encontro conhecemos a obra de Ecléa Bosi, Memória e
sociedade: lembranças de velhos (1987), que seria, então, a inspiração para o nosso
trabalho buscando as lembranças dos jovens. Propomos elaborar uma cronologia da
vida de cada aluno participante e uma linha do tempo destacando os principais
acontecimentos históricos no período da vida dos alunos estimulando-os a
reconhecerem sua própria inserção num contexto mais amplo.
Em nosso terceiro encontro falamos sobre narrativa e para tornar a
aprendizagem mais reflexiva, foi apresentado o filme “Narradores de Javé”, e eles
gostaram muito. Bem, já estávamos no meio do caminho era a hora de aprendermos
a entrevistar nossos interlocutores, partimos então para uma oficina de
sensibilização para coleta de entrevistas aplicada por estudantes de História da
Universidade Estadual de Londrina participantes do Projeto Contação de Histórias
do Norte do Paraná, do Museu Histórico de Londrina. Com a oficina eles foram
sensibilizados para a elaboração e objetivos e roteiro de uma entrevista, aspectos
éticos na condução dessa experiência, como usar o gravador, entre outras.
Após a parte prática da oficina, os alunos participantes, mais seguros se
animaram a elaborar o roteiro de entrevistas dirigido aos ex-alunos. Propuseram
fazer um levantamento coletivo de objetivos e das perguntas a serem dirigidas aos
entrevistados e em seguida, em pequenos grupos, a finalização do roteiro de
entrevistas. Após a confecção do roteiro, ficou definida a função de cada um nesse
trabalho a ser realizado, inclusive o contato com o futuro entrevistado. A divisão da
turma resultou em seis equipes de trabalhos, o que consideramos como favorável à
participação de todos.
Fizemos três encontros para que cada grupo apresentasse sua entrevista e
um perfil de seu entrevistado, que foram escolhidos por eles. Entre os entrevistados
estavam dois professores do Colégio, sendo um estudante da década 1970 e outro
da década de 1980, duas pedagogas que estudaram na década de 1990, e dois
alunos, ambos da década de 1970, apenas com o vinculo de ex-alunos. Estas
entrevistas trouxeram muitas surpresas, pois puderam constatar mudanças e
permanências ao longo da existência do Colégio. As entrevistas foram analisadas
em cinco aspectos: o curso técnico e suas disciplinas especiais; o espaço do
Colégio como área e momento de lazer; a disciplina escolar; o intervalo (recreio)
como momento de convivência entre os alunos; e os eventos sociais promovidos
pelo Colégio.
Durante o tempo de contato até as realizações das entrevistas, que se deu
em tempos diferentes devido às necessidades de cada grupo, prosseguimos
aprofundando um pouco mais nossos estudos sobre memória e a relação e
sentimento de pertença ao Colégio Polivalente. Para tanto realizamos também uma
pesquisa com antigos moradores dos bairros através de questionários elaborados
pelos grupos e aplicados entre seus vizinhos e conhecidos moradores da localidade,
o que trouxe novidades despertando o interesse por saber mais sobre a importância
do Colégio para o bairro. Foram aplicados dezoito questionários a antigos
moradores, e através dos relatos os alunos foram percebendo o significado do
Colégio na vida de tantas pessoas do bairro que ali puderam estudar: filhos, netos,
sobrinhos, amigos. Como no passado o Colégio continua a ser para os moradores
atuais e alunos uma referência para a formação educacional e para as relações
sociais, principalmente pelas festividades e demais atividades culturais,. Outro
elemento que foi possível notar é a importância do Colégio para a formação em nível
superior; foi bastante comum falas de entrevistados sobre o fato de que muitos
fizeram faculdade, fato notado também pelos alunos envolvidos no projeto.
Conforme as entrevistas foram acontecendo, os alunos foram orientados a
dar inicio às transcrições, e foi decidido entre eles que todos do grupo deveriam
contribuir, por ser uma tarefa que eles classificaram como difícil exigindo muita
atenção para evitar erros ou omissão de informações. No decorrer da aplicação e
transcrição surgiu entre eles a idéia de também pesquisar os demais alunos do
Colégio, e não apenas os alunos da turma, discutimos e consideramos que isto
poderia se dar por amostra com questionários de perguntas semelhantes às
realizadas com os ex-alunos. O próximo passo dos grupos foi aplicar questionários
dirigidos aos alunos atuais do Colégio. Cada grupo de participantes escolheu um
grupo de alunos para realizar a aplicação das pesquisas e esta atividade foi
considerada importante para eles, pois desejavam saber o que pensavam os
colegas. Foram coletadas cinco entrevistas com ex-alunos, e que mais adiante
comentarei.
Jardim Santa Rita, Jardim Leonor e o Colégio Poliva lente
O surgimento dos bairros Jardim Santa Rita, Jardim Leonor e adjacências
está profundamente ligado à expansão urbana ocorrida entre as décadas de 1960 e
1970, com a intensificação do êxodo rural causada pela mudança da política
agrícola, incluindo a mecanização do campo e, ao mesmo tempo, a esperança de
uma vida melhor nos centros urbanos, no caso, o londrinense.
Já na década de 1960, Londrina passou a apresentar seus mais elevados
índices de urbanização. A cidade tornou-se um pólo regional, econômico, cultural e
de serviços. Com este desenvolvimento veio também a especulação imobiliária que
elevou muito o preço dos lotes urbanos, limitando o acesso a terra por parte da
população de baixa renda. Este foi um dos fatos que motivou a criação não apenas
dos “jardins” da zona oeste, mas também dos primeiros conjuntos habitacionais
populares, na periferia da cidade.
Embora a cidade tenha apresentado um crescimento em quase todas as
direções, no período os novos loteamentos ocorreram em grande maioria a oeste e
a leste, aproveitando a rede viária, em direção a Cambé e Ibiporã respectivamente,
ampliando cada vez mais, as distâncias entre os locais de trabalho e moradia.
Surgem os núcleos de bairros, vilas e jardins como Santa Rita, Leonor e tantos
outros.
Nos anos 1970 surge o Colégio Estadual Polivalente, Ensino Fundamental,
Médio e Profissional está localizado à Rua Figueira, no Jardim Santa Rita em
logradouro limítrofe com o Jardim Leonor, Zona Oeste de Londrina. Sua abrangência
está delimitada por grandes avenidas, que demarcam a região de circulação e
residência da maioria de seus estudantes: a Rua Capitão Silva Pinheiro e a Linha
Férrea definem o limite Leste da área de abrangência, a Avenida Tiradentes
determina o limite Oeste, a Avenida Winston Churchil o limite Norte e a Avenida
Leste-Oeste é o limite ao Sul.
Além de receber alunos procedentes dos bairros concentrados no espaço
geográfico acima citado, o Colégio é frequentado por residentes de outros bairros da
cidade e municípios circunvizinhos, principalmente os matriculados em cursos
técnicos do ensino profissionalizante no período noturno. Hoje o Colégio oferta três
cursos profissionalizantes: Técnico em Alimentos, Técnico em Edificações e Técnico
em Segurança do Trabalho, além do ensino fundamental e ensino médio regular.
“Pelo que me lembro...”: O Colégio Polivalente segu ndo a memória de seus
alunos
Passo a partir de agora a apresentar os principais aspectos indicados pelos
relatos dos entrevistados.
Desde a sua inauguração, em 1976, aparece na denominação do Colégio o
adjetivo “polivalente”, escolhido com a pretensão daquilo que bem define o termo,
como sendo uma instituição de ensino, focada numa formação que fomente e
respeite a diversidade dos valores humanos, que visa formar os seus alunos
competentemente, e que os mesmos sejam capazes de executar múltiplas tarefas,
envolvendo e/ou integrando os mais variados campos de conhecimentos, atividades
e finalidades. Em suma, a polivalência na busca da politecnia, um traço bastante
forte e considerado nas entrevistas como inovador:
Para os professores, para eles também era novidade, porque o polivalente foi um colégio... Ele foi inovador, ele foi o primeiro aqui em Londrina que tinha essas outras áreas. Então todo mundo aprendeu junto. (Entrevistado 1)
“Essas outras áreas” a que a entrevistada se refere eram as áreas técnicas –
técnicas do lar, técnicas comerciais, técnicas industriais, técnicas agrícolas – e que
caracterizavam a inovação do Colégio Polivalente, mas também compunham sua
inovação o fato de que havia laboratórios devidamente equipado, equipamentos
para educação física e ginástica (a entrevistada relata que já havia no Colégio
atividades de ginástica rítmica), e um pequeno anfiteatro para peças teatrais.
Paradoxalmente, o que faltava ao Colégio em seu começo eram as carteiras,
ainda que não demorassem a chegar. Outro aspecto interessante dessa entrevista é
a afirmação, por várias vezes, de que não havia tantos funcionários e que os
próprios alunos ajudavam em uma série de atividades, como a de carregar as
carteiras para dentro do colégio e desembalá-las, cuidar da horta, e mesmo dos
espaços do Colégio, sempre orientados por um professor.
O Colégio enquanto edifício foi inaugurado sob a denominação de Escola
Polivalente de Londrina, no dia 23 de março de 1976, e suas atividades regulares de
acolhimento de alunos tiveram início já no dia 1.º de abril do mesmo ano. O início da
vida da Escola Polivalente de Londrina, como estabelecimento de ensino
devidamente documentado, aconteceu mediante a sua anexação como nova
unidade integrante do Complexo Escolar Celso Garcia Cid - Ensino Regular e
Supletivo de 1.º Grau, e isso se deu pelo Decreto 3801/77, de 30 de agosto de 1977,
publicado no Diário Oficial do Estado nº 129, do dia 1º de setembro de 1977, página
04, Decreto que criou e autorizou o funcionamento do referido Complexo. Junto da
Escola Polivalente de Londrina para a criação do Complexo Escolar Celso Garcia
Cid, citada pelo Decreto 3801/77, esteve o Grupo Escolar São José - Ensino Regular
e Supletivo de 1.º Grau, atualmente Colégio Estadual São José.
Em 1983, a Escola Polivalente de Londrina - Ensino de 1.º Grau se
desvinculou definitivamente do Complexo Escolar Celso Garcia CID, passando com
isso efetiva e oficialmente a denominar-se Escola Estadual Polivalente-Ensino de 1º
Grau. Ampliando a oferta de cursos, em setembro de 1992, foi autorizada a
implantação do Ensino de 2º Grau Regular Técnico em Segurança do Trabalho. E no
ano de 1993 acontece o início da oferta do Ensino de 2º Grau Regular, com
Habilitação Técnico em Segurança do Trabalho e Habilitação Específica de 2º grau.
A partir de então, passa a se chamar Colégio Polivalente.
Cabe ressaltar que a formação técnica era vista pelos alunos como um
diferencial, dentre outros, em relação a outros colégios da região:
O que tinha de interessante no Polivalente, que diferenciava das outras escolas da região, é que... ele tinha um, como ele tem uma formação técnica, então nós que estudávamos aqui, a gente tinha além da grade normal, a gente fazia aulas de técnicas agrícolas, técnicas caseiras, técnicas comerciais e técnicas industriais. (Entrevistado 2) Aonde está hoje o laboratório, na verdade eram salas de aula é... de cursos técnicos diários, disciplinas técnicas, que os alunos já do fundamental é... já o fundamental tinha essas disciplinas, então nossa carga horária ela era maior ao longo da semana, por que uma vez por semana a gente tinha disciplina de... técnicas industriais, que era com... fazer é... objetos de madeira, aprender algumas técnicas de marcenaria [....] onde hoje é uma sala só com equipamentos do curso de edificações era toda ela pra uma marcenaria com... equipamentos par marcenaria [...] tinha que funcionava uma espécie de escritório, onde fazia uma prática, que chamava prática de técnicas comerciais. Tinha... várias máquinas de escrever [...] Onde hoje está o laboratório... funcionava uma cozinha, mas uma cozinha para desenvolver é... algumas aprendizagens de... preparação de alimentos... uma disciplina chamada técnicas caseiras [...] A gente aprendia a plantar algumas verduras... Tinha uma disciplina chamada técnicas agrícolas. (Entrevistado 3)
Havia também, como diferencial, as atividades de contra-turno que acabavam
por envolver os alunos durante todo o dia, com um espaço bem equipado para
ginástica e atividades afins de educação física:
[...] Então além da carga horária né, da disciplina, a gente vinha na escola em contra-turno, pra tá realizando alguns esportes também, as aulas de educação física eram no contra-turno, e a gente então ficava envolvido né, um tempo maior na escola. (Entrevistado 2) Como essas disciplinas elas eram uma vez por semana, não sobrava carga horária, Imagina hoje tendo isso, não sobrava carga horária ou da tarde ou da manhã, pra quem estudava de manhã e pra quem estudava á tarde. Pra fazer, por exemplo, educação física, a gente fazia o horário no outro contrário, pra quem estudava de manhã fazia à tarde, pra quem estudava de tarde, fazia de manhã e... Como era intenso essa quantidade de aulas a gente tinha é... sábado tinha pelo menos três aulas aos sábados, inclusive realizávamos provas aos sábados de manhã. (Entrevistado 3)
Um das coisas que chama a atenção nas entrevistas é o fato de que os
entrevistados se referem ao Colégio como local de diversão e lazer, mais aberto à
comunidade com diversas atividades recreativas:
[...] reuníamos aqui no colégio e fazíamos o Baile da Juventude. Era feita aqui na escola, nas casas e não tinha toda essa violência de agora. [...] Eu sempre vinha nos bailes da juventude, e todos os meses tinha o baile e eu
ia com freqüência. Até a gente se reúne, os amigos daquela época, e fica relembrando com saudades daquela época, um tempo bom. (Entrevistado 4)
Isto se devia, provavelmente, a uma situação de relativa tranquilidade que
imperava no bairro. Havia alguma violência e por isso já se fazia necessário algum
policiamento, mas era bem pequeno se comparado aos dias atuais.
Então naquela época a realidade era bem diferente aqui. O índice de violência era muito baixo, extremamente baixo. Nós podíamos ficar aí... Era comum fazer brincadeira dançante, os bailes na casa da pessoa, a gente ficava até meia noite, uma hora, não havia briga, tinha a droga, mas era muito escondido. A violência era, sabe, não tinha muito violência. Então a gente vinha muito no colégio, a gente vinha nos bailes como vai ter amanhã esse aqui. O baile era para a juventude. Praticamente todo mês tinha um baile aqui. Então a gente vinha com tranqüilidade, a gente montava aquele paredão de som, de caixa de som e a gente ficava até uma três horas e saia para onde queria, para a casa dos pais, não tinha problema nenhum. Não tinha polícia na rua. Não que não existia roubo mas era muito pequeno. Eu vinha com freqüência nos bailes. Então... inclusive, nosso circulo de amizade na época se lembra com muita tristeza porque hoje você não tem mais como fazer esse tipo de evento social. (Entrevistado 4)
Quanto à disciplina no ambiente escolar, todos os entrevistados foram
unânimes em afirmar que havia um rigor disciplinar que fazia temer a possibilidade
de uma advertência, e que a palavra “descer na orientação” já os fazia tremer.
Portanto, todos evitavam quebras de regras, ou atitudes que pudessem levar a
qualquer modalidade de advertência verbal ou escrita no tão temido “livro preto”, ou
ainda a suspensão das aulas. Os entrevistados narram que os alunos com um
comportamento pouco adequado, e era raro tal comportamento, sofriam sanções e
serviam de exemplos aos demais alunos.
Havia advertência... Em geral, os alunos respeitavam bastante. Havia uns alunos sim com problema de comportamento, mas eu me lembro muito que naquela época, o diretor, nossos diretores, nós nos reuníamos no pátio e o diretor chegava e ele orientava para as salas. Então se tinha ali um problema, todo mundo sempre se lembra dessa expressão “desce”, que vinha para cá. Para nós, vir para a diretoria era a morte, então quando se falava “desce”, que aqui esse ambiente era medonho para nós. Então, vinha para a diretoria, eu não sei falar muito, mas tinha a advertência, a suspensão, que era o que havia na época. (Entrevistado 5)
O rigor disciplinar impedia inclusive que os alunos conhecessem parte do ambiente escolar, como a secretária, a direção, a supervisão. Não sabiam nem mesmo quem eram as pedagogas. Não havia circulação por estas áreas do Colégio.
Exceto a orientação, a direção, que eram lugares que a gente não tinha acesso, só quando os alunos aprontavam alguma coisa, algum comportamento inadequado [...] Sala de professores não. Essa parte que era mais de orientação pedagógica, sala de professores, nós não tínhamos
acesso, era muito difícil algum aluno... tanto que a gente nem lembra de pedagogo, quem eram os pedagogos na época, né. (Entrevistado 5)
Todos os entrevistados narram que não passaram por esta experiência, eram
alunos de comportamento tranquilo e não experimentaram tais penalidades. Ao
discorrer sobre o assunto alguns entrevistados falam da atual falta de rigor no
cumprimento das normas e mesmo a cobrança dos responsáveis diretos dos alunos.
Eles salientam também que nas reuniões de entrega de boletim, os pais dos alunos
que apresentavam mau comportamento eram instados a serem rígidos na educação
de seus filhos, o que contribuía grandemente para a disciplina escolar.
Durante os intervalos para descanso dos alunos se dava o momento de
“lazer” dentro da rotina de estudo. Era o momento das brincadeiras, das conversas
entre amigos e amigas e dos namoros ou paqueras que aconteciam no interior do
colégio. Havia sempre grupos de colegas que se identificavam e que nestes
intervalos aproveitavam para conversar, trocar idéias, combinar trabalhos, diversão
etc. Era o momento de encontro de grupos de diferentes salas, que se reuniam
também para comentar os acontecimentos do colégio.
Era muito bom (risos), nós brincávamos muito, conversávamos. Era muito bacana, era um momento maravilhoso por que, assim, era uma época em que nós muitos novos nos envolvíamos, participávamos tinha rádio, tinha som nos intervalos, jornalzinho, recadinhos, nós dançávamos na hora do intervalo, nós dançávamos, fazíamos brincadeira de roda, as meninas. Tudo muito gostoso, muito sadio. (Entrevistado 5)
Nos intervalos todos carregavam suas mochilas de matérias mesmo não
havendo naquele tempo risco de roubos de materiais escolares. Era um costume
entre os alunos e que causou estranheza há um entrevistado que teria vindo de
outra escola e ele também se acostumou a ele.
Dos eventos escolares os mais significativos foram as festas juninas e as
gincanas. Esses momentos eram muito esperados pelos alunos e havia uma grande
participação e envolvimento. O clima era de festa, de alegria. Eram momentos em
que valia tudo para fazer bonito e bem feito.
Tinha muita aula, tinha gincana todo ano, desfile que nós organizávamos. O Colégio dava muito abertura para a gente participar, para que acontecesse, mas nós tínhamos que nos organizar. Tinha festival de dança, desfile... comemoração de fim de ano, desfile na rua em 7 de setembro. Participamos de um coral, fomos cantar lá no Moringão, era muito bom. Tinha bastante evento e a gente se envolvia bastante. [...] no esporte, que não ia participar, ia fazer torcida. Quem não vai fazer atividade esportiva, tem que trabalhar. Então a gente se organizava, fazia uniforme, torcida, roupa, acessório. A gente se envolvia. (Entrevistado 5)
Conta um entrevistado que houve um ano em que eles foram para a TV local,
para divulgar a festa junina que iria acontecer no colégio:
Lembro que a gente tava na oitava serie, o diretor colocou a gente dentro seu carro, ele tinha um “opalão”, e fomos todos para a TV fazer a propaganda da festa do colégio, convidar toda a comunidade. (Entrevistado 1)
Considerações finais
Estas lembranças revisitadas trouxeram aos alunos participantes do projeto a
reflexão sobre a sua própria experiência no colégio Polivalente, reconhecendo-a
como diferente daquela dos entrevistados embora tenham encontrado um traço de
permanências em comportamentos e costumes semelhantes, como o de transportar
o material durante os intervalos, as reuniões de grupos para o bate papo, os
agrupamentos por identificação, as organizações de atividades escolares como as
gincanas.
Eles perceberam também as mudanças ocorridas: nos aspectos físicos e
matérias do colégio, uma vez que espaços de atividades que caracterizavam a
politecnia tão marcante naquele tempo – como a horta, a marcenaria, o anfiteatro -
já não existem mais, foram substituídas por outras, como por exemplo, a oficina de
técnicas de edificações, cozinha para técnicas de alimentação.
Outro aspecto que sofreu mudança e foi notado pelos alunos foram as regras
disciplinares, que se tornaram mais flexíveis e ao mesmo tempo em que se
intensificou a relação de enfrentamento e desafio às regras pré-estabelecidas, o
relacionamento entre professores e alunos sofreu alterações, já que antes havia
uma relação de maior respeito à hierarquia.
Embora o colégio ainda permaneça como um espaço de convivência para os
alunos nos intervalos entre as aulas, já não é mais o espaço de lazer dos finais de
semana, já não acontecem festas durante os finais de semana. E quando ocorrem
festas na escola são previstas para encerrarem cedo evitando situações de
violência, que se agravaram no bairro.
Estas constatações levaram a ponderações sobre a ação dos estudantes, que
já não participam dos acontecimentos como poderiam participar e que não valorizam
todas as transformações ocorridas em benefícios dos estudantes.
Ao comparar o ensino técnico atual e seus cursos, eles observaram as
transformações sociais, históricas e econômicas ocorridas, em nível local e nacional.
Os cursos técnicos, cada um no seu tempo, pretendem preparar o aluno para os
enfrentamentos da vida e do mundo do trabalho. Os participantes perceberam as
diferentes demandas decorrentes da modernização industrial e das transformações
tecnológicas. Os anseios da juventude e sua formação profissional continuam, mas
a forma como elas se deram e como se dão são diferentes: os anseio é vencer na
vida, ter uma boa carreira profissional, melhores condições econômicas de vida, mas
se para os entrevistados isto se passava por alguns tipos de formação, voltado para
o trabalho, hoje os alunos sonham mais com a possibilidade de ingresso à
universidade e esperam a melhora de seu status social a partir da formação
universitária – vale ressaltar aqui que essa diferença, provavelmente é motivada
pelo fato de que os alunos que participaram do projeto não eram do ensino técnico e
sim do ensino médio regular.
Ao analisar os cursos, o de técnicas domésticas chamou bastante a atenção,
principalmente das alunas e elas questionaram a necessidade de um curso para
formar para atividades domésticas. Tal fato provocou reflexões sobre casamento, o
papel da mulher na sociedade, o trabalho doméstico remunerado e as demandas de
mão de obra no passado e no presente. Todas estas questões suscitaram novos
olhares sobre nossa sociedade e o quanto temos avançado rumo às superações de
desigualdades de gênero e ao mesmo tempo o avanço nas conquistas sociais,
inclusive nas condições das trabalhadoras domésticas. Também refletiram sobre a
falta de mão-de-obra devido à maior qualificação entre as mulheres de baixa renda,
que hoje tem mais chance e incentivo para estudar.
Os alunos analisaram as transformações ocorridas entre a fundação do
colégio até o tempo presente, como resultado da maior industrialização no Brasil e a
exigência das mudanças diante do mundo tecnologizado. Estas mudanças impõem
um novo modelo de colégio, ainda mantendo a polivalência que lhe deu origem, mas
atualizado diante das necessidades presentes em nosso tempo. Hoje já não faz
mais sentido o curso de técnicas caseiras, mas surgiu o de técnica de alimentos,
não há mais curso de marcenaria, mas o enfoque agora é preparar para o aquecido
mercado da construção. Enfim, o Colégio em diferentes tempos é parte da
construção de seus alunos como trabalhadores para o mercado local.
Um aspecto bastante relevante de todo o processo desenvolvido no projeto,
desde sua concepção, aplicação dos questionários, realização das entrevistas e
discussão com os alunos envolvidos é que eles perceberam as diferenças de
opiniões, anseios e desejos, como já comentei acima. Eles também puderam
perceber que é possível uma aproximação entre memória e história à medida em
que a história é uma reflexão sobre como um conjunto de narrativas articuladas ou
por se articular sobre eventos acontecidos num passado com o qual ainda estão
ligados, por fazer parte de seu presente, por estar ainda em sua memória, por se
identificarem e se reconhecerem em vários momentos dos relatos das entrevistas.
Neste sentido, a história para os alunos deixou de ser vista como relato da história
de outros povos, outras culturas, estranhas e que nada tem a ver com eles, mas ao
contrário, que a história faz parte de seu presente, da tomada de consciência de sua
realidade presente. A memória, portanto, não é uma experiência individual, mas
coletiva, capaz de orientá-los numa tomada de consciência de um passado que lhes
pertence e de um presente que vivenciam. Daí a importância e pertinência histórica
dos relados de memória, bem como sua importância para a construção de uma
identidade histórica. Como observa Bosi:
A memória é a faculdade épica por excelência. Não se pode perder, no deserto dos tempos, uma só gota da água irisada que, nômades, passamos do côncavo de uma para outra mão. A história deve reproduzir-se de geração a geração, gerar muitas outras, cujos fios se cruzem, prolongando o original, puxados por outros dedos (BOSI, 1987, p. 48).
Ao final, posso afirmar que refletir sobre a memória a partir das lembranças
dos ex-alunos foi fundamental para os participantes se reconhecessem como
pertencentes ao Colégio fortalecendo os sentimentos de identidade.
Referências Bibliográficas
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