VERSÃO PRELIMINAR PARA DEBATE, FAVOR NÃO CITAR
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Jornalismo parcial feito para vender: a decadência do padrão “catch-all” pelas leis
do mercado
Diógenes Lycarião – pesquisador em estágio pós-doutoral (PPGcom-UFF);
Eleonora Magalhães – doutoranda do PPGcom-UFF;
Afonso Albuquerque – professor associado IV (Departamento Estudos de Mídia, UFF)
Introdução
Em 2004 Hallin e Mancini sugeriram, no seminal Comparing Media Systems,
que os sistemas midiáticos ao redor do mundo poderiam estar convergindo no sentido
do modelo liberal cujo maior representante é os EUA. Isto implicaria, entre outros, em
um declínio do jornalismo partidário. Uma década depois, esta hipótese não apenas não
se confirmou nos demais países (ver Hallin & Mancini, 2012), como, mesmo nos
Estados Unidos, as tendências de identificação ideológica com relação aos principais
produtos da mídia noticiosa parecem evidentes (ver Pew Research Center, 2014a; Prior,
2013; Marchi, 2012; Stroud, 2011; Nie et al, 2010).
Entretanto, isso vem ocorrendo não a despeito da estruturação comercial que é
típica do mercado de mídia norte-americano, mas, em parte, justamente por causa dessa
estruturação. Isso coloca em xeque a validade universal do argumento de que a
orientação mercadológica dos sistemas mediáticos os tendem a direcioná-los a um
padrão catch-all e, portanto ideologicamente neutro, devido à necessidade de
maximização da audiência. Entretanto, em mercados politicamente polarizados,
fragmentados e com custos de produção cada vez mais baixos devido à massificação da
Internet, a orientação catch-all passa a ser, para muitos veículos, economicamente
desvantajosa. Como consequência, as forças do mercado mesmas passam a estimular
um ambiente de mídia noticiosa politicamente mais ativo e advocatício.
Argumentamos, neste trabalho, que esse processo também pode estar em curso
no sistema de mídia brasileiro, pois as condições fundamentais que o configuram nos
EUA também apresentam fortes indícios de estarem presentes por aqui. Dentre eles,
teríamos um crescimento da polarização política, um forte aumento da oferta de
produtos de mídia noticiosa politicamente engajada e uma consequente saturação do
espectro de preferências do mercado consumidor desse tipo de mídia.
De modo a destrinchar esse argumento, este artigo está organizado da seguinte
maneira: na primeira seção revisamos os padrões e variações do papel político
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(partidário e ideológico) nos setores centrais do sistema de mídia brasileiro ao longo das
últimas décadas. Apontamos aí, com base na literatura especializada, que houve, em tal
período, um aumento significativo de sua pluralidade interna. Na seção seguinte,
discutimos o papel do mercado na condução desse aumento e reconhecemos que a
orientação comercial efetivamente sustentou e, talvez ainda sustente, uma aproximação
a um padrão catch-all de parte central do sistema de mídia brasileiro. Uma aproximação
que, no entanto, teria apenas reconfigurado o tipo, a frequência e a distribuição (entre
diferentes veículos) das dimensões ativas e advocatícias desse sistema. Na seção
seguinte, revisamos o aludido processo de crescimento da identificação ideológica do
sistema de mídia estadunidense para extrapolar hipóteses para o caso brasileiro. Tais
hipóteses são discutidas e fundamentas na seção seguinte, em que apresentamos
indícios, ainda que limitados, pregnantes para traçar, tanto um paralelo com o caso
estadunidense, como diversas dimensões de tipo sui generis do caso brasileiro.
1 O papel político do sistema de mídia brasileiro
A forma mais apropriada de se analisar o papel e a correspondência política
(ideológico e partidária) dos media noticiosos com as principais forças políticas tem
sido objeto de um amplo e multifacetado debate (Albuquerque, 2011, 2012, 2013;
Donsbach & Patterson, 2004; Hadland; 2011; Hallin & Mancini, 2011; Hanitzsch et al,
2011; McCargo, 2012). No epicentro desse debate se encontra a variável “paralelismo
político”. Ela foi proposta por Hallin & Manicini para servir ao tipo de comparação em
tela, mas essa mesma variável tem sofrido intensa crítica, especialmente de
Albuquerque (2011, 2012, 2013).
O autor toma justamente o caso brasileiro para sustentar a perspectiva de que
essa variável apresenta severas limitações para comparações fidedignas à complexidade
e à diversidade dos sistemas mediáticos ao redor do mundo. Isso porque a variável
“paralelismo político” só consegue identificar de modo preciso relações estáveis entre
veículos de comunicação e elites políticas, ou pelo menos entre esses meios e
orientações ideológicas tradicionais (da direita à esquerda, por exemplo). Ela, no
entanto, seria débil em identificar o caráter ativo que a imprensa pode assumir de modo
flexível e não necessariamente ligado a uma corrente de valores políticos ideológicos
ligados claramente e permanentemente à esquerda ou à direita.
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A retórica da prática jornalística brasileira seria exemplar nesse sentido, pois ela
atuaria se posicionando politicamente em relação ao jogo político, só que não em nome
de uma visão ideológica ou de determinados setores sociais, mas em nome do próprio
interesse público, próximo, portanto, ao da retórica estadunidense de vigilante
(watchdog) do sistema político (Albuquerque, 2005, p.487).
O sistema mediático brasileiro, todavia, ultrapassaria as aspirações dessa
retórica, pois ele reivindicaria a prerrogativa de intervir no jogo político em nome dos
próprios interesses nacionais, podendo atuar, desse modo, como árbitro das disputas
políticas setoriais vinculadas a ideologias partidárias ou a instituições do sistema
político. Por consequência, sua atuação se daria de modo ambivalente em relação ao
ordenamento institucional da democracia liberal e encontraria na concepção de “Poder
Moderador” uma linha de continuidade histórica para esse tipo de intervenção no jogo
político:
Argumento que uma atitude ambivalente com relação às instituições políticas liberais tem sido uma característica permanente da vida pública brasileira e, em muitas ocasiões, diferentes instituições se candidataram (ou foram convidadas) a desempenhar o papel de um "quarto poder". Sugiro que, principalmente a partir dos anos 1980, a imprensa reivindicou para si esse papel, recorrendo, para justificar suas reivindicações, a uma retórica norte-americana. (ALBUQUERQUE, 2005, p.487)
1
Isso não significa, por outro lado, que, antes da década de 80, o sistema
mediático não tenha exercido um papel ativo e advocatício em relação ao jogo político.
Pelo contrário, é notório seu apoio concedido tanto ao golpe de 1964, assim como à
sustentação do projeto de poder dos militares. Um apoio que, no entanto, foi perdendo
força e se transformando em oposição ao regime autoritário. Assim, “a grande imprensa
escrita evoluiu de um apoio entusiasmado à implantação do regime militar para uma
oposição liberal e moderada, porém crescente” (Azevedo, 2006, p.104).
No entanto, esse movimento não foi de modo algum uniforme em relação a toda
a extensão do sistema mediático. Enquanto foi possível verificar tal tendência na
imprensa escrita, a mídia eletrônica, especificamente a Rede Globo, agiu de modo muito
mais reativo ao desmonte do regime autoritário. A emissora chegou inclusive a
participar de um “complô para fraudar os resultados, em uma tentativa de evitar a
1 Tradução livre de: “I sustain that an ambivalent attitude to the liberal political institutions has been a
permanent trait of Brazilian political life and, on many occasions, different institutions claimed (or were
invited) to play the role of a ‘Fourth Branch’. I suggest that, mainly since the 1980s, the press has claimed
to play that role, recurring to an American-like rhetoric to justify its claims.”
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vitória do líder populista de esquerda Leonel Brizola – o chamado ''escândalo
Proconsult'' (Miguel, 2004, p.92). A emissora, ademais, omitiu informações sobre a
campanha das “Diretas Já”, a qual já encontrava em vários setores da imprensa amplo
apoio (Azevedo, 2006).
Nos anos seguintes, o caráter ativo e advocatício do sistema mediático brasileiro
continuou sendo característica marcante da conjuntura política nacional. Além do apoio
à campanha das “Diretas Já”, tanto a eleição de Collor, como seu impeachment tiveram
na mídia um ator político decisivo (Albuquerque, 2005, Azevedo, 2006).
Só que esses primeiros anos da redemocratização foram também acompanhados
de severas distorções de princípios democráticos, pois a cobertura de veículos centrais
do sistema se mostrou tendenciosa e desiquilibrada em relação aos candidatos e às elites
políticas correspondentes. Essa distorção, no entanto, não decorreu do simples fato de
terem existido alguns produtos jornalísticos tendenciosos em sua cobertura. Isso porque,
quando um jornal é declaradamente partidário, ele assume um contrato comunicativo
distinto e, em contextos, de pluralidade externa, faz parte fundamental do debate
público democrático (ver Habermas, 1984). No entanto, esse não tem sido o caso da
realidade brasileira, marcada pela baixa pluralidade externa e por contratos muito
distintos dos estabelecidos pela imprensa partidária. Em tal contexto:
[...] o princípio democrático da diversidade e pluralidade estaria inevitavelmente dependente do ideal normativo da objetividade tão cara à perspectiva teórica do jornalismo liberal, ou seja, dependente da presença de uma diversidade interna em cada órgão de imprensa que permita o confronto de opiniões divergentes e coberturas balanceadas em que todos os lados e atores em disputa sejam contemplados. (AZEVEDO, 2006, p.98)
Essa pluralidade interna, por sua vez, só veio a existir depois da regulação
promovida pelas mudanças na legislação eleitoral2 e após ampla contestação na
sociedade sobre o papel exercido pelas práticas jornalísticas dominantes. Tudo isso
colaborou para deixar a cobertura política mais equilibrada e pluralista a partir de 1994
(Azevedo, 2006; Miguel, 2004, Porto, 2007; Porto et al, 2004).
Outro fator que pode ter influenciado essa mudança de postura teria sido o
fortalecimento do caráter comercial dos produtos jornalísticos. Como aponta
2 De acordo com Azevedo (2006, p.105): “a lei 9.504 de 30/09/1997 criou, em seus artigos 45 e 46, regras
e normas rígidas que regulamentam fortemente a programação e o noticiário das rádios e televisões três
meses antes dos eventos eleitorais, impedindo assim qualquer tentativa destes veículos apoiarem ou
beneficiarem direta ou indiretamente partidos e candidatos.”
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Albuquerque, “à medida que a democracia foi se tornando mais consolidada no Brasil, a
maior parte das grandes organizações jornalísticas foi adotando uma orientação
comercial e de maximização da audiência (catch –all atitude)” (ALBUQUERQUE,
2011, p.81)3.
Wilson Gomes, em Transformações da Política, estabelece uma linha de
raciocínio que pode levar a crer que foi essa orientação que impeliu o sistema mediático
brasileiro a deixar de apresentar alto nível de paralelismo político:
[...] quando as instituições que produzem comunicação de massa passam a funcionar como empresas [...] o cálculo econômico, que manda prestar atenção no que o consumidor demanda, substitui com vantagem o cálculo político, que mandava levar em consideração as perspectivas de ganho do grupo ou partido político. (GOMES, 2004, p.172).
Alexander (1990, p.130) apresenta um raciocínio similar ao de Gomes quando
estabelece uma correlação entre nível de diferenciação e o modelo midiático
predominante, dando a entender que, quanto menos diferenciado o sistema dos media é
do seu entorno (em especial do sistema político), mais ele tende a ser “normativamente
flexível”, i.e. politicamente centrista e pluralista. Uma das formas que impulsionaria
essa diferenciação dos media em relação ao sistema político seria justamente a
maximização da audiência e seu padrão “catch-all”, algo que seria promovido pela
estruturação comercial do sistema mediático.
Esse modelo explicativo, entretanto, teria validade apenas em contextos muito
específicos. Argumentamos, portanto, que modificadas algumas condições
fundamentais do mercado de mídia e do contexto sociopolítico, a orientação
mercadológica pode levar a efeitos muito distintos dos apontados por Gomes e
Alexander. De modo a esclarecer as condições específicas que servem, tanto para
explicar momentos anteriores da história da mídia no Brasil, como para o que vem
ocorrendo nos últimos anos, iremos revisitar, na seção a seguir, o papel do mercado na
condução e gerenciamento do sistema de mídia brasileiro.
2 A estruturação do sistema de mídia brasileiro pelo mercado
Se a diferenciação do sistema mediático e a expansão da pluralidade interna de
seus principais centros produtores efetivamente dependem de uma forte vinculação
3 Tradução livre de: “As democracy became more consolidated in Brazil, most of the leading news media
organizations adopted a market-driven, catch-all atitude”
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desse sistema à lógica comercial, então o sistema de mídia brasileiro deveria ter sido
historicamente pluralista e “normativamente flexível”. Isso porque o sistema mediático
brasileiro teve, desde o início, uma predominância de agentes privados na condução das
empresas de comunicação de massa. Isso de tal modo –assim aponta Albuquerque
(2011, p.86) – que o Brasil jamais pôde experimentar, tal como os vizinhos do norte e
da Europa, algum tipo de “commercial deluge”. Assim, as empresas da comunicação de
massa têm mantido em terras tupiniquins um controle relativamente mais robusto e
predominante dos centros do sistema de mídia brasileiro do que as elites políticas o têm
feito. Uma predominância marcada inclusive pelo oligopólio, baixa pluralidade externa
e propriedade cruzada dos meios de comunicação.
Sendo assim, trata-se de um mercado desigual e extremamente concentrado em
que poucas famílias e setores abocanham a maior parte da audiência e,
consequentemente, da receita gerada por esse setor econômico. Nesse mapa de
desigualdades, o setor mais lucrativo e mais concentrador é o da mídia eletrônica,
especialmente o da TV aberta (Albuquerque, 2011; Azevedo, 2006; Pieranti, 2006).
A imprensa, por sua vez, também apresenta alto grau de concentração, mas de
modo mais restrito à esfera local e regional. O poder do setor como um todo, desse
modo, não é comparável ao da mídia eletrônica tendo em vista que o “principal acesso
dos brasileiros ao sistema de mídia se dá através da mídia eletrônica, o rádio e a
televisão, indicando que pelo menos 2/3 da população obtêm suas informações básicas
sobre o país e o mundo através destes dois veículos.” (AZEVEDO, 2006, p.97).
A estreita relação do sistema mediático brasileiro em relação ao mercado ocorre,
todavia, não apenas devido ao fato de que os agentes privados concentram mais
audiência e receita do que os agentes públicos, estatais e políticos. Ocorre também
devido à sua dependência em relação às agências financeiras (bancos) e ao capital
estrangeiro. Isso porque foi a partir deles que as empresas de comunicação se
modernizaram e, por conseguinte, deles tornaram-se umbilicalmente dependentes para
realizar os investimentos necessários para competir num mercado de permanente
inovação tecnológica e alta intensidade financeira (Pieranti, 2006).
Essa dependência pode ajudar a explicar porque, durante os últimos pleitos
eleitorais, a imprensa foi tão ativa e advocatícia em favor das “perspectivas dos
mercados financeiros.” (PORTO, 2007, p.31). Uma perspectiva que, aliás, não sofreu
qualquer tipo de contestação discursiva por parte das elites políticas que participaram de
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tais pleitos. Esse foi caso documentado por Luis Felipe Miguel durante as eleições de
2002:
Nas entrevistas e nos debates, o âncora do Jornal Nacional, William Bonner, cobrava de todos (em especial dos três oposicionistas) a ''manutenção dos contratos'', o pagamento das dívidas externa e interna e o compromisso com o ajuste fiscal. Da forma como o diálogo era posto (e uma vez que nenhum candidato se dispunha a contestá-lo), parecia que Bonner exigia algo tão evidente quanto a honestidade no trato com o dinheiro público, isto é, algo que não permitisse discordâncias no campo da política e que marcasse o desviante como portador de um déficit moral. (MIGUEL, 2004, p.102)
A falta de contestação por parte dos candidatos, assim como o fechamento do
campo discursivo em relação ao tema da economia (ver também Porto, 2007) indica que
não apenas o sistema mediático se tornou extremamente dependente dos fluxos de
capitais financeiros, mas os próprios governos. Um fenômeno que, como aponta
Habermas (2012), coloca limites decisivos sobre a liberdade de ação dos Estados e da
capacidade da opinião pública de se impor diante os imperativos sistêmicos dos
mercados. Pode-se perceber, portanto, que esses imperativos têm asfixiado a capacidade
crítica não apenas do campo mediático e jornalístico, mas das próprias elites políticas,
as quais se encontram numa situação em que a margem de manobra, nos assuntos
macroeconômicos, é muito pequena:
O fato é que, gostemos disso ou não, um determinado conjunto de características desta fase do capitalismo influencia diretamente os modos e os meios do governo e determina as prioridades dos Estados que são excessivamente vulneráveis aos movimentos dos recursos dos investidores estrangeiros. (GOMES, 2004, p.133).
Diante desse flagrante limite da capacidade da orientação mercadológica dos
media em determinar um padrão de cobertura de alta pluralidade (seja interna ou
externa), fica claro que o raciocínio de Gomes (2004) e de Alexander (1990) de que a
orientação ao mercado tende a enfraquecer a intervenção política dos media e a
fragilizar sua orientação político-ideológica é válido apenas em condições muito
específicas, sendo elas a saber:
a) quando a cobertura se refere a temas em que há conflitos interpretativos
entre as principais elites políticas. Do contrário (ou seja, em caso de
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“consenso”), tende-se a observar um fechamento do campo discursivo e,
portanto, uma baixa pluralidade interpretativa.
b) quando o mercado de mídia está estruturado em torno de uma baixa
competição entre as principais empresas de comunicação (oligopólio ou mercado
dominado por grandes corporações); e
c) quando há uma baixa polarização política.
No entanto, há diversos indícios que apontam que as duas últimas condições
estão se deteriorando fortemente, tanto no Brasil, como em outras partes do mundo.
Desse modo, teríamos contextos de mercados mais pulverizados e com públicos mais
segmentados, inclusive em termos ideológicos. Sob tais circunstâncias, defendemos que
o sistema de mídia reduz fortemente seu padrão catchall, pois as empresas de
comunicação precisam satisfazer um tipo de público mais polarizado, sem o qual não
haveria viabilidade econômica da empresa. Nosso argumento se baseia, portanto, na
premissa de que o mercado, devido à sua própria diferenciação interna, passa a ter
nichos de consumidores sedentos de um jornalismo com maior nível de coloração e
intervenção política. Nichos que, entretanto, podem formar verdadeiros mercados de
massa em contextos de alta polarização política, atraindo, desse modo, diversos
veículos, inclusive os do centro do sistema mediático, a assumir um padrão de
cobertura convergente às demandas cognitivas desse público consumidor.
Para ilustrar esse argumento e com o objetivo de extrapolar hipóteses para o caso
brasileiro, iremos tratar, na próxima seção, do caso estadunidense.
3 Fundamentando hipóteses a partir do caso estadunidense
O sistema de mídia estadunidense é, similarmente ao brasileiro, fortemente
orientado à logica comercial e, não obstante, vem observando crescentes níveis de
intervenção política e identificação ideológica. Algo muito diferente, portanto, do que se
esperaria do padrão “catch-all”. E isso vem ocorrendo, não a despeito do mercado, mas
sob a lógica do mercado, pois é, sob uma forte audiência e mercado fidelizado, que a
conservadora Fox News, por exemplo, vem se mantendo como uma das líderes do
mercado de mídia norte-americano. Seu tamanho e força é evidência, segundo Daniel
Hallin e Paolo Mancini, de que:
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[...] não há nenhuma conexão necessária entre a comercialização da mídia e um profissionalismo neutro. O processo de comercialização é susceptível de criar novas formas de jornalismo partidário e de paralelismo político, mesmo que tal processo enfraqueça os antigos. (HALLIN & MANCINI, 2004, p.286)
4
E não se trata de que a Fox News seja uma “exceção” ao padrão catch-all.
Pesquisas e dados mais recentes com relação aos hábitos de consumo no mercado de
mídia estadunidense mostram que há um movimento de crise da objetividade na
imprensa tradicional, principalmente entre os jovens (MARCHI, 2012), o que
constrange jornais e jornalistas a repensarem seu posicionamento na sociedade de modo
a garantir a sobrevivência de seu lugar de autoridade enquanto intérpretes do cotidiano.
Além disso, a polarização política crescente nos EUA se mostra associada a um
consumo de mídia também altamente segmentado e politicamente orientado. O conjunto
mais robusto de dados a esse respeito está disponível na pesquisa Political Polarization
& Media Habits: from Fox News to Facebook (Pew Research Center, 2014a).
Em um dos gráficos dessa pesquisa (ver Figura 01), pode-se perceber que,
quando se trata da confiança nos principais veículos do sistema de mídia estadunidense,
as exceções, na verdade, referem-se aqueles que conseguem obter a confiança do
mercado consumidor a despeito de qualquer orientação política e ideológica. Nesse
caso, há somente um veículo que consegue obter mais confiança do que desconfiança
em todo espectro politico-ideológico do público consumidor estadunidense, que é, a
saber, o Wall Street Journal.
Todos os demais veículos apresentam algum nível significativo de desconfiança
em um dos extremos da escala de identificação política do público ou uma evidente
polarização. Em relação aos polarizados, temos os seguintes veículos:
a) Credibilidade entre liberais e desconfiança entre conservadores: The New
York Times, The Washinton Post, MSNBC, The New Yorker, Político, Mother
Jones, Slate, The Huffington Post, The Colbert Report e The Daily Show.
b) Credibilidade entre conservadores e desconfiança entre liberais: The Blaze,
Fox News, Breitbart, Drudge Report, The Sean Hannity Show e The Glenn
Beck Program.
4 Tradução livre de: “[...] there is no necessary connection between commercializaton of media and
neutral professionalism. The shift toward commercialization is likely to create new forms of advocacy
journalism and political parallelism, even as it undercuts old ones.”
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A atual e fartamente documentada fragilidade do padrão “catch-all” para
descrever o nível de identidade ideológica dos diferentes veículos do sistema mediático
estadunidense, entretanto, não pode ser devidamente compreendido sem que levemos
em conta duas transformações decisivas que ocorreram nas últimas décadas e, até
mesmo, nos últimos anos. A primeira se refere ao aumento da polarização política e a
segunda à expansão vertiginosa da oferta de novos produtos no mercado de mídia. Com
relação ao aumento da polarização, outra pesquisa do Pew Research Center (2014b),
intitulada Political Polarization in the American Public, assim como um levantamento
do Instituto Gallup5 mostram que:
a) os polos de identificação ideológica tem aumentado, assim como as
zonas de consenso entre liberais e conservadores, ou seja o centro
político, tem se deteriorado (ver Figura 2)
Fonte: Pew Research Center, 2014b
b) A média da diferença de aprovação do presidente em exercício em
função da identificação partidária alcançou um pico histórico (ver
Figura 3)
5 Ver “Obama Approval Ratings Still Historically Polarized” em
<http://www.gallup.com/poll/181490/obama-approval-ratings-historically-po larized.aspx>. Acesso em 23
de março de 2015.
FIGURA 2
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Fonte: Gallup
c) Em comparação aos cidadãos que tendem ao centro político, os
setores mais polarizados são os mais politicamente interessados e
ativos - o que implica que eles votam mais, contribuem
financeiramente em maior propensão e discutem política mais
frequentemente. Ao mesmo tempo, também são os menos dispostos a
conversar com pessoas que pensam diferente (efeito caixa de
ressonância, ver Pew Research Center, 2014a).
d) O público conservador tende a confiar num universo menor de veículos e
buscam grupos mais politicamente homogêneos do que os liberais (ver
Figuras 4 e 5).
As implicações desses dados para os hábitos de consumo de mídia ficam ainda
mais nítidas quando levamos em conta que os heavy viewers (os usários intensos) são
os mais fiéis a um conjunto restrito de veículos, tendo, assim, um cardápio de fontes de
notícias mais limitado do que os usuários que apenas esporadicamente consomem mídia
noticiosa. Isso é o que está indicado na ampla revisão de literatura conduzida por
Markus Prior (2013) acerca da relação entre mídia e polarização política nos EUA. O
autor, a esse respeito, observa que: “usuários intensos [heavy viewers] da Fox news são
menos propensos a assistir a CNN ou a MSNBC, mesmo que brevemente” (p.113) 6.
Em convergência ao padrão mais “tolerante” dos liberais corroborado pelos dados do
6 Tradução livre de “heavier FNC viewers are less likely to watch CNN or MSNBC at least briefly.”.
FIGURA 3
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Pew Research Center (ver Figura 5), Prior (2013) também observa que “a relação entre
a duração de exposição à CNN ou à MSNBC com uma respectiva aversão à Fox News
parece ser mais fraca”7 (ibidem). O autor conclui, então, que: “um amplo segmento da
audiência de TV a cabo assiste notícias esporadicamente e não seletivamente, assistindo
diferentes canais em combinação. Na pequena porção dos usuários intensos de notícias
em TV a cabo, entretanto, uma exposição partidariamente orientada não é incomum.”
(PRIOR, 2013, p.114)8.
Fonte: Pew Research Center, 2014a
7 Tradução livre de:” The relationship between duration of exposure to CNN or MSNBC and avoiding
FNC may be somewhat weaker.” 8 Tradução livre de: “A large segment watches cable news infrequently and nonselectively, mixing
exposure to different cable news channels. In the small slice of heavy cable news viewers, however,
partisan selective exposure is not uncommon.”
FIGURA 4 FIGURA 5
VERSÃO PRELIMINAR PARA DEBATE, FAVOR NÃO CITAR
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Disso podemos deduzir o seguinte quadro: o aumento da polarização política
pode estar fazendo com que o público consumidor mais frequente de mídia noticiosa (o
heavy viewer) esteja se tornando cada vez mais seletivo em relação aos veículos em
função da coloração política e ideológica desses veículos. E isso teria uma implicação
decisiva para os negócios: deixar de fidelizar esse público por se adotar um padrão
catch-all pode ser um tiro no pé do ponto de vista mercadológico, pois é justamente
esse consumidor o que mais utiliza mídia noticiosa e que, portanto, o que mais estaria
disposto a pagar por ela. E tal disposição passa a ser decisiva para a sobrevivência de
um determinado veículo quando levamos em conta a segunda transformação aludida
acima: o aumento vertiginoso da oferta de novos produtos no mercado de mídia.
Atualmente, esse aumento se tornou efetivamente “vertiginoso” com a
massificação da internet. Entretanto, ele começa ainda na década de 80 do século XX
nos EUA com a disseminação da TV a cabo. E os efeitos para a mídia noticiosa e para a
polarização política aí já são bem consideráveis. Isso porque, segundo os estudos
conduzidos por Prior, a emergência da TV a cabo fez com que os consumidores de
entretenimento achassem nessa TV plenas possibilidades de consumir majoritariamente
entretenimento, evitando, assim, o noticiário. Este, explica o autor, como parte da grade
programação dos canais abertos acabava, durante a era da TV aberta, estimulando a
participação política dos menos politicamente interessados, pois
A exposição ao noticiário motivava aqueles com menor nível educação formal e os telespectadores menos politicamente interessados a comparecer às eleições. E uma vez que a visão desses telespectadores não era particularmente ideológica ou partidária, seus votos reduziam o impacto agregado da identificação partidária, fazendo com que as eleições fossem menos partidárias na era da TV aberta. (PRIOR, 2013, p.107)
9
Há ainda um claro impacto para o mercado de mídia noticiosa que o aumento de
entretenimento no mercado de mídia conduz: a mídia noticiosa passa a depender mais
do público com maior nível de educação formal e interessado em política, pois é
justamente esse público – que, aliás, é justamente o que mais está se polarizando
politicamente nos últimos anos - que não abandona de vez a hard news para aproveitar
as novas, fartas e baratas ofertas da indústria cultural do entretenimento. Uma oferta que
9 Tradução livre de: “News exposure motivated some of these less educated, less interested viewers to go
to the polls. And because their political views were not particularly ideological or partisan, their votes
reduced the aggregate impact of party ID, so elections were less partisan in the broadcast era.”
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- é oportuno observar - multiplica-se vertiginosamente e se torna mais barata com a
massificação da internet.
Entretanto, os impactos sobre a mídia noticiosa do aumento das opções de
consumo de mídia não se dão apenas no nível da perda da audiência dos menos
politicamente interessados e, assim, numa maior dependência em relação aos “heavy
viewers”. Há um outro conjunto de impactos que são observados no estudo de Norman
Nie e colegas (2010) intitulado The World Wide Web and the U.S. Political News
Market. No trabalho em questão, os autores testam os impactos da web no mercado de
mídia estadunidense a partir de uma lei econômica que estabelece algumas predições
que correlacionam custos de produção com a preferência dos consumidores:
[…] quando os custos de produção são altos, um número amplo de consumidores é necessário antes que ganhos possam se realizar. Na medida em que os custos diminuem, uma quantidade menor de consumidores é necessária para recuperar os custos de produção, de modo que o mercado pode absorver mais produtores. Quando apenas alguns poucos produtores entram no mercado, eles se posicionam no mercado de modo que sejam capazes de alcançar muitos consumidores, tipicamente mirando o centro da distribuição. (NIE et al, 2010, p.430)
10.
É por isso, então, que o padrão de catch-all era, até pouco tempo atrás, tão
robusto para explicar, em termos de lógica de mercado, o comportamento dos principais
produtos de mídia. Isso porque, antes da revolução tecnológica da internet e das mídias
digitais, os custos de se produzir mídia noticiosa eram muito mais altos. Então, apenas
algumas poucas empresas conseguiam sobreviver e o faziam justamente alcançando o
“centro da distribuição”e, para isso, era preciso ignorar as preferências mais específicas
de certos setores de consumidores menos “centristas” e mais politicamente orientados.
Mas o mundo da tecnologia mudou e dos negócios também. A internet, com sua
proliferação de milhares de sites de notícias com pequenas redações politizadas, fez
com que esse público mais interessado em política, mais seletivo em termos de canais e,
agora, cada vez mais politicamente consistente tivesse à mão, ou a alguns cliques, a
capacidade de encontrar uma mídia muito mais adequada a seu paladar, ou seja, menos
centrista e mais partidária. Isso porque, como apontam os autores do estudo referido
acima, a oferta de notícias, na internet, com seu custo de produção reduzido, “satura o
10
Tradução livre de: “when production costs are high, a large number of consumers is needed before
profits can be made. As costs decrease, fewer consumers are needed to recover the costs of production, so
the market can support more producers. When only a few producers enter the market, they place
themselves in a position where they are able to reach a lot of consumers, typically toward the center of the
distribution.”
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16
espectro de preferências”, atraindo os mais ideologicamente consistentes, ou seja, os
muito liberais ou os muito conservadores para si (ver figura 6).
Fonte: Nie et al, 2010
Isso explica, então, os resultados encontrados no trabalho em questão, o qual
aponta que o consumo daqueles que utilizam a internet como fonte complementar de
mídia noticiosa são mais ideologicamente polarizados dos que aqueles que utilizam
mídia noticiosa apenas de meios tradicionais (TV aberta ou a cabo). Assim, concluem
os autores, “as condições necessárias para o efeito de caixa de ressonância se mostram
evidentes; os indivíduos estão utilizando a internet para se expor a opiniões similares às
que já possuem.” (NIE et al, 2010, p.436)11.
Outro estudo que aponta para a propensão dos meios noticiosos norte-
americanos produzirem conteúdo politicamente polarizado com o objetivo de atingir
nichos específicos de mercado foi desenvolvido por Natalie Stroud (2011). Segundo a
autora, “atualmente é indiscutível que os Estados Unidos estejam retornando para uma
era de partidarismo midiático” (2011, p. 7)12, uma vez que as empresas noticiosas
manifestam inclinações políticas para competir pela audiência. De acordo com Stroud, o
“partidarismo” funcionaria como um critério para a seleção do noticiário por parte do
11
Tradução livre de: “necessary conditions for the echo chamber effect are in place; people are using the
Internet to expose themselves to opinions similar to their own.” 12
Tradução livre de: “Today, the United States arguably is returning to an era of media partisanship”.
FIGURA 6
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público, que tenderia a optar por jornais, revistas e demais fontes de notícias que
demonstrassem compartilhar opiniões semelhantes. Os dados produzidos pelo Pew
Research Center reproduzidos na figura 1 ajudam a corroborar a análise do autor.
Diante disso propomos que o atual cenário da mídia noticiosa assiste aos
seguintes processos:
a) Uma maior dependência em relação aos usuários intensos
b) Esses usuários intensos estão ficando mais politicamente consistentes e
interessados, especialmente os mais jovens, em um jornalismo que mescle
informação com opinião
c) Com a polarização política, boa parte deles tendem a migrar para (ou a
utilizar mais) produtos de mídia noticiosa que não adotam o padrão “catch-
all”
d) A internet e as novas mídias oferecem esse tipo de mídia (fora do padrão
“catch-all”) a um baixo custo e conseguem, assim, sobreviver, mesmo
alcançando uma pequena parcela do público consumidor de notícias. Uma
parcela que, apesar de minoritária, é fiel e tem mais propensão a contribuir
financeiramente em função de “razões políticas” e frequência de uso.
e) Os veículos e produtos de mídia noticiosa que adotam o padrão “catch-all”
assistem, então, a duas perdas de consumidores consideráveis: aqueles que
migraram para o entretenimento e praticamente deixaram de consumir mídia
noticiosa e aqueles dos politicamente consistentes que agora encontram, na
internet, um rol de ofertas mais adequado a seu paladar cada vez menos
flexível ideologicamente (devido ao aumento da polarização política).
No entanto, seria ingênuo supor que as grandes corporações da mídia estariam
simplesmente “observando” essas perdas, sem reagir às transformações em curso. Se
assim fosse, não haveria como explicar o sucesso da própria Fox News, que não pode
ser considerada, pela amplitude de audiência e força econômica, um exemplo de “mídia
de nicho”. Trata-se, sim, de uma mídia que corre muito longe do padrão “catch-all” e
que, portanto, melhor representa e exemplifica como, para ser competitivo e sobreviver
no atual mercado, é preciso assumir identidade ideológica e fidelizar o público mais
decisivo para a sobrevivência dos negócios, que é, a saber, o “heavy user”.
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18
4 Implicações para o caso brasileiro
Se o aumento da polarização política e da expansão vertiginosa da oferta tanto
de entretenimento como de mídia noticiosa na internet são as razões subjacentes a um
perfil de produtos mediáticos nos EUA cada vez mais ideologicamente enviesados e,
portanto, cada vez menos afeitos ao padrão “catch-all”, então podemos assumir, com
alto grau de plausibilidade, que o mesmo está ocorrer no sistema de mídia brasileiro.
Isso porque o país assiste a um movimento de crescente polarização política, o qual se
manifesta tanto nas redes sociais online (blogosfera progressista13 x rede de oposição
radical14), como nas ruas (13 de março x 15 de março).
A questão mercadológica atravessa a relação entre mídia e política, porém não se
esgota nela. No Brasil, o amadurecimento de uma democracia presidencialista nos
últimos trintas anos caminhou lado a lado ao fortalecimento de um partido político, o
Partido dos Trabalhadores (PT), que alcançou os mais altos índices de simpatia, votação
e aprovação durante os mandatos de 2002 a 2013 à frente da presidência da República
(Braga; Pimentel Jr., 2011)15. Isso aponta para um modelo de democracia em que a
variável “partidos políticos” ganha proporção na relação entre imprensa e política.
Nesse cenário, caberia à “grande mídia” desempenhar ativamente o papel de oposição,
lugar historicamente entendido como dever profissional, mas que nos últimos anos
também encontrou justificativa na sensação de esvaziamento da oposição política
iniciada com o governo de coalizão do PT.
Diante disso, sustentamos que o Brasil pode estar passando por um fenômeno
muito similar ao que vem ocorrendo nos EUA, especialmente agora com a aparente
ampliação da polarização política. Uma polarização que pode estar relacionada à
predominância de um partido no cenário político brasileiro nos últimos 12 anos, quando
da eleição de um candidato do Partido dos Trabalhadores (PT) à presidência da
República. E, se durante o governo Lula, o PT alcançou os mais altos índices de votação
e aprovação, um movimento de rejeição ao governo do PT vem ganhando contornos
mais nítidos, sobretudo a partir da chegada de Dilma Rousseff à presidência em 2010, o
que aponta para a emergência de públicos bastante polarizados.
13
Ver Magalhães & Albuquerque (2014) 14
Ver Dos Santos (2014) 15
Além do estudo de BRAGA & PIMENTEL JR (2011), sobre identificação partidária, principalmente
no que concerne à força do PT junto ao eleitorado brasileiros, consultar Borba, Carreirão & Ribeiro
(2011); Paiva & Tarouco (2011); Veiga (2011); Paiva & Tarouco (2011).
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19
Além disso, as tensões entre governo e “grande mídia” já haviam se acirrado nas
eleições de 2010. Um exemplo dessa “animosidade” ocorreu durante um comício em
apoio à candidata petista, quando o então Presidente da República Luís Inácio Lula da
Silva foi acusado de atacar a imprensa e ameaçar a liberdade de expressão, ao dizer que
a vitória de Rousseff não significava apenas derrotar o adversário da oposição José
Serra nas urnas, mas também “derrotar alguns jornais e revistas que se comportam como
se fossem partido político e não têm coragem de dizer que são partido político e têm
candidato”. Uma parte significativa dos meios noticiosos, em especial os impressos de
maior circulação no país, respondeu às críticas de Lula por meio de reportagens, artigos
e editoriais16.
A essa percepção de ameaça identificada em ambos os lados, somam-se
preocupações resultantes dos conflitos entre imprensa e governo nos vizinhos
latinoamericanos, envolvendo acusações recíprocas de comportamento antidemocrático,
cancelamento de licenças de transmissão televisiva e leis de regulamentação dos meios
de comunicação (Cañizales & Lugo-Ocando, 2008; Mauersberger, 2012). Tais
mudanças serviram de base a uma série de acusações, por parte de setores da mídia
tradicional, de que o governo e, ainda mais, os militantes do PT estariam engajados em
práticas sistemáticas de ameaça à liberdade de imprensa. Esse fenômeno pode estar
relacionado à “virada à esquerda” experimentada pela América Latina de modo geral
nos últimos anos – o que gerou a percepção comum de mudança de rumo político em
países como Argentina, Bolívia, Chile, Equador, Uruguai, Venezuela, entre outros -
levando ao poder agentes que, historicamente, ocuparam papel marginal no cenário
político.
É, nesse contexto de polarização envolvendo esses atores políticos emergentes,
que os produtos de mídia brasileiros se veriam, então, cada vez mais, seduzidos a
fidelizarem consumidores ávidos por coberturas marcadas pela parcialidade e pelo clima
do momento de “anti-petismo”, especialmente forte nos setores da elite econômica
brasileira.
Entretanto, é importante repisar que a hipótese de fragilização do padrão “catch-
all” do sistema de mídia brasileiro não implica que este sistema, previamente ao atual
16
A título de exemplo: <http://oglobo.globo.com/eleicoes -2010/cresce-apoio-manifesto-pela-imprensa-
4987594#>; <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2609201003.htm>;
<http://www.estadao.com.br/noticias/geral,editorial-o-mal-a-evitar,615255>
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cenário de polarização política crescente e de expansão da oferta de produtos
mediáticos, não assumia um papel politicamente ativo e interventor no jogo político.
Como visto na primeira seção deste trabalho, apesar de ter sido historicamente
controlado por agentes privados, o sistema de mídia brasileiro, em diversos momentos,
apresentou padrões de cobertura politicamente enviesados e pouco pluralistas, tanto
interna como externamente. Desse modo, a realidade brasileira parece confirmar, tanto
antes, como agora, o argumento de Mancini e Hallin de que a dependência do sistema
de mídia em relação ao campo econômico não necessariamente e automaticamente
orienta esse sistema a um profissionalismo neutro.
Oportuno observar, nesse sentido, que, mesmo estando ainda mais
comercialmente orientadas, as práticas jornalísticas, no Brasil, não deixaram de assumir
papel ativo e advocatício. Isso porque é possível observar uma coexistência entre uma
cobertura pluralista com uma atuação ativa/advocatícia. Uma coexistência que inclusive
perpassa tanto os períodos eleitorais (ver Aldé, Mendes e Figuereido, 2008; Porto, 2007,
Miguel, 2004), como faz parte de debates públicos específicos (ver Maia, 2009; Miola
2012; Lycarião & Maia, 2014). Esse conjunto de pesquisas, desse modo, corrobora, em
grande parte, o que tem argumentado Albuquerque (2005, 2011, 2012, 2013) em relação
ao papel ideologicamente flexível com que o sistema de mídia brasileiro advoga em
favor de determinadas agendas e atores políticos.
A perspectiva sustentada pelo autor tem inclusive mobilizado revisões, por parte
de Hallin & Mancini (2011), acerca da capacidade da variável “paralelismo político” em
descrever com fidedignidade o tipo de relação que o sistema mediático estabelece com
as elites e sistemas políticos ao redor do mundo:
A proposta de Albuquerque em desagregar o conceito de paralelismo político e, em particular, de separar o pluralismo externo - ou seja, a tendência do diferentes meios de comunicação em se alinhar a diferentes tendências partidárias – do papel ativo dos meios de comunicação – o qual se refere á tendência da mídia de intervir na vida política, de se envolver partidariamente, ou de tentar influenciar os acontecimentos políticos – parece ser uma ideia potencialmente valiosa, e que se encaixa nos achados de outros colaboradores, incluindo Balcytiené e McCargo. Assim como no caso do profissionalismo jornalístico, o fenômeno do paralelismo político pode, de fato, ser multidimensional, e trata-se de uma questão em aberto até que ponto suas diferentes formas ou elementos variam juntos. (HALLIN & MANCINI, 2011, p. 295)
17
17
Tradução livre de: “Albuquerque’s proposal that we disaggregate the concept of political parallelism
and, in particular, that we separate external pluralism – that is, the tendency for different media to express
VERSÃO PRELIMINAR PARA DEBATE, FAVOR NÃO CITAR
21
A proposta de pensar a relação do sistema mediático com as elites políticas e,
por consequência, com os debates públicos a partir de uma perspectiva
multidimensional tem encontrado fortes justificativas não apenas nos fenômenos até
aqui aludidos, mas também na pesquisa comparativa de estudos do jornalismo. Um
exemplo empiricamente robusto, nesse sentido, se refere às 1.800 entrevistais
conduzidas por Hanitzsch e colegas (2011) em 18 países, dentre eles o Brasil. De acordo
com os dados fornecidos pelos autores, os jornalistas brasileiros, em comparação aos
colegas estadunidenses e alemães, demonstram o nível mais alto de concordância de que
é seu papel “ advogar por transformação social” (p.292).
O debate atual na pesquisa em jornalismo demonstra, assim, que é necessário se
analisar a relação entre o sistema mediático e as elites políticas não mais de um
paradigma de vinculação permanente entre esses setores. Um paradigma no qual os
produtos desse sistema assumiriam vinculações políticas estáveis. Passa a ser mais
fecundo, portanto, compreender as diversas e multifacetadas circunstâncias que elevam
o nível de intervenção do sistema mediático no jogo político e também nos debates
públicos.
Dentre elas, uma variável central para explicar o comportamento do caráter ativo
e advocatício do sistema mediático brasileiro é a composição das relações entre oferta e
demanda do mercado de mídia. A partir do momento que a oferta aumenta,
especialmente com a disponibilidade de conteúdo em formato online, aumenta-se
também a pressão sobre o polo produtor em criar novas estratégias de fidelização.
Paralelamente, o polo da demanda se vê, cada vez mais, politicamente dividido ou
polarizado. Nesse contexto, passa a ser de interesse de ambas as partes (da produção e a
do consumo), a emergência de um jornalismo mais ideologicamente definido. Isso
porque a produção ganha ao conquistar consumidores fiéis (num mercado marcado pela
volatilidade) e os consumidores ganham por identificarem fontes confiáveis em que
poderão extrair, sem muito esforço, o significado político dos fatos, ou seja, uma
opinião sobre os mesmos.
different partisan tendencies – from the political activity of media – the tendency of media to intervene in
political debate, to engage in advocacy, or to try to influence political events – seem like a potentially
valuable idea, and it fits the findings of other contributors, including Balcytiené and McCargo. As with
the case of journalistic professionalism, the phenomenon of political parallelism may in fact be
multidimensional, and it is an open question to what extent its different forms or elements will vary
together.”
VERSÃO PRELIMINAR PARA DEBATE, FAVOR NÃO CITAR
22
Considerações finais
Ainda que pregnantes, os indícios aqui referidos para fundamentar a hipótese de
que o sistema de mídia brasileiro vem observando uma inflexão em seu pluralismo
interno apresenta diversas limitações que impedem um diagnóstico mais seguro. Para
isso, seria necessário a disponibilidade de dados longitudinais, estatisticamente
significativos, confiáveis e válidos acerca das dimensões ativas e advocatícias
perpetradas pelos diferentes centros do sistema de mídia brasileiro. Isso porque, sem
esses dados, qualquer análise acerca de eventuais diferenças, por exemplo, entre o
padrão de cobertura desses centros durante o período FHC com os períodos governados
pelo PT (Lula de Dilma) estão constrangidos a assumir caráter meramente especulativo
ou hipotético.
É, então, sob essas constrições que nosso argumento em questão se apresenta.
De todo modo, é oportuno salientar que uma premissa desse argumento já dispõe de
vasta fundamentação empírica, que é, a saber, a de que a orientação comercial dos
produtos mediáticos não necessariamente os conduz a um padrão “catch-all” e, portanto,
a se comportarem como ideologicamente neutros. De modo diverso, há circunstâncias
conjunturais, como o aumento do nível de polarização política, e estruturais, como o
aumento da competitividade acompanhado de drástica redução dos custos de produção,
que tendem a estimular justamente o oposto: uma mídia com cor, ideologia e, em alguns
casos, até com partido e candidato.
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