SCHMITT, Maria Aparecida Nogueira. “Cortázar e a desconstrução dos cânones literários: o
insólito na interpenetração de códigos em “O livro de Manuel”. I Congresso Internacional
Vertentes do Insólito Ficcional, 2012, Rio de Janeiro, UERGE
Maria Aparecida Nogueira Schmitt1
Resumo:
Cortázar e a desconstrução dos cânones literários: o insólito na interpenetração
de códigos em “O livro de Manuel”
Na busca de uma estética literária que atenda as especificidades da América
Latina, Julio Cortázar inaugura um estilo romanesco onde o leitor deixa de receber
passivamente a leitura linear e previsível para, numa postura lúdica, envolver-se com o
livro como co-participante do autor. Nos domínios das obras cortazarianas, “O livro de
Manuel” reflete, no espelho textual, imagens vestidas de palavras e o autor, ao recorrer
a recursos televisivos, como componentes do seu projeto de invenção lúdica, investe no
processo renovador de uma narrativa de auto-destruição, híbrida de elementos
imaginários e de dados documentais. Envolvido com o compromisso da alfabetização
política, Cortázar se utiliza do insólito na busca de aproximação entre o leitor e o mundo
das personagens, plasmadas na realidade cotidiana que circunda o homem latino-
americano. No mosaico textual, fragmentos da vida e da arte formam a unidade na
diversidade, numa técnica de construção em texto nascido de outros textos. Compondo
um tecido complexo em que imagens e palavras são costuradas umas às outras, o fio do
discurso consegue em “O livro de Manuel”, na destreza do escritor comprometido com
a realidade, utilizar-se do onírico como elemento ancilar para se atingir a integralidade
do ser.
Palavras-chave: desconstrução - onírico – realidade – insólito - imagens - palavras
Abstract:
Cortázar and the Deconstruction of Literary Canons: the Unusual in the
Interpenetration of Codes in "O livro de Manuel"
In the search for a literary aesthetic which meets the specificities of Latin
America, Julio Cortazar inaugurates a Romanesque style where the reader no longer
receives passively the linear and predictable reading but, with a ludic approach,
becomes involved with the book as the author’s partaker. In the domains of the
Cortazian works, "O livro de Manuel" reflects, in the textual mirror, images dressed in
words and the author, when turning to television resources as components of his ludic-
invention project, invests in the renewing process of a self-destruction narrative, hybrid
of imaginary elements and documentary evidence. Involved with the commitment with
the political literacy, Cortazar uses the unusual in the search for the closeness between
the reader and the world of the characters, shaped in the everyday reality which
surrounds the Latin American man. In the textual mosaic, fragments of life and art form
the unity in the diversity, in a text-construction technique born from other texts.
Composing a complex tissue in which images and words are stitched to each other, the
thread of the discourse in "O livro de Manuel" can, by means of the writer’s
commitment to the reality, use the oneiric as an ancillary component to achieve the
completeness of being.
Key-words: deconstruction - oneiric – reality – unusual – images – words
_____________________ 1
Especialista em Literatura Comparada, pela UFJF; mestre em Letras, concentração em Teoria da Literatura pela UFJF; doutora em Letras Neolatinas pela UFRJ, concentração em Estudos Literários Neolatinos; pós-doutora em Letras Neolatinas pela UFRJ, concentração em Estudos Literários Neolatinos. Professora do Programa de Mestrado em Letras do CES/JF –PUC Minas. [email protected] - [email protected]
Cortázar e a desconstrução dos cânones literários: o insólito na interpenetração
de códigos em “O livro de Manuel”
Da inventiva armação de enredos brotados de um estilo inovador projetam-se
dardos no convencional e nos arquétipos da leitura linear. Abominando o “leitor-
fêmea”, passivo, Julio Cortázar procura dotar sua obra de um cunho enigmático, usando
de recursos vários para atordoar, irritar e despertar o desejo de desvendar mistérios
naquele que se aproxima de um mundo insólito. Interfere, sugere, dirige a leitura como
o faz um guia de informações cioso de sua responsabilidade quanto ao aproveitamento
total de quem acaba de adquirir um bem, dotado de vantagens múltiplas.
Indecifrável, como o são deuses nascidos do mito, chega a confundir poderosas
organizações, tendo sido considerado pela CIA como um perigoso esquerdista, uma
vez que em seus livros advoga a instauração do “socialismo” na América Latina. Julio
Cortázar deixa transparente, em muitas de suas obras, o desprezo total a instituições que
defendem ideologias do sistema capitalista. Leo Gilson Ribeiro divulga, por outro lado,
em sua obra “O continente submerso” a conclusão da KGB soviética, assinada por
Andropov:
Cortázar é um notório “agente do imperialismo a soldo da CIA” e
“perigoso agitador anti-soviético”. Em inúmeras ocasiões, Cortázar
denunciou a prisão, em Moscou, dos chamados “dissidentes”, como
Bukovsky, Plyusch, Sakharov e outros “traidores da Mãe-Pátria do
Socialismo” (RIBEIRO, 1988, p. 235-236).
Recorre às mágicas do gênero fantástico, assistindo a espetáculos através de
paredes de tijolos, utilizando-se de metamorfoses e duplos em seu castelo de espelhos
ao redor do qual teimam em desabrochar as rosas blindadas. Fragmenta seu texto como
um iconoclasta, mas a capacidade cabalística do autor, que aprisionou o Pégaso nos
domínios da imaginação, o refaz apresentando-o íntegro, sem trincas, como o mais
rutilante vaso de cristal.
Elaborada para quem não tem medo de sonhar, a literatura cortazariana requer,
no entanto, o árduo trabalho de procurarem-se caminhos próprios e individuais de
____________
* Pós-Doutora em Letras Neolatinas pela UFRJ, área de concentração em Estudos
Literários Neolatinos; Professora e orientadora do Programa de Mestrado em Letras –
Literatura Brasileira - Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora CES/JF e UFJF. Linha
de pesquisa: Literatura Brasileira, tradição e ruptura.
leitura num garimpo em que, ao ser encontrado o primeiro diamante, este se torna, por
encanto, o prenúncio de todo um tesouro. Basta, no entanto, que haja persistência e,
sobretudo, disposição para deixar-se envolver no jogo labiríntico.
Depois de sua morte, uma soma mais objetiva do que restou de Julio Cortázar
revela um outro aspecto de seus duplos: um autor que busca talento com sua erudição
canalizada para a inventividade e outro que se aproxima pelos destinos do homem, pela
justiça, pela liberdade e, sobretudo, pela igualdade de direitos e conquista de espaços
para cultivar a felicidade.
No interior de seus anagramas e entre os estilhaços de uma obra
desestabilizadora encontra-se o empenho para que, além de alimentação, teto e
emprego, o povo, e todo o povo, tenha acesso ao direito humano mais relegado ao plano
secundário: o ingresso ao mundo da cultura que não deve ser aprisionada nas mãos dos
que acumulam fortunas, mas estendida a uma elite de percepções, de capacidade
intelectual de inteligência que são independentes da posição social (Cf. RIBEIRO,
1988, 234).
Dentro da visão hippie em que Cortázar insiste num futuro no qual predominem
o amor, os jogos e a alegria, seu “O livro de Manuel” constitui-se, sem dúvida, em
profunda reflexão sobre a espécie de vida que se oferece àquele que acaba de chegar.
Mais que nunca acredito que a luta em prol do socialismo latino-
americano deve enfrentar o horror cotidiano com a única atitude que um
dia lhe dará a vitória: cuidando preciosamente, zelosamente, da
capacidade de viver tal como a queremos para esse futuro, com tudo o
que supõe de amor, de brincadeira e de alegria. (CORTÁZAR, 1984, p.
8)
A organização de um documentário pedagógico sutilmente leva o homem a
refletir que o mundo oferecido a uma criança é, na maioria das vezes, aquele que
qualquer um, com opção de escolha, se negaria a aceitar.
O enredo de “O livro de Manuel” é simples como o de um catecismo: trata-se do
bebê de um casal de latino-americanos que vive em Paris. Tanto os pais, Patrício e
Susana, quanto um grupo de amigos deles preocupam-se em registrar as atrocidades da
opressão de que estão sendo testemunhas e vítimas, esperançosos de que a criança,
Manuel, ao tomar conhecimento delas, no futuro, procure transformar o mundo,
tornando-o mais justo, mais humano e desvencilhado de preconceitos. Susana procura
elaborar um álbum com recortes dos acontecimentos da época em vários idiomas e
todos procuram ajudá-la.
Páginas para o livro de Manuel: graças às suas amizades entre comovidas
e brincalhonas, Susana vai conseguindo recortes que cola
pedagogicamente, isto é, alternando o útil e o agradável, de maneira que
quando chegue o dia Manuel leia o álbum com o mesmo interesse com
que Patrício e ela liam no seu tempo “O tesouro da juventude” ou o
“Billiken”, passando da lição à brincadeira sem muito traumatismo, além
do que quem sabe qual é a lição e qual a brincadeira e como será o
mundo de Manuel e porra, diz Patrício, faz bem, minha velha, colhe
nosso próprio presente e também outras coisas, assim terá para escolher,
saberá o que foram nossas catacumbas e talvez o garoto consiga comer
estas uvas tão verdes que olhamos de tão baixo. (CORTÁZAR, 1984, p.
290)
No final, percebe-se que, por serem as notícias violentas, terríveis e
ameaçadoras, o livro que Susana idealizou como uma obra pedagógica, torna-se um
documentário aterrador. Um dos amigos do casal, Andrés, introduz, sem que Susana o
perceba, recortes de desenhos e notícias divertidas para aliviar a tensão que fatalmente
Manuel absorverá quando contactar com o mosaico dos acontecimentos abomináveis
que assolam a humanidade.
Nota-se que a estratégia acionada na feitura de “O livro de Manuel”, publicado
originalmente em 1973, quando o mundo estava sob o efeito inicial da introdução ao
meio doméstico de imagens vivas e atuais diante do rompimento com a distância, foi a
de recorrer às técnicas televisivas. “A televisão absorveu do cinema duas de suas
técnicas fundamentais: a técnica de corte e a técnica da câmara contínua ou câmara na
mão.” (PIGNATARI, 1984, p. 12)
Ao lado dos cortes, as vinhetas, anúncios e sintaxe própria da linguagem da
televisão mesclam toda a obra parecendo, à primeira vista, descontextualizadas e fora de
propósito. Não há compromisso com as partes isoladas do texto para tê-lo, em nível
profundo, com o todo. É a magia de que deuses profanados do templo da América
Latina dotam os que vieram para resgatá-los.
Em uma passagem, no início do livro, “aquele de quem lhe falei”, personagem
assim apresentado no início da obra pelo narrador e assim chamado durante toda a
narrativa, procurando passar sua ideologia, a revolução, e, ao ser tachado de simplista
por Marcos, outro personagem, contesta:
É minha agenda de todas as manhãs – diz aquele de quem lhe falei -, e
reconheça que se todo mundo acreditasse nesses simplismos, não seria
tão fácil à Shell colocar-lhe um tigre no motor.
– É a Esso – diz Ludmila, que tem um Citroën de dois cavalos
aparentemente paralisados de terror pelo tigre.... (CORTÁZAR, 1984, p.
13)
No fragmento de diálogo acima percebe-se a dupla intenção do autor, ou seja, a
de alertar contra o perigo da comunicação de massa e levar o personagem a trocar os
nomes das marcas para que fique evidenciada a sua não submissão aos comerciais de
televisão.
Na apresentação de personagens pode-se perceber a técnica do cartão em vertical
tilt card “no qual os vários letreiros ou visuais são dispostos um em baixo do outro.”
(STASHEF, 1978, p. 130)
Ludmila
Gómez
Monique
Lucien Verneuil
Heredia
................ (CORTÁZAR, 1984, p. 15)
Prosseguindo a caminhada pelo universo cortazariano da obra em questão,
aparece o primeiro dos vários recortes de jornal que serão apresentados durante todo
“O livro de Manuel”. “... em Clermont-Ferrand o Conselho Provisório da Faculdade
denunciou as brutalidades dos policiais cometidas contra um professor adjunto.”
(CORTÁZAR, 1984, p.18)
Considerando que, segundo Décio Pignatari, todos os meios de comunicação
confluem para a televisão, assim como todas as informações confluem para o
computador, deduzindo que ela serve e se serve de todos os veículos e constitui-se em
uma “obra” aberta por excelência, Julio Cortázar, na apresentação dos fragmentos do
jornal, procura aproximar-se do leitor e convencê-lo paulatinamente da validade de
sua proposta a favor da integração ao cotidiano sem, contudo, deixar-se abater pelo
niilismo e pela anestesia que a violência consegue aplicar nos sentimentos dos que
contactam com ela seguidas vezes. “Não há nada mais parecido com a estrutura da
televisão do que a estrutura de um jornal: este é um mosaico verbal do mundo, aquele
um cinético mosaico audiovisual.” (PIGNATARI, 1984, p.103)
Utilizando-se, pois, dos recortes do jornal, Cortázar imprime ao seu livro
caracteres televisivos, apresentando-os como vinhetas inseridas na visualização dos
textos.
Em outra passagem, o método televisivo do take , ou corte, utilizado para
“passarmos de uma tomada para outra.” (STASHEF, 1978, p. 43), é seguido para que
o leitor não se engane quanto à forma de o autor tratar o tempo e o espaço.
... daquele de quem lhe falei gostaria de dispor da simultaneidade,
mostrar como Patrício e Susana dão banho no filho no mesmo momento
em que Gómez, o panamenho, completa com visível satisfação uma série
correlata de selos da Bélgica e um tal de Oscar em Buenos Aires telefona
para sua amiga Gladis para informá-la de um assunto grave...
(CORTÁZAR, 1984, p. 14)
No desejo do personagem de apresentar alternância de situações, tempo, espaço,
o leitor consegue visualizar a mudança como se fosse a de uma tomada para outra em
televisão.
Continuando a leitura, mais uma vez o lampejo da presença da televisão,
quando “aquele de quem lhe falei”, após lembrar-se de fatos com cheiro de saudade de
um tempo muito anterior ao presente, em que crianças brincavam no jardim que a avó
havia regado ao anoitecer, vira as costas para as lembranças “e o dedo indicador da
mão direita apoia-se na tecla que imprimirá um ponto vacilante, quase tímido, ao
término do que começa, do que tinha que ser dito.” (CORTÁZAR,1984, p. 23)
A televisão, muitas vezes, tem seu texto, se não mutilado, omisso, no que se
refere ao que não foi dito.“No decorrer dos anos de televisão e de filmes para TV, certos
padrões sequenciais foram estabelecidos. Esses padrões ou convenções foram guiados
pelo tipo de informação que o público desejava ver.” (STASHEF, 1978. p. 18)
Os padrões sequenciais tomados no nível das notícias constituem, de fato, o
término do que começa, do que tinha que ser visto mas quer não pode ser mostrado; a
TV segue exatamente a opinião do público telespectador.
Na tarde de sábado 6, enquanto passeava pelo campus de Saint-Mastin-
d´Hères para ver os estudantes e compreender a razão de sua violência,
Aqui permita-me um sorriso, porque isso de não entender ainda a razão
de sua violência quase justifica ao que aconteceu ao pobre Etienne, fui
convidado a assistir ao “boom-barricada”. À noite me aproximei da
avenida que contorna o campus. Um carro se deteve na minha frente.
Desce um comando de sete pessoas.... (CORTÁZAR, 1984, p. 46)
Na tessitura do trecho acima, extraído de “O livro de Manuel”, percebe-se uma
das passagens mais comuns da televisão que é a fusão de imagens, uma “sobreposição
de duas tomadas, onde a primeira desaparece, suave ou rapidamente, à medida que vai
aparecendo a segunda.” (STASHEF, 1978, p. 51)
Os anúncios publicitários da televisão constituem seu veio nutriente,
desempenhando uma função bem mais relevante do que por vezes possamos imaginar,
Às vezes, é difícil dizer o que não é publicidade na televisão. Este
“veículo” como os demais “veículos”, não é simplesmente um veículo ou
meio de comunicação:ele é o mais poderoso criador de folclore urbano de
nossos dias. E este folclore está ligado às vendas, diretamente – depende
delas, para existir e subsistir. (PIGNATARI, 1984, p. 29)
Muitas vezes, o telespectador tem a impressão de que é preciso suportar quinze
minutos de anúncio por hora para que lhe chegue o programa favorito. Na verdade é o
contrário que se passa: a programação da televisão está em função da publicidade. “Os
shows,os filmes, as novelas, o próprio telejornalismo são cuidadosamente ‘balanceados’
em suas emoções e informações, a fim de preparar a inserção do comercial.”
(PIGNATARI, 1984, p. 29)
Cortázar evidencia esse aspecto marcante do comercial de televisão com o seu
canto em homenagem aos deuses do sistema capitalista: “Fragmento para uma Ode aos
deuses do Século”.
Com o refrão “ofereça libações” o autor busca, através da ironia, alertar o leitor
mais uma vez contra o estado servil a que a comunicação de massa arrasta o homem,
atirando-o, sem que o perceba, ao calabouço do consumismo. O texto está repleto de
mensagens comerciais à semelhança da televisão que é essencialmente “um veículo de
propaganda.” (BESSA, 1988, p. 72) O telespectador não percebe o fascínio que os
comerciais exercem sobre ele e inconscientemente absorve as mensagens de tal forma
que “René Berger chama os publicitários de demiurgos do mundo moderno, pois as
casas, vestuários e alimentos que utilizamos são concebidos por eles.” (BESSA, 1988,
p.74) Segundo ainda Berger, não há “nada, nem mesmo a nossa intimidade
(desodorante, depilatório, remédio contra calvície) que não dependa dele.”
(BESSA,1988, p. 74).
Mais uma, dentre as muitas passagens, a presença do corte e da simultaneidade
se unem, em “O livro de Manuel”. Agora aparece no relato do sonho do personagem
Andrés.
...a cena foi cortada exatamente ao aproximar-me do sofá, mas ao mesmo
tempo sei que tenho algo a fazer sem perda de tempo, isto é, que ao
voltar à sala do cinema estou agindo simultaneamente como dentro e fora
do filme de Fritz Lang ou de qualquer filme de mistério, sou
simultaneamente o filme e o espectador do filme. (CORTÁZAR, 1984, p;
113)
No anúncio em que a palavra “horoscope” é destacada pelo tamanho das letras o
autor adentra no território dos materiais gráficos. “O termo “gráficos” inclui todos os
materiais visuais parados, sejam, eles trabalhos de arte originais, produzidos num
tamanho suficientemente grande para a utilização no estúdio, ou reproduzidos em slides
ou trechos filmados (filmletes)”. (STASHEF, 1978, p. 126)
O recurso do close-up é frequentemente utilizado em toda a obra através de várias
palavras que se destacam de outras ao serem escritas com os caracteres maiúsculos ou até como
big close-up, uma vez que há passagens nas quais se tem a impressão que as palavras
extravasam o espaço da folha do livro como olhos realçados na tez pálida do papel, fitando o
leitor.
y se La m
ta La man
ras cómo llo
- - Hicistes b
ao cabo. - - Así
- derán esas p. (CORTÁZAR, 1984, p. 205)
A técnica do close-up, empregada em televisão para “criar o intimismo e levar o
telespectador a ver claramente o que é relevante” (STASHEF, 1978, p. 26), pode ser
detectada em várias passagens do livro, atraindo a atenção do leitor para enfatizar
alguma palavra que poderia passar despercebida, se vista entre todas as outras, como um
detalhe particular, ressaltado de forma tal que não seria possível se fosse visto apenas
entre muitos objetos numa tomada mais aberta, dentro da ótica televisual.
O recuso do gancho que, segundo Doc Comparato, “...é o momento de grande
interesse que precede um comercial. Pequenos ou grandes clímax, arranjados de modo
tal que não permitam ao telespectador abandonar a história...” (COMPARATO, in:
CAMPEDELLI, p. 91), é utilizado algumas vezes por Cortázar antecedendo um take
para a introdução de um recorte de jornal
Naturalmente as incitações à imaginação de Manuel não tinham nada de
Angélicas, porquanto Susana havia previsto que aos nove anos ele já
estaria em condições de entrar na história contemporânea por via de
coisas como: Córdoba:Torturon a Cuatro Extremistas (CORTÁZAR,
1984, p. 135 - 136).
Os dois pontos servem de ganchos para manter o leitor preso à narrativa
enquanto é introduzida uma notícia de tortura a quatro extremistas.
Uma vinheta de passagem poderia ser visualizada pela introdução da manchete
“3er. Aniversario” (CORTÁZAR, 1984, p. 363). As vinhetas de passagem, ou
chamadas, são utilizadas pelo diretor de interprograma em televisão para cobrir
qualquer possível emergência, ou seja, os “buracos” que possam sobrevir ao horário da
programação. (Cf. STACHEF, 1978, p.139)
Se o leitor considera o relacionamento do recorte apenas com o texto
fragmentado, a interligação parecerá inexistente, constituindo-se, então, uma vinheta de
passagem completando o vácuo aparente com a notícia colocada no interior da
conversa entre Lonstein e Anddrés.
A presença da fala televisual também pode ser reconhecida ao se fazer um corte
no diálogo entre Andrés e Ludmilla.
“Interrupção por motivo de força maior.” (CORTÁZAR, 1984, p. 179) Ou
quando Susana, ao realizar uma das suas traduções. Faz uma admoestação quanto às
interrupções “... ou calavam um pouco a boca ou lhes cortaria o canal a cores.”
(CORTÁZAR, 1984. p. 266)
A preocupação em agradar o público, semelhante a da televisão, fica marcada
quando Lonstein faz uma crítica àquele de quem lhe falei em relação ao seu empenho de
oferecer ao leitor o que ele deseja:
Bah, disse o rabininho, você me decepciona, tchê, começo a perceber que
o seu famoso fichário está escrito com um olho nas fichas e outro nos
futuros leitores, e é isso, as testemunhas presentes ou futuras, os juízes de
hoje ou do amanhã que dão medo em você, confesse a verdade a seu tio.
(CORTÁZAR, 1984, p. 256)
Mais uma presença de elementos televisivos na obra encontra-se na seguinte
fala: “Vou lhe contar velho, era para transmiti-lo via satélite, íamos e vínhamos pela
casa como se o outro não estivesse...” (CORTÁZAR, 1984, p. 226)
A alusão direta à televisão está registrada tanto na referência que Marcos faz à
pergunta de sempre que a vendedora lhe dirige quanto ao número de seu colarinho:
“Não se preocupe, digo-lhe, quero-a grande e larga. Silêncio, olhos de coruja, lábios
apertados, isso não pode ser, vejo-a pensar e irar-se mais claramente do que se tivesse a TV nas
franjinhas”. (CORTÁZAR, 1984, p.285) como em “... você está no expresso para
Bratislava e aí mesmo, pela cabeça, os novos buracos mânticos, os oráculos de juke-
box, as alucinações diante da TV, quem sabe se os cinemas, olhando bem, entenda que a
fadiga visual nos torna mais receptivos...” (CORTÁZAR, 1984, p. 306)
Um anúncio publicitário ao lado da nota de um sequestro político passa
literalmente a ideia do telejornal que, quase simultaneamente às notícias, apresenta os
comerciais.
A receita de sandwiches que é colada no álbum de Manuel aproxima a obra de
Cortázar da televisão, mais uma vez, no sentido de apresentar programas de acordo com
a “vontade popular” pesquisada. “Guiam-se pelo lema ‘dar ao público o que ele gosta’.”
(STASHEF, 1978, p. 245)
Semelhante ao recurso do corte, a forma de apresentação dos depoimentos
revoltantes dos presos políticos assemelha-se à tela dividida, na qual desenrolam-se
fatos simultaneamente.
A mistura de notícias para aliviar a tensão, à semelhança da estratégia televisiva,
fica documentada no diálogo de Lonstein e Andrés:
- Pobre menino – disse Losntein - , essa não é uma maneira de equipá-lo
para o futuro, aos treze anos vai ser um neurótico completo.
- Depende – disse Andrés passando a tesoura para Susana, que colava os
recortes com um ar altamente científico - ,se der uma olhada no álbum
verá que nem tudo é assim, eu por exemplo, aproveitando-me de um
descuido dessa louca, pus uma quantidade de desenhos divertidos e
notícias muito pouco sérias para o consenso dos monoblocos, se é que me
entende.(CORTÁZAR, 1984, p. 427)
Com a interferência de Andrés, a estilo dos recursos da programação televisiva,
fica resguardada a aceitação do pequeno leitor, à obra que lhe é destinada com
exclusividade. Através da linguagem televisiva, por não haver passado nem futuro na
televisão, diacronismo e sincronismo fundem-se para articular signos, sinais e símbolos.
Fazer televisão é trabalhar com a arte do falso, é fabricar fantasias, criar
ilusões que possam alimentar nossas personalidades, sustentar a
tendência do ser social, vivendo o mundo das aparências, da competição,
da valorização dos aspectos externos da vida e das coisas. (STASHEF,
1978, p. 246)
“O livro de Manuel” traz a linguagem televisiva no interior das palavras, nos
trechos mesclados de comerciais, para não se tornarem demasiadamente longos, e nas
entrelinhas como se ao toque do dedo indicador surgisse um ponto de luz e imagens
saltassem das letras vendendo fantasias e sonhos. Assim subverte códigos, cria palavras
e expressões para suprimir a distância entre o leitor e o mundo da escritura.
Procura ecofon com um mesin
mas que nunca uma Fortran
falte ao encontro, se queres
um orlopró de grande coerência
Boex! (CORTÁZAR, 1984, p. 218)
O recorte textual acima, aparentemente impenetrável na desconstrução da linguagem,
tem como chave de leitura as linhas que o antecedem na trama romanesca:
“- Bom, ninguém pretende que você o saiba, tchê. Fortran é um termo
significante na linguagem simbólica do cálculo científico. Em outras palavras,
formulação transposta dá Fortran,e isso não foi inventado por mim mas acho
que é uma bonita expressão, por que então não dizer boex por bonita expressão,
coisa que economiza fonemas, isto é ecofon não sei se está me acompanhando,
em todo caso ecofon teria que ser uma das bases da fortran. Com estes métodos
sintetizadores, isto é os mesin, se avança veloz e economicamente em direção à
organização lógica de qualquer programa, ou seja o orlopró. Neste papelzinho
pode observar o poema envolvente e mnemônico que preparei para reter os
neofonemas (CORTÁZAR, p. 217)
Julio Cortázar busca em sua obra novas formas de expressão, novos códigos e
mensagens, criando um universo de ficção poroso, aberto a expansões, numa articulação lúdica
do seu puzzle narrativo. Há um compromisso com o envolvimento do leitor para que o mesmo
venha a tornar-se um coautor, responsável por dar continuidade à elaboração da poética de uma
leitura participante.
A narrativa de Cortázar dá “Voltas e reviravoltas ao redor do mesmo eixo,
improvisações ou takes de um mesmo tema vital, tudo parece atrair para diferentes perspectivas
de abordagem, apesar da unidade e coesão do todo: é preciso ensaiar caminhos até o núcleo do
labirinto.” (ARRIGUCCI, 1973, p.31)
Na grande ciranda cortazariana giram de mãos dadas, ao lado da subversão dos cânones
literários europeizados, a denúncia ao machismo, às inibições sexuais impostas por instituições
religiosas tacanhas, à opressão da mulher, à do homossexual, à ditadura dos preconceitos, à
hostilidade à sucata do obsoletismo do não-pensar, o repúdio aos engodos políticos e à tortura
de presos.
É uma literatura que se estabelece no insólito para dar voz aos silenciados na
marginalidade pelos sistemas autárquicos que durante muito tempo se assenhoraram das letras
latino-americanas.
bibliografia
ARRIGUCCI, Davi Jr. O escorpião encalacrado. São Paulo: Perspectiva, 1973.
BESSA, Pedro Pires. Loyola Brandão – a televisão na literatura. Juiz de Fora: Editora
da Universidade Federal de Juiz de Fora.
COMPARATO, Doc. In: CAMPEDELLI, Samira Youssef. A telenovela. São Paulo:
Ática, 1985.
CORTÁZAR, Julio. O livro de Manuel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
PIGNATARI, Décio. Signagem da televisão. São Paulo: Brasiliense, 1984.
RIBEIRO, Leo Gilson. O continente submerso. São Paulo: Best Seller, 1988.
STASHEF, Edward et al. O cronograma de televisão. Trad.e adap. de Luiz Antônio S.
de Carvalho. São Paulo: EPU, 1978.