UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
O ULYSSES DE JAMES JOYCE E O ROMANCE MODERNO
PELA CRÍTICA DO NOUVEAU ROMAN
CURITIBA
2011
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DANIEL FALKEMBACK RIBEIRO
O ULYSSES DE JAMES JOYCE E O ROMANCE MODERNO
PELA CRÍTICA DO NOUVEAU ROMAN
Monografia apresentada à disciplina de Orientação
Monográfica em Estudos Literários II do Curso de
Letras da Universidade Federal do Paraná, como
requisito parcial para a obtenção do título de
Bacharel em Letras com habilitação em Português e
Latim e ênfase em Estudos Literários.
Orientador: Prof. Dr. Caetano Waldrigues Galindo
CURITIBA
2011
3
AGRADECIMENTOS
Agradeço inicialmente aos meus pais, Aldory e Rosana, por terem sido as
pessoas mais importantes da minha vida desde o meu nascimento. Sem vocês com
certeza eu não seria ninguém. Dedico principalmente a vocês todo este trabalho e todo o
meu amor.
Também agradeço aos meus outros familiares, que sempre procuraram me
ajudar no que foi possível. Desses agradeço especialmente à minha avó pelo carinho e
pela atenção dedicados ao longo desses anos.
Inevitável agradecer aos meus amigos, que estiveram sempre do meu lado tanto
no tédio quanto na loucuragem. À Ana Carolina, pela amizade, pela companhia e pelos
conselhos nos mais diversos momentos, de lanches na cantina até viagens para São
Paulo; um sucesso sem fim. À Érica, amiga desde os tempos de calouro, parceira para
filmes, sempre presente nos mais felizes e difíceis momentos desses anos de graduação.
À Angélica, meine Freundin, que não me faltou em nenhum instante e que se manteve
como um estímulo para os meus projetos. À Enaiê, a emoção personificada, grande
companheira de divagações e eterna apoiadora das minhas idéias instáveis. À Joyce
(James), meu tesouro, alguém que vai além de um riso descontrolado para ser uma
pessoa com quem pude sempre contar. À Ana Elisa, que, ainda que de longe, continuou
sendo aquela que me sorri e me estimula a seguir em frente. Aos outros amigos e
colegas não faltam agradecimentos, o que falta mesmo é espaço aqui para isso (minhas
desculpas).
Agradeço, é claro, ao Caetano, não só pela orientação monográfica, mas também
por todo momento que me ensinou tudo o que fosse possível (especialmente sobre
Joyce) e que me incentivou a continuar meu caminho. Sem a sua confiança em mim esta
monografia simplesmente não existiria (e eu não me formaria). Agradeço também à
Sandra, que me fez me apaixonar pela literatura e que, para a minha alegria, aceitou
avaliar este trabalho. Aos outros professores, em especial Alessandro, Luís Bueno,
Patrícia, Paulo Soethe e Waltencir, também agradeço pelo conhecimento e pelo
constante apoio.
4
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo analisar a concepção de romance
moderno nos ensaios críticos de três autores do nouveau roman, Alain Robbe-Grillet,
Michel Butor e Nathalie Sarraute, em comparação com o Ulysses, de James Joyce. Essa
análise é focada nas vozes da narrativa vistas pelos três escritores e pela crítica da obra
joyceana. Ao final, é desenvolvido um estudo da presença de Joyce nos ensaios para
estabelecer uma definição do nouveau roman em relação com o romance moderno.
ABSTRACT
This work has the objective of analyzing the conception of modern novel in the
critical essays of three authors of the nouveau roman, Alain Robbe-Grillet, Michel
Butor and Nathalie Sarraute, in comparison with James Joyce‟s Ulysses. The analysis is
focused on the narrative voices as seen by the three writers and by the critics of the
joycean work. In the end, a study is developed on the presence of Joyce in the essays to
establish a definition of the nouveau roman related to the modern novel.
5
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...............................................................................................................6
CAPÍTULO I: Por uma crítica do nouveau roman......................................................9
CAPÍTULO II: Ouvindo vozes no Ulysses..................................................................19
CAPÍTULO III: Ouvindo vozes no nouveau roman...................................................28
CAPÍTULO IV: Por uma definição do nouveau roman.............................................39
CONCLUSÃO................................................................................................................46
REFERÊNCIAS.............................................................................................................47
6
INTRODUÇÃO
Esta monografia, desde o momento em que tive um insight ao ler Alain Robbe-
Grillet após uma temporada de leitura do Ulysses, surgiu pela minha curiosidade em
entender exatamente qual é o legado de James Joyce e de sua obra para os escritores do
nouveau roman (“novo romance”), “movimento” literário francês o qual alguns
romancistas foram incluídos a partir da década de 1950. Referências suas ao escritor
irlandês não faltam, como poderemos observar, porém não há da parte de nenhum deles
grandes explorações teóricas do universo joyceano, embora Michel Butor seja um
entusiasta da leitura de todas as suas obras, especialmente do Finnegans Wake. Além
disso, a crítica até hoje não parece ter se dedicado a um estudo minucioso de conceitos
utilizados pelos nouveaux romanciers (“novos romancistas”) que podem ter relações
com esse universo, ainda que haja estudiosos que observem que essas relações existem
e não estão tão esclarecidas assim.
Em terras brasileiras, ainda que alguns pesquisadores se dediquem à literatura
francesa desse período, a falta de estudos sobre a crítica produzida por esses autores é
ainda maior, como pode mostrar uma simples busca na Plataforma Lattes, do CNPq.
Portanto, daí veio a idéia de me dedicar a uma análise um pouco mais detida dos ensaios
críticos de autores do nouveau roman, além do já citado Robbe-Grillet. Ainda que não
queira oferecer aqui uma interpretação definitiva das relações entre eles e James Joyce,
acredito que o caminho que trilhei pelas pesquisas cujo resultado é este trabalho poderá
ser útil a outros que se interessem pelo assunto ou que queiram compreender melhor
esse “movimento” literário francês. Para aqueles interessados em interpretações da obra
joyceana, provavelmente este texto não será uma boa opção, já que aqui me baseio em
críticas já realizadas a esse respeito e não procuro produzir algo de novo sobre Joyce.
A fim de compreender essa crítica vinda dos autores do nouveau roman, decidiu-
se por um recorte representativo que engloba ensaios de Alain Robbe-Grillet, Michel
Butor e Nathalie Sarraute, justamente autores que sempre são referidos como
integrantes do movimento e que buscavam mostrar como não seguiam parâmetros de
escrita em comum e que não fundaram qualquer tipo de escola literária, fato que será
explicitado mais adiante. Os textos foram selecionados das obras Répertoire (vol. 1,
1960; vol. 2, 1964), de Butor, Pour un nouveau roman (1963), de Robbe-Grillet, e L'ère
du soupçon (1956), de Sarraute. Também me utilizei, ainda que em escala bem menor,
de um texto curto de Butor, a abertura de Joyce et le roman moderne (1968), volume
7
com ensaios de diversos autores. Essa seleção abrange ensaios que se referem
essencialmente à literatura que eles visam escrever ou que pensam que será escrita a
partir de então, por isso se evitou tratar de textos sobre determinadas obras ou aspectos
formais da literatura que não estivessem relacionados a visões do romance moderno. Só
saliento que pela pura impossibilidade de acesso ao texto em francês mesmo de Joyce et
le roman moderne me utilizei da sua tradução brasileira (Joyce e o romance moderno,
1969) para a realização desta pesquisa, enquanto que todos os outros textos do corpus
principal são das suas respectivas edições francesas.
Apesar de existirem muitas opiniões acerca do nouveau roman, ainda existe a
necessidade de compreendermos bem qual o nível de “proximidade estética” entre os
nouveaux romanciers. Essa compreensão pode ser atingida a partir da análise primária
de como a crítica ensaística dos três autores selecionados tratou de formas e vozes
narrativas do romance moderno. A idéia é realizar isso tendo em mente James Joyce
para perceber até que medida essa obra traz ou não a referida “proximidade estética”
com o “movimento”.
Joyce é uma constante na crítica dos autores citados, bem como nos textos de
outros associados ao nouveau roman, o que nos faz procurar entender o que o escritor
realmente deixou como legado para as suas obras e para o romance do século XX.
Aparentemente, a forma narrativa de Joyce, em especial da sua obra mais conhecida,
Ulysses (1922), é a referência aqui, isso por motivos a serem expostos mais adiante.
Percebe-se aí a necessidade, portanto, de se entender tudo em etapas:
1) No primeiro capítulo vemos como o nouveau roman é definido por meio
especialmente dos ensaios dos próprios “novos romancistas” abordados aqui, ainda que
com certo apoio teórico. Houve a preocupação de analisar esses textos primeiramente
por si só para depois relacioná-los com outros críticos e com o que foi dito a respeito
das suas teorias. Acredito que essa etapa é necessária para que o leitor desta monografia
perceba como o conceito de nouveau roman não é muito claro.
2) Em seguida, no segundo capítulo, temos a chance de explorar um pouco os
conceitos já estabelecidos acerca do Ulysses, de James Joyce, com especial enfoque nas
vozes da narrativa, ou seja, as vozes daqueles que atuam na narração de certa maneira
(personagem, narrador, autor, etc.). Nesse momento ainda não há qualquer relação
direta com a estética do nouveau roman, pois o objetivo é entender antes de tudo o que
é uma narrativa “joyceana”.
8
3) Depois disso, no terceiro capítulo, finalmente são melhor organizadas as
relações possíveis entre os textos ensaísticos dos três nouveaux romanciers e os
conceitos levantados pela crítica para a análise da narrativa do Ulysses. Isso é feito
utilizando-se de definições como “personagem” e “narrador”, com o fim de analisar
comparativamente a presença delas nos ensaios selecionados e a narrativa joyceana.
Referências ao próprio Joyce e seu papel na evolução do romance moderno também são
o foco da análise desse capítulo. Na verdade, trata-se basicamente de uma junção do
trabalho feito nos dois capítulos anteriores.
4) No quarto e último capítulo o caminho para as conclusões finais já está mais
evidente: aqui a comparação feita no capítulo anterior é argumento para uma nova
definição de nouveau roman após a análise da crítica dos próprios escritores e da sua
visão do romance moderno. A própria validade da denominação “nouveau roman”
também é posta em discussão com o objetivo de estimular a reflexão do leitor ao
relacionar essa parte da monografia com a primeira.
9
CAPÍTULO I
Por uma crítica do nouveau roman
Tudo parece instável quando afirmamos qualquer coisa sobre o nouveau roman.
A recepção dos autores a que se atribui esse rótulo foi basicamente a mesma, sendo que
a crítica francesa, em boa parte ainda ligada aos ideais românticos e realistas de
romance, viu todos como estranhos que eram idênticos em sua estranheza. Desse modo,
em certas obras que tratam desse período literário, podem chamar de nouveau roman
apenas a obra de alguns, como Robbe-Grillet e Butor, ou expandir o conceito para
outros autores dos anos 50 em diante, incluindo num momento primário da crítica
autores bem distintos entre si, como Samuel Beckett e Marguerite Duras. Essa idéia
mais ampla de nouveau roman pode ser encontrada inclusive entre críticos brasileiros,
como Leyla Perrone-Moisés (1966), ainda que nesse caso haja uma explicação: a autora
se propõe a explorar mais a obra de escritores mais enquadrados no movimento,
enquanto outros cuja produção é similar aos anteriores, ou ainda os lançamentos de
novatos que se aproximam dessa estética romanesca. Apesar disso, essa obra se trata
mais de uma apresentação do nouveau roman ao público brasileiro do que um estudo
teórico sobre a possibilidade de ele existir ou não como “escola” literária. Como pode se
perceber, sempre foi difícil entender exatamente o que define esse “movimento”
literário, as relações que aproximam todos esses autores, sem ler alguma crítica a
respeito. Interessante também é ler o que os autores do nouveau roman pensavam acerca
dessa denominação e dos caminhos que buscavam para o romance do século XX, o que
nós procuramos fazer aqui.
É importante salientar que o raciocínio aqui o tempo todo é voltado
exclusivamente para os ensaios dos autores selecionados, e não para a sua literatura.
Como poderia se esperar, os seus textos literários não são uma mera aplicação prática de
uma teoria desenvolvida a priori, mas sim criações que foram responsáveis pelo
raciocínio posterior dos escritores acerca da sua atividade. Os motivos para cada um
deles divulgar seus ensaios são diversos, sendo que, segundo Yanoshevsky (2005, p.
70), Sarraute escreve L’ère du soupçon com o claro objetivo de fornecer uma reflexão
aos seus leitores sobre o romance moderno como work in progress cuja leitura gera uma
desconfiança do leitor, enquanto que Robbe-Grillet busca sempre justificar sua
produção literária e mostrar a relevância da literatura moderna para os críticos e os
leitores que não vêem seus livros com bons olhos. Desse modo, parece que Sarraute,
10
que se lançou em sua tarefa anos antes de Robbe-Grillet o fazer, é a pioneira nessa
defesa do nouveau roman ainda que ela trate do romance moderno como um todo. Mas,
se observarmos o trecho de abertura do ensaio “L’ère du soupçon” de Sarraute, presente
no livro homônimo, perceberemos que os críticos também a motivam a escrever sobre a
literatura:
Les critiques ont beau préférer, en bons pédagogues, faire semblant de ne rien
remarquer, et par contre ne jamais manquer une occasion de proclamer sur le
ton qui sied aux vérités premières que le roman, que je sache, est et restera
toujours, avant tout, « une histoire où l‟on voit agir et vivre des
personnages », qu‟un romancier n‟est digne de ce nom que s‟il est capable de
« croire » à ses personnages, ce qui lui permet de les rendre « vivants » et de
leur donner une « épaisseur romanesque » (...)1 (SARRAUTE 1956, p. 55)
Sua posição em relação à maior parte da crítica francesa da época da recepção de
suas primeiras obras, como Tropismes (1939), é basicamente a mesma de Robbe-Grillet,
que recusa o conservadorismo em relação ao romance visto como mera aplicação do
modelo realista do século XIX. Essa idéia de prescritividade para a escrita romanesca
pode ser facilmente percebida no texto da escritora, que se refere aos críticos como
“bons pédagogues” de maneira irônica. Talvez Yanoshevsky tenha pensado que
Sarraute não teve a intenção de reagir a uma crítica ao escrever seus ensaios porque isso
não é colocado de modo explícito no texto, porém é possível notar por esse e outros
trechos que essa é uma preocupação da escritora, ainda que isso não signifique que seja
a razão maior para a publicação de sua crítica. Portanto, essa recusa de inovação por
parte do público (crítico ou não) está presente no seu texto, mas certamente não é algo
tão direto quanto na crítica de Robbe-Grillet. Ele, ao escolher o ensaio “A quoi servent
les théories” para abrir o seu Pour un nouveau roman, já quer que o leitor de sua crítica
tenha em mente desde o início de que seus textos são de obra de alguém que não é um
teórico. A primeira frase desse ensaio é justamente “Je ne suis pas un théoricien du
roman”2 (1963, p. 7). Mais evidente, impossível. Além disso, algumas linhas depois, ele
vai além e se coloca na defensiva, como um escritor que precisa evidenciar seu trabalho
1 “Mesmo os críticos preferindo, como bons pedagogos, fingir que não observam nada e, pelo contrário,
nunca perdem uma chance de proclamar com o tom das primeiras verdades que o romance, que eu
almejo, é e permanecerá sempre, acima de tudo, „uma história na qual se vê agir e viver as personagens‟;
que um romancista não é digno desse nome a não ser que ele seja capaz de „acreditar‟ em seus
personagens, o que o permite torná-los „vivos‟ e dá-los uma „espessura romanesca‟ (...).” [Todas as
passagens aqui traduzidas são de minha autoria, exceto quando indicado.] 2 “Eu não sou um teórico do romance.”
11
como válido, ao contrário do que leitores mais conservadores possam imaginar, algo
que pode ser observado pelo trecho seguinte:
La plupart du temps, ces réflexions étaient inspirées par certaines réactions –
qui me paraissent étonnantes ou déraisonables – suscitées dans la presse par
mes propres livres.
Mes romans n‟ont pas été accueillis, lors de leur parution, avec une chaleur
unanime; c‟est le moins que l‟on puisse dire.3 (ROBBE-GRILLET 1963, p.
7)
Essa recusa de uma norma pré-estabelecida para o romance moderno também é
tratada de maneira crítica por Butor, que aparentemente não quer que o leiam como
escritor que reage a críticos, mas sim como um crítico. Na maior parte dos seus ensaios,
ele se concentra em analisar textos literários ou teorizar sobre a literatura moderna,
porém há alguns poucos momentos em que realmente se coloca como um escritor, como
na sua “Intervention à Royaumont”, presente no volume I do seu Répertoire. Além
disso, as “Réponses à Tel Quel” (volume II do Répertoire) são de fundamental
importância para se entender tanto o seu trabalho como escritor quanto como crítico, já
que podem ser lidas como complementares à Intervention citada. Aqui fica claro, na
verdade, para o autor, que ele não consegue distinguir bem sua atividade literária da
crítica, já que ao ser perguntado sobre isso ele responde: “j’éprouve de moins en moins
cette différence [entre crítica e literatura]”4 (BUTOR 1964, p. 294). Essa relação entre
crítico e escritor será mais aprofundada mais adiante.
O posicionamento dos três escritores acerca do romance mais tradicional, ainda
ligado à estética de Balzac (que nos textos deles é sempre o principal exemplo de
literatura a ser superada), mostra como certamente há dois fatores básicos que os ligam:
1) eles não deixam de ser escritores para ser críticos e 2) pretendem defender um
romance que vá contra o modelo estabelecido. Certamente esses dois pontos não são
suficientes para caracterizá-los como um “movimento” literário, afinal todo escritor de
vanguarda quer trazer inovações para a sua arte. Esse fato será retomado no capítulo IV
com o fim de rediscutirmos a definição de nouveau roman.
O realismo e o papel da descrição são tópicos recorrentes nas reflexões de Butor,
Robbe-Grillet e Sarraute por verem nela a matéria principal do romance escrito em sua
3 “Na maior parte do tempo, essas reflexões eram inspiradas por certas reações – que me parecem
espantosas ou irracionais – suscitadas na imprensa pelos meus próprios livros. Meus romances não foram
recebidos, desde a sua publicação, com um entusiasmo unânime. É o que pode se dizer de menos.” 4 “Eu percebo cada vez menos essa diferença [entre crítica e literatura].”
12
época, algo que certamente não era novidade para a literatura. O próprio Robbe-Grillet
tinha consciência disso, senão não poderia dizer que “cette passion de décrire, qui tous
deux (Flaubert e Kafka) les anime, c’est bien elle que l’on retrouve dans le nouveau
roman d’aujourd’hui”5 (ROBBE-GRILLET 1963, p. 13). Mas, o que se quer dizer com
“passion de décrire”? O que se descreve exatamente em um romance? Para Robbe-
Grillet, há a necessidade para o romance moderno de se depurar de toda a carga
simbólica previamente estabelecida para os objetos para assim descrevê-los como eles
estão ali, não sendo uma descrição baseada em alusões. Ao pensarmos nisso, a idéia de
“objetividade” já nos vem à mente e certamente podemos imaginar uma descrição bem
óptica, como se fosse gravada por uma câmera a imagem de um quarto onde realmente
está uma personagem. Foi justamente dessa idéia que vários críticos partiram para
analisar o nouveau roman. Porém, eles se depararam com problemas. Antes que apenas
nos deixemos levar por isso, devemos seguir com a nossa análise dos ensaios dos
autores selecionados e ignorar por enquanto a sua literatura.
A descrição em Robbe-Grillet, em Pour un nouveau roman, não é objetiva, mas
exatamente o contrário, como o autor explica em seu ensaio “Nouveau roman, homme
nouveau”:
Comme il y avait beaucoup d‟objets dans nos livres, et qu‟on leur trouvait
quelque chose d‟insolite, on a bien vite fait un sort au mot « objectivité »,
prononcé à leur sujet par certains critiques dans un sens pourtant très special :
tourné vers l‟objet. Pris dans son sens habituel – neutre, froid, impartial –, le
mot devenait une absurdité. Non seulement c‟est un homme qui, dans mes
romans par exemple, décrit toute chose, mais c‟est le moins neutre, le moins
impartial des hommes : engagé au contraire toujours dans une aventure
passionnelle des plus obsédantes, au point de déformer souvent sa vision et
de produire chez lui des imaginations proches du délire.6 (ROBBE-GRILLET
1963, p. 117-118)
Essa visão em relação à suposta objetividade do nouveau roman está em
concordância com a crítica dos outros dois autores e também é coerente com boa parte
do discurso presente nesse volume de ensaios. A grande questão deles todos parece ser
que o novo realismo que buscam não é conforme com a visão estabelecida da sociedade,
5 “É essa paixão por descrever que anima ambos [Flaubert e Kafka] a que encontramos no novo romance
de hoje.” 6 “Como há muitos objetos nos meus livros e eles foram vistos como algo insólitos, as pessoas correram
para usar a palavra „objetividade‟, pronunciada sobre isso por alguns críticos em um sentido portanto
muito especial: voltado para o objeto. Em seu sentido habitual – neutro, frio, imparcial –, a palavra se
tornou um absurdo. Não se trata somente de um homem que, em meus romances, por exemplo, descreve
todas as coisas, mas sim do menos neutro, do menos imparcial dos homens: comprometido, pelo
contrário, sempre com uma aventura passional das mais obsessivas, a ponto de deformar, de repente, sua
visão e de produzir dentro de si uma imaginação próxima do delírio.”
13
como o romance burguês do século XIX, mas sim procura explorar as realidades
possíveis no texto através da sua leitura, fazendo sua literatura ser (teoricamente)
dependente das interpretações do leitor. Como Sarraute afirma no mesmo ensaio “L'ère
du soupçon”:
(…) le lecteur est d'un coup à l'intérieur, à la place même où l'auteur se
trouve, à une profondeur où rien ne subsiste de ces points de repère
commodes à l'aide desquels il construit les personnages. Il est plongé et
maintenu jusqu'au bout dans une matière anonyme comme le sang, dans un
magma sans nom, sans contours. S'il parvient à se diriger, c'est grâce aux
jalons que l'auteur a posés pour s'y reconnaître. Nulle réminiscence de son
monde familier, nul souci conventionnel de cohésion ou de vraisemblance, ne
détourne son attention ni ne freine son effort.7 (SARRAUTE 1956, p. 71)
A partir dessa passagem, até poderia se dizer que Sarraute concordaria com
Roland Barthes quando ele afirma que “le livre est un monde”8 (1966, p. 69), pois aqui
também está presente a noção da leitura da obra literária por si, mergulhada em seu
interior, sem qualquer “reminiscência do mundo familiar”, do cotidiano do leitor. Essa
idéia teoricamente invalida a busca por elementos na obra literária que tenham relação
verossímil com o mundo que vemos ao nosso redor. Desse modo, entender como se dá o
realismo no romance moderno nos parece ser de fundamental importância, pois aqui não
há mais a mera descrição que se pretende exata, mas sim um “realismo subjetivo”
(GENETTE 1966, p. 72).
Realidade e verdade estão totalmente desconexas para a crítica do nouveau
roman, já que para os três autores analisados vale a seguinte afirmação: “le vrai, le faux
et le faire croire sont devenus plus ou moins le sujet de toute oeuvre moderne”9
(ROBBE-GRILLET 1963, p. 129). Como se percebe, a descrição aqui não deve
fornecer experiências compatíveis com a nossa vida, como se pensava no século XIX,
nem deve mostrar em alguma “profundidade” das personagens a verdade do que é
retratado. Não existe verdade, já que tudo se trata de ficção. Só existem as
possibilidades que esse “novo realismo” quer nos oferecer. Evitando-se qualquer
“profundidade”, a descrição superficial dos objetos e das personagens permite inclusive
7 “(...) o leitor está de repente no interior, no mesmo lugar onde o autor se encontra, em uma profundeza
onde nada subsiste dos seus pontos cômodos de referência para ajudá-lo a constituir as personagens. Ele
está inserido e mantido até o fundo de uma matéria anônima como o sangue, em um magma sem nome,
sem contorno. Se ele chega a se direcionar, é graças aos alicerces que o autor lançou para se situar.
Nenhuma reminiscência de seu mundo familiar, nenhuma preocupação convencional de coesão ou
verossimilhança desvia sua atenção nem freia seu esforço.” 8 “O livro é um mundo.”
9 “O verdadeiro, o falso e o fazer acreditar se tornaram, de certo modo, o sujeito de toda obra moderna.”
14
que “as personagens dos romances possam ser elas mesmas, ricas em interpretações
possíveis” (ROBBE-GRILLET 1963, p. 20). O romance moderno aqui aparece como
um jogo intenso entre o objetivo e o subjetivo, que representa uma realidade que pode
ser múltipla em suas possibilidades.
A acusação de “objetividade” pura, que “desumaniza” a obra literária, que está
presente no discurso dos críticos mais tradicionais também os leva a crer que o nouveau
roman é puro formalismo, sem conteúdo algum. Butor, em resposta a isso, no seu
ensaio “Le roman comme recherche” (volume I do Répertoire), afirma que “le roman
est une forme particulière du récit (...) [et] il est un des constituants essentiels de notre
appréhension de la réalité”10
(1960, p. 7). Sendo um meio essencial de compreensão da
realidade, o romance não pode ser só uma forma sem sentido algum, “desumanizadora”,
já que a nossa realidade é humana, não puramente objetiva. Provavelmente ser
“puramente objetivo” é algo impossível na literatura, que é uma arte, uma expressão
humana. Portanto, além do romance moderno não ser só forma, ele também é uma
maneira de entendimento da realidade especial, já que é “une forme particulière du
récit”. A afirmação de Butor de que “le roman est le laboratoire du récit”11
(1960, p. 8)
também entra em consonância com essa idéia, já que o romance é uma forma particular
da narrativa justamente porque é uma forma de pesquisa de toda a narrativa, de todo o
discurso humano, não só do literário.
Essa noção da literatura como texto diferenciado nos remete imediatamente ao
conceito de estranhamento dos formalistas russos, que era bem aceito pelos teóricos
estruturalistas das décadas de 1950 e 1960 (EAGLETON 2001), justamente o período
em que foram escritos os ensaios de Butor, bem como os textos dos outros dois autores
aqui abordados.
A questão da “objetividade” no romance moderno parece então ser mais
complexa do que poderia parecer de início. Esse romance não quer retratar a realidade
sob moldes realistas já estabelecidos, mas sim criar novos meios para um novo
realismo. Daí a afirmação de Butor de que “l’invention formelle dans le roman, bien
loin de s’opposer au réalisme comme l’imagine trop souvent une critique à courte vue,
est la condition sine qua non d’un réalisme plus poussé”12
(1960, p. 9). De acordo com
10
“O romance é uma forma particular da narrativa (...) [e] ele é um dos constituintes essenciais da nossa
apreensão da realidade.” 11
“O romance é o laboratório da narrativa.” 12
“A criação formal no romance, bem longe de se opor ao realismo como imagina com freqüência uma
crítica míope, é a condição sine qua non de um realismo mais avançado.”
15
o que afirma Peter Brooks (1963, p. 266) acerca dessa mesma passagem, é possível
dizer que a experimentação formal para os romancistas aqui aparece como principal
meio para a concretização de um novo realismo: não se trata de um “formalismo” por si
só. Percebe-se aqui também a preocupação de escritor no trabalho de crítico, já que o
autor se refere a “une critique à courte vue” que Robbe-Grillet e Sarraute também
desvalorizam ao defender sua própria literatura. A idéia de um “réalisme plus poussé”
pode ser melhor compreendida se a associarmos à visão de obra de arte por Robbe-
Grillet, definida em seu ensaio “Sur quelques notions périmées”:
L‟oeuvre d‟art, comme le monde, est une forme vivante: elle est, elle n‟a pas
besoin de justification. Le zèbre [símbolo do formalismo para os soviéticos]
est réel, le nier ne serait pas raisonnable, bien que ses rayures soient sans
doute dépourvues de sens. Il en va de même pour une symphonie, une
peinture, un roman: c‟est dans leur forme que réside leur réalité.13
(ROBBE-
GRILLET 1963, p. 41)
Se na forma reside a realidade, nada mais natural do que ver o romance,
laboratório da narrativa, como meio de exploração dessa forma com o objetivo de
apreender essa realidade. Como pode se observar, estamos chegando a conclusões
gerais sobre o nouveau roman a partir dos seus próprios escritores, o que nos leva a
acreditar que o romance moderno na sua época queria ir além de tudo já estabelecido,
revolucionar a literatura e a sua realidade. De acordo com a sua visão, qualquer
acusação de “falta de verossimilhança” ou de “formalismo” da parte dos críticos não faz
sentido, já que o conteúdo do romance é o próprio mundo que é criado por ele, sem
referências externas, tornando o “objetivo” totalmente “subjetivo” (YANOSHEVSKY
2005, p. 74). Se isso estiver bem entendido, todas as concepções desses autores sobre
os papéis da personagem, do narrador, do espaço e do tempo na literatura podem ser
melhor analisados a partir daí, o que será feito no capítulo III.
No começo deste capítulo, foi assinalado o fato de que Butor, Robbe-Grillet e
Sarraute não deixam de ser escritores na sua atividade crítica, porém não foi bem
definida a sua atividade crítica de início. Após essa série de exemplos acerca da
abordagem de cada um deles em relação aos tópicos mais relevantes relacionados ao
nouveau roman, podemos repensar o seu papel como críticos, algo a que poucos
13
“A obra de arte, como o mundo, é uma forma viva: ela é, ela não precisa de justificativa. A zebra
[símbolo do formalismo para os soviéticos] é real, negá-la não seria racional, mesmo que suas listras
sejam, sem dúvida, desprovidas de significado. O mesmo vale para uma sinfonia, uma pintura, um
romance: é na sua forma que reside a sua realidade.”
16
estudiosos aparentemente deram atenção. Entre eles, Galia Yanoshevsky se concentra
em analisar comparativamente L’ère du soupçon e Pour un nouveau roman, o que a
leva a concluir que as intenções dos autores desses livros são totalmente diferentes (o
que já foi posto em discussão aqui) e também a traçar, no caso de Robbe-Grillet, as
possíveis origens de certos pensamentos seus a respeito do romance moderno:
En effet, la « philosophie des surfaces » qu‟on attribue à Robbe-Grillet
provient de l‟analyse critique que Barthes a proposée des premiers romans de
Robbe-Grillet, Les gommes et Le voyeur dans l‟essai « Littérature objective
», rédigé en 1954.14
(YANOSHEVSKY 2005, p. 75)
Esse ensaio de Barthes, “Littérature objective”, está presente entre seus Essais
critiques (1964) e é um bom exemplo de como é formulada a sua crítica a respeito do
nouveau roman, bem como do romance moderno em geral. Certamente Yanoshevsky
levanta uma bela questão, já que os ensaios de Robbe-Grillet presentes em Pour un
nouveau roman foram publicados posteriormente ao trabalho de Barthes (de acordo com
a informação dada no próprio volume), mas será que isso significa que o escritor alterou
sua visão sobre sua própria literatura devido à leitura de Barthes? Não podemos
esquecer das opiniões já analisadas aqui, de Butor e Sarraute, que vão ao encontro da
visão de Robbe-Grillet, nem do fato levantado pela própria Yanoshevsky de que Pour
un nouveau roman é, de certa maneira, herdeiro de L’ère du soupçon
(YANOSHEVSKY 2005, p. 67), obra publicada em 1953, antes do ensaio de Barthes.
Inclusive há indícios dessa “herança” nos seus textos, como quando em “Sur quelques
notions périmées” Robbe-Grillet afirma que Sarraute confirma a sua visão acerca do
pretenso formalismo do romance moderno ao dizer que os escritores que deveriam
ganhar a definição pejorativa de “formalistas” são justamente os que não desenvolvem a
sua escritura (ROBBE-GRILLET 1963, p. 41). Nesse sentido, então podemos dizer que
Robbe-Grillet pode ter desenvolvido seus conceitos teóricos a partir de Barthes, porém
isso não o mantém longe das opiniões em comum que tem com Butor e Sarraute.
Pela leitura da maior parte dos trechos dos ensaios dos três nouveaux romanciers
é quase inevitável perceber paralelos entre suas visões sobre o romance moderno.
Insistimos na idéia de “romance moderno” e não somente de “nouveau roman” não por
escolha minha, mas porque pela crítica dos autores aqui analisados os conceitos com os
14
“De fato, a „filosofia das superfícies‟ que é atribuída a Robbe-Grillet vem da análise crítica que Barthes
propôs para os primeiros romances de Robbe-Grillet, Les gommes e Le voyeur, no ensaio „Littérature
objective‟, redigido em 1954.”
17
quais eles trabalham não se referem unicamente aos seus próprios romances, mas sim à
literatura que lhes era contemporânea. Mesmo pelos poucos trechos que foram
selecionados para este trabalho é possível notar que o termo “nouveau roman” não é
recorrente, ainda que esteja implícito nas referências ao romance moderno, já que os
próprios escritores se situam como atuantes nessa literatura. Daí a necessidade de se
compreender que nos seus ensaios eles não deixam de se ver como escritores, e talvez
nem vejam muita diferença entre essa posição e a de crítico, algo que já vimos em
Butor, por exemplo.
A fim de darmos uma definição primária da crítica do nouveau roman (que é o
nosso objetivo aqui, afinal de contas), seria interessante nos voltarmos para Barthes de
novo, não se esquecendo especialmente da sua famosa definição já lembrada aqui: “le
livre est un monde”15
. Dentro dessa concepção também podemos pensar o romance
moderno pelos críticos analisados, porém temos que ir além para compreender
exatamente como eles se posicionam diante da matéria literária. Nesse sentido, com
certeza já pudemos notar que há relações entre essa crítica e a teoria literária barthesiana
e que talvez elas possam nos ajudar a entender melhor o nouveau roman, ainda que seja
necessário não nos atermos somente a esse raciocínio. O fato já abordado aqui de
Robbe-Grillet ter se apropriado em parte da análise de Barthes sobre os seus romances
para escrever a respeito do romance moderno não significa necessariamente que ele
concordava com toda a teoria presente em Critique et vérité (1966). Certamente Barthes
nos diz que “l’oeuvre est pour nous sans contingence, et c’est même peut-être ce qui la
définit le mieux”16
(1966, p. 54), idéia que concorda com a visão da obra literária por
Butor e Robbe-Grillet, mas é preciso nos lembrarmos que nenhum dos dois pretendia
construir uma teoria, uma ciência da literatura. Sua atividade crítica é mais uma reflexão
de escritor sobre a sua arte do que uma teorização, um método para estudo. Apesar
disso, é perceptível a harmonia entre o que pensa Barthes e qualquer um dos nouveaux
romanciers, algo compreensível se concordamos com o primeiro ao dizer que “le
critique éprouve devant le livre les mêmes conditions de parole que l’écrivain devant le
monde”17
(1966, p. 69). Compreensível pelo fato de que ele afirma que justamente antes
dessa sentença ele escreve que “le livre est un monde” e que os escritores vão ao
encontro dessa idéia através de suas reflexões, como já concluímos. Não se tratam de
15
“O livro é um mundo.” 16
“A obra nos é ilimitada, e talvez seja isso que a define melhor.” 17
“A crítica experimenta diante do livro as mesmas condições de palavra que o escritor diante do
mundo.”
18
duas vias paralelas de sentido oposto, mas sim de um ciclo vicioso, como se as
atividades de escritor e crítico não tivessem mais uma diferenciação bem definida.
De qualquer modo, pudemos observar até este ponto algumas tendências e
alguns conceitos presentes no pensamento dos autores escolhidos, assim já temos certas
noções das especialidades dessa crítica. Ainda voltaremos aos seus ensaios, porém é
importante manter as definições básicas que foram entendidas por meio da leitura dos
textos propriamente ditos e de poucas associações feitas. A maior parte dessas
associações veio ao encontro da meta deste capítulo para encerrar por aqui algumas
dúvidas que poderiam surgir mais adiante, como o estabelecimento da posição do
nouveau roman diante da crítica literária. Ainda nos resta buscar outros conceitos além
desses textos para compreender melhor qual a visão do romance moderno presente
neles, ou melhor, qual a posição do nouveau roman diante da literatura do século XX.
19
CAPÍTULO II
Ouvindo vozes no Ulysses
Muitos teóricos sempre se utilizam do termo “joyceano” para designar a forma
narrativa de alguma obra, e isso talvez possa ser aplicado em algumas opiniões sobre o
nouveau roman também. Pensar o que seria ser “joyceano” é relevante para isso, em
especial o que é uma “narrativa joyceana”. Como foi dito, a meta aqui não é teorizar
sobre a obra de autor irlandês, mas apenas entendê-la mais aprofundadamente para além
das idéias já famosas de “fluxo de consciência” e “monólogo interior”, insuficientes em
certos aspectos. Se pensarmos especialmente no Ulysses, obra referencial para toda a
crítica literária, não poderemos aplicar a idéia de “monólogo interior” a toda a sua
construção narrativa, já que se trata de um romance com episódios que possuem grande
variação entre si. Ao comparar episódios do início da obra (como o primeiro, intitulado
“Telêmaco”) e do final (como o penúltimo, intitulado “Ítaca”) sem ter lido o resto,
alguém provavelmente terá dúvidas antes de confirmar que leu duas partes de um
mesmo conjunto. A evolução da narrativa do Ulysses faz com que o leitor experimente
um pouco de tudo, dando-nos às vezes uma forma semelhante ao romance
tradicionalmente escrito até então, outras vezes um misto de vozes que nos faz duvidar
de tudo que lemos, inclusive de quem nos apresenta os acontecimentos do enredo. Esses
aspectos todos serão melhor abordados mais adiante neste capítulo. O que
provavelmente o leitor perceberá é que se trata de um livro que nos faz refletir muito
sobre a literatura moderna.
Para que se compreenda melhor a variedade literária que é o Ulysses, partamos
de início do alerta de David Hayman, que nos diz que “we need not overlook a certain
comforting consistency in the persona behind the action of the first eleven chapters”18
(1982, p. 88). Como já foi dito aqui, certamente os primeiros capítulos são bastante
distintos de uma série de trechos presentes nos segmentos seguintes da obra, ainda que
não deixem de apresentar características em comum. Quando Hayman nos incita a
acreditar que a “pessoa” por trás da narrativa não parece querer aparecer muito para o
leitor, fazendo seu trabalho costumeiro, ele, com certeza, não deseja que ignoremos o
fato de que sim, há uma voz ali nos fornecendo dados para a leitura da obra. Utilizei-me
aqui de uma palavra que pretendo seguir usando: “voz”. A princípio, talvez não faça
18
“Nós precisamos não ignorar uma certa consistência confortante na persona por trás da ação dos
primeiros onze capítulos.”
20
sentido não me referir à “persona” de Hayman como “narrador”, porém prefiro me
abster disso por enquanto, já que ainda não sabemos bem em que terreno estamos
pisando, fato esse que será melhor percebido no decorrer desta monografia.
Continuemos a seguir a idéia de Hayman de que os primeiros capítulos do
Ulysses são, de certo modo, “confortadores” em relação à atuação dessa voz nas partes
seguintes. Por que essa voz escondida atrás do que lemos, esse “narrador” que não
sabemos quem é poderia nos incomodar, nos tirar desse conforto da leitura? Talvez
porque não nos deixa entender o texto por nós mesmos, querendo interferir no discurso
das personagens a todo tempo. É fato que isso não se vê a todo tempo nas partes iniciais
do Ulysses em que se lêem trechos como:
Stately, plump Buck Mulligan came from the stairhead, bearing a bowl of
lather on which a mirror and a razor lay crossed. A yellow dressing-gown,
ungirdled, was sustained gently behind him by the mild morning air. He held
the bowl aloft and intoned:
- Introibo ad altare dei.
Halted, he peered down the dark windling stairs and called up coarsely:
- Come up, Kinch. Come up, you fearful jesuit. (JOYCE 1922, p. 1)19
20
Essas são justamente as linhas de abertura do Ulysses. É claro que não me referia
somente a elas quanto comecei a tratar do suposto conforto da leitura, mas de fato são
um dos melhores exemplos de como o leitor já acostumado com o romance tradicional,
burguês do século XIX não se assustará de modo algum com a narrativa presente no
trecho citado nem verá um narrador saltitante à sua frente, chamando a atenção para si.
Não quero dizer que James Joyce foi uma fraude e que não inovou em nada na sua obra
mais conhecida, mas sim que não pretendeu chocar ninguém de início com o seu
romance. Apenas uma ou outra pessoa talvez vá reconhecer a estranha “persona behind
the action” que já começa a aparecer nesses capítulos iniciais, porém não de modo
abrupto. Importante não deixar de sinalizar aqui que a abertura do Ulysses é de fato
significativa (e muito) para a obra como um todo, sendo uma espécie de resumo de
19
Para aqueles com interesses filológicos, aviso desde já que qualquer citação feita aqui do Ulysses foi
retirada do texto estabelecido pela Random House/Bodley Head em 1960. Apesar disso, mantenho a
referência à primeira publicação da obra em 1922. 20
“Solene, o roliço Buck Mulligan surgiu no alto da escada, portando uma vasilha de espuma em que
cruzados repousavam espelho e navalha. Um roupão amarelo, com cíngulo solto, era delicadamente
sustentado atrás dele pelo doce ar da manhã. Elevou a vasilha e entoou:
– IntroiboadaltareDei.
Detido, examinou o escuro recurvo da escada e invocou ríspido:
– Sobe, Kinch. Sobe, seu jesuíta medonho.”
Todas as passagens do Ulysses disponibilizadas aqui em português são de tradução de Caetano
Waldrigues Galindo (no prelo).
21
todos os temas e referências a ser trabalhadas, porém para o leitor de primeira viagem
ainda não existem grandes tensões.
Apesar dessa aparente convencionalidade do texto, há uma certa alteração na
narrativa já no começo da obra, que expõe a variação do seu foco narrativo de acordo
com as personagens que aparecem. Assim que Buck Mulligan deixa de ser a única voz
aparente, após ele se referir a Stephen Dedalus, “o texto, como que reconhecendo a
autoridade a que a princípio deve obedecer, pronto se afasta dele e se coloca mais
próximo a Stephen” (GALINDO 2006, p. 36). Essa mudança no foco narrativo não é
exatamente desnorteadora para o leitor tradicional de romances, mas já é uma pequena
(muito pequena) amostra da complexidade formal da obra por inteiro. Hayman já nos
assinalava essa progressão narrativa ao afirmar que:
The first six chapters of Ulysses must be considered as a unit. They prepare
the reader through dramatic expression for the thematic concerns of the entire
novel, through modifications in the techniques for the more radical style
shifts of the later chapters, through the increasing use of the stream of
consciousness for the phasing out of the conscious personal voice in the
evening chapters.21
(HAYMAN 1982, p. 93)
Aparentemente, o Ulysses é um texto feito para gerar surpresas a cada página,
dando-nos novos dados para levar em conta na nossa leitura de modo que, ao final,
temos uma carga narrativa enorme acumulada. Isso pode parecer desnecessário para
alguns, porém, seguindo o raciocínio de Hayman, somente assim podemos chegar às
partes mais “radicais” do romance sem nos transtornarmos demais a ponto de não
entender nada. Mesmo assim, voltemos à afirmação de Galindo sobre a primeira
pequena mudança na narração. Ainda nos falta compreender melhor como se opera esse
tipo de “obediência” do texto a uma personagem, já que isso pode acontecer por uma
série de meios.
O primeiro episódio, “Telêmaco”, é um bom exemplo de como se dá no livro, a
princípio, esse embate de vozes que querem dominar o texto para a sua narração, o seu
olhar dos acontecimentos, a sua opinião. Como narrador, uma personagem atua não
mais como uma marionete, mas como um ator no processo narrativo. Mulligan quer
dirigir a narração, mas Dedalus aparece para disputá-lo, levando-nos a uma narração
21
“Os primeiros seis capítulos do Ulysses devem ser considerados uma unidade. Eles preparam o leitor
através de uma expressão dramática para os focos temáticos do romance inteiro, através de modificações
técnicas para mudanças mais radicais de estilo nos últimos capítulos, através do uso progressivo do fluxo
de consciência pela eliminação da voz pessoal consciente nos capítulos anteriores.”
22
semelhante à de obras anteriores de Joyce, em que ele já era personagem. Sobre isso,
Hayman ainda afirma o seguinte:
The narrator is obliging us to accept another order of reality. He is playing on
our need to naturalize and explain the strange and elusive, to close the field
of experience. He is also asserting his independence, his freedom from the
rules he himself has established.22
(HAYMAN 1982, p. 92)
É interessante pensar que o narrador é responsável pela realidade que aceitamos
da obra, algo que pode parecer óbvio, mas não é. Uma narrativa realista não se faz
necessariamente por “objetividade”, como muitos podem pensar, já que tudo o que
aceitamos de uma obra literária vem do seu narrador, portanto parece evidente que
devemos confiar nele. Quanto menos “subjetivo” ele se apresenta, mais tendemos a
acreditar em suas descrições do espaço ou das ações das personagens, porém todo esse
senso comum a respeito da literatura cai por terra na leitura do Ulysses. Se o narrador
nos obriga a confiar em sua “ordem da realidade”, ainda que seja contraditória com o
que ele mesmo afirmou antes, podemos começar a desconfiar da veracidade de suas
informações e explicações. Para pensarmos isso, interessante ver o realismo como “a
question of interest, of a writer's desire to explore and describe the concrete phenomena
among which man lives, at the same time that the writer records a man's moral and
psychological history”23
(BROOKS 1963, p. 265).
Por ser uma “questão de interesse” do escritor, certamente esse pode fazer com
que a narração siga o interesse do seu narrador ou das personagens tratadas. Nesse
sentido, é possível ver em Joyce esse papel do realismo ser distribuído entre as vozes da
narrativa, não tão focado no autor ou no narrador, o que nos faz seguir toda a
variabilidade da personagem no romance. Não sendo Leopold Bloom, por exemplo,
uma personagem reta, de caráter bem definido, podemos ser sempre surpreendidos pelo
modo como o narrador segue o seu humor e as suas alterações no decorrer do romance.
Daí vem essa instabilidade da “ordem da realidade” no Ulysses, pois ser realista não
significa ser puramente objetivo.
22
“O narrador está nos obrigando a aceitar outra ordem de realidade. Ele está jogando com a nossa
necessidade de naturalizar e explicar o estranho e o complexo para limitar o campo de experiência. Ele
também está afirmando a sua independência, a sua liberdade das regras que ele mesmo estabeleceu.” 23
“Uma questão de interesse, do desejo de um escritor de explorar e descrever os fenômenos concretos
nos quais o homem vive, ao mesmo tempo em que o escritor registra a história moral e psicológica de um
homem.”
23
Em “Proteu”, terceiro episódio, considerado um dos mais focados em uma só
personagem (no caso, Stephen Dedalus), podemos observar de modo diferente de
“Telêmaco” como se dá a interação de vozes no livro. Dedalus, como centro de todas as
atenções, poderia certamente narrar tudo em primeira pessoa, como em um romance
mais tradicional, porém o que acontece não é exatamente isso. A oscilação narrativa
característica do Ulysses começa a tomar corpo aqui, sendo que o leitor é “preparado”
para isso através do enfoque em Stephen. A leitura desta passagem inicial do episódio
se faz necessária para uma melhor compreensão:
Stephen closed his eyes to hear his boots crush crackling wrack and shells.
You are walking through it howsomever. I am, a stride at a time. A very short
space of time through very short times of space. Five, six: the nacheinander.
Exactly: and that is the ineluctable modality of the audible. Open your eyes.
No. Jesus!24
(JOYCE 1922, p. 45)
Ainda que seja um trecho curto, esse é um exemplo genérico da construção
narrativa de “Proteu”. Ou melhor, é um exemplo compreensível para quem não tem a
leitura recente desse episódio. Não faltam elementos para ser entendidos mesmo nesse
fragmento, porém, devido ao objetivo deste trabalho, será necessário concentrar nossa
atenção na interação das vozes dessa narrativa. Incrível como as três primeiras frases
sozinhas já poderiam ser um bom exemplo da alternância constante de vozes que
constitui não somente “Proteu”, mas a maior parte do Ulysses, já que temos primeiro
uma narração em terceira pessoa, nada chocante para o leitor, depois uma narração
suspeita em segunda pessoa, e em seguida o domínio da primeira pessoa, notadamente
Stephen Dedalus. Daí em diante temos o chamado “monólogo interior”, porém não esse
termo sozinho não basta para explicar a complexa interação de vozes não só aqui, mas
no romance todo, já que entre sentenças que podem ser encaradas sob essa definição
temos alguns trechos que podem nos deixar em dúvida, como “Open your eyes”, por
exemplo. Quem diz isso? Stephen para si mesmo? O narrador, já próximo de Stephen?
Uma outra voz desconhecida? Não há aqui a pretensão de responder a essa questão e
nem de tentar definir a qual voz ou persona pertence cada palavra do Ulysses, até
24
“Stephen fechou os olhos para ouvir suas botas triturarem estralantes conchas e algas. Você está
caminhando por ele de alguma maneira. Estou, um passo de cada vez. Um espaço de tempo muito curto
através de tempos de espaço muito curtos. Cinco, seis: o Nacheinander. Exatamente: e isso é a inelutável
modalidade do audível. Abra os olhos. Não. Jesus!”
24
porque esse trabalho já é executado por pesquisadores há anos25
. A intenção é apenas
expor o fato de que aquela disputa entre vozes que houve nos dois primeiros episódios,
inclusive em “Telêmaco”, como observamos, aqui já parece mais ter sua trégua.
Stephen Dedalus é apenas uma personagem, porém trouxe o narrador para perto de si:
Afinal, a tensão agora existente dentro dos limites do pensamento de Stephen
não pode em hipótese alguma ser vista como uma vitória das outras vozes
sobre esta que, desde o começo, parecia ter imensa superioridade em relação
a todas elas no que se referia à ingerência e à intimidade com a voz do livro.
O que temos aqui é a consumação da identificação entre Dedalus e a voz
narrativa, sendo que agora a personagem pode passar a exibir plenamente
(como que em um microcosmo) precisamente a característica que mais vinha
marcando essa voz até aqui. (GALINDO 2006, p. 89)
Portanto, o que temos aqui é um ápice de aproximação entre personagem e
narrador. A distinção clássica entre esses dois elementos da narrativa se desfaz assim
que não conseguimos mais diferenciar com precisão quem é quem em “Proteu”, e mais
ainda nos episódios finais da obra. Como já foi dito, não se trata de uma troca simples e
explícita em que um substitui o outro no papel de narrador, mas sim uma interação
constante das vozes para a construção da narrativa, sendo que isso não acontece sempre
da mesma maneira. Certamente “Telêmaco” e “Nestor” têm essa mesma interação, mas
em um nível diferente de “Proteu” e mais ainda de outros episódios, mesmo dentre os
11 primeiros mais “consistentes” apontados por Hayman. Como em um “microcosmo”
esse episódio surge como o mundo de Stephen Dedalus dentro do grande e diverso
“cosmo” que é o Ulysses.
Em comparação a “Proteu”, episódio dedaliano por excelência, seria interessante
nos determos em algum episódio mais adiante no Ulysses no qual o leitor já esteja bem
“preparado” para encarar as inovações da sua narrativa. Considerando-se a idéia de
Hayman de que essa preparação é feita especialmente pelos seis primeiros episódios,
decidiu-se por tomar o oitavo episódio. Esse episódio também é conhecido como “Os
Lestrigões”, título que se refere aos gigantes canibais que comeram parte dos
companheiros do herói da Odisséia de Homero em uma ilha. Portanto, torna-se assim
mais claro porque neste episódio da obra joyceana é hora de almoçar, mais
especificamente hora de Leopold Bloom almoçar, já que toda a narrativa dessa parte se
encontra focada nele, e não nos outros personagens, ao contrário do episódio anterior,
25
Por exemplo, Samuel Schiminovich (2000) na Columbia University. Os resultados até agora obtidos do
seu levantamento das vozes da narrativa está disponível online sob uma versão eletrônica do Ulysses
comentada: http://www.columbia.edu/~fms5/ulys.htm. Acesso em: 30 nov. 2011.
25
“Éolo”. O fato de termos novamente o enfoque em uma personagem, assim como em
“Proteu”, parece muito válido para entendermos melhor como se dá a “consistência” da
persona narrativa apontada por Hayman nos 11 primeiros episódios do romance.
His heart astir he pushed in the door of the Burton restaurant. Stink gripped
his trembling breath: pungent meatjuice, slop of greens. See the animals feed.
Men, men, men.
Perched on high stools by the bar, hats shoved back, at the tables calling for
more bread no charge, swilling, wolfing gobfuls of sloppy food, their eyes
bulging, wiping wetted moustaches. A pallid suetfaced young man polished
his tumbler knife fork and spoon with his napkin. New set of microbes. A
man with an infant‟s saucestined napkin tucked round him shovelled gurgling
soup down his gullet.A man spitting back on his plate: halfmasticated gristle:
no teeth to chewchewchew it. Chump chop from the grill. Bolting to get it
over. Sad booser‟s eyes. Bitten off more than he can chew. Am I like that?
See ourselves as others see us. Hungry man is an angry man. Working tooth
and jaw. Don‟t! O! A bone! That last pagan king of Ireland Cormac in the
schoolpoem choked himself at Sletty southward of the Boyne. Wonder what
he was eating. Something galoptious. Saint Patrick converted him to
Christianity. Couldn‟t swallow it all however.26
(JOYCE 1922, p. 215)
Aqui nos encontramos diante de uma situação mais complexa de ser analisada
do que a da passagem de “Proteu”, embora não deixe de ser possível compará-las, pois
em ambas nos deparamos com uma narrativa voltada principalmente para uma
personagem, mas ainda variável em relação à narração. Trata-se de um momento de
intensidade emocional para Bloom, que tem seu coração despertado ao entrar no
restaurante (His heart astir he pushed in the door of the Burton restaurant) e perceber
que é diferente dos outros, tremendamente diferente, a ponto de qualificar todos como
animais (See the animals feed) e logo depois redefini-los como homens (Men, men,
men). Aqui e no resto do trecho a narrativa interna parece nos mostrar explicitamente o
seu poder de nos fazer também ler como o personagem se sente acerca dos outros, e não
somente de si mesmo. Nesse sentido, é possível perceber que o narrador se aproxima
26
“Coração desperto, ele empurrou a porta do restaurante Burton. Fedor agarrou-lhe o alento trêmulo:
acre caldodecarne, lavagem de verduras. Veja os animais se alimentarem.
Homens, homens, homens.
Empoleirados em bancos altos no bar, chapéus empurrados para trás, nas mesas pedindo mais pão
cortesia, entornando, abocanhando mancheias de comida gosmenta, olhos saltados, limpando bigodes
molhados. Um pálido rapaz com rosto de sebo esfregava martelo faca garfo e colher com guardanapo.
Nova leva de micróbios. Um homem com o guardanapo sujo de molho de uma criancinha ajeitado a sua
volta empurrava sopa borbulhante goela abaixo. Um homem cuspindo de volta no prato: pasta
meiomastigada: gengivas: sem dentes pra mascarcarcar. Costela tola da grelha. Correndo acabar logo.
Olhos tristes de beberrão. Olho maior que a barriga. Será que eu sou assim? Se ver como os outros veem
a gente. A fome faz a fúria. Dentes e queixadas à obra. Não! Ai! Um osso! Aquele último rei pagão da
Irlanda Cormac no poemescolar morreu engasgado em Sletty ao Sul do Boyne. Fico imaginando o que ele
estava comendo. Alguma coisa deliriosa. São Patrício converteu ele ao cristianismo. Mas não deu pra ele
engolir tudo.”
26
muito de Bloom, assim como acontece com Dedalus em “Proteu”, e novamente a
interação entre as vozes se dá de maneira intensa. Só pelo primeiro parágrafo da
passagem citada já notamos que há a mudança de uma narração em terceira pessoa (His
heart astir...) até um monólogo interior (See the animals...), porém nem sempre
podemos ter certeza de quem é que diz o quê no Ulysses. Um exemplo dessa constante
incerteza é justamente a segunda frase desse parágrafo (Stink gripped...), que, segundo
Schiminovich em sua versão eletrônica (2000), deve ser lida como continuação da
narração em terceira pessoa, embora nada nos impeça de também lê-la como monólogo
de Bloom a partir dos dois-pontos. “Strink gripped his trembling breath” certamente
parece ser essa continuação em terceira pessoa, mas “pungent meatjuice, slop of greens”
não nos permite uma leitura tão convicta desse mesmo modo, já que pode ser também
uma espécie de transição para “See the animals feed”, frase claramente pertencente a
Bloom. Como foi dito, não há aqui a pretensão de estabelecer quem disse o que nesse
trecho bem como em todo o livro, mas somente observar que as vozes estão sempre em
diálogo e não se mantém sempre idênticas ao longo da narrativa.
Essa liberdade do narrador ou das personagens de sempre interferir na
construção da narrativa e nem sempre da mesma maneira nos remete ao conceito de
“arranjador”, estabelecido por Hayman para a análise do Ulysses, sendo portanto uma
definição ex libro, ou seja, aplicável somente para essa obra literária. O arranjador seria
essa persona responsável no romance de Joyce por estabelecer a comunicação entre
diferentes discursos, como o de uma personagem e o de outra, determinando qual será a
predominante, “connecting bits of dialogue or monologue”27
(HAYMAN 1982, p. 89).
Talvez pareça estranho falar do “arranjador” sendo que até agora nos concentramos em
“Telêmaco” e outros episódios iniciais do livro, porém é fato que se observarmos bem,
veremos uma certa atuação dessa figura na narrativa como controlador que impede a
narração em primeira pessoa extensivamente da parte das personagens (GALINDO
2006, p. 43). De qualquer modo, mesmo se desconsiderarmos o arranjador, já pudemos
notar como as vozes da narrativa em Joyce não são mais as mesmas do romance do
século XIX mesmo nos episódios iniciais, inclusive nos seis primeiros, considerados
mais “preparatórios” por Hayman.
Nesse capítulo, houve a preocupação em nos determos mais nos capítulos
iniciais do romance, que parecem ser mais relevantes para os objetivos deste trabalho, o
27
“Conectando pedaços de diálogo ou monólogo.”
27
que poderá ser melhor compreendido mais adiante. Mesmo nessas partes do Ulysses,
não temos mais a estruturação de um autor implícito, um narrador em terceira pessoa,
onisciente e onipresente, e personagens bem definidos e estáveis ao longo do enredo.
Mesmo a noção de enredo deve ser repensada nesse caso, pois em Joyce o principal
motivo para se escrever literatura não é contar uma história linearmente. Essa razão não
cabe mais num romance em que não há uma voz narrativa única e dominadora que se
mantém estável em suas opiniões acerca de tudo, fato esse que quebra qualquer
linearidade e precisão sobre acontecimentos fictícios. Portanto, o Ulysses aparece como
obra marcante do romance moderno justamente por criar novas possibilidades para a
constituição das vozes da narrativa, indo para além da tríade autor, narrador e
personagem.
28
CAPÍTULO III
Ouvindo vozes no nouveau roman
Certamente, depois da leitura do capítulo anterior, temos motivos para relacionar
James Joyce ao nouveau roman em vários aspectos. O principal interesse é perceber
qual a posição tomada em relação a Joyce por cada autor selecionado e como a visão
deles do romance moderno parte ou não em certa medida da narrativa do Ulysses.
Devemos pensar em como as noções de personagem, narrador e outras questionadas por
Robbe-Grillet e Butor são reestruturadas ou consideradas obsoletas para o romance
moderno e quanto isso tem a ver com o romance de Joyce. O fato de Joyce estar entre os
autores referenciais para a evolução desse gênero literário nos textos dos autores
analisados talvez seja um indicativo de que sua obra é mais “joyceana” do que pode se
imaginar. Isso se deve ao fato de o Ulysses ser uma obra que sintetiza uma série de
inovações modernistas do romance e, ao mesmo tempo, nos aponta caminhos para a
literatura pós-moderna. Portanto, trata-se de uma obra fundamental para qualquer crítico
que queira estudar o romance moderno, entre eles Butor, Robbe-Grillet e Sarraute. Seu
“novo realismo” pode ser mais relacionado à obra de Joyce do que ao realismo
tradicional, já que, segundo Peter Brooks:
(…) the form contemporaneous to the Naturalist novel, the Symbolist poem,
seemed to cast a longer shadow into the twentieth century, and by 1922
Ulysses appeared to have exhausted the resources of the realistic method.
This landmark led critics to speculate that the novel had run its course and
was entering the death agony with the society and the world-view which had
engendered it.28
(BROOKS 1963, p. 265)
Brooks com certeza tem razão ao afirmar que o Ulysses é uma espécie de marco
(“landmark”) para a literatura do século XX. Não é à toa que James Joyce está presente
nos ensaios dos nouveaux romanciers, fato que deu motivo para a elaboração desta
monografia. Se pensarmos que o nouveau roman se pretendia, de certa maneira, um
“novo realismo”, não devemos imediatamente nos remeter ao modelo já existente (ou,
segundo Brooks, inexistente, pois morreu), mas sim buscar um realismo fundado na
visão de mundo que se criou com o advento da modernidade ocidental. A literatura
28
“(...) a forma contemporânea ao romance naturalista, o poema simbolista, parece ter lançado uma
sombra maior sobre o século XX, e por volta de 1922 o Ulysses parecia ter acabado com os recursos do
método realista. Esse marco levou críticos a especular que o romance tinha chegado ao fim e estava
prestes a morrer com a sociedade e a visão de mundo que o puseram em questão.”
29
francesa do pós-guerra buscou a partir de experimentos como o Ulysses e o Finnegans
Wake reformular seus conceitos sobre o romance. Bom lembrar que a criação de um
“novo romance”, com ênfase no fato de que cada obra seria uma única possibilidade de
“novo”, não era algo definitivo, como Robbe-Grillet fez questão de reafirmar uma série
de vezes nos ensaios de Pour un nouveau roman (1963). Ele tinha a consciência de que
o “novo romance” que escrevia só seria novo para a sua própria época.
Ainda sobre a questão do realismo, é interessante perceber como o Ulysses
aparece como fim do que era considerado realista no século XIX, sem que, no entanto,
isso signifique que Joyce ou qualquer outro escritor moderno tenha pensado em criar
uma obra totalmente não-realista num sentido mais amplo. Como Robbe-Grillet afirma,
“tous les écrivains pensent être réalistes”29
(1963, p. 135), já que todos pretendem
apresentar uma maneira mais efetiva de representar a realidade, mesmo os que parecem
ter criações aparentemente absurdas, como os surrealistas. Nesse sentido, não se pode
dizer que Joyce quis acabar com o realismo, mas apenas fornecer novos meios de
expressá-lo por meio da literatura.
Para atingir esse realismo renovado, Robbe-Grillet acreditava que o romance
futuro deveria dar maior liberdade para as interpretações do leitor. Já que todos pensam
ser realistas, pois cada um se refere à sua realidade, a possibilidade de que o leitor siga a
sua experiência para formar um sentido para a obra se torna inegável. Portanto, a
personagem no romance moderno também não pode ser bem definida, o que invalida
qualquer tentativa mais naturalista de dar um perfil psicológico e social bem
determinado do protagonista de sua obra, por exemplo. Sendo dependente da
interpretação de cada um, a personagem perde necessariamente sua unidade:
Quant aux personnages du roman, ils pourront eux-mêmes être riches de
multiples interprétations possibles; ils pourront, selon les préoccupations de
chacun, donner lieu à tous les commentaires, psychologiques, psychiatriques,
religieux ou politiques.30
(ROBBE-GRILLET 1961, p. 20)
Para entender sua concepção de personagem, devemos ter em mente que, na
verdade, o próprio conceito de “personagem” perde valor no romance moderno. Não é à
toa que ele está dentre as “noções obsoletas” do seu ensaio “Sur quelques notions
périmées”. A personagem é definida como figura tipicamente burguesa, individualista
29
“Todos os escritores pensam ser realistas.” 30
“Em relação às personagens do romance, elas poderão elas mesmas ser ricas em múltiplas
interpretações possíveis; elas poderão, segundo as preocupações de cada um, dar espaço para todos os
comentários, psicológicos, psiquiátricos, religiosos ou políticos.”
30
do século XIX, assim como o herói do romance. Ambos se referem a uma época em que
ter um nome era algo relevante, em que a família da personagem parecia ser a principal
origem de cada característica do protagonista. Robbe-Grillet acreditava que essa idéia
não tinha mais o mesmo valor na metade do século XX, que o indivíduo tinha perdido
seu lugar de destaque para se tornar mais um número, uma “marionete” de uma entidade
maior. Assim sendo, faz sentido vermos essa personagem como variável, mutável de
acordo com um contexto, mais subjetiva do que objetiva, quase como se fosse apenas
um ator que mudasse de papel a todo instante. Mais uma vez a “objetividade” que
alguns críticos apontaram no nouveau roman se torna aparente, já que essa extrema
variabilidade da personagem não permite uma visão sua bem definida.
A partir desse momento, talvez já seja mais claro que a personagem do romance
moderno como visto por Robbe-Grillet é muito semelhante à do Ulysses. A
instabilidade da personagem joyceana, que se permite se contrariar e que pode oscilar
sem parar de posição na hierarquia das vozes narrativas no romance, certamente permite
múltiplas interpretações da parte do leitor, e inclusive ocorre justamente por ela ir além
da definição clássica de personagem, algo que já exploramos no capítulo anterior.
Narrador e personagem são conceitos bem distintos entre si no romance tradicional, de
tradição naturalista, porém no romance moderno (inclusive no Ulysses) eles têm suas
fronteiras atenuadas a ponto de duvidarmos se existem diferenças significativas entre os
dois. O fato de precisarmos nos referir a “vozes narrativas” no romance de Joyce já
expõe esse dilema. Se uma personagem pode ser o narrador ou se pode dominá-lo de
alguma maneira, há uma quebra do padrão tradicional, em que somente o narrador sabia
de tudo e somente ele poderia ditar o que acontece no enredo. A “ordem da realidade”
distorcida no Ulysses, como argumentava Hayman, não pode ser associada diretamente
a uma realidade existente fora do livro, pois a ruptura com a noção de realidade unitária
nos faz acreditar somente no que vemos na nossa leitura. Portanto, faz sentido o que
ainda Robbe-Grillet afirma sobre a arte (a literatura incluída, é claro):
Il ne s‟appuie sur aucune vérité qui existerait avant lui; et l‟on peut dire qu‟il
n‟exprime rien que lui-même. Il crée lui-même son propre équilibre et pour
lui-même son propre sens.31
(ROBBE-GRILLET 1963, p. 42)
31
“Ela não se sustenta sobre qualquer verdade que exista além dela mesma, e pode-se dizer que ela não
expressa nada além de si mesma. Ela mesma cria seu próprio equilíbrio e seu próprio sentido por si
mesma.”
31
O reforço no “lui-même”, no constante “ela mesma”, mostra como o autor aqui
tem a clara intenção de eliminar qualquer realidade exterior que possa se interiorizar no
romance. Não existe aquele “profondeur”, aquela “profundidade” que deve ser
explorada em uma personagem, pois ela se refere somente a si mesma. A partir disso,
parece haver uma certa contradição no pensamento de Robbe-Grillet, que, como vimos
anteriormente, afirma também que a personagem é interpretada por nós, leitores,
segundo nossas preocupações, nossas visões de mundo, mas isso não exclui
necessariamente a idéia de que essa verdade que encontramos existe somente ali
naquela obra. No Ulysses, a presença de Leopold Bloom a princípio não seria
determinada por alguma referência externa ao livro, alguém que ele represente, já que
ele existe somente na criação de Joyce, algo evidente em termos teóricos. Como
leitores, devemos tentar entender quem ele é e qual o seu papel no “mundo” que é o
livro (de acordo com a definição barthesiana).
Sobre a suposta profundidade da personagem, seria interessante repensarmos a
posição de Sarraute a respeito da “psicologia” existente nela, que Robbe-Grillet atribui a
uma possível interpretação da parte do leitor. Sendo a personagem nada profunda,
“superficial”, já que apenas é uma personagem e nada além disso (segundo Barthes e
Robbe-Grillet), parece não fazer sentido explorá-la em sua mente. Para a autora de
L’ère du soupçon a idéia de um lado “psicológico” no romance não é mais válida,
principalmente no período pós-guerra, o que a faz desvalorizar o pensamento de
Virginia Woolf:
Qui songerait aujourd'hui à prendre encore au sérieux ou seulement à lire les
articles que Virginia Woolf, quelques années après l'autre guerre, écrivait sur
l'art du roman? Leur confiance naïve, leur innocence d'un autre âge feraient
sourire.32
(SARRAUTE 1956, p. 81)
A autora inglesa é vista quase como uma criança por Sarraute pelas suas idéias.
Ela faz questão de prosseguir nisso ao dizer que Virginia Woolf afirma “plus naïvement
encore: ‘Pour les modernes, ajoutait-elle avec fierté, l'intérêt se trouve dans les
endroits obscurs de la psychologie"33
(SARRAUTE 1956, p. 81). O tom sarcástico é
evidente aqui também, referindo-se de novo à ingenuidade da autora e ao seu orgulho ao
32
“Quem sonharia hoje em dia em levar a sério ou sequer em ler os artigos que Virginia Woolf, alguns
anos depois da outra guerra [a Primeira Guerra Mundial], escrevia sobre a arte do romance? Sua
confiança ingênua, sua inocência de outra época nos fariam sorrir.” 33
“(...) mais inocentemente ainda: „Para os modernos – acrescenta ela com orgulho – o interesse se
encontra nos cantos obscuros da psicologia‟.”
32
estabelecer o que é “moderno” por uma definição certamente inconcebível no raciocínio
de Sarraute. O seu grande inimigo no ensaio “Conversation et sous-conversation”, da
qual foram retiradas as duas últimas passagens, é justamente essa obscuridade
psicológica da personagem, algo que Robbe-Grillet também via como traço de uma
tradição do passado, aparentemente distante do nouveau roman. É a partir daí que vem
a sua crítica ao monólogo interior, que para Sarraute não deixa de ser uma tendência de
buscar o lado “obscuro” psicológico das personagens:
(…) il n'a pas été long à apercevoir ce qui se dissimule derrière le monologue
intérieur: un foisonnement innombrable de sensations, d'images, de
sentiments, de souvenirs, d'impulsions, de petits actes larvés qu'aucun
langage intérieur n'exprime, qui se bousculent aux portes de la conscience,
s'assemblent en groupes compacts et surgissent tout à coup, se défont
aussitôt, se combinent autrement et réapparaissent sous une nouvelle forme,
tandis que continue à se dérouler en nous, pareil au ruban qui s'échappe en
crépitant de la fente d'un téléscripteur, le flot ininterrompu des mots.34
(SARRAUTE 1956, p. 97)
O monólogo interior, ao qual tanto Virginia Woolf quanto James Joyce
geralmente são associados, aqui aparece como resquício dessa exploração psicológica
que o romance tanto buscou desde o século XIX. Com Joyce associado a essa tradição
psicologizante, Sarraute parte do pressuposto de que “pour la plupart d’entre nous, les
oeuvres de Joyce et de Proust se dressent déjà dans le lointain comme les témoins d’une
époque révolue”35
(SARRAUTE 1960, p. 82). A sua afirmação é clara: para ela James
Joyce já é parte do passado e deve continuar nele. Trata-se de uma resposta muito
própria de uma escritora com intenções de vanguarda, que pretende romper
radicalmente com tudo de que discorda em relação à tradição e apenas manter o que
acredita valer à pena. No caso dela, as referências do passado que permanecem são
Dostoiésvki e Kafka, matéria do primeiro ensaio de L’ère du soupçon, intitulado
justamente “De Dostoievski à Kafka”. Quem vai contra essa imagem de James Joyce
como escritor que não representava mais nada para a literatura é outro dos autores aqui
analisados, Michel Butor. Em sua abertura de Joyce et le roman moderne (1968), ele
afirma o seguinte (cito aqui a tradução brasileira de 1969):
34
“(...) não se demora muito para perceber o que se dissimula por trás do monólogo interior: uma
abundância incontável de sensações, imagens, sentimentos, lembranças, impulsões e pequenos atos
latentes que nenhuma linguagem interior expressa, que se apressam para as portas da consciência,
reúnem-se em grupos compactos e surgem de repente, desfazem-se logo, combinam-se de outra maneira e
reaparecem sob uma nova forma, enquanto que continua a se desenrolar em nós, igual a uma fita que se
escapa crepitando da fenda de um teletipo, o fluxo ininterrupto de palavras.” 35
“(...) para a maior parte de nós, as obras de Joyce e Proust já parecem distantes, como testemunhas de
uma época ultrapassada.”
33
Talvez você ouça dizer que a arte de Joyce está « superada » pela arte de uma
nova escola do romance e que, por conseguinte, não há mais necessidade de
lê-la. Que alívio! Era bem grande! E difícil, parece... Interrogue melhor
aqueles que fazem essas lindas declarações e irá notar que, na maioria dos
casos, leram apenas umas poucas páginas de Joyce; e se você lhes perguntar
o que propõem de tão novo assim, terá a surpresa de constatar que geralmente
se trata de pobres imitações de obras do século dezenove. (BUTOR 1969, p.
13)
Nesse momento, é quase inevitável nos lembrarmos da declaração de Sarraute de
que Joyce e Proust são apenas “testemunhas de uma época passada”. Com certeza, os
seus romances não são “pobres imitações de obras do século dezenove”, porém de fato
ela ainda não tinha bem definida sua posição em relação ao autor do Ulysses. Em
L’alittérature contemporaine, Claude Mauriac, outro escritor associado ao nouveau
roman, faz questão de afirmar que, apesar de Sarraute ser firme em sua posição no
início de “Conversation et sous-conversation”, ela mesma demonstra claramente não ter
resolvido bem essa questão mais adiante. Ainda sugere que Sarraute se engana ao
qualificar Joyce e Proust com “psicologizantes”, pois eles não procuram a explicação
racional dos românticos, mas sim a complexidade cada vez maior da personagem
(MAURIAC 1972, p. 341).
Ainda sobre a relação entre realismo e a obra de Joyce, é relevante nos
voltarmos de novo um pouco para Butor, que, assim como os outros autores analisados,
se preocupa com a questão da representação da realidade no romance moderno. Mais
adiante no texto de abertura de Joyce et le roman moderne, ele afirma que:
[James Joyce] foi capaz de utilizar o estilo como uma forma rigorosa, opondo
metodicamente uns aos outros os diferentes estilos nos diferentes capítulos de
seu Ulisses. Ele chega assim a uma generalização dessa noção, sendo o estilo
do Ulisses a própria ligação de todos esses estilos diferentes. Conseguiu
formalizar na composição romanesca um número considerável de elementos
e mostrar que semelhante formalização, tanto no romance como nas ciências,
bem longe de nos afastar do real, forçava este a se revelar. (BUTOR 1969, p.
14)
Certamente pode se inferir por essa passagem que Butor se identificava com a
questão do “formalismo” que via em Joyce, algo que os autores do nouveau roman
discutem em seus ensaios a todo tempo, como vimos anteriormente. Aqui ele vê uma
pesquisa formal da parte de Joyce no uso do estilo, na oposição metódica dos estilos e
na ligação entre eles, ou seja, trata-se de uma obra complexamente organizada e
pensada. A concepção de romance que é dada a Joyce é a mesma que Butor atribui ao
34
romance moderno (e, por conseqüência, ao nouveau roman), ou seja, o romance aparece
como “laboratório da narrativa” no qual há pesquisas envolvendo uma certa
“formalização” da obra literária segundo procedimentos semelhantes aos das ciências
em geral. Ao afirmar também que essa busca não afasta a literatura do real, mas força-o
a se revelar, também temos novamente o paralelo com o “réalisme plus poussé”
(“realismo mais avançado”) que ele estabelece em seu ensaio “Le roman comme
recherche”, texto no qual o romance é justamente definido como “pesquisa”
(“recherche”).
Em outro ensaio do volume I de seu Répertoire, intitulado “Petite croissière
préliminaire à une reconnaissance de l'archipel Joyce”, Butor busca dar ao leitor um
panorama de toda a obra de Joyce com um caráter introdutório. Há outros textos seus
sobre esse autor ao longo dos volumes do Répertoire, inclusive nesse mesmo volume I
há, logo após “Petite croissière...”, um chamado “Esquisse d’un seuil pour Finnegan”.
Aqui nos detemos em um ensaio somente por um critério de seleção que atende a uma
representatividade do pensamento do autor em relação ao assunto, o que realmente
existe nesse texto, pois é nesse momento que Butor se sente livre para apresentar Joyce
a sua maneira e com a sua visão de romance moderno. Analisemos dois trechos desse
ensaio ao mesmo tempo:
1.
La conversation de deux demoiselles, l'entrée de Bloom et son monologue,
les entrées des autres personnages, toutes ces « voix » se surajoutent en
contrepoint les unes sur les autres, évoluant en imitation les unes par rapport
aux autres, et rythmées par une batterie d'onomatopées jusqu'à la note finale:
done (c'est fait).36
(BUTOR 1960, p. 202)
2.
Voulant donner une vision complète de cette journée et à travers elle de
l'homme, il [Joyce] décrit des choses que l'on tait ordinairement. Par le
procédé du monologue intérieur, il veut visiter de fond en comble les
souterrains de ses personnages.37
(BUTOR 1960, p. 203)
Algo imediatamente se destaca para a nossa análise: o uso do termo “voix”
(“vozes”), tão considerado pela crítica joyceana e foco da nossa reflexão até agora.
Butor percebe como a interação das vozes na narrativa do Ulysses é responsável pela
36
“A conversa de duas senhoritas, a entrada de Bloom e seu monólogo, as entradas de outras
personagens, todas as „vozes‟ se sobrepõem ao mesmo tempo umas às outras, evoluindo em imitação
umas em relação às outras, e ritmadas por uma bateria de onomatopéias até a nota final: done (pronto).” 37
“Ao querer dar uma visão completa do dia e, através dele, do homem, ele [Joyce] descreve as coisas em
que tocamos ordinariamente. Pelo processo do monólogo interior, ele quer visitar de alto a baixo os
subterrâneos de suas personagens.”
35
construção de um dia e de um mundo complexos em que não há mais o domínio de um
único narrador sobre tudo, sendo ele onisciente e onipotente. Essa variabilidade
narrativa nos faz perceber a existência dessas vozes e nos força a desenvolver a nossa
própria interpretação da obra, já que sabemos que não podemos aceitar tudo dela como
“verdadeiro”, situação que corresponderia mais plenamente a uma representação
“tradicional”. Certamente lidamos no Ulysses com “le vrai, le faux et le faire croire” (“o
verdadeiro, o falso e o fazer-acreditar”), postulados por Robbe-Grillet como diretrizes
do romance no século XX. O monólogo interior, como descrito por Butor no segundo
trecho, aparece sim como uma exploração dos recônditos da personagem, porém nada
aqui faz com que ele vá de encontro a essa “visão completa” da obra. Apesar desse
monólogo, segundo ele, Joyce continua descrevendo “as coisas em que tocamos
ordinariamente”, idéia certamente afim com a “filosofia das superfícies” de Barthes e
Robbe-Grillet. Essas duas passagens em comparação uma a outra nos evidenciam como
para um autor parece haver nada de contraditório em relacionar desenvolvimento formal
e exploração das personagens, como é o caso do próprio Butor, enquanto que para outro
essas duas noções não são conciliáveis, como no caso de Sarraute.
Desse modo, observa-se que Butor e Sarraute têm visões bem divergentes acerca
de James Joyce, ainda que suas visões a respeito do romance moderno sejam muito
semelhantes. Robbe-Grillet também lida com o peso da obra joyceana em seus ensaios,
mas em nenhum momento se dedica a longas reflexões, limitando-se a citar Joyce como
exemplo de romance que foi responsável por desenvolver a forma romanesca. Butor,
obviamente, também acredita que Joyce está entre os autores fundamentais do romance
moderno, o que as passagens analisadas até agora já comprovaram. O que se percebe
como grande diferença entre esses dois autores, em relação somente aos ensaios, é o
fato de Butor ver Joyce destacado na evolução da literatura, relacionado a uma obra
única, enquanto Robbe-Grillet parece em nenhum momento vê-lo assim. Há vários
trechos ao longo de Pour un nouveau roman que o citam, porém nos deteremos em
somente um representativo:
Le travail patient, la construction méthodique, l‟architecture longuement
méditée de chaque phrase comme de l‟ensemble du livre, cela a de tout temps
joué son rôle. Après les Faux-Monnayeurs, après Joyce, après la Nausée, il
semble que l‟on s‟achemine de plus en plus vers une époque de la fiction où
36
les problèmes de l‟écriture seront envisagés lucidement par le romancier
(...).38
(ROBBE-GRILLET 1963, p. 11)
Joyce é citado junto com André Gide e Jean-Paul Sartre, porém é perceptível
uma diferença: ele é citado sem uma obra em especial, enquanto que Gide parece ter só
mérito por Les faux-monnayeurs e Sartre por La nausée. Butor, como estudioso que é de
Joyce, sempre procura em seus ensaios fazer análises mais detidas no texto de cada obra
do autor para fundamentar seu argumento, raramente se limitando apenas a citar o autor
pelo nome, como o fez Robbe-Grillet nessa passagem. O problema em se determinar
exatamente qual o papel do escritor irlandês na evolução do romance moderno nesse
caso é que Robbe-Grillet cita Joyce a todo tempo, embora nunca defina com clareza seu
posicionamento em relação a ele. Apesar disso, pode-se observar em algumas
passagens, inclusive na citada, que Joyce está entre os maiores responsáveis por essa
“lucidez” do romancista em relação à própria escrita, algo que os nouveaux romanciers
exercitam muito ao escrever seus ensaios. Sendo ensaístas (ou ainda críticos) e
escritores, eles conseguem entretecer as duas atividades a ponto de não saberem mais
distinguir muito bem uma da outra, o que já analisamos em Butor, que, assim como
Robbe-Grillet nessa última passagem, assumiu que a imagem do trabalho com a forma
como direcionamento para o romance moderno vem em parte do autor do Ulysses.
Após essa exposição da posição de Joyce na crítica de cada um dos autores
analisados, parece que temos um cenário em que percebemos que um escritor essencial
para a compreensão do romance no século XX não é visto da mesma maneira por eles.
O legado de Joyce para a literatura francesa ainda é muito discutido, sendo que, de
acordo com a análise realizada aqui até agora, é possível perceber que os nouveaux
romanciers estão entre os primeiros que colocaram essa questão em debate. Segundo
Sam Slote (2004, p. 383), essa discussão se deu de maneira dispersa, assim como são
dispersas as referências a Joyce na maior parte dos ensaios dos autores analisados, com
a exceção de Butor, entusiasta evidente do escritor irlandês. Talvez o fato de se falar de
Joyce mas sem um consenso tenha feito com que seu nome viesse à tona, já que antes
disso o Ulysses e suas outras obras eram lidas somente por escritores como Raymond
Queneau, que cerca de uma década depois de 1922, ano da publicação do Ulysses,
38
“O trabalho paciente, a construção metódica, a arquitetura longamente pensada de cada frase bem como
do livro como um todo, isso tudo teve seu papel há tempos. Depois de Os moedeiros falsos, depois de
Joyce, depois de A náusea, parece que nos encaminhamos cada vez mais para uma época da ficção na
qual os problemas da escrita serão considerados lucidamente pelo romancista (...).”
37
lançou Le chiendent (1933), romance “joyceano” segundo seu autor (SLOTE 2004, p.
382).
Nesse momento, também se faria necessário pensarmos no porquê de tanto
enfoque no Ulysses e não em outras obras de Joyce, já que não há dúvidas de que obras
como Finnegans Wake e A Portrait of the Artist as a Young Man são mais do que
essenciais para se compreendê-lo por inteiro, embora esse não seja o objetivo central
deste trabalho. Tanto em relação ao nouveau roman quanto à literatura francesa anterior
às décadas de 1950 e 1960, o que vemos definido como “joyceano”, ou melhor,
característico da obra de James Joyce é exatamente o Ulysses, sua obra mais conhecida.
A associação de conceitos derivados desse romance ao pensamento dos nouveaux
romanciers não vale para toda a obra do autor, e provavelmente se fôssemos analisar
comparativamente o que a crítica conclui de suas leituras a respeito do Finnegans Wake,
não conseguiríamos estabelecer muitos pontos em comum. Uma possível exceção seria
Michel Butor, que tem muito interesse nessa obra e que se encanta especialmente pelas
relações entre romance e poesia na literatura moderna, ao menos nos seus primeiros
ensaios, presentes nos volumes I e II do Répertoire. No entanto, o fato é que mesmo que
em certos momentos Joyce apareça apenas a princípio como uma referência nos textos
analisados aqui, o que existe é já uma aceitação da sua obra.
Outros autores relacionados ao nouveau roman, como Jean Ricardou e o já
citado Claude Mauriac, também surgem com o nome de Joyce constantemente em seus
escritos, fazendo-nos observar que essa presença não se dá somente nas reflexões dos
nouveaux romanciers mais aclamados. Essa dúvida sobre o papel da obra joyceana para
o romance que lhes era contemporâneo criou muitos embates, em que não se pode
deixar de apontar uma certa contradição. No caso de Sarraute, todo o livro L’ère du
soupçon é um registro desse dilema entre reconhecer Joyce ou não como marco
(“landmark” para Brooks) para o romance moderno, ainda que ela pareça ser rígida ao
relegá-lo junto com Proust em uma “época ultrapassada” (“époque révolue”). Butor
dedica ensaios inteiros à compreensão seja da obra joyceana em sua integralidade
(“Petite croissière préliminaire à une reconnaissance de l’archipel Joyce”), seja de uma
obra específica, como o Finnegans Wake (“Esquisse d’un seuil pour Finnegan”). Joyce
parece se encaixar plenamente em sua concepção de literatura. Robbe-Grillet parece ser
o caso principal de Sam Slote para referências dispersas a Joyce, porém, como já
percebemos, suas reflexões sobre o romance tem relação com o Ulysses, o que faz dele
38
não necessariamente um admirador secreto da obra, e sim alguém que entende sua
importância para a formulação do “novo realismo” que seria o nouveau roman.
Ou seja, depois deste breve painel, fica claro que, se fôssemos estabelecer uma
escala de importância de Joyce para o romance moderno, teríamos, com certeza,
Sarraute em um extremo, Robbe-Grillet no meio e Butor no outro extremo.
39
CAPÍTULO IV
Por uma definição do nouveau roman
Depois de todo esse percurso pelos ensaios de Butor, Robbe-Grillet e Sarraute e
de uma rápida passagem pelo Ulysses, é bem provável que não se tenha mais a mesma
idéia de nouveau roman que se tinha ao entendê-lo quase que somente pelos ensaios
críticos analisados no primeiro capítulo. Nesta parte da monografia, já é relevante
continuarmos a repensar alguns conceitos relacionados ao nouveau roman, mas também
procurarmos definir o que é esse “movimento” e se é realmente válido se referir àqueles
escritores sempre sob uma mesma denominação. Esse questionamento surge
especialmente devido à constatação de que uma boa parte das idéias sobre literatura dos
autores analisados não coincide, e de que em algumas vezes elas se opõem entre si.
Ainda assim, parecem existir pontos de contato entre suas concepções de romance,
mesmo que seja pela consciência de que Joyce e outros autores representativos das
primeiras décadas do século XX haviam escrito obras singulares, algo de que nem todos
estavam informados:
Na verdade, se Proust, Kafka e Joyce haviam existido e escrito suas obras,
uma larga corrente do romance francês e universal parecia ignorar este lastro,
e prosseguia calmamente um curso que já devia ter desembocado no mar da
história literária para dar lugar às novas águas brotadas daquelas obras
gigantescas. (PERRONE-MOISÉS 1966, p. 17)
Com a exceção de Raymond Queneau, como já assinalamos, é bem provável que
os autores do nouveau roman estejam entre os primeiros a explorar largamente esse
lastro joyceano, bem como o de Kafka e de Proust, o que os faz responsáveis por uma
certa renovação literária na França a partir da década de 1950. Esse aspecto é enfático
especialmente em Sarraute, que é uma espécie de “pioneira” ao já discutir os valores do
romance moderno em L’ère du soupçon (1957), ou seja, antes de qualquer outro
nouveau romancier escrever textos críticos além de artigos em jornal, reações por
escrito à crítica mais tradicional (LERNOUT 1992, p. 37). A visão de Sarraute como
precursora do nouveau roman também é apresentada por Yanoshevsky, como já
analisamos, porém Lernout se preocupa também em sinalizar como a escritora foi
justamente por isso a primeira a receber reações radicais contra suas opiniões de
tendência vanguardista para a crítica da época.
Ainda que Joyce seja uma base para a vanguarda que o nouveau roman pretende
a princípio ser, o nível de sua importância para o desenvolvimento do romance francês
40
não é consensual, algo para o que já chamamos a atenção. É pertinente voltarmos para
essa questão para entender como ela expõe uma falta de coerência entre as opiniões
críticas dos nouveaux romanciers e os autores relacionados a eles. Fica claro se formos
para além de seus ensaios que mesmo eles se contradizem de certa maneira, como
Robbe-Grillet que a todo tempo aponta Joyce como referência para o romance moderno,
porém já declarou ter preferido a leitura de Raymond Roussel à de Joyce ou Proust
(LERNOUT 1992, p. 36-37). É claro que se trata de uma opinião pessoal de leitor,
porém, como Robbe-Grillet não deixa de ser escritor ao dar essa declaração, não deixa
de ser significativo notar que há um certo conflito entre o escritor-crítico e o escritor-
leitor.
O que todo esse debate acerca do papel de Joyce no romance moderno expõe
realmente é a flexibilidade do pensamento dos autores analisados e como isso fazia com
que eles não pudessem se identificar como um grupo coeso. Em “Nouveau roman,
homme nouveau”, Robbe-Grillet afirma o seguinte acerca da proximidade estética dos
escritores do nouveau roman: “Nous sommes les premiers à savoir qu'il y a entre nos
oeuvres respectives – celle de Claude Simon et la mienne, par exemple – des différences
considérables, et nous pensons que c'est très bien ainsi”39
(ROBBE-GRILLET 1963, p.
114). Portanto, não haveria um consenso em relação a pensamentos sobre literatura da
parte dos autores do nouveau roman, o que desvalidaria muitas opiniões dadas até hoje
sobre isso e, provavelmente, a própria noção de nouveau roman como “movimento”.
Se há “diferenças consideráveis” entre esses autores, qual a razão em agrupá-los
sob uma mesma denominação? O fato é que, apesar de Robbe-Grillet reafirmar o
abismo que existe entre ele e Claude Simon, por exemplo, ele ainda se mantém como
“porta-voz” do suposto movimento, já que escreve na segunda pessoa do plural (“nous”)
nesse ensaio. Essa sua relação controversa com o nouveau roman é perceptível desde o
primeiro texto de Pour un nouveau roman, “À quoi servent les théories”, como neste
trecho, por exemplo:
Si j‟emploie volontiers, dans bien des pages, le terme de Nouveau Roman, ce
n‟est pas pour désigner une école, ni même un groupe défini et constitué
d‟écrivains qui travailleraient dans le même sens; il n‟y a là qu‟une
appellation commode englobant tous ceux qui cherchent de nouvelles formes
romanesques, capables d‟exprimer (ou de créer) de nouvelles relations entre
39
“Nós somos os primeiros a saber que há entre nossas obras respectivas – a de Claude Simon e a minha,
por exemplo – diferenças consideráveis, e pensamos que está tudo bem assim.”
41
l‟homme et le monde, tous ceux qui sont décidés à inventer le roman, c‟est-à-
dire à inventer l‟homme.40
(ROBBE-GRILLET 1963, p. 9)
Há muito que se pensar a partir dessas poucas linhas escritas de um ensaio que
desde o início não tem grandes pretensões, que o seu autor já abre com aquelas palavras
“Je ne suis pas un théoricien du roman”41
. A intenção nesta parte do trabalho é fazer
exatamente isso: retomar tudo o que já foi dito sobre o “movimento” no primeiro
capítulo para ser repensado após a discussão dos capítulos seguintes. Nessa passagem,
Robbe-Grillet realmente procura deixar claro que não se refere a um “movimento”, com
certeza, porém há alguns pontos a serem pensados nisso, mas especialmente um no
momento: por que ele se sente livre para falar em nome de todos que “buscam novas
formas romanescas”?
Embora a definição dada pelo autor para a aplicação do termo “nouveau roman”
em seu texto seja abrangente, certamente o que é tratado nas páginas seguintes não se
refere a todos os escritores que querem renovar a literatura, mesmo se considerarmos
somente os franceses. Se nos lembrarmos de apenas alguns dos conceitos presentes nos
ensaios de Pour un nouveau roman, fica claro que a maior parte deles é específica
demais para englobar todos os escritores de vanguarda, inclusive alguns que são
referidos como nouveaux romanciers. De acordo com as reflexões já feitas aqui mesmo,
Butor seria um dos deslocados do nouveau roman de acordo com essa concepção de
Robbe-Grillet. Portanto, temos uma situação muito mais complexa do que a sua simples
definição deixa transparecer.
Como foi possível também notar ao analisarmos a posição de cada um dos
autores analisados em relação a Joyce e o romance moderno, Butor parece de certo
modo deslocado do eixo do nouveau roman. Apesar de ser visto como um dos
principais nomes do “movimento”, Butor se afasta dele em relação à suposta falta de
significado pré-determinado do mundo, o “ser lá” dos objetos (PERRONE-MOISÉS
1966, p. 36-37). Ou melhor: a “filosofia das superfícies”, presente em Robbe-Grillet e
em Barthes, não se aplica de modo algum nem à crítica nem à literatura de Butor. Isso
não significa necessariamente que ele seja mais humanista do que os outros autores,
40
“Se eu emprego com prazer, em muitas páginas, o termo Nouveau Roman, não é para designar uma
escola, nem mesmo um grupo definido e constituído de escritores que trabalham em um mesmo sentido.
Não há nada além de denominação cômoda englobando todos que buscam novas formas romanescas,
capazes de expressar (ou de criar) novas relações entre o homem e o mundo, todos que estão decididos a
inventar o romance, ou seja, a inventar o homem.” 41
“Eu não sou um teórico do romance.”
42
como Perrone-Moisés conclui, mas sim que ele prefere não tentar se desvencilhar
completamente da análise psicológica das personagens.
O fato, no entanto, é que isso certamente nos faz duvidar não somente de sua
integração ao nouveau roman mas da própria validade de declarar que esse
“movimento” se fundamenta acima de tudo na busca de uma objetividade plena. Mesmo
seu suposto porta-voz se esforça a todo tempo para mostrar como sua visão dos objetos
não leva a uma objetividade, mas sim a uma “subjetividade total” (ROBBE-GRILLET
1963, p. 117).
É interessante também pensar em por que chamar a atenção para Joyce a todo
momento, mesmo que seja para recusá-lo temporariamente, como Sarraute. Existe
realmente essa necessidade para eles de se citar Joyce ao opinar sobre o romance
moderno? Tanto Joyce quanto Proust aparecem a todo tempo em seus textos e, em boa
parte deles, de forma dispersa, como já observamos; porém, em quase todos os casos
eles estão ali como uma referência, um exemplo do passado. Ainda que fique claro que
nenhum dos autores analisados pretende “imitar” Joyce ou Proust, o papel desses dois
escritores é o de mostrar como é possível renovar o romance, torná-lo mais adequado
para o homem de sua época.
Esse ato era recorrente na maior parte dos textos dos autores modernistas, porém
Richardson chama atenção para o fato de que Joyce nunca foi tão citado por escritores
para seus próprios propósitos quanto nos ensaios dos nouveaux romanciers
(RICHARDSON 2000, p. 1035). Nesse período final do que costumamos chamar de
“modernismo”, o nouveau roman surge como um conjunto de escritores que se veem
em um mundo literário pós-joyceano que aparentemente nem sequer sabe da existência
de Joyce. Proust certamente era conhecido até mesmo da crítica mais conservadora, mas
mesmo isso não significa que fosse bem aceito por ela.
Assim, o que temos é um grupo de escritores que procura se fundamentar em
uma vanguarda do passado para criar sua própria literatura renovada, esse “novo
realismo” que vira uma espécie de “slogan revolucionário” tardio (BROOKS 1963, p.
266). Característica desse período da literatura, portanto, é a ação de citar Joyce e outros
criadores de “novos realismos” para que escritores consigam fundamentar suas próprias
criações. É interessante lembrar que já se disse, bem mais recentemente, que “the
practice of calling on the example of Joyce to validate a new aesthetic partially ended
43
with the advent of postmodernism”42
(RICHARDSON 2000, p. 1036). O nouveau
roman, de fato, ainda parece estar inserido em um cenário modernista, conquanto tardio,
porém já se encontra em uma situação em que realizar um manifesto ou procurar
estabelecer um grupo aparentemente não faz mais sentido.
Ainda sem uma definição completa para o nouveau roman, novamente ficamos
somente com a de Robbe-Grillet que se refere a princípio a todos os escritores que
pretendem inovar o romance. Também é interessante perceber, ainda mais se
considerarmos também a obra literária desses autores, que a definição de nouveau
roman não é necessariamente “nova”. É claro que isso aparece somente para nós, que
não somos contemporâneos dos nouveaux romanciers, porém é fato que Robbe-Grillet
não cria uma definição sincrônica, própria unicamente para aquele período histórico,
pois nada impede que vejamos escritores com intenções de renovar o romance tanto
antes das décadas de 1950 e 1960 quanto depois, hoje em dia. Mesmo se pensarmos
somente na obras literárias desses autores, poderemos ter sérias dificuldades para
separá-las de outros escritores que supostamente não seriam do nouveau roman, mesmo
na definição dada por Robbe-Grillet.
Os autores do nouveau roman, sempre relacionados a essa denominação,
certamente pensaram sobre sua própria posição diante da literatura que lhes era
contemporânea. Ainda que não houvesse uma concordância em relação à definição do
“movimento”, eles entendiam que eram referidos como nouveaux romanciers e que
tinham que lidar com esse fato. Embora alguns tentassem definir ocasionalmente o
romance que produziam em relação aos outros, nem sempre se chegou a um consenso
que suprisse a necessidade da crítica e do público de ver ali uma teoria, um manifesto.
Em certo sentido, o nouveau roman parece surgir como uma “retaguarda”43
da parte de
alguns como Robbe-Grillet e Sarraute. Eles seriam “retaguardistas” porque pretendem
realmente renovar o romance francês, como qualquer autor de aspiração vanguardista,
porém pretendem fazer isso em um contexto posterior às grandes vanguardas européias,
fato que nos levaria a vê-los como responsáveis pela retomada do projeto modernista a
fim de executá-lo de modo pleno e completo. Ao mesmo tempo, se considerarmos o
42
“A prática de citar o exemplo de Joyce para validar uma nova estética acabou em parte com o advento
do pós-modernismo.” 43
Ainda que se trate de uma noção ainda não bem estabelecida, acredito que o conceito de “retaguarda” é
relevante para se pensar o nouveau roman. Não quero defini-lo como tal no momento, apenas sugerir essa
hipótese. Mais a respeito da idéia de retaguarda, originária da crítica americana, pode ser encontrada no
artigo de Sérgio Medeiros intitulado “Ferreira Gullar e Augusto de Campos, retaguardistas”, disponível
em: http://www.sibila.com.br/index.php/critica/1868-ferreira-gullar-e-augusto-de-campos-retaguardistas.
Acesso em: 10 dez. 2011.
44
fato de que não há uma teoria reconhecida por todos os nouveaux romanciers – apenas
uma tentativa tardia de um dos escritores, Jean Ricardou, que publicou Pour une théorie
du nouveau roman –, fica claro que eles não podem ser vistos como um movimento
literário e, portanto, não têm propostas em comum que possam de imediato estabelecê-
los como uma “retaguarda”. De imediato porque a própria noção de “retaguarda”
precisaria ser delimitada antes de poder ser aplicada à condição do nouveau roman
(como grupo ou não).
Encontramo-nos em uma situação complicada. O que é o nouveau roman afinal
de contas? O título deste capítulo, “Por uma definição do nouveau roman”, parecia
prometer ao leitor desta monografia alguma coisa substancial, definitiva a respeito
disso. Na verdade, o que há realmente nesse título é a mesma intenção do livro de
Robbe-Grillet, “Pour un nouveau roman”, que mostra como os autores pretendem
renovar o romance, ou seja, trata-se de uma intenção para o futuro, o que é reforçado
ainda pelo nome do segundo ensaio de seu livro: “Une voie pour le roman futur” (“Um
caminho para o romance futuro”). Portanto, este capítulo deseja, acima de tudo, indicar
alguns caminhos para se pensar o nouveau roman daqui em diante a partir da análise
que foi realizada nos capítulos anteriores. Em contraposição a essa visão do futuro do
nouveau roman no qual Robbe-Grillet acreditava, temos a seguinte declaração de Butor
dada para Leyla Perrone-Moisés, em novembro de 1962:
O público mudará, tornar-se-á cada vez mais exigente e melhor. O Novo
Romance é uma coisa que não existe, portanto não haverá um futuro para o
Novo Romance. Haverá o futuro dos romancistas, o futuro do romance, e este
é muito belo. (BUTOR apud PERRONE-MOISÉS 1966, p. 158)
Finalização bem inesperada para essa obra (O novo romance francês) que se
propõe justamente definir o nouveau roman (“Novo Romance”, conforme traduzido ali)
para o público brasileiro, na época ainda interessado na nova “vanguarda” francesa. O
fato é que essa declaração de Butor vai de encontro à de Robbe-Grillet sobre o
“nouveau nouveau roman”, ou seja, a continuidade das buscas por um romance
renovado, próprio para sua época e não mais uma constante imitação do modelo
oitocentista. Essa constatação nos leva novamente para a definição de Robbe-Grillet,
que, como já observamos, por si só pode ser atribuída a qualquer romancista que almeja
renovar sua forma literária, inclusive nossos contemporâneos44
. Ainda que por essa
44
Muitos são os exemplos possíveis, porém alguns parecem ser mais evidentes, entre eles David Foster
Wallace, David Mitchell, Grégoire Bouillier e Salman Rushdie.
45
idéia o nouveau roman possa ser visto como a constante intenção de evolução do
romance, o que aconteceu e vem acontecendo é que esse termo é usado somente para o
grupo (ou não-grupo) francês das décadas de 1950 e 1960. Refere-se ainda a um dos
últimos impulsos de viés modernista, de vanguarda, que acreditava em um romance
completamente novo como reflexo de um homem completamente novo. Seguindo o
pensamento de Richardson, podemos ainda dizer que o nouveau roman estava já nesse
limite modernista, em que a validade de citar Joyce ainda existe, porém já está sendo
discutida.
De fato, o nouveau roman, esse não-movimento, abriu as portas para a liberdade
pós-moderna dos escritores para pensarem a literatura cada um a sua maneira sem que
deixem de se ver sob uma mesma condição. Ao se encaminhar para uma situação em
que as dicotomias modernistas são deixadas de lado, os autores nouveau roman
aparecem como alguns dos responsáveis pela reviravolta que ocorreu na literatura da
metade do século XX até os tempos atuais, fato esse que é muito significativo para a
pós-modernidade.
46
CONCLUSÃO
Por meio deste trabalho, pudemos observar como a crítica do nouveau roman
não é unânime em diversos pontos, sendo que, em certos momentos, seus autores têm
opiniões praticamente contrárias entre si. A princípio, nossa visão desse período
literário nos induz a acreditar que as opiniões de Robbe-Grillet, supostamente um porta-
voz, se aplicam à maioria dos autores, porém o que vimos pela nossa análise demonstra
que isso não é verdadeiro de modo algum. É claro que há liberdade em qualquer
movimento literário para certas opiniões desviantes do eixo, do estabelecido pelo grupo,
mas essa situação não se aplica ao nouveau roman, afinal, como vários de seus
escritores afirmaram, não se trata de um grupo definido por um pensamento comum,
apenas por certas afinidades vistas pelos críticos. Entretanto, também é possível que
haja da parte desses últimos, especialmente entre os mais conservadores, uma certa
tendência a não enxergar diferenças entre elementos estranhos, inovadores como são os
romances de Butor, Robbe-Grillet, Sarraute e outros. No momento, o que podemos
dizer é que a partir das visões críticas dos próprios escritores essa “verdade” pode ser
muito bem contestada.
Embora exista essa divergência em relação ao que seria o nouveau roman, nossa
reflexão comparativa entre os ensaios dos autores analisados mostrou que, em certos
pontos, parece que afinidades se desenvolvem. Mas, especialmente se lidarmos com
James Joyce e seu romance Ulysses, essencial para a evolução do romance moderno,
percebemos como essas afinidades são consolidadas e, ao mesmo tempo, também as
diferenças. Aqui nos voltamos novamente para a definição de nouveau roman por
Robbe-Grillet, baseada na aspiração do escritor a renovar da literatura, o que era um
conceito de certa maneira unificador, responsável por unir pessoas em torno de uma
meta fundamental comum que poderia ajudá-las a lidar com suas discordâncias acerca
do romance.
Talvez essa definição seja suficiente para os próprios autores, porém ainda resta
à crítica dar sua própria definição, algo que pode ser feito de diversas maneiras,
inclusive pelo caminho apontado por esta monografia. A análise das obras literárias para
além da crítica tem seu papel nessa definição, é claro, porque o que podemos entender
de uma maneira pelos ensaios de um autor, pode ser aplicado de outra maneira a sua
literatura.
47
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