SKÉPSIS, ISSN 1981-4194, ANO VIII, Nº 16, 2017, p. 77-98.
Este artigo foi originalmente publicado em International Journal of Philosophical Studies 1999.7: 141-158.
O NEOPIRRONISMO DE FOGELIN
Michael Williams
(Johns Hopkins University)
E-mail: [email protected]
Tradução: Nicole Marcello
E-mail: [email protected]
Resumo:
Robert Fogelin concorda que os argumentos para o ceticismo cartesiano trazem consigo
uma alta carga de comprometimento teórico, visto que eles dão como certa, explícita ou
implicitamente, a ideia fundacionista de que o conhecimento experiencial é de uma maneira
bem geral “epistemologicamente anterior” ao conhecimento do mundo. No entanto, ele
acredita que há uma rota muito mais direta e de senso comum para o ceticismo. Afirmações
de conhecimento ordinário são aceitas com base em procedimentos de justificação que estão
muito longe de eliminar todas as possibilidades de erro concebíveis. Como resultado, sempre
é possível — ao pôr em cena novas possibilidades de erro — elevar o ‘nível de escrutínio’ ao
qual uma dada afirmação de conhecimento está sujeita, de modo que ela não mais pareça
adequadamente justificada. Teorias filosóficas da justificação podem ser vistas como
tentativas de reparar esta fragilidade do conhecimento ordinário. Mas todas elas fracassam
ao sucumbir aos modos pirrônicos da hipótese, da circularidade ou do regresso ao infinito.
Argumento que a concepção de Fogelin de níveis variáveis de escrutínio conduz no máximo
ao falibilismo, e não ao ceticismo radical. Mais importante, demonstro que mudar a gama de
anuladores relevantes a uma dada afirmação de conhecimento pode fazer mais do que
estabelecer padrões rígidos para justificação: isso pode alterar o assunto por meio da
mudança de direção da investigação. Daí conclui-se que a introdução de ‘hipóteses céticas’
(tal como o gênio maligno de Descartes) não são mais bem identificadas como aquelas que
elevam os padrões a um nível máximo, mas como aquelas que introduzem um novo tipo de
avaliação que, sem compromisso com o que eu chamo de ‘realismo epistemológico’, nada
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fazem para impugnar o estatuto justificador das afirmações de conhecimento ordinário
introduzida em contextos ordinários.
Palavras-chave: Conhecimento; justificação; ceticismo; contextualismo; realismo
epistemológico.
1. Nos últimos anos, tem-se visto um crescente pessimismo com relação às nossas
perspectivas de se chegar a uma resposta satisfatória ao ceticismo. Porta-vozes influentes
da visão pessimista incluem Thomas Nagel, Peter Strawson e Barry Stroud.1 Estes filósofos
seguem Hume ao pensar que, enquanto o ceticismo não adentra, e talvez, num certo sentido,
não possa adentrar nossa vida cotidiana, o veredicto do cético sobre nossa pretensão ao
conhecimento é quase sempre teoricamente correto. Então, estes neo-humeanos veem uma
tensão permanente entre nossas práticas epistêmicas ordinárias e os resultados inevitáveis
da reflexão filosófica sobre elas. No dia a dia, operamos facilmente com contrastes como
aqueles entre conhecimento e conjectura, ou entre crença justificada e mera suposição. Mas
devido à existência de argumentos poderosos a favor da visão de que o conhecimento é
impossível — para os quais nenhuma resposta comumente aceita jamais foi dada ―, quando
tomamos distância e refletimos sobre tais distinções nos vemos perdidos. Os ditos crentes
racionais na rua, porém céticos nos estudos, estamos condenados a viver com o que Nagel
chama de “uma cisão no ser que não desaparecerá”.
O time dos neo-humeanos pessimistas conta agora com Robert Fogelin.2 Mas
Fogelin é um cético com uma diferença. O foco de preocupação para os outros neo-humeanos
é o ceticismo ‘cartesiano’, para o qual nosso conhecimento do mundo externo estabelece o
problema original e paradigmático. Em contrapartida, Fogelin se volta para uma tradição
mais antiga: o ceticismo pirrônico clássico. Eu acredito que esta diferença seja realmente
muito importante. Mas para dizer o porquê, preciso falar um pouco sobre o motivo pelo qual
o ceticismo deve ser levado a sério antes de tudo.
1 Nagel (1986); Strawson (1985); Stroud (1984). 2 Fogelin (1994). As referências são dadas no texto pelo número da página entre parênteses [a segunda referência é à tradução brasileira. N. do T.]
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2. Supondo que os pessimistas estejam corretos e o ceticismo não possa ser refutado:
existe um problema sério aí? Eu acredito que sim, contanto que o ceticismo que se pretende
irrefutável satisfaça (pelo menos) três condições: deve ser radical; deve ser altamente geral;
e deve ser ‘natural’ ou ‘intuitivo’.
O ceticismo radical é o ceticismo que trata da justificação. O cético radical argumenta
que nós nunca estamos suficientemente justificados a ponto de poder aceitar uma coisa mais
do que outra. Pois bem, o ceticismo é frequentemente apresentado como uma negação da
possibilidade de conhecimento. No entanto, em particular depois dos desafios de Gettier à
explicação tradicional do conhecimento como crença verdadeira justificada, esta formulação
necessita ser tratada com cuidado. Gettier demonstra que as condições tradicionais para o
conhecimento, ao menos se interpretadas ingenuamente, não podem ser consideradas como
suficientes. Consequentemente, se quisermos continuar a relacionar conhecimento a
justificação, precisamos caracterizar de forma mais estrita o tipo de justificação capaz de
produzir conhecimento. Mas isso introduz uma ambiguidade às negações da possibilidade
de conhecimento. O pensamento poderia ser tal que, embora sejamos capazes de justificar
nossas crenças, as condições extras para justificação que transformam crença verdadeira
justificada em conhecimento não são condições que estejamos aptos a satisfazer. Ou pode
ser que o conhecimento seja radicalmente impossível porque somos incapazes de estar
justificados no que cremos, mesmo no menor grau.
O ceticismo não-radical, que ataca o conhecimento considerado de forma estrita,
obviamente não é um desafio sério para as práticas epistêmicas cotidianas. A razão disto é
que, mesmo que não víssemos nenhuma maneira de colocá-lo de lado, sempre poderíamos
pôr em prática o que Crispin Wright chamou de “o recuo russelliano”, ao abster-se de falar
em conhecimento (entendido estritamente) em favor de falar em crença justificada. O ônus
de demonstrar que tal retirada acarretaria uma perda significativa recairia então sobre o
cético. Em contrapartida, justamente porque obviamente não dá uma margem aceitável de
recuo, o ceticismo radical representa uma ameaça muito mais séria à nossa perspectiva
epistemológica ordinária.
Aqui há um ponto geral: quanto mais rígido o conceito de conhecimento, mais fácil
será a argumentação em favor do ceticismo. Ao mesmo tempo, quanto mais fácil a
argumentação, menos interessante o ceticismo se torna. Por exemplo, alguns filósofos
afirmaram que o conhecimento considerado de forma estrita exige certeza absoluta, certeza
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que ultrapasse até mesmo da possibilidade lógica de erro. Mas a negação de que somos
capazes de conhecimento nesse sentido exigente é algo com que se pode viver com bastante
facilidade. De fato, essa forma de ceticismo é mais corretamente compreendida como um
falibilismo recomendável e, por isso, não é de forma alguma ceticismo.
Esse é um exemplo extremo. Contudo, acredito que observações similares se aplicam
a explicações de conhecimento mais modestas e atraentes. Consideremos tentativas —
muito plausíveis — de explicar o conhecimento em termos de justificação absoluta. Nessas
explicações, a certeza anexada ao conhecimento consiste no fato de que a crença verdadeira
é sustentada por uma justificação que não está sujeita a ser abalada pela aquisição
(indefinida) posterior de crenças verdadeiras. Não é óbvio que qualquer justificação que
possuímos atualmente atende a esta condição exigente. Consequentemente, há um caso
prima facie para um meta-ceticismo modesto, o que quer dizer que, até onde se sabe, pode
faltar-nos conhecimento. Mas, novamente, essa forma de ceticismo não representa uma
ameaça séria para nossa autoimagem de animais (potencialmente) racionais. Nada tão
dramático quanto uma cisão no ser parece estar à vista. Somente o ceticismo radical sugere
isso.
Formas sérias de ceticismo filosófico não são apenas radicais, mas são também
altamente gerais. Elas desafiam a nossa possibilidade de termos crenças justificadas, seja
com respeito a quaisquer assuntos ou ao menos com respeito a certas áreas muito amplas de
fatos: por exemplo, todos os fatos que se referem ao mundo externo. Isto é como deveria ser.
Não é uma afronta ao senso comum apontar para o fato de que há uma porção de coisas que
não sabemos e nunca saberemos. A prova relevante é fragmentária ou inexistente e seus
defeitos nunca serão reparados. Nem o ceticismo será uma ameaça séria se sua generalidade
consistir somente em afirmar que qualquer crença pode ser colocada em questão, havendo
cenário adequado. Isso também é algo com que podemos viver facilmente. Uma forma séria
de ceticismo filosófico deve emitir um veredicto negativo acerca de todas as nossas
afirmações de conhecimento. Deve julgá-las coletivamente, não individualmente.
Isso nos leva à terceira exigência: a de que o ceticismo filosófico seja ‘natural’ ou
‘intuitivo’. Com isto eu quero dizer que os argumentos que conduzem ao ceticismo devem
explorar somente recursos derivados de nossas ideias epistemológicas cotidianas.
Claramente, a exigência para que o ceticismo seja natural ou intuitivo está profundamente
associada à exigência para que ele seja geral. O cético não está interessado em apontar a
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ignorância contingente, ainda que extensa. Ele quer encontrar alguma dificuldade intrínseca
em nossas pretensões ao conhecimento: seja o conhecimento como tal ou o conhecimento de
um tipo muito amplo. É por isso que o ceticismo é geralmente estabelecido em termos de
possibilidade do conhecimento. Sua questão não é se há uma porção de coisas que nós não
sabemos e nunca saberemos. Antes, sua afirmação é a de que a questão do conhecimento está
fadada ao fracasso desde o início; e não devido a algum alto padrão gratuitamente imposto
por ele, mas por razões implícitas às nossas ideias epistemológicas mais mundanas.
Isto nos leva à razão mais importante pela qual os argumentos céticos devem ser
intuitivos ou naturais. Se eles não são intuitivos, se eles dependem de ideias teóricas
controversas e possivelmente dispensáveis acerca do conhecimento ou da justificação, a
aparente inevitabilidade do ceticismo nos dirá algo sobre essas ideias, mas nada sobre nossas
afirmações cotidianas de conhecimento ou de justificação. Fazemos bem aqui em adotar a
terminologia de Robert Fogelin e distinguir ceticismo filosófico de ceticismo a respeito da
filosofia. O primeiro é uma ameaça para as práticas epistêmicas cotidianas. O último, mesmo
que pareça interessante e importante em vários aspectos, não é.
É claro, poderíamos ser capazes de chegar a um pelo outro: por exemplo, ao
argumentar que certas teorias filosóficas do conhecimento simplesmente trazem à luz ideias
que sempre estiveram implícitas em nossa perspectiva epistemológica cotidiana. Se isso
puder ser demonstrado, pode ser que o fracasso dessas teorias para garantir a possibilidade
de conhecimento seja, no fim das contas, uma vitória para a filosofia cética. Mas a ligação
tem que ser feita, e fazê-la está longe de ser tão simples quanto frequentemente se supõe.
3. As condições recém discutidas não são fáceis de serem satisfeitas. No entanto,
acredito que a chave para responder ao ceticismo que atormenta os neo-humeanos de hoje
em dia é ver que ele consegue ser radical e (aparentemente) geral somente a custa de não
conseguir ser intuitivo.3 Todos os problemas cartesianos — o mundo exterior, indução,
outras mentes, o passado e assim por diante — são problemas de sub-determinação. Como
tais, eles dependem de uma partição prévia de nossas crenças em classes privilegiadas e
classes problemáticas, divisões estas por sua vez consideradas como correspondentes a uma
ordem de prioridade epistêmica que independe de contexto. Assim, o problema do nosso
conhecimento do mundo exterior surge como uma forma radical e geral de ceticismo
3 Para uma defesa detalhada dessa posição, ver o meu Williams (1992).
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somente se todas as nossas crenças sobre o mundo forem consideradas como dependentes
de algum tipo mais básico de conhecimento para sua justificação: o conhecimento empírico,
por assim dizer. A ideia de que o conhecimento experiencial é, de alguma forma totalmente
geral e intrínseca, epistemologicamente anterior ao conhecimento do mundo é um exemplo
do que eu chamo de ‘realismo epistemológico’. Consequentemente, o caminho para
ultrapassar os problemas céticos cartesianos é arrancá-los pela raiz, ao revelar e atacar o
realismo epistemológico do qual ele depende tacitamente.
Admito que a dependência que o ceticismo cartesiano tem dessas ideias nem sempre
é imediatamente óbvia: daí a necessidade do que eu chamo de ‘diagnóstico teórico’, o qual
pretende expor uma dependência essencial que o problema tem de pressupostos teóricos não
reconhecidos. O resultado de ligar o ceticismo cartesiano ao realismo epistemológico, o qual
acredito não haver boas razões para aceitar, é uma visão contextual da justificação que abala
a coerência teórica dos domínios epistêmicos sobre os quais o cético tenta generalizar. O
resultado é um ceticismo sobre um determinado gênero de teoria epistemológica. O
ceticismo filosófico é rejeitado.
É por isso que considero a defesa do ceticismo de Fogelin tão significativa. Fogelin
compartilha do meu pensamento de que o ceticismo cartesiano carrega uma alta carga de
teoria e parece “se apoiar em um comprometimento filosófico prévio com o caminho das
ideias — um compromisso que o cético pirrônico não teria” (p. 193/250). Portanto, para o
pirrônico, “o cético ao estilo cartesiano não é suficientemente cético” (p. 193/250). Ele é
cético sobre tudo, exceto sobre seus próprios pressupostos epistemológicos. Ao contrário, o
ceticismo pirrônico é totalmente intuitivo. As dúvidas pirrônicas são “o resultado natural e
inteligível” (p. 203/263) da reflexão acerca de nossas práticas epistêmicas cotidianas. Elas
não dependem de nenhum pressuposto teórico controverso. O ceticismo pirrônico prospera
(eu afirmo) onde o ceticismo cartesiano fracassa.
No cerne do ceticismo pirrônico reside o “problema de Agripa”.4 Os Cinco Modos de
Agripa são discrepância, relatividade, regresso ao infinito, hipótese e circularidade. Os
4 Ao enfocar o problema de Agripa, Fogelin apresenta uma versão severamente despojada do ceticismo pirrônico. O fundamento do pirronismo histórico é o método de oposição: o cético alcança a suspensão do juízo ao contrapor a toda proposição ou argumento uma proposição ou argumento incompatível que lhe parece como mais ou menos igualmente plausível. Esse método, no qual concepções competidoras se neutralizam mutuamente, não tem conexão especial com a argumentação epistemológica: uma teoria física será oposta a uma teoria física alternativa, um juízo ético a outro juízo ético e assim por diante. A meu ver, o papel mais direto de considerações epistemológicas na prática dialética do cético pirrônico tem sido amplamente mal compreendida. Ver o meu Williams (1988).
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modos desafiadores da discrepância e da relatividade ‘acionam uma exigência pela justificação
ao revelar que há afirmações opostas no que diz respeito à natureza do mundo que
percebemos’. Mas, uma vez aceito o desafio, os modos dialéticos restantes nos confrontam
com um trilema aparentemente fatal. Uma vez que que o que quer que ofereçamos como
justificação para uma dada afirmação ou crença — seja uma prova específica ou um critério
geral de credibilidade — pode estar sujeito a uma exigência de justificação, estamos
ameaçados por um regresso vicioso. Mas não há maneira satisfatória de bloqueá-lo. Diante
de repetidas exigências para avalizar o que afirmamos, finalmente ficaremos sem ter o que
dizer, terminando, portanto, com uma suposição tosca; ou vamos acabar repetindo algo que
já tínhamos dito, raciocinando em círculos. Independentemente do que aconteça, nenhuma
justificação satisfatória terá sido produzida. Diferente do ceticismo cartesiano, o problema
de Agripa não depende de uma partição controversa de nossas crenças em classes
privilegiadas e classes problemáticas. Ele não depende de uma teoria da mente particular.
Não depende também de nenhuma visão particular acerca do que consiste a justificação.
Tudo que ele explora é a exigência do senso comum de que reivindicar uma crença
justificada é abrir-se às demandas de produção de justificação.
O que Fogelin chama de ‘o problema de Agripa’ é geralmente reconhecido como o
problema do regresso da justificação. Fogelin descarta esta maneira de caracterizar o
problema porque acredita que ela exerce uma pressão sutil que induz a pensar que o
problema pode ser solucionado. Mas, de acordo com Fogelin, não temos o direito de
simplesmente supor que o desafio cético deve ser algo que possamos responder de alguma
forma. Talvez não se possa respondê-lo de modo algum.
É tentador supor que — visto que pelo menos algumas de nossas crenças são
justificadas e que o regresso da justificação é claramente vicioso ― deve ser possível colocar
uma das alternativas restantes numa situação melhor. Talvez haja crenças ou justificativas
finais que, ainda assim, não são apenas suposições: aqui chegamos à ideia fundamental das
teorias fundacionistas da justificação; a de que algumas de nossas crenças são
intrinsecamente críveis. Se formos por esse caminho, podemos muito bem acabar achando
que a base última do conhecimento empírico é bastante limitada e, assim, estarmos diante
de uma gama de problemas cartesianos de sub-determinação. No entanto, esses problemas
não surgirão imediata e naturalmente, mas sim em consequência de uma resposta teórica
particular ao ceticismo de Agripa. Em vez disso, se acharmos a estratégia fundacionista
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impraticável — seja porque não há crenças básicas intrinsecamente críveis, ou porque,
mesmo que houvesse, estas constituiriam uma base tênue demais para um sistema útil de
conhecimento empírico —, poderemos esperar encontrar uma descrição satisfatória da
justificação em alguma história sobre como as nossas crenças combinam entre si. Isso levará
a uma forma de teoria da coerência, que afirmará que os modos complexos nos quais os
sistemas de crença se apoiam uns nos outros não devem ser equiparados a uma simples
circularidade. Seguir esta linha poderia também gerar mais problemas céticos: por exemplo,
o problema de associar a coerência, que sobrevém nas relações crença-crença, com a verdade
objetiva. Mas, novamente, esses problemas surgirão somente porque a necessidade de
corresponder ao ceticismo de Agripa nos forçou a explorar uma opção teórica particular. No
entanto, ao supor que uma dessas opções deve funcionar, uma vez que de fato temos crenças
justificadas, estamos tratando o ceticismo como um mero dispositivo metodológico. O que
nos dá o direito de fazer isso, quando um exame atento para tentar responder ao ceticismo
sugere fortemente que o “problema” do ceticismo não tem solução? De acordo com Fogelin,
nenhuma explicação da justificação já elaborada conseguiu passar pelo crivo dos modos de
Agripa: se não ao regresso vicioso, sucumbiu à hipótese ou à circularidade. De fato, ninguém
sequer chegou perto de obter êxito na tarefa estabelecida pelo problema de Agripa, de modo
que “as dúvidas pirrônicas, uma vez levantadas, parecem incapazes de serem resolvidas” (p.
203/263).
O ceticismo pirrônico, então, é ao mesmo tempo intuitivo e irrefutável. Uma vez que
o problema de Agripa pode ser levantado com respeito a qualquer suposta crença justificada,
ele também é geral. Mas seria ele radical? De acordo com Fogelin, sim. O ceticismo
pirrônico propõe “um desafio cético tão robusto quanto se desejaria” (p. 193/250).
Novamente, isso parece razoável. Se as tentativas de se justificar uma crença levam
inevitavelmente à hipótese, à circularidade ou ao regresso, a conclusão não é a de que nossas
justificações são menos que permeáveis, mas sim de que elas são totalmente inúteis. Assim,
se Fogelin estiver certo, minha linha anticética — a qual depende da possibilidade de
diagnóstico teórico — é, na melhor das hipóteses, efetiva somente contra uma forma de
ceticismo que nunca foi a mais fundamental. Ela pode funcionar contra o ceticismo
cartesiano, mas deixará o ceticismo pirrônico intocado. Mas Fogelin está correto?
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4. De forma significativa, do meu ponto de vista, Fogelin não supõe que o problema
de Agripa automaticamente apresenta um desafio cético sério. Ao contrário, sustenta que
ele coloca esse problema somente dados dois compromissos adicionais.
O primeiro é um compromisso com um princípio normativo forte de justificação
epistêmica. O princípio é capturado pela máxima de W. K. Clifford: “é errado sempre, em
qualquer lugar e para qualquer pessoa crer em algo a partir de prova insuficiente”. Em
consequência, Fogelin chama essa doutrina de “cliffordismo”. Ele sustenta, corretamente, a
meu ver, que muitos epistemólogos contemporâneos aceitam alguma versão dela.
O segundo compromisso é com a existência de conhecimento. Para aqueles que
assumem o primeiro compromisso, é claro, isso significa conhecimento segundo os padrões
cliffordianos. Portanto, segundo Fogelin, “a suposição que move os programas
justificacionistas, tanto em seus modos fundacionistas quanto em seus modos não
fundacionistas, é que temos (ou poderíamos ter) conhecimento segundo os padrões
cliffordianos. A tarefa de uma teoria da justificação epistêmica é apresentar como isso é
possível” (p. 115/158). Fogelin sustenta que o problema de Agripa é a pedra na qual esses
projetos afundam. Nenhuma teoria já produzida sequer se aproxima de resolvê-lo.
Supondo que Fogelin esteja certo sobre isso, o que vem a seguir? Teríamos alcançado
o ceticismo filosófico ou apenas o ceticismo sobre a filosofia (cliffordiana)? A resposta é clara:
somente o último, a menos que suponhamos que os padrões cliffordianos estão embutidos
dentro das práticas epistêmicas cotidianas. No entanto, de acordo com Fogelin, o cético
pirrônico não faz essa suposição. Pelo contrário, “o pirrônico simplesmente toma os padrões
do dogmático com seu valor aparente e faz o dogmático cumpri-los. O pirrônico invoca os
Cinco Modos e argumentos semelhantes com propósitos dialéticos” (p. 115-6/158). Eu
concordo, mas o problema é ver como esse uso dos problemas céticos por um filósofo que
não aceita a identidade dos padrões cotidianos e cliffordianos de responsabilidade epistêmica
nos leva a dar um passo na direção do ceticismo filosófico em vez do ceticismo sobre filosofia.
Este problema se torna agudo quando nos voltamos para a descrição de Fogelin da
visão epistêmica do próprio pirrônico. Ele vê o cético pirrônico como alguém
caminhando pelo mundo, afirmando saber certas coisas e, por vezes, afirmando estar
certo ou mesmo absolutamente certo delas. O cético pirrônico participa livremente
das práticas epistêmicas comuns, apoiando-se em todas distinções práticas
incorporadas nelas. Essas práticas são muitas vezes falíveis. Frequentemente, essa
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falibilidade não importa, pois o preço de estar errado não é alto. Quando o custo do
erro se torna excessivo, o cético, como outros, pode buscar maneiras de aprimorar
essas práticas, de modo que as oportunidades de erro sejam reduzidas. Descrito
assim, o cético se parece com o cético moderado de Hume...: cauteloso, agradável e
são. (p. 192/249)
Isso é falibilismo, e não ceticismo radical. Fogelin termina onde eu teria previsto. Na medida
em que se desvia claramente de compromissos filosóficos controversos — tais como o
cliffordismo —, o neopirronismo não consegue chegar ao ceticismo radical. Para gerar um
problema sério, ele teria de aceitar esses compromissos. Mas, então, ele seria alvo do
diagnóstico teórico. De ambas as maneiras, Fogelin não consegue abrir um caminho
intuitivo para o ceticismo radical.
Nada disso é novidade para Fogelin. Ele antecipa a objeção de que o ceticismo que
defende é uma “sopa muito rala” (p. 192/249). Esta objeção não vai ao ponto, ele argumenta,
porque os projetos justificacionistas que afundam no problema de Agripa não estão
arraigados unicamente em ambições epistêmicas adventícias. Mais do que isso, eles surgem
naturalmente da reflexão sobre uma certa característica inegável de nossas práticas
epistêmicas cotidianas: sua fragilidade. Assim, para completar o argumento precisamos
observar essa fragilidade para ver exatamente em que ela consiste.
5. A descoberta de Fogelin da fragilidade do conhecimento não advém diretamente
de uma confrontação com os problemas céticos, mas sim da tentativa de responder ao
problema de Gettier. Geralmente acredita-se que Gettier demonstrou que o conhecimento
não é simplesmente crença verdadeira justificada. Se quisermos manter uma análise do
conhecimento centrada na justificação, necessitamos de uma “quarta cláusula” para
selecionar o tipo de justificação capaz de produzir conhecimento. Fogelin não está de acordo.
Ele acredita que com um entendimento apropriado da justificação podemos ver que os
contraexemplos criados no estilo de Gettier para a análise do conhecimento enquanto
“crença verdadeira justificada” são apenas aparentes.
Fogelin defende — e eu concordo — que a justificação tem dois aspectos. O primeiro
tem a ver com o desempenho ou com a responsabilidade epistêmica. Dizemos que uma
pessoa está justificada em crer que P quando tomou os devidos cuidados ao formar sua
crença. Nesse sentido de “justificado”, é claro que ela pode estar justificada em crer em algo
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que é de fato falso. Mas também usamos “justificado” para avaliar as bases nas quais a crença
de uma pessoa se fundamenta. Quando temos em mente esse sentido de “justificação”,
Fogelin sugere, dizer que uma pessoa está justificada em crer que P significa dizer que suas
bases ou suas razões estabelecem a verdade de P. Uma análise adequada do conhecimento
deve levar em consideração ambos os sentidos. Às cláusulas habituais:
S sabe que P se
i. P é verdadeiro,
ii. S crê em P,
Devemos adicionar tanto uma “cláusula de desempenho”,
(iiip) S chegou justificadamente na crença em P,
E uma ‘cláusula de bases adequadas’,
(iiig) As bases de S estabelecem a verdade de P.
Eliminando a redundância, chegamos à elegante formulação:
S sabe que P se S chegou justificadamente na crença em P com bases que estabelecem
a verdade de P (p. 94/135).
Agora, num típico problema de Gettier, uma pessoa forma uma crença a partir de alguma
inferência que aparentemente confere justificação, a qual, não por culpa dela própria, envolve
uma premissa ou um preceito falso. Todavia, por um golpe de sorte, ocorre que sua crença
é verdadeira mesmo assim. Portanto, ela parece ter uma crença verdadeira justificada que
não estamos dispostos a considerar como conhecimento. Mas tais exemplos, afirma Fogelin,
exploram o duplo aspecto da justificação. Tomamos os exemplos para envolver crença
verdadeira justificada porque a suposta pessoa está justificada no sentido do desempenho:
ela não pode ser culpada por seu erro. Ainda assim, suas razões são de fato falhas. Sua
justificação é inválida porque ignora informações vitais; e é por isso que não estamos
dispostos a dar-lhe o crédito de possuir conhecimento. Desse modo, os exemplos de Gettier
não descrevem casos de crenças verdadeiras justificadas sem conhecimento, considerando
‘justificado’ univocamente. Eles são exemplos de uma pessoa justificada de uma forma, mas
não de outra. Uma vez que vimos que ambos os aspectos da justificação são essenciais para
o conhecimento — na realidade, para a própria justificação — os contraexemplos
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desaparecem e a análise do conhecimento enquanto ‘crença verdadeira justificada’ continua
válida.
Essa é uma boa solução para o problema de Gettier. Mas como ela funciona
exatamente? Ela é realmente tão diferente de uma abordagem da “quarta cláusula” que aceita
os contraexemplos como genuínos e tenta limitar o tipo de justificação que produz
conhecimento? Essa questão é importante, visto que análises de quarta cláusula
naturalmente conduzem a uma distinção entre ceticismo radical e não radical, abrindo o
caminho para uma retirada russelliana, caso seja difícil de se obter o conhecimento.
O próprio Gettier nota que seus exemplos dependem de supor que uma pessoa pode
estar justificada em crer em algo que é falso. Fogelin claramente nega isso, ao menos com
respeito à justificação que confere conhecimento, uma vez que ele considera que o
conhecimento exige razões que estabeleçam a verdade do que se sabe. Mas o que quer dizer
‘estabelecer a verdade’? A resposta óbvia é que as razões da crença estabelecem sua verdade
se elas forem verdadeiras e, logicamente, implicarem a proposição na qual se acredita. Uma
resposta assim faria a explicação de conhecimento de Fogelin um equivalente funcional da
análise da quarta cláusula. Essa resposta também faria o conhecimento depender de uma
concepção de tal forma rigorosa de justificação que seria difícil ver como a fragilidade das
afirmações de conhecimento nos levaria a dar um passo na direção do ceticismo radical. No
entanto, essa concepção não pode ser o que Fogelin tem em mente. Tal visão seria
“chauvinismo dedutivo”, coisa que ele rejeita enfaticamente. Sua visão está próxima (ou à
primeira vista parece estar próxima) de uma concepção de justificação de “alternativas
relevantes”. As razões “estabelecem a verdade” de uma crença se elas excluem todas as
possibilidades relevantes de erros (ou talvez importantes, ou significativas, ou reais). Em
circunstância cotidianas, estas ficam aquém de todas as possibilidades de erro que existem.
Essa é uma característica da justificação em geral, não apenas justificação de algum tipo
especial, do tipo que confere conhecimento. Portanto, acredito que Fogelin pode defender a
afirmação de que sua análise de conhecimento não delineia uma forte distinção entre
conhecimento e crença verdadeira justificada que não é conhecimento. Pelo menos, não
levarei adiante esta linha de crítica.
Essa concepção de procedimentos justificadores ordinários nos força a reconhecer
suas fragilidades. Normalmente fazemos afirmações de conhecimento sérias diante de
possibilidades de erro remotas e não tão remotas que não eliminamos. Isso não precisa ser
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censurado. Com efeito, se os custos de erro são baixos comparados aos da investigação
adicional, essa é a única forma razoável de se proceder. Todavia, ao nos apoiarmos em razões
que não excluem possibilidades de erro significativas, estamos nos expondo a riscos
epistêmicos. Admitimos a possibilidade de provas anuladoras, mas contamos com que ela
não ocorra. Então, quando conseguimos nos safar dela, quando problemas que poderiam
surgir não surgem, em suma, quando somos bem sucedidos em conhecer algo, isso é em
parte uma questão de “graça epistêmica”. Como diz Wittgenstein, “É sempre graças à
Natureza que alguém sabe alguma coisa”.5
Então, na justificação cotidiana, as razões sobre as quais nossas crenças se apoiam
estão abertas à anulação por um argumento, o que quer dizer que uma possibilidade de erro
ignorada é no final relevante. Um argumento assim eleva o que Fogelin chama de “níveis de
escrutínio”. Por causa da possibilidade sempre presente de que o nível de escrutínio possa
ser elevado, os procedimentos justificadores cotidianos, e portanto as afirmações de
conhecimento que dependam deles, são intrinsecamente frágeis. Isso prepara o ambiente
para a explicação elaborada de Fogelin da motivação por trás das teorias filosóficas de
justificação: “Uma tentativa de transcender nosso modo atual de justificação é uma
consequência natural e imediata de perceber sua fragilidade” (p. 203/262). Transcender essa
fragilidade demonstraria que ao menos algumas justificações se ligam às nossas crenças
cotidianas, não importando qual o nível de escrutínio estabelecido. Mas o problema de
Agripa anula todas as tentativas. É por isso que não há resposta final para o ceticismo.
Devemos viver com nossas frágeis justificações cotidianas, confiando à graça que elas nem
sempre nos decepcionarão.
Uma questão razoável a se perguntar é o que isso tem a ver com o ceticismo radical.
Se tem algo a ver, a descrição de Fogelin de como as teorias filosóficas da justificação
emergem da tentativa de compensar a fragilidade dos procedimentos justificadores
cotidianos intensifica a suspeita de que essas teorias refletem um anseio por um nível de
segurança muito maior do que o ordinário. Assim, seu fracasso não levará a um ceticismo
radical, mas a uma decepção na busca pela certeza. Essa é uma forma de ceticismo sobre a
filosofia, não uma forma de ceticismo filosófico. Parece que não estamos chegando a lugar
nenhum.
5 Wittgenstein (DC, 505). As referências subsequentes são dadas por DC e número da seção.
Michael Williams
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Isto nos traz de volta à possibilidade de defender o ceticismo radical sem assumir
para si um compromisso filosófico sério de qualquer tipo: uma façanha que o pirrônico, em
contraste com sua contraparte cartesiana, deveria levar a cabo. Dizer que nossas
justificações cotidianas são menos que permeáveis não significa dizer que elas não têm valor
epistêmico. É sempre uma falácia ir diretamente da possibilidade de erro para a
impossibilidade de justificação. Algum pressuposto oculto deve estar em ação. Qual seria
ele?
A pista é perceber que a justificação cotidiana, como descrita (corretamente) por
Fogelin, envolve um componente externista crucial. Contamos com que certos anuladores
possíveis para nossas afirmações de conhecimento não sejam reais. Se estivermos certos,
saberemos: do contrário, não. Mas o conhecimento depende de estarmos certos, não de nosso
conhecimento de que estamos certos. É claro, isso quer dizer que saber que P não implica
saber que alguém sabe que P. Mas isso também não o exclui. A ideia é antes a de que saber
que alguém sabe que P exige uma investigação à parte. Qualquer que seja a justificativa a
que isso nos leva, ela envolverá seu próprio elemento de graça epistêmica. Mas de um ponto
de vista externista, esse não é o regresso vicioso da justificação ameaçado pelo problema de
Agripa, mas apenas o caráter aberto da investigação falibilista. Uma questão pode sempre
conduzir a outra. Mas isso não significa que não podemos responder questão alguma sem
responder todas.
Alguns filósofos certamente responderão que, no caso da justificação, significa sim.
Mas isso é devido a um compromisso anterior com uma forma forte de internismo. Esse
compromisso exige o que Larry BonJour chama de “acesso cognitivo” a todos os fatores
sobre os quais a justificação epistêmica sobrevém. Se a explicação wittgensteiniana de
Fogelin acerca da justificação cotidiana está correta, esse é um compromisso que as práticas
epistêmicas cotidianas não fazem. Mas é justamente esse o compromisso de que precisamos
para nos levar da fragilidade dos nossos procedimentos justificadores cotidianos, via
problema de Agripa, para a ameaça de um ceticismo radical. Pelos próprios padrões de
Fogelin, o movimento da reflexão sobre nossas práticas cotidianas para as tentativas
transcendê-las não é imediato, tampouco natural.
Observe que, se isso está correto, o “cliffordismo” é uma falsa questão. O cliffordiano
insiste que é errado, sempre e em qualquer lugar, crer em algo a partir de provas
insuficientes. Portanto, pode parecer que o cliffordismo, como Fogelin está inclinado a
O neopirronismo de Fogelin
91
supor, impõe um padrão mais alto de responsabilidade epistêmica do que o normal. Como já
argumentei, isso anularia a naturalidade de qualquer forma de ceticismo derivada do
fracasso dos programas cliffordianos. Mas, de fato, ele não faz isso. Num entendimento
cotidiano de suficiente — que reconhece a inevitabilidade da graça epistêmica —, o
cliffordiano deixa tudo como está. A esse respeito, é como aquele outro lema aparentemente
exigente, o princípio de verificabilidade. Dizer que uma proposição é sem sentido, a menos
que ela seja verificável analítica ou empiricamente, parece dramático. Mas o Princípio é
ineficaz sem algum conceito adequadamente restritivo de verificação empírica. Ele poderia
excluir tudo ou nada.
A objeção a esta altura será que eu estou ignorando o papel crucial desempenhado
pela noção de Fogelin de ‘níveis de escrutínio’ para produzir o ceticismo. Ao contrário do
que ele às vezes sugere, a concepção de Fogelin é a de que não é o cliffordismo em si que
torna o problema de Agripa sério, mas sim o cliffordismo no contexto de um escrutínio no
mais alto nível: escrutínio irrestrito. No contexto do escrutínio irrestrito, o chauvinismo
dedutivo torna-se razoável, mais do que chauvinista. O escrutínio irrestrito exige que
eliminemos todas as possibilidades de erro, o que nunca poderemos fazer. Além disso, um
cético sempre pode aumentar o nível de escrutínio unicamente por meio da reflexão: ao
retroceder de qualquer procedimento justificador cotidiano dado e ao observar o quanto ele
presume como certo, o quanto ele depende da graça epistêmica.
Uma forma de resistir a esse aumento de nível de escrutínio é adotar uma visão
contextualista encorpada do conhecimento e da justificação. No entanto, aos olhos de
Fogelin essa visão distorceria as práticas epistêmicas ordinárias. Para se ter certeza, a
justificação cotidiana tem lugar em contextos restritos, mas isso não significa que nossas
afirmações de conhecimento são relativizadas àqueles contextos. Ao fazer afirmações de
conhecimento, comprometemo-nos a ter razões suficientes para nossa crença. Portanto,
abrimo-nos para o aumento do nível de escrutínio, através de exame reflexivo da atual
incompletude de qualquer razão que tenhamos.
O que é escrutínio “irrestrito”? A resposta parece ser: é o escrutínio que abstrai de
considerações práticas que normalmente nos desencorajam de exigências prementes por
justificação além de um certo (normalmente não muito distante) ponto. Mas embora o
movimento para um tal escrutínio nos permita considerar as possibilidades de erro que
ordinariamente seriam consideradas como remotas demais para serem levadas a sério, ele
Michael Williams
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não nos leva a dar um passo em direção ao ceticismo radical. No máximo, ele demonstra que,
se a investigação fosse sem consequências, poderíamos razoavelmente exigir um grau mais
alto de segurança do que estamos acostumados. Ele não demonstra que a justificação
ordinária é sem valor.
Como pudemos chegar a esta conclusão? Por ora, suponhamos que as justificações
ordinárias são inválidas no contexto do escrutínio irrestrito e também que nenhuma
tentativa de transcender os procedimentos justificadores ordinários é bem sucedida. Como
isso poderia nos dizer algo a respeito dos procedimentos justificadores ordinários em seu
contexto apropriado? Até onde posso ver, há somente um caminho. Temos que supor que o
contexto filosófico de escrutínio irrestrito é privilegiado. Não é difícil ver como a história
deve continuar. Temos que demonstrar que as exigências justificadoras ordinárias são a
soma de dois vetores: um que reflete considerações puramente epistêmicas e, portanto,
impõe exigências estritas à justificação; e outro que reflete as contingências práticas que nos
permitem relaxar nossas exigências epistêmicas “em prol de propósitos práticos”. Essa
imagem da justificação epistêmica leva prontamente a uma conclusão neo-humeana. Em prol
de propósitos práticos somos forçados a ignorar problemas céticos. Mas no escritório, onde
todos esses propósitos são postos de lado e nosso “humor oscilante” pode operar sem maior
controle, esses problemas nos confrontam com força total e nossa confiança cotidiana em
nossas crenças e procedimentos evaporam. Além disso, a visão do ponto de vista do
escritório, enquanto é de certa forma “forçada e pouco natural”, permite uma profunda
introspecção em nossa condição epistêmica. Ela revela a aparência de nossas práticas
justificadoras epistêmica de um ponto de vista puramente epistêmico: o ponto de vista no
qual a probabilidade de nossas crenças serem verdadeiras é a única consideração relevante.
Há fortes ecos de Hume em Fogelin, o qual escreve:
A reflexão sobre possibilidades remotas ou não tão remotas ainda não excluídas pode
nos levar a pensar que quase nunca sabemos as coisas que afirmamos saber.
Enquanto mantivermos essa “concepção intensa das coisas”, não estaremos
inclinados a pensar que sabemos as coisas que normalmente aceitamos sem hesitação
nem que estamos justificados em crer nelas. Quando retornarmos às coisas práticas
da vida, nossos padrões voltarão ao seu nível moderado normal e essa falta de
inclinação passará. Isso é tudo muito humeano. (p. 94/134-135).
O neopirronismo de Fogelin
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Contudo, isso tudo também está muito errado. A distinção implícita entre a prática e o puro
epistêmico é capciosa. O oposto da prática é a teoria, não o puro epistemológico.
Para ver isso, observe primeiro que, embora sofra todo tipo de mudanças contextuais,
o escrutínio simplesmente não desliza entre níveis, do flexível ao moderado e ao intenso e
depois de volta ao início: ele muda de perspectiva tanto quanto muda de nível. Wittgenstein
percebeu isso de maneira aguda. Assim:
DC, 341. As perguntas que formulamos e as nossas dúvidas dependem do facto de
certas proposições estarem isentas de dúvidas serem como que dobradiças em volta
das quais as dúvidas giram.
342. Isto é, pertence à lógica das nossas investigações científicas que certas coisas
de facto não sejam postas em dúvida.
343. Mas a situação não se assemelha a isto: Não podemos investigar tudo e por isso
somos forçados a contentar-nos com suposições. Se queremos que a porta se abra, é
preciso que as dobradiças lá estejam.
Isentar de dúvida certas proposições — temporária ou permanentemente — faz-se
necessário para acertar a direção da investigação, a perspectiva de escrutínio. Essa função
de acerto da direção da não-dúvida seletiva nada tem a ver com os aspectos práticos, uma
vez que ela se aplica até para as investigações mais teóricas.
As mudanças na perspectiva de escrutínio operam independentemente das mudanças
de nível. Como vemos novamente em Wittgenstein:
DC, 163. Verificamos a história de Napoleão, mas não se acaso todos os relatos que
lhe dizem respeito se baseiam em erros de apreciação, falsificações, etc... Porque
sempre que verificamos qualquer coisa, já partimos de pressupostos que não são
verificados. Deverei dizer que a experiência que talvez faça para verificar a verdade
de uma proposição pressupõe a verdade da proposição que a aparelhagem que creio
ver está realmente ali (e por aí fora)?
Na investigação histórica ou científica, há muitas formas de aumentar o nível de escrutínio.
Como historiador, posso gastar muitas horas nos arquivos e investigar escrupulosamente a
proveniência de qualquer documento que eu encontrar. Como cientista, posso desmontar e
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94
remontar meus equipamentos para verificar defeitos; eu posso repetir meu experimento
muitas vezes e continuar indefinidamente. Mas certos tipos de dúvidas não aumentam o
nível de escrutínio: elas mudam o assunto. Preocupações sobre se meu equipamento é uma
ilusão de óptica não é parte de uma abordagem cuidadosa especial para a física experimental.
Ela introduz um tipo de investigação completamente diferente: a epistemologia cética, por
assim dizer. Portanto, quando Hume ou Fogelin vencem seu desespero filosófico, eles não
retornam para padrões mais moderados, mas para buscas diferentes, conduzidas em
qualquer nível de de rigidez epistemológica que os recursos e os custos (incluindo custos de
oportunidade) permitam.
Eu disse anteriormente que, para obter uma conclusão cética radical e geral a partir
do pensamento que procedimentos justificadores ordinários podem parecer inadequados no
contexto de escrutínio irrestrito, esse o contexto precisa ser visto como privilegiado: nas
palavras de Fogelin, “uma estrutura justificadora última que sustente todas as outras” (p.
98/140). Fogelin acredita que exista tal estrutura? É difícil dizer. Por um lado, ele expressa
simpatia pelo “contextualismo pluralista”, uma visão que certamente repudia a existência de
qualquer estrutura assim. Por outro lado, ele nega que ele seja ele próprio um contextualista.
A profunda incerteza de Fogelin é aqui refletida numa incerteza superficial acerca de
haver ou não uma verdade sobre o saber. Se consideramos o contexto de escrutínio irrestrito
como sendo privilegiado e supomos que as dúvidas céticas não podem ser deixadas de lado,
a conclusão deveria ser que nós nunca de fato sabemos algo, embora seja frequentemente
admissível dizer que sabemos (por exemplo, quando temos conhecimento para todos os
propósitos práticos, ou para esse ou aquele propósito prático em particular). Se rejeitamos a
ideia de privilégio em favor de um contextualismo mais aprofundado, a conclusão é a de que
sabemos todos os tipos de coisa: nós as sabemos quando satisfazemos os padrões de
justificação apropriados ao contexto. O fato de que Fogelin está tão incerto sobre se há um
fato da questão sobre o conhecimento sugere fortemente que ele está dividido entre essas
duas opções. No fim das contas, essa tensão o leva a uma inconsistência.
Fogelin espera resolver a aparente tensão em suas concepções da justificação nos
lembrando de que a justificação tem dois aspectos: performance responsável e razões
adequadas. Ele quer afirmar que o primeiro aspecto é contextualmente sensível enquanto
que o segundo não é. Portanto:
O neopirronismo de Fogelin
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Embora sejam sempre feitas de dentro de estruturas restritas, afirmações de
conhecimento não são relativizadas a essas estruturas.... [A] exigência de razões
adequadas não está relativizada a uma estrutura particular com um nível de
escrutínio fixo, embora a avaliação de um desempenho epistêmico responsável
esteja. É essa disparidade entre as exigências objetivas da cláusula de razões
adequadas e as exigências relativizadas da cláusula de responsabilidade epistêmica
que, uma vez percebidas, gera a demanda por teorias filosóficas da justificação. (p.
98/262)
Isso não pode estar certo, mesmo pelos próprios padrões de Fogelin. “Objetivo” aqui
significa “não sujeito a variações contextuais”. Mas as teorias filosóficas da justificação
tentam resguardar um pouco da justificação mesmo na presença de escrutínio irrestrito.
Portanto, “razões adequadas” — ao contrário do que pensamos num primeiro momento —
são agora as razões que “estabelecem a verdade” de uma crença quando não há limites para
o alcance do potencial. Essa concepção de razões adequadas leva imediatamente para o
chauvinismo dedutivo, aquele que já sabemos que Fogelin repudia. Se quer evitar o
chauvinismo dedutivo, Fogelin precisa das exigências para “estabelecer a verdade”, de seu
critério para adequação das razões, o que também será variável de acordo com o contexto.
Portanto, ele não tem uma defesa para o ceticismo.
Por que Fogelin está errado? Em parte, porque ele quer derivar o ceticismo radical
e geral de visões epistemológicas que estão num nível profundamente mais hostil para com
o ceticismo. Como resultado, ele é levado a ignorar formas nas quais “as estruturas
justificadoras” têm a ver tanto com a direção da investigação quanto com o nível de
escrutínio, um descuido que o faz perder uma das linhas de pensamento anticético mais
potentes da epistemologia contextualista. Mas, ao colocar tudo isso de lado, a meu ver,
Fogelin entendeu mal o contextualismo — ao menos a versão que eu defenderia — de uma
maneira fundamental. Ele se afasta dos contextualistas, afirma ele, porque ele não sustenta
que
I. S está justificado em crer que P se P está justificado dentro de uma estrutura na
qual S está operando.
Ele oferece as seguintes razões para negar isso:
Michael Williams
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(a) Posso rejeitar a estrutura justificadora de S (S pode estar usando mapas
astrológicos);
(b) Posso aceitar a estrutura justificadora de S, mas pensar que ele não a usou
corretamente;
(c) Posso conceder que S foi epistemicamente responsável, mas pensar que suas
razões foram anuladas. (p. 96/137).
Eu não vejo por que um contextualista não deve aceitar todas essas possibilidades. Uma
visão contextualista de justificação não obriga que se afirme que uma referência ao contexto
é parte do conteúdo de uma afirmação de conhecimento. Uma afirmação de conhecimento
insta que se sustente que todos os anuladores potenciais relevantes foram eliminados: o
elemento contextual vem para regular quais anuladores são — ou melhor, deveriam ser
considerados — relevantes. Mas isso é consistente com a visão de que as pressuposições
relativas ao que é significativo estão elas mesmas sujeitas a crítica, a qual, se obtiver sucesso,
forçará a retirada de uma afirmação. Mais precisamente, um contextualista sustentará que:
(C1) Todas as justificações têm lugar num contexto de pressuposições de segundo
plano (por exemplo, relativas a quais anuladores potenciais precisam ser excluídos);
(C2) Essas pressuposições podem elas próprias serem desafiadas, mas somente por
uma recontextualização do procedimento justificador original, uma recontextualização que
envolverá pressuposições próprias;
(C3) A recontextualização pode seguir indefinidamente. Mas esse é o caráter aberto
da investigação, não um regresso vicioso da justificação. (Esse é o elemento externista na
contextualização).
Posto desta forma, o contextualismo não tenta insular afirmações de conhecimento de
crítica, como Fogelin parece supor. Quanto ao resultado dessa crítica, o contextualismo
como tal não deve se comprometer antecipadamente. Quando os próprios padrões de
justificação se tornam alvos de crítica, podemos dizer que, ou estávamos justificados (pelos
O neopirronismo de Fogelin
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padrões em vigor previamente), mas não estamos mais justificados (porque os padrões
mudaram), ou podemos dizer que nunca estivemos justificados, porque nossos padrões
sempre tiveram problemas (ou foram mal aplicados). Seria interessante mapear os fatores
que influenciam nossa escolha de descrição. Mas vale notar a possibilidade de perder a
justificação previamente possuída (e talvez recuperando-a subsequentemente), uma vez que
ela aponta para uma potencial instabilidade do conhecimento. Eu acredito que essa
instabilidade é o que Fogelin observa, mas interpreta (mal) como uma dúvida sobre se há
uma “verdade” acerca do saber.
No entanto, surge agora a questão sobre se a possibilidade da recontextualização
abre ou não caminho para o ceticismo: para o ceticismo cartesiano em particular. A ideia é a
seguinte: o cético, ao indagar se sabemos ou não qualquer coisa que seja sobre o mundo
externo, cria um contexto no qual nenhum procedimento justificador que admite a
existência desse conhecimento é legítimo. Isso nos força a basear o conhecimento sobre o
mundo em algum estrato mais primitivo do conhecimento: o conhecimento experiencial.
Mas nenhuma dessas tentativas de fundamentação pode ser bem sucedida, portanto
nenhuma explicação geral do conhecimento sobre o mundo externo é possível.
O contextualista tem duas respostas para isso. A primeira é que não há nada
sacrossanto no domínio sobre o qual o cético cartesiano tenta generalizar. Se negamos que
o conhecimento experiencial é de alguma forma geral e totalmente objetiva
epistemologicamente anterior ao conhecimento do mundo, não veremos o contexto criado
pela tentativa do cético de investigação geral como algo interessante ou importante, pois
nesse caso não veremos mais ‘“o conhecimento do mundo exterior” como um tipo de
conhecimento teoricamente relevante. A segunda é que, mesmo que permitamos ao cético o
recuo reflexivo para que nos projetemos num contexto especial, um contexto no qual o
conhecimento do mundo nos ilude, isso resulta no máximo na descoberta de que o
conhecimento é impossível dentro das condições de reflexão filosófica (“no escritório”). Não
resulta na descoberta, dentro das condições de reflexão filosófica, de que o conhecimento é
impossível em geral. Supor que é, é confundir a instabilidade do conhecimento com a sua
impossibilidade.
Para ir da instabilidade para a impossibilidade, devemos privilegiar as restrições
justificadoras incorporadas no contexto da reflexão filosófica. Devemos supor que elas
revelam as restrições justificadoras últimas e de contexto invariável: restrições ao
Michael Williams
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conhecimento do mundo como tal. Mas, para um contextualista, essas restrições não
existem. Supor que existem é realismo epistemológico: a meu ver, o compromisso metafísico
sem fundamento sobre o qual o ceticismo por fim se apoia. Na medida em que, em sua
explicação da “objetividade” da cláusula de razões adequadas, é atraído para tal
compromisso, Fogelin tem mais em comum com o resto dos neo-humeanos do que ele
imagina.
Referências bibliográficas:
Fogelin, Robert J. 1994. Pyrrhonian Reflections on Knowledge and Justification. New York and
Oxford: Oxford University Press. (Reflexões pirrônicas sobre o conhecimento e a
justificação, tradução Israel Vilas-Bôas, Salvador: EDUFBA, 2017)
Nagel, Thomas. 1986. The View From Nowhere. Oxford: Oxford University Press.
Strawson, Peter F. 1985. Skepticism and Naturalism: Some Varieties. London: Methuen.
Stroud, Barry. 1984. The Significance of Philosophical Scepticism. Oxford: Oxford University
Press.
Williams, Michael. 1988. “Scepticism Without Theory”. Review of Metaphysics, 41(3): 547-
88.
Williams, Michael. 1992. Unnatural Doubts. Oxford: Blackwell.
Wittgenstein, Ludwid. DC. On Certainty. Oxford: Oxford Blakwell, 1969.