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MARlA LUCIA KARAM
Organizadora
GLOBALIZAQAo, SISTEMA
PENAL E AMEAQAS.AO ESTADO
DEMOcRATICO DE DIRE ITO
IBGGrim Instituto Brasileiro de Ciencias Criminais/CoordenaQao·Rio
MMFD Movimento da Magistratura Fluminense pela Democracia
GAGa Centro Academico Candido de Oliveira da Faculdade Nacionai
de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Editora Lumen Juris Rio de Janeiro
2005
Copyright © 2005 by Maria Lucia Karam
Produgao Editorial Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.
Transcrig6es: Paula Strozenberg, Maria Lucia Karam,
Rodrigo Ramos de Souza e Maira Fernandes.
Tradug6es e Revisao: Maria Lucia Karam
Capa: Fernanda Lage Alves e Clara Cerqueira
A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA. nao se responsabiliza pela originalidade desta obra
nem pelas opini6es nela manifestadas por seu Autor.
E proibida a reproduqao total au parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanta as caracteristicas
graficas e/ou editoriais. A violagao de direitos autorais constitui crime (Cadigo Penal, art. 184 e §§, e Lei n 2 6.895,
de 17/12/1980), sujeitando-se a busca e apreensao e indenizag6es divers as (Lei n 2 9.610/98).
Todos as direitos desta ediqao reservados a Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.
Impresso no Brasil Printed in Brasil
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Sumario
Algumas Explicag6es Necessarias ................................... . vii
Apresentagao ...................................................................... . 1
Abertura................................................................................ 5 Saudagao Luis Henrique Campos ................................ . Saudagao Nilo Batista ........................ , .......................... . Conferi'mcia Ministro Eugenio RaUl Zaffaroni ............ .
Debates ................................................................................ . Mesa 1: A funcionalidade do processo de criminalizagao
na gestao dos desequilibrios gerados nas formag6es sociais do capitalismo pas-industrial e globalizado .. Intervengao Vera Malaguti Batista .............................. . Intervengao Giancarlo Corsi ...................... , ................. .
7 11 17
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Debates ........................... ·...................................................... 79 Mesa 2: A politica proibicionista e 0 agigantamento do
sistema penal nas formaqaes sociais do capitalismo pas-industrial e globalizado ................ ............... ........... 93 Intervengao Marco Perduca . ........ .................... ............. 95 Intervengao Salo de Carvalbo....... ........ ........................ 115
Debates ............................. ......... ........ ........ .... .................... ... 127 Mesa 3: 0 processo penal das formag6es sociais do ca
pitalismo pas-industrial e globalizado e 0 retorno a prevalencia da confissao - da subsistencia da tortura aos novos meios invasivos de busca de .prova e a pe-na negociada........... ........ ... ..................... ... .......... ........... 133 Interven<;ao Alessandro De Giorgi ........ ........ ............... 135 Interven<;ao Geraldo Prado ................................ ........... 153
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Debates ........................................................ ............. ............ 171 Mesa 4: A face belie a das formag6es sociais do capita
lismo pas-industrial e globalizado: do sistema penal regular a eliminagao das garantias dos direitos fundamentais - as sornbrias perspectivas a partir de Guantanamo.................................................................... 183 Apresentagao Nelio Machado....................................... 185 Intervengao Alvaro Pires ............................................... 191 Intervengao Cristiano Paixao ........................................ 221
Debates ................................................................................. 237
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Algumas Explicagoes Necessarias
Esta publicagao reproduz 0 Seminario Globalizagiio, Sistema Penal e Ameagas ao Estado Democratico de Direito, promovido pelo Centro Academico Candido de Oliveira da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro - CACO, pela Coordenagao no Rio de Janeiro do Instituto Brasileiro de Ciencias Criminais - IBCCrim e pelo Movimento da Magistratura Fluminense pela Democracia - MMFD.
Realizado nos dias 16 e 17 de junho de 2004, no Salao Nobre da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 0 Seminario ora reproduzido se pautou por uma proposta: a convocagao para .a luta pela contengao do poder do Estado de punir, pela inversao dos rumos repressivDs e autoritarios das formag6es sociais do capitalismo p6s-industrial e globalizado, pela preservagao do Estado Democratico de Direito, pela redugao dos danos e das dores provocados pelo sistema penal, pela reafirmagao de urn permanente compromisso com a liberdade.
o cenario - a Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro - foi especialmente escolbido para reforgar a convocagao. Porque, na realidade, naqueles dois dias de junho pass ado, nao estavamos propriamente na Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Estavamos, sim, no CACO. 0 enderego onde se realizou 0 Seminario nao era a rua Moncorvo Filho. Era, sim, 0 Largo do CACO. 0 CACO que fez hist6ria, na luta de resistencia a opressao e a repressao da ditadura militar. 0 CACO, que, sirnbolo maior dos estudantes da "geragao 68", e, por is so mesmo, 0 sirnbolo maior de compromissos que, afirmados no Seminario, devem ser
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Globalizagao, Sistema Penal e Ameagas ao Estado Democratico de Direito
sempre renovados: 0 compromisso com a liberdade, com a generosidade, com 0 desapego, com 0 desejo de construir sociedades mais justas, mais iguais, mais solidarias, mais livres, mais tolerantes; 0 compromisso com a crenga nas possibilidades, ainda que longinquas, de realizagao de utopias, crenga que ditava palavras de ordem como ados estudantes parisienses de 68: "seja realista, paga 0 impossivel".
Roje, aindavivemos a opressao que exclui um numero enorme de pes so as em todo 0 mundo do acesso aos direitOB fundamentais a uma alimentagao saudavel, a uma moradia confortavel,a saude, a educagao, ao trabalho, a dignidade. Ainda vivemos, mesmo nas democracias, a repressao de um ampliado poder do Estado de punir, que nega a liberdade, que controla e disciplina para manter a exclusao.
Com essa publicagao, queremos amp liar a convocagao feita naqueles dois dias de junho passado. Convocamos, agora, 0 maior numero de pessoas, para que, revivendo 0
Seminario, com a leitura, 0 pensamento e a analise, sempre realistas, pegam 0 que pode parecer impossivel: pegam e bus quem 0 fim da desigualdade e da exclusao; deixando os medos, as insegurangas e 0 egoismo de lado, pegam e busquem 0 convivio, a soJidariedade, a compreensao, a compaixao; deixando de lado os pragmatismos imediatistas, reacendam os ideais transformadores; repudiando as proibigoes, 0 controle, a vigili'mcia, as dores das prisoes, 0
ampliado poder do Estado de punir, pegam e busquem sempre a liberdade. .
Com esta renovada convocagao, entregamos, pois, a leitura, 0 conteudo do Seminario Globaliza"ao, Sistema Penal e Ameagas ao Estado Democratico de Direito, reproduzindo a Conferencia pronunciada pelo Ministro Eugenio Raul Zaffaroni e as saudagoes a ele dirigidas por Nilo Batista e, em nQme do CACa, por Luis Renrique Campos, seguindo:se as intervengoes de Vera Malaguti Batista,
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Algumas Explicagoes Necessarias
Giancarlo Corsi, Marco Perduca, Salo de Carvalho, Alessandro De Giorgi, Geraldo Prado, Alvaro Pires e Cristiano Paixao, nas quatro Mesas, em que discutidas a funcionalidade do processo de criminalizagao na gestao dos desequilibrios gerados nas formagoes sociais do capitalismo pas-industrial eglobalizado; a poJitica proibicionista e 0
agigantamento do sistema penal; 0 processo penal e 0 retorno a prevalencia da confissao, a subsistencia da tortura, os novos meios invasivos de busca de prova e a pena negociada; e, finalmente, a face belica do capitalismo pas-industrial e globalizado, refletida no caminho do sistema penal regular a eliminagao das garantias dos direitos fundamentais.
Em todos os textos, revistos pelos autores, bern como na reprodugao dos debates que se seguiram a Conferencia de abertura e a cada uma das Mesas, procuramos manter, ao maximo, a tonaJidade do discurso oral, nao so por sua vivacidade, mas tarnbem para reviver de forma mais fiel 0
desenrolar do Seminario. As intervengoes de Marco Perduca, Giancarlo Corsi e Alessandro De Giorgi, e suas participagoes nos debates, esti'lo reproduzidas como foram pronunciadas, em ingles e em italiano, vindo, imediatamente apos,sua tradugao para 0 portugues.
Na ultima Mesa, alem das interveng6es e debates, reproduzimos tarnbem as palavras de apresentagao de seu presidente, Nelio Machado, dado 0 conteudo exemplar de seu discurso, que, emocionando a quem pode presencia-Io, deve ser lido e reUdo por todos, ainda mais especialmente pelos estudantes, futuros advogados, que, lendo-o e relendo-o, decerto reforgarao decisivamente 0 indispensavel compromisso com 0 fundamental direito a defesa.
No momenta em que reproduzimos 0 Semin8.rio nesta publicagao e, assim, 0 revivemos, e preciso registrar urn agradecirnento especial a Professora Juliana Neuenschwander Magalhaes, que, nao bastasse ser a responsavel pela pro-
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Globalizac;.3.o, Sistema Penal e Ameagas ao Estado Democratico de Direito
pria ideia de se fazer 0 Seminario, ainda contribuiu de forma inestimavel em sua realizagao.
Revivendo 0 Seminario, certamente, e preciso registrar tambem 0 entusiasmo, 0 compromisso, a energia, a capacidade de trabalho, 0 talento organizativo, enfim, todas as preciosissimas qualidades da Fernanda Lage, do Eduardo (Dudu), da Maira, da Luanda, do Claudio, do Enzo, do Rafael (Rafa), do Pedro Duarte, do Paulo, do Pedro Avzaradel, do Alex, do Luis, da Leticia, do Daniel, do Joao Felipe, da Fernanda Maciel, do Rafael (Kaka), do Escobar, da Clara, do Marquinhos, do Marcos Vinicius, do Leopoldo, do Tadeu, da Juliana, do Gliilherme, do Marcelo, de todos os "meninos" e "meninas" que, integrantes ou ex-integrantes do CACa, honram as tradig6es deste simbolo de todos os estudantes brasileiros (antigos e atuais) e a quem todos os que participamos diretamente do Seminario e todos os que dele participarao, atraves dessa sua reprodugao, devemos dirigir nosso maior reconhecimento, nossos maiores agradecimentos, nossa maior admiragao.
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Maria Lucia Karam Coordenadora no R:io de Janeiro
do IBCCrim e membro do MMFD Abril 2005
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Seminario Globalizagao, Sistema Penal e
Ameagas ao Estado Democratico de Direito
Apresentagao
A concentragao de capitais em empresas, que, transnacionalizadas, acumulam um poder enfraquecedor dos Estados nacionais, a desregulamentagao do mercado, a minimizagao das areas de intervengao econ6mica e social, marcam a etapa pos-industrial e globalizada da. evolugao do capitalismo. a processo de desigualdade e exclusao, inerente aquele modo de produgao, se aprofuncia, provocancio 0 crescimento da quantidacie de marginalizados, excluidos das proprias atividades produtivas.
As relag6es sociais, caracterizadas pelo individualismo, pela competigao, pelo imediatismo, pelo egoismo, pela ausencia de solidariedade no convivio, seguem a logica do mercado, favorecendo sentimentos de incomodo, de medo, de inseguranga.
Por Dutro lado,o desmoronamento das tradug6es reais do socialismo eo indispensavel repudio as perversidades totalitarias, que desvirtuaram a concretizagao dos ideais libertarios e igualitarios, encontrados na raiz do sonho socialista, nao conseguiram produzir a reformulada construgao de novas utopias emancipadoras. Antigos ideais transformadores sao trocados por desejos mais imediatos de conquista de cargos no apareIho de Estado, por pragmatismos politico-eleitorais, que, submetidos aDs ditames de uma opiniao, formada e traduzida por uniformizadores orgaos massivos de informagao, acabam por fazer com que
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GlobalizalSao, Sistema Penal e Amea<;;as ao Estado Democratico de Direito
pouco se diferenciem preocupac;6es, discursos e praticas, quase fazendo acreditar que a contraposic;ao entre direita e esquerda teria mesmo perdido sua razao de ser.
Em campo assim tao fertil para a intensificac;ao do contrale social, reavivam-se as premissas ideologicas de afirmac;ao da autoridade e da ordem, surgindo, uniforme, uma opc;ao preferencial pela reac;ao punitiva, a possibilitar uma desmedida ampliac;ao do poder do Estado de punir.
Dentra do vitorioso Estado minima. da pregac;ao neoliberal faz-se presente urn incontestado Estado maximo, vigilante e onipresente, que se vale de urn desenvolvido aparato tecnologico de investigac;ao e de controle, que manipula 0 me do e a inseguranc;a, para criar novas e dar roupagem pos-moderna a antigas formas de intervenc;ao e de restric;6es sobre a liberdade.
a ampliado poder do Estado de punir produz leis de excec;ao que, vulnerando principios e garantias essenciais ao Estado Democratico de Direito, ameac;am sua propria subsistencia. A ideia de que algo precisa ser feito para manter a ordem, que acaba por admitir todo tipo deviolencia contra apontados "delinqUentes", que acaba por ensejar todo tipo de vigilancia e intervenc;ao na esfera de privacidade dos individuos, "delinqiientes" ou nao, que nao se conforma com principios garantidores da liberdade, e a me sma ideia que, presente na repressao politica das ditaduras, vern alimentando a crescente repressao do sistema penal, nas democracias mais ou menos reais das formac;6es sociais do capitalismo pos-industrial e globalizado.
Este ana de 2004 marca 0 40" aniversario do golpe militar de 1964, que deu inicio a longo periodo ditatorial sofrido pelo povo brasileiro. Mas, tambem marca 0 20" aniversario do movimento pelas eleic;6es diretas, que, mesmo derrotado de imediato, lanc;ou as sementes da restaurac;ao democratica. E d'alem mar, ha 30 anos, os cravos de abril
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GlobalizalS8.o, Sistema Penal e Ameagas ao Estado Democratico de Direito
deixavam 0 aroma da fraternidade, da tolerancia e do desapego verdadeiramente revolucionarios.
Este ano de 2004 e, pois, tempo especialmente oportuno para refletir sobre 0 sistema penal, compreender suas caracteristicas, desnudar a enganosa publicidade que 0
sustenta, perceber as ameac;as ao Estado Democratico de Direito contidas em sua expansao .
A realizac;ao deste Seminario nas dependencias da Faculdade Nacional de Direito evoca 0 compromisso com a luta pela liberdade, que tem no CACa urn de seus mais significativos simbolos.
Lembrando 0 passado, convoca-se para a luta presente pela contenc;ao do poder do Estado'de punir, pela inversao dos rumos repressivos e autoritarios das formac;6es sociais do capitalismo pas-industrial e globalizado, pela preservac;ao do Estado Democratico de Direito, pela reduc;ao dos danos e das dores provocados pelo sistema penal, pela reafirmac;ao do compromisso com a liberdade.
Junho 2004
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ABERTURA Saudag6es ao Ministro Eugenio Raul Zaffaroni
Luis Henrique Campos Centro Academico Candido de Oliveira daFaauldade
Naciomil de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro - Brasil
Nilo Batista Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Instituto
Carioca de Criminologia - Brasil
Conferencia "Globalizag8.o, Sistema Penal e Ameagas ao Estado Democratico de Direito"
Ministro Eugenio Raid Zaffaroni Corte Suprema de la Nacion - Argentina.
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Abertura Saudagoes ao Ministro Eugenio
Raul Zaffaroni
Luis Henrique Campos
Primeiramente, gostaria de agradecer a presenga de todos. Boje, nos alunos da Faculdade Nacional de Direito, estamos presenciando um momento novo nesta casal As perspectivas de um Direito que conduza a uma atuagao critica comegam a se tornar realidade. Realidade, pOis temos a nossa frente um ministro de uma Corte Suprema que conseguiu unir a pratica e a teoria de uma forma critica; realidade, pois estamos na abertura de urn seminario em que se pretende discutir 0 sistema penal e as ameagas ao Estado Democratico de Direito que dele provem, em urn momento historico marcado pela difusao das ideias de inseguran<;a, violencia e impunidade.
A realizagao de um seminario com este enfoque inegavelmente e um grande avango, pois vivemos em uma epoca em que nossos governantes nao sao capazes de perceber a associagao entre 0 neoliberalismo e 0 modelo de justiga criminaL Epoca em que, quando se fala de seguranga publica, correm todos para a vala do senso comum, para uma reprodugao de uma pauta imposta e difundida por uma midia, que nao e mera cronista, mas sua principal protagonista.
Partindo do pressuposto de que 0 aumento do controIe punitivo nao e simples reflexo de urn aumentoda violencia urbana, mas, antes, parte da construgao social de uma politica historicamente determinada pela emergencia do Estado neoliberal, e absolutamente pertinente a necessi-
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Luis Henrique Campos
dade de reivindicar como pauta de discussao 0 discurso e a pratica punitiva adotados pela politica vigente, It urgente que se estabelec;am e se ventilem dis curs os como os que serao veiculados nesse seminario, para fazer frente a politica atual que convive com um Estado social minimo e um Estado punitivo maximo, promovendo politicas criminais genocidas como resposta a grande parte da populac;ao que se encontra absolutamente excluida de um pacto social construido sobre as bases da desigualdade, da dominac;ao e das relac;oes hierarquicas.
Raul Zaffaroni, este grande jurista e pensador argentino, com quem hoje tenho 0 prazer de dividir est a mesa, ja dissecou a realidade penal latino-americana com seu discurso juridico-penal esgotado em um arsenal de ficc;oes gastas, cujos 6rgaos exercem seu poder para controlar 0
marco social cujo signo e a morte em massa e uma realidade letal.
Para ele, 0 saber juridico e 0 sistema de comunicac;ao produzem uma realidade que nao permite a deslegitimac;ao do sistema pela percepc;ao direta dos fatos. Zaffaroni denuncia os vinculos ideol6gicos genocidas dos discursos penais latino-americanos, estendendo 0 conceito foucaultiano de instituic;oes de seqiiestro para as colonias da America. A regiao latino-americana se constituiria em uma gigantesca instituic;ao de seqiiestro, dos alagados, favelas e vilas de mis8ria aos carceres apinhados e campos ferteis improdutivos, cercados e guardados contra os sem-terra.
Esse complexo de politicas e de discursos gerou tambem uma arquitetura do medo; trabalhar a espacialidade urbana, a violencia e 0 medo equivale a trabalhar a completude da criminologia e da politica criminal. A naturalizac;ao dos discursos segregadores e exterminadores tem conseqiiencias esteticas, cria monument os e transforma a cidade, como nos ensina Vera Malaguti Batista. Como diz Gizlene Neder, a produc;ao imagetica do terror faz parte de um con-
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Sauda~6es ao Ministro Eugenio Raul Zaffaroni
junto de dispositivos em que as classes pobres, mais que compreender a nivel de razao, foram e seguem sendo levadas aver e a sentir seu lugar na estrutura social. Esses discursos transformados em obras e poIiticas urbanas concretas produzem hierarquias na cidade, controle do deslocamento dos pobres pelas ruas, bairros que sao blocos do mal, zonean1entos invisiveis, produzindo arranjos esteticos em que certas pessoas nao devem circular por alguns lugares, como nos ens ina novamente Vera M",laguti Batista.
A radicalizac;ao dos pressupostos crirnino16gicos e uma das bases da radicalizac;ao democratic a e transform adora. Esta e a proposta do ponto de partida e nao de chegada. Vma partida que nao se parte ingenua eque se inun, da de autocritica. Vma partida consciente de que nao ha chegada, nao he. fim; ha sim uma luta continua de transformac;ao e humanizac;ao em busca da radical qualidade de vida, deterrninada historicamente p~r um mundo feito de riquezas incompativeis com a pobreza existente.
Diante desses comentarios verbais e textuais, as perguntas se fazem mais presentes que possiveis respostas.
o espac;o de discursos criminol6gicos, como 0 que ocorre nesse seminano, e entendido aqui como espac;o p~r excelencia de apreciac;ao e critica extra-sistemica das func;oes politico-economicas dos modelos de controle social. Nao se pretende, em momento algum, instrumentalizar este espac;o a fim de produzir um receituario de politic as criminais pronto e acabado como resposta aDs temas de violencia e de seguranc;a, colonizado pela 16gica do possivel, que mais parece a 16gica da reprodugao. Ha, sim, 0
compromisso com 0 reforgo de politicas de inclusao em oposigao as existentes e reproduzidas.
Entretanto, politic as de inclusao nao podem ser generalizaveis, mas antes construidas politicamente pelos sujeitos coletivos. Ficam entreabertos importantes espac;:os de discussao. Diante de uma estrutura politico-economica
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Luis Henrique Campos
de caracteristicas tao complexas e de instrumentos teoricos disponiveis tao limitados para apreende-la, maiores sao as fissuras que os espac;os cheios. Fica exposta a tenSao dos espac;os tao transformados e invisiveis do controle social, que nao se sabe se publicizado OU proletarizado, abertamente colonizado pelo mercado, em conjunto as politicas globais neoliberais, em que ja nao se pretende gerir a criminalidade, mas erradicar os excluidos.
E impossivel nao ficar estarrecido diante das politi-, cas genocidas atuais, de modo que, mesmo sen1 respostas as barbaridades produzidas pela desigualdade alai-· mante, e imperativa a busca de espac;os de organizac;ao de resistencia.
E a difusao de ideias, em urn seminario como este, parece ser uma primeira conquista necessaria e inafastavel para 0 fortalecimento dos vinculos que fac;am frente as relac;oes verticalizadas e desiguais tao necessarias as estruturas socio-economicas do capitalismo.
Muito obrigado.
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Nilo Batista
Trago aqui minha saudaC;ao carinhosa e festiva ao CAca, por este evento tao import ante nessa conjuntura de quarenta anos de resistencia ao golpe militar que depos 0
presidente Joao Goulart. Meu querido amigo, conferencista desta noite, Ministro Eugenio Raul Zaffaroni, meus colegas e minhas colegas, moc;ada do CACa, participantes do seminario:
A professora Maria Lucia Karam, minha amiga, solicitou minha presenc;a apenas ontem, completamente sem tempo para que eu pudesse fazer uma saudaC;ao academica a altura do professor Raul Zaffaroni. Me impos, digamos assirh, essa tarefa, acumpliciada com Vera Malaguti Batista, e aqui estou eu - honrado porque, de certa forma, me sinto como urn delegado dos participantes desse seminario tao importante, tao oportuno - para falar duas palavras sobre Eugenio Raul Zaffaroni.
Desde logo, descarto a possibilidade de fazeruma laudac;ao academica tal como ele mereceria, frisando especificamente sua fantastic a contribuiC;ao academica, sua carreira brilhantissima, singular, as inumeras distin«oes, os inumeros laureis academicos, os inumeros doutorados honoris causa que Raul recebeu da·s mais distintas universidades de todo 0 mundo, para, ao inves, dar urn depoimento pessoal do que representou a presenc;a do Raul Zaffaroni para a minha geraC;ao de professores de direito penal latinoamericanos.
Ate urn determinado momento - 0 momento da ultimac;ao da formac;ao dele -, 0 conhecimento com Raul Zaffaroni era urn conhecimento apenas pelos livros que chegavam ate aqui ou que nos conseguiamos trazer. De repente, uma surpresa: urn livro de capa vermelha, uma teoria do delito fantastic a - 600, 700 paginas -, de urn professor que ninguem sabia quem era. E famos saber tanto ... Ai, comec;a
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Nilo Batista
aquela coisa: "quem e?". Falo com 0 Heitor - estou falando da minha geragao -, ligamos para os "Juarezes" - os dois Juarez, Tavares e Cirino, estavam aqui nessa ocasiao, trabalhando sob a reg€mcia de Heleno Fragoso -, aquele grupo de professores que faziamos a Revista de Direito Penal. Quem era? Heitor - e uma pen a que ele nao esteja aqui, porque, digamos, se, como disse a Maria Lucia Karam, ao me chamar para a mesa, eu sou 0 Joao Gilberto, 0 professor Heitor Costa Junior e uma especie de Dorival Caymmi do direito penal brasileiro. Eritao, quem era? Heitor chegou a levantar a teoria de ser urn Italiano; depois vimos que era urn argentino e ficamos deslurnbrados com a qualidade, com 0 nivel. Logo soubemos que tinha uns estudos europeus, a historia, a passagem pela Italia, pela Alemanha, pela Espanha, enfim, uma formagao.
Alguns anos depois, veio 0 deslurnbramento, quando apareceu aquele tratado em cinco volumes que era, sem nenhuma duvida, 0 trabalho latino-americano mais importante do direito penal ate entaD. Sobrepunha-se as obras mais significativas; se ficassemos na Argentina, engolfava a produgao anterior, engolfava Soler... ja que falei em cinco volumes, vamos ticar no criterio comparativo aritmetico ... mas engolfava tantos outros trabalhos, maiores ou menores.
Acho que ha urn momento decisive na carreira de Raul, que coincide com 0 momenta em que eu iria conhece-10 pessoalmente. Iniciamos, ali, uma colaboragao que modificou muito a minha vida e 0 meu percurso academico.
Foi urn momento em que, em torno do Raul e sob a coordenagao do Raul, se desenvolveu, no Instituto Interamericano de Direitos Humanos, urn estudo sobre sistemas penais e direitos humanos na America Latina. Era curioso porque, naquele momento, na Europa, no que era a tradigao de von Liszt, as portas das preocupagoes penalisticas eram abertas para a politic a criminal. As port as do direito penal estavam sendo abertas para a politic a criminal, por
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Saudac;:oes ao Ministro Eugenio Raul Zaffaroni
Roxin, no seu famoso texto. E verdade que ele as abriu, generosamente, para a politica criminal. Mas, para a criminologia, ele nao as abriu. Porque a criminologia seria ali, como eu disse uma ocasiao, uma conviva inconveniente, ate porque ela daria uma gargalhada na hora em que se falasse de prevengao especial. A criminologia iria rir, iria atrapalhar urn pouco ...
Mas, aqui na America Latina, sob a lideranga intelectual do Raul, os penalistas, compreendendo claro tarnbem o processo penal, enfim, os criminalist as , vamos empregar issa da maneira mais democratica; as criminalist as estavam dialogando com a criminologia ecom a politica criininal, estavam experimentando concretamente seu ingresso, aprendendo os passos, como se fosse uma especiede gafieira academic a - a proximidade aqui da Gafieira Elite me permite a metatora.
Estavamos aprendendo a dangar aquela dan<;:a, com saberes que, para nos, eram estranhos, porque, em nossas Faculdades de Direito, os dois paradigmas entao absolutamente predominantes - tanto 0 paradigma do tecnicismo juridico, quanto 0 paradigma neo-kantista - interditavam esse diatogo da teoria juridiCa com a historia, com a filosofia, com as ciencias sociais. Interditavam explicitamente, seguindo 0 modele que tarnbem era 0 europeu. 0 que repicava aqui eram, digamos, os ecos daquele ornejo memoravel de Manzini sobre a inutilidade da filosofia. Era 0 que nos praticavamos aqui.
E, ali, estava havendo uma grande mUdanga. Raul, sempre a frente de nos, ja estava escrevendo uma criminologia, descrevendo 0 estado da politic a criminal latinoamericana. E, neste ponto, nao posso falar dessa etapa, das afligoes, das angustias penalisticas latino-americanas, sem eVocar a figura de Alessandro Baratta, figura decisiva naquele momento. Foi urn missionario. Alessandro Baratta trazia tudo de la, aqueles estudos fantasticos ... Ele cruz a-
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Nilo Batista
va ... foi pioneiro em cruzar 0 estudo da hist6ria, das institui<;6es politicas, com 0 estudo da dogmatica. Raul tambem estava fazendo is so e publicando isso. Entao, ali se tinha uma convoca<;ao; foi uma grande mobiliza<;ao. Falei de Alessandro Baratta e tenho que falar de Rosa Del Olmo, que como Baratta, tambem nao esta mais entre n6s; que, como Alessandro Baratta, foi um personagem importante daquela pesquisa, uma pensadora, uma revolucionaria, uma mulher admiravel. Quando a America Latina puder celebrar seus her6is de verdade, esses dois VaG ter um lugar, hoje ocupado pelos produtos feitos do senso comum neoliberal.
Dali em diante, Raul fo; um cometa, foi um foguete, tambem ele pregando, andando de cima para baixo e produzindo, debatendo. Era uma luta, nao era apenas uma teoria.
as colegas europeus podiam ficar ali na teoria. Para n6s, se tratava de uma milit€mcia. Aqui, era uma luta, porque 0 sangue estava vertendo. N6s nao trabalhavamos com a distancia, com a assepsia que um colega de paises centrais pode fazffi". No nosso caso, temosque ir la, passar 0
pano de chao, pois 0 sangue acabou de escorrer. Raul esteve completamente a altura dessa percep<;ao.
Aquele seminario em torno dos sistemas penais e direitos humanos na America Latina mudou as nossas vidas.
Este evento de hoje tem uma raiz naquele seminario. Como naquele seminario, ha um encontro com a realidade que vai culminar na grande elabora<;ao da teoria negativa ou agn6stica da pena, esse grande constructo que veio botar ordem nos idealismos insensiveis a tragedia carceraria dos patses perifericos.
Dentro da teoria do delito, a contribui<;ao do Raul e fantastica. Nao vou falar aqui da tipicidade conglobante, essas coisas ... Raul tem uma obra muito frutuosa e, intencionalmente, nao quero escolher uma ou outra coisa. Quis apenas falar da contribui<;ao metodol6gica, pois acho que e
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Sauda90es ao Ministro Eugenio RaUl Zaffaroni
por ai que conseguimos caminhar. Hoje, um criminalist a que conhece apenas a teoria do delito nao conhece sequer a pr6pria teoria do delito. Este dado metodol6gico tern, na figura do Raul, seu principal, mais import ante e mais criativo elaborador.
Esta e a personalidade deste querido amigo, colega, companheiro, e ja se vai mais do que um quarto de seculo ...
Quero apenas - encerrando, pois ja tomei tempo demais -, quero apenas dizer que me sinto honrado de, em nome de todos presentes, poder dizer ao Raul que ele e alguem completamente central e imP9rtante neste processo. N6s todos temos com ele uma enorme divida de gratidao. Seus colegas, seus alunos, seuscompanheiros dessa jornada, que tern ainda um horizonte de lutas fantasticas pela frente.
Quero dizer a ele que, aqui no Brasil, n6s 0 consideramos um pouco brasileiro, um nosso colega argentino-brasileiro e, para n6s, e sempre uma satisfa<;ao enorme,. uma grande homa te-lo conosco. a Brasil e um pouco a sua casa e, para n6s, poder conviver com ele, ser testemunhas desta sua tarefa, destas suas realiza<;6es, desta sua grande obra,. e, certamente, uma das paginas, urn dos momentos mais felizes e mais importantes de nossas vidas.
Entao, estou aqui, Raul, para dizer a voce, muchas gracias.
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Abertura Conferencia
"Globalizagao, Sistema Penal e Ameagas ao E stado Democratico de Direito"
Ministro Eugenio Raul Zaffaroni
Senhor presidente da mesa, queridas, queridos colegas, amigas, amigos, quero parabenizar as organizadores pelo tema deste seminano. Quero agradecer muito ao queride amigo Nilo Batista por suas palavras. Quero agradecer as palavras da Maria Lucia, quero agradecer as palavras do senhor presidente da mesa. E, especialmente nos casos do Nilo Batista e da Maria Lucia, vou pedir que os senhores nao acreditem muito ... as vezes, a amizade estraga a trans-par€mcia da verdade ... Agradego, de qualquer jeito, ao que-ride amigo Nilo, por nao ter feito mengao a todos os meus antecedentes penais ...
Na verdade, urn seminano sobre 0 tema da globalizagao, o sistema penal e as ameac;as ao Estado Democratico de Direito, neste momento, na America Latina, e urn seminario que chama atengao, quando sao feitos e organizados inumeros seminanos para discutir se temos de trocar urn C6digo de Processo Penal mais ou menos velho por outro C6digo de Processo Penal mais ou menos novo; se temos de unificar policias, juntar as policias, ter uma policia unica no pais; se temos de introduzir algumas novidades no processo penal, novidades que provemda Idade Media e agora viraran1 p6smodernas: testemunhas secretas, sem rosto, juizes sem rosto, Ministerio PUblico sem rosto. Na verdade, nao sei se todo mundo esta ficando sem rosto ou se esta ficando "cara
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Ministro Eugenio Raul Zaffaroni
de pau" ... E, ainda, se 0 juiz tern de enviar funcionarios do Est'ado a praticar crimes, para descobrir crimes, investigar crimes, pesquisar crimes atraves de praticas de crimes. Todos esses elementos il~C@i,sitortais que estamos introduzindo nas nossas legislac;:oes, ou seja, toda essa'programac;:ao que esta descendo por causa do Partido Republicano dos Estados Unidos,.que esta sendo financiada ao longo do continente, com grande sucesso de tecnocratas que estao participando disso todos os dias, fazendo discursos.
Estamos sofrendo as conseqUi'mcias de uma programac;:ao ins6lita, segundo a qual alguns funcionarios do Partido RepubJicano acham que, unificando policias em nosso continente, VaG ter condic;:oes de formar as cupulas policiais numa academia unica, que seria 0 equivalente ao que foi a Escola das Americas no tempo da seguran<;a nacionai. Tentaram estabelecer a sede desta nova academia na Costa Rica, mas 0 Parlamento daquele pais rejeitou 0 convite. Agora, VaG estabelece-la no Mexico, onde parece que 0
Presidente Fox e muito mais permeavel a essas sugestoes do Partido Republicano. Infelizmente. Isto faz parte do campo da hipocrisia. Unificar policias, quando os Estados Unidos tern 4.000 policias, e dizer: "fac;:am 0 que n6s estamos dizendo, mas nao 0 que n6s estamos fazendo".
Por outro lado, isto e muito serio. Unificar policias e estabelecer uma forc;:a de controle unica no pais ou quase unica; e criar praticamente uma for<;a armada que vai controlar 0 poder politico; e avan<;ar pelo caminho de uma nova tecnica de golpe de Estado, mas, agora, praticado pelas policias e nao pelos exercitos. Esta e uma das amea<;as maiores que temos nesse momento, bern concreta, bern financiada, bern paga.
Estamos descobrindo 0 mesmo programa, desde 0
Mexico ate a Antartida. 0 mesmo, exatamente 0 mesmo. Urn programa que e vendido a politicos que nao tern ideia do que estao fazendo, do que estao falando. Urn programa
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"Globaliza<;iio, Sistema Penal e Ameac;:as ao Estado Democratico de Direito"
que tambem, na sua origem, esta errado. Nem sequer os funcionarios que estao pensando em controlar atraves dessas policias unificadas VaG obter esse resultado. Como sempre, 0 Partido Republicano incorre em erros. No caso do Iraque, e claro: os caiculos nao foram bern feitos; e, tambem nesse caso, 0 caiculo nao e bern feito.
Uma policia unica, uma policia unificada, e uma policia que vira incontrolavei. Mas, nao s6 pelo poder politico dos Estados nacionais; vira incontrolavel tambem pelo poder internacionai. Porque acaba se corrompendo e 0
unico que acaba fazendo e se tornar, nem sequer uma matia, mas uma multipJicidade de grupos mafiosos de criminalidade organizada. Policia sem controle e policia corrupta. E uma policia que no final acaba destruida.
Temos de ter em conta que os paises podem nao ter muitas institui<;oes. Podem nao ter forc;:as armadas: 0
Panama nao tern, a Costa Rica nao tern. Mas, nao existe urn pais sem policia. A policia na civilizac;:ao urbana e necessaria. E nossa grande divida - acho que em praticamente toda a America Latina -, depois do esgotamento do sistema dos regimes militares, e que nao temos uma definic;:ao do modele policiai. N ao definimos 0 modele poJiciai.
Nossos politicos continuaram dividindo com a policia os resultados, os beneficios, de uma arrecada<;ao ilicita, mas arrecadac;:ao. Cobram de urn certo imposto, de certas verbas; ha uma serie de atividades organizadas e tudo e repartido nas instituic;:oes para as cupulas. Nao e justamente repartido no interior das instituic;:oes. Os policiais que expoem 0 corpo aos riscos nao recebem beneficios; isso vai dar nas cupulas. As cupulas ficam enriquecidas. Mostram, as vezes irnpudicamente, casas, carras, coisas que e inimaginavel que alguem possa ter com 0 salario policiai. E a base da policia fica pobre, com os salarios de fome, como sempre. E nao tern condi<;oes de reciamar nada, porque os nossos policiais nao tern garantidos as direitos que tern
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garantidos todos OS trabalhadores. Nao tem condic;oes de se sindicalizar, nao tem condic;oes de se organizar, nao tem condic;oes de fazer petic;6es coletivas, nab tem condic;oes de discutir horizontalmente as condic;6es de trabalho.
Como nao tem condic;oes de discutir horizontalmente as condic;6es de trabalho, nao tem condic;oes de formar uma consciencia profissiona!. Por sinal, as cupulas nao tem interesse na formaC;ao dessa consciencia. De outro jeito, perderiam os priviIegios que provem do reparto injusto das verb as recolhidas ilicitamente, mas com 0 conhecimento e com 0 consentimento dos ·nossos politicos, nos diferentes momentos politicos. Maiores ou menores consentimentos, maiores ou menores ambitos de arrecadaC;ao, mas sempre negociaram politicos e pOliciais.
Agora, a globalizaC;ao esta criando uma situaC;ao particularmente difici!. 0 que e globalizaC;ao? Nao estou falando na globalizagao como uma ideologia, estou falando de globalizaC;ao como fato. IA globalizagao e um momenta do poder mundial, como 0 foram 0 colonialismo, que foi produto da revolugao mercantil, ou 0 neo-colonialismo, que foi produto da revoluC;ao industrial. A globalizaC;ao e tambem um momenta do poder planetario e e produto da revoluC;ao tecnol6gica que estamos vivend~ Revolugao tecnol6gica que estoura com maior forga na tecnologia da comunicagao.
o efeito da globalizagao e 0 enfraquecimento do poder dos Estados nacionais. Os Estados nacionais perderam aquele poder de mediagao entre capital e trabalho, entre as forc;as produtivas. Nao existe mais um representante do capital; as grandes corporagoes sao internacionais. E temos uma acumulagao de imensas quantidades de dinbeiro, numa coisa nao muito clara que se chama conglomerados.
Os conglomerados sao conjuntos de capitais, compras e vendas de empreendimentos. Compram-se e vendem-se sociedades como se fossem chocolates. 0 conglomerado e administrado por um sujeito que, no final, e um emprega-
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do. Ele tem dinheiro, mas nao e 0 dono do dinheiro. S6 administra, na condiC;ao de obter 0 maior beneficio no menor tempo possive!. Se nao obtem esse beneficio no menor tempo possivel e outro oferece essa possibilidade, 0
dinbeiro vai para 0 outro. Desse modo, 0 administrador do conglomerado nao tem poder de decisao. S6 faz 0 que faz, porque, de outro jeito, perde 0 capital, deixa de administrar o conglomerado.
E praticamente um destin~. E um aparelho infernal que esta funcionando. E um aparelho que ninguem parece' ter poder para deter. Praticamente, isso representa 0 sumiC;O do capitalista, do capitallsta entendido como velho capitalista, como 0 dono da industria, como 0 barao dq dinheiroo Isso nao existe mais.
Ao mesmo tempo, a economia fica cada vez mais mafiosa. Cada vez mais, surgem maiores obstacplos para se obter os maiores beneficios em menor tempo. E is so e 0
sucesso daquele que tem menores limites eticos .. ·", legais. Aquele que esta mais perto de virar um criminoso <pcon6mico, um organizador do crime organizado, e quem mais podera obter maiores beneficios no menor tempo possive!. Entao, os metodos da economia legal e os metodos da economia ilegal. vao se assemelhando mais e mais. Ou seja, cada vez nos sabemos menos de que lade esta a mafia:' este e 0 grande problema.
E isto e muito pior numa economia que nao tem bens. Sim, produz, e verdade; t",m produC;ao, e verdade. Mas, as transac;6es econ6micas nao sao na base de produtos, sao transac;oes a termo, para 0 futuro, no tempo, transac;oes feitas sobre a base de um dinheiro que ainda nao existe, transac;6es feitas de um dinheiro nao existente, nao presente, operac;6",s futuras. E impossiv",l acmditar qu", uma "'conomia de produgao possa s'" d",s",nvolver com uma vertiginosidad", g",ometrica, como VaG subindo, ou foram subindo nos ultimos cinqU",nta anos, os volum",s das transag6",s
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financeiras. E impossive!. Isso a uma especulac;:ao sobre dinheiro futuro.
Isso vai produzindo uma programac;:ao mundial, que, em urn certo sentido, tern uma forma de funil. Para sobreviver, a produgao, a industria, tern de vender. Mas, se cada vez vai produzindo e empregando menos pessoal, entao tern de inventar servic;:o, porque de outro jeito nao vai ter demanda, vai cair a demanda. Mas, isso tern pouca importancia para a economia de especulac;:ao, economia das negociac;:6es de urn dinheiro futuro.
E a expulsao paulatina de pessoal do sistema produtivo, a insuficiente invenc;:ao de servic;:os, isso vai criando uma massa de excluidos. Nos nossos paises perifaricos isso a muito mais claro, mas nos paises centrais tambam esta se anunciando.
Os "te6ricos" - te6ricos par assim falar, pois acho que nem sequer e teoria; a praticamente urn jornalismo sem muita informac;:ao - os "te6ricos" deste mundo da globalizac;:ao acham que a globalizac;:ao vai dar certo, que esses excluidos vao ter de ser submetidos a uma programac;:ao do tempo livre. Vai ser a felicidade, programar o tempo livre deles ... Vamos ter uns 30% de incluidos e uns 70% de excluidos e vamos, entao, ter a programac;:ao do tempo livre ... 0 grande problema - escrevem alguns "te6ricos" - vai ser 0
tempo livre do ser humano. Como se os 70% fossem ficar comendo hamburguesas, fossem ficar obesos, na frente da televisao todo 0 dia. Essa e a programac;:ao do tempo livre. Os 30% vao estar incluidos; os 70% vao·ficar engordando na frente da televisao.
Mas, isto nao e assim. E especialmente nao e assim nos nossos paises, onde 0 excluido esta excluido. Esta e=luido e estar excluido nao a 0 mesmo que ser explorado. Ser explorado e uma dialetica; sem explorado, nao existe 0
explorador, sem duvida. Mas, 0 excluido nao e necessario para 0 incluido. 0 incluido nao necessita do excluido. 0
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excluido perturba; e alguem que esta demais, alguem que nasceu errado, que e descartavel.
Isso vai repercutindo em uma programac;:ao urbana: cidades, centros, viadutos, parques residenciais, viadutos sem esquinas, para nao deter 0 carro e ser roubado, para passar rapido. Embaixo do viaduto, os excluidos, mutantes. Esta programac;:ao urbana nao e uma imaginac;:ao. Temos muitas .cidades que vao construindo essa configurac;:ao.
Nao temos dialatica entre excluido e incluido. Nao. Acabou a dialetica.!2S.gora, nao temos mais explorado. 0 explorado foi virando excluidoJEntram em crise nossas classes madias, vao caindo, aumentam os nossos niveis de pobreza. Nos ultimos anos, a regressao na nossa regiao e notavel.
E os politicos? Os politicos ficam desnarteados, nao sabem muito bern 0 que fazer."E 0 Estado, este Estado fraco, este Estado enfraquecido; este Estado tisico, este Estado totalmente magro, vira mais urn espetaculo do que uma fonte de decis6es. A politica toda vai virando urn espetaculo.
Volto a lembrar que nossa revoluc;:ao tecnol6gica e uma revoluc;:ao no ambito da comunicagao. 0 mais imp ortante sao as mensagens. Naotem muita importancia 0 que se faz; tern maior importancia como a recebido, como a transmitido, como a mensagem a enviada.
Isto e percebido claramente pelos politicos. Por sinal, eles teriam a opc;:ao de mudar a linguagem, de falar numa linguagem mais direta. Nao fazemisso. Continuam falando como se nada .tivesse acontecido, continuam falando como se tivessem poder de decisao. Continuam falando como se pudessem mudar essa realidade, t;vessem 0 poder para mudar essa realidade. E sabem que nao tern. Entao, fazem parte do espetaclllo.
A politica vai perdendo aquela sua caracteristica pedag6gica, sua dimensao pedag6gica. as politicos VaG
virando atores e atrizes, as vezes bastante ruins, mas nem
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sequer Sir Lawrence Olivier teria condig6es de assumir 0
dia inteiro urn personagem. Entao, a politica fica artificial. E nota-se. 0 povo percebe que alguma coisa esta aconte" cendo, que isso e representagao, que isso tern alguma coisa de teatral, que isso nao e natural, que na comunicagao alguma coisa est a errada. Entao, vai se afastando, com grande perigo para a democracia.
A critic a geral a politica e urn dos maiores perigos para a democracia. 0 desprezo em relagao a atividade politica e urn serio perigo. Uma coisa r§ fazer a critica das atitudes dos politicos, outra coisa diferente e desprezar diretamente a atividade politica. Ou acreditar que esta artificiosidade atual da atividade politica e uma caracteristica de sua natureza.
Nao e uma caracteristica de sua natureza. E urn erro dos protagonistas da politica, que acham que estao num palco, quando na realidade estao no mundo.
Mas, 0 que esta acontecendo no nosso ambito ou nas nossas legislag6es penais? Esses politicos desnorteados, preocupados fundamentalmente com a imagem, esses politicos tern de simular que estao providenciando solug6es para os grandes problemas sociais. Tern de projetar essa imagem. E uma necessidade para eles. E uma necessidade da logica teatral enviar essa mensagem.
E acharamque a manejJ..?- !.Jlais§im..Il.!es de enviar essa mensagem ea lei penaI.Uodo problema social vira'problerna penal: a droga, a violencia, a psiquiatrii) tudo vira penal, tudo. Nada acontece sem que algum legislador, algum deputado, algum senador na~ faga urn projeto de lei penal. Nao vao fazer projetos de leis administrativas. E mais complicado. Mas, lei penal qualquer idiota faz urn projeto e uma mensagem ainda mais idiota que 0 projeto. Isso e muito barato. A lei penal nao custa. E 0 sujeito tern cinco minutos na televisao. Para a vida e para a presenga de urn politico isso e imprescindivel.
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Estou falando assim em termos de grande politica. Mas, em outros termos, 0 que esta acontecendo com a globalizagao, diante da democracia ... Essa e a ameaga da deformagao da politica, de se perder, na politica democratica, sua dimensao pedagogica. Mas ha uma outra ameaga, que na~ e menor: a de apodrecer os partidos Politicos pela ba$e.
Os politicos viram suicidas. E, diante das reclamag6es da midia e da policia corrupta, que quer obter maiores espagos de arbitrariedade, para obter maiores espagos de arrecadagao, eles van cedendo, VaG aceitando maiores espagos de arbitrariedade. E urn fenomeno que se chama autonomizagao das policias, das corporag6es ·policiais. Nessa autonomizagao das corporag6es policiais, a arrecadagao ja nao e a velha, antiga, tradicional arrecadagao da prostituigao, dos jogos. Nao. Agora, com a globalizagao, entram muitos mais neg6cios ilicitos, muitas mais -atividades ilicitas, muitos mais servigos ilicitos. Nao so a droga, 0
trMico de pessoas, 0 trMico de armas, 0 trMico de carros roubados; e tudo isso e muito mais. E as somas arrecadadas, 0 dinheiro, sao enormes. As corporag6es policiais nao tern urn comando unificado, vao se dividindo, vao se separando, vao criando pequenas mMias, va~ se descontrolando. Mandam os medios au ainda inferiores.
Entao, num certo momento, essa arrecadagao tambem chama a atengao dos politicos da base dos partidos e com ega urn negocio diferente que e 0 apoio politico para a ascensao e a promogao na corporagao desse ou daquele policial. E esse ou aquele policial vai pagar depois 0 apoio na promogao, repartindo a arrecadagao ilicita. Sao os pequenos caciques politicos que necessitam da arrecadagao ilicita para financiar e ganhar as eleig6es internas dos partidos e impor os seus candidatos. Essa e a base. Sao os prefeitos de pequenos povoados, de pequenas cidades, e a
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base mesma dos partidos que vai se apodrecendo dessa maneira.
Aquele que tem menos principios eticos e aquele que pode aceitar e promover esse negocio. No final, cada um desses caciques tem 0 seu proprio chefe policial, tem 0 seu proprio delegado de policia. E mudam-se os delegados de policia com os ladri5es, porque 6 delegado de policia tambem tem seus proprios ladri5es. Vao se apodrecendo pela base a instituigao policial e os partidos politicos.
A novissima legislagao penal que vai surgindo, por forga da televisao, das midias, dos jornais, daqueles que estao reclamando maiores penas, e uma legislagao cada vez mais absurda, que vai criando urn novo autoritarismo, que nao e 0 velho autoritarismo de entre guerras. Nao. Nao eo fascismo, nao e 0 nazismo, naD e 0 stalinislTIo. Nao. Nem sequer e isso. Aqueles autoritarismos pelo menos eram coloridos, pelo menos tinham formagi5es, divisas. Nao e esse nao. Pelo menos aqueles faziam uma arquitetura neoclassica. Nao e esse. Nao. If: um autoritarismo bobo, e um autoritarismo descolorido, e urn autoritarisrno que esta se produzindo quase por inercia. If: a el'Pressao mais clara da pulsao de morte, se falarmos em termos freudianos. If: muito mais clara do que as dos velhos autoritarismos.
Este e um quadro. Mas, este e um quadro que, se eu interrompesse aqui a exposigao, nos levaria a ir para a rua e ficar chorando sentados na vereda. If: um quadro que tem como efeito a sugestao de que na~ existe saida. A comunicagao, ao tempo em que esta impondo isso, esta nos enviando a mensagem "nao pensem na saida, porque is so nao tern saida; e inevitavel, e assim e vai continuar assim".
Contudo, existe uma saida. Assim como 0 colonialismo teve saida, 0 neo-colonialismo teve saida, a globalizagao vai ter saida. Segura. Na historia, a humanidade e dinamica; nada fica para sempre. As vezes felizmente, as vezes infelizmente. Mas, a dinamica da historia vai continuar; a
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historia nao chegou ao seu fim,como pretendeu alguem, algum dos"teoricos" desta globalizagao.
Qual vai ser 0 destino, a saida? Em termos gerais, acho que os 70% da populil.gao nao va~ ficar fumando maconha na porta das favelas. Acho que tarnbem nao van ficar comendo harnburguesas, nao vao ter dinheiro para comer harnburguesas na frente da televisao ... A saida, nesses casos, nao e necessariamente linear. Infelizmente, nao e. Outros momentos do poder mundial produziram milh6es de mortos. Entao, nao vou ser urn otimista absurdo, ridiculo, ingenuo, dizendo que "a saida, nesse momenta da glob alizagao, vai ser linear; vamos 'ser todos felizes; nao vai acontecer nada". Existem muitas ameagas. Mas ha saida; no final ha uma saida.
Todos os momentos do poder mundial tiveram suas contradigi5es. Essas contradig6es possibilitaram a mudanga. Sem contradigi5es nao ha mUdanga. E essas contradigi5es tarnbem existem na globalizagao.
A globalizagao leva a exclusao, mas, ao mesmo tempo, produz um efeito, dado pela revolugao tecnol6gica, principalmente pela revolugao das comunicagi5es: 0 efeito de facilitar enormemente as comunicagi5es e fazer com que sejam muito mais baratas. Pensem no que voces precis avam fazer ha trinta anos para escrever uma boa tese. Tinham de ir para os Estados Unidos, para a Alemanha, que centralizavam 0 saber. Agora, comegamos a ter a possibilidade de receber a mesma informagao em casa. Eu diria que, tecnologicamente, tecnicamente, hoje seria possivel escrever uma boa tese sobre filosofia pre-socratica, com os mesmos elementos que em Harvard, estando na favela. Tecnicamente seria possive!.
E agora, para mudar essa situagao de exclusao social, teriamos de fazer uma revolugao? Sim. Mas 0 que seria essa revolugao? Seria tomar 0 Palacio de luverne? Nao. Nao
. por raz6es eticas, nao por razi5es de nao-vioIEmcia. Nao. If:
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porque naO existe rnais Palacio de Inverno, nao tenlOS Palacio de Inverno.
Agora, mais do que antes, e claro que 0 poder esta no saber. 0 poder esta em conhecer 0 know-how. Acho que a logica da globalizac;:ao, em termos gerais, e a seguinte: 0
que e que voces acham de uma favela? 0 que e que a populac;:ao da favela tern demais? Esta sobrando? Esta jogando, esta desperdic;:ando? E 0 tempo. E 0 que e que esta faltando para aquele que esta incluido? E 0 tempo. Se poderia organizar 0 tempo, este tempo que esta sobrando dos excluidos, que esta demais. Esta seria a maior revoluc;:ao possivel.Organizar 0 tempo para se apropriar do knowhow, do saber.
Isso vai acontecer em algum momento. E muito clara a contradic;:ao para que isso nao acontec;:a. Isso vai acontecer. Nao e uma invenc;:ao. Em pequena medida, em alguma medida, aconteceu; esta acontecendo.
Nao vou me referir as experiencias da educac;:ao em Cuba, mas antes, muito antes do que eni Cuba; no Mexico, aquele Mexico do general Cardenas, nos anos 30. 0 general Cardenas, presidente do Mexico, uma vez pensou: "eu necessito de engenheiros agricolas". A Universidade, autonoma, nao adrnitiu, exigiu que se passasse nos exames e ele entao fez outra coisa. Fez 0 Instituto Politecnico e 0
Instituto Politecnico fez dos camponeses engenheiros agricolas. Conseguiu.
Na cadeia de Buenos Aires, ha uns quinze anos, criouse urn centro universitario de ensino terciario. E docentes universitarios comec;:aram a ir dar aulas na cadeia. Qual foi o resultado? Os presos obtiveram maiores notas do que os estudantes livres, porque eles tinham mais tempo.
Se vamos mais para tras, 0 que aconteceu na Idade Media? 0 que aconteceu com os conventos? Nao estou propondo criar conventos; pense em alguma coisa mais divertida. Mas, 0 que aconteceu com os conventos? 0 que eram?
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Organizac;:6es fechadas, auto-subsistentes, economic amente auto-subsistentes, no limite do necessario para 'a subsistencia. E fizeram 0 que fizeram: acumular saber. Enquanto as herois, as cavaleiros, iam e faziam as coisas para a guerra. Urn dia, os cavaleiros mataram-se todos e dos monasterios saiu 0 poder. Tomaram 0 poder, acumulando saber. Isto vai acontecer. Nao com monaster·ios. Vai ser mais divertido, mas vai voltar a acontecer.
E a logica, mas nao uma logica linear. Eu sei que esses caminhos tern muitos erros, as pessoa.s se perdem nas curvas dos caminhos e, nas curvas, VaG ficando cadaveres. Mas, no final, esta e a logica da saida da globalizac;:ao. E uma logica que leva ao seguinte: quando aqueles'que tern mais tempo aproveitarem esse tempo para pegato'o know, how, vai se reiniciar a dialetica.
"Mas 0 sistema nao tern condic;:6es de incorpoiar todos os excluidos". E verdade, nao tern. Vamos ver cO,mo pensam. E outra coisa, outra dinamica, e vai sair Ul~ pensamento de excluido. Como vai ser? Nao sei. Naoposso dizer. Estou falando da minha visao. Falar de uma visao, em urn momento historico diferente, nao e possivel agora; minha perspectiva e limitada pela minha circunstancia historica. Acredito que isso tern que ser feito pelos excluidos; nao por nos. Eu so observo uma dinamica. E acho que esta e a dinamica de voltar a criar uma dialetica de incluido e excluido.
E enquanto isso nao acontece, 0 que acontece conosco, modestos penalistas? Acho que esta saida tern de ser facilitada e para facilitar a saida temos de conter, ate onde seja possivel, 0 poder punitivo do Estado. Neste momento, e muito importante - importantissimo, basico - compreender a natureza da nossa func;:ao. Especialmente nos nossos paises. Se pudermos conter esse poder punitivo que esta avanc;:ando, vamos garantir urn maior espac;:o para a dinamica que levara ao restabelecimento da dialetica na sociedade.
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Mas, para isso, temos de pensar em urn direito penal diferente. Sem duvida. E aqui vern uma pergunta que talvez muitos de voces, que estao estudando direito penal, . vao se formular. "0 que 8 isso de urn direito penal diferente, se nos estamos estudando a teoria dos alemaes? 0 que 8 isso de tentar fazer urn direito penal diferente com teorias que provem de um pais com condigoes socio-economicas totalmente diferentes, onde ainda 8 possivel planejar as ferias para 0 ana 2007 e ter uma caderneta de poupanga para preparar as f8rias do ano 2007? Onde ainda e possivel trocar 0 volkswagen todos os anos. 0 que tem is so aver conosco, com a n08sa realidade?"
Num certo sentido, isto 8 verdade. Mas so 8 verdade, se nos perdermos a visao da nossa fungao. Nos penalistas nao exercemos 0 poder punitivo. 0 poder punitivo 8 exercido pelas policias; nao por nos. Nos so temos poder para conter 0 poder punitivo, quando os fregueses chegarem no carro oficial. Nos nao saimos a rua selecionando os fregueses do sistema penal. N ao. Sao as corporagoes executivas que fazem isso. Nos nao exercemos 0 verdadeiro poder punitivo, que nao 8 esse de trazer os fregueses, mas 8 0 de controlar aos que estamos Iivres. 0 poder punitivQ nao e um poder exercido sobre os presos. 0 poder punitivo e um poder exercido sobre nos. E 0 poder de vigilancia. Essa foi a grande contribuigao de Foucault.
Quando a gente se pergunta por que toda essa coisa, todaessa imensa inversao em policia, tribunais, tudo iSSO,\ para conter uns poucos milliares resos, que sao os criminosos mais bobos que cada urn dos nossos paises tem: criminosos primitiv~s, aqueles que nem sequer sabem \ assaltar bern um banco, que nao tem id8ia de como fundar urn banco, aqueles que so podem assalta-Io e nem sequer o fazem muito bern, aqueles que jogam 0 tijolo no carro para tirar 0 toca-fitas ... Primitiv~. Esse e 0 fregues. Esse e 1 o fregues do sistema. Thdo isso para ter uns cinqiienta, /
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cem mil, cento e cinqiienta mil desses na cadeii!Z. Nao. Thdo isso <t para controlar a ~, que estamos~. E para vender, para nos, a i1usao ete "!eguran,,a. Quanto mais controlados somos, mais seguros; achamos que temos maior seguranga ... Sim, vamos ser seqiiestrados mais rapido ...
Quando estou falando em conter 0 poder punitivo, nao temos de acreditar tampouco que os excluidos vao ser controlados com as t8cnicas do s8culo XIX. Nao. Nao vao vir os cossacos do czar em redor da favela. Por que? Porque nao existe mais 0 czar, nem existem mais os cossacos. Nao. 0 controle dos excluidos na globalizagat'> 8 muito mais perverso, muito pior, muito mais imoral.
Olhem para 0 sistema penal e para os efeitos do sistema penal: os criminosos que estao na cadeia sao os bobos de que falei agora. Sim, mas no 01l£9 ~mo, ha a vit.iJ:l;la. A vitima, de quem todo mundo fala; todos fazem mengao a vitima, tudo ... Na televisao, sempre esta a vitima ... Como sofre a vitima! Essa vitima que sofre e pela qual 0 sistema penal nao faz absolutamente nada. A vitima e normalmente definida como primeiro suspeito. Voce vai para a delegacia denunciar um crime e imediatamente perguntam para voce: "0 senhor tem seguro?" "Tenho". ''Ah ... entao esta certo 0 senhor de que roubaram 0 carro? Nao tera perdido?" "Nao; roubaram", Assim comega a coisa. Aquela vitima, que 8 0 primeiro suspeito, quem 8? Como e 0 reparto da vitimizagao? E tao 2£bre ~o aqu!'.le ~riminoso. o que e natural. Se estou vivendo em um country com seguranga privada, vou ter menor risco de vitimizagao do que se estou morando na favela; vou ter menos risco de vitimizagao do que se estou andando pelas ruas da periferia. f!:. vitimizagao 8 tao seletiva quanto a criminalizaga~
Mas nao acaba ali a coisa. Os policiais, especialmente ---a faixa daqueles que poem 0 corpo em contato com a vio-le>l1cia, daqueles que sao mortos - 0 que 8 considerado um
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simples acidente de trabalho -, aquela faixa, de onde e selecionada? Da m~ma faixa social.
Qual sera a tecnica de controle dos exclui s, entao? E bastante claro. riminalizados, vitimizados, policizados, todos selecionados na mesma faixa soci.D:\ A tecnica e ~ll:troduzir contr'adig6es na fai><:~ dos el<cluicr§.c As ~res contradig6es e a maior violencia no interior da mesma faixa{ social: menores possibilidades de dialogar; menores possibilidades de esclarecer e de conscientizar; mEmores possibilidades de se organizar; e, portanto, menores possibilidades de ter um protagonismo politico. Fiquem matando-~ entre eles e entao nao perturbem a nos, que somos os 30%, os 25% de incluidos ... Enquanto se m"8:tam, tudo bem. Alias, vao fi9JW.do menos, 0 que tambem e bom, embora tenharn - ----- .... --- .,~.--
uma grande capacidade de ~e2!:.<?_,!ugao ... Quando estou falando em conter 0 poder punitivo,
estou falando em conter essa violencia do sistema, em reduzir essa viol€mcia do sistema{!ensar um direito penal de contengao do poder punitivo e programar uma jurisprudencia, um conjunto de decis6es, porque, no fundo, 0 que nos fazemos e uma teorizagao, que oferece aos juizes um sistema de decis6es coerentes, nao contraditorias]
Nosso poder e 0 poder do discurso. Nao temos mais, ~
Mas, 0 discurso e importante. Sem discurso nao ha poder. Par que vamos, nos, prDvidenci~;~~ discuIso para aqueles que estao exercendo 0 poder? Para legitimar um poder que nao e exercido por nos? Nao. Temos de legitimar so 0 nosso poder. E 0 nosso poder e legitimo na medida em que seja poder c!.~onte~ao, poder de lirnitagao, poder de @,9w;:.ag do impulso autoritario que estamos vivendo nesse momento.
E, para isso, temos de usar as coisas que vem da Alemanha? Bem, vamos esclarecer algumas coisas. 0 que vem da Alemanha nao e uma tecnica pura. Nao chegam, as teorias penais, atraves do correio, de navio, como chegam os carros importados. Nao e assim. Nao e uma pura tecno-
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I ! j I I
"Globaliza98.0, Sistema Penal e Ameagas ao Estado Democratico de Direito"
logia. As teorias penais na Alemanha tiveram e tem um sentido politico, claro, Jeito cc;>m uma tecnica sim, mas COIn
sentido politico. 0 tempo nao permite explicar isso aqui, com maiores detalhes. Mas, quando falamos em Binding, Karl Binding, teoria das normas, estamos falando em Bismarck; quando falamos em Von Liszt e na contradigao da politica criminal com 0 direito penal, no direito penal que era a carta magna do delinqiiente, no direito penal como limite da politic a pena!, estamos falando da segunda parte do imperio do Kaiser Guilherme; quando falamos em Mezger e no neo_kantismo,especialmente 0 neo-kantismo que chegou ate nos, estamos falando de direi~o penal nazista; quando falamos em Welzel e no finalismo, estamos falando na Alemanha Federal de Konrad Adenauer;. quando falamos em Roxin e no funcionalismo limitado, estamos falando na RepUblica Federal Alema do tempo .de Willy Brandt, da social-democracia; e, quando falamos de Jakobs, do funcionalismo de Jakobs, estamos falando da
Alemanha de Helmut Kohl. Podemos estabelecer este paralelo politico com total
clareza. Nao ha tempo para explicar agora. Mas,[,Cada uma das teorias penais que trouxemos da Alemanha, vinha de um quadro politico) foi resultado de ;>m certo momento, bom ou ruim - isso e uma avaliagao politIca -, mas fO! resul~ de um 'll§ill'o pOlitico[2'Ja hora de importar, esquecemos disso e temos trazido essas teonas como puras tecnologiai!qua!!do, na Alemanha, nao foram puras tec,nOIOgia~; eram discuss6es politicas, tinham um marco POl1tlCoLNOS aliena~~ teori~-pena~ aD traduzir isso con10 uma pura
tecnologia. Eu acho que, se vamos ter de continuar fazendo um
direito penal redutor, temos de faze-Io com boa tecnologia. Se essa boa tecnologia provem da Alema,nha, peguemos a tecnologia, mas nao peguemos um programa politico que nao e nos so. Devemos pegar a tecnica para instrumentar 0
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Ministro Eugenio Raul Zaffaroni
nosso programa politico. 0 programa politico, os objetivos politicos sao nossos. Nao temos de cair no eno de rejeitar a teorizagao dos alemaes. Nao. So!}emos de imitar os alemaes, mas nao copia-los)Isso e outra coisa. Temos dE(!azer os nossos proprios programa.§\ penais em um marco politico, com a tecnologia deles, mas os nossos programas. Nao copiar os programas deles. Os programas deles nao tem nada aver conosco. A tecnica deles e uti! para nos. Temos que§prender a tecnica,~mas nao copiar os programa~Esse foi 0 grande eno.
Nao vamos reduzir 0 poder punitivo fazendo uma jurispruden cia irracional. Se 0 poder punitivo e irracional, somar uma inacionalidade a outra nao faz mais do que criar duas irracionalidades. Potencializa-se a irracionalidade. @a. ~uzir 0 poder pun..i!ivo, necessitamos[providen_ ciar ao Judieiario uma teoria eoerente, uma teoria com urn nivel tecnico respeitaveWuma teoria de alto nivel tecl;ico, mas uma teoria EWe faga uma redugao racional de um poder que basicamente e irracion':!J Por sinal, nao vamos criar essa teoria aceitando programas alheios. Por sinal, acho que um dos maiores perigos teoricos nesse momento e racionalizar isto que nos estamos vivenciando. 1sto das mensagens. 1sto esta sendo racionalizado na teorizagao dos alemaes. Um setor da doutrina -.1!lema esta, nesse momento, sustentando a colocagao de que\@ unica fungao do poder pu~ e fortalecer a·confian<;:a no Estado e no sistem~ Ou seja, enviar mensagens. J l\\{')'1r
Uma lei penal nao e uma mensagem. Se alguem quer enviar uma mensagem, que use a internet ou que va para 0
correio, nao sei ... mas, nao venha fazer uma lei penal. Uma lei penal e muito mais. Uma lei penal serve para punir, para reduzir direitos, para produzir dor e tambem para matar pessoas. Uma mensagem com alguns cadaveres e uma mensagem muito cara. E, basicamente, e uma mensagem carente de etica.
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"Globalizac;:ao, Sistema Penal e Amear;as ao Estado Democr<:ltico de Direito"
1nfelizmente, existe essa racionaliza<;:ao. Por outro lado, existe uma realidade que, cada dia, vir a maisdramatica: esse poder punitivo, que, nos paises centrais, nao atinge limites tao mortiferos como entre nos, mas' que, entre nos, esta come<;:ando a produzir golpes de Estado serios. E aff§cnica nova do golpe de Estado e jogar cadaveres no campo inimigojUm joga um cadaver no campo inimigo do outro. Com isso, produz alarme social; com isso, cia base para que os jornais e a televisao comecem a falar. 0 escandalo comega .. 0 outro, para compensar, joga um cadaver no campo inimigo daquele que enviou 0 primeiro cadaver. Quando estou falando em jogar cadaveres, estou falando em matar pessoas; estou falando em seqiiestrar e.matar pessoas; estou falando em assassinar. E, desse jeito,@riase 0 sentimento de inseguran<;:a atraves das midia>D
Essa e a realidade, por um lado. Por outro lado, temos alguns dos nossos colegas pensando na funcionalidade da mensagem. Diante dis so, botamos uma lei aumentando a pena daqueles que jogam cadaveres. E, com isso, fica tranqiiila a popula<;:ao. Nao. Por sinal, esse nao e 0 caminho de saida. 0 caminho de saiM e[azer realmente um projeto de jurisprud€mcia redutora, fazer frente a isso-;\ nao racionali-zar, nao abrir as possibilidades. -J
Mas, isto e apenas a contribui<;:ao que poderiamos fazer - nos, os penalistas. 1sto nao vai ser a saida para a problematic a da globaliza<;:ao. Nao, onipotencia, nao. Estamosvelhos demais para virarmos onipotentes agora. 1sto e 0 que temos de fazer ~ra garantir um espa<;:o social respeitavel para a dinamica que produzira a mudan<;:a da sociedadoilEssa sera a nossa contribui<;:ao.
N~o acr~cliteIl}os que nos vamos ~ar a s~ @orque entao estariamos caindo na me sma ilusao do penalismo oficial, no sentido inversg. 0 penalisIJJ.o ofigj3.1 que diz querer salvar a Amazonia, resolver 0 problema do terroris-.... --- ._- ------ -.-.-~.---
mO, resolver 0 problema da droga - antes quis resolver 0 -- --- '"--- -- -"~
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~~:i:-~-dii.
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Ministro Eugenio Raul Zaffaroni
problema d0,9iaba, antes quis resalver a problema das brux_~s, das hereqes, da sifilis, da tuberculase, do. alcaalismo ... N~a. ~6s naa vamas resalver a problema da gl;b~li~;9§.a, nas naa vamas resalver a problema da exclusaa sacial. MasG.6s pademas deter a pader punitiva, em uma certa medida, garantinda que as excluidas tenham espac;a sufiClente 'para se dinamizar e valtar a estabelecer a dialatica sacial';')
Acha que ,,,,~3 a a nassa missaa nesse mamenta. Acha que essa a a passivel resposta que n6s temas desde a campo juudico, cama responsaveis pela discurso, perante as ameac;as que provem do novo palco que a a globalizac;ao.
Nao podemos entrar no saculo XXI e continuar no saculo XXI com ideologias do saculo XIX e ainda do saculo XVIII. No final, 0 s~o XXI vai ser 0 ~~culo de grande prova do SIstema penal e da grande crise do poder punitiv5!)0 segundo milenio foi 0 milenio do poder punitivo. No terceiro milenio, nao sei 0 que vai acontecer, mas 0 poder punitivo vai sumir. Sem duvida. ° poder punitivo fez falsas pr,?mes~~s. Tudo is so. que mencionei fe~ emerge~ias. Ernergencias ~das como.Qret~xto para[exercer poder com outros fms tetalmente diferentes, em uma continuidade discursiva, cujas estruturas fcram sempre as mesmas] inquisiterial e critica, as mesmas estruturas. S6 com dife: rentes dados. As estruturas sempre iguais.
Cada uma dessas emergencias fei uma falsa promessa de poder punitivo. PubJ.jgjdaQe enggnesa, cemo fala Maria Lucia Karam no. livro ~ela. Nao_ ;eselveu nada,[prorreram pessoas, alguns ITIllhoefl ITIllhoes mais, milh6es menos, merreram. Mas 0. peder punitive centinueu. "Esqueceu aquela emergencia? Nae, aquela, nao, mas agera 0 sario a issa; nao, aquela nao era seria, agora 0 serio e isso ... Nova emergencia", Continuaram. Ata agera. Agera vern 0. terrerisme. E tambam tern a prevenc;ae geral. A guerra do Iraque a uma guerra de prevenc;ao geral. A "guerra preven-
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f;-'~' . ~ -
"Globalizaqao, Sistema Penal e Ameaqas ao Estado Democnitico de Direito"
tiva", faleu Bush, preventiva. Destruiu 0. pais, mas a preventiva, preventivamente. E uma idaia pega do direite penal, da legitimac;ae de direito penal.
Mas, agora, cern a revoluc;ae tecnel6gica, vern ~a~s reais para a suQsj~t~,l!.cia da vida no. planeta~e n6s nao centivermos a destruic;ae de planeta nesse sacule, varnes sumir cemo espac® Nae vae merrer alguns milh6es, come acontece cern a droga. Nae. Varnes sumir. Entae, 0 problema da destruic;ae de planeta necessita de seluc;6es reais. Nae a criac;ae de urn crime ecel6gice no. C6dige Penal. "Ah! Fiquem tranqiiiles! Ja tern urn crime' ecel6gice no. C6dige Penal; cern isse, 0. Amazenas vai ficar salve, sem problema nenhum". Nae. Cern isse, vai levar para a cadeia alguam que esteja mal da bexiga e tenha ventade de mijar no. rio.. E s6 isso.
Sim, ha teda uma teorizac;ae de que, essa a uma lic;ae cumulativa, 0 bern juridico. E uma coisa muite criativa des alemaes para justificar isso, uma novidade do direito penal. Na verdade, nao a nenhuma novidade: foi empregada por Feuerbach em 1798, tentando justificar a sedomia como contravenc;ae penal; racienalizava que se todos praticassemes a sedemia acabariames cern a espacie humana. E urn argumente usade tambam para a punic;ae da pesse de enterpecentes para pr6prie censume. ° argumente a ridicUle:(nae' existe nenhuma cenduta, per atica eu saudavel
I que tn, que, universalizada, nao cause urn caes: beber agua, praticar ginastica, danc;ar, etc. Cern racienalizac;6es desta natureza nae varnes reselver 0. problema da depredac;ae de planeta. E varnes ficar sem exigenij] Ternes de reselver 0. problema da peluic;ae das aguas; de eutre jeite varnes ficar sem agua petavel, de eutro jeite varnes ficar sem p6les, cem es mares cinco. metros mais altes. Ternes que reselver isse no. curse de sacule. E is so. nae pede ser reselvide por ilus6es, atravas de leis penais. Requer seluc;6es eficazes;nae a ilusae penal.
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Ministro Eugenio RaUl Zaffaroni
Acho, acredito realmente, que 0 ser humano nao e uma mente desequilibrada. Acho que nao e racional, mas pode chegar a se-Io ... Entao, confio que a humanidade nao vai sumir, atras da ilusao do poder punitivo e do sistema penal. Seria absurdo. Prefiro acreditar que nao vai ser verdade que, depois de alguns milh6es de anos, tomando urn sol urn pouco mais pa!ido, alguma barata antrop610ga inteligente fale que existiu uma raga de gigantes que, urn dia, suicidou-se, atras de uma falsa idolatria do poder punitivo.
Acredito que isso nao va acontecer. Entao, acredito que 0 poder punitivo' vai sumir no curso d'esse seculo. Vou fazer 0 maior esforgo possivel para chegar ao final do secu-10 vivo e poder verificar essa realidade.
Muito obrigado.
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Debates
Luis Henrique Campos - Em sua brilhante palestra, foi interessante ver que, dentro do seculo XXI, ainda procuramos resolver os problemas de criminaJidade com as instituig6es do seculo XIX, principalmente a pena privativa de liberdade. Entao, eu queria que 0 senhor falasse um pouco mais sobre como 0 poder punitivo tenta resolver esses problemas ainda com aparatos do seculo XIX.
Ministro Zaffaroni - Os aparatos do seculo XXI nao sao s6 a pena privativa de Jiberdade.0 pena privativa de liberdade muito provavelmente tem pouca vida e nao para 0
bel1iJ Isso e uma questao tecnica que vai ser resolvida em breve. Existe 0 metoda de controle eletronico de conduta. Nao e dificil; e um microchip, ernbaixo da pele, "tamanho milito pequeno. Permite monitorar os movimentos de uma pessoa. Nem vai ser tao dificil. Os microchips estao sendo usados para evitar a perda dos cacharros. Bem, s6 teria que passar da Faculdade de Veterinaria para a Faculdade de Direito. Nao estao muito longe, muitas vezes ...
Os microchips e 0 controle eletronico de conduta vao ter um grande inconveniente. A cadeia tem !imites. Par muito que seja superpovoada, num certo momenta acaba a capacidade. Os microchips nao tem limite. Entao, 0 risco e que podemos estar quase todos controlados com microchips. Sai muito mais barato. Esse e 0 problema serio que surge com 0 sumigo da cadeia. Por isso, falei que a cadeia tem pouco tempo de vida, mas, que nao sei se isso vai ser exatamente para 0 bem. Tenho algumas duvidas.
Elementos do seculo XVIII, elementos do seculo XIX ... estou falando tarnbem de elementos ideol6gicos. Qual e a
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Globalizar;:ao, Sistema Penal e Amear;:as aD Estado Democratico de Direito
logic a que esta transmitindo a midia a respeito da pena? ... -- --' Esta transmitindo uma logic a que e arn".s.m~ l6gica go cCl'pitali~~ p_rimitivo.. A gente sempre vai comprar onde e mais barato e vai vender onde e mais caro. 0 homo economicus e um(fiomem totalmente racional que sempre avalia os pre<;os antes de fazer uma opera<;ao-J:, essa e a base da confianga no mercado, e, naturalmente, entre aspas, "arrurna tudo". Bern, nao e assim. Se assim fosse, 0 mercado nao conheceria riscos; seria totalmente previsivel. E nao e previsivel. Essa e a clara demonstra<;ao de que 0 mercado tambern tern atitudes e condutas irracionais.
Se trClIlslada~s esta lc'>gica do_rn_ercado, este conceito do homo economicus, para 0 dire ito pen,s,l, 0 que resulta e 0 se\J~inteQ.enho de te~'estabei",cida:s na lei as penas,( que sao 0 custo da infra<;ao. Entao, aquele que vai praticar a infra<;ao vai dar uma olhada antes no cardapio das penas. Vai dizer: "Eu vou matar minha sogra; isso custa vinte anos. Entao, convem que mate a velha maldita ou nao convern que mate a velha maldita?3 A mulher vai dizer: "Eu VOll matar meu marido; vai custar trinta anos. Convem pagar esse pre<;o por esse miseravel ou nao convem?". Acreditar nisso e absurdo. Mas_~e e 0 absurdo que est a na~ do diJ..illJ:o penal;
Esta e uma ideologia do seculo XVIII, a ideologia de ,- .. -~ ---- -'--'- . .. _.
Davi Ricardo, dos teoricos primeiros do capitalismo do seculo XVIII. E urn absurdo. Mas e a ideologia "iDdayi'y'a ng contratualisIYo. Contudo, e uma coloca<;ao relativamente liberal. Mas, nesta coloca<;ao relativamente liberal, a fic<;ao e uma fic<;ao do seculo XVIII. E _nos estamos pensando, estamos fazendo uma critic a do capitalismo sobre arbase ---,-- ----- - \.. da critica de Mar<9 E a critica de Karl Marx era a critic a de urn capitalismo que nao e 0 capitalismo gJObalizado. E outro capitaIismo.-E- urn c;;'pitalismo de produ<;ao, que nao e esse capitalismo. Entao, estamos, de urn lado e do ~Utro, estamos trabalhando com ideologias que tern ate 200 anos.
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Debates
Larissa Machado - Diante das considera<;6es feitas, no atual momento seria melhor adotar 0 abolicionismo penal?
Ministro Zaffaroni - 0 abolicionismo penal e como 0
pacifismo. Bern, e uma ideologia. o abolicionismo penal(J: lima proposta de nova socie
dade. Nao e uma proposta pena] Para abolir 0 poder puni-' tivo, e mister mudar a sociedade. Para reduzir radicalmente 0 poder punitivo, como no miDlrp."U§.IDo, tambem e mister mudar a sociedade. Entao, nao sao propostas penais, de politic a criminal; Q>ao propostas politic as de mudan<;a social]
o abolicionismo tem, no fundo, como pano de fundo, as vezes uma ideologia verde, ecologic a, as vezes urn certo socialismo, as vezes urn certo anarquismo, Sao propostas de sociedade. Eu nao vou discutir propostas de sociedade. Acho que e interessante faze-lo, e importante, tem um sentide holistico, mas a nossa tarefa imediata, de nos penalistas, nao e fazer uma Ilo;a sociedade,-Por sinal, cada urn de nos podefazer politi-;;;-: sa;~p;;;;:-a a rua, fazer a revolu<;ao sociaL Isso e outra coisa. Mas, como penalistas, a nossa t~ imediata e§nter esse pode! genocid~Esta e a tarefa imediata. Pensar numa nova sociedade e valido. Mas
@esde 0 direito penal, nao vamos transformar a sociedade, nao vamos mudar a sociedade.,\ . .-
Pergunta sem identificw;ao do autor - Considerando que 0 capitalismo depende da exist€mcia de uma rela<;ao entre a capacidade produtiva e 0 consumo, 0 aumento dos excluidos poderia redundar em uma crise que de alguma forma contribuiria para a inclusao social?
Ministro Zaffaroni - Bern, essa e uma pergunta sabre algo que nao sabemos se vai acontecer. Eu falo de urn certo
. ponto que conhe<;o. Sobre 0 que nao conhe<;o, tento nao
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Globalizagao, Sistema Penal e Ameagas ao Estado Democnitico de Direito
falar. Mas, sim, a uma logica de funi!. Estar produzindo e estar reduzindo 0 mercado de consumidores a estar procedendo com uma logic a que nao a muito norma!. Mas, isto ja esta reduzindo 0 ambito do consumo nos paises perifaricos; nos paises centrais ainda nao. Entao, para chegar ao resultado do funil ainda falta muito.
Pergunta sem identificagao do autor - Qual seria a real ideologia, ainda nao muito clara, da pena restritiva
, de direitos?
Ministro Zaffaroni - Acho que a ideologia nao a muito clara na pena em gera!. Nao sei qual a a funC;ao da pena.
@os, penalistas, nao sabemos qual a a utilidade do poder punitivo em geraDEntao, falar de 'uma ideologia atras de cada uma das pen as nao faz sentido. (Temos discutido muito tempo, tentando legitimar)Toda ideologia em redor de uma pena pretende legitimar de alguma maneira.
A pena restritiva de direitos a uma pen a que tenta substituir a pena privativa de liberdade. Todos fomos entusiastas de substitutivos da pena privativa de liberdade, ha uns quinze ou vinte anos. Ah! a pena substitutiva, as penas alternativas ... , que sao penas nao privativas de liberdade; nao sao alternativas. No fundo, ll~sto.rj£a!llente falando, a P'?-M privativa de l~rd_ade tambam foi alternativa ou substitutiva da p~a d.e ElQrte ou das penas !i..~i<;as.
Mas, agora, perdemos essa confianc;a. Verificamos que @ pena nao privativa de liberdade nao ocupou 0 espac;o das penas privativas de liberdade. Somou pena~Agora, temos penas privativas de liberdade, em igual ou maior quantidade, mais penas nao privativas de liberdade. Aumentou, acrescentou penas. Nao produz uma reduC;ao da pena privativa de liberdade.
A idaia geral de todas as penas nao privativas de liberdade, a justificaC;ao primeira foi a regra da ultima ratio,
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Debates
foi reduzir 0 ambito da privaC;ao da liberdade, da prisionizagao, mas·, na .realida<;ie, nao deu esse resultado.
Pergunta sem identificagao do autor - Professor, lembrei de uma distinC;ao que 0 Hassemer faz entre politic a criminal, que seria restrita a repressao, e a politic a de seguranc;a publica, que seria mais abrangente.
Eu queria saber 0 que 0 senhor pens a, dentro dessa logic a, sobre a abertura do papel do policial dentro das comunidades. Estou lembrando aqui de situac;6es que existern no Brasil, em que, por exemplo, 0 policial,que policia favelas, muitas vezes faz uma sariede tarefas, alam da tarefa de repressao: acudir uma mulher gravida que esta ganhando nenam, uma pessoa que esta doente, estimular alguns programas dentro da comunidade para que os garotos joguem futebo!. Isso acontece no Brasil, muitas vezes. Eu nao moro no Rio; moro em Belo Horizonte. E sei que, la, a policia faz uma sarie dessas tarefas. Mas, isso nao a reconhecido pela corporaC;ao.
Eu queria saber se 0 senhor acha que isso, de alguma forma, poderia ser uma saida dentro dessa complexidade que 0 senhor expos ou se nao passa tambam de uma retorica, de algo que visa ocultar a verdadeira ideologia.
Ministro Zaffaroni - Bern, nos temos urn modele de policia; nos, em nossos paise's ,---;;;J)iamos a Co;:st;tuiC;ao dos E~t."Ldos.!midos, mas copiamos a polici,a bOUrb6rlici~
Nosso modelo de policia a urn modele de policia militarizada, v:~rti(;alizada, ~~"'!9uiz~a. E urn modele de (policia de ocupaC;a5} J!lrn~s coPjal11()s, nem tentamos criar, 0
modele de policia comunitaria dos Estados Unidos, policia do condado',apoliCia do xe,t:lfe "leito. Iss~, n§.~~piamos.
Temos uma policia verticalizada. No interior dessa policia verticalizada, existirao pessoas inteligentes, existirao pessoas que estarao aspirando Dutra coiS8;, mas 0 pro~
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di-.
Globalizagao, Sistema Penal e Ameagas ao Estado Democratico de Direito
blema esta na estrutura.~ao podemos manter esta estrutura de exercito, esta estrutura vertical. Nao podemos continuar a entender a fungao policial como uma fungao militarizad~ uma fungao de militar. ~ ':'."'~ f~gao ciW Temos de criar uma policia comunitaria. Ha policiais que estao consciente'S disto, certalnente. Mas, isoladamente; nao eOlno instituigao, nao como estrutura.
Pergunta sem identifica<;;ao do autor - Qual a saida possivel para esse modelo neoliberal imposto para a America Latina, que po de ser resumido em urn Estado minima COIn urn direito penal maximo? Ou estamos escravizados a esse modelo?
Ministro Zaffaroni - Born, a saida possivel e aquela que expliquei. Acho que vamos ter'a'~~ida atraves de un1a
[dinamica de nova dialetizagao dos nossos sistemas sociais] Nao estamos eseravizados eIll urn Illodelo. Esse ~q~.-
10 do direito penal maximo vai ser urn modele que vai gaz!"J W--;;'J.? coJjuJ2.c;:!!o-~Tsso vai ser(incontrolavel para os pr6-prios funcionarios do Partido 'Republicano dos Estados ·Unidos. em breveJHoje, voces estao lembrando quarenta' anos do golpe de estado. Era a epoca da seguranga nacional, era a epoca das ditaduras militares, era a epoca em que 0 poder transnacional achava que tinha que nos controlar atraves de forgas armadas submetidas a eles. Ate
Ique, urn dia, saiu urn doido, urn doido com alguma tecnologia nuclear, e, desde 0 suI. falou "eu vou declarar a guerra a NATO". Entao, em seis meses, acabaram as ditaduras militares. Por que? Porque viraram perigosas.
o que(vai acontecer conl esse direito penal lllaxiIno e a mesma cmsa. Vao virar perigosas as policias. Vao se cor-romper. A corrupgao nao vai ter limites. Isso nao yai ser controlado pelos pOliticoiJ.mas tambem nao vai ser controlado pelo senhor Bush. Nao vai controlar ninguem. Entao,
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Debates
vao virar altamente perigosas. Enti,io, urn dia.(como acabaram as ditaduras militares. vai acabar a ditadura policial)
Pergunta sem identificac;;ao do autor - Certos cientistas politicos fazem previsoes de que muitas sociedades de paises na America Latina serao dominadas no futuro por grandes grupos de narcotraficantes, como na Colombia. Como 0 senhor ve estas previsoes relacionadas COIn' a redugao do poder punitivo do Estado?
Ministro Zaffaroni - 0 problema da ColOmbia e urn problema muito especial. 0 modelo ColOmbia nao pode ser - . generalizado para toda a America Latina.
o modele e muito, muito especial. A ColOmbia e urn pais que lEaD teve movimento de .desenvolvinlento industrial no seculo passadQ) Nao teve urn General Cardenas eOlTIa as mexicanos, nao teve 0 varguiSlTIO brasileira, Uill
peronismo argentino. ~ao teve urn lllovimento naeion~ 0 lider do movimento nacional. que estava surgindo, foi assassinado em 1948. Entao, 0 pais ficou numa situagao qu_a.8_e agL<'iria.--·-- . - ---- .
Agora, tern uma nova burgu_<e.sia. Tern a burguesia . --- -~- -.-----~
nacional. A burguesia nacional da Colombia sao os narcos. E [email protected] produto de economia primaria que foi introd;;zido nos mercados centrais depois da segunda guerra mundia'u Entao, e urn pais que funciona ao reves, pais que funciona invertido. Em todo pais, 0 establishment, a classe politica. tern vinculos, tern pontes. E normal. Na ColOmbia. tambem; s6 querO establishment sao os narcoSj Suponham que os industrTais em Sao Paulo fizessem coeaina. Iria funcionar tudo. Bern, e issa que acontece. :It UlTI modelo muito especial, mas e unl modele que nao pode ser levada a autros paises da regiao. E muito diferente. Nem sequer no Mexico.
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Globalizac;8.o, Sistema Penal e Ameac;as ao Estado Democratico de Direito
Pergunta sem identificagao do autar - Qual a Op1l11aO do professor sobre 0 controle externo da atividade policial pelo Ministerio Publico, tema este muito em yoga atualmente no Brasil.
Ministro Zaffaroni - Nao sei. .. Aqui, fala-se em controIe externo do JUdiciario de uma maneira que eu nao entendo muito bern. Mas, acho que e born ter cuidado com isso.
Acho que a fungao do Ministerio Publico e a fungao· de acusador. Isto de controle de legalidade atraves do Ministerio Publico eu nao entendi nunca. Nao consigo entender. 0 Ministerio Publico e acusador. Tern de ver se tern juiz, tribunal. Tern que ter as tres fungoes fieparadas no sistema acusatorio. Se 0 Ministerio Publico quer ser neutro, esta usurpando fungoes do juiz. 0 que tern de ser neutro e 0 tribunal. Ministerio Publico, nao. E parte, parte no contradit6rio.
Tern de controlar. Ben1, vai controlar se 0 juiz e criminoso, sim ... , faz uma denuncia; e outro controle. Misturar as fungoes nao Ii born. Assim como nao temos de misturar a fungao do tribunal com a fungao do acusador, nao temos de misturar 0 acusador com a fungao neutra do tribunal. Esse e urn principia basico do sistema processual acusatorio.
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MESA 1 A funcionalidade do processo de
criminalizagao na gestao das desequilibrios gerados nas
formagoes sociais do capitalismo pos-industrial e globalizada
Vera Malagl,lti B.Q.tl$ta Instituto Carioca de CrimiIlologia -Brasil
GiQ.ncarlo Corsi Universita degli Studl di Reggio Emilia - lti/lia
Presid!'nte da Mesa; Jul.ia.na N~uenl>clJ.WQ.llder MagallJ.aes UIIiversidade Federal do Rio de JaIleiro - Brasil
"
Mesa 1 A funcionalidade do processo de
criminalizagao na gestao dos desequilibrios gerados nas formagoes sociais do
capitalismo p6s-industrial e globalizado
Vera Malaguti Batista
Parabenizo a organizagao deste lindo evento l];a figura dos meninos e meninas do CACao Para nos, e sempTe luna alegria, Nossa ahna rebelde fica sempre em festaao ver 0
velbo GAGO de novo nesse movimento, Estamos sentindo, DaD s6 no Rio de Janeiro, urn 11lovi
menta estudantil na area do Direito. Os meninos e meninas do Direito estao comegando a sentir 0 gosto, a visao critica de quae revolucionaria, como disse 0 Professor ~affaroni ontem aqui, pode ser a militancia nesse momenta sombrio do capital, vivido hoje,
Quero saudar a mesa, Professor Giancarlo, Professora Juliana; quero saudar efusivamente a querida Maria Lucia. Karam, essa eterna rebelde, tambem junto com a gente nesse seminario.
Dei ao meu trabalho 0 titulo de "0 capital desencantado".
Quando resolvi trabalhar as medcs cariocas de ontenl e de hoje, estava escolhendo um afeto, transformado em artefato de controle social. 0 medo corroi a alma .. , Na verdade 0 §edo e uma estrategia de contengao popular) amplamente utilizada pela civilizagao ocidental sadomase: da mentalidade obsidional descrita por Delumeau, para dar conta da cultura crista na Europa de 1300 a 1800,
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Vera Malaguti Batista
ate os medos nossos de cada dia e suas conseqiiencias perversas na periferia desse capitalismo desencantado.
Tzvetan Todorov des creve a conquista da America como urn grande encontro da civilizagao europeia com 0
"outro" exterior que se da no momento em que a Espanha repudia seu "Dutro" interior, na vitoria sobre os mouros e na expulsao dos judeus. 0 genocidio da popula<;:ao americana e a libera<;:ao total da crueldade obedecem a um duplo movimento de desqualifica<;:ao do "outro". Na civiliza<;:ao sado-mas6, 0 fetiche do outro subordina todos os outros afetos. Com a descoberta da America, a Europa expulsa a heterogeneidade e a introduz irremediavelmente. 0 Marques de Saqe foi 0 melhor cronista da orgia da desigualdade. A servidao e 0 efeito da pulsao do dominio, do sentimento de superioridade e das cerim6nias e alegorias do liberalismo. Movimentos sincr6nicos e complementares da economia, da politic a e da religiao atuaranl na conquista da America, com suas logic as explicit as e implicit as, "suas evidencias mudas, sua organizagao inconsciente".
(?s conquistadores se valiam do terror e do medo para afir-nlar 0 sentido do processo civilizatoricil A popula<;:ao indigena do Mexico, que era de 25,2 milh6es na descoberta, ja estava reduzida a 2,6 milh6es em 1568.
o grande pensador e nosso querido ministro Raul' Zaffaroni, trabalhando as ideias de Darcy Ribeiro sobre a incorporagao periferica ao processo civilizatorio, descreve 0
sistema de controle social da America Latina como produto da transcultura<;:ao protagonizada pel as revolu<;:oes mercantil, industrial e a atual tecno-cientifica. ':A proje<;:ao genocida de urn tecno-colonialismo correspondente a ultima revolu<;:ao (tecno-cientifica) faz empalidecer a cruel historia dos colonialismos anteriores" @s corpos empilhados
/
em Urso Branco, Carandiru, Benfica e nas valas da periferia sao a sintoma da constituigao da regiao latino-americana
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- j--;
A funcionalidade do processo de criminaliza~ao na gestao dos desequilibrios gerados nas forma~6es sociais do capitalismo
p6s-industrial e globalizado
em gigantesca instituic;ao de sequestro, na genial apropriEll gao do conceito foucaultiano por nos so querida Raul. ,--..--.-J
A cada cicio econ6mico corresponde um moinho de gastar gente, como nos ensinou Darcy Ribeiro. Os sistemas penais latino-americanos se apresentam com seu discurso juridico-penal "esgotado em seu arsenal de fic<;:oes gastas, cujas orgaos exercen1 seu poder para controlar urn marco
. social cujo signo e a morte em massa", afirma Zaffaroni ao tratar dessa realidade leta!. Eu ja disse anteriormente que
(
urn certo discurso sobre o-crime precisa ser repetido ad infinitum e ad nauseum por ser fundamental para a gestao dos pobres, aqueles que nao devem freqiientar 0 shopping, 0
. templo da cidadania do consumo. Ja fiz essa pergunta em' outra ocas~quefufal0;-"q';';;n'~s;os mailinos morrendoou·
.. rrratando·por um bone da Nike nao estao se batendo pela , cidadani", ofereci<ia.PQf.este capitalismo j~.§.~!n mascaras? \ - -'.- -- .-- -- - - -, -- -. -- .. - "- - ,-' .-.. -. -- -'- -.-~---------.- -._- Na historia ideologic a do controle social no Brasil, Gizlene Neder aponta 0 arbitrio das fantasias absolutistas de controle social a partir das nossas matrizes ibericas. Ai se consolida uma formula juridico-penal que articula uma rigida hierarquiza<;:8.o a estrategias de medo, suspei<;:ao e culpa do direito canonico. Nilo Batista, meu querido companheiro, denuncia as marcas da Inquisi<;:8.o Iberica com seus lnecanismos que se agudizam em conjunturas politicas em que as elites temem perder 0 controle. E produzido entao um direito penal de interven<;:ao moral baseado na confissao oral e no dogma da pena. E uma ordem juridic a que nao tolera limites, gestando um sistema penal sem fronteiras, com a tortura como principio, 0 elogio da dela<;:ao e a execu<;:8.o coino espetaculo.
Este espetaculo tem que renetir a nova etapa de poder mundial em que condutas tradicionalmente criminalizaveis passam a ser geridas pelo poder economico. Para Zaffaroni, o poder politico em queda nao dispoe de um discurso criminologico hegem6nico. E um poder politico" que nao pode
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Vera Malaguti Batista
reduzir a violencia que a-sua impotencia gera". E e por issa que esse poder precis a mais do que urn discurso, precisa de urn "libreto para seuespetaculo". Como a gente aqui·no Rio pode ver, 0 show do Garotinho nao pode parar.
A diminui<;:ao do poder politico faz com que 0 des amparo provocado pela destrui<;:ao das redes de prote<;:ao coletiva gere uma ansiedade difusa e dispersa que converge para a obsessao por seguran<;:a. 0 queridissimo e saudoso Alessandro Baratta dizia que a incerteza e velldida como urn estilo de vida e 0 medo torna-se uma op<;:ao estetica. Grande parte da produ<;:ao cultural desse capital desencantado e dedicada a "par medo", paralisar, criar criminaliza<;:6es e vitimiza<;:6es, torturadores e torturados, exterminadores e exterminados. E a tal da civiliza<;:ao sado-maso que acontece no day-after das ocupa<;:6es do Imperio. Ern B<;lnfica, GuantJmamo ou emJlagda, 0 J2riggipiQ e sempre 0
mesmo:(nao so dispor de ciencia e metoda para extrair a m-,;j~,iIia da informa<;:ao (a mercadoria mais valiosa do capital video-financeiro) como divertir-se com isso, como a jovem soldado norte-americana, que trazia 0 preso pelo pescogo, fazendo aquilo so para se divertir.)
Esta produgao cultural, esses dispositivos sao a ala-'. vanca de urn processo muito funcional 11 acumula<;:ao de
capital pos-moderna. A/opgao pela criminaliza<;:ao da pobreza e da conflitivida'a-e social desloca tudo 0 que e publico para 0 penal, reinstitucionalizando 0 direito penal pos-moderno na estrategia da purifica<;:ao ao sacrifici~ Uma coisa leva a outra. E, como dizia Bauman, a nogao de . pureza est a entre as ideias que "quase nunea podem ser abragadas sem que os dentes se descubram e os punhais se agucem". Assinl, a nova ordem mundial deve ser entel1-~a . a.tr~~s da ~arb';r~<;:,rc; da p-"rii';ria pela metr6";';I.J Para Marildo Menegat, urn grande professor de filosofia, a barbarie nao e apenas produzida pela logic a do capitalismo tardio, ela e necessaria ao seu fortalecimento. A periferia
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A funcionalidade do processo de criminaliza~ao na gestao dos desequilihrios gerados nas [orma~6es sociais do capitalismo
p6s-industrial e globalizado
da periferia e transformada enl territorio-campo: sinl, campo de campos de concentragao, bern no estilo "paraiso fiscal dos direitos humanos", como Nilo Batista chamou Guantanamo, esses espagos de exce<;:ao, de abuso em que sao. transformadas nossas favelas, nossas campos cercados contra os trabalhadores sem terra, os presidios lotados de camponeses do poligono da maconha em Cabrobo.
GerritoriOS de ocupa<;:ao, transformados em campos de con
centragao que cornbinam a brutalizagao com a assistencia humanitaria. .
Nilo Batista ja apontava como Thomaz Antonio Gonzaga, urn dos inconfidentes, ao produzir argumento garantista, invacava 0 seu paradoxa:
"Tu tambem nao ignoras, que os a<;:oites; So se dao por despreso nas espadoas; Que agoitar, Dorotheo, ern outra parte, So pertence aos Senhores, quando punem. Os caseiros delitos dos escravos".
Ao dizer depois que "pois todo esse direito se pretere" denunciava que 0 a<;:oitamento nas nadegas era fora da lei, a nao ser nos "caseiros delitos das escravos". Ao garantir esse direito de nao a<;:oitar abaixo das espaduas, na verdade esta reinstituindo esse castigo· para os "caseiros delitos" dos escravos. E ai que reside 0 territorio de sombra do liberalismo, discutido por Karl Schmitt e Walter Benjamin na crise da democracia alema. Tanto era insuperavel 0
parodoxo que Schmitt se transforma no jurista do III Reich e Benjamin se suicida nos Pirineus, em fuga.
o liberal e 0 fascist a de ferias, dizia Murilo Alves da Cunha, 0 Gompanheiro comunista de minha lnae modernista na escola publica da dec ada de 60. A terra em transe do pos-64 tambem sofria do paradoxo liberal.
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Vera Malaguti Batista
(A cada espetaculo de chacina ao vivo e a cores, brotam os tais dis curs os que matam, aquele tipo de declaragao que conduz irremediavelmente ao cadafalsol "Ca entre nos nao da para dizer que foi uma grande perda para nossa sociedade, nao e?", indaga Contardo Calligaris, psicanalis-
~ _.--" ta in, sobre a barbarie de Benfica. Ele e, nas suas palavras, "sensivel" aos argumentos do Secretario de Administra<;:ao Penitenciaria do Rio: "quem manda na prisao deve ser 0
governo, nao as organizaQoes criIninosas". Assim, a norma e 0 imperativa categorico, urn dire ito que para cumprir-se necessita da cena macabra dos corpos esculachados. 0 psi nao quer "discutir sobre 0 valor das vidas que foram perdidas. Sei que eram perdidas ha tempo". Pois faz bem em pensar no valor, porque~tras das ilusoes liberais est a a mais-valia da sociedade ao espetaculo, do capital videofinanceiro'l de Joel Rulino dos Santos e Gilberto VasconceUC;s. as pobres.<:lgoI?- empl:'"!>tflm seus corpos ap espetaculo do h~rr~~, b~~bariz~;~d~ e se';:d~b;;rbar;~;;'-~i';;
. N~~~-;;"pcl;~i~;;:- ~-;:i;":;:inalde droga~,i;;'p;;-~t~ pelo Imperia eDIna a econon1ica, serve para patencializar esse formato penal do capitalismo tardio. Multiplica as estatisticas de encarceramento, criminaliza as estrategias de sobrevivencia e atualiza as encarnag6es do mal, os novas alvos, os inimigos comodos de LOIc Wacquant. ~
o ~ econon1ico e tao perverso que~eSmoralizou as democracias representativas. construindo estatisticas de encarceramento, tortura e exterminio infinitamente superiores aos do periodo da ditadura militar no BTasiyO mais chocante e a prolifera<;:ao dos discursos dos direitos humanos, como se nossa democracia padecesse de uma cinica esquizofrenia: quaI1t.':'_ mais .. se fala em cjdada~ mais.·1>_e_.!!}~!~~~.
Quando essa forma contemporanea do poder penal se encontra com nossa heranga escravista, com a tragedia dos povos indigenas, com 0 massacre fundacional da Republica,
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A funcionalidade do processo de criminalizagao na gestao dos desequiHbrios gerados nas formac;6es sociais do capitalismo
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(nossa hist6ria de colonia vai-se reproduzindo por si me sma, fomo se fosse infinita e parte da natureza. Mas nao e.
E por isto que~emos que produzir novas utopias)r~fazermos nossa memoria transgressiva e s.ediciosa, conhecer ;;: Males-;Os CabaI1os, os Balaios, os grup-;';d;;~ onze, bus-""---- ~....,.---.-., -------carmos no fio da hist6ria as resistencias e os desejos de outro futuro. E e aqui que, referindo-me a um texto de Joel Birman, um psicanalista, quero falar de como podemos nos contrapor it barbarie. Falamos aqui de um lugar privilegiado, do CACO, e de uma memoria de luta, 0 40" aniversario da resistencia ao golpe militar de 1964.
Se estamos assistindo ao espetaculo do crescimentq dos dispositivos penais; se no neoliberalismo 0 Estado Previdenciario se transforma no Estado Penal; se estamos assistindo ao encarceramento do que se auto-intitulou "mundo livre", entao estarhos falando de uma trincheira muito importante para os ernbates pos-modernos: 0 direito e seus intelectuais. E,no front da questao criminal que esta ocorrendo a principalluta politic~ra discussao da seguranga publica e 0 grande palco da con.ttru<;:ao do podeiJporque e ai que 0 neoliberalismo faz agua, e ai que esta a contradi<;:ao fundamental, como dizia 0 imprescindivel Karl Marx. Neste combate, os @dvogados, delegados, juizes, promotore~ que ~Il!E!.e'lt~J:~!l1 (Sua energia para conter e deslegitimar a maquina mortife~ 0 sistema penal neoliberal, esses estarao demolindo os sustentaculos do Admiravel Mundo Novo. Nos seus escombros. seus poroes, vamos remexer nos velhos textos de Tobias Barreto, nos escritos de Frei Caneca, 0 livrinho male encontrado no pesco<;:o do escravo negro sem nome, as defesas de Heleno Fragoso, os Sertoes de Euclides e de Rosa, a carta-testamento de Getulio. Vamos it luta! a melhor est a por vir! ~
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Giancarlo Corsi
Buoll. giorno. Grazie per l'invito a questa seminario. Dopo aver sentito l'intervento del Ministro Zaffaroni
ieri sera e anche quello di Vera oggi, ho cambiato la scaletta delle cose che intendevo dire. Volevo limitarmi ai problemi dell'esclusione sociale, rna rni sono convinto che c'e un problema di fonda - problema in un senso positivo - che emerge anche dal titolo del seminario, con la notevole quantita di temi che propone: "criminalizagao, desequilibrio social, capitalisIno pas-industrial, globalizagao" ... Mi sembra che il titolo sia il sintomo di un dis agio che, se capisco bene, '" tipico dei giuristi, un disagio che i giuristi hanno con se stessi quando si tratta del diritto penale. E un dis agio nel senso che sembra che il diritto subisca il suo aspetto penale come un ll.lale necessaria.
Non sono un esperto nella materia, per cui po'.ssa solo supporre che questo. abbia che fare con la storia del diritto moderno, in particolare con il monopolio che 10 Stato ha assunto dell'uso della violenza per ripagare violenza. Come sappiamo, 5e prima Ie offese che poi sarebbero diventate penali - e che erano private - potevano essere compensate anche a livello individuale, famigliare 0 di gruppi sociali, a un certopunto '" solo 10 Stato, 0 meglio il diritto ehe puo intervenire. Qui, probabilmente, l'imbarazzo '" dovuto proprio a1 fatto che si deve fare cia che si ritiene un lllale per compensare il male fatto. In altri termini, bisogna usare 10 stessi strumenti che si vogliono condannare; e si puo comprendere che questa crei dis agio. La si vede se si osserva 1a discussione all'interno della criminologia. rna anche" della sociologia del diritto che si occupa dicrimine. In particolare quando cercadi capire Ie "cause" del crimine. C'", chiaramente una doppia tendenza nel modo in cui si costruisce giuridicamente 1a criminalita. Da un lato, si tratta generalmente di rieeIcare cause sociali e, dall'altro, ovvia-
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Giancarlo Corsi
n1ente, non si puo evitare di ricercare anche cause individuali, di determinare perch'" l'individuo ha deciso 0 eomunque si e cornportato cosi COlne si e comportato.
Si tratta di un settore ehe si presta molto faeilmente a ogni forma di eritiea: si puo eertamente dire ehe la eolpa " dei rapporti soeiali e allo stesso tempo, soprattutto quando si tratta, dieiamo eosi, di devianti eriminali ehe vengono da gruppi soeiali eselusi, non si puo evitare di sottolineare il fatto ehe se sono esclusi diventa diffieile eapire cos a signifiehi volonta nel loro easo. Viene eio" da ehiedersi quali alternative possa avere un eseluso se non fare quello ehe fa. Questo non" un problema soltanto dell'Ameriea Latina o dell'Afriea 0 di altre zone povere, ma sono problemi ehe cominciano ad esistere e che si percepiscOI1o anche in Europa.
Oppure si puo dire ehe la eolpa " dell'individuo ehe agisce in modo criminale.
La mia impressione " ehs. su entrambi i lati di questa eostruzione della eausalita ei siano problemi inevitabili. Direi problemi innanzituttci di tautologia.
ehe sia eolpa dei rapporti soeiali oppure, meglio, ehe· la eriminalita sia un prodotto della soeieta " talmente ovvio ehe non si sa eosa possa signifieare. D'altra parte, ehe ei sia una responsabilita individuale 0 ehe eomunque ei siano eomportamenti seelti da parte dell'individuo " altrettanto ovvio e tautologieo.
II problema diventa aneora pili grande quando la eriminalita non e pili isolata, rna assume dimensioni, diciamo pure, di massa, eatastrofiehe e tragiehe.
N el easo europeo - il easo brasiliano voi 10 eonoseete meglio di me - nel easo europeo, in Italia ad esempio, da parecchi anni si sa che nelle carceri si trova una popolazione eomposta per 10 pili di tossieodipendenti 0 di quelli ehe noi chiamiamo extracomunitari. Extracomunitari sono anche gli svizzeri, gli statunitensi e i brasiliani, rna, in
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\K!!'
(11; ill-
A funcionalidade do processo de criminaJiza9B.o na gesrao dos desequilibrios gerados nas formag6es sociais do capitalismo
p6s-industrial e globalizado
questo easo, si tratta naturalmente di nordafrieani oppure di persone chi vengono da altri paesi poveri ...
Per quello ehe ho visto - e devo ripetere ehe non sono un giurista - ho I'impressione ehe anehe su questo punto la diseussione sia un po' bloeeata.
Da un lato si insiste molto sui fatto ehe gruppi soeiali di questo tipo, ehiarniamoli pure eselusi, dovrebbero trovare dignita, in quanto esseri umani, in quanta persone. Altri giustamente sottolineano ehe bisogna eercare di eapire quali sono i loro bisogni e quindi vedere se Ii si puo soddisfare.
Solo ehe non ho mai capito ehe eosa se ne faecia un escluso quando gli si dice ehe " una persona, ehe " un indiv~duo, un soggetto ... Ma anehe, sull'altro lato, quello ehe spesso rni impressiona " ehe sembra ehe i bisogni degli esclusi Ii eonoseano molto meglio gh osservatori esterni, eio" gli inelusi, ehe non gli esclusi stessi. In questo senso dire: "questi sono i loro bisogni" diventa un po' problematieo.
In generale, ho I'impressione ehe si dia per seontato, soprattutto in ambito politico e giuridieo, ehe se non ei fossero disuguaglianze e ingiustizie, probabilme,'lte non avremmo nemmeno la criIninalita, quanta meno in questa forma. Ritengo ehe questa sia una posizione assolutamente insostenibile. Una volta ho sentito dire anehe ehe pure la mafia italiana era funzionale all'ordine politieo-eeonomieo mondiale. La dimostrazione sarebbe stata questa: ehe si eomineio a eombattere la mafia e anehe ad ottenere risultati nella lotta eontro la mafia solo dopo la eaduta del muro di Berlino. La relazione tra i due fenomeni continua a riInanere per me abbastanza misteriosa ...
Ora, mi sembra ehe eercare Ie cause della eriminalita, odella devianza in generale, sia un esereizio abbastanza privo di prospettive, non nel sensa naturalmente che non si possa fare qualcosa, ehe non si· debba fare qualeosa. E ovvio che in certe situazioni i cc;n.l1.portamenti devianti a criminaIi sana chiaramente la conseguenza di una situazione
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Giancarlo Corsi
estrema. Pero, a mio parere, bisognerebbe chiarire alcune cose su un piano un po' pili astratto. Innanzitutto, la questione della differenza tra inclusione ed esclusione, che a stata molto citata ieri e che in questo settore, ovviamente, a molto importante.
Gi sono molte teorie a questo proposito, che qui non possiamo analizzare. Innanzitutto, Ie tante ricerche condotte negli ultimi venti 0 trenta anni soprattutto in ambito sociologico ci dicono che questa differenza non a un prodotto della modernita, della societa attuale. Inclusione ed esclusione ci sono sempre state da quando c'e soeieta, almena da quando possiamo vedere. Moderna invece a la preoccupazione per it problema, per it fenomeno, 0 meglio aneora, moderna s la preoccupazione per questa differenza in quanto tale. Questo 10 sappiamo anche dalle ricerche degli storici. Michel Foucault a naturalmente it primo nome che ci viene in mente, rna ce ne sono anche altri. Michel Foucault ha mostrato in maniera piuttosto chiara che certe istituzioni che erano sempre state pens ate a fini di esclusione - prigioni, ospedali, manicolni - a un certo punto si sono trasformate, non tanto in cio che dentro di esse effettivamente succede, rna nella loro funzione, cioa sono diven-
'. tate istituzioni che, ad un certo punto, si sono poste it problema di come reincludere coloro che transitavano dentro di esse. Analogamente a quanto succede negli ospedali, chi entra nella prigione ci entra non solo per scontare la pena - questo almena dovrebbe essere in teoria - rna anche per poi essere reincluso nella societa. E questo, naturalmente, e una banalita che tutti noi diamo per scontata. Nella realta, naturalmente, Ie cose non vanno cosi. Mi e capitato di fare alcune ricerche partendo da un fatto molto noto, cioa che chi esce dal carcere, soprattutto quando si tratta di esclusi, ci ritorna. In pratica, sono carriere costruite completamente sull'entrata e l'uscita dal carcere. E anche questa a una cos a molto nota. Non c'era bisogno di
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pas-industrial e globalizado
una ricerca per saperlo. Ma in questa ricerca ci ha colpito il fatto che in prigione i detenuti svituppano contatti di un certo tipo, si costruiscono reti comunicative e anche una certa immagine di se stessi. Naturalmente, per quello che possono, perchs l'ambiente non a certo molto accogJiente.
Molti operatori, oltre che ex-carcerati 0 i detenuti stessi hanno sottoIineato un aspetto: che, una volta usciti dal c~rcere, i contatti sociali, Ie capacita di avere a che fare con gli altri e anche l'immagine di se stessi crollano. Questo ci ha fatto pensare che - e qui lodico di maniera apertamente paradossale, rna spero che ci capiamo - l'integrazione, la fortissima integ.razione tipica di una prigione, ha ricostruito alcuni presupposti perchs queste persone poss:J-no percepire alternative di comportamento, cosa che in~_!?ce non sono assolutamente in grado di fare quando escono. Ora, nella discussione con gli stessi operatori che si o~cupano del momento di passaggio dall'interno al esterno - per operatori intendiamo varie figure, cios persone che C:i.utano i detenuti a costruire contatti con l'esterno quando stanno per uscire, ad esempio trovare contatti can· azie~nde per eventualmente poter lavorare, e poi naturalmente operatori di assistenza sociale, di assistenza personale, psicologica, ecc. - quello che si e notato e che non e tanto qqestione di costruire una dilnensione soggettiva, personale di questi individui cb.e stanno per uscire dal carcere, rna il ~ vero problema sta nella loro capacita di percepire Ie poche possibiIita di scelta che hanno quando escono dalla prigio-ne. Innanzitutto sarebbe necessario, naturalmente, un grande coordinamento a livello organizzativo, che non esis-te assolutamente. E it risultato ache queste persone, quan-do escono, non sanno 0 sanno male quello che possono fare. Magari hanno gia perso i contatti sociali 0 familiari. E di fronte alia totale indeterminatezza che Ii accoglie fuori dal carcere, vedono solo Ie alternative che gia conoscono, tipicamente furta, violenza, drog-a, ecc. - e si ricomincia.
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Giancarlo Corsi
Un piccolo caso come questo fa pensare ad alcune cose. Intanto torniamo alia differenza tra inclusione ed esclusione. Non c's dubbio che s una differenza che ha che fare anche con rapporti di potere, con rapporti economici. Non c's dubbio che s una differenza che nella forma che conosciamo s prodotta dalla globalizzazione moderna -qualunque cosa voglia dire - pero direi s una differenza, una distinzione questa tra inclusione ed esclusione, che non s oggetto di decisione. Non si puo decidere su questa differenza. Non ha una causa, oppure, se volete, la sua unica causa s l'esistenza della societa in quanto tale. Detto francamente, ne sappiamo molto poco in questa differenza. Sappiamo pera che, se anche qualcheintervento puo spostarns i confini. non pub mai eliminarli totalmente.
Ci sono alcune particolarita che forse conviene tenere presente per capire almeno il senso di questa differenza. SuI lato inclusione non si tratta, come s ovvio, soltanto di benessere economico. QueUo che gia dagli anni '50 la sociologia americana e poi la sociolbgia europea negli ultimi venti anni hanna mostrato e che l'inelusione sociale in questa societa si basa su quello che in inglese si chiama loose coupling. La propria identita sociale non proviene pili dalla famiglia, dal posto dove si s nati e cresciuti e dove probabilmente si -inveeehiera e si lTIorira. e nemmeno da comunita religiose 0 dagruppi sociali di qualche tipo. Anzi, tutti questi fattori - sesso, eta, fede religiosa, opinione politica, professione, interessi personali - possono essere sviluppati in modo relativamente indipendente tra loro. So che voi siete brasiliani. a1euni giuristi, altri non so, e che avete interesse per i tami che trattiamo qui. Ma da questo non posso dedurre come votiate 0 se siete tifosi di calcio. 0 che tipo di perversioni sessuali vi piacciono. I vincoli sociali sono diventatipili lenti -loose coupling, appunto. Non solo: il modo in cui gli inclusi costruiscono Ie proprie prospettive, Ie proprie alternative di scelta derivano da una combi-
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nazione tra quello che gia si ha come struttura - dalle proprie esperienze, dai propri studi - e il caso. Intendo dire che cia che si fa nella propria vita, anni di studio, esperienze ecc., consente di cogliere opportunita, cios, in altri termini, di poter sfruttare eventuali situazioni casuali. D'altra parte, credo ehe nessuno di noi qui possa sostenere ehe 1a persona che s adesso sia il risultato esatto di una pianificazione.
SuI lato esclusione, invece, valgono condizioni diametralmente opposte. Qui sono state soprattutto alcune ricerehe - ormai gia qualche decennio fa - sugli homeless americani a darci qualche prospettiva. Quello che si s osservato s che basta uscire da un contesto di inclusione, ad eserppio perdere il lavoro, per rischiare di perdere a catena anche tutto il resto: l'assistenza sanitaria; non si possono pili mandare i figli a scuola; non si riesce pili a pagare I'affitto - insomma, ci si trova all'improvviso esclusi. In questo senso, suI lato deU'esclusione c's una fortissima integrazione sociale, come ha fatto notare la teoria dei sistemi - sullato dell'esclusione non c's loose coupling, c's un tight coupling, un legame stretto. E questo, direi, caratterizza tutte Ie forme di esclusione, compresa quella ehe troviamo in prigione. Per questo direi che la differenza tra inclusione ed esclusione s difficilmente trattabile politicamente, giuridicamente, ma anche da altri punti di vista. Si riproduce con enorme facilita.
Altre situazioni sono piuttosto illuminanti. Per esempio quando si tratta di produrre assistenza sociale per persane a rischio di esclusione. Ci sono ricerche Sil amministrazioni locali che provano a controllare il pili possibile il territorio e Ie persone a rischio di esclusione. Per quello che si e visto, i risultati sono contraddittori, ma capita soprattutto che non si riesca nemmeno ad avvicinare persone a rischio di esclusione, percha si sottraggono loro stessi all'intervento di assistenza. Alcuni ricereatori hanno fatto notare che ci sono situazioni in qualche modo curiose, se
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non paradossali, perche l'intervento che vuol eliminare l'esclusicine a a sua volta un produttore di esclusione. Si generano "carriere da assistenza sociale". Naturalmente non e escluso che amministrazioni locali, forze di polizia. assistenza sociale, voiontariato possano ottenere moiti buoni risultati - un tema suI quale si discute moltissimo in Europa. Ma, la differenza tra inclusione ed esclusione, certamente, non puo scomparire per questo; anzi, probabilmente si riproduce in altra forma.
C'a un altro aspetto che vorrei sottolineare. La ricerca che ho citato prima sui detenuti che escono dalle prigioni e hanno poi dei problemi di reinserimento ci ha fatto anche un po' riflettere su cos a possiamo intendere con liberta, Normalmente, si intende liberta come assenza di costrizione, assenza di vincolo. Ma sappiamo da parecchio tempo -direi, da alcuni secoli - che non e'e nessuna liberta se non c'a anche vincolo. Un sociologo tedesco - Luhmann -' una volta ha fatto questo esempio, in forma di domanda: si puo pensare che sia piu libero un chirurgo in sala operatoria 0
un barbone nel parco? Normalmente si parte dal presupposto che, a seconda della collocazione sociale, ci sia maggiore liberta in alto e minore verso il basso, e quindi la ris
"posta dovra essere automatica. Invece, provate a fare un' esperimento mentale e cioe a invertire Ie posizioni: mettere il chirurgo nel parco e il barbone in sala operatoria. 11 chirurgo nel parco morira di fame 0 di freddo al primo inverno. In sala operatoria, muore il paziente.
Se si intende liberta come assenza di vincoli non si ottiene nulla. Se invece la si pensa in altro modo, possiamo concludere qualcosa. Ouello che qui a importante sembra essere infatti tutt'altro e cioa la capacita di percepire e costruire alternative decisionali. 11 chirurgo in sala operatoria sa cosa deve fare, cosi come 10 sa il barbone nel parco. Se calnbiano Ie posizioni, nessuno dei due sa niente. Qui si propone un concetto di liberta, diciamo cosi, puramente
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cognitivo. Cognitivo perche non si riferisce all'assenza di vincoli, rna alIa capacita di distinguere e percepire alternative decisionali. Molto spesso quello che manca e proprio questo. E deva dire non soltanto nel caso del rapporto, tipico delle istituzioni totali, tra Ie prigioni e gli esclusi, rna molto piu in generale, ad esempio anche in ambito politico.
Oui apro una piccola parentesi. Chiedo spesso, anche agli studenti a lezione, dove sta la differenza tra l'opinione pubblica italiana e quella di altri paesi, ad esempio, Francia, Inghilterra, Germania. 11 problema naturalmente nasce dall'interesse per Ie vicende politiche che stiamo subendo in Italia da una decina di anni a questa parte. La domanda che faccio sempre agli studenti e: perche ha vinto Berlusconi Ie elezioni del 1994 e del 2001? E, natuH,lmente, si discute a lungo sulla capacita di determinazione dell'opinione pubblica da parte delle televisioni. Oui'abbiamo un problema simile a quello che ho citato all'inizio. E del tutto indimostrabile qualunque forma di determinazione, Piuttosto, a mio parere, la questione interessante e u'n'altra. Se confrontiamo l'opinione pubblica italiana con' quella francese, acl esempio. notiamo alcune differenze. Entrambe guardano molto la televisione, rna i francesi leggono anche libri, leggono giornali, vanno al cinema e vanno a teatro. Gli italiani no. E allora il problema si pone di una maniera quasi capovolta. Non ache la televisione determina gli elettori, la lora volonta. Diciamoche Ie alternative relative al sapere, ana conoscenza, a cia che si sa del lTIonda, in Italia 'sono mediate quasi solo dalla televisione. Ouindi la liberta che si costruisce un cittadino italiano dipende forse troppo, comunque sicuramente molto, da quello che vede in televisione.
Allora, a quel punto, non si puo chiedere: a veramente libero un popolo che non sfrutta tutti i mass media che ha a disposizione? Naturalmente, su questa si puo appunto discutere. In ogni caso a un altro esempio che ci porterebbe a
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Giancarlo Corsi
pensare il concetto di liberta e I'idea di liberta in un altro lnada, ciae appunto come capacita di differenziare e costruire alternative di comportamento. Non aiuta molto - mi rendo conto - rna e soltanto una piccola variante, per cosi dire, aU'interno dei concetti che abbiamo a disposizione.
Pero ho l'impressione che per capire feno~eni con1e la criminalita e anche, se -volete, la crilninalizzazione, sia pili utile cercare di capire alcune strutture di base di questa societa, tipo la differeriza tra inclusione ed esclusione, che non invece cercare rapporti tra fenomeni come questi e strutture economiche 0 di potere. Per non parlare di cause. Anche eliminando 0 controllando 0 reprimendo relazioni stratificatorie, di dominio, di controllo di tipo economico 0
politico - anche eliminandoli, non elimineremmo con questo la differenza tra inclusione ed esclusione e nen1meno quello che oggi e criminalita. Dopo tutto, hanno ragioni i giuristi quando fanno notare che la devianza giuridicamente rilevante e anche un prodotto delle norme che la ritengono tale. D'altra parte possiamo dire, con tutta tranquillita, che non possiamo fare a meno di norme. Allora, a quel punto, forse puo essere utile discutere pili che su rapporti di dominio - che comunque ci sono - sulle varianti, sulle opportunita che abbiamo a disposizione, opportunita di decisione ed intervento, sia politico che giuridico, che oggi sono disponibili soprattutto suI piano organizzativo.
Ma soprattutto - e questa e veramente I'ultima cos a -potrebbe essere d'aiuto prendere un po' di distanza dai fenomeni, sia dal punto di vista ideologico, sia dal punto di vista morale. Che I'esclusioneoggi sia un fenomeno di barbarie modema e fuori discussione. Ma non aiuta chi deve decidere vedere in questo un rapporto di sudditanza 0
comunque di dominio ideologico. Cosa possa invece aiutare e, francamente, difficile da dire. La sociologia qui e veramente di pochissimo aiuto. Tutto queUo che puo fare e for-
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nire alcune piccole descriziani di alcuni fen0111eni e sperare che in qualche modo siano utili.
E questo e tutto. "Muito obrigado".
Bom dia. Obrigado pelo convite para este seminario. Apos ouvir a intervengao do Ministro Zaffaroni ontem
a noite e tambem a de Vera hoje, mudei 0 roteiro do que pretendia dizer. Pretendia me limitar aos problemas d,a exclusao social, mas me convenci de que ha um problema de fundo - problema em um sentido positivo - que emerge do proprio titulo do seminario, com a notavel quantidade de temas propostos: criminalizagao, desequilibrio social, capitalismo pas-industrial, globalizac;:ao ... 0 titulo me parece sintoma de um desconforto que, se bem.entendo, e tipico das juristas, urn descanfarta que os juristas_sentem cansigo mesmos quando se trata do direito penal. E um desconforto no sentido de que parece que 0 direito suporta seu aspecto penal como urn' mal necessaria.
Nao sou urn espeeialista na materia e, portanto, posso apenas supar que ista tenha a ver com a hist6ria do direito Inaderna, especial mente com a monopolio· que 0 Estado assumiu do uso da violencia para compensar violencia. Como sabemas, se antes as of ens as que mais tarde se tornariam penais - e que eram privadas - podian1 ser con1pensadas tambem a nivel individual, familiar ou de grupos saciais, em urn determinado ponto, e Bomente a Estado, ou melhor, 0 direito, que pode intervir. Aqui, provavelmente, 0
embarago decorre exatamente do fato de que se deve fazer aquilo que se julga um mal para compensar 0 mal feito. Em outras palavras, e preciso usar os mesmas instrumentos que se quer condenar; e pode-se compreender que isto erie
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desconforto. Ve-se tal desconforto ao se observar a discussao no interior da criminologia, mas tambam da sociologia do direito que se ocupa do crime. Especialmente, quando tenta entender as "causas" do crime. Ha claran1ente uma dupla tendencia no modo pelo qual se constr6i juridic amente a criminalidade. De um lado, geralmente se trata de buscar causas sociais e, de outro, obviamente, nao se pode evitar a busca de causas individuais, de determinar porque o individuo decidiu ou, de todo modo, porque se comportou da forma como se comportou.
Trata-se de um campo que se presta muito facilmente a toda forma de critica: certamente, pode-se dizer que a culpa a das relagoes sociais e, ao mesmo tempo, sobretudo quando se trata, digamos, de desviantes criminais que vern de grupos sociais excluidos, nao se pode deixar de ressaltar 0 fato de que, se sao excluidos, torna-se dificil compreender 0 que significa vontade no caso deles. au seja, a <;ie se perguntar que alternativas pode ter um excluido a nao ser fazer 0 que faz. Este nao a um problema apenas da Amarica Latina ou da Africa, ou de outras zonas pobres;
sao problemas que comegam a existir e que se percebem tambam na Europa.
au se pode dizer que a culpa a do individuo que age de forma criminosa.
Minha impressao a que de ambos os lados desta cons' trugao da causalidade ha problemas inevitaveis. Eu diria, problemas, antes de tudo, de tautologia.
Que seja culpa das relagoes sociais, ou melhor, que a criminalidade seja um produto da sociedade a tao 6bvio que nao se sabe 0 que isso possa significar. Por outro lado, que exista uma responsabilidade individual ou que, de todo modo, exist am comportamentos escolhidos pelo individuo a igualmente 6bvio e tautol6gico.
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a problema se. torna ainda maior quando a criminalidade nlito esta mais isolada, assumindo dimensoes, digamos mesmo, de massa, catastr6ficas e tragic as.
No caso europeu - 0 caso brasileiro voces conhecem melhor do que eu -, no caso europeu, na Italia, por exemplo, ha muitos anOS se sabe "que, nas prisoes, encontramos uma populagao compost a, em sua maioria,. de t6xicodependentes au daqueles que chamamos de extracomunitarios. Extracomunitarios sao tambem os suigos, as norteamericanos e as brasileiros, mas, neste caso, trata-se, naturalmente, de nortecafricanos ou de pessoas que vem de outros paises pobres ...
Pelo que tenho visto - e devo repetir que nao sou um jurista -, tenho a impressao de que, tambam sobre este ponto, a discus sao esteja um tanto travada.
. Por um lado, insiste-se muito no fato de que grupos sociais deste ttpo - chamemo-los mesmo excluidos,,- deveriam encontrar dignidade enquanto seres huinanos, enquanto pessoas. Outros com razao ressaltam q~e e preciso tentar compreender quais sao suas necessidades e, assim, verJ~e poderao ser satisfeitas.
S6 que nunca consegui entender 0 que adianta para um excluido ouvir que a uma pessoa, que a um individuo, um sujeito ... Mas tambam, por outro lad"" 0 que com frequencia me impressiona e que os observadores externos -isto a, os incluidos - parecem saber melhor quais sao as necessidades dos excluidos do que eles pr6prios. Neste sentido, dizer: "estas sao as ~uas necessidades" torna-se um tanto problematico.
Em geral, tenho a impressao de que se de como certo, sobretudo no ambito politico e juridico, que, se nao existissem desigualdades e injustigas, provavelmente sequer teriamos a criminalidade, pelo menos desta forma. Creio que esta seja uma posigao absolutamente insustentavel. Uma vez, ouvi alguem dizer ate mesmo que a mafia italia-
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na era funcional a ordem politico-economic a mundial. A demonstragao seria essa: que se comegou a combater a mMia e inclusive a se obter resultados na luta contra a mMia sO depois da queda do muro de Berlim. A relagao entre os dois fenomenos continua a permanecer, para min1, bastante n1isteriosa ...
Ora, parece-me que buscar as causas da criminalidade, ou do desvio ern geral, e urn exercicio quase totalmente sem perspectivas, naturalmente, nao no sentido de que nao se possa fazer alguma coisa ou que nao se deva fazer alguma coisa. E obvio que, elll certas situac,;6es, os comportamentos desviantes oU,criminosos sao claramente consequencia de uma situagao extrema. Mas, a meu ver, seria preciso esclarecer algumas coisas em urn plano urn pouco mais abstrato. Antes de tudo, a questao da diferenc,;a entre inclusao e exclusao, que foi muito citada ontem e que, ne:ste campo, obviamente, e muito irnportante.
Ha muitas teorias a respeito, que nao podem-os analisar aqui. Antes de tudo, as muitas pesquisas desenvolvidas nos ultimos vinte au trinta anos, especialmente en1 ambito sociologico, nos dizem que esta diferenga nao e urn produto da modernidade, da sociedade atual. Inclusao e exclusao sempre existiram desde quando existe sociedade, ao menos desde quando podemos enxergar. Moderna, no entanto, e a preocupac,;ao com 0 problema, com 0 fenomeno, ou, melhor ainda, moderna e a preocupagao com esta diferenga enquanto tal. Sabemos disto inclusive pelas pesquisas dos historiadores. Michel Foucault, naturalmente, e o primeiro nome que nos vern em mente, mas tambern existern outros. Michel Foucault mostrou, de maneira especialmente clara, que certas instituig6es que sempre foram pensadas com fins de exclusao - pris6es, hospitais, manicomios -, em urn determinado ponto, se transformaram, nao tanto no que efetivamente acontece dentro delas, mas 11a sua fungao, ou seja, se tornaram instituigoes que, em urn
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determinado ponto, se colocaram 0 problema de como reincluir aqueles que transitavam dentro delas. Analogamente ao que acontece nos hospitais, quem entra na prisao nao entra ali apenas para descontar a pena -pelo menos e a que deveria acontecer em teoria -, mas tambem para ser depois re-incluido na sociedade. Isto, naturalmente, e uma banalidade que todos nos damos como certa. Na realidade, naturalmente, as coisas nao sao assim. Ja me aconteceu de fazer algumas pesquisas, partindo de urn fato muito conhecido, isto e, 0 de que quem sai do cincere, sobretudo quando se trata de excluidos, volta. Na pnltica, sao carreiras totalmente construidas sobre a entrada e asaida do carcE\re. E esta tambem e uma coisa muito conhecida. Nao haveria necessidade de uma pesquisa para sabEl-lo. Mas, nesta pesquisa, 0 que nos tocou foi 0 fato de que, na prisao, os detentos desenvolvem contatos de determinado tipo, constroem redes comunicativas e tambem uma certa imagen1 de si proprios. Naturalmente, naquilo que podem, pois 0
ambiente, certamente, nao e muito acolhedor. Muitos operadores, alem de ex-presos ou os proprios
detentos, ressaltaram urn aspecto: uma vez saidos do carcere, os contatos sociais, as eapaeidades de ter aver eon1 as outres e a propria in1agen1 de si mesmos desabam. Isto nos fez pensar que - e, aqui, 0 diga de maneira abertalnente paradoxal, mas espero que nos entenda~as - a integragao, a fortissima integrag.ao tipica de uma prisao, reconstruiu alguns pressupostos para que estas pessoas pudessem perceber alternativas de comportamento, 0 que, ao contrario, nao sao absolutamente capazes de fazer quando saem. Ora, na discussae com as proprios operadores que se ocupam do momenta de passagem do interior para 0 exterior - por operadores entendemos varias figuras, ou seja, pessoas que ajudam as detentos a eonstr"uir cantatos com o exterior quando estao para sair, por exemplo, buscando contatos com empresas para eventualmente poder traba-
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Ihar, e, alem disso, naturalmente, operadores de assist€mcia social, de assistencia pessoal, psicol6gica, etc. -, 0 que se notou foi que nao e tanto uma questao de eonstruir uma dimensao subjetiva, pessoal, destes individuos que estao para sah do careere; 0 verdadeira problema esta em sua capacidade de perceber as poucas possibilidades de escoIha que tern quando saem da prisao. Antes de tudo, naturaImente, seria preciso ter uma grande coordenagao a nivel organizacional, 0 que absolutamente nao existe. E 0 resultado e que estas pessoas, quando saem, nao sabem ou sabem mal aquilo que podem fazer. Talvez ja tenham perdido os contatos sociais ou familiares. E, diante da total indetermina<;:ao que Ihes acofhe fora do carcere, s6 veem as alternativas que ja conhecem, tipicamente, furto, violencia, droga, etc. - e se recome<;:a.
Urn pequeno caso como este faz pensar em algumas coisas. Nesse meio tempo, tornemos a diferenga entre incJusao e excJusao. Nao ha duvida de que e uma diferen<;:a que tern aver tambem com rela<;:6es de poder, com rela<;:oes economicas. Nao ha duvida de que e uma diferenga que, na forma como a conhecemos, e um produto da globaliza<;:ao moderna - seja la 0 que isto queira dizer - mas, eu diria que 'e uma diferenga, esta distingao entre inclusao e excJusao, . que nao e objeto de decisao. Nao se pode decidir sobre esta diferenga. Nao ha uma causa, au, se preferirem, sua uniea causa e a existencia da sociedade enquanto taL Dito francamente: sabemos muito pouco sobre esta diferenga. Sabemos, porem, que, mesmo se algumas interven<;:oes podem deslocar seus limites, jamais poderao elimina.-los totalmente.
Ha algumas particularidades que talvez fosse conveniente ter presente, para, pelo menos, entender 0 sentido desta diferen<;:a. Do lado incJusao, nao se trata, como e 6bvio, apenas de bem-estar economico. a que, desde os anos 50, a sociologia americana e, depois, a sociologia
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europeia, nos ultimos vinte anos, n10straram e que a inclusao social, nesta socieda<?-e, se baseia naquilo que em ingles se ehama loose coupling. A propria identidade soc_ial nao provem mais da familia, do lugar onde se nasceu e cresceu e onde provavelmente se envelhecenl e morrera, e tampouco de comunidades religiosas au de grupos sociais de qualquer especie. Ao contrario, todos esses fatores -sexo, idade, fe religiosa, opiniao poJitica, profissao, interesses pessoais - podem se desenvolver de modo relativamente independente entre si. Sei que voces sao brasileiros, alguns juristas, outros, nao sei, e que ten1 interesse nos temas de que estamos tratando aqui. Mas, dai, nao posso deduzir como voces votam ali se sao torcedores de algyrn time de futeboL au que tipo de perversoes sexuais l11es agradam. as vinculos sociais se tarnaram mais lentos -loose coupling, exatamente. Nao s6: 0 modo pelo quai os incluidos constroem suas proprias perspectivas, suas p'r6~ prias alternativas de escolha, deriva de uma combinagao entre 0 que ja se tem como estrutura - as proprias experiencias; as proprios estudos - e a acaso. Quero dizer que aquila que se faz na pr"opria vida, anos de estudo, experiencias, etc., permite colher oportunidades, au seja, em outras palavras, permite que se possam aproveitar eventuais situagoes casuais. Por outro lado, acredito que nenbum de nos, aqui, possa sustentar que a pessoa que se e hoje seja o resultado exato de uma planificagao.
Do lado excJusao, no entanto, vigem condic;oes diametralmente opostas. Aqui, especialmente, se tem algumas pesquisas - a esta altura, ja se passaram algumas decadas - sobre homeless americanos, que nos dao alguma perspectiva. a que se observou e que basta sair de urn contexto de inclusao, par exemplo, perder a emprego. para se arriscar a perder, em cadeia, todo a resta: a assistencia sanitaria; nao se pode mais mandar as filhos para a escola; nao se consegue mais pagar 0 aluguel - em suma, de uma hora para a
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outra, a pessoa se acha exc1uida. Neste sentido, do lado exclusao, existe uma fortissima integragao social, Como fez notar a teoria dos sistemas - no lado da exclusao, nao ha loose coupling; ha sim um tight coupling, uma liga«ao estreitao E isto, eu diria, caracteriza todas as for-mas de exclusao, inclusive a que encontramos na prisao. Por isto, eu diria que a diferenga entre inclusao e exclusao e dificih11ente tratavel politicamente, juridicamente, mas tambem de outros pontos de vista. Reproduz-se com enorme facilidade.
Outras situa«oes sao particularmente iluminadoras. Por exemplo, quando se trata de produzir assistE!llcia social para pessoas en1 risco de exclusao. Existem pesquisas sobre administra«oes locais que tentam controlar 0 mais possivel 0 territorio e as pessoas em risco de exc1usao. Pelo que se tern visto, os resultados sao contraditorios, mas acontece, sobretudo, que nao se consiga sequer unla aproximagao com as pessoas en1 risco de exclusao, porque elas proprias se subtraem a intervengao de assistencia. Alguns pesquisadares fizeram notar que ha situa«oes de certo modo curiosas, se nao paradoxais, em que a intervengao que pretende eliminar a exclusao e, par sua vez, produtora de exclusao. Geram-se "carr~iras de assistencia social". Naturalmente, nao se exclui que administragoes locais, forgas policiais, assistencia social, voluntariado possam obter resultados muito bans - um tema sobre 0 qual se discute muitissimo na Europa. Mas, a diferen«a entre inclusao e exclusao, certamente, nao desaparece por isto; ao contrario, provavehnente se reproduz de outra forma.
Ha um outro aspecto que eu gostaria de ressaltar. A pesquisa que antes citei, sobre os detentos que saem das prisoes e tam problemas de reinser«ao, nos fez refletir um pouco tambem sobre 0 que podemos entender por Iiberdade. Normalmente, se entende liberdade como ausancia de consttigao, ausencia de vinculo. Mas, ha muito telnpo - eu diria, ha alguns seculos -, sabemos que nao ha nenhuma
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Iiberdade se tambem nao ha vinculo. Um soci610go alemao - Luhmann -, certa vez, deu este exemplo, em forma de pergunta: quem seria mais livre, urn cirurgiao na sala operat6ria ou um mendigo no parque7 Normalmente, parte-se do pressuposto de que, segundo a coloca«ao social, haja maior liberdade no alto e menor para baixo, e, assim, a resposta devera ser autoluatica. Mas, tentem fazer urn experimento mental, isto e, tentem inverter as posigoes: colo car 0
cirurgiao no parque e 0 mendigo na sala operat6ria. 0 cirurgiao no parque morren' de fome ou de frio no primeiro inverno. Na sala operatoria, morre 0 paciente.
Se entendermos Iiberdade como ausencia de vinculo";: nao chegaremos a lugar nenhum. Se, no entanto, a pensarmos de outro modo, poderemos conc1uir alguma coisa. 0 que, aqui, parece ser importante e, de fato, algo completamente diverso, ou seja, a capacidade de perceber e construir alternativas decisorias. 0 cirurgiao na sala operat6ria sabe 0 que fazer, ~sshn como 0 sabe 0 mendigo no parque. Se trocarmos as posi«oes, nenhum dos dois sabe nada. Aqui, se propoe um conceito de Iiberdade, digamos assim, puramente cognitivo. Cognitiv~ porque nao se refere a ausencia de vinculos, .mas 11 capacidade de distinguir e perceber alternativas decisorias. Com muita freqiiencia, 0
que faIt a e exatamente isso. E devo dizer, nao apenas no caso da rela«ao, tipica das institui«oes totais, entre as prisoes e os excluidos, mas, muito mais em geral, por exemplo, no ambito politico.
Aqui, fa«o um pequeno parentesis. Freqiientemente pergunto, inclusive em sala de aula, onde esta a diferen«a entre a opiniao publica italiana e a de outros paises, por exemplo, Franga, Inglaterra, Alemanha. 0 problema naturalmente nasce do interesse pelos acontecimentos politicos que vimos sofrendo na Italia, de alguns anos para ca. A pergunta que sempre fa«o aos estudantes e: par que Berlusconi venceu as eleigoes de 1994 e de 20017 E, natu-
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ralmente, discute-se longamente sobre a capacidade de determinagao da opiniao publica par parte das televisoes. Aqui, temos urn problema semelhante aquele que mencionei de inicio. E inteiramente indemonstravel qualquer forma de determinagao. A meu ver, a questao interessante e bern outra. Se confrontarmos a opiniao publica italiana com a frances a, par exemplo, notaremos algumas diferen<;as. Ambos veem muita televisao, mas as franceses tan1-bern leem livros, leem jornais, VaG ao cinema, vao ao teatro. Os italianos nao. E, entao, 0 problema se coloca de uma maneira quase invertida. Nao e que a televisao detern1ine os eleitores, sua vontade. Digamos que as alternativas relacionadas ao saber, ao conhecimento, aquila que se sabe do mundo, na Its.lia, sao mediadas quase que apenas pela televisao. Assim, a liberdade construida por urn cidadao italiano depende, talvez demais, mas, de todo modo, seguramente, muito, daquilo que ve na televisao.
Entao, a tal ponto, se poderia perguntar: e verdadeiramente livre urn povo que nao aproveita todos os mass media que tern a disposigao? Naturalmente, tambem se po de discutir sabre isso. Em todo caso, e mais urn exemplo que nos levaria a pensar 0 conceito de liberdade e a ideia . 'de liberdade de urn outro modo, is to e, exatamente como capacidade de diferenciar e construir alternativas de comportan1ento. Nao ajuda muito - me dou conta -, lnas e apenas uma pequena variante, dig amos assim, no interior dos conceitos que temos a disposigao.
Mas, tenho a impressao de que, para entender fenomenos como a criminalidade e tambern, se voces preferirem, a criminaliza<;ao, seja mais util procurar entender algumas estruturas de base desta sociedade, tipo a diferenga entre inclusao e exclusao, ao inves de buscar rela<;6es entre fenomenos como esses e estruturas econolnicas ou de poder. Para nao falar de causas. Mesmo eliminando, au controlando, ou reprimindo relagoes de estratificagao, de dominio, de
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controle de tipo econornico au politico - meSIno elinlinandoas, nao eliminaremos, com isto, a diferenga entre inclusao e exclusao e tampouco aquilo que hoje e criminalidade. Afinal de contas, tern razao os juristas quando fazem notar que 0
desvio juridicamente relevante e urn produto das nonnas que 0 consideram como tal. Por outro lado, podemos dizer, com toda a tranqiiilidade, que nao podemos dispensar as normas. Entao, a este ponto, talvez possa ser mais litil discutir nao as relagoes de dominio - que, de todo modo, existern -, 111as, antes, as variantes, as oportunidades que temos a disposigao, opartunidades de decisao e intervengao, tanto politica quanto juridica, que, hOje, estao disponiveis, especialmente no plano organizacional.
Mas, sobretudo - e esta e verdadeiramente a ~ltima coisa - poderia ser de alguma ajuda urn certo distanciamento dos fenomenos, seja do ponto de vista ideol6gico, seja do ponto de vista moral. Que a exclusao seja, hoje, urn fenomeno de' barbarie 1110derna esta fora de discussao. Mas, nao ajuda, a quem deve decidir, ver nisto Ulna rela<;=ao de sujeigao ou, de todo modo, de dominio ideol6gico. 0 que talvez possa ajudar e, francamente, dificil de dizer. A sociologia, aqui,e, verdadeiramente, de pouquissima ajuda. Tudo que pode fazer e farnecer algumas pequenas descrigoes de alguns fenomenos e esperar que, de algum modo, sej am uteis.
E isso e tudo. Muito obrigadO.
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Debates
Vera MaJaguti Batista - Fac;:o um coment,hio sobre a intervenc;:ao do professor Giancarlo, considerando principalmente a refinada que ele da no conceito de exclusao. Decerto, temos uma saturac;:ao desse conceito - os excluidos, os incluidos - e eu estava contando para ele que um grande historiadar brasileiro, Joel Rufino dos Santos, tala que~PObreza e excluida dos direitos sociais, do acesso ao~ bens sociais~aS e i~!1!:ida pela mais-valia espetaculosista, quer dizer, tem um papel de inclusao no (espetaculo do terror~alei sobre 0 pocter de barbarizar e s€r barbarizado, quer dizer, as pessoas sao incluidas pela exclusao. Era s6 urn comentario.
Luis Henrique Campos - Bern, professora, Inais uma vez brilhante sua palestra, tanto quanta a do professor.
Eu queria entrar um pouco mais no tema da arquitetura do medo. A gente percebe que essa situac;:ao de inseguranc;:a acaba criando, na verdade, grandes condominios fechados, conglomerados de exclusao. S6 que a gente, na verdade, tem uma arquitetura um pouco diferente, a gente tem uma arquitetura, par exemplo, com um apartamento que vale um milhao de d6lares e, atras, uma favela. Entao, queria que a senhora falasse um pouquinho dessa situac;:ao da arquitetura do medo, criada especificamente no Rio de Janeiro.
Vera MaJaguti Batista - O. que chamo de arquitetura do msdo e a maneira como as intervent;6es urbanas vao dar conta da conflitividade.
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Globaliza<;:ao, Sistema Penal e Amea<;:as ao Estado Democnitico de DiIeito
o Rio de Janeiro e uma cidade especial, unica, porque e uma cidade misturada. Em Sao Paulo, par exemplo, e diferente. Em Sao Paulo, a periferia fica longe. 0 Rio de Janeiro eo caldeirao, 0 caDs por si. Entao, com.o aumento da ll1is8-rabilizagao, menos oportunidade, menos trabalho, a arquitetura do medo e uma maneira pela qual os discursos do medo produzem efeitos urbanos.
A arquitetur.a do medo vai desde a sociabilidade no shopping, que faz com que voce nao ande mais na calgada, ate 0 modelo de condominios e ate, principalmente, 0
modelo de ocupagao das favelas, que e muito parecido com a ocupagao das tropas israelenses na Palestina ou do exercito norte-americano no Iraque. As cenas sao muito parecidas: a Palestina com a favela ...
Uma das coisas, pensando na exposigao do Raul Zaffaroni, uma coisa muito perigosa que est§. acontecendo no Brasil agora, a partir da intervengao das Forgas Armadas em Minas Gerais - 0 Piaui depois pediu as Forgas Armadas -, e que£stamos assistindo, na nossa falida democracia, tropas do exereito invadil1do cidades, isso acontecendo como se fosse uma coisa meio normai\Acho que a contrapartida disso e a ocupagao militarizadada periferia,
'·a periferia do capital. Par mais curiosa que seja, sao as' Forgas Armadas que mais resistem a cumprir esse papel.
Daniela Ribeiro Mendes - Born dia. Gostaria de parabenizar as expositores e fazer uma pergunta para 0 professor Giancarlo. Ouvimos ontem a conferencia do professor Raul Zaffaroni e ele nos alertou para urn perigo muito grande, na visao dele, de nos importarmos uma teoria germanica para explicar uma realidade latino-americana.
E agente conhece algumas tentativas de fazer uma importagao em massa, de pensar a realidade brasileira, em cima de uma teoria, como a do professor Niklas Luhmann. Temos 0 trabalho do professor Marcelo Neves, que tratou
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Debates
entao das periferias da rnodernidade e introduzill essa diferenga, de periferias da modernidade. Temos, por exemplo, dentro de outro marco teorico, os trabalhos do professor Boaventura de Souza Santos, na decada de 70, nas favelas do Rio. Temos as trabalhos do professor Raffaele De Giorgi, que trata da questao meridional na Italia - e la 0 SuI e a nosso Nordeste - e ai teremos tambem uma periferia da modernidade.
Eu queria saber qual e a sua avaliagao, qual e a sua definigao dessa possibilidade, e como nos trataremos, par exemplo, essa realidade que nos oprime, que nos reprime e nos faz mal, aqui na cidade do Rio de Janeiro, com a questao das favelas, par exemplo.
Giancarlo Corsi - E. vero che aleuni di questi concetti sono di Luhmann e quindi della teoria tedesca, pera chi ha iniziato a descrivere que I rapporto tra inclusione ed esclusione sono stati gli statunitensi e in particolare e state Parsons, can. un articolo che, per chi si oecupa di questi temi dell'esciusione sociale, e diventato un classico, credo si intitoli Full Citizenship for the Negro American, dell'inizio degli anni '60. Nella ricerca americana di quell'epoca si trova, per quello che ne so almena, per la prima volta questa espressione loose coupling in ambito sociologico. Poi, naturalmente, un altro nome che viene in lnente e Gotfman, sugli ospedali, Ie prigioni, i manicomi: Asylums, Stigma ecc. Sono libri che si devono assolutarnente leggere, secondo il mio modo di vedere.
In generale, comunque, io direi che una teo ria - una teoria sociologic a - funziona soltanto se e universalistic a, cioe se si puo usarla per descrivere qualunque fenomeno. Se non ci si riesee, c'e un problema. Dopodiche che sia tedesca, americana a francese, fa poca differenza.
Naturalmente, si puo dire che dietro qualunque teoria ci sana comunque rapporti politici, come ha sottolineato Zaffaroni ieri a proposito delle teorie di diritto penaie, rna
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Globalizagao, Sistema Penal e Ameagas ao Estado Democratico de Direito
siamo di nuovo di fronte a una tautologia: ci sono seinpre relazioni pOlitiche dietro qualunque cos a si· dica. Parsons soprattutto ebbe questo problema, tanto e vero che, dopo un entusiaSlTIO iniziale, venne rifiutato, perche era ritenuto espressione di un conservatorisnlo dei piu reazionari. Chi dice questa a chi 10 diceva - rna ce 11e sana ancora - non ha mai letto Parsons. A mio parere, se si vuole usare una teoria sociologic a, bisogna disinteressarsi del tutto dell'ideologia che ci sta dietro, perche e semplicemente noioso and are a scoprirla. Noioso perche tanto la si trova di sicuro ... "Entao" ...
E verdade que alguns desses conceitos sao de Luhmann e, portanto, da teoria ale rna, mas quem come"ou a descrever a rela"ao entre inclusao e exclusao foram os norte-americanos, mais especialmente Parsons, com urn artigo que, para quem se ocupa destes temas da exclusao social, se tornou urn classico - creio que se intitula Full
Citizenship for the Negro American -, do inicio dos anos 60. Na pesquisa americana daquela epoca, se encontra, pelo menDs ao que sei, pela primeira vez, esta expressao loose coupling, em ambito sociol6gico. Depois, naturalmente, urn outro nome que vern. em mente e Goffman, sobre os hospitais, as prisoes, os manicomios: Asylums, Stigma, etc. Sao Iivros que nao podem deixar de ser lidos, segundo meu modo de ver.
Em geral, de to do modo, eu diria que uma teoria - uma teoria sociologic a - s6 funciona se for universalista, isto e, se puder ser utilizada para descrever qualquer fenomeno. Se nao consegue, e urn problema. Ai, se e alema, americana ou francesa, faz pouca diferen"a.
Naturalmente, pode-se dizer que, por tras de toda teoria, existem, de todo modo, rela"oes politicas, como ressaltou Zaffaroni ontem a propos ito das teorias do direito penal, mas est amos de novo diante de uma tautologia:
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Debates
sempre existem rela"oes politic as por tras de qualquer coisa que se diga. Parsons, sobretudo, teve este problema, tanto e verdade que, apos urn entusiasmo inicial, foi rejeitado, porque considerado expressao de um conservadorislno dos mais reacionarios. Quem diz isto au quein dizia -mas, ainda ha quem diga - jamais leu Parsons. Na minha opiniao, se se quiser usar uma teoria sociologic a, e preciso se desinteressar totalmente da ideologia que esta por tras dela, pois e simplesmente enfadonho procurar descobri-Ia. Enfadonho exatamente porque e certo encontra-Ia ... Entao ...
Taissa - Sob a configura"ao dos meios de comunica"ao nas atuais formag6es sociais, 0 que as excluidos VeIn fazendo e/ou podem fazer, tanto na America Latina quanto na Europa, como forma de resistencia?
Giancarlo Corsi - Non so se ho capito bene la domanda. Comunque, non saprei. .. Se gli esclusi sono davvero esclusi, non e che abbiano molti strumenti. C'e questo piccolo particolare ... Se ci sono problemi politici, ad esempio anche soltanto potere andare a votare, oppure avere dei rappresentanti, se non c'e capitale 0 comunque denaro, ecc., diventa piuttosto difficile. Per cui non saprei dire se ci possa parlare di resistenza nel caso dell'esclusione sociale oggi.
Nao sei se entendi bern a pergunta. De todo modo, nao saberia ... Se os excluidos sao verdadeiramente excluidos, nao e que tenhamos muitos instrumentos. Ha este pequeno detalhe ... Se existem problemas politicos, por exemplo, mesmo apenas poder ir votar, au ter representantes, se nao hit capital ou de todo modo dinheiro, etc., fica bastante dificil. Pelo que, nao saberia dizer se se pode falar de resistencia, hoje, no caso da exclusao social.
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Globaliza98,O, Sistema Penal e Ainea9as ao Estado Democnitico de Direito
Taissa - No Brasil, temos exemplos de ra.dios comunitarias atuando em comunidades. Entao, eu queria saber se as radios comunitarias seriam uma forma de resistencia da populagao excluida, a que 0 senhor se referiu, ese, na Europa, especificamente na Italia, existe alguma coisa parecida?
Giancarlo Corsi - Dunque ... Se ci sia qualcosa di simile in ltalia 0 in Europa, francamente, non 10 so, la democrazia partecipativa va di moda anche da noi, perC> bisogna tener presente una cosa: che fenomeni di esclusione di questa dimensione non ci sana in Europa, cioe fenorneni come la "favela" in Europa ancora non ci sana, quantomeno nell'Europa occidentale. Non so quanto al resto dell'Europa, rna in Europa occidentale almena non credo che ci siano. Per cui e difficile giudicare, rna che si possa intervenire con qualche successo, perche no?
Per quel poco che so degli esperimenti 0 della esperienza brasiliana, e difficile trovare, conle dire, una ricetta che si possa replicare. Mi ricordo una conversazione can dei colleghi di Sao Paulo su alcuni interventi, anche di edilizia, in "favelas" e sernbra che i risultati siano molto contraddittori, nel senso che di per S8 l'esclusione non e scom-
"parsa; si 8, come dire, riproposta BU un'altra forma - a in un' altro edificio. In generale non sono tanto pessimista, perC> temo che sia pili facile passare dall'inclusione all'esclusione che non tornare in dietro 0 venire di qua. Per quanto tragico e amorale che possa essere.
Entao ... Se ha alguma coisa semelhantena Its.lia ou na Europa, francamente nao sei; a democracia participativa esta na moda tambem entre nos, mas e preciso ter presente uma coisa: fenemenos de exclusao desta dimensao nao existem na Europa, isto 8, fenemenos como a favela ainda nao existem na Europa, pelo menos na Europa ocidental. Nao sei quanto ao resto da Europa, mas, pelo menos, na
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Debates
Europa ocidental, nao creio que existam. Pelo que, e diflcil . julgar. mas que se possa intervir com algulll sucesso, por
que nao? Pelo poueo que sei dos experimentos ou da experi€m
cia brasileira, e dificH encontrar, como dizer, uma receita que se possa reproduzir. Lembro-me de uma conversa com colegas de Sao Paulo sobre algumas intervengoes, inclusive de urbanizagao, em favelas e parece que os resultados foram muito contraditorios, no sentido d~ que, em si, a exclusao nao desapareceu; foi, conla dizer, recolocada de outra forma - au em ulna outra construgao. Em geral, nao sou tao pessimista, mas temo que seja mais facil passar da inclusao para a exclusao do que voltar atras ou vir daqui. Por quanto tragico e amoral que possa ser.
Alvaro Pires - Giancarlo, gostei dernais da apresentagao que voce fez. Fiquei me perguntando como 0 conceito de inclusao e exclusao tern caracteristicas diferentes na face interna e na face externa. Por exemplo, na face externa, e mais integrado, nao e? E 0 fator de integragao e urn fator mais de ordem econ6mica, e uma questao do trabalho ou do emprego. Nao foi assim que voce apresentou?
Se este e a caso, e claro que isto nao resolve to do a problema e que, a nivel organizacional, vai reaparecer a dialetica au a diferenga entre exclusao e inclusao. Mas, isso naa daria uma certa razao aos·operadores que pensam que o problema principal estaria em aumentar as oportunidades em nivel de emprego e de situagao estavel? Porque, se por urn lade da inclusao, esse e 0 fator que desencadeia toda uma serie de outras farm as , ou que e possivel de desencadear se nao houver mecanismos de neutralizagao parcial nas relagoes determinadas por urn grupo, se nao daria uma certa pista de intervengaa, tanto ao nivel de uma politica mais ampla, macraecon6mica, quanta ao nivel das
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Globalizagao, Sistema Penal e Ameagas ao Estado Democratico de Direito
intervengoes organizacionais mais individualizadas, a essa ideia de querer se buscar uma regra por ai.
Giancarlo Corsi - E difficile da dire, pero una cosa vorrei sottolineare e cioa che qui non si tratta soltanto di questioni economiche. E del tutto comprensibile che l'aspetto economico sia quello che pili salta agli occhi. queUo pili evidente. Ma l'esclusione sociale e una esclusione da tutti i sottosistemi, da tutti i settori sociali, non solo daU'economia, e l'inclusione a una inclusione dappertutto, non solo nell'economia.
Ci sono alcuni sociologi che, al suo tempo, avevano sottolineato questo aspetto. Anche Pierre Bourdieu pili volte si a chiesto se non sia l'habitus, ad esempio l'educazione e la capacita di comunicare, famigliare 0 educativa, che caratterizza la differenza sociale. Non c'a un fattore primario, comunque. Anche neUe ricerche che abbiamo fatto suUa cosiddetta questione meridionale, quindi suUe strane forme di inclusione ed esclusione nel sud deU'Italia, anche Ii si vede chiaramente che non si tratta di un solo fattore 0 deUa preminenza deU'economia. Puo essere di tutto. Ad esempio, a importante la capacita di gestire adeguatamente la propria distanza daUe· persone che contano, daUe persone importanti: i gradi' di separazione, direbbero gli americani.
C'e un esempio curioso, un aspetto che e tipico, in questa caso, di alcune periferie come queUe italiane, dove si incrociano un po' tutti questi riferim.enti: economico, politico, giuridico, personale, fanligliar~, ecc., per cui chi occupa una posizione in vista, ad esenlpio chi e un professore universitario - esempio non casu ale - puo diventare punta di riferimento per richieste, esigenze, domande, che non hanna nulla che vedere can l'universita. Ci sono persino persone - non parenti, rna semplici conoscenti - che chiedono ad un professore - che a sociologo e giurista! - il nome d-i un buon medico.
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Debates
Queste sana forme di integrazione piuttosto forti, COffi
pletamente diverse di queUe di una "favela" 0 queUe di altre zone del mondo. E comunque sfruttano risorse che non sana affatto solo economiche. Concentrarsi solo neU'aspetto economico puo essere rischioso, perche l'esclusione non a solo queUo. Perche una persona povera 0
semplicemente disoccupata non a ancora per questo un escluso. Escluso a chi a proprio escluso. Magari a qualcuno che lavina molto per sopravVivere ...
E dificil dizer, mas uma coisa gostaria de ressaltar, isto e, que, aqui, nao se trata apenas de quest6es economicas:,
'E bastante compreensivel que 0 aspecto economico sejao que mais salta aos olhos, 0 mais evidente. Mas, a exclusao social e uma exclusao de todos os subsistemas, de todos os setores sociais, nao apenas da ecanomia, e a inclusao e uma inclusao por toda parte, nao apenas na economia.
Ha alguns sociologos que, a seu tempo, ressaltaram este aspecto. 0 proprio Pierre Bourdieu, muitas vezes, se perguntou se nao seriam os habitos, por exemplo, a educagao e a capacidade de se comunicar, familiar ou educativa, que caracterizaria a diferenga social. De todo modo, nao ha urn fator primario. Inclusive nas 'pesquisas que fizemos sobre a dita questao meridional, portanto sobre as estranhas formas de inclusao e exclusao no suI da Italia, mesmo ali, se VB claramente que nao se trata de urn so fator ou da proerp.inencia da econoluia. Pade ser qualquer 'coisa. Par exemplo, e importante a capacidadede administrar adequadamente a propria distfmcia das pessoas que contam, as pessoas importantes: os graus de separagao, diriam os aluericanos.
He. urn exemplo curiosa, urn aspecto que e tipico, neste caso, de algumas periferias como a italiana, onde urn pouco se cruzam tadas essas referencias: ecan6micas, politicas, juridicas, pessoais, familiares, etc., pelo que, quem
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ocupa uma posu;:ao de visibilidade, por exemplo, quem e urn professor universitario - exemplo nao casual - po de se tarnar ponto de referencia para reivindicagoes, exigencias, demandas, que nada tem a ver com a universidade. Ha ate nlesmo pessoas - nao que sejam pa"rentes, mas simples conhecidos - que pedem a um professor - que e socia logo e jurista! - a nome de urn born medico.
Estas sao faImas de integIa<;:aO bastante fortes, con1.pletamente divers as daquelas de uma favela ou daquelas de outras regioes do mundo. E, de todo modo, utilizam f8CUISOS que, .efetivanlente, nao sao so economicos. Concentrar-se apenas no aspecto economico po de ser arriscado, porque a exclusao nao e so ista. Parque uma pessoa pobre ou simplesmente desempregada nao e ainda, por isso, um excluido. Excluido e quem e verdadeiramente excluido. Talvez possa ser alguem que trabalha muito para sabreviver ...
Simone Barros Correa de Menezes - Professora Vera Malaguti, bom dia. Eu gostaria que a senhora falasse um pouco sobre algumas questoes sobre os pres os, sobre seus
'·mhos, sobre a vioIencia. Como opera a familia desse pres'; na reinsergao social, como atof tarnbem social? A responsabilidade dessa fan1.11ia. Como esses outras atores sociais, n1.aeS, esposas, podem fazer esse caminha de recondugao ao convivio social? Fa10 isso porque sou casada com urn cidadao preso ha vinte anos. E gostaria que a senhora falasse um pouco sobre isso. Acho que eu tenho urn papel de grande responsabilidade nessa recondu<;:ao, mas ninguem fala sobre isso.
Vera Malaguti Batista - Born, a unrca coisa que acho duvidosa e a reinserc;ao, porque geralmente quem "danc;ou" , ou quem ja esta preso, ja estava fora, quer dizer, a
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Debates
entrada no sistema penitenciario ja e uma demonstragao de vulnerabilidade.
Na nossa maneira 1e pensar todas as ilusoes - ha un1 livro sobre esse tema -, as ilus6es "re", "ressocializagao" .. sao ilus6es. Vma das coisas mais lind as des sa cena rnacabra, que sao as matins, sao as mulheres. Nao seL .. acho que a familia ja desapareceu. 0 Brizola tem uma expressao, quando ·fala do neoliberalismo economicamente. Fala assim: "13 urn incendio na floresta". Como e urn incendio na floresta? Tudo esta queimando; as anirnais vao saindo, a femea larga 0 filhate. Mas, as maes e as mulheres dos presos ... A cada rebeliao, voce ve aquelas mulheres do lado de fora, enfrentando a policia, enfrentando esse olhar odiento, segregador.
As pessoas acham otimo, C0l110 certas declaragoes da govern adora, do marido dela, do secretario de administragao penitenciaria, de que "nao, foi otinlo, nos salvan10s vidas, a policia nao entrou, entao esta tudo certa; eles se barbarizaram entre si" ... Mas, as mulheres estao ali do lade de fora, estao enfrentando. Acho que essa relac;:ao amorQsa, sem nenhum~Gondigao, "nao import a a que voce fez", essa trincheira de resistencia, ali, no limite, excluido do excluido do excluido, na periferia, acho que is so e vital. Acho que isso tern uma forga politica que nao sei se elas - estou dizendo voces, esse coletivo - tem ideia.
Acho que e um coletivo importantissimo de ser trabaIhado como resistencia a barbarie. E voce e uma grande gU8rreira ness9. historia. Eu nao te conhecia ainda, 111aS acho que voce tem um papel fundamental na resistencia a barbarie.
Pergunta sem identificac;:ao do autor - Diante do aurnento do nurnero de imigrantes na Its.1ia e sua crescente presenga nos carceres, nao estaria havendo uma sem8-
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Globaliza9ao, Sistema Penal e Ameagas ao Estado Democnitico de Direito
Ihan<;:a com a criminalizagao dos excluidos que temos no Brasil?
GiancarJo Corsi - Su questi temi probabilmente ne sanno molto di pili Alessandro e Marco Perduca, che parleranno dopo di me. Per quello che posso capire io, ci sono delle differenze sostanziali comunque, cioe sobborghi 0
zone periferiche ci sono sempre state in Italia, rna una cos a eon1e una "favela" aneora non esiste.
Ouello che succede adesso 0 che succedera con I'immigrazione fortis sima che abbiamo non saprei prevederlo, anche perche, per noi, e un fenomeno relativamente nuovo. I tedeschi e gli svizzeri hanno gia avuto molt a esperienza con I'immigrazione, rna gli italiani no. Gli italiani hanna sempre avuto l'esperienza contraria,· cioe sana sempre- emigrati, come voi in Brasile a in Argentina a in Uruguay sapete bene. Per cui e un po' nuovo i1 problema e anche Ie reazioni sana, dicialllo, poco civili in generale, per mancanza di abitudine da un lata, per una certa rozzezza, una certa poverta politica dall' altro.
Sobre estes temas provavelmente Alessandro e Marco Perduca, que falaraodepois de mim, sabem muito mais. Pelo que eu posso entender, ha, de todo modo, diferengas substanciais, isto 13, suburbios au zonas perifericas sempre existiram na ItaJia, mas alga como uma favela ainda nao existe.
o que acontece agora, au 0 que acontecera com a fortissima imigragao que temos, eu nao saberia prever, ate porque, para nos, e U1TI fenGmeno relativamente novo. Os alemaes e os suigos ja tiveram muitas experiencias com a imigragao, mas os italianos naa. Os italianos sempre tiveram a experiencia oposta, au seja, sempre foram emigrantes, como voces, no Brasil, ou na Argentina, ou no Uruguai, bern sabem. Pelo que, 0 problema e urn tanto novo e inclusive as reag6es sao, em g~ral, digamos. pouco civis, par
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Debates
falta de habito, de urn lado, e, de outro, por uma certa rudeza, uma certa pobreza politic".
Pergunta sem identificagao do autor - Oueria que a professora falasse urn pouco mais sobre a criminalidade e os excluidos que acabam se dedicando ao trMico de drogas.
Vera Malaguti Batista - Criminalizagao, ao inves de falar de criminalidade. Porque, quem e criminaliz~
Eu estudei a questao das drog"s no meu mestrado. Voce pega urn menino classe media, morador da zona suI, com uma quantidade de droga maior do que urn menin'O morador de periferia. Urn e visto com urn olh"r medico e outro e vista com urn olhar criminalizante. Issa nao 13 a cri=minaUdade, mas a Crin1inalizagao. Quem sao as inimigos comodos para determinado modelo economico, cultural, social? Para quem 0 sistema volta as suas baterias?
A questao da inclusao e exclusao e uma relagao dialetica. Lembro quando comecei a trabalhar com planejamento urbano. Tinba a hist6ria com os "carentes", aquela expressao. Uma vez, fui a urn selninario·e tinha urn costureiro da Baixada Fluminense, que disse: "me chamem de pobre. Inas nao me chamen1 de carente; eu naD sou carente". E, agora, na Rocinha, quando vieram as peru as do voluntariado fazer 0 dia do carinho, 0 povo da Rocinba disse: "nos nao somas carentes de carinho nao; a gente tern muito carinho aqui; 0 que a gente quer e escola, saneamento e tal".
Se voce olhar, por exemplo, 0 §'omercio varejista, os pequenos empresarios de droga que moram na periferia -eu me recuso a usar a expressao "traficant~ -, as comerciantes perifericos, varejistas, eles ~ incluidos dess-,' forma. Eles nao sao excluidos. Ow dizer, na atual conjuntura, na -formagao economica, social e cultural, a papel deles e 0 papel de traficante. Essa maneira de olhar. Entao,
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-----, __ .... ~_~_~':_~e:~clusa~. ~nclus~Ele se inclui no capitalismo de \)
consumo;l'n:r cldaaania do consumo, atraves do pe~ql,J.eno ,_ ".... . . .---_..-1 comerclO vareJlsta de ,;!r()g" .. j---- . - . ---
-Naoseoevefiilar "ah!-os excluidos", Se nao, a gente fica com urn olhar vitimizante, quando a juventude popular, essa garotada que esta ai, ela e a forqa. Nao se po de neutraliza-la. Sempre tenho 0 cuidado de nao vitirnizar, quer dizer, de naG ter urn olhar vitirnizante, que e a outro lado do olhar criminalizante. Porque, eu reconhego, esses meninos
-~
tern_que_estar enopoder, tern que seros PI01"gon~ nQg§3~1.~!1.~~E?1~ria~·porqu~ e -;'j~:;entude ~d-~--~~ pai~·q~e lnuda tudo, que t~-;n capacidade de rnudar.
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MESA 2 A politica proibicionista e 0
agigantamento do sistema penal nas formagoes sociais do capitalisrno pos
industrial e globalizado
Marco Perduca International Antiprohibitionist League - EUA/Italia
Salo de Carvalho Pontificia Universidade Cat6lica do Rio Grande do SuI e Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais - Brasil
Presidente da Mesa: Maria Lucia Karam Instituto Brasileiro de Ciencias Criminais/ Coordenaqao Rio
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Mesa 2 A politica proibicionista e 0 agigantamento do sistema penal nas formagoes sociais do
capitalismo p6s-industrial e globalizado
Marco Perduca
I'm afraid I don't speak Portuguese; so m~ presentation will be in English.
I'm Italian. The reason why I'm speaking in English is because I work in the United States. Before starting my presentation I would like to thank the organizers in particular and, of course, Maria Lucia - as we say in Italian -Maria Lucia in particular, for having insisted to include, I VIlould say, the issue of prohibition and antiprohibition in a seminary that deals VIlith globalization and the international rule of law and "Estado de direito democratico".
And I think the inclusion - and I say this because one of the questions that was asked before about how media can, in fact, manipulate public opinion or determine how public opinion is shaped - the inclusion of prohibition in a seminary like this says a lot about the people that are organizing this seminary. Because we think in many seminaries, workshops, conferences and meetings when we talk about criminal law, we talk about international affairs, VIle talk about economic, social and cultural rights and the issue of prohibition is always systematically excluded.
And I have to say that also in your leaflet here, it's not included. So, I don't know if it was excluded, but maybe Professor Corsi might help us in this, but here you don't mention prohibition in your presentation, which is fine, I
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Marco Perduca
mean, it was an editorial special legal choice, but again, you don't mention prohibition as a problem of today's world. But thanks to the political amendment of Maria Lucia, we have prohibition. So, I think we can give you a sort of ... , I think, a "B-", as we use in the United States, as a grade for the preparation of the leaflet ...
So, my speciality would be prohibition on drugs and with speciality I mean my work is trying to convince people that write law - laws I mean - to try and change those laws that deal in particular with drugs. Because I think that we can agree that those laws don't work.
I believe that, at the same time, speaking about this particular type of prohibition we cannot forget that there are other types of prohibition in the world. And thus to make a short list of how issues - and with issues we can say behaviors, we can say products - are regulated in the world through prohibition, we could start with abortion, for instance; we could speak about pornography; we could speak about scientific research on stem cells; we could speak about gambling; but we could also speak about sexual behavior or sexual preference. So, all issues that, regardless of your political, religious or geographical back,ground, do not necessarily imply a harm to someone else .. But all issues that are regulated - I would say in large parts of the world - through penal law, criminal codes, or that are excluded from the various possibilities that an individual has in his specific country.
This is something that has always happened. But, in particular, as it was deep emphasized by all the speakers that have spoken here till now, it's more evident today in a globalized world where there's more information drifting.
What is not as evident, unfortunately, is th at with all this information that is circulating in the world there's no movement to resist this prohibition; all these prohibitions put together.
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A politic a proibicionista e a agigantamento do sistema penal nas fonnayoes sociais do capitalismo pas-industrial e globalizado
There is, maybe, something that I don't know if we can call a movelnent, but for sure is a group of organizations that sometimes work together, sometimes fight against each other. We have ... Luis Paulo is one of them. It's the one that deals with the prohibition on drugs, because prohibition on drugs is the best organized, more systematic and better financed form of prohibition in the world.
When we speak about prohibition on drugs, those that do not agree with prohibition on drugs always call this set of policies a war on drugs. And it's true, because it is real' ly a war, which is against drugs, but we have to understand what we mean with drugs. It can be cannabis and its derivatives; it can be coca leaf and cocaine; it can be poppy and heroine, at the same time, all prohibited in the same way. But it's also a war against those that use drugs. And I say use rather than abuse, because I believe also that the concept of abuse is already a product of the prohibition.
Because if I take ... well, maybe an example could be that I could abuse pasta, by eating 3 kg a day, which is possible, every day. And this, in the long term, might have an impact on my health. Or I can drink three bottles of whisky. I mean, as in Italia, I could drink three bottles of whisky in the streets without any problem. So I can abuse two substances, one of which is not a drug - pasta - one that is a sort of drug - whisky - without problem, that is, no problem for the State. But if I smoke two "joints", that's a pro
blem for the State. And I say two "joints", because in S01118 countries in
Europe - and I'm thinking about the most social democratic country that we have, which is Sweden - if you smoke two "joints", you're considered an addict to marijuana.
So, it's a war on drugs and drug users at the same
time. And usually the commander-in-chief of this army that
fights the war on drugs is the United States of America.
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Marco Perduca
And this is true, also for all the reasons that we know and that have already been presented here by speakers before. But, at the same time, it's not the whole story.
In fact, the first attempt to prohibit drugs in a coordinated manner at the international level, in a coordinated manner all over the world, goes back to 1912, when, again, for not necessarily, I would say, health related reasons, a convention to ban the use of opium was adopted. It was seven or eight kingdoms and a couple of republics that got together in The Hague and drafted the document. And, at that time in the history of the world, the political and economical weight of the US was, I wouldn't say, as weighting as the one of another couple of empires -. the British and the French -, but the power distribution in the world was of a different nature than the One that it is today. Also, the Austro-Hungarian Empire was quite big at that time.
I'm not saying this because I want to condone what is happening in the United States and outside of the United States because of the United States. I don't want to condone wllat happens in the US with the drug use, or the war on drugs, or what is driven by the US. Because this is what happens every time we have a debate on the war on drugs. There is one enemy who is George Bush - and I think there are a lot of reasons to identify George Bush and his people as the main commander-in-chief of the war on drugs - but this is not the only problem.
The problem is that after this convention on opium in 1912, the world decided to adopt other conventions to systematize even more and be more specific on how to prohibit the presence of drugs and other products in the world .
The first Single Convention on Narcotic and Psychotropic Substances was adopted in 1961.
If we think about the world as it was in 1961 ... We have a few elements that we can sum up to try to depict the picture. '61 is the first year of the first independent
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A polltica proibicionista e 0 agigantamento do sistema penal nas formagoes sociais do capitalismo p6s~industrial e globalizado
State in Africa. But, it's also the Bay of Pigs in Cuba. It's also Gagarin in outer space. It's also the first detonation of nuclear bomb by the Soviet Union. And it's also the year when the Marshall Plan ended in Europe. So, you have a world in which the U.S. is sort of withdrawing from Europe, but eventually trying to take over Cuba; you have France and England withdrawing from Africa; and you have people going to space. So, a lot of things happening and a lot of confrontations also happening. Despite of these confrontations - political also military confrontations -, the members of the United Nations decided to once again sit around the table and draft a document to say ."drugs are bad, YON should not use them; let's prohibit them all together".
That document today has been ratified by 180 countries. The UN has 191 members. So, by almost all the countries in the world.
And, ever since '61, we cannot grow Inarijuana, we cannot grow coca, we cannot grow poppy, if it's not for scientific and/or medical reasons. And, of course, we cannot use heroine, marijuana, and cocaine, and crack cocaine and a long list of other substances.
Ten years after the adoption of the First Convention, while the world was working on a second Convention, in '71, the US had Richard Nixon as President and they, in fact, it was they who coined the expression war on drugs and launched a very organized war on drugs, targeting a few parts of the world.
Then the world community, in 1988, adopted a third Convention on drugs, possibly the most prohibitionist of the whole group, when still the Soviet Union was in place. So, the United States and the Soviet Union were fighting the war on drugs all over the world. When it came to drugs they were all in agreement every time. At least, this is what we are given as the official propaganda.
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Marco Perduca
I think what is the unofficial story, if you want, is that the way in which social control, but also economic control and political control, has been established through prohibition on drugs is a clear example of how prohibition has indeed a different kind of agenda than the one that has always presented as to be the real reason why it's promoted.
In fact, it's difficult to find someone that is in fact a prohibitionist who agrees with this way of regulating that says: "yes, I am a prohibitionist; look at me". Usually prohibitionists are defined by those that do not agree with them that say "you are a prohibitionist", or "this is a prohibitionist behavior". And, by saying this, they do not necessarily become or want to be anti-prohibitionists. But, in a way, they are exposing what the prohibition can mean when it comes to specific issues.
Ami the reason why prohibitionists don't want to call themselves prohibitionists is because they believe that they have the right idea, the right measure and the right inspiration - sometimes also divine inspiration - to try to control a specific problem. And they always say that what they say is said in "good faith". And you'll find this - I invite you to read the preambles ofthe three UN Conventions -is clearly described as a "humanitarian endeavor" to "save mankind from the evil of drugs". These are words taken from the UN documents.
So, if this is supposed to be a "humanitarian endeavor" in good faith, why after 40 years - 43 years - of this type of policies we have increasing production, increasing consunlption, increasing traffic, increasing number of criminal organizations, terrorist organizations, HIVjAIDS, and I could go on with a long list. Why nobody wants to change these failing policies?
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This is also a question that I would ask you, and I think it's also linked to the fact that you didn't include prohibition in your leaflet.
And it's because we never think about these problems _ drugs, but also all the others that I tried to list before; and then we can take sexual preference and orientation as another good example, or scientific research - in terms of prohibition and non prohibition. And sexual preference or orientation is prohibited .in almost all the countries in the world, as a legal union between two individuals.
And the reason why, again, that nobody talks about these things is because the biggest prohibition of all - and maybe this is not well-funded but is systematic and goes back through time - is the prohibition on the sharing of
. ideas, and knowledge, and viewpoints. So, it's good that at least we tried to raise the issue of the lack of prohibition within the academic or university debate today. So that next time, when you organize another seminary, you'll try to include this more systematically, and maybe the outcome of the seminary might be different and then your life or your reactiol1_ to some policies of the governn1.ent or the church could be different.
I could go on for three days, but I think we don't have too much time to debate all these issues, so I'll try to sum it up. The message, I think - and in part Professor Corsi was addressing it on a completely different issue before -, is that when it comes to prohibition the problem is not the phenomenon that is regulated by those policies; it's prohibition itself.
And we have seen that every time prohibition has been addressed with reforms - for instance in Italy on the case of abortion -, the situation has changed radically. And, paradoxally, it has gone in the direction of the "humanitarian endeavor':, but not in the direction of the policies implemented to achieve that "humanitarian endeavor"
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which was carried out. The result of getting rid of prohibition has been the result that prohibitionists would have hoped for, when they in fact implemented for the first time prohibition on that specific issue.
The general number of abortions in Italy dropped and of course the number of women that died because of abortion neared to zero in a few years. Of course, this is not only a matter of applying antiprohibitionist measures; you have a lot of other measures to implement at the same time. But, the key was not to make ending pregnancy a crime.
So, the movement - and I heard the words fight or struggle a couple of times between this morning and yesterday and I like that in an university environment.- the movement that could once for sure work towards putting an end to prohibition is a revolutionary movement.
Because I believe that antiprohibition or antiprohibitionism - in this case, should be written all as one word -is a sort of political agenda to try to rule and govern; so it's a governance set of measures rather than opposing the lack of laws, that was at the center of the previous panel, to hyper regulated societies. So, it's a way of regulating things in a more effective way.
To cut a long story short, because I have been speaking for a long time, the idea at this point, provided that we don't have, unfortunately, this anti prohibitionist movement all over the world, is willing to make prohibitions become an issue for debate, but also an issue for a local and regional and international political action. We have to make it happen as soon as possible.
I believe that after 40 years we should, in fact - at least those that have been working on this and that might find in some of the jurists and lawyers and experts present here today some good allies ,--, revert the reasoning and make prohibition a crinle rather than a solution to crinle.
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A politic<;\. proibicionista e 0 agigantamento do sistema penal nas forma90es sociais do capitalismo p6s·industrial e globalizado
There are a lot of legal arguments already developed. We could argue, for instance, that prohibition on knowledge goes against other internationally recognized human rights standards of the international covenants on civil and political rights. We could argue that the prohibition on growing coca leaves in Peru and Bolivia goes against the economic and social tradition of indigenous peoples that live on the Andes. We could also say - and I was glad to hear last night speeches - that the provisions in the three UN Conventions. in many countries - and I believe also here in Brazil-, go against the Constitution, because they do not enforce the principle of proportionality when it comes to penalties.
And then there are other documents at the international level on indigenous rights, on the use of police and all these things, that I believe if all these arguments could be put together we could file a brief within the International Court of Justice to seek the advisory opinion .of the Court and have them pronounce the settled sentence on the criminal aspects of prohibition and, I would also say - and with this I will conclude -, on the power that prohibition has to induce criminal activities, directly or indirectly.
So, first assignment for next year is to include prohibition in the next seminary.
Second: start to think about the possibilities of making prohibition a crime.
Third - and this is the most important - visit the website of my organization, which is www.antiprohibitionist.org, and sign an international petition to call for the United Nations an assembly to reform the UN conventions and convene a conference to address worldly the problem at the world level.
I think this is a good program for the next semester and I thank you very much for your patience.
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Marco Perduca
Lamerito nao falar partugues; assim, minha apresentagao sera em ingles.
Sou italiano. A razao par que falo em ingles deve-se ao fato de eu trabalhar nos Estados Unidos. Antes de iniciar minha apresentac;,::ao, gostaria de agradecer aos organizadares e, claro, especialmente a Maria Lucia - eOlTIO dizemas em Italiano -, em particular it Maria Lucia, por ter insistido em ineluir, eu diria, 0 tema da proibigao e da antiproibic;ao em urn seminario que lida con1 a globalizagao e com 0
Estado de direito democratico. Penso que a inclusaa - fala ista em raz8.o de un1.a das
perguntas feitas anteriormente sobre como a midia pode, de fato, manipular a opiniao publica ou determinar como a opiniao publica e formada - a inclusao da proibic;ao em urn seminario como esse diz muito sobre as pessoas que 0
estao organizando. Porque quando pensamos em rilUitos seminarios, workshops, conferencias e reuni6es, onde se fala de leis penais, onde se fala de quest6es internacionais, onde se tala de direitos economicos, sociais e culturais, vemos que 0 tema da proibic;,::ao e sempre sistematican1.ente exeluido.
Mas, devo dizer que, tarnbem no folheto de voces, a proibigao nao foi ineluida. N ao sei se foi exeluida - talvez 0
Professor Corsi possa nos ajudar nisso - mas, aqui, voces nao mencionam a proibic;,::ao na apresentac;,::ao, que e 6tima e representa uma especial e legitima opgao editorial, mas, repita, voces nao mencionam a proibigao como urn problema do mundo de hoje. Mas, grac;as it emenda politica da Maria Lucia, temas a proibigao nesta mesa. Assiln, creio que poderiamos dar uma especie de nota liB meno9" -como se usa nos Estados Unidos - para a preparac;ao do folheto ...
Minha especialidade seria a proibic;ao relativa a drogas. Por especialidade quero dizer que meu trabalho e tentar convencer as pessoas que fazem a le.i - leis, quero "dizer
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A politica proibicionista e 0 agigantamento do sistema penal nas forma~6es sociais do capitalismo pas-industrial e globalizado
- a experimentar e lTIudar estas leis que lidan1 especialmente com drogas, Pais creio que todos podernos concordar que estas leis nao funcionam.
Ao mesmo tempo, creio que, ao falar deste tipo particular de proibic;,::ao, nao podemos esquecer que existelTI outros tipos de proibic;ao pelo mundo. E, para fazer uma pequena tista de rnaterias - e par materias, podemos dizen1.os con1-portamentos; podemos dizer produtos - reguladas mundialmente atrav8s da proibigao; poderiamos comec;ar, por exemplo, com 0 aborto; poderiamos falar de pornografia; poderiamos falar de pesquisa cientifica sobre celulas-tronco; podedamos falar de jogo; mas, poderiamos talar tambEm1. de COITIportamentos sexuais au preferencias sexuais. Portanto, todas materias que, independentemente de origens ou vis6es politicas, religiosas ou geograficas, nao necessariamente implicarn em urn dana para _terceiros. Mas, todas materias que sao reguladas - eu diria, em grande parte do mundo - par leis penais, por codigos criminais, ou que estao exciuidas das varias possibilidades que cada individud teria para decidir sobre elas em seu pais especifico.
Isso e algo que sempre aconteceu, mas que hoje se torna particularmente mais evidente - pelo que foi bastante entatizado por todos as oradores ate agora - ell1 urn Il1undo globaJizado, onde ha urn fluxo maior de informac;6es.
o que, infelizmente, nao e tao evidente e que, apesar de todas essas inforrnagoes circulando pelo lTIundo, 11aO ha urn movimento para resistir a essa proibigao, a todas essas proibic;,::6es pastas em conjunto.
He. alguma coisa, talv8z, que nao sei se poderian1.os chamar urn movimento, mas que, certan1ent8, e urn grupo de organizag6es que as vezes trabalharn ein conjunto e outras vezes brigam entre si. Temos ... Luis Paulo faz parte de uma delas. E 0 grupo que !ida com a 12.r()l~ixao. relativa a .@ogas, ate porque esta proibic;ao relativa a drogas era mais
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Marco Perduca
bern organizada, n1ais sistematica e mais bem firtsnciada forma de proibi<;:ao no mundo\
Quando falamos de proibi<;:ao relativa a drogas, aqueles que nao concordam com tal proibi<;:ao sempre chamam esse conjunto de politicas de guerra as drogas. E e verdade, porque,(realmente, ha uma guerra que e contra as drogas;lMas, temos que entender 9- ®e queremos 9i2;er £Slm _dJ9-gi'l_s. Podem ser a cannabis e seus derivados; podem ser a folha de coca e a cocaina; podem ser a papoula e a heroina, ao mesmo tempo, e todos proibidos da mesma forma. Mas, e t~!l:l~~!!l uma (guerra contra aqueles que usam)drogas. Prefiro dizer uso ao inves de abuso, ate porque acredito que 0 conceito de abuso ja seja urn produto da proibi<;:ao.
Porque se eu usar ... talvez urn exemplo·pudesse ser 0
de que eu poderia abusar de pasta, comendo 3 kg por diao que e possivel -, todos os dias. E isso, a longo prazo, poderia ter urn imp acto na minha saude. Ou. eu poderia beber tres garrafas de whisky. Na Italia, eu poderia beber tres garrafas de whisky na rua sem quaisquer problemas. Portanto, posso abusar dessas duas substancias, uma que nao e uma droga - a pasta - e outra que e Ulna especie de droga - 0 whisky -, sem problemas, isto e, sem problemas
/ com 0 Estado. Mas, se eu fumar dais "baseados", j,a sera urn problema para 0 Estado.
Digo dois "baseados" porque em alguns paises da Europa - e estou pensando no pais mais social-democrat a que temos, a Suecia -, se voce fumar dois "baseados", ja sera considerado urn adito a maconha.
Portanto, e U1l1a guerra as drogas e aos usuarios de drogas ao mesmo tempo.
G~raJJP:f?g:te, 0 c.:.9~9:l}c;l_gnte-em-chefe desse exercito que faz a guerra as d,qgas e id"l}tificado nos Estados Unidos da America. E isso e verdade, inclusive por todas as ~az6~; que sabemos e que ja foram aqui apresentadas
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A politica proibicionista e 0 agigantamento do sistema penal nas formac;6es sociais do capitalismo p6s~industrial e globalizado
pelos oradorel3 precedentes~s, ao mesmo tempo, lJiiQ.e t~a ~ jlis.tO-r}a.
Com efe1to, a primei£ll. tenta1;!ya de proibir drogas de . ----
uma maneira coord en ada a nivel internacional, de un1a maneira coordenada por t9.QQ Q. mundo.,. remonta a 2912, quando, eu diria, mais uma vez, por raz6es 11.aO necessariamente relacionadas a saude, foi adotada uma C()I}Ve11<;:ao para banir 0 uso do apio. Sete ou oito reinos e algumas republic as se reuniram em Haia e redigiram 0 documento. E, l~a eEQ£? da histaria do mundo, o1'-".S.9 politico e economico dos EUA, eu "lio diria que Y.?l,,~_~e t"nto quanto 0
de urn oUI;rg par de imperios - 0 ingles e 0 frances; na realidade, a distribui<;:ao de poder pelo mundo tinha natureza divers a da que tern hoje. Naquela epoca, tambem era bastante poderoso 0 imperio austro-hungaro.
NElO estou dizendo isso porque queira perdoar 0 que esta acontecendo dentro dos Estados Unidos e fora dos Estados Unidos por causa dos Estados Unidos. Nao quero perdoar 0 que acontece nos EUA com 0 uso de drogas, ou a guerra as drogas, ou 0 quee conduzido pelos EUA. Porque e issa. 0 que acontece todas as vezes que temos urn debate sobre a guerra as drogas. Ha urn inimigo, que e George Bush - e penso que existem muitas razoes para se identificar George Bush e seu pessoal como os prill.c~pais con1andantes-em-chefe da guerra as drogas -, mas nao e esse 0
unico problema. . 0 problema e que, depois dessa Conv",ngao sobre 0
apio de 1912, 0 mundo decidiu adotar outras Conven<;:oes
~ara sistematiza7aillcta mais e ser Inais especifico sobre
como proibir a presen<;:a de drogas e outros produtos no mundo.
A primeira Conven<;:ao Unica sobre Narcaticos e Substancias Psicotrapicas foi adotada em !.§!§l...
Se pensarmos no mundQ como ele era ~m1961.., .. Temos alguns elementos que podemos resumir para tentar
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Marco Perduca
montar 0 quadro. 1961 e 0 ana do rriIl1eirQ ~.§.!§l:do i,",ci~..l2.smdente na Africa. Mas, e tambem 0 ano da Baia' dos Porcos e;;';-Cuba. ~nb8m G;.agarin no e3pago. E -;;'i~d;;'-o ;;;:;~ em que a Uniao Sovietica detona sua primeira bomba nuclear. E tambem e 0 ana em que 0 Plan() N(<lJ§hali termina na Europa. Temos, pois, urn mundoem que os EUA estao se retirando de alguma forma da Europa, mas eventualmente tentando invadir Cuba; telnos a Franga e a Inglaterra retirando-se da Africa; e temos pessoas indo ao espago. Portanto, uma serie de coisas acontecendo e uma serie de confrontos igualmente acorttecendo. 6p€3sar d~sses _ Gonfr:Qnt9.§ - confrontos p,91itic;;ps, mas tambem rpilitar"€s -, os
_. membros das Nac;oes' Unidas decidiram, mais uma vez,
~entar enl volta d.amesae-redigir urn docunlento para dizer
que "drogas sao ruins; voce nao deve usa-las; vamos pro ibir todas elas".
Esse dQs;umento foi ratificado, ate hoje, por 18_0 paises. A aNU t~m in membros. Portanto, por praticamente todos os paises do mundo.
E, desde 1961, nao podemos cultivar maconha, nao podemos cultivar coca, nao podemos cultivar papoula, se nao for por razoes cientificas e/ou medicas. E, e claro que riao podEnnos usar heraina, maconha, e cocaina, e crack e uma longa lista de outras substancias.
Dez anos depois da adoc;ao da Prime ira Conven<;ao, enquanto 0 mundo trabalhava em uma segunda Conven<;ao, em 1971, os EUA tinham Richard Nixon como Presidente e, de fato, fora~,~es que cunharam a expressao guerra as drogas e lan<;aram uma bern organizada guerra as drog~visando algumas partes do mundo.) .
Entao, a comunidade internacional, em 1988, adotou a !~rceira CO!!:'y€!ngao sabre drogas, possivelnlente a ~s proibicionista de todas. E a Uniao Sovietica ainda estava de pe. oS'~;;i;;dOS Unidos e a Uniao Sovietica faziam, assim, a guerra as drogas pelo mundo afora) Quando 0 assunto era
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A politica proibicionista e a agigantamento do sistema penal nas formagoes sociais do capitalismo pas-industrial e globalizado
drogas, estavam todos de acordo, 0 tempo todo. Pelo menos, e isso que nos diz a propaganda oficia!.
Penso que a hist6ria nao oficial, se voces preferirem, e -- ._----que 0 odo pelo qual foi estabelecido 0 controle social -mas tambem 0 controle econornico e 0 controle politico -, atraves da proibic;ao relativa a drogas, constitui um claro exemplo de como a proibi<;ao tem, na realidade, urn tipo de agenda diferente da que sempre foi apresentada como sendo a verdadeira razao de sua promo<;ao.
Com efeito, e dificil encontrar alguem que seja de fato urn proibicionista, que concorda com este tipo de regulagao, que diga "sim, eu sou urn proibicionista; olhenl para mim". Geralmente, os proibicionistas sao definidos por aqueles que nao concordam com eles, que diz8In "voce e urn proibicionista", au "este e urn comportamento proibicionista". E, dizendo isso, nao necessariarnente se tornam ou querem ser anti-proibicionistas. Mas, de certa -farina, estao expondo 0 que pode significar a proibi<;ao em rela<;ao a lllaterias especificas.
a m:otivo pelo qual os!proibicionistas nao querem chamar a si proprios de proibicionistasjreside no fato de que
@es acreditam ter a ideia certa, a me did a certa e a inspiragao certa""- as vezes, meSIno, a inspiragao divina - para tel1-tar controlar um problema especificoJE sempre dizem que o que falam e dito em "boa-fe". Voces encontrarao isso - e convido-os a ler os preambulos das tres QQnY",I)<;o_es da aNU - claramente descrito como urn fesfor<;o humanitari~, para "sa1var a h~;~idade do Ina1 das drogas'j Estas sao palavras extraidas dos docurnentos da aNU.
Mas, se este deveria ser urn "esforgo hUDlanitario", de boa-fe, por que, depois de 40 anos - 43 anos - deste tipo de politica, temos uma produgao crescente, Uln conSUIno crescente, urn trafico crescente, urn crescente numero de organizag6es criminosas, organizag6es terroristas, HIV / AIDS?
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Marco Perd llca
E eu poderia seguir adiante com uma longa lista. POE-que ninguam quer mudar essas politicas.i§.!igas? _.-. -oEss,,·a um:~'p~-;:gunta:-q~~'t;'~Mm gostaria de fazer a
voces e pense que isto esta ligado ao fato de voces nao terem incluido a proibigao em seu folheto.
Isto acoritece porque nos nunca pens amos nesses problemas - drogas, mas tambam todos os outros que tentei enUll1erar antes; poden10s tomaras preferencias e orientagoes sexuais como outro born exemplo, ou as pesquisas cientificas - em termos de proibigao e nao-proibigao. E preferencias ou orientag6es sexuais sao proibidas em quase todos os paises do mundo, enquanto uniao legal entre dois individuos do mesmo sexo.
A razao pela qual, repito, ninguam fala _soQre eSS<;lS ._-_._- ._- -.- ------c_ois.'3c"Jesi~ no fato de que a maior de toctas as proibigoes
~/ - e talvez isto nao esteja claramente instituido, mas a algo \
sistematico, que deita raizes atraves dos tempos - e a proibigao de compartilhar idaias, e conhecimentos, e pontos de vista. Portanto, a born que, pelo menos, tenhamos tentado evantar 0 tema da ausencia da proihigao no interior do atual debate academico, universitario. De modo que, na proxima vez, quando organizarem outro seminario, voces possam tentar incluir isso de forn1a mais sistematica e talvez 0 resultado do seminario possa ser diferente e, entao, suas vidas au suas reag6es a algumas politicas de governos ou da igreja tambam poderao ser diferentes.
Eu poderia seguir falando por tres dias, mas me parece que nao ten10S tanto tempo para debater todos esses temas; assim, Vall tentar resumir. A mensagem, parece-me - e, em parte, 0 Professor Corsi tratou disso antes em urn tema completamente diferente -, a que, §o que se refere it proibigao, 0 problema nao a 0 fen6meno que a regulado por essas politicas; a sim a propria proibigao]
Ja vimos que f!:!mpre que a proibiqao foi substituida por reforma9 par exemplo, naJtalia, no caso do aborto - a
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A politica proibicionista e 0 agigantamento do sistema penal nas formac;6es sociais do capitalismo p6s-industrial e globalizado
(situagao mudou radicalmentEj'. E, paradoxalmente, tal mudanga foi na diregao do "esforgo humanitario", mas nao na diregao das politic as implementadas para atingir aqueIe "esforgo humanitario" que estava sendo levado adiante.
a resultado de se libertar da proibigao foi 0 result ado que
os proibicionistas diziam desejar, ao efetivamente implementar, pela primeira vez, a proibigao naquela materia ~pecifica.
o numero total de abortos na ItaIia caiu e, naturalmente, 0 numero de mulheres que morriam por causa do aborto aproximou-se de zero em poucos anos. E claro. que isto nao a apenas uma questao de se aplicar me did as antiproi- . bicionistas; temos uma sarie de outras medidas para implementar ao mesmo tempo. Mas, a chave foi nao tornar a interrupgao da gravidez um crime.
Assim, 0 Inovimento - e, entre hoje de manha e ontem a noite, ouvi, algumas vezes, palavras como luta, empenho e gosto disso em urn ambiente universitario - ~ovimento)
j que poderia, de uma vez por todas, trabalhar no sentido de por um fim a proibigao a um movimento revolucionari~
Porque acredito que a antiproibigao ou 0 antiproibicio-nismo - neste caso, deve-see-screver tudo COlll0 uma palavra so - a uma espacie de agenda politica para t.entar governar au administrar; 9, pais, urn conjunto de medidas de governo, muito mais do que uma oposigao it falta de leis - 0 que estava no centro do painel anterior - em sociedades hiper-reguladas. E, pois, uma \p'aneira de regular as coisas
~ -de urn modo mais efetiv~J .
Para encurtar a historia, pois ja estou falando ha muito tempo, a~, neste ponto, dado que, infelizmente, nao temos este movimento antiproibicionista pelo mundo afora, e /se dispor a fazer com que as proibig6es se torl1em um thna. de debate, mas tambem um tema para aq6es politicas locais, regionais e il1ternaciona~Telnos que fazer com que isso aconteqa 0 mais rapido possivel.
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~ ~e, apos 40 anos, deveriam'2§, de fato - pelo menos aqueles que tern trabalhado nisto e que poderiam encontrar bons aliados em alguns dos jurist as , advogados e especialistas hoje aqui presentes -:-' invert~r_o raciociniQ e fazer da proibi~ao urn crime ao inves de uma solw:;ao pani' o crime.
Existem varios argumentos legais ja desen:ILolvidos. ~-- - --.--_ .. -.--_._-
Poderiamos argumentar, por exemplo, que a proibic;:ao ao conhecimento contraria outras noqnas relativas a direitos humanos internacionalmente reconhecidas, constantes dos pactos internacionais de direitos civis e politicos. Poderiamos argumentar que aJProibic;:ao da plantac;:ao de folhas de coca no Peru e na Bo1rvia contraria as tradic;:6es economic as e saciais dos pavos indigena:D,qu8 ViV81TI nos Andes. Poderiamos dizer ainda - e tambem gostei de ouvir as discursos de ontem a noite - que@s dispositivos das tres Convenc;:6es da GNU, em muitos paises - e acredito que tambem aqui no Brasil -, contrariam suas Constituic;:6es] porque nao cumprem 0 principio da proporcionalidade no que se refere as punic;:6es.
E lia, ainda, outros documentos a nivel internacional, 'sobre direitos indigenas, sobre 0 emprego da policia e todas essas coisas, de tal rna do que acredito que, se todos esses argulnentos pudessem ser reunidos, poderian10s ajuizar uma causa perante a Corte Internacional de Justic;:a, buscando uma opiniao consultiva daquele 6rgao e, assim, obtendo seu pronunciamento sobre os aspectos criminais da proibigao e, eu diria ainda - e, com isso, conclua - sabre olE-oder que a proibic;:ao tern de induzir atividades criminosas direta ou indiretamente:>
Entao, a prime ira tarefa para a proximo ana e incluir a proibigao no pr6ximo seminario.
Segundo: comec;:ar a pensar nas possibilidades de fazer da proibic;:ao urn crime.
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A politica proibicionista e a agigantamento do sistema penal nas forma~6es sociais do capitalismo p6s-indtlstTial e globalizado
Terceira - e isto e 0 111ais impartal1te - visitar 0 website da minha organizac;:ao, que e wW'!". antirno.\)ibitio-. nist.org, e assinar urn apelo internaci~i p·~r8:"· req~-~ a convocac;:ao de uma assembleia das Nac;:6es Unidas para reformar su~s Convengoes e a convoca~ao de uma conferencia para discutir 0 problema, de forma laic a, a nivel mundia!.
Acho que este e urn born progran1a para a proximo semestre e agradec;:o muito a todos pela paciencia.
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Salo de Carvalho
Gostaria, antes de tudo, de agradecer pelo convite. E o fago na pessoa da Malu Karam, Querida amiga ja ha bastante tempo. Nossa aproximagao ocorreu pela preocupagao conjunta relativa ao tema das drogas, no inicio dos anos 90. Gostaria, igualmente, de agradecer ao Gentro Academico da UFRJ (GAGO) e ao IBGGrim, por estar novamente no Rio de Janeiro, entre amigos, para tentar discutir algumas quest6es sobre a maximizagao do sistema penal e a tensao entre proibicionismo e antiproibicionismo, intentando ampliar 0 debate, nao restringindo minha fala apenas para a questao das drogas.
Durante a palestra anterior, lembrei muito de passa" gem da Segunda Dissertagao da "Genealogia da Moral", de Nietzsche, quando 0 filosofo afirma que§ quisermos controlar alguam, a melhor forma a impondo-Ihe cuIPa(:i]Esta forma de controle parece ter sido 0 mote dos sistemas penais, da Antiguidade ao projeto Moderno iniciado pelo liberalismo beccariano.
Zaffaroni e Nilo Batista, no primeiro volume do "Direito Penal Brasileiro", maravilhoso livro publicado junto com Alagia e Siokar, trabalham de forma profunda esta hipotese no decurso historico. Ao tratarem da criminaliza9ao da mulher na Idade Madia, a hipotese ganha consistencia indiscutivel. Em realidade1!ia muito tempo 0 discurso critico procura romper com a logica proibicionista de imposigao de culpa(s). Na questao das drogas isso fica muito claro:J
A ind~a9~ ciue se imp6e a como romper com a logica da punigao, ou melhor{como romper com uma mentalidade voltada a manutengao da memoria punitiva atravas do reforgo moralJ
o direito e 0 processo p~Eal servem comEnernotecnica de dor, como mecanisme de fixagao eimposigao da memoria de cul5 (culpa judaico-crista ocidental) que nos
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Salo de Carvalho
acompanha desde 0 "Nascimento da Tragedia", para lembrar unla vez mais Nietzsche. RQ!.l!Q.§~F com ~ssa _!deia e 0
gra!1de e inorninavel <;ias.aiio, talvez nossa propria derrocada. Hoje, com 0 processo arnbiguo de fragmenta<;:ao e globaliza<;:aG das culturas, possivelmente tenhamos maiores canais e maiores possibilidades. Vejo na contelnporaneidade, embevecido provavelnlente par urn otimismo ingenuo,
"t, &,ossibilidade de romper com essa l6gica punitiva que, na realidade, perfaz-se na puni<;:ao dos prazeres, na proibi<;:ao do desejo.
Entrou em eartaz na senlana passada "Cazuza", 0
filme. Sou cinefilo, e vivi intensamente os anos 80 ao som de Barao Verrnelho e das demais bandas desta onda do pop rock nacional, tendo acompanhado 0 drama do poeta, urn simbolo para todos nos. 0 filme emocionou muito, mas uma cena chamou muita atengao: em determinado momenta, quando ele e seus amigos descobrem a existencia do virus da AIDS, Gazuza tem um surto, na representa<;:ao cinematognHica, e grita: "queretn acabar com. a nossa possibilidade de ser feliz" .
Gazuza, em seu delirio, revela a guestao central da TIloral ~.zj;qa ~~!:tal: a Euni<;:ao do desejo e do prazeiJ ·questao que envolve, em nossa poueo entusiasmante area' do saber,~ela<;:ao sincr6nica entre perla, processo, direito penal e mora] ou sej a. especifica como as tecnicas institucionais de repr~~ao. que igualmente sao tecnicas de representa<;:ao, se direcionam ao controle do nosso gozo. Inevitavel, novamente. lembrar '~prisionamento~ eorpo feminino no Medievo pelos rnecanismos da moral punitiva inquisitoriaL
Tentarei falar urn pouco dis so. procurando delinear a genealogia do Estqdo punitivo, que nada mais e do que a genealogja da~ i;;-6~S ID:O}.:.ai.,.
.. ""A--j;rimeira 9rand;-;nda para 0 ,!gjganta~ do sistema __ ~ ocorre com aEudan<;:a de tratamento e direcio-
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A politica proibicionista e 0 agigantamento do sistema penal nas forma90es sociais do capitalismo p6s-industrial e globalizacto
. namento do bern juridic~ Desenvolve-se urn problema politico-criminal muito claro quando 0 E_~ta.?o deixa de ser absenteista (Estado Liberal) e passa a ser int",r".eE:c;ionista (Estado social). Ha o __ ~I11.pulso na maximiza<;:ao do sistema repressivo quando 0 @ireito penal come<;:a a se preocupar com outros bens juridicos que nao aqueles individua5que caracterizam 0 seu sistema miniInalista originario.
o direito penal sempre trabalhou com a "missao" de tutela de bens juridicos. A dogmatica sempre justificou a i~tervengao punitiva a partir da necessidade de protegao dos principais interesses do corpo social, transfornlando-os em bens juridicos. Em realidade, acabamos caindo numa cilada.
Baratta apontou maravilhosamente bem este problerna' em belissimo qrtigo publicado numa das primeiras revistas do IBGGrim. Sustenta que esta justificativa e circular. A(!;.egiti~ad';-da interven<;ao penal e fornecida pelas proprias praticas punitiva§) Segundo 0 discurso dogmatica, a missao do direito penal e a tutela dos principais bens juridicos da humanidade. No entanto. esta{rnesma dogmatic a conceitua bern juridico como sendo aqu~es valores fundamentais salvaguardados pelo direito penal)o-:-, sej", tratase de urn discurso auto-referenci",J, aparentemente paradoxal, mas que ~rve~ilit~ri~te para auferir legitimidade a qualquer interven<;:ao (moral) punitiv8)
Desenvolvi esta ideia no artigo itA Ferida N arcisica do Direito Penal", integrante do livro organizado pela professora Ruth Gauer intitulado "A Qualidade do Tempo" (RJ: Lumen Juris, 2003), e creio que fornece uma das inumeras chaves de leitura possiveis para avaliqr os projetos proibicio~istas d~;aximizagao do siste~ punitivo, em especifico aqueles belicos de combate e erradica<;:ao das drogas. It que est",? ~~s"llrsos, ~nla<;:ados com a 10gica messianic a e de totaliza<;:ao moral como 0 discurso pena11.se a,u.to-inter'pretam CQl)1.0 pol~s salvacionistas, idoneas para produ-
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Salo de Carvalho
zir a redengao (moral) da humanidade. Logicamente, incorrem na mesma cegueira da dogmatica ttadicional.
Os partadores da fala autarizada da ciencia penal, os ret6ricos da dogmatica, ll1ais ainda, os operadores do direito, des de a Modernidade auferiram, ao direito penal, ou seja, a si pr6prios, a capacidade de controle e gestao dos riscos que assombra(ra)m a humanidade. Se se pensar, por exemplo, no discurso sempre autorizado da Escola de Coirnbra, cuja influencia em materia penal no Brasil e indiscutivel, a questao central que aparecera nas ultimas publicagoes e teses e a rtecessidade de justificar a intervengao penal para alem dos classicos bens juridicqs individuais, transcender as querelas interindividuais e capacitar 0
direito penal para compreender os conflitos transindividuais. 0 ponto de partida e 0 seguinte interrogante: se a fungao do direito penal foi sempre tntelar os principais bens juridicos da humanidade, como deixar de enfrentar na atualidade aquelas condutas que colocam em risco 0 futuro da humanidade, como, par exemplo, a questao ambiental. A resposta, inebriada pelo narcisismo,das ciencias cri-~ ,.~~---
minais (criminologia, direito penal e processo penal), e una: nao se pode deixar de proteger os "novos'; bens juridicos, devemos instrumentalizar 0 aparato criminal,(priando UlTI
novo modelo politico-criminal capaz de prevenir os novos
risc~- p. ex., tutela penal das geragoes futuras. EJ!l .;tl!!ma a.'2.~~~e.,g,abe ao direito penal a salvaguarda da humanida- , de de sua extingao]
Do que se pode notar, as_.~.eE:~ias em.JJ"ral estao cada vez mais que~.~i'?r1."n(:lo_ sua c,1lJ!."l,g,ig,!de de solu~ar os problemas e de gerir os riscos que se propuseram controlar. Os paradoxos sao inominaveis. Pense-se na dificuldade (senao impossibilidade) de harmonizagao da equagao cres· cimento economico, desenvolvimento tecno16gico e meio ambiente.
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A politica proibicionista e 0 agigantamento do sistema penal nas formaGoes sociais do capitalismo p6s~industrial e globalizado
Th.davia, as "ci€n;~9A~s 9!!!ll1~lais". a partir de urn narcisismo primario, assun1elll esse problema, comunicando aos atores sociais e politicoo que p~~;;;;' as condigo";~-resolutivas, quando, na realidade'Eunca tiveram seque"r a c;pacidade de resolver os confiitos interpessoai~ois sua resposta por excelencia, a pena, gerou mais danos na hist6ria da humanidade do que a soma de todos os delitos (Ferrajoli)rVejo 0 direito penal como um mecanisme pesa·
-d-6,jerii;, que sempre chega atrasado para solucionar os conflitos; 8, quando chega, ao inv8s de diminuir os custos das condutas problematicas, potencializa sua violencia, vitimizando a todos. Penso poder visualizar nesta conjun- .. 'gaO uma das "feridas narcisicas do direito penal".
Importante lembrar, porem, que este antigo processo de enamorarnento da ciencia penal com sua auto-imagen1 e fruto das concepgoes epistemol6gicas oriundas da Modernidade. Mais, esta ferida anteriormente exposta, que poderiamos intitular, aproximando do dis cur so freudiano, como "segunda ferida narcisica", e, consequentemente, decorrencia de uma primeira chaga no narcisislllO dos criminalistas.
Vislurnbro como "primeira ferida narcisica" do direito penal aquela desm;:'s~a -d;' forma precis a por Sutherland, em seus estudos sobre os crimes de colarinho branco, quando revel a e nomina as "~i~~"?-§ o~s da crin1inalidade".
En1 "Quem sao os Criminosos.1". Thompson, como to do bom carioca, demonstra em forma de brincadeira 0 n6 que as cifras ocultas da criminalidade geram no narcisismo penal. 0 autor propoe uma especie de adivinha, chamando o leitor a imaginar, a partir da definigao de um breve perio' do de tempo, todos os crimes cometidos em determinada cidade. Tentemos, por exemplo, quantificar todos os crimes praticados durante esta manha na cidade do Rio de Janeiro, incluindo, por 6bvio, todas as condutas previstas
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Salo de Carvalho
em Lei como ilicitos - porte e trMico de entorpecentes, homicidios, furtos, estelionatos, corrup<;oes, lesoes ambientais, pequenos delitos contra a honra ... , as hipoteses sao infindaveis.
Temos, de imediato, um problema estatistico: nao existe instrumento capaz de fazer este calculo. Todavia, se houvesse, pensemos na diferen<;a entre esta totalidade e 0
numero de fatos dos quais as autoridades policiais tem conhecimento, ou seja, aquila que se transfornl0u em estatistica criminal. Esta diferen<;a, nominada "cifras ocultas", por si So demonstra a[fragilidade de discursos de repressao como os de tolerancia zero~
Gontudo, podemos seguir a logica proposta por Thompson e tentar quantificar as noticias crinlinais que originaram inqueritos policiais. Mais, quantos inqueritos foram efetivamente encerrados, quantos foranl arquivados e quantos pernlanecem inconclusos. Dos inqueritos findos, quantos efetivalnente proporcionaranl justa causa para oferecimento de denuncia. Destas, quantas foranl rejeitadas e nao recebidas. Recebidas as denuncias, imaginenlos em quantos casos a instru<;ao e levada ao final. Dos processos criminais instruidos, quantas condenagoes e absolvi ~ goes e 0 nUlllero de decisoes alteradas nos Tribunais, no Superior Tribunal de Justi<;a e no Supremo Tribunal Federal. Precisemos a quantidade de prescri<;oes em abstrato e em concreto. Por fim, a numero de condenagoes que efetivamente transitam em julgado.
o problema, porem, apenas estaria sendo iniciado. 0 transito em julgado das senten<;as penais condenatorias nao deternlina, automaticamente, a cumprinlento de pena. A proposito, a titulo de 't~elJlplific.9J<a..o, [emos hoje no Brasil tres vezes nlais mandados de prisao a sereln cumpridos do que 0 nUlllero de pessoas encarcerada~
Mas 0 caJculo que gostaria de apresentar, para fins da a':.~lia9~0 d~~_qta do sistenla J?~~~~_?.l, e a da(Jquag 8.o
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A politica proibicionista e 0 agigantamento do sistema penal nas forma90es sociais do capitalismo p6s-industrial e globaJizado
entre 0 numero inicial (quantidade de delitos praticados) com 0 final (pessoas cumprindo peniiJ 0 numero de pes" soas que cumprem efetivamente pena e infima, en1.bora as taxas de encarceramento estejam cada vez majores. Ou seja, a eficacia do direito penal sempre foi Hleralnente siInb6lica - nao desprezando, por 6bvio, 0 valor e a importancia do simbolismo.
Zaffaroni, em entrevista ao IBGGrim, ciente da seletividafle do sistema punitivo, especialmente a carcetario, sustenta desconcertante tese: se as portas das pris6es fosselll abertas, os indices de-;;;trninalidade naa seriam alterados s~bstancialmente. 0 jurista argentino sllstenta, inclusive, que sequer aumentaria ° seu medo, porque as dados reV8-lam que €a encarcerados sao "infelizes" que cairaf.Q. nas malhas do sistema, meros "bodes expiat6rios3 --
Se optassemos por uma interpretagao cenica do in quisitorialismo processual (regra do sistema punitivo ao longo da historia) e da crueldade gotica das institui<;oes prisionais. concluir!gJllm? que~ssas p~ssoas as quais imprimi-)
[
nlOS cotidianamente dar 11. as prisoes brasileiras se.Ivenl apenas para manter viva a memoria punitiva e a .culpa moraOMemoria punitiva de uma culpa que tanto necessitamos preservar. A ftln~~()I}"li<:l_adedo Si~!!321}5Lreside nesta fixagao e manutengao da -memoria, na "mnemotecnica da dor" -@cnica de aprendizado e memoriza<;ao da culpa pela fixa<;ao da imagem do sofrimento no corpo sociaT\Na preserva<;ao da moral judaico-crista ocidental que cmpabiliza os prazeres.
Quando Sutherland enuncia a discurso sabre as crimes de colarinho branco e cria a categoria "cifra oculta da criminalidade", expoe nao apenas a primeira, mas a mslior f~ n~ica das ciencias penais, ';'~1seja, sua~soluta falta de capacidade de tutela pela repressao..J,
No entanto, e:mbriagados em seu proprio narcisisn1.o, os penalistas deixam de ouvir as li<;oes (Iegado) da Griminologia Gritica, ampliando suas proposi<;oes messia-
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nicas para, olvidando a incapacidade de reprimir as condutas lesivas (ac;:ao posterior ao dano), autoproclamarem a
[possibilidade de prevenir as lesoes pela antecipac;:ao da 'resposta penal as condutas anteriores a of ens a aD beln jurii dico tutelado.
Para alEnn das feridas narcisicas, que dizen1 respeito ao discurso dogmatico, importante ter claro os efeitos (perversos) da atuac;:ao sustentada pelo messianis~;;:-~ -~
E fato notorio na Criminologia a incapacidade preventiva do direito penal (prevenc;:ao de delitos, tutela de bens juridicos etc.). No entanto, a atuac;:ao e 0 discurso dogmatico operam como se esta possibilidade fosse real, gerando urn c~o (social, economico e politico, talvez maior do ~e o do .l'rQpUp.delito.
Duas quest6es relativas a saude publica pod em auxi--- ------' --- ---liar na compreensao: ~'Ogas e abortc:CI
Antes, porem, necessito fazer uma pequena exposic;:ao da minha atuac;:~o l?!,!~~issiQnal-
Sempre pensei que n1inha atividade seria apenas academica. Minha (de)formac;:ao foi nesse sentido. Mas 0 estudo do garantismo penal acabou alterando a perspectiva, e rumei para a advocacia, atividade 11a qual encontrei un1 sentido pratico a teoria que compartilho e a qual dedico, com inominavel prazer, grande parte do lneu tempo. ·At.uo, portanto, desde a perspectiva (juridic a) do garantismo, na defesa de pessoas contra os abusos dos poderes punitivos.
Dentre as inumeras atividades do escritorio, uma e de ---.J!<lvocacia pro bono.
Eu e meus socios (Alexandre Wunderlich, Liliana Carrard, Camile Eltz de Lima e Lenora de Azevedo), realizamos convenio com a Themis, uma das maiores ONGs brasileiras no trabalho de defesa dos direitos das mulheres. Estabelecemos parceria para realizar a defesa de mulheres condenadas crirninahnente, tendo no escritorio cota para advogar para n1ulheres na execugao penal.
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A politica proibicionista e 0 agigantamento do sistema penal nas formac;oes sociais do capitalismo p6s-industrial e globalizado
Por outro lado, durante os anos de 2000 e 2002, presidi o Conselho Penitenciario do Rio Grande do SuI, tendo tido grande contato com 0 cotidiano carcerario, composto, fun-
. damentalmente, por homens. A realidade prisional feminina, porern, e totalmente diferenciada da masculina. Os proprios @.iretores dos presidios sustentam que e rnuito mais dificil "disciplinar" os presidios femininos, porque as mulheres sao muito mais combativas que as homens, reivindicam mais seus direitos e pactuan1 menos con1 a arbitri.£]
Nos primeiros cantatas com a execugao da pena nos presidios femininos esta constatac;:ao surpreendeu. Mas paralelo a questao "disciplinar", notamos de imediato que;
era ~larrnau.tfl 0R~.'!.l:"ro de.llu!l!J&tW ~as por _~rafiQ.o de entorpecentes. Apesar de ser normalmente alto 0 numero de condenac;:oes por comercio de drogas ilicitas, na realidade prisional feminina era muito superior a n1edia das prisoes rnasculinas, pois as cifras chegavam a superar 60% das execuc;:oes de pena.
No cantata direto com essas n1ulheres, a fetiche n1idiatico do grande traficante, do comerciante internacional de drogas, desfez-se. Nao invariavelmente, os fatos punidos eram de. comercio de pequena quantidade de droga. E, sobretudo, e talvez 0 que mais tenha chocado, oli'so da mercancia ilicitsi} de drogasse aprese~~na grande maioria dos casas, como@ternativa de subsistenc'ia contra o desernprego~
Nao estou propondo retomar uma visao rornantica do delinquente, erro que a Criminologia Critica· incorreu durante rnuito tempo e demonstrado com perspicacia por Elena Larrauri, em "La Herencia de la Criminologia Critica". Todavia, e i~portante perce!2slr ~lacia do uso do direito penal como alternativa a crise social e, principalmente, notar 0 custo que esta criminalizac;:ao ger:)
o problema da criminalizac;:ao do aborto e identico ao das drogas, demonstrando 0 paradoxo e a circularidade do
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discurso dogmatico: 0 direito penal propoe C01110 111issao a tutela do bern juridico-penal (abstrato) saude publica, criminalizando os atos que considera lesivos, Outrossirn, obteffi como ~ perverso daJ2!i!!l~aliza~ao 0EOergUimenta de obstaculos instransponiveis para que as pessoas envalvidas COlll drogas au que tiveram Uma gravidez involuntaria aced am aos n18canismos de saude publica,
Pense-se, numa perspectiva extramaral (Nietzsche), a funcionalidade da criminalizac;:ao do abarto, ou melh0i!nterrogue-se sabre quais as conseqiiencias alcan~adas pefd'"'\ fato de tornar ilegal a interrupc;:ao voluntitria da gestac;:ao.J o tratamento penal do aborto lanc;:a na !!@.!:.uinalidad-'O uma se!~ de _'!!~.:::.s as quais,@ao tendo condic;:oes pessoais (economicas, psicol6gicas) de enfrentar a maternidade, recorre(ra)m a interven~6es isentas dos minimos cuidados necessarios, nao raro custando a vida da propria gestante~
Nao quera alongar em demasia minha fala, mas, para finalizar, gostaria de apresentar algumas preocupac;:oes que tenho revelado nos meus ultimos estudos, e que dizem respeito Ii contribuic;:ao da Constituic;:ao de 1988 na praliferagao do sistema punitivo (primeiro no aumento dos tipos penais e apos nas taxas de encarceramento), Por mais. 'paradoxal que possa parecer, a QQ!2~tituigao de 1ill!~tencializou a maxicriminalizagao e 0 maxiencarceramento'j
A Carta Politica de 1988 se diferencia na tradic;:ao constitucional brasileira em materia de normas penais. Historicalnente, a estrutura penal e processual penal das Constituic;:oes e caracterizada pela presenc;a de narnws de tipo negativo, ou seja, normas cuja func;ao e a de limitar a intervenc;ao do Estado. Todavia, a Constituic;:ao de 1988 t~?~ uma ~aut.a 'criminalizadora que gerou, durante a dec ada de 90, profunda expansao do direito penal e da criminalizac;:a~no Brasil, ampliando, de forma inedita, os tipos penals.
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A politica proibicionista e 0 agigantamento do sistema penal nas formac;:oes sociais do capitalismo pas-industrial e globalizado
Com 0 Gun1primento da "Constituigao Penal" pelo Legislativo no que se refere Ii hipercriminalizac;ao (p. ex" tutela penal das minorias raciais, da crianc;:a e do adoles·cente, do idoso, do meio ambiente, do sisten1a tributario etc.), ocorreu ampliac;ao no input do sisterna penal.
A partir de 1llil.§! §!!§ a edic;ao da 1""j 1.0.792- que institui 0 Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), hit 0 aumento da entrada no s~stema con1 a [Sriagao de inu1l1eros tipos penais e, ao mesmo tempo, a restric;ao na saidi)(OutPut), sobretudo com a Lei dos Crimes Hediondos, Podemos ainda agregar as .ll().Y...'!.s lE!=,-"te.&es de .. Eri.~<,!es _c:~"res, cujo efeito e a aumento das taxas de encarceralnento preventivo (par exemplo, Lei ".f:)(3Q,. que dispoe sobre a prisao telnporaria). 0 efeito deste novo quadro normativo fbi ter praticamente quadruplicado, em 10 (dez), 0 numera de pessoas nos c~rceres. Importante ter presente este diagriostico para que possamos ler criticamente a Constituigao.
Desde 0 marco teorico do garantiSl110 penal, hnprescindivel defender arduamente a Constituic;:ao. Mas nao se pode negar, ingenuamente, que a expansao do pragrama criminalizador-punitivo deriva diretamente de suas "normas penais programitticas".
Nao obstante, e gostaria de encerrar neste pontD,jl]ig,-~cio a esse_pecago do Poder k"-Uis!~hv'i01O qual estao emai
zadas as bases da politica penal expansionist~agyga...,e o ~~~~o do Pode~.J.llq!95?r:io em suafu.nensa conivenc@) ao ~~r do\Sontrole de constitucionalidade das leis penais)
[email protected], como de costume, exiE'~m.§uaculpaQroj~-a nos Poderes bggi.(;lativo e Ex~vo: "0 legisladar arnpliou 0 numero de delitos e restringiu os direitos na execuc;ao da pena; 0 Poder Executivo naD cum pre a Lei de Execuc;ao Penal e man tern as pessoas encarceradas ern locais inapropriados", sao discursos coruuns e -constantemente repetidos. L6gico que hit parcela de verdade nessas assertivas. Todavia, somos co-responsaveis por omissao, em nossa conivencia na n1anuten~ao de urn modelo puniti-
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vo inquisitorial barbaro, quando abdicamos do poder de realizar 0 controle da constitucionalidade das Leis e efetivar os direitos e garantias fundamentais.
A culpa (tambam) a nossa. Para instrumentalizar este discurso critica, tenho pro
posto atualmente, a partir da idaia central dos movimentos antiproibicionistas, forjar, desde a garantismo, un1a dogrnatica penal da reduc;:ao de danos.
A preocupagaa, apos vivenciar 0 genocidio que ocorre no sistenla carcerario brasileiro, e dee.erificar qu~is as formas de reduzir 0 poder punitivilEssa passa a ser a coerencia do discurso: objetivar constantemente diminuir os danos contemporizados pel a politica judiciaria.
o prin}(3i1:g passo, param, a dar-se conta das limitag6es -- .. -.~~ do saber, para, no ~e_9..m:!!,l.g. momento, ter ciente quais as possibilidades e quais as estrategias concretas para instrumentalizar esta dogmatica de redugao de danos, intent ando, dentro do possivel, minimizar os efeitos perversos do discurso penallnessianico.
Talvez tenhamos que ter presente a critica de Erasmo de Roterda, no "Elogio da Loucura": "Comecemos pelos jurisconsultos. Julgarn-se os primeiros sabedores do mundo, e nao hit rnortal que se admire tanto quanta eles quando, como Sisifo, rolam sern cessar para 0 alto de uma Inontanha enorme rochedo que tomba de novo mal atinge 0
pica, isto e, quando entrelagam quinhentas au seiscentas leis, sem cuidar se tern algurna relagao com as questoes t~atadas, quando arnontoarn glosas sabre glosas, citagoes sabre citaq6es, quando fazem com que 0 vulgo pense que a sua ciencia e coisa dificilima, persuadidos de DaO haver nada rnais linda que 0 que custa muitas dores e rnuitas fadigas".
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Debates
Virgilio de Mattos - Eu queria fazer um alerta ao Marco Perduca e uma pequena observagao.
o alert a a que eu tambam estou de acordo com a "proibigao" do proibicionismo, mas, para n6s aqui dessa plenaria e para outros operadares do direito, dizia um amigo meu antes, que ser livre era realmente passimo para os neg6cios. Mas, enfim, n6s temos, hoje, um reflexo que s,e aglutinou de 82 pra ca em termos de proibigao, aqui, me referindo basicamente a questao das drogas. E, aquela apoca, eu nao vou citar nome, um ex-ator que foi presidente daquele pais ao norte do Maxico e ao suI do Canada, dizia que bastava dizer nao.
A pergunta a, Marco: Sera que para a sociedade civil organizada, para n6s, operadores do direito, bastaria dizer sim?
Marco Perduca - It depends on what is the question, because just say yes to what ...
I would say yes to any form of antiprohibitionism, keeping in mind that it's not that liberalization should be the final result. I would rather say that legalization should be the final result.
It might be, if you want - we don't have time to go into the differences between liberalization and legalization -but, I believe that legalization we should try to implement with a method that, day by day, week by week, from time to time, reviews what is working and what is not working, while liberalization would only be to just say yes and say that everything should be as everybody ... I mean, would want.
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Globalizayao, Sistema Penal e Ameayas ao Estado Democnitico de Direito
I'm speaking too much ... but, so, the answer is, r wouldn't ... r would say, if you want, ideologically, also just say yes, but that's not enough.
So, this is what Bush father asked everybody to say: just say no, and that is that he didn't know much ... to just say no and go around the world and tell people: you know what, if you just say no that's the end of the problem.
So, if we say yes, we know that yes implies a lot of other things to be done afterwards.
Depende do sentido da pergunta. Apenas dizer sim a que?
[!!:u diria sim a qualquer forma de antiproibicionismo~ tendo consciencia de que ~!'~Q ~ta a ~raliz~ao 0 t.fl§.ulta.c1g i!.!lal. Eu diria, ao inves, que a ~.9.:,,~?gao _de"-,,ri~J?§r o resultado final.
Poderia ser, se voce preferir ~ nao temos ten1.po para entrar nas diferengas entre liberalizagao e legalizagao -, mas acredito que a legalizagao, do modo como deveriamos tentar implelnenta-Ia, haveria de seguir urn n1.etodo que permitisse rever, dia a dia, semana a semana, de ten1pos en1 ten1pos, 0 que estivesse fUllcionando e 0 que nao esti"esse fUIlcionando, enquanto liberalizagao seria apenas dizer sim e dizer que tudo deveria ser como todo l11.undo ... quisesse.
Estou falando muito '" entao, a resposta e: eu nao ... eu diria talnbem, se voce quiser, ideologicalnente, apenas dig a sim, mas isto nao basta. ---rSi:O e ~~~ ~B~sh pai pediu que todo mundo dissesse: apenas diga mio, isto e, ele nao sabia Inuito ... apenas dizer nao e sair pelo ll1undo falando para as pessoas: voce sabe 0 que, se voce apenas disser nao, este e a fin1 do problelna.
Assin1, se disserrnos sin1., saberelnos que este sinl ilnplica em uma serie de outras coisas a sereln feitas depois.
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Debates
Pergunta selll identificagao do autor - Salo, voce n18ncionou a questao da prisao cautelar. Tenho Uin eX8111plo eln que 0 juiz deterrninou a prisao cautelar de Uln suspeito par cinco dias, tendo possibilidade de prorrogagao por igual periodo. Nao houve sequer necessidade de Habeas Corpus. O' proprio juiz, de oficio, revogou a prisao vinte e quatro horas depois. No entanto, essa pessoa ficou presa por vinte e·quatro horas. 0 trauina e iniInaginaveL
Dest~ forma, a prinleira parte da pergunta e se a prisao cautelar, como esta sendo aplicada nos tribunais, ao reves do principia da n10tivagao, ten1. futuro nunl an1biente juridico democratico.
A segunda parte e em relagao ao papel da midia. Essa lllesma pessoa foi exposta a execragao publica. A ll1idia tern urn papel influente no julgalnento, au Inelhor, no prejulgamento?
Salo de Carvalho - Infelizmente, avaliando realisticamente n08SO sistenla repressiv~, 0 instrun1.ento da prisao ca~~ tende a ser cada vez rnais utilizado~~~da ~ez _~~ais nossas relagoes sao pautadas pelo signo da velocldade)° problema e que 0 tempo social difere do tempo do processo. Assill1,@}>ublico consun:1idor do dire ito penal necessita de respostas pront~ A prisao cautelar, neste contexto, adquire brutal importancia, pais fornece un1a resposta imediata, independente do julgamento de merito, antecipando a sangao.
Todavia, ao imediatizar a sangao, obtem-se, como efeito .perverso, 0 processo de desjudicializagao da decisao, a qual adquire, cada vez ll1ais, carater adri1inistrativo, de coagao direta, Ulna natureza policialesca. Logo, como Inencionado, isenta de fundanlentagao. Mas nao apenas ITIotivagao, alheia aos pressupostos da razoabilidade.
Em relagao aos Il1.E?j9..§. Q..e 5=O~11UniS:9g_aor fundan1ental que haja instrulnento'd~ controle, ;isto seu carater pLlblico. Entretanto, penso que os 111.8canisinos de controle devenl
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Globaliza<;ao. Sistema Penal e Amea<;as ao Estado Democnitico de Direito
ser aprirnorados, de forma qU8 possamos@onlpor a t.8nS8.0 entre 0 direito a inthnidade e a imagem 8 0 direito de informac;;a?JNao pactuo, porem, com a ideia de ver 0 telespectador ou 0 leitor como objeto passivo da informac;;ao. Existe Ullla relagao na qual sonl0S igualnlente sujeitos da noticia. Nossa interagao, ao processar e delnandar detenninadas informac;;6es, define a "pauta jornalistica". Ou seja, somos co-responsaveis pelo material produzido pela midia. Os llleios de comunicagao tanlbEnn nos refleten1.. Repito a conclusao da palestra: "a culpa (tambem) e nossa".
Pergunta sem identjficagao do autor A legalizac;;ao do uso das drogas proibidas hoje nao acarretaria um onus financeiro e social muito elevado para 0 Estado no tratamento desses futuros doentes? Como lidar com is so?
Marco Perduca - The three UN Conventions impose a system that obliges the States that have ratified the three Conventions to adopt laws to .make all the substances in the Conventions illegaL Then it's up to each State to implement the provisions of the Conventions, according to their legal system, in particular and of course, their Constitution. Of course, there's not one single way in that, because of this, to legalize drugs, nor this process of legalization can happen in a very short period of time.
But I think we could use as an example what happened in the United States for prohibition on alcohol at the beginning of last century. So, the legalization of production and consumption of alcohol did not diminish the number of people that were drinking. Actually, in the first period after legalization, consumption went up. And I think that the same could happen with drugs.
The positive aspect was that those people that were producing, consuming and selling alcoholic beverage, in particular whisky, were not treated as criminals, so those
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Debates
that were producing and selling became people involved in a different type of trade and those that were drinking - and as I said before, drinking is something, overdrinking might be another problem -, if they had a health problem, were treated like people that have health problems. So they were not put in jail, but they might have been put in a hospital, although the United States system is a little more complicated than the ones that we have recently seen in Europe.
And what happened was a reduction on the number of people needing hospital care for diseases related to alcohol, because legalization allowed a better control of quality on alcoholic beverage that was sold, quite different from what occurred with clandestine production.
As tres Convenc;;6es da ONU imp6em um sistema que compele os E stados que as ratificaram a adotar leis para tornar ilegais todas as substi'mcias list ad as nas Convenc;;6es. Ai, cabe a cada Estado implementar os dispositivos das Convenc;;6es, na conformidade de seus sistemas legais e, especialmente e claro, de suas Constituic;;6es. Naturalmente, ate por causa disso, nao ha um caminho isolado para legalizar drogas e tampouco este processo de legalizac;;ao pode acontecer em um curtissimo periodo de tempo.
Mas, acho que poderianl0s usar como exenJplo 0 que aconteceu nos ]"stados ,llnidos com a proibis;ao do al(:0,91, no comec;;o do seculo passado. A legalizac;;ao da produc;;ao e do consumo de alcool nao reduziu 0 nurnero de pessoas que bebiam. Na realidade, nofprimeiro periodo apcs a legalizagao, 0 consumo aumentoli)E penso que 0 111.eSlllO poderia acontecer com as drogas.
o aspecto positi'l[O foi que aquelas P§.§SQ.aS que QD:lduz~ cQn§.!l!:!!.i~ § vendiam bebidas alc061icas, especialmente whisky, nlLQ. era!J1 ~as £Q.l1l0 gimiuns.afL de modo que aqueles que produziam e vendialll tornara111-se pessoas envolvidas em urn tipo diferente de comercio e os
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Globalizac;ao. Sistema Penal e Ameac;as ao Estado Democratico de Direito
que ~n1. - 8, como eu disse antes, beber e uma coisa; beber ern excesso ja pode ser U1TI outro problema -,Ge tiveSSelTI urn problema de saude, eran1 tratados como pessoas com urn problema de saud~Nao eram, portanto, postos na cadeia, mas, poderiam ser encatninhados a U1TI hospital, embora 0 sistema de saude nos Estados Unidos seja un1 pouea mais complicado do que os que temos vista recentemente na Europa.
E 0 que acontece_u foi uma ~dugao na quantidade de internagoes por doengas relacionadas ao alcooD pois a leg"l!~-,,~-? permitiu urn melhor .0l!J1rP2 sobre a ql,lJ!lidacte das bebidas alco6licas vendidas, diferentemente do que ocorria com a produgao clandestina.
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MESA 3 o processo penal das formag6es sociais
do capitalismo pas-industrial e globalizado e 0 retorno a prevalencia da confissao- da subsistencia da tortura aos novos meios invasivos de busca de
prova e a pena negociada
Alessandro De Giorgi Universitil. degli Studi di Bologna - Italia
Geraldo Prado Universidade Federal do Rio de Janeiro e Movimento da
Magistratura Fluminense pela Democracia - Brasil
Presidente da Mesa: Juliana Neuenschwander Magalhaes Universidade Federal do Rio de Janeiro - Brasil
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Mesa 3 o processo penal das formagoes sociais
do capitalismo p6s-industrial e globalizado e 0 retorno a prevalencia da confissao
- da subsistencia da tortura aos novos meios invasivos de busca de prova
e a pena negociada
Alessandro De Giorgi
Vorrei prima di tutto ringraziare Maria Lucia Karam e Juliana Neuenschwander per avermi offerto l'opportunita di partecipare a questa incontro straordinarian1ente interessante; e poi in particolare Juliana, per il suo instancabiIe lavoro di traduzione.
Il titolo .di questo tavolo e molto lungo ed e piuttosto complesso. 10 vorrei selezionare in particolare uno· dei ten1i che il titplo del tavolo suggerisce: e il tema della tortura, intes6 pera non tanto dal punto di vista delle nuove politiche processuali penali quanto dal punto di vista delle rappresentazioni sociali dominanti del nemico pubblico, perche sana proprio alcune rappresentazioni del nen1ico a normalizzare il ricorso alla tortura, anche all'interno delle stesse den10crazie occident alL
Nella retorica sicuritaria che si e diffusa negli anni '80 e '90 soprattutto in Europa e negli Stati Uniti, il discorso pubblico sulla criminalita e l'insicurezza si e orientato alla costruzione di nemici pubblici rappresentati come. aUr; rninacciosi. In questa discorso dominante, il nemico pubblico ha assunto sembianze. fattezze e connotati diversi -
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Alessandro De Giorgi
straniero, crilninale, terrorist a - ed e stato rappresentato rispettivanlente COl1le una lllinaecia· ai contini nazionali, alia sicurezza pubblica, all'ordine globale.
Questa rappresentazione del nemico COllle altro nlinaccioso e assoluto, ha legittimato e sta tuttora legittimando un reginle di perenne emergenza, e proprio questa reginle di emergenza paradossahnente IInorn1ale" legittin1a la tortura: perehe all'emergenza-criminalita, all'emergenza-in1Inigrazione a all'emergenza-terrorisnlo si risponde can una guerra globale permanente. E ogni guerra prevede la tortura come suo elen1811to costitutivo. Le nuove elnergenze non sono localizzate: esse sono eonten1poranealnente nazionali e globali. Ouindi credo che non sia possibile formulare oggi una critica del diritto pena1e senza ehe a questa si associ una critica radicale della guerra. Iufatti, il discorso delle politiche penali e la retorica della sicurezza rappresentano sempre pili un linguaggio di guerra: una guerra che si eostruice attraverso la riproduzione ossessiva dell'altro C0l1l8 entita rninacciosa e disumanizzata.
A questo proposito, lasciatemi lanciare una piccola provocazione sui fatti recenti in Iraq, sulle torture del carcere di Abu-Ghraib: una buona parte dei torturatori ameri<;;.ani nella prigione irachena di Abu-Ghraib si e formata professionalmente nelle prigioni americane. Nelle carceri statunitensi oggi e sepo1ta un'intera generazione di afro-an1ericani poveri ehe un'altra guerra insensata ha condannato a una condizione di morte civile, sociale e politica. Mi riferisco alia guerra alia criminalita e alia droga. I:unica differenza tra Ie due guerre e che - a differenza di quanto e accaduto ad Abu Ghraib - delle prigioni americane abbiamo poche foto-ricordo.
Per questo e importante ricostruire il processo di formazione di questa retorica di guerra, dentro e fuori dai C011-fini dell'occidente. La guerra al terrorismo - e faccio una parentesi: so di stare affrontando un tema che e oggetto del
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o processo penal das fo[ma~6es sociais do capitalismo pos-industriai e globaJizado e 0 retorno a prevalemcia da confissao - da subsistEmcia da tortura aos novos meios invasivos de busca de prova e a pena negociada
tavolo successivo, 111a la razionalita organizzativa di Maria Lucia ha impedito tassativan1ente che io potessi passare aH'altro tavolo ... - dicevo, la guerra al terrorisIno si presenta corne una -guerra anon1a1a; e una guerra pernlanente, senza limiti temporali. E' una guerra civile e glob ale perche nl0bilita tutta la societa e non solo gli eserciti. Ed e una guerra imperiale, ne1 sensa che non si svolge tra singoli Stati, ma si dispiega sull'intero scenario globale.
I.:aspetto che a me interessa particolannente riguarda Ie dinamiche di costruzione politica e ideologica del nemico contro il quale si conmatte la guerra al terrorislno. "E la 111ia ipotesi sara che questa costruzione sirnbolica e linguistic a del nemieo e molto vicina alla costruzione del nelnico contro il quale si cOmbatte la guerra alia criminalita. E siste cioe un rapporto di osmosi, di intreccio continuo tra la guerra interna contra 1a criminalita e la guerra globale al terrOriS1110.
Esiste un documento statunitense fondalnentale che si chiama National Security Strategy of the United States -emanato nel 2002, cioe un'anno dopo l'attentato aile Thvin Towers. In quel documento elaborato dalla Casa Bianca si delineano Ie caratteristiche dei nuovi nemici dell'Anlerica. II documento dice testualmente: "I'America e oggi minacciata da paesi che sprofondano piuttosto che da paesi conquistatori". E prosegue: "siamo nlinacciati da tecnologie catastrofiche nelle mani di pochi scontenti". Dunque, la minaccia terroristic a e di fatto una nlinaccia che proviene dai "dannati della terra".
Secondo il doculllento questa guerra deve essere C0111-battuta can ogni mezzo necessaria. Infatti, il doculnento rivendica esplicitamente il fatto che gli Stati Uniti si sottraggo11o a qualsiasi giudizio internazionale sui diritti ulnani, compresa la Corte Internazionale di Diritti Ulnani. Letteralnlente, il documento definisce GOIUe "complicazioni" Ie possibili interferenze della Corte Penale Internazionale. Dobbiamo aHora dedurre che l'eventualita
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di un giudizio internazionale per i recenti fatti di tortura rappresenterebbe 801ta11to un'inutile "colnplicazione".
Vorrei suggerire I'ipotesi che tutto questo sia possibiIe - e "necessario", dal punto di vista dell'attuale strategia statunitense - perche non si cOlnbattono avversari di guerra 111a criminali, terroristi e nen1ici della civilizzazione: anzi, di una civilizzazione.
La questione sui rapporti tra strategie di guerra e strategie 0 pratiche di controllo penale non '" una nuova. Sopratutto dopo il crollo del blocco sovietico si '" discusso molto su una trasformazione della guerra a livello glob ale e su una trasformazione del controllo pen ale a livello locale. In particolare, si '" sottolineato come la guerra diventasse sempre di pill un' operazione di polizia internazionale, mentre I' attivita interna di polizia aSSllIlleva sempre di pili caratteristiche militari. Quindi, militarizzazione della polizia e trasformazione poliziesca dell'azione militare. La situazione che si e consolidata in questa scenario evidenzia una continuita tra guerre umanitarie a Hvello globale, e guerre sicuritarie all'interno dei confini nazionali: ne deriva una vera e propria sin1biosi tra scenari di guerra e imn1aginario della sicurezza.
La retorica della guerra ha attraversato ripetutamente .i confini nazionali, verso 1'8sterno e verso l'interno. Questa processo ha di fatto aholito qualsiasi distinzione tra sicurezza interna e sicurezza globale.
Partiamo dagli anni '80 e dagli Stati Uniti, perche gli Stati Uniti sono un import ante laboratorio di nuove politiche e retoriche della sicurezza, che vengono poi esportate verso il resto del mondo: politiche, strategie e retoriche _ pensiamo solo alia tolleranza zero e alia guerra alia droga. Negli anni '80, la retorica della guerra scompare gradualmente dallo scenario internazionale, perche viene meno il nemico pubblico principale delle democrazie occidentali: l'Unione Sovietica. Ma negli Stati Uniti la retorica della
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guerra non smetteva di esistere; al contrario, essa veniva importata verso l'interno.
I nuovi nemici erano interni e nascevano nel corpo della societa americana: gli afro-americani del ghetto, i latinos poveri, i tossicodipen.denti, gli immigrati, Ie madri singole. Tutto quel complesso di marginalita sociale ed economica, che in maniera dispregiativa '" stato definito underclass.
La guerra si scatena negli anni '80 contro questa nuova minaccia, contro questo sottoproletariato urbano "111inaccioso". E' una guerra che si e definita come guerra
. alia droga e guerra alia criminalita. Una guerra genocida, nei confronti sopratutto degli afro-americani, che ha trasformato gli Stati Uniti - come dice Nils Christie - in un grande gulag: due milioni di detenuti nelle carceri americane, pili della meta afro-americani; sei milioni di persone complessivamente controllate dal sistema penale. Gli Stati Uniti spendono pill per careeri, tribunali e polizia - cio", per la guerra interna - di quanto non spendano per 10 Stato sociale, l'istruzione, la sanita, ecc.
La guerra interna degli anni '80 e '90 '" stata anche una guerra al ghetto, una guerra urbana articolata a partire dalla geografia umana delle citta americane: una geografia sempre pill segregativa, in cui la middle upper class americana si rinchiudeva nelle gated comunities, mentre·iJ ghetto e Ie cosidette no go areas venivano trasfonnate in vere e proprie prigioni a cielo aperto. Come dice giustamente Loic Wacquant, il ghetto e il carcere 6lltrano in un rapporto di "shnbiosi mortale",
II nemico pubblico di questa guerra interna '" tendenziaImente nero e povero. Non e un nemico specifico, rna un'intera classe di soggetti. Negli anni '80 e '90, la pubblicistica americana vede un grande successo di testi criminologici apertamente razzisti. Penso per esempio a un libro di Murray e Herrnstein, che si chiama The Bell Curve (La
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Curva a Canlpana), in cui i due autori teorizzano che non c'" nulla da fare per gli afro-americani perche la poverta si associa sistematicamente a una condizione di inferiorita intellettuale: una giustificazione pseudo-biologic a della distruzione della Stato sociale negli Stati Uniti.
Dunque, l'altro e costituzionalmente diverso, razzialmente e biologicamente inferiore: cosi si costruisce l'imagine disumanizzata delle nuove "classi pericolose".
Questa importazione della guerra come strumento normale di gestione dell'ordine sociale non si limita agli Stati Uniti: anche I'Europa ha infatti vissuto una stagione di questo tipo. In Europa i nemici pubblici periodicamente riproposti dai mass media sono i migranti. Non tutti pera: solo i rnigranti non-comunitari. Conie diceva giustalnente Giancarlo Corsi questa mattina, neanche tutti i non-COlnunitari, perche i nord-aluericani, gli svizzeri a gli australiani sono .esclusi daUa definizione dei nemici pubblici.
Le politiche europee di controllo dell'immigrazione di cui vorrei parlare sono in realta politiche di contrallo rivolte esclusivamente all'in1.migrazione proveniente' dai paesi poveri del mondo. Politiche di controllo e di regolazione che
,si fonnano a partire dalla costruzione dei I11.igranti caniS. 'nsniici ed invasori. Come gli afro-a1uericani negli Stati Uniti, anche in Europa i migranti sana iper-rappresentati nella popolazione carceraria. Le politiche di regolazione dell'immigrazione condizionano in n1.aniera struttura1e il diritto a soggiornare in Europa aU' esistenza di un contratto di lavoro; e rimettono interaniente la condizione gi~ridica del migrante al potere economico deU'imprenditore che utilizza la sua forza lavoro.
Le frontiere della "fortezza europea" sana sen1.pre"pili blindate, in nome della guerra all'immigrazione clandestina. Per contrastare l'invasione di questi nuovi barbari, si impiegano Ie navi da guerra suUe coste dell'Europa meridionale, come del resto succede anche in Australia. In
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Europa e in Australia, queste navi da guerra realizzano operazioni di "dissuasione" e di "allontanan1.ento" delle in1.barcazioni su cui arrivano i migranti dai paesi nord-africani: operazioni che hanno contribuito a queUa che si profi-1a chiaran1.ente come una vera e propria strage nei mari ehe circondano l'Europa meridionale. Anche la guerra all'immigrazione clandestina ha Ie sue fosse comuni: migliaia di immigranti sono sepolti nel Mediterraneo, perehs hanno tentato di entrare clandestinalnente in Europa. Guindi, anche in Europa, questa traduzione verso l'interno deUa retorica della guerra ., diventata una questione abbastanza normale, ha consolidato un linguaggio quotidiana di guerra. E la normalizzazione della guerra legittima 1a tortura come una delle strategie "necessarie" per affrontare l'emergenza.
In seguito agli eventi del 11 di settembre 2001,'si s ricominciato a parlare estensiVa11.1ente di "guerra". -Ma questo ritorno deUa guerra sullo scenario glob ale esibisce gli effetti di quanto s avvenuta nei vent'anni precedenti: it linguaggio della guerra risente cioe in maniera significativa dell'uso ches stato fatto della retorica di guerra nel contesta della guerra alia criminalita. Come la guerra alIa droga, alIa criminalita 0 all'immigrazione, cosi anche la guerra al terrorisD1.0 e una guerra an01na1a. Anche in questo caso, non si sa chi vince ne chi perde. E' una guerra che non finisce luai. Una guerra infinita. Credo che non sia difficile individuare una chiara somiglianza tra la rappresentazione dei terroristi islan1.ici come "criminali disperati" e la rappresentazione dei nuovi poveri delle Inetropoli occidentali COn1.8 classi pericolose,
L'equazione tra poverta globa1e e minaccia terroristic a s la stessa equazione implicita nella filosofia della tolleranza zero. Ma allora, cOlue possono stupire Ie· torture fotografate in Iraq, se per l'opinione pubblica delle democrazie occidentali e diventato n0111.1.ale che centinaia e centinaia di
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migranti muoiano uei mari d'EuTopa, n~l tentativQ di accedere a un'esistenza divers a da quella a cui il mondo occidentale li ha condannati nei loro paesi? Come puo stupire che i soldati della pili grande democrazia, del mondo sottopongano a torture i prigioneri irachen~, se i giudici della stessa democrazia possono condannare a ~orte detenuti affetti da gravi infermita mentali7 Come puo stupire che i soldati americani torturino i detenuti iracheni, se i poliziotti della stessa democrazia possono seviziare un afro-americano con un manganello, procurandogli una lacerazione intestinale irreversibile, e se gli stessi poliziotti bianchi della stessa grande democrazia possono piccbiare a morte impunemente un altro afro-americano - parlo di Rodney King e di cio che e successo a Los Angeles in 19927 Come PUD stupire che i soldati americani torturino in Iraq, se negli Stati Uniti la polizia ha potuto uccidere con quaranta colpi di pistola, un afro-americano di nome Amadou Diallo, che stava semplicemente estraendo un documento di riconoscimento dal portafogli7.
Tutto questo e possibile perche tanto i detenuti iracheni quanto gli afro-americani di cui abbiamo parlato _ ma pili in generale i nuovi poveri della metropoli americana _ sono considerati come "effetti collaterali": effetto collaterale e tutto cio che si deve accettare in nome di una guerra legittimata dall'emergenza.
Quando parlial)1o di nemico pubblico, parliamo di un'entita che e indispensabile aIle societa contemporanee. Penso che "tlcune geografie del dominio e della subordinazione, si reggano esclusivamente grazie ana costruzione continua di nemici pubblici. Ma il nemico, per funzionare come strulnento di coesione sociale, deve presentare alcune caratteristiche, deve essere identificato chiaramente come altro: per esempio attraverso il suo colore. Ma deve anche esseTe mimetizzato tra noi, cioe dave essere qualcuno che e radicalmente ·diverso ma anche al Cuore della
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societa. Deve essere, in particolare, qualcuno che approfitta della nostra "civilizzazione" e che ne fa un usa perverso, per rivoltarla contro di noi. La retorica del nemico pubblico ha bisogno di un nemico che non n1uore maio Un nen1ico contro il quale la guerra possa durare potenzialmente all'infinito. Non sapremo mai se dopo quello che abbiamo eliminato per ultimo ce n'e qualcun altro. Un nemico capace di giustificare un regime di "repressione preventiva" e di "prevenzione repressiva".
II nemico pubblico deve essere come il kamikaze. II kamikaze e un nemico pubblico che mette in gioco esclusivamente il proprio corpo, perche non ha altro da mettere i~
. gioco. E pero 10 fa allimite estremo della morte per sa e per' gli altri. Questa costruzione del nemico come altro disumano e cio che legittima tanto Ie misure di controllo aggressivo della citta quanto Ie attivita "ludiche" dei soldati americani nelle prigioni irachene. Percha questo discorso si fonda su un "capitale di inquietudine" che e stato accumulato dalle elite politiche dei paesi occidentali in almena venti anni di sistematica inferiorizzazione di alcuni altri: immigranti, islamici, neri, poveri.
E qui. credo che si intreccino di maniera molto chiara Ie strategie globali di dominio sui dannati della terra e Ie strategie quotidiane di controllo dei dannati della metropoli. Qui l'emergenza diventa norma e si apre 10 spazio per la "banalita della tortura" - per riprendere una nota espressione di Hanna Arendt. E' contro questa normalita e questa banalizzazione, che io penso che il pensiero critico e i movimenti globali debbano lottare.
"Obrigado" .
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Antes de tudo, gostaria de agradecer Ii Maria Lucia Karam e Ii Juliana Neuenschwander por terem me oferecido a oportunidade de participar deste encontro extraordinariamente interessante e, especialmente, a Juliana par seu incansavel trabalho de tradugao.
o titulo desta Mesa a muito longo e demasiadamente complexo. Eu gostaria de selecionar, em particular, UITI dos temas sugeridos pelo titulo da Mesa: a 0 tema referente Ii tortura, entendido, poram, nem tanto do )2.9D.t.o de lLis.t-a-das novas politic as processuais penais, lnas do ponto de vista
@as· representagoes sociais dominantes sobre 0 ininligo publici)pois sao exatamente algumas representagoes do ininligo que estao nonnalizando 0 recurso a tortura, inclusive nas proprias democracias ocidentais.
N a ~~t(}!Lc:~ da 'i§gl,lxanga, qifllWlida nos anos.ill) e3Q, sobretudo na Europa enos Estados Unidos, 0 discurso pubJi.® sabre criminalidade e inseguranga orientou-se para a cOJl§trn.g}~9 de igirn.igQs publicos representados como outros ameac;adores. Neste discurso dOlninante, 0 ininligo publico assumiu Emblantes, feigoes e tragos divers os -estrangeiro, criminoso, terrorist.§D - sendo .@J?resentado, respectivanlente, COlno U111a ~meaga as fronteiras nacio
'.nais, Ii seguranga publica, Ii ordern global:j Est·a rep!"~se!!~~.f!..o do illimig.o C0l1l0 Dutro ameagador
e absoluto i;gitimou e ainda esta ~i!:.illl.ando unl reginle de Qerene emergencia e e exatamente ~reginle de ernergencia, paradoxalrnente "normal", que legitima a tortura: pois, a emergencia-crilninalidade, a enlergencia-ilni-
-g;;gao ou a e~ge~cia-terrorismo. "~~ !:.~sponde COIn Ulna guerra global permanente. E to£!.a ®('Ifa preve a tortura como seu elemento constitutivo. As novas emergencias nao sao localizadas: sao simultaneamente nacionais e globais. Assim, acredito que nao seja p~ljormular, hoje, ul1l£\£gtica ao direito penal sem que a esta se associe uma critica radical a guerr~Com efeito, a discurso das politic as
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o processo penal das formag6es sociais do capitalisIno p6s-i~1d;tst~ial e globalizado e 0 retorno a prevalencia da confissao - d~ subslstencl~ da tortura aos novos meios invasivos de busca de prova e a pen a negoclada
penais e a retoriS.9.-_d.a seg.!lr:aI,.l,cs:a representan1, cada vez mais, uma li~u-ageIl! ete guerra: uma I£uerra que se c~nstroi atraves da reprodugao obsessiva do outro COITIO entldade ameagadora e desumanizada)
A esse respeito, deixem-me langar uma pequena provocagao sobre fatos recentes no Irague, sobre as torturas do carcere de Abu-Ghraib: boa parte dos torturadores ame-
-~ . rieanos na prisao iraquiaria de Abu-Ghralb se forn10U pro-fissionalmente nas pris6es americanas. Nos careeres ~teamericanos, esta hojeEPultada toda uma geragao de afro-
Gmericanos pobres, que uma outra guerra lnsensata cande
nou a uma condigao de morte ci;ril, social e ~o1itica. Refiro me a guerra a eriminalidade e a droga Ul1lCa dlferenga entre as duas guerras a que - diferentemente do que 'aconteceu em Abu Ghraib - ternos poucas fotos-recordagao das pris6es americanas.
Par isto, e importante reconstruir a proeesso de fornlagao desta ret6rica de guerra, dentro e fora dos limites do ocidente. A guerra ao terrorismo - e fago urn parentese: sei que estou abordando um tema que a objeto da Mesa seguinte, mas a racionalidade organizaeional da Maria Lucia impediu taxativamente que eu pudesse passar para a outra Mesa ... - rna·s, como eu dizia, a .9.Y.§na .§p teJ:Xo-risrna se apresenta eDIna Ulna guerra al1fun?-l.a; e U111a guerra
@ermanente, sem linlites tempor~isJE uma ?.11@.~}·a s:jyj.l §...
glob~, pois mobiliza toda a soc~edade e nao apen~s os exercitos. E e uma guerra impenal no sentldo de nao se desenvolver entre Estados singularizados, estendendo-se sim sobre todo 0 cenario global.
o aspecto que me interessa mais de perto diz respeito as dinamicas de construgao politica e ideologica do inimigo contra a qual se comb ate a guerra ao terrorisIllo.
. Minha hipotese e a de que esta@onstruc;:ao shnb6lica.e.lil~-guistica do ininli~e ~.o Qr6xLI£a aE.onstrugao do l~n11~ go contra 0 qual se combate a guerra a crirninalidad"-l Ha
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U111a relagao de osmose, de entrelacanlento continuo entre a ~erra interna contra a criminalidade e a guerra global ao terrorismoJ
Ha urn documento norte-americano fundamental, intitulado (NElti';nalE;;;urity-Strat~~--;'--~fthe United StateS)vindo a1uz em 2002, ou seja, urn ana depois do atentado as Thvin Towers. Naquele documento, elaborado pela Casa Branca, sao delineadas as caracteristicas dos novas inimigos da America. 0 documento diz textualmente: "a America esta sendo amea9ada hoje, muito mais por paises que mergulham nas profundezas do que por paises conquistadores". E prossegue: "estamos sendo amea9ados por tecnologias'catastr6ficas nas maDS de uns POllCOS descontentes". Portanto, a amea9a terrorista e, de fato, uma amea-9a que provem dos "danados da terra".
Conforme 0 documento, esta guerra deve ser combatida com todos as meios necessarios. Com efeito, 0 documento reivindica explicitamente que os Estados Unidos se subtraiam a qualquer juizo internacional sobre direitos humanos, ai incluida a Corte Internacional de Direitos Humanos. 0 documento define literalmente como "complica90es" as possiveis interferencias do Tribunal Penal Internacional. Devemos, entflO, deduzir que a eventualidade de um juizo internacional sobre os recentes fatos de tortura representaria tao' SOlnente Ulna inutil "complicagao".
Eu sugeriria a hip6tese de que tudo isto e possivel - e "necessario", do ponto de vista da atual estrategia norteamericana - porque nao se combatem adversarios de guerra, mas crilninosos, terroristas e inimigos da civilizagao; au melhor, de uma civiliza9ao.
A questao das rela90es entre estrategias de guerra e estrategias ou praticas de controle penal nac e uma novidade. Sobretudo ap6s a mll~ga do bloco ~gyi~.JigoL2i1Uito se discutiu sobre a transforma9ao da guerra a nivel global e a transforma9ao do controle penal a nivel 10c<i/Rl'ssaltoJJ-se
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especialmente como a guerra se tornara cada vez mais uma opera9ao de policia internacional, enquanto a atividade policial interna assumia cada vez mais caracteristicas militares. Portanto: e;Hitariza9ao da policia e transforma9ao policialesca da a9ao militaiJA situa9ao que se cortsolidou nests cenario evidencia uma continuidage entre guerras humanitarias a nivel global e guerras de segurant;a no interior das fronteiras nacionais: dai deriva uma verdadeira slm~ entre fenarios de guerra e imaginario da seguran~
A ret6rica de guerra atraveSSDU repetidaluente as fronteiras nacionais, em direc;ao aD exterior e em diregao aD interior. Este processo efetivamente aboliu qualquer distin~
. 9ao entre seguran9a interna e seguran9a global. ' Vamos partir dos anos 80 e dos Estados Unidos, por
que os Estados Unid~o -;-m importante laborat6rio de novas politic as e ret6ricas s!-a ~egur5:m9a, depois \lXpoJ'ta
..dillLpara 0 resto <i9 ~ndo:!!?oliticas, estrategias e ret6ricaSl - basta pensar nal!0leri'mcla zero e na guerra as droga~ Nos anos 80, a ret6rica de guerra gradualmente ~CJ2 do cenario in.!~a.E!..0nal, porque vern a ~r 0 inimi.90
publico principal das democracias ocidentais: a ~o So'lllitil;)3.. M.!'!..~., noS Estados Unidos, a ret6rica de guerra nao deixava de existir; ao contriuio, era in1portada para 0
interior. Os novos inimigos erarn internos e nasciam no corpo
da socied~~de' a~~;i~ana: &.S atro-americanos .do gueto, os latinos pobres, os t6xico-dependentes, os imigrantes, as maes solteiras,3Todo aquele conjunto de marginalidade social e econennica, que, de maneira depreciativa, foi definido como l!ng,erciq!i,s.
A guerra se desencadeia, nos anos 80, contra esta nova ameaga, contra este subproletariado urbano "amea-9ador:' . E um<Uiuerra que se definiu como guerra as drogas e guerra a criminalidad~JUma guerra genocida.! principalmente em relagao aos afro-americanos, transformando os
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Estados Unidos - como diz Nils Christie - em um grande gulag: dois milhoes de presos nos carceres americanos, mais da metade de afro-americanos; no total, seis milh6es de pessoas controladas pelo sistema penal. Os Estados Unidos([rastam mais com prisoes, tribUnais e policia - isto a, com a guerra interna - do que com 0 Estado social, educagao, saude)etc.
A g5'erra 1.I}..terna dos anos 80 e 90 foi tambam' uma g~ ao ~.uma guerra urbana articulada a partir da geografia humana das cidades americanas: uma geografia cada vez mais segregadora, na qual a middle upper class americana se fechava. nas gated com unities, enquanto 0
gueto e as chamadas no go areas se transformavam em verdadeiras pris6es a cau aberto. Como diz, acertadamente, LaIc Y'!~£..q~nt, o~ueto e 0 carcere estabelecenl uma relagao de "simbiose mort~'. . 0 inimiffil publico desta guerra interna a tendencialmente ,§egro .8. pobrE;) Nao a um inimigo especifico, mas tod..1t uma classe de sujeitos. Nos anos 80 e 90, a produgao editorial american-a ;~-~~grande sucesso de textos crinlinologicos abertamente racistas.· Penso, por exemplo, em urn livro de Murray e Herrnstein, intitulado The Bell Curve '(A Curva do Sino), no qual os dois autores teorizam que nao . ha nada a fazer pelos afro-americanos porque a pobreza se associa sistematicamente a uma condigao de inferioridade intelectual: uma justifica<;ao pseudo-biologic a da destrui<;ao do Estado social nos Estados Unidos.
o outro, portanto, a {Constitucionalmente diverso, racial e biologicamente inferior: assim se constr6i a hnagem desumanizada das novas IIclasses perigosafl
Esta importagao da guerra como instrumento normal de gestao da ordem social nao se limita aos Estados Unidos: a Europa tambem efetivamente viveu uma estagao deste tipo. Na Europa, os inimig~s publicos, periodicamente propostos pelos mass media, sao.2s rnigrantes. Nao
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todos, no entanto: -apenas os Dligrantes IJ.§..9-~~!'i,p's ..... Como acertadamente dizia Giancarlo Corsi esta nlanha, nem mesmo todos os nao-coDlunitarios, porque as norteamericana,s, as suigos ou as australianos estao excluidos da definigao de inimigos publicos.
As politicas europaias de controle da imigragao, de que eu gostaria de falar, sao, na realidade, politicas de contrale voltadas exclusivamente para a imigrayao proveniente dos Raises J?£'pres do mundo. Politic as de controle e de regulagao que se formam a partir da (Sonstrugao dos migrantes como inimigos e invasare~ ~o os ~fro-'!.~~ri~ ~ ~ados Unidos,§a Europa, os migrantes tambam estao super-representados na populagao carcep'tri>;) As p~s r§9.lJII'!QQras da i~l.igEa:,<ao condicionam, de maneira estrutural, 0 direito a permanecer na Europa a existencia de urn contrato de trabalho, ,-em.etHndo in\eirarnent€ condi<;ao juridic a do Inigrante ao poder econo1nico do empresario que utiliza sua forga de trabalhO)
As fronteiras da "fortaleza europaia" estao cad". vez mais blindadas, em nome da guerra a imigragao clandestina. Para se opor a invasao destes novos barbaros, enlpregam-se navios'de guerra nas costas da Europa meridional, como, de resto, acontece tambam na Australia. Na Europa e na Australia, estes navios de guerra realizam operag6es de "dissuasao" e de lIafastamento" das enlbarcag6es nas quais chegalTI as migrantes dos paises norte-africanos: operag6es que contribuiram para 0 que claran1ente se delineia como uma verdadeira tragedia nos ll1ares que circundam a Europa meridional. A g!l!~.g.9- a imigragao clandesti
-ll.§:...tambem tern sUas va~ comuns:§ilha;E;sde i~ltes estao sepultados no Mediterraneo, por terem tent ado entrar clandestinamente na Europ~ Assim, tambeID na Europa, esta tradugao para a interior da ret6rica de guerra torndu-se uma questao bastante normal e consolidou Ulna
linguagem cotidiana de guerra. E a normalizagao da \;IQer-
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EI~' seguida a-,;;e'-'e;;t~~·-do-i"i de setembro de 2001, recomegou-se a falar amplamente de "guerra". Mas, este retorno da guerra ao cenario global exibe 'os efeitos do que acontecera nos vinte an08 precedentes; a linguagen1 da guerra seoa, de maneira significativa, 0 usa que se fez da rst6nca de guerra no contexto da guerra a criminalidade. Como a guerra as drogas, a criminalidade, ou a imigragao, a guerra ao terrorismo tamb~m e uma guerra an6mala:,... _._---- .- - -- -._-----. - .---- ...
Tambem neste caso, nao se sabe quem vencs, nem 'quem perde. E uma guerra que nao acaba nunca. Uma guerra~.!lR Creio que nao seja dificil identificar uma clara semelhanga entre a representagao dos terroristas islamicos como "crilninosos desesperados" e a representagao dos novas pobres das luetr6poles ocidentais como classes perigosas.
A equagao entre pobreza global e ameaga terrorista e a mesma equagao implicit a na filosofia da toleri'mcia zero. Entao, como se espantar com as tortutas fotografadas no Iraque, se, para a opiniao publica das democr'lcias ocidentais, virali normal centenas e centenas de migrantes niorrerem nos mares da Europa, na tentativa de alcangar uma existencia diversa daquela a que 0 mundo ocidental os CODdenou em seus paisei{Z)Como se espantar que os soldados da maior democracia do mundo submetam a tortur.as os prisioneiros iraquianos, se os jUiZ8S desta 1ll8sma delTIOCracia podem condenar a morte presos afetados por graves enfermidades mentai~omo se espantar que os sold ados americanos torturem os presos iraquianos·, se os policiais da mesma denlocracia pod em seviciar urn afro-americano com urn cassetete, provocando-lhe uma dilaceragao intestinal irreversivel e se os m8smos policiais brancos da mesma grande democracia podem, impunemente, espancar ate a morte urn outro afro-americanci"/V- falo de Rodney King e do que aconteceu em Los Angeles em 1992. Como
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o processo penal das forma90es sociais do capitalismo pes-industrial e globaIizado e 0 retorno a preval€mcia da confissao - da subsistEmcia da tortura aos novas meios invasivos de busca de prova e a pena negociada
se espantar que os soldados americanos torturem no Iraque, se, nos Estados Unidos, a policia pode matar, com quarenta tiros de pistola, urn afro-americano de nome Amadou Diallo, que estava simplesmente tirando da carteira urn documento de identidad.(2)
TUdo isto e E2ssivel, porque tanto os presos iraquia-
\
llOS' quanto os afra-americanos de que falamos - n1as, mais genericamente, os novos pobres Cia metropole americana-, sao considerados "efeitos colaterais": efeito colateral e
(tudo aquilo que se deve aceitar em nome de uma guerra ~gitimada pel a emergencia.
Quando falamos de inimigo publico, falamos de uma (gntidade indispensavel p~as s~dades contempora-'
neasJAcredito que ~lgumas geografias do dominio e da subordinagao~g ~~am exclusivamente 9!,agas J! permanente construgao de inimigos publicos. Mas, 0 inimigo, para funcionar COl1la instrumento de coesao soci~i-:-deve apresentar algumas caracteristicas, deve l>.er identificado claralnente como outro: por e]:rn.W...wo, a.!!e.Y.§S de sua £2.!. Mas, deve ainda estar entre nos, camufIado, ou seja, deve ser alguem radicalmente diferente, mas que esteja, ao mesmo tempo, no coragao da sociedade. Deve ser, especialmente, ~guem que se aproveita da nos;';;-'''ci;;ilizagao'', fazendo del a urn uso perverso para volta-la contra nail A retorica do inimigo publico precis a de urn inimigo que -nunca ~. Urn inimigo contra 0 qual a ll""~3 possa ~ potencialmente <!Q infinito. Jamais saberemos se, depois daquele que eliminaramos por ultimo, nao havera algum outro. Umjpimiqo Q.9W'I.Z de mstifu:ar um regime de
C:.epressao preventiva" e de "prevengao repressiva-:J o inimigg publico deve ser £QDlO 0 kamikaze. 0 kami
kaze e urn inimigo publico que poe em jogo exclusivamente 0 proprio corpo, pois nao tern outra coisa para botar em jogo. Mas, 0 faz ao limite extrema da morte, para si e para as OutIOS. Esta construgao do inimigo como outro desurna-
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Alessandro De Giorgi
no e 0 que legitirna tanto as rnedidas de controle agressivo da cidade, quanto as atividades "ludicas" dos soldados americanos nas prisoes iraquianas. Porque este discurso se funda em um "capital de inquietagao" acumulado pelas elites politicas dos paises ocidentais, em pelos 1nenos vinte anos de sistematica inferiorizagao de alguns outros: iInigrantes, islilmicos, negr08, pobres.
Aqui, creio que se entrelaga111, de Inane ira 111uito clara, as estrategias globais de dominio sobre os danados da terra e as estrategias cotidianas de controle dos dan ados da metropole. Aqui, a timergencia se torna norma e abre 0
e8pago para a <lbanalidade da tortur~- para retolnar U111a conhecida expressao de Hanna Arendt. It contra esta normalidade e esta banalizagao, que acredit;que ;;~ensamento critico e os movimentos globais devam lut~
UObrigado" .
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Geraldo Prado
Cumprimento 0 publico, os alunos da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), da Faculdade de Direito de Campos, da Faculdade de Salvador (Bahia) que tambem estao aqui. Isso confere a dimensao dessa realizagao, que foi levada a cabo par Maria Lucia Karam, -em n01ne pessoal, ern non18 do IBCCrim do Rio de Janeiro e em nome do Movimento da Magistratura Fluminense pela Democracia (MMFD).
Foi muito pequena a contribuigao do MMFD na construgao deste projeto, que se qualifica por consolidar importante ponto de encontro do pensa1nento critico. C0I1l_0 rnovimento que se inicia, com as dificuldades naturais de to do movimento, 0 MMFD nao pade se. fazer presente de forma mais incisiva. Maria Lucia Karam e, os alunos do Centro Academico Candido de Oliveira (CACO) superaram todas as expectativas para realizar este que esta sendo um belissitno encontro, urn extraordinario momento de refiexap. O~a de minha palestra e a@issolugao das garantias
processuais penai~ au como a doutrina processual penal da pos-modernidade sublima 0 individual e atenta contra a dignidade da pessoa humana, construindo suas balizas sabre marcos teoricos que resgatam as "Raz6es de Estado" de epoca pass ada.
Vou enfrentar 0 tema de um modo diferente daquele que via de regra caracteriza minhas intervengoes orais. Inicio pela leitura do prefagg ao liyro de Carlos Roberto Siqueira Castro, ('A CoMtituigao Aberta e os Direitos Fundamentais') 0 prefacio e de autoria de um de nossos maiores constitucionalistas, Paulo Bonavides, referencia nacional nao s6 no ambito do direito constitucional, mas tambern no terreno da luta politica, da recuperagao da democracia, na transigao do periodo autoritario para outro menos autoritario e na construgao do sonho de, finalmente,
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Geraldo Prado
quem sabe, algum dia transformar a sociedade brasileira en1 un1a sociedade n1ais justa.
Com efeito, Pauk> I2.Qnavides escreve que: "as constitucionalistas rea~ionarios, aferrados:-'contudo. as imagens saudosas do privilegio e ao cult() da autoridade e da tradigao ou aos abusos de un1 formalisma sem Ihnites, buscam ainda, num teorismo vaa, desmembra-los da democracia e, por essa via, invalidar 0 processo emancipatorio dos povos do Terceiro Mundo ... Culmina essa complexidade COIn a presente epoca constitucional, como bem elucida Siqueira Castro, cujas reflexoes acerca da Constituigao aberta e dos direitos fundamentais colhem de cheio as surpreendentes mudangas de nosso tempo, as quais poem em risco ou retardam a eficacia dos novissimos direitos humanos que se devem positivar, adjudicando-se-Ihes a qualidade ou 0
grau de direitos fundamentais e fazendo-os, por conseqiiencia, subir ao patamar constitucional, onde t€nn sua sede e garantia. Mas em se tratando das cogitagoes neoliberais, aqui poden3. haver 0 cisma dos publicistas constitucionais respeitante aos prospectos e as conseqiit1ncias da inevitabilidade da mUdanga. Segundo alguns, trata-se de metamorfose regida por um inexoravel determinismo, que in1pulsiona uma transforn1agao sem treio; segundo outros, administrada pelo livre-arbitrio dos govern antes em. presenga de efeitos Supostamente inelutaveis contidos na adequagao e ajustamento do poder politico nacional as conseqiiencias ditadas ao Estado pelo ultimato do capitalismo tinanceiro-especulativo, de reagao, repressao e COffi
pres sao, E:I!1 ngll,!da g!QRj3.lizagao e com ba~e doutrinaria no pensamento neoliberal, esse capitalismo intent,('desfa-
-----.-.---~--•• - -. --.~-~,.-. ._;~ w .~_. ___ < ___ ~_ ~_ ..... __ ........
zer em proveito de sua expansao e no proposito de con solidar suas obstinadas metas de conquista de mercado e seu novo estilo de dominagao economicilJ os quadros cada vez .~is a.p-'''J.'!~~dos da autoqet.'!Dl1inagao eco-;:'iJ.;;Qi;-'ae ppliiica dos Povos.;Dissolvendo soberanias ou enfraquecendo-lhes . -------.~--..--..-_. c ..
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o processo penal das formar;:oes sociais do capitalismo pas-industrial e globalizado e 0 retorno a prevalemcia da confissao - da subsistemcia da tortura aos novas meios invasivos de busca de prova e a. pena negociada
os instrun1entos de protegao constituciona] 0 capitalismo daquele genero "gloca os Estados qa periferia na ponta -- -------- .~.--- .. ~ ....... deste dilema: ou a resistencia bern sucedida, que absorve-) ra as transfonnagoes ao prego das privag6es e sacrificios \ impostos pelo bloqueio neoliberal do Consenso de 1
. Washington, sem abdicar todavia os programas sociais de I educagao, saude, seguranga e previdencia, com 0 povo conservando a jurisdigao de seu destin~, 0 que seria a melhor alternativa, ou a curvatura dorsal aos globalizado- i
. res eln troca de E?mprestimos financeiros que acaban1 por /i
j arruinar a moeda, elevar a taxa de juras, fazer a economia ! baquear na estagnagao e a divida contraida subir a prop~r, \ \ goes tao extremas que as conseqiiencias nao tem side (
1\ outras senao 0 colapso da soberania, a desnacionalizagao, \
o "status" de vassalagem, a perda da dignidade nacional ': J em acordos sigilosos celebrados com 0 Fundo Monetario
( Internacional, a desprecavida abertura dos mercados e, breve, do espago aereo, bem como a invasao do capital estrangeiro, que se apodera das grandes reservas poten- ( ciais da riqueza nacional e consuma a recolonizagao passi- 1 va e pacifica desse Pais qu'e hoje a mais um territ6rio do j que uma nagao. as governantes fazem 0 papel de donata['{os das capitanias feudais em que a globalizagao esta transformando os antigos Estados nacionais da periferia ao inaugurar a Idad§ !'!ladia cjQ 1§1~0 ~. a homem dessa meia idade nao a 0 servo da gleba mas 0 helota do capital; aqui,& metal substitui a terra e 0 banqueiro 0
baraQj" Nosso conceituadoconstitucionalista adverte quanto
aos riscos do deslocamento do valor dignidade da pessoa humana do centro do sistema juridico para a periferia, onde ficam adormecidas as normas programaticas, embaladas pela artificial sedugao das impossibilidades absolutas e dos destinos definitivos .
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Geraldo Prado
o ataque aos direitos fundamentais de todas as gera<;oes, para nos fixarmos em categoria definida por Norberto Bobbio, constitui fencnneno contemporaneo, parEnn sU:a racionalidade, sua l6gica, podera ser encontrada na representa<;ao de mundo em vigor na Idade Media.
Nao por acaso 0 conceito de outro, de urn sujeito social diferente da proje<;ao de noss~ imagem idealizada, mas real e indispensavel 8._ sociedade, sofre com a intoler€tncia que, por exemplo, ha p~,::£s s~ec.ul-;s -'1~Q 9-(!D;!!!a E;;;ligiao cjistiI1tCl, da oficial. ~-.-..
Um dos pilares da modernidade esta sendo desmontado. A humanidade que, nas palavras de Boaventura de Souza Santos, sustenta 0 projeto moderno, depende da realiza<;ao cotidiana do valor dignidade da pes so a humana. Este valor, por sua vez, se orienta em direqao a justiqa social. Sem duvida, a ~i' por L~ga.~al se rellete em todos os planas da existencia hunlana, pois que canstitui v.!'.!.<:! para assegurar a dignidade da pessoa humana. --< ~- '-' ~. --------.-- .---~~---
Por isso, Paulo Bonavides, naquele mesmo pretacio, destaca: "Em suma, a justi<;a social, sempre presente, nunca denegada nos linlites enos termos ponderativos e hermen€mticos de cada problema concreto... devera ser, inarredavelmente, a base de legitimidade de todos os Est~dos ~ons~itucionais do Terceiro Mundo. ~em justi<;a socIal, nao ha Estado de Direito nem democracia que sobreviva nos paises da perifer~ Daqui se infere quanta a Estado social continua sendo, como expressao de poder e organiza<;ao fundamental da sociedade, importante para 0
futuro dos povos subdesenvolvidos. Nao podem esses prescindir de uma Constitui<;ao prospectiva, dirigente, programatica e vinculante, teorizada pelos constituintes weimarianos e mexicanos da prime ira rnetade do seculo 20, e positivada no mais elevado grau entre nos pelos autores da lei de 1988. 0 abandono desse modelo significa para os povos continentais da America Latina, a suicidio do seu
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o processo penal das forma<;oes sociais do capitalismo d.6s-industrial e globalizado e 0 mtorno a prevaUmcia da confissao - da {ubsistencia da tortura aos novos rueios invasivos de busca de prova e a perm negociada
projeto de liberta<;ao; por conseguinte, 0 fim das derradeiras esperangas concretizadoras de uma independencia, pela qual batalham ha cerca de duzentos anos, porfiando por extrai-la da esfera formal. A deserc;ao agora _~gilllQlle, do mesmo passo, aoLi'nergulho nas·~bmi~sa~·~eoliberal dos globalizadores, na escuridade das trevas da meia idade condensadas par urn capitalismo financeiro e especulativo da condic;ao mais atroz.1enfim, a ~Ell1di~Lao suposto determinismo da recoloniza<.1~3 que aqui querenl -introduzi~ as fautores da escola neoliberal, nao admitindo alternatIvas aquele projeto; algo, portanto, excruciante e inaceitavel. Nesta crise, ou e a humanidade que agoniza au e a capitalismo que se desintegra. Unicamente a Direito prevenira a crise' aparelhada pelos sucessos contemporaneos do ~~cado g!g!2.§1!~ado, "..'?n~L~liz_ado e monOJ2olj.stal:§.nde se <;oncentra 0 capit"l, se amplia a desigualdade, se agrava a injusti~e tambelTI, par unla ciencia, par uma ciencia c~ja infinita expansao ha servido, ate agora, menos de em.a~cipar do que fazer mais pesado a fardo das opress6es sa~iais e 0 confisco do emprego, da renda, da' soberania: da Constitui<;ao, da dignidade dos Poderes nos paises subdesenvolvidos ... Com efeito, § Estado de Direito e Estado de Justi<;~ Nao e meramente sistema de leis, porque as leis, na doutissima li<.18..o de Juarez Freltas, poden1 ser lnJustas. Podem ser por igual, severas demais, draconianas, tiranicas, crueis. Leis que naD libertalTI, mas opritnem, como nas ditaduras. 0 arbitrio pode corromper e degradar 0 Estado das Leis e 0 Estado das Constitui<;oes, mas nunca 0 Estado justo, feito precisamente do respeito a lei e a Constituic;ao, a legalidade e a constitucionalidade. 0 dire ito e justo porque e legitimo; s6 a lei pode ser injusta porque nem sempre e legitima ... e direito ou liberta ou na~ e direitsJNao Ihe reconhecemos outra fUl1gao, outra fila sofia, Dutro escopo, Dutra validez. Nao importa discutir-Ihe a origem, mas 0 finl, o fim na concretude social contempori'mea, sobretudo
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! ,
:1 i Geraldo Prado
quando se atenta em que ai ja baixam sombras espessas sobre 0 futuro da liberdade e 0 destino dos povos. Aquele fim e a vocac;:ao das constituic;:6es. Nao pod em elas em paises da periferia apartar-se, por conseguinte, do constitucionalismo dirigente, vinculante; programatico.Faze-lo seria candena-las a ineficac.ia, a obsolescencia, a fatalidade, desatando-a dos seus lac;:os com 0 Estado social. No Brasil, designadamente, demolir 0 Estado social, qual se vem fazendo, e revogar tres decadas de constitucionalismo, uma insensatez, urn desservigo, urn retrocessol"
Finalizo a introduc;:ao chamando atenc;:ao para 0 fato de que este texto de Bonavides deve levar a refletir sobre 0
(papel da dis~S-;;luc;:;fodas-garantias proceSSt.iaiS-p~najs]~on_ "textualizando 0 retorno as praticas penais dapre-modernidade, de tal forma que as "novigag!3s" podem ser reveladas como 0 que de fato"!i'io:£Parte de um projeto que insere 0 controle social, em sua face punitiva, no esquema maior da globalizac;:ao de mercados e reduc;:ao das incertezas e riscos para 0 capital:-J
Assim, e P!:.~ C9.}2:"~E",.enderf'0mo foi desenhado 0 modelo de soluc;:ao dos casos penais~ concebido teoricamente segundo regras que se construiram a partir da modernidade. Falar da dissoluc;:ao das garantias implica recorrer a reCUISOS que nos precisan10S tsr sen1pre a InaD.
o ~~~.~,~J!:9_ e mais import ante e a Ecurso a memoria coletiY"~1 Todos r:.6s carregamos uma mSlnoria, mas essa memoria precis alter a capacidade de nos fazer enxergar no ........ _. __ ~~, ""'''~,",".' 1--
passado 0 sofrimento e a tensao que sao responsaveis pela construc;:ao de modelos de garanti~que, apesar de tudo, nos ainda na~ conseguimos implementar no Brasil (e eu falo diretamente do Brasil), que nos nao conseguimos implementar aqui.
A ideologia das garantias processuais e extremamente desfavoravel a globalizac;:ao, pelo menos 0 modelo de globalizac;:ao reconfortante, de regozijo.
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, o prod:lsSO penal das formagoes sociais do capitalismo p6s~industrial
e globalrado e 0 retorno a prevalemcia da confissao ~ da subsist€mcia da tortura aos novas meios invasivos de busca de prova e a pena negociada
o constitucionalista portugues Gomes Canotilho, em seu "Direito Constitucional e Teoria da Constituic;:ao", destaca que esta melnoria que a aluno carrega as vezes e Ulna memoria marcada por urn curso pequeno, e muitas vezes tambem esta caracterizada por uma incapacidade de interpretac;:ao dos fatos.
Ontem, Nilo Batista mencionou 0 esfo.D<o de Alessandro Baratta em@ssociar historia a direito penal, a politica criminal, a criminologia e ao processo pena,!} Eu creio que esta e a(nossa tarefo/ 0 nosso esforc;:o, porque as estruturas processuais penais funcionam de determinada maneira porque existem sujeitos que tem estatutos jurid\cos e estatutos politicos destin ados a fazer com que elas funcionem de uma determinada ll1aneira e a construgao dos estatutos e uma construgao historica. A nossa memoria as vezes nao nos ajuda a captar isso. Mais do que nao nos ajudar a captar, ela nos leva a deixar no oculto da nossa mente as experiencias con~trangedoras e os sacrificios que resultaram naquilo que, hoje, nos do processo penal chaman10S de~staculo a \.iiTiProcesso penal mais hUlnano, trocado pela ideia de Justic;:a Penal eficiente e capaz de dar resposta a uma especie de sentimento de inseguranc;:a e de impunidad<£lE~.t& c:!.i_~so equivocado e 0 discurso atu;;l.l do proces..llo Il§laL
Vera Malaguti Batista questiona sua condic;:ao de sociologa. Ela diz: "olha, eu nao posse mais ser soci6loga, qUando os sociologos, numa determinada vertente, sao responsaveis pel a produc;:ao do sofrimento".
Eu e OutIOS processualistas nos questionamos, tambem, sobre a nossa condic;:ao de professores de processo penal, quando trabalhamos com essa memoria curta e com o discurso vazio de senso comum e temos a responsabilidade de levar aos estudantes a nOGao de que o/}'rocesso penal configura obstaculo a algum modelo de defesa social ou de tranqiiilidade social ou de paz' socia]e, que por isso, exis-
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Geraldo Prado
tenl forgas que querem des~ontar 0 processo penal, Cornec;ando pela dissoluc;ao das garantias.
Vera Malaguti Batista teve a opc;ao de caminhar para a historia. Nos do processo penal na~ podemos ter a pretensao de deixar 0 processo penal nas maos de uma escola que dominou as concepc;oes fundamentais do processo do final do seculo XIX ao comec;o do seculo XXI, produzindo entre outras coisas a noc;ao de uma teoria geral do processo que gera, talvez Sem se dar conta, o' sacrificio de garantias para atender a objetivos identificados como soluc;ao de conflitos de natureza nao penal, mas que, deslocados para 0 campo dos confiitos penais, com sujeitos concretos do conflito penal, terminam sendo metodos de controle social extremamente dariosos, perversos, discriminat6rios e racistas.
A PJ9.Rf@ c..'?~c;ao desse S:-'?)lr:gito 0Teoria Geral do Process Cl) ~a(dentro de urn progral11a ideologico que hoje e muito bern recebido pel a ideologia neoliberal e globalizante)}
Nos(nao podemos fugir Ii guerra enos esconder em outra disciplinal A unica l11aneira de dar conta disso creio
.~ ./ -- -'--- , ~U, e ra.zer para 0 processo penal a criticD
. rna EeE~e do tel11a que me cabe esta relacionada Ii ideia da verdade. ~----'-'~~~Com efeit'o.' inun1eros manuais do processo penal e, pratIcamente, todos os manuais de processo civil indicaITI COlno principal distingao entre processo civil e processo penal a concepc;ao de que 0 processo penal visa Ii conquista da "verdade real ou material" enquanto ao processo civil basta a verdade formal. Pratical11ente nenhum desses manuais interroga 0 conceito, problematiza 0 conceito de "verdade real". .
Ha urn trabalho excelente sobre provas invasivas de autoria de Maria Elizabeth Queijo, de Sao Paulo, intitul~do "0 Direito de nao produzir prova contra si 1118sn10: 0 princi-
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a proeesso penal das forma90es sociais do eapitalismo p6s-industrial e globalizado e 0 retorno a prevaleneia da eonfissao - da subsisteneia da tortura aos novos meios invasivos de busea de prova e a pena negociada
pio nemo tenetur se detegere e suas decorrencias no processo penal", em que nao ha nada acerca da discussao empreendida por Michel Foucault sobre Poder Disciplinar e nao 11a qualquer referencia ao conceito politico de verdade ou Ii sua manipulaC;ao, a manipulac;ao politica do conceito de verdade para atingir determinados resultados.
Malgrado os reconhecidos meritos do livro de Maria Elizabeth Queijo, este e 0 tipico produto de urnE0delo de Escola que apela ao dogmatismo consciente e se afasta das questoes politicas inerentes ao processo pen@ Esta Escol~ao se compri:nnete com 0 conjunto da sociedade brasilelIa e, nienos ainda, COlll. 0 coletivo das grupos fragilizados dessa mesma sociedad<i)
Quando nao se problematiza 0 conceito de verdade, quando I;l8.0 se coloca en1. jogo esta nogao - indagando: sera que existe alguma verdadel\D- sublima-se ponto cha.ve da dogmatica do processo, que fica supostamente neuttalizada, encoberta pelo Vell da "ciencia".
Carnelutti, no fim de sua vida academica (1965), em "Verdade, Duvida e Certeza", voltando atras de uma. posic;ao de 1925 (A Prova Civil), em que havia problematizado a diferenciac;ao entre processo civil e penal fundada na distinc;8.o entre verdade formal e material ou real, faz uma afirmac;ao interessante. Nos aqui no Brasil, por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, que ilumina esta afirmac;ao em "Glosas ao 'Verdade, Duvida e Certeza' de Francesco Carnelutti, para os Operadores do Direito", podemos saber que se ha de trabalhar com algum conceito de verdade, e possivel concluir 0 seguinte: 'fa verdade esta no todo e 0
todo esta acima da possibilidade humana'i. A verdade nao e fim ou func;ao de processo penal, a
verdade nao e objetiva em processo penal. E evidente que em urn processo penal destinado a reconstituigao das fatos, incumbido da tarefa de reconstituic;ao dos fatos a partir da problematizaC;ao do caso apresentado em juizo, a ausencia
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Geraldo Prado
de Ulna lninima atividade dessa natureza conduz ao procasso arbitrario. Por outro lado, un1 processo centrado, exclusivan1ente, na nogao de que e possivel produzir uma verdade total, abrangente, completa, a, igualmente, urn processo autoritario e arbitrario.
o interessante nisso tudo a que, nesse periodo de globalizagao e de neoliberalismo, as influi'mclas desta ideologia no processo penal parecem nos empurrar em diregoes opostas, parecem nos convidar a caminhar, trabalhando de urn lado com urn processo da verdade total, absoluta, global, real e do outro com a mais absoluta ausencia de investigagao sobre os fatos,
Hoje, 0 pensamento processual penal ainda dominante em Sao Paulo substitui a expressao verdacte real por verdade material, mas quando se Ie os textos a de verdade real que a Inaioria esta falando.
Por outro lado,!!:a a completa abdicagao da reconstituigao dos fatos, de uma tarefa de compreensao dos fatos para permitir ao juiz fonnar seu convencimento por maio dessa tarefa de compreensao dos fat00atos que podem configurar aquela infragao penal que se atribui ao rau.
EJ2,<:t@f!oxal, mas trabalhamos Com OS_9..Qls GQll..Qgitos simultaneamente: um~erdade total e a ausencia absoluta de verdadel Esses dois conceitos sao terriveis porque eles, hoje, extraidos de urn modelo de processo penal pramoderno, se valem das modernas tecnologias de comunicagao e informagao para nos passar a impressao de que ambas as solugoes de casos penais nos lev am Cl uma espacie de glorificagao, de refinamento, de tranqiiilidade e que a solugao encontrada ali a, de fato, a solugao mais justa, quer pel a via de uma descoberta, de uma verdade total e absoluta ou pela via da abdicagao das descobertas.
Como e que is so funciona, para que se possa entender berre Do ponto de v.i§ta da verdade total ou da verdade glo-
.. - ;'-'-'--' ... -<_.-
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o processo penal das forma90es sociais do capitalismo pas-industrial e globalizado e a retorno a prevalencia da confissao - da subsistencia da tortura aos novos meios invasivos de busca de prova e a pena negociada
bal, isso funciona atravas da construgao de uma ideologia de urn juiz.
o juiz a urn sujeito que tern no processo, segundo Ada Pellegrini Grinover, Jorge de Figueiredo Dias e Gustavo Badaro, entre outros, poderes instrutorios, poderes investi-
. --.-~.
ga~s. 0 juiz tem 0 dever de pesquisar a verdade no pro-cesso para que a sua sentenga nao seja definida ou denominada como sentenga irresponsavel ou sentenga des conectada com a realidade dos fatos.
Colocar nos ombros do juiz essa tarefa e £.Q!e~ar nos ombros dele outra tarefa oculta, nao revelada, nao dita, que a a-tl'refa de ser o[.mplementador de politicas de seguraIl,ga publica";J
Isso para mim sempre esteve muito claro, mas quando eu vi 0 dC?fl!IQ.Etm!r:io '~~ic;a" e me vi no document aria realizando interrogatorios, inquirigao de testemunhas, cheguei a conclusao de que um modelo de um juiz que supoe ou se supoe capaz de alcangar a verdade de um' fato, de of icio, ainda que a processo penal, formalmente, tenha se iniclado por ato do Ministario Publico, como no caso brasileiro, acreditar que esse juiz pode agir de forma isenta e in1parcial, e crer numa ilusao e issa eu vi no espelho da minha atuagao no documentario, vi aquilo que prego e que, de certo modo, pracura temperar, ef!?e vi fazendo exatamente aquilo que todo sujeito de uma atividade probatoria faz, isto a, estabelecer uma hipotese e sair em busca de informagao dentro do processo que confirme essa hipotesE;]
!:l:!2 propesso R>lXlliI, a hij:Jote@8 que se coloca na mesa a exatamente a {crtribuigao da responsabilidade criminal ao rauj A hipotese a essa e toda a atividade probatoria que 0
---'"""'"',-- ~""~-- ~
juiz desenvolve de oficio ou desenvolve intensamente a sempre uma atividade de G9.P.Jirma,,-~ desta.hiRotese.
P~cologicamente e il}IDlitavel que a juiz (assuma a hip6tese acusat6ria como sendo a sua e ai ele vai escavar todos os mecanismos de "produgao da verda~, para
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Geraldo Prado
encontrar a confirmagao daquela hipotese que inviabiliza un1 dos principios processuais mais elelnentares que e 0 contraditorio.
N6s conhecernos essa supressao cotidiana do contraditorio no Brasil desde sempre, porque 0 processo penal brasileiro sempre foi estruturado em cima da ideia de urn sujeito corn poder de decisao, que tinha respol1sabilidade de implementa<;:ao das politicas de seg-uran<;:a publica.
A men10ria que 0 aluno carrega nao e essa porque os Inanuais de processo penal nao me dizern que, [;to Seculo XIX, a fun<;:ao do juiz criminal, a fun<;:ao do delegado de policia juiz, era exatalnente esta fungao de governo, de puni<;:a,§daqueles individuos que, no periodo considerado, eram definidos como os inimigos da ordem estabelecida. Ora eram os liberais, que contestavam a politica do Estado central, ora eram as negros, que Ousavam fugir da escravidao e/ou enfrentar a escravidao com a forga, C0111 a luta na ilegalidade, na marginalidade.
o Judiciario brasileiro ficou marcado por esse modelo de juiz, que, formalmente, desde 1824, e independente, mas que, na pratica, ate hoje, nao e completamente independente e nUl1ca podera ser enquanto estiver preso a itieia de que e capaz de produzir uma verdade sem sequer c011hecer os inLuneros conceitos de verdade, dos pro-oracionais aas processuais, que fazen1 com que a propria ideia de verdade nao possa ser urn cOl1ceito pacifico e elnpregavel no processo penal.
A filosofia vai nos ensinar issa, as teoria8 do conheci-111ento vao nos ensinar issa, mas 0 neoliberalisn10 nao quer que nos aprendamos, porque ele necessita do juiz fiscal, como nos paises de origem hispanic a, e a fiscal do Ministerio Publico, ele fiscaliza 0 Ministerio Publico, 0 fiscal responsavel pelo exercicio de urn controle social.
o modelq do l}2§0 juiz pena!, desenhado pela doutrina tradicional e realizado na pratica a partir da difusao do
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o processo penal das formac;:6es socials do capitalismo p6s~industrial e globalizado e 0 retorno a prevalencia da confissao _. da subsistencia da tortura aos novas meios invasivos de busca de prova e a pena negociada
ideario da seguran<;:a publica, hoje ainda e aquele delegado de policia juiz de l~;).3e acredita formal, se, acredit.aD
G'ndependente do Executivo, e a e na hora de autonomm fi~anceira, mas nao se consegue capaz de ser responsa.v.el pela tutela dos direitos fundamentais. .. .
E ste e um lado da moeda e de algum modo e 0 que nos produzimos· nas Faculdades de Direito, ao· ensinarmos .aos nos 80S alunos a acreditar nessa fungao de. bp.sca da YE?rdade dentra do processo. Porem, esse lade da nioeda tern uma caracteristica: 0 processo produzido a partir de Ulna. ideia propria, mitigada, de contradit6rio, ainda que, .com uma dire<;:ao firme, segura, repressiva do juiz, e 1,.1n1 p'roc.~sso pesado, e U111 processo que nao atende as nece.ssidades do imediatismo, da rapida repressao e do rapido, amploeefetivo contrale social que a globaliza<;:ao exige nos dias de hoje.
o processo fica lTIuito pes ado, e fica, entao, reservado a um modelo de infra<;:6es penais que engloba to do a conjunto de casas onde situa<;:6es sociais que sao designadas infragoes penais, malgrado na sua ll1aior parte -repres811tem o questionamento de Ulna ordem extremalnente opressora, passam a ser tratados penalmente sem qualquer tipo de verdade, baseados numa ideia tremendamente perversa, que e a ideia do consenso.
Sao os processos de solu<;:ao coi1sensual, processo -~ ~ ~.--. -- ~----...
penal de solu<;:ao consensual. Trata-se de tipo de processo penal pelo qual um(Tdividuo aceita se sub meter a pen a sem que 0 Estado tenha demonstrado a responsabilidade penal desse individu;J E a comunidade juridic a consegue compreender esse individuo como .§."illeito que exerce a "direito de sotrer pen§:..'.:L . -
o processo penal consensual tem essa capacidade ideologic a de fazer com que no dis cur so academico. e no discurso dos tribunais lnedidas como a transa<;:ao penal, que e 0 metoda pelo qual alguem aceita sofrer uma pena
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Geraldo Prado
sem que 0 Estado demonstre a responsabilidade penal, seja vista como UIll direito.
Ern_qlntese,(Voce tern a direito de ser punido e de ser apenado sem que provem que vOce e cUlpadoJ sem que den10nstrelTI a sua responsabilidade. Esse c~o.!1..~_~!lS0 e absolutamente artificial, exatamente por essa nO$sa fraca
.- --~ mem6ria, por SSBa nossa incapacidade de enxergar quelll ., .. ->-<.-~--~. ~~.' -- . '". -..... , ~-~
sao os sujeitos concretos do prOC"S$O penaI.e compreender a partir'-ci~-~;~-;~-~i~' de categoria~, qU~-n6~ ~~~mos ~~~ bern na politica e na ecanomia, mas que nao conseguimos Usar no direito, que~eterminados grupos e classes sociais estao em posiqao inferiorizada e fragilizada e que nao se produz consenso entre sujeitos que estao em posiqao desi
guanNeste caso DS ·~_g2.!2 .. ~,~~s'~ sao impastos e sao in1postos ~m a tecnica ideologic a de fazer com que 0 escravo reivindiciue 0 direito de ser escra~ nos dois casos, com a verdade absoluta e sem verdade alguma nos caminhamos reproduzindo um modelo de processo penal que os globalizadores querem.
Falamos tanto dos Estados Unidos da America, vamos falar mais um pouco para encerrar a palestra. Vamos falar de um Estado que consegue ter com 0 vizinho Mexico um tratado de extradiqao dos nacionais mexicanos. Eduardo Galeano recorda essa infelicidade do Mexico, tao perto dos Estados Unidos e tao longe de Deus.
o M~_:l{ig_~ tem com os Eq!ados .!lnidos um lrnt.g9o de extradls:.i'ig dos m'?xiQanos. A voracidade norte-americana 11a··q;:;~stao das drogas fez com que os Estados Unidos ignoTassem ate iSBa. Parentesis: ai novamente a questao do inimigo publico, d,,; drog~';:-essa coisa manipulada, criminalizada, que so tem produzido a morte de jovens brasileiros, de jovens aqui do Rio de J aueira; esse.fliscurso incriminador e de guerra as drogas e 0 discurso da destruiqao da nossa juventu~~ Inas e 0 discurso do governo norte-americana,
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o processo penal das forma<;6es sociais do capitalismo p6s~industrial e globalizado e 0 retorno a preval€mcia da confissao - da subsistencia da tortura aos novos meios invasivos de busca de prova e a pena negociada
que 0 produz e exige que nos venhamos a aderir, impondo ao Mexico 0 dever de extraditar mexicanos traficantes.
Apesar disso. a /?oHcia norte-alnericana ilao tern paciencia eentra no Mexico e seqiiestra unl cidadao mexicano)Este individuo e apresentado a uma corte federal americana, para ser submetido a processo par trMico de drogas e 0 juiz federal que aprecia 0 caso, num primeiro momento, e que pergunta aos policiais de que maneira 0 cidadao mexicano apareceu ali, ouve a hist6ria do seqiiestra e diz: "nao, isso nao e possivel, isso viola a Constituigao norte-arnericana, esse sujeito nao pode ser processado aqui".
Este juiz decide, partanto, pelo nao processo. Q
Ministerio Publico, que nos Estados Unidos da America nao po de recorrer de sentenqa de merito, mas pode recorrer de decis6es que nos chamariamos de decis6es sobre nulidade, chega ao novo tribunal par meio de recurso e este novo tribunal endossa a posiqao do juiz. Ha direitos inalienaveis, os direitos fundamentais daquele individuo faram desrespeitados e ele nao po de ser process ado. 0 caso finalmente chega a Suprema, ~te ~n;e~~c~ - est amos falando dos anos 90 (1992) - e a Suprema Corte Americana emite decisao pela -qual se autoriza a processa do cidadao mexicano nos Estados Unidos naquelas circunsti'mcias, a partir do conceito de que os direitos fundamentais assegurados pela constituigao norte-americana sao direitos dos nort~-americanos nos Estados Unidos da America ou dos narte-americanos em qualquer lugar do mundo e de ninguem mais. Esse caso foi narrado par Rodrigo Labardini, em "La Magia del interprete: extradicion en la Suprema Carte de Justicia de Estados Unidos: el caso Alvares Machain".
E la atras, l~ ~o, quee comeqa a ver a desconstruqao das garantiasj boje muito clara em Guant~l!1amO e numa serie de outro~ lugares , e· c.iueC16s varilos hnportar e produzir aqui como sendo mecanismo desoluqao dos nossos problemas, problemas/estes que sao, na mentalidade
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Geraldo Prado
do mundo, as problemas gerados par uma comunidade pobre, negra, migrante e imigrante, e par tantas outras categorias sociais que n6s transfornlamos em inimigos, transformamos em criminosos e organizamos uma estrutura processual que oferece a eles "nada" em troca de pen a au urn juiz que vai buscar sua condenagao, a nao ser que a rEm consiga provar, alem de qualquer duvida razoavel, que e inocente.
Esse e urn modelo de processo que esta sendo difundido, mas este Seminario repudia este modelo, esse Serninario, aqui, parece querer exatanlente llludar isso, revolucionar issa, Mudar e revolucionar significa resgatar
al.~~ in,~~~.llQ1l§~ hist2E!<j7E~ C01;;--;;;O a situac;:ao _",: os adolescentes traficantes de drogas de hoje, a quem se
..... promete uma sDciedade de bens de consumo e concreta'", mente se nega acesso a esta sociedade, com a situac;:ao do
negro em meados do Sec!-llo XIX, que fugia e era perseguido, punido, castigado e a sociedade brasileira naturalizava
(
aquila, compreendendo que era normal, porque, afinal de contas, ele naD era urn ser humano, ele naG era urn individuo, nao era um cidadao e, portanto, nao tinha a direito de ,s~ r~bel~.r cc:nt.ra a escravidao. Aceitava-se naturalmeI~te a .
\ enmmahzac;:ao daquela conduta e a punic;:ao daquele indi'.viduo cujo C!!!P~ tinha sido se rebelar contra a escravidao. ----Uliilndo eu fugo-ess;par81elo co';-o·-t:-ro,a;:'f'"ic::'o";':d:':e:'::":':':':o:':g;'::'a;"s,
ressalvando a posic;:ao pessoal contra a usa de drogas, pais
'.:I;:":..~;rPrime~~.!l2}}~~~~~~~,unfparalelo com (a luVentucre que esta hale na penferia e so encontra nesse I caminho a possibilidade de se comparar a nos au de alcanc;:ar i a sentido de existencia que nos temos e que nos alcanc;:amos
\.sJ:":_()~1:.,-~~ruJ!)ir"' .. §"9-u.'3.dJ~!:'~ .. ~LaQliQ!~tamente neg.qdQ.. (/ N6~ nao conseguirnos e~ergar isso, estabelecer essa vincu\ lac;:ao, e comec;:amos entao a produzir urn modelo de processo \. . q que tern a dever de ser capaz de castiga-los e de 111ante-Ios .~ln urn gueto cada vez maior, a ceu aberta.
o processo penal das fonnagoes sociais do capitalismo pas-industrial e globalizado e 0 retorno a prevalemcia da confissao - da subsist€mcia da tortura aos 1l.OVOS meios invasivos de busca de prova e a pen a negociada
Enl Burna, a ideia geral que lne propus a trazer aqui, focaliza a dissolugao das garantias em um processo em que a juiz desacerta nas func;:oes de pesquisa da verdade, supostamente para ser responsavel perante a comunidade, mas 'q~e na realidade a faz como Uln sujeit;o de politica de seguranc;:a publica, enquanto' tambem se dissolvem as garantias· pOLmeio .de um processo sem qualquer tip a de cognigao, no qual os rneCaniSl110S de unl cons ens a sao impostos sem que n6s saibanl0s se 0 sujeito social concreto tem condic;:aode dialogar, de participar do dialogo, se as excl~idos tern condig6es de'se cOlllunicar, para que 0 COI1-sensa seja possiveL Nao ha cons ens a de cima para baixo; 0
que ha e ditadura. -'. ~ Basicamente era isso. Obrigado.
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I: " iI "
Debates
Marco Perduca - Chiedo scusa per l'italiano, La domanda e per l'italiano, per Alessandro De Giorgi.
E' un po' una domanda provocatoria, ma diciamo che mi e stata provQcata dal suo insistere suI "non ci Ineravigliamo, non ci meravigliamo, non ci meraviglianlo" Sil tutte queste cose che succedono. Perche, vivendo negJi Stati
. Uniti da otto anni, mi sono reso conto negli ultimi due meSh che gli americani - per primi - si sono tutti meravigliati, scandalizzati e indignati nei confronti dell'amministrazione Bush - e credo che questo lasci ben sperare per il prossimo novembre ... rna questo e un altro discorso ...
La domanda e questa: il paradigma interpretativo di indagine sociologica, lna sicur~nlente auche politica, che tu hai applicato nei confronti degli Stati Uniti e dei paesi europei, potrebbe essere applicato sic et simpliciter anche ai paesi non-democratici? Dico questo perche c'e il rischio, nell'escludere dalla guerra al terrorismo 0 alla droga, i dissidenti dei paesi non-democratici, che si facciano diventare gli Stati Uniti e l'Europa il nemico pubblico numero uno.
Ripeto la domanda: il paradigma di analisi applicato agli Stati Uniti e all'Europa si puo utilizzare anche per i paesi non-democratici - come la Cina, l'Arabia Saudita, ecc.? perche non applicandolo c'e il rischio di trasformare i paesi democratici in nemico pubblico numero uno, invertendo cosi il problema.
Pego des culpas por falar em italiano. A pergunta e para 0 italiano, para Alessandro De Giorgi.
E uma pergunta um tanto provocatoria, mas, digamos, que me tenha sido provocada pela sua insistencia no "nELD
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Globaliza\=ao. Sistema Penal e Amea9as ao Estado Democratico de Direito
nos adnlirenl0S, nao 110S adnlirernos, 11aO 110S adlnirenl0S" conl todas estas coisc:fs que estao acontecendo. Porque, vivendo nos Estados Unidos ha oito anos, ll1e dei cOllta, nos ultilnos dais ll1eses, que as alnericanos - eln priineiro Iugar - estao todos admirados, escandalizados e indignados em relagao ao governo Bush - e acredito que isso possa nos deixar beln esperangosos para novelnbro proxinlo ... luas, este e urn outro discurso ...
A pergunta e a seguinte: 0 paradigma interpretativo, de pesquisa sociologica, ll1as, seguranlente, talnbenl politica, que voce aplicou em relagao aos Estados Unidos e a paises europeus, poderia ser aplicado sic et simpliciter tall1bel11 para os paise8 naO-delTIOCraticos? Digo isto porque, excluindo da guerra ao t.~rrorisillo ou as drogas, os dissidentes dos paises nao dernocraticos, 11a 0 risco de fazer conl que as Estados Unidos e a Europa se torneln 0 iniInigo publico ~?-tllllero urn.
Repito a pergunta: 0 paradigm a de analise aplicado aos Estados Unidos e a Europa pode ser utilizado tambem para os paises nao-democraticos - como a China, a Arabia Saudita, etc.? porque, nao 0 aplicando, existe 0 risco de transforll1ar as paises denlocniticos enl ininligo ptlblico -?umero lUll e, assim, inverter 0 probleina.
Alessandro De Giorgi - No, non credo che ii nlio discorso si possa applicare direttalnente ai paesi non del11ocratici, che peraltro non conosco direttanlente 0 indirettal11ente conle posso conoscere l'Europa.
Cia a cui ho fatto riferinlento e la dinanlica di "noflnalizzazione dell'enlergenza", ed e una nornlalizzazione che consente per eselnpio ai paesi delnocratici di aUearsi strategicamente con alcuni paesi nOn-delTIOCratici - in n0111e della guerra al terrorisnlo - contro altri paesi uguahllente non-deril0cratici.
Non capisco sinceranlente l'incoillpatibilita di questa analisi rispetto a condizioni di scarsa democraticita: cia chs
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Debates
ho cercato di sottolineare e queUo che a me sembra un ll1eccanismo di perversione della democrazia, ed e una perversione che si fonda su un'emergenzache giustifica pratiche apertamente anti,democratiche. Quindi il mio discorso include anche I' appoggio delle democrazie occident ali verso paesi apertalnente' anti-democratici come il Pakistan, Israele e altri che non e difficile iInmaginare . .
E qui vedo I'unico elemento di intreccio tra la nondemocraticita di alcuni 'paesi e la pertinenza di quello che peraltro non e un "paradigma", ma fondamentalmente un'ipotesi interpretativa di alcune tendenze.
Nao. Nao creio que lTIeU discurso possa se aplicar diretamente aos paises nao-democraticos, que, alias,' llaO
conhego direta ou indiretamente como posso conhecer a Europa.
Aquila a" que me referi foi a dinal11ica de "normalizagao da emergencia" e e uma nornlalizagao que pern1ite", por exemplo, que os paises democraticos se aliem estrategicamente a alguns paises nao-democraticos - enl nome da guerra ao terrorismo - contra outros paises iguahnente nao-demoeratieos.
Nao entendo sinceramente a incompatibilidade desta analise em relagao a condig6es de escassa democratizagao: o que tentei ressaltar foi a qu~ a miln pareee Uln 111ecanisrna de perversao da democracia, uma perversao fund ada em uma emergencia que justifica pnltieas abertalnente anti-democraticas. Meu discurso inclui, portanto, tanlbelu o apoio das democracias ocidentais a paises abertamente anti-democraticos, como 0 Paquistao, Israel e outros que nao e dificil imaginar.
Vejo, aqui, 0 unico elenlento de entrelagamento entre a nao-democratizagao de alguns paises e a pertini'mcia daqui-10 que, alias, nao e urn "paradigrna", Ina8, fundalnentalmente, uma hip6tese interpretativa de algumas tendencias.
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GlobalizaC;Elo, Sistema Penal e Ameac;as ao Estado Democratico de Direito
Perguntas sem identificagao dos autore's -. Geraldo, diante da sua exposi9ao, gostaria de saber qual a sua opil1iEto sabre U111a saida passivel para a atual sistelna penal?
Em linhas gerais, qual a sua· opiniao sabre a sisten1a penitenciario brasileiro?
Geraldo Prado - Respondendo rapidamente as duas perguntas e lembrando urn pouco do que Zaffaroni colocou ontem, acho que a saida possivel para 0 sistema penal e a saida do sistema penal, e a .redu9ao dn'tstica do sistema penal.
Mesmo esses mecanismos de pen as alternativas, que parecem sedutores, a principio, mas na verdade sao expansivos do sistema penal, estao colo cando 0 sistema penal onde ele nao precisa entrar, com fundamento em urn discurse nos seguintes termos: "0 funeionan1snto do sistema penal nao pareee ser tao grave aqui porque 0 sujeito nao vai para a prisao". Mas, 0 efeito do controle social se produz e produz intensamente. Imaginar que a solu9aO consensual de um caso penal nao e alguma coisa perigosa e insatisfatoria sob todos os aspectos e supor que 0 sistema penal pode ter uma fun9ao de humaniza9ao, de generosidade ou qualquer coisa do genero, quando, na realidade, 0 sistema penal e un1 sistema de eausagao de sofrimento.
Entao, a saida possivel, realmente, e a redu9ao do sistema penal, mas, ontem, 0 professor Zaffaroni disse isso aqui tambem, essa redu9ao do sistema penal, ela passa por uma profunda transfDrma9ao social.
Eu Ii - fiz questao de ler - 0 texto de Paulo Bonavides, porque nos temos que ter urn compromisso no Brasil, na America Latina, nos paises perifericos, de transforn1ar esses nossos Estados, essas nossas sociedades, ainda que ao custo de um rompimento de alguns paradigmas impostos de fora paradentro. Nos nao podemos imaginar que
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Debates
vamos fazer a mudanga ao continuar aceitando as regr~s que nos sao impostas de fora para dentro. Nao vai haver redu9ao de espa90 de funcionamento do sistema penal se nOs nao mudarmos a pr6pria construgao social e ecol1c)lnica da sociedade.
Isso me parece tao 6bvio, que se nos seguirmos nessa linha, com PT ou sem PT, na realidade teremos muito mais sistema penal, urn sistema penal sem apelar para a pena de prisao, com penas alternativas, mas poderosissimas do ponto de vista ideologico e urn sistema penal com penas de prisao que sao cada vez mais sacrificantes na atividade da pessoa humana.
Do ponto de vista do sistema penitenciario, eu disse, tamhem ha uma semana, que humanidade e pena de prisao sao incompativeis: e urn negocio complicado, pOis a pena de prisao e desumana. Portanto, temos que limitar a prisao, aplicar somente a casos absolutamente excepcionais, quer a prisao pena, quer a prisao processual, que hoje e muito mais destruidora da identidade do sujeito do que a propria prisao pena.
Este e urn ponto, e, obviamente, trabalhar no limite do direito, como disse Paulo Bonavides "no limite daquilo que nos temos hoje para reduzir 0 grau de desumanidade, de sofrimento causado intencionalmente pelo descaso dos nossos governantes na America Latina". A caminhada e essa. Todavia, nenhuma das caminhadas possiveis em termo de neutraliza9aO desse grande mal que 0 sistema penal produz vai ser bern sucedida se continuarmos vivendo numa sociedade tao desigual, tao desumana, tao absolutamente racista, como e a nossa sociedade atual.
Giancarlo Corsi - Una prima considerazione per Alessandro De Giorgi, a proposito dell'uso del termine "guerra'·'. Non c'e il rischio di confondere quanta meno due problemi chs, a n1io parere, sono nettamente distinti?
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Globaliza98.0, Sistema Penal e Ameac;as ao Estado Democratico de Direito
Una questione e la guerra nel senso "stretto" del termine, per cui si invade !'Iraq, oppure si resiste ad una invasione da parte dell'Iraq suI Kuwait, come e stato a suo tempo. Si puo pens are quello che si vuole su questi fenomeni, perc il problema e la g:estione del potere a livello mondiale, in assenza di un'autorita centrale, di un Stato mondiale, e questo problema e strettamente politico.
Altra questione e invece la gestione dell'ordine interno - e anche qui si puc pens are quello che si vuole delle varie politiche penali - perc il problema e completamente diverso e va gestito anche di un modo totalmente diverso, direi.
E non vorrei che l'uso del termine "guerra", e il riferimento aHa democrazia, finiscano per confondore i due problemi, anche perche il termine "democrazia" purtroppo ha la sua storia.
I diritti fondamentaIi moderni e Ie stesse democrazie moderne hanno ricevuto un enorme contributo da parte di uno Stato che ammetteva la schiavitu - gli Stati Uniti. Per cui dub ito molto che la democrazia abbia qualcosa ache fare con la giustizia sociale. Se esistesse la giustizia socia
<le, a cosa servirebbe il diritto?
Uma prime ira consideragao para Alessandro De Giorgi, a prop6sito do uso do termo "guerra". Nao existe 0
risco de, no minima, se confundirem dois problemas que, a nleu ver, sao nitidamente distintos?
Uma questao e a guerra no sentido "estrito" do tenno, pela qual se invade 0 Iraque, au se resiste a uma invasao do Iraque ao Kuwait, como ocorreu a seu tempo. Pode-se pensar a que se quiser sabre estes fenomenos, mas 0 problema e a gestao do poder a nivel mundial, na ausencia de uma autoridade central, de urn Estado mundial, e este problema e estritamente politico.
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Debates
Outra questao e a gestao da ordenl interna - e tarnbern aqui se pode pensar 0 que se quiser sabre as varias politic as penais - mas, a problema e c0111pletarnente diverso e, eu diria mesmo, que deve ser administrado de unl modo totalmente diverso.
Eu nao gostaria que a usa da expressao "guerra" e a referencia a demacracia acabassem par confundir os dais problemas, ate porque 0 termo "democracia", infelizmente, tern sua hist6ria.
Os direitos fundamentais l1lodernos e as proprias democracias moderna"s receberarll uma enonne contribuigao da parte de urn Estado que admitia a escravidao .,.. os Estados Unidos. Pelo que duvido muito que a democracia tenha alguma coisa a ver com a justiga social. Se existisse justiga social, para que serviria 0 direito?
Alessandro De Giorgi - E' difficile di esseTe breve, llla
10 proven), comunque. Rispetto alla prima domanda devo confess are che pro
prio la possibilita di una assimilazione tra "guerra" e-'''controllo penale ~ Gostituiva il filo conduttore del mio .intervento. E quanto ho cercato di suggerire e che i dis corsi sulla criminalita e sulle minacce globali - da una parte, fenomeni di marginalita urbana percepiti e costruiti sociahnente come fattori di pericolosita, e dall'altra fenomeni di marginalita glob ale costruiti come minaccia glob ale - tendono ad intrecciarsi e a riproporre alcuni frame - strutture linguistiche e discorsive - identici.
E penso anche che tutto questo abbia a che fare con l'aggravarsi di alcune contraddizioni insite nel sistema economico e di regolazione sociale vigente: contraddizioni che la regolazione (0 de-regolazione) sociale neoliberista sta approfondendo rispetto ad alcune fasc~ sociali.
AHa seconda domanda, che secondo me e una provocazione, rispondero a mia volta provocatoriamente: l'unico
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Globalizagao, Sistema Penal e Amealfas ao Estado Democratico de Direito
reginle di giustizia sociale assoluta e il comunismo, e nel comunismo il diritto sara abolito.
E dificil ser breve, mas, de todo modo, vou tentar. Em relagao a primeira pergunta, devo confessar que
foi exatamente a possibilidade de uma assimilagao entre "guerra" e "controle penal" que constituiu 0 fio condutor de minha intervengao. E 0 que tentei sugerir foi que os discursos sobre criminalidade e sobre ameagas globais _ de um lado, fenomenos de marginalidade urbana, percebidos e construidos socialmente como fatores de periculosidade e, de outro, fenemenos de marginalidade global, construidos como ameagas globais - tendem a se entrelagar e a prop or alguns frames - estruturas lingiiisticas e dis curs ivas - identicos.
Penso tanlbem que tudo isto tenha aver Conl 0 agravamento de algumas contradig6es inerentes ao vigente sistema econemico e de regulagao social: contradigoes que a regulagao (ou desregulagao) social neoliberal esta aprofundando em relagao a algumas faixas sociais.
A segunda pergunta, que, a meu ver, e uma provocagao, responderei, por 111inha vez, provocatorianlente: 0 tinieo regime de justiga social absoluta e 0 c0111unisnlo e, no comunismo, 0 direito Sera abolido.
Pergunta sem identificagao do autor - Queria que 0
Geraldo falasse um pOuco sobre os processos administrativos, os juizados de instrugao e as poderes investigatorios do Ministerio Publico.
Geraldo Prado - 0 problema dos processos disciplinares, dos processos administrativos e do eorporativismo, passa, as vezes, pela pouca publici dade e pela inexistencia de uma figura dentro dos processos admil!istrativos que faga 0 papel do Ministerio Publico. Nao do Ministerio
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Debates
Publico na condigao de investigador, mas com 0 processo em si instaurado e que tenha certa independencia em relagao a administragao para ate obter da administragao, decisoes mais justas I fienos corporativas.
Tenho pensado na questao da OAB, dos Conselhos Regionais de Psicologia, Medicina, etc., dos Conselhos Disciplinares, e no esporte, como e 0 caso dos tribunais de justiga esportiva, que hoje podem suspender um atleta por cento e cinqiienta dias, cento e oitenta dias, impedir 0 individuo de trabalhar. Tudo isso tem me levado a pensar na possibilidade de um mecanisme semelhante, dentro do processo administrativo, ao que nos temos no processo penal, com um sujeito independente em relagao a administragao para ser 0 acionador, 0 sujeito ativo dis so.
Com relagao ao juizado de instrugao, essa opgao vai na contramao daquilo que sustentei aqui. Historicamente, e 0 que digo, nos nao conseguinl0s passar para as alunos na sala de aula a nossa hist6ria de processo penal brasileiro. A hist6ria do processo penal brasileiro e a hist6ria do juizado de instrugao, em que 0 juiz ou era realnlente urn juiz formal ou era urn sujeito que exercia as fungoes de delegado de policia, mas tinha 0 poder do julgar submetido a pressoes do Executivo - e eram questoes politicas de seguranga publica.
A minha compreensao e que nao e pos$ivel pr9duzir processo minimamente igualitario, em que 0 juiz tenha alguma imparcialidade, a partir de um juiz autor, de urn juiz que sej a responsavel pel a construgao da hipotese incriminat6ria, ainda que de acordo com os modelos das decadas de 70, 80 de determinados lugares, ainda que, adotando os principios daqueles modelos, esse juiz da instrugao se afaste do processo no momento em que se define a acusagao. Acusar nao e fungao do juiz, nao e fungao do juiz pesquisar as provas; set 0 elemento construtor das hipoteses de criminalizagao de quem quer que seja nao e fungao do
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Globaliza98.0, Sistema Penal e Arnea9as ao Estado Democratico de Direito
]UlZ. A fun.c;;ao dele esta bern clara na ConstituiC;;ao: e de garantir os direitos fundamentais e ai vem 0 reforc;;o dos dois outros atores importantes: a policia e 0 Ministerio Publico.
Eu penso que nos telnos uma historia de policia terrivel no Brasil, na America Latina. Mas, essa historia nao e uma historia eterna; nos podemos reformar a historia a partir da democratizagao de uma serie de instrumentos di'3ntro da propria policia que faraD com que 0 sujeito, 0 novo policial, possa ser um policial respeitador dos direitos humanos, embora a atividade policial seja sempre uma atividade autoritaria, esteja ali beirando 0 limite da violencia. E complicado, mas, do ponto de vista da investigac;;ao, da investigac;;ao cientifica, do ponto de vista da preparac;;ao do sujeito que sera 0 investigador e de um aperfeic;;oamento das estruturas policiais, nos poderemos conseguir alguma coisa.
Ha duas coisas que me preocupam no discurso do Ministerio Publico. 0 discurso do Ministerio Publico e exatamente 0 mesmo discurso do nosso delegado juiz dos anos que precederam a mudanc;;a da estrutura judicial brasileira no Seculo XIX. Sublinha os lugares comuns da impunidade, da ineficiencia da pesquisa, da ineficiencia de urn mecartisrno prep'p.ratorio para a ac;;ao condenatoria e e tambem urn ' discurso de moralidade absoluta, a moralidade sabia do Ministerio Publico. Nao tem sujeito dono da moralidade. Nenhum de nos e dono do patrimonio da virtude absoluta. Entao, isso e extremamente perigoso, e manipulado, isso interessa a alguns grupos so.ciais.
Vou lhes passar 0 que ouvi de professores mexicanos acerca da experiencia de investigag'ao direta pelo Ministerio Publico no processo penal mexicano, que existe desde 1917. A investigaC;;ao teoricamente deve ser conduzida pelo Ministerio Publico, mas, segundo os proprios mexicanas, so funcionou assim na pratica por tres dias, porque, no quarto dia, 0 Ministerio Publico colocou na mao da poli-
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Debates
cia toda a investigagao. Uma especie de juizado de instruc;;ao com 0 Ministerio Publico it frente, do ponto de vista material e humano, e impassivel, Ulna vez que 0 Ministerio Publico nao tern condic;;6es concretas e acaba transferindo para a policia as tarefas de pesquisa, sem fazer aquilo que o nosso sistema pode fazer, que e fiscalizar a policia. Entao, quando entregam ao Ministerio Publico essa func;;ao, eu ja sei de antemao que ele nao teln capacidade de exercitar; vai exercitar nos casas espetaculares, nos casas de rnidia, ai sim, voce vai ver 0 Ministerio Publico. Todavia, no grasso das situagoes, ele' nao irS. aparecer e perders. esse distanciamento da policia que e essencial para que ele tambern seja fiscal dos direitos fundamentais e nao admita e nao aceite investigagao criminal que seja vialenta COIn os direitos fundamentais. Ele se torna associado na violac;;ao dos direitos e isso e muito problematico, sem falar da questao basica do devido processo legal, pois todo procedimento, qualquer que seja ele, tem que ter inicio, meio e fim ,e eu preciso saber como se comega, como se desenvolve e termina e quem controla 0 sujeito que exerce 0 poder ali dentro e hoje eu nao tenho a menor possibilidade de saber isso numa investigac;;ao direta do Ministerio Publico.
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MESA 4 A face belica das formag6es sociais do
capitalismo p6s-industrial e globalizado: do sistema penal regular a eliminagao
das garantias dos direitos fundamentais - as sombrias perspectivas a partir de
Guantimamo
Alvaro Pires University af Ottawa - Canada/Brasil
Cristiano Paixao Universidade de Brasilia - Brasil
Presidente da Mesa: Nelia Roberto Seidl Machado Advagada - Brasil
Mesa 4 A face belica das forma90es sociais
do capitalismo p6s-industrial e globalizado: do sistema penal regular a elimina9ao
das garantias dos direitos fundamentais -as sombrias perspectivas a partir
de Guahtanamo
Nelia Machado
Em primeiro lugar, vou me apresentar. Sou um advoga-, do, Meu nome e Nelio Machado e, por gentileza, deferen,
cia, da Maria Lucia Karam, que ja foi aqui aplaudida e festejada com muita justi<;:a e com muita razao, fui encarregado de exercer, agora, 0 papel de diretor dos trabalhos, Nao tenho muito que dizer, pois quem deve falar sao os palestrantes, Mas, eu gostaria de registrar, rapidamente, a emogao de estar neste SalaD, neste lugar, neste ambiente, com esse clin1~ de sonho e esperanga em face das perspectivas que,se abrem.
A Faculdade de !2iLeito sempre teve uma ~la--1JIlagem. Por ~ lado, o~ado cons8!-'vador, a lade arcaico, 0 lado da preservagao do status qu91 mas, ao mesmo tempo e sobretudo, 0 [8.do libertario, 0 lade da contesta<;:ao, 0 lade do avan<;:o, 0 lade da luta pelo restabelecimento de condi<;:oes dignas e justai]para uma sociedade que se pretende ver livre e DaD rnanietada e coartada, na sua perspectiva de busca de uma felicidade geral mais intensa e rnais cons entanea com a igualdade.
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Nelio Machado
Estalnos no CACa e, aqui, e urn centro de-resistencia, Hoje, mais do que nunca, a despeito dos 40 anos passados, e dos 20 em que se iniciou 0 processo pelo restabelecinlento da possibilidade do povo escolher os seus governantes, nos, de alguma forma telnos que voltar selnpre ao ten1po que pas sou e verificar que 'lTIuita coisa 11aO se alterou,
Ali esta 0 nome de Rui Barbosa. Rui Barbosa, 0 maior defensor do habeas corpus, 0 habeas corpus que e a preservagao da liberdade. Um dos mais entusiasmados defensores do devido processo legal, que nao e uma vala, um lugar comUIIl, lTIaS sin1 unla especie de hino democratico de qualquer advogado e qualquer cidadao.
E 0 que temos Q£i", na Repllblica, que se in spira numa carta dita cidada~etrocessos inquestionaveis no que diz respeito ao Estado de Direito, no que diz respeito ao devido processo legal, no que diz respeito a presungao de inocencia:-\das pessoas. Ha UlTI ~ar~~§Jl10 ~~.~ e~~o, h8. uma eX8ITIplaridade incontida, SeiTI que haja un1 controIe, ate porque as Faculdades de Direito tem sido - e isso e urn absurdo -, ln~s, ten1 side un1 espa<;o ll1uito 111ais da repressao do que propriamente urn espago em que se delineiam os ritos humanitarios de libertagao de todo 0 povo brasileiro.
Recorda que, ha poucos anos, estive eln urn evento COlTIa esse, em que existiam promotores, policiais e advogados, que debatiam sobre a justiga. A Faculdade de Direita e Ullla Faculdade que se destina exatalnente a preservagao da liberdade. E percebi, com tristeza na ocasiao, que 0 menos aplaudido, os menos aplaudidos quando da apresentagao, eram exatamente as advogados. Pramotores festejadissimos, a policia entao, nem se fala. H,?je, mais 0
Ministerio Pllblico do que a policia; naq),lele tempo talvez, quando a policia federal andava em evidencia, ganhou mais aplausos.
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A face belica das forma90es sociais do capitalismo p6s-industlial e globalizado: do sistema penal regular a elimina98.o das garantias dos direitos
fundamentais - as sombrias perspectivas a partir de Guantanamo
Precis amos restabelecer 0 advogado como elo da defesa da cidadania, das liberdades fundamentais. Quem faz un1 curso de Direito, tern que pensar, erTI prin1eiro lugar, ell1 ser advogado. Ser advogado: esse e 0 compromisso de quem faz urn curs a de Direito. Se, depois, por raz6es tais Oli
quais, quem estuda Direito vai, par encantarnento, au por sedugao, ou par uma vocagao extraordinaria, desejar exercer a sacerd6cio da judicatura au a tarefa do Ministerio Publico, em uma perspectiva um pouco diferenciada do· perseguidor contun1az, au autros encargos n1ais que a sociedade pennite, nao il11porta.
De qualquer modo, 0 importante, aqui, e respirar esw ar. Este ar solene, este ar urn pouco circunspecto. Porque a nossa profissao ten1 urn pouco de Ul11a solenidade inevitavel, as mon1ent08 sao graves, as momentos sao de reflexao, de meditagao e de agao. Nada melhor do que, diante disso tudo, primeiro agradecer. Estou vendo, aqui, a Leticia, que tambem e familiar a Moncorvo Filho. Leticia e eu somos casados enos conhecemos freqiientando 0.8 audit6rios da Justiga militar, onde se perseguiu muita gente, nao l1a auditoria necessariamente, mas era a desdobramento do processo persecutorio, e muitas vezes era 0 papel de chancelar exatamente 0 desl11ando com a violencia, com a tortura, con1 mortes, com tudo isso que a nac;ao beITI conhece.
Mas a luta valeu a pena. E sempre vale a pena. E exatamente porque vale a pena que nos .temos hoje
esse encontro, que nasce da inspiragao absolutamente ili-111itada da Malu, que, alias, e uma pessoa obsessiva no que deseja. Quando ela falou desse evento, eu nao tinha ideia do que fosse. E vim, hoje, voltando de Brasilia no aviao, depois de uma grande derrota profissional. Porque existem muitas. 0 advogado que diz que sO ganha e um mentiroso. Nos temos muitas experiencias negativas, mas sao elas que nos vivificam para que continuemos na luta. 0 advoga-.
_do nao pode esmorec~r. Na verdade, o~apel do advog.-:..~.··
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Nelia Machado
e estar na J:Iuerra e dela nag se po de d~~r. N ao ha nada pior do que desertar da guerra. Porque e uma guerra. Na verdade, temos que nos colocar como sentinelas da liberdade. Sempre. Esse e 0 nosso papel exponencial. E 0 poder de criticar, de dizer, de nao ter receio, de se antepor a qualquer tipo de pastura que nao seja compativel com 0 Estado de Direito Dernocratico.
Mas, ja falei demais e e 0 bastante para agradecer a gentileza do convite. Estando aqui, VOll renascer de novo, porque cheguei quase como urn cadaver. Porque a derrota, ela bate forte. E ha uma ressaca civica, quando a gente sabe que lutou, sabe que tinha razao, mas nao nos ouviram. Alguns nos Duviram. Sao os votos vencidos, que, na realidade, muitas vezes, sao os avangos da propria sociedade. Eu tive alguns votos vencidos, na causa delicada que fui defender, onde todas as forgas reacionarias se colOCaValTl em detrimenta da isengao judiciaria que deve presidir uma deliberagao sobre 0 destine de urn ser humano.
Mas, a luta vai continuar e, aqui, vou ter novo oxigenio. Cheguei cansado, mas vou sair daqui absolutalTlente renovado, remogado. Voltando aos tempos de 67, de 68, 0
tempo do Ato Institucional n2 5, em que a gente lutava e nao tinha receio. Sabia-se que urn valor maior se colocava como razao da propria existencia. Hoje, a juventude anda urn poueo amorfa. E, exatamente quando se rememora 64, o que sucedeu a partir dai, a volta ao Estado de Direito, e como se nos todos voltassemos a compartilhar do inicio do sonho. Esquecendo urn pouco as frustragoes de urn certo momento. Agora mesmo ... Afinal, as vicissitudes do exercicio do poder levam a algumas decepgoes ...
Mas, cabe-me agora apresentar rapidamente a 1108S0
primeiro conferencista que e o professor Alvaro Pires, que vern de longe, vern da Universidade de Ottawa, no Canada, e que, certamente, com os ares de Ulll pais avangado como e 0 Canada, com as suas peculiaridades, com uma visao
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A face belica das formag-oes sociais do capitalismo pas-industrial e globaIizado: do sistema penal regular a eliminag-ao das garantias dos direitos
fundamentais - as sombrias perspectivas a partir de Guantanamo
critica, uma visao globalizada do mundo, vai falar sobre 0
tema ... Nao vau ousar ler, porque e l.11Tl tema muito cOll1plexo. ;E meio semelhante aos dognlas juridicos que nao C011-
sigo entender. Eu advogo ha muito tempo, sem entender muita coisa de Direito. Vall mais au menDs tacando de ouvido, senl ler a partitura. Entao, vau aqui de ouvido e sle vai cuidar da partitura ....
Com a palavra, professor Alvaro Pires.
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Alvaro Pires
Inicialmente, quero dizer que, para mim, a um grande prazer estar aqui com voces e quero, talnbEH11, fazer Uln grande agradecimento a Maria Lucia Karam e a Juliana Magalhaes. Maria Lucia e eu fomos contemporEmeos de 68, na apoca em que 0 GAGa teve um papel politico de destaque na defesa da denlocracia. Entao, para minl} voltar aqui depois de tantos anos para estar com voces e refletir sobre o direito e mais do que unla honra: e motivQ para sentinlento de alegria, acompanhado de uma certa emogao. Agradego, portanto, mais uma vez, por essa oportunidad",.
Antes de comegar, eu tenho que situar rapidamente 0
meu tema no contexto deste Seminario concebido pela Maria Lucia. Nos vinlos, ate agora, urn bonl nU111erO de analises sobre 0 problema da utilizagao do direito penal pelo sistema politico, sobre a perda de qualidade interna do direito penal, etc. Assim, 0 problema da orientagao repressiva ou punitiva do direito penal foi tratado do' ponto de vista de uma instrumentalizagao desse dire ito penal, de uma regressao desse direito (perda de garantias juridic as diversas) ou ainda do ponto de vista da dificuldade para 0
direito de controlar 0 agir- repressivQ do sistenla politico. Uma parte desta deterioragao foi, sem duvida, estimulada pelas reagoes ao que foi chamado de terrorismo'ou, ainda, pela reagao a chamada "criminalidade de rua" ("street
crime"). Maria Lucia Karam utiliza,t,aIpbam. em um de seus trabalhos, a expressao "criminalidade de luassa" no mesmo sentido. Trata-se. sem duvida alguma. de uma das faces importantes do problema, e de uma face particularmente preocupante no momento atual.
No que me toca, vou olhar mais para a face interna do direito penal ordinario e aquilo que se produz nas suas atividades (cognitivas) ordinarias desde os saculos XVIII e XIX. Vou tentar apresentar 0 meu tema sob a forma de algumas
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Alvaro Pires
perguntas que apontam nlais ou menos na ll1esma diregao: E possivel que 0 direito penal tenha criado obstaculas cognitivos it sua propria evolu~ao interna? E passivel que a rnaneira de pensar do direito penal dos seculos XVIII e XIX tenha rnatado ou neutralizado a criatividade ou a inventividade do penaIista (seja ele cntico ou nao) para repensar 0 direito penal? Eu vou responder a essas perguntas pela afirmativa ever onde essas respostas podem nos conduzir.
o tema me leva a operar, entao, dois tipos de deslocamentos, de foco, COIn relagao ao que foi dito par nleus colegas. Atraves de urn exercicio de observagao, farei as seguintes selegoes: (i) em lugar de focalizar a deterioragao, vou selecionar os "problemas natos" do direito penal moderno que ainda nao foram corrigidos; (ii) em lugar de indicar as causas externas da deterioragao ou da orienta-· gao punitiva, vou distinguir as causas internas da nao-evolugao e, tambem, das deterioragoes subsequentes. Urn outro ponto import ante: eu vou, para dizer de modo claro mas impreciSQ, observar as causas cognitivas e 11aO as causas materiais. Gaston Bachelard designou esses problemas por uma expressao que ficou famosa: "obstaculos epistemologicos" a evolugao de um sistema de pensamento. E ~isso que you tratar. Se nos colocalnos conlo co-responsavilis do direito penal que construimos no ocidente, trata-se, entao, tambem, de uma reflexao autocritica.
Vou dividir a minha apresentagao em tres partes. Na primeira, yOU tentar chamar a atengao para a necessidade de se desenvolvei urn pensamento criativo-oll inventivo-dentro do dire ito penal, indicando ao mesmo tempo algumas concepgoes antigas, mas que ainda estao presentes, que constituem unl obstaculo a inventividade. Em unl segundo lnalnento, yOU indicar sumariamente a que fizenl0s conl a conceito de punigao que acabou por ser selecionado e re-estabilizado pelo sistema penal moderno. Esta semantica da punigao constitui, no meu modo de ver, urn problema para a evolugao interna do sistema. Talvez devessemos substitui-Ia por uma
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fundamentais - as sombrias perspectivas a partir de Guantanamo
semantica da "sangao penal", dando urn sentido aberto a esta nogao. Enfim, tentarei nl0strar como as teorias da pena que valorizam a pena de morte, as penas corporais au a pen a de prisao constituem obstaculos capitais, no est ado atual, a evolugao do sistema.
Vou tomar como referencia, como ponto de partida, Ulna tese importante da moderna teoria dos sistemas sociais, tal como foi formulada pelo sociologo e jurista alernao Niklas Luhmann. Segundo essa tese, nenhum sistenla social pode construir ponto por ponto do exterior Uln Dutro sistema social, Ulna vez que cada sistema social tern sua pr6pria autonomia. E verdade que um sistema social (e, e claro, um sistema psiquico tambem) pode destruir urn outro, mas nao po de construl-Io seIn 0 outro. VOll adaptar uma inlagenl dada par Luhmarm e Raffaele De Giorgi que se formula mais O1i menos desse jeito: "0 fogo pode queimar urn livra, mas nac pode escreve-Io". Por exemplo, 0 sistema politico pode destruir 0
sistema de direito criminal, nlas 11aO pode escreve-Io e 111en08 ainda escreve-Io de outra lnaneira, mais inventiva, senl 0 direito. Se as juristas (penso mais enl uma nova geragao, as da minha talvez ja nao tenham mais tempo, nem fDlego ... ) nao assumirem es~a fungao, eles deverao se contentar enl atribuir a responsabilidade dos problemas do dire ito penal ao sistema politico ou econ6rpico.
Urn Dutro aviso aos navegantes: a tipo de reflexao que vou fazer nao esta centrada no Estado-nagao au nas especificidades de urn direito nacional qualquer. Nao se trata especificamente do caso do Canada, do Brasil, nem de qualquer outra jurisdigao. Vou tratar esse problema no ambito ·do ocidente, isto e, dos aspectos cognitivos do sistema penal que nao estao limitados pelas fronteiras geograficas. Par exemplo, as teorias da retribuigao e da dissuasao 11aO tern fronteiras.
Claro, essa relativa universalidade de certas ideias nao impede que algumas delas, sejam boas ou mas, este-
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Alvaro Pires
janl nlais "localizadas" em algumas regi6es au sejaln mais "atualizadas" em algumas regioes do quem em. outras. Mas, COlno pano de funda, estao disponiveis na nossa cultura juridico-penal ocidental e moderna. Algumas diferengas, no estado em que estao, podem tambem nao ter muita significagao. Por exemplo, to do sistema social autonomo que se diferencia dos outros comega par se dar urn "noille" para construir Ulna identidade, uma imagenl au urn autoretrato identitchio. Na tradigao rOlnana-gernlanica, depais de alguma hesitagao, 0 direito criminal optou pelo nome "direito penal" (lembre-se que no Brasil 0 codigo do imperio se chamava ainda Codigo criminal); na tradigao anglosaxonica tomau-se a caulinho inverso: criminal justice system. 0 codigo canadense chama-se, em frances e em ingles, Code criminel /Criminal Code. Pois bern, essa diferenga nao produz nenhuma diferenga real: as duas tradigoes continuam preferindo as penas aflitivas de prisao e de multa a outras variedades de sangao au de remedio juridico. Do ponto de vista das normas, 0 codigo canadense tern poucas penas nlininlas e nao exige a pena de prisao em Caso de reincidencia. Isso pode ser visto·- COllla menos repressivo, mas 11aO se deve a escolha do nome. Tanto na Europa como na America do Norte, mesmo se a pena de multa e de lange a pena autonallla lnais utilizada emvarios paises ocidentais, COU1a lembra 0 saciologo frances Pierre Lascoumes, a pena de prisao continua sendo a "pena de referencia" da lei penal escrita.
Uma observagao, para terminar com este ponto. Atualmente, por varias razoes que nao podem ser des envolvidas aqui, eu prefiro a expressao "sistema de direito criminal" Ii expressao "direito penal". Mas estou consciente que a que conta nao e a nome como tal, mas 0 que queremos significar com ele. Uma das razoes (mas nao a unica) apresentadas no seculo XIX em favor do adjetivo "penal" visava exatanlente dar uma orientagao exclusivamente punitiva e
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afiitiva ao direito criminal, construindo a identidade desse direito em torno da "puniC;ao" (morte e prisao como penas de referencia). It aqui que, para mim, reside 0 problema. Nao no nome como tal. Do mesmo jeito que atualmente as duas express6es nao exprimeln uma verdadeira diferenga semantic a entre as duas. tradig6es juridicas, isso po de continuar a ser assim mesmo se viermos a construir, nas duas tradigoes, urn "novo direita penal" onde as sang6es aflitivas (penas corporais, pena de morte, pena de prisao) naD fagam mais parte das nossas obsess6es cognitivas.
Aprendi, com 0 meu professor e amigo Alessandro Baratta, a citar freqiientemente uma passagem de Gustav Radbruch que parece desmentir tudo que estou dizend'; ate agora. Radbruch afirmou, com efeito, que "a melhor reforma do direito penal seria aquela que 0 substituiria nao por um melhor direito penal, mas por algo de melhor". E ssa passagem pode ser interpretada para passar 0 recado de que nao vale a pena pensar urn nOVO dire ito penal porque, em materia de direito penal, a causa ja estaria perdida. Nao creio que seja essa a unica mane ira de interpretar a frase e menos ainda 0 recado de Baratta.
Baratta tinha em vista duas coisas. Primeiro, a tese segundo a qual nao devemos querer guardar 0 direito penal que ternas ou lTIesrno 0 melhor direito penal passivel e imaginavel a qualquer prego: devemos estar sempre prontos para troca-lo por algo melhor. Em outras. palavras: nao devemos absolutizar a necessidade de um sistema social chamado direito penal ou criminal. Segundo, Baratta estava convencido, tambem, que tinhamos que buscar naD 56 urn melhor direito penal mas taInbelTI uma sociedade economicamente e politicamente mais justa e melhor para todos. E se isso acontecesse urn dia, ele naD saberia dizer o que is so poderia acarretar em termos de mutagao ou de desaparecimento do direito penal. Mais uma vez, temos que estar prontos para 0 imprevisivel. Entretanto, Baratta sempre tentou articular as utopias sociais (ou eudemonis-
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tas) ao que Ernst Bloch, umautor que ele sempre admirou, chamou as "utopias juridicas". Ora, para Bloch, 0 papel das utopias juridic as era justamente 0 de nos impedir de cons iderar 0 est ado presente do direito como sendo 0 de "acima de qualquer suspeita". 0 papel da utopia juridic a e, justamente, 0 de estimular a imaginac;:ao criativa do jurista, permanecendo este no direito sabre a qual trabalha. Entao, urn penalista deve ter uma utopia penal (i.e., ideias novas 'para tornar 0 direito penal menos centrado na punitividade) e nao somente uma utopia social.
Ora, 0 que eu penso e que a n1aneira lTIoderna de pensar o direito penal matou a utopia juridica do penalista. Ele nao consegue mals. pensar urn novo direito penal diferente do direito penal roaderna, isto e, diferente da maneira moderna de pensar 0 direito penal. Ele tern entao que se satisfazer com as garantias juridicas negativas e COIn as teQrias da pena que valorizam os meios (morte, prisao multa) negativos, pais nao ten1 mais outras ideias. Tudo mais !he parece alTIeagadar; tudo mais the pareee querer destruir au abolir 0 unieo direito penal de que ele e capaz de pensar ou de imaginar. Entao, tern que ficar plantados no seculo das luzes, por mais queimadas que estejam as lampadas ...
Baratta, quando nos deixou, estava pensando cada vez mais no que deveria significar "garantias positivas", eompreendendo aqui outras sangoes, outra n1aneira de pensar. Tinhamos feito, no ano em que ele morreu, 0 projeto de urn artigo juntos sobre esse tema ...
Enfim, a outra maneira de ler aquela passagem de Radbruch e a seguinte: ele identificQu, historicalnente, a direito penal moderno com urn processo de generalizag~o das penas que outrora se dava aos escravos, proeesso que estaria ligado a formac;:ao das desigualdades de classe e ligado de tal maneira que nao poderia mais se separar enquanto houvesse classes sociais. Neste quadro, a situac;:ao fica desesperadora e a utopia juridico-penal morre, ou
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fundamentais - as sOHl_brias perspectivas a partir de Guantanamo
fica em suspenso, par estar q.ependente da utopia social ou eudemonista. Sem desaparecer as classes, nao poderia aparecer urn novo direito penal que valha a pena e, desaparecendo as classes, desaparece 0 direito penal, 0 que significa dizer que so algo melhor que ele e 0 que e possivel ou realmente interessante. Entretanta, seria ir contra 0 espirito critico de Radbruch se utilizassemos a citac;:ao dele para bloquear 0 nascimento de uma utopia do direito penal.
o movimento abolicionista do direito penal talvez tenha cometido, contra a sua propria vontads, unl efeito contra-produtivo do mesmo genero com relac;:ao a utopia penal. 0 problema nao reside diretamente nas ideias abolicionistas, mas no "projeto de abolir" 0 sistema, 0 que tern suscitado uma reac;:ao de defesa. Com efeito, tal como as ciencias sociais quase ao completo, 0 abalicionismo utilizou uma antiga concepgao das sistemas sociais que tinha . comec;:ado a ficar obsoleta a partir dos anos 50. 0 funcionalismo, a estruturalismo e mesma 0 marxismo ainda estavam utilizando essa antigaconcepgao nos anos 70 e ilO. Por ai, se eu estiver certo, voces pOdelTI ver que 0 problenla e grave, esta.enraizado no nosso pensamento ocidental, e nao e responsabilidade exclusiva dos abolicionistas.
Simplificando a historia, segundo essa teoria, que vem da biologia dos saculos XVIII e XIX. (i) a estrutura de urn sistema e mais importante que a sua func;:ao e (il) se a estrutura mudar de mane ira importante, 0 sistema Inorre. Claro, urn outro pode nascer, ll1as esse "outro" nao seria mais 0 mesmo. Por conseguinte, a func;:ao de cada parte da estrutura seria, entao, nao somente a de se lTIanter ela mesma em· vida, mas a de manter em vida a estrutura do todo. A func;:ao do intestino e a de manter a estrutura do intestino tal qual (e viva!) e, assim, contribuir para manter o corpo vivo. Se a intestino mudar de estrutura, ja nao pode mais ser visto como intestino. A imagem dominante e a de um corpo (estrutura) concebido como urn conjunto de
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Alvaro Pires
orgaos (outras estruturas) exercendo cada um uma func;:ao deternlinada para manter 0 todo em vida. A estrutura e 0 conceito de primeira ordem; a fun<;ao, de segunda ordem. Traduzindo para 0 nosso caso: a fun<;ao do direito penal seria a de manter a estrutura do direito penal tal qual (adaptando-a aqui e ali as condi<;oes do entorno sem destruir 0 seu proprio desenho) e, assim, manter (ou mais modestamente: contribuir a manter) a estrutura da sociedade tal qual. Se voce ousar mudar a estrutura do direito penal (utopia juridica), 0 que for criado nesse processo nao seria mais direito penal. Este morreria ou seria abolido, e se nao for mais direito penal, "aten<;ao fa<;a nao, pode ser a gota d'agua", diria 0 nosso Chico Buarque, seria a estrutura da sociedade que desabaria ou regressaria ao tempo da vingan<;a privada (mal compreendida como "homem lobo do homem"). TUdo que toca a estrutura, entao, deveria ser cuidadosamente conservado.
Isso realmente da 11ledo e cria angustias existenciais profundas, acompanhadas por uma grande carga emotiva. Voces se lernbram, talvez, que Del Vecchio ousou dizer que a melhor contribui<;ao das teorias da pena consistia nas critic as que elas faziam umas das outras e que era urn absurdo filosofico pretender que existiria, para 0 direito penal, uma obriga<;ao de punir e uma impossibilidade de aceitar outras formas de san<;ao ou de solu<;aoao problema. Ora, Bettiol retorquiu, bem comovido, quase desesperado, e talvez porque Ihe faltasse outro argumento, que Del Vecchio pertencia ao "grupo dos destruidores" do direito penal, comparando-o (corretamente ou nao) a Carnelutti. Estou relatando isso com humor, mas essa emo<;ao de Bettiol deve ser tomada a serio, e ate eu posso fazer aqui Uln "mea culpa" franciscano e rir de-mim 11lesmo. Se sentimos essa emo<;ao e porque pens amos realmente que 0 direito penal vai desaparecer' 8, com ele, toda a nossa sociedade. E se
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pensamos assim, e porque algo de muito enraizado existe na nossa maneira de pensar.
Notem que, como a biologia dispoe do criterio "vida" (por mais discutivel que este seja), ela pode falar mais precisamente de "vida e morte" do que a sociologia. Nas ciencias sociais as coisas ficarn mais arbitrarias, pais 0 que se des creve como "morte" pode ser descrito alternativamente como "transformac;:ao".
No seculo XVIII, quando essa teoria da biologia acabou par prevalecer, havia uma outra, mais interessante, mas que nao foi nessa epoca selecionada. Pode-se dizer, dando-nos talvez um pouco de Iiberdade, mas sem exagerar, que Lamark sustentava um ponto de vista oposto, que nao logrou. Na sua biologia, a func;:ao era mais importante que a estrutura. A fun<;ao era 0 conceito de prime ira ordem e a estrutura 0 conceito de segunda ordem. A fun<;ao podia criar novas estruturas, possivelnlente luelhores que as antigas, justamente para continuar a exereer a fungao. Como disse um interprete de Lamark, Andre Pichot, Lamark chegou "quase a dizer que sao as fun<;oes que fazem os orgaos".
Bem, esse paradigma perdido do Lamark foi retomado (claro, de outra maneira) pela moderna teoria dos sistemas. De uma certa forma, Luhnlann transp6e essa ideia para a sociologia e a adapta criativamente aos sistemas sociais. Abro rapidamente um parentese: os jurist as tem que tomar muito cuidado para nao ler Luhmann com os oculos do Gunther Jakobs, pois este, infelizmente, nao utilizou, ate onde pude ver, as ideias de Luhmann de forma criativa. Fecho 0 parentese. 0 primeiro ponto a assinalar e que, para a ciencia contempori'mea, um sistema pode mudar (ate mesmo completamente) a sua estrutura sem perder, necessariamente, por assim dizer, a sua "identidade" e a sua fungao. A unica condigao para isso e nao mudar tudo aD lUeSlTIO tempo, peds, nesse caSal urn sisterria (social) carre 0 risco de
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urn sistema social pode sempre desaparecer, mas, visto do interior do sistema, nao precis amos mais representar a mudanga de estrutura como uma lllorte do sistema; podemos concebe-Ia positivamente COH10 unla mutagao interna, uma evolugao de patamar dentro do sistema.
Agora, vou tratar do problema da definigao de punigao e, em seguida, das teorias da pen a selecionadas pelo sistema de direito crilninal. Repito, vou sustentar, sem dembnstrar suficientemente, que, do ponto de vista da evolugao interna do sistema, as teorias da pen a tern urn papel altamente negativo: elas constituem un1a antiga semantica que deve ser modificada.
Como estou falando sobre punitividade, vou comegar com algumas reflex6es sobre 0 conceito de punigao, pois ele tem uma grande relevancia para 0 nosso tema. 0 conceito que 0 sistelna penal selecionou e re-estabilizou no final do seculo XVIII foi 0 resultado de varias condensag6es e bifurcag6es de sentido no ocidente. Digo bifurca<;:ao para indicar que, no trabalho conceitual, somos obrigados a escolher urn caminho passivel entre outros igualmente possiveis. E essa selegao (bifurcag6es) nao e nem guiada pela maO de Deus nem par uma razao infalivel: podemos enveredar pelo caminho menos interessante ...
Para se chegar ao conceito de punigao do sistema penal modernD foi necessario fazer disting6es. Existe uma tearia da observagao que pretende que, sem distin,:\=oes, 1103..0 podemos observar. Se isto e exato, para podermos observar a que e "punigao" e a que nao e, pre.cisanlos distinguir. Mas a distingao e tambem, para 0 observador (aquele que distingue), uma construgao da realidade. Se a distingao for boa, supomos que ele observa melhor ou, talvez, de forma J;Ilais .interessante do ponto de vista da construgao de urn s,i~t.ffi,1,1a .. Esta teoria nos convida, entao, a'observar atentamep-~e· e criticamente a mane ira pela qual os outros enos' mesmos observamos. lsto significa que se as senhores au
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fundamentais _ as sombrias perspectivas a partir de Guantana~o
as senhoras distingl,lirem .o.e Qutra, 'maneJ~a';:qlie': a. miDha,· obterao urn outro conce~to,",€) p".nigaol,'lou dai;'d€),rnaneira exploratoria, algumas pistas,Lanllliti!"as. (e nao', nec,:,ssaria" Inente cronologicas au hist6ricasi !po~_s .-iStO.:8 :uma .. @est€lo' empirica complexa que escapa. ao.s, lTIeus conheciilieqtos: atuais). Vou tentar mostrar que punigiio e: uniconceito construido e'. que algumas construg6es nao ·sao mais -ihte"'ressantes para a evolugao do direito penal.
Antes de examinar algumas maneiras de definir, a punigao, digamos que esta parece depender, como pano de fundo, da percepgao de uma agao' como sendo ou nao repreensivel, de uma atribuigao de responsabilidade e de uma atribuigao de sentido. Em primeiro lugar, temo\? que perceber uma agao como sendo repreensivel. Em segundo lugar, temos que atribuir a responsabilidade dessa agao a alguem (ou a algo). Enfim, se queremos punir, nao basta reagir, temos que comunicar 0 se~tido des sa aqao ligandoa it atribuigao de responsabilidade para ter chance q".e ela seja compreendida como punig8.o (e 11aO so como rna sorte, como uma agressao. etc.). Se eu fizer Ulna represalia a Uln amigo em razao de uma traigao sem que ele saiba que fui eu, essa represalia perdeu a oportunidade de ser comunicada como punigao. Posso pensar que puni, mas ela nao foi comunicada como tal. A punigao tern, entao, alguns elementos em comum com a recolnpensa. Trata-se de duas forn1as de comunicagao que se referem a urn evento passado. A punigao e a recompensa sao con1unicagoes "retribu
"tivistas" porque sem essa referencia ao passado elas nao podem se apresentar C01110 punigao au recolnpensa. Destaco aqui, a importancia de dois elementos: (a) refer€mcia ao passado e (b) comunicagao do sentido da resposta.
A distingao punigao(recompensa: Uma das maneiras de definir a punic;ao e entao de distingui-Ia da recompensa tendo como pano de fundo a distinc;ao agao repreensivel/agao nao repreensivel ou louvavel. 0 que for louvavel
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pennite unla reeonlpensa. 0 'que for repreensivel pernlite uma puni"ao. E 0 que nao for nem repreensivel nem louvavel nao e observado pela: distin"ao puni"ao/recompensa porque nao tern nada que ver com essas duas fonnas de resposta. Vou sustentar aqui que uma das' grandes vantagens de observar a punic;:ao com a ajuda dessas duas distin"oes (repreensivel!nao repreensivel e puni"ao/recompensa) e que 0 "cont8'lJ.do" do conceito de puni"ao nao fica determinado ou "naturalizado.". 1sto e, varias san"oes (excJuindo s6 as que comunicam recompensa) podem servir de puni"ao. Sendo mais direto ainda: a simples repara"ao (total ou parcial) de um dana pode contar (ser comunicada) como punic;:ao.
Assim sendo, as tres situa"oes seguintes podem ser observadas como puni"ao:
Na primeira, eu digo it minha filha: ''A sua a"ao de ter quebrado intencionalmente 0 brinquedo da sua amiga e repreensivel. Por isto, como puni"ao, voce vai comprar e Ihe dar um brinquedo igual com 0 dinheiro da 'sua mesada". Todos os elementos estao presentes.
Na segunda, aconteee isso: "Pedro eOlnuniea ao seu amigo Joao que vai retirar a seu apoio a sua candidatura como uma forma de punic;:ao em razao de sua trai"ao".
Na tereeira situagao, sem a minh~ intervengao (autoridade), a minha filha diz it sua amiga: ''A minha a"ao foi repreensivel e eu quero fazer algo para repara-Ia na medida do possivel como punic;:ao pelo meu gesto. Eu vou te dar um brinquedo novo igual". Tambem aqui todos os elementos estao presentes. Como veremos mais adiante, se eu quiser, posso distinguir uma forma de puni"ao da outra chamando a primeira de puni"ao pela autoridade e a segunda de autopuni"ao. Mas as duas sao modalidades de punic;:ao.
o que e interessante aqui e que existe uma cOl11.uniea"ao de puni"ao, mas nao ha tentativa para dizeralgo desse
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genero: "retirar 0 apoio nao e U111a verdadeira punlgao, tinha e que Ihe ter dado um soco na cara"; ou ainda: "reparar na~ e punir". etc.
Claro, a puni"ao nao e a unica forma de resolver de maneira satisfat6ria uma situagao decorrente de U111a agao repreensivel, nem tampouco a uniea maneira de reafirmar, por exemplo, uma norma, dizendo que nao posso destruir intencionalmente os bens dos outros. Com efeito, a amiga da minha fiilia pode perdoa-Ia na totalidade ou em parte (pedindo algo mais barato do que 0 brinquedo quebrado, por exemplo). Del Vecchio insistiu sobre esse ponto, e tem razao.
Notem tambem que esta defini"ao nao vem acompanha-', da de outras normas. Em primeiro lugar, no caso da autoridade. a definigao me autoriza a punir, mas nao In8 abriga a faze-10. Enquanto autoridade, eu posso aceitar 0 fato que a amiga da minIm fiilia a perdoou e que a norma esta afirmada. Em segundo lugar, essa definic;:ao nao me obriga a impor it mirlha filha 0 pagamento do brinquedo e, ainda mais, como condi~ao necessaria, ilie dar umas palmadas para que is so seja supostamente uma "verdadeira punic;:ao" . Em outras palavras, esta definic;:ao pode autorizar as palmadas (com ou sem a repara"ao), mas nao me obriga absolutamente a dar as palmadas para tentar praduzir urn sofrimento ou Ulna dor de nlalleira independente da repara"ao. A comunica"ao do sentido de puni~ao e 0 essencial.
Vou considerar esta distin"ao aqui como a mais "basica" dc) coricEiito de punic;:ao. Sem ela, nao se pode observar uma puni"ao ou comunica-Ia. E vou design a-la, seguindo outros, por "principia retributivista de base". Como assinalaram Grotius e, depois, Del Vecchio, nao existe neste principio nerihuma obriga"ao intrinseca de punir. 0 que e essencial e a percep"ao do carater da a"ao e a dimensao tenlporal. Estas sao as condi~6es de nascimento da puni"ao, como disse Grotius.
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Assim a expressao "a pena e devid~ ao crinle" deve ser vista e interpretada como "a pena deve a sua razao de ser a uma agao repreenslvel anterior" (e ne88e caso, talTIbem ao fato de ter side selecionada pelo direito penal). Como nota Grotius, se eu digo: "a pena e devida ao delinqiiente", ha aqui um deslizamento de sentido no uso do verbo "dever" e ,um abuso de linguagem. A punigao nao e devida no sentido normativo de dever ser imposta, mas sirnplesmente no sentido da dimensao temporal: nao existe punigao sem antes existir· uma rna agao. Unla norma eventual de "obrigagao" e puramente contingente e impede 0 usa de alternativas.
A distingao autoridade/nao-autoridade:' Como vimos, a definigao basica acima nao nos impede de dizer que "Pedro puniu 0 seu amigo Joao" nem que "a rninha filha se auto-puniu reparando voluntarialnente ·sua agao repreensivel". Um outro observador pode excluir essas situagoes do conceito de .punigao? Claro. Se nao quisermos ob~ervar as comunicagoes de Pedro e da minha filha como comunicagoes que valenl como "punigao" ou autopunigao, basta acrescentar uma outra distingao. Por exemplo: autoridade/nao-autoridade. E ai pretender 0 seguinte: "uma comu'llicagao so vale como punigao quando for comunicada por . uma autoridade qualquer a um individuo com estatuto inferior" (urn pai ou uma mae, Deus, a Principe au 0 Estado). Claro, do ponto de vista da autoridade, esseacrescimo pode ser visto como uma vantagem. Com efeito, a autoridade pode agora dizer que ela detem 0 monopolio da verdadeira punigao. Ela po de entao observar as outras reagoes COU10 nao valendo como puni~ao, e ate l1leSlno desqualificalas como "vinganga privada". Mas se ela selimitar a acrescentar isso. ela continua podendo imp or diversos renledios a titulo de punigao. As alternativas dela nao foram reduzidas. Ela continua podendo impor ao seu inferior hierarquico a simples reparagao total ou parcial do dana causado a
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fundaIUentais _ as sombrias perspectivas a partir de Guantanamo
titulo de punigao por uma agao repreensivel, como pensava Aristoteles. A vitima foi reparada pelo menos em parte, a vontade da autoridade foi re-estabelecida e talvez 0 culpado tenha tambem tirado algum beneficia. Como dizia Montesquieu, "en un mot, tout ce que 1a 10i appeJIe une
peine est effectivement une peine". A distingao compensagao/sofrimento: Imaginem
agora que urn observador quer atribuir uma "natureza" a punigao. Ou ainda: ele esta convencido que a punigao existe na natureza e quer identifica-la. Aqui comega 0 verdadeiro problema. Harold Berman, em LaVI.T and Revolution, um livro sobre a forma<;:ao da tradigao juridic a ocidental, nos indica uma pista inlportante para COlnpreender 0 nascimenta da semantic a punitiva que vai acabar sendo S'elecionada de maneira dominante, a partir da segunda riletade do seculo XVIII, pelo direito penal moderno. Com efeito, no seculo XI, na epoca da Revolugao Papal, apareceu uma celebre carta anonima com 0 titulo De vera et falsa penitentia, que veio a ter uma influ8ncia surpreendente e altarnente imprevisivel. Esse texto, contrariando a mane ira usual de ver as coisas, vai identificar a poenitentia com poenaIn tenere ("sofrer uma punigao"). 0 primeiro problema, de ordem teologica, esta em ligar a instituigao da penitencia com a punigao. Ele e importante, mas vou deixa-lo de lado. o segundo problema vern com a modificagao na definigao de punigao proposta no tex;to, UTIla definigao que utiliza a esquema "impor compe~sagao/impor sofrimento" e coloca a punigao do lade do sofrimento. 0 texto diz 0 seguinte: "Properly speaking, punishment (poena) is a hurt (laesio) Vl.Thich punishes and avenges (vindicat) Vl.That one commits ... Penance (poenitentia) is therefore an avenging (vindicatio), a1V1.Tays punishing in oneself Vl.That he is sorry to have done" .
Nesta definigao, a punigao nao esta sendo observada com a ajuda adicional da distingao autoridade/nao-autoridade. Ela aceita, entao, a autopunigao (punishing in one-
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self) como modalidade de punigao. Mas 0 ,!,ais impartante para nos aqui e essa formidavel naturalizagao (ontologiza. gao) do conceito de punigao que fica ligado aqui ao termo "hurt" (iaesio, ferir, intengao de produzir sofrimento) e que aSSUl11.e urn aspecto quase que corporal, como diria Foucault; quase que Jigado mais fartemente a morte, casti. gos corporais, prisao (enquanto pura privagao). Estamos dizendo, talvez, ou quase, que a punigao se distingue, "pela Sua propria natureza", da reparagao dos danos.
Essa distingao pode se apresentar em formas mais atenuadas onde 0 sentido dos termos nao esta sempre claro (depende do autor Ou do sistema). Por exemplo: repa. ragao/pena, nao·privagao/privagao, etc. As implicag6es dessas definig6es sao as lTIeSlTIas: elas reduzelTI 0 can1.po das alternativas e naturalizam a definigao. Na pior das hipoteses, elas valarizam as sang6es aflitivas, aquelas que produzem ou que dao a impressao de querer produzir urn "hurt", UlTI sofrin1.ento, etc.
Lembrem·se, agora, da definigao de punigao dada par Grotius: malum passionis quod infligitur ob malum actionis,
cuja traduc;ao livre pode ser dada assim: "urn mal que se sofre [mal de retribuigaoJ por urn mal que se fez [mal de agaoJ". 0 primeiro mal da trase e um mal de sofrimento; 0
segundo, urn mal moral que e tambem reconhecido como tal pelo direito penal. 0 segundo "mal" nao coloca proble. rna, pois ele se refere a agao repreensivel. Mas falar de mal de sofrimento e, pelo menos, ambiguo. 0 que Grotius quis dizer ou como foi compreendido? Essa definigao pretende nos convencer que a punigao tern que buscar intencionalmente a produc;ao de uma laesio, um hurt, uma dar? Como compreender esta definigao? Ela transparta ou nao trans. porta 0 "hurt" do panfleto medieval? Ela exclui ou nao exclui a simples reparagao do dana em razao de urn mal que se fez?
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Na verdade, cada sistema social pode s~~.~·Fipnar a sua propria defini~a.o de puni~a.o e pode muda-la.~u :nao com a ajuda do tempo.
Se a resposta nao implicar a "hurt" e 11.aO excluir a reparagao do dana como remedio aut6nomo e suficiente, conservamos a principia retributivista de base enul1ciado acima, principia que permite varios remedios a titulo de punigao. E se uma lei do sistema de direito criminal rezar: "A sangao penal para este crime pode ser a reparagao do dano", temos que estar de acardo com Montesquieu: e pena (melhor ainda: e sangao penal) 0 que a lei disser que e pena ou sangao penal. E se 0 direito penal atual (estado presente) nao permitir esta resposta, 0 penalista pode', entao construir uma utopia penal no sentido de Bloch: rei· vindicar esta abertura no direito penal, abandonar as teo· rias da pena que negam essa possibilidade, pensar outras teorias da sangao penal mais complexas e mais interessan· tes, abandonar a semantica da punitividade, etc.
Se a interpretagao da definigao de Grotius acima excluir a reparagao e implicar 0 "hurt" medieval, 0 sistema definidor do conceito de punigao reduz 0 numero de possi· bilidades a sua disposigao para dar remedios (juridicos) a titulo de punigao. Essa definigao nao corresponde mais ao principio retributivista de base: ela e mais fechada, mais simples, mais regressiva. Neste caso, para pensar em termos de alternativas, temos que abandonar a definigao e a sua semantica para construir alga de mais apropriado, sen1. o qual, nao ha utopia juridico·penal.
o quadro abaixo resume essas tres possibilidades e bifurcag6es.
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. a ;. _1~' MIrii -0 elemerito
A pi.mig.a~.:: 1. ;.i3.'3 d.i~.~ingue da recOlllpensa por ser uma comunicac;ao de reprovat;ao a uma at;ao repreensiva anterior que sa acompanha de uma reparagao qualquer ou de uma Privat;ao.
Apunit;ao:
- A punit;ao tern em comum com a recompensa 0 fata de nao serem obrigat6rias, mesma se, nas duas situao:;oes, estao presentes as condi<;:6es nacessarias para punir au recompensar.
Definiciio e elementos: se distingue da recompensa por ser uma comunicagao de reprovao:;ao a uma at;ao repreensiva anterior. leita par uma autoridaqe, que se acompanha de uma·reparat;ao qualquer ou de uma Privagaa. - Ibidem
Definicao e elementos: se distingue da compensat;ao par sar uma comunicagao de replov89ao a uma agao repreensiva anterior, leita par uma autoridade, que busca produzir urn sofrimento ou uma priva9ao. - Ibidem (ou ainda a possibilidade de considerar a punit;ao como obrigat6ria)
Distincoes: At;ao repreensival at;ao nao
repreensiva: punit;ao/recompensa Implicacfjo: - Inc1ui a autopunit;ao e a punit;ao entre individuos com 0 mesmo status I·' (Principio retributivista de base)
Distincoes: At;ao repreensiva/at;ao mio
repreensiva: punit;ao/recompensa: autoridade/nao-autoridade ImplicacaQ: - Exclui a autopuni9ao e a punit;ao entre individuos com 0 mesma status
Distinc6es: - Ac;ao repreensival at;ao nolo repreensiva; cOinpensac;aol punic;ao: autoridade/nao autoridade Implicacao: ~ Exclui a autopunit;ao a a punigao entre individuos com 0 Dlesmo status - Exc1ui tipos de sanc;6es que podem valer como punic;ao - Exclui 0 perdao e outras solugoes se a punigao e vista como absolutamente imperativa
Para concluir este ponto. Notem que quando dizemos que a punigao se distingue da compensagao au da reparagao jii nao podemos mais ver a repara~ao como puni~ao, pois colocamos, cada uma delas, em uma das faces opostas da distin<;ao. Glaro, elas passam a se excJuir mutuamente, mas 0 que quero mostrar e qu~ 0 observador, enquanto ele estiver usanda mentalmente essa distin~ao, 11aO pode reahnente ver au observar a reparac;ao como puni<;ao. Se os senhores e as senhoras mudarem de esquema de observa<;ao e distinguirem a puni<;ao da recompensa, a1 sim, enquanto estiverem usando essa distingao,
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podem observar a reparagao como punigao, :E isso que a teoria quer dizer quando afirma que, para observar algo, precisamos fazer (a boa) distin<;ao.
Durante 0 seculo XVIII, 0 sistema juridico completa a sua diferenciac;:ao do sistema politico e 0 sistema de direito criminal se distingue tambeID para formar urn subsistell1a do direito. Durante esse seculo e 0 seguinte, 0 direito penal vai selecionar e estabilizar tres grandes teorias da pena. Vou chama-las de teoria mattizes: a teoria da retribuic;:ao, da dissuasao e da reabilitac;:ao. Ha uma quart a teoria, a teoria da neutralizac;:ao,mas ela tern muitas particularidades e me parece menos importante para 0 meu tema hoje, meSlllO se ela voltan urn pauco a 1110da nos anos 80, De qualquer maneira, e relativamente facil aplicar a esta teo-ria 0 que vou dizer das outras.
Voltemos as tres teorias matrizes para perguritar ° seguinte. Temos tres teorias diferentes da pena; pois bern, quais sao as sang6es indicadas por essas teorias? Tendo tres teorias diferentes, com urn pouco de sorte, devemos obter uma ampla escolha de sanc;:6es OU, pelo menos, sanc;:6es divergentes em func;:ao de cada teoria. Gada teoria deve nos convidar a adotar praticas distintas. Vou me limitar, e claro, as grandes sanc;:6es modernas s6 para dar uma ideia global do problema. 0 quadro abai-xo visualiza essa situagao.
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As teorias matrizes da pena e suas sangoes
RETRIBUTIVISMO DISSUASAo REABILITA<;:Ao
(Obrigag8.o de punir) (Obrigagao de punir) ?
Morte Morte Prisao
Prisao Prisao (1) (?)
Multa Multa
Probation
(2) Sezvigo a cOlnunidade
Tratamento em
liberdade
Advert€mcia
(3) Media,ii
Reparagfto·
Neste quadro, a teoria da reabilitagao foi descrita em tres fases ou em tn3s versoes distintas. A primeira fase vai aproximadamente de John Howard no final do seculo XVIII ao fim da segunda guerra mundial. Na verdade, esse periodo compreende dois modelos distintos da teoria da reabilitagao. 0 modele da "corregao das almas" onde corregao, disciplina e punigao sao indissociaveis, e 0 rnodelo da escola positiva italiana centrado no saber cientifico e predominanten1ente biologico e psicologico. Nesta primeira fase, bern ou mal, a preocupagao central reside em melhorar as condigoes de vida en1 prisao para favorecer e permitir a reabiJitagao dos reclusos. Como 0 sistema politico, em varias jurisdig6es, nao vai fazer grande coisa, essa preocupagao ficara Jigada a hist6ria da prisao como organizagao (do sistema politico) ate hoje. Ela sera assumida pelos modelos subseqiientes.
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A segunda fase tern urn comego indeterminado ou muito variavel. Ela guarda ainda nas suas grandes linhas 0
modele clinico-positivista como orientagao dominante (mas nao exclusivamente), mas comega a tomar, cada ,vez mais distancia da prisao como lugar p~r exceli'm cia para estabelecer urn projeto de reinsergao social. Ela comega a dizer que, em regra geral, vale mais tratar fora da prisao do que de dentro. Ela comega a dizer tambem que as condig6es de vida na prisao, do ponto de vista da reabilitagao, devem se aproximar 0 maximo possivel das condig6es de vida fora da prisao (ponto de vista diametralmente oposto dos primeiros xeformadores). Ela favorece entao a sangao de probation',
que pode ser vista como uma alternativa a prisao. A ideia de "produzir sofrimento" nao e mais vista como Ulna vantagem moral ou social. Com efeito, a probation e uma sangao que nao usa a prisao: 0 individuo fica em liberdade e e acompanhado (usualmente, mas nao sempre) por urn trabaIhador social. No Canada, esta fase torna-se visivel na metade dos anos 50. Comega-se a falar entao de moderagao no uso da pen a de 'prisao e na fixagao da sua duragao.
A terceira fase comega mais claramente nos anos 60 e 70. Nessa fase, aparece uma versao da teoria da reabilitagao que favorece explicitamente as alternativas a prisao. E a unica teoria a faze-Io. Trata-se de uma radicaiizagao da segunda fase, mas qualitativamente distinta na sua:versao mais pura, pois os postulados positivistas sao abandonados. 0 transgressor da norma penal nao s mais vista como anormal nem como inteiralnente determinado par causas externas, pelo seu organismo au por uma estrutura fixa e previsivel do seu sistema psiquico. Nao se acredita mais no interesse das pesquisas que buscavam diferengas entre criminosos e nao eriminosos. Os limites stieos e juridicos da intervengao psicopedag6gica ou social sao claramente reconhecidos e nao se aceita mais essa idsia de "guardar
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em prisao 0 tempo necessario para tratar" que estava presente na primeira versao.
Bern, voltemos ao primeiro periodo da teoria da reabiIita<;;ao. Entao, se excluimos a pena'de morte que se aplicou a poucos crimes no direito penal modsrno - e que ainda mais, com a triste exce<;;ao dos Estados Unidos, foi abolida enl todos as paises ocidentais - as tres teorias matrizes prop6em. de maneira consensual, ao sistema penal uma mesma sanli=ao de referencia: a prisao. Elas oferecem tres raz6es distintas para fazer a mesIna coisa: dar unla perra de prisao I?ara retribuir 0 mal pelo mal, para dissuadir ou para tratar. E claro, a teoria da neutraliza<;;ao refor<;;a esse consenso. Entao, como diz bern a expressao inglesa, "a distinction without a difference". Isso e muito importante porque se alguem diz que a prisao nao reabilita, 0 sistema responde que ela dissuade; se alguem disser que ela nao dissuade, 0 sistema diz que ela retribui 0 mal pelo mal, e is so e mais dificil de contestar ... Alem do mais, se urn de nos prefere uma dessas tres teorias e urn Dutro colega, Ulna outra, podemos fazer a mesma coisa pensando de maneiras diferentes. 0 unico problema que complica a nossa vida, e que estamos todos juntos igualmente limitados nas nossas 'escolha,s efetivas.
As teorias da dissuasao e da retribui<;;ao escolheram c1aramente a defini<;;ao de puni<;;ao que se distingue de repara9ao e que nos ~otiva a produzir sofrimento de maneira intencional e direta. 0 que e mais grave, e que elas acrescentam, na forma em que assumiram a partir do seculo XVIII, urn enunciado normative dizendo que "somos obrigados a punir". E este enunciado faz parte integrante da teoria, esta inciuido na teoria. Kant, par exemplo, dira que a pena retributiva e urn uimperativo categorico"; Beccaria vai eSCrever que, para dissuadir. a pena tern que ser certa. Dllier entao que "a certeza da pena conta mais que a severitlade" pode ser interessante para evitar abusos, mas nao
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chega a ser propriamente urn enunciado que contribui a constru<;;ao de uma utopia juridica em materia penal. Esse enu11ciado esta enviando 0 recado que tenios que punir (e no sentido que exclui a repara<;;ao) para poder dissuadir. Estamos estimulando a punitividade e uma punitividade concebida de maneira insuficientemente complexa.
Vejam agora 0 que aconteceu nos anos 70 e que se agravou enorrnemente a partir da metade da dec ada seguinte (1980). No mesmo momenta que estava emergindo dentro do sistema penal uma teoria da reabilita<;;ao que favqrecia as alternativas, as cieDcias sociais, incluindo a criminologia critic a, come9aram "a torpedear por boas e mas raz6es, mais mas do que boas no meu parecer, as sang6es alternativas. A tese que ficou famosa foi aquela do "aumento da rede do controle social", urn argumento frequentemente mal conduzido a partir de ideias de Foucault que, por sinal, nao tinham as mesmas irnplicag6es te6ricas e praticas. Em resumo: corne9amos, quase todos, a criticar a unica teoria interna do direito penal que estava come<;;ando a dar urn apoip teorico (mesmo que ele nao fosse 0 apoio ideal) as san90es alternativas. Resuitado: favorecemos - ciencias sociais e direito penal de maos dadas - uma reativa<;;ao e reestabiliza<;;ao das teorias dos meios exclusivamente negativos: dissuasao e retribui<;;ao. Volta a Kant e volta a Beccaria. Volta ern termos de revalorizac;ao cognitiva, e claro, pois essas teorias nunca sairam do sistema. E tambem nao evoluiram no sentido de integrar os conhecimentos produzidos no seculo XX pela filosofia e as ciencias humanas.
Encontramos no direito penal tambem uma tendencia a observar a teona da readaptagao como uma teoria do sistema penitenciario, da fase de execugao das penas, e 11aO C0l1l0 uma teoria do judici8.rio, incluindo a promotoria. Isso desvaloriza tanllem a teoria e neutraliza seus aspectos inovadores.
Nos anos 70 e 80 escutamos tambem falar, a primeira vista, de "outras" teorias da pena. Ate que ponto sao real-
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mente "outras"? Ate que ponto sao inovadoras e nao somente uma outra "distinction without a difference"? Algumas dessas teorias vaG ser selecionadas rapidalnente pelo sistema penal. Muito rapido e mau sinal, mas, quem sabe? Foi 0 caSO da teoria da "justa medida" principalmente no common law e da teoria da "prevengao geral positiva" no direito romana-germanico. Esta ultima teve tambem um equivalente funcional no common law: chama-se "teo ria da denuncia". Este tenno conduz a confusao na tradigao romano-gennanica. pois parece se referir a Ull1a atividade do proInotor ou da acusagao. Mas e uma teoria da pena que tern 0 mesma "objetivo" da tearia da prevengao geral positiva.
Em resumo, alem da valorizagao da retribuigao e da dissuasao, houve volta a Garofalo, a uma ideia de Durkheim que ele ja tinha corrigido, e quem sabe tambem a Santo Agostinho. Isso se fez no quadro da tearia da prevengao geral positiva ou da teoria da denuncia. A hist6ria e long a e precisaria de muitos esclarecimentos. n1as gostaria de lembrar, para provocar. um pouco nosso espirito, algo que Pierre Maraval, em um ·estudo centrado no sentido teol6gico da pena, nos deixa ver claramente. Santo Agostinho parece ja se cansolar dizendo. entre outras coisas, que gragas a pena "as bans vivem mais tranqiiilalnente no meio dos maus". Se a pena nao faz nada de bom, nao dissuade, nao reabilita, se ela nao protege nem previne 0 crime, previne pelo menos a intranquilidade daqueles que nao precisan1 dela. Nao sei se isso lembra algU111a coisa que aparece eOlno "novo" hoje eln dia, depois de ter sid a afirmado no seculo XIX por Garofalo e Durkheim.
Mas fala-se tambem muito de "justiga reparadora" e issa parece estar querendo mudar a nossa semantica. COIn efeita. a palavra "reparagao" parece sugerir que esse n10vimento intelectual aceita a (antiga) ideia (nem toda ideia antiga e ruim) que a sangao penal pode se satisfazer plenamente com uma simples reparagao parcial ou total do dano.
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Essa ideia e interessante e e sustentada par outras posigoes (Del Vecchio, por exemplo). Mas esse movimento e muito heterogeneo e contem tendel1eias que convivem perfeitamente com as velhas tearias da pena do sistema penal moderno (dissuasao, retribuigao, etc.).
As perguntas sao as mesmas para todas as teorias e ideias: elas continuam tendo a pena de prisao como sangao de referencia? Ate onde incluem ou excluem a reparagao dos danos e outras alternativas a prisao? Ate onde abandonaram a semantic a da punitividade como semantiea cognitiva de referencia? Ate onde estao propondo novos modelos paraescrever a lei penal onde a pena de prisao nao apac,
. reee embaixo de cada crime como uma sonmra que in1pede de pensar de outro jeito?
Raffaele De Giorgi utiliza bastante (de maneira distinta da usuali um principio sociol6gico para observar e descrever aspectos da realidade social. Refiro-me aqui ao principio de inclusao/exclusao social. Talvez possamos utiliza-10 para classificar as teorias matrizes da pena como tambem qualquer tearia que aparega com a pretensao de ser melhor au inovadora.
Segundo esse principio, podemos observar as teorias da retribuigao ou da dissuasao como sendo teorias que se situam na face "exclusao social" da distingao. Pois elas
. sao, palo· menos, teorias ~xplicitamente indiferentes a inclusao social. Sao teorias que valorizan1 exc"lusivamente os meios negativos: prisao e multa. E.las naD valorizam 08 meios "positivos" ou construtivos como a reparagao positiva do dana e nem mesmo a educagao ou a ajuda social geral enquanto estiver na prisao.
A situagao da teoria da reabilitagao e mais complexa. Em primeiro lugar temos que dizer que, na sua primeira fase, ela valorizou a prisao e· isto nao pc>de ser visto facilmente como se situando na face da "inclusao social". Mas, por outro lado, ela sempre usou, pelo menos, as duas faces da
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distingao. Entao, na sua primeira fase hist6rica, e~a sustentou que havia que excluir (enviar it prisao) para poder incluir (tratar, reabilitar, re-socializar). A prisao foi vista como um instrumento de incIusao social mesmo se estava excluindo (um paradoxo?). Essa teoria foi sem duvida a primeira a incluir no direito penal moderno uma preocupagao com a insergao social. Retomando uma frase de Raffaele De Giorgi enunciada em outro contexto, podemos elizer que ela estava facilitando a emergencia de "uma racionalidade compativel com ( ... ) condig6es estruturais de complexidade".
A meu ver, rneSlTIO hoje na sua versilo mais avangada, a teoria da reabilitagao nao e uma teoria que possa servir como ponto de partida para uma nova teoria da intervengao penal. Mas ela e mais complexa e menos punitiva que aquelas que estao ainda centradas na prisao ou que se situam na face da exclusao social.
Bem, a Vera Batista lembrou hoje de manha 0 paradoxo que "quanto mais se tala em cidadania, rnais se mata e esfola". No que toca ao direito penal, ha rnovimentos COl1-
tradit6rios. As vezes estamos querendo eriar urn novo direito penal e outras vezes encontramos um paradoxo semelhante ao indicado pela Vera: quanto mais falamos de cida- . 'dania, mais falamos de teorias indiferentes it inclusao como as teorias da retribuigao, da dissuasao, etc.
Entao, se quisermos repensar 0 problema da punitividade e da repressao interna ao direito penal, se quisermos que esse direito possa fazer uma evolugao de patamar, temos que trabalhar no sentido de eonstruir uma nova maneira de pensar a racionalidade penal. Tel:nos que construir uma nova teoria da intervengao penal que abandone inteiramente a atual teoria da dissuasao e da retribuigao, entre outras. Claro, nada disso estara pronto amanha de manha ...
Quero concluir de uma forma que ja utilizei certa vez em Sao Paulo. Nao sei se voces ja escutaranl. falar da garrafa para moscas. Retomo a descrigao dada por Watzlawick
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A face belica das forma<;6es sociais do capitalismo p6s-industrial e globalizado: do sistema penal regular a elimina<;ao das garantias dos direitos
(undarnentais - as sombrias perspectivas a partir de Guantanamo
em um livro chamado "A Invengao da Realidade". Bem, essas antigas garrafas para moscas foranl utilizadas para experiencias e serviram para elucidar como n6s reaginlos, do ponto de vista do conhecimento, eln certas eircunstancias. Sao garrafas que tem uma abertura larga, ern forma de funil, dando, claro, segundo pensa-se, uma aparencia de seguranga para as nloscas que se aventuram no gargalo cada vez mais estreito da garrafa. Voces ja devem ter observado issa ate em garrafas de cerveja. cuja forma nao tem essa abertura. Pois bern, uma vez dentro do recipie~lte, do ventre mais amplo da garrafa, a unica 11laneira para a 1110sca sair e tamar 0 caminho inverso pelo qual tinha entrado. Mas, visto do interior, esse canlinho pareee ainda mais estreito e perigoso do que 0 espago no qual ela se e;\:contra presa. A mosca, entao, busca a saidS: onde essad3aida nao se encontra, isto e, no espago aparentemente mais aberto e mais segura do fundo da garrafa. E ela acaba morrendo no fundo da garrafa, mesmo que a saida nao esteja obstruida.
Segundo Wittgenstein, que tambem refletiu' sobre esse problema das garrafas, ern uma tal situagao, teria sido necessaria eonveneer a mosca que a unica solugao para 0
seu dilema residiria justamente na via que the parecia a menos apropriada e a mais perigosa, is to B, retolnar 0 canlinho inverso e se aventurar no gargalo da garrafa para recuperar sua liberdade. Watzlawick lembra, entao, que a pergunta que fica para n6s e a seguinte: "Como valDOS encontrar 0 meio para sair da garrafa para moscas de Ulna realidade [cognitiva e institucionalJ que criamos e que nao nos convem?" Mais ainda: "Podemos ter alguma esperanga de nos liberar, se todas as situag6es que imaginamos nos conduzem a fazer sempre mais a mesma coisa?":
Ora, parece-me que construimos progressivanlente, no ocidente, algo de semelhante a uma garrafa para moscas em materia de justiga p~nal. Nos, partieularmente, temos tanto uledo de sair da nossa garrafa que toda vez
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Alvaro Pires
que falanlOS en1. sair dela, comeqan10s a dizer que estan10S "civilizando" 0 direito penal, que ele vai desaparecer, que vai ser abolido, que a sociedade vai voltar a epoca da vinganc;:a privada (que par sinal nunca desapareceu) ou ainda que a controle socia] vai, aun1entar ... Ai, par varias e infinitas raz6es, voltalTIOS para 0 fundo da garrafa e estan10S 110S sufocando no fundo dela, mesmo que as esperanc;:as ainda 11aO tenl"lam morrido.
Muito obrigado.
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Cristiano Paixao
E emocionante estar em UlU Iugar com tanta hist6ria. Os alunos que me trouxeram ate aqui foram me contando tudo 0 que jEt se passou nesse predio, nesse salao. A introduc;:ao do professor Nelio refarc;:ou isso. Sentimos a hist6ria aqui. A hist6ria nao e uma coisa que existe apenas nos livros, nos quadros, nas colunas dos predios; a hist6ria e 0
que e vivido, 0 que e experimentado, 0 que e mudado, 0
que e construido. Eu tambem sou professor de uma instituic;:ao publica, uma Universidade Federal - a UNB - e que
. jEt se fez dotar de uma hist6ria, embara mais curta, mas' igualmente ali construimos uma hist6ria. Tambem passamos pelo processo de re-erguimento, de re-fundac;:ao da Universidade. Entao, creio ser muito pertinente falar de hist6ria aqui, da hist6ria que estamos vivendo hoje ..
A hist6ria que vivemos hoje e uma hist6ria em aberto, e Ulna hist6ria que naG tern urn rUlno defillido - 0 que e 6tin1o -, mas e uma hist6ria que e muito dificil, como disse 0 professor Alvaro, de ser observada. Epistemologicamente, em termos de historiografia, fazer historia contemponlnea e urn desafio muito difici!. E muito dificil descrever uma hist6ria que e vivida. Mas nao podemos nos furtar a essa tare fa.
Obviamente, nao quero dar a minha· .intervenc;:ao a forma de palestra. No atual momenta desse memoravel encontro, quem esta aqui, eu divido em duas categarias: os sobreviventes, que estao recorrendo as u.ltin1as reservas de oxigenio; e aqueles que conservam expectativas ligadas as possibilidades da noite. Mas as possibilidades da noite, que sao varias, nao tern exatamente urn palco muito interessante por aqui. Portanto, quer por uma razao, quer pela outra, vou bus car diminuir a intervenc;:ao que havia prep arado, indo diretamente ao tema proposto por Maria Lucia, para que possamos debate-Io com voces.
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Cristiano Paixao
Vou falar, basicamente, sobre a situac;:ao de Guantanamo, que integra 0 titulo proposto pelaMaria Lucia. Aqui, alias, cabe uma considerac;:ao: os titulos do folheto sao literarios, sao espetaculares, rimam, sao versos brancos; pensem na "face belica das fornlag6es sociais do capitalismo pas-industrial e globalizado; do sistema penal regular a eliminac;:ao das garantias dos direitos fundamentais; as sombrias perspectivas a partir de Guantanamo" ... Isso e uma tese de doutorado, nao e? Temos grande parte da politic a penal ocidental aqui resumida ... Portanto, vou me prender as tres ultimas palavras: "sombrias; perspectivas; Guantanamo". E acho que, com issa, poderemos conversar urn pouco.
Falarei, entao, muito rapidamente sobre 0 significado de que se reveste esse problema nos Estados Unidos de hoje, apoiando-me nas repercuss6es constitucionais de Guantanamo, e buscarei conduir lanc;:ando algumas indagac;:6es acerca do que esta a ocorrer hoje no mundo.
Quero ressaltar que esse problema da luta contra 0
terrorismo, da tortura que estamos vendo, da supressao de direitos, nao e urn problema norte-americana, nao e urn problema europeu; e urn problema global. Nada revela mais p carater mundial da sociedade em que vivemos do que os atentados de 11 de setembro e a reac;:ao a eles. Pessoas de quarenta nacionalidades foram atingidas nesses atentados. Apas 11 de setembro, forilm aprovadas leis antiterror nos Estados Unidos da America, na Inglaterra, na Franc;:a, na Alemanha, na Italia, na india, na Indonesia, na China, no Japao, na Jordania e na Tunisia.
It abvio que esse arsenal de leis antiterror nao quer simplesmente combater 0 terror. Na india ja havia urn conjunto de leis antiterror, conseguiu-se aprovar mais uma. Na Tunisia, a lei antiterror foi aprovada para justificar a terceira reeleic;:ao do Presidente da RepUblica. Portanto, vemos como 0 terror, a palavra terror, circula de uma forma global
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fundamentais _ as sombrias perspectivas a partIr de Guantanalno
e e utilizada seletivamente a partir desse discurso global que nos cabe aqui tentar analisar.
Born, Guantanamo. Quadro geral do que acontece naquele enclave no meio do Caribe. Desde janeiro de 2002, passaram pelo campo de prisioneiros 660 detentos, de 40 nacionalidades, que falam 18 idiomas diferentes. 1 Temos cidadaos australianos, 'chineses, russos, suecos, franceses, de varios paises da Africa e da Asia. Nao sao apenas prisioneiros capturados no cenano das batalhas do Afeganistao. Temos prisioneiros oriundos do Afeganistao, a maioria; capturados no Paquistao, fora da area de combate; capturados em paises africanos, como Zan:bia. e Gambia. Nao se sabe ate hoje quantas pessoas estao la e muito menos os seus nomes. Ha apenas estilllativas·;
Busquei marcar a minha intervengao pela discus sao do que est a acontecendo, pelas minhas contas, que sao muito escassas, dado a uma cultura do sigilo que procura se instimrar hoje nos Estados Unidos da America. Alegando-se .raz6es de seguranga nacional, inlperativos de preservac;:ao de informac;:6es de inteligencia, praticamente nada se divulga sobre a guerra antiterror. Centrarel 0 foco em Guantanamo e suas repercuss6es constitucionais.
as prisioneiros de Guantanamo encontralTI-Se enl uma situagao que os tearicos denominam "limbo juridico". Na interpretac;:ao concedida pelo Governo Federal norte-amencan~, aos detentos dabase de Guantanamo nao se aplica 0
dire ito internacional dos confUtos armados (especialmente as normas das Convenc;:6es de Genebra referentes aos prisioneiros de guerra); tam.bem nao telll vigencia 0 direito
1 Dados de junho de 2004. Quando a presente intervengao estava em. revisao _ fins de margo de 2005 -, a base de Guantcinamo contava com cerc~ de 550 detentos, sendo essa a unica observagao que se impoe quanto a situagao dos detentos de Guantfmamo. 0 rest ante do quadro exposto na comunicagao permanece 0 mesmo.
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Cristiano Paixao
interne norte-americano; e, por filn, nao pode incidir 0 aparato nornlativo referente aos processos ,que tramitam perante as cortes Inilitares norte-americanas. Essas seriam as tres alternativas possiveis.
As Conven<;;6es de Genebra foram amplamente utilizadas pelos Estados Unidos na primeira guerra do Golfo Persico. Elas dividem os prisioneiros em dois grupos de individuos que poden1 ser tOlnados conlO prisioneiros Bum conflito: (iJ aqueles capturados em atividade militar, a servi<;;o da poti'mcia inimiga em rela<;;ao a qual uma na<;;ao entrou em guerra e (ii) a popula<;;ao civil. Seja qual for a condi<;;ao do prisioneiro, ha sempre a previsao de urn tribunal competente para decidir 0 status daquela pessoa que foi capturada.
Os Estados Unidos entendem que existe un1a terceira categoria nessas nonnas internacionais: a categoria do "combatente ilegaJ". Portanto, ao "combatente ilegaJ" nao se aplicam, segundo a interpreta<;;ao norte-americana, nem o direito internacional, nem 0 diteito interno, que j8. foi muito utilizado para embasar condena<;;6es de atos terroristas. Os responsaveis pelos atentados do World Trade Center ocorridos em 1993 foram todos julgados pela Justi<;;a federal americana, com garantias processuais, com processos razoavehnente sensatos; inclusive nao se aplicou a pena capital a esses chamados "terroristas". Do n18smo modo, nao vigora tambem 0 direito das cortes marci.ais norte-americanas, que ja desenvolvem uma tradi<;;ao de observancia aos criterios d'e devido process a legal ha mais de um seculo.
Na verdade, 0 que aconteceu con1 esses prisioneiros? Eles estao Huma especie de nao-lugar.
Guantanamo - voces nunca pararan1 para pensar 0 que os Estados Unidos estao fazendo ali, numa ilha da America Central com esse nome erri espanhol? - fica perto de Cuba. 0 que aconteceu? Essa ilha foi cedida no final do saculo XIX, em uma especie de arrendamento, ou conces-
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fundamentais - as sombrias perspectivas a partir de Guantanamo
sao, pelo governo espanhol aoS Estados Unidos da America, para ser utilizada como base naval. Um pouco antes da independencia de Cuba, na decada de 1930, esse contrato foi renovado indefinidamente.
Oual e a fundamenta<;;ao apresentada pelos Estados Unidos para justificar a nao-aplica<;;ao do seu proprio direito, da sua propria Constitui<;;ao aos detentos da base de Guantanamo? Eles dizem 0 seguinte: "em Guantanamo, nos, norte-americanos, temos controle e juri8digao, 111a8 nao ten108 soberania; a soberania e cubana". E alguen1 ja parou e perguntou: "se, por acaso, Fidel Castro resolver visitar Guantanamo, elepodera fiscalizar 0 campo dos pri.sioneiros?" Em hipotese alguma. Entao, os detentos d~ Guantanamo estao ern Ulna situagao n1uito curiosa. Estao presos por for<;;a de um conflito militar norte-americano, est aD sendo vigiados por sold ados norte-an1ericanos, SIn uma prisao construida por norte-americanos, vaG ser julgados por orgaos criados pelos norte-alnericanos, inas nao estao em territorio norte-americana.
Diante desse quadro, cabe indagar: quem vai julgar essas pessoas? Tribunais n1ilitares criados posteriornlente a "guerra contra 0 terror" ....:... par norte-americanos. 0 tern1D tribunal aqui e un1 POlleD forte; sao c0111issoes militares. A professora da Faculdade de Direito de Yale Judith Resnik diz: "nao devemos chamar esses orgaos de tribunais, pois isso daria a essaS entidades uma legitimidade que elas nao merecem". Sao grupos de juizes militares, indicados pelo Secretario de Defesa, com serias restri<;;6es a publicidade do julgamento - 0 processo pode ser todo sigiloso - e nao ha a possibilidade de recurso ao Poder Judiciario.
Alguns prisioneiros de Guantanamo ajuizaram a<;;6es questionando sua deten<;;ao; uma decisao favoravel de um tribunal, uma decisao desfavoravel de outro, a Suprema Corte vai julgar proximamente se esses detentos tem 0
direito ao aces so a tribunais americanos, a impetragao de
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urn habeas-Gorpus.2 De qualquer maneira, ja temos dais detentos indiciados para julgamentos nesses tribunais militares e ja esta sendo construido 0 corredor da morte. Uma reportagem da MSNBC, em 2 de junho de 2003, mostrou a liberagao de recursos governamentais para 0 planejamento e construgao de uma camara de execugao nesses "tribunais" militares.
Na minha condigao de professor de Hist6ria do Direito, deparo-me com urn problema: as fontes hist6ricas. A guerra contra 0 terror esta envolta numa bruma de misterio. Assim, uma pergunta se imp6e: conlO saber 0 que esta acontecendo em Guantanamo? as unicos testemunhos possiveis sao de alguns detentos que ja foram libertados e alguns comentarios de uns POliCOS oficiais do exercito anlSricano que dao deciaragaes it imprensa sob a condigao de anonimato.
o qu'adro que se construiu a partir de algumas dessas narrativas, que sao muitas vezes trazidas por jornais britanicos, e impressionants. Ao que tudo indica, nenhum dos originais 660 detentos esteve envolvido corn 0 que se
2: A Suprema Corte finalmente assegurou a esses detentos 0 direito ao acesso a tribunais americanos, a impetrac;ao de urn habeas corpus. A decisao da Corte foi divulgada em 28 de junho de 2004. Par seis votos a tres, a Suprema Corte entendeu que, para fins de definic;ao do direito aplicav~l, as detentas de Guantanamo encontram-se em territ6ria norteamericana (Rasul et. aI.v. Bush, President of the United States et. Al., 03-334). Partanto, -a decisao franqueou aos prisioneiros ali mantidos 0 direito de questionar sua deten9ao perante os tribunais federais norte-americanos. Ainda que se trate de uma importante e hist6rica decisao, e fundamental observar que a Corte limitou-se a garantir 0 direito a jurisdigao, au seja, nao se manifestou acerca da licitude, ou nao, da manutengao dos detentos na ilha, trunpouco se pronunciou sabre a Jegalidade, au nao, dos tribunais militares (e os processos a ele destinados) que iraQ "julgar" as prisioneiros, Essa discussao devera demorar alguns anos - ate; que as processos tramitem na Justiga Federal e cheguem (como e provavel) a Suprema Corte. A situac;ao fatica dos detentos, cerca de nove meses apos a decisao da Corte, e rigorosamente a mesma,
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chama de Al-Qaeda. Eram pessoas que estavam 11a hora errada no lugar errado. No maximo, existem alguns mullahs que eram fieis ao Taliba. Nao ha terroristas, no sentido da palavra, ern Guantanamo. 0 que ha sao esses cidadaos capturados ap6s urn conflito tribal. A Alianga do Norte, uma organizagao de tribos comandada por urn senhor da guerra, encaminhou aos Estados Unidos da Anlerica UlTl
lote de prisioneiros. Esse lote inicial era de 35.000 pessoas. Sobreviveram a esse process a 4.500. Tres detentos que foram liberiados - tres detentos ingieses - contaranl que essas pessoas eraln acomodadas eln conteineres, em que nao se podia respirar. Urn deles disse que, quando despertou, estava diante de fluidos emanados de urn cadaver. Quem conseguiu sobreviver, escapando dos tiros que mataraln outras pessoas, fez buracos nesses conteiher'es.-
Algumas dessas pessoas foram transportadas para Guantanamo ~ tendo side obrigadas a usar mascaras, algemas, restrig6es nos movimentos dos pes. A primeir'a regra a que se subineteraln, apos sua chegada, em jarteiro de 2002, era uma proibigao de conversar; os detentos nao podiam conversar uns COIn 08 outros. Foi feita, entao, unla greve de fome que gerou resultados e eles conseguiram se comunicar. Existem prisioneiros em solitarias, COlTI soldados 24 horas por dia ern vigilancia, ern uma cela sem janelas. Ficaram detidos, durante mais de um ano, tres adolescentes entre 13 e 15 anos. Alem disso, houve cerca de trinta e sete tentativas de suicidio. Uma delas gerou Ulna Iesao cerebral irreversivel e unla pessoa esta sendo mantida ern estado de coma: e urn professor prima rio da Arabia Saudita. Ha tambem a estimativa de que cerca de Uln quinto dos detentos esteja sendo medicada, it forga, com antidepressivos. Essa e a situagao ern Guantanamo.
Tudo issa e muito choc ante , tudo iSBo e muito desagradavel, mas nao esta muito longe da realidade das prisaes norte-americanas. As imagens que temos, ate de fil-
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ITIeS - os prisioneiros conduzidos naquelas correntes -, OU tudo que foi dito aqui por Alessandro De Giorgi a respeito das condigoes das prisoes norte-americanas, e urn fato, e urn dado. 0 que mostra uma diferenga fundamental entre GuantEll1amO e 0 sistema penal e a indefinigao. Atualmente, mais de 500 pessoas estao sendo mantidas detentas, sem saber se vao sair, sen1 saber quando van sair, SeITI saber inclusive porque estao lao
Um psic610go forense, que e do Havai e que presta consultoria para detentos est eve em GuantEll1amO e declarou: "Olha, isso aqui nao e inteiramente diferente do que acontece no sisten1a prisional norte-aITIericano. 0 que e diferente e que la, 0 condenado chega com uma pena; entao, examina a lei, sle se comunica com sell- advogado, ele faz estrategias para conseguir uma condicional, para conseguir sair Inais cedo. Ele tern un1 horizonts, tSlll Ul1la perspectiva. Em Guantanamo, isso nao existe". Essa e a principal diferenga: em Guantanamo, os detentos nao estao apenas com sua mobilidade reduzida no espago; eles tamben1 estao suspensos no tempo.
Mas nao e s6 GuantEll1amo. Uma parte da exposigao que eu havia preparado relacionava-se con1 0 tema da tortura. N a atual "guerra contra 0 terror", existen1 varios niveis de tortura, divers os tipos de prisoes, tratamentos diferenciados para "tipos" escalonados de terroristas. Posso expor Inelhor esse ponto, se for 0 caso, na fase dps debates. Agora e hora de passar direto para a conclusao, que se apresenta -sob a forma de uma pergunta: e a Constituigao nisso tudo? .
Sabemos que os Estados Unidos da America sao a comunidade politic a que viu surgir a forma moderna de Constituigao, 0 controle de constitucionalidade, a supremacia da Constituigao e, nao lTIenOS ilnportante, Ulna cultura de direitos COlll base em varias interpretagoes da Constituigao. Essa e Ull1a belissima hist6ria, da qual na~
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devemos perder a dimensao. A hist6ria da formagao do constitucionalismo norte-americano e uma hist6ria de C0111-preensao da modernidade e da ideia de se fazer hist6ria. Portanto, e realmente ironico - e mais uma das ironias da hist6ria - que seja exatamente nos Estados Unidos da America onde se discuta de forma tao dramatic a 0 fim da Constituigao.
E evidente, ate pelo nosso discurso - e pela forma em que ele e articulado - que nao est amos diante do fim da Constituigao. De toda maneira, essa discussao se tornou possive!. Numa perspectiva que procure escapar da tent adora imediatidade dos fatos e das paix6es da politic a, 0 que provavelmente ocone nos Estados Unidos da America e uma zona de exclusao seletiva de alguns atores sociais, de alguns grupos, de toda e qualquer prote<;ao constitucional.
Basta pensar no caso extremo. Voltemos a Guantanamo. Aquelas pessoas estao submetidas apenas ao que os Estados Unidos quiserem conceder. Elas pass am por um momento de privagao completa de identidade, person alidade, para serem submetidas as regras que forem definidas pelos Estados Unidos da America, pelos seus captores. Porem, is so nao se da sem um contexto, sem urn pano de fundo, sem algum tipo de justificativa. E vamos encontrar, se formos tentar examinar a defesa que se faz desse tipo de instituigao, algumas figuras, alguns tipos de· classificagao, que pareceriam ja um pouco superadas.
Nesses desdabramentos da "guerra cantra a terror", e passivel constatar uma especie de retorno de alguns pares conceituais, como, por exemplo, amigo/inimigo, bom/mau, sagrado/profano. 0 que quero dizer com isso? Existe uma lei antiterror norte-americana - 0 USA Patriot Act (Public Law, n" 107-56, 26 de outubro de 2001). Essa lei tem 342 paginas. Ela modifica uma expressiva parte do sistema penal norte-americana e traz novos instrUl1lentos de COffibate ao terrorismo. Nao ha aqui espago para a descrigao do
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il1lpacto dessas 111udangas - mesmo porque essa lei nao se aplica aos prisioneiros de Guantanamo. Mas um detalhe da curta tramita~ao do projeto de lei e bastante eselarecedor. o projeto foi enviado, pelo Governo Federal, ao Congresso Nacional norte-americano no dia 19 de setembro de 2001. 0 entao Secretario de Justiga (John Ashcroft) declarou publicamente que, caso 0 projeto nao fosse aprovado no prazo de do is dias, os membros do Congresso estariam colaborando com 0 inimigo, par facilitarelTI novas ataques contra os Estados Unidos da America.
No que diz respeito especificamente a situagao de Guantanamo, algumas declarag6es sao instrutivas. Donald Rumsfeld, que e 0 Secretario de Defesa norte-americano, visitou Guantanamo e proferiu a seguinte observagao: "essas pessoas sao os assassinos mais perigosos, belTI treinados e odiosos da face da terra". Trata-se de uma deelaragao que so pode ser corretamente analisada quando se recorda que Donald Rumsfeld e 0 autor das regras que governam os tribunais militares que vao julgar os detentos. Alem disso, 0 unico recurso cabivel da decisao dirige-se para 0 proprio Rumsfeld (ou um grupo de oficiais por ele >ndicadps). Oresultado e essa privagao, essa perda de qualquer possibilidade de argumentagao. E um julgamento coletivo, baseado numa logica "amigo/inimigo".
A logica do "born" e do "mau" tambem volta de Ulna fornla lTIUitO original, em outros discursos de lTIen1bros da administragao publica norte-americana. Donald Rumsfeld deelarou: "Eu nao tenho a minima preocupagao acerca do tratamento dos prisioneiros de Guantanamo. 0 modo pelo qual estao sendo tratados e muito melhor do que a forma com a qual eles trataram qualquer outra pessoa". Em sintese, a que ele esta dizendo e que "eles nao merecem ser tratados como prisiol)eiros de guerra". Portanto: eles sao "maus" no julgamento coletivo. Nao ha nenhum inquerito,
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nenhuma busca de provas, para saber Se aquela pessoa estava realmente em um campo de batalha.
Deixem-me contar a historia de tres, ingleses,que concederam uma extensa entreVista para 0 ObserVer.,Os·itres tinham ascendencia arabe, todos:,cidadiios;ii1gle~es' da cidade de Tipton (eles ficaram conhecidos't;0rhoosrn'ptpn Three). Ao que parece,os tresrespl;((jrp.in:)r:,p<ilra,.o Afeganistao na pior hora possivl3l.Uin"pi,f\3?;'tesolveuse casar, 0 outro foi ser 0 padrinho; ",' ote~c",i~§.,fqi;si:(llplepc mente acompanhar 0 amigo. Quancid ,ja,estavarn: no Afeganistao, eelode 0 conflito militar. Segup.cJp, ay~rsaOpm; Tipton Three, eles foram simplesmente~rap§lliarna,ajuqa humanitaria as vitimas do confiito. 'Porem ':- prossegue, a narrativa - eles foramconfundidos com combatentes,.pasc saram por todo esse processo (ja descrito) dos cOllteinerl3s 13 do transportl3, 13 chegaram a Guantanamo. Estavam la na base naval norte-americana, selli pertencer aa grupo das detentos ml3nos afavl3is: eles falavam ingles e, dl3 certo modo, se mlacionavam com os guardas. Certo dia, foi revista, pela I3quipe de inteligencia do governo federal norteamericana, a copia de urn video em que Osan1a Bin Laden se encontra com Mohamad Atta. E alguem disse: "Os tres ingleses I3stao ali, junto com Osama Bin Laden". Inquirido, urn deles falau: "Issa e impassivel; nessa epaca, eu lTIOraVa na Inglaterra, cursava engenharia eletronica em Ulna, univl3rsidadl3 13 trabalhava 13m uma loja de equipamentos eletronicos, tenho aqui' os dados". DI3 pronto, os investigadores dissl3ram: "Nao; podl3 ser que alguem tenha assumido sua identidade, seja outra pessoa no SI3U lugar, tenha falsificado seus documl3ntos e pode ser qUI3 voce tenha I3stado mesmo com Osan1a· Bin Laden". Ele, entaD, narra aa Observer: "Olha, dl3pois dis so, confl3ssei que tinha I3stado com ele, muito embara nunca: estivesse estado; disse que I3les podiam me julgar por qualquer coisa, porque vi qUI3 nao chl3garia a lugar nenhum". Qual foi a sorte dl3sse ex-
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detento? Por ser cidadao britanico, 0 servi<;o secreto britaniea entrau em cantata com a governo federal norte-americano e conseguiu provar que 0 alibi dele era verdadeiro. Ele foi libertado.
Vamos fazer um exercicio de abstra<;ao. Uma pergunta: e quem nao for cidadao britanico? Imaginem um cidadao arabe, afegao ou paquistanes. Eles nunca vao ter esses registros. 0 que podera acontecer? A coleta de inteligencia em Guantanalno nao e inteligente. Gada prisioneiro e interrogado cerca de dez vezes com.as mesmas perguntas. Ja se fez 0 calculo de quanta inteligencia foi extraida e armazenada: dez milh6es de palavras em depoimentos. Isso da 250 biblias. Ou seja, eles nao conseguem nem ler 0 que recolhem em termos de inteligencia.
Portanto, vemos que 0 que justifica esse tratamento diferente, 0 que justifica esse tratamento coletivo - essas pessoas estao ha mais de tres anos sem ser sequer indiciadas ou denunciadas -, so pode ser a reinser<;ao de uma dicotomia pre-moderna num julgamento que nao adota as premiss as do Estado de Direito. Separa<;ao radical entre 0 "bom" eo Iln1au", separagao radical entre "amigo" e "ininrigo".
Um outro desdobramento importante da "guerra contra 0 terror", que nao podera ser aqui abordado, aponta para Ulna inter-relagao muito interess"ante entre ideologos da luta antiterror norte-americana e formuladores de progran1as con10 "tolerancia zero", como "enfase na preven<;ao", ou seja, politicas de seguran<;a publica, em voga na decada de 1990, que enfatizam 0 rigor na atividade policial e expandem 0 direito penal. Esse e um tema relevante, que precisa ser aprofundado.
Poren1, e tempo de concluir. Farei issa invocando Ulna pequena historia, que e revel ad ora do contexto juridicoconstitucional trazido COIn a reagao norte-alnericana aDs atentados de 11 de setembro.
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fundamentais -"as sombrias perspectivas a partir de Guantfmamo
Mencionei, anterionnente, que a Suprema Corte ira apreeiar 0 t8ma referente ao status dos prisioneiros de Guantanamo. Para ilustrar nosso exen1plo, e essencial descrever, em linhas gerais, como funciona 0 julgamento de UlTI reeurso, em regra, nos tribunais federais americanos e na Supren1a Corte. 0 recurso e aceito pela Corte e entao e designada uma audiencia de debates orais. E um sistema muito instigante. A sessao e publica e os advogados nao prol1.unciam apenas uma sustentagao oral, con10 no caso do processo brasileiro. Os advogados sao testados, inquiridos pelos juizes sobre as circunstancias do caso levado a julgalnento. Findos os debates, a decisao nao sai naquel~ momento. Ela e redigida a portas fechadas e divulgada depois. No caso do precedente de Guantanamo, a sessao de debates ocorreu no dia 20 de abril de 2004 e a decisao e aguardada para os proximos dias. 3
Surgiu, entao, uma discussao interessante nos argulnentos orais no caso Guantanamo. David Souter, que e urn dos mais lucidos e liberais juizes da Corte, perguntou ao Governo Federal norte-americano, ali represent ado pelo Solicitor General Theodore Olsen: "0 que se aplica aos prisioneiros em Guantanamo?" Ele disse: "Nada". "E se eles estiverem sendo torturados?" "0 direito federal americana nao se aplica". "E se eles forem executados?" "Nao ha jurisdi<;ao norte-americana". Ai ele fez a seguinte pergunta: "A lei federal de prote<;ao de especies amea<;adas de extin<;ao se aplica aos iguanas que vivem em Guantanamo?" Na ilha de Guantanamo existem muitos desses animais. Respondendo a pergunta posta pelo Juiz Souter, 0
Solicitor General declarou: "Shn, a lei de especies amea<;adas de extin<;ao se aplica".
Essa dimensao do debate permite que seja revigorado urn argumento que ja foi utilizado pelos advogados de presos
3 A decisao foi publicada em 28 de junho de 2004. ce" nota 2.
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politicos durante a ditadura militar brasileira: de invocar a Lei de Prote<;:iio aos Animais para a defesa dos prisioneiros de Gual1_tanamo. Se 0 argumento fosse colocado em pratiea, os detentos teriam mais direitos do que eles tern hoje.
Isso deixa uma pergunta no ar. Que Constituigao e essa? Niio se pode afirmar, de modo algo precipitado, que esse estado de exce<;:iio que foi decretado suspendeu a Constitui<;:iio. Niio ha condi<;:oes para que is so ocorra. 0 que houve foi uma suspensiio seletiva de todo 0 Direito. Areas foram simplesmente colonizadas,ocupadas por disting6es II amigo/inimigo", "bom/mau", "sagrado/profano". George Bush disse no Congresso: "·Deus esta do nosso lade nessa luta".
Portanto, 0 que oeorre e uma discus sao rnuito interessante e nao quero terminar, aqui, en1 urn tom negativo. Porque existem movimentos de reagiio nos Estados Unidos da America. Ha decisoes exemplares de tribunais federais amerieanos, que vao ser subnletidas a Suprenla Corte. Ha Uln movimento de comunidades politicas: 375 cidades e 4 estados ja aprovaram resolugoes contrarias ao USA Patriot Act. Inclusive a cidade de Nova York, que 0 fez par unanimidade.
HEi uma movimentaqao constitucional nos Estados Unidos, cujas conseqliencias na~ podemas estimar. Mas, a que esta em jogo e muita eoisa. Se for normalizada a suspensao da Constituigao como regra de convivencia do direito com a politica, como forma de construgiio da politi-· ca, vamos ter uma especie de guerra civil permanente, un1a especie de est ado de exce<;:iio permanente.
Niio ha nada escrito dizendo que is so va acontecer. Eu acredito na hist6ria. Eu acredito que a humanidade encontre 0 seu caminho. Esse caminho nao e facil, ele nao esta evidente a nossa frente, mas ele e possivel. Eu Ine recorda aqui, para concluir, daquela reflexiio de Macbeth pr6xima ao final da pega. Lady Macbeth se suicida e Macbeth, pressentindo 0 fim, diz: ''Amanha, e amanha, e ainda amanh§'.
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Arrastam nesse passe a dia-a-dia ate 0 fim do tempo prenotado. A vida e s6 uma sombra: urn mau ator que grita e se debate pelo palco, depois e esquecido; e uma hist6ria que conta 0 idiota, toda sam e ruria sem querer dizer nada".
Temos de provar que Macbeth esta errado. E temos que fazer, de alguma forma, a Constituiqao ser vivida, revivida e reconstruida. Obrigado.
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Pergunta sem identificagao do autor - Boa noite, fim de noite ... Vou fazer uma pergunta para 0 professor Cristiano.
o argumento, que as vezes pareee fraco, mas e Inuito utilizado hoje em dia, tanto pel a esquerda, quanto pela direita, e generalizar situag6es como Bssas, que sao situagoes p6s-modernas, comparando com 0 nazismo ou com d stalinismo, para poder combater urn certo tipo de tendencia politica.
Nesse caso, iSBa pode ser urn arguluento fraco, 111a8 me parece muito semelhante. Eu queria fazeressa pergunta para 0 senhor, que a especialista em hist6ria do Direito: Sera que nao existe uma semelhanga - pelo menos a mim parece - entre iSBa que esta acontecendo, esse tipo de est ado de excegao que os Estados Unidos criaram, com a Gestapo nazista? Sera que 11aO existe U111a forma de construir, acadelnicamente, 88sa senlelhanga, C0l1l0 fanna, como argulnento para combater esse tipo de pastura?
Cristiano Paixiio - Parabans pela pergunta. :It ·ui11a pergunta central na discussao sobre 0 que esta acontecendo, hoje, nos Estados Unidos.
Entendo que ha uma semelhan<;a e varias diferen<;as. A semelhanga que existe a a decreta<;ao do estado de
exce<;ao. A Constitui<;ao que vigorava no periodo nazista a a constitui<;ao de Weimar, a Constitui<;ao de 1919, bastante avan<;ada para a apoca. Essa Constituigao tinha 0 famoso artigo 48, que permitia ao Presidente do Reich suspender os direitos individuais em situa<;oes de emergencia. Uma das primeiras coisas que Hitler fez, quando assumiu 0 poder, foi
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utilizar 0 artigo 48. E esse estado de excec;:ao nao foi revogado ate 1945. Urn fil6sofo italianb que estuda is so de uma forma muito interessante, Giorgio Agamben, fala: ''A rigor, 0
que aconteceu no tempo da ascensao 90 nacional-socialismo? Ate 1945, foi urn estado de excec;:ao permanente".
A Constituigao norte-americana nao tern urn dispositivo dess·e tipo. Mas e sempre possivel declarar esse estado implicitamente. Eu acho que 0 que aconteceu nos Estados Unidos foi uma declarac;:ao seletiva desse estado de excec;:ao. Como falei, he. algumasprevis6es que sao de esvaziamento completo do Direito e das suas formas.
A pergunta foi oportuna, por outra razao - pennitir que se discuta a questao do estrangeiro nos Estados Unidos na atualidade. A situac;:ao do imigrante, hoje, nos Estados Unidos, e pes sima. Pela lei antiterror, 0 Secretario de Justic;:a pode simplesmente certificar que urn cidadao estrangeiro e uma ameac;:a a seguranc;:a nacional, para ele ficar preso indefinidamente. Basta que, de seis em seis meses, seja renovada essa certifica~ao. 0 mais incrivel e que, se ele for absolvido no processo que se desenvolve no juizo de imigra~ao, que e urn juizo administrativo-, ainda pode continuar preso. E 0 mesmo vale para os tribunais militares. Urn dos assessores de Donald Rumsfeld, William Haynes II, afirmou: "Mesmo se forem absolvidos nos tribunais militares, ~les podem continuar presos, porque sao Uln grupo de pessoas perigosas".
Entao, neste sentido, temos uma completa desformalizagao. 0 Direito nao vale nem como sirnbolo. Mas isso nao e 0 estado gera\.
E difkil usar 0 termo ditadura nos Estados Unidos. Posso usar urn termo como regime de for~a, posso usar a termo autocracia, com apoio em uma aristocracia econcnnica, mas, nunc a poderia usar 0 termo ditadura. Nao existe uma ditadura, hoje, nos Estados Unidos. Bush nao e um ditador do momento. Isso seria uma simplificac;:ao da hist6ria.
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Mas, n6s podemos aprender com a hist6ria. E perigoso esse· rec~rso de suspensao da Constitui~ao. Fiz uma tese sobre esse tema e minha conclusao, ate muito influenciada pela discussao com a banca, e que 0 que este. em curso e uma des-diferenciac;ao seletiva, pontual, que pode ter consequencias terriveis para 0 futuro.
Mas nao e um estado de excec;:ao vulgar, do tipo nazista ou stalinista.
Maria Fernanda - Na verdade, tenho dais cOlnentarios e perguntas para 0 Cristiano e para 0 professor Alvaro.
Em relac;ao a fala do Cristiano, sobre 0 que VOGe falou de nao se poder dizer que nos Estados Unidos he. umaditadura. Penso - e queria saber 0 que voce acha disso _ que talvez 0 que estejamos venda surgir sao outras formas de ditaduras rnais sofisticadas. Gomo tivemos 0 problema, aqui no Brasil tambem, com 0 governo Fernando Henrique e que, de certa forma, continua no Lula, que e tambem uma suspensao seletiva de direitos, atraves de medida provis6-ria, atraves de varios mecanismos. Suspende-se esse Estado da Constituic;:ao a partir dessa seletividade. Entao, eu realmente nao sei se eu nao falaria de uma ditadura nos Estados Unidos. Eu acho que he. uma ditadura muito mais sofisticada do que aquela da decada de 40 ou, enfim, de 30, na Alemanha, Ite.lia, etc. Os mecanismos se tornaram mais sofisticados, mas eles continuam lao
Em relac;ao ao professor Alvaro, gostei muito da sua fala, porque, de certa forma, sao coisas em que eu estava pensando ao longo do seminario e 0 senhor sintetizou exatamente essas quest6es.
Penso na fala do professor Geraldo, na critica que ele fez as penas alternativas, aquela coisa da transac;ao penal, dos juizados especiais,.de que as pessoas nao tern condic;:oes para 0 consenso. Eu penso um pouco diferente, pois acho que a problema nao e combater as juizados especiais. o problema dos juizados especiais nElD conseguirem gerar
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consenso n1e parece que veuljustamente do fato de existir uma 16gica par tras que e contra esse tipo de 16gica dos juizados, que seria da informalidade, de se discutir penas alternativas. E acho que a nosso sistel11a a tao viciado que a forma de aplicagao que 0 juiz faz e exatamente essa aplicagao a partir de um outro paradigma.
Lembro - do direito penal nao tenho tanto dominio; ja advoguei na area civel - que, certa vez, fui a urn juizado especial elvel, entreguei a petigao e estava discutindo com a juiza e ela falou: "mas onde estao as provas, onde estao as papeis?", ou seja, ela estava viciada en1 ver un1 l110nte de processos gigantescos. Eu tinha simplificado tudo, pus la em uma planilha, calculos contabeis, simples, para na~ ter que levar "as papais" - e ela qUE?ria HOS papeis". Entao, acho que e 0 vicio e dai a dificuldade de aplicar.
Alvaro Pires - Esse problema das sang6es alternativas, que voce levantou, e urn problema realmente muito complicado. Inclusive porque eu tambem acho que nao existe un1a recepgao favoravel significativa, nem n18sn10 cognitiva, do sistema penal as medidas. Temos que to mar cuidado; temos que nos vigiar quanto a isSo.
Existe tarnbem uma critica feita a partir da criminologia, da criminologia critica, as alternativas que a un1 problema. E, como disse rapidamente, a famosa critica da extensao da rede de controle. Essa critica da extensao da rede de controle vern de uma tese mal interpret ada de Michel Foucault e isso esta produzindo urn efeito completamente inesperado. Quer dizer, e como se a criIninologia critica, com medo da extensao do controle, estivesse preferindo menos extensao e mais punitividade no" controle, ista at mais prisao.
Lernbro que, certa vez, passei uma tarde com Michel Foucault. Foi pouco' tempo depois da publicagao do "Surveiller et punir". Ele tinha feito uma apresentagao sobre essa tese do alargarnento do controle, que ele mesmo chama-
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va de "uma simples hip6tese provocadora", hip6tese que, alias, aparece nas ultimas paginas do "Surveiller et punir" , urn pouco de surpresa. E uma tese secundaria dentro dessa obra do Foucault. Mas, a criminologia critica mardeu essa apgao. Urn pouca tambem dentro daquela ideia de que, se aumentasse 0 controle, a liberdade estaria diminuindo.
Ha varios problemas com essa ideia, tal como sustentada depois. A primeira e 0 que chama uma concepgao "hidraulica" da realidade social. Essa foi uma maneira ocidental de pensar em varios dominios do pensamento, inclusive dentro da ciencia. Havia uma concepgao antiga que pensava, par exemplo, que 0 aumento do conhecimento produziria uma redugao da ignori'mcia. Tomamos conhecimento depois que es..'Das duas coisas aumentam ao mesma tempo. Estao ate ligadas, pois 0 aumento do conhecimento produz novas perguntas para as quais nao temos resposta e, com isso, aumenta de maneira exponencial 0 campo da ignori'mcia. Sabemos mais ainda que somos ignorantes.
Muito soci610go pensa ainda de maneira hidraulica em termos de controle social. Por exemplo, mais 0 controle social aumenta, mais a liberdade diminui. Ora, frequentemente, aqui tambam, 0 que acontece e que essas duas coisas acontecem ao mesmo tempo. Aumenta a liberdade e aumenta 0 controle. A unica maneira de pensar de maneira valida de forma hidraulica e quando 0 espago e muito restrito. Par exemplo, voce esta analisando Ulna escola au uma penitenciaria: talvez aqui voce possa dizer que aumentou 0 controle e diminuiu a liberdade, porque 0 espago de observagao e muito restrito, mas nao com relagao a sociedade.
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Perguntei para 0 Foucault exatamente sobre essa hip6tese dele, dizendo: "Mas, entao, Foucault, naquela tese de vigiar as medidas alternativas porque elas estao alargando a rede de controle, 0 que voce esta querendo dizer realmente com isso? Voce esta qtierendo dizer que a gente
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entao deve parar com as alternativas, reeliar ate a pena de prisao, voltar para tHis?". Ele respondeu: ''Jamais, nunca. Se, para perder a prisao, tiverrnos que aumentar a controle, vamos em frente. Essa e tao so uma hipotese provocadora, Quero simplesmente fazer 0 pessoal comegar a pensar em urn novo e eventual problema que po de estar pel a frente, mas issa nao significa que se deva reeuar a fOImas rnais que tradicionais" .
E uma parte da criminologia critic a simplesmente repudia as penas alternativas ou tem me do delas ou ainda nao tern meda, mas 11aO encontrou ainda uma mane ira de criticar que nao produza efeitos perversos. Se 0 direito, no seu funcionamento, estiver dando as penas alternativas uma interpretagao completamente reduzida, limitada, valorizando pOlleD essas sangoes. entao, e claro que podelll acontecer alguns efeitos perversos. Se voce diz que, para ter direito a pena alternativa, a pena maxima prevista tern que ser de seis meses e, indo ver no G6digo, voce s6 encontra tres .artigos com seis meses. .. Ou, se urn artigo ou program a disser que, aleID disso, se for reincidente, nao tern direito as alternativas ... Ai, e claro, temos urn problen1a a vista, mas 0 problema nao esta nas alternativas e, 11188n10 ~esses G~sos. devemos apoia-las, pois temos que avangar, mesmo perdendo algumas penas, e nao recuar.
Entao, a critic a tern que se dirigir a nao generalizagao intern a dessas sang6es, em primeiro lugar. TelTIOS que tomar muito cuidado com a critic a da extensao do controle. o problema, no meu modo de ver, nao e tanto estender ou aumentar, mas sim ficar COil1 as sang6es de prisao e de multa como unicas sang6es ou como pena de referencia (cognitiva e normativa). Entao, acho urn problema a maneira pela qual tern se articulado a critica as alternativas. E, nesse ponto, estou de acordo com voce. Parque acho que a mane ira pela qual estamos fazendo a critica as alternativas e que esta nos impedindo de ir para 0 unico lade em que a
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gente pode ir para inovar, para sair, como ja disse, da garrafa para rnoscas.
Cristiano Paixao - Fernanda, respondenda a sua excelente provQcagao, em minhas reflex6es deparei-me conl essa questaa sabre a ditadura.
Tenho muita dificuldade em visualizar 0 termo ditadura, hoje, nos Estados Unidos da America, pelo seguinte: ha urn sistema do dire ito que opera. Ha cOlnunicagao especializ ada que circula par todo 0 sistema. Ha arganizag6es c.rue decidem conflitos de forma a estabilizar as expectativas. 0 que ocarre - e issa e urn golpe, para miIn, muito triste - e a golpe na universalidade do constitucionalismo.
As Revolug6es francesa e americana t€nn Ulna l1atureza, uma mensagem universalizante. Elas, nitidan1ente, se expandiram das fronteiras nacionais. Inclusive as hOlnens que as fizeram eram comprometidos com uma educas;ao laica, com unla visao de mundo muito mais moderna do que os regimes que eles estavam superando. E he. filtros interess.antes.
Para a minha pesquisa, tive que fazer analises de algumas decis6es da Justiga federal norte-americana. Como falei aqui, as prisioneiros de Guantananlo sao "conlbatentes ilegais". Mas, la, nao ficam cidadaos americanos. S6 que alguns cidadaos americanos lutaram com 0 Taliba. 0 que fazer com eles? Existem tres casos. Enl alguns, 0
governo americana criou uma nova figura: 0 "colnbatente inimigo". Vejamos 0 exemplo de Jose Padilla e Yaser Hamdi. Ha urn decreto do Presidente Bush, declarando Jose Padilla "combatente inimigo". Ele e Hamdi ficaram presos num porao de urn navia de guerra na costa leste norte-americana, BelTI acesso a advogado, sem possibilida~ de de receber visitas, sem indician1ento, s6 para fornecer inteligencia. Hamdi, por intermedio de urn defensor publico que nunca 0 viu na vida, impetrou habeas-corpus na Justiga federal norte-americana. E 0 juiz, que foi nome ado
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por um Presidente da Republica conservador - por Ronald Reagan -, urn juiz que naD e ativista, Ulll juiz que nao e urn liberal, nao aceitou nenhull1a das argull1entagoes do Governo Federal para manter 0 processo sob sigilo.
Vale a pena lerum breve trecho da decisao: "Nos precis amos proteger as Iiberdades daqueles que nos odeiam, o que pode a principio parecer censun'lvel. Se nos falharmos nessa tarefa, nos tornaremos vitimas dos precedentes que criarmos. Nos nos orgulhamos de ser uma nagao de leis, leis que se aplicam de modo igual a todos, e nao uma nagao de homens que nao tem medida. Os senhores da guerra do Afeganistao podem ter se emiolvido em pilhagens e saques. Nos nao podemos fazer 0 mesmo que eles. Se nao, nos vamos nos depreciar" (Hamdi v. Rumsfeld (Civil Action n° 2:02cv439), United States District Court for the Eastern District of Virginia, court order, p. 14).
Ha outro caso similar, envolvendo procedimentos de deportac;;ao que eram secretos e, por decisao judicial, foi inteiramente publico, com acompanhamento pela imprensa (Detroit Free Press, et. al. v. Ashcroft, et. a1. 2002 FED App. 0291P (2002). US Court of Appeals for the Sixth Circuit). E ha tambem 0 caso de Michigan, um belissimo caso, que gerou depois todo esse movimento contra 0 USA Patriot Act, a que fiz referencia anteriormente.
E obvio que a situa<;ao nao e desejavel. Com certeza essa e a maior crise que a Constitui<;ao passa nos Estados Unidos da America, desde 0 final do seculo XVIII. Disso nao tenho duvida. Mas, repito, e uma situa<;ao seletiva e pontual.
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