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Universidade Federal de So Carlos Departamento de Filosofia e Metodologia das Cincias
Programa de Ps-Graduao em Filosofia
MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZO
Rodrigo Vieira Marques
SO CARLOS 2011
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MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZO
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Universidade Federal de So Carlos Departamento de Filosofia e Metodologia das Cincias
Programa de Ps-Graduao em Filosofia
MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZO
Rodrigo Vieira Marques
Tese de Doutorado apresentado ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Universidade Federal de So Carlos como parte dos requisitos para obteno do Ttulo de Doutor em Filosofia. Orientador: Dr. Richard Theisen Simanke.
SO CARLOS 2011
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Ficha catalogrfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitria/UFSCar
M357mp
Marques, Rodrigo Vieira. Merleau-Ponty e a crise da razo / Rodrigo Vieira Marques. -- So Carlos : UFSCar, 2012. 380 f. Tese (Doutorado) -- Universidade Federal de So Carlos, 2011. 1. Filosofia francesa. 2. Merleau-Ponty, Maurice, 1908-1961. 3. Fenomenologia. I. Ttulo. CDD: 194 (20a)
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Dedico este trabalho minha famlia, solo fecundo e afvel no qual se encontram minhas razes.
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AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, ao Dr. Richard Theisen Simanke, por sua orientao
segura, valiosas sugestes e, principalmente, por sua considerao de que,
antes de tudo, o pensamento uma experincia. Tambm ao Dr. Pascal
Dupond, especialmente por ter possibilitado meu acesso aos inditos de
Merleau-Ponty, alm de suas sugestes e cordial ateno. Por fim, a todos os
que, direta ou indiretamente, propiciaram a percepo que fez nascer o
presente trabalho.
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Una est, quae reparet seque ipsa reseminet, ales: Assyrii phoenica uocant; non fruge neque herbis, sed turis lacrimis et suco uiuit amomi. [...] haec ubi quinque suae conpleuit saecula uitae, ilicet in ramis tremulaeque cacumine palmae unguibus et puro nidum sibi construit ore, quo simul ac casias et nardi lenis aristas quassaque cum fulua substrauit cinnama murra, [...] se super inponit finitque in odoribus aeuum. inde ferunt, totidem qui uiuere debeat annos, corpore de patrio paruum phoenica renasci; cum dedit huic aetas uires, onerique ferendo est, ponderibus nidi ramos leuat arboris altae [...] fertque pius cunasque suas patriumque sepulcrum perque leues auras Hyperionis urbe potitus ante fores sacras Hyperionis aede reponit. (Ovdio). Nichts ist drinnen, nichts ist drauen, denn was innen ist, ist auen.(Goethe).
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RESUMO
Este trabalho parte de uma leitura da filosofia de Merleau-Ponty centrada na
noo de Crise da Razo, fundamentando-se no pressuposto de que se
trata de um conceito fundamental da fenomenologia contempornea. No
pensamento cartesiano, j era possvel encontrar a ideia de crise, porm,
tratava-se da constatao de uma crise das cincias. Algo semelhante
havia tambm em Valry, especialmente ao se falar de uma crise do
esprito. A novidade de Husserl estava justamente em mostrar que a crise,
tal como ele a vivia, era mais profunda, abalava a prpria Razo. Este
trabalho assume a tarefa de mostrar que, no se limitando a uma crise das
cincias, do esprito ou da prpria Razo, Merleau-Ponty discute uma crise
presente no prprio homem, ou antes, nos diversos pontos de vista que se
tem a seu respeito. neste sentido que o seu projeto filosfico se
fundamenta, em primeiro lugar, na tentativa de estabelecer um dilogo entre
os pontos de vista da filosofia e da cincia. Por conseguinte, justifica-se uma
investigao da divergncia destes pontos, procurando elucidar no s o
cenrio no qual o conflito se encontra, mas tambm a sua gnese. Do mesmo
modo, partindo de uma compreenso merleau-pontiana da crise, por fim,
este trabalho assume tambm a tarefa de se indagar acerca da repercusso
desta mesma crise na relao do saber filosfico consigo mesmo, logo, no
modo da prpria filosofia entender a sua histria, estando, pois, a
importncia desta incurso no ensejo de explicitar o que, para Merleau-
Ponty, seria uma possvel via de superao.
Palavras-chave: Filosofia Francesa. Maurice Merleau-Ponty. Fenomenologia.
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ABSTRACT
This work takes its point of departure in Merleau-Pontys Philosophy,
centered in the notion of Crisis of Reason, basing itself on the
presupposition that this is a fundamental concept of contemporary
phenomenology. In the Cartesian thought, already it was possible to find the
idea of the crisis, however, it was the finding of a crisis of sciences.
Something similar was also in Valry, especially when he speaks of a crisis
of spirit. The novelty of Husserl was exactly in showing that the crisis, as he
lived it, was deeper, shook the Reason itself. This work assumes the task of
showing that, not limiting to a crisis of sciences, of the spirit or of Reason
itself, Merleau-Ponty discusses a present crisis in the man himself, or rather,
in the diverse points of view that has about him. In this sense, his
philosophical project is based, primarily, on the attempt to establish a
dialogue with the points of view of the philosophy and of the science.
Therefore, an inquiry of the divergence of these points, is warranted,
elucidating not only the scenario in which the conflict is, but also its genesis.
Likewise, starting from a Merleau-Pontian understanding of the crisis,
finally, this study also assumes the task of asking about the repercussions
of this crisis in the relation of philosophical knowledge to itself, then, in the
way of his own philosophy to understand its history, being, therefore, the
importance of this incursion in the desire to explain what, according to
Merleau-Ponty, would be a possible way of overcoming.
Keywords: French Philosophy. Maurice Merleau-Ponty. Phenomenology.
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RSUM
Ce travail a son point de dpart dans la philosophie de Merleau-Ponty,
centr dans la notion de Crise de la Raison , en sappuyant donc sur la
prsupposition quelle sagit dun concept fondamental de la phnomnologie
contemporaine. Dans la pense cartesienne, ctait dj possible de trouver
lide de crise, cependant, elle sagissait de la constatation dune crise des
sciences . Quelque chose de semblable se passait avec Valery, notamment
quand il dit dune crise de lesprit . La noveaut de Husserl tait juste
montrer que la crise, telle quil la vivait, tait plus profonde, brahlait la
Raison elle-mme. Ce travail assume la tche de montrer que, en ne sen
tenant pas une crise des science, de lesprit ou de la Raison elle-mme,
Merleau-Ponty met en question une crise prsente chez lhomme lui-mme,
dans les divers points de vue quon a sur lui. Cest pouquoi que son projet
philosophique, tout dabord, se fonde sur la tentative dtablir un dialogue
entre les points de vue de la philosophie et de la science. Une recherche de la
divergence des ces points de vue, donc, elle se justifie en cherchant
lucider non seulement le scnario dont le conflit se trouve, mais aussi la
gnse de celui-ci. De mme, en partant dune comprhension merleau-
pontienne de la crise, en fin de comptes, ce travail assume la tche de se
demander sur la rpercussion de cette mme crise dans le rapport du savoir
philosophique soi mme, donc, dans la manire dont la philosophie elle-
mme comprendre son histoire, en tant, alors, limportance de cette
incursion dans le dsir dexpliciter ce qui serait, daprs Merleau-Ponty, une
possible voie de dpassement.
Mots-cl: Philosophie Franaise. Maurice Merleau-Ponty. Phnomnologie.
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SUMRIO
INTRODUO .................................................................................... PRIMEIRA PARTE O MAL-ESTAR DA RAZO E O RETORNO AO MUNDO-DA-VIDA: O ECLIPSE DOS ABSOLUTOS .................................................... Captulo I Da Crise do Esprito Crise da Razo: o Mundo-da-Vida ............................................................................................... 1.1. O mal-estar da Razo: A Crise do Esprito ............................. 1.2. A Fenomenologia e a Crise da Razo: os limites do
cientificismo e o retorno ao Mundo-da-Vida ............................. 1.3. A Rckfrage e a reduo fenomenolgica: a Lebenswelt como
proposta de superao do naturalismo, como Ursprungsklrung, como retorno ao mundo pr-copernicano ...
Captulo II Os limites do Mundo Clssico e o Teatro Cartesiano: o problema da representao ............................................................. 2.1. Um ponto de partida: O mundo clssico e o mundo moderno .. 2.2. Descartes e o problema da representao: o
operacionalismo de Descartes e a intuitus mentis ..................... 2.2.1. O operacionalismo cartesiano e a identificao de lux e lumen . 2.2.2. A intuitus mentis e o positivismo da viso ............................... 2.2.3. A similitude e o arbtrio cartesiano do signo ............................ 2.2.4. Caminhos de desconstruo: a reabilitao do sensvel e o
enigma do olhar ....................................................................... 2.2.4.1. A descorberta da afetividade das cores ............................... 2.2.4.2. Os limites da noo clssica de perspectiva ......................... 2.2.4.3. O enigma do olhar e os impasses da representao ............. 2.2.5. A transformao da luz natural e a releitura do Cogito ............ 2.3. A gnese da Crise nas relaes com a Natureza ...................... Captulo III O pseudocartesianismo e o Realismo Cientificista: o paradoxo do Menon ........................................................................ 3.1. Apresentao do problema: Descartes e o cientificismo ........... 3.2. A psicologia clssica o objetivismo cientificista ........................ 3.3. A tradio intelectualista e seus cenrios ................................. 3.4. As runas do pensamento e o conflito dos pontos de vista: a
crise na compreenso do homem ............................................... 3.4.1. O conflito dos pontos-de-vista na compreenso do homem: a
compreenso do intervalo do saber cientfico e do saber filosfico ...................................................................................
3.4.2. A encarnao do sujeito e as faces da subjetividade encarnada: esquema corporal e corpo prprio ......................
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SEGUNDA PARTE CRISE E FILOSOFIA: O SENTIDO DA FNIX .................. Captulo IV A Crise do Entendimento e o Sentido da Histria: a Historiografia Filosfica .................................................................. 4.1. A experincia filosfica da Verdade ......................................... 4.2. A crise do entendimento e os entraves da historiografia
clssica: o problema da histria .............................................. 4.3. O horizonte intelectualista, de fundo cartesiano, presente na
histria da filosofia: a ordem das razes Da leitura de Descartes historiografia filosfica ..........................................
4.4. Merleau-Ponty e a Histria do Pensamento: a filosofia interrogativa, o impensado [das Ungedachte], o sentido da Fnix .......................................................................................
4.4.1. Um ponto de partida: Da ordem das razes s razes da ordem a busca pelo sentido da ordem cartesiana ..............
4.4.2. O entrecruzamento de objetividade e subjetividade: o impensado [das Ungedachte] ...................................................
4.5. A experincia do pensamento nas trilhas de uma experincia da linguagem: a filosofia interrogativa, o sentido da Fnix ..................................................................................
CONSIDERAES FINAIS ..................................................................... ANEXOS: A arqueoriginria Terra no se move E. Husserl (Traduo) .......... Notas sobre o desenvolvimento de meus conceitos K. Goldstein (Traduo) ...................................................................................... Textos de Candidatura ao Collge de France M. Merleau-Ponty (Traduo) ...................................................................................... Referncias ...................................................................................
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INTRODUO A noo de crise, certamente, no um privilgio do
pensamento contemporneo. Ao contrrio, ela oculta talvez uma pretenso
que sempre tenha assombrado o saber filosfico, pretenso esta que os
antigos poderiam chamar de [hybris], ou seja, uma excessiva
confiana, um desmedido orgulho, semelhante iniciativa dos homens em
querer superar o poderio dos deuses. Em que consistiria este
desmensuramento? Onde estaria a ausncia de seu oposto, a saber, a
virtuosa prudncia, aquilo que os romanos to bem nomearam bona mens, a
capacidade do homem em reconhecer a sua prpria humanidade? Se
pensarmos na insero deste termo no discurso positivista, podemos talvez
compreender o sentido deste excesso. Trata-se justamente da crena ou do
mito de que uma poca esteja isenta de conflitos, que seja possvel falar de
uma passagem do caos ordem, ou melhor, que entre dois sistemas
ordenados, podemos encontrar uma zona de transio catica, cujo
ordenamento se dissipa no exato instante em que, mediante uma nova
configurao, um outro ordenamento ocupe o seu lugar. Da o ensejo de
romper, na histria, com toda e qualquer faixa de turbulncia, at que,
magicamente, os conflitos sejam dissipados.
Pensando assim, de certa forma, j no pensamento antigo, no
encontraramos dificuldades em situar momentos de crise. O problema se
agrava, contudo, quando no mais partimos do pressuposto de que a
histria siga um movimento linear, deste modo, fundada em uma
circularidade, as faixas de conflitos se converteriam antes em nervuras,
viriam a impregnar cada linha que constitui a vivncia que se tem de cada
momento, ou melhor, de cada acontecimento histrico. Qual seria, ento, o
sentido de se falar em crise? Seguramente, no mais como a passagem da
desordem ordem. Antes como o aceno de que, como no teatro, na
emergncia de um novo drama, torna-se preeminente a mudana do cenrio.
Pensando nestas consideraes, ao falar de uma crise das cincias, no era
esta ideia o que Descartes tinha em vista, e cometeramos aqui at mesmo
um equvoco, a legitimao de uma iluso retrospectiva, se lhe exigssemos
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um compromisso com a circularidade da histria, ou mesmo, com a prpria
histria, paisagem que lhe era desconhecida, terra estrangeira a que seu
pensamento no chegara a avistar. Ao falar de crise, o que alimenta o
pensamento cartesiano a constatao de que algo faltava s cincias de
seu tempo. Partindo de uma unidade da sapientia humana, como confiar em
uma construo projetada por vrios arquitetos? O que faltaria s cincias
era o mesmo que nortearia os meandros do projeto filosfico de Descartes,
ou seja, a descoberta de um fundamentum inconcussum capaz de lhe
garantir a segurana to almejada. Neste alicerce inabalvel, repousaria o
Cogito e suas certezas apodticas, frutos de um mtodo bem elaborado e
dirigido pelos princpios da Razo. A crise tinha, pois, uma soluo: seguir
os preceitos da Prima Philosophia, demonstrar s cincias, galhos de uma
nica rvore, a necessidade de se nutrirem de uma mesma raiz, ou seja, da
Metafsica conduzida pela luz natural.
No caso de Valry, j tendo sido fundada a razo clssica, a crise
parecia avanar um pouco mais adiante, ela quase invadia o terreno do
Esprito. Curiosamente, neste caso, ainda no totalmente tematizada, mas
ferozmente vivida, ser a prpria histria que incitar este sentimento: a
Guerra, o assombro da contradio, a ameaa de uma eminente derrocada
no s dos ordenamentos de uma poca, mas de seu saber. Porm, ao
contrrio de um terremoto, a repecurso de um possvel abalo no poderia
significar outra coisa que o esquecimento ou enfraquecimento desta prpria
razo, ainda tida como legtima. Ao falar em crise, Valry apenas ressentia
um tempo no qual as luzes do esprito comeavam a se esconder por trs
das nuvens da ignorncia, do no-saber. O que caberia filosofia?
Resguardar o seu tesouro, proteger-se e denunciar o que poderia vir a ser
um crime de lesa-majestade. assim que a gerao de Merleau-Ponty, antes
de ter sentido na carne as consequncias de uma Guerra, tambm iria viver
este descompasso da Razo. Mas por que a Guerra? No seria confundir o
conceito de crise, por sua vez, abstrato, com os infortnios dos
acontecimentos? No seria alimentar o historicismo, ou antes, misturar o
transcendental e o emprico? Nesta ressalva, j encontramos a resposta. Se a
vivncia da Guerra comeava a afetar o terreno do Esprito, porque, de
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fato, a crena que se tinha nele, de certa forma, ao menos nas paisagens de
pensamento que procuramos descrever afinal, no nos esqueamos dos
libertinos barrocos , no tinha um papel coadjuvante, mas principal,
basilar. assim que, pouco a pouco, encontramos na compreenso do que
antes era uma crise de valores, agravada pela desumanizao das relaes
sociais e polticas, a clivagem para uma crise dos fundamentos que lhes
serviam de alicerce. Quais seriam as consequncias disto?
Em primeiro lugar, o sentimento de que, mais do que uma crise
das cincias, o que emergia era uma crise da prpria Razo, ou melhor, de
um determinado projeto de Razo. assim que, no pensamento husserliano,
ir se configurar o sentimento de uma crise engendrada e agravada,
especialmente, pelo desenvolvimento das cincias do homem e das cincias
em geral. Seria o reconhecimento de uma zona de turbulncia, o
engendramento do mito positivista? No caso da fenomenologia, a mudana
de um cenrio que, por sua vez, no se concentrava em uma fase a partir da
qual se anunciava uma evolutiva mudana, mas encontrava antes sua
gnese na poca que lhe antecedera, da o sentido de uma arqueologia
fenomenolgica da razo, um eclipse dos absolutos. Qual seria o papel da
Filosofia? No caso de Husserl, fazer com que a Razo, comparada a uma
Fnix, renascesse, porm, nas trilhas de um [tlos] que encontrava
suas origens e projeto no pensamento grego. Seria esta a percepo que
Merleau-Ponty tivera de sua poca? Ser assim que entender os abalos dos
fundamentos da Razo atestados, na cincia em geral, pelos trabalhos de Le
Roy e Duhem; nas cincias do homem, pelas pesquisas psicolgicas,
sociolgicas e histricas; na filosofia, pelo ceticismo inserido pelo assdio do
psicologismo, do historicismo e do naturalismo? No final das contas, como se
daria a sua recepo da crise husserliana?
Em um curso dado no Collge de France, ao pensar na ideia de
crise, Merleau-Ponty procurava justamente elencar os seus rastros. Onde
podemos encontr-la? Para o filsofo, haveria uma crise da racionalidade
que se estabelecia nas relaes entre os homens, nas relaes com a
Natureza, na experincia da verdade presente nas relaes entre a cincia e
o mundo vivido e, por fim, na prpria filosofia e sua possibilidade
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(MERLEAU-PONTY, 1996, p. 40). Constantemente, nas Notes du Travail e
nos Rsums des cours, Merleau-Ponty voltava-se para sua poca, procurava
entender o seu tempo, e isto porque, ao perceber os limites da Metafsica,
tinha, por pretenso, elaborar uma nova ontologia. Isso se torna clatant
principalmente nas notas, ainda inditas, por ocasio de seus Projets des
livres1. Em uma destas notas, encontramos uma indagao do filsofo que
nos chama a ateno, trata-se de uma nota datada de 25 de setembro de
1958, que, a nosso ver, constitui o corao de seus derradeiros projetos
filosficos, assim como um caminho de leitura para os seus primeiros
trabalhos. Encontramos ali uma pergunta acerca do sentido das runas, de
uma Ruinenlandschaft unsere Tage ou confuso na qual se encontra o
pensamento moderno, assim como expressa, nomeadamente, Eugen Fink ao
afirmar que vivemos em runas de pensamentos (MERLEAU-PONTY,
2000b, p. 299).
Ora, sabemos que, de certo modo, a existncia de runas indica,
sobretudo, os sedimentos e os despojos do que antes poderiam ter sido os
monumentos de uma civilizao antiga. Esta imagem no gratuita em
Merleau-Ponty (2000b, p. 40), ela faz parte daquele movimento arqueolgico
que ele assumira como componente de seu mtodo filosfico.2
Vislumbramos, todavia, nesta imagem, duas possibilidades de compreenso:
runa pode significar tanto despojos ou destroos, quanto confuso,
desordem, caos. O interessante que, neste caso, a confuso tem nos
destroos o signo do que poderia ter sido a sua origem. Podemos falar,
assim, que o filsofo denunciava, antes de tudo, uma proto-runa, uma
arqui-runa, uma runa originante e originria das discordncias e confuses
1 Algumas destas notas, arquivadas na Biblioteca Nacional da Frana, j foram transcritas por alguns pesquisadores da obra merleau-pontiana, dentre eles, Lefort, Barbaras e Dupond. Quando se tratar das notas ainda inditas, vale salientar que aqui seguiremos a transcrio de Dupond. Iremos identific-las como NBNF. Os smbolos [ ] fazem referncia paginao da Biblioteca, e os smbolos ( ) indicam a paginao segundo os manuscritos de Merleau-Ponty. 2 Cf. Merleau-Ponty (2000b, p. 40): Or, si la perception est ainsi lacte commun de toutes nos fonctions motrices et affectives, non moins que des sensorielles, il nous faut redcouvrir la figure du monde peru, par un travail comparable celui de larchologue, car elle est ensevelie sous les sdiments des connaissances ultrieures.
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da filosofia consigo mesma e com as cincias. Como o interesse do filsofo
no era indutivo, (MERLEAU-PONTY, 2000b, p. 25)3 o seu empreendimento
s poderia beirar as tnues fronteiras entre epistemologia e ontologia, mais
do que o pressuposto conflito j resolvido, em alguns comentadores do
filsofo, sem nunca ter existido radicalmente na obra merleau-pontiana ela
mesma entre fenomenologia e ontologia.4 O que constitui, portanto, esta
proto-runa que tanto inquieta o filsofo? O que est, de fato, em jogo na
constatao de que vivemos em runas de pensamentos (MERLEAU-
PONTY, NBNF, [2], (1))? Qual seria a razo destas runas? No seria o
sentimento de que a filosofia tem muito mais a investigar e a compreender
do que a pergunta, constante entre alguns de seus contemporneos, se a
verdade estaria com Toms de Aquino ou com Engels?5
Para o filsofo, a nosso ver, no nada de outro que a iniciativa
reflexiva em definir a filosofia em relao a certos seres, atitude esta
presente no naturalismo, no humanismo e no tesmo, os quais, para
Merleau-Ponty, nos escombros de uma crise da Razo, teriam perdido todo o
seu sentido (MERLEAU-PONTY, NBNF, [4], (2)). Esta iniciativa desdobra-se
no que se tornara um dos grandes alvos do dsaveu do filsofo: o neo-
criticismo ou intelectualismo, especialmente na compreenso da
subjetividade em sua relao com o mundo, e o operacionalismo
3 Mais en mme temps, notre recherche demeure philosophique. Notre traitement des faits reste distinct du traitement inductif et scientifique. Il nest pas question pour nous de considrer la parole ou la pense comme la simple somme des faits de la langue ou des faits de pense, tels quils se sont produits ici ou l, telle date. En chacun deux, nou essayons de saisir ce qui reprend et sublime le prcdent, anticipe le suivant, lmergence dune structure, dune champ dexprience, qui en font, plus quun vnement, une institution. 4 A nosso ver, Merleau-Ponty no est preocupado em se situar seja no campo da fenomenologia, seja no da epistemologia, seja no da ontologia. Sua inteno fazer filosofia e filosofar atravessar todas essas provncias, haja vista que o que move a reflexo antes uma questo do que a legitimidade de um selo que confirme a participao em uma seita filosfica. 5 Lide quen France, aujourdhui, des tres humains se divisent sur la question de savoir si saint Thomas et Engels ont raison ou tor dans ce quils disent de la Nature cette ide me parat consternante quand on pense tout ce quil y a connatre ou comprendre. On ne peut en quelques mots esquisser une philosophie. Disons seulement quil faudrait une philosophie de ltre brut et non cette philosophie de ltre sage qui voudrait faire croire quil y a une manire de rendre le monde explicable et une tude attentive du sens, un autre sens que le sens des ides, un sens fuyant et allusif auquel manque toute puissance directe sur les choses, quoi quil y paraisse et sy dveloppe pour peu que certains obstacles aient t levs. (MERLEAU-PONTY, 2000b, p. 299).
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naturalista presente no tratamento das cincias6. No estaria na
divergncia radical destas clivagens, em seus equvocos e paradoxos, mesmo
indiretamente, um dos pressupostos e indcios do sentimento de crise que
passaria a assediar epistemologicamente e filosoficamente o sculo XX? Do
mesmo modo, conforme indicamos, se o naturalismo, o humanismo e o
tesmo perderam toda a significao em nossa cultura (MERLEAU-PONTY,
2000a, p. 219), se todas essas concepes no deixam de imiscuir-se umas
nas outras (MERLEAU-PONTY, 2000a, p. 219), fazendo, pois, do problema
ontolgico um problema dominante, o que resta a um pensamento
conduzido pelas categorias do mundo clssico? Como sair deste labirinto?
Onde estaria o fio de Ariadne?
Para Merleau-Ponty, no estaria na tentativa de to-somente
denunciar os limites da cincia, nem muito menos no ensejo de recuperar o
que seria um autntico projeto de Razo e seu [tlos]. Da que a prpria
noo de crise, ao ter sido direcionada para o conflito dos pontos de vista
que se tem acerca do homem, deveria ela mesma sofrer um eclipse,
convertendo-se na oportunidade de reencontro daquilo que,
verdadeiramente, encontra-se nas fibras da prpria Razo, portanto, da
possibilidade que se abre filosofia de repensar a si mesma e de rever, em
sua ontologia, suas relaes com as outras cincias e saberes, voltando-se,
pois, para o fundo de silncio do qual ela mesma emergira, ou seja, para
uma experincia prvia do mundo. Seria ali que, para Merleau-Ponty,
poderamos encontrar o fio de Ariadne a nos guiar nos labirintos construdos
pela metafsica clssica. Ora, pensando neste modo de encarar a crise, de
purificar suas pretenses positivistas, empreendimento de
6 Nisto estaria, inclusive, aquilo que, mutatis mutandis, segundo Horkheimer, deve ser entendido como uma espcie de doena da Razo: Se fssemos falar de uma doena afetando a razo, essa doena no deveria ser entendida como tendo acometido a razo em algum momento histrico, mas como inseparvel da natureza da razo na civilizao, tal como a conhecemos at ento. A doena da razo consiste no fato dela ter nascido da necessidade humana de dominar a natureza... (HORKHEIMER, 1947, p. 176). Neste sentido, Horkheimer acrescentaria at mesmo que se poderia dizer que a loucura coletiva que hoje se estende dos campos de concentrao at as aparentemente mais inofensivas reaes da cultura de massas j estava presente, em germe, na objetivao primitiva, na primeira contemplao calculadora do mundo pelo homem (HORKHEIMER, 1947, p. 176).
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[Ktharsis] que teve seu incio no pensamento husserliano, que
procuraremos estruturar o nosso trabalho.
O nosso texto se encontra subdivido em duas partes. Na
primeira parte, que dispomos em trs captulos, tratamos do que seria um
mal-estar da Razo, presente em uma espcie de eclipse dos absolutos e
a proposta de um retorno ao Mundo-da-vida, finalizando com a tematizao
da crise que, no entender de Merleau-Ponty, estaria presente, conforme j
indicamos, no conflito dos pontos de vista da cincia e da filosofia, tal como
se manifesta na compreenso do homem. Na segunda, formada por um
captulo, versamos sobre a relao existente entre Crise e Filosofia. Qual
ser o percurso que iremos percorrer em cada parte? Primeiramente, vale
lembrar que no nos pautaremos aqui, na disposio das questes que
procuraremos elucidar, na rgida obedincia do que seriam as mutaes
sofridas pelo pensamento de Merleau-Ponty desde La Structure du
comportement at Le Visible et lInvisible, desobrigando-nos da necessidade,
presente em alguns leitores do filsofo, de estabelecer um quadro evolutivo
cujas restries impossibilitariam um dilogo presente dentre os diversos
momentos da obra. De modo diverso, partiremos antes do que, ao longo de
sua filosofia, parece unir cada momento de seu projeto, no nos parecendo a
ideia de evoluo apropriada ao seu modo de filosofar. Evidentemente,
certo que, por exemplo, a noo de conscincia perceptiva, nos ltimos
trabalhos, perde o seu espao para o que nos revela a f perceptiva que nos
une ao mundo. No entanto, tendo por centralidade os problemas filosficos,
e no a ciso fenomenologia e ontologia, o que procuraremos mostrar
justamente o modo pelo qual elas se integram no pensamento de Merleau-
Ponty.
partindo deste pressuposto que, na primeira parte,
notadamente no terceiro captulo, ao tratar da crtica, feita pelo filsofo, ao
pensamento cartesiano, tentaremos integrar La Structure du comportement e
Lil et lesprit, ou antes, mostrar como neste ltimo texto, ao contrrio de
se tratar to-somente de uma filosofia da arte, o que encontramos o ensejo
de desconstruo do complexo ontolgico no qual fomos relegados pelo
pensamento cartesiano. Assim sendo, apresentando o dilogo de Merleau-
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Ponty com Husserl, desejamos explicitar o modo como se dar, no filsofo, a
recepo da Krisis, contrapondo, por conseguinte, o itinerrio que cada um
deles percorrer na elucidao etiolgica dos descompassos nos quais se
encontra a Razo. assim que, enquanto Husserl privilegia o projeto de
matematizao de Galileu, Merleau-Ponty opta por um dilogo com
Descartes e com a tradio cartesiana. No entanto, nem por isso havendo
um descompasso radical, apesar de algumas divergncias no que se
refere a certos aspectos da genealogia da lgica, antes vinculadas, a nosso
ver, ao que constitui o projeto de cada filsofo , e isto quando o que est em
jogo o convite a uma experincia prvia do mundo, da o dilogo que se
estabelece, no primeiro captulo, entre a Rckfrage husserliana e a verso
merleau-pontiana da Ursprungsklrung, em outros termos, o mundo pr-
copernicano e a Natureza, tambm chamada por Merleau-Ponty,
especialmente nos inditos, como mundo do silncio. No segundo captulo,
trataremos tambm do que seria, em Descartes, o positivismo da viso, a
passagem da viso dos olhos para a intuitus mentis, para o olhar do
Esprito, no deixando de contrapor, pois, o modo como Merleau-Ponty ir
encarar estas questes. A partir disto, procuraremos mostrar o vnculo que
se estabelece entre Descartes e a cincia clssica, o Grande e o Pequeno
Racionalismo, descrevendo, portanto, o que, para Merleau-Ponty, seria a
gnese da crise no dilogo com as cincias.
Tendo por referncia estas consideraes, centraremo-nos no
que, de acordo com Merleau-Ponty, viria a constituir uma crise na
compreenso do homem. Ser a este desfeixo que conduzir os captulos
anteriores. Comearemos, pois, mostrando a proposta merleau-pontiana de
um dilogo entre filosofia e cincia, e isto mediante um solo que lhes
comum, uma espcie de terceira dimenso entre um discurso em primeira
pessoa e um discurso em terceira pessoa. Por fim, a partir da compreenso
de uma subjetividade encarnada, especialmente na Phnomnologie de
perception, o nosso objetivo ser o de mostrar, entre filosofia e cincia, a
compreenso merleau-pontiana acerca do homem, privilegiando as noes
de esquema corporal e corpo prprio como as duas faces de uma mesma
experincia corporal, logo, inserindo a compreenso do homem, na condio
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de ser encarnado, dotado de corpo, que seu prprio corpo, no entre-deux de
um dilogo com o que a cincia moderna nos apresenta sobre o esquema
corporal e a filosofia nos diz sobre a vivncia do corpo prprio. Na
compreenso do humano, segundo Merleau-Ponty, no lhe haveria um saber
que servisse de via nica, mas um conjunto de pontos de vistas a nos revelar
as vrias faces do fenmeno humano, o modo originrio de uma
subjetividade encarnada que est no mundo, que o habita, tem a sua carne
entrelaada com a prpria carne do mundo, o que, a nosso ver, expressa
justamente, na ruptura com a concepo cartesiana de homem, presente na
gnese da crise, o que poderia vir a ser uma via de superao.
Na segunda parte, o foco ser a descrio do que, para alguns
dos contemporneos de Merleau-Ponty, seria a presena da crise no prprio
exerccio filosfico, na relao da filosofia consigo mesma e,
consequentemente, com sua prpria historiografia. Como partimos do
pressuposto de que a crise na filosofia seja antes a crise de um certo modo
de filosofar, consideraremos o que, para o filsofo, viria a constituir um dos
embaraos da historiografia filosfica, presentes no que seria o modo de
compreender a histria do pensamento. Da o direcionamento, no quarto
captulo, ao horizonte aberto pela indagao de que compreenso de histria
se efetivaria na historiografia filosfica e seus meandros, e isto no intuito de,
em seguida, tomando como referncia a crtica de Merleau-Ponty ao mtodo
estrutural-gentico de Guroult, tentar encontrar os rastros destas questes
na histria do pensamento, ao menos os de um determinado modelo
historiogrfico, aquele que nos poderia remeter s questes que se
encontram na gnese de uma Crise da Razo. assim que notamos em
Merleau-Ponty, na leitura de Descartes, no a legitimao inquestionvel de
uma ordem das razes, mas a busca do que seria, na obra cartesiana, as
razes da ordem, o que nos possibilitaria explicitar, na compreenso
merleau-pontiana da historiografia filosfica, em conformidade com uma
histria viva e suas astcias, uma histria vertical, por conseguinte, a
compreenso da experincia filosfica como a busca de um impensado, e
no, sendo isto o que justamente se nega, uma dissecao de estruturas
explcitas no encadeamento das ideias de um texto. Este modelo de leitura se
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enquadra nos horizontes de uma crise da filosofia no para to-somente
confirm-la, mas precisamente para explicitar que o que realmente poderia
condenar a filosofia ao nons-sens seria justamente o esquecimento de que
ela , sobretudo, interrogao, o que no conduz ao relativismo da leitura,
mas, pelo contrrio, abertura do texto a uma experincia viva entre o leitor
e o escritor, a subjetividade do filsofo que estudamos e a nossa
subjetividade, o que no significa desrespeitar as suas ideias, mas convid-
las a um dilogo, buscando reencontr-las como momentos de uma vida
pensante, uma vez que, o contrrio, seria releg-las respeitosa, majestosa
e cruel indiferena da biblioteca. Em suma, para Merleau-Ponty, quando nos
contentamos a dizer de um filsofo apenas aquilo que este mesmo filsofo
gostaria que dissssemos, perdemos, efetivamente, o que seria uma histria
autntica do pensamento, esquecemo-nos de que suas ideias tambm se
encontram na tradio que com ela tentara dialogar.
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PRIMEIRA PARTE O MAL-ESTAR DA RAZO E O RETORNO AO MUNDO-DA-VIDA:
O ECLIPSE DOS ABSOLUTOS
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CAPTULO I DA CRISE DO ESPRITO CRISE DA RAZO:
O MUNDO-DA-VIDA Maintenant, sur une immense terrasse dElsinore, qui va de Ble Cologne, qui touche aux sables de Nieuport, aux marais de la Somme, aux craies de Champagne, aux granits dAlsace, lHamlet europen regarde des millions de spectres (VALRY, 1943, p. 993). Tendo ns prprios vivido duas ou trs crises profundas de nosso modo de pensar a crise dos fundamentos e o eclipse dos absolutos matemticos, a revoluo relativista, a revoluo quntica , tendo sofrido a destruio de nossas antigas ideias e feito o necessrio esforo de adaptao s ideias novas, estamos mais aptos que nossos predecessores a compreender as crises e as polmicas de outrora
(KOYR, 1991, p. 13).
1.1. O mal-estar da Razo: a Crise do Esprito
O historiador do pensamento francs, Castelli Gattinara, ao
tratar do perodo do entre-guerra, inicia seu texto com a bela frase de Valry:
ns, as civilizaes, sabemos agora que somos mortais.7 Trata-se da frase
de um texto de 1919, La crise de lesprit. No entanto, acompanhando vis--
vis as reflexes de Valry, que podemos melhor compreender os sentimentos
de espanto e de indagao que ele procura expressar. Neste sentido ainda,
ao pensar em outros filsofos, especialmente nos que iriam viver os
paradoxos e desdobramentos desta poca, a ideia de crise parece-nos, mais
do que uma inveno ou uma especulao intelectual, a vivncia do
crepsculo de certezas, at ento inquestionveis, a demolio de paisagens
de pensamentos, cujas runas deixaram marcas indelveis no imaginrio
europeu. Ora, pensando na filosofia de Merleau-Ponty, no seria entre essas
trincheiras e abalos ssmicos de uma crise dos fundamentos ou, conforme
veremos, de uma determinada concepo de razo, que a encontraramos?
No estaria o filsofo tambm, mutatis mutandis, em um dilogo
epistemolgico com as questes inerentes, conforme expresso de Koyr, a
7 Nous autres, civilisations, nous savons maintenant que nous sommes mortelles (VALRY, 1943, p. 988).
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uma espcie de eclipse dos absolutos? Aqui se encontra, pois, uma das
pretenses de nossa tese, pretenso que talvez nenhuma novidade encerre
em si, a saber, a ideia de que no compreende bem o projeto filosfico de
Merleau-Ponty quem desconsidera sua pertena experincia e ao
imaginrio de uma crise da Razo, ou como diria Gattinara, das diversas
crises que passaram a assolar o pensamento clssico e seus sonhos,
cabendo-nos, contudo, a tarefa de tentar explicitar, por sua vez, o sentido e o
peso que essa ideia tivera em seu pensamento (GATTINARA, 1998).
A intrigante frase de Valry, ao falar de uma crise do Esprito,
apesar de seu peso semntico, insere-nos ainda nas perspectivas de um
modo bastante francs de se encarar o problema que eclodia e se
manifestava com a emergncia, cada vez mais crescente, de um estado de
desrazo, da haver crises e no a Crise , da a crise francesa no ser
a Krisis alem, dado que cada um a viveria da sua maneira.8 Valry parece
nos dizer que, at ento, nunca se tinha tido o sentimento, e de um modo
to trgico, de que a Europa poderia ter o mesmo destino das antigas
civilizaes, que seus autores mais clebres poderiam ter seus escritos
transformados em miragens, em enigmticos fragmentos, tais como as
comdias de Menandro. Apesar da multiplicidade de crises que afloram em
vrios setores, segundo o poeta, o que afligiria a alma europeia seria aquela
que se sucederia no prprio mbito do esprito, ali ela seria muito mais
intensa. Logo, no sem sentido que ele nos dir que a [...] a crise
intelectual, mais sutil, e que, por sua prpria natureza, toma as aparncias
mais enganadoras (porquanto se passa no reino mesmo da dissimulao),
esta crise deixa dificilmente apreender o seu verdadeiro ponto, a sua fase
(VALRY, 1943, p. 990). Mantendo ainda uma simpatia por uma concepo
clssica de razo, a percepo da crise ainda era a percepo de to-somente
uma fase crtica, na qual ningum pode dizer aquilo que amanh estar
8 Cest le paradoxe de la crise : on est certain de lincertitude. Mais cest aussi ce qui lui permet de se manifester de diverses faons, de sarticuler selon des conjonctures historiques et gographiques particulires. Parce que la crise franaise nest pas la Krisis allemande. Ce que lon dfinit dhabitude comme la pense de la Krisis dans ce chaos gnial que fut la Mitteleuropa ne recouvre pas en effet totalement ce qua t la problmatique de la crise en France durant la mme priode.(GATTINARA, 1998, p. 23).
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morto ou vivo em literatura, em filosofia, em esttica. Ningum sabe tambm
quais ideias ou quais modas de expresso estaro escritas na lista de
perdas, quais novidades sero proclamadas (VALRY, 1943, p. 990). Sendo
assim, em um trecho que consideramos fundamental, apesar de longo,
Valry nos d, independente de seu modo de interpretar essa crise do
esprito, um diagnstico muito claro do que se passava:
A esperana, certamente, permanece e canta a meia voz: Et cum vorandi vicerit libidinem/ Late triumphet imperator spiritus [Vencedor do apetite voraz, que o esprito soberano estenda longe o seu triunfo]. No entanto, a esperana apenas a desconfiana do ser em relao s previses precisas de seu esprito. Sugere que toda concluso desfavorvel ao ser deve ser um erro de seu esprito. Os fatos, todavia, so claros e impiedosos. H milhares de jovens escritores e de jovens artistas que esto mortos. H a iluso perdida de uma cultura europeia e a demonstrao de impotncia do conhecimento em saber o que quer que seja; h a cincia atingida mortalmente em suas ambies morais, e como desonrada pela crueldade de suas aplicaes; h o idealismo, dificilmente vencedor, profundamente ferido, coberto de crimes e de erros; a cobia e a renncia igualmente ridicularizadas; as crenas confundidas nos campos, cruz contra cruz, [lua] crescente contra [lua] crescente; h os prprios cticos desconcertados por acontecimentos to repentinos, to violentos, to comoventes, e que brincam com os nossos pensamentos como o gato brinca com o rato, os cticos perdem suas dvidas, as encontram, as perdem, e no sabem mais se servir do movimento de seu esprito. A oscilao do navio foi to forte que os candeeiros mais suspensos chegaram a derramar (VALRY, 1943, p. 990-1)
Contudo, poderamos nos indagar, como a filosofia francesa
respondera a essas questes? No que diz respeito cincia, vale salientar o
contrapeso e a importncia que teve, nesta poca, a insurreio de uma
filosofia do esprito. contra essa cincia ferida moralmente, contra a
aplicao no questionada de suas formulaes, contra a estreita viso de
cincias como a fisiologia e psicologia nascentes9, que se levantaram as
diversas verses do espiritualismo francs. As divergncias nasciam a partir
da convico de que tais pressupostos no condiziam com o que prprio da
9 contra um discurso da exterioridade que deixa escapar a pergunta pelo homem e seu sentido, contra um tempo que, esquecendo-se de se comprometer com a verdade, caracterizava-se, conforme Le Senne, por uma monstruosa aliana entre cincia e Estado: aquela fornece o conhecimento tcnico e este o torna o instrumento de seu capricho desptico (LE SENNE, 1951, p. XVIII).
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filosofia francesa10. No entanto, mesmo colocando-se, de imediato, como a
resposta da filosofia francesa aos ataques do cientificismo e aos horrores da
Guerra, o espiritualismo tinha tambm, em seu calcanhar de Aquiles, a
defesa de uma certa tradio cartesiana, no chegando, por conseguinte, a
alcanar todos os sentidos e consequncias de um retorno experincia
humana. Deste modo, no procurando desconstruir os princpios que
alimentavam as ideias de seus antpodas, por fim, acabaram por
compartilhar dos mesmos prjugs que pensavam ter superado. Talvez neste
ponto, na falta de explicitao das prprias fibras de um posicionamento
contra o esquecimento da condio humana, encontrava-se a razo pela
qual, para Valry, o peso da crise se articulava no modo como essa mesma
crise encontrava o esprito, o estado intelectual de um tempo que, mesmo
no ousando histori-lo, o poeta esboara, em poucas linhas, a sua
fisionomia: trata-se de um tempo complexo, carregado de informaes e de
conhecimento de todas as ordens que se entrecruzam, cuja desordem
encontra-se justamente na livre coexistncia em todos os espritos
cultivados das ideias mais dessemelhantes, dos princpios de vida e de
conhecimento mais opostos (VALRY, 1943, p. 992). Em outros termos, na
raiz dos problemas, encontramos como originante o modernismo ao qual a
Europa se entregou.11 frente a essa confuso, aquela que permitia em
10 No dizer de Lavelle, [...] por excelncia, uma filosofia da conscincia (LAVELLE, 1942, p. 7) e, como tal, possui em si [...] um aspecto metafsico e um aspecto psicolgico que ela no pode separar um do outro (LAVELLE, 1942, p. 8). Com efeito, preciso negar a ideia de um esprito entendido a partir de sua capacidade de autoproduo. Como acentua Lavelle: preciso comear chegando a um consenso em torno de trs pontos essenciais que permitem perceber o que se deve entender pela palavra esprito. O primeiro que o esprito uma atividade, alis, a nica atividade que merece propriamente este nome, sendo toda atividade material antes causada e sofrida do que causadora e agente. (...) O segundo ponto que o esprito no absolutamente, como se cr, uma obscura espontaneidade da qual nos limitamos a conhecer os efeitos, sem nada saber do poder que possui e que se exerceria fora de ns e sem ns. (...) O terceiro ponto, finalmente, permite reavaliar e estender o sentido da palavra experincia que, todavia, foi reservada por muito tempo experincia do objeto (LAVELLE, 1942, p. 268-9). 11 Je ne dteste pas de gnraliser la notion de moderne et de donner ce nom certain mode dexistence, au lieu den faire un pur synonyme de contemporain. Il y a dans lhistoire des moments et des lieux o nous pourrions nous introduire, nous modernes, sans troubler excessivement lharmonie de ces temps -l, et sans y paratre des objets infiniment curieux, infiniment visibles, des tres choquants, dissonants, inassimilables. O notre entre ferait le moins de sensation, l nous sommes presque chez nous. Il est clair que la Rome de Trajan, et que lAlexandrie des Ptolmes nous absorberaient plus facilement que bien des localits
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um nico livro encontrarmos os ecos dos bals russos, de Pascal, de
Nietzsche, de Rimbaud, da pintura, da cincia etc. que surge, apesar de
alguns contra-sensos, uma das mais belas imagens de Valry: o Hamlet
europeu que observa milhares de espectros, o Hamlet intelectual que medita
sobre a vida e a morte das verdades, que medita tendo, em suas mos,
crnios ilustres como os de Leonardo da Vinci, de Leibniz, de Kant, de Hegel,
de Marx e de tantos outros. Crnios que, por sua vez, ainda refletem seus
sonhos, ou melhor, os sonhos da razo, os mesmos que, paradoxalmente,
pensando na pintura de Goya, poderamos dizer, podiam ocultar e suscitar
monstros. Caminhando entre os abismos da ordem e da desordem, o
Hamlet valeriano certamente no poderia abandonar seus crnios sob pena
de deixar de ser o que se . O que fazer? As ltimas palavras de Valry,
nesta carta, parece-nos indicar o que, para ele, poderia ser um possvel
caminho:
Adeus, fantasmas! O mundo no precisa mais de vocs. Nem de mim. O mundo que batiza com o nome de progresso sua tendncia a uma nitidez fatal, busca unir aos benefcios da vida as vantagens da morte. Uma certa confuso reina tambm, mais ainda um pouco tempo e tudo se esclarecer; ns veremos, enfim, aparecer o milagre de uma sociedade animal, um perfeito e definitivo formigueiro (VALRY, 1943, p. 994).
O paradoxo da crise, aquele que, conforme Gattinara, trata-se
da certeza de que no se tem certezas , evidenciava que a certeza com a
qual se pensava a Verdade como algo que seria preciso desvelar
substituda, cada vez mais, pela inquietude frente a uma verdade por
construir e, portanto, impossvel de alcanar, posto que apenas um
horizonte ideal (GATTINARA, 1998, p. 25). Da a afirmao de Bachelard:
no final do ltimo sculo, acreditava-se ainda no carter empiricamente
unificado de nosso conhecimento do real (BACHELARD, 1970, p. 11). Em
concomitncia com a crise da concepo clssica de razo, podemos notar
moins recules dans le temps, mais plus spcialises dans un seul type de moeurs et entirement consacres une seule race, une seule culture et un seul systme de vie. (VALRY, 1943, p. 992).
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que no s os saberes, mas o prprio eu perde sua unidade; a razo
categorial torna-se uma pretenso ingnua ou uma iluso histrica; os
fundamentos se abalam e faz da estabilidade tambm uma iluso; o
abandono da materialidade das coisas perde-se em proveito do vazio
mascarado pela linguagem e pelo devir fantasmagrico das palavras;
resumindo, o fio de Ariadne se perde. Logo, justifica-se o fato de
encontrarmos uma mesma experincia, embora vivida em cada um de um
modo diverso, e, por conseguinte, os grandes signos do declnio, a Grande
Guerra, o prprio termo crise, os problemas da linguagem e do signo, o
sentimento de um mal de mar em terra firme, que Kafka descreveu, mas
que se encontra um pouco por toda parte (GATTINARA, 1998, p. 27). Ora,
ser essa tambm a percepo da gerao de Merleau-Ponty, teria ela ido
alm das constataes do Hamlet valeriano? Quanto a isso, nos dir
Gattinara:
[...] Enquanto as geraes de Brunschvicg e de Valry tentavam salvar o que pode ser, manifestando uma simpatia indiscutvel pela certeza da razo clssica, a gerao de Bachelard, De Broglie e Aragon encara a crise como uma revoluo na qual preciso dar uma coerncia ao discurso das cincias. As cincias e a razo cientfica podem ser salvas se as fundarmos na crise, no movimento de multiplicao que a determina, no problema (problemas) que suscita e, portanto, em ltimo caso, no incerto. A crise pode ser definida como uma luta que faz triunfar a precariedade e a mudana sobre a estabilidade [...] (GATTINARA, 1998, p. 28).
a partir desta mudana que, segundo o historiador, a
eternidade cede seu lugar a um tempo precrio (vergnglich), entrelaado,
uma mistura de experincia e espao, que a evidncia cartesiana se
converte em uma iluso, que se torna possvel seguir o movimento por mais
desordenado e labirntico que seja (GATTINARA, 1998, p. 29). Mas, no
estaria tambm a filosofia de Merleau-Ponty em meio a essas constataes,
indagaes, hesitaes e perspectivas que marcariam a gerao de
Bachelard, De Broglie e Aragon? O que nos diz Merleau-Ponty sobre os
percalos filosficos originados pela derrocada de um esprito absoluto?
Certamente, os seus primeiros trabalhos versam justamente sobre esta
questo. Contudo, gostaramos de nos centrar em um nota da
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Phnomnologie de la perception. Ali, a partir de uma crtica endereada
especialmente a Alain e Lagneau, filsofos tidos geralmente como integrantes
do espiritualismo francs, de modo particular, no que diz respeito ao
posicionamento da anlise reflexiva frente percepo, parece que se
delineiam algumas pistas para a resposta que procuramos. Encontramos ali
um breve esboo dos impasses criados por uma concepo equivocada do
esprito, o que talvez tambm esteja na gnese do que viria a ser a sua
crise, no caso, a crise do esprito. O interessante da crtica de Merleau-
Ponty no est simplesmente na explicitao dos equvocos presentes nas
concepes destes filsofos, mas no sentimento presente neles de que aquilo
que eles postulavam, a saber, a ideia de uma conscincia absoluta, poderia
no conter toda a verdade. J no seria este sentimento o pressentimento de
algum declnio?
Ao se tratar o sujeito como um naturante universal, um
esprito absoluto, o que restaria, ao esprito, seria to-somente [...] o
sistema da experincia, compreendido a meu corpo e meu eu emprico,
ligados ao mundo pelas leis da fsica e da psicofisiologia (MERLEAU-PONTY,
1999, p. 618-9). assim que o pensamento reflexivo acaba por ocultar [...]
o n da conscincia perceptiva porque investiga as condies de
possibilidade do ser absolutamente determinado e deixa-se tentar por essa
pseudo-evidncia da teologia de que o nada no coisa alguma (MERLEAU-
PONTY, 1999, p. 618). Qual a consequncia disto? A experincia da
sensao se torna apenas o desdobramento psquico oriundo das
excitaes sensoriais e, como tal, no pertence ao sujeito, encontra-se
divorciada dele, o que como consequncia, tendo em vista que o sujeito
visto como um naturante universal impossibilita qualquer ideia de uma
gnese do esprito, uma vez que, existindo o tempo mediante este esprito,
no se poderia conceber a possibilidade de recoloc-lo no tempo. O esprito
passa a ser visto, pois, sem historicidade, vivendo em uma unidade indelvel
com o verdadeiro. Todavia, se o eu emprico no fosse outro que o
desdobramento deste esprito absoluto, como entender o erro, onde inserir a
opacidade? Esta a questo que Lagneau se fazia em suas Clbres
Leons. Em razo disso, que, em seu pensamento, a sensao deixa de ser
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um objeto constitudo em uma rede de relaes psicofsicas. Logo,
concluir Merleau-Ponty, se o sentir no pertence ordem do constitudo,
se o Eu no o encontra desdobrado diante de si, porque, justamente,
[...] ele escapa ao seu olhar, est como que recolhido atrs dele, est ali como uma espessura ou uma opacidade que torna o erro possvel, delimita uma zona de subjetividade ou de solido, representa-nos aquilo que est antes do esprito, ele evoca seu nascimento e reclama uma anlise mais profunda que esclareceria a genealogia da lgica. O esprito tem conscincia de si como fundado nessa Natureza. H, portanto, uma dialtica do naturado e do naturante, da percepo e do juzo, no decorrer da qual sua relao se inverte (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 619).
Para Merleau-Ponty, em Quatre-vingt-un chapitres sur lesprit et
les passions, Alain faria um movimento semelhante ao de Lagneau. De
acordo com o filsofo, ao pensar sobre a grandeza aparente dos objetos,
retirando do juzo o papel de instncia ratificadora, o que se vislumbrava
era o encaminhamento a uma subjetividade na qual a relao com o mundo
no se d mais mediante uma inspeo do esprito. Logo, se [...] uma
rvore me parece sempre maior do que um homem, mesmo se ela est bem
distante de mim e o homem bem prximo (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 619),
isto se d no graas a uma alterao promovida pelo juzo, pois,
A percepo no conclui a grandeza da rvore daquela do homem, ou a grandeza do homem daquela da rvore, nem uma e outra do sentido desses dois objetos, mas ela faz tudo ao mesmo tempo: a grandeza da rvore, a grandeza do homem, e sua significao de rvore e de homem, de forma que cada elemento se harmoniza com todos os outros e compe com eles uma paisagem em que todos coexistem. Entra-se assim na anlise daquilo que torna possvel a grandeza e, mais geralmente, as relaes ou as propriedades de ordem predicativa, e nessa subjetividade, anterior a toda geometria que, todavia, Alain declarava incognoscvel (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 620).
Merleau-Ponty nota, em Alain, o preldio de uma anlise,
especialmente no que diz respeito grandeza dos objetos, na qual o juzo
encontra uma funo que lhe mais profunda, que lhe est aqum, anlise
semelhante quela que, versando justamente sobre esta questo,
encontraramos nos psiclogos ao se falar em uma Gestaltung da
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paisagem12. O que isto quer nos dizer? Se partirmos da filosofia de Merleau-
Ponty, no poderemos falar unicamente no assdio que, devido s distores
de um modernismo, o Esprito enfrentava. Pelo contrrio, o modernismo
no uma causa da crise, mas o delineamento de uma mudana. Logo, no
que se refere ao modernismo, o que temos a elucidao de que o sentido
dos princpios que moviam o Mundo Clssico se esvaziara, mudara de
direo, e as razes disto se encontram nestes mesmos princpios, encontra-
se propriamente em seus fundamentos.
Por conseguinte, parece-nos que, para o filsofo, falar em crise
no significa tambm acentuar uma passagem que vai do caos ordem, no
significa corroborar a iluso positivista de que seria legtima a tarefa de se
explicitar um progresso pelo qual, mediante uma poca crtica, uma idade
orgnica teria que ceder o seu lugar a uma outra idade igualmente orgnica.
Em outros termos, no se trata da fantasia positivista em crer que
possvel, a uma poca, viver sem incertezas e sem lutas. Deste modo, acaba
sendo por uma iluso retrospectiva que acreditamos ter sido o mundo
clssico o reino das certezas absolutas e das verdades apodticas. Como no
pensar nas obras inacabadas de Da Vinci? No guardava tambm a cincia
clssica o sentimento de uma opacidade do mundo? No era justamente ao
mundo, segundo o filsofo, (...) que ela pretendia juntar-se por suas
construes, e por isso que se acreditava obrigado a procurar para suas
operaes um fundamento transcendente ou transcendental (MERLEAU-
PONTY, 1975b, p. 85)? Igualmente, no acabamos de encontrar, em filsofos
tidos espiritualistas, um encaminhamento a ideias que lhes deveriam ser
opostas?
Conforme procuraremos mostrar, para Merleau-Ponty, crise
significa, pois, a oportunidade que se tem, quando se trata do pensamento,
em rever e reformular seus princpios e suas certezas. Se certo o que nos
diz Valry acerca de uma Crise do Esprito porque, seguindo os
12 No prximo captulo, de certo modo, retomaremos o tema da grandeza e o seu significado filosfico quando tratarmos da crtica de Merleau-Ponty noo clssica de perspectiva.
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movimentos da histria, a nossa concepo do esprito no mais a
mesma. Mais do que uma mudana sbita, se nos atentarmos
etimologia, a Kri/siv [Krsis] tambm um momento decisivo, como j nos
ensina o verbo Kri/nw [Krno] do qual este termo se origina, o poder de se
fazer escolhas, de fazer distines. Contudo, se a Crise de Valry, aquela que
poderamos entender como a expresso de uma crise francesa no nos
suficiente para compreendermos a filosofia de Merleau-Ponty, certamente o
trabalho etimolgico no o seria, assim como tambm no o seria a denncia
dos impasses nas relaes da filosofia com a cincia. Acaso no encontramos
em seu pensamento mais do que a explicitao dos ecos de uma crise que se
v consolidada nos trabalhos da cincia? No entanto, qual seria a razo
disto? O fato que, no caso de Merleau-Ponty, no compasso de uma crise
do esprito, encontraramos ainda, e talvez com mais veemncia, os ecos de
uma outra Krisis: a Crise da Razo. Se a Crise francesa no a Krisis alem,
no pensamento merleau-pontiano, encontramos a tentativa de dialogar com
ambas a fim de melhor compreender o seu tempo. Por conseguinte, quando
procuramos compreender a filosofia de Merleau-Ponty nos horizontes de um
sentimento de crise, a fenomenologia de Husserl no deixa de ter um topos
privilegiado. O que isso significa? Quais as razes? Vejamos.
1.2. A Fenomenologia e a Crise da Razo: os limites do cientificismo e o retorno ao mundo-da-vida
Segundo Merleau-Ponty, desde a sua origem, a fenomenologia
aparece como uma tentativa de resolver um problema colocado no incio do
sculo pela Crise da filosofia, das cincias do homem e das cincias em
geral (MERLEAU-PONTY, 2000b, p. 151). A fenomenologia, em outras
palavras, seria justamente o intento de superar, de uma s vez, todas essas
crises. No que diz respeito cincia clssica, a nosso ver, o intento
husserliano no outro, o reconhecimento de que, em sua dmarche, o
que se pretende efetuar uma ideia equivocada de razo, um conceito
embargado por contradies desde o seu nascimento. Logo, a Crise das
cincias no o simples empreendimento de anlise dos limites daquilo que
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se verifica a validade, j presente em Descartes, e no qual a razo se voltaria
criticamente contra os fundamentos das cincias. Em contrapartida,
tampouco se limitaria s reflexes do Hamlet valeriano. Quanto ao sentido
dessa Krisis, so esclarecedoras as seguintes palavras de Moura:
[...] esse tema [a crise da Razo] parece ter a sua datao circunscrita primeira metade do nosso sculo. Pois se verdade
que, de maneira explcita ou implcita, a noo de crise sempre
freqentou a histria da filosofia, verdade tambm que Descartes,
por exemplo, no apontava para nenhuma crise da razo, mas para uma crise das cincias, cincias cujos princpios incertos careciam de uma legitimao que a prima philosophia logo, logo lhes viria assegurar. E se Kant apresentava a razo pura como origem de
iluses, o que estava em questo ali era apenas o uso especulativo da razo, e no a razo ela mesma, que se comportava muito bem no
domnio da fsica e da matemtica, cincias que por si ss nunca
teriam suscitado o projeto crtico. Ora, ser muito diferente quando
Merleau-Ponty, preocupado em restaurar a universalidade da razo, for censurar a prpria cincia. Por isso mesmo, esse diagnstico,
longe de reeditar, na atualidade, a antiga e enfadonha suspeita da
seita ctica contra as pretenses da razo dogmtica, formulado
hoje em dia por membros do prprio partido racionalista. Diagnstico paradoxal, sem dvida, j que enunciado no momento
histrico em que as cincias mais se expandem e se consolidam. Era
exatamente desse paradoxo aparente que Husserl partia em A crise das cincias europias e a fenomenologia transcendental, de 1936: existe, sim, uma crise da razo, apesar do sucesso incontestvel das
cincias positivas (MOURA, 2001, p. 185-6).
Ora, neste sentido que, a nosso ver, o pensamento husserliano
marcado pela busca constante por uma idealidade objetiva que se
evidencia antes no retorno ao mundo-da-vida do que no embaraoso
reducionismo psicologista em sua tarefa de tornar reais os estados de
conscincia, fazendo deles nada mais e nada menos do que pedaos da
natureza. O diagnstico husserliano no o mesmo daquele elaborado quer
seja pelos existencialismos, quer seja pelos pessimismos, uma vez que no
podemos negar, ainda em Husserl, a presena latente de uma f na Razo.
esta mesma certeza que o leva a diagnsticos nada simples para os seus
leitores, que o conduz certeza de que, frente ao objetivismo cientificista
fundamentalmente histrico e no meramente ocasional, a fenomenologia
pode se apresentar como uma soluo possvel por seu rigoroso
reconhecimento e resgate daquilo que fora condenado, pela cultura europeia,
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ao esquecimento, a saber, o mundo-da-vida, a Lebenswelt. No ser tarefa
da fenomenologia, por sua vez, frente Crise, elucidar aquilo que deve ser
ou se entender por cincia, o que lhe pode legitimar, de iure, a sua prpria
cientificidade, demonstrando que o mtodo utilizado por elas, ao colocar-se
frente a sua aplicabilidade, carece de licitude. O caminho bem outro.
Trata-se da busca daquilo que se constitui como o fundamento e a gnese
desta Crise, colocando-se, de modo historial, em seus desdobramentos, no
percurso que fizera com que o pensamento moderno se tornasse o seu
resultado cabal. Nesta perspectiva, uma crtica do psicologismo ultrapassa a
si mesma, levando-nos antes quilo que o filsofo nos indica como uma
espcie de enigma do mundo, o mesmo que as outras pocas no se deram
conta e que, por conseguinte, no deixa de nos lanar frente ao enigma da
prpria subjetividade.
A proposta, frente Crise, que seja modificado o modo pelo
qual o pensamento se coloca em relao cincia, dizendo de modo
husserliano, preciso mudar o modo de estimar a cincia, deixando de ser
a pergunta por sua cientificidade, conforme assinalado, para se tornar uma
indagao acerca de seu sentido para a existncia humana. No basta
encantar-se com a cincia e a prosperity que traz consigo, at mesmo
problemtica a ingnua passagem de uma cincia de fato para uma
humanidade de fato. O que preciso mostrar que existem questes
cruciais a serem feitas e que foram simplesmente excludas. Quais seriam
elas? Dir Husserl, so as questes que versam sobre o sentido ou sobre a
ausncia de sentido de toda esta existncia humana (HUSSERL, 1992, vol.
8, p. 4; 1976, p. 10)13. E por que elas so to importantes assim? O que
torna estas questes fundamentais, no entender do filsofo, a capacidade
de atingir o homem moderno em suas relaes, quaisquer que elas sejam, e
no modo pelo qual, senhor de si mesmo, capaz de dar uma forma de
razo a si mesmo e ao seu mundo-ambiente [sich und seine Umwelt
vernnftig zu gestalten] (HUSSERL, 1992, vol. 8, p. 4; 1976, p. 10) sem,
13 [...] die Fragen nach Sinn oder Sinnlosigkeit dieses ganzen menschlichen Daseins (HUSSERL, 1992, vol. 8, p. 4; 1976, p. 10).
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todavia, dar-se conta de suas consequncias.14 Da a preocupao em
mostrar, a partir de sua gnese, os limites do naturalismo das cincias.
Pensando em suas construes, acaso podemos viver neste mundo cujo
acontecimento histrico no nada de outro que um encadeamento
incessante de mpetos ilusrios e de amargas decepes? (HUSSERL, 1992,
vol. 8, p. 4-5; 1976, p. 11)15.
Em outras palavras, seguindo as pegadas de Husserl, queremos
salientar que, se a Crise no a denncia da cientificidade que rege as
cincias, porque a crise das cincias , sobretudo, uma crise de sentido.
No interessa saber se um determinado modelo ou proposta cientfica
funciona ou no. Isso no , para Husserl, tarefa do filsofo. A questo
saber, no entanto, o que isso significa para a existncia humana e como
pode afet-la, dado que no teria sentido falar em uma crise na condio de
derrocada da prpria cientificidade cientfica, principalmente, dados os
brilhantes desdobramentos da fsica. Mas como se inserem esses
desdobramentos em um determinado projeto de vida? Pensando nesta
questo, podemos entender porque, ao se voltar para os emergentes
desenvolvimentos da tcnica, o que est em jogo o modo como ela
funciona na condio de um mecanismo de aumento das consequncias
geradas, para a existncia humana, por um determinado projeto de
14 o que assinala a Krisis: Unseren nehmen wir von einer an der Wende des letzten Jahrhunderts hinsichtlich der Wissenschaften eingetretenen Umwendung der allgemeinen Bewertung. Sie betrifft nicht ihre Wissenschaftlichkeit, sondern das, was sie, was Wissenschaft berhaupt dem menschlichen Dasein bedeutet hatte und bedeuten kann. Die Ausschlieliechkeit, in welcher sich in der zweiten Hlfte des 19. Jahrhunderts die ganze Weltanschauung des modernen Menschen von den positiven Wissenschaften bestimmen und von der ihr verdankten prosperity blenden lie, bedeutete ein gleichgltiges Sichabkehren von den Fragen, die fr ein echtes Menschentum die entscheindenden sind. Bloe Tatsachenwissenschaften machen bloe Tatsachenmenschen. Die Umwendung der ffentlichen Bewertung war insbesondere nach dem Kriege unvermeidlich, und sie ist, wie wir wissen, in der jungen Generation nachgerade zu einer feindlichen Stimmung geworden. In unserer Lebensnot so hren wir hat diese Wissenschaft uns nichts zu sagen. Gerade die Fragen schliet sie prinzipiell aus, die fr den in unseren unseligen Zeiten den schicksalsvollsten Umwlzungen preisgegebenen Menschen die brennenden sind: die Fragen nach Sinn oder Sinnlosigkeit dieses ganzen menschlichen Daseins. (HUSSERL, 1992, vol. 8, p. 3-4; 1976, p. 10). 15 Cf. o texto: Knnen wir uns damit beruhingen, knnen wir in dieser Welt leben, deren geschichtliches Geschehen nichts anderes ist als eine unaufhrliche Verkettung von illusionren Aufschwngen und bitteren Enttuschungen?(HUSSERL, 1992, vol. 8, p. 4-5; 1976, p. 11).
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cientificidade. Neste sentido, o que preocupa, na metodologia cientificista,
que no possui, por se dar como um mero instrumento, fim em si mesma,
pois, ao perder o seu carter teleolgico, est impossibilitada de trazer
consigo o sentido da vida e da histria, ao passo que o investigador perfeito,
que tende tambm em direo perfeio como ser humano, nunca perde de
vista as relaes que entretm a cincia que ele pratica com os fins gerais e
mais elevados do conhecimento humano (HUSSERL, 1982, p. 231). Se essa
constatao possui um carter tico-poltico, porque se esmera, em
primeiro lugar, em um desconforto filosfico gerado, fundamentalmente, pela
prpria noo de razo que est em jogo nestas consideraes.16 neste
sentido que, para Husserl, torna-se necessrio compreender as relaes que
se estabelecem entre filosofia e cincia. Como se daria, especialmente nos
ltimos trabalhos de Husserl, essa explicitao? Conforme Olesen, pensando
na compreenso husserliana de Galileu, seria o de mostrar [...] que a
cincia recobre (filosoficamente) no mesmo movimento em que ela descobre
(cientificamente) (OLESEN, 1994, vol. 29, p. 12), logo, [...] a anlise
husserliana das relaes da filosofia e das cincias pode, agora, apresentar-
se como crtica histrica (Geschichtskritik) [...] (OLESEN, 1994, vol. 29, p.
13). Por conseguinte, tendo por referncia essa crtica histrica
[Geschichtskritik] (HUSSERL, 1954, p. 59), ou antes, mediante uma
ursprngliche Sinngebung (HUSSERL, 1954, p. 46) pelo qual se constitui a
cincia, que sua anlise descobre em Galileu um gnio que, ao mesmo
16 a partir desta perspectiva, que melhor entendemos as seguintes palavras de Koyr em um dos textos de seus Estudos Newtonianos, palavras dotadas inconfundivelmente com o sotaque husserliano da Krisis: H algo do qual Newton deve ser sido responsvel ou para dizer melhor, no unicamente Newton, mas a cincia moderna em geral; a diviso de nosso mundo em dois. Eu disse que a cincia moderna tinha invertido as barreiras que separavam os Cus e a Terra, que ela uniu e unificou o Universo. Isso verdade. Mas, eu disse tambm que ela fez isso substituindo o nosso mundo de qualidades e de percepes sensveis, mundo no qual vivemos, amamos e morremos, por um outro mundo: o mundo da quantidade, da geometria reificada, mundo no qual, embora haja lugar para toda coisa, no h mais para o homem. Assim o mundo da cincia o mundo real afasta-se e se separa inteiramente do mundo-da-vida, que a cincia foi incapaz de explicar inclusive por uma explicao dissolvente que faria dele uma aparncia subjetiva. Na verdade, estes dois mundos so todos os dias cada vez mais unidos pela prxis. Mas para a teoria so separados por um abismo. Dois mundos: o que quer dizer duas verdades. Ou nenhuma verdade em absoluto. nisto que consiste a tragdia do esprito moderno que resolveu o enigma do Universo, mas to-somente para substitu-lo por um outro: o enigma de si mesmo (KOYR, 1968, p. 42-3.).
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tempo, (des)-cobre e (re)-cobre (HUSSERL, 1954, p. 49; OLESEN, 1994, vol.
29, p. 12), pois
Originrio, este sentido no deve, todavia, ser buscado em um lugar distante alm da histria, visto ser ele mesmo que devemos compreender como passagem, saber como passagem do mundo-da-vida cincia. De tal modo, esta doao de sentido originrio por onde Galileu descobre a natureza como scritta in lngua matematica, recobrindo, de uma s vez, a natureza na medida em que ela eclode diferentemente de um suporte matematizao. Todavia, se a doao originria de sentido no se faz alhures seno na prpria cincia, no cabe cincia enunciar em que esta doao de sentido doao. Digamos que cabe cincia fazer a passagem do mundo-da-vida cincia, mas no descrever essa passagem (OLESEN, 1994, vol. 29, p. 13).
Por conseguinte, o que significa entender Galileu a partir de uma
investigao histrica em um sentido inslito [ungewohnten Sinn], como
acentua a traduo literal,17 ou, conforme Derrida, a partir da investigao
de uma proto-histria [proto-histoire]? Por que a ateno husserliana se
voltara para as investigaes cientficas de Galileu?18 De acordo com
Husserl, certamente os Antigos, conduzidos pela doutrina platnica das
Ideias, j tinham idealizado os nmeros e as medidas empricas, as figuras
espaciais empricas, os pontos, as linhas, as superfcies, os corpos.19
Inclusive, como ainda lembra Husserl,
Com a geometria de Euclides, tinha aparecido a ideia bastante impressionante de uma teoria dedutiva sistematicamente unificada, orientada para um fim ideal de uma grande amplitude e de uma grande elevao, repousando em conceitos e princpios fundamentais
17 Verbo wohnen, gewhnt (habitual, acostumado). 18 A este respeito, vale salientar que, segundo Franois de Gandt, Husserl tomara conhecimento de Galileu mediante uma vulgata galileana corrente em sua poca, logo, no teria frequentado diretamente os seus trabalhos. Por conseguinte, a imagem do Galileu husserliano fora traado tendo em vista o empreendimento de neo-kantianos como Hermann Cohen, Paul Natorp e Ernst Cassirer (GANDT, 2004, p. 97-8). Teria sado inclusive das letras de Cassirer a certeza de que deveria ser pago a Galileu o tributo pela possibilidade de se lanar uma ponte entre Plato e Kant. Mas seria ento a Krisis to-somente o locus de sedimentao da recepo de uma determinada imagem inteiramente pronta de Galileu e de uma imagem pautada sobre um fundo kantiano? certo que no, e o prprio Franois de Gandt levado a reconhecer no modus operandi da Krisis uma dmarche que, por sua inegvel originalidade, no deixara de repercutir com fecundidade na prpria histria das cincias. 19 (HUSSERL, 1992, p. 18; 1976, p. 26) Diese hatten zwar schon, von der Platonischen Ideenlehre geleitet, die empirischen Zahlen, Magren, die emprischen Raumfiguren, die Punkte, Linien, Flchen, Krper idealisiert;
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axiomticos e progredindo por uma sequncia de raciocnios apodticos, em suma, um conjunto proveniente da racionalidade pura, um conjunto de verdades absolutamente incondicionadas, apreensveis diretamente ou indiretamente, conjunto que se oferece a si mesmo aos olhares em sua verdade incondicionada (HUSSERL, 1992, p. 18-9; 1976, p. 26).20
Todavia, se j encontramos tudo isto em Euclides, como salienta
Husserl, qual seria ento a novidade do pensamento moderno [clssico]? J
no havia ali uma conceituao matemtica da Natureza? Na Krisis, o
filsofo nos responderia que no. De acordo com a Krisis, [...] a geometria de
Euclides, e geralmente falando a matemtica dos Antigos, conhecia apenas
tarefas finitas; ela conhecia apenas um a priori que se fecha de modo finito.21
Participando deste modo, encontrar-se-ia, por exemplo, o silogismo
aristotlico. Neste sentido, especialmente a partir de Galileu, muda-se o
modo de se aproximar da Natureza. Trata-se de um mundo infinito, aquele
das idealidades que apenas pode ser atingido por um mtodo racional
sistematicamente unificado. No h mais sentido em se referir a uma
realidade que se aperfeioa medida que se aproxima de ideias perfeitas,
mas [...] a prpria natureza que, sob a direo da nova matemtica,
encontra-se idealizada: ela prpria torna-se [...] uma multiplicidade
matemtica (HUSSERL, 1954, p. 20; 1976, p. 26).22 A matemtica, como
instrumento de anlise, ao contrrio da lgica escolstica, torna-se,
especialmente para Galileu, o instrumento da descoberta.23 No entanto,
20Noch mehr: mit der Euklidischen Geometrie war di hchst eindrucksvolle Idee einer auf ein weit-und hochgestecktes ideales Ziel ausgrichteten, systematisch einheitlichen deduktiven Theorie erwachsen, beruhend auf axiomatischen Grundbegriffen und Grund dstzen, in apodiktischen Schlufolgerungen fortschreitend ein Ganzes aus reiner Rationalitt, ein in seiner unbedingten Wahrheit einsehbares Ganzes von lauter unbedingten unmittelbar und mittelbar einsichtigen Wahrheiten. 21 (HUSSERL, 1954, p. 19; 1976, p. 26). Aber die Euklidische Geometrie und die alte Mathematik berhaupt kennt nur endliche Aufgaben, ein endlich geschlossenes Apriori. (HUSSERL, 1992, p. 19). 22In der Galileischen Mathematisierung der Natur wird nun diese selbst unter der Leitung der neuen Mathematik idealisiert, sie wird modern ausgedrckt selbst zu einer mathematischen Mannigfaltigkeit (HUSSERL, 1954, p. 20). 23 Assim, embora reconhea o platonismo de Galileu, do mesmo modo que Koyr, Husserl sabe que, mais do que uma admirao, o platonismo, ao menos como fora recebido, torna-se a base e o alicerce de um conhecimento marcado pela objetividade e a segura instabilidade das formas. Nessa perspectiva, a matemtica no a expresso de um amor pela Antiguidade que se revela no conhecimento de sua imagstica, mas vem a ser entendida
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como se daria, em Galileu, a gnese de uma compreenso matemtica da
Natureza?
Segundo Galileu, a partir da nossa experincia sensvel,
possvel identificar elementos tanto simples quanto absolutos que, em
seguida, podem ser traduzidos para uma linguagem matemtica24. O
interessante que, aps ter feito isto, logo no precisamos mais da prpria
experincia. Ser a matemtica pura que ditar as etapas posteriores. Por
conseguinte, no haveria problema algum se, nesta etapa, algumas
hipteses no se confirmassem empiricamente. A demonstrao ou
verificao cientfica, realizada a partir da experincia, seria simplesmente
um recurso facultativo para se usar com aqueles que no confiam na
universalidade da matemtica. Contudo, ser a distino galileana, herdada
de Kepler, entre o que no mundo absoluto, objetivo, imutvel e
matemtico e o que relativo, subjetivo, flutuante e sensorial (BURTT,
1991, p. 67) que marcar sua metafsica. Em outros termos, a separao
do que h de manifesto em um fenmeno fsico em qualidades primrias e
qualidades secundrias que nos far encontrar tambm, em Galileu, um
dos alicerces do mundo moderno [clssico], alm da fsica newtoniana que,
como salientaria Koyr, teria dividido o mundo em dois.
De um lado, encontramos qualidades primrias que se referem
a tudo o que h de matematicamente traduzvel em um fenmeno. Por outro
lado, encontramos tambm qualidades secundrias que se referem a
experincias como a sensao. Enquanto a primeira seria real, concreta, a
segunda, no sendo to real quanto a primeira, encontrar-se-ia apenas
limitada nossa subjetividade. Alm disso, encontramos em Galileu
semelhante em certos aspectos a Plato , aqum do mundo da exatido
matemtica, a distino de um mundo de opinies cambiantes e de um
como a prpria estrutura do Universo. Essa a razo mediante a qual se entende tanto a substituio da experincia sensvel por um mundo prvio como diria Nietzsche, por um Hinterwelt , como o atomismo galileano que tornava Plato e Demcrito estranhamente os fundamentos de uma mesma realidade. 24 assim que, conforme Burtt, visto em sua totalidade, o mtodo de Galileu pode ser decomposto em trs etapas, intuio ou resoluo, demonstrao e experincia, empregando-se em cada caso seus termos prediletos (BURTT, 1991, p. 65).
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mundo da experincia sensorial. Assim, os elementos confusos e
inconfiveis na figurao sensorial da Natureza so, de algum modo, efeitos
dos prprios sentidos (BURTT, 1991, p. 67), pois, porque o quadro mental
resultante passou pelos sentidos que ele possui todas essas caractersticas
confusas e enganosas (BURTT, 1991, p. 67). Como podemos notar, enquanto
as qualidades secundrias no passam de meros efeitos dos nossos sentidos,
as primrias seriam as que, na Natureza, so de fato reais. Como ressalta o
prprio Galileu,
(...) no acredito que os corpos externos, para provocar em ns esses gostos, esses cheiros e esses sons, requeiram mais que o
tamanho, a figura, o nmero e o movimento vagaroso ou rpido; e
julgo que, se os ouvidos, a lngua e as narinas fossem suprimidas, a
figura, os nmeros e os movimentos certamente permaneceriam, mas no os odores, nem os gostos, nem os sons, os quais, sem o
animal vivo, no creio que constituam mais que nomes, assim como
as ccegas no so nada mais que um nome se a axila ou a
membrana nasal fossem suprimidas (GALILEU, 1942, vol. IV, p. 333)25.
A partir destas consideraes, portanto, podemos entender as
razes que levaram Husserl a notar, em Galileu, aquele sentido originrio
[ursprngliche Sinngebung] pelo qual se institui a cincia clssica. Tomando
Galileu como referncia, a pretenso husserliana a de explicitar a ciso
presente em seu tempo entre as cincias do Esprito e as cincias da
Natureza que, ao conduzir a um labirinto no qual a verdade se encontrava
fundada em teorias antagnicas, acabava por nos situar frente a uma
espcie de esquizofrenia da cultura26. Em especial, nas Ideen II, ao tratar da
25 Per lo che vo io pensando che questi sapori, odori, colori, etc., per la parte del suggetto nel quale ci par che riseggano, non sieno altro che puri nomi, ma tengano solamente lor residenza nel corpo sensitivo, s che rimosso l'animale, sieno levate ed annichilate tutte queste qualit; tuttavolta per che noi, s come gli abbiamo imposti nomi particolari e differenti da quelli de gli altri primi e reali accidenti, volessimo credere ch'esse ancora fussero veramente e realmente da quelli diverse (GALILEU, 1942, vol. IV, p. 333). 26 Husserl reconhece sua dvida para com Dilthey, o primeiro que observou as diferenas essenciais que esto em jogo aqui, e o primeiro tambm que tomou uma conscincia viva do fato de que a psicologia moderna, cincia natural do psquico, era incapaz de assegurar s cincias concretas do esprito a fundao cientfica que elas exigiam (HUSSERL, 1952, p. 175; 1950 p. 175). Contudo, a seu ver, unicamente uma investigao radical, orientada rumo s fontes fenomenolgicas da constituio das ideias da natureza, do corpo prprio, da alma e das diferentes ideias de ego e de pessoa, pode aqui fornecer as explicitaes
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Constituio do Mundo do Esprito, o filsofo nos acentua que a cultura,
de um modo geral, ou como ele mesmo dir, nossa viso de mundo por
inteiro encontra-se determinada, em sua essncia e em seu fundamento
pela separao entre o mundo da natureza e o mundo do esprito, (...)
entre uma teoria da alma prpria da cincia de um lado e, de outro, uma
teoria da pessoa (teoria do ego, egologia), assim como uma teoria da
sociedade (teoria da comunidade) (HUSSERL, 1952, p. 175; 1950, p. 246).
Encontramos, pois, seguindo em seus pressupostos uma variante leibniziana
da separao entre quaestiones de facto e qustiones de iure, uma cincia
que, por si mesma, no conseguindo explicitar os fundamentos nos quais se
encontra alicerada, deixou no esquecimento o solo prvio de onde emergira,
a saber, o mundo-da-vida, a Lebenswelt. Da, por exemplo, a necessidade de
uma nova psicologia, de uma psicologia que, no sendo psicolgica, no
compartilhe tambm da incapacidade das cincias de assegurar, s cincias
concretas do esprito a fundao cientfica que elas exigem (HUSSERL, 1952,
p. 175, 1950, p. 246) Como j salientava o filsofo em La philosophie comme
science rigoureuse,
As cincias da natureza no nos desvelaram em nenhum ponto o mistrio da realidade atual, da realidade em que vivemos, agimos e
estamos. A crena geral de que tal sua funo e que elas ainda no esto bastante avanadas para preench-la, a opinio segundo a
qual elas poderiam por princpio realiz-la, revelou-se aos olhares
profundos como superstio (HUSSERL, 1993, p. 170).
Por conseguinte, mantendo o foco em Galileu, conforme vimos,
no se d, por acaso, o empreendimento husserliano em no centrar-se
unicamente naquela geometria inteiramente pronta que lhe fora entregue.
Nem mesmo desconhecida do filsofo a ameaa anacrnica que assombra
as suas reflexes. Afinal, no estaria o pensador no direito de interrogar,
antes de tudo, o sentido originrio da geometria que nos entregue e nunca
deixa de advir com este mesmo sentido geometria que no deixa de advir e,
ao mesmo tempo, de se edificar, ao permanecer atravs de todas as suas
decisivas e, ao mesmo tempo, dar sua fecundidade e seu direito aos motivos, plenamente vlidos, de todas as investigaes desse gnero (HUSSERL, 1950 p. 247).
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novas formas na condio de a geometria? (HUSSERL, 1992, p. 365; 1976,
p. 173 traduo modificada por ns) 27. De acordo com Husserl, a razo e o
pensamento no so translcidos, pelo contrrio, esto sempre em processo.
Neste sentido, ao situarmos a geometria em um horizonte histrico,
preciso assinalar que no se trata de um processo de determinao, mas de
um longo processo de indeterminao, haja vista que a concreo histrica
do mundo-da-vida no se d por um mecanismo de mundificao no qual o
todo seria simplesmente a soma das partes, ela se encontra, ao mesmo
tempo, conforme veremos adiante ao falar da Terra como arch originria,
em toda parte e em parte alguma. Mas o que seria essa concreo? A partir
dos anos 30, essa palavra passa a se encontrar nas letras de Husserl com
uma maior frequncia28, indicando as vrias camadas que constituem a
nossa histria. A histria um todo constitudo por camadas, um modo de
reunir vrios horizontes e, assim, por meio de junes nascidas de uma
relao entre o todo e a parte, formarem uma realidade, uma realidade que
composta por uma concreo de vrios horizontes. assim que Husserl
vislumbra, no mundo-da-vida, o horizonte maior do qual se tornam possveis
todos os outros horizontes, todas as outras concrees. Na concreo
temporal do mundo-da-vida, encontramos o a priori de todas as outras
concrees, trazendo consigo, em seu fundo, tanto o horizonte da
subjetividade transcendental como da subjetividade relativa, tanto da
transcendentalidade como da historicidade, send