MichelCrozier
Para uma análisesociológicado planeamento francês
A história do planeamento francês, em-bora cubra um período de escassos quinzeanos, é rica de ensinamentos, quando con-siderada do ponto de vista do desenvolvi-mento das instituições. O planeamento pode,aliás, ser considerado, quer como um meca-nismo de tomada de decisões, quer como ummecanismo de aprendizagem social. Tantosob um aspecto como sob o outro, ele apa-rece-nos como catalizador, através de umprocesso de reacções em cadeia, de profun-das transformações institucionais.
A SIGNIFICAÇÃO SOCIOLÓGICA DO PLANEAMENTO
Qualquer que seja a sua designação — planeamento, progra-mação ou «economia concertada» — a preparação racional docrescimento económico e do desenvolvimento das actividades co-lectivas tem vindo a impor-se como traço característico e indis-pensável das sociedades modernas. Uma tal actividade pode serexageradamente valorizada ou, pelo contrário, disfarçada e mesmoocultada por motivos ideológicos. Não deixa, porém, de exercersempre uma influência difusa muito profunda. Cada sociedadeindustrial ou pós-industrial elaborou uma ou várias formas deactividade planificadora e começa a constatar a necessidade de aintensificar.
A razão é simples. Quando o ritmo de crescimento era lentoe o progresso económico podia desenvolver-se, ao longo de largos
N. da R. — Este artigo é publicado simultaneamente em Análise Sociale na Revue Française de Sociologie (Avril-Juin 1965, VI-2, pp. 145-163) coma amável autorização do «Centre National de la Recherche Scientifique»,de Paris.
períodos, adentro das fronteiras duma ordem social rígida, o ho-mem podia facilmente considerar que o seu futuro seria moldadopelo jogo harmonioso mas cego do mercado (a «mão invisível») ou,eventualmente, pelas forças igualmente cegas do determinismohistórico. Tais forças eram, por vezes, contestadas; mas eram-nopor motivos morais: e nunca a responsabilidade do resultado dodesenvolvimento final era assumida. Mutações sociais não dei-xaram, é certo, de se verificar; sobrevinham apenas quando aspressões provocadas pelo atraso institucional se tornavam dema-siado fortes. Jamais eram preparadas — planificadas — racional-mente, e tendiam a produzir-se através de crises (económicas ousocio-políticas). Tal modelo de transformação social apenas étolerável enquanto o ritmo da evolução não se torna demasiadorápido e não afecta demasiado profundamente o homem. Masdesde o momento em que a aceleração do ritmo e o peso da sim-ples acumulação dos progressos anteriores exigem que o homemse adapte mais frequentemente a alterações mais profundas,quando na prática a adaptação ao progresso exigiria mais de umacrise por geração, o modelo tradicional da crise, como meio deadaptação, torna-se demasiado oneroso e cria tensões demasiadograndes para poder ser facilmente aceite. Torna-se indispensáveluma forma de regularização racional e consciente, desde o mo-mento em que os mecanismos de auto-regularização tradicionaissão demasiado disruptivos para o complexo e vulnerável sistemasocial, no qual a sociedade se encontra doravante empenhada.
As actividades de regulação não podem, porém, atingir osseus objectivos pela simples virtude das suas intenções. O grandeproblema do planeamento consiste nos meios de acção que podemser utilizados pelo homem a fim de controlar o seu ambientesocial, isto é, as suas próprias actividades. Era natural que asprimeiras concepções desta regulação fossem derivadas do modeloclássico da organização científica do trabalho. Mas a adopçãoduma perspectiva a tal ponto simplista deveria conduzir à ideiade que, acima de tudo, importa tomar decisões correctas e que,uma vez tomadas tais decisões, deverá ser possível executá-lasde modo científico, desde que todas as fontes de poder capazesde falsear a experiência pudessem ser eliminadas. Tal concepçãofoi objecto de forte repulsa no Ocidente, estando por isso na basede numerosas oposições ao planeamento. A sua aplicação nos Es-tados socialistas provou, por outro lado, que esse tipo de planea-mento, aparentemente tão racional, conduzia, a maior parte dasvezes, a resultados bem mais irracionais que os mecanismos deregulação inconscientes ou semiconscientes que se desenvolveramnos países capitalistas.
Mas por que motivo deveria o planeamento associar-se neces-sariamente a um sistema de execução rigoroso, de decisões gerais
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totalitárias? O pensamento moderno sobre planeamento começoua desenvolver-se em nova direcção, desde que se constatou que omodelo clássico de organização, já de si insuficiente para com-preender o funcionamento duma organização simples, era com-pletamente inadequado para a análise do funcionamento dumasociedade e podia ser substituído por modelos probabilisticos muitomais complexos, nos quais se pode dar lugar à liberdade de esco-lha dos diferentes actores económicos. Neste novo tipo de racio-cínio, a discussão não mais se refere ao carácter correcto ou in-correcto da decisão a tomar, mas ao modo como são tomadas asdecisões eficazes e aos meios de que é possível dispor para in-fluenciar essas decisões. Apercebemo-nos assim de que o pontoverdadeiramente sensível consiste na preparação das decisões, eque é nesse estádio que a regulação se pode exercer ao menor custo.Desenvolve-se, pois, uma nova concepção do planeamento, apoiadanuma compreensão mais precisa das múltiplas influências a queas decisões económicas se encontram sujeitas e nos processos deas coordenar e orientar.
Estes raciocínios foram-se desenvolvendo por forma intei-ramente empírica, mas os problemas que deles resultam são,antes do mais, sociológicos. Paradoxalmente, no entanto, o pla-neamento tem sido, até hoje, quase exclusivamente estudado doponto de vista da Economia ou da Ciência Política. Ambos se pro-vam igualmente insuficientes para o abordar na sua nova pers-pectiva.
Do ponto de vista do economista, a questão fundamental con-tinua a ser, com demasiada insistência, a da racionalidade dosresultados da acção. O conjunto dos factores que comandam aestratégia dos responsáveis da acção não chega a ser encaradopor forma realista. Para o politicólogo, por outro lado, o planea-mento apresenta-se como uma série de estruturas formais; a ques-tão consiste, para ele, em saber a quem compete de direito, oua quem deveria competir, tomar tal ou tal decisão, e não em«como se chega a tomar decisões».
Se se tem em vista a preparação das decisões e não o seuconteúdo ou o quadro formal no qual são tomadas, torna-se ne-cessária uma via de aproximação mais ampla. É nesta perspectivaque o recurso à sociologia se revela indispensável.
A importância dos modelos económicos, como forma de racio-cínio, não deve, sem dúvida, ser diminuída. Mas, se o objectivoessencial dos planificadores consiste, fundamentalmente, em in-fluenciar a estratégia de agentes económicos autónomos ou, pelomenos, semi-autónomos, o valor científico dos modelos utilizadospara estabelecer as suas proposições é decerto necessário, masnão pode doravante considerar-se suficiente. Torna-se indispensá-vel conhecer os limites de ordem essencialmente psicossociológica
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que pesam sobre as decisões e encontrar os processos de integrartal conhecimento num raciocínio global.
O novo contexto da tomada de decisão
O planeamento surge num mundo em que o mecanismo dastomadas de decisão tende a transformar-se. Ele próprio contribuipara essa transformação, que simultaneamente constitui a condi-ção essencial da sua aparição. Não é possível compreender o sen-tido e o alcance do planeamento, sem analisar as grandes tendên-cias que governam a evolução e os mecanismos das tomadas dedecisão.
Essas tendências manifestam-se em três perspectivas essen-ciais :
— a imagem que os membros da sociedade formam do quepode ser uma acção racional;
— os modelos de negociação e de relações de poder aos quaisobedecem;
— a importância de que se revestem os processos de in-fluência.
1. A transformação das concepções da racionalidade, a passa-gem dos princípios à estratégia
Na perspectiva geral que prevaleceu até aos anos 30, o fossoentre a esfera dos fins e a dos meios era intransponível. Aquelaestava reservada a discussão dos princípios e dos objectivos,ao passo que esta estava dominada pela busca impiedosa do onebest way e era confiada aos engenheiros. Uma separação a talponto radical tornava extremamente difícil adquirir uma visãorealista do papel desempenhado na acção pelos factores humanos.Suscitava também angustiadas interrogações acerca das relaçõesentre os fins e os meios e das consequências inesperadas da acção,mas não permitia fazer-lhes face1. O maior problema que, po-rém, levantava, era o do poder. Se os fins deviam sempre e exclu-sivamente sobrepor-se aos meios, tornava-se, com efeito, essen-cial saber a quem cabia o direito de elaborar e propor esses fins.As discussões de princípios e as lutas pelo poder exacerbavam-senaturalmente, o que tornava mais difícil fazer participar os indi-víduos e os grupos na orientação da acção.
Durante os últimos vinte ou trinta anos, realizaram-se pro-gressos lentos, mas decisivos, que permitiram ultrapassar essas
1 O livro de Aldous HUXLEY. O Fim e os Meios, é um dos melhores exem-plos. Procurei desenvolver este tema num ensaio intitulado «La névolutioncalturelle», publicado num número especial de Daedalus sobre a nova Europa,Harvard, Dezembro de 1963, a surgir em francês nas edições Rocher.
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contradições e entrever uma nova forma de racionalidade bas-tante mais maleável, capaz de integrar na discussão dos fins oproblema dos meios, isto é, o problema da resistência dos factoreshumanos. Para que tal acontecesse foi necessário abandonar avisão utilitarista, tayloriana, segundo a qual os seres humanosseriam governados apenas por estimulantes económicos, e ultra-passar igualmente a visão psicológica das relações humanas, queas considerava como fundamentalmente determinadas pelas suascomponentes afectivas, para finalmente acentuar a liberdade dohomem, pois este permanece, qualquer que seja a sua situação,um agente autónomo, capaz de negociar a sua cooperação. Estanova concepção do papel que o homem desempenha na acção su-prime a barreira teórica entre os executantes, reduzidos à apli-cação dos meios, e os dirigentes, únicos detentores da possibili-dade de discussão dos fins. Tende-se, assim, a minorar a violênciadas oposições de princípio e a diminuir a intensidade da lutapelo poder. Finalmente, permite, e mesmo favorece, a participa-ção dos grupos. Desvaloriza, pelo contrário, as lições da éticatradicional como princípio de acção. Poderá afirmar-se que setende assim a evoluir, de forma geral, da discussão ética parauma análise da estratégia dos responsáveis da acção2.
A planificação francesa mantêm-se dividida entre as duasconcepções: o raciocínio tradicional sobre os fins (que tipo desociedade desejamos?) e a prática empírica, pouco raciocinadaainda, da organização dos processos de influência (que permiteescapar aos mecanismos da coacção, mas condiciona indirecta-mente as escolhas possíveis em função das condições postas pelosdiversos actores à sua participação). Se a primeira concepção éainda a dominante na inspiração dos planificadores, a segundaafirma-se cada vez mais no seu próprio estilo de acção.
2. As duas faces do poder e a sua transformação
Se examinarmos as relações de poder que se desenvolvem noquadro de qualquer actividade organizada, poderemos distinguirclaramente dois pólos opostos. Por um lado, o poder é concebidoe respeitado como a expressão necessária e legítima do controlesocial indispensável ao sucesso do empreendimento comum, noqual se integram todos os participantes. É ele que assegura orespeito das indispensáveis regras do jogo, que impedem cadaparticipante de obter, por sua situação, vantagens ilegítimas. Por
2 A moral não é, no entanto, mantida à margem da discussão, situan-do-se apenas em outro nível. Não mais se trata de ditar regras imperativasaos responsáveis da acção, mas de raciocinar sobre os fundamentos moraisque regulam, limitam e determinam a sua estratégia.
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outro lado, as relações de poder surgem com um outro aspecto,inconfessável e vergonhoso, susceptível de ser simbolizado pelastécnicas de «chantagem» que lhe são consubstanciais.
As duas faces do poder, por maior que seja a oposição queaparentem, encontram-se sempre associadas. Um superior não podedirigir os seus subordinados sem, de certa forma, abusar da suaautoridade legítima. Se realmente pretende fazer face às pressõese às tentativas de «chantagem» de que é objecto, é-lhe necessáriotomar algumas «liberdades» no que se refere às regras que lhecompete aplicar, de modo a poder ameaçar os seus subordinadosde exercer ou não exercer sobre eles o seu poder, segundo o com-portamento que adoptarem para com ele. Sabendo-se indispen-sável, todo o perito, ou todo o subordinado (e em rigor todo osubordinado é perito em algo), terá, por outro lado, tendência aexercer «chantagem» sobre a organização de que faz parte, ousobre os seus próprios colegas. Não poderá, porém, exercer tal«chantagem» sem se submeter às formas e aos processos da orga-nização, isto é: sem aceitar os seus objectivos. Não poderá ma-nipulá-la se não tiver aceitado ser por ela manipulado. Em ambosos casos se encontram inextrincàvelmente ligadas a face digna ea face vergonhosa; a «chantagem» será utilizada para atingirobjectivos legítimos e o poder legítimo será instrumento neces-sário das operações de «chantagem».
Utilizámos termos do vocabulário moral, porque tais termosconstituem ainda o fundo comum dos juízos em matérias de poder.O poder é bom e nobre, se corresponde ao pacto social oficial-mente reconhecido. Ê mau e imoral, se é utilizado a fim de tirarpartido das vantagens da situação. Estes juízos são, porém, con-traditórios, se apenas permanecem morais.
É na perspectiva da organização que a distinção se pode tor-nar mais sólida. A consagração moral de que o «poder legítimo»se reveste é consequência da extrema dificuldade que toda a orga-nização humana depara ao tentar obter a adesão e a conformidadedos seus membros. Não lhe é possível impor a primazia dos objec-tivos colectivos sobre os objectivos individuais ou sobre os objec-tivos do grupo, sem que aqueles sejam exaltados e sem que opoder de negociação de cada um dos seus membros seja restrin-gido. Considerar este poder como inconfessável «chantagem» cons-titui o primeiro e o mais natural processo de controle. A negocia-ção permanecerá interdita enquanto a liberdade de cada partici-pante implique o risco de pôr em causa a própria existência daorganização.
Durante os últimos cinquenta anos, o direito à negociação foiporém progressivamente reconhecido aos operários e aos sindica-tos, de princípio apenas para certos problemas, depois e gradual-mente, para todos os membros e para todos os problemas, à me-
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dida que as organizações se iam tornando mais complexas, maispoderosas e mais capazes de admitir a contestação.
O reconhecimento das condições reais do jogo tende, porém,a transformar essas condições. O que anteriormente deveria serexpresso por longos rodeios e utilizando argumentos éticos, podeagora resolver-se mais rápida e directamente, uma vez desapare-cidas as antigas interdições. Esta evolução não significa, no en-tanto, que o poder hierárquico tende a dissolver-se, mas que nãomais lhe será possível assentar sobre a sufocação de todo e qual-quer outro poder. Nestas condições torna-se-lhe possível perdero seu carácter «moral» e adquirir, simultaneamente, mais malea-bilidade e eficácia.
Por outro lado, o reconhecimento do que outrora era consi-derado como práticas inconfessáveis não tende a desenvolvertais práticas, mas sim a regularizá-las e a submetê-las a normas.A eliminação progressiva da tradicional dicotomia entre o mundorígido da hierarquia oficial e o mundo obscuro das negociaçõessecretas é comparável à reabilitação pela Psicanálise das pulsõesrecônditas. Confere ao homem uma nova forma de liberdade e deresponsabilidade, com directa repercussão sobre a própria possi-bilidade do planeamento.
3. O papel da influência na estrutura do Poder
Esta tendência para a reintegração dos aspectos ignoradose reprimidos do poder não se desenvolve apenas no interior deconjuntos organizados, mas também nas relações entre organi-zações. Não mais se trata, porém, de apenas integrar tais práti-cas de negociação, anteriormente reprimidas, no processo oficialdas tomadas de decisão, mas de nele integrar simultaneamenteos elementos inconscientes de assentimento (consensus) e as in-fluências semiconscientes que limitam a autonomia teórica dosagentes livres. No que se refere, por exemplo, ao papel dos poderespúblicos, vemos desenvolver-se, ao mesmo tempo, por um lado umfenómeno de organização — o abandono da distância e da reservaformal tradicional do funcionário e o reconhecimento de contactosentre a administração pública e os representantes dos interessesprivados, permitindo uma forma «moralizada» de negociação, epor outro, um fenómeno político — a utilização de novas fontesde influência, como a informação, a investigação e a previsão naorientação das decisões, tornando-se assim mais conscientes, maisracionais e mais exactos os elementos implícitos de consenso quelimitavam já a liberdade prática dos responsáveis da acção.
à medida, porém, que estes canais de influência — que dupli-cam, completam e renovam o sistema de poder — são cada vezmais conhecidos e compreendidos, eles próprios cada vez mais se
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integram no sistema de poder. Gada responsável da acção seesforça por dirigir o seu jogo nos canais de influência de que fazparte, com a intenção de se servir das posições que poderá assimadquirir, a fim de melhor poder negociar numa outra estrutura*Em tal jogo, as regras tornam-se elemento decisivo do controlesocial e as novas tendências afirmam-se, fundamentalmente, naelaboração de regras mais formais, mais públicas e mais cons-cientes.
Neste novo contexto, acontece frequentemente que o quadroadentro do qual cada tipo de decisão deve ser tomado e as regrasformais e informais que devem ser observadas tenham na prá-tica bem mais importância que as recomendações e mesmo asordens comunicadas aos responsáveis da acção pelas autoridadespúblicas.
A originalidade do planeamento francês
à primeira vista, o crescimento da economia francesa, nosúltimos dez anos, não foi tão espectacular como o crescimento daeconomia alemã ou italiana, mas apresentou particularidades ori-ginais susceptíveis de permitir uma compreensão melhor do pro-blema posto pelo planeamento.
a) Tal crescimento era inesperado num país paralisado porcrises políticas periódicas e no qual os empresários haviam desdehá muito adquirido atitudes de conservadorismo e pessimismo.
6) Foi realizado a custos menores que o de outros países(isto é, com um volume de investimentos relativamente maisfraco) 3.
c) Desenvolveu-se através duma nova forma de processo so-cial, o planeamento não-coactivo, cuja vantagem essencial terásido imprimir ao crescimento um certo cunho de ordem e de ra-cionalidade, sem os habituais inconvenientes burocráticos.
O sucesso de métodos a tal ponto originais, num contexto àprimeira vista pouco favorável, pode explicar-se pelas seguintesrazões:
1.° A existência de uma crise profunda, afectando o conjuntoda sociedade e apresentando carácter de urgência, bem como,paralelamente, de um implícito acordo geral (independentementeda violência dos desacordos referentes a toda a demais acçãocolectiva) em dar prioridade à recuperação económica.
2.° A relativa impotência do mundo dos negócios, incapaz deraciocinar, paralela e independentemente, em termos de expansãoe de se adaptar às formas modernas da racionalidade económica,
s Este ponto foi contestado por Hubert BROCHIER, designadamente nodecurso do colóquio de Grenoble sobre Planificação (Maio de l%4i).
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fundadas sobre o raciocínio a médio e longo prazo e não apenassobre o cálculo financeiro corrente e sobre o maltusianismoeconómico.
3.° A semelhante e complementar impotência da Adminis-tração Públicaj que havia, até certo ponto, perdido a confiançanos seus modelos tradicionais de acção, devido a sucessivos desai-res no controle dos preços e mercados, e que simultaneamente dis-punha de um imenso poder sobre o conjunto da economia (dadasas nacionalizações de 1945 e o controle efectivamente exercidosobre os investimentos).
4.° Finalmente, a existência de um escol de altos funcioná-rios, abertos às disciplinas económicas e profundamente devota-dos à tradição do serviço e do interesse geral.
Consequências inteiramente diferentes teriam, porém, podidoresultar da mesma situação de base. O contributo original deJean MONNET (autor do primeiro Plano) e da pequena equipareunida ao seu redor, terá sido o de intuitivamente compreenderque não lhes seria possível avançar sem se porem ao serviço domundo dos negócios e da Administração Pública, procurando obterem troca o seu auxílio, em vez de tentarem forçá-los à obediên-cia4. Foi assim que, naturalmente, se concentraram nos proble-mas em que o acordo era geral (o desenvolvimento a prazo médio)e se recusaram a deixar-se embrenhar, tanto nas lutas políticasem torno às decisões de curto prazo (política monetária, políticafiscal, política dos rendimentos), como nas disputas ideológicassobre o futuro a mais longo prazo.
Importa sublinhar que tais razões de sucesso são razões tem-porárias, que perderam grande parte da sua importância na con-juntura actual. Deverá concluir-se daí que o planeamento nãomais tem razão de ser? Não, pois as organizações humanas e aspróprias sociedades são capazes de aprender à custa das crisesque atravessam, e os métodos que a sociedade francesa, as orga-nizações do mundo dos negócios e a Administração Pública apren-deram, no decorrer deste período de recuperação económica, podemperdurar e continuar a desenvolver-se para fazer face a outrasnecessidades.
Se quisermos compreender o verdadeiro significado do pla-neamento francês, convém assim analisar este novo processo deacção, não só como mecanismo de tomada de decisão, cuja eficá-cia é susceptível de ser comparada à de outros mecanismos, masainda como um processo de aprendizagem, isto é: como um meiode a sociedade descobrir, equacionar e resolver novos problemas.
4 Verdade seja que, simultaneamente, os governos se lançaram em ex-periências dirigistas que suscitaram a hostilidade de numerosos grupos so-ciais e resultaram em novos insucesso.
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Vamos tentar desvendar sucessivamente estes dois tipos deanálise, apresentando algumas observações sobre as duas sériesde problemas seguintes: em primeiro lugar, o problema da cons-tituição de um ou vários papéis específicos de planificadores (pe-ritos económicos dos serviços de estudo — «generalistas» doComissariado do Plano) e o problema das relações entre osplanificadores e o mundo dos negócios (resultando estes dois pro-blemas principalmente do primeiro tipo de análise); em segundolugar, o problema das relações entre os planificadores e a Admi-nistração tradicional, o problema da política dos rendimentos eo problema de regionalização do Plano (que mais directamenteconduzem a uma análise do segundo tipo).
O papel específico dos planificadores
O objectivo do planeamento não consiste na elaboração, emabstracto, de um modelo racional, mas mais propriamente emconseguir influenciar os responsáveis da Administração e dosector privado, de tal modo que não se afastem demasiado do papelque lhes é atribuído num modelo geral, elaborado em parte à suamedida, mas sem excessivas irracionalidades.
Para que os Planos possam ser bem sucedidos torna-se, pois,necessário, assim parece, o seguinte:
a) que seja elaborado um modelo que possa corresponderefectivamente às possibilidades práticas;
5) que se desenvolvam contactos e informações nos dois sen-tidos entre os planificadores e os detentores dos poderes de deci-são, a fim de que possam surgir as verdadeiras limitações impos-tas por cada situação e se defina a margem de liberdade sobre aqual uma influência poderá ser exercida;
c) que os planificadores disponham de meios de negociaçãocom os detentores dos poderes de decisão, que lhes permitamimpeli-los a enveredar pelas direcções escolhidas.
Podem assim distinguir-se, por forma abstracta, três papéisdos planificadores: o papel de perito em Economia, «homem domodelo»; o papel de agente de informação e animação, de «orga-nizador da participação»; o papel de negociador.
A originalidade profunda do sistema francês de planeamentoconsiste em que, pelo menos até à data, as funções de contacto,informação e participação sempre sobrelevaram às de perito (afunção de negociador não foi nunca reconhecida, mas de factosustenta o papel de animador).
a) O papel de perito e o de agente de informação e partici-pação corresponderam, na maior parte dos casos, a grupos sepa-rados. Os membros do Comissariado Geral do Plano, os únicosa serem identificados pelo grande público com a planificação,
foram, acima de tudo, animadores, homens de contacto e agentesde informação. As verdadeiras funções de perito foram desem-penhadas inicialmente pelo Serviço dos Estudos Económicos eFinanceiros do Ministério das Finanças e, em seguida, pela Divi-são dos Programas do Instituto Nacional da Estatística e dosEstudos Económicos (I. N. S. E. E.). Esta separação é, porém,sobretudo administrativa, pois os dois grupos sempre permane-ceram em contacto estreito5.
6) Num tal sistema, os economistas dispõem de uma auto-nomia bastante ampla, pois a separação das responsabilidadesprotege-os contra as ingerências políticas. Não lhes é possível,em contrapartida, refugiar-se no raciocínio puramente teórico,uma vez que continuamente se encontram sob a pressão dos seusparceiros do Comissariado e que eles próprios estão em contactopermanente (nos dois sentidos) com os detentores dos poderesde decisão do sector público e do sector privado para efeitos derecolha de informação (participam, aliás, nas comissões de mo-dernização, tomando parte activa nos trabalhos de um grandenúmero destas).
c) Os membros do Comissariado são «generalistas», cujoprincipal papel consiste em preparar e influenciar as arbitragenspolíticas que deverão ser efectuadas no cume e as inumeráveisnegociações ou quase-negociações que terão de desenrolar-se nabase. Para desempenhar esse papel, utilizam a técnica e a repu-tação de competência e imparcialidade dos «criadores de mode-los», cujas actividades dirigem, aliás, muito de perto. Servem-sesimultaneamente da sua situação privilegiada, a meio caminhoentre o cume e a base (que pode ser extremamente diversa: ramosde indústria, interesses regionais, grupos administrativos depressão, etc) . Fazem-se aceitar como honestos intermediários en-tre estes diversos poderes, na medida em que estão desprovidos<ie qualquer poder formal, não podendo, portanto, ser consideradoscomo ameaçadores. A sua influência é, porém, enorme, visto queo quadro de discussão é imposto por eles, sendo eles ainda quemfornece, ou pelo menos elabora, o essencial dos argumentos «ra-cionais» que poderão ser utilizados por ambos os lados.
Os aspectos originais deste sistema de funções que constituia planificação francesa, por comparação com os sistemas de fun-ções, de outras experiências de planeamento, são, por um lado,a primazia essencial conferida aos «generalistas» do Comissariado,aos quais sempre permaneceram submetidos os peritos e os téc-nicos dos modelos e, por outro lado, o paradoxo de uma relativaseparação dos papéis daqueles e destes, acompanhada porém de
5 Com a entrada de Pierre MASSÊ, a tecnicidade do grupo dirigente doComissariado afirmou-se mais, mas esta nova orientação conduziu à criação<le novas células de peritos à margem do circuito administrativo.
uma forte coesão. A liderança exercida pelos «generalista^» e apersistência do paradoxo da separação e coesão das funções forampossibilitadas pelo pequeno número e pela juventude dos interes-sados (aproximadamente trinta pessoas de cada lado e quase to-dos com menos de quarenta anos), pela inspiração comum quelhes deu a presença de Jean MONNET e dos seus sucessores, eainda pela impressão de viver em comum uma aventura criadora,impressão gerada pelo seu próprio sucesso. Pode admitir-se ahipótese de que esta repartição de funções, à primeira vista inu-sitada, e, de qualquer modo, mais imposta pela força das circuns-tâncias que uma decisão consciente, permitiu encontrar, pelo me-nos durante algum tempo, uma solução razoável para um dos maisdifíceis problemas do planeamento: a conciliação do cálculo eco-nómico racional com os métodos de negociação política indispen-sáveis a uma influência eficaz sobre as decisões práticas. Esteproblema de teoria económica ou administrativa pode ser estu-dado em termos sociológicos, por meio de uma análise dos papéissociais dos indivíduos e dos grupos, bem como das relações queentre eles se estabelecem.
As relações entre os planificadores e o sector privado
A fim de compreender o impacto real exercido pela planifi-cação francesa sobre o sector privado, torna-se necessário deter-minar com exactidão o ponto de partida histórico da experiência.Em 1945, as relações entre o Estado ou a Administração e osector privado eram deficientes; a Administração era rígida e re-pressiva; o sector privado era conservador, não apenas social-mente, mas também e sobretudo economicamente. Entre as duaspartes, a desconfiança e o antagonismo eram extremos. Simulta-neamente, porém — contradição profunda que era uma das cau-sas da debilidade da economia francesa —, era-lhes absolutamenteimpossível, no domínio económico, agir uma sem a outra, pois asua interpenetração era profunda. Assim, sob uma aparência deisolamento e de autoritarismo, cada uma das partes via as suaspossibilidades de acção severamente limitadas pelo antagonismoque a opunha ao seu indispensável parceiro.
A «economia concertada» não podia transformar de um diapara o outro os modelos tradicionais de conduta. As atitudesinfantis e as exigências irresponsáveis dos homens de negóciose dos «grandes interesses»6 correspondem ao comportamento auto-ritário e restritivo da Administração Pública. Nova tendência sedesenvolveu, porém, que permite escapar ao círculo vicioso tra-dicional; foi descoberto um terreno neutral e dele se serviram as
6 Exemplificadas pela recente Declaração do Patronato Francês.
duas partes como campo de aprendizagem para a discussão; gra-dualmente, foram surgindo atitudes mais «permissivas» no seioda Administração e atitudes mais responsáveis no sector pri-vado.
Deste ponto de vista, duas considerações parecem essenciais:1.° devido ao planeamento, os contactos tornaram-se muito
mais numerosos e mais directos, pondo em causa um muito maiornúmero de pessoas em diferentes níveis;
2.° a negociação informal entre os representantes da Admi-nistração e os do sector privado tornou-se totalmente aceitável,pelo menos para certos problemas, enquanto que até então haviasido considerada como absolutamente reprovável.
Os resultados destas transformações podem resumir-se daseguinte forma. Outrora, as decisões colectivas que afectaramo desenvolvimento deviam ser preparadas e postas em execuçãoatravés de um labirinto de negociações formais que expunham osresponsáveis, simultaneamente, aos sobrelanços dos interesses eàs dificuldades das negociações secretas, único processo que tor-nava possível escapar-lhes. Grande parte das decisões assim ela-boradas eram pura e simplesmente inaplicáveis; na sua maiorparte, chocavam com a resistência da totalidade ou maioria dosector privado e do resto da colectividade. O tipo mais simplifi-cado de relação que tende a elaborar-se, para certos assuntos,através da economia concertada, suscitou novas atitudes e novoscomportamentos de ambos os lados. Em função das transforma-ções assim operadas, a Administração tornou-se capaz de mobili-zar para a acção uma parte bem mais ampla dos seus recursos:o sector privado pôde, por seu lado, obter, em condições muitomais favoráveis e sob formas bem mais eficazes, a acção colectivaque lhe era indispensável para desenvolver as actividades econó-micas.
II
AS RELAÇÕES ENTRE OS PLANIFICADORESE AS ADMINISTRAÇÕES TRADICIONAIS
Tende-se demasiado frequentemente a considerar no planea-mento apenas as relações entre o Estado e o mundo dos negócios.O exemplo francês demonstra que o sucesso da planificação de-pende igualmente, e talvez mais ainda, da influência que os pla-nificadores exercem sobre as outras administrações públicas esobre as alterações de comportamento que, directa ou indirecta-mente, nelas determinam.
Mesmo nos países ocidentais menos dirigistas, os Estadossão agentes económicos muito importantes. Um certo número de
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administrações detêm responsabilidades económicas consideráveis.0 Estado francês dispõe, além disso, de muito numerosos e impor-tantes recursos directos e indirectos sobre o mercado financeiro,sendo também de sua responsabilidade um certo número de deci-sões colectivas, capitais para a vida económica.
O Estado francês não podia, porém, utilizar nem fácil, nemeficazmente tal poder, porquanto lhe era em extremo difícil mobi-lizar os seus recursos e elaborar uma política simultaneamentecoerente e aceitável pelos parceiros de que depende. A sua margemde manobra era estreita devido à escassez de recursos; os seusrecursos encontravam-se, com efeito, totalmente afectos a finsestritos que dificilmente podia transformar. Por outro lado, era--lhe difícil elaborar uma política que não fosse abstracta, namedida em que não possuía o conhecimento prático dos meios deacção dos seus parceiros e em que lhe não era possível inserir nosseus modelos o elemento essencial que a estratégia por eles utili-zada constitui.
O planeamento permitiu descobrir uma solução operacionalprática para tais problemas. Donde a sua popularidade entre ajovem geração de altos funcionários franceses. O Plano fornece--lhes orientações amplas, argumentos eficazes e uma nova e maispertinente «filosofia» que o respeito do formalismo jurídico e amanutenção da ordem e da harmonia. Por outro lado, elucidou-ossobre o mundo da economia privada, a cujos representantes épossível, no novo quadro do Plano, uma expressão mais livre erazoável.
Tais encontros e tais práticas não poderiam deixar de acar-retar transformações nas administrações tradicionais. Essastransformações foram lentas, mas as suas consequências adivi-nham-se profundas.
Com efeito, a argumentação em termos de crescimento preen-cheu rapidamente um vácuo e impôs-se pouco a pouco como omelhor critério das opções, o que determinou ou acelerou a desin-tegração do modelo tradicional de acção da burocracia e odesenvolvimento de pressões cada vez mais fortes no sentido dese transformarem as práticas sobre as quais tal modelo assentara.Assim, resultou da planificação, na sequência de uma série derepercussões em cadeia, a transformação do estado de espírito edos métodos tradicionais da Administração Pública. E deste modo,os planificadores tornaram-se em inspiradores das jovens gera-ções do alto funcionalismo.
Tais transformações são sensíveis tanto nas atitudes e na«filosofia» dos funcionários, como nos modos de acção das admi-nistrações, em certos sectores muito importantes, como sejam asFinanças, a Agricultura, o Interior. Não é possível compreenderas numerosas reformas que actualmente alteram a função públicafrancesa, sem ter em conta o fermento que foi a planificação.
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A negociação social: para uma política dos rendimentos
O problema dos salários e rendimentos foi sempre uma dasprincipais fraquezas da política económica francesa.
A experiência do planeamento francês demonstrou que erapossível, pelo menos, privilegiar uma política de investimentos,para a qual existia um consenso suficiente, e ignorar por com-pleto, entretanto, o problema dos rendimentos. Durante largotempo, os planificadores franceses recusaram deixar-se arrastarpor conflitos referentes a opções de curto prazo. Uma tal indife-rença é extremamente criticável do ponto de vista da ortodoxiaeconómica ou mesmo, muito simplesmente, da lógica.
Mais que deliberadamente escolhida foi-lhes aliás imposta.Por outro lado, acarretou inconvenientes múltiplos e evidentes;em particular, ocasionou a necessidade de períodos de estabiliza-ção, durante os quais os objectivos a médio prazo foram tempora-riamente sacrificados. Podemos, no entanto, aceitar a hipótesede que foram a modéstia e este empirismo pouco lógico do Planoque lhe permitiram impor-se e ter êxito numa sociedade entãoabsolutamente impermeável a toda a discussão racional dos pro-blemas sociais.
Era necessário que essa sociedade retomasse confiança nassuas possibilidades de intervenção sobre os mecanismos econó-micos e na sua capacidade de resolver conflitos, para lhe ser final-mente possível encarar e atacar as raízes profundas de instabili-dade que a paralisavam.
Também sob este ponto de vista, o planeamento agiu comoum mecanismo de aprendizagem. Tendo demonstrado a possibili-dade de prever e de, em certa medida, dirigir a acção colectiva,tornou possível acreditar na intervenção. Era assim natural queo governo procurasse utilizar o crédito adquirido pelos planifica-dores, a fim de resolver, ou pelo menos aliviar, as tensões a quenão lhe era possível fazer face. Para os planificadores, o problematornou-se, por outro lado, cada vez mais crucial, pois o seu pró-prio sucesso tendia a fazer desaparecer o «clima de urgência»,que havia sido sua força, diminuía portanto o seu poder de ne-gociação e obrigava-os, caso quisessem resistir eficazmente àsexigências do curto prazo, a intervir eles próprios nesse campo,para nele tentar introduzir maior coerência. Nesta segunda pers-pectiva, pode ver-se um outro mecanismo de aprendizagem ou dedesenvolvimento, em função do qual o sucesso num dado campoobriga a invadir outro campo7.
7 Não é nossa intenção subestimar a importância dos factores económi-cos neste desenvolvimento, designadamente a importância decisiva do estabe-lecimento do Mercado Comum. É a fim de não alongar demasiado a exposiçãoque nos limitamos exclusivamente ao domínio institucional.
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O novo problema que se põe é, na verdade, particularmentedifícil em França, devido a divisão e à falta de competência eco-nómica dos sindicatos (que jamais tiveram ocasião de aprendero que é uma negociação realista), bem como à enorme dificuldadeque o sindicalismo experimenta na comunicação entre militantese dirigentes, e ainda à repugnância do patronato francês pela dis-cussão e pelas soluções contratuais.
O clima geral do mundo sindical não é hostil ao planeamento;muito pelo contrário. A maioria dos dirigentes operários apoia-ram a planificação como um bom método «democrático». Jamaisadmitiram, todavia, que eles próprios nela tivessem de se empe-nhar. Durante algum tempo, a ideia da «planificação democrática»oferecia uma solução. Todo um movimento foi erigido em torno aessa ideia, movimento que consistia em exigir que os trabalhado-res estivessem directamente representados nas instâncias de de-cisão e que o Plano se tornasse obrigatório. Tal movimento desin-tegrou-se, porém, rapidamente, a partir do momento em que ossindicalistas se aperceberam do preço por que teriam de pagaressa extensão da sua influência.
Este insucesso pode, no entanto, ser considerado como umaetapa, e uma etapa frutuosa, se a acção do Plano for analisadanuma perspectiva de aprendizagem social. A modéstia dos objec-tivos que Pierre MASSÉ, Comissário do Plano, conseguiu fazeraceitar, em conclusão dos seus esforços, não deve considerar-se,deste ponto de vista, como um desaire, pois deste modo se tornoupossível iniciar um novo processo de aprendizagem. O que se pre-tende numa tal experiência é tornar os responsáveis da acção, quenegoceiam no campo social, mais conscientes das consequênciasdos seus actos, devendo os indicadores ou «pisca-piscas» automá-ticos, propostos por P. MASSÉ, destinar-se sobretudo a colocar pro-gressivamente os parceiros perante suas responsabilidades.
Simultaneamente, a instalação destes novos mecanismosobriga a reconsiderar, sob um ponto de vista bem mais realista,as relações entre patrões e operários, ou mais geralmente as rela-ções entre grupos sociais.
Subsistem duas ambiguidades fundamentais que, por como-didade de exposição, nos permitiremos analisar em termos polí-ticos:
l.a A ausência de relações de negociação realistas entre as en-tidades patronais e os sindicatos, tanto ao nível do sector comoao nível da empresa, dificulta a criação de um clima de responsa-bilidade; torna-se, na verdade, difícil conceber uma superaçãodos hábitos «negativos» e «demagógicos» tradicionais, sem umalonga aprendizagem de negociações, que por sua vez requer grandeliberdade. Uma passagem demasiado rápida para a liberdade realde negociação faria perigar o mínimo de coerência já adquirido
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e ofereceria o risco de, pelo menos no que se refere ao curto prazo,tornar impossível, durante muito tempo, uma política dos rendi-mentos.
2.a A planificação não-coactiva funda-se sobre o postuladode que, se forem consultados os representantes das organizaçõese forças diversas que deverão pôr em prática as recomendaçõesdo Plano, essas recomendações serão mais realistas e terão maiorprobabilidade de ser aplicadas. Não se trata, porém, de uma re-presentação democrática dos grupos sociais, nem mesmo dos inte-resses. Conferir um poder de decisão aos representantes de gru-pos que não possuem, efectivamente, poder de negociação, ape-nas seria possível se fosse decidida a imposição de uma soluçãoautoritária. Enquanto inserida num regime liberal, a planificaçãonão pode ser mais democrática do que a própria sociedade econó-mica onde existe.
O reconhecimento progressivo destas duas ambiguidades cons-titui o obstáculo fundamental defrontado por esta nova aprendi-zagem, para a qual os planificadores intentam levar a sociedadefrancesa. Deveria permitir pôr em causa preconceitos e estruturastradicionais, referentes às relações entre patrões e operários.
O problema da regionalização do Plano
No que se refere ao problema das regiões, surgem ambigui-dades e contradições do mesmo tipo. Neste campo, poderia parecerextremamente difícil quebrar o círculo vicioso que opõe os gruposlocais irresponsáveis ao autoritarismo mal informado e semprenegativo do Estado.
Esta situação, que é consequência da tradicional centraliza-ção francesa, põe problemas insolúveis ao desenvolvimento econó-mico. A falta de iniciativa e a irresponsabilidade dos parceiroslocais da Administração Pública tornam difíceis, senão impossí-veis, as opções que implicam sacrifício e concentração de recursos,a menos que sejam impostas de maneira autoritária aos interes-sados. Num tal sistema, a democracia trabalha sempre contra oprogresso. A força da pressão igualitária, que ela engendra, é talque desemboca na famosa pulverização dos créditos, praga detoda a política de investimentos, que é, sem dúvida, ainda maisprejudicial ao desenvolvimento económico que as influências polí-ticas partidárias.
Durante largo tempo, os planificadores não se ocuparam destetipo de problemas: trabalharam sobre agregados nacionais e nãotomaram partido sobre as localizações, a menos que se tratassede projectos de importância nacional, ao redor dos quais se tra-vasse luta entre diversos interesses regionais.
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Uma análise mais precisa da rentabilidade económica dasdespesas impostas pelo Plano fez, porém, rapidamente transpa-recer que uma transformação dos métodos de repartição regionaldos créditos era um elemento essencial de toda a política de inves-timento. A fim de conseguir tal transformação, os planificadoresprocuraram uma unidade territorial suficientemente importantepara permitir a utilização de argumentos económicos racionais.Assim, pela força das circunstâncias, os 90 departamentos foramsubstituídos por 21 regiões de programa. Em alguns anos apenas,esta nova circunscrição administrativa inteiramente informal ga-nhou importância e tornou-se a base dos decretos de Março de1964 que constituem a mais importante reforma administrativana matéria, empreendida por um governo francês desde há cemanos. A cavilha mestra da reforma foi o subprefeito económico8,designado para se ocupar dos assuntos económicos locais em liga-ção com o Comissariado do Plano; e a divisão regional do Comis-sariado desempenhou um importante papel na sua génese. Semdúvida, muitos outros factores influenciaram as decisões tomadas,mas o seu primeiro motor e elemento catalizador da transforma-ção, foram os planificadores.
A reforma não engloba, porém, apenas os problemas de estru-tura administrativa. Tem-se desenvolvido até agora de cima parabaixo. Obteve o apoio mais ou menos equívoco das forças econó-micas e sociais que não encontraram possibilidades de expressãono sistema anterior, demasiado rígido e formalista. Foi a vontadecolectiva de transformação desta minoria influente que permitiuo sucesso do empreendimento, face à natural passividade da maio-ria. Esta situação é, no entanto, uma situação de transição, quenão pode manter-se. A criação de Comissões de DesenvolvimentoEconómico e Social, órgãos oficiais de consulta, começa a ter járepercussões de ordem política. A concentração, no quadro regio-nal, de meios de informação e de discussão determina o despertardas reivindicações locais.
Também neste campo surge a dificuldade da aprendizagem daresponsabilidade, numa situação relativamente coactiva, na qualum número demasiado grande de erros levaria a correr o riscode fazer perigar o mínimo de coerência necessário ao desenvol-vimento.
A mais longo prazo, é lícito pensar que só uma reforma políti-ca permitirá criar autoridades locais suficientemente responsáveis
8 Já antes dos decretos de Março de 1964, haviam sido nomeados, emquase todas as regiões, subprefeitos encarregados dos assuntos económicosregionais. Estes funcionários, geralmente jovens, ex-alunos da Escola Na-cional de Administração, foram os primeiros animadores da nova forma deacção regional.
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para fazer desaparecer a pulverização igualitária. Mas, ainda quea experiência se estabilize a um nível intermediário, a interven-ção do Plano terá indubitavelmente desempenhado um papel deci-sivo no acordar do problema. Terá também permitido aos gru-pos, aos corpos administrativos e às administrações interessadas,a aprendizagem de novas soluções.
O futuro do planeamento francês
A história do planeamento francês tem apenas 15 anos deduração, mas é já fértil em ensinamentos, se a considerarmos doponto de vista do desenvolvimento das instituições.
O seu fundamental paradoxo consiste no extraordinário su-cesso da opção de Jean MONNET por uma «filosofia», uma fórmulade acção e um quadro institucional tão contrários à tradiçãoadministrativa francesa. O princípio cardeal a partir do qual sedesenvolveu o Comissariado do Plano foi, com efeito, o de umpequeno grupo activo, agindo pela força da sua irradiação e le-vando os responsáveis (tranquilizando-os em lugar de os amea-çar) a tomar consciência da verdadeira natureza das suas dificul-dades. A «filosofia» muito simples que Jean MONNET conseguiuinculcar aos seus primeiros colaboradores consistiu em que jamaiseles deveriam aceitar que a sua instituição se ampliasse, em nú-mero, para além de 40 pessoas, aproximadamente.
De que modo funcionários, cujas aspirações conduziriam na-turalmente a buscar instrumentos mais pesados para a realizaçãodos seus projectos, puderam ser convertidos a uma tão simples«filosofia», eis um tema fascinante de História e de Sociologiadas instituições, tema através do qual claramente se insinua oproblema da transformação das formas institucionais.
A par do processo de aprendizagem dos homens, adentro deuma instituição, põe-se o problema do próprio desenvolvimentodessas instituições, por exemplo, a negociação e o contágio. Ana-lisemos brevemente alguns exemplos na perspectiva da lógica dasreacções em cadeia. A um nível mais geral, as crises que marca-ram as grandes etapas do desenvolvimento da influência do Planooferecem um campo de investigação de fundamental importância.
Como se explica que o trabalho do Comissariado, durante tãolargo tempo ignorado e incompreendido, se haja tornado tãobruscamente popular? Como se explica que os seus resultadoshajam acabado por atrair a adesão forçosa mas admirativa dasentidades patronais? De que maneira pôde o sector privado bene-ficiar das experiências do Plano? Finalmente, como foi possívelque, por ocasião das reformas financeiras de 1958, liberais e «pia-nistas» se tivessem influenciado mutuamente e estabelecido ummodus vivendi que iria abrir aos planificadores nova e bem mais
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vasta influência, precisamente no momento em que OS seusadversários pareciam triunfar?
O mais grave problema do desenvolvimento da planificaçãopermanece, porém, o problema do seu futuro: como poderá ummodelo de crescimento regular substituir-se a um modelo de re-construção, quando a motivação essencial que constituía sua forçamaior — a saber: o sentimento da urgência absoluta do esforço —parece haver definitivamente desaparecido? Como poderão osprincipais grupos sociais ser conduzidos a enfrentar a verdade dassuas posições respectivas profundas e a negociar por forma rea-lista sobre estes elementos? Qual é o grau mínimo de verdadenecessário para que um sistema social possa funcionar eficaz-mente? Qual o grau de consciência e de racionalidade que é pos-sível a uma sociedade aceitar? E que tipo de jogo, ou de incoe-rência, é necessário, tanto no plano económico como no plano daparticipação ?
(Tradução de Maria de Fátima Sedas Nunes)