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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCOCENTRO DE ARTES E COMUNICAO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS
JEFFERSON CLEITON DE SOUZA
A NOVA HERMENUTICA E TEORIA DA RECEPO EMJAUSS E RICOEUR
RECIFE
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCOCENTRO DE ARTES E COMUNICAO
PROGRAMA DE PS- GRADUAO EM LETRAS
JEFFERSON CLEITON DE SOUZA
A NOVA HERMENUTICA E TEORIA DA RECEPO EMJAUSS E RICOEUR
Dissertao apresentada ao Programade Ps-graduao em Letras daUniversidade Federal de Pernambucocomo requisito parcial para obteno dograu de Mestre em Teoria da Literatura.
Orientador: Prof. Dr. Anco MrcioTenrio Vieira
RECIFE2011
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Catalogaonafonte
BibliotecriaGluciaCndidadaSilva,CRB41662
S729n Souza, Jefferson Cleiton de.
A nova hermenutica e teoria da recepo em Jauss e Ricoeur / JeffersonCleiton de Souza. Recife: O autor, 2011.
82p. ; 30 cm.
Orientador: Anco Mrcio Tenrio Vieira.
Dissertao (Mestrado) Universidade Federal de Pernambuco, CAC.
Letras, 2011.
Inclui bibliografia.
1. Literatura. 2. Fenomenologia. 3. Ontologia. I. Vieira, Anco Mrcio Tenrio(Orientador). II. Titulo.
809 CDD (22.ed.) UFPE (CAC2011-39)
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AGRADECIMENTOS
Agradeo ao meu orientador Anco Mrcio Tenrio Viera por ter acreditadoneste projeto, mesmo quando ele era apenas desejo e possibilidade, e por ter medado o privilgio de t-lo como interlocutor nesses ltimos seis anos. Alm dele, euno poderia esquecer a contribuio determinante do professor Aldo Lima, que, comas suas valiosas indicaes sobre a teoria do leitor, tornou possvel a minhaincurso arqueolgica em torno da recepo fenomenolgica. Somam-se importante atuao desses dois professores e amigos as intervenes do professorAntony Bezerra, que me ajudaram a formalizar as minhas ideias e a perceber
perguntas latentes nesta dissertao que ainda no foram desveladas e nemrespondidas.Tambm dirijo os meus agradecimentos aos meus colegas de trabalho Andr
Pessoa, que me ajudou a entender a filosofia meandrante de Heidegger, e a RobsonTavares por ter sido um leitor perspicaz do meu texto. Tambm estendo taisagradecimentos a Helio Castelo Branco, meu amigo, leitor apaixonado das ideiascontidas nesta dissertao; a Marta Aguiar, amiga que se entusiasmou com a teoriafenomenolgica; a Elida Nascimento, que, pela sua perspiccia de analista, viu agestao da Fenomenologia em mim; e a Aline Campelo, que se preocupouheideggerianamente com o sentido dessa dissertao no meu lebenswelt.
E, por falar em vivncias, eu no poderia esquecer-se de agradecer aos meusamigos da Ps-Graduao, Ane Montarroyos, ngela Gandier e Fernando Oliveira,que tornaram as aulas e as discusses tericas mais ricas e, claro, dos meus paisEgildo Heleno de Souza e Orelice Helena Pereira, que me conceberam enquantodesejo.
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a vida que dita as regras para a Fenomenologia, no o contrrio. (Bordini)
A experincia primria de uma obra de arte realiza-se nasintonia com (Einstellung auf) seu efeito esttico, isto , nacompreenso fruidora e na fruio compreensiva. (Jauss).
Mesmo quando Van Gogh pinta uma cadeira, ele pinta ohomem, projeta uma figura humana, a saber, o que tem estemundo representado. Os testemunhos culturais fornecem,assim, a densidade da coisa a essas imagens do homem:fazem-nos existirem entre os homens (entre les hommes) eentre (parmi) os homens encarnando-as em obras.(Ricouer)
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Resumo
Esta dissertao tem por objetivo investigar como a Nova Hermenutica de
orientao fenomenolgica e ontolgica, proposta por Martin Heidegger e
sistematizada por Hans-Georg Gadamer, dialogou com as teorias da recepo deHans Robert Jauss e Paul Ricouer. Para tanto, buscou-se averiguar como as
conquistas da Nova Hermenutica foram assimiladas pelas teorias da recepo
desenvolvidas por Hans Robert Jauss, atravs da Esttica da Recepo, na
Alemanha, assim como pelo filsofo francs Paul Ricouer, especificamente em sua
Hermenutica de Smbolos. O propsito desta pesquisa, portanto, demonstrar
como as teorias da recepo se posicionaram quanto s mudanas que essa
revoluo do pensamento promoveu em relao s concepes de sentido, de
compreenso, de interpretao, de mtodo, de ontologia e de temporalidade.
PALAVRAS-CHAVES: Nova Hermenutica. Recepo. Fenomenologia. Ontologia.
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ABSTRACT
This dissertation has as its purpose to investigate how the New Hermeneuticsof phenomenologic and ontologic orientation, proposed by Martin Heidegger andsystematized by Hans-Georg Gadamer, has dialogued with Hans Robert Jauss andPaul Ricouers reception theories. For this, one has analyzed the ideas developed byHans Robert Jauss, through his Aesthetics of Reception, in Germany, as well as bythe French philosopher Paul Ricouer, particularly in his Hermeneutics of Symbols.The goal of this research, therefore, is to show how the theories of reception have
emplaced themselves related to the changes that this revolution of thought haspromoted towards the conceptions of sense, comprehension, interpretation,method, ontology and temporality.
KEY-WORDS: New Hermeneutics. Reception. Phenomenology. Ontology.
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SUMRIO
Introduo ...................................................................................................................11 Arqueologia da nova Hermenutica ........................................................................ 4
2 A Fenomenologia do Olhar e a Moderna Teoria da Literatura ...............................14
2.1 O Olhar Fenomenolgico de Husserl e Heidegger .............................................14
2.2 O Nascimento da Teoria da Literatura e o Leitor Fenomenolgico ....................21
3 Rumo ao Dilogo, Emancipao e ao Ser...........................................................26
3.1 Heidegger: A Celebrao da Hermenutica Ontolgica......................................26
3.2 Heidegger: Profeta da Recepo ........................................................................ 35
3.3 Gadamer: Celebrao da Hermenutica da Linguagem-Dilogo........................41
4 Iguais, mas Diferentes: Hans Robert Jauss e Paul Ricoeur...................................52
4.1 Hans Robert Jauss: A Nova Hermenutica e a Teoria da Recepo..................52
4.2 Paul Ricoeur: A Nova Hermenutica e a Teoria da Recepo............................61
Concluso ................................................................................................................75
Referncias ...............................................................................................................78
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INTRODUO
A noo de Hermenutica, tradicionalmente, esteve relacionada arte da
interpretao, isto , a sistemas interpretativos e mediaes. Na Grcia antiga, por
exemplo, os sofistas se utilizavam de analogias cosmolgicas para recuperar e
explicar os sentidos perdidos da epopeia homrica, assim como na Idade Mdia,
quando se desenvolveu amplamente a exegese bblica, os hermeneutas desseperodo desenvolveram nveis de interpretao que buscavam dar conta do
significado mais literal ao mais simblico. Nesse sentido, como se pode perceber,
durante um longo perodo da histria da Hermenutica o explicar, subtilitas
explicandi, era a atividade que mais caracterizava o ethos dessa disciplina
humanstica, pois ela estava a servio de um projeto comum: vencer a alienao
temporal que separa o nosso mundo em relao aos dos textos.
Entretanto, a partir da Hermenutica romntica, houve uma revoluo nasestruturas dessa disciplina, pois o telogo e hermeneuta alemo Schleiermacher
promoveu uma unidade entre a subtilitas intelligendi, compreenso, e subtilitas
explicandi, a interpretao ou explicao, asseverando que esta ltima era apenas
uma estrutura de explicitao da primeira, fato que tornou a compreenso a tnica
dos estudos hermenuticos. Alm disso, esse filsofo transformou o pensamento
hermenutico numa filosofia geral, dissolvendo a reflexo em torno das
particularidades das diversas prticas exegticas, isto , da Teologia, do Direito, etc.Soma-se a essas inovaes, o fato de outro hermeneuta, Dilthey, ter dicotomizado a
epistemologia em cincia do esprito e da natureza, concepo que o levou a
caracterizar a primeira do ponto de vista do saber, pela compreenso, e a segunda,
pela explicao. Em outras palavras, esse filsofo expulsou radicalmente das
Humanidades o estatuto da explicao.
Paralelo a isso, assistimos, no incio do sculo XX, ao nascimento do mtodo
fenomenolgico, concebido pelo filsofo alemo Husserl, que se tornou uma
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alternativa de acesso aos sentidos e significaes (essncia). Essa nova forma de
saber, que prometia revelar o sentido das coisas em seu mago, inaugurou uma
nova imagem da promoo dos sentidos, pois esse mtodo no trabalhava com
pressupostos metodolgicos, mas atravs da intuio racional, isto , baseado no
poder que a conscincia cognoscitiva e orientada intencionalmente para os objetos
tem de doar aos objetos o seu significado mais universal e essencial.
Para completar essas inovaes no campo da promoo do sentido, o filsofo
Martin Heidegger, discpulo dissidente de Husserl, soube unir determinadas
sugestes do seu antigo mestre Hermenutica romntica e metafsica, levando-o
a construir um caminho terreno (existencial) e temporal e no mentalista e
essencialista, como o de Husserl, para a ontologia. Heidegger, na dcada de 1920,lanou o livro Ser e Tempo, no qual funda a noo de compreenso fundamental,
isto , que o compreender inerente existncia. A partir desse momento,
aprendemos a relacionar a compreenso dimenso ontolgica, pois para
Heidegger, o Ser estava relacionado compreenso e ao mundo. Nesse sentido,
Hans-Georg Gadamer, que foi aluno de Heidegger, publicou, na dcada de 1960, o
livro Verdade e Mtodo, no qual, em cotejo com as suas contribuies pessoais,
dialogou com as idias de Ser e Tempo e, sobretudo, com a segunda fase dopensamento de Heidegger. Nesse livro, Gadamer mostra-se fiel Hermenutica
romntica e filosofia de Heidegger no que diz respeito nfase na compreenso,
embora ele no d continuidade noo de compreenso fundamental do autor de
Ser e Tempo, j que optou por uma espcie de dialtica socrtica como
fundamento hermenutico.
Desse modo, as reflexes em torno da compreenso, da existncia e da
Fenomenologia levaram cada vez mais Heidegger e Gadamer a investigar aontologia da compreenso, tornado-se recorrente, portanto, nas obras desses dois
filsofos alemes, termos como escuta e dilogo. Devido a isso, a atuao
hermenutica dos autores de Ser e Tempo e Verdade e Mtodo, pautada na
Fenomenologia e na ontologia, levaram os estudiosos da Hermenutica a se referir
vertente de pensamento desses dois filsofos como Nova Hermenutica.
Posto isso, no difcil de constatar que a Nova Hermenutica, heideggeriana
e gadameriana, assim como a Fenomenologia de Husserl, ofertaram ao sculo XX
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novas formas de pensar a produo do sentido paralela s mediaes e
pressupostos metodolgicos.
Nesse sentido, essas noes passaram a integrar os estudos literrios desde
1930, atravs dos estudos de Roman Ingarden, autor de A obra de Arte Literria,
assim como por meio do manual Teoria da Literatura, da dcada de 1940, de Ren
Wellek e Austin Warren, trabalhos, no campo literrio, que aproximou da literatura a
Fenomenologia de Husserl.
Por esta razo, na estruturao de nosso trabalho procuramos demonstrar,
inicialmente, como se desenvolveu histrica e teoricamente o conceito de Nova
Hermenutica no captulo Arqueologia da Nova Hermenutica, assim como,
posterior a ele, buscamos, no captulo A Fenomenologia do Olhar e a ModernaTeoria da Literatura, demonstrar como se deu a passagem da Fenomenologia para
os estudos literrios nas dcadas de 1930 e 1940.
Percorrido esse trajeto, possvel constatar que nesse perodo os estudos
literrios e estticos estabelecidos pelo Formalismo e pela Fenomenologia criaram a
categoria do leitor implcito, que, na dcada de 1960, teve o seu desdobramento
nas pesquisas da escola de Konstanz, na Alemanha, com os trabalhos de Hans
Robert Jauss e Wolfgang Iser. Ainda nesse perodo de efervescncia da escola deKonstanz, o filsofo francs Paul Ricoeur lana o livro Conflito das Interpretaes.
Nesta obra, por meio de um dilogo, adentra, de certa forma, no horizonte das
sugestes da Nova Hermenutica, sobretudo, naquilo que se refere questo da
recepo e ontologia da compreenso. Por isso, o terceiro captulo de nossa
dissertao, Rumo ao Dilogo, Emancipao e ao Ser, discute as principais
reflexes e sugestes da Nova Hermenutica, para que no ltimo captulo do
trabalho, intitulado Iguais, mas Diferentes: Hans Robert Jaus e Paul Ricouer,sejamos conduzidos a vislumbrar a configurao do pensamento de Heidegger e
Gadamer no desenvolvimento da teoria da recepo do terico alemo e do filsofo
francs.
Por outro lado, alm de ambicionarmos compreender os fundamentos dessa
Nova Hermenutica propensa escuta, recepo e ao dilogo, temos por telos
(meta) responder, em parte, uma angstia que paira sobre os comentadores da
recepo fenomenolgica. De um modo geral, queixam-se que o leitor
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fenomenolgico uma estrutura do texto, alm disso, reivindicam a posio do leitor
real nessa teoria. Dentre as anlises, tentaremos responder ao argumento do terico
ingls Terry Eagleton (2003), que, em seu manual Teoria da Literatura,confessa que
esse leitor lana um problema epistemolgico investigao terica, pois, de acordo
com ele, esse tipo de leitor s se torna objeto de estudo quando efetua e concretiza
a leitura. Entretanto, intumos que, para alm do leitor real de carne e osso, o
analista da literatura pode encontrar na performance da recepo do leitor
fenomenolgico uma via de acesso do mundo da linguagem para o da vida
(lebenswelt).
1. Arqueologia da Nova Hermenutica
Etimologicamente, o termo hermenutica provm de Hermes, deus grego
conhecido por sua habilidade de transportar as mensagens enviadas pelos deuses
aos mortais.1Ao longo do tempo, esse termo passou a ser utilizado para nomear
uma disciplina humanstica que se impunha a tarefa de reavivar os significados
silenciados pelo tempo atravs da arte da interpretao. Segundo Luiz Costa Lima
(LIMA, 1983, p.52), como arte de interpretao, a hermenutica uma atividade
conhecida desde a Era Clssica ateniense, pois os pensadores dessa poca
estiveram interessados na reabilitao dos significados perdidos da epopeia
homrica. Desse modo, os gregos foram os primeiros estudiosos, na cultura
ocidental, a enfrentar um dos problemas centrais da disciplina Hermenutica, isto ,
o hiato temporal que separa o mundo do texto em relao ao do intrprete. O
projeto de superar esse hiato se tornou evidente, no mundo grego, quando os
1Segundo Peixoto (2003), Hermes, filho de Zeus e Maia, ao nascer foi enfaixado com gazes e colocado num
bero como era de costume. Entretanto, esse deus irrequieto se libertou das amarras das gazes e saiu em direoao mundo. Nas proximidades da caverna onde nascera, Hermes construiu com uma carapaa de tartaruga e tripa
de bode a primeira lira. Mas logo em seguida, guardou a lira no bero e numa determinada noite saiu pelo mundoostentando a astcia. Esse deus ao cobiar o gado do deus Apolo arquitetou e ps em prtica uma artimanha pararoub-los. Ao transladar os animais da Tesslia em direo estrada arenosa de Pilos, Hermes ps em prtica asua astcia, inverte o sentido tanto de suas pegadas quanto a desses animais, para ludibriar Apolo. Finalmente,
quando este descobre o feito, atravs do relato de um ancio, que testumanhara a passagem de Hermes com ogado, resolve pedir a interveno de Maia e Zeus, para reapropriar-se dele. Todavia, ao ver a lira produzida por
Hermes, o deus da beleza almejou trocar seu gado pelo instrumento musical. Zeus, por sua vez, orgulhoso dahabilidade do filho, nomeou-o mensageiro, para que ele transmitisse as suas ordens ao mundo e escoltasse os
mortos ao inferno.
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estudiosos de educao da Era Clssica, acentuadamente especulativa, se
impuseram a misso de recuperar o mundo mtico de Homero, atravs da
hermenutica de A Ilada e A Odissia. De acordo com Francisco Marshal, em
Alegoria de Ningum:
Situados definitivamente fora do mundo do mito, s podemosreconstruir nossa relao com este mundo erguendo pontes,artifcios que superem a distncia e nos recomuniquem com aqueleuniverso perdido. Pontes interpretativas, poderamos dizer, semesquecer que para muitos as pontes no interessam: podem chegarl simplesmente aterrando as lacunas, com entulho epistemolgicomoderno e contemporneo. A distncia, entretanto, est dada;sabemos que no mundo de Homero e Ulisses vigora outro conjuntode noes de tempo, verdade, espao, linguagem, condio humanae divina, um mundo com formas de organizao e com padrescomunicativos bem diversos dos nossos, presenas e ausncias quenos distinguem radicalmente. Diferena no fundamento. Outraontologia vigente. Um mundo sem escrita e com pouca cidade,imediatamente afastados de ns, alfabetizados da cidade.(MARSHAL,2009, p.19)
Esse empreendimento, portanto, de superar a distncia histrico-ontolgica
que separa o passado do presente foi, nitidamente, a maior ambio da
Hermenutica desde seus primrdios, o que tornou a histria dessa disciplina, aolongo dos sculos, um testemunho vivo desse esforo de superao temporal. Os
pensadores do mundo clssico grego, por exemplo, alienados da cultura
mnemnica do perodo Arcaico tiveram que construir pontes para trazer de volta
fala o universo homrico por meio de instrumentalizaes e mediaes
hermenuticas. Tais procedimentos foram levados a srio pelos sofistas Tegenes
de Rgio e Metrodoro de Lmpsaco, pois eles, de acordo com os seus horizontes de
expectativa, construram importantes mediaes hermenuticas para o acesso
obra de Homero.
De acordo com Marshal (2009), Tegenes, filsofo do sculo VI a.C., que
influenciou os sofistas da Era Clssica, buscou interpretar as obras de Homero, A
Ilada e A Odisseia, relacionando a economia interna delas, isto , as suas
narrativas, deuses, mitos e tramas, etc., com os elementos csmicos, como por
exemplo, ar, ter, etc., j que para o entendimento cosmolgico, a fecundidade da
terra e da vida no universo dependiam da combinao desses elementos. Fato que
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elucida o horizonte, extremamente especulativo dos sofistas, pois eles se utilizaram
explicitamente de uma alegoria fsica para superar a distncia histrico-ontolgica
que os separava do horizonte de Homero, o que, de certo modo, denuncia as
preocupaes cientficas dos sofistas. J o filsofo Metrodoro de Lmpsaco, que
pertenceu ao grupo de Anaxgoras, por sua vez, ocupou-se hermeneuticamente em
desvelar os sentidos ocultos da narrativa de Homero, pois para ele, subjacente ao
sentido dessa narrativa, havia um oculto que o sbio escolado teria que interpretar.
Assim como Tegenes de Rgio, Metrodoro de Lmpsaco, atravs de alegoria fsica
e fisiolgica deu s antigas interpretaes religiosas das obras de Homero um cunho
especulativo.
Nesse sentido, os problemas gerais postos pela interpretao no sinquietaram Tegenes e Metrodoro e os demais sofistas, mas tambm o filsofo
Aristteles que se dedicou a investigar, alm dos problemas gerais da interpretao,
a ontologia da obra de arte literria, atravs da Potica, e o discurso pblico, por
meio da Retrica. Segundo Jouve:
Desde a Antiguidade, o ensino, consciente das dificuldadescolocadas pela interpretao dos textos, afirma a necessidade de
se fundamentar num mtodo de leitura. Suas bases lhe sodadas, em primeiro lugar, pelos sofistas, depois, e, sobretudo,pelas obras de Aristteles, Retrica e Potica. Efeitos de ritmo,estilo, figuras, convenes genricas: todos elementos objetivosque permitem uma anlise do texto e, consequentemente,entender um sentido essencialmente fugaz. (JOUVE, 2002, p.89).
A esse respeito, as obras A Retrica e A Potica, de Aristteles, foram
responsveis por estabilizar a comunicao pblica e literria no mundo grego,
atravs de suas grades de leitura, pois, no que se refere, especificamente, ao
mbito literrio,A Poticade Aristteles pode ser tomada como o primeiro conjunto
de normas, arqutipos e convenes artsticas do Ocidente, o que significa dizer,
num vocabulrio da moderna Teoria da Literatura, que ela foi a primeira
racionalizao de um horizonte de expectativa literrio. Todavia, ainda segundo
Jouve (2002), apesar de A Potica ter elaborado uma grade de leitura para os
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textos literrios, foi a exegese bblica a responsvel, ao longo da Idade Mdia, pelo
desenvolvimento de um sistema interpretativo. 2
Esse fato, constatado por Jouve (2002), dentre outros fatores, foi o
responsvel por uma diviso epistemolgica entre a Hermenutica cada vez mais
relacionada com os problemas teolgicos, jurdicos e filosficos e os estudos
literrios, irmanados com A Poticaaristotlica e mais tarde com a Historiografia e a
Psicologia do sculo XIX. Entretanto, a autonomia do estatuto epistemolgico
adquirido tanto pelos Estudos Literrios quanto pela Hermenutica rompeu-se no
momento em que estudos mais recentes da Teoria Literria elegeram a recepo, o
leitor e a leitura como objetos de investigao do fenmeno literrio, perodo que
coincide com a modernizao da prpria Hermenutica. Dessa maneira amodernizao no campo hermenutico, consolidada pelas reflexes de Martin
Heidegger e Hans-Georg Gadamer, juntamente com o mtodo fenomenolgico de
Edmund Husserl, foram os maiores responsveis por uma mudana profunda nas
noes de compreenso e interpretao que, em conseqncia, afetou a teoria da
recepo amplamente discutida a partir da segunda metade do sculo XX.
As mudanas anunciadas pela Hermenutica do sculo XX foram
profundamente estudadas, em 1969, por Richard E. Palmer, autor do livroHermenutica. J nas primeiras pginas da obra, o autor estabelece uma discusso
de ordem filolgica em torno do termo hermenutica em ingls. De acordo com essa
problematizao, Palmer explica que optou por adotar no ttulo de seu livro o termo
Hermeneutics, com s, como tradicionalmente utilizado em ingls por uma
questo, meramente, pragmtica e no filolgica , j que o telogo americano M.
Robinson, em seu livro The New Hermeneutic, chamava a ateno para o fato de
que no havia qualquer justificativa filolgica para se usar s no nome dessadisciplina e que a queda do s em tal palavra estaria ligada a uma nova orientao
da teoria hermenutica, conhecida por Nova Hermenutica. Palmer (1969) alega, em
seu livro, que preservou o s da palavra em funo da eficincia da comunicao,
pois, segundo ele, o termo j era desconhecido demais para lhe acrescentar mais
2Segundo Jouve, a exegese bblica distinguia, nos textos sagrados, quatro nveis de sentido: literal
(a histria contada), alegrico (anncio do Novo Testamento no Antigo), tropolgico (contedotico da narrativa) e anaggico (valor da mensagem da Bblia para os ltimos dias do homem).
(JOUVE, 2002, p. 90).
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confuses. Entretanto o autor de Hermenuticano deixa de reforar que embora
utilize a palavra Hermeneutics em seu pecado filolgico, tem por objetivo
justamente refletir sobre as bases da Nova Hermenutica, de orientao
fenomenolgica.
Pode-se afirmar, portanto, que a Nova Hermenutica, heideggeriana e
gadameriana, primordialmente, possui os seus fundamentos no mtodo
fenomenolgico e na Hermenutica moderna de Schleiermacher e Dilthey. Com o
mtodo fenomenolgico, a Nova Hermenutica aprendeu, dentre outras coisas, uma
nova postura epistemolgica, pois diferentemente de um realismo cientfico que
concebe um objeto de investigao ontologicamente autnomo a ser analisado, a
Fenomenologia assevera que s h um objeto em sua dimenso ontolgica a partirde um sujeito fenomenolgico, isto , no emprico, mas aquele, racionalmente,
capaz de deixar os objetos se manifestarem tal como so em sua essncia. Por isso,
com esse mtodo criado por Husserl tivemos que aprender a nos deixar conduzir
pelos objetos para poder compreend-los. Como lembra Palmer:
A Mente no projeta um sentido no fenmeno; antes o que apareceque uma manifestao ontolgica da prpria coisa. Claro que
devido a uma atitude dogmtica uma coisa pode ser forada a serapenas encarada no aspecto que desejamos. Mas deixar que umacoisa aparea como aquilo que , torna-se uma questo deaprendermos a deix-la proceder desse modo, pois ele revela-se-nos. Logos (fala) no na verdade um poder dado linguagem poraquele que a utiliza, mas sim um poder que a linguagem d a essapessoa, um meio que ela tem de ser captada por aquilo que atravsda linguagem se torna manifesto. Portanto, a combinao dephainestaie de logos, enquanto fenomenologia, significa deixar queas coisas se manifestem como o que so, sem que projectemosnelas as nossas prprias categorias. Significa uma inverso daorientao de que estamos acostumados; no somos ns queindicamos as coisas, so as coisas que nos revelam. Isto no sugerequalquer animismo primitivo, antes o reconhecimento de que aprpria essncia do conhecimento verdadeiro ser orientado pelopoder que a coisa tem de se revelar. Esta concepo umaexpresso da prpria inteno de Husserl de regressar s prpriascoisas. A fenomenologia um meio de ser conduzido pelo fenmeno,por um caminho que genuinamente lhe pertence. (PALMER, 1969,p.133)
Dessa forma, o mtodo fenomenolgico de Husserl frustra qualquer
conscincia hermenutica que vislumbra estabelecer as pontes com o sentido
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atravs de um sistema ou apriorismo interpretativo, como se pensou,
tradicionalmente, em termos de mtodo ao longo da histria de Hermenutica, j
que para o pai da fenomenologia o sentido se manifestava na intuio e na ao da
conscincia. De um modo geral, essa postura epistemolgica fenomenolgica
cunhada por Husserl orientou a Nova Hermenutica proposta por Heidegger e
Gadamer, embora esses dois filsofos discordassem da teoria de Husserl no que diz
respeito centralidade do sujeito na constituio do sentido.
Alm dessas contribuies do mtodo fenomenolgico de Husserl, a Nova
Hermenutica Fenomenolgica de Heidegger e Gadamer assimilou tambm
importantes contribuies da Filologia e Hermenutica romnticas. Dessa forma,
eles receberam lies fundamentais de Friedrich Ast e Friedrich August Wolf. Essesdois filsofos modificaram a perspectiva da Hermenutica ao promoveram a
compreenso condio de primazia, pois eles comungavam da opinio de que a
compreenso e a explicao so atividades distintas, sendo essa segunda tarefa
hermenutica sempre realizada em funo da primeira.
Mas foi o filsofo e telogo Schleiermacher que, sob a influncia de Ast e
Wolf, tornou, definitivamente, a explicao uma provncia da compreenso, pois foi
ele quem selou unidade e inseparabilidade da subtilitas intelligendi, compreenso,com a subtilitas explicandi, explicao ou interpretao. Segundo Gadamer, depois
da Hermenutica romntica: A interpretao no um ato posterior e
ocasionalmente complementar compreenso. Antes, compreender sempre
interpretar, , por conseguinte, a interpretao a forma explcita da compreenso.
(GADAMER, 2008, p.406). Na realidade, o hermeneuta romntico tomou a
explicao como uma arte responsvel pela formulao retrica da compreenso,
isto , pela competncia de transform-la em discurso. Desse modo, esse filsofopassa a considerar a compreenso o ponto de partida da investigao
hermenutica. De acordo com Palmer (1969):
E assim Schleiermacher coloca esta questo geral como ponto departida da sua hermenutica: como que toda ou qualquerexpresso lingustica, falada ou escrita, compreendida? A situaode compreenso pertence a uma relao de dilogo. Em todas assituaes desse tipo h uma pessoa que fala, que constri uma frasecom sentido, e h uma pessoa que ouve. O ouvinte recebe uma sriede meras palavras, e subitamente, atravs de um processo
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misterioso, consegue adivinhar o seu sentido. Este processo, umprocesso de adivinhao, o processo hermenutico. o verdadeirolugar da hermenutica. A hermenutica a arte de ouvir. (PALMER,p. 93)
Posto isso, Schleiermacher abre as potencialidades do estudo hermenutico
para o ouvir e a recepo do texto, embora o seu interlocutor ainda seja a mente
do autor, fato que o distancia da Nova Hermenutica, j que os estudiosos dessa
vertente, isto , Heidegger e Gadamer trocaram tal orientao psicologista pelo
poder comunicativo da prpria linguagem. Esse filsofo alemo, tendo por horizonte
a questo da compreenso, soube unir a interpretao gramatical da obra, que visa
estabelecer a relao entre a parte e todo, ao mtodo divinatrio, pautado no acesso
mente do autor por meio de uma forma imediata, direta e intuitiva.
Consequentemente, a opo desse filsofo por uma compreenso intuitiva,
isto , imediatamente globalizante, aliada Fenomenologia de Husserl de carter
mentalista e tambm intuitivo, favoreceu cada vez mais uma nova orientao para
os estudos hermenuticos, simptica s leis universais do ato de compreender-
interpretar. As ideias desse hermeneuta e telogo romntico, segundo Paul Ricouer
(1983), legaram s teorias hermenuticas modernas o conceito de
desregionalizao, ou seja, a transladao dos problemas tericos do compreender
e do interpretar das hermenuticas especficas ou regionais, como por exemplo, a
bblica e a jurdica, para as questes gerais e universais que envolvem a
compreenso e a interpretao. Essa problemtica da questo da universalidade
proposta pela teoria de Schleiermacher abriu, sem sombra de dvida, caminhos para
reflexes cada vez mais profundas sobre os problemas da Hermenutica.
Possibilitou, sobretudo, a transladao da discusso hermenutica do campo
epistemolgico para o ontolgico, como fez Heidegger no sculo XX.
Juntou-se s contribuies da teoria da compreenso de Schleiermacher as
reflexes Dilthey responsveis por dicotomizar epistemologicamente a explicitao
e a compreenso. Esse filsofo, no sculo XIX, cindiu a teoria do conhecimento em
dois campos de saber distintos, isto , entre a Geisteswissenschaften(a cincia do
esprito) e a Naturawissenschaften (a cincia da natureza) atribuindo primeira a
especificidade hermenutica de compreender e segunda, a de explicar. Essa
categorizao epistemolgica elaborada por Dilthey deve ser entendida como um
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esforo desse estudioso alemo em atribuir s cincias humanas ou do esprito,
sobretudo Histria, uma reputao cientfica tal qual gozava as cincias 3naturais.
Dilthey acreditava que as cincias humanas, assim como as naturais, poderiam por
caminhos separados atingir a verdade objetiva atravs de um sentido apropriado do
mtodo.
Embora Dilthey e Schleiermacher avancem no que diz respeito
Hermenutica, as suas discusses so ainda essencialmente epistemolgicas.
revelia dessa orientao epistemolgica, a Nova Hermenutica de Heideggger e
Gadamer conduziu esta disciplina problemtica ontolgica, o que revolucionou a
nossa forma de conceber essa disciplina milenar. Entretanto, no podemos
esquecer que foram justamente a desregionalizao da Hermenutica empreendidapor Schleiermacher e a aproximao desta disciplina com a Histria feita por Dilthey
que abriram os caminhos para a estruturao da Nova Hermenutica do sculo XX.
Nesse sentido, as noes de compreenso e interpretao foram
profundamente marcadas pela Fenomenologia hermenutica de Martin Heidegger,
no sculo XX. Esse filsofo alemo, com base no mtodo fenomenolgico que
prometia o acesso essncia ou sentido dos seres, objetivou estudar o sentido do
Ser na economia da existncia concreta. De modo muito particular, Heideggerpassou a enxergar o problema do ser atrelado questo da compreenso-
interpretao, ou melhor, problemtica hermenutica. Com o intuito de estudar a
cotidianidade da existncia, assim como o fenmeno da compreenso-
interpretao que se realiza em torno dela, apropriou-se de uma forma muito
particular do mtodo fenomenolgico,4j que, atravs de seu projeto, impunha a si
mesmo a tarefa de desenvolver uma analtica da existncia que abarcaria tanto as
experincias mais raras do Ser quanto as mais ordinrias. Nesse sentido, o autor de3Lembra Verana Alberti (ALBERT,1996, p.1) mesmo que Wilhem Dilthey tenha empreendido umaaproximao entre a hermenutica e a histria, o seu problema hermenutico continua aindaepistemolgico, porque, segundo a autora, a hermenutica de Dilthey se ocupa, fundamentalmente,do pressuposto do exerccio das cincias humanas.4A primeira grande questo relacionada ao termo fenomenologia que ele no pode ser tomado num
sentido unvoco. De acordo com o Dicionrio de Filosofia de Cambridge, a fenomenologia no nemuma escola nem uma tendncia na filosofia contempornea. antes um movimento cujospatrocinadores, por vrias razes, o impulsionaram em vrias direes distintas, com o resultado quehoje ele significa coisas diferentes para pessoas diferentes. (AUDI, 2006, p. 330). Por isso, osestudiosos geralmente se referem fenomenologia de Heidegger como hermenutica e de Husserl
como transcendental, voltada para os atos da conscincia.
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Ser e Tempo, preocupou-se, eminentemente, com as experincias autnticas e
inautnticas da existncia e elegeu o fenmeno da compreenso-interpretao como
a via de acesso ao sentido do Ser, fato que o distanciou do pai da fenomenologia
porque, para Edmund Husserl, o sentido do Ser estava relacionado sua essncia
universal, isto , irredutibilidade, atemporalidade e idealidade.
O fato de Heidegger ter escolhido a Fenomenologia como um mtodo
privilegiado para a investigao do sentido do ser, pode ser explicado, em parte,
pelo desejo do filsofo de se afastar do psicologismo dominante no sculo XIX, que
de forma rigorosa explicava os sentidos produzidos pelos sujeitos atravs da
incidncia mecnica da realidade sobre a conscincia deles. Diferentemente dessa
perspectiva, o filsofo aliou a Fenomenologia, que postulava a investigao dosfenmenos, ontologia e a uma concepo sui generisde Hermenutica. Assim,
depois deHeidegger passamos a compreender a Hermenutica, pelo menos em sua
primeira fase,5no mais como uma prtica exegtica de texto, mas como um evento
eminentemente ontolgico. Isso implica dizer que, atravs do autor de Ser e Tempo,
o Ocidente passou a conviver com uma nova concepo de Hermenutica, na qual a
noo de compreenso-interpretao tornou-se um correlato ontolgico da
existncia concreta, j que para esse filsofo no h compreenso fora do mundo.Para ele, todas as compreenses estariam imbricadas com o mundo e com os
modos de existncia, asseverando dessa forma o carter histrico e situado da
Hermenutica, conscincia histrica, que Heidegger aprendeu com Dilthey.
A opo de Heidegger pela historicidade e pela ontologia destitui a sua
Hermenutica de preocupaes relacionadas a sistemas interpretativos, pois
segundo Fernando Romo Feito, no livro Hermenutica, Interpretao, Literatura: se
a Hermenutica se concebe como ontologia, fica pouco ou nenhum espao para omtodo. Se como teoria da interpretao, este ocupa o primeiro plano. (FEITO,
2007,p.125, traduo nossa)6 De fato, ao lermos as obras capitais da Hermenutica
do sculo XX, como Ser e Tempo e A origem da obra de Arte (1935), ambas de
5A maioria dos comentadores de Heidegger enxerga duas fases no percurso filosfico do autor deSer e Tempo. Uma primeira fase na qual esse filsofo se voltou para a hermenutica da existnciaem si, e a segunda voltada para a compreenso ontolgica da linguagem potica.
6(..)Si la hermenutica se concibe como ontologia, poco o ningn espacio queda para el problema del
mtodo. Si como teoria de la interpretacin, este ocupa el primeiro plano.
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Heidegger, assim como Verdade e Mtodo (1960), de Hans-Georg Gadamer, no
encontraremos nenhuma teoria da interpretao, mas um modo sui generis de
conceber a emerso do sentido. Na Hermenutica desses dois filsofos, a
compreenso-intepretao, por sua vez, est imbricada na existncia concreta e na
linguagem.
Essa revoluo ocorrida na teoria do conhecimento, por sua vez,
redimensionou a posio do sujeito-intrprete nas prticas hermenuticas. Se, do
ponto de vista metodolgico, as ideias de Heidegger e Gadamer deslocaram a
nfase da Hermenutica das tcnicas de interpretao para o horizonte ontolgico-
histrico, no que se referem teoria do sujeito, elas foram responsveis pela
desconstruo da concepo do sujeito transcendental, isto , daquela concepode sujeito que o compreende como nica fonte do sentido. No lugar dessa
concepo, Heidegger e Gadamer compartilharam a noo de que os sujeitos, no
evento hermenutico, j possuem uma pr-compreenso que os conduzem, de certo
modo, ao sentido, da a ausncia de uma reflexo sobre a epistemologia da
interpretao nessas hermenuticas. Essa concepo foi diretamente herdada de
Schleiermacher, pois, como j vimos, ele foi o maior responsvel por tornar a
compreenso e no a explicao-interpretao a tnica dos estudos da NovaHermenutica.
A Nova Hermenutica, portanto, instituiu um novo direcionamento aos
estudos dessa antiga disciplina, em que Heidegger deu as bases filosficas para a
edificao de uma Fenomenologia hermenutico-ontolgica e que Gadamer as
sistematizou em seu livro Verdade e Mtodo, publicado em 1960,a partir do qual ela
deixa de ser a base da metodologia especfica das Geisteswissenschaften, cincias
dos espritos, para relacionar-se ao poder qualificador do tempo e da ontologia.Entretanto, ao longo do sculo XX, a perspectiva de produo de sentido da
Nova Hermenutica de Heidegger e Gadamer no foi a nica: ela conviveu com a
vertente fenomenolgica husserliana que ciceroneou outro modelo de doao de
sentido relacionado conscincia do indivduo. No que se refere s teorias da
recepo e do leitor fenomenolgico, essas duas formas de enxergar o problema do
sentido foram tomadas como suporte epistemolgico.
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2. Fenomenologia do Olhar e a Moderna Teoria da Literatura
2.1 O Olhar Fenomenolgico de Husserl e Heidegger
A Fenomenologia hermenutico-ontolgica de Martin Heidegger apresentou-
se como um corpo estranho em meio ao cenrio intelectual europeu do incio do
sculo XX. Embora Heidegger tenha sido assistente de Edmund Husserl e dedicado
a ele uma de suas principais obras, Ser e Tempo, a sua filosofia trilhou, em parte,
um itinerrio particular em relao de seu antigo mestre.
O projeto fenomenolgico husserliano aspirava a uma metodologia rigorosa,chegando ao ponto de Husserl declarar que os verdadeiros positivistas eram os
fenomenlogos. Em virtude disso, o pai da fenomenologia, no incio do sculo XX,
trabalhou incansavelmente para ofertar ao Ocidente, que estava em crise quanto
aos paradigmas cientficos, um mtodo de estudos confivel aos pesquisadores.
Desse modo, o mtodo fenomenolgico surgiu do desejo de desvencilhar o
conhecimento cientfico do empirismo filosfico e da psicologia do sculo XIX, que
dominavam esse cenrio intelectual, sem, contudo, retirar do sujeito a posio deprivilgio no quadro da teoria do conhecimento. Husserl, portanto, passou a
combater a forma naturalizada como essas investigaes explicavam os
fenmenos produzidos pelos sujeitos, geralmente, atravs de explicaes
causalistas que correlacionavam a ao da realidade sobre a conscincia deles.
No incio do desenvolvimento do seu mtodo fenomenolgico, Husserl
encontrou uma alternativa que punha em suspenso o antigo problema
epistemolgico referente questo sujeitoversus objeto. Para tal empreendimento,o pai da Fenomenologia doou conscincia uma vida dinmica prpria, pois se
Descartes se ocupou com o eu penso, esse filsofo alemo inovou com a
concepo de que a conscincia pensa o pensado, porque, para ele, toda atividade
da conscincia parte de algo conhecido. Desse modo, Husserl punha fim querela
sujeito-objeto, j que, para ele, no existia objeto sem a atividade da conscincia do
sujeito. Nesse sentido, a relao entre objeto e sujeito na fenomenologia, segundo o
epistemlogo alemo Johannes Hessen, interagem de tal forma:
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A correlao entre sujeito e objeto no em si mesma indissolvel;s o no interior do conhecimento. Sujeito e objeto no se esgotamem seu ser um para o outro, mas tm, alm disso, um ser em si. No
objeto, este ser em si consiste naquilo que ainda desconhecido. Nosujeito, consiste naquilo que ele alm de sujeito que conhece. Almde conhecer, ele tambm est apto a sentir e a querer. Assim,enquanto o objeto cessa de ser objeto quando se separa dacorrelao, o sujeito apenas deixa de ser sujeito cognoscente.(HESSEN, 2003, p.22)
Nesse sentido, como podemos perceber, a Fenomenologia de Husserl
mostra-nos que, no interior da atividade epistemolgica, a conscincia indissocia o
sujeito do objeto, j que todo objeto um objeto para um sujeito. Entretanto, tanto
este quanto aquele possui um modo de ser prprios, antes da operao da reduo
fenomenolgica; ou seja, quando a conscincia tomada, plenamente, em sua
atividade cognitiva, pondo em suspenso o eu psicolgico e o mundo. Percebe-se,
dessa forma, que o objeto s pode se constituir em fenmeno, isto , significado ou
sentido, enquanto objeto de conhecimento de uma conscincia. Dessa forma, o
sujeito cognoscente segue rumo aos objetos que aparecem em carne e osso em
sua conscincia, que, alis, emanam de suas visadas rumo aos objetos, para torn-
los essncias ou sentidos. Nesse momento, a conscincia se desnaturaliza, pe-se
em parnteses, para seguir rumo essncia das coisas, atravs de seu poder de
doar significao a elas.
Com a Fenomenologia, o problema da conscincia no se encerra apenas no
ato da reflexo, mas vai ao encontro do contedo, significao, dessa reflexo.
Assim, a conscincia, para esse filsofo, produz atos que se dirigem a contedos, ou
seja, a noesis(ato de conhecer, de carter subjetivo) quetem por metasempre um
objeto de conhecimento, noema, posto na conscincia. Para Husserl, o ato de
imaginar visa o imaginado, o ato de perceber visa o percebido, etc. Da percebermos
que, na fenomenologia de Husserl, pelo menos a da primeira fase, temos um objeto-
para-um-sujeito, o que conduz, consequentemente, a conscincia a transcender a si
mesma, pois ela no vai ao encontro de si mesma, mas ao de um objeto j posto na
conscincia. Nessa atividade de pensar o pensado, Husserl cria a categoria da
intencionalidade, ou seja, a concepo de que a conscincia sempre conscincia
de, visa a algo, diz respeito a. Desse modo:
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Husserl confere em primeiro lugar noo de intencionalidadetoda a sua envergadura: toda conscincia conscincia de(conscincia significa aqui no a unidade individual de um fluxo
de vivido, mas cada cogitatio distinta voltada para umcogitatumdistinto). Portanto, haver tantas espcies de intencionalidades,tantas conscincias quantas maneiras, para um cogito, de sevoltar para alguma coisa; para o real e o irreal, para o passado e oquerido, para o amado e o desejado, para o julgado, etc. De umponto de vista estritamente descritivo, a intencionalidade escapa alternativa do realismo e do idealismo. (RICOUER, 2009, p.11-12)
A partir, portanto, dessa noo de intencionalidade proposta por Husserl,
fomos interpelados a no s levar em considerao a percepo como elemento
mediador da significao, mas tambm o horizonte de visadas da conscincia. Para
o criador da fenomenologia, quando quero dizer uma coisa, h uma primeira
inteno que vai ao sentido, como face a face estvel de todos os atos de
significaes que querem dizer a mesma coisa. Eis aqui a raiz fenomenolgica da
lgica: h algo de determinado no sentido visado.(RICOUER, 2009, p.10).
Dessa forma, com Husserl aprendemos que antes de pensarmos o pensado,
o mundo j est instalado na conscincia, em outras palavras, mundo para mim.
Mas o que distinguiria esse mundo de visadas ou de intencionalidades de uma
atitude empirista? O fato de a conscincia fenomenolgica ocupar-se da ontologia,
ou seja, do ser das coisas, pois uma vez instalado o objeto na conscincia
(fenmeno) atravs da reduo fenomenolgica, cabe reduo eidtica (essncia)
conduzir os objetos da conscincia realidade de suas essncias, ou melhor, aos
seus sentidos. Como lembra Bordini:
A fenomenologia , ento, uma cincia eidtica, descritiva daconscincia. A intuio filosfica, reflexiva, uma reflexo sobre avida, considerada em toda a sua riqueza concreta. Entretanto, estavida no vivida, apenas considerada, de modo que filosofia e vidano se confundem. No h metafsica implcita no modelofenomenolgico. a vida que dita as regras para a fenomenologia,no ao contrrio. (BORDINI, 1990, p.53)
O af de Husserl de retornar s coisas em sua dimenso mais fundamental,
na primeira fase de sua filosofia, conhecida por Fenomenologia metdica ou da
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reduo eidtica, mobilizou em torno dele uma teia de admiradores, como Heidegger
e Roman Ingarden, na medida em que Husserl, de forma revolucionria, unia por
meio de um mtodo uma teoria do conhecimento ontologia. Muitos entusiastas do
primeiro Husserl, ou melhor, do livro As Investigaes Lgicas, viram no mtodo
fenomenolgico um novo tempo para as investigaes relacionadas questo do
sentido.
Por outro lado, quando a teoria desse filsofo adotou a doutrina da reduo
transcendental, em que a conscincia se volta para si mesma, visando apenas o ato
intencional, muitos de seus seguidores romperam, parcialmente, com ele. Nessa
fase, o autor de As investigaes Lgicas rompeu com aquela implicao entre
realismo e idealismo e enveredou rumo ao idealismo, pois ele passou a nutrir acrena de que a pura atividade da conscincia era a origem das significaes do
mundo.
A Fenomenologia de Husserl, de certo modo, entusiasmou, parcialmente, o
jovem filsofo Martin Heidegger. De acordo com Hans Georg Gadamer (2009), esse
jovem filsofo, em Freiburg, limitava as suas conferncias sobre o seu antigo mestre
aos seus primeiros livros e recusava, diplomaticamente, a seguir a revoluo do
pensamento dele rumo ao eu transcendental.Embora Heidegger tenha trazido lies importantes da Fenomenologia para a
sua filosofia, ele rompeu com as diretrizes fundamentais do criador dessa filosofia. O
autor de Sere Tempo realizou um percurso filosfico que se iniciou com reservas ao
essencialismo filsofo. Aos poucos, a Fenomenologia desse estudioso foi se
distanciando da de Husserl, pois, como acertadamente lembra Ernildo Stein (2005),
enquanto o primeiro transformou a ontologia em Fenomenologia, o segundo
revolucionou a Fenomenologia para recolocar a questo da ontologia, porqueHeidegger no recorreu descrio proposta por Husserl, mas metafsica grega.
Na Fenomenologia de Husserl, por exemplo, os seres so visados de modos
distintos pela intuio eidtica, da a existncia de vrias regies do Ser, por
exemplo, as regies da literatura, da geometria, da recordao, etc. fundam, por sua
vez, diferentes essncias para os seres. E dessa forma que o prprio mtodo
fenomenolgico realiza ontologia, pois para ele o sentido se confunde com a
essncia, isto , aquilo que sempre idntico a si mesmo, independente da
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variedade em que as coisas se apresentem ao mundo perceptivo. Como exemplo
disso, poderamos pensar que independente de um crculo ser traado por um
compasso ou por uma criana que, minimamente, saiba o conceito dessa figura
geomtrica, iramos reconhec-lo como um crculo, porque j possumos uma
intuio da essncia, que, para a teoria de Husserl, segundo Andr Dartigues
(2010), no a adquirimos do mundo das essncias como queria Plato, mas do
mundo inteligvel da conscincia. Devido a isso, pode-se caracterizar essa
Fenomenologia de mentalista, j que ela deposita na conscincia a origem do
sentido.
Husserl, que comea a vida intelectual como matemtico, encontrar as
bases de seu pensamento nas matemticas e entre os msticos. De acordo comAlfredo Bosi, emA Fenomenologia do Olhar, a despeito de outras formas de olhares
filosficos h aquele que:
[...] Pode conceber, em vez do plural vertiginoso, o uno. Em vez dadisperso que atordoa, a concentrao. Em vez de milhes departculas mutantes, um Ser primordial, que a tudo precede e a tudotranscende, Uno-Todo. Essa unidade, difcil de apreender nasarabanda dos fenmenos, poder ser conhecida pela experincia
interior. a mente que se espelha e se confirma na sua eternaidentidade consigo mesma. Fora, no mundo, h tambm um caminhopara o uno: o que se trilha meditando sobre as propriedadesimutveis das coisas mutveis. A forma, que a geometria extrai edesenha. O nmero, que a matemtica determina. (BOSI, 1993,p.70)
Essa forma de olhar que transcende o olho foi primeiramente gestada,
segundo Bosi (1993), pelos rficos e pitagricos que conservavam o apelo mstico e
o corte matemtico e, posteriormente, elaborado pela dialtica de Plato. Nesse
sentido, no difcil reconhecer a filiao da Fenomenologia de Husserl a essa
famlia de pensadores essencialistas. Alm disso, no devemos esquecer que a
intuio, forma de conhecimento bastante prestigiada na obra do pai da
fenomenologia, teve a sua efervescncia, segundo Hessen (2003), a partir da obra
de Santo Agostinho, ou seja, da mstica medieval que defendia revelia do
intelectualismo dos escolastas, o direito intuio como uma forma de
conhecimento teolgico imediato, atravs de vises interiores e experincias
subjetivas. Da a razo da Fenomenologia de Husserl ser, primordialmente,
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essencialista e regionalizada na conscincia do sujeito, j que ele perseguiu ao
longo de seu percurso filosfico uma intuio no mstica, mas racional.
A partir do itinerrio filosfico de Husserl, evidenciam-se as diferenas que
orientam a busca do sentido nesse filsofo e em Heidegger, apesar de eles
convergirem em vrios pontos, como por exemplo, na questo da intencionalidade,
da relao sujeito-objeto e do significado ontolgico. Ambos pertencem a famlias
espirituais diferentes, pois enquanto o pai da fenomenologia pertence famlia dos
pensadores essencialistas, Heidegger se aproxima cada vez mais dos nominalistas
e essa diferena sela pontos de vistas divergentes em relao concepo do que
e como surge o sentido.
A Fenomenologia de Heidegger se distancia da de Husserl na medida em quese afasta da crena nas realidades universais e essenciais, fato que o aproxima do
nominalismo. Esse pensamento filosfico foi fundado na Idade Mdia, por volta do
sculo IX, por Roscellinus, que combatia as idias gerais, os universalia, em prol das
coisas empricas. Srgio Paulo Rouanet, em seu ensaio fundador A coruja e o
sambdromo (2003), a fim de refletir sobre o antiuniversalismo moderno, identifica
no historicismo a mais nova verso do antiuniversalismo. Segundo o ensasta, para
o antiuniversalismo ou historicismo:
O homem filho do seu sculo; sua conscincia, cognitiva e prticaest inscrita num momento e numa etapa. A partir da histria, oantiuniversalista conduz seus trs combates: contra o homem emgeral, abstrao a-histrica e portanto vazia; contra o saberuniversal, pois toda verdade relativa a uma fase e s vlida seinserida numa cronologia; e contra a moral universal, pois as normasde um perodo s nele valem, e no podem ser comparadas com asde outros perodos.(ROUANET, 2003, p.52)
no contexto deste antiuniversalismo moderno em que se insere o
pensamento filosfico de Martin Heidegger, que transformou a temporalidade num
elemento qualificador do ser, e por isso, a partir dele, a Hermenutica tornou-se,
simultaneamente, ontolgica e histrica. Diferentemente do essencialismo em que o
interior da mente elabora o uno atravs da sarabanda dos fenmenos, o modo de
ser materialista e sensualista, to caro a Heidegger, compreende que o conhecer
estar imerso em um oceano de partculas cintilantes e nele engolfar-se
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sensualmente. (BOSI, 2003, p.67). Por essa razo, no por acaso que a
existncia concreta do homem e o seu estar no mundo tornaram-se a tnica da
filosofia do autor de Ser e Tempo.
Desse modo, a Fenomenologia construiu dois tipos olhares distintos, ou seja,
um mentalista e outro materialista sensualista: o primeiro se identifica com a filosofia
de Husserl e o segundo com a de Heidegger. Segundo Bosi, desde a epistemologia
antiga h uma vertente materialista, ou, mais rigorosamente sensualista do ver
como receber, ao lado de uma vertente idealista ou mentalista do ver como buscar,
captar. (2003, p.67). De fato, essas posturas do olhar se fizeram presentes no
pensamento epistemolgico que influenciou profundamente a Hermenutica e as
teorias da recepo do sculo XX. Atravs da fenomenologia de Husserl, a vertentementalista ou idealista se sofisticou com as descobertas feitas por esse filsofo
sobre as atividades da conscincia, sobretudo, no que se refere produo do
sentido. O autor de As Investigaes Lgicasdoou conscincia a capacidade de
captar os fenmenos, atravs da percepo e dot-los de sentido.
J a vertente materialista e sensualista, protagonizada pelo pensamento de
Heidegger e Gadamer, edificou uma postura hermenutica inovadora, na qual o
intrprete em sua dimenso histrica abre-se recepo e compreenso dotexto.
Esses dois olhares fenomenolgicos foram arregimentados pelas modernas
teorias da literatura, como podemos observar inicialmente em estudos literrios,
comoA obra de arte literria, de Roman Ingarden, publicada na dcada de 1930, e
do Manual Teoria da Literatura, de Ren Wellek e Austin Warren, de 1949, que
adotaram a Fenomenologia de Husserl. Nesse perodo, surge o primeiro modelo de
leitor fenomenolgico, isto , o leitor implcito. Na dcada de 60, por outro lado, naAlemanha, as ideias de Heidegger, sobretudo no que se refere aos conceitos de
temporalidade, historicidade e emancipao do ser, encontraram na teoria da
literatura de Hans Robert Jauss receptividade, graas ao impacto das ideias do
discpulo de Heidegger, Gadamer, sob a escola de Konstanz.
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2.2 O Nascimento da Teoria da Literatura e o Leitor Fenomenolgico
Podemos alegar que o nascimento da moderna Teoria da Literatura esteve
atrelado ao pensamento fenomenolgico, assim como s conquistas do Formalismo
Russo e do Crculo Lingustico de Praga. Por isso, paralelamente crise do mtodo
historiogrfico e da Crtica Impressionista, a Fenomenologia e a Lingustica moderna
ofertaram aos modernos estudos literrios um lastro terico que fugia ao mtodo
causalista das cincias positivas, to caro ao historicismo, at ento hegemnico
nos estudos literrios. No por acaso, portanto, que esse lastro foi o pilar terico
do revolucionrio livro Teoria da Literatura, de Ren Wellek e Austin Warren, obraconsiderada o marco histrico de um novo paradigma nos estudos literrios.
Em meio hegemonia dos estudos historicistas da literatura e do extremo
subjetivismo da Crtica Impressionista, o estudioso Ren Wellek, de formao
formalista e fenomenolgica, ao lado de Austin Warren, adepto do New Criticism
Norte Americano, reivindicaram um estudo da literatura que levasse em
considerao a artisticidade da obra literria sem, no entanto, abrir mo de um
estudo sistemtico. Em outras palavras, o grande projeto de Warren e Wellek eracriar para os estudos literrios um campo de conhecimento com objetivos e
justificativas prprios. Graas a este propsito, essa obra-marco representou a
reformulao do discurso metodolgico nos estudos literrios, como vimos, mas
ressaltando uma metodologia da interpretao da literatura inerente ao prprio
funcionamento da obra literria.
Assim, a moderna Teoria da Literatura impunha-se a si o desafio de tratar os
problemas imutveis e mutveis da obra de arte, isto , a sua dimenso imanente,assim como sua historicidade e valorao. Para alcanar esse fim, Wellek e Warren
aderiram s idias da Fenomenologia, mas, de uma vertente muito particular,
nascida de pontos de divergncias e convergncias entre Husserl e o filsofo
polons Roman Ingarden.
Desse modo, Wellek e Warren foram dois dos maiores divulgadores do
trabalho do polons Roman Ingarden, que aplicou literatura a Fenomenologia de
Husserl, atravs do livro A Obra de Arte Literria, publicado na dcada de 1930.
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Todavia, essa converso da Fenomenolgia para a literatura no foi uma mera
duplicao de um campo de saber para outro, mas resultou de uma apropriao
muito particular do pensamento de Husserl por Ingarden.
Essa dissidncia pode ser explicada, primeiramente, pelo fato de Ingarden ter
sido um entusiasta dos primeiros trabalhos de Husserl, isto ,deAs investigaes
Lgicas (1901), perodo no qual o filsofo alemo era ainda um logicista. Nessa fase
de sua filosofia, Husserl defendeu, energicamente, a concepo de que da
conscincia humana era determinada pelos objetos ditos reais, ou seja, realidades
de carne e osso presentes na conscincia. Entretanto, Roman Ingarden, discpulo
de Husserl em Freiburg e Gtting, na Alemanha, a princpio entusiasmado pelo rigor
de seu mestre, rompeu com alguns de seus pressupostos, decepcionado com aradicalidade com que ele se dirigia rumo a uma conscincia transcendental.
Segundo Paul Ricoeur:
As Mediaes Cartesianasso a expresso mais radical deste novoidealismo para quem o mundo no somente para mim, masrecebe de mim toda a sua validade ontolgica. O mundo se tornaum mundo-percebido-na-vida-reflexiva(...) Husserl esboa na IVMeditao a passagem de uma fenomenologia voltada para oobjeto a uma fenomenologia voltada para o ego, onde o ego seconstitui continuamente a si mesmo como existente: o cogitatum compreendido no cogito, e este no ego que vive atravs de seuspensamentos. A fenomenologia o desdobramento do ego, dali emdiante denominado mnada maneira leibniziana. Ela a exegesede si mesmo (Selbstauslegung). (RICOUER, 2009, p.14)
O autor de A Obra de Arte Literria rejeitou no s a doutrina do
transcendentalismo de seu mestre como deu configuraes bastantes particulares
sua ontologia da obra de arte literria. Sem deixar de considerar o papel da
conscincia na constituio do objeto, Ingarden dotou a obra de arte de umaautonomia ontolgica independente da atividade da conscincia, fato que levou
alguns de seus comentadores a defender a tese de que ele havia optado por um
realismo filosfico. Paralelamente a essas rupturas tericas, Roman Ingarden lanou
mo de conceitos fundamentais presentes emAs Investigaes Lgicas.
Lembremos, por exemplo, que Husserl desenvolveu uma reflexo em torno da
relao entre a inteno de significao e o preenchimento de significao, em que
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a conscincia para vivenciar o objeto, intencionalmente, precisa preench-lo. Como
bem ilustra o prprio filsofo:
Quando, por exemplo, uma melodia conhecida comea a ressoar,so suscitadas determinadas intenes que vo ser preenchidas namelodia que se desenvolve progressivamente. Algo semelhanteocorre tambm quando a melodia nos desconhecida. Asregularidades que vigem no meldico condicionam intenes que,embora caream de uma plena determinao objetal, tambm vm,ou podem vir a ser preenchidas. (HUSSERL, 1996, p.55)
Tal atividade da conscincia de buscar equacionar a intencionalidade da
significao com a determinao dos objetos cognoscentes serviu de base para
teoria da leitura de Roman Ingarden. Para ele, cabia ao leitor, no ato da leitura,
preencher os aspectos esquematizados e os pontos de indeterminao da obra de
arte, fato, que, alis, j nos revela a ontologia da obra literria em Ingarden, isto ,
que ela ao mesmo tempo um objeto em parte conhecido e em parte lacunar.
Como lembra Bordini (1990), para escapar do puro idealismo, Ingarden
preferiu considerar o artefato artstico, do ponto de vista ontolgico, como uma
heteronomia, isto , por um lado real, substncia fsica, por outro ideal, ou seja,
aquela parte da obra que constituda pela conscincia de quem a frui, sendo,
todavia, a obra material irredutvel conscincia do fruidor. Desse modo, a
ontologia da obra de arte de Roman Ingarden, como podemos observar, no se
absolutiza apenas na imanncia da obra, mas reclama uma transcendncia na
imanncia, ou seja, a conscincia constitutiva do leitor que frui e d existncia
obra de arte.
Essa questo da imanncia e da transcendncia um tema delicado na teoria
de Roman Ingarden, j que, para ele, o leitor se movimenta nos esquemas daprpria obra, cabendo-lhe atualizar as determinaes da obra, assim como
concretizar, de acordo com a estrutura texto e com a sua atitude momentnea, as
indeterminaes da obra de forma adequada, fato que evidencia um temor de
Roman Ingarden de cair num idealismo transcendental e de destituir da obra a sua
identidade ontolgica. Segundo ele, em A Obra de Arte Literria: Para o nosso
objetivo basta apenas o facto essencial de a obra literria poder sofrer
transformaes sem perder a sua identidade (INGARDEN, 1965, p.389). Para esse
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filosofo polons, ontologicamente, a obra de arte possui pontos de indeterminaes
e aspectos esquematizados que deveriam ser concretizados pelos leitores, fato que
o levou a conceber o primeiro modelo de leitor fenomenolgico dos estudos
literrios, isto , o leitor implcito. Segundo Bordini, a interao texto e leitor nos
estudos do autor deA obra de Arte Literriase d da seguinte forma:
A concretizao depende da atmosfera cultural das pocas, tantoque entende a vida das obras como o processo histrico deconcretizaes variveis, cuja identidade garantida pelaesquemacidade imanente ao texto. (...). na concretizao que seatingem os valores estticos de uma obra, atravs da atualizaodos aspectos esquematizados. Ao ler, o leitor preenche os esquemas
aspectuais com detalhes decorrentes de seu acervo perceptivo e desua preferncia em termos de sensibilidade. Por isso, a atualizaopode ser pertinente, mas fantasiosa, ou no pertinente, ou ainda noocorrer. (1990, p.147)
Com essa categoria de leitor implcto, pelos menos em sua verso
ingardiana, a literatura ganha uma justificativa estrutural relativa ao fenmeno da
recepo da obra de arte, como numa tentativa de afastar o fantasma do
relativismo das interpretaes. Fiel aos preceitos husserlianos, Ingarden, embora
assuma que as obras sofrem mutabilidade, trabalha para revelar o eido (essncia)da obra literria, j que ele segue a orientao universalista e idealista de que no
se pode conhecer aquilo que transitrio. Na verdade, o filsofo polons promove
uma reduo fenomenolgica da obra de arte literria colocando entre parnteses a
histria, os desejos, etc. para extrair dessa reduo a ontologia da obra literria.
Ingarden, por sua vez, atribui aos estratos fnicos e semnticos da obra, assim
como as suas objetualidades, isto , projeo das unidades de significao, e aos
aspectos esquematizados pela obra a condio de fenmenos fenomenolgicos queafetam a conscincia do leitor, na qual se processa a significao. Desse modo,
Ingarden relaciona objeto (obra de arte), percepo e cognio para situar o leitor na
economia da ontologia literria, porque, nessa teoria, ele quem sintetiza
pensamentos e preenche significaes correlacionadas com o seu objeto
intencional.
Nesse sentido, os precursores da moderna Teoria da Literatura, Warren e
Wellek, entraram em consonncia com Ingarden ao defenderem a ideia de que toda
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obra de arte possui um elemento eterno e mutvel, e que nenhuma leitura capaz
de esgotar os significados de uma obra. Como lembra Jlio Csar de Frana, para
Warren e Wellek:
A obra literria apenas parcialmente realizada no ato da leitura.Qualquer experincia individual de leitura uma tentativa deapreenso da estrutura de normas e padres da obra. A estruturade uma obra literria constrange a leitura que dela feita e resistes imperfeies de nossas leituras. (FRANA, 2006, p.78)
Por essa razo, as obras Teoria da Literatura, de Ren Wellek e Austin
Warren e A obra de Arte Literria, de Roman ingarden criaram, ontologicamente,
uma noo de leitor sobredeterminado pelo texto. Fato que no surpreende, haja
vista que tanto Ingarden quanto Warren e Wellek ambicionaram doar obra de arte
literria um estatuto de autonomia. Com isso, as reflexes da obra literria se
voltaram cada vez mais para as suas propriedades inerentes e seus recursos
estticos, longe da interveno selvagem do leitor, da corroso da histria, da
determinao da intencionalidade do autor da obra.
Em virtude disso, Ingarden e Wellek e Warren, cnscios de que as sugestes
da obra so inesgotveis, adotaram a concepo de que a leitura histrica de uma
obra realiza uma espcie de abreviao perpectivista da obra. Como ilustra Roman
Ingarden:
(...) Partes e estratos sempre diferentes da obra lida so intudas deforma mais clara, enquanto os restantes mergulham numa penumbrae numa seminebulosidade em que apenas ressoam e tm voz dandocolorao de modo especial totalidade da obra. Uma outraconsequncia desta mudana constante e dos modos diferentes emque ns experimentamos ora estas vivncias ora aquelas que aobra literria nunca apreendida plenamente em todos os seusestratos e componentes, mas sempre s parcialmente, sempre, porassim dizer, apenas numa abreviao perspectivista. (INGARDEN,1979, p.366)
Posto isso, Roman Ingarden, atravs das ferramentas da Fenomenologia
husserliana, possibilitou aos estudos literrios uma nova forma de conceber a
questo da significao e, consequentemente, uma imagem de recepo literria e
um modelo de leitor fenomenolgicos. Esse modelo de leitor pode ser relacionado,
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inequivocamente, tradio epistemolgica idealista ou mentalista, j que os seus
fundamentos advieram da Fenomenologia de Husserl. A presena desse leitor
emerge na medida em que concretiza a leitura. Por isso h sempre, por trs dele,
um a priori, ou seja, um texto a ser semantizado que exige uma experincia de
adequao interpretativa. Ele na realidade uma potncia de percepo,
semantizao e de abreviao perspectivista do manancial dos fenmenos da obra,
, portanto, antes de tudo, uma conscincia perceptiva e de visada de significao.
Embora Wolfgang Iser, na dcada de 1960, na Alemanha, tenha sido o
estudioso que mais se aproximou teoricamente desse modelo fenomenolgico de
leitor de Ingarden, isto , da noo de leitor implcito, essa noo se tornou
onipresente nos estudos literrios relativos leitura fenomenolgica. Por isso, apartir desse perodo, a categoria do leitor implcito, nascida da relao entre o
mentalismo fenomenolgico e o formalismo literrio, passou a integrar no s as
concepes de leitura e leitor fenomenolgicos comprometidas com a tradio
idealista-mentalista de Husserl, mas tambm com a concepo de historicidade de
Heidegger e Gadamer, como o caso, por exemplo, da Esttica da Recepo
Alem, idealizada por Hans Robert Jauss.
Com a teoria da literatura de Jauss, as contribuies da Nova Hermenuticase fizeram mais nitidamente presentes nos estudos literrios. Desse modo, atravs
das revolues hermenuticas de Heidegger e da sistematizao de Gadamer,
criou-se uma nova cultura na forma de encarar os processos de compreenso e
interpretao. Depois deles, os estudiosos da teoria da recepo adquiriram novos
refernciais de subjetividade, interpretao, compreenso, linguagem, temporalidade
e do ser.
3. Rumo ao Dilogo, Emancipao e ao Ser
3.1 Heidegger: A Celebrao da Hermenutica Ontolgica
A partir das ideias de Martin Heidegger, a Hermenutica deixa de ser
entendida como teoria da interpretao, ou seja, um modo epistemolgico de
compreender, para tornar-se fundamentalmente uma questo ontolgica, um modo
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de ser. Como bem lembra Benedito Nunes, em Passagem para o Potico, filosofia e
poesia em Heidegger: Martin Heidegger empreende uma revoluo hermenutica,
pois a ambio do autor de Ser e Tempo no prolongar a concepo de
Hermenutica como uma Kunstlehre, ou seja, como arte de interpretar, mais pelo
contrrio, investigar aquilo que lhe d fundamento. (NUNES, 1992, p.55). Nesse
sentido, atravs do enxerto da Fenomenologia e da Metafsica Hermenutica,
Martin Heidegger dissolve a discusso em torno da exegese e das tcnicas de
interpretao que, tradicionalmente, acompanhava a Hermenutica de textos, para
pr em seu lugar a reflexo em torno da Hermenutica e da existncia. Para o
filsofo francs Paul Ricoeur (1969), a revoluo hermenutica heideggeriana
obrigou os hermeneutas de um modo geral a uma alternativa: optar entre umaontologia da compreenso ou uma epistemologia da compreenso.
Atravs desse modus operandi, Heidegger analisa, ontologicamente, o modo
como o Dasein, ser-a (homem) compreende em sua existncia concreta; em
outras palavras, esse filsofo se prope a estudar a Hermenutica em sua relao
com a cotidianidade e a existncia. Isso resultou numa mudana radical, ou seja, na
mundalizao da compreenso, pois, a partir de Heidegger, passamos a
compreender que os significados se constroem nas experincias concretas daexistncia, de forma inerente, fato que rompe com a tradio da Hermenutica
Epistemolgica que se ocupava com a aprendizagem da interpretao de textos e
smbolos, tpicas das disciplinas exegticas. Como lembra Lus Felipe Netto Lauer:
Com efeito, a fenomenologia hermenutica de Heidegger nopretende avanar teoreticamente na compreenso dos objetosde nossa experincia cotidiana como objetos teorticos, masao contrrio visa explicitar a maneira como j sempre
compreendemos in totum nossos comportamentos maisbsicos como intencionalmente voltados para os objetos denosso mundo circundante englobando at mesmo aquelescomportamentos que possuem o modo de ser e o objeto dadosna esfera do teortico. (LAUER, 2008.p.47).
Com a sua Hermenutica fenomenolgica, Heidegger objetiva retomar uma
discusso, segundo ele, esquecida pela filosofia: a questo do Ser. Desse modo, a
recorrncia de Heidegger ao modus operandi dessa filosofiadeixa bem claro que a
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grande questo da filosofia do autor de Ser e Tempo a compreenso do sentido do
Ser. O filsofo, praticamente, inicia o Ser e Tempo, fazendo uma denncia do
estado atual em que se encontrava a Metafsica ao afirmar que ser o conceito
mais universal e mais vazio(2009, p. 37). De acordo com tal constatao, ele afirma
que a filosofia entificou o Ser, ou seja, determinou e resumiu o Ser estrutura
material do Ser. Desse modo, o autor de Ser e Tempo, revelia dessa tradio,
prope uma diferena ontolgica, pois, para ele o ente tudo aquilo que pode ser
identificado pelo seu gnero e espcie, ou seja, por uma determinao, enquanto
que o Ser algo indeterminado e obscuro.
Todavia, para Heidegger, no porque o sentido do ser indeterminado que
o questionamento acerca do seu sentido no deve ser problematizado. ParaHeidegger, o sentido do Ser est relacionado a um desvelamento e
desencobrimento dos seres, que em nossa cotidianidade, encontram-se velados e
esquecidos e que podem emergir abertura, ou seja, compreenso, atravs do
questionamento do Dasein (aproximadamente, a existncia humana) sobre o sentido
do ser.
nesse sentido, portanto, que, dentre todos os entes, Heidegger afirma ser o
Daseino nico dos entes a se ocupar com o Ser, j que ele o nico que pode pra questo do Ser. Ele entendia o antigo problema filosfico sobre o Ser como algo
da ordem da dinmica do sendo e nunca da esttica, do dado; para ele, a
temporalidade uma dimenso constitutiva do Ser. Para o autor de Ser e Tempo, a
temporalidade uma zona das trs dimenses bsicas do tempo, isto , passado,
presente e futuro, logo, conclui Heidegger que o tempo umfenmeno unificador
do porvir que atualiza o vigor de ter sido. (HEIDEGGER, 2009, p. 410). Descoberta
importante que o distancia de Husserl, pois, enquanto o pai da fenomenologiaconcebe o acesso ontologia atravs do tempo imanente da conscincia, Heidegger
toma o tempo mundano como fator determinante em nossa relao compreensiva
com o Ser. Como lembra Terry Eagleton, na teoria de Heidegger: Nossas relaes
com as coisas cortam fatias de tempo, arrancando os objetos da temporalidade que
sua essncia e os figurando em blocos sincrnicos manipulveis. (EAGLETON,
1993, p.210)
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Alm disso, importante notar que o prprio termo Dasein j nos remete
noo de dinmica do Ser, pois o termo alemo Sein, segundo o dicionrio
Langenscheidt (2001), significa ao mesmo tempo ser e estar, o que confere ao
Dasein uma relao orgnica com a temporalidade, pois no Ser o Dasein est em
jogo na medida em que ele compreende. Lembra-nos Marilena Chau que em
Heidegger:
O tempo produo da identidade e da diferena consigo mesmo e,nesse sentido, uma dimenso de meu ser (no estou no tempo,mas sou temporal) e uma dimenso de todos os entes (no esto notempo, mas so temporais). O tempo no um receptculo deinstantes, no uma linha de momentos sucessivos, no a
distncia entre um agora, uma antes e um depois, mas omovimento interno dos entes que reuniram-se consigo mesmo (opresente como centro que busca o passado e o futuro) e para sediferenciarem de si mesmos (o presente como diferena qualitativaem face do passado e do futuro). O Ser Tempo. (CHAU, 1996, p.244)
Desse modo, Heidegger, a partir das reflexes sobre a temporalidade impe
cultura hermenutica a conscincia de que no existe compreenso que no seja
situada,temporalmente, e especialmente, sendo, especificamente, esse primeiro um
fundamento ontolgico da existncia. Essas noes de temporalidade e de Ser
postas por Heidegger revitalizaram os debates hermenuticos e a Teoria da
Literatura do sculo XX. A concepo de que a coisa em si mesma no tem uma
essncia e que o seu ser temporalidade, redirecionou os estudos hermenuticos
no sculo XX, pois se a antiga Hermenutica objetivava alcanar o que estava oculto
por de trs do texto e dos smbolos, o autor de Ser e Tempo propunha um
desvelamento da hemorragia do Ser, fruto de sua temporalidade.
Alm disso, Heidegger tambm pe o seguinte problema: como o Dasein em
seu ser-no-mundo, que supe um fundo temporal-espacial, desvela o Ser dos entes
(coisas), inclusive o seu prprio? Para responder a tal questo, o filsofo
desenvolve uma das noes mais fundamentais de sua filosofia, a reflexo em torno
da existncia inautntica e autntica. Segundo a teoria de Heidegger, a vida
cotidiana, pblica, impessoal e funcional levou o homem a ocupar-se com os entes,
e esquecer-se de seu ser mais prprio. Entretanto, medida que o homem cotidiano
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passa a cultivar a reflexo sobre a morte e experimenta uma angstia existencial
nadificante, ele poderia transcender a queda da vida cotidiana e assumir uma
existncia autntica, isto , poderia ser livre para poder viver o seu ser mais prprio.
nessa conotao, portanto, que Heidegger diz que o ser autntico um ser-para-
morte.
Dessa forma, a dimenso autntica da existncia em Heidegger est
relacionada a uma desautomatizao em relao faticidade e mesquinharia da
vida cotidiana. De modo que, se na cotidianidade, as coisas se do a conhecer
pelo seu complexo relacional e funcional, nas experincias autnticas o Ser
desvelado, justamente quando ele sai desse complexo mediano e conhece um
estado de existncia inaugural. Segundo Terry Eagleton:
O modelo de Heidegger para um objeto a ser conhecido ,significativamente, um instrumento: conhecemos o mundo noatravs da contemplao, mas como um sistema de coisas inter-relacionadas que, como um martelo, esto mo; elementos aserem usados em algum projeto prtico. O conhecer estprofundamente relacionado com o fazer. Mas, o outro aspectodessa praticidade comum aos homens simples um misticismocontemplativo: quando o martelo se quebra, quando deixamos de
contar com ele, sua familiaridade arrancada e ele se revela emseu autntico ser. (EAGLETON, 2003, p.88)
Embora Terry Eagleton caracterize a dimenso da autenticidade em
Heidegger de mstica, no devemos deixar de pontuar que Heidegger v na vida
cotidiana e nas relaes pblicas um modo de vida inautntico, no qual as coisas se
banalizam como instrumentos. Os homens perdem a sua singularidade e se
encobrem no anonimato do das Man (a gente), ou seja, na condio a que a vida
cotidiana e pblica os empurra. revelia dessa condio de medianidade, o
homem, que compreende existindo, possui uma posio de excelncia, ou em
termos heideggerianos, de transcendncia, no que se refere ao acontecer ou
emerso do sentido do Ser, porque em torno do Dasein que o Ser dos seres se
desvela. Da a concluso de Emmanuel Carneiro Leo:
A ndole especfica desse modo humano (Dasein) de ser reside na
iluminao da imanncia ao mundo pela luz do Ser, na qual os
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entes parecem em seu ser: os animais em sua animalidade, osinstrumentos em sua instrumentalidade, os homens em suahumanidade, etc.(LEO, 1991, p.110)
Com a categoria do Dasein,Heidegger instaura na teoria do conhecimento
uma relao orgnica entre situao, compreenso e interpretao. O Dasein que
habita o mundo, antes de sua orientao no mundo, j se encontra em comrcio
com as possibilidades da existncia, antes de se projetar nelas. Desse modo, o
Dasein compreendido como um ser dotado de possibilidades, porque faz parte de
sua ontologia fundamental possuir possibilidades, fruto de um espao aberto pela
existncia em que esse Daseinest inserido. Segundo Benedito Nunes (1992), apalavra possibilidade estaria mais prxima da acepo de potncia. Seria a
potncia j determinada pela existncia, antes de concretizar-se numa dada
instncia emprica. Isto quer dizer que qualquer espcie de comportamento ou de
atividade do homem um modo de existncia e, como tal, uma possibilidade do
Dasein. Cada modo de existncia traz a compreenso de ns mesmos e do mundo.
Com Heidegger, a compreenso deixa de ser entendida como a apreenso de um
fato, para torna-se uma adequao do poder-ser (potncia) s possibilidades daexistncia, j que o Dasein existe projetando-se na existncia. Para Heidegger
(2009), esse projeto no nos remete para um plano previamente traado por ns no
qual, posteriormente, lanaramos o nosso ser, mas, pelo contrrio, na condio de
homens (Dasein), seres existentes, j estamos projetados na existncia e no
percurso de nossa existncia seguimos projetando-nos para frente, ao encontro de
nossas possibilidades. Porm, a partir desse projeto, Heidegger vislumbra uma
promoo do Ser, pois para ele: A presena 7 a possibilidade de ser livre para o
poder-ser mais prprio. (HEIDEGGER, 2009, p.204). Logo, a primazia da
compreenso recai sobre um crculo hermenutico no qual no h questionamentos
que no tenham implicaes e pressupostos, do mesmo modo que toda
interpretao enreda o intrprete e vice-versa.
Heidegger, de acordo com isso, nega o primado epistemolgico clssico,
caracterizado pela relao analtico-explicativo existente entre um sujeito
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Presena aqui mesmo que Dasein
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cognoscente e um objeto cognoscvel, para propor em seu lugar uma concepo de
compreenso-interpretao, no mais debitria de uma epistemologia da
interpretao, mas resultante de nossa condio fundamental de estarmos situados
no mundo. Isto significa dizer que sujeito e objeto do conhecimento esto implicados
um no outro no horizonte da compreenso, pois, para ele, anteriormente a qualquer
juzo ou compreenso cognitiva, h uma pr-compreenso que torna, para ns, as
coisas familiares. Por isso, o termo Dasein remete para um novo olhar para o
homem, uma vez que ele representa um dos abalos tradio da Filosofia
Reflexiva, centrada no Cogito. Para Heidegger, o projeto abrangente do ser-homem
como Dasein no sentido ek-sttico ontolgico, pelo qual a representao do ser
homem como subjetividade da conscincia superada. (HEIDEGGER apudTORRE,2001, p.149)
Ainda de acordo com Torres (2005), o Dasein, em seu ek-sttico (modo de
ser para fora), um zu sein, como a-ser, aberto as possibilidades da existncia.
Com o Dasein heideggeriano, fomos impelidos a ver a compreenso de forma
orgnica, isto , atravs de um crculo hermenutico, pois como lembra Heidegger
em Ser e Tempo: Em todo compreender de mundo, a existncia tambm est
compreendida e vice-versa. (2009, p.213). Em outras palavras, fiel ao nominalismo,o autor de Ser Tempono se entusiasma com a noo de uma compreenso ideal e
universalizante, mas pelo contrrio a transforma em uma realidade mundana
produzidas por sujeitos concretos.
Diante dessa posio do sujeito na Nova Hermenutica, podemos concluir
que desde Husserl a Fenomenologia luta por uma fuga do psicologismo do sculo
XIX. Assim sendo, ontologicamente, o modo de ser epistemolgico da
Fenomenologia desconfia de uma maneira ou de outra de um eu imediato ouprimeiro. Com Heidegger, a certeza do cogito se pulveriza levando o filsofo a
traar uma nova reflexo em torno da compreenso humana, j que o pensamento
desse filsofo comunga com a tradio da crise das certezas. Segundo Bosi:
A crise na ordem das certezas (que, de um certo ponto de vista,comeara com o criticismo de Kant) marca a passagem da Era dasLuzes para a era da suspeita. nesta que tem a sua hora opensamento de Marx, de Kierkegaard, de Nietzsche, de Freud, deMax Weber, de Heidegger, de Sartre. A se v o selo da nossacontemporaneidade: um olhar que j no absolutiza o cogito, porque
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o situa no interior de uma existncia finita e vulnervel, mas sempreinquieta, interrogante. (BOSI, 2003, p.80).
De acordo com essa lgica anti-racionalista, Heidegger desenvolve um
argumento em torno da motivao da compreenso que extrapola o horizonte
especulativo. Para esse filsofo, o que liga o homem, por exemplo, s coisas no
o entendimento, mas a Sorgen(cuidado), ou seja, a nossa ocupao com os entes
(coisas), que nos orienta, hermeneuticamente, na vida cotidiana; assim, como o
humor da preocupao (Bersogen), exclusiva da existncia autntica, que nos
motiva a libertar o Ser para a sua dimenso mais autntica. Desse modo, deve ficar
claro que para Heidegger o compreender est implicado com o humor, fato que o
autor no cansa de explicitar em Ser e Tempo. Segundo Gadamer:
Heidegger substitui o conceito de subjetividade pelo conceito decuidado. Nessa posio, contudo, fica claro que o outro s visadocom isso margem e em uma perspectiva unilateral. Assim,Heidegger fala de cuidado (Sorge) e tambm de preocupao(Frsorge). No entanto, a preocupao conquista nele o acentoespecial, com o qual ele denominou a preocupao propriamente dita
de uma preocupao libertadora. A expresso indica o que est emquesto com ela. A verdadeira preocupao no um cuidar dooutro, mais um liberar o outro para o seu prprio ser-si-mesmo emcontraposio a um cuidado com outro que lhe satisfizesse todas assuas necessidades e que quisesse lhe retirar o cuidado prprio aoser-a.(GADAMER, 2009, p.108).
Outra noo importante na Hermenutica fenomenolgica de Heidegger que
vem a corroborar a dissidncia do filfoso com o pensamento racionalista a noo
de sentido. Comumente, quando falamos em sentido costumamos relacionar essetermo descoberta racional de algo. Mas, a partir da teoria heideggeri