24/05/2016 Publicacao XXI Congresso Nacional do CONPEDI/UFF
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Ficha Catalográfica PDF
Apresentações PDF
A INEXISTÊNCIA DE CONFLITO ENTRE O DIREITO DE PROPRIEDADE E A PROTEÇÃO DOAMBIENTE: UMA APROXIMAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL COM OS DEVERESFUNDAMENTAIS
Págs 8 ‐ 22 PDF
Rafaela Emilia Bortolini
NEOCONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO: O GIRO PARADIGMÁTICO DE PROTECÃO AMBIENTAL* Págs 23 ‐ 52 PDF
Beatriz Souza Costa, Elcio Nacur Rezende* Artigo indicado pelo Programa de Pós‐Graduação em Direito da Escola Superior Dom Helder Câmara ‐ Dom Helder Câmara
A TUTELA CONSTITUCIONAL DO MEIO AMBIENTE E OS DEVERES DE PROTEÇÃO AMBIENTALDO ESTADO*
Págs 53 ‐ 70 PDF
Cristina Dias Montipó, Natacha Souza John* Artigo indicado pelo Programa de Pós‐Graduação em Direito da Universidade de Caxias do Sul ‐ UCS
ÉTICA AMBIENTAL E O VALOR DO MUNDO NATURAL Págs 71 ‐ 95 PDF
Daniel Braga Lourenço
A RETÓRICA JURÍDICA NA ABORDAGEM DO DIREITO AMBIENTAL Págs 96 ‐ 120 PDF
Fernando Joaquim Ferreira Maia
A RAZÃO PÚBLICA COMO FILTRO DOS ARGUMENTOS EM MATÉRIA AMBIENTAL NO ÂMBITO DOSTF*
Págs 121 ‐ 145 PDF
Giselle Marques De Araújo* Artigo indicado pelo Programa de Pós‐Graduação em Direito da Universidade Gama Filho ‐ UGF
ANÁLISE DO DIREITO AMBIENTAL BRASILEIRO SOB A PERSPECTIVA DA SEGURANÇA HUMANA Págs 146 ‐ 170 PDF
Técio Oliveira Macedo, Flavia De Paiva Medeiros De Oliveira
CONSTITUCIONALISMO E A EVOLUÇÃO DA TUTELA PROCESSUAL DO MEIO AMBIENTE PORMEIO DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DESAFIOS E CIDADANIA AMBIENTAL
Págs 171 ‐ 200 PDF
Luiz Gustavo Levate
CONTRIBUTO DA AÇÃO POPULAR PARA O EXERCÍCIO DA CIDADANIA AMBIENTAL Págs 201 ‐ 216 PDF
Rachel Dos Reis Cardone
A TUTELA JUDICIAL‐PARTICIPATIVA DO AMBIENTE: O LUGAR DOS JUIZADOS ESPECIAIS* Págs 217 ‐ 232 PDF
Márcio Ricardo Staffen, Zenildo Bodnar* Artigo indicado pelo Programa de Pós‐Graduação em Direito da Universidade do Vale do Itajai ‐ Univali
MEDIAÇÃO DE CONFLITOS SOCIOAMBIENTIAS: METODOLOGIA APLICADA PARA PREVENÇÃO E Págs 233 ‐ 254 PDF
24/05/2016 Publicacao XXI Congresso Nacional do CONPEDI/UFF
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RESOLUÇÃO DE CONFLITOS EM CONVÊNIO COM O MINISTÉRIO PÚBLICO DE MINAS GERAISFernanda Aparecida Mendes E Silva Garcia Assumpção, Andressa De Oliveira Lanchotti
O MINISTÉRIO PÚBLICO E A GESTÃO DO BEM JURÍDICO MEIO AMBIENTE Págs 255 ‐ 276 PDF
Diógenes Baleeiro Neto
O ALCANCE DA EFETIVIDADE DO DIREITO SOCIOAMBIENTAL MEDIANTE A ATUAÇÃO DO PODERJUDICIÁRIO
Págs 277 ‐ 305 PDF
Mariana Almeida Passos De Freitas
FISCALIZAÇAO DO PATRIMÔNIO GENÉTICO E DO CONHECIMENTO TRADICIONAL ASSOCIADO,NO ÂMBITO DO IBAMA
Págs 306 ‐ 323 PDF
Valmir Cesar Pozzetti, Daniel Abrahão Do Nascimento
A CONCESSÃO DE INCENTIVOS FISCAIS COMO INSTRUMENTO DA POLÍTICA NACIONAL DERESÍDUOS SÓLIDOS: UMA POSSIBILIDADE ABERTA À DISCUSSÃO
Págs 324 ‐ 347 PDF
Fernanda Mara De Oliveira Macedo Carneiro Pacobahyba, Germana Parente Neiva Belchior
O IPTU COMO INSTRUMENTO PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL Págs 348 ‐ 377 PDF
Ana Luisa Sousa Faria
JUSTIÇA CLIMÁTICA E JUSTIÇA FISCAL: A TRIBUTAÇÃO AMBIENTALMENTE ORIENTADA PARAA PROTEÇÃO DO CLIMA
Págs 378 ‐ 407 PDF
Paulo Sérgio Miranda Gabriel Filho
OS REFUGIADOS AMBIENTAIS NO BRASIL: UMA LEITURA SOBRE A CONSTRUÇÃO DEBARRAGENS, GERAÇÃO DE ENERGIA, RESTAURAÇÃO DA DIGNIDADE E CIDADANIA.
Págs 408 ‐ 437 PDF
José Fernando Vidal De Souza
PROTEÇÃO SOCIOAMBIENTAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES – A NECESSIDADE DE UM MAIORDIÁLOGO ENTRE O DIREITO AMBIENTAL, A DOUTRINA CONSTITUCIONAL DA PROTEÇÃOINTEGRAL E AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE PROTEÇÃO À INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA.
Págs 438 ‐ 461 PDF
Roberta Oliveira Lima, Ricardo Stanziola Vieira
POLUIÇÃO SONORA E DIREITO AO SILÊNCIO: DESAFIOS DA SUSTENTABILIDADE “AO SOM” DONOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO AMERICANO
Págs 462 ‐ 482 PDF
José Osório Do Nascimento Neto
Caríssimo(a) Associado(a),
É com muita satisfação que apresento o livro do grupo de trabalho Direito
Ambiental I do XXI Congresso do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em
Direito (CONPEDI), que ocorreu na Universidade Federal Fluminense (UFF/RJ), entre 31
de outubro e 03 de novembro de 2012.
Novamente inovamos ao transformar os antigos anais de nossos Encontros e
Congressos em livros específicos para cada grupo de trabalho (GT). Tal iniciativa deveu-
se à proposta desta diretoria visando o fortalecimento dos GTs, ratificada pelos
associados e coordenadores dos programas em diversos espaços, principalmente no
Fórum dos Coordenadores e na Assembleia Geral do XXI Encontro Brasileiro, realizados
no primeiro de semestre de 2012, em Uberlândia.
O fortalecimento dos GTs integra um plano mais ambicioso de nossa
comunidade científica no sentido do aprimoramento dos critérios de avaliação e
internacionalização de eventos, de maior aproximação entre a academia e o cotidiano
forense e, sobretudo, do crescimento ordenado e qualificado da pós -graduação estrito
senso em Direito, no Brasil.
Em Niterói ultrapassamos a importante marca de 1.700 artigos submetidos a
nosso sistema Publica Direito, com a participação direta de mais de 70 programas de
pós-graduação reconhecidos pela CAPES/MEC. Mais uma vez centenas de trabalhos
foram aceitos, sendo outros tantos infelizmente preteridos devido à crescente
concorrência para os GTs, que em alguns casos foram divididos pela grande procura e
qualidade dos trabalhos.
Aproveito para agradecer aos cerca de 200 professores-doutores que
participaram de mais de 3.500 avaliações por intermédio do double blind peer review
do sistema Publica Direito. Sem seu comprometimento e seriedade nosso Congresso
seria inviável. Também gostaria de registrar que as diversas sugestões encaminhadas
em 2012 foram analisadas e já resultaram em importantes aprimoramentos do nosso
sistema de avaliação, a ser inclusos nos eventos de 2013.
No Congresso de Niterói restou evidente o expressivo resultado da área do
Direito nos últimos anos. Tenho certeza de que chegaremos à avaliação trienal deste
ano de forma muita mais sólida e próxima das chamadas “áreas duras”, pois nossas
publicações qualificaram-se e resultam mais impactantes, a produção migra para a
indexação e a inserção internacional já é uma realidade.
Festejamos no último Congresso o lançamento da tão esperada terceira edição
da Revista de Direito Brasileira (Brazilian Journal of Law) – a RDB –, publicação
semestral oficial do CONPEDI, que agora receberá a primeira avaliação da comissão
Qualis do Comitê de Área. Queremos partilhar tal conquista – independente deste
primeiro resultado – com cada associado, com nossos parceiros neste projeto e, em
especial, com os pesquisadores, professores e alunos, brasileiros e estrangeiros, que
acreditaram e contribuíram para a nova revista mesmo antes da primeira aval iação,
sem conhecer, portanto, sua classificação e pontuação.
No Congresso ainda lançamos o primeiro volume de Educação Jurídica, pela
Editora Saraiva. A obra resultou de uma parceria entre o CONPEDI e a Comissão de
Educação Jurídica da OAB Federal – antiga Comissão de Ensino Jurídico –, a Associação
Brasileira de Ensino do Direito (ABEDI) e a Federação dos Pós -graduandos em Direito
(FEPODI), contando ainda com o apoio da CAPES/MEC e CNPq/MCT.
Quero registrar que a organização deste livro foi uma das realizações mais
prazerosas de minha gestão. O relevante conceito de educação jurídica – como temos
debatido, pelo menos, nos três últimos eventos do CONPEDI – é fundamental para
melhorar a graduação e aprimorar ainda mais a pós-graduação em Direito no país.
Agradeço a todos, autores e instituições, que contribuíram para a conclusão deste
primeiro volume, que certamente terá continuidade.
Durante o Congresso recebemos importantes professores e pesquisadores de
universidades estrangeiras, alguns que já participaram dos nossos eventos e
programas, e outros que compareceram pela primeira vez: dr. Baldomero Olivier Leon,
da Universidade de Granada; dr. Carlos Garriga, da Universidade do País Basco; dr.
John Vervaele, da Universidade de Utrecht; dr. Leon Villalba, da Universidade de
Castilla La Mancha; dr. Ricardo Sanin, da Universidade de Caldas; dr. Fernando Galindo,
da Universidade de Zaragoza, e dr. Gaetano Peccora, da Universidade Livre
Internacional de Estudos Sociais. Agradecemos a todos pela significativa contribuição e
desejamos que seu comparecimento frutifique em novos eventos e convênios
internacionais, e, sobretudo, em parcerias de publicações com os programas
brasileiros. Neste particular ressalto que pretendemos intensificar a parceria entre o
CONPEDI e os programas associados, para que os palestrantes participem não somente
dos nossos eventos mas de todos os programas em Direito.
É oportuno relembrar que durante o Congresso foi debatida uma série de
temas relevantes: 1) constitucionalismo, jurisdição constitucional e o protagonismo do
STF, 2) o novo constitucionalismo latino-americano, 3) o programa Ciência sem
Fronteiras, do CNPq, 4) o novo currículo Lattes, com uma oficina prática, 5) educação
jurídica, 6) os desafios atuais da justiça penal e o novo Código Penal, 7) mestrado
profissional no Direito, 8) o plano nacional de pós-graduação, 9) a justiça de transição
no Brasil, 10) o Direito Civil constitucional e a autonomia privada, 11) os Direitos
Humanos e a inclusão, e 12) o Qualis periódico e a classificação de livros, entre outros.
Isso tudo, logicamente, dentro do tema central do Congresso – O novo
constitucionalismo latino-americano: desafios da sustentabilidade.
Tivemos ainda nossa já tradicional exposição de pôsteres pelos graduandos em
iniciação científica, o que entendemos fundamental não apenas para melhor preparar
os futuros mestrandos, mas como forma de diálogo e contribuição da pós -graduação
para a graduação. Outras iniciativas com este objetivo estão sendo planejadas e
algumas já estarão na programação dos eventos de 2013.
Em Niterói também assinou-se oficialmente um termo de cooperação técnica
com a Comissão Nacional da Verdade, em grande medida decorrente da Rede de
Observatórios de Memória, Verdade e Justiça. Nos termos acordados, os programas do
Direito poderão contribuir de forma mais direta nas ações da comissão, e abriremos
em breve um cadastro dos programas que possuem grupos de pesquisa sobre o tema
da justiça de transição.
Com relação ao IPEA, cumpre anunciar que participaremos em 2013, em
Brasília, da III Conferência do Desenvolvimento (CODE), em que o CONPEDI promoverá
uma mesa-redonda sobre o estado da arte do Direito e Desenvolvimento, além da
apresentação de artigos de pesquisadores do Direito, criteriosamente selecionados
entre os que serão publicados numa coletânea resultante desta parceria.
Por fim registramos que, nos próximos eventos, tanto em Curitiba como em
São Paulo, será utilizado o novo formato de publicação em livro, pelo que esperamos,
com responsabilidade, o reconhecimento de mais este significativo esforço da nossa
comunidade.
Niterói, novembro de 2012.
Vladmir Oliveira da Silveira
Presidente do CONPEDI
Apresentação
O Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito – CONPEDI
realizou o seu XXI Congresso Nacional na Universidade Federal Fluminense – UFF, em
Niterói, sob o tema “O novo constitucionalismo Latino-Americano: desafios da
sustentabilidade”, neste contexto o presente livro apresenta os artigos selecionados
para o Grupo de Trabalho de Direito Ambiental I, comprovando a crescente e relevante
importância que o Direito Ambiental tem alcançado na pós-graduação em Direito no
país, bem como o nível de qualidade das pesquisas e dos pesquisadores que são
selecionados para compor os Grupos de Trabalho do CONPEDI, que se consagram em
espaço de divulgação e debate de pesquisa de excelência.
A temática ambiental provoca profundas rupturas no paradigma tradicional do
Direito, e sugere uma gama imensa de questionamentos deste novo modelo
paradigmático e seus efeitos no universo do jurídico. Trata-se de uma rica e nova seara
para a pesquisa jurídica, que cada vez mais adquire importância e dimensão, e que tem
garantida nos Congressos do CONPEDI um espaço privilegiado, que neste ano de
2012, em decorrência da qualidade e quantidade dos artigos enviados, optou por
dividir o GT de Direito Ambiental em Direito Ambiental I e Direito Ambiental II.
O Grupo de Trabalho de Direito Ambiental I, que tivemos a honra de
coordenar, congrega os artigos ora publicados, que apresentam pesquisas de
excelente nível acadêmico e jurídico, por meio do trabalho criterioso de docentes e
discentes da pós graduação em Direito de todas as regiões do País, que se dedicaram a
debater, investigar, refletir e analisar os complexos desafios da proteção jurídica do
direito ao meio ambiente e suas intrincadas relações multidisciplinares que perpassam
a seara do econômico, do político, do social, do filosófico, do institucional, além do
conhecimento científico de inúmeras outras ciências, mais afinadas com o estudo da
abrangência multifacetada do meio ambiente nas suas diversas acepções.
A qualidade e diversidade da pesquisa em Direito Ambiental que compõe a
presente obra revelam um pouco da profundidade e complexidade desta área jurídica,
ao mesmo tempo tão nova e tão emblemática do Direito, que está em franca evolução
e sistematização, enfrentando a pressão de atender os conflitos da sociedade de risco
e os desafios impostos pelo crescente e tormentoso conflito que envolve a demanda
do desenvolvimento e seu embate com a proteção do meio ambiente.
A evolução da proteção constitucional do meio ambiente no contexto jurídico
brasileiro, que culminou com o capítulo paradigmático da Constituição Federal de
1988, que alicerça o Direito Constitucional Ambiental e eleva a condição de direito
fundamental o equilíbrio do meio ambiente, se mostra como base e fundamento para
as interessantes e articuladas temáticas que se apresentam em cada um dos artigos
que compõem a presente obra.
Neste contexto, a obra se estrutura em três capítulos, a partir da linha mestra
do direito fundamental ao equilíbrio do meio ambiente, compilando-se no primeiro
capítulo os artigos que debatem os diversos e múltiplos desdobramentos decorrentes
da Constitucionalização da proteção jurídica do meio ambiente. No segundo capítulo
destacam-se artigos que debatem as especificidades dos Instrumentos de Tutela do
meio ambiente e, no terceiro e ultimo capítulo, apresentam-se os artigos que abordam
os diferentes Regimes Especiais da proteção jurídica do meio ambiente.
A presente obra agrega enorme valor a pesquisa na área do Direito Ambiental,
ampliando horizontes de debate e levantando questionamentos e vias de solução para
o desafio da conquista do compromisso constitucional com a sustentabilidade
socioambiental.
Coordenadores do Grupo de Trabalho
Professora Doutora Norma Sueli Padilha – UniSantos
Professora Doutora Maria Claudia S. Antunes de Souza – Univali
XXI Congresso Nacional do CONPEDI Tema: O Novo Constitucionalism Latino Americano: desafios da sustentabilidade
31 de outubro a 03 de novembro de 2012 UFF/Niterói – RJ
Membros da Diretoria: Vladmir Oliveira da Silveira Presidente Cesar Augusto de Castro Fiuza
Vice-Presidente Aires José Rover
Secretário Executivo
Gina Vidal Marcílio Pompeu Secretário-Adjunto Conselho Fiscal Valesca Borges Raizer Moschen
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa
João Marcelo Assafim
Antonio Carlos Diniz Murta (suplente)
Felipe Chiarello de Souza Pinto (suplente)
Representante Discente Ilton Norberto Robl Filho (titular)
Pablo Malheiros da Cunha Frota (suplente)
Colaboradores: Elisangela Pruencio
Graduanda em Administração - Faculdade Decisão Maria Eduarda Basilio de Araujo Oliveira
Graduanda em Administração - UFSC Rafaela Goulart de Andrade
Graduanda em Ciências da Computação – UFSC Marcus Souza Rodrigues
Diagramador dos Anais
Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071
Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071
D598 Direito ambiental I [Recurso eletrônico on-line] / organização CONPED/UFF ; coordenadores: Norma Sueli Padilha, Maria Claudia S. Antunes de Souza. – Florianópolis : FUNJAB, 2012.
Inclui bibliografia
ISBN: 978-85-7840-119-1 Modo de acesso: http://www.publicadireito.com.br/publicacao/uff.php 1. Direito – Estudo e ensino (Pós-graduação) – Brasil – Congressos. 2. Direito ambiental. I. Conselho Nacional de Pesquisa e pós-graduação em Direito. Universidade Federal Fluminense.
CDU: 34
A INEXISTÊNCIA DE CONFLITO ENTRE O DIREITO DE PROPRIEDADE E A
PROTEÇÃO DO AMBIENTE: UMA APROXIMAÇÃO DA FUNÇÃO
SOCIOAMBIENTAL COM OS DEVERES FUNDAMENTAIS
THE ABSENCE OF CONFLICT BETWEEN PROPERTY RIGHTS AND
ENVIRONMENTAL PROTECTION: AN APPROXIMATION OF THE
ENVIRONMENTAL FUNCTION WITH THE FUNDAMENTAL DUTIES
Rafaela Emilia Bortolini1
RESUMO: O direito fundamental de propriedade caracteriza-se, no ordenamento
constitucional brasileiro, pelas limitações a ele impostas por meio da função socioambiental -
conjunto de deveres positivos e negativos ao qual deve sujeitar-se o proprietário - de modo
que o exercício do direito de propriedade se dê em conformidade com a proteção do ambiente.
Dessa forma, defende-se a ausência de conflito entre o direito de propriedade e a proteção
ambiental, vez que esta estaria intrinsecamente ligada àquele por meio da função
socioambiental, de modo que descumpri-la equivaleria a deslegitimar o direito de
propriedade. Se estudada à luz da teoria dos direitos fundamentais, a função socioambiental
pode ser interpretada como um dever fundamental conexo ao direito de propriedade,
conformando-o e definindo os limites de seu conteúdo. Essa leitura tende a favorecer um
reforço da importância da função socioambiental no regime jurídico-constitucional da
propriedade, bem como, contribuir para o aumento dos níveis de proteção do ambiente no
exercício desse direito fundamental.
Palavras-chave: propriedade; meio ambiente; função socioambiental; direito fundamental;
dever fundamental.
ABSTRACT: The fundamental right to property is characterized, in the Brazilian
constitutional order, by the limitations imposed to it, by social and environmental function -
set of positive and negative duties to which should be the owner submit - so that the exercise
of the right of property is in compliance with the protection of the environment. Thus, argues
the absence of conflict between property rights and environmental protection, as this one
would be intrinsically linked to the first one through the social and environmental role, so that
1 Mestranda em Direito Agroambiental (UFMT). Graduada em Direito (UFMT). Advogada. E-mail:
disobeying it would delegitimize the right to property. If studied under fundamental rights
theory, social and environmental function can be interpreted as a fundamental duty related to
the right to property, and setting the limits of its content. This reading tends to favour a
reinforcement of the importance of social and environmental role in constitutional and legal
regime of the property, as well as contribute to the increasing levels of environmental
protection in the exercise of this fundamental right.
Keywords: property; environmental; fundamental rights; fundamental duties.
INTRODUÇÃO
O processo de enforcement da legislação ambiental traz como reflexos ingerências
estatais na esfera da autonomia privada e, de modo muito perceptível, no direito de
propriedade (notadamente no que se refere às áreas de preservação permanente e reserva
legal).2 Tal impacto nos interesses da iniciativa privada (provocado, especificamente, pelas
limitações legislativas e administrativas de uso e exploração de recursos naturais) mostra-se
relevante, sobretudo, quando já existente toda uma forma cristalizada, profundamente
enraizada, de exploração incondicional do ambiente. A legislação ambiental exige uma
mudança paradigmática a uma nova realidade: de ênfase nas limitações jurídicas in abstrato
(legislativas) e nas intervenções estatais in concreto (administrativas).
Vê-se, então, o esforço de determinados segmentos da sociedade para flexibilizar a
legislação ambiental tanto quanto possível, inclusive com reformas legislativas, visando
reduzir as limitações ambientais existentes no ordenamento jurídico e, com isso, aumentar o
aproveitamento econômico das áreas afetadas.
Percebe-se, todavia, que o texto constitucional de 1988 oferece uma significativa
resistência contra a flexibilização da proteção ambiental, pois firmou, em diversos
dispositivos (em alguns expressa, noutros implicitamente), um compromisso de preservação
ambiental e de desenvolvimento sustentável. Significa dizer “não” ao progresso meramente
econômico; e guiar o desenvolvimento econômico sob uma perspectiva de sustentabilidade
(uso adequado, sem desperdícios, racional e equilibrado dos recursos naturais) e durabilidade
(que o uso atual desses recursos não esgote a possibilidade de uso para as gerações futuras).
A resistência da Constituição Federal contra a flexibilização dos institutos de
proteção ambiental (entre eles a área de preservação permanente e a reserva legal), justificada
2 SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental: Constituição, direitos
fundamentais e proteção do ambiente. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p.175.
no compromisso de desenvolvimento sustentável, também está presente no direito e na
garantia de propriedade.
Com efeito, o art. 5º, incisos XXII e XXIII, e o art. 186, inciso II, ao garantirem o
direito de propriedade condicionando-o ao cumprimento da função social e, sobretudo, ao
inserirem um componente ambiental nesta função (a função socioambiental), revelam uma
ordem constitucional vinculada ao dever de desenvolvimento sustentável. Para a consecução
de tal objetivo, o direito de propriedade, obrigatoriamente, sofrerá limitações. Pode-se dizer –
talvez com maior razão – que ele não é mais o mesmo: a propriedade no Brasil mudou, a ela
está ínsito um dever de proteção ambiental, cujo descumprimento deslegitima-a.
Ocorre, porém, que sempre houve (e haverá ainda, enquanto a consciência ambiental
não for unânime) fortíssima pressão político-econômica no sentido de reduzir o rigor da
legislação ambiental.3 Essa tensão é muito nítida no exercício do direito de propriedade.
Importante que se frise: a tensão, quando há – e não é sempre –, está no exercício, não no
direito em si. Esta é a ideia central deste artigo, e que sugere uma resposta ao problema
fundamental que se pretende desenvolver: haveria conflito entre o direito de propriedade e a
proteção do ambiente? Ora, se se considerar que, junto ao direito fundamental de propriedade,
previsto e garantido no regime jurídico-constitucional brasileiro, estão alguns deveres
(também fundamentais) ecológicos de proteção e cuidado, chega-se à afirmação de que não,
não há nenhum conflito entre ambos, muito pelo contrário: isso faz com que a proteção
ambiental esteja inserida no regime jurídico da propriedade. A importância de tal constatação,
e as graves consequências que disso se pode extrair, sendo apenas uma delas (mas talvez a
mais importante) o acréscimo dos níveis de proteção do ambiente no ordenamento jurídico
brasileiro, justificam o breve estudo ora apresentado.
A partir da premissa segundo a qual a proteção do ambiente está inserida no direito
de propriedade, defende-se que eventuais conflitos e tensões (que dia após dia se constata
cada vez mais presentes em disputas, principalmente, no Congresso Nacional), no mais das
vezes, localizam-se externamente ao direito de propriedade, mais especificamente em seu
exercício, no plano dos fatos (não das normas) e são, portanto, fenômenos sociais, embates de
forças políticas e de interesses no seio da sociedade. Referem-se ao modo de se externalizar o
direito, e não à estrutura interna do direito de propriedade.
A contribuir para essa constatação tem-se a inclusão da função socioambiental no
regime constitucional da propriedade, favorecendo uma análise à luz da teoria dos direitos e
3 SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental: Constituição, direitos
fundamentais e proteção do ambiente. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p.175.
deveres fundamentais e, a partir disso, pode-se defender que a função socioambiental seria
então um dever fundamental (conexo ao direito de propriedade), e investigar quais seriam as
implicações que disso se extrai, inclusive um approach mais humanizado e menos
“coisificado” da propriedade.
O método de pesquisa utilizado foi, basicamente, a consulta bibliográfica da doutrina
jurídica brasileira e estrangeira.
1 A NECESSIDADE DE REPENSAR O DIREITO DE PROPRIEDADE
As catástrofes naturais, os elevados índices de poluição, o desaparecimento de
espécies da fauna e da flora, as mudanças climáticas etc. “empurram” a sociedade (muito a
contragosto, aliás) para uma mudança de atitudes e de comportamentos em relação ao
tradicional uso da terra e às atividades humanas, em direção a um tratamento mais sensível
ecologicamente e de longo prazo. A necessidade de alteração de comportamento reflete
sobremaneira no direito de propriedade. Talvez um dos remédios para os males ecológicos
que o mundo inteiro experimenta hoje seja, justamente, uma nova leitura sobre o direito de
propriedade, ampliando sua margem de intervenção.
Freyfogle, em estudos sobre a propriedade no direito norte-americano, sugere uma
desconstrução da ideia de direito natural, e afirma que a propriedade é um produto do direito,
e que os direitos só existem porque são protegidos pelo Direito. A propriedade privada seria,
então, uma construção cultural. É preciso parar de pensar que ela existe independente do
Direito, como num universo platônico. Ela é, na realidade, um produto de leis majoritárias, de
modo que não existiria se apartada do Direito. É preciso compreender que essa questão é
moral, antes de jurídica.4
Ainda segundo o mesmo autor, o direito de propriedade não deve mais ser analisado
como se pertencesse apenas à esfera privada, pois não há propriedade alguma que esteja
unicamente na esfera privada, sem atingir a sociedade de alguma maneira qualquer, ainda que
indireta. É preciso considerar uma zona de continuidade entre a esfera privada e a pública,
envolvendo interesses públicos e privados, e que isso seja levado em conta na interpretação e
na concretização que se faz do direito de propriedade e da função socioambiental.
4 FREYFOGLE, Eric T. Taking property seriously. In: GRINLINTON, David; TAYLOR, Prue. Property rights
and sustainability: the evolution of property rights to meet ecological challenges. Boston: Martinus Nijhoff,
2011.
O “direito de excluir” (excludendi alios) não é mais sacrosanto como outrora; precisa
ser examinado com mais cautela, principalmente tendo em conta o bem estar geral.
Bem compreender o direito de propriedade e sua íntima relação com o meio
ambiente requer mudanças profundas sobre como utilizar os recursos naturais. É preciso,
antes de tudo, um comportamento responsável do proprietário, alicerçado numa hermenêutica
de integração e coesão entre “propriedade e ambiente”, e não de conflituosidade entre ambos.
2 A FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA PROPRIEDADE
Abandonada a concepção individualista do direito civil e ajustados os direitos reais a
fins que indiquem uma preocupação com a coletividade (como o bem-estar social e outros
elementos axiológico-existenciais da humanidade, entre os quais o ambiente), desponta, com
toda a força no texto constitucional de 1988, a função socioambiental da propriedade.
A desconstrução da “hipertrofia jurídica do patrimônio”5 e a consagração de valores
existenciais no corpo da Constituição brasileira fizeram com que o ambiente lograsse ocupar
posição de destaque num dos direitos mais caros ao Direito: a propriedade. O artigo 5º, caput,
e os incisos XXII e XXIII, consagram esse direito e sua garantia, ao lado do seguinte
mandamento: a propriedade atenderá a sua função social.
Mais adiante, noutra passagem, a Constituição define os comportamentos que espera
dos proprietários rurais, para que efetivamente atendam ao mandamento da função social
(incisos I a IV do artigo 186), entre os quais estão o uso adequado dos recursos naturais e a
preservação do meio ambiente.
Aludindo ao fenômeno da constitucionalização do direito de propriedade –
perceptível, dentre outros, nesse singelo cenário normativo citado acima –, Fensterseifer
questiona se a propriedade já não seria matéria de direito constitucional, em vez de direito
civil.6 Essa reflexão, embora de poucas palavras e aparentemente despretensiosa, é funda e
corajosa. Ela reflete a presença de uma redefinição de conteúdo do direito de propriedade no
texto constitucional, marcada, sobretudo, pelo conjunto de deveres inerentes ao seu exercício,
entre os quais o de zelo e bom uso dos recursos naturais. O questionamento do autor parece
5 BENJAMIN, Antônio Herman. Reflexões sobre a hipertrofia do direito de propriedade na tutela da reserva
legal e das áreas de preservação permanente. Disponível em <
http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/reflex%C3%B5es-sobre-hipertrofia-do-direito-de-propriedade-na-
tutela-da-reserva-legal-e-das-%C3%A1rea>. Acesso em 13 mai 2012. 6 FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da dignidade
humana no marco jurídico constitucional do estado socioambiental de direito. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2008. p.210.
verticalizar essa análise, e tende a reforçar o papel da função socioambiental no campo do
direito de propriedade.
Ao referir-se aos deveres do proprietário, é importante ressaltar a necessidade de que
o uso da propriedade seja conforme as restrições impostas pelo Poder Público, não pondo em
risco valores ou garantias asseguradas à coletividade.7 Percebe-se que, com a função
socioambiental, o caminho está aberto para as intervenções estatais – desde que sejam
necessárias, razoáveis e proporcionais, obviamente.
O desenho constitucional da propriedade, especificamente no que se refere ao
mandamento da função socioambiental, sugere deveres de boa utilização e bom
aproveitamento dos recursos naturais, em consonância com o direito (também fundamental)
ao ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225). Vê-se, assim, que o conteúdo do direito de
propriedade está “funcionalizado”8 pelo meio ambiente, e que os direitos fundamentais
comunicam-se, permeiam-se, conectam-se uns aos outros (neste caso, ambiente e
propriedade).9 10
Não é em outra direção que aponta o Código Civil, ao ressaltar a ligação entre a
propriedade e o ambiente, exigindo o cuidado com “a flora, a fauna, as belezas naturais, o
equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e
das águas”, conforme artigo 1.228, §1º.
O termo função, que está presente tanto no texto constitucional como no Código
Civil, pode ser compreendido como conteúdo do direito de propriedade, segundo as lições de
Derani.11
E, segundo esse entendimento, a função socioambiental não se traduziria,
puramente, pela verificação do fim correto (o fim social), mas justamente – e principalmente
–, pela conformação dos meios empregados para se chegar àquele fim. Isso seria o conteúdo
com sinônimo de função. “Os fins não se desligam dos meios. É na dinâmica da escolha dos
7 KRELL, Andreas. A relação entre proteção ambiental e função social da propriedade nos sistemas jurídicos
brasileiro e alemão. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Estado socioambiental e direitos fundamentais. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p.174. 8 MIRAGEM, Bruno. O artigo 1.228 do Código Civil e os deveres do proprietário em matéria de preservação
do meio ambiente. Disponível em <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/26833-26835-1-
PB.pdf>. Acesso em 13 mai 2012. 9 KRELL, Andreas. Ibidem p.175.
10 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na
perspectiva constitucional. 10.ed., rev., atual. e ampliada. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. 11
DERANI, Cristiane. A propriedade na Constituição de 1988 e o conteúdo da “função social”. In: Revista de
Direito Ambiental. São Paulo: RT, jul-set 2002, v.27.
meios, da sua disposição e do resultado obtido que é preenchido o princípio da função
socioambiental”.12
Dessa forma, o conjunto de escolhas sobre (i) o que realizar; (ii) os meios
empregados; (iii) a intensidade da atividade, e (iv) a destinação das vantagens obtidas, reflete
o atendimento ou não da função socioambiental – e tais escolhas não podem mais ser tomadas
visando exclusivamente os interesses individuais do proprietário.13
Essa seria a aproximação
(e a preocupação) do direito de propriedade com a coletividade, com o outro, a dita
funcionalização do direito.
Hoje, há quem sustente que, diante das profundas mudanças estruturais no regime de
propriedade, provocadas, sobretudo, pelo princípio da função socioambiental, o mais
adequado seria referir-se ao termo “propriedade-função”.14 A expressão é interessante e sugere
discussões proveitosas, embora ainda não seja unânime. De toda sorte, sendo a propriedade
uma função ou tendo ela uma função – como preferem alguns –, o indiscutível é que não é
mais a mesma; seu regime jurídico é outro, mais relativizado e carregado de conteúdo
axiológico, inclusive ambiental.
A propriedade não pode mais ser encarada unicamente como um direito individual; e,
nesse sentido, talvez seja adequada a afirmação de que se tornou um “instituto de direito
econômico”15
, na medida em que resta cada vez mais nítida, mais clara, a importância da
intervenção do Estado (seja com medidas in abstrato ou in concreto), conformando-o aos
anseios sociais insculpidos na Constituição de 1988.
Entendendo a função social como um elemento integrante da propriedade, Figueiredo
afirma que ela “é o contorno jurídico do direito de propriedade”.16
Esse seu entender vai ao
encontro da lição de Derani, para quem função é conteúdo.17
Benjamin, ao tratar do fenômeno de ecologização da Constituição, defende que um
dos objetivos foi o de instituir um regime de exploração da propriedade que fosse limitada e
condicionada, agregando (ou enfatizando) à função social o componente ambiental, visando,
sobretudo, à sustentabilidade.18
A busca pela sustentabilidade requer (entre outras coisas) a
12
DERANI, Cristiane. A propriedade na Constituição de 1988 e o conteúdo da “função social”. In: Revista de
Direito Ambiental. São Paulo: RT, jul-set 2002, v.27. 13
Ibidem. 14
FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de Figueiredo. A propriedade no direito ambiental. 4. ed. rev., atual. e
ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.p. 94. 15
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 30.ed. São Paulo: Malheiros, 2008. 16
FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de Figueiredo. Op.cit.p. 94. 17
DERANI, Cristiane. Op.cit. 18
BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da Constituição brasileira.
In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MORATO LEITE, José Rubens. (Org.). Direito constitucional
ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007. p.92.
exploração limitada e condicionada da propriedade; é dizer, envolvida e recheada de função
socioambiental.
Em suma, a função socioambiental exige do proprietário o dever de exercer seu
direito de propriedade em benefício da coletividade (isto é, do outro) e não apenas o de não
exercê-lo em prejuízo alheio. Ela atua como fonte de imposição de comportamentos positivos
e negativos tendo em mira o benefício e o bem-estar do outro.
Existe interessante aproximação entre os conceitos de função socioambiental da
propriedade e de deveres fundamentais, especificamente o dever fundamental de proteção
ambiental. Ambos são importantes para bem compreender a redefinição de conteúdo do
direito de propriedade à luz de valores constitucionais ecológicos.19
3 DEVERES FUNDAMENTAIS
Os deveres fundamentais estão relacionados à função objetiva dos direitos
fundamentais (mais especificamente, à dimensão axiológica destes).20
Cuida-se de valores e
fins que a sociedade, além de respeitar, deve concretizar.
Alguns direitos fundamentais podem apresentar, como contrapartida, um dever, que
consiste na obrigação de exercer o direito de forma solidária, tendo em conta os interesses da
sociedade (numa perspectiva de solidariedade e responsabilidade para com o outro). Essa
relação direito-dever é muito perceptível no direito fundamental de propriedade, cujo dever
fundamental que lhe acompanha trata-se da função socioambiental.
Dessa maneira, o exercício do direito de propriedade em observância às exigências
de sua função social configura um dever fundamental, que se manifesta na própria estrutura
do direito de propriedade, funcionando, também, como um elemento qualificante na
determinação dos meios de aquisição, gozo e utilização dos bens.21
Nessa perspectiva, portanto, o direito fundamental de propriedade pode ser encarado
como um direito-dever (expressão esta que destaca a noção de solidariedade e de
responsabilidade para com o outro), sobretudo em vista das limitações e redefinições do seu
conteúdo impostas pelo comando constitucional da função socioambiental. A função
19
FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da dignidade
humana no marco jurídico constitucional do estado socioambiental de direito. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2008. p.209. 20
Ibidem. p.189. 21
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 3.ed. rev., atual. e ampl.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.p. 73-74.
socioambiental corresponderia, portanto, ao dever fundamental conexo ao direito fundamental
de propriedade.22
Há deveres conexos e específicos que incidem sobre a conduta do titular do direito
de propriedade, tais como: dever de exploração racional da terra, dever de manutenção do
equilíbrio ecológico, dever de não exploração dos trabalhadores etc.23
A natureza constitucional do direito de propriedade é de um direito-meio (e não
direito-fim), já que não está garantido de per se, mas como um instrumento de proteção de
valores fundamentais, entre os quais o ambiente.24
Assim, compreender a propriedade como um direito-meio, e também como um
direito-dever, é o mesmo que conectar o direito subjetivo de propriedade ao dever de adequar
seu exercício à função social.25
Dessa maneira, a proteção ambiental transforma-se em um
componente do regime jurídico-constitucional da propriedade.
O dever fundamental de proteção ambiental carrega em si um feixe de obrigações,
positivas e negativas, vinculado à função socioambiental da propriedade, servindo, ao mesmo
tempo, como condicionante do direito de propriedade e conformador deste ao sistema
constitucional contemporâneo.26
Esse dever fundamental ecológico contém uma obrigação
geral negativa (abster-se de práticas degradadoras) e outra positiva (adoção de
comportamentos que permitam a prevenção, a precaução e a reparação do ano ambiental). São
deveres de defender, preservar e reparar, que vão muito além do mero dever de não
degradar.27
Ao proprietário cabe, portanto, a adoção de condutas de prevenir, precaver e
reparar quaisquer formas de degradação.28
A fiscalização disso tudo fica a cargo do Estado e
de toda a sociedade, conforme preceitua o art. 225, caput, da Constituição, a responsabilidade
é de todos (inclusive dos proprietários).
A partir da identificação (e aceitação) dos deveres fundamentais, abre-se o campo
para a imposição de restrições aos direitos subjetivos (desde que fundamentadas no interesse
geral), bem como, o estabelecimento de limites ao conteúdo e ao alcance dos direitos
22
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental: Constituição, direitos
fundamentais e proteção do ambiente. 2.ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.p.148. 23
Ibidem p. 169. 24
COMPARATO, Fábio Konder. Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade. In: STROZAKE,
Juvelino José (org.). A questão agrária e a justiça. São Paulo: RT, 2000. 25
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Op. cit. p. 171 26
FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da dignidade
humana no marco jurídico constitucional do estado socioambiental de direito. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2008. p.213. 27
BENJAMIN, Antônio Herman. Função ambiental. Disponível em <http://bdjur.stj.gov.br>. Acesso em 13 mai
2012. 28
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Op.cit. p. 173.
fundamentais, ou até mesmo a redefinição de conteúdo destes – como ocorre, por exemplo, na
imposição constitucional do cumprimento da função socioambiental.29
Para Derani, função deve ser compreendida como conteúdo. Segundo a autora, o
atendimento da função socioambiental não se revela somente pela verificação do fim correto
(o fim social), uma vez os fins não se apartam dos meios. É justamente na escolha dos meios,
de sua disposição e do resultado obtido que se verifica o preenchimento da função
socioambiental.30
Dessa forma, sustenta a autora, que a escolha do que realizar, dos meios que
serão empregados, da intensidade da atividade a ser exercida e a destinação dos resultados
obtidos não pode mais ser tomada do ponto de vista exclusivamente individual do
proprietário, porquanto a propriedade só se justifica como instrumento viabilizador de valores
fundamentais. Percebe-se, portanto, a presença dos componentes responsabilidade e
solidariedade.
Fensterseifer defende que a perspectiva subjetiva do direito individual à propriedade
subordina-se e condiciona-se aos valores objetivos que os outros direitos fundamentais
ventilam no sistema jurídico, notadamente quando se está diante de um direito
proeminentemente transindividual, como é o caso do ambiente.31
Assim, no que tange à propriedade rural (mas essas diretrizes axiológicas também
valem para a urbana), deve-se atender aos seguintes requisitos: (i) aproveitamento racional e
adequado; (ii) utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio
ambiente; (iii) observância das disposições que regulam as relações de trabalho, e (iv)
exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores, conforme artigo
186, da Constituição Federal. Ao exercício da titularidade está conectado um conjunto de
deveres fundamentais, sem o cumprimento dos quais a propriedade não encontra sua
legitimidade constitucional.32
Dessa maneira, defende-se que há um conteúdo não-dominial
no regime jurídico da propriedade.33
Com efeito, a liberdade do indivíduo no exercício de seus direitos não lhe garante
uma autodeterminação irresponsável, descompromissada com o outro. Ao contrário,
aproxima-se mais de uma autonomia moral e de uma atuação social com responsabilidade. O
29
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental: Constituição, direitos
fundamentais e proteção do ambiente. 2.ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.p. 167. 30
DERANI, Cristiane. A propriedade na Constituição de 1988 e o conteúdo da “função social”. In: Revista de
Direito Ambiental. São Paulo: RT, jul-set 2002, v.27. 31
FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e a proteção do ambiente: a dimensão ecológica da
dignidade humana no marco jurídico constitucional do estado socioambiental de direito. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2008.p.210-211. 32
Ibidem. 33
RODOTÀ, Stefano. El terrible derecho: estúdios sobre la propriedad privada. Madrid: Editorial Civitas, 1986.
dever fundamental de respeitar os valores constitucionais, especialmente aqueles que
provocam reflexos nos direitos fundamentais de outros cidadãos (como o meio ambiente,
incorporado no mandamento da função social), conduz a uma ideia não só de consideração,
mas também de responsabilidade para com o outro. Na medida em que há um dever jurídico
(e não só moral) de levar o outro em conta nas suas tomadas de decisão, o sujeito passa a ser
responsável, passa a ter o dever de preocupar-se com a sorte alheia, o destino e o bem estar do
outro. Este outro, até então ignorado e desvalorizado pela propriedade que tinha em si uma
perspectiva individualista, passa a ser ressignificado e revalorado, incorporando-se de
conteúdo e de direitos: o direito de ser considerado, o direito de ser respeitado, o direito de ser
ouvido. Este outro passa a ser presente no direito de propriedade: é o que visa o mandamento
da função socioambiental.
A Constituição Federal, não só nos dispositivos que regem a propriedade e o meio
ambiente, mas também em diversos outros no decorrer de seu texto, aponta para um dever
geral (ou seja, tanto do Poder Público, quanto dos particulares) de respeito ao meio ambiente.
Esse dever, na medida em que se reveste de uma carga axiológica muito forte, fundamenta a
redefinição de conteúdo de alguns institutos jurídicos que, porventura, sejam com ele
tradicionalmente incompatíveis.
Há o reconhecimento (não mais meramente moral, como outrora, mas jurídico e
político, inclusive) de que o indivíduo existe para além de sua individualidade. É um sujeito
eminentemente social, o que lhe acarreta responsabilidade para com a existência comunitária
(em patamares dignos).34
Os deveres fundamentais determinam, portanto, além de uma limitação de direitos
subjetivos (no caso, a propriedade), também uma redefinição do conteúdo destes. É o que
ocorre com a função socioambiental da propriedade, segundo Fensterseifer35
e Comparato36
.
Dessa maneira, forçoso concluir que é juridicamente inadequado falar-se em direito
de propriedade sem se considerar os deveres ecológicos que ele acarreta. É por essa razão,
aliás, que as expressões “direito-dever” e “poder-dever”, utilizadas pela doutrina ao referir-se
à propriedade, tem merecido cada vez maior guarida, por conterem em si todo o respaldo
constitucional.
34
FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da dignidade
humana no marco jurídico constitucional do estado socioambiental de direito. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2008. p.194. 35
Ibidem p.193. 36
COMPARATO, Fábio Konder. Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade. In: STROZAKE,
Juvelino José (org.). A questão agrária e a justiça. São Paulo: Revista dos tribunais, 2000. p.130-147.
Os deveres fundamentais estão vinculados à dimensão social da dignidade humana,
fortalecendo um comportamento solidário do indivíduo inserido em uma comunidade, “o que
demanda por uma releitura do conteúdo normativo do direito à liberdade, amarrando-o à ideia
de responsabilidade comunitária e vinculação social do indivíduo”.37
O Código Civil de 2002 e a Lei nº 10.257/2001 (conhecida como Estatuto da
Cidade), no passo da Constituição, também inseriram a proteção ambiental como um dos
componentes do regime jurídico da propriedade. Os deveres que se extrai do artigo 1.228, §1º,
do diploma civil consistem em dever de abstenção (de práticas danosas) e deveres de
prestação, os quais ensejam comportamentos positivos por parte do proprietário, reforçando a
tese de que não se espera dele tão somente deveres negativos.38
A jurisprudência brasileira tem se mostrado consentânea a esse entendimento. O
Superior Tribunal de Justiça já pacificou que o proprietário tem o dever de recuperar o dano
ambiental ocorrido em sua propriedade, independente de culpa. Trata-se de uma obrigação
positiva, de fazer, de natureza objetiva (não importa quem deu causa ao dano). A mesma corte
também fixou entendimento segundo o qual não cabe indenização ao proprietário que tiver
sua propriedade enquadrada em regime especial de proteção ambiental (unidade de
conservação, área de preservação permanente e reserva legal). Embora a jurisprudência tenha
qualificado esses deveres como obrigações civis, e não como deveres fundamentais
propriamente ditos, é notável seu avanço, pois caminha em direção à teoria dos direitos e
deveres fundamentais, rumo a uma compreensão constitucionalizada dos institutos de direito
privado e, consequentemente, a uma redefinição de conteúdo do direito de propriedade,
inserindo em seu bojo o meio ambiente.39
O reconhecimento de uma função ecológica, ou socioambiental, da propriedade – e a
sua aceitação pelos Tribunais – revela que a ordem jurídica brasileira está vinculada e
comprometida com o dever de desenvolvimento sustentável, e para a consecução desse
objetivo, o direito de propriedade necessariamente sofrerá limitações.40
37
FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da dignidade
humana no marco jurídico constitucional do estado socioambiental de direito. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2008. p.196. 38
MIRAGEM, Bruno. O artigo 1.228 do Código Civil e os deveres do proprietário em matéria de preservação
do meio ambiente. Disponível em <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/26833-26835-1-
PB.pdf>. Acesso em 13 mai 2012. 39
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental: Constituição, direitos
fundamentais e proteção do ambiente. 2.ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.p.239-240. 40
Ibidem p.175-176.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A proteção ambiental apresenta-se, no regime jurídico constitucional brasileiro,
como um elemento interno e estruturante do direito de propriedade, sem a qual este não se
realiza por completo, não se legitima plenamente. Nos moldes constitucionais atuais (art. 5º,
caput, XXII, XXIII, art. 170, II, III, art. 182, §2º, arts. 184, 185 e 186) o direito fundamental
de propriedade não se separa do dever fundamental de proteção ambiental.
O que é possível (e é justamente o que ocorre in concreto) é um conflito entre
interesses. Há, de um lado, o interesse individual(ista) e egoístico do sujeito que quer auferir
riquezas a qualquer custo, maximizando a exploração dos recursos naturais que estejam sob
seu domínio, justificando-se numa compreensão conservadora e intangível acerca dos direitos
reais. De outro lado, interesses de proteção da fauna, da flora, da biodiversidade, da qualidade
dos recursos naturais, do equilíbrio ecológico, de índices baixos de poluição da água, do ar, do
solo, etc. São interesses que surgem no dia a dia, em circunstâncias concretas, cada qual
apontando num sentido e fazendo supor a existência de um conflito, reafirmando a tensão que
pode haver quando o indivíduo insiste em excluir o outro no exercício do seu direito de
propriedade (atributo este que a doutrina tradicional denomina de excludendi alios, e que hoje
merece séria revisão).
O regime constitucional do direito de propriedade manda que o titular inclua, entre
outras, a função ecológica no exercício do seu direito, o que reafirma um compromisso de
preocupação com o outro, e não de exclusão (excludendi alios). O outro, aqui, pode ser
compreendido como aqueles que se avizinham ao imóvel; aqueles que passam rapidamente
pelo imóvel; aqueles que nunca sequer chegaram perto do imóvel, mas que usam a água do rio
que passa por ele; aqueles que se alimentam dos frutos ali produzidos; etc., enfim, todos.
Tanto a geração presente, como as futuras possuem interesse na preservação ecológica e
manutenção do equilíbrio natural. Ao titular do direito de propriedade não cabe o direito de
excluir ninguém; notadamente, não lhe cabe o direito de excluir a preocupação da sociedade
com os recursos naturais inseridos em seu imóvel.
É justamente por essa preocupação com o outro (o que, numa leitura mais alargada,
culmina no princípio da solidariedade) que é possível falar em conexão entre o direito
fundamental de propriedade e o dever fundamental de proteção ambiental, ou deveres
ecológicos.
Por tudo isso, o regime jurídico-constitucional brasileiro sobre o instituto da
propriedade não condiz com uma leitura de conflito face ao meio ambiente. Pelo contrário, a
interpretação de seu cerne e de tudo mais a sua volta sugere uma forte conexão entre
propriedade e proteção ambiental, funcionando esta, inclusive, como fator legitimador
daquela.
Esta é a leitura coerente que se faz do discurso de uma Constituição que se diz
compromissada com o desenvolvimento sustentável. Não se exerce legítimo direito de
propriedade excluindo o outro, especialmente quando esse exercício pode afetar, para pior, o
ambiente, que é bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida.
No entanto, é forçoso reconhecer que, no plano fático, os interesses são os mais
antagônicos e diversos possíveis, e geram zonas de tensão difíceis de serem acalmadas, as
quais exigem que o Direito ofereça respostas rápidas, mas também seguras e coerentes com a
interpretação do sistema como um todo; respostas estas que não anulem nem a proteção
ambiental, nem o legítimo exercício da propriedade, mas que encontrem o devido ponto de
congruência e conexão entre propriedade e meio ambiente. Ambos, direito e dever, estão
amarrados, e, portanto, a propriedade deve deixar de ser considerada exclusivamente sob a
ótica do interesse individual, e passar a ser (melhor) compreendida sob uma perspectiva
coletiva, de múltiplos interesses, entre eles o ambiental.
Destaque-se, por derradeiro, e, sobretudo, a importância de uma hermenêutica
constitucional criativa, num mundo em constante transformação (inclusive ambiental), como é
o caso. Nesse cenário, um reforço axiológico do mandamento da função socioambiental e a
ampliação do âmbito de proteção da garantia da propriedade para abraçar o meio ambiente e
os interesses coletivos de um modo geral, tendem a contribuir para uma realidade social e
ambiental mais justa, mais equilibrada e mais comprometida com os valores prometidos pela
Constituição de 1988.
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fundamentais na perspectiva constitucional. 10.ed., rev., atual. e ampliada. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2011.
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental:
Constituição, direitos fundamentais e proteção do ambiente. 2.ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2012.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 30.ed. São Paulo:
Malheiros, 2008.
NEOCONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO: O GIRO PARADIGMÁTICO DE PROTECÃO AMBIENTAL
The Brazilian Neoconstitutionalism: The Paradigmatic Turning of Environmental
Protection Beatriz Souza Costa1
Elcio Nacur Rezende2
Resumo Este artigo tem por objetivo analisar as causas e efeitos das transformações ocorridas no
constitucionalismo brasileiro de 1988 no que se refere ao Direito Ambiental, e seu princípio,
nuclear, do desenvolvimento sustentável. Princípio paradigmático de desenvolvimento
sustentável que concerne na utilização racional dos bens ambientais de forma que as gerações
futuras também tenham oportunidades de utilizar, conhecer e preservar os bens que a natureza
privilegia as gerações presentes. Os efeitos da constitucionalização deste direito modificou
todo um pensamento utilitarista, do ser humano, sobre a utilização do meio ambiente, e
deságua em uma proteção sistêmica, protegendo a unidade em um mundo cada vez mais
complexo.
Palavras chave: Neoconstitucionalismo; Direito Ambiental; Desenvolvimento Sustentável. Abstract This article aims to analyze the causes and their effects of changes occurring in the Brazilian
constitutionalism of 1988 with regards to environmental law, and its nuclear principle of
sustainable development. This paradigmatc principle of development concerning the rational
use of environmental assets so that future generations also have the opportunity to use, learn
and preserve assets that nature favors the present generations. The effects of the
constitutionalization of this right modified a whole utilitarian thought, of human beings on
the environment and that flows into a systemic protection, and protect the unit in an
increasingly complex world, that we live.
Keywords: Neoconstitutionalism; Environmental Law; Sustainable Development. Sumário: 1. Introdução 2. Constituições anteriores à 1988 2.1 Constituição Imperial de 1824
1 Mestre e Doutora em Direito Constitucional pela UFMG. Professora do Mestrado em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável da Escola Superior Dom Helder Câmara. 2 Mestre e Doutor em Direito pela PUC/MG. Coordenador e Professor do Curso de Mestrado em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável da Escola Superior Dom Helder Câmara.
2.2 A Constituição do Brasil de 1891 2.3 A Constituição de 1934 2.4 A Constituição de
1937 2.5 A Constituição de 1946 2.6 A Constituição de 1967 2.7 A Constituição de 1988
3. O Neoconstitucionalismo brasileiro e o paradigma do Direito Ambiental 3.1 Da
Conferência Internacional das Nações Unidas de 1972 ao art. 225 da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988 3.2 Princípios estruturantes do Direito Ambiental
constitucionalizado 4. Um novo Direito que tem o poder de salvar o homem do homem, e o
ambiente em que vive 5. Conclusão 6. Referências Bibliográficas.
1 Introdução A transição modernidade/pós-modernidade se dirige para a insuficiência de um
sistema, ainda não consumado, que demonstra sua incapacidade em satisfazer demandas
contemporâneas, principalmente no que diz respeito ao desenvolvimento do homem.
Mas também não será nessa sociedade pós-moderna que os problemas serão todos
resolvidos, pois vive-se cada vez mais em sociedades mais complexas onde há riscos de toda
natureza. Os riscos de hoje, os quais alguns imperceptíveis, que todas as pessoas estão
expostas de alguma forma, como por exemplo, os provenientes da natureza a exemplo desses
tem-se o aquecimento global, e a diminuição de fontes de matérias-primas não renováveis,
certamente tem o próprio homem como o seu maior causador.
Os riscos afetam toda uma sociedade, que ainda não tem consciência exata do grave
problema. Mas o Brasil vive uma nova dimensão de direitos, uma delas é a preocupação com
o meio ambiente que tomou proporções deliberadamente inovadoras.
O constitucionalismo de 1988 é paradigmático quanto à proteção da vida humana e do
meio ambiente. E não é somente quanto ao art. 225, que trata especificamente do tema, mas
de forma geral todos os artigos conexos com a defesa do meio ambiente.
Os efeitos da constitucionalização do Direito Ambiental trouxe perspectivas de
pesquisas em torno de novas tecnologias que envolvem energias renováveis, proteção da flora
e fauna. Também possibilitou o conhecimento de um desenvolvimento que, além de proteger
a saúde do homem, possibilita que o tempo seja um aliado a seu remanejamento.
2 Constituições anteriores a 1988 O Brasil possuidor de uma riqueza natural e humana não poderia continuar a pautar-se
em constituições com visões utilitaristas da natureza. Principalmente com a descoberta de que
o próprio homem, em sua ânsia por uma vida melhor, copia a mesma forma de
desenvolvimento dos países ricos, o que naturalmente não é mais viável, e coloca-se em uma
situação muito vulnerável, porque a natureza, como fonte primordial de recursos, também tem
seus limites.
Ao retornar ao passado, nos idos do descobrimento e mesmo no reino unido, Brasil e
Portugal, a riqueza natural do Brasil era incomparável, portanto essa época não houve
problemas referentes à escassez de alimentos ou mesmo grandes problemas de degradação
ambiental. Mas não se pode esquecer de que o pau brasil quase chegou à extinção, devido à
extração predatória pelos portugueses3.
Mas é fato que as primeiras constituições brasileiras não tiveram qualquer intenção
quanto à proteção ambiental. Por exemplo, a primeira Constituição de 1824 tinha, em sua
organização, finalidades estritamente fiscais e de proteção a uma aristocracia tacanha e
escravocrata. Por consequência, em seu texto, dignidade humana e proteção ambiental não
poderiam constar.
De certo que as questões ambientais apareceram somente há quarenta anos, ou seja, no
século XX em que as consequências do desenvolvimento industrial e agrário vieram à tona,
demonstrando também a face da degradação.
É fundamental conhecer o constitucionalismo anterior à Constituição da República de
1988 para uma visão ampla, ou seja, do que havia, em relação ao meio ambiente, e as
mudanças que ocorreram para se chegar à constitucionalização do Direito Ambiental.
Um princípio fundamental e diretamente afeto à proteção ambiental é o Princípio da
Dignidade Humana. Não há como ser uma pessoa digna sem um ambiente adequado para seu
desenvolvimento.
O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana foi omitido por todas as constituições
anteriores à de 1988. A importância da estrutura do Estado foi privilegiada, em detrimento do
valor humano. Ensina José Afonso que “a dignidade é atributo intrínseco, da essência da
pessoa humana, único ser que compreende um valor interno, superior a qualquer preço, que
3 Pau brasil madeira vermelha que deu nome a este País ainda hoje está ameaçado de extinção. No Brasil Colônia foi extraído em um primeiro momento para construções na Metrópole. Depois, utilizado também, por suas propriedades como corante, para tingir tecidos. O pau brasil era abundante na Mata Atlântica e seu crescimento chega até 40 metros de altura. Atualmente, após largas pesquisas, pela Universidade Federal de Pernambuco “mostraram que, ao ser inoculado nos camundongos, o extrato do pau-brasil desenvolvido pela equipe do professor da Unicap José Camarotti inibe em cerca de 87% o desenvolvimento de tumores. Um resultado surpreendente e bastante favorável, tendo em vista que, para considerar uma substância como eficaz em um experimento com os roedores, basta que o seu resultado esteja numa faixa de 50% a 60%. Apesar da previsão ser otimista, ainda há um longo caminho a se percorrer e vários testes a serem realizados antes que o extrato seja testado em humanos”. Disponível em <http://www.ufpe.br/agencia/index.php?option=com_content&view=article&id=25882:a&catid=20&Itemid=77> . Acesso em: 02 de agosto de 2012.
não admite substituição equivalente. Assim a dignidade entranha e se confunde com a própria
natureza do ser humano”.4
Tendo em vista a interpretação de Silva, a dignidade vincula-se a condições de vida e
existência que contemplem um meio ambiente saudável e equilibrado, porque sem um
ambiente que ofereça condições de se viver com saúde, inclusive psicológica, está totalmente
maculado.
A questão ambiental, ou melhor de proteção dos bens ambientais foi relegada.
Ao reler as constituições anteriores, vê-se claramente a inclusão dos temas sobre
mineração, águas e florestas protegendo o valor econômico que estão agregados para o
Estado, de forma que, a utilização sem contabilizar a degradação do ambiente, a sua escassez
para as gerações futuras e mesmo das presentes, nunca foram pensadas.
As Constituições de 1934, 1937, 1946 e 1967 inovaram quanto à preocupação
educacional e cultural, mas a Constituição de 1937 sobressai quanto à proteção cultural, que é
um bem ambiental pouco compreendido no Brasil. A valorização, pelos brasileiros, de sua
arte, literatura e arquitetura deixa a desejar em comparação aos países europeus, portanto,
nesse item, o país ainda tem muito a evoluir.
Mas quanto à preocupação com a proteção de certos bens ambientais, anteriores as
constituições brasileiras, é importante citar Ann Helen Wainer que compreendeu que as
Ordenações portuguesas foram pioneiras em proteção de alguns bens ambientais.
As Ordenações Afonsinas foi a legislação em vigor, em Portugal, na primeira década
do descobrimento do Brasil, essa compilação foi concluída no ano de l443, como informa
Wainer: “Podemos afirmar que a legislação ambiental portuguesa era extremamente evoluída.
O corte deliberado de árvores frutíferas foi proibido através da ordenação determinada pelo
rei D. Afonso IV, aos 2 de março de 1393, tendo sido posteriormente compilada no livro V,
título LVIII, das Ordenações Afonsinas”.5
Apesar de Wainer entender que a legislação era protetiva, na realidade Portugal, essa
época, enfrentava uma crise, sem precedentes, de mão de obra no campo devido a doenças
que assolaram a Europa, e consequentemente provocou a crise de alimentos:
É do reinado de D. Fernando (l345-l383; rei l367-l383) a chamada ‘lei das sesmarias’ (1375). Com ela se enfrenta a crise de mão- de-obra rural em fuga para as cidades, onde os salários artesanais haviam subido, pelas repercussões da ‘peste negra’ e de transformações de mesteres. O
4 SILVA, José Afonso. Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 38. 5 WAINER, Ann Helen. Legislação Ambiental Brasileira – subsídios para a história do Direito Ambiental. 2. ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, l999, p. 5.
despovoamento assinala-se de norte a sul do país, provocando forte baixa na produção agrícola e, logo, diminuição das rendas da coroa, dos grandes senhores e até de pequenos proprietários.6
Portanto, o reinado de D. Fernando foi marcado pela evasão de mão-de-obra rural e a
legislação portuguesa foi meramente utilitarista, e a proteção foi por problemas de escassez de
alimentos, e não necessariamente uma proteção ambiental.
Por sua vez as Ordenações Manuelinas, no reinado de D. Manuel, que por vaidade
manda revisar e ampliar as ordenações, foram concluídas em 1531. Sendo assim, o rei mostra
sua participação e vinculação na história da legislação portuguesa, o que não diferia quase em
nada das Ordenações Afonsinas.
É importante citar as Ordenações portuguesas porque o Brasil na condição de colônia
portuguesa era regida por essas ordenações, e dessa forma quando inicia a extração minerária
fica muito claro que as terras pertenciam ao Rei de Portugal, e quanto ao regime de
propriedade, após a independência, chega-se a conclusão que:
Não houve modificação quanto ao regime de propriedade das minas no Brasil neste período. Portanto, segue o regime dominial, e este fato pode ser constatado com a primeira Constituição do Brasil, em 1824. Alguns juristas da época entenderam que a Constituição inaugural garantia a propriedade em sua plenitude, tendo em vista que o regime regaliano cessava com o início de um Império Constitucional. Mas essa interpretação não floresceu, pois os bens do rei passam a ser do Império do Brasil, tendo em vista que não houve nenhuma legislação expondo o contrário. 7
Portanto não se pode concordar com Wainer quando interpreta que a legislação, ou
ordenações portuguesas, já tinham intenções protecionistas. Era um protecionismo utilitarista.
E de certa forma, a legislação editada no Brasil Colônia e também no Brasil Império seguiram
os mesmos passos.
2.1 Constituição Imperial de 1824
Não haveria como esperar de uma Constituição Imperial outorgada, do Brasil de 1824,
que houvesse qualquer preocupação com a proteção do meio ambiente, pois nem mesmo
6 ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL. São Paulo: Enciclopédia Britânica do Brasil Publicações Ltda, v. 17, 1987, p. 9178. 7 COSTA, Beatriz Souza. O Gerenciamento Econômico do Minério de Ferro como Bem Ambiental no Direito Constitucional Brasileiro. São Paulo: Fiúza, 2009, p. 75.
estabeleceu qualquer artigo que lembrasse a dignidade da pessoa humana, como dito
anteriormente.
Essa Constituição definiu o governo como monárquico, hereditário e constitucional.
Em seu artigo 98 inaugura o Poder Moderador que “é a chave de toda a organização Política,
e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro
Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independência,
equilíbrio e harmonia dos mais Poderes Políticos”.8
Com um teor tão absolutista, não era de se estranhar que nessa Carta não houvesse
menção à proteção ambiental, e também ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, mas
apenas alguns artigos esparsos que expressaram certa preocupação com o assunto, ou seja, a
dignidade.9
Importante assinalar que sobre o direito de propriedade nessa constituição em seu art.
179, inciso XXII, era garantido em sua plenitude de forma que o proprietário era dono do
solo, no entanto não foi capaz de proteger os proprietários de minas particulares que não
tiveram o direito garantido, porque ainda não havia a discussão entre o solo e o subsolo.
2.2 A Constituição do Brasil de 1891
A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891 rompe com todos
os ideais do império, ou seja, com a forma monárquica de governo e também com o modelo
Europeu.
Instauraram-se a forma de governo republicana, a forma de Estado federalista e o
sistema de governo presidencialista. Visualiza-se claramente uma inspiração no
constitucionalismo norte-americano10. Pode-se dizer que foi uma constituição incipiente e
que transformou as províncias em Estados na qual a autonomia não foi priorizada.
8.CAMPONHOLE, Hilton Lobo, CAMPANHOLE, Adriano. Constituições do Brasil. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 799. 9 Como exemplo, pode-se citar o “Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é mantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte [...], XIX. Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis. [...]; XXI. As cadeias serão seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos Réos, conforme suas circumstancias, e natureza dos seus crimes. XXII. É garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem publico legalmente verificado e exigir o uso, e emprego da Propriedade do Cidadão, será elle previamente indemnisado do valor della. A Lei marcará os casos, em que terá logar esta única excepção, e dará as regras para se determinar a indemnisação. [...] XXX Todo o Cidadão poderá apresentar por escripto ao Poder qualquer infração da Constituição, requerendo perante a competente Auctoridade a effectiva responsabilidade dos infractores.” CAMPANHOLE, Hilton Lobo, CAMPANHOLE; CAMPANHOLE, 2000, p. 810 e 811. 10 HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 4. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
Quanto a política de proteção ambiental era inexistente, mas a Constituição regulava
sobre a propriedade que permaneceu plena. Também resguardava “a competência da União de
legislar sobre as minas e as terras de sua propriedade, e garantia aos estados a propriedade de
minas que se encontravam em terras devolutas, o que demonstrava que o Estado era muito
interessado pelo tema.”11
Mais especificamente sobre a propriedade de minas em seu art. 72, § 17 estabelecia
que: o direito de propriedade mantem-se em toda sua plenitude, salva a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia. As minas pertencem aos proprietários do solo, salvas as limitações que forem estabelecidas por lei a bem da exploração deste ramo de indústria.12
Verifica-se que também a Constituição de 1891 não fez a separação do tema entre solo
e subsolo, permanecendo sob o domínio do particular toda a riqueza do subsolo.
2.3 A Constituição de 1934
Por sua vez, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934
alterou alguns capítulos, mas não sofreu grandes modificações em relação à Constituição de
1891. Manteve-se de cunho social-democrata com clara alusão à Constituição de Weimar.
Apesar da breve existência, essa Constituição fez algumas alusões, no que tange à
dignidade da pessoa humana13, pois em seu Título III, capítulo II, era emblemático: ‘Dos
Direitos e das Garantias Individuais’, mas não expressava claramente sobre este princípio, e
passava distante de qualquer preocupação ambiental.
A modificação inovadora foi quanto ao Título V, em seu capítulo II, quando introduz
o tema sobre a educação e cultura. Apesar de trazer uma preocupação geral com a educação,
em seu art. 148 no qual estabelece: “Cabe a União, aos Estados e aos Municípios favorecer e
animar o desenvolvimento das ciências, das artes, das letras e da cultura em geral, proteger os
objetos de interesse histórico e o patrimônio artístico do país, bem como prestar assistência ao
11 COSTA, 2009, p. 77. 12 CAMPANHOLE; CAMPANHOLE, 2000, p.747. 13 A Constituição de 1934 não expõe claramente sobre o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, mas em seu Art. 113, que se desdobra em 38 partes, deixa clara a preocupação com seus cidadãos. Consta em seu caput : “art. 113. A constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á subsistência, á segurança individual e á propriedade, nos termos seguintes: [...]”.CAMPANHOLE; CAMPANHOLE, 2000, p. 694.
trabalhador intelectual”14. De forma incipiente tem-se, nesse momento, a criação do meio
ambiente cultural brasileiro.
Essa Constituição, pela primeira vez, explicita sobre o aspecto do solo e do subsolo da
propriedade de minas em seu art. 5º, e expõe que a União tem competência privativa para
legislar sobre “bens do domínio federal, riquezas do subsolo, mineração, metalurgia, águas,
energia hidráulica, florestas, caça e pesca e sua exploração”15 e continua em seu art. 118: “As
minas e demais riquezas do subsolo, bem como as quedas d'água, constituem propriedade
distinta da do solo para o efeito de exploração ou aproveitamento industrial” 16.
A partir desse artigo considera-se da União todo e qualquer bem que se encontre no
subsolo do País, pois arremata o art. 119: “O aproveitamento industrial das minas e das
jazidas minerais, bem como das águas e da energia hidráulica, ainda que de propriedade
privada, depende de autorização ou concessão federal, na forma da lei” 17. Não se pode
esquecer de que este é um aspecto de proteção somente econômico.
2.4 A Constituição de 1937
Tomando-se a Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937, percebe-se uma
subdivisão totalmente diferenciada, pois não era fracionada em capítulos e sim por temas. Em
seu art. 122 tinha como tema: ‘Dos Direitos e Garantias Individuais’, que, em relação aos
direitos humanos, não se diferenciou em relação à Constituição anterior. Porém ficou
inaplicável.
Na verdade, essa foi a época da ditadura mais perversa que este País já viveu em toda
sua história constitucional. Em 1937, o Presidente fechou a Câmara e o Senado, e legislou
com a total liberdade que o art. 180 lhe permitia: “Enquanto não se reunir o Parlamento
Nacional, o Presidente da República terá o poder de expedir decretos-lei sobre todas as
matérias da competência legislativa da União.”18
Essa Constituição, de forma inovadora, resguardou a competência legislativa da
União, em seu art. 16, inciso XIV para legislar sobre as seguintes matérias: “os bens de
domínio federal, minas, metalurgia, energia hidráulica, águas, florestas, caça e pesca e sua
14 CAMPANHOLE; CAMPANHOLE, 2000, p. 702. 15 CAMPANHOLE; CAMPANHOLE, 2000, p. 662. 16 CAMPANHOLE; CAMPANHOLE, 2000, pp. 661-697. 17 CAMPANHOLE; CAMPANHOLE, 2000, pp. 661-697. 18 CAMPANHOLE; CAMPANHOLE, 2000, p. 609.
exploração”19, No entanto, reservou aos estados a competência suplementar para legislar
também sobre essas matérias, art.18. Logicamente que ainda não se referia a uma proteção
ambiental desses bens, mas uma reserva de proteção econômica estratégica para o Estado.
Contudo, não se pode retirar dessa constituição a introdução da proteção à cultura, de
forma especial, apesar de já ter constado na Constituição de 1934. E no tema “Da Educação e
Cultura” estabelece o art. 134:
Os monumentos históricos, artísticos e naturais, assim como as paisagens ou os locais particularmente dotados pela natureza, gozam da proteção e dos cuidados especiais da Nação, dos Estados e dos Municípios. Os atentados contra eles cometidos serão equiparados aos cometidos contra o patrimônio nacional.20
A partir do ordenamento constitucional foi editado o Decreto 25 que especificou a
organização do bem cultural, e mais objetivamente quanto ao instituto do tombamento, que
tem por finalidade a conservação dos bens imóveis e imóveis de interesse ambiental e
cultural, mas não ganhou espaço constitucional, e ainda vigora no ordenamento jurídico.21
A conclusão é obvia que não existia tema, explícito em direitos humanos e de proteção
ambiental como um sistema.
2.5 A Constituição de 1946
O liberalismo foi resgatado pela Constituição de 1946, sepulcrado com o autoritarismo
de 193722. Protegeu essa Constituição, as liberdades e as garantias individuais e pôs fim ao
poder individual de Getúlio Vargas.
No que se refere à competência legislativa da União a Constituição de 1946 repete no
art. 5º, letra l, do art. 16 da Constituição de 1934, mas acrescenta o subsolo quando diz que a
União tem competência para legislar sobre: “riquezas do subsolo, mineração, metalurgia,
águas, energia elétrica, florestas, caça e pesca.”23 Também mantém o tema sobre a proteção à
cultura no art. 172: “As obras, monumentos e documentos de valor histórico e artístico, bem
19 CAMPANHOLE; CAMPANHOLE, 2000, p. 578. 20 CAMPANHOLE; CAMPANHOLE, 2000, p. 601. 21 O Decreto-Lei 25/37, organiza a proteção do patrimônio Histórico e Artístico Nacional. 22 Importante Lei, também sob a vigência da Constituição de 1937, promulgada pelo então Presidente Castelo Branco, foi o Código Florestal, que restou inaplicável por vários anos, e revogado em 1965 pela Lei 4.771 que também resta revogado, atualmente pela Lei 12.651/2012, e Medida Provisória 571 de 2012, o Novo Código Florestal Brasileiro. 23 CAMPANHOLE; CAMPANHOLE, 2000, p. 453.
como os monumentos naturais, as paisagens e os locais dotados de particular beleza ficam sob
a proteção do poder público.”24 Portanto, de forma geral o Poder Público é competente para a
proteção desse bem ambiental, ou seja, União e Estados.
Considerada uma Constituição mais democrática de todos os tempos, foi controvertida
no que se refere ao bem ambiental mineral, pois em seus arts. 152 e 153 retorna ao regime de
acessão, ou seja, o proprietário da terra também era o proprietário das minas:
Art. 152. As minas e demais riquezas do subsolo, bem como as quedas d'água, constituem propriedade distinta da do solo para o efeito de exploração ou aproveitamento industrial. Art 153. O aproveitamento dos recursos minerais e de energia hidráulica depende de autorização ou concessão federal na forma da lei. 25
De forma bem sutil essa constituição volta ao regime de acessão no ato da disposições
transitórias quando estabelece:
Art. 21. Não depende de concessão ou autorização o aproveitamento das quedas d’água já utilizadas industrialmente a 16 de junho de 1934 e, nestes mesmos termos, a exploração das minas em lavra, e ainda que transitoriamente suspensa; mas tais aproveitamentos e explorações ficam sujeitas às normas de regulamentação e revisão de contratos, na forma da lei.26
Existe uma redução na proteção econômica dos bens que pertenciam à União em
detrimento do interesse privado, o qual tem-se consequências até hoje no Brasil, pois ainda
existem minas, que foram manifestadas pelos seus antigos donos, e são até hoje consideradas
particulares.
Quanto ao tema sobre a proteção ambiental também não houve nenhuma inovação.
2.6 A Constituição de 1967
Na época obscura, da vigência da Constituição do Brasil de 1967, na qual vivia-se o
auge da ditadura militar, essa iniciava em seu Título I, com a organização nacional do Estado.
A modificação com a Emenda Constitucional n. 1, de 1969, que é interpretada por
vários doutrinadores como uma nova Constituição27, passou a denominar-se “Constituição da
24 CAMPANHOLE; CAMPANHOLE, 2000, p. 496. 25 CAMPANHOLE; CAMPANHOLE, 2000, p. 452-511. 26 CAMPANHOLE; CAMPANHOLE, 2000, p. 511. 27 Um dos autores que têm esse entendimento é José Afonso da Silva, in verbis: “Teórica e tecnicamente, não se tratou de emenda, mas de nova Constituição. A emenda só serviu como mecanismo de outorga, uma vez que verdadeiramente se promulgou texto integralmente reformulado, a começar pela denominação que se lhe deu: Constituição da República Federativa do Brasil, enquanto a de 1967 se chamava apenas
República Federativa do Brasil”. A Emenda Constitucional não se refere a temas no que
concerne aos direitos e garantias individuais, mas obviamente, direitos fundamentais, e as
garantias individuais não existiram nessa fase da história brasileira.
A Constituição de 1967 não se afasta da anterior quando estabelece em seu artigo 175:
“O amparo à cultura é dever do Estado. Parágrafo único: ficam sob a proteção especial do
Poder Público os documentos, as obras e os locais de valor histórico ou artístico, os
monumentos e as paisagens naturais notáveis, bem como as jazidas arqueológicas.” 28
Percebe-se que aos poucos vão surgindo temas que ainda não haviam sido citados nas
constituições anteriores, como as “jazidas arqueológicas”.
Quanto ao bem ambiental mineral revoga-se, logicamente o direito do proprietário
sobre as minas e reitera a Constituição de 1934, segundo a qual o aproveitamento industrial
das minas e das jazidas minerais, ainda que de propriedade privada, depende de autorização
ou concessão federal em seu art.168, mas também não estabelece nenhum artigo quanto à
proteção ambiental.
2.7 A Constituição de 1988
Após uma longa fase de autoritarismo, a Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988 rompe com o regime ditatorial no Brasil, aqueles denominados de “anos de
chumbo”.
Como lembra bem Manoel de Oliveira sobre o constitucionalismo brasileiro: “Em
1937 o Brasil imobilizou-se constitucionalmente. Permitiu a concentração de poderes com a
centralização política e administrativa delegada. Em 1891 éramos estadunidenses, em 1934
alemães de Weimar e em 1937 poloneses por imitação também”29.
Não há como esquecer o passado constitucional, e nem se deve esquecê-lo. Uma
história vivida com governos de imperadores absolutistas, presidentes autoritários e regimes
Constituição do Brasil.” SILVA, José Afonso. Curso de Direito constitucional Positivo. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 89. Bonavides e Paes de Andrade interpretam como Pontes de Miranda, pois examinado a Constituição de 1967 e a Emenda de 1969 manteve o título de seu trabalho: “comentários à constituição de 1967, com a Emenda de 1969”. E entendem que: “Não há pois, Constituição de 1969, mas de 1967, cujo sistema não foi alterado pela Emenda n. 1 de 1969, embora esta tenha promovido algumas modificações no seu texto.” BONAVIDES, Paulo, ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 3. ed. São Paulo: Editora paz e Terra S/A, 1991 p. 444. 28 CAMPANHOLE; CAMPANHOLE, 2000, p. 417. 29 SOBRINHO, Manoel de Oliveira Franco. História Breve do constitucionalismo no Brasil. CLÈVE, Clèmerson Merlin; BARROSO, Luís Roberto (Org.). Revista dos Tribunais – 100 anos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, v. 1, p. 281.
militares. Essa é a história do Brasil, e não há como modificá-la. Mas é olhando para trás que
se consegue ver melhor à frente.30
Finalmente, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, de forma
surpreendente, inverte os valores e inicia o Título I com os princípios e os fundamentos da
Constituição da República Federativa do Brasil. Logo, subsequente, também traz para o
início, em seu Título II: Dos Direitos e Garantias Fundamentais, e de forma paradigmática
explicita em seu Capítulo VI- “Do Meio Ambiente”.
Com a edição da nova Carta Constitucional fica clara a posição do cidadão brasileiro
diante da estrutura e da organização do Estado, e a importância da proteção ambiental na vida
das presente e futuras gerações.
E o ambiente passa a ter status de direito fundamental, porque apesar de não estar
incluído no art. 5º, a própria Constituição no art. 5º, § 2º, deixa explícito que não excluem
outros direitos fundamentais decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados. E
portanto, o ambiente é direito fundamental e com aplicabilidade imediata como reza o art. 5º §
1º, assim também entende Costa:
No Brasil, não há dúvida de que o meio ambiente é considerado um direito fundamental, porque qualquer interpretação contrária não encontrará amparo. A própria Constituição Federal, em seu art. 225, enuncia que ‘todos têm o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado’. Portanto, fala de ‘todos’ e de cada ‘um’. Sendo assim, o indivíduo tem o direito fundamental e subjetivo a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. É inquestionável que todo direito fundamental individual atribui ao indivíduo o direito de petição aos órgãos públicos, como faz a Constituição Federal em seu art. 5º, inciso XXXIV, e reveste a pessoa com quatro instrumentos processuais constitucionais para a fruição desse direito fundamental. Esses instrumentos processuais são: a ação popular; a ação civil pública ambiental; o mandado de segurança coletivo ambiental e o mandado de injunção ambiental.31
Nesse passo pode-se seguir além, ou seja, afirmar que o meio ambiente é direito à vida32
pois o art. 225 da Constituição Federal estabelece que os bens ambientais são imprescindíveis
para se viver em um ambiente ecologicamente equilibrado. Para tanto, é necessário que o ar
que se respire seja puro, que a água que se bebe seja de boa qualidade, que os produtos
alimentícios sejam plantados de forma adequada ao consumo humano, que as paisagens
naturais, artificiais sejam protegidas, enfim que a biodiversidade seja protegida do próprio 30 Neste diapasão, é obrigatória a leitura de CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Poder Constituinte e Patriotismo Constitucional. 31 COSTA, Beatriz Souza. Meio Ambiente como direito à vida- Brasil-Portugal-Espanha. Belo Horizonte: O Lutador, 2010, p. 63. 32 COSTA, 2010.
homem. Mas se “todos” têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
certamente o Estado tem o dever de garantir a proteção da vida de seu cidadão contra
qualquer perigo que provenha do ambiente onde ele vive, de forma que assevera Trindade:
O caráter fundamental do direito à vida torna inadequados enfoques restritos do mesmo em nossos dias; sob o direito à vida, em seu sentido moderno, não só se mantém a proteção contra qualquer privação arbitraria da vida, mas além disso encontram-se os Estados no dever de ‘buscar diretrizes destinadas a assegurar o acesso aos meios de sobrevivência’ a todos os indivíduos e todos os povos. Neste propósito, têm os Estados a obrigação de evitar riscos ambientais sérios à vida, e de por em funcionamento ‘sistemas de monitoramento e alerta imediato’ para detectar tais riscos ambientais sérios e ‘sistemas de ação urgente’ para lidar com tais ameaças.”33
Dessa forma histórica nasce uma Constituição Ambiental e ecológica que cria o
Direito Ambiental e o princípio nuclear do desenvolvimento sustentável.
3 Neoconstitucionalismo de 1988 e o paradigma do Direito Ambiental
O novo constitucionalismo e o processo de redemocratização no Brasil tem o início
com a Constituição de 1988.
Os anos ditatoriais foram complexos e violentos, principalmente para aqueles que se
rebelavam contra a ditadura, mas a violência silenciosa também se operou contra todo um
povo que vivia sem suas liberdades individuais garantidas.
O restabelecimento democrático, que se fez presente em 1988, trouxe um norte de
segurança jurídica já há muito esquecido pelos brasileiros.
Tendo vivido uma história complexa e de turbulências do Império Constitucional à
República Federativa, o Brasil atual passa por um período de estabilidade, assim compreende
também Luís Roberto Barroso:
Sob a Constituição de 1988, o direito constitucional no Brasil passou da desimportância ao apogeu em menos de uma geração. Uma constituição não é só técnica. Tem de haver, por trás dela pessoas para novos avanços. O surgimento de um sentimento constitucional no País é algo que merece ser celebrado. Trata-se de um sentimento ainda tímido, mas real
33 TRINDADE, Antônio Cançado. Tratado de direito internacional dos direitos humanos. Porto Alegre: Safe, 1997, p. 75.
e sincero, de maior respeito pela Lei Maior, a despeito da volubilidade de seu texto.34
A respeito da constitucionalização dos direitos35, o Brasil seguiu uma tendência das
Constituições Portuguesa e Espanhola, como dito alhures. Essa volubilidade que cita Barroso,
realmente foi escolha da Assembleia Nacional Constituinte, de 1987, que quis garantir todos
os direitos que foram negados, por anos, ao povo brasileiro e que seguiu-se aumentando com
as Emendas Constitucionais.
O Neoconstitucionalismo ambiental brasileiro foi inspirado pela crise ambiental, que
se instalou na década de sessenta nos Estados Unidos e Europa. Essa crise não cessou e
seguiu do Norte para o Sul, em escala crescente. É uma preocupação internacional de
sobrevivência de humanos e seu ambiente como um todo. Assim, inicio-se a série de reuniões
internacionais organizadas pela ONU, na qual a Conferência de 1972 teve grande impacto, e
inspiração para o constitucionalismo ambiental brasileiro.
Quando se fala em crise é impossível não fazer o paralelismo com novos paradigmas.
Os novos paradigmas também podem ocorrer na existência de crises, e não somente quando
existe alguma pesquisa e é descoberta uma nova teoria.
Thomas Kuhn, em 1962, definiu o que seja paradigma. Na verdade, o autor não
fornece um conceito pronto e acabado, mas obriga o interessado a ler todo o seu trabalho para
que ao final possa ter uma visão de como os paradigmas são tratados nas ciências.
De forma geral, pode-se dizer que um paradigma defina e sintetize crenças, ideais,
fatos observados e princípios normativos de uma visão de mundo considerados válidos por
uma comunidade em detrimento de outra teoria considerada ultrapassada, ou seja, que perdeu
sua validade. Explica o autor:
O historiador da ciência que examina as pesquisas do passado a partir da perspectiva da historiografia contemporânea pode sentir-se tentado a proclamar que, quando mudam os paradigmas, muda com eles o próprio mundo. Guiados por um novo paradigma, os cientistas adotam novos
34 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito – O Triunfo Tardio do Direito Constitucional no Brasil. In: Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 61, p. 58-129, jan./mar., 2007. 35 Explica Barroso que a expressão “constitucionalização do Direito é de uso relativamente recente na terminologia jurídica e, além disso, comporta múltiplos sentidos. Por ela se poderia pretender caracterizar, por exemplo, qualquer ordenamento jurídico no qual vigorasse uma Constituição dotada de supremacia [...] A ideia de constitucionalização do Direito[...] está associada a um efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com forma normativa, por todo o sistema jurídico.” BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito – O Triunfo Tardio do Direito Constitucional no Brasil. In: Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 61, p. 58-129, jan./mar., 2007.
instrumentos e orientam seu olhar em novas direções. E o que é ainda mais importante: durante as revoluções, os cientistas veem coisas novas e diferentes quando, empregando instrumentos familiares, olham para os mesmos pontos já examinados anteriormente. É como se a comunidade profissional tivesse sido subitamente transportada para um novo planeta, onde objetos familiares são vistos sob uma luz diferente e a eles se apegam objetos desconhecidos. [...] Não obstante, as mudanças de paradigma realmente levam os cientistas a ver o mundo definido por seus compromissos de pesquisa de uma maneira diferente.”36
É verdade que as novas teorias, como ensina o próprio Kuhn, são construídas para
resolver anomalias “presentes na relação entre uma teoria existente e a natureza, então a nova
teoria bem-sucedida deve, em algum ponto, permitir predições diferentes daquelas derivadas
de sua predecessora”37.
E foi assim que a visão de mundo, a forma de viver e de desenvolvimento humano,
perderam sua validade e se tornaram ultrapassadas.
A crise se instalou no planeta Terra. Vive-se uma crise ambiental e a pior delas é a de
energia que somente poderá ser superada se houver vontade política no mundo. Diniz38 apud
Saul Alinsky relata que os chineses para grafarem o vocábulo crise, usam dois ideogramas,
um significa “perigo” e o outro “oportunidade”.
Por falar em perigo e oportunidade é impossível esquecer a crise econômica mundial,
na qual o Brasil não encontra-se protegido. A crise que iniciou-se em 2008 ainda mostra-se
vigorosa derrubando economias de países, que pensou-se estruturadas como a americana e a
europeia. Apesar de neste artigo visualizar-se a crise ambiental, e suas consequências,
importante também lembrar ao leitor que deve-se procurar saídas para o que Slavoj Zizek39
chamou de os quatro cavaleiros do apocalipse: crise financeira, degradação ambiental, avanço
da biogenética e favelização.
Entende-se que a degradação ambiental, biogenética e favelização encontram-se
dentro da jurisdição do Direito Ambiental, portanto deve resolver todos esses problemas. A
Constituição de 1988 estabeleceu artigos que abordam esses temas como arts. 182, 183, 184,
ou seja, sobre a política urbana. Quanto a questão econômica e financeira o art. 170
estabelece: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre
36 KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. Trad. Beatriz Vianna Boeira et al. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 145. 37 KUHN, 2001, p. 131. 38 DINIZ, Athur J. Almeida. Novos paradigmas em direito internacional. Porto Alegre: Safe, 1995, p. 32. 39 ZIZEK, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 34.
iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça
social, observados os seguintes princípios: [...] VI- defesa do meio ambiente [...].”40
É inquestionável que a Constituição atribuiu ao Direito Ambiental uma atuação
fundamental.
3.1 Da Conferência Internacional das Nações Unidas de 1972 ao art. 225 da Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988
A Conferência de Estocolmo foi organizada pela ONU devido às catástrofes
ambientais que estavam ocorrendo em várias partes do mundo. Essa Conferência foi em
consequência de debates sobre os riscos de degradação do meio ambiente que, de forma
esparsa, iniciou na década de 1960 e ganhou na década de 1970 certa densidade. Grupos
como o Clube de Roma, que já se preocupavam com os problemas ambientais, em particular
em estudos sobre os limites do crescimento humano, foram precursores no tema.
O mote de discussão nessa Conferência foi sobre o desenvolvimento econômico.
Países que obtiveram um desenvolvimento desenfreado, ao utilizar quase todos seus recursos
naturais sugerem um desenvolvimento sustentável para os países em pleno desenvolvimento.
A visão brasileira de desenvolvimento, no governo militar, era do desmatamento,
principalmente da Amazônia para o desenvolvimento do país.
A Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1972, criou 26 princípios que
expressaram a convicção comum dos participantes. Mesmo o General Costa Cavalcante
assinou, o documento, ao perceber que não haveria obrigatoriedade em cumpri-lo. Nesses 26
princípios são visíveis a preocupação com os países em desenvolvimento como o princípio n.
9 que estabeleceu o tema sobre as deficiências do ambiente decorrentes das condições de
subdesenvolvimento ou desastres naturais que ocasionam graves problemas, e a solução seria
promover desenvolvimento com transferência financeira, tecnológica por outros países,
quando necessário41.
É um princípio solidário que não obteve guarida pelos países desenvolvidos. E,
mesmo atualmente o maior problema das grandes reuniões têm sido, exatamente o repasse de
recursos e tecnologias para países em desenvolvimento.
40 CAMPANHOLE; CAMPANHLE, 2000, p. 84. 41 CARVALHO, Carlos Gomes. Legislação ambiental brasileira- contribuição para um código do ambiente. 2. ed. Campinas: Milennium, 2002, p. 134.
Obviamente que outras reuniões internacionais, organizadas pela ONU, aconteceram
culminando com a reunião em 2012, Rio + 20, no Brasil e um de seus temas principais, em
pauta, era objetivar o conceito de desenvolvimento sustentável. Entretanto antes da
Constituição de 1988, a Conferência de 1972 e seus princípios foram instrumentos para a
criação do art. 225 da Constituição da República Federativa do Brasil, assim como de outras
constituições no mundo, exemplo disso foi a Constituição Portuguesa de 1976, e também a
Constituição Espanhola de 1978.
A importância dessa Conferência foi tamanha que Soares considerou:
A Declaração sobre meio Ambiente Humano, adotada em Estocolmo pela conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano [...] pode ser considerada como um documento com a mesma relevância para o direito Internacional e para a Diplomacia dos Estados que teve a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Na verdade, ambas as Declarações têm exercido o papel de verdadeiros guias e parâmetros na definição dos princípios mínimos que devem figurar tanto nas legislações domésticas dos Estados, quanto na adoção dos grandes textos do Direito Internacional da atualidade.42
A Conferência de 1972 teve repercussão imediata no Brasil, pois quando a delegação
retorna ao País criou-se, por decreto, a Secretaria Especial do Meio Ambiente, que iniciou
suas atividades em 1974.
Ainda sob os auspícios do governo militar foi editado o Decreto-Lei 1.413 de 1975,
que estabelecia em seu artigo 1º sobre proteção ambiental: “As indústrias instaladas ou a se
instalarem em território nacional são obrigadas a promover as medidas necessárias a prevenir
ou corrigir os inconvenientes e prejuízos da poluição e da contaminação do meio ambiente”43.
Esse Decreto-Lei pode ser considerado a primeira legislação de proteção ambiental
do Brasil. Mas a implementação foi muito tímida, pois competia somente ao Poder Executivo
Federal, no caso de inobservância do art. 1º, determinar ou cancelar a suspensão do
funcionamento de estabelecimento industrial.
E após um interstício de 6 anos foi editada a Lei 6.938, ou seja, a Política Nacional
do Meio Ambiente que diferentemente do Decreto-Lei 1.413/75 atribuiu ao Ministério
Público da União e dos Estados a competência para proteger o meio ambiente. Os anos oitenta
foram de grande valia para a proteção ambiental, em 1985 foi editada a Lei 7.347, Lei da 42 SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do Meio Ambiente- Emergência, obrigações e Responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001, p. 55. 43 BRASIL. Decreto-Lei n. 1413 de 1975. Dispõe sobre o controle da poluição do meio ambiente provocada por atividades industriais. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei1965-1988/del1413.htm>. Acesso em 02 de agosto de 2012.
Ação Civil Pública, que é uma lei ampla mas entre os bens protegidos encontra-se o meio
ambiente. Pode-se intuir que a legislação estabelecida foi a abertura para a
constitucionalização da proteção do meio ambiente em 1988.
A Declaração de 1972 foi extraordinária, trouxe a lume o maior problema que a
humanidade enfrenta atualmente. E não foi tarde que a Constituição de 1988 estabeleceu:
“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso
comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à
coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”44 E
qualquer semelhança com o artigo 66º da Constituição Portuguesa não é mera coincidência,
pois foi também instrumento inspirador: “Todos têm o direito a um ambiente de vida humano,
sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender. [...]”45
Mas não há dúvidas que o princípio primeiro da Declaração de Estocolmo, teve papel
primordial, pois estabelece que “o homem tem o direito fundamental à igualdade e o desfrute
de condições de vida adequadas, em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar
uma vida digna, gozar de bem estar e é portador solene de obrigações de proteger e melhorar
o meio ambiente, para as gerações presentes e futuras [...]”46.
Certamente que o repositório foi Estocolmo, e cria um direito fundamental na
Constituição Brasileira, ou seja, o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado. Com este novo direito constitucionalizado as mudanças que se seguiram foram e
são paradigmáticas.
Visivelmente, desde 1981 com a disposição sobre a Lei, 6.938, de Política Nacional de
Meio Ambiente na qual estabelece os objetivos, o sistema nacional e os instrumentos da
política nacional de meio ambiente o Brasil já havia construído a espinha dorsal do Direito
Ambiental, no entanto não se caracterizava como um direito autônomo.
Somente com a Constituição de 1988 o Direito Ambiental se firma como um Direito
autônomo, pois o art. 225 traz em seu arcabouço seus princípios retores, e seu núcleo com o
princípio do desenvolvimento sustentável. E nesse passo, acentua Herman Benjamin “[...]
como um direito fundamental, estamos diante de direito de aplicação direta, em sentido de
direito preceptivo e não programático; vale por si mesmo, sem dependência da lei.”47
44 CAMPANHOLE; CAMPANHOLE, 2000, p. 102. 45 PORTUGAL. Constituição Portuguesa de 1976- Lei do Tribunal Constitucional. Organização de J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira. 6. ed. Coimbra: Coimbra editora, 2002. 46CARVALHO, 2002, p. 134. 47 BENJAMIN, Antônio Herman. O Meio Ambiente na Constituição Federal de 1988. KISHI, Sandra Akemi Shimada et al (org.). Desafios do Direito ambiental no Século XXI – Estudos em homenagem a Paulo Affonso Leme Machado. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 382.
Portanto, o meio ambiente é um direito e um dever, quando estabelece que o Poder
Público e a coletividade têm o dever de protegê-lo, mas também o direito de viver em um
ambiente sadio e ecologicamente equilibrado. Este mandamento muda toda a história
brasileira de utilitarismo referente aos bens ambientais.
Os bens ambientais devem ser compreendidos não somente como os bens naturais,
como fauna, flora, recursos hídricos, mas também o meio ambiente artificial, aquele
construído pelo homem, assim como também o meio ambiente cultural que possuem, além da
construção artificial um valor especial que revela a identidade de seu povo. Além desses, o
meio ambiente do trabalho, ou seja, o ambiente, local no qual o homem desenvolve sua
potencialidade, deve ser um ambiente saudável. Não se confunde, portanto com os direitos
trabalhistas.
Dessa forma a Constituição de 1988 estabelece que o desenvolvimento deve ser ético,
e a defesa e a garantia jurídica se traduzem em formas de ações viáveis para que o meio
ambiente equilibrado seja protegido efetivamente. Benjamin também celebra o aspecto
garantista da Constituição: “A ênfase nos instrumentos de implementação é um dos mais
louváveis aspectos da Constituição de 1988. É nítido o desiderato de evitar que a norma
constitucional vire refém do destino retórico [...]48.
Quando se fala em desenvolvimento ético a base está em seu princípio nuclear, ou
seja, no princípio de desenvolvimento sustentável.
3.2 Princípios estruturantes do Direito Ambiental constitucionalizado
Falar dos princípios constitucionais do Direito Ambiental, no Brasil atual é de uma
necessidade fundamental, tendo por base as grandes inovações e transformações que se
operam na sociedade e consequentemente na legislação. Entender os princípios para aplicá-los
concretamente, e adequadamente se faz imperioso, pois esses princípios salvam vidas.
O constitucionalismo de 1988 trouxe em seu arcabouço, a proteção dos bens
ambientais mais importantes para a existência do homem, e dessa forma estabelece os
princípios fundamentais para sua validade.
Os seres humanos vivem da natureza, consomem natureza e não vive sem ela, mas a
natureza pode viver sem os humanos, portanto agora é obrigação humana de mudar o rumo da
48 BENJAMIN, 2005, p. 367.
história, para o bem da natureza e do homem também, por isso o art. 225, e outros conexos,
da Constituição Federal são fundamentais na construção do novo direito.
Alguns doutrinadores como José Adércio e Cristiane Derani advogam pela existência
de princípios estruturantes do Direito Ambiental.
José Adércio antes de enumerar quais sejam esses princípios, aborda sobre o “prima
principium ambiental: o do desenvolvimento sustentável”49. Há de se concordar pois este
princípio maior, serve como um grande guarda chuva no qual abriga os demais princípios do
Direito Ambiental em sua base constitucional.
O princípio do desenvolvimento sustentável foi criado por uma comissão organizada
pela ONU em 1987, a qual era presidida pela Primeira-Ministra da Noruega, Gro Harlem
Brundtland, e que segundo essa comissão o “desenvolvimento sustentável é aquele que atende
às necessidades do presente, sem comprometer a capacidade das futuras gerações em
atenderem às próprias necessidades”50.
Da década de oitenta a 2012 esse princípio já sofreu modificações para adequar-se a
uma sociedade complexa, fluida e de expectativas crescentes em relação à proteção ambiental.
A reunião do Rio, ECO- 92, entre seus 27 princípios também trouxe o princípio
número 3 o qual estabelece: “O direito ao desenvolvimento deve ser exercido de modo a
permitir que sejam atendidas equitativamente as necessidades de desenvolvimento e de meio
ambiente das gerações presentes e futuras.”51 Este conceito não perde em substância daquele
criado pela Comissão Brundtland.
Talvez a melhor conceituação de desenvolvimento sustentável, que se adéque à
sociedade presente, venha de Derani quando expõe que o desenvolvimento sustentável “é o
conjunto de instrumentos preventivos, ferramentas de que se deve lançar mão para conformar,
constituir, estruturar políticas, que teriam como cerne práticas econômicas, científicas,
educacionais, conservacionistas, voltadas à realização do bem-estar generalizado de toda uma
sociedade.”52
Entende-se que desenvolvimento sustentável seja o sustentáculo dos demais
princípios que estão na base constitucional. Resgata-se, portanto os princípios denominados
estruturantes por José Adércio e que demonstra o caráter transdisciplinar do Direito
ambiental, e que traz a necessidade do princípio da solidariedade para proporcionar a releitura
do próprio Direito e da Ciência Jurídica. 49 SAMPAIO; WOLD; NARDY, 2003, p. 47. 50 SOARES, 2001, p. 73. 51 CARVALHO, 2002, p. 138. 52 DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.155.
O núcleo estruturante desses princípios são seis: o Princípio da equidade
intergeracional; Princípio da Precaução; Princípio da Prevenção; Princípio da
Responsabilidade Ecológica; Princípio da Informação e o Princípio da Participação.
Explanar-se-á de forma resumida o pensamento do autor o qual entende que no
“Princípio da equidade intergeracional as presentes gerações não podem deixar para as futuras
uma herança de déficits ambiental, ou do estoque de recursos e benefícios, inferiores aos que
receberam das gerações passadas”53. Este é o princípio que mais se aproxima do princípio do
desenvolvimento sustentável, pois os dois têm o mesmo cerne, ou seja, a possibilidade, das
gerações futuras, serem resguardadas em sua capacidade de também ter um meio ambiente
ecologicamente equilibrado.
É real que, em determinada época de evolução humana, alguns recursos naturais
desapareçam, mas a esperança é que surjam outras fontes que substituam esses recursos de
alguma forma, ou que a pesquisa e tecnologia possam ajudar a minorar a escassez, ou até
mesmo a falta de algum bem ambiental.
Quanto ao princípio da precaução, que é um princípio mais antigo na Europa, Adércio
registra duas concepções deste: uma fraca e outra forte, mas as duas têm
o primado da dúvida sobre o impacto ambiental de qualquer atividade humana e a adoção de medidas destinadas a salvaguardar o meio ambiente: 1- Forte: postula o impedimento das ações lesivas e a máxima in dubio pro natureza, nesta concepção exige-se prova absolutamente segura de que não haverá danos além dos previstos para liberação de uma nova tecnologia. 2- A concepção fraca leva em consideração os riscos, os custos financeiros e os benefícios envolvidos na atividade, partindo, em regra, de uma ética ambiental antropocêntrica responsável.54
Importante salientar a afirmação de Adércio em que o princípio da precaução está
implícito no art. 225, § 1º, inciso II, da Constituição Federal, pois grande parte da doutrina
entende que este princípio encontra-se na Declaração do Rio de 1992 na qual estabelece:
Princípio 15: De modo a proteger o meio ambiente o princípio da precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental.55
53 SAMPAIO; WOLD; NARDY, 2003, p. 53. 54 SAMPAIO; WOLD; NARDY, 2003, p. 58. 55 CARVALHO, 2002, p. 139.
Mas o princípio da prevenção está claramente estabelecido no art. 225, § 1º, da
Constituição Brasileira, ou seja, “é a forma de antecipar o processo de degradação, já tendo
certeza do que pode advir da atividade ou tecnologia”56. Logo o risco é previsto e prevenido
com as devidas providências que devem ser tomadas, seja no licenciamento ambiental ou
outra forma de antecipar-se ao evento danoso, sabendo-se de suas consequências.
Por sua vez, o princípio da responsabilidade ecológica o autor faz uma junção entre o
princípio do poluidor-pagador e do usuário-pagador, de forma que “[...]Quem causa dano ao
ambiente deve por ele responder[...]”57.
Adércio tem consciência que alguns autores não concordam com sua visão, mas é
plausível sua interpretação, ao englobar qualquer tipo de responsabilidade na perspectiva do
poluidor, ou seja, quem utiliza os recursos naturais deve pagar pelo simples uso, “de forma
que deve-se considerar em seus custos de produção os dispêndios acarretados pelas ações
preventivas e eventualmente compensatórias advindas da operação”58. Mas deve-se atentar
para o detalhe que são tratamentos diferenciados para a compensação, indenização,
prevenção, reparação e mitigação de danos ambientais.
O princípio da informação, também sob o guarda chuva do desenvolvimento
sustentável, é primordial para a segurança da coletividade uma vez que as informações sobre
meio ambiente, licenciamento e localização de passivos ambientais podem salvar vidas.
Adércio informa algumas características básicas desse princípio: “a veracidade, amplitude,
tempestividade e acessibilidade” 59 . O autor explica que dados incompletos ou pouco
acessíveis podem ensejar a inaplicabilidade do princípio.
Por fim, o princípio da participação que em Estados Democráticos é fundamental, este
princípio se mostra mais importante ainda, quando se inicia o trabalho demonstrando toda a
história constitucional brasileira, e o silêncio da representatividade do povo no Parlamento. O
art. 225 deixa explícito a necessidade da participação, tanto do Poder Público como da
coletividade em questões ambientais. Mesmo que fique uma interrogação de como a
coletividade pode participar efetivamente nesse processo, isso ainda tem que ser resolvido.
4 Um novo Direito que tem o poder de salvar o homem do homem, e o ambiente em que
vive
56 SAMPAIO; WOLD; NARDY, 2003, p. 70. 57 SAMPAIO; WOLD; NARDY, 2003, p. 74. 58 SAMPAIO, WOLD; NARDY,2003, p. 75. 59 SAMPAIO; WOLD; NARDY, 2003, p. 77.
Afinal Thomas Hobbes60 tinha razão quando afirmava que o “homem é o lobo do
homem”, logicamente trazendo sua teoria política para o século XXI, portanto
descontextualizado, procedia seu pensamento. E, o homem, para sua maior infelicidade
colocou contra ele toda a natureza.
No entanto, o tempo está a favor de mudanças, e ainda há tempo de salvar a todos.
Talvez alguns achem que não haja mais soluções, pois as mudanças climáticas, consequências
de seus atos, são agora inevitáveis. Não se pode acreditar que o homem seja o causador
sozinho dessas mudanças.
As pesquisas já comprovam que várias tragédias naturais não são de
responsabilidade humana. Um bom exemplo foi o ocorrido no Japão em março de 2011, em
que um tsunami assolou o País. Esse tsunami foi provocado por um terremoto de intensidade
9.0 que chegou a tirar o planeta Terra de seu eixo. Os eventos como tornados, erupções
vulcânicas são ocasionados por forças naturais as quais o homem ainda luta para prevê-los, e
consequentemente sem o poder de provocá-los. Desse modo sempre haverá a interação do que
o homem faz e do que a Terra faz61.
A ciência mostra que o planeta é vivo e algumas transformações abruptas são
provenientes de sua própria natureza. Logicamente, que o homem não pode eximir-se da
poluição, de toda sorte, causada pelo seu modo de desenvolvimento.
Quanto às transformações provocadas pelo homem devido ao sistema capitalista,
deve acertar as contas por suas contradições, ou seja, desconforto da natureza e conforto do
ser humano. Por isso, a importância da mudança de paradigma e de proteção ambiental
porque antes cuidava-se da unidade, hoje cuida-se do todo, na qual evita-se a fragmentação do
bem ambiental.
Para explicar a abordagem integrada da proteção ambiental, ou sistêmica é
necessário também explicar sobre o método reducionista. São paradigmas diferentes e o
representante mais conhecido foi Descartes.
Obviamente, o método reducionista na pesquisa trouxe grandes descobertas, pois o
estudo de um objeto ao fragmentá-lo em tantas partes, quanto possível, foi extraordinário para
60 GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. Trad. Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 84. Hobbes entendia que os homens eram tão iguais, com direitos iguais que essa igualdade predisporia à guerra para defender sua vida a qualquer preço. É um estado de natureza que reina uma hostilidade universal. 61A revista Time enumerou os maiores terremotos ocorridos até hoje, são eles: 1- Chile em 22 de maio de 1960 - 9.5 de magnitude; 2- Alaska em 28 de março de 1964 - 9.2 de magnitude; 3- Sumatra em 24 de dezembro de 2006 – 9.1 de magnitude; 4- Russia em 11 de abril de 1952 – 9.0 de magnitude e 5- Japão em 11 de março de 2011 – 9.0 de magnitude. GIBBS, Nancy. The day the earth moved. Nature’s extremes – Earthquakes, tsunamis and other natural disasters that shape life on earth. New York: Time books, 2011, p. 37.
as descobertas em sua época. No entanto, ao reduzir o objeto, principalmente quanto se trata
de natureza este método é falho, tendo em vista que todas as relações dos animais ou vegetais
com seu habitat, ou seja, as relações interdependentes, ali implicadas, são fundamentais para
compreensão do seu desenvolvimento, e o que pode ser afetado.
Exatamente por essas razões que os legisladores levaram em consideração a
legislação já existente, mas a modificou ou acrescentou detalhes para que abarcasse o que
havia sido fragmentado.
Exemplo dessa concepção foi o Código Florestal de 1965 modificado pela Lei 7.803
de 1989 e Medida Provisória n. 2.166-67 em 2001, para que esse Código correspondesse aos
mandamentos da Constituição de 1988. Umas das mudanças essenciais para proteção de
florestas e rios foi o art. 2º, no qual estabelecia:
Art. 2° Consideram-se de preservação permanente, pelo só efeito desta Lei, as florestas e demais formas de vegetação natural situadas: a) ao longo dos rios ou de qualquer curso d'água desde o seu nível mais alto em faixa marginal cuja largura mínima será: 1 - de 30 (trinta) metros para os cursos d'água de menos de 10 (dez) metros de largura; 2 - de 50 (cinquenta) metros para os cursos d'água que tenham de 10 (dez) a 50 (cinquenta) metros de largura; 3 - de 100 (cem) metros para os cursos d'água que tenham de 50 (cinquenta) a 200 (duzentos) metros de largura; 4 - de 200 (duzentos) metros para os cursos d'água que tenham de 200 (duzentos) a 600 (seiscentos) metros de largura; 5 - de 500 (quinhentos) metros para os cursos d'água que tenham largura superior a 600 (seiscentos) metros; b) ao redor das lagoas, lagos ou reservatórios d'água naturais ou artificiais; c) nas nascentes, ainda que intermitentes e nos chamados "olhos d'água", qualquer que seja a sua situação topográfica, num raio mínimo de 50 (cinquenta) metros de largura; d) no topo de morros, montes, montanhas e serras; e) nas encostas ou partes destas, com declividade superior a 45°, equivalente a 100% na linha de maior declive; f) nas restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues; g) nas bordas dos tabuleiros ou chapadas, a partir da linha de ruptura do relevo, em faixa nunca inferior a 100 (cem) metros em projeções horizontais; h) em altitude superior a 1.800 (mil e oitocentos) metros, qualquer que seja a vegetação; [...].62
Mas tendo em vista os interesses tanto de ruralistas como de ambientalistas houve a
revogação do Código de 1965.
O novo Código Florestal, Lei 12.651 de 2012 sofreu modificações substanciais, com
um retrocesso quanto à proteção das bordas dos rios, mas ainda é proteção sistêmica63, ou
62 BRASIL. Código Florestal. Lei 4.771 de 1965. Disponível em: < www.planalto.gov.br > . Acesso em 02 de agosto de 2012.
63 Percebam que não é o objeto deste artigo entrar no mérito das questões polêmicas, ainda não totalmente resolvidas, do Novo Código Florestal, mas para comprovar o retrocesso quanto à proteção dos rios é notório quando se lê o art. 4º que substitui o art. 2º da Lei revogada: Art. 4o Considera-se Área de Preservação
seja, a preservação do todo pelas partes, mesmo que se encontre no centro de grande
polêmica, quanto à regressão na proteção ambiental em detrimento de produção de alimentos.
Os efeitos e consequências do constitucionalismo de 1988 são significativos e a
mudança na cultura brasileira, em relação à proteção ambiental foi e, é paradigmática.
Partindo de um núcleo de legislação base de Direito Ambiental, quais sejam:
Decreto-Lei 1.413/75, Lei 6.938/81, a Política Nacional de Meio Ambiente e Lei 7.347/85,
Lei da Ação civil Pública estava nesse momento criado as regras nucleares de Direito
Ambiental.
A Lei 6.938 em 1981 não obteve, na época, ou na década de criação o alcance que
deveria, isso ocorreu devido a vários fatores como a necessidade de desenvolvimento do País,
regime militar dentre outros. O importante é que essa Lei fixa orientações, conceitos,
objetivos e instrumentos para a proteção ambiental. Um de seus conceitos principais encontra-
se estabelecido no art. 3º, inciso I: “Meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências
e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em toda
suas formas”64. O conceito de meio ambiente é extraordinário para uma década, que na
verdade, ainda não estava preocupada em realmente proteger o meio ambiente em detrimento
do desenvolvimento.
De toda forma existia um núcleo de regras ambientais, mas faltavam os princípios
retores. A Constituição de 1988 faz exatamente o que Canotilho chamou de “pontos
estruturantes fundamentais de uma constituição: 1- A constituição é a garantia do existente; 2-
A constituição é programa ou linha de direção para o futuro”65. De forma que a Constituição
de 1988 garantiu um Direito Ambiental embrionário e o direcionou para o futuro.
Exemplos de legislações, que foram e são emblemáticas para o Brasil, pode-se citar
de acordo com sua edição no tempo como a Lei 7.802, em 1989, que dispõe sobre a pesquisa,
a experimentação, estabelece o destino final dos resíduos e embalagens, o controle e Permanente, em zonas rurais ou urbanas, para os efeitos desta Lei: I - as faixas marginais de qualquer curso d’água natural, desde a borda da calha do leito regular, em largura mínima de: a) 30 (trinta) metros, para os cursos d’água de menos de 10 (dez) metros de largura; b) 50 (cinquenta) metros, para os cursos d’água que tenham de 10 (dez) a 50 (cinquenta) metros de largura; c) 100 (cem) metros, para os cursos d’água que tenham de 50 (cinquenta) a 200 (duzentos) metros de largura; d) 200 (duzentos) metros, para os cursos d’água que tenham de 200 (duzentos) a 600 (seiscentos) metros de largura; e) 500 (quinhentos) metros, para os cursos d’água que tenham largura superior a 600 (seiscentos) metros; II - as áreas no entorno dos lagos e lagoas naturais, em faixa com largura mínima de: a) 100 (cem) metros, em zonas rurais, exceto para o corpo d’água com até 20 (vinte) hectares de superfície, cuja faixa marginal será de 50 (cinquenta) metros; b) 30 (trinta) metros, em zonas urbanas; [...].(Grifos nosso).
64 BRASIL. Lei 6938 de 1981. Política Nacional de Meio Ambiente. Disponível em: <www.planalto.gov.br>. Acesso em 02 de agosto de 2012. 65 CANOTILHO, J. J. Gomes. Constituição Dirigente e vinculaçnao do legislador- contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Editora Coimbra, 1994, p. 151.
fiscalização de agrotóxicos. Em 1997 foi editada a Lei 9.433 a qual instituiu a Política
Nacional de Recursos Hídricos, e de forma inovadora considera a água recurso natural
limitado e dotado de valor econômico. O Congresso Nacional, em 1998, edita a Lei 9.605 que
dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao
meio ambiente.
A Lei 9.605 ao entrar em vigor se mostra radical quanto as atividades lesivas, mas
foi adequada quanto a sua interpretação.
A educação não poderia ser esquecida e foi então editada a Lei 9.795, em 1999, a
Política Nacional de Educação Ambiental com o objetivo de um ensino integrado, ou seja, de
demonstrar que o meio ambiente tem relações complexas que envolve a ecologia, sociedade,
economia, política e ética. Mas há uma necessidade urgente de ser implementada.
Quanto às Unidades de Conservação no Brasil, elas começaram a ser pensadas nos
idos da década de setenta, com o I Plano Nacional de Desenvolvimento, atrás das legislações
de países como Colômbia, Cuba, Chile, Equador e Peru que já possuíam essa proteção.
Somente em 2000 foi editada a Lei 9.985 que regulamentou o art. 225, § 1º, incisos I, II, III e
VII da Constituição Federal.
Em 2001, após longos 12 anos de tramitação no Congresso Nacional, foi editada a
Lei 10.308 que dispõe sobre o depósito de rejeitos radioativos, tendo em vista o maior
acidente radioativo do Brasil com o césio-137, em Goiânia em 1987.
A história constitucional ambiental que iniciou em 1988 continua com a edição de
leis importantíssimas para a proteção do homem e do ambiente. Sem ter, neste trabalho, a
pretensão de colacionar toda a legislação, finaliza-se com três leis editadas, mais
recentemente, como a Lei 12.187/10 sobre a Política Nacional sobre Mudança do Climática e
seu Decreto regulamentador 7.390 de 2010 que têm como objetivos:
Art. 3º Para efeito da presente regulamentação, são considerados os seguintes planos de ação para a prevenção e controle do desmatamento nos biomas e planos setoriais de mitigação e de adaptação às mudanças climáticas: I - Plano de Ação para a Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal - PPCDAm; II - Plano de Ação para a Prevenção e Controle do Desmatamento e das Queimadas no Cerrado – PP Cerrado; III - Plano Decenal de Expansão de Energia - PDE; IV - Plano para a Consolidação de uma Economia de Baixa Emissão de Carbono na Agricultura; e V-Plano de Redução de Emissões da Siderurgia.
Em 2010 o Brasil editou a Lei 12.305, a Política Nacional de Resíduos Sólidos, uma
das leis mais esperadas por vários anos, tendo em vista que o projeto foi apresentado em
1989, iniciando sua análise em 1991. O motivo da demora deveu-se aos inumeráveis
interesses como ambientais, econômicos e sociais.
Os interesses econômicos são aqueles que interferem no modo de produção de bens
pela indústria e comércio. Agora eles têm responsabilidade compartilhada, logística reversa e
muito mais. A coletividade também tem seus deveres, como reserva o art. 6º do Decreto
7.404/10, ou seja, "os consumidores são obrigados [...] a acondicionar adequadamente e de
forma diferenciada os resíduos sólidos gerados e a disponibilizar adequadamente os resíduos
sólidos reutilizáveis e recicláveis para coleta ou devolução”66.
Os benefícios que se seguiram com o Neoconstitucionalismo de 1988, inclui-se a
criação do Direito Ambiental, proteção ambiental e a edição legislativa no mesmo sentido é
imensurável para o Brasil e brasileiros.
Ao enumerar alguns benefícios da constitucionalização do ambiente também
Benjamin considera que:
[...]por força da constitucionalização, substitui-se o paradigma da legalidade ambiental pelo paradigma da constitucionalidade ambiental. Embora se inclua tal benefício entre os de natureza formal, a verdade é que ele determina uma ambiciosa reestruturação da equação jurídico-ambiental, com implicações muito mais amplas do que uma singela alteração cosmética da norma e da sua percepção social. Constitucionalizar, nesse enfoque, denota que a constitucionalidade toma o lugar da legalidade na função de veículo e resguardo de valores essenciais, firmando-se daí, uma ordem pública ambiental constitucionalizada [...]67.
E entre outros benefícios da constitucionalização do Direito Ambiental pode-se citar
também a inclusão da disciplina em quase todas as Universidades e Faculdades de Direito.
De forma que contribui para a formação do advogado em questões que podem salvar os
homens da degeneração e degradação do meio ambiente.
O meio ambiente é considerado como um direito fundamental e antropocêntrico
flexibilizado, no qual a natureza deve ter seu valor respeitado. Logicamente que existe ainda
um nível de pouca efetividade da legislação, mas existem meios e instrumentos para invocá-
los. O importante é que elas estão à disposição da sociedade.
Em trinta anos as modificações em favor do meio ambiente e consequentemente
favoráveis à vida dos homens são incontestáveis. Como visto, em todo o artigo, a Terra sofre
66 BRASIL. Decreto 7.404 de dezembro de 2010. Regulamenta a Lei 12.305 de 2010. Disponível em: <www.planaldo.gov.br> . Acesso em 02 de agosto de 2012. 67 BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do ambiente e Ecologização da Constituição Brasileira. CANOTILHO, J.J. Gomes; LEITE, José R. Morato (org.). Direito constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 79.
mudanças naturais, mas as mudanças provocadas pelos homens podem ser controladas ou
proibidas para sua própria existência e das gerações futuras.
5 Conclusão
Este trabalho abordou a evolução do constitucionalismo ambiental brasileiro desde
sua primeira norma, a partir de uma análise histórica e jurídica, procurando demonstrar as
principais características de cada constituição no que tange ao Direito Ambiental, mormente,
no que se refere à proteção do meio ambiente e do utilitarismo antropocêntrico.
Foi feita uma análise do texto da norma, através de uma hermenêutica isenta de
preconceitos, sem, abandonar, obviamente, a conjuntura política da época de cada
constituição. Com isso foi demonstrado que, em verdade, o texto da Lei Magna reflete,
inexoravelmente, uma realidade histórica-política da época da outorga ou promulgação do
texto.
Ficou cientificamente demonstrado que as primeiras constituições brasileiras, graças
à ignorância humana ou a sua natureza hobbesiana, sequer se preocupava com o Direito
Ambiental.
De fato, até a nossa atual constituição, o Meio Ambiente nada mais era do que um
detalhe do sagrado Princípio da Propriedade, este sim de importância fundamental e absoluta.
A norma constitucional tinha uma enorme preocupação com a proteção do patrimônio das
pessoas de forma egoística e, olvidava, por completo, de um Direito Difuso que pertence a
todos, denominado Meio Ambiente.
Constata-se pela leitura do texto deste trabalho que as constituições só tratavam do
Meio Ambiente como um corolário da Proteção Patrimonial do indivíduo, ou seja, o mote da
norma constitucional não era a Dignidade das Pessoas e, sim, a propriedade individual e do
Estado.
A Constituição de 1988, fazendo um giro paradigmático, trouxe a Preservação do
Meio Ambiente como uma preocupação em nível de Direito Fundamental de todos os
cidadãos, reduzindo a enorme proteção ao Princípio da Propriedade Privada outrora verificada
nos textos anteriores, determinando que quando o proprietário no exercício do ius utendi e ius
fruendi, lamentavelmente, não se comportar em consonância com um interesse maior de
natureza difusa denominado Preservação do Meio Ambiente para as atual e futuras gerações,
terá que se ajustar, sob pena do cometimento de ilícito, arcando, naturalmente, com a
responsabilização.
Registra-se, portanto, em conclusão, que o texto da Constituição de 1988, bem como
seus princípios implícitos e explícitos de cunho jurídico ambiental, proporcionaram ao mundo
do Direito, uma inversão importantíssima de valoração antropológica, social e jurídica, na
medida que, em detrimento das constituições anteriores, elevou o estudo do Direito Ambiental
a um dos ramos mais importantes da Ciência Jurídica, uma vez que trouxe como fundamento
da República Federativa do Brasil: a Proteção Ambiental.
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A TUTELA CONSTITUCIONAL DO MEIO AMBIENTE E OS DEVERES DE
PROTEÇÃO AMBIENTAL DO ESTADO
CONSTITUTIONAL STEWARDSHIP OF THE ENVIRONMENT AND THE
RESPONSIBILITIES OF THE STATE RELATING TO ENVIRONMENTAL
PROTECTION
Cristina Dias Montipó ∗
Natacha Souza John∗∗
Resumo
Este trabalho apresenta como tema central o estudo da tutela constitucional do ambiente e os deveres de proteção ambiental do Estado. Assim, tem-se por objetivo demonstrar como o ordenamento jurídico estabelece a proteção constitucional do meio ambiente ecologicamente equilibrado, atribuindo a este a condição de direito fundamental em decorrência da sua importância para a fruição da vida com dignidade, bem como identificar o objeto de tutela estatal, os deveres de proteção ambiental do Estado e a proibição de retrocesso em matéria ambiental. Desse modo, utilizando o método hermenêutico de pesquisa pela natureza do estudo desenvolvido, por se adequar aos objetivos propostos e valendo-se da pesquisa bibliográfica como fonte para a formação argumentativa, constatou-se que a despeito da existência do farto conjunto normativo sobre a tutela do ambiente, necessita-se maior efetividade nos instrumentos protetivos, minimizando os riscos que emergem da sociedade.
Palavras-chave: Meio Ambiente. Bem Ambiental. Tutela. Deveres. Estado
Abstract
This paper presents as a central theme the study of constitutional stewardship of the environment and the duties of the state relating to environment protection. The objective is to show how the judiciary establishes constitutional protection of an ecologically balanced environment, by attributing an existential right to the environment in consideration of its importance for all life to flourish. The stewardship role of the state will be demonstrated, ∗ Mestranda em Direito (UCS), área de concentração em Direito Ambiental e Sociedade, na linha de pesquisa Direito Ambiental e Novos Direitos. Especialista em Direito Processual (UCS/CARVI). Bacharela em Direito (UCS/CARVI). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES. Integrante do grupo de pesquisa “Alfabetização Ecológica, Cultura e Jurisdição: uma incursão pelas teorias da decisão” na UCS. E-mail: [email protected] ∗∗ Mestranda em Direito (UCS), área de concentração em Direito Ambiental e Sociedade, na linha de pesquisa Direito Ambiental e Novos Direitos. Graduada pelo Centro Universitário Franciscano – UNIFRA. Advogada. Integrante do grupo de pesquisa “Alfabetização Ecológica, Cultura e Jurisdição: uma incursão pelas teorias da decisão” na UCS. Email: [email protected]
including the State’s duties towards environmental protection and prevention of regression in terms of the environment. Utilizing the hermeneutic research method by way of the developed nature of the study, being sufficient for the objectives proposed and using bibliographical research as a source for argumentative formation, we have discovered that with regard to the existence of a large normative set on environment stewardship, there is a need for more effectiveness by way of protective tools, to minimize the risks that emerge from society.
Key words: Environment. Environmental well-being. Stewardship. Duties. State
Introdução
Frente à exploração inconsequente e demasiada do homem sob os recursos naturais, a
crise ambiental consolida-se como uma crise civilizatória, fruto da relação homem versus
natureza. As modificações geradas na natureza pela atividade humana ameaçam a qualidade
de vida do ser humano e dos demais seres vivos. A poluição e a contínua degradação do meio
em que se vive causa preocupação com a sustentabilidade do planeta.
Se por um lado o modelo capitalista de desenvolvimento trouxe consigo muitos
benefícios, de outro, imensos são também considerados seus impactos negativos no ambiente.
Assim, tornou-se imperiosa a defesa do meio ambiente, e ao ordenamento jurídico coube
reformular parte da construção do regime de bens protegidos pelas leis ambientais, passando o
bem ambiental a ser considerado um valor difuso.
Diante de tais fatos, este trabalho aborda o estudo da tutela constitucional do
ambiente e os deveres de proteção ambiental do Estado. Desse modo, tem-se por objetivo
demonstrar como o ordenamento jurídico estabelece a proteção constitucional do meio
ambiente ecologicamente equilibrado, atribuindo a este a condição de direito fundamental em
decorrência da sua importância para a fruição da vida com dignidade, bem como identificar o
bem ambiental difuso, o dever de proteção do Estado na tutela do ambiente e a proibição de
retrocesso (socio)ambiental.
Para tal, utilizando o método hermenêutico de pesquisa pela natureza do estudo
desenvolvido, por se adequar aos objetivos propostos e valendo-se da pesquisa bibliográfica
como fonte para a formação argumentativa, este é estruturado em três tópicos. No primeiro,
analisar-se-á a proteção constitucional do meio ambiente ecologicamente equilibrado. Após,
será examinado o Direito Ambiental e o ambiente como objeto de tutela estatal. Por fim,
abordar-se-ão os deveres de proteção do Estado e a proibição de retrocesso em matéria
ambiental.
Nesse contexto, torna-se urgente a valorização de estratégias que possam vir a
reverter ou minimizar os efeitos das repercussões lesivas ao ambiente. Através da abordagem
escolhida, buscam-se respostas que auxiliem a vida harmônica entre natureza e sociedade,
visando à inserção do ser humano na grande teia da vida ao lado dos demais seres vivos,
frente às responsabilidades que regem a totalidade da vida.
1 A proteção constitucional do meio ambiente ecologicamente equilibrado
Ao visualizar o artigo 225 da CF/881, constata-se que todos têm direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e também à coletividade o dever de defendê-
lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Isso importa dizer que se optou por um
modelo de tutela ambiental no qual o Estado deixa de ser o exclusivo guardião do meio
ambiente, colocando também a sociedade como responsável pela proteção deste.
O artigo 225 da Carta Magna c/c o art. 5º, § 2º do mesmo diploma legal, traz o direito
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental, ou seja, mesmo esse
dispositivo não se encontrando enumerado especificamente no rol do artigo 5º da
Constituição, rol esse que não é taxativo, o ordenamento jurídico lhe imputou status de direito
fundamental, tamanha sua importância para o desfrute da dignidade humana e bem-estar, para
a manutenção das bases da vida, numa reciprocidade de direitos e deveres, entre Estado e
particulares.
Nesse sentido, Sarlet e Fensterseifer enfatizam:
A CF88 (art. 225, caput, c/c o art. 5º, § 2º) atribuiu à proteção ambiental e – pelo menos em sintonia com a posição amplamente prevalecente no seio da doutrina e da jurisprudência – o status de direito fundamental do indivíduo e da coletividade [...] Há, portanto, o reconhecimento, pela ordem constitucional, da dupla funcionalidade da proteção ambiental no ordenamento jurídico brasileiro, a qual toma a forma simultaneamente de um objetivo e tarefa estatal e de um direito (e dever) fundamental do indivíduo e da coletividade, implicando todo o complexo de direitos e deveres fundamentais de cunho ecológico [...]. [grifo do autor]. 2
Assim, atribui-se ao meio ambiente a condição de direito fundamental em
decorrência da sua incontestável importância para a fruição da vida com dignidade (art. 1º, III, 1BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 02 de julho de 2012. 2SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER Tiago. Direito Constitucional Ambiental: estudos sobre a Constituição, os Direitos Fundamentais e a Proteção do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 91 - 92.
CF). Desse modo, tendo por base os fundamentos do Estado Democrático de Direito, ao qual
indicam a forma de interpretar a aplicação do direito positivo brasileiro, tem-se a dignidade
humana como seu mais importante fundamento, uma vez que a vida – e o direito a ela –
tutelada a partir do patrimônio genético, não basta por si só, sendo necessária a garantia pelo
Estado de todos os demais direitos tidos como essenciais, os chamados direitos sociais,
também denominados direitos de prestações, postos no artigo 6º da CF/88.
Nessa linha argumentativa, ao abordar os direitos e garantias fundamentais no âmbito
constitucional, de modo especial, o direito à vida, artigo 5º, caput, da Carta Maior, leciona
Fiorillo:
O direito à vida da pessoa humana mereceu ainda por parte da Constituição Federal adequada delimitação tendo em vista o fundamento da dignidade da pessoa humana. Uma vida digna é assegurada por direitos essenciais, elementares, básicos, que denominamos piso vital mínimo. Referidos direitos são claramente apontados no art. 6º da Constituição Federal, tais como saúde e moradia, e formam com o patrimônio genético e com os valores imateriais culturais antes descritos a substância do direito à vida da pessoa humana a ser protegido [grifo do autor]. 3
Nessa seara, constata-se ser inviável a sustentação da concepção de que os direitos
fundamentais formam um sistema em separado e fechado no contexto da Constituição.
Cumpre referir que o conceito materialmente aberto de direitos fundamentais consagrado pelo
artigo 5º, § 2º, da Carta Maior, aponta a existência de direitos fundamentais positivados em
outras partes do texto constitucional, em tratados internacionais e para a previsão expressa da
possibilidade de se reconhecer direitos fundamentais não escritos, implícitos nas normas do
catálogo, bem como advindos do regime e dos princípios da Constituição Federal.4
De acordo com Gavião Filho5, além da afirmação da disposição posta no artigo 225
da CF/88 ser uma proposição de direito fundamental expressando a norma do direito
fundamental ao ambiente, deve-se acrescentar que a norma do artigo mencionado vincula
juridicamente a atuação do legislativo com a do Executivo e do Judiciário. A viabilidade de
controle jurisdicional da realização do direito ao ambiente deixa evidente tratar-se de um
direito fundamental.
3 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Princípios do Direito Processual Ambiental. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 50. 4 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 84 - 85. 5 FILHO, Anízio Pires Gavião. O direito Fundamental ao Ambiente e a Ponderação. In: STEINMETZ, Wilson; AUGUSTIN, Sérgio (Orgs.). Direito Constitucional do Ambiente: teoria e aplicação. Caxias do Sul, RS: Educs, 2011. p. 54.
Como se pode constatar o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado conduz a diversas ações por parte do Estado e também dos particulares, aquele
poderá adotar uma postura de não fazer ou de fazer, isto é, tanto negativa, quanto positiva, ou
seja, poderá abster-se de alguma determinada intervenção no ambiente ou ainda poderá, com
o intuito de proteger o indivíduo, titular do direito, ora em tela, agir contra intervenções de
terceiros que sejam prejudiciais, protegendo simultaneamente o meio ambiente e
consequentemente o direito fundamental que lhe é inerente.
Assim, quando abordado o direito fundamental ao ambiente, este aparece numa dupla
perspectiva, sendo ela subjetiva e objetiva, pois tal direito é reconhecido ao mesmo tempo
como um “direito subjetivo” do seu titular e um “valor comunitário”. No tocante a perspectiva
subjetiva cuida-se de reconhecer que os direitos vinculados ao respeito, proteção e promoção
do ambiente, constituem posições jurídicas subjetivas “justiciáveis”, permitindo levar ao
Poder Judiciário, os casos de ameaça ou lesão ao bem jurídico ambiental,6 como dispõe o
artigo 5º, XXXV da Constituição Federal.
Nesse contexto, destaca-se a Ação Popular (artigo 5ª, LXXIII, CF/88) que deixa
transparecer ainda mais a inegável essência de um direito fundamental ao meio ambiente,
quando dispõe, ser qualquer cidadão parte legítima para propor ação popular que tenha por
objetivo anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à
moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, positivando
valores de natureza difusa, não servindo para tutelar interesse individual, permitindo ao
cidadão, além do exercício da via judicial (processual) o exercício da cidadania plena, pois
“(...) por intermédio dos processos coletivos, a sociedade tem podido afirmar, de maneira
mais articulada, seus direitos de cidadania”.7
Outro instrumento utilizado com frequência na defesa do meio ambiente, bem como
para a defesa do consumidor, da ordem econômica, entre outros, é Ação Civil Pública, com
respaldo na Lei n.º 7.347/858, aplicando subsidiariamente os dispositivos do Título III da Lei
8.078/19909 que dispõe sobre a proteção do consumidor (CDC), conforme menciona o artigo
6SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito Constitucional Ambiental: estudos sobre a Constituição, os Direitos Fundamentais e a Proteção do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 54. 7 GRINOVER, Ada Pelegrini. A Ação Civil Pública Refém do Autoritarismo. In: Revista de Processo. REPRO 96. Ano 24. Outubro – Dezembro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 36. 8 BRASIL. Lei n.º 7.347/85. Disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (VETADO) e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7347orig.htm>. Acesso em: 02 de julho de 2012. 9 BRASIL. Lei 8.078/1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078.htm>. Acesso em: 02 de julho de 2012.
21 da Lei da Ação Civil Pública. O artigo 81 do Código de Defesa do Consumidor nos mostra
que a ACP visa à proteção dos interesses ou direitos difusos, dos interesses ou direitos
coletivos e dos interesses ou direitos individuais homogêneos assim, compreendidos os
advindos de origem comum.
Nessa ótica, imprescindível constatar o papel e a legitimidade ampla e irrestrita do
Ministério Público (art. 129, III, CF/88) na defesa do patrimônio público e social, do meio
ambiente e de outros direitos transidividuais (difusos e coletivos), como ocorre na Ação Civil
Pública ou na Ação Popular (como custos legis), cabendo ao MP, dentro de suas funções
institucionais, a legitimação para pleitear uma variedade de procedimentos jurisdicionais.
No que se refere à perspectiva objetiva, há abertura de um leque de projeções
normativas, como o dever fundamental de proteção ambiental conferido aos particulares, o
dever de proteção do Estado na tutela do meio ambiente, as perspectivas procedimental e
organizacional do direito fundamental ao ambiente e a eficácia entre os particulares do direito
fundamental ao ambiente. Esta configuração normativa (dupla perspectiva subjetiva e objetiva
do direito fundamental ao ambiente) forma um sistema normativo integrado e
multidimensional de tutela e promoção do direito fundamental ao meio ambiente, visando à
máxima eficácia e efetividade do direito jusfundamental, ora em tela. 10
Importa consignar, que o direito fundamental ao meio ambiente é um direito de
terceira dimensão, fazendo parte dos chamados direitos de fraternidade ou de solidariedade
(os direitos fundamentais de primeira dimensão são os civis e os políticos; os de segunda
dimensão são os sociais, culturais e econômicos) tal afirmação reside, em conformidade com
Sarlet11, na sua titularidade coletiva, por vezes indefinida e indeterminável, o que se revela,
exemplificativamente, de modo especial no direito ao meio ambiente e qualidade de vida, o
qual, em que pese ficar preservada sua dimensão individual, reclama novas técnicas de
garantia e proteção. Dessa maneira, os direitos de terceira dimensão decorrem de sua
implicação universal ou transindividual, exigindo esforços e responsabilidades em escala
mundial para sua efetivação.
Cumpre registrar, como lembra Benjamin, ao contrário do que se poderia imaginar, o
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado não se esgota no artigo 225, caput,
estando neste dispositivo apenas a sede de sua organização como direito autônomo e de
10SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito Constitucional Ambiental: estudos sobre a Constituição, os Direitos Fundamentais e a Proteção do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 54. 11SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 58 - 59.
caráter genérico. Desse modo, no decorrer do texto constitucional, tal direito aparece
novamente, ora como direito-reflexo (proteção da saúde, do trabalhador, entre outros), ora não
mais como direito per se, mas como preceito normativo de apoio a ele (exemplo, artigo 186,
II, CF). 12
Portanto, de conteúdo amplo, o artigo 225, caput, mostra um direito – fundamental –
pilar estruturante de todos os demais direitos – ambientais – contidos na Carta Magna de
1988, sendo esse direito premissa para a concretização de uma vida digna (artigo 1º, III, CF),
saudável, justa e segura. Em suma, o meio ambiente é um direito fundamental, na medida em
que se mostra essencial para a manutenção das bases da vida, tendo no Estado a fonte dos
instrumentos assecuratórios, conferindo, tanto ao indivíduo quanto à coletividade, o direito
subjetivo a esta proteção.
2 Direito Ambiental: o ambiente como objeto de tutela estatal
O Direito Brasileiro, por intermédio da Lei de Política Nacional do Meio
Ambiente13, n.º 6.938/81, em seu artigo 3º, inciso I, traz a definição legal de meio ambiente
como sendo o “conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e
biológica que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”.
É de se registrar, que esta lei datada de 1981, recepcionada pela Constituição Federal
de 1988, tutela não somente o meio ambiente natural, mas também o artificial, o cultural e o
laboral. Assim, observa-se que a definição de meio ambiente é ampla, devendo-se atentar para
opção do legislador por trazer um conceito jurídico indeterminado, com a finalidade de criar
um espaço positivo de incidência da norma. 14
Nesse contexto, no que concerne especificamente à segunda parte do artigo 225,
caput, da Constituição Federal, quando nos remete ao bem ambiental, não se pode olvidar, em
conformidade com Borges15, que a defesa do meio ambiente fez com que se reformulasse
parte da construção jurídica existente sobre o regime dos bens juridicamente protegidos pela
12 BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do Ambiente e Ecologização da Constituição Brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (Orgs.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 124. 13 BRASIL. Lei n.º 6.938/81. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6938.htm>. Acesso em: 02 de julho de 2012. 14 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 70. 15 BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Função Ambiental da Propriedade Rural. São Paulo: LTR, 1999. p. 99 -100.
legislação ambiental, assim, quando o ordenamento jurídico não protegia o meio ambiente
amplamente, como o faz hoje, o direito tutelava somente bens suscetíveis de apropriação
individual, coletiva ou estatal. A partir da consideração do meio ambiente como
macrorrealidade, o direito assume a tarefa de proteger os bens que interessam a coletividade e
não são passíveis de apropriação individual, sobre os quais passa a incidir uma titularidade
difusa.
É de se atentar que o legislador passou a considerar o ambiente como macrobem por
meio de uma visão globalizada e integrada. Dessa maneira, enxerga-se o ambiente como um
macrobem que, além de bem incorpóreo e imaterial, configura-se como bem de uso comum
do povo, ou seja, o proprietário, seja ele público ou particular, não poderá dispor da qualidade
do meio ambiente ecologicamente equilibrado, devido à previsão constitucional,
considerando-o macrobem cuja titularidade pertence a todos. 16
Importante ressaltar que o legislador constitucional ao colocar o meio ambiente como
res communes omnium, não legitimou, de modo exclusivo, o Poder Público para a sua tutela
jurisdicional civil. Isto é, separou o meio ambiente de uma visão de bem público strictu sensu,
conferindo também, autonomia ao meio ambiente, como bem e como disciplina. Percebe-se
outra distinção no que se refere ao pagamento pecuniário, a título indenizatório dos bens
ambientais. Nestes casos, os montantes arrecadados são depositados em fundo, que não é
administrado unicamente pelo Poder Público. 17
Em conformidade com Morato Leite, não se deve aceitar a qualificação do bem
ambiental como patrimônio público, considerando ser o mesmo essencial à sadia qualidade de
vida e um bem pertencente à coletividade. O bem ambiental (macrobem) é de interesse
público, afeto à coletividade, todavia, a título autônomo e como disciplina autônoma. 18
Silva, ao abordar o objeto da tutela jurídica esclarece que não é tanto o meio
ambiente considerado nos seus elementos constitutivos, pois o que o Direito objetiva proteger
é a qualidade do meio ambiente em função da qualidade de vida. Desse modo, há dois objetos
de tutela: um imediato (qualidade do meio ambiente) e outro mediato (saúde, bem-estar e a
segurança da população). Observa-se que a legislação toma como objeto de proteção não
tanto o ambiente globalmente considerado, mas a tutela da qualidade de elementos setoriais
16 LEITE, José Rubens Morato. Sociedade de Risco e Estado. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato. (Orgs.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 165 -166. 17 Idem, p. 166 - 167. 18 Idem, p. 167.
constitutivos do meio ambiente, como por exemplo, a qualidade do solo, do patrimônio
florestal, da fauna, do ar, da água, entre outros. 19
Referido autor, ao tratar sobre a natureza do patrimônio ambiental, ressalta que a
qualidade do meio ambiente converte-se em um bem que o Direito reconhece e protege como
patrimônio ambiental e expressa que “são bens de interesse público, dotados de um regime
jurídico especial, enquanto essenciais à sadia qualidade de vida e vinculados, assim, a um fim
de interesse coletivo” (grifo do autor).20
Não obstante, os autores que entendem o patrimônio ambiental ser um bem de
interesse público, como no caso, da posição adotada por José Afonso da Silva, para Fiorillo, o
bem ambiental representa um terceiro gênero de bem, não se confundindo com bens privados,
nem com bens públicos. Este expõe ao dizer:
Ao estabelecer a existência de um bem que tem duas características específicas, a saber, ser essencial à sadia qualidade de vida e de uso comum do povo, a Constituição Federal de 1988 (CF/88) formulou inovação verdadeiramente revolucionária, no sentido de criar um terceiro gênero de bem que, em face de sua natureza jurídica, não se confunde com bens públicos e muito menos com bens privados. 21
O autor supramencionado entende ter sido criada uma nova estrutura, por intermédio
da lei 8.078/90 (dispõe sobre a proteção do consumidor), fundamentando a natureza jurídica
de um novo bem, qual seja o bem difuso.
Leciona Fiorillo:
[...] com o advento da CF/88, nosso sistema de direito positivo traduziu a necessidade de orientar um novo subsistema jurídico voltado à realidade do século XXI, tendo como pressuposto a moderna “sociedade de massa” dentro de um contexto de tutela de direitos e interesses adaptados às necessidades principalmente metaindividuais. Foi exatamente via esse enfoque antes aludido que, em 1990, surgiu a Lei federal 8.078, que, além de estabelecer uma nova concepção veiculada aos direitos das relações de consumo, criou a estrutura que fundamenta a natureza jurídica de um novo bem, que não é público, nem privado: o bem difuso [grifo do autor]. 22
Como visto, ao Direito – ambiental – coube à função de tutelar o ambiente e seus
elementos, protegendo o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, imputando aos
19 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 81. 20 Idem, p. 84. 21FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. O bem ambiental pela Constituição Federal de 1988 como terceiro gênero de bem, a contribuição dada pela doutrina italiana e a posição do Supremo Tribunal Federal em face do HC 89.878/10. In: Revista de Direito Ambiental e Sociedade. Universidade de Caxias do Sul. Vol. 1, n. 1 (jan./jun. 2010). Caxias do Sul, RS: Educs, 2011. p. 12. 22 Idem, p. 41.
instrumentos constitucionais (art. 225, § 1º, CF), bem como infraconstitucionais (art. 9º da Lei
nº 6.938/81) a função de assegurar a efetividade desse direito. Rodrigues23 aduz que o direito
ambiental se ocupa da proteção do equilíbrio ecológico, bem de uso comum do povo que o
artigo 225 do texto constitucional menciona. Este é o bem jurídico (imaterial) essencial à vida
de todos. Assim, embora o objeto de tutela do direito ambiental seja o equilíbrio ecológico
(macrobem), ele também cuida da função ecológica exercida pelos fatores ambientais bióticos
e abióticos (microbens).
Quando aborda sobre as normas de proteção do meio ambiente, Derani expõe serem
essas “destinadas a moderar, racionalizar, enfim a buscar uma “justa medida” na relação
homem com a natureza”. 24 Ainda de acordo com a autora,
o direito ambiental é em si reformador, modificador, pois atinge toda a organização da sociedade atual, cuja trajetória conduz à ameaça da existência humana pela atividade do próprio homem, o que jamais ocorreu em toda a história da humanidade. É um direito que surge para rever e redimensionar conceitos que dispõe sobre a convivência das atividades sociais. 25
Observa-se que o Direito Ambiental tem como característica a interdisciplinaridade,
o que permite a união das diferentes disciplinas e a articulação das ciências na consecução de
estratégias de redução dos impactos ambientais, auxiliando no desenvolvimento sustentável.
Considerado ramo autônomo, o direito ambiental possui suas próprias normas e é regido por
princípios próprios. Fiorillo leciona: “o direito ambiental é uma ciência nova, porém
autônoma. Essa independência lhe é garantida porque o direito ambiental possui seus próprios
princípios diretores, presentes no art. 225 da Constituição Federal”. 26
Nesta esteira, Derani diz: “como todo novo ramo normativo que surge, o direito
ambiental responde a um conflito interno da sociedade, interpondo-se no desenvolvimento de
seus atos” (grifo nosso).27 É de se registrar, em sentido contrário, há quem entenda que o
Direito Ambiental não pode ser considerado como um ramo autônomo do Direito, como no
caso de Toshio Mukai.28 Para José Afonso da Silva, o Direito ambiental trata-se de uma
disciplina jurídica de acentuada autonomia, dada a natureza específica de seu objeto 23 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Processo Civil Ambiental. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 46 - 47. 24 DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 55. 25 Idem, p. 56. 26 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p . 77. 27 DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 57. 28 MUKAI, Toshio. Direito ambiental sistematizado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998. p. 10 apud CATALAN, Marcos. Proteção Constitucional do Meio Ambiente e seus Mecanismos de Tutela. São Paulo: Método, 2008. p. 16.
(ordenação da qualidade do meio ambiente com vista a uma boa qualidade de vida), que não
se confunde e também não se assemelha com o objeto de outros ramos do Direito. 29
Constata-se que a proteção ambiental emerge dos diferentes conflitos gerados entre
homem e natureza, sendo que para o Direito (ambiental) cumpre o papel de regular as
relações sociais equilibrando as oposições que se formam e prejudicam os interesses da
coletividade. É de se enfatizar, que nosso sistema positivo pátrio mostra-se abundante em
normas que tutelam o meio ambiente, dedicando a este o Capítulo VI do Título VIII da
Constituição Federal, bem como em leis infraconstitucionais.
Entretanto, necessitamos uma maior efetividade nos instrumentos protetivos do
ambiente minimizando os riscos que emergem da sociedade, pois, estamos todos à mercê de
uma exploração inconsequente dos recursos naturais (finitos) e de um desenvolvimento a
qualquer custo. Pode-se dizer então, que quanto mais a nossa sociedade se mostra complexa,
maior é a necessidade de elaboração de normas na tentativa de tutelá-la.
3 Os deveres de proteção ambiental do Estado e a proibição de retrocesso ambiental
Como aduzido, o artigo 225 da CF c/c o artigo 5º, § 2º do mesmo diploma legal, traz
o direito ao meio ambiente como um direito fundamental, consagrando um direito difuso. Isso
significa dizer que a proteção do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, está
numa reciprocidade de direitos e deveres entre Estado e particulares, estendendo a sociedade
civil o dever de defender e preservar os bens ambientais, não só para as presentes como para
as futuras gerações, conformando o princípio da responsabilidade intergeracional.
Desse modo, o enfoque de direito-dever fundamental encontrado no texto
constitucional, artigo 225, caput, traça um modelo de tutela ambiental que desloca do Estado
a condição de único e exclusivo guardião da Natureza, por força dos seus deveres de proteção
ambiental, dispostos no artigo 225, caput e § 1º, colocando os atores privados, ou seja, toda a
coletividade, no âmbito de responsáveis pela proteção e promoção do ambiente, possibilitando
levar as lesões ao patrimônio ambiental à apreciação do judiciário.30
29 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 41. 30SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito Constitucional Ambiental: estudos sobre a Constituição, os Direitos Fundamentais e a Proteção do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 225 - 226.
Sobre os deveres de proteção do Estado, Fensterseifer31 ensina que estão alicerçados
no compromisso constitucional assumido pelo Estado, através do pacto constitucional, no
sentido de tutelar e assegurar uma vida digna aos indivíduos, o que passa pela tarefa de
promover a realização dos direitos fundamentais, retirando eventuais obstáculos colocados à
sua efetivação.
Observada a dimensão objetiva dos direitos fundamentais e procurando garantir na
sua plenitude o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado a Constituição Federal
impõe ao Poder Público, a utilização de instrumentos que possibilitem a proteção ambiental,
maximizando a sustentabilidade. Tem-se, portanto, no artigo 225, § 1º da Carta Maior, uma
variedade de medidas que buscam a proteção do – direito – meio ambiente, medidas estas que
incumbem ao Poder Público efetivar e promover.
Desse modo, perante a atuação concreta dos órgãos estatais na realização do direito à
proteção do ambiente, o artigo 225, § 1º, CF/88 elenca ao Poder Público uma gama de
incumbências, cabendo destacar, que além das medidas exemplificativas expostas neste rol,
existem outros instrumentos postos na legislação infraconstitucional, o que no seu conjunto
formam os deveres do Estado na tutela do meio ambiente.
Gavião Filho32 ao abordar o direito à proteção do ambiente diz que se trata de direito
a que o Estado realize ações positivas fáticas ou jurídicas delimitando a esfera jurídica de
atuação de terceiros sujeitos de direitos. É observada à realização do direito à proteção do
meio ambiente onde ao Estado é permitido normalizar condutas e atividades prejudiciais ao
ambiente como crimes ambientais ou infrações administrativas impondo sanções penais e
administrativas. O mesmo pode-se dizer quanto às limitações que o Estado impõe ao direito
de propriedade, pois é seu dever adotar medidas positivas para garantir de maneira eficaz a
fruição do ambiente sadio e ecologicamente equilibrado.
Canotilho33 propõe que ao lado, ou em vez de, direito ao ambiente, alude-se a um
direito à proteção do ambiente. A ideia de proteção ao ambiente aponta que o Estado tem o
dever de combater os perigos – concretos – incidentes sobre o ambiente visando assegurar e
proteger outros direitos fundamentais imbricados com o ambiente. De acordo com o
constitucionalista português, o Estado ainda tem o dever de proteger os cidadãos –
31FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos Fundamentais e Proteção do Ambiente: a dimensão ecológica da dignidade humana no marco jurídico-constitucional do Estado Socioambiental de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008. p. 221. 32FILHO, Anízio Pires Gavião. Direito Fundamental ao Ambiente. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 53. 33CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre Direitos Fundamentais. São Paulo: RT; Portugal: Coimbra Editora, 2008. p. 188.
particulares – de agressões ao ambiente e à qualidade de vida perpetradas por outros cidadãos
– particulares.
Nessa linha de ideias, em conformidade com os deveres de proteção – ambiental, o
Estado encontra-se, na seara do que se convencionou dupla face do princípio da
proporcionalidade, entre a proibição de excesso de intervenção e a proibição de insuficiência
de proteção, vinculado a respeitar (sob a ótica negativa ou defensiva) os direitos fundamentais
e (sob a ótica positiva ou prestacional) proteger tais direitos e outros bens constitucionais aos
quais incidem imperativos de tutela. 34
Partindo-se de tal premissa e da perspectiva dos deveres de proteção do Estado – em
matéria ambiental – pode-se dizer que o ente estatal não deve atuar de maneira excessiva a
ponto de intervir gravemente no âmbito de proteção dos direitos fundamentais, ferindo-os em
seu cerne. Observa-se ainda, que não pode o Estado se omitir ou mesmo agir de modo
insuficiente na proteção de tais direitos; se assim o fizer, estará incorrendo em violação de seu
próprio dever constitucional de tutela. Ao Judiciário é atribuído controle e reforma dos atos
em desacordo com a legislação e estejam em descompasso com os deveres do Estado – na
proteção do ambiente.
Nesse contexto, assume relevo o princípio da proibição do retrocesso ambiental.
Sarlet35 ensina que a proibição de retrocesso assume feições de princípio fundamental
implícito; pode ser reconduzido tanto ao princípio do Estado de Direito (proteção da
confiança e da estabilidade das relações jurídicas inerentes à segurança jurídica), quanto ao
princípio do Estado Social, assegurando a manutenção dos graus mínimos de segurança social
alcançados, sendo, de resto, corolário da máxima eficácia e efetividade das normas de direitos
fundamentais sociais e do direito à segurança jurídica, bem como da dignidade da pessoa
humana.
Em linhas gerais, a proibição de retrocesso atua como garantia constitucional do
cidadão contra a ação do legislador e da Administração Pública, com o objetivo de
salvaguardar os direitos fundamentais consagrados pela Constituição Federal, atuando como
34 SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Notas sobre os Deveres de Proteção do Estado e a Garantia da Proibição de Retrocesso em matéria Socioambiental. In: AUGUSTIN, Sérgio; STEINMETZ, Wilson. (Orgs.) Direito Constitucional do Ambiente: teoria e aplicação. Caxias do Sul, Educs, 2011. p. 14 - 15. 35 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 459.
baliza para a impugnação de medidas que impliquem supressão ou restrição de direitos
fundamentais (liberais, sociais e ecológicos).36
Nesse cenário, sustenta-se a ampliação da incidência do instituto da proibição de
retrocesso para além dos direitos sociais, contemplando os direitos fundamentais em geral, o
que inclui o meio ambiente. A garantia da proibição do retrocesso socioambiental seria
concebida sob a perspectiva de que a tutela normativa ambiental deve operar de maneira
progressiva no âmbito das relações socioambientais, visando à ampliação da qualidade de
vida, atendendo padrões cada vez mais rigorosos de proteção da dignidade humana, não
permitindo o retrocesso, em temos normativos, a um nível de proteção inferior ao existente na
atualidade. 37
Molinaro38 prefere a expressão princípio de proibição de retrogradação
socioambiental ao invés de princípio do retrocesso ambiental. Entende o autor que retrogradar
expressa melhor a ideia de retroceder, de ir para trás, no tempo e no espaço. O direito
ambiental traz a ideia de proteger, promover e evitar a degradação do ambiente, coibindo a
retrogradação que expressa violação dos direitos humanos e transgressão a direitos
fundamentais, assim, o objeto do princípio de proibição da retrogradação socioambiental
constitui-se na vedação da degradação ambiental. De acordo com Molinaro, ao se atingir um
estado superior, não se deve regressar a estágios inferiores, de modo que, em matéria
socioambiental não se deve autorizar o movimento de recuo, o declínio, o deslocamento para
trás.
Todavia, essa regra não pode ser encarada como absoluta, cabendo o exame in casu,
pois o retroceder – ambiental, não raras vezes, poderá beneficiar o interesse da coletividade na
busca do ambiente sadio e da qualidade de vida (artigo 225, caput, CF). Molinaro39 explica
que, o princípio de retrogradação socioambiental deve ser contextualizado e relativizado, de
modo a não obstaculizar aquisições posteriores de maior qualidade de vida, pois o princípio
de proibição da retrogradação também tem seus limites, não podendo imobilizar o progresso
ou o regresso quando este se fizer necessário com a razão do princípio de proibição da
retrogradação ambiental.
36 SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito Constitucional Ambiental: estudos sobre a Constituição, os Direitos Fundamentais e a Proteção do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 196 - 197. 37 Idem, p. 199 - 200. 38 MOLINARO, Carlos Alberto. Direito Ambiental: proibição de retrocesso. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 67 - 68. 39 Idem, p. 80 - 81.
O que não se permite, observado os grandes avanços normativos em matéria
ambiental e a abundância de normas protetivas do ambiente, a supressão ou vedação pelo
legislador de direitos e garantias já conquistadas, retrocedendo a um estado primitivo,
retornando à condição ambiental de proteção inferior daquela desfrutada atualmente. Pode-se
dizer que isso funcionaria como uma espécie de “direito adquirido em matéria ambiental”,
artigo 5º, XXXVI, da Constituição.
Tal afirmação pode ser constatada nas conquistas da Carta Maior de 1988, que para
além da efetivação e ampliação dos direitos sociais e das conquistas no meio ambiente
laboral, houve a constitucionalização dos direitos transindividuais (difusos e coletivos) e a
efetivação dos mecanismos de tutela coletiva, como a ação civil pública.
Nesse sentido, Grinover lembra: “a tutela jurisdicional dos interesses difusos,
coletivos e individuais homogêneos representa, neste final de milênio, uma das conquistas
mais expressivas do Direito brasileiro”.40 Outros instrumentos podem ser citados, habeas data,
mandado de injunção e os mecanismos de controle de constitucionalidade dos preceitos
normativos e das omissões legislativas.
Ademais, a leitura da doutrina constitucional moderna afirma que estamos trilhando
no caminho da ampliação do âmbito de proteção da dignidade da pessoa humana (artigo 1º,
III, CF/88), segundo o qual não cabe mais retroceder.
Considerações Finais
A defesa do meio ambiente tornou-se indispensável e o ordenamento jurídico
atribuiu à proteção ambiental o staus de direito fundamental, reformulando parte da
construção jurídica existente do regime de bens protegidos pela legislação ambiental,
passando a incidir sobre os bens ambientais uma titularidade difusa, cabendo ao Estado, face
aos deveres de proteção ambiental, assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem como a proibição de retrocesso em matéria ambiental.
Não obstante os autores que entendem o patrimônio ambiental ser um bem de
interesse público, parte da doutrina entende ser o bem ambiental um terceiro gênero de bem,
não se confundindo com bens privados, nem com bens públicos, qual seja: o bem difuso.
Constata-se, pela análise deste posicionamento que estamos ultrapassando a visão de que o
40 GRINOVER, Ada Pellegrini. A Ação Civil Pública no STJ. In: Revista de Processo. REPRO 99. Ano 25. Julho – Setembro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 09.
ambiente é patrimônio público e ao que tudo indica a tendência da jurisprudência atual é
acompanhar tal interpretação.
A conscientização globalizada acerca da importância do meio em que se vive,
agregada a valores de solidariedade e de participação, numa reciprocidade de direitos e
deveres entre Estado e particulares, bem como a efetivação dos instrumentos ambientais,
possibilitam uma maior proteção do meio ambiente e dos elementos que o compõem e,
consequentemente a salvaguarda do direito ecologicamente equilibrado.
Ao Direito – ambiental – coube o papel de regular as relações sociais equilibrando as
oposições que se formam e prejudicam os interesses da coletividade, bem como instituir
medidas que desencorajem condutas e atividades lesivas ao ecossistema, promovendo e
protegendo o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Todavia, a despeito da existência do farto conjunto normativo sobre a tutela do
ambiente, necessitamos maior efetividade nos instrumentos protetivos minimizando os riscos
que emergem da sociedade, pois, estamos todos à mercê da exploração inconsequente dos
recursos naturais (finitos) e de um desenvolvimento a qualquer custo que cada vez mais
privilegia o capitalismo, o consumo e o individualismo. Portanto, faz-se imperioso a
construção de um novo pensar por intermédio da reflexão e da ponderação, no sentido do
resgate do ser.
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SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2002.
ÉTICA AMBIENTAL E O VALOR DO MUNDO NATURAL
ENVIRONMENTAL ETHICS AND THE VALUE OF THE NATURAL
WORLD
Daniel Braga Lourenço1
“The Earth was alive, vastly less alive than ourselves in degree, but vastly
greater than ourselves in time and space – a being that was old when the
morning stars sang together, and, when the last o us has been gathered unto
his fathers, will still be young”.
Peter D. Ouspensky (1878-1947)2
Sumário: 1. Introdução. 2. Ampliação dos horizontes da moralidade. 3. Conservacionismo e
ambientalismo: faces da mesma moeda? 4. Direitos naturais e direitos da natureza. 5. O
animismo e o organicismo: a caminho do ecocentrismo. 6. O biocentrismo entra em cena na
sua forma mitigada. 7. A ampliação continua: as posições ecocêntricas. 8. Conclusão. 9.
Referências bibliográficas.
Resumo: Este texto veicula algumas reflexões sobre a história do ambientalismo e as
implicações da ideia de que a moralidade deveria incluir a relação do homem para com o
mundo natural. Centrando atenção na história intelectual moderna, ilustra o surgimento da
crença de que a ética deve ser ampliada para novas fronteiras como é o caso da efetiva
preocupação com os animais, plantas, rochas, e o mundo natural como um todo, ou o próprio
meio ambiente. Os objetivos centrais do artigo são o de demonstrar a falência do paradigma
antropocêntrico e o de estimular o debate sobre os complexos problemas que surgem quando
o desejo de proteção do mundo natural entra em conflito com outros valores sociais e outras
demandas igualmente protegidas por direitos. 1 Daniel Braga Lourenço é Doutorando em Direito pela Universidade Estácio de Sá –UNESA/RJ, Professor de Direito da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ, da Pós-Graduação em Direito Ambiental da PUC-Rio e Professor Visitante do Programa de Direito Ambiental BAILE da Pace Law School (White Plains – EUA). 2 OUSPENSKY, Peter D. Tertium Organum: The Third Canon of Thought, A Key to the Enigmas of the World. New York: Kessinger Publishing, 1981. p. 125.
Palavras-chave: Ética Ambiental; Sustentabilidade; Ecocentrismo; Ecologia Profunda;
Biocentrismo; Direito dos Animais.
Abstract: This paper brings some reflections about the environmentalism history and
implications of the idea that morality ought to include the relationship between the human and
the nohuman world. Focusing on modern intellectual history, it traces the relatively new
emergence of the belief that ethics should expand to include an effective concern for animals,
plants, rocks and even nature as a whole, or the environment, in general. The main goal of the
article is to demonstrate the downfall of the antropocentric paradigm and to stimulate debate
on the complex problems that arise when the impulse to protect and cherish the natural
environment comes in conflict with other social values and competing claims of rights.
Keywords: Environmental Ethics; Sustainability; Ecocentrism; Deep Ecology; Biocentrism;
Animal Rights.
1. Introdução
A consolidação teórica dos direitos fundamentais a partir da década de setenta
coincidiu com a emergência temática do direito ambiental, face as exigências da
complexidade social3 aliada à crescente crise ambiental, derivada, principalmente, das ações
antrópicas sobre o meio ambiente.
Tendo em vista esses fatores, na última metade do século XX, influenciadas pelas
convenções internacionais e declarações sobre o meio ambiente, várias constituições
internalizaram o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como um autêntico
direito fundamental, reconhecendo a importância da manutenção e preservação da qualidade
ambiental para o desenvolvimento humano, nas suas mais variadas dimensões.
A par desse desenvolvimento teórico de consolidação da importância do direito
ambiental como um ramo autônomo do Direito, e de sua inafastável correlação com os
3 No cenário dos problemas ambientais e ecológicos predomina, segundo Ulrich Beck, a denominada “sociedade de risco” (BECK, U. Risk society: towards a new modernity. Londres: Sage Publications, 1992) . Nela, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia acarretam a disseminação e a distribuição não previsível dos riscos (caracterização da incerteza), sem respeito a eventuais diferenças sociais, econômicas ou geográficas. A humanidade, de uma forma ou de outra, sempre conviveu com riscos, mas a especificidade, origem e abrangência dos riscos ambientais é fruto do que Giddens denomina de “incerteza manufaturada” (BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Reflexive Modernization: Politics, Traditions And Aesthetics In The Modern Social Order. Cambridge: Polity Press, 1994) o que sobreleva a importância dos mecanismos de informação e de tentativa de controle por meio justamente da prevenção dos riscos.
direitos fundamentais, deixou-se de lado a discussão e o debate sobre o valor moral e jurídico
da natureza e de seus elementos. Isso significa dizer que a qualidade ambiental, embora
elemento integrante do princípio da dignidade da pessoa humana4, é enxergada somente sob a
perspectiva do bem-estar existencial do próprio homem.
Assim é que a adoção do marco jurídico-constitucional socioambiental resulta de um
projeto político de consolidação dos direitos humanos sob o enfoque do desenvolvimento
sustentável. A própria ideia de sustentabilidade, com a tutela integrada do ambiente e dos
direitos individuais e sociais, embora extremamente importante, resulta na promoção de uma
existência humana digna, relegando o meio ambiente como mero meio para tanto e, não,
como um fim em si mesmo, ou seja, a natureza e seus componentes bióticos são classificados
dogmaticamente como instrumentos de promoção da qualidade de vida do ser humano, com
valoração moral meramente reflexa ou indireta. De acordo com esse entendimento prevalente,
o âmbito de proteção do direito à vida, assim como o próprio conceito de mínimo existencial
material, diante do quadro de risco ambiental, projeta sua eficácia em direção ao homem e
somente a ele.
De acordo com esta visão predominante, a natureza jurídica de propriedade da
natureza, objetivada, coisificada, não desaparece, portanto, com a passagem do Estado Liberal
para o Estado Socioambiental de Direito. Aliás, a esse respeito, cabe constatar que o modelo
clássico do liberalismo, tal qual formulado, entre outros, por Locke, Rousseau e Kant, elege,
de forma genérica, como pré-condição para a participação na comunidade moral a posse da
“autonomia” e da autoconsciência (ou consciência de si). Esta tese, largamente aceita, até os
dias de hoje, adota, implicitamente a concepção de oikeiosis (pertencimento) estóica5, por
meio da qual a participação na arena política e moral estava adstrita aos seres racionais e
linguísticos. Conforme mencionado, a natureza, e seus elementos constituintes, estariam,
portanto, de acordo com esta lógica, alijados, por princípio, da possibilidade de possuírem
valoração moral própria, inerente. A ecologia penetrou a dignidade do homem, mas o
conceito de dignidade não foi, via de regra, ampliado para abraçar outras dimensões que não
as estritamente humanas.
4 Segundo afirma o Professor Dr. Vicente Barreto, “a ideia de que a pessoa possui uma dignidade que lhe é própria deita raízes na história da Filosofia Ocidental. Antes mesmo do texto clássico de Picco de la Mirandola, Discurso sobre a dignidade do homem (1486), a questão encontrava-se na obra de Aristóteles, Santo Agostinho, Boécio, Alcuino e Santo Tomás, indicando como através dos tempos agregaram-se valores à ideia de pessoa, que terminaram por objetivas a ideia de dignidade humana” (BARRETO, Vicente de Paulo. O Fetiche dos Direitos Humanos e outros temas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 58). 5 Sobre o conceito de oikeiosis e sua influência no pensamento filosófico relativamente aos animais não humanos e à natureza, v. STEINER, Gary. Anthropocentrism and its discontents: the moral status of animals in the history of western philosophy. University of Pittsburgh Press, 2005.
O paradoxo desta constatação é o de que a expansão conceitual da dignidade
humana, a rigor, traz em si, um conteúdo de exclusão do não humano, dado que somente o
homem participa da subjetividade.
Nesta linha, a despeito da constitucionalização das normas ambientais, e de todo o
arcabouço normativo existente em favor da tutela do meio ambiente, o novo modelo de
Estado Socioambiental carrega em seu âmago o mesmo paradigma antropocêntrico, ou seja,
traz em si uma limitação teórica que projeta o homem como sendo o único ente merecedor de
atenção moral e jurídica6.
O objeto do presente trabalho é analisar o surgimento das alternativas teóricas
existentes relacionadas ao valor do meio ambiente e de seus componentes essenciais,
principalmente me razão do fato de que o atual modelo vem demonstrando sinais óbvios de
esgotamento no que se refere à real promoção da tutela efetiva destes elementos.
2. Ampliação dos horizontes da moralidade
A humanidade vem sofrendo sucessivos “descentramentos” ao longo da sua história,
descentramentos estes que corroem, paulatinamente, o antigo edifício do antropocentrismo. A
crença de que o homem constitui o centro de toda sorte de preocupação sofreu seu primeiro
abalo com Copérnico (1473-1543), que logrou retirar do imaginário popular a Terra como
centro do universo7. A segunda poderosa “virada” veio com Darwin (1809-1882) por meio da
demonstração científica da natureza animal do homem, pela qual as diferenças entre ele e os
outros animais são apenas de grau e não de categoria. Assim sendo, não ocuparíamos lugar
privilegiado ou especial na alardeada “ordem da criação”. O terceiro confronto em relação ao 6 Segundo afirma o Professor Fernando Araújo, “as concepções teleológica e hierárquica da natureza e das relações sociais já levaram, ao longo da história – e desgraçadamente levam ainda –, a diversas afirmações que não se confinam ao estatuto dos não-humanos, e que hoje se revelam patentemente absurdas: a ‘ilusão finalista’ de que as marés existem para propiciar a entrada e saída dos navios dos portos, de que os papagaios e os touros só existem para nosso entretenimento, de que as árvores só existem para nos proporcionar sombra e frutos, de que os suínos só existem para nossa alimentação e os cavalos para nosso transporte, de que algumas raças humanas são inferiores e estão predispostas ao serviço das outras, de que as mulheres existem para servir os homens ou para agradar-lhes. Proposições teleologistas que não se distinguem das classificações propostas por Aristóteles, as quais, ao admitirem uma escala de participação na ‘alma racional’ a partir de uma base de teleologismo antropocêntrico e androcêntrico, subalternizavam a condição das mulheres e tornavam concebível a condição de ‘escravo natural’, de alguém naturalmente predisposto à servidão, dentro da própria espécie humana (ARAÚJO, Fernando. A Hora dos Direitos dos Animais. Lisboa: Almedina, 2003. p. 53). 7 Há quem repute a Aristarco de Samos (séc. 3 a.C) a origem da noção de que a Terra gira em torno do Sol (a afirmação heliocêntrica de Aristarco é conhecida por meio de uma referência feita por Arquimedes no Arenarius). Ainda assim, a teoria heliocêntrica só ganharia o devido reconhecimento mais de mil anos depois, com Copérnico. Suas ideias foram apresentadas oficialmente com a publicação de sua obra As Revoluções dos Orbes Celestes em 1543, por meio da qual se combateu a tradicional concepção geocêntrica de Ptolomeu. Posteriormente, a concepção de Copérnico foi complementada pela noção de “universo infinito” de Giordano Bruno (1548-1600) que, entre outras inovações, postulava pela “pluralidade de mundos habitados” (teoria originalmente sustentada por Nicolau de Cusa em 1440).
antropocentrismo veio nos séculos XIX e XX com as obras de Marx (1818-1883) e Freud
(1856-1939) que questionaram a crença iluminista no “poder absoluto da razão”. Marx, por
meio da teoria do materialismo histórico, explicitou que as nossas crenças (morais, religiosas,
filosóficas e políticas) e nosso comportamento são diretamente relacionados à posição social
ocupada pelo indivíduo e às relações de trabalho e produção subjacentes. A razão, sob esta
ótica, não é inteiramente fruto da liberdade individual, mas, sim, dos valores subliminarmente
incorporados pelas pessoas no jogo do processo produtivo (poder da ideologia). Freud, por
sua vez, representa a descoberta do inconsciente pela psicologia8, de tal sorte que a razão não
seria senhora absoluta da conduta humana. Grande parte de nosso comportamento seria
governado e determinado por forças inconscientes (poder do inconsciente)9. Paralelamente, os
neurocientistas tendem a romper com o paradigma da mente como “tábula rasa” e apelam
cada vez mais para estudos direcionados à importância e influência dos efeitos genéticos
sobre a cognição e o intelecto10. A sucessiva derrubada da “arrogância humana” continua com
os paleontologistas que, de acordo com a feliz expressão cunhada por John McPhee,
descobriram a realidade do “tempo profundo”11. Nesse sentido, Stephen Jay Gould (1941-
2002) alerta para o fato de que “a existência humana preenche apenas o último
micromomento do tempo planetário – um centímetro ou dois do quilômetro cósmico, um
minuto ou dois do ano cósmico”12.
Ao lado desses mencionados “descentramentos”, a constatação de que a relação
homem-natureza não é apenas uma relação biológica, natural, mas também moral, ética, faz
parte de um movimento de contínua expansão de nossos horizontes morais que possui como
marco inicial o alargamento da consideração moral para além do próprio indivíduo (“eu”). Em
uma progressão contínua, essa expansão das esferas da moralidade envolveu a superação dos
limites da preocupação ética com os membros de uma mesma família, de uma determinada
tribo ou comunidade, das pessoas que convivem numa determinada região e até da própria
8 Alguns sustentam que antes mesmo do surgimento das teorias freudianas, Schopenhauer (1788-1860) teria descoberto o “poder do inconsciente” ao afirmar que seríamos dominados por grandes forças biológicas, nos iludindo achando que escolhemos conscientemente o que fazemos. 9 “Mas a megalomania humana terá sofrido o seu terceiro e mais contundente golpe da parte da pesquisa psicológica atual, que procura provar ao ego que nem mesmo em sua própria casa é ele quem dá as ordens, mas que deve contentar-se com as escassas informações do que se passa inconscientemente em sua mente” (FREUD, Sigmund. Pensamento Vivo. São Paulo: Martin Claret, 2005. p. 59). 10 PINKER, Steven. Tábula Rasa. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 11 A geologia impõe a aceitação da inafastável vastidão do tempo. Assim sendo, a ideia de “tempo profundo” (deep time) está diretamente relacionada ao fato de que a vida humana representa um mero flash na sequência cronológica dos eventos naturais. Essa limitação temporal reduz significativamente a ingênua supervalorização da vida humana. 12 GOULD, Stephen Jay. Lance de Dados. Tradução de Sergio Moraes Rego. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 34.
nação. Mais recentemente, principalmente a partir do século XIX, as barreiras relacionadas à
“raça” (etnia) ou gênero (sexo) foram também questionadas e, felizmente, rompidas.
Nesta linha, apenas dois anos após a ratificação da 13ª Emenda à Constituição norte-
americana, que aboliu a escravidão naquele país, John Muir, em 1867, já propunha o respeito
aos “direitos de todo o restante da criação”13. Pouco depois, em 1915, Albert Schweitzer
lançava as bases do que denominou de teoria da “reverência pela vida”14 e, no mesmo ano, o
botânico Liberty Hyde Bailey conclamava pelo respeito à integridade de toda a terra15. Em
1940 Aldo Leopold sustentava abertamente uma visão holística com sua “Ética da Terra”
(land ethic)16 posicionando-se contra o que afirmava ser a “escravização do mundo”17.
Este nascente movimento ecológico é marcado, portanto, por um rompimento
paradigmático com as fronteiras tradicionais que limitavam, até então, a consideração moral à
vida humana. É flagrante seu compromisso para com a erradicação do que o Michael Cohen
denomina de “preconceito contra a natureza”18, atitude que remete a uma consciente e
artificial separação do homem do restante dos entes naturais. Psicologicamente significa um
afastamento combinado com uma lógica de dominação que pode ser identificado em outros
fenômenos sociais como é o caso do racismo, do sexismo e do elitismo19.
13 MUIR, John. A Thousand-Mile Walk of the Gulf. Boston: William F. Bade, 1917. p. 324. 14 SCHWEITZER, Albert. Out of My Life and Thought: An Autobiography. New York: John Hopkins University Press, 1998. 15 BAILEY, Liberty Hyde. The Holy Earth. New York: Dover Publications, 2009. 16 LEOPOLD, Aldo. The Sand County Almanac. New York: Ballantine Books, 1966 (primeira edição em 1949). 17 LEOPOLD, Aldo. “The Conservation Ethic”, Journal of Forestry, n. 31, 1933, p. 635. 18 COHEN, Michael J. Prejudice Against Nature: a Guidebook for the Liberation of Self and Planet. Freeport, Maine: Cobblesmith, 1983. 19 A mesma lógica proposta por Cohen existe em relação a o fenômeno designado por “especismo”. O termo “speciesism” (equivalente em português a “especismo” ou “especiesismo”) foi originariamente cunhado por Richard D. Ryder, psicólogo e professor da Universidade de Oxford, no artigo intitulado “Experiments on Animals”, datado de 1970, e posteriormente publicado como parte do livro Animals Men and Morals (Godlovitch, Godlovitch and Harris, 1971). A consolidação do termo veio com a publicação do livro Victims of Science: the Use of Animals in Research (1975). O referido autor utilizou o neologismo para designar uma forma de injustiça que significa tratamento diferenciado para aqueles que não integram a mesma espécie. Ryder procurava, então, traçar um paralelo de nossas atitudes perante as demais espécies e as atitudes racistas e sexistas. Segundo o autor, todas essas formas de discriminação são fundamentalmente baseadas em características arbitrárias sendo, por tal motivo, insustentáveis: o “especismo se presta [...] para descrever a discriminação generalizada praticada pelo homem contra outras espécies, e para estabelecer um paralelo com o racismo. Especismo e racismo são formas de preconceito que se baseiam em aparências. Se o outro indivíduo tem um aspecto diferente deixa de ser aceito do ponto de vista moral. O racismo é hoje condenado pela maioria das pessoas inteligentes e compassivas e parece simplesmente lógico que tais pessoas estendam também para outras espécies a inquietação que sentem por outras raças. Especismo, racismo (e até mesmo sexismo) não levam em conta ou subestimam as semelhanças entre o discriminador e aqueles contra quem este discrimina. Ambas as formas de preconceito expressam um desprezo egoísta pelos interesses de outros e por seu sofrimento” (RYDER apud FELIPE, Sônia T. Crítica ao Especismo na Ética Contemporânea: a Proposta do Princípio da Igual Consideração de Interesses. Disponível em: <http://www.vegetarianismo.com.br>. Acesso em: 08 nov. 2005). Posteriormente, Ryder publicou outras obras tais como Animal Revolution: Changing Attitudes Towards Speciesism, (Oxford: Basil Blackwell, 1989) e The Political Animal: The Conquest of Speciesism (Jefferson-USA: McFarland & Company Inc., 1998). Outros brilhantes autores começaram, a partir daí, a fazer uso desta
Da “ecologia profunda” (deep ecology) de Arne Naess20, à “democracia ambiental”
de Gary Snyder21, passando pela remodelação do sistema constitucional proposta por David
Favre22 e por ações judiciais de cunho marcadamente ecocêntrico23, temos formado um
arcabouço teórico que pretende rever a posição do homem e da própria natureza.
3. Conservacionismo e ambientalismo: faces da mesma moeda?
Quando Gifford Pinchot, primeiro chefe do Serviço Florestal norte-americano, em
1907, delimitou o que denominou de “conservacionismo”, a ideia utilitária e antropocêntrica
do meio ambiente já tinha raízes profundas. Daí a razão pela qual o significado do termo não
estar relacionado propriamente com a efetiva proteção ou preservação do meio ambiente. A
ideia é a de controle da natureza com a utilização racional e eficiente dos recursos naturais24
com o propósito de servir às necessidades humanas25.
nomenclatura para designar o fenômeno de colocação do ser humano como “o ápice da cadeia evolutiva” em detrimento dos outros seres vivos. O próprio Peter Singer, em sua obra Animal Liberation (1975), ressalta que deve a utilização do termo “especismo” a Ryder, muito embora lamente o fato de o termo speciesism e não speciesm já ter sido incorporado oficialmente pela Enciclopédia Britânica. Nesse mesmo ano de 1975, o renomado psicológo inglês Stuart Sutherland (1927-1998), também professor da Universidade de Oxford, optou por designar como “espécie-centrismo” a atitude de arrogância e egoísmo inatos que faz com que se atribua consciência e autopercepção unicamente à nossa espécie (cf. The Times Literary Supplement – TLS de 26 de dezembro de 1975). O vocábulo encontra-se dicionarizado em THE OXFORD ENGLISH DICTIONARY (2ª edição, Oxford: Clarendon Press, 1989), assim como no WEBSTER ENCYCLOPEDIC UNABRIDGED DICTIONARY (New York: Random House Value Publishing Inc., 1996). Entre nós, temos a sua presença no DICIONÁRIO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA (Rio de Janeiro: Objetiva, 2001). Em tal obra, optou-se por “especiesismo”, que tem por significado: “s.m. (1973) 1. preconceito ou discriminação com base na espécie <e. contra os lobos>; 2. pressuposto da superioridade humana no qual se baseia o especiesismo (acp.1). ETM ing. speciesism (1973) ‘id., der. de species, ver espec-’“ (HOUAISS, op. cit., p. 1.226). 20 NAESS, Arne. “The Shallow and the Deep, Long-Range Ecology Movement: A Summary”, Inquiry, n. 16, 1973. 21 SNYDER, Gary. “Energy Is Eternal Delight”, The New York Times, jan. 12, 1973. 22 Favre propõe uma emenda à Constituição norte-americana com o seguinte teor: “todos os animais selvagens não podem ser privados de sua vida, liberdade ou habitat sem o devido processo legal” (FAVRE, David. “Wildlife Rights: The Ever-Widening Circle”, Environmental Law n. 9, 1979, p. 279). 23 Em 1972, Christopher D. Stone, professor de direito da Universidade da Carolina do Sul, publica interessante estudo intitulado “Should Trees Have Standing?” (New York: Oceana Publications, 1996). O trabalho de Stone foi posteriormente utilizado para fundamentar a demanda Sierra Club v. Morton, 405 U.S. 727 (1972), na qual se discutia a legalidade da construção de um resort pela Walt Disney Enterprises Inc. em área de floresta nativa das montanhas de Sierra Nevada (Califórnia). Stone sustenta que tanto o parque ecológico quanto as árvores do local poderiam participar do polo ativo da referida ação judicial. 24 A própria terminologia de “recursos naturais” revela a mentalidade utilitária e desenvolvimentista do período. A preservação do meio ambiente era vista somente como um meio de aumentar sua produtividade. 25 Uma breve passagem da carta de James Wilson, Secretário da Agricultura no período de 1897 a 1913 deixa claro a ideia embrionária de “desenvolvimento sustentável” dentro desta mentalidade utilitária, segundo a qual “na administração das reservas florestais, deve restar induvidoso que toda a terra é destinada a seu uso mais produtivo possível com o fim de proporcionar o bem-estar da população [...]. Todos os recursos das reservas destina-se ao uso, e este uso deve ser feito racionalmente de modo a garantir a sua permanência” (WILSON apud FINKMOORE, Richard J. Environmental Law and The Value of Nature. Durham, NC: California Academic Press, 2010. p. 88).
Esse conceito de conservação coincide com o início da rápida urbanização e
industrialização ocorridas a partir de 1880 até meados da década de 20. Duas guerras
mundiais e a Grande Depressão canalizaram a atenção e a energia do povo americano durante
as duas décadas seguintes, o que não significa inércia. Em 1946, vinte e um estados já
possuíam legislação de combate à poluição das águas26 e já há um número expressivo de
organizações não-governamentais com um olhar específico sobre os dilemas ambientais27.
O pós II Guerra Mundial foi marcado pela pujança econômica, alimentada pelos
enormes gastos militares, pela explosão de novas tecnologias e pelo surgimento de uma
cultura urbana centrada na utilização do automóvel28. Todos esses fatores trouxeram
modificações drásticas na esfera da produção e consumo, bem como impactos ambientais
relevantes, já que a relação entre abundância e acesso a recursos naturais é direta.
Além da poluição aérea, na década de sessenta surgem grandes questões relacionadas
principalmente à poluição da água, fruto da ausência de tratamento adequado do esgoto
doméstico e do despejo direto de contaminantes industriais. Neste cenário, o caso mais
paradigmático foi o do rio Cuyahoga que repetidas vezes entrou em combustão, chamando a
atenção da população para o problema da poluição derivada de fontes antrópicas29. Silent
Spring, obra de Rachel Carson, publicada originalmente em 1962, coloca ainda mais
combustível nesta discussão ao examinar como os padrões de consumo e as demandas dele
derivadas estavam sobrecarregando e destruindo o meio ambiente30.
26 O início da proteção da poluição do ar demorou um pouco mais em virtude de a indústria e as estradas de ferro terem feito um lobby poderoso durante muito tempo. Apenas a partir da década de setenta esse cenário começa a se modificar. 27 O Sierra Club foi criado em 1892 por John Muir para proteger o Yosemite Valley da especulação imobiliária. Em 1905, a National Audubon Society foi fundada para combater a matança de pássaros para a indústria da moda feminina. Interessante notar que talvez tenha sido a primeira sociedade protetora ligada estritamente à proteção de animais selvagens. As suas antecessoras (iniciadas em 1824 na Inglaterra com a SPCA) estavam mais ligadas à proteção dos animais domésticos contra os maus-tratos ou abusos. 28 Já neste período inicial três incidentes relacionados aos novos padrões de consumo foram notícia. O primeiro deles foi o “Black Monday” em Los Angeles, em 1943, causado pela poluição do ar (“smog” – junção de “fog” com “smoke”); o “Donora Episode”, na cidade de mesmo nome, na Pennsylvania, em 1948; e o “London Fog”, de 1952, todos com origem em fontes de poluição produzidas pelo homem. 29 O rio Cuyahoga já havia testemunhado vários episódios de incêndios, como os ocorridos em 1868 e em 1952. Todavia, foi somente em 1969 que um grande incêndio chamou a atenção da Time Magazine, mobilizando a opinião pública sobre a questão ambiental. As décadas de 70 e 80 são extremamente ricas em termos de produção legislativa sobre meio ambiente. O Brasil trilha o mesmo rumo e em 1981dá um passo importante com a publicação da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n. 6.938/81). 30 Carson trabalhou durante muitos anos como bióloga contratada pelo Fish and Wildlife Service’s Experimental Station em Patuxent, Maryland. Alarmada com os efeitos do DDT e outros pesticidas escreve Silent Springs, demonstrando os efeitos nefastos do progressivo envenenamento do solo e do lençol freático (v. CARSON, Rachel. Silent Springs. New York: Houghton Mifflin Co., 2002).
A partir deste período31, o reconhecimento acadêmico da ciência ecológica fez nascer
a necessidade da revisão do conceito de comunidade biológica e de suas bases morais, ou seja,
o respeito ao meio ambiente passa a ser analisada sob o ponto de vista ético e não mais
meramente econômico. Dessa vertente surgem duas linhas distintas de pensamento: uma
primeira que condena o abuso do ponto de vista do prejuízo que traz ao equilíbrio ecológico e
à própria dignidade do homem (direito humano ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado); e outra que afirma o valor inerente da natureza e de seus elementos, num nítido
contraponto à tradicional posição antropocêntrica, (postulação dos direitos da natureza).
Embora utilizassem o arcabouço ideológico do liberalismo, esta última posição
sempre foi associada, de uma forma ou de outra, a um suposto radicalismo. O historiador
Theodore Roszak já afirmava que o novo ambientalismo era profundamente subversivo, pois
rumavam contra os valores da sociedade e da cultura norte-americana do período32. Todavia,
conforme mencionado, essa característica apontada por Roszak deve ser temperada com o
reconhecimento de que as metas do novo movimento nada mais eram do que a aplicação do
velho ideal de liberdade, desta feita aplicada à natureza, ou seja, represente uma modelagem
revisada e ampliada da tradição liberal.
4. Direitos naturais e direitos da natureza
A Magna Carta de 1215 é comumente citada como um marco no que se refere ao
reconhecimento de “direitos naturais” na cultura jurídica anglo-americana. De fato, o
importante documento corrobora a noção de que um determinado seguimento social possuía
direitos inerentes à sua condição, direitos por virtude, independentes da vontade do
monarca33.
Consoante ressalta o Professor Vicente Barreto, o estado liberal baseia-se na
concepção de que o indivíduo é o núcleo da estrutura social e a sua vontade individual é que
31 Confrontado com as pressões da indústria e dos defensores do meio ambiente, o Serviço Florestal norte-americano solicita ao Congresso, em 1960, um esclarecimento sobre sua missão institucional. É editado então o Multiple-Use Sustained-Yeld Act - MUSY (16 U.S.C. §§ 528 to 531) que afirma que o objetivo da entidade era o de proporcionar a preservação das florestas em função de necessidades humanas como é o caso dos interesses relativos à recreação e extração de recursos naturais, como também em função dos interesses da manutenção do próprio ecossistema de que são exemplos a fiscalização sobre as nascentes e cursos d’água e de preservação da vida selvagem. Demandas importantes foram manejadas em relação á extração de madeira: Sierra Club v. Hardin – U.S. District Court 325 F. Supp. 99 (D. Alaska, 1971) e Sierra Club v. Butz – U.S. Court of Appeals 3 Envtl. L. Rptr. 20292 (9th Cir. 1973). 32 ROSZAK, Theodore. Person/Planet: The Creative Disintegration of Industrial Society. Lincoln, NE: iUniverse, 2003. 33 A sua cláusula trinta e nove, por exemplo, impedia o aprisionamento e a aplicação de sanções em o devido julgamento de acordo com a lei da terra, previamente estabelecida.
irá definir o espaço político e jurídico da sociedade34. Neste sentido, a teoria dos direitos
naturais ganha contornos de dramaticidade na medida em que há uma tendência, já por nós
identificada, de expansão do conteúdo material e dos sujeitos destes mesmos direitos.
A noção do Direito Natural é bastante antiga. Gregos e romanos, tendo em vista que
reconheciam o fato de que os homens já existiam previamente à organização civil ou mesmo
estatal, contrapunham a noção de jus naturae ou jus naturale ao conceito de leis positivadas,
formais. Os próprios animais, como integrantes do estado de natureza, estavam submetidos
aos preceitos fundamentais proveniente do Direito Natural35.
É, todavia, a partir dos séculos XVII e XVIII que a ideia dos direitos naturais
dissemina com grande impulso. John Locke (1632-1704), em sua clássica obra Two Treatises
of Government (1690), ao explicar o contrato social a partir do “estado de natureza”36, onde
todos eram livres perante Deus e si próprios, afirma que a lei natural consistia em inalienáveis
axiomas morais, sintetizados pelo filósofo como sendo os valores da “vida, liberdade, saúde,
integridade física e propriedade”37, 38. O ponto nodal da noção de contrato social reside
justamente na organização racional para garantia destes valores fundamentais por meio do
aparato estatal. O contratualismo surge, neste sentido, como alternativa teórica a fim de
conceber uma moralidade que se dá por meio de um contrato a que as pessoas aderem de
forma voluntária. A moralidade emerge da voluntariedade das limitações e acordos mútuos
realizados, ainda que o “contratante” acredite firmemente que esteja atuando em benefício
próprio e não coletivo. De acordo com tais premissas, pode-se concluir que a moralidade é
convencional, criada, e não-natural.
A convenção, para os pensadores contratualistas, pressupõe a existência da
racionalidade, pois as deliberações, em geral, são movidas por interesses próprios (vontade).
A pergunta, via de regra, é a seguinte: “Do ponto de vista do que é melhor para mim,
racionalmente consideradas as alternativas existentes, que limitações à minha liberdade
34 BARRETO, op.cit., p. 129. 35 Ulpiano, por exemplo, afirmava a existência do jus animalium como parte integrante do jus naturale, já que este último inclui tudo aquilo “que a natureza ensinou a todos os animais, pois não é peculiar do gênero humano, senão comum a todos os animais, que nascem na terra e no mar, e, também, às aves” . (D. 1,1,1,3 Ulpianus. 1 inst.). 36 Thomas Hobbes (1588-1679) antes mesmo de Locke já afirmava a insegurança do estado de natureza, o que compelia os indivíduos a se organizarem por meio do contrato social, abrindo mão de parte de suas garantias e direitos com vistas a resguardá-los da interferência indevida de terceiros. 37 LOCKE, John. Two Treatises of Government. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. p. 289. 38 O princípio da garantia da propriedade foi problemático para Thomas Jefferson. Inspirada por Locke, a Declaração de Independência de 1776, em razão da situação dos escravos, habilmente evitou falar na propriedade como um direito inalienável, substituindo-a por “ busca da felicidade”. Curioso notar que, na prática, a Revolução Americana não garantiu a construção de um Estado igualitário.
estaria disposto a aceitar?” Esta linha de raciocínio preclui a possibilidade de participação de
seres supostamente “irracionais” no contrato social39.
Conjugada à exclusão da natureza, reafirma-se, muito por conta do próprio Locke, a
noção de propriedade no sentido de que o domínio confere um direito exclusivo a seu titular
sobre determinado bem, oponível a terceiros. Esta noção transformou-se na pedra-de-toque da
teoria moderna da propriedade privada, tendo influenciado de maneira significativa a
Common Law bem como outros sistemas jurídicos. Em verdade, Locke concebia o direito de
propriedade como um direito natural. Tal direito de propriedade sobre as coisas e sobre os
animais eram análogos, pois estes constituiriam o “degrau mais baixo da Criação” e,
portanto, não se exigiriam quaisquer obrigações morais para com eles. Acreditava que podiam
sentir dor e sofrer40, mas seu tratamento e manejo só deveriam ser mais gentis se isso afetasse
os próprios homens (ideia do transbordamento moral)41. Esta visão caminha de braços dados
com uma ideia meramente utilitária na natureza, muito comum no período42.
O incipiente movimento ocidental de proteção dos animais não questiona a natureza
meramente instrumental do mundo natural, utilizando-se da retórica dos deveres indiretos e da
noção teológica de que os homens, como formas de vida mais favorecidas, deveriam, como
representantes de Deus, cuidar para que os animais, que também eram parte da criação divina,
fossem bem tratados (ideia do “domínio gentil”)43.
39 Mesmo no âmbito do contratualismo de John Rawls, onde está presente o artifício do véu da ignorância (onde é vedado aos pactuantes conhecer a maior partes das sua características pessoais), assume-se que previamente que serão, a algum tempo, membros de uma sociedade formada pela escolha dos princípios sobre os quais estão deliberando e que, como futuros membros desta sociedade, serão seres humanos. 40 Locke deixa isto claro em “In Some Thoughts Concerning Education”, de 1693 (v. LOCKE, John. The Educational Writings of John Locke. Cambridge: James L. Axtell ed., 1968, pp. 225-226). 41 Esta ideia de deveres indiretos para com os animais (e a natureza) foi absorvida com muita ênfase nos períodos vindouros. A noção de que o abuso em relação aos animais poderia, potencialmente, “endurecer” ou “brutalizar” o próprio homem em relação ao tratamento para com seus semelhantes esteve também presente, por exemplo, no pensamento kantiano. Embora possamos fazer uma releitura de Kant de modo a adaptar a sua teoria para abraçar um viés mais ampliativo, historicamente o pensador afirmava a singularidade do homem como o único ser que era livre, autônomo, racional, portanto um fim em si mesmo. 42 O auge deste pensamento se dá com Descartes (1596-1650) e a teoria do mecanicismo, por meio da qual os animais seriam meros autômatos, incapazes de estados mentais relacionados à dor e ao sofrimento. Para o propositor da teoria do cogito, somente quem pensa (é racional) existe. O cientificismo de Port-Royal, bem como a própria experimentação animal (incluída a prática da vivissecção), foram legitimadas largamente com base nesta concepção instrumental da vida não-humana. 43 A primeira lei de que se tem notícia que tratou do tema relativo à proteção dos animais foi o “Body of Liberties” adotado por Massachussets, EUA, em 1641. Na listagem de direitos, no item de número 92, o documento afirma que “no man shall exercise any Tirranny or Crueltie towards any bruite Creature which are usuallie kept for man´s use”. Seu autor foi Nathaniel Ward (1578-1652), um advogado e ministro puritano.
5. O animismo e o organicismo: a caminho do ecocentrismo
Neste cenário pré-ecológico, onde os horizontes científicos rapidamente se
expandem44, surgem as posições animistas ou organicistas, que postulavam que uma força
única permeava todos os seres e coisas, tornado a Terra um grande organismo unificado.
Henry Moore (1614-1687), professor de Cambridge, sustentava a existência de uma “anima
mundi” (alma do mundo ou espírito da natureza) a governar o destino de todas as coisas. O
botânico inglês John Ray (1627-1705), discípulo de Moore, na mesma linha, afirmou em “The
Wisdom of God Manifested in the Works of Creation” (1691) que:
É geralmente aceito que todo o mundo visível foi criado para o Homem; que o Homem é o fim de toda a Criação como se não houvesse outro propósito de qualquer criatura que o de servir à humanidade [...] os homens mais esclarecidos, todavia, entendem de forma diferente [...] os animais e plantas existem pelos seus próprios fins e méritos45.
Na Alemanha, Gottfried Leibnitiz (1646-1716) descartou a separação entre humanos
e não humanos e, inclusive, entre os seres vivos e os não vivos. Tudo estava interconectado.
Baruch Spinoza (1632-1677), no entanto, foi quem mais se antecipou à nova consciência
ambiental. Postulava uma visão panteísta da natureza onde tudo era manifestação de uma
substância divina compartilhada. Um lobo, uma árvore ou uma rocha possuíam o direito de
existência continuada tal qual o ser humano. Coube a Alexander Pope (1688-1744), no
entanto, sintetizar a filosofia animista, no poema “Essay on Man”, onde se lê:
Are all but parts of one stupendous whole, Whose body Nature is, and God the soul, Has God, thou fool!, work’d solely for good, Thy job, thy pastime, atire, thy food? Know, Nature’s children all divide her care; The fur that warms a monarch, warm’d a bear.
Donald Worster, em sua obra “Nature’s Economy” alerta para o fato de que seria um
erro, no entanto, interpretar a posição animista/organicista dos séculos XVII e XVIII como
fazendo parte de uma ética ecocêntrica. Na verdade, apesar de contestarem frontalmente o
antropocentrismo na sua versão mais tradicional, não rejeitavam a possibilidade de utilização
44 O telescópio, por exemplo, rapidamente corroboraram a tese de que a Terra não era mais o centro do universo. Diante da possibilidade de outros mundos, como sustentar ideias anacrônicas como a noção de que a vida existia para servir à humanidade? De outro lado, no mesmo período, Anton van Leeuwenhoed (1632-1723), por meio do microscópio descobre um vasto universo de vida microbiológica. 45 RAY apud NASH, Roderick Frazier. The Rights of Nature: A History of Environmental Ethics. Madison: University of Wisconsin Press, 1989. p. 21 (tradução nossa).
da natureza pelo homem. Na verdade, há uma reformulação da teoria do “domínio gentil” no
sentido de os interesses dos demais entes naturais serem sopesados com os do homem, num
tentativa de harmonização.
6. O biocentrismo entra em cena na sua forma mitigada
Embora possamos constatar iniciativas pontuais no que se refere à consideração
moral dos animais não humanos em períodos anteriores ao século XVIII46, foi somente neste
período que se firmou a visão de que determinadas espécies, por serem sencientes47, deveriam
merecer alguma forma de atenção ética diferenciada. Este tipo de visão, com variantes, é o
que se denomina de biocentrismo mitigado, zoocentrismo, sencientocentrismo, ou
animalismo, de que a posição dos direitos dos animais é, em certa medida, derivada.
Diz-se biocentrismo mitigado, pois uma ética verdadeiramente biocêntrica, como o
próprio nome indica, é uma ética “centrada na vida”, ou seja, é uma concepção que, embora
também sujeita a variantes teóricas, defende a ideia de que todos os seres vivos, sejam eles
sencientes ou não (o que por certo inclui o reino vegetal, os invertebrados e mesmo, para
alguns, os microorganismos), são alvo de consideração moral direta48, 49.
Curioso perceber que, historicamente, o movimento do biocentrismo mitigado surge
vinculado ao contexto das revoluções democráticas oitocentistas. Parece claro que a discussão
sobre os a existência e justificação dos direitos do homem abriu terreno para a ampliação da
moralidade em relação a categorias relegadas anteriormente à indiferença, o que inclui, por
exemplo, o caso dos escravos, estrangeiros, mulheres, crianças, portadores de deficiências
físicas ou mentais, e animais não humanos. 46 Como exemplos podemos citar a ordenança da comunidade de Chester, Inglaterra, de 1596, que proibia o açulamento de ursos e o já mencionado “Body of Liberties”, de 1641, de Massachussets, EUA. 47 Parece não existir uma definição precisa para o fenômeno da senciência. Apesar das divergências, é geralmente aceito que significa “sensibilidade experimentada”, ou seja, a capacidade que determinadas espécies possuem de experimentarem estados mentais que reflitam o prazer, a dor, o sofrimento, a frustração, a satisfação, a angústia, o isolamento, entre outros. Normalmente se afirma que os animais vertebrados, e mesmo alguns invertebrados, seriam, neste sentido, sencientes. Há que se observar, no entanto, que há aqueles que sustentam não ser a senciência um critério válido, postulando por uma visão biocêntrica mais alargada ou ampliada. 48 Albert Schweitzer (1875-1965), utilizando um ponto de partida “místico”, ainda quando trabalhava como médico na África, formula as bases para sua ética da “reverência pela vida” (ehrfurcht vor dem leben). Para o filósofo, cada ser vivo deve possuir o direito de viver igualmente respeitado (“I am life which wills to live in the midst of life which wills to live”). A eliminação da vida somente se justificaria numa situação de absoluta necessidade. Neste ponto Schweitzer parece rumar para uma posição biocêntrica alargada, embora com pitadas utilitárias, já que introduz na equação ética o conceito de necessidade. Embora pessoalmente fosse comprometido em evitar a morte, a “reverência pela vida” parece não exigir, por exemplo, a contrariedade ao abate de animais para consumo e a utilização de seres vivos para a pesquisa científica. Em 1952 Schweitzer ganha o prêmio Nobel da Paz e uma década depois Rachel Carson dedica a ele a clássica obra “Silent Springs”. 49 Paul Taylor, com sua obra Respect for Nature (1986) é um dos mais sofisticados defensores de uma ética biocêntrica. Para o autor, todas as coisas vivas são “centros teleológicos de vida”. Disso decorre que teríamos deveres de não-maleficência, não-interferência, fidelidade e justiça restitutiva para com a vida de forma geral.
O utilitarista Francis Hutcheson (1694-1746), em obra póstuma publicada em 1755,
“A System of Moral Philosophy”, sustentava que teriam “direito de que nenhuma dor ou
miséria desnecessárias lhes sejam infligidas”50. Note-se que talvez seja uma das primeiras
manifestações formais acerca da importância da dor como critério para a valoração moral. No
ano seguinte, em 1776, o reverendo Humphry Primatt inaugura a discussão sobre os direitos
dos animais com um tratado intitulado “A Dissertation on the Duty of Mercy and Sin of
Cruelty to Brute Animals”. Para Primatt, todas as criaturas, sendo fruto da criação divina,
seriam merecedoras de tratamento humanitário, sendo a crueldade e o abuso, formas claras da
manifestação do “mal” e do “pecado”.
Escrevendo no mesmo ano da Revolução Francesa, o filósofo inglês Jeremy
Benhtam, traçando um interessante paralelo com a situação da escravidão humana, afirma que
“Talvez chegue o dia em que o restante da criação animal venha a adquirir os direitos aos
quais jamais poderiam ter sido privados, a não ser pela mão da tirania”51. A “moralidade
utilitária”, vinculada a uma teoria ética consequencialista, era reduzida ao equacionamento do
“custo/benefício” das relações dicotômicas entre prazer e sofrimento. Neste sentido, tornava-
se difícil excluir os animais do âmbito de consideração moral, pois a ciência já havia
corroborado a noção de que, de fato, eram seres sensíveis. O critério de inclusão na
comunidade moral é a capacidade de sofrer e não a racionalidade ou a habilidade linguística.
John Oswald, movido por este espírito, escreveu “The Cry of Nature; or, An Appeal
to Mercy and to Justice, on Behalf of the Persecuted Animals” (1791), uma obra em que
propugnou pelo fim do abate indiscriminado e do sofrimento dos animais, tida por muitos
como a primeira a discutir diretamente a questão da moralidade do abate de animais para
consumo52. John Lawrence, em sua obra, “A Philosophical Treatise on Horsesand on the
50 HUTCHESON apud THOMAS, Keith. O Homem e o Mundo Natural. São Paulo: Companhia Das Letras, 1996. p. 215, tradução nossa. 51 BENTHAM, The Principles of Morals and Legislation, apud SINGER, Peter. Libertação Animal. Tradução de Marly Winckler. Porto Alegre: Lugano, 2004. p. 8-9. 52 A conexão entre mentes revolucionárias e abolicionistas com o movimento de defesa dos animais parece ser de ordem pessoal e fática. Os fundadores da RSPCA, Willbeforce, Buxton, Mackintosh e Martin, já eram conhecidos reformistas sociais, opondo-se à escravidão e à banalização da pena capital. Veja-se também o caso de Samuel Gridley Howe, educador de deficientes auditivos e primeiro diretor da primeira Sociedade Protetora de Animais de Massachusetts. Os escritores anti-escravagistas Harriet Beecher Stowe e Lydya Maria Child também emprestaram suas canetas ao socorro dos animais.George Angell, fundador da referida sociedade protetora de Massachusetts, dividiu, por quatorze anos, escritório com o advogado abolicionista Samuel Sewall. Caroline White, membro da Sociedade Protetora de Filadélfia, e criadora da American Anti-Vivissection Society em 1883, era filha do brilhante advogado abolicionista Thomas Earle, e neta de Pliny Earle, um dos médicos mais influentes e inovadores no tratamento de deficientes mentais. Em 1874, Henry Bergh, fundador da Sociedade de Proteção Animal de Nova York, recebeu a denúncia de maus-tratos cometidos contra uma criança e atuou imediatamente no sentido de retirá-la de tal condição de abuso, o que serviu de inspiração para que, conjuntamente com Elbridge Gerry, fundasse a primeira Sociedade de Prevenção de Crueldade Contra Crianças de Nova York. Por influência de Bergh, o mesmo se sucedeu na Inglaterra com a criação da National Society for
Moral Duties of Man Towards the Brute Creation”, de 1796, também dedicou capítulo
específico aos tema, intitulado “Rights of Beasts”, onde afirma que o problema central seria a
injustificável exclusão dos animais do tema da teoria da justiça.
O abolicionista Thomas Paine (1737-1809), no clássico “The Age of Reason” (1794-
1796), obra marcadamente anti-clerical e anti-religiosa, escrita enquanto estava preso na
França, também propôs a abertura de direitos a todos os seres sencientes53. O pintor e escritor
George Nicholson (1760-1825), influenciado por Rousseau, publicou “On The Conduct of
Man to Inferior Animals” (1797) e Joseph Ritson (1752-1803), o inovador “An Essay on
Abstinence from Animal Food, as a Moral Duty”, (1802)54, obras estas que postulavam uma
dieta vegetariana em face do dever moral existente para com os demais seres vivos.
Na sequência, em 1800, houve uma tentativa de aprovação de uma lei contra o
açulamento de touros no Parlamento Inglês. Nove anos depois, Lord Thomas Erskine (1750-
1823), amigo de Benhtam, levantou, também sem êxito, nova proposta de lei coibindo a
crueldade contra os animais. Esta nova frente de batalha teve de aguardar até o ano de 1822
quando o parlamentar Richard Martin (1754-1834) foi bem sucedido na aprovação de lei
protetiva dos animais de tração, que ficou conhecida como “Martin’s Act”, em homenagem a
seu propositor. Dois anos depois, foi criada, em 16 de junho de 1824, em uma coffee house
londrina que, paradoxalmente, se chamava “Old Slaughter´s” (velho abatedouro), a primeira
entidade destinada ao bem-estar animal, que receberia o nome de SPCA - Society for the
Prevention of Cruelty to Animals 55.
the Prevention of Cruelty to Children (NSPCC). A lista de paralelos continua indefinidamente. No Brasil o mesmo fenômeno ocorreu com José do Patrocínio, Joaquim Nabuco, entre tantos outros abolicionistas. 53 “O dever moral da humanidade consiste em observar a benevolência e compaixão de Deus para com todas as criaturas. Toda a perseguição e vingança entre homens, assim como toda a crueldade com animais consistem em violações desse mesmo dever moral” - The Age of Reason. Disponível em: <http://www.ivu.org/history/northam18/paine.html>. Acesso em 03 jul. 2005, tradução nossa. Uma das obras mais famosas de Paine, “The Rights of Man” foi publicada com a ajuda direta de William Godwin, marido de Mary Wollstonecraft, conhecida feminista da época. 54 Ritson se apoiou em Bernard Mandevile (1670-1733), médico e filósofo inglês que escreveu “The Fable of the Bees, or Private Vices Public Benefits” publicado em 1714, uma alegoria a respeito da vida nas colmeias, onde a sociedade, como um todo, prospera por meio dos vícios individuais. Mandeville argumenta que é somente “[…] por meio dessa tirania, que costumeiramente nos corrompe, que torna-se tolerável o abate dos animais” (Disponível em: <http://www.veginfo.dk/eng/texts/3.html>. Acesso em 07 jul. 2005, tradução nossa). 55 James Turner (op. cit., p. 17) cita a Society for the Suppression of Vice, fundada em 1802, como sendo a primeira a incluir em seus objetivos a erradicação de algum tipo de crueldade com animais (no caso, possuía a erradicação dos “esportes animais” como um de seus diversos propósitos). Cita também uma tentativa frustrada de fundação de uma sociedade protetora dos animais em Liverpool no ano de 1809. Em razão de divergências sobre a política de combate a crueldade (foco na punição ou na educação), dois membros dissidentes da SCPA saíram e fundaram, em 1831 a “Association for Promoting Rational Humanity Toward the Animal Creation”. Em 1832, Gompertz, antigo diretor da SPCA, também optou por fundar a sua própria entidade, chamada de “Animals Friend Society”. Com a saída da ala mais radical, a SPCA aumentou o número de associados, contando com apoios de peso. Em 1835, a então princesa Victoria e sua mãe, a duquesa de Kent associaram-se, seguidas do poderoso banqueiro Samuel Gurney. Denotando forte prestígio, em 1840 a rainha Victoria requereu a
No século XIX, somam-se aos esforços anteriores as poderosas vozes de John Stuart
Mill56, Edward Nicholson57 e Henry Salt58.
Embora tenham representado inegável avanço, a verdade é que todos estes
pensadores animalistas poderiam ter ido mais longe em suas respectivas construções teóricas.
O discurso ficou restrito à questão do tratamento humanitário, principalmente dos animais
domésticos (ou domesticados). Em outras palavras, preocupavam-se muito com o tratamento
dispensado aos animais (ética do bem-estar), com o modo de utilizá-los, não com a
legitimidade do uso em si mesmo considerado. O que deveria ser evitado é o sofrimento que
fosse pretensamente desnecessário ou abusivo. De modo geral, não se posicionaram contra as
instituições de instrumentalização e exploração dos animais.
Esse posicionamento mais contundente teve de aguardar praticamente mais um
século para se cristalizar num contexto histórico e acadêmico um pouco mais receptivo nas
obras de Peter Singer (Animal Liberation, 1975)59, Tom Regan (The Case For Animal Rights,
1983)60, Gary Francione (Animals, Property and The Law, 1985) e Steven Wise (Rattling the
Cage, 2000)61, dentre outros.
Exceção feita a Singer, para quem o discurso dos direitos parece desnecessário por
questões de coerência teórica com a visão sustentada pelo utilitarismo, os demais propugnam,
com variações, posições praticamente neo-kantianas, sustentando a titularidade de direitos
subjetivos fundamentais para os animais. Isto, é claro, gera um compromisso prático com a
abolição das instituições de uso dos animais como instrumentos como é o caso da
alimentação, da pesquisa científica, da indústria da moda e de medicamentos e também da alteração do nome da associação para “Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals - RSPCA”. Várias sociedades protetoras foram fundadas em seguida: Dresden (1839), Berlin (1841), Munich (1843), Paris (1845) e Vienna (1846). Posteriormente, em Nova Iorque, no dia 10 de abril de 1866, foi fundada a “American Society for the Prevention of Cruelty to Animals – ASPCA”, seguida da “Pennsylvania Society for the Prevention of Cruelty to Animals – PSPCA” (em 21 de junho de 1867), da “Massachusetts Society for the Prevention of Cruelty to Animals – MSPCA” (em 31 de março de 1868) e outra em São Francisco em 1868. Em 1877 houve o primeiro encontro da American Humane Society, em Cleveland, Ohio, com o propósito de formar uma federação das entidades de proteção de animais e crianças. No Brasil, também a partir da segunda metade do século XIX, houve a criação da primeira sociedade protetora dos animais em São Paulo, a UIPA – União Internacional Protetora dos Animais. Sua criação se deu em 30 de maio de 1895 por iniciativa conjunta de Henri Ruegger e pelo então senador Ignácio Wallace da Gama Cochrane. 56 MILL, John Stuart. Principles of Political Economy. Toronto: M.M. Robison, 1965 (primeira edição em 1848). 57 NICHOLSON, Edward. Rights of an Animal: a new Essay in Ethics. Havard: Harvard University Press, 2005 (primeira edição em 1879). 58 SALT, Henry. Animal Rights Considered in Relation to Social Progress. Pennsylvania: Clarks Summit, 1980 (primeira edição em 1892). Salt era admirador confesso de Thoureau, sobre quem, anos antes, em 1890 tinha escrito uma biografia. Curioso é o título que Salt conferiu à sua própria autobiografia, “Seventy Years Among the Savages” (selvagens como referência aos ingleses). 59 SINGER, Peter. Libertação Animal, op.cit. 60 REGAN, Tom. The Case For Animal Rights. Berkeley: University of California Press, 1989. 61 FRANCIONE, Gary. Animals, Property and The Law. Philadelphia: Temple University Press, 1995.
utilização de animais no setor de divertimentos públicos. Esta é a razão pela qual essa vertente
é conhecida como abolicionista em oposição clara às visões ditas bem-estaristas.
7. A ampliação continua: as posições ecocêntricas
A ideia mais extensiva de que não só os seres vivos, mas também os próprios
ecossistemas e os entes naturais inanimados seriam detentores de valoração moral inerente
(direitos da natureza) surge em período posterior, principalmente nos Estados Unidos da
América. Talvez isto tenha ocorrido em razão do despertar tardio para a questão da escassez
ambiental. Até o século XIX os EUA ainda contavam com vastas áreas selvagens e o mito do
não esgotamento faz o ambientalismo parecer algo desnecessário. A ênfase é com a conquista
dos direitos civis. A escravidão, neste sentido, parece ter colaborado para obliterar as outras
discussões, afinal, seria incongruente o Congresso optar por proteger os animais e a natureza e
manter a escravidão. Na Inglaterra, já no século XVIII, este espaço estava aberto.
Na segunda metade do século XIX a maior parte dos estados norte-americanos
começaram a proteger a natureza por meio da instituição dos parques e reservas florestais62,
mas ainda atados a uma perspectiva antropocêntrica.
A ecologia, como ciência natural, tem suas origens no século XIX63, mas consolidou-
se apenas no século XX. Todavia, embora as vertentes ecocêntricas somente tenham obtido
impulso e reconhecimento acadêmico tardiamente, conforme assinala Donald Worster, já
havia ecologistas antes da ecologia.
Henry David Thoureau (1817-1862) era um deles. Seguindo em parte a linha
animista/organicista, Thoureau escolhe simbolicamente a data de 4 de julho de 1845 para
partir para o lago Walden em busca de um novo ponto de partida para sua reflexões sobre a
natureza. Com propriedade percebia que a não-exaustão da natureza era nada mais que um
mito. Como transcendentalista, o holismo de Thoureau derivava de sua crença na existência
de uma entidade sobrenatural a que chamava de “oversoul” que permeava tudo na natureza.
Para o pensador, a intuição, mais do que a razão, permitiria que obtivéssemos acesso essa
dimensão espiritual, que se coloca acima das aparências meramente físicas: “[...] a terra
62 Yellowstone é criado em 1872, seguido de Adirondacks, em 1885 e Yosemite, em 1890. Todos criados, inicialmente, com propósitos utilitaristas, principalmente os relacionados à recreação e caça. 63 Ernst Haeckel (1834-1919) cunhou inicialmente o termo em 1866. A expressão meio ambiente, por sua vez, é de origem ainda mais remota, tendo como pai o dinamarquês Jens Baggensen e foi introduzida no discurso biológico por Jakob von Uexkül (1864-1944).
sobre a qual caminho não é uma massa inerte, morta; é um corpo, possui um espírito, é
orgânica e sofre a ingerência desse espírito”64.
De acordo com Nash, em Thoureau há como que uma manifestação de uma ecologia
de cunho espiritual ou teológico. O pensador refere-se à natureza e aos animais como seus
semelhantes, como sua sociedade. Nesta sociedade não havia uma demarcação hierárquica65:
“as matas não eram vazias, mas sim repletas de espíritos generosos, tão bons como eu em
qualquer outro dia [...] aquilo que chamamos de natureza, na verdade representa uma outra
civilização, além da nossa.”66
Embora evitasse falar em direitos, afirmava que, por coerência, “se alguns são
processados e punidos por maltratar crianças, outros deveriam merecer o mesmo destino por
maltratar a natureza”67.
Coube ao naturalista escocês John Muir (1838-1914), erradicado nos EUA,
mencionar, talvez em primeira mão, o termo “direitos da natureza”68. Esse seu despertar se
deu em razão do alistamento militar quando, em campanha no Lago Huron, no Canadá seguiu
um trilha isolada e se deparou com uma paisagem idílica, repleto de raras orquídeas brancas.
Ao refletir posteriormente sobre a experiência, Muir constata que sua emoção em ver as
orquídeas, além da sua beleza, se deu em razão de seu desprendimento em relação à
humanidade. Existiam por si próprias. Neste sentido, tudo tinha valor69.Não só os animais,
como também as plantas e as rochas possuíam a “centelha divina”70.
No entanto, esse entusiasmo inicial de Muir parece ter cedido campo para o
pragmatismo e para uma visão mais preservacionista, relacionada à mencionada criação de
reservas e parques nacionais.
Mesmo com este aparente retrocesso, na aurora do século XX estavam lançadas as
bases para o alargamento da comunidade moral para além da animalidade, humana ou não
64 THOUREAU apud NASH, op.cit., p. 37 (nossa tradução). 65 Neste sentido se distancia de pensadores como George Perkins Marsh (obra “Man and Nature; Or, Physical Geography as Modified by Human Action” – 1864) que embora refletissem sobre a destruição do meio ambiente, o faziam sob o prisma antropocêntrico. Marsh, por exemplo, advogava a tese do controle tecnológico para possibilitar a regeneração ecológica. 66 Ibid., p. 37. 67 Ibid., p. 37. Nash aponta que em certa ocasião Thoureau teria apontado a inconsistência de um presidente de uma sociedade anti-escravagista trajar um casado de peles. 68 “How narrow we selfish, conceited creatures are in our sympathies! How blind to the rights of all the rest of creation!” (MUIR, John. A Thousand-Mile to the Gulf, op.cit., p. 324). 69 Em várias passagens fala abertamente sobre o direito dos animais, inclusive daqueles mais estigmatizados pelo homem como os répteis. A esse respeito conferir MIGHETTO, Lisa. “John Muir and the Rights of Animals” in MIGHETTO (ed.), Muir Among the Animals. San Francisco: Sierra Club Books, 1989. 70 WOLFE, Linnie Marsh (ed.). John of the Mountains: the Unpublished Journals of John Muir. Wisconsin:University of Wisconsin Press, 1979, p. 138.
humana. Em 1914 o biólogo escocês J. Arthur Thompson descreve os laços de
interdependência entre os sistemas vitais como a “teia da vida”, antecipando Fritjof Capra. No
ano seguinte, em Ithaca, na Universidade de Cornell, Liberty Hyde Bailey publica The Holy
Earth, obra na qual sustenta a valoração inerente do planeta como um todo71, também
colocando-se como legítimo antecessor de Lovelock com sua “hipótese Gaia”72. No mesmo
caminho William Morton Wheeler (1865-1937) e Alfred North Whitehead (1861-1947)
juntam-se em Harvard para estudar as relações de interdependência entre os organismos
naturais, propugando pela valoração inerente de todos os elos desta corrente.
Aldo Leopold (1887-1948) é tido como uma das figuras centrais do pensamento
ecológico, embora a sua proclamada “ética da Terra” (land ethic) tenha sido alvo de um curto
trecho da sua obra principal “A Sand County Almanac”, publicada em 194973. O impacto das
ideias de Leopold levou Donald Fleming a classificá-lo como o “Moisés” da natureza, algo
como o pai do ambientalismo moderno. Curiosamente, e também compreensivelmente,
Leopold começa a sua vida profissional como gestor de uma reserva florestal no Novo
México e aplica, então, a visão utilitária reinante, propondo um projeto de extermínio dos
“maus” predadores (lobos e leões da montanha) no sentido de ajudar os “bons” animais (gado
e cervos). Essa visão ingênua e equivocada felizmente cedeu lugar à noção de que todos
fazem parte do mesmo sistema vital. As espécies funcionavam como verdadeiras órgãos de
um corpo ou, como preferia Leopold, como engrenagens de um motor.
A famosa frase “thinking like a mountain”74 (que representa a transcendência do
antropocentrismo) surge num ensaio que realiza em 1944 onde descreveu uma fase anterior de
sua vida quando abateu a tiros um lobo que cruzava um rio. O lobo morreu, mas Leopold
ainda teria tido tempo de ver “uma chama verde morrendo em seus olhos”75. Essa chama
71 O período era de formação de novos conceitos. Em 1927 Charles Elton cunho ou termo “cadeia alimentar” com a metáfora da pirâmide alimentar. Na realidade Elton sustentava a vulnerabilidade do sistema pois a base teria mais importância que o topo, já que servia de estabilizador para todo o sistema. (esta lógica valorativa parece ter sido equivocadamente subvertida). Em 1930, Frederic Clements descreve o termo “comunidade biótica” ou “bioma” em sua obra Bio-Ecology para designar 72 A hipótese Gaia, originalmente proposta por James E. Lovelock, também denominada como hipótese biogeoquímica, propõe que a biosfera e os componenetes físicos da Terra (atmosfera, criosfera, hidrosfera e litosfera) são intimamente integrados de modo a formar um complexo sistema interagente que mantêm as condições climáticas em homeostase (Terra como um grande organismo vivo). 73 LEOPOLD, op.cit. 74 O filósofo russo Peter D. Ouspensky (1878-1947), contemporâneo de Leopold, em Tertium Organum, publicado em 1912, antecipava esta tese ao afirmar que nada havia de mecânico ou inerte na natureza; a vida e o sentimento habitam tudo o que existe, orgânico ou inorgânico: “uma montanha, uma árvore, um rio, o peixo deste rio, gotas d’água, a chuva, uma planta, o fogo – cada qual possui uma mente própria” (OUSPENSKY, op.cit., p. 166). Ouspensky fala da “mente” de uma montanha e é provável que Leopold tenha tirado daí a sua famosa frase. 75 LEOPOLD, op.cit, p. 129-130.
cintilante dos olhos do animal assombrou o pensador por cerca de trinta anos. Fez com que
percebesse que os lobos são estritamente necessários para a manutenção do ecossistema. Este
episódio faz com que adote uma postura conservacionista (vinda de Pinchot), mas com uma
conclusão de efeitos morais diversa da posição tradicional. Para Leopold, a Terra era muito
mais que a provedora da humanidade. Ela própria estaria viva, tal como um grande
organismo.
No artigo “The Conservation Ethic”, publicado em 193376, Leopold traça um
paralelo entre a escravidão humana e a propriedade da Terra fazendo alusão ao mito de
Odisseu77. A divindade grega, ao retornar para casa, determinou o enforcamento de doze
escravas por mau comportamento. Ocorre que Odisseu não era um assassino. O problema era
o de que, como propriedade, as escravas não faziam parte da comunidade moral, estavam
fora do seu alcance ético. O mesmo ocorreria com a natureza, que ainda encontrava-se
oprimida. Em “A Sand County Almanac”, Leopold ressalta que o homem é simplesmente
mais um membro da comunidade biótica e que o problema central era o de que consideramos
o planeta uma commodity, tal qual Odisseu com suas escravas.
A ideia decorrente dessas considerações é a de que as formas de vida não-humanas e
o próprio ecossistema também deveriam, como entes morais, possuir direitos fundamentais,
ou, como prefere, direitos bióticos (“biotic rights”). Em sua “ética da Terra” afirma que “o
direito à existência continuada” se aplica aos animais, plantas e até mesmo ao solo: “há
obrigações para com a Terra acima daquelas ditadas pelo mero interesse individual”78,
obrigações baseadas no reconhecimento que humanos e os demais componentes da natureza
são iguais ecologicamente (igualitarismo ecológico). O uso desses elementos naturais seria
correto “quando tende a preservar a integridade, a estabilidade e a beleza da comunidade
biótica, que inclui o solo, as águas, a fauna, a flora, e também as pessoas” (axioma da
integridade)79.
As ideias de Leopold não foram bem assimiladas de plano, seja pela sua radicalidade
em relação à necessidade de reestruturação do sistema da propriedade privada e da própria
noção de “progresso”, seja também pelo momento histórico de privações da Grande
Depressão de 1929 e depois da II Guerra Mundial.
76 LEOPOLD, Aldo. “The Conservation Ethic”, Jounal of Forestry, n. 31, out. 1933. 77 Em 1947, no livro “A Sand County Almanac”, Leopold retoma o mesmo mito na parte relativa à “ética da Terra”. 78 LEOPOLD, A Sand County Almanac, op.cit, p. 209. 79 Ibid., p. 224.
Outros seguiram a trilha aberta por Leopold, como é o caso de Joseph Wood Krutch
(1893-1970), René Dubos (1901-1982), Rachel Carson (1907-1964), Edward O. Wilson,
David Ehrenfeld, J. Baird Callicott, Holmes Holston III, entre outros.
Chega-se, por fim, ao exame da denominada “Ecologia Profunda” (Deep Ecology).
Ao contrário da ética da Terra proposta originalmente por Leopold, não há uma fonte única ou
mesmo uma sistematização rígida sobre o conteúdo da Ecologia Profunda. O termo foi
utilizado em vários contextos e de formas distintas ao longo do tempo, variando desde uma
descrição geral de teorias não-antropocêntricas até o sentido mais estrito que foi empregado
pelo filósofo norueguês Arne Naess (1912-2009), criador da terminologia, e de seus
seguidores como Bill Devall e George Sessions.
Fiquemos com a segunda opção. Naess introduziu, em 1973, uma distinção entre o
que denominou de “ecologia rasa” (shallow ecology) e a “ecologia profunda” (deep ecology).
A ecologia rasa estaria inserida primariamente no paradigma antropocêntrico e teria por
objetivo proteger o meio ambiente como meio para assegurar o fim de bem-estar humano. A
ecologia profunda, por sua vez, compromete-se com a ideia de que a relação entre homem e
natureza é holística. A melhoria da qualidade do meio ambiente está diretamente associada a
uma mudança de postura, de atitude do homem frente aos problemas naturais e envolve o
cultivo da “consciência ecológica” que reconhece a unidade de humanos, plantas, animais e a
própria Terra (ecofilosofia).
A plataforma de princípios básicos sobre os quais se apoia a teoria ecológica
profunda foi desenvolvida por Naess e Sessions em “Deep Ecology: Living as if Nature
Mattered” (Layton-Utah: Gibbs Smith, 2007) e tem como norte as ideias de auto-realização e
igualdade ecológica. Tais princípios são: (1) o bem-estar e o desenvolvimento da vida humana
e não-humana na Terra possuem valor inerente. Esses valores são independentes da utilidade
dos elementos não-humanos para os propósitos humanos; (2) a riqueza e a diversidade das
formas de vida contribui para a realização desses valores e são, em si mesmas, também
valores autônomos; (3) os humanos não têm direito de reduzir essa riqueza e diversidade,
exceção feita para o fim de satisfazerem necessidades vitais; (4) o desenvolvimento da
cultura e da vida humana é compatível com uma substancial redução populacional. O
desenvolvimento da vida não humana demanda essa redução; (5) a atual interferência humana
no mundo não-humano é excessiva, e essa situação piora rapidamente; (6) as políticas
públicas devem ser rapidamente revistas e modificadas. O resultado das mudanças nas áreas
econômica, tecnológica e ideológica promoverá uma situação muito diversa da atual; (7) a
mudança ideológica consiste basicamente em uma nova percepção sobre a qualidade de vida e
não na promoção de padrões de vida cada vez mais altos. Haverá uma profunda alteração na
compreensão da diferença entre o que é grande e o que é bom; (8) aqueles que subscreverem
estes princípios têm uma obrigação direta ou indireta com a implementação prática destas
mudanças80.
8. Conclusão
A vertentes filosóficas do pensamento ecológico são bastante amplas, variadas e
merecem estudo aprofundado. Há mesmo um déficit, facilmente identificável, sobre temática
em língua portuguesa81. Não há como compreender as alternativas ao antropocentrismo sem
percorrer o trajeto de criação destas mesmas alternativas. As teorias éticas discutidas de
maneira abreviada neste artigo fornecem as bases para a construção, ou revisão, de uma
Teoria da Justiça que leve em consideração a necessidade de incluir a natureza e seus
elementos no âmbito da comunidade moral.
Neste sentido, uma primeira conclusão a que se chega é o claro esgotamento do
modelo conservador, tradicional, advindo de posições antropocêntricas. Tudo está a indicar
que há um abismo insondável entre tal concepção e a realidade biológica da natureza e seus
elementos, tornando-a uma posição bastante frágil do ponto de vista de consistência científica.
Um segundo ponto importante é perceber que o holismo é a ideia unificadora entre as
diversas vertentes ecocêntricas, seja numa perspectiva exclusivamente metafísica,
epistemológica ou ética.
A terceira observação diz respeito à não necessária compatibilidade ou
complementaridade entre as proposições de cunho biocêntrico e as de matriz ecocêntrica. Os
autores partem de pressupostos diversos e chegam a conclusões que dificilmente são
conciliáveis. Há claros pontos de tensão entre elas. Somente para citar um deles, Leopold,
que, conforme verificado, adota uma posição ecocêntrica, entende que os indivíduos,
singularmente considerados, têm menor peso, ou são subordinados aos interesses maiores da
comunidade biótica como um todo. Conforme aponta Tom Regan, filósofo animalista, no seu
“The Case For Animal Rights”, as implicações dessa visão incluem a perspectiva de que, ao
menos eventualmente, em determinadas situações específicas, os interesses individuais
80 DEVALL, Bill; SESSIONS, George. Deep Ecology: Living as if Nature Mattered. Layton, Utah: Gibbs Simith, p. 70 (tradução nossa). 81 No país, destacam-se as lições colhidas do Professor Dr. Fábio Corrêa Souza de Oliveira, que já há algum tempo vem dedicando atenção especial à temática e organiza um brilhante Núcleo de Pesquisa em Ecologia Profunda e Direito dos Animais na Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ.
poderiam ser sacrificados pelo bem maior da comunidade biótica82. É, de fato, difícil
compreender a inserção dos direitos individuais neste cenário proposto pelas teorias
holísticas83. De outro lado, as abordagens ecocêntricas à ética ambiental se desenvolvem
basicamente a partir da constatação de que a ecologia tem papel de destaque no entendimento
e valoração da natureza e de que as visões “atomistas” (individualistas) são falhas por se
desenvolverem a partir de referenciais humanos.
O certo é que a mudança de perspectiva , do individualismo ao biocentrismo ou ao
holismo ecocêntrico, nos relembra a todo instante que as questões éticas surgem no nível do
indivíduo, mas também no âmbito das instituições e práticas sociais. A ética ambiental,
portanto, tem essa difícil missão de unir as demandas relativas à justiça social, bem como
enfrentar os complexos dilemas relativos aos direitos e deveres individuais.
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82 E muito provável que biocentristas e ecocentristas chegassem a conclusões díspares no que se refere a lidar com o problema da superpopulação de animais (que cause um desequilíbrio no sistema ecológico), assim como lidam de maneira diversa com as questões relacionadas à utilização de animais para finalidade alimentar ou científica. 83 Regan chega a dar um exemplo um tanto quanto extremo, a partir de uma visão ecocêntrica, consistente na hipótese de eliminar uma rara flor ou um ser humano. Se a flor , como membro da comunidade biótica, viesse a contribuir mais para a integridade, a estabilidade e a beleza desta mesma comunidade poder-se-ia entender que deveria ser preservada em detrimento do ser humano? A visão dos direitos não exclui a possibilidade de sistemas ou de entes naturais possam possuir valor inerente. A beleza, ou o equilíbrio ecológico de uma floresta podem ser valorados por si próprios. O problema é que os sujeitos de direito paradigmáticos são indivíduos ou individualizáveis(v. REGAN, op.cit., p. 362).
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A RETÓRICA JURÍDICA NA ABORDAGEM DO DIREITO AMBIENTAL
RHETORIC IN A LEGAL APPROACH OF ENVIRONMENTAL LAW
Fernando Joaquim Ferreira Maia1
RESUMO
Pretende-se utilizar a retórica como forma de abordagem de métodos e metodologias que
sirvam de instrumento de seleção de hipóteses sobre o bem ambiental e de apresentação de
soluções sobre os mencionados litígios. Observam-se duas situações. A primeira, aquela em
que operador do direito forma a sua convicção para só depois buscar premissas que a
fundamente. A segunda, aquela em que o mesmo normalmente não tem conhecimento
técnico-científico sobre a questão posta para decidir, mas, tendo por base a norma, busca uma
solução para o caso concreto. Nas duas, o artigo, a partir das transdisciplinariedade oferecida
pelas ciências ambientais e agrárias, tenta uma análise crítica da norma relativa às várias
dimensões do meio ambiente. Objetiva-se o estabelecimento de novas perspectivas,
orientações e diretrizes para uma maior efetividade da proteção/reprodução do bem ambiental.
Como as questões que envolvem o Direito e o meio ambiente passaram a ser uma temática de
grande interesse para um país como o Brasil, com grandes contradições sociais, justifica-se o
presente artigo.
Palavras-chave:
DIREITO AMBIENTAL; MEIO AMBIENTE; RETÓRICA JURÍDICA
ABSTRACT
It is intended to use rhetoric as a way of addressing methods and methodologies to serve as an
instrument of selection hypotheses about good environmental and presentation solutions
under the aforementioned litigation. Two situations are observed. The first one in which legal
operators so only after his conviction to seek premises as its basis. The second, the one that
usually does not have the same technical and scientific knowledge on the question put to
decide, but based on the norm, seeking a solution to the case. In both, the article, as of
transdisciplinarity offered by agricultural and environmental sciences, attempts a critical
analysis of the rule concerning the various dimensions of the environment. It aims to establish
new perspectives, directions and guidelines for better effectiveness of the protection /
playback environmental good. As the issues surrounding the law and the environment have
1 Doutor e Mestre em Direito pela UFPE, Professor Adjunto da UFRPE, e-mail:
become a topic of great interest for a country like Brazil, with major social contradictions,
justified this article.
KEYWORDS
ENVIRONMENTAL LAW; ENVIRONMENT; LEGAL RHETORIC
Sumário: 1. Introdução: a aplicação da norma jurídica ambiental mediante a sua
desconstrução retórica e a partir da transdisciplinariedade oferecida pelas Ciências
Agrárias, Sociais e Biológicas. 2. A retórica como metalinguagem para a ação do homem
na realidade em que vive e os níveis retóricos (material, estratégico e analítico). 3. O
contexto retórico material do direito ambiental: o meio ambiente e sua relação com as
ciências agrárias, a ecologia, a biologia, a economia e o direito. 4. Da retórica dos
métodos à retórica metodológica no direito ambiental: o meio ambiente e a sua proteção
jurídica. 5. A desconstrução dos mecanismos de persuasão presentes na tutela do bem
ambiental: a utilização do topos da dignidade humana na perspectiva da concretização
do direito ambiental. 6. Conclusão: a proteção jurisdicional do meio ambiente, a
degradação e a consciência ecológica 7. Referências.
1. Introdução: a aplicação da norma jurídica ambiental mediante a sua desconstrução
retórica e a partir da transdisciplinariedade oferecida pelas Ciências Agrárias, Sociais e
Biológicas
Pretende-se dar uma contribuição original ao direito ambiental no Brasil. O objetivo
é fornecer bases para a sua reconstrução a partir de uma abordagem retórica, na perspectiva da
dignidade da pessoa humana e mediante uma visão transdisciplinar e amparada nos
condicionantes históricos e materiais.
O atual cenário potencial dos litígios sobre meio ambiente vai exigir a combinação
de várias técnicas de investigação científica para compreender como o Estado constrói a tutela
sobre o meio ambiente e como os operadores do direito buscam soluções para a aplicação da
norma. Aqui, a utilização da indução e da dedução não satisfaz, pois o objetivo tenta
estabelecer os pontos vulneráveis e sólidos, bem como criticá-los, do conteúdo do direito
ambiental.
O enfoque é o direito ambiental, visto que a percepção de que este é ramo do direito
público o coloca como centro de uma série de preceitos e garantias postos na Constituição, o
que se traduz numa outra dimensão da dignidade humana, promessas de asseguramento de
uma sadia qualidade de vida associada à harmonia com o desenvolvimento econômico.
Entretanto, oferece-se uma abordagem retórica do direito ambiental. A retórica
metódica situa o ambiente em que o direito regula a relação social ambiental para analisar as
teses sobre o seu conteúdo e as estratégias utilizadas para a aplicação da norma jurídica na
vida. O texto infere que o fenômeno jurídico é influenciado pelos condicionantes históricos e
materiais em que está inserido. Aqui está o ponto de contato com o meio ambiente, pois a
retórica metódica recepciona o impacto desses condicionantes no direito; interage num
contexto marcado por uma rotatividade de processos sociais e contradições através da qual a
atividade do operador do direito é movida por contradições objetivas e subjetivas.
O objetivo do trabalho é entender como a retórica metódica pode contribuir para a
retificação e efetivação do direito ambiental na perspectiva do desenvolvimento sustentável e
da disgnidade da pessoa humana. Sustentar-se-á que a retórica metódica, formulada por João
Maurício Adeodato, pode ser utilizada como forma de abordagem de metodologias acerca do
ordenamento ambiental brasileiro.
Para testar as hipóteses propostas, passa-se pelo seguinte questionamento: se se
pretende analisar retoricamente as normas jurídicas que disciplinam o meio ambiente, qual
caminho seguir? Tal questionamento exige, como metodologia, a pesquisa bibliográfica,
incluindo livros e artigos direta ou indiretamente ligados ao assunto, pretendendo-se ser
suficiente aos objetivos almejados.
Feitos esses importantes esclarecimentos metodológicos, passa-se a enfrentar a
estrutura deste trabalho. Primeiramente, será analisado a retórica como metalinguagem para a
ação do homem na realidade em que vive e os níveis retóricos (material, estratégico e
analítico). A ideia é situar o método geral do artigo a partir dos níveis retóricos defendidos
por Ballweg e Adeodato: o primeiro nível corresponde à retórica dos métodos (material); o
segundo nível diz respeito à retórica metodológica (estratégico); o terceiro nível é relativo à
retórica metódica (analítico).
Em seguida, será tratado o contexto retórico material do direito ambiental, aborda-se
a necessária transdisciplinariedade da relação do meio ambiente com as ciências agrárias, a
ecologia, a biologia, a economia e o direito.
Posteriormente, o texto enfrenta as ideias jurídicas sobre o meio ambiente. O
objetivo é tratar a retórica metodológica no direito ambiental e analisar a proteção jurídica
sobre o meio ambiente.
Em sequência, o texto passa a aplicar a retórica jurídica no seu nível metódico e
defende que a dignidade da pessoa humana pode ser usada como topos retórico para
concretizar os princípios de direito ambiental.
O texto conclui sustentando que a retórica jurídica metódica é um importante
instrumento para situar as garantias democráticas no direito ambiental, principalmente quanto
ao enquadramento do bem ambiental como direito difuso.
Por fim, serão levantados, por exemplo, os seguintes questionamentos: existe alguma
relação entre a concepção retórica da linguagem, enquanto realidade, e a construção das ideias
jurídicas sobre o meio ambiente? Como a lei enfrenta retoricamente o reflexo da contradição
entre o objeto das ciências ambientais e o objeto do direito na formulação dos comandos
normativos? Nos conflitos e litígios que envolvem dano ambiental, o nível ótimo da regulação
das relações sociais depende da observação e da realização de fatores externos ao fenômeno
jurídico?
2. A retórica como metalinguagem para a ação do homem na realidade em que vive e os
níveis retóricos (material, estratégico e analítico)
Em Aristóteles, a retórica é considerada como um serviço ao possibilitar definir o útil
e o nocivo, o injusto e o justo, o nobre e o desprezível etc. Ela é um instrumento de
intervenção humana na sociedade e tem por ambiente o da deliberação verossímil. A retórica
é capaz tanto de provar uma tese como seu contrário, possibilita a argumentação, inclusive de
uma posição fragilizada. Ela é uma técnica de discurso, ensinada metodicamente, voltada para
a persuasão e tem a propriedade de identificar o ilusório e distinguir o que é persuasivo e o
que não é persuasivo (ARISTÓTELES. 1998, I, 1354a, p. 43).
Entende que a retórica se comporta como uma metodologia da persuasão, visto que
analisa e determina os procedimentos de convencimento pelo discurso (REALE, 1994, p.
472). Estes são deduzidos de argumentos silogísticos, que possibilitam, a partir de um fato, o
levantamento de hipóteses e a apresentação de soluções correspondentes.
Por silogismo se entende aquele argumento que se expressa em três proposições
fundamentais, sendo uma maior, uma menor e a outra como conclusiva, esta última deduzida
das anteriores. Por exemplo, se toda extração de madeira de reserva biológica é crime
ambiental; e se todos os moradores da vila alfa extraíram madeira da reserva biológica; então
todos os moradores desta vila cometeram crime ambiental. Neste exemplo, o termo médio é
“extração de madeira de reserva biológica” e não figura na conclusão; já o termo maior é
“crime ambiental” e o menor é “todos os moradores da vila alfa”. Tanto o maior como o
menor figuram tanto nas premissas quanto na conclusão. O termo maior constitui a premissa
maior e o termo menor a premissa menor. O argumento não pode levar de premissas
verdadeiras a conclusões falsas. Entretanto, nas relações humanas, as exigências da persuasão,
muitas vezes, são incompatíveis com o rigor da coerência lógica, o que força o
desenvolvimento de variantes de silogismos dotadas de maior carga persuasiva. Aristóteles
aceita isto e afirma que “a demonstração é um tipo de silogismo, mas (que) nem todo
silogismo é uma demonstração”(ARISTÓTELES, 2005, I, 25b30, p. 116). É justamente nesse
contexto que ele desenvolve a ideia de entimema. Ao colocá-lo como um tipo de silogismo
imperfeito, Aristóteles o define como “aquele que requer uma ou mais proposições, as quais,
ainda que resultem necessariamente dos termos formulados, não estão compreendidas nas
premissas”(ARISTÓTELES, 2005, I, 24a25, p. 113). O entimema, de um ponto de vista
formal, é o tipo de silogismo retórico em que a conclusão não decorre necessariamente de sua
premissa. A principal característica do entimema é que a estrutura silogística (premissa maior,
premissa menor e conclusão), pela qual uma das premissas ou a conclusão está implícita no
argumento, omitida, sendo verossímil, é incompleta (ADEODATO, 2009a, p. 333-335, 337)
(SOBOTA, 1995, p. 261-262). Por exemplo, “os moradores da vila alfa extraíram madeira da
reserva biológica, logo provocaram um dano ambiental”. A premissa implícita é que quem
extrai madeira de reserva biológica provoca dano ambiental. A premissa implícita deve ser
um ponto em comum entre os participantes do discurso. O artigo defende que a
sustentabilidade do desenvolvimento se dá a partir da racionalização apropriada dos recursos
naturais. É este ponto em comum, fruto de um acordo entre os sujeitos da comunicação, que
permite que o juiz, por exemplo, omita a premissa no discurso. Uma das tarefas do artigo,
quanto à proteção e reprodução das relações sociais no meio ambiente, principalmente do
direito, é mostrar que a retórica pode ajudar a detectar esta premissa, pois na premissa omitida
existe crença e ideologia, o que poderá suscitar naturais divergências entre aquilo que o juiz
decide e as exigências da realidade.
De acordo com Adeodato (2009a, p. 333), se o entimema trata daquilo que não
decorre necessariamente das premissas invocadas, então a tarefa da análise retórica é
justamente encontrar e construir entimemas. O método retórico se interessa primordialmente
pela descoberta de argumentos e provas com os quais se demonstra a questão que se está
debatendo. Ressalte-se que a decisão judicial é tomada como entimemática, pois muitas
normas empregadas na decisão são utilizadas de forma oculta, implicitamente, de forma
indeterminada, e mascara ideias previamente concebidas pelo juiz.
Entretanto, a proposta de Adeodato para a retórica é mais abrangente, uma vez que
ele concebe a verdade como uma ilusão altamente eficaz, sendo a linguagem o único acordo
possível entre os homens. Utiliza-se a retórica metódica como forma de abordagem de
métodos e metodologias nesse estudo. A retórica, entendida na acepção positiva proposta por
João Maurício Adeodato (2009b, p. 16, 17, 18-19) (2011, p. 2-3, 5, 20, 42), com base no
pensamento de Ballweg (1991, p. 176-179), Blumenberg (1999, p. 140) e Aristóteles (1998, I,
1354b, 1355a, 1355b, p. 46-47) (2011, I, 1355a20, p. 42), parte da ideia de que o ser humano,
por ser deficiente ou carente, é incapaz de perceber quaisquer verdades, mesmo com a
linguagem, única realidade possível com a qual é capaz de lidar. Assim, não há uma verdade
absoluta com que se preocupar e sim verdades relativas, “meras opiniões”. A retórica não
pode ser tratada apenas como ornamento ou estratégia de persuasão, pois ela vai além dessas
funções e serve também como instrumento de ação do homem na realidade em que vive.
A concepção da retórica, como ambiente da linguagem, como algo intrínseco ao
homem enquanto ser racional, do ponto vista da sua existência e realização na vida humana,
vai ser teorizada no campo jurídico a partir da segunda metade do século XX. Aqui, a retórica
vai ser marcada pelo avanço, no direito, do paradigma da linguagem, representado pela teoria
da argumentação e pelo emprego da tópica para dar fundamento racional ao discurso jurídico.
Essa “onda retórica” vai adquirir pretensões descritivas, indutivas e científicas, se irradiar
pelo direito, pela filosofia, pela lógica, pela hermenêutica, pela lingüística e pela ética.
É nesse contexto que Ottmar Ballweg concebe a retórica em três acepções principais:
a retórica material, a retórica prática (ou estratégica) e a retórica analítica. Esses três níveis
serão, respectivamente, correlacionados com a classificação formulada por Adeodato (2009b,
p. 20, 32, 40, 43, 45) para a retórica: a retórica dos métodos, a retórica metodológica e a
retórica metódica. O primeiro nível passa pela compreensão da retórica na realidade. O
segundo nível corresponde à necessidade do uso da retórica para a defesa de objetivos
escolhidos pelo orador. Já o terceiro nível passa pela compreensão dos mecanismos de
desconstrução da retórica de segundo nível.
A retórica material é a maneira pela qual os seres humanos efetivamente se
comunicam. Ela constitui o próprio ambiente em que acontece a comunicação; integra a
antropologia humana e envolve diretamente as relações do homem em comunicação. Significa
a linguagem como a própria realidade que o homem experimenta e permite que esse vivencie
não só o direito, mas os outros subsistemas sociais de forma concreta. Inclusive, a percepção
humana da própria existência também é retórica (ADEODATO, 2009b, p. 32, 34, 35, 36)
(BALLWEG, 1991, v. XXXIX, p. 176-177).
Ao considerar que a argumentação entimemática, baseada na verossimilhança,
associa a retórica com expectativas, pode-se dizer que a retórica material parte do controle
público da linguagem e conduz a consensos temporários e condicionais a partir da percepção
individual do homem, mas em sua interação com o outro no contexto em que está inserido
(BLUMENBERG, 1999, p. 136) (ADEODATO, 2009b, p. 35). No presente artigo,
corresponde à conjuntura em que ocorre o dano ambiental; o pesquisador deve apontar os
elementos biológicos, geográficos, históricos, demográficos, sociológicos, políticos,
econômicos etc. que envolvem a ação causadora do dano ambiental e a norma jurídica
incidente.
A retórica estratégica envolve aquele conjunto de regras construídas a partir da
observação da retórica material, tendo por objetivo produzir alterações ou influir na realidade
e possibilitar que o juiz atinja seus objetivos. Ela verifica fórmulas para a persuasão e,
segundo Adeodato, também outras estratégias que assegurem o objetivo do Poder Público.
Essas fórmulas são compostas principalmente pela tópica, pela teoria da argumentação, pela
teoria das figuras e pela linguística (ADEODATO, 2009b, p. 37) (BALLWEG, 1991, v.
XXXIX, p. 178). Neste projeto de pesquisa, a retórica estratégica corresponde às teses,
opiniões ideológicas sobre as alegações e provas sobre o dano ambiental, que o juiz vai adotar
para embasar a sua decisão e persuadir os participantes do processo judicial e a sociedade a
obedecerem espontaneamente o julgamento. Cabe ao pesquisador identificar e descrever essas
teses e revelar as ideias do julgador sobre o meio ambiente.
Já no que diz respeito à retórica analítica, estuda a relação entre como se processa a
linguagem humana e como o homem acumula experiências e desenvolve estratégias de modo
eficiente. Não impõe ao juiz a obrigatoriedade de estabelecer normas, de decidir, de
fundamentar e de interpretar. Na verdade, está submetida a outras exigências, sendo algumas
formais, como a obediência a enunciados aparentes; outras, de ordem zetética, como a
possibilidade de confirmação empírica desses enunciados; também a complementação com
outros princípios lógicos e a indução dos seus resultados (ADEODATO, 2009b, p. 38)
(BALLWEG, 1991, p. 179). Tem caráter formal, descritivo, zetético e dá igual atenção aos
seguintes elementos no sistema linguístico: signo, objeto e sujeito (ADEODATO, 2009b, p.
39). Ela aparece como metódica ao analisar a relação entre a retórica material e as retóricas
estratégicas e exercer o controle sobre estas. Acaba por servir como uma metateoria que se
ocupa tanto da aplicação das estratégias de persuasão sobre a conjuntura comunicativa
humana como do próprio conhecimento obtido pelo homem. A retórica analítica tenta
identificar as insuficiências e as contradições nas estratégias de convencimento que o juiz
utiliza para formular suas opiniões. O artigo objetiva, ao situar o contexto em que o meio
ambiente está inserido (retórica dos métodos) e descrever as ideias utilizadas para justificar a
proteção jurídica do bem ambiental (retórica metodológica), desconstruir criticamente essa
proteção, apontando as suas contradições, vícios, erros, êxitos ou pontos positivos, para
ampliar o seu alcance material pela utilização do topos da dignidade humana (retórica
metódica).
Percebe-se que a retórica material corresponde ao ambiente que todo ser humano
vivencia ao sair de casa, fazer compras, cumprimentar, praticar a boa vizinhança etc.,
ampliado para incorporar os direitos e as obrigações, reconhecidas e impostas pelo Estado,
que atuam sobre esse ambiente. Agora, quando não houver correspondência entre o texto da
lei e a realidade na qual se constitui, poderá haver antagonismo entre a realidade que existe e
a realidade que o direito quer que exista. Poderá ocorrer uma crise de concretização/realização
do direito. Do ponto de vista jurídico, o ambiente da retórica estratégica são as ideologias
presentes na legislação e na sua aplicação pelo Poder Judiciário. Ela abrange um conjunto
específico de ideias que envolve a maneira de o homem pensar, interpretar e agir no mundo e
tem por base a intervenção do homem no contexto em que está inserido para alterar o meio
ambiente e alcançar determinados objetivos como, por exemplo, a construção de uma usina
hidrelétrica ou a justificação da supressão de uma reserva biológica para a realização de obras
de infraestrutura etc. Nestes casos, muitas vezes, a decisão não passa por parâmetros técnico-
científicos, mas envolve juízos de valor; argumentos com forte carga abstrata, por exemplo,
soberania nacional, desenvolvimento, dignidade da pessoa humana, empregados para justiçar
julgamentos de litígios sobre o meio ambiente.
A intersecção entre a retórica material e a retórica estratégica se processa mediante
contradições originadas na forma do homem produzir as coisas e distribuir a riqueza. A tarefa
da retórica analítica deve ser sempre também a de auxiliar o isolamento das contradições
principais e secundárias que ocorrem neste processo e que se refletem no direito. Ela permite
a crítica, mediante o exame das contradições, das estratégias utilizadas pelo juiz, na defesa
das suas ideias sobre o meio ambiente, para influir no contexto em que se opera o dano
ambiental.
Isto significa analisar a questão ambiental mediante a separação dos aspectos
contrários e positivos da formação das ideias jurídicas sobre o dano ao meio ambiente,
criticando-os e buscando a melhor persuasão possível, dentre os melhores argumentos, acerca
da existência de possíveis soluções científicas, despercebidas pelo esquema decisional, à base
dos condicionantes históricos e materiais em que o Brasil está inserido. Aqui, vai se dar valor
aos aspectos quem/o que/onde/quando/por que. Assim, entende-se que a retórica se comporta
como uma metódica, analisando e determinando os procedimentos utilizados no
convencimento, bem como as estruturas de persuasão pelo discurso.
A retórica jurídica metódica permite a compreensão das causas e dos fatores que
dificultam, obstaculizam ou facilitam a efetividade dos direitos garantidos nas normas
jurídicas de proteção/reprodução do meio ambiente.
3. O contexto retórico material do direito ambiental: o meio ambiente e sua relação com
as ciências agrárias, a ecologia, a biologia, a economia e o direito
O objetivo deste tópico é estabelecer as bases da transdisciplinariedade do artigo,
mostra-se a relação entre o meio ambiente, as ciências agrárias e ambientais e o direito.
Entende-se por meio ambiente o conjunto de condições, influências, alterações e
interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as
suas formas, concepção presente no art. 3º, inciso I da Lei nº 6938/81 (SIRVINSKAS, 2010,
p. 72).
José Afonso da Silva (2010, p. 18) amplia esse conceito e define o meio ambiente
“como a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciam o
desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas”. Então, existe o meio ambiente
natural, o meio ambiente cultural, o meio ambiente artificial e o meio ambiente do trabalho.
O meio ambiente natural é constituído pela fauna, flora, vegetação e águas. Aqui, a
natureza aparece como conjunto de todos os seres que formam o universo e essência e
condição própria de um ser. Assim sendo, não é difícil dizer-se que a natureza é uma
totalidade. Nesta totalidade, evidentemente, o ser humano está incluído (SILVA, 2010, p. 19-
21).
Já o meio ambiente artificial é constituído pelo espaço urbano construído e envolve o
conjunto de edificações e equipamentos públicos, frutos da intervenção do homem na
paisagem. Pelo meio ambiente cultural, entende-se o patrimônio histórico, paisagístico,
artístico, arqueológico e turístico em função do valor especial que adquiriu ao longo do tempo
para a dada sociedade. Por fim, o meio ambiente do trabalho corresponde à qualidade sadia de
vida que deve estar presente nos instrumentos de trabalho utilizados pelo homem e constitui,
também, um complexo de bens imóveis e móveis de uma empresa e de uma sociedade, objeto
de direitos subjetivos privados e de direitos invioláveis da saúde e da integridade física dos
trabalhadores que o freqüentam. A proteção da segurança do ambiente de trabalho significa
proteção do ambiente e da saúde das populações externas aos estabelecimentos industriais
(SILVA, 2010, p. 22).
Paulo de Bessa Antunes (2010, p. 9) concebe o meio ambiente como uma designação
que compreende o ser humano como parte de um conjunto de relações econômicas, sociais e
políticas que se constroem a partir da apropriação econômica dos bens naturais que, por
submetidos à influência humana, se constituem em recursos ambientais.
Nesta ótica, a esfera de apreensão de direitos sobre o meio ambiente se materializa
no bem ambiental. A função social da propriedade impõe uma nova classificação para os
bens. Assim, tem-se: a) bens públicos (dominicais, especiais e quase-públicos); b) privados
(de uso, de consenso e de produção); c) bens ambientais (bens de uso comum do povo ou
difusos) (RODRIGUES, 2011, p. 46). O bem ambiental envolve uma universalidade que
abrange bens materiais e imateriais, bens disponíveis e indisponíveis e as relações jurídicas
economicamente relevantes. Bem ou recurso ambiental vai muito além da atmosfera, das
águas interiores, superficiais e subterrâneas, dos estuários, do mar territorial, do solo e do
subsolo, dos elementos da biosfera, da fauna e da flora, definidos no art. 3º, inciso V, da Lei
nº 6938/81. O bem ambiental é um patrimônio difuso, em sua integralidade, inalienável
(SIRVINSKAS, 2010, p. 109-110).
É por isto que o conceito jurídico de bem ambiental abrange todos os recursos
naturais essenciais à sadia qualidade de vida. É o denominado bem de uso comum do povo,
que transcende o bem particular ou estatal. Essa característica do bem ambiental é que o
coloca como bem complexo de natureza difusa (FIORILLO, 2010, p. 141-142).
Essa complexidade do bem ambiental força o sistema jurídico a se socorrer de
diferentes disciplinas e áreas do conhecimento como a Ecologia, a Biologia e a Economia. A
Constituição Federal, por exemplo, ao buscar proteger o homem, utiliza comandos para
definir o alcance da degradação ambiental e da poluição sobre os sujeitos. Aqui, por
degradação ambiental, entende-se a alteração adversa das características do meio ambiente. Já
por poluição, entende-se a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que
direta ou indiretamente prejudiquem a saúde, a biosfera, as condições sanitárias do meio
ambiente e lancem matéria ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos
(SILVA, 2010, p. 29-31). A poluição afeta diretamente o meio ambiente e é objeto de estudo
da ecologia.
A ecologia é tida como a ciência que estuda as condições de existência dos seres
vivos e as interações, de qualquer natureza, existente entre esses seres vivos e seu meio
(DAJOZ, 1983, p. 13). A ecologia aparece como um ramo da biologia, com status de ciência,
que estuda os ecossistemas e sua relação e interação com os seres vivos e seu meio. Vê o
meio ambiente nos aspectos da natureza, da formação cultural da sociedade, das relações de
trabalho e da intervenção do homem na modificação da paisagem. Os projetos educativos do
Poder Público devem ser realizados com base na ecologia. É por isto que se fala num Direito
Ecológico, que corresponde ao conjunto de técnicas, regras e instrumentos jurídicos
organicamente estruturados e informados por princípios apropriados que tenham por fim a
disciplina do comportamento relacionado ao meio ambiente (MACHADO, 2004, p. 137).
Em relação à influência da economia sobre o meio ambiente, entende-se que esta
gera o direito econômico. Este ramo do direito tem por objetivo a organização da atividade
produtiva, importando as alterações que resultam da adoção de determinadas medidas. Tem
por finalidade dirigir a vida econômica e em especial a produção e a circulação de riquezas. O
direito econômico cria normas jurídicas para evitar ou conter o desenvolvimento exacerbado e
seus critérios e impactos negativos no meio ambiente (ANTUNES, 2010, p. 12-15). No
sistema constitucional brasileiro está determinado que a ordem econômica está fundada na
valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência
digna, conforme os ditames da justiça social.
Esse emaranhado de conhecimentos necessários permite uma transdisciplinariedade.
Ivan Domingues (2005, p. 25), em resumo, afirma que as características da
transdisciplinariedade são a aproximação de diferentes disciplinas e áreas do conhecimento e
a comunhão de metodologias unificadoras, à base de um ecletismo articulado de métodos
oriundos dessas áreas. Aqui entendida é uma busca por uma aproximação do direito com as
ciências agrárias e ambientais mediante a abordagem retórica. A metodologia transdisciplinar
deve ir além das metodologias disciplinares, buscar uma composição complexa e com
resultado qualitativamente melhor que o anterior (BEIRÃO, GUERRA, 2005, p. 293).
O grande problema dessa aproximação é que o direito prescreve, tece comandos
sobre condutas, e esses comandos, que envolvem “opinião” dos operadores jurídicos sobre a
realidade do direito, conformam a própria realidade jurídica. O tratamento argumentativo da
lei é suficiente para resolver a aplicação da norma. Por isto, o direito é normativo
(ADEODATO, 2011, p. 16) e se diferencia de ciências meramente descritivas, que precisam
da empiria, hiato que muitas vezes leva a uma crise de efetividade da norma jurídica. Cita-se,
como exemplo, a Lei nº 14.236/2010 (BRASIL, 2012), que dispõe sobre a Política Estadual
de Resíduos Sólidos. No seu art. 2º, incisos IV e XIII, a lei diferencia a compostagem da
reciclagem e coloca a primeira como processo mais elaborado do que a segunda ao
estabelecer que a compostagem envolve “um conjunto de técnicas aplicadas para controlar a
decomposição de materiais orgânicos, com a finalidade de obter, no menor tempo possível,
material estável, rico em húmus e nutrientes minerais e com atributos físicos, químicos e
biológicos superiores àqueles encontrados nas matérias primas”. Em contrapartida, a
reciclagem envolve a “prática ou técnica na qual os resíduos podem ser usados com a
necessidade de tratamento para alterar as suas características físico-químicas”. Contudo, a
prescrição da norma não condiz com o tratamento científico das ciências ambientais, que
veem a compostagem como espécie de reciclagem (ALENCAR, 2009, in passim). Isso é
explicável pelo fato do ordenamento regular a vida a partir de uma linguagem sobre o próprio
ordenamento, tendo a norma como objeto e não o conteúdo regulado por ela. Entretanto, isso
resolve o problema da eficácia, mas não é suficiente para a concretização da norma jurídica.
Assim, como ressaltado, não se pode negar que a aplicação das ciências ambientais na solução
de problemas jurídicos pode resolver crises de efetividade da norma, o que contribui para
concretizá-la na vida dos cidadãos.
Nesse sentido, a retórica pode permitir essas aproximações, pois constitui uma forma
de abordagem de metodologias e métodos diversos (ADEODATO, 2011, p. 20), marcada por
forte transdisciplinariedade, inclusive, como afirma Adeodato (2011, p. 20), no campo do
estudo da biologia, que exige uma descrição da situação do ambiente humano, eminentemente
retórica. É o caso da noção biológica de vida e de consciência “que resultam de interações
complexas entre partes que não possuem, isoladamente, essas propriedades” (BEIRÃO;
GUERRA, 2005, p. 293-294), o que exige carga argumentativa para mostrar quando começa e
termina a capacidade de viver, questão fundamental para tratar, por exemplo, o problema do
aborto.
O meio ambiente, colocado como direito difuso, permite uma solidariedade entre as
diversas áreas do conhecimento e o direito, é impossível não se socorrer da biologia, da
química, da física, da sociologia, da geografia etc. A própria ideia de desenvolvimento
sustentável passa pela convergência entre o econômico, o social e o ecológico (GUERRA,
2012, p. 107).
4. Da retórica dos métodos à retórica metodológica no direito ambiental: o meio
ambiente e a sua proteção jurídica
Como já dito na introdução deste artigo, a tarefa da retórica metodológica é situar as
estratégias que serão utilizadas, pelo Estado e demais operadores do direito, para disciplinar
as relações sociais que envolvem o meio ambiente, particularmente o natural. Nesse sentido,
Leuzinger e Cureau (2008, p. 2) afirmam que, apesar da doutrina falar nas várias dimensões
do meio ambiente (natural, artificial, cultural e do trabalho), num sentido estrito, as normas
jurídicas ambientais são destinadas, precipuamente, ao aspecto natural ambiental. As demais
dimensões são tuteladas por uma série de normas de outros ramos do direito (principalmente,
o administrativo).
A Constituição Federal, em seu art. 225, caput, afirma o direito de todos ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, considerado bem de uso comum do povo e essencial à
sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo
e preservá-lo para as presentes e para as futuras gerações.
Em primeiro lugar, esse comando normativo implica na formação de um ramo do
direito: o direito ambiental, que consiste num conjunto de regras e princípios, pertencentes a
vários ramos do direito, reunidos por sua função instrumental para a disciplina da conduta
humana em relação aos bens ambientais.
Nesse conceito, Édis Milaré (2011, p. 136, 137, 160) que o direito ambiental está
relacionado com o equilíbrio entre a acumulação de riqueza e a sustentabilidade dos recursos,
tendo em vista o desenvolvimento social pleno, assegurando aos interessados a participação
democrática nos assuntos da sociedade, bem como padrões adequados de saúde e renda. Ele
exige uma transdisciplinariedade, pois é dependente dos conceitos e dos conhecimentos de
outras ciências como, por exemplo, a ecologia, a botânica, a química e a engenharia agrícola,
ambiental e florestal.
De qualquer forma, a presença de fatores econômicos na construção do direito
ambiental é influi retoricamente na construção da linguagem sobre os tipos ambientais, pois
um dos objetivos da política ambiental é a manutenção e a ampliação das condições básicas
ao desenvolvimento socioeconômico (MACEDO, 1994, p. 24). Neste sentido, a Política
Nacional do Meio Ambiente compreende a própria proteção ao meio ambiente como uma
atividade de natureza econômica, pois tem por objetivo o estabelecimento de critérios
ambientais a serem observados na produção e circulação de riquezas.
O direito ambiental serve como ferramenta para a atuação na organização da
economia, configura um determinado padrão de apropriação dos recursos ambientais. Por
exemplo, duas dessas ferramentas são a fixação de padrões de qualidade do ar e a criação de
espaços territorialmente protegidos, cujos objetivos são compatibilizar a intervenção do
homem na natureza com a as condições mínimas de existência da vida e proteger os
ecossistemas.
Pode-se então ampliar o entendimento para ver na acepção jurídica do meio ambiente
sadio um artifício para garantir a intervenção do Estado nas relações proprietárias e como um
direito a ser usufruído por todos. Aqui, o direito ambiental busca também a disciplina dos
bens de produção. A natureza econômica do direito ambiental deve ser percebida como uma
tendência globalizante, pela qual suas normas atingem todo o ordenamento e o transpassam
(FIGUEIREDO, 2010, p. 29, 34-35).
Por isto, o direito ao meio ambiente é um direito humano fundamental, integra os
direitos à saudável qualidade de vida, ao desenvolvimento econômico e à proteção dos
recursos naturais. Mais do que um ramo autônomo, o direito ambiental é uma concepção
retórica de aplicação da ordem jurídica que penetra em todos os ramos do direito.
Como já dito, o meio ambiente é considerado um bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida. Isto leva a que o meio ambiente e os bens ambientais
integrem-se à categoria jurídica da coisa comum. Os bens ambientais são considerados de
interesse comum. Neste aspecto, a função social da propriedade passa a ter como requisito o
respeito ao meio ambiente.
O direito ambiental propicia um equilíbrio na competição no mercado entre os
agentes econômicos, pois permite a intervenção na ordem econômica via garantias de
afastamento da apropriação direta de determinados bens. Embora, possua regime jurídico,
objetivos, princípios e sistema nacional próprios, dada a natureza específica de seu objeto
(ordenação da qualidade do meio ambiente com vista a uma boa qualidade de vida, com forte
presença e controle do Estado) (SILVA, 2010, p. 42), é um direito de coordenação entre
diversos ramos jurídicos, impondo aos demais setores do direito o respeito às normas
ambientais.
Essa coordenação encontra fundamento na Constituição Federal. Além de ser dotada
de um capítulo próprio para o meio ambiente, o capítulo VI (Do meio ambiente) do Título III
(Da ordem social), a Constituição Federal, ao longo de diversos dispositivos, trata das
obrigações da sociedade e do Estado para com o meio ambiente. Possui vinte e dois artigos
sobre o meio ambiente, envolvendo conteúdos de natureza processual, penal, econômica,
sanitária, tutelar administrativa e normas de repartição de competência, todos eles nucleados
pelo caput do art. 225, este considerado norma fundamental, extensão do art. 5º da
Constituição Federal, visto que o meio ambiente é projeção, e também pode ser considerado,
de um direito individual.
Em relação aos ordenamentos constitucionais anteriores, a Constituição de 1988
aprofundou as relações entre o meio ambiente e a infraestrutura social com o objetivo de
assegurar uma adequada fruição dos recursos ambientais e um nível adequado de qualidade de
vida ao ser humano. Aqui, a Constituição considera que a atividade econômica se faz
mediante a prospecção, produção e beneficiamento de recursos agropecuários, extrativistas e
minerais, ou seja, de recursos ambientais. Neste sentido, a tarefa da Constituição foi tentar
drenar as insatisfações na sociedade acerca da acumulação desses recursos mediante a sua
utilização racional.
Neste sentido, se erige um moderno sistema de garantias de qualidade de vida do
homem e do desenvolvimento econômico, tendo por base o macrobem ambiental. Esse
macrobem ambiental gera direitos difusos à sociedade. A titularidade desses direitos não se
concentra no indivíduo em si, nem mesmo no Estado, pertence a toda a sociedade, tais como o
direito à paz, ao desenvolvimento e ao meio ambiente (SARLET, 2003, p. 52-53). Eles
envolvem a titularidade social, ou seja, a atribuição da titularidade, além do Estado, para a
sociedade, o que no direito ambiental significa a possibilidade de limitar e, até mesmo, afastar
o direito de propriedade privada. O direito da sociedade sobre a tutela do meio ambiente é
difuso e surge da compreensão de que a qualidade de vida e a solidariedade entre os seres
humanos, independentemente de outros fatores, são tão importantes quanto a liberdade e a
igualdade, bases jurídicas das relações proprietárias no mundo ocidental. Os direitos
ambientais são considerados de terceira dimensão e têm por característica a extrema
heterogeneidade, a complexidade, a proteção como uma garantia internacional e atingem um
número indeterminado de pessoas, ligadas apenas por uma mera relação de fato (LEITE,
AYALA, 2010, p. 35-36, 82-85). É por isto que José Afonso da Silva (2010, p. 46) afirma que
a Constituição de 1988, a partir do Caput do art. 225, foi a primeira Constituição brasileira a
tratar deliberadamente da questão ambiental, sendo uma carta eminentemente ambientalista.
A partir dessa norma constitucional, estrutura-se todo um arcabouço que vai se dá
sobre o território e integrar o governo e a sociedade, criam-se órgãos numa estrutura
institucional adequada à gestão ambiental, o que gera o conhecimento das questões
ambientais fundamentais e se permite a atualização da própria política do meio ambiente e das
instituições criadas para a proteção ambiental (MACEDO, 1994, p. 23-26). Esse arcabouço é
regulamentado a um nível abaixo e subordinado à Constituição Federal, composto por um
emaranhado de leis, regulamentos e resoluções federais, estaduais e municipais. O principal
deles é a Lei nº 6938/81 que, em seu art. 3º, inciso I, conceitua o meio ambiente como “o
conjunto de condições, influências, alterações e interações de ordem física, química e
biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”.
As normas contidas no caput do art. 225 da Constituição Federal são de eficácia
plena, não necessitando de qualquer norma infraconstitucional para que operem efeitos no
mundo jurídico, pois consagram o direito ao meio ambiente sadio.
Segundo Luís Paulo Sirvinskas (2010, p. 137), o art. 225 pode ser dividido em 4
partes: a) o meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito fundamental da pessoa
humana (direito à vida com qualidade); b) o meio ambiente é um bem de uso comum do povo,
bem difuso e indisponível; c) o meio ambiente é um bem difuso e essencial à sadia qualidade
de vida do homem; d) o meio ambiente deve ser defendido e protegido pelo Poder Público e
pela coletividade para as presentes e futuras gerações. Ele entende por “todos” o conjunto de
pessoas integrado pelos brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil, conforme o art. 5º da
Constituição de 1988.
Melhor posição é a de Paulo de Bessa Antunes (2010, p. 65), pois entende que o
termo “todos” se refere aos seres humanos, abstratamente, mesmo os estrangeiros e brasileiros
não residentes no Brasil. A Constituição, em relação ao meio ambiente, não destina as suas
normas a uma pessoa específica, deixa claro que se trata de uma proteção difusa, que abrange
direitos e interesses de diversas pessoas e, portanto, não encartado na compreensão tradicional
dos direitos patrimoniais. Não são direitos ou interesses que podem ser atribuídos a uma parte
da sociedade ou a pessoas individualizadas. Trata-se de uma proteção plural que possui
sujeitos indefinidos no momento da produção legislativa, e sujeitos que somente se tornam
definíveis após a aplicação das normas no caso concreto. Assim, a primeira constatação que
surge do texto constitucional é que toda a sociedade torna-se sujeito de direitos ou de
interesses referentes ao ambiente sadio e ecologicamente equilibrado.
Ressalte-se que o direito ambiental é fortemente influenciado pela onda da
constitucionalização do direito civil que toma conta do direito brasileiro. Nesta ótica, existe
forte pressão para que os institutos jurídicos sejam compreendidos para além de uma visão
meramente patrimonialista, trazendo topos retóricos contendo valores calcados na pessoa
humana. Aqui, aparece a idéia de função social da propriedade influenciando a tutela
ambiental. Tenta-se ultrapassar a idéia de que os bens de uso comum do povo só podem ser
públicos, pois isto significaria a possibilidade de sua desafetação, o que levaria à sua
alienação (OLIVEIRA, 2010, p. 20). O meio ambiente é inalienável. A Constituição ao fixar
limites à propriedade em prol do interesse público, fixa obrigações, inclusive, para que a
iniciativa privada assegure a fruição, por todos, dos aspectos ambientais de bens do domínio
privado. Desta maneira, o proprietário de uma floresta permanece proprietário desta,
exercendo poderes de proprietário, mas está obrigado a não degradar as características
ecológicas da propriedade, estas, sim, de uso comum do povo.
Assim, a responsabilidade pela preservação do meio ambiente não é apenas do Poder
Público, mas de toda a sociedade, pela qual o cidadão tem o dever de preservar os recursos
naturais por meio dos instrumentos colados à sua disposição pela Constituição Federal, pela
Lei da Política Nacional do Meio Ambiente nº 6938/81. O dever de proteger o meio ambiente
acaba sendo um imperativo gerencial para as empresas com missão lucidamente definida em
suas estratégias de ação.
5. A desconstrução dos mecanismos de persuasão presentes na tutela do bem ambiental:
a utilização do topos da dignidade humana na perspectiva da concretização do direito
ambiental
A Constituição Federal reconhece os direitos humanos como parte fundamental
integrante da vida da República, em seu art. 1º, inciso III, estabelece que a “dignidade da
pessoa humana” é um dos seus “fundamentos”, e no seu art. 4º, inciso II, afirma que
República se rege, em suas relações internacionais, pelo princípio da “prevalência dos direitos
humanos”.
A dignidade da pessoa humana legitima direitos econômicos, políticos e sociais e
coloca a pessoa humana como valor fonte do direito e posicionando-a no sentido de sua
expansão para todos os domínios da vida. Segundo Robert Alexy (2002, p. 344-345), a pessoa
humana deve ser vista a partir da sua aspiração em se determinar e se desenvolver num
ambiente de liberdade e sustentabilidade com o meio em que vive. Essa ideia passa,
sobretudo, pela efetivação de direitos difusos, tais como o direito ao meio ambiente e o direito
à educação (BOBBIO, 1992, p. 25) (RABENHORST, 2001, p. 45-46), o que reaproxima o
direito da ética e orienta o direito ambiental.
A dignidade da pessoa humana, ao se comportar dessa forma, vai permitir que o
operador do direito atue sobre a retórica material e associe a ideia de ética à de utilidade. A
dignidade da pessoa humana força a norma ambiental à utilidade universal, mas na prática
não é bem uma utilidade universal e sim uma utilidade relativa, pois a forma de construção
dos topoi atende aos interesses que confluem para a intervenção econômica do Estado.
No meio ambiente, a dignidade humana está posta no art. 225 da Constituição e
demarca o perfil democrático do direito ambiental. Harmoniza a proteção ambiental com o
uso racional dos recursos naturais e garante uma esfera de participação dos cidadãos nas
decisões sobre questões sobre o meio ambiente. Isto significa o desenvolvimento sustentável.
Uma das técnicas que o Estado utiliza para responder aos efeitos das contradições geradas
pela consolidação das forças produtivas do capitalismo no campo é o desenvolvimento
sustentável, voltado para a minimização dos males sociais no mundo rural e à sadia qualidade
de vida do homem, materializam-se políticas participativas, descentralizadas e
compensatórias que protejam as zonas mais pobres dos efeitos negativos da transformação do
latifúndio em empresa.
Pode-se dizer que o desenvolvimento sustentável é um processo de transformação no
qual a exploração dos recursos, a direção dos investimentos, a orientação do desenvolvimento
tecnológico e a mudança institucional se harmonizam e reforçam o potencial presente e
futuro, a fim de atender às necessidades e aspirações humanas” (COMISSÃO MUNDIAL
SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1991, p. 9). Envolve uma
complexidade, pois considera fatores ambientais, econômicos, sociais, culturais e ideológicos,
e se baseia no trinômio eficiência econômica, justiça social e equilíbrio ambiental.
O topos da dignidade da pessoa humana representa a chave que permite transformar
um interesse relativo em universal e oferece à sociedade e ao homem o direito ao meio
ambiente sadio e de qualidade, com oportunidades reais e equilibradas. Se a retórica incorpora
o valor da utilidade, ela pode conseguir fazer com que o operador do direito colabore na
proteção do meio ambuiente. Aqui, a dignidade da pessoa humana deve oferecer Meio
ambiente sadio e de qualidade é aquele portador de reais condições de sustentabilidade.
Desta forma, o meio ambiente ecologicamente equilibrado deve ser interpretado
como instrumento do desenvolvimento econômico, ao propiciar a gestão racional dos recursos
minerais, agrícolas e extrativistas e de acordo com a sadia qualidade de vida do homem. Aqui,
refere-se à sociedade ambientalmente equilibrada no sentido de sociedades sustentáveis.
Admite-se que o Estado possa utilizar um conjunto de instrumentos preventivos que atuem
sobre as práticas econômicas, científicas, educacionais e conservacionistas para a garantia do
bem-estar da sociedade (LEMOS, 2012, p. 51). A dignidade humana permite que ideias
centradas em formas jurídicas como a justiça, o desenvolvimento sustentável, os negócios
jurídicos, as decisões judiciais, a doutrina jurídica e a lei sejam universalizadas e, que se
drenem as insatisfações sociais.
Daí a necessidade da inclusão, por exemplo, da educação ambiental em direitos
humanos no empoderamento da comunidade. O Brasil é signatário da Declaração Universal
dos Direitos Humanos, promulgada pelas Nações Unidas (ONU), em 10 de dezembro de
1948. No seu art. 26, a educação é estabelecida como direito humano e como conteúdo
fundamental. A educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e
do sentido de sua dignidade e a fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades
fundamentais. Também deverá capacitar todas as pessoas a participarem efetivamente de uma
sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e
entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos. A educação deverá orientar-se para o
pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e deverá
fortalecer o respeito pelos direitos humanos, pelo pluralismo ideológico, pelas liberdades
fundamentais, pela justiça e pela paz.
A Constituição, além de entender a educação como “direito de todos e dever do
Estado e da família”, prevê o “preparo para o exercício da cidadania” como uma de suas
finalidades principais, conforme o art. 205. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(Lei no 9.394/1996), no seu art. 22, segue o estabelecido pela Constituição Federal e
determina que entre as finalidades da educação básica está o desenvolvimento do aluno para
assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania. Ao tratar dos
currículos, conforme o seu art. 26, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação determina uma
base nacional comum para os currículos do ensino fundamental e médio. Esta base deve ser
complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, pelas características
regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e contribuir para a difusão dos
direitos e deveres do cidadão.
O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, lançado em 2006, prevê um
conjunto de ações para cinco áreas de atuação, entre as quais se destacam o reconhecimento
da educação não formal como espaço de defesa e promoção dos direitos humanos e a inclusão
da temática da educação em direitos humanos na educação não formal.
A nova governança local, criada pela Constituição de 1988, estimula que artigo
defenda as práticas de educação não formal e envolva as comunidades locais no processo
decisório e de controle da implementação de políticas de direitos humanos acerca do meio
ambiente, empodere segmentos da comunidade e promova a accountability dos gestores
públicos.
O empoderamento estabelece um diálogo com as formas de aquisição de poder e como
estas agem sobre os recursos necessários ao desenvolvimento de uma região ou qualquer
outro tipo de espaço. O empoderamento está inserido no debate de direitos em torno do
desenvolvimento (ROMANO, 2002, in passim) e atua para o fortalecimento de pequenos
grupos informais, associações e cooperativas que passam a exercer diferentes papeis em todo
o processo de produção, constitui um importante fator que pode interferir nas diferentes
dinâmicas de desenvolvimento. Essa autonomia significa um agir social alicerçado no
interesse comum da coletividade, que valoriza sua identidade e sua capacidade de interação e
conexão com a sociedade e a economia. Aqui, mais vez, atua retoricamente a dignidade da
pessoa humana. Ela conduz o discurso jurídico a uma perspectiva teleológica, ou seja, de
subordinar a persuasão aos fins das relações sociais. Ela constrói estratégias sobre versões de
fatos com a tarefa de drenar as insatisfações nessas relações. É necessário, pois o
ordenamento jurídico que tutela o meio ambiente surge e amadurece à base das contradições
presentes nos condicionantes históricos e materiais da sociedade. Essas contradições
“degeneram” permanentemente o sistema jurídico. Então, é sobre ele que a dignidade da
pessoa humana atua para mascarar as “fissuras” e criar ilusões de justiça, bem comum,
coletividade etc.
A dignidade da pessoa humana indica que a retórica também pode ser uma forma de
transmitir ideologias de controle social. O caminho apontado mostra que a retórica passa pela
interação homem/homem, homem/objeto, homem/objeto/homem, atinge a atividade
persuasória e vai até o controle social. Aqui, a dignidade da pessoa humana envolve o
pentágono interagir, persuadir, controlar, justificar, efetivar. É o reconhecimento jurídico à
proteção/reprodução da relação social, que rejeita qualquer atitude contemplativa, anti-social,
anti-política, anti-ideológica e anti-Republicana à retórica. Em qualquer situação,
independentemente do conteúdo do discurso, a retórica deve ser voltada para a transformação
da realidade. Ela é parte integrante da esfera jurídica.
A partir da difusão de tecnologias sustentáveis, que visem a convivência com o
semiárido e a melhoria da qualidade ambiental, por meio da agricultura de irrigação por
precisão, com o aproveitamento águas pluviais e de poços artesianos em comunidades rurais
de baixa renda, estimula-se a reflexão sobre os direitos ambientais fundamentais da pessoa
humana como forma de empoderar a comunidade no processo de transformações das relações
de poder existentes, o que contribui para superar o estado de pobreza. Constitui um meio de
construção de um futuro possível, capaz de recuperar as esperanças da população e de
mobilizar suas energias para a luta por direitos no plano local, nacional e internacional.
6. Conclusão: a proteção jurisdicional do meio ambiente, a degradação e a consciência
ecológica
A proteção judicial sobre as normas de direito ambiental se justifica a partir da
necessidade de se consolidar objetivos para as regras de direito ambiental que passem por
evitar e combater a degradação do meio ambiente, esta constituindo uma ameaça à qualidade
de vida do homem.
As ações predatórias do meio ambiente natural, particularmente o desmatamento e a
poluição, ameaçam as três esferas que mantêm a vida orgânica e humana: a atmosfera, a
hidrosfera e a litosfera.
Neste sentido, a regulação jurídica ambiental, da qual dos princípios fazem parte,
partindo de que as alterações produzidas no meio ambiente pela intervenção do homem são
contínuas e inevitáveis, busca coibir aquela modificação ambiental nociva ou inconveniente,
direta ou indiretamente, na vida, na saúde, na segurança e no bem-estar da população, nas
atividades sociais da comunidade, na biota ou nas condições estéticas ou sanitárias do meio
ambiente. Assim, as normas de direito ambiental buscam fixar níveis retóricos de
tolerabilidade de modificação pelo homem do meio ambiente.
Nesta ótica, as normas de direito ambiental desempenham papel fundamental para a
disseminação da consciência ecológica ou consciência ambientalista, e permitem ao Estado e
à sociedade enfrentarem o problema da degradação e da destruição do meio ambiente, seja ele
natural, artificial, cultural ou do trabalho. Daí a necessidade de tutela jurídica sobre estas
normas de proteção do meio ambiente.
O cidadão poderá, por exemplo, exercer o direito de propor ação civil pública; ação
popular; mandado de segurança coletivo; mandado de injunção; ação civil de
responsabilidade por improbidade administrativa; ação direta de inconstitucionalidade. Destes
se destacam a ação popular e a ação civil pública. A ação popular é uma ação constitucional
para anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade da qual o Estado participe,à
moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o
autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência. Já a ação
civil pública é uma ação constitucional para a defesa de direitos difusos por legitimados
extraordinários.
As normas processuais garantem o combate a todas as formas de pertubação da
qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico. Esse combate deve ser encarado numa
perspectiva ampla. Busca-se garantir que a lesão ao meio ambiente seja, de forma eficiente,
neutralizada pelo judiciário. Também, espera-se que o Estado solucione todas as pretensão,
em matéria ambiental, a ele levadas. O Estado toma para si, e quer que a sociedade também o
faça, a preservação do patrimônio ambiental global, considerado na sua proteção material, ao
fixar deveres e direitos, na forma de defender esses direitos e deveres em juízo.
Por fim, os princípios de direito ambiental, ao imporem objetivos que devam ser
realizados pelas regras de direito ambiental, procuram compatibilizar o desenvolvimento
econômico com a sadia qualidade de vida do homem, orientando o processo de produção de
riquezas de forma a não destruir os elementos substanciais da natureza e da cultura. Impera o
princípio democrático da dignidade da pessoa humana que assegura ao cidadão a
possibilidade de participação nas políticas públicas ambientais.
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A RAZÃO PÚBLICA COMO FILTRO DOS ARGUMENTOS EM MATÉR IA
AMBIENTAL NO ÂMBITO DO STF
PUBLIC REASON AS A FILTER OF THE SUPREME COURT ARGUMENTS ON
ENVIRONMENTAL ISSUES
Giselle Marques de Araújo
RESUMO
Este artigo desenvolve a idéia de que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, no caso brasileiro, adquiriu tanta relevância que chega a constituir-se em um dos elementos da razão pública, categoria presente no pensamento de John Rawls, que a define como a razão de ser de um povo democrático. O problema é que Rawls classificou a relação homem-natureza dentre as razões “não públicas”. Partindo dos indicadores que Rawls elege como conteúdo da razão pública, no entanto, a pesquisa analisa a tensão entre propriedade privada e meio ambiente nas decisões do Supremo Tribunal Federal à luz da ponderação e do balanceamento propostos por Robert Alexy, e conclui que, a despeito da negativa expressa de Rawls, no caso brasileiro, a razão pública tem servido como filtro dos argumentos em matéria ambiental no âmbito do Supremo Tribunal Federal. A pesquisa apresenta as discussões realizadas pelo Supremo Tribunal Federal em relação a dois temas: o uso do amianto em território brasileiro e o Pantanal, considerado pela Constituição como Patrimônio Nacional.
Palavras-chave: Razão pública; Meio ambiente ecologicamente equilibrado; Argumentos do Supremo Tribunal.
ABSTRACT
This article develops the idea that the right to an ecologically balanced environment, in Brazil, acquired such importance that comes to constitute itself as an element of public reason, this category found in the thought of John Rawls, who defines it as the reason to be a democratic people. The problem is that Rawls called the man-nature relationship among the reasons "not public". Based on the indicators that Rawls chooses as the content of public reason, however, the study investigates the tension between private property and the environment in the decisions of the Supreme Court in light of the weighting and balancing proposed by Robert Alexy, and concludes that, despite Rawls expresses the negative, in the Brazilian case, the public reason has served as a filter of environmental arguments in the Supreme Court. The research presents the discussions held by the Supreme Court in relation to two themes: the use of asbestos in Brazil and the Pantanal, considered the Constitution as a National Heritage.
Keywords: Public reason; Ecologically balanced environment, The Supreme Court arguments.
1 INTRODUÇÃO
Este artigo tem por objetivo geral verificar como vem se efetivando no Brasil o
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, proclamado no artigo 225 da
Constituição Federal. Para lançar luz a essa questão, elege como marco teórico a idéia de
“razão pública” desenvolvida por John Rawls, um dos maiores pensadores sociais do século
XX. Afirma-se que o direito ao meio ambiente saudável, no caso brasileiro, adquiriu tanta
relevância que chega a constituir-se em um dos elementos da razão pública, categoria presente
no pensamento de Rawls (2000, p. 261), para quem a razão pública é a característica de um
povo democrático, ao menos daqueles que desfrutam de um status de igualdade enquanto
cidadãos.
A hipótese que se pretende confirmar, portanto, é a de que o povo brasileiro, ao
definir na sua Constituição que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado” exteriorizou a sua razão pública, definindo novos rumos para si e para o Estado.
O problema nessa proposição, é que Rawls excluía da idéia de razão pública o “status do
mundo natural”, e a relação do ser humano com ele.
Pretende-se contextualizar o pensamento de Rawls percebendo-o enquanto
pesquisador norte-americano imbuído dos valores daquela sociedade para, identificando os
indicadores do que seria a razão pública, aplicá-los ao caso brasileiro, a fim de verificar se, no
Brasil, a defesa do meio ambiente é um elemento constitucional essencial, e, portanto,
integrante da razão pública, a despeito da posição contrária de Rawls a esse respeito. Este é o
background da discussão que se pretende aqui travar1.
A metodologia a ser adotada recorre ao pragmatismo presente em John Dewey
(1998, p. 42)2; buscando contextualizar as questões propostas, foram consultadas obras
doutrinárias, artigos científicos, e, num viés empírico, as decisões do Supremo Tribunal
Federal em casos concretos. A escolha deste recorte metodológico (estudo de caso a respeito
1 A expressão background foi emprestada de John Dewey, para quem um dos maiores problemas do pensamento filosófico consiste em negligenciar o conceito de contexto. E, se o contexto é algo sempre tão patente que não chega a ser notado, não significa, contudo, que ele possa ser negado. Por isso, dois temas devem ser considerados no conjunto do ambiente que a filosofia deve levar em consideração: o “pano de fundo” (background) e os interesses seletivos. (PROGREBINSCHI, 2005, p. 58). 2 Dewey, destaca a estreita conexão entre as idéias filosóficas e a vida social (contextualismo); a concepção da verdade seria fruto de um processo contínuo de descobertas, em que as idéias figuram como hipóteses a serem confirmadas pela experiência prática, através da verificação antecipada de suas possíveis conseqüências.
das decisões jurisprudenciais) encontra respaldo no pensamento de Rawls, que destaca o
supremo tribunal enquanto ramo do Estado que serve de caso exemplar à razão pública.
A análise das decisões do STF tem por escopo investigar se a razão pública constitui-
se em filtro dos argumentos em matéria ambiental, e, para tanto, define a tensão entre meio
ambiente e propriedade privada como referência; tratando-se de conflito entre direitos
fundamentais, são utilizadas as técnicas da ponderação e do balanceamento propostos por
Robert Alexy a partir de dois recortes: a) o debate relativo ao direito ao meio ambiente
equilibrado em face do direito de propriedade no âmbito do pantanal mato-grossense, b) a
proibição da utilização do amianto nos estados brasileiros, a despeito de lei federal que
autoriza a utilização de um dos tipos de amianto: a crisotila.
O primeiro recorte justifica-se em face da importância do Pantanal para a
biodiversidade do Planeta. O segundo foi definido a partir das consultas preliminares às
decisões do Supremo Tribunal Federal para a elaboração deste artigo, quando foi detectado o
caso do amianto como referência que se amolda como modelo à discussão que se pretende
aqui travar.
2 A RAZÃO PÚBLICA
A considerável legitimidade política alcançada pelo movimento ambientalista em
todo o mundo é notável. No caso brasileiro, a proteção ambiental adquiriu tal relevância que
parece integrar a razão pública, enquanto resultado de um processo de eleição de princípios de
justiça pelos cidadãos que integram a sociedade. Para Rawls (2000, p. 261), o objeto dessa
razão é o bem público “aquilo que a concepção política de justiça requer da estrutura básica
das instituições da sociedade e dos fins a que devem servir”. O que se está aqui propondo,
enquanto reflexão acadêmica, é que, ao dar ênfase à preservação ambiental, o STF exterioriza
a razão pública, como filtro dos seus argumentos em matéria ambiental, firmando uma
concepção política de justiça calcada nos reclames da sociedade, que pugna pelo respeito ao
meio ambiente3.
3 A opção da sociedade brasileira pelo respeito ao meio ambiente enquanto direito fundamental tem sido expressa, dentre outras formas, através da participação popular em organizações não governamentais, e mediante
Ao dizer quais seriam as razões públicas de uma sociedade, Rawls faz menção
àquelas questões que dizem respeito aos valores políticos (quem tem direito ao voto, ou que
religiões devem ser toleradas, ou a quem se deve assegurar igualdade de oportunidades, ou ter
propriedades), e diz que a maioria das questões públicas não diz respeito a esses problemas
essenciais, citando, como exemplo, “estatutos que protegem o meio ambiente e controlam a
poluição” (RAWLS, 2005, p. 215).
Mas, no caso brasileiro, a questão ambiental não está regulamentada apenas em
estatutos, leis ou micro-sistemas, como é o caso americano (já que a Constituição dos Estados
Unidos nada diz a respeito da conservação ambiental). No Brasil, a proteção ambiental foi
proclamada na Constituição enquanto princípio, estando, portanto, dentre os elementos
constitucionais essenciais, apontado por Rawls (2000, p. 277) como critério integrante da
razão pública.
Além disso, se para Rawls (2000, p. 263) a deliberação de uma sociedade acerca de
quem deve ter propriedades integra a razão pública, então podemos dizer, com base neste
critério, que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado regula a estrutura básica
da sociedade brasileira, pois influencia quem pode ou não ter propriedades, e também de que
modo a propriedade pode ser exercida.
No inciso III do artigo 225, a Constituição diz que incumbe ao Poder Público definir
em todas as unidades da Federação espaços territoriais e seus componentes a serem
especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei,
“vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua
proteção”. Como desdobramento deste dispositivo constitucional, a Lei no. 9985, de 18 de
julho de 2000, no parágrafo primeiro do artigo 104, diz o seguinte:
ações e atitudes individuais, que contribuíram para construir uma percepção de que a questão é tão séria, que merece estar inscrita na Constituição, enquanto princípio. 4 No mesmo sentido, o parágrafo 1º. do artigo 18, diz que " a Reserva Extrativista é de domínio público, com uso concedido às populações extrativistas tradicionais conforme o disposto no art. 23 desta Lei e em regulamentação específica, sendo que as áreas particulares incluídas em seus limites devem ser desapropriadas, de acordo com o que dispõe a lei". O artigo 20 da Lei 9985/2000, por sua vez, prevê que "a Reserva de Desenvolvimento Sustentável é de domínio público, sendo que as áreas particulares incluídas em seus limites devem ser, quando necessário, desapropriadas, de acordo com o que dispõe a lei". Ou seja, no Brasil, a possibilidade da desapropriação por interesse público está expressa e regulamentada em lei.
§ 1o A Reserva Biológica é de posse e domínio públicos, sendo que as áreas particulares incluídas em seus limites serão desapropriadas, de acordo com o que dispõe a lei.
Ou seja, uma pessoa pode vir a ser expropriada de seus bens particulares, devido ao
interesse da sociedade em garantir a proteção ambiental, conforme os cidadãos desta
sociedade pactuaram na sua Constituição. A idéia de defesa do meio ambiente, portanto,
legitimou-se como princípio de justiça substantivo na Constituição vigente, tornando-se
justificável perante todos os cidadãos, como requer o princípio de legitimidade política
contido no pensamento de Rawls (2000, p. 274), ao afirmar o seguinte:
Como já foi dito, com respeito às questões constitucionais essenciais à justiça básica, a estrutura básica e suas políticas públicas devem ser justificáveis perante todos os cidadãos, como requer o princípio da legitimidade política. A isso acrescentamos que, ao fazer essas justificações, devemos apelar unicamente para as crenças gerais e para as formas de argumentação aceitas no momento presente e encontradas no senso comum, e para os métodos e conclusões da ciência, quando estes não são controvertidos.
Contextualizando o pensamento de Rawls, é importante ter em foco que sua análise
está calcada no liberalismo e, via de conseqüência, apresenta a noção de legitimidade política
presente no modelo liberal. Este é o modelo atualmente vigente no Brasil, o que não significa,
em absoluto, negar a influência do “estado social” sobre a conjuntura nacional. Na
apresentação da obra “O liberalismo político”, está o alerta de que a palavra “liberal” não tem
nos Estados Unidos o mesmo significado que tem no Brasil. Liberalismo assemelhar-se-ia na
América ao que denominamos socialismo.
Nesse contexto é que a Constituição, a par de consagrar o direito à propriedade no
inciso XXII do artigo 5º, logo em seguida, no inciso XXIII afirma que esta propriedade
“atenderá a sua função social”. Ou seja, é a própria Constituição quem impõe limites ao
direito de propriedade. É a Constituição quem esclarece que o direito de propriedade não é
absoluto, sendo forçoso concluir que no Brasil o direito individual à propriedade poderá ser
limitado sempre que o interesse da coletividade assim o exigir. E, para que se efetive o direito
dessa coletividade ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o direito à propriedade terá
que ser exercido dentro de determinados limites, alguns dos quais estabelecidos na própria
Constituição, outros na legislação infraconstitucional, outros ainda fixados a partir da
jurisprudência, conforme será detalhado a seguir, quando este artigo colocará em evidência a
tensão entre direito à propriedade e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, nas
decisões proferidas pelo STF.
3 MEIO AMBIENTE E PROPRIEDADE: O CONFLITO ENTRE PRI NCÍPIOS
3.1 A ponderação e o balanceamento
A colisão entre princípios constitui-se em um dos grandes desafios para o direito
constitucional contemporâneo. A chave para a solução deste problema, segundo Robert Alexy
(2010, p. 21) estaria na análise da estrutura das normas de direitos fundamentais, o que se faz
possível buscando-se a distinção entre princípios e regras5. No caso do conflito entre regras,
aplica-se uma “cláusula de exceção” a uma delas- aquela que tenha menor incidência na
análise de um caso concreto (Ibidem, p. 92).
A distinção entre princípios, no entanto, não pode resultar na invalidação ou
revogação de quaisquer destes: um princípio nunca revoga ou invalida o outro. Alexy propõe
uma fórmula através da qual seriam atribuídos pelo intérprete valores baseados no peso de
cada princípio, segundo as características de incidência destes no caso concreto. São
propostos dois métodos para a solução de conflitos: a ponderação e o balanceamento6.
Alexy (2003, p. 440) diz que a racionalidade da subsunção está em identificar os
elementos que integram a estrutura formal da incidência dos princípios, mediante uma “escala
triádica”: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, que integrariam a
máxima da proporcionalidade, a serem aplicados para o sopesamento dos princípios que
5 A “teoria dos princípios” desenvolvida por Alexy tem alcançado bastante aceitação nos meios jurídicos, inclusive servindo como fundamento para decisões do STF. É ele quem resume seus argumentos: “The basis of both the rule and the principles construction is the norm-theoretic distinction between rules and principles. Rules are norms that require something definitively. They are definitive commands. Their form of application is subsumption. If a rule is valid and applicable, it is definitively required that exactly what it demands be done. If this is done, the rule is complied with; if this is not done, the rule is not complied with. By contrast, principles are norms requiring that something be realized to the greatest extent possible, given the factual and legal possibilities at hand. Thus, principles are optimization requirements. As such, they are characterized by the fact that they can be satisfied to varying degrees, and that the appropriate degree of satisfaction depends not only on what is factually possible but also on what is legally possible.” (ALEXY, 2008, p. 85) 6Dentre as propostas metodológicas para a interpretação jurídica, duas se destacam: a subsunção e o balanceamento. Enquanto a subsunção tem sido esclarecida consideravelmente ao longo das últimas décadas, quando o tema que está em pauta é o balanceamento, ainda há mais perguntas do que respostas. Um questionamento importante, segundo Alexy (2003, p. 1) é se o balanceamento é ou não um procedimento racional.
estiverem em “rota de colisão” ante um fato concreto7. Esta teoria, no entanto, não está isenta
de críticas. Pelo contrário, é o próprio Alexy (Ibidem, p. 436) quem cita a crítica lançada por
Habermas: According to Habermas, there are no rational standards for balancing or
weighing: “Because here are no rational standards for this, weighing takes place either
arbitrarily or unreflectively, according to customary standards and hierarchies.”
No mesmo sentido de Habermas, Alexy destaca a crítica de Schlink (Ibidem, p. 437);
a diferença é que para este último “balancing, in the end, boils down to `subjective and
decisionistc evaluations´ (SCHLINK, 2001, p. 460)”. As críticas de Habermas e de Schlink
são pertinentes, na medida em que há uma forte carga de subjetividade na atribuição de peso a
cada princípio, o que afasta a racionalidade do método proposto por Alexy. Outra crítica
relevante vem de Ernst-Wolfgang Böckenförde (1991, p. 92), contrária ao mandamento de
otimização dos direitos fundamentais defendido por Alexy no sentido de que “os princípios
devem ser realizados de maneira mais ampla possível”. Böckenförde vê dificuldades para a
definição do que seria este ponto máximo na aplicação de um princípio. Em resposta às
críticas, Alexy (Op. cit., p. 594) assinala que, embora o sopesamento nem sempre determine
um resultado de forma racional, isso é em alguns casos possível, “e o conjunto desses casos é
interessante o suficiente para justificar o sopesamento como método”.
Em que pese a notoriedade alcançada pela teoria de Alexy, questiona-se a
plausibilidade da aplicação de fórmulas matemáticas para a solução de conflitos decorrentes
da colisão de princípios de direito fundamental, matéria adstrita ao campo das ciências sociais
e humanas, e não ao das ciências exatas. A contribuição de Alexy é interessante, no entanto,
sob dois aspectos: primeiro, porque ele propõe a ponderação entre princípios sempre na
análise de casos concretos, o que evita a abstração; segundo, porque defende que um princípio
nunca revoga o outro, mas, sim, um princípio se afasta, devido a especificidades de cada caso,
a fim de que o outro princípio possa incidir com maior preeminência naquele momento.
7 Na pesquisa desenvolvida neste artigo, verificou-se que esta tríade pouco tem sido utilizada pelo STF nos casos envolvendo a tensão entre propriedade e meio ambiente. A ausência deste exercício metodológico para a formulação do fundamento das decisões do STF que envolvem conflitos entre regras e princípios, já havia sido observada também por Virgílio Afonso da Silva: “A única menção ao modo concreto de aplicação da regra da proporcionalidade resume-se a uma referência a duas de suas sub-regras, a adequação e a necessidade, por meio da citação de trabalho doutrinário, de autoria de Gilmar Ferreira Mendes, sem nenhuma preocupação em aplicá-las” (SILVA, 2002, p. 33).
Esta é uma solução interessante quando se está diante da colisão de princípios
fundamentais. E por isso, dentro desta proposta metodológica formulada por Alexy, serão
pesquisadas as decisões do STF a fim de destacar aquelas que evidenciam o conflito entre
meio ambiente e propriedade privada, a fim de verificar se de fato a razão pública tem servido
como filtro dos argumentos em matéria ambiental nas decisões do STF.
3.2 O conflito no âmbito do STF
O princípio de que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”
proclamado no caput do artigo 225 da Constituição, para ser efetivado, implica com
freqüência na limitação ao direito de propriedade, o que pode ser percebido, por exemplo, a
partir das Resoluções emitidas pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente-CONAMA8, órgão
que tem sido responsável pelas diretrizes de políticas governamentais para o meio ambiente.
Para verificar como o embate entre estes dois princípios vem sendo administrado pelo
Supremo Tribunal Federal, foram consultadas as decisões daquela Corte a partir do seu sitio
eletrônico oficial. Como primeiro passo, acessou-se à página oficial do STF, no seguinte
endereço eletrônico: <http://www.stf.jus.br/portal/principal/principal.asp>.
No primeiro acesso, que ocorreu em 12.12.2011, clicou-se no link “jurisprudência”, e
efetivou-se uma busca utilizando como referência o verbete “CONAMA”; como resultados
foram apontados 09 acórdãos, e nenhuma questão de repercussão geral9. Dentre os acórdãos,
merece destaque o julgamento da Ação Direita de Inconstitucionalidade -ADI 1505/ES, no
qual o Ministro Marco Aurélio destacou (BRASIL, 2011, p.79):
Senhora Presidente, por maior que seja a ênfase que se dê à preservação do meio
ambiente- e essa ênfase foi dada pela Carta de 1988, tendo em conta a preservação
da Mãe-Terra, não se pode conceber que o Legislativo atue em campo reservado,
sob o ângulo administrativo, ao Executivo.
8 O CONAMA foi criado através da Lei 6938, de 31 de Agosto de 1981. 9 O primeiro acesso, no início desta pesquisa, em 12.12.2011, apontava nove acórdãos. No último acesso, em 16.12.2012, seguindo os mesmos passos, ou seja, utilizando-se o verbete “conama”, foram apontados doze documentos, dentre os quais merece destaque o RE 650909 AgR / RJ - RIO DE JANEIRO, julgado em 17.04.2012, no qual o STF entendeu a impossibilidade de lei estadual dispensar previamente Estudo de Impacto Ambiental, o que confirma a assertiva de que a defesa do meio ambiente integra a razão do supremo, como reflexo da razão pública dos cidadãos brasileiros.
Nesta passagem, o Ministro Marco Aurélio faz menção a um entendimento que vem
se fortalecendo nos julgamentos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal, de dar ênfase à
preservação do meio ambiente, e, assim, conferir efetividade ao disposto no artigo 225 da
Constituição Federal, inclusive reconhecendo ao CONAMA a competência e a atribuição para
instituir normas que disciplinem o exercício de atividades potencialmente poluidoras, a
despeito dos protestos daqueles que pugnam por uma aplicação literal do princípio da
legalidade.
4 O SUPREMO TRIBUNAL COMO EXEMPLO DA RAZÃO PÚBLICA NA
QUESTÃO AMBIENTAL
Até aqui foram explicitados dois parâmetros que Rawls estabelece como critérios
para a verificação do conteúdo da razão pública: a) a deliberação de uma sociedade acerca de
quem deve ter propriedades; b) se a questão está inserida na Constituição dentre os elementos
constitucionais essenciais. A seguir, será analisado um terceiro parâmetro proposto por Rawls
como indicativo de questões que integram o conteúdo da razão pública: c) que elas se
apresentem como a razão do tribunal no exercício de seu papel de intérprete judicial supremo.
Rawls (2000, p. 281) afirma que:
(...) num regime constitucional com “razão judicial”, a razão pública é a razão de seu supremo tribunal. Esboço agora duas questões a esse respeito: a primeira, é que a razão pública é bastante apropriada para ser a razão do tribunal no exercício de seu papel de intérprete judicial supremo, mas não o de intérprete último da lei mais alta; e a segunda é que o supremo tribunal é o ramo do Estado que serve de caso exemplar de razão pública.
Neste artigo, adotando-se a premissa estabelecida por Rawls, de que o supremo
tribunal é o ramo do Estado que serve de caso exemplar à razão pública, confirma-se a
hipótese de que, no caso brasileiro, o direito ao meio ambiente equilibrado integra a razão
pública- pois vem servindo como um filtro dos argumentos do Supremo Tribunal Federal, ao
qual se dá ênfase, conforme afirmou o Ministro Marco Aurélio na ADI 1505/ES (BRASIL,
2011, p.79), no voto transcrito na seção anterior.
Esta conclusão decorre da análise da posição do Supremo Tribunal Federal-STF, em
relação a dois temas específicos: a questão do amianto, e o caso do Pantanal. Não se tem aqui
a pretensão de registrar todos os julgamentos do STF que versam sobre o meio ambiente.
Mas, sim, o de destacar alguns casos emblemáticos que confirmam a hipótese de que, no caso
do Brasil, a defesa do meio ambiente adquiriu tal relevância, que chega a traduzir a “razão
pública” da sociedade brasileira10.
4.1 A questão do amianto
Dentre os nove acórdãos apontados na pesquisa à jurisprudência, efetivada através de
consulta ao site oficial da Corte Excelsa utilizando o verbete CONAMA, constatou-se que o
Supremo Tribunal Federal tem enfrentado diversas ações acerca da produção,
comercialização, transporte, ou simplesmente utilização do Amianto11. Na Medida Cautelar
em Ação Direta de Inconstitucionalidade 3937 MC/SP-São Paulo (BRASIL, 2011), a
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria - CNI arguiu a inconstitucionalidade
da Lei 12.684, de 26 de julho de 2007, do Estado de São Paulo, que “proíbe o uso, no Estado
de São Paulo, de produtos, materiais ou artefatos que contenham quaisquer tipos de amianto
ou abesto, ou outros materiais que, acidentalmente, tenham fibras de amianto na sua
composição.” O Relator foi o Ministro Marco Aurélio, que deferiu a medida acauteladora para
suspender a Lei 12.684 do Estado de São Paulo, até a decisão final da ação direta de
inconstitucionalidade.
Os demais Ministros do Supremo Tribunal Federal, no entanto, negaram referendo à
liminar concedida pelo Relator, mantendo a eficácia da lei do Estado de São Paulo que proíbe
10 Estes dois temas foram recortados, porque: i) no caso do amianto, além da gravidade dos seus efeitos nocivos, há uma importante questão de fundo: a Lei Federal 9.055 de 1º. de junho de 1995 proibia o uso do amianto em todo o território nacional, à exceção do amianto do tipo “crisotila”. O STF entendia que, por haver lei federal possibilitando o uso da crisotila em todo o território nacional, não poderiam os estados restringir o uso desta substância, sob pena de violação ao princípio da hierarquia das leis, por invasão da competência federal pelos estados. O STF mudou o precedente de há muito assentado, no sentido de que a lei federal afasta a lei estadual. A União havia promulgado uma lei permitindo o uso de um dos tipos de amianto e, por isso, não poderiam os estados proibi-lo. Mas, o STF mudou esse entendimento, face à relevância da questão ambiental e de saúde pública. Ou seja, prevaleceu a razão pública. ii) O tema da preservação do Pantanal foi aqui destacado, devido à relevância desse ecossistema para o planeta (o que foi reconhecido pela própria Constituição Federal, no § 4º do artigo 225, que conferiu ao pantanal o status de patrimônio nacional); mas, apesar desse reconhecimento constitucional, o Pantanal tem sido pouco pesquisado. 11 A questão do Amianto foi também debatida pelo STF nos autos das Ações Diretas de Inconstitucionalidade de números 2.656-9/SP e 2.396/MS.
o uso do amianto. Esta decisão foi extremamente relevante porque modificou por completo a
posição que o Supremo Tribunal Federal vinha adotando, no sentido de que seriam
inconstitucionais as leis estaduais que proibiam o uso do amianto, por contrariarem a Lei
Federal no. 9.055, de 1º de junho de 1995. O entendimento era de que a competência da
União Federal para legislar sobre a matéria afastava a possibilidade dos estados fazê-lo e, por
isso, em ações anteriores, o STF nem mesmo adentrava ao mérito da questão, extinguindo os
processos sem julgamento de mérito.
Em seu “voto-vista”, o Ministro Joaquim Barbosa lembrou que tramitam no Supremo
Tribunal Federal seis ações diretas de inconstitucionalidade propostas pela Confederação
Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI) contra leis estaduais que tratam do amianto.
Segundo o Ministro “grande parte das variedades de amianto já é proibida no Brasil”. A Lei
Federal 9.055, de 1º de junho de 1995, autoriza a utilização de uma espécie de amianto
chamada de “crisotila”. A causa de pedir destas ações diretas de inconstitucionalidade foi o
desrespeito pelos estados da autorização legislativa conferida pela União a esse tipo de
amianto12.
Ao ser pautado o julgamento da Medida Cautelar em Ação Direta de
Inconstitucionalidade 3937 MC/SP-São Paulo (BRASIL, 2011), no entanto, o Ministro
Joaquim Barbosa resolveu estudar a fundo o tema, convencendo-se das conseqüências
nefastas do uso do amianto, destacando em seu voto que o Conselho Nacional do Meio
Ambiente- CONAMA no ano de 2004 reconheceu que, de acordo com os critérios adotados
pela Organização Mundial de Saúde, não há limites seguros para a exposição humana ao
amianto. Os argumentos defendidos pelo Ministro Joaquim Barbosa impressionaram os seus
pares, inclusive o Ministro César Peluso, que o acompanhou.
Foi também decisivo para a mudança da posição que vinha sendo adotada até então
pelo STF, e que favorecia o uso do amianto, o reconhecimento expresso do Ministro Eros
Grau de que estava equivocado no julgamento das ações anteriores, pois “a matéria não pode
ser examinada única e exclusivamente desde a perspectiva formal”. A lei federal, neste caso,
segundo o Ministro, “é que destoa da Constituição Federal, ao admitir a utilização de um dos 12 A autorização do uso da crisotila já havia sido reconhecida pelo STF em dois Acórdãos: Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI 2.396, na qual foi relatora a Ministra Ellen Grace, e ADI 2.656, sob a relatoria do Ministro Maurício Corrêa. Naquela ocasião o STF entendeu que deveria afastar-se da discussão técnica relativa aos efeitos danosos do amianto crisotila, tendo em vista uma questão que precede o mérito: a Lei Federal 9.055/95 é norma geral que afasta lei estadual.
tipos de amianto”, conforme também entendeu o Ministro Carlos Britto (BRASIL, 2011,
p.134):
De maneira que, retomando o discurso do Ministro Joaquim Barbosa, a norma estadual, no caso, cumpre muito mais a Constituição Federal nesse plano de proteção à saúde ou de evitar riscos à saúde humana, à população em geral e ao meio ambiente.
A legislação estadual está muito mais próxima dos desígnios constitucionais e, portanto, realiza melhor esse sumo princípio da efetividade máxima da Constituição em direitos fundamentais (...)
E, como estamos em sede de cautelar, há dois princípios que desaconselham o referendum à cautelar: o princípio da precaução, que busca evitar riscos ou danos ao meio ambiente para gerações presentes; e o princípio da prevenção, que tem a mesma finalidade para as gerações futuras.
Este belíssimo trecho do voto do Ministro Carlos Britto revela que os princípios de
direito ambiental vêm iluminando a mentalidade vigente no Supremo Tribunal, extrapolando
o âmbito da mera previsão doutrinária. Mas não foi suficiente para convencer a Ministra Ellen
Gracie (BRASIL, 2011, p. 136), segundo quem, no caso vertente, o que estava em jogo era “a
equação constitucional das competências legislativas” e, por isso, ela posicionou-se favorável
à ratificação da liminar, argüindo que a Constituição fixou a competência ao Congresso
Nacional para legislar nessa matéria. O entendimento da Ministra Ellen não prevaleceu, o que
evidencia a robustez que alcançou a defesa ambiental no âmbito do STF, em consonância com
um dos cinco princípios do constitucionalismo destacados por Rawls (2000, p. 282) a
distinção entre a lei mais alta e a lei comum:
A lei mais alta é a expressão do poder constituinte do povo e tem a autoridade mais alta da vontade de “Nós, o Povo”, ao passo que a legislação ordinária tem a autoridade do poder ordinário do parlamento e do eleitorado, e é uma expressão desse poder. A lei mais alta restringe e guia esse poder ordinário.
No caso sob comento, a Lei Federal 9.055/95, ao liberar o uso de um dos tipos do
amianto de forma temerária, já que a segurança para a saúde humana e para o meio ambiente
ainda não está devidamente comprovada, entra em conflito com a “lei mais alta”: a
Constituição, que tem a autoridade da vontade do povo. Assim, foi negada vigência à lei
federal em face da lei estadual, porque esta última estava ancorada no espírito da
Constituição. A razão pública prevaleceu como filtro dos argumentos presentes no debate.
4.2 O Pantanal
O parágrafo quarto do artigo 225 da Constituição Federal declara expressamente que
o Pantanal é patrimônio nacional, e determina que sua utilização far-se-á na forma da lei,
dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente. A preocupação do
legislador constituinte justifica-se pela importância do pantanal para o equilíbrio ambiental do
Planeta Terra. Ao utilizar o sistema de pesquisa do site do Supremo Tribunal Federal, e digitar
a palavra “pantanal”, podem ser localizados três acórdãos, quais sejam:
4.2.1 Parque Nacional da Serra da Bodoquena, no Mato Grosso do Sul
No Mandado de Segurança 23800/MS (BRASIL, 2011), proprietários de terra na
região em que foi criado o Parque Nacional da Serra da Bodoquena, no Mato Grosso do Sul,
insurgem-se contra o decreto presidencial que determinou a desapropriação das áreas para a
criação do Parque. Aduzem os seus direitos adquiridos à propriedade, e a inobservância ao
artigo 22 da Lei 9985, de 18.07.2000. O Presidente da República, autoridade apontada como
coatora, prestou informações. O Relator foi o Ministro Maurício Corrêa, que destacou ter a
autoridade coatora comprovado à exaustão a realização de audiências públicas na Assembléia
Legislativa do estado, bem como estudos técnicos, ao contrário do que argüiram os
impetrantes. Registrou que várias centenas de integrantes das comunidades interessadas
manifestaram-se favoravelmente à criação do Parque, além do Conselho Nacional da Reserva
da Biosfera da Mata Atlântica e da Associação Brasileira de Entidades de Defesa do Meio
Ambiente.
Destacou, ainda, o Relator, o parecer do Ministério do Meio Ambiente acerca da
necessidade de criação do Parque “visando proteger o notável ecossistema local, revestido de
significativa Mata Atlântica, e localizado em zona de confluência entre o Pantanal, o Cerrado
e o Chaco, possuindo diversas espécies vegetais ameaçadas de extinção” (BRASIL, 2011,
p.526). Neste Mandado de Segurança o Relator posicionou-se pela denegação da ordem,
acolhida à unanimidade pelo STF. Ou seja, analisando-se a decisão à luz da ponderação e do
balanceamento propostos por Alexy, pode-se afirmar que o direito de propriedade foi
afastado, a fim de pudesse prevalecer o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
4.2.2 Pantanal e Floresta Amazônica: patrimônio nacional
Ação Direta de Inconstitucionalidade - 1516/MC/UF, ajuizada pela Mesa Diretora da
Assembléia Legislativa do Estado de Rondônia contra o Presidente da República (BRASIL,
2011), buscando a declaração de inconstitucionalidade da Medida Provisória 1.511/96, e de
suas sucessivas reedições, que deram nova redação ao artigo 44 do Código Florestal,
proibindo o incremento e a conversão de áreas florestais em áreas agrícolas na região norte e
na parte norte da região centro-oeste.
Nesta ação, o STF entendeu que, embora seja válido o argumento de que Medida
Provisória não pode tratar de matéria submetida pela Constituição Federal à Lei
Complementar, é de se considerar que, neste caso concreto, a Constituição Federal não exige
Lei Complementar para alterações no Código Florestal, ao menos as concernentes à Floresta
Amazônica. Para fundamentar esta decisão, a ementa destaca o disposto no parágrafo 4º. do
art. 225 da C.F., que diz:
A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio-ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.
A lei a que se refere o parágrafo é a ordinária e, matéria de lei ordinária pode ser
tratada através de Medida Provisória em face do que estabelece o art. 52 da Constituição. O
STF reconheceu, assim, o tratamento especial que a Constituição deu ao meio-ambiente,
conforme se infere do seguinte trecho da ementa:
Embora não desprezíveis as alegações da inicial, concernentes a possível violação do direito de propriedade, sem prévia e justa indenização, é de se objetar, por outro lado, que a Constituição deu tratamento especial à Floresta Amazônica, ao integrá-la no patrimônio nacional, aduzindo que sua utilização se fará, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais. 7. Assim, a um primeiro exame, o texto da MP impugnada não parece afrontoso a esse § 4º do art. 225 da C.F., que regula, especificamente, a utilização da terra na Floresta Amazônica. 8. Os fundamentos jurídicos da ação estão, portanto, seriamente abalados ("fumus boni iuris"). 9. Ausente, por outro lado, o requisito do "periculum in mora". É que as informações da Presidência da República evidenciaram a necessidade e a urgência da M.P. Ademais, perigo maior estaria no deferimento da cautelar, pois poderia tornar irreparáveis os danos ao Meio-Ambiente e à Floresta Amazônica, que a M.P. visou a evitar. 10. Medida cautelar indeferida. (grifamos)
Confirma-se nesta ação, a assertiva de que a preservação do meio ambiente, ao
alcançar status constitucional como decorrência da reivindicação dos movimentos
ambientalistas, revestiu-se de legitimidade política suficiente a influenciar as decisões do
supremo tribunal, passando a constituir um filtro dos argumentos presentes nos debates da
Corte Excelsa13. O Estado de Rondônia sentia-se penalizado pelo Governo Federal, porque os
sucessivos planos ambientais e/ou de proteção indígena, teriam tornado indisponíveis para a
exploração, 56% de sua área territorial, mesmo antes do advento da Medida Provisória, cujos
efeitos teriam sido “devastadores” para a economia do estado, de vocação eminentemente
agro-pastoril (BRASIL, 2011, p. 43). O direito de propriedade dos cidadãos de Rondônia
estaria sendo violado pelo Governo Federal. Mas, sopesando o direito de propriedade dos
cidadãos de Rondônia, com o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
prevaleceu este último14 (BRASIL, 2011, p. 54) no entendimento do STF.
4.2.3 Devido processo legal: garantia suprema
No Mandado de Segurança-MS 22164/SP (BRASIL, 2011), o Supremo Tribunal
concedeu a segurança pleiteada pelo proprietário rural, pela falta de sua notificação prévia e
pessoal durante processo de desapropriação de imóvel situado no pantanal mato-grossense
para fins de reforma agrária. O impetrante alegou como segundo fundamento de sua
pretensão, a inexpropriabilidade de seu imóvel rural, para fins de reforma agrária, pelo fato
dele situar-se em área localizada no pantanal mato-grossense, definido pela Constituição
como patrimônio nacional (artigo 225, parágrafo 4º), em cujo âmbito estão vedadas todas as
práticas que possam colocar em risco a função social. Este argumento foi rejeitado pelo
Relator, Ministro Celso de Mello, sob a justificativa de que o dispositivo constitucional não
atua como impedimento jurídico à efetivação pela própria União Federal de atividade
expropriatória por interesse social, visando à execução de projetos de reforma agrária que
respeitem a preservação ambiental.
13 Cabe aqui uma reflexão acerca da conformação da Constituição à vontade política mais razoável, a de que o meio ambiente precisa ser preservado. Rawls (2000, p. 283) assevera que “a idéia de Constituições e leis básicas corretas e justas sempre é determinada pela concepção política de justiça mais razoável, e não pelo resultado de um processo político real”. 14 A União, em seus argumentos, destacou que a Medida Provisória amplia de 50% para 80% a área de conservação das propriedades constituídas de fisionomias florestais, mas isto não restringe o uso sustentável dos 80%, apenas proíbe o seu corte raso.
O Voto do Relator destacou, ainda, que o artigo 186, II da Carta Política, consiste na
submissão do domínio à necessidade de o seu titular utilizar adequadamente os recursos
naturais disponíveis e de fazer preservar o equilíbrio do meio ambiente, “sob pena de, em
descumprindo esses encargos, sofrer a desapropriação-sanção a que se refere o artigo 184 da
Lei Fundamental” (BRASIL, 2011, p. 1180-241). O Relator inicia sua argumentação a esse
respeito, afirmando expressamente (BRASIL, 2011, p. 1176-237):
Os preceitos inscritos no artigo 225 da Carta Política traduzem a consagração constitucional, em nosso sistema de direito positivo, de uma das mais expressivas prerrogativas asseguradas às formações sociais contemporâneas.
Essa prerrogativa consiste no reconhecimento de que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Trata-se, consoante já o proclamou o Supremo Tribunal Federal (RE 134.297-SP, Rel. Min. Celso de Mello), de um típico direito de terceira geração, que assiste, de modo subjetivamente indeterminado, a todo gênero humano, circunstância essa que justifica a especial obrigação- que incumbe ao estado e à própria coletividade- de defendê-lo e de preservá-lo em benefício das presentes e das futuras gerações, evitando, desse modo, que irrompam, no seio da comunhão social, os graves conflitos intergeneracionais marcados pelo desrespeito ao dever de solidariedade na proteção da integridade desse bem essencial de uso comum de todos quantos compõe o grupo social. (LAFER, 1988, p. 131). (grifos no original)
O Ministro Celso Mello traz ainda, em sua justificativa, as lições de Paulo Bonavides
a respeito de quem é o destinatário dos direitos humanos de terceira geração, enquanto
direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de
um grupo ou de um determinado estado; têm por primeiro destinatário o gênero humano. Isto
faz pensar acerca da idéia organizadora da justiça como equidade, e que, segundo Rawls, “é a
da sociedade como um sistema equitativo de cooperação ao longo do tempo, de uma geração
para outra”. Os termos da cooperação especificariam uma idéia de reciprocidade: todos os que
estão engajados na cooperação e que fazem a sua parte, como as regras e procedimentos
exigem, devem se beneficiar dela num modo apropriado (RAWLS, 2000, p. 16).
O ponto mais interessante a ser destacado a respeito deste julgamento, no entanto, diz
respeito à colisão de princípios: direito à propriedade (de natureza individual); direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado (de natureza difusa) e direito ao devido processo legal
(também de natureza individual). A desapropriação ocorrera para fins de Reforma Agrária, ou
seja, para a efetivação de direitos sociais. Um dos fundamentos do mandamus foi de que a
suposta improdutividade da terra justificava-se pela necessidade de conservação ambiental,
eis que a propriedade está localizada no pantanal mato-grossense.
Ora, se a Constituição garantiu ao pantanal tratamento especial, dispondo no
parágrafo 4º do artigo 225 da CF que “sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de
condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos
recursos naturais”, seria de se esperar que pudesse ser excluída esta propriedade da política de
Reforma Agrária, pois a não intervenção humana em áreas do pantanal melhor atende ao
disposto no caput do artigo 225.
O interesse do país em repartir as terras para aqueles que não as tem, não pode ser
mais importante do que o interesse das presentes e das futuras gerações em usufruir de um
meio ambiente ecologicamente equilibrado. Ou seja, devido aos critérios de improdutividade
estabelecidos pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária-INCRA, há um
conflito entre interesses sociais e ambientais. Este argumento, no entanto, não foi acolhido
pelos Ministros durante os debates15. O que prevaleceu foi o entendimento de que o direito à
propriedade poderia não ser preservado, já que a propriedade não estava atendendo à sua
função social (ou seja, foi reconhecida pelo INCRA como improdutiva).
Ainda assim, no entanto, o STF anulou a desapropriação, por vício no procedimento
administrativo, eis que o proprietário rural não foi notificado prévia e pessoalmente durante o
processo de desapropriação de imóvel. O direito ao devido processo legal, portanto, foi
reconhecido como um direito supremo, superior aos outros que estavam em rota de colisão.
15 Este Mandado de Segurança foi julgado em 30.10.1995, portanto, em data anterior aos demais processos que versam sobre o pantanal, no âmbito do STF (o Mandado de Segurança 23800/MS foi julgado no dia 14.11.2002; a ADI 1516 MC/UF no dia 06/03/1997). O julgamento que modificou os rumos da questão do amianto no Brasil, foi em 04.06.2008. Acreditamos que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, embora tenha sido pontuado no debate, não tenha alcançado o mesmo peso que o STF tem dispensado à questão ambiental em julgados mais recentes, porque ainda era incipiente o conhecimento dos Ministros na matéria ambiental. No caso do amianto, o Ministro Joaquim Barbosa, posteriormente às primeiras decisões sobre a matéria, propôs-se a estudar o assunto a fundo, investigando seus aspectos técnicos e científicos, o que suplantou a questão da hierarquia de normas, em face do interesse ambiental e da saúde humana. Entendemos que um estudo da mesma natureza pelos Ministros do STF seria interessante em relação às especificidades do Pantanal, o que talvez levasse à conclusão de que é menos danoso para a conservação ambiental, que as propriedades rurais pantaneiras sejam objeto de pouca intervenção humana. No caso do Pantanal, portanto, seria aconselhável um estudo técnico mais aprofundado por parte do STF, para avaliar as conseqüências dos projetos de reforma agrária. O conceito de “improdutividade” estabelecido pelo INCRA, não leva em conta a vertente ambiental que o Pantanal exige. Além disso, há estudos sérios demonstrando que o INCRA está “gerando assentamentos que muitas vezes representam um passivo social, econômico e ambiental”, como alertou Flávia Camargo de Araújo na dissertação de Mestrado em Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília – UNB (ARAÚJO, 2012, p. 192-93).
5 A DEFESA DO MEIO AMBIENTE: VALOR POLÍTICO DA SOCI EDADE
BRASILEIRA
A defesa do meio ambiente adquiriu novos contornos e pressupostos neste início de
século. No caso brasileiro, a Constituição proclamou, no artigo 225, que “todos têm direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado”. Desde então, este direito vem se aperfeiçoando
enquanto princípio, amadurecendo na mesma medida em que amadurece a Carta
Constitucional, que completará vinte e quatro anos. Nesse período, conforme demonstram os
arestos trazidos à colação neste trabalho, o Supremo Tribunal Federal, na qualidade de
principal intérprete da Constituição (como pretendeu Rawls), vem imprimindo à conservação
ambiental status de relevância e urgência, conforme se demonstrou ao longo deste artigo.
Na Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI 1505/ES (BRASIL, 2011), o STF
reconheceu o poder regulamentar do CONAMA para, através de Resoluções, disciplinar o
exercício das atividades consideradas potencialmente poluidoras. Na Medida Cautelar em
Ação Direta de Inconstitucionalidade 3937 MC/SP - São Paulo (BRASIL, 2011), o STF
reverteu seu posicionamento anterior, no sentido de que a lei federal 9.055/2000, de 1º. de
junho de 1995, ao autorizar a utilização de uma espécie de amianto chamada “crisotila”,
impede que os estados legislem a respeito; assim, o STF inverteu o resultado até então
empregado para solucionar a equação constitucional das competências legislativas16, em
benefício do meio ambiente.
No Mandado de Segurança 23800/MS (BRASIL, 2011) proprietários lutaram contra
a desapropriação de suas terras para a criação do Parque Nacional da Serra da Bodoquena, no
Mato Grosso do Sul; mas, sopesando o direito de propriedade em face do direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, prevaleceu o interesse ambiental. Da mesma forma, na
Ação Direta de Inconstitucionalidade 1516/MC/UF (BRASIL, 2011), o STF embora
reconhecendo a importância das alegações da inicial, concernentes à possível violação do
direito de propriedade sem prévia e justa indenização, deu maior relevância ao tratamento
especial que a Constituição reservou à Floresta Amazônica e ao Pantanal, aduzindo que sua
16 Emprestou-se aqui a expressão adotada pela Ministra Ellen Gracie em seu voto, já anteriormente transcrito.
utilização se fará dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente,
inclusive quanto ao uso dos recursos naturais17.
Todos estes julgados estão a demonstrar que, no caso do Brasil, a defesa do meio
ambiente está colocada numa ordem de relevância, e inspira a forma como a sociedade
política toma suas decisões. Ou seja, consiste na sua “razão pública”. Com efeito, ao explicar
a idéia de razão pública, Rawls afirmou que uma sociedade política tem uma forma de
articular seus planos, de colocar seus fins numa ordem de prioridade e de tomar suas decisões
de acordo com esses procedimentos. A forma como uma sociedade faz isso, segundo Rawls, é
sua razão; a capacidade de fazê-lo também é sua razão (RAWLS, 2000, p. 261). Se a
conservação do meio ambiente é de tal forma prioritária para a sociedade brasileira, que pode
resultar até mesmo na limitação ao direito de propriedade, então é possível concluir que a
questão ambiental consiste na razão pública dessa sociedade.
Se, por outro lado, leva-se em conta que os juízes estão tomando suas decisões com
base nos “valores políticos que julgam fazer parte do entendimento mais razoável da
concepção pública e seus valores políticos de justiça e razão pública”18 (RAWLS, 2000, p.
287), então conclui-se que esta razão pública tem servido como filtro dos argumentos do
tribunal ao decidir questões que envolvam a conservação do meio ambiente.
Tal afirmativa poderia parecer contraditória, uma vez que, ao referir-se ao “status do
mundo natural” e nossa relação apropriada com ele, Rawls afirmou textualmente que “este
não é um elemento constitucional essencial”(RAWLS, 2000, p. 297). Interessante que, em sua
argumentação, o filósofo americano registra a visão tradicional da era cristã, de natureza
antropocêntrica, segundo a qual os animais e a natureza são vistos como sujeitos ao uso e à
17 Isto não significa, no entanto, que está permitido o desatendimento ao devido processo legal durante a desapropriação, conforme decidiu o STF no julgamento do MS 22164 / SP - SÃO PAULO, concedendo a segurança pleiteada pelo proprietário rural pela falta de sua notificação prévia e pessoal, conforme se destacou no item 2.3 deste artigo. 18 Rawls afirma que “os juízes não podem invocar sua própria moralidade particular, nem os ideais e virtudes da moralidade em geral. Devem considerá-los irrelevantes. Não podem, igualmente, invocar suas visões religiosas ou filosóficas, nem as de outras pessoas. Devem, isto sim, apelar para os valores políticos que julgam fazer parte do entendimento mais razoável da concepção pública e de seus valores políticos de justiça e razão pública. Estes são valores nos quais acreditam de boa-fé, como requer o dever da civilidade, valores que se pode esperar que todos os cidadãos razoáveis e racionais endossem.” Tais idéias estão no campo do “dever ser”. Ao buscarmos as decisões proferidas pelo STF envolvendo questões ambientais, nosso intuito foi o de verificar não aquilo que deve ser, mas aquilo que é. Ao fazê-lo, verificamos que os Ministros do STF, em sua maioria, têm procurado decidir adotando os valores políticos inscritos pelo povo brasileiro em sua Constituição, confirmando assim nossa hipótese de que a razão pública tem servido como filtro dos argumentos do STF em matéria ambiental.
inclinação do humano. Haveria, segundo Rawls (2000, p. 296), numerosos valores políticos a
invocar aqui:
(...) promover nosso próprio bem e o das gerações futuras, preservando a ordem natural e suas propriedades, que dão sustentação à vida; incentivar o desenvolvimento de espécies de animais e plantas em nome do conhecimento biológico e médico, com suas aplicações potenciais à saúde humana; proteger as maravilhas da natureza tendo em vista a recreação pública e os prazeres de uma concepção mais profunda do mundo. (grifo nosso)
O grifo vem em função do argumento utilizado por Rawls em defesa da proteção à
natureza: preservá-la com finalidade recreativa. E, nessa perspectiva, de mera recreação, a
defesa do meio ambiente não seria uma questão fundamental. Logo, não integraria a razão
pública. A sociedade americana, na qual Rawls vivia19, e, portanto, na qual construiu seus
valores, tem se mostrado das mais resistentes no que pertine à conservação do meio ambiente.
E, por isso, não surpreende que para o filósofo americano a relação humana com o mundo
natural não possa ser considerada um elemento constitucional essencial. Até porque a defesa
do meio ambiente não consta da Constituição americana.
No caso brasileiro é diferente. A relação humana com o ambiente natural foi
enfrentada no âmbito da Constituição, e tem servido como filtro aos argumentos do Supremo
Tribunal Federal, quando decide a respeito de questões que versam sobre a propriedade e a
saúde, conforme é possível concluir dos arestos trazidos à colação neste trabalho. A defesa do
meio ambiente, portanto, integra os valores políticos da sociedade brasileira, estando entre as
prioridades desta sociedade.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O ponto de partida da reflexão desenvolvida ao longo deste artigo foi a idéia de razão
pública apresentada por John Rawls, enquanto a “razão de ser” dos cidadãos, aquela que
exprime os valores políticos de um povo. Rawls diz que a relação do homem com o meio
ambiente, embora importante, não integra a razão pública. Para verificar a pertinência desta
assertiva em relação ao Brasil foram utilizados os critérios que Rawls estabeleceu como
19 Rawls nasceu em Baltimore no dia 21 de Fevereiro de 1921, e faleceu em Lexington, 24 de Novembro de 2002.
indicadores do conteúdo da razão pública: i) a deliberação de uma sociedade acerca de quem
deve ter propriedades; ii) se a questão está inserida na Constituição dentre os elementos
constitucionais essenciais; iii) que ela se apresente como a razão do tribunal no exercício de
seu papel de intérprete judicial supremo.
Com base nestes critérios, concluiu-se que no Brasil a defesa do meio ambiente
integra a razão pública, pois: i) há uma deliberação pública que possibilita a expropriação de
bens por interesse ambiental; ii) a proteção ambiental está inserida na constituição enquanto
princípio fundamental; iii) a tensão entre meio ambiente e propriedade tem sido administrada
pelo Supremo Tribunal Federal com a preeminência do primeiro sobre a segunda, e a defesa
do meio ambiente tem se destacado como relevante nas decisões do STF.
Como asseverou Rawls (2000, p. 281), num regime constitucional com revisão
judicial, “a razão pública é a razão de seu supremo tribunal”. A pesquisa realizada acerca da
jurisprudência do STF, leva à conclusão de que o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado vem se firmando no âmbito da suprema corte como um valor político da
sociedade brasileira, integrante da sua razão pública, enquanto “concepção política de
justiça”.
Tomando como base os parâmetros indicados pelo próprio Rawls acerca do que é o
conteúdo da razão pública, conclui-se que a razão pública no Brasil é também constituída pelo
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, tendo em vista que o povo brasileiro o
inscreveu na sua Constituição enquanto direito fundamental. Aliado a isso, está a percepção,
comprovada ao longo deste artigo, de que o povo atribuiu prioridade a esse direito,
principalmente no que diz respeito ao bem comum; o conteúdo desse direito, que é também o
conteúdo da razão pública dos cidadãos brasileiros, endossa as medidas que garantem a todos
os meios polivalentes adequados para tornar efetivo o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, seja através das normas infraconstitucionais, das Resoluções do
CONAMA, ou das decisões do STF.
A hipótese formulada no início desta pesquisa, de que o direito ao meio ambiente
saudável, no caso brasileiro, adquiriu tanta relevância que chega a constituir-se em um dos
elementos da razão pública (a despeito da negação expressa de Rawls, que aponta a questão
ambiental como “razão não-pública”) foi se confirmando ao longo deste trabalho.
Os julgamentos proferidos no âmbito do STF evidenciaram que o direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado alcançou um status no âmbito da interpretação
constitucional que o coloca como preeminente sobre outros direitos constitucionais, como o
direito à propriedade. No caso do amianto, o interesse ambiental superou a discussão sobre as
competências legislativas, passando o STF a entender que, se a lei federal é menos restritiva,
deve ser afastada, a fim de prevalecer a lei estadual, que melhor se coaduna com a
conservação ambiental. Isto seria impensável, não fosse a legitimidade política alcançada pelo
movimento ambientalista, pois, como observou Rawls “a Constituição não é o que a Suprema
Corte diz que ela é, e sim o que o povo, agindo constitucionalmente por meio dos outros
poderes, permitirá à Corte dizer o que ela é.”
O povo vem afirmando o direito ao meio ambiente equilibrado como um valor
político da sociedade brasileira, exprimindo-o enquanto integrante da sua razão pública, e
servindo como exemplo a inúmeras outras nações, como é o caso da norte- americana, que
ainda não despertou para a necessidade de medidas urgentes que possam evitar o avanço da
degradação ambiental20, sob pena de que a humanidade não mais tenha um planeta para viver.
Conforme alertou Hobsbawn (1995, p. 56): “as forças geradas pela economia tecnocientífica
são agora suficientemente grandes para destruir o meio ambiente, ou seja, as fundações
materiais da vida humana”. Com efeito, há dados assustadores sobre o avanço da degradação
ambiental sobre o planeta, conforme asseverou Mooney (2002, p. 27):
Não menos de 40.000 e possivelmente até 90.000 espécies são extintas a cada ano; as selvas tropicais estão desaparecendo a um ritmo de quase 1% ao ano; a diversidade genética das culturas está desaparecendo a um ritmo de aproximadamente 2% ao ano; [...] Estamos destruindo os solos pelo menos 13 vezes mais rapidamente do que o tempo necessário para recuperá-los; a cada ano se extinguem 2% das línguas do planeta; mais de 80% de todos os livros traduzidos são traduzidos para apenas quatro línguas européias [...]
A defesa do meio ambiente não é, portanto, um mero capricho, ou uma bandeira
restrita a setores específicos da sociedade. Trata-se de uma questão abrangente, cuja
20A Constituição americana nada dispõe em defesa do meio ambiente. Como observou ANTUNES (2012): “A principal cláusula constitucional que serve de base para a ação legislativa do Congresso relacionada ao meio ambiente é a chamada cláusula de comércio, pela qual o Congresso tem o poder de regulamentar o comércio entre os vários Estados, de forma a evitar que uns imponham barreiras comerciais sobre os outros. Assim, o Congresso tem legislado sobre temas ambientais, sob o argumento de que normas fixando parâmetros ambientais diferentes em cada um dos Estados podem afetar a atividade comercial. A Suprema Corte tem entendido que a existência de padrões ambientais nacionalmente uniformes pode ser um importante elemento para que se evitem as barreiras entre Estados.”
relevância foi sensivelmente percebida pelos brasileiros, ao declarar na Constituição que
“todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”, repartindo
responsabilidades entre o poder público e a sociedade civil, a fim de preservar esta Casa
Planetária para as presentes e futuras gerações.
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ANÁLISE DO DIREITO AMBIENTAL BRASILEIRO SOB A PERSPECTIVA DA
SEGURANÇA HUMANA
AN ANALYSIS OF THE BRAZILIAN ENVIRONMENTAL LAW FROM THE HUMAIN SECURITY PERSPECTIVE
MACEDO, Técio Oliveira1 OLIVEIRA, Flávia de Paiva Medeiros2
RESUMO
O Meio Ambiente figura como digno de ser matéria jurídica, especialmente tratando-se de um país com tamanha riqueza natural como o Brasil. A evolução histórico-social da área ambiental, tem sido motivo de encontros e discussões em diversos países, como a Conferência de Estocolmo, em 1972 e a Conferência do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992. Através de tais conferências, foi possível vislumbrar alguns princípios, que foram apresentados. Contudo, o Meio Ambiente não é tema restrito a Conferências, existindo novas percepções sobre o tema, como à apresentada pela Segurança Humana, preconizando que os Estados devem alterar o posicionamento estado-centralizado e passar para o humano-centralizado, pautando nos direitos humanos, as suas sete dimensões, sendo uma destas dimensões a segurança ambiental. Assim, o presente trabalho discorrerá de forma breve acerca do conceito jurídico de meio ambiente no Estado brasileiro, tratando sobre os quatro desdobramentos presentes na doutrina: meio ambiente natural, meio ambiente artificial, meio ambiente cultural e meio ambiente do trabalho. Será apresentado também o contexto histórico no qual surgiu a Segurança Humana. Por fim, os princípios basilares do direito ao meio ambiente, apresentados pelas Conferências, e adotados pelo Estado brasileiro serão confrontados com a ideologia da Segurança Humana. Palavras-chave: Meio ambiente. Direito ao meio ambiente. Segurança Humana.
1 Graduando do Curso de Direito da Universidade Estadual da Paraíba em 2012: [email protected] 2 Doutora em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Universidade de Valencia-Espanha; Mestra em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará (UFC); Professora de Direito do Trabalho da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e Centro Universitário de João Pessoa (UNIPE).
ABSTRACT
Environment presents itself as worthy of being a legal matter, especially when it deals to a country with so many natural wealth like Brazil. As so many other legal areas, the environmental law presents its historical-social evolution, being the reason of meeting and discussion in different countries, i.g., the Stockholm Conference, in 1972, and the Conference on Environment and Development, hold in Rio de Janeiro, in 1992. Through such conferences, it was possible to glimpse some principles, which were presented to the world. However, environment is not a topic restricted to Conferences, there are new perceptions about it, as the one presented by the Human Security. The latter is an approach that rose in the post-Cold War world. According to such approach, Sates should alter their state-centered position to a human-centered, basing in human rights, its seven dimensions, being one of these dimension the environmental security. In this sense, this paper will briefly discuss about the legal conception of environment in the Brazilian State, dealing with the fourfold deployment presented in the doctrine: natural environment, artificial environment, cultural environment and labor environment. It will also be presented the historic context in which the Human Security rose, as well as, briefly, its dimensions. At last, the environmental law basic principles, presented by the Conferences, and adopted by the Federative Republic of Brazil, they will be confronted to the Human Security ideology.
Keywords: Environment. Brazilian Environmental Law.Human Security
3
INTRODUÇÃO
Hodiernamente, o meio ambiente é compreendido como um elemento de extrema
importância para o desenvolvimento econômico, social e cultural das sociedades. Ademais,
sabemos que o meio ambiente é, indubitavelmente, o elemento primordial para a existência
dos seres, bem como a perpetuação dos mesmos.
Considerando o meio ambiente e as suas problemáticas no âmbito político
internacional e regional, existem preocupações concernentes à preservação e ao uso
consciente dos recursos naturais, a fim de se alcançar o desenvolvimento sustentável.
Desta forma, políticas que buscam efetivar tais objetivos devem ser priorizadas
pelos estados, uma vez que o próprio governo também é o responsável pelos atos deletérios
praticados contra o meio ambiente. Desse modo, uma abordagem existente que prima,
ademais outros valores, pelo meio ambiente, é a denominada de Segurança Humana, sendo
esta uma nova abordagem no cenário internacional, tendo surgida como tema de discussão no
mundo pós-guerra fria.
Assim, partindo da premissa da Segurança Humana dentro da realidade do
Estado brasileiro, é possível se falar em securitização do meio ambiente, através da
perspectiva humana, que confronta a política centrada na soberania do Estado com a política
centrada no humano, ou seja, pautada nos direitos humanos.
Através da securitização do meio ambiente, se questiona as implicações no
Estado nacional, como, por exemplo, a soberania em razão da defesa dos recursos naturais
bem como qualquer elemento que diga respeito à esfera ambiental, compreendendo a
responsabilidade da comunidade internacional de intervir em casos de descumprimento dos
valores humanos concernentes ao meio ambiente.
Nesta seara, vale ressaltar o acarretamento de consequências no tocante à
segurança internacional e regional. As atividades humanas apresentam respostas diretas do
meio ambiente, muitas vezes respostas negativas que atravessam fronteiras e atingem
populações nos mais variados níveis, do regional ao internacional, uma vez que o meio
ambiente desconhece fronteiras entre as nações.
De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD, 2004), existem sete dimensões que envolvem a Segurança Humana, a saber:
segurança econômica, segurança alimentar, segurança da saúde, segurança ambiental,
segurança pessoal, segurança social e segurança política. Tais dimensões estão
intrinsicamente ligadas umas com as outras. Portanto, ao se securitizar o meio ambiente,
dentro da perspectiva da Segurança Humana, haverá consequências relacionadas às demais
dimensões, como, por exemplo, na segurança econômica, que pode ganhar forças através de
políticas corretas no que toca à agricultura e à extração de recursos naturais.
O presente trabalho desenvolver-se-á, aprioristicamente, a partir do
entendimento geral do direito ao meio ambiente no Estado brasileiro, levantando os quatro
desdobramentos do conceito jurídico ambiental vislumbrado pela doutrina. Em seguida,
partir-se-á para a compreensão da Segurança Humana, esclarecendo seu surgimento,
dimensões e definição. Por fim, apresentar-se-á uma breve análise da aplicação da Segurança
Humana ao ordenamento brasileiro, focando nas fontes dos princípios de tal ramo jurídico.
Para se alcançar os objetivos propostos serão utilizados entendimentos
internacionais e nacionais, como, por exemplo, relatórios da ONU e livros especializados em
meio ambiente, segurança e relações internacionais.
Em seguida, concernentes aos métodos de procedimento serão utilizados,
concomitantemente, o método funcionalista e o método de interpretação, a fim de analisar a
aplicação da Segurança Humana no contexto ambiental brasileiro, verificando as
características de cada um dos elementos de pesquisa, fazendo uso, desse modo, do método
funcionalista.
Desse modo, para a persecução dos objetivos deste estudo, serão utilizados
como técnicas de pesquisa: a bibliografia pertinente ao tema através de livros, revistas,
relatórios, jornais, artigos e periódicos, de documentos jurídicos e de cunho internacionalista,
constituindo-se, assim, uma pesquisa bibliográfica e documental.
1. DIREITO AO MEIO AMBIENTE: DESDOBRAMENTOS JURÍDICOS
O Brasil ocupa posição privilegiada do mundo no que diz respeito ao meio ambiente,
envolvendo riquezas relacionadas a espécies de animais endêmicas, florestas, recursos
hídricos, etc. Dessa forma, os recursos naturais devem receber especial atenção por parte do
Estado brasileiro, visto que a comunidade internacional acompanha de perto as ações políticas
internas concernentes ao meio ambiente.
Sabendo que o meio ambiente se trata de um tema vasto e delicado, o Estado
brasileiro estabelece determinados conceitos e abordagens quanto a tal tópico. Assim, a
Constituição Federal de 1988 dispõe que:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade
de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
O dispositivo constitucional acima transcrito ainda não é suficiente para se
estabelecer uma definição para as Ciências Jurídicas, mas sim quais são as partes interessadas
no tema. Então, é através da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981 (Política Nacional do Meio
Ambiente), que vamos buscar o entendimento jurídico de meio ambiente, a saber:
Art. 3º. Para fins previstos nesta Lei, entende-se por:
I – Meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e
interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e
rege a vida em todas as suas formas.
Colimando uma compreensão melhor estabelecida, é necessário buscar conceitos
mais bem estruturados na doutrina, os quais se aprofundam mais no tema, esclarecendo a
fonte definidora do que seja meio ambiente, bem como em quais lugares o encontramos, local
de manifestação, quais condições estão envolvidas, como nos influencia, ect. Como podemos
depreender da passagem doutrinária seguinte:
(...), atualmente o meio ambiente é definido pela Ecologia, ciência
que estuda a relação entre os organismos e o ambiente em que estes
vivem, como o conjunto de condições e influências externas que cercam
a vida e o desenvolvimento de um organismo ou de uma comunidade de
organismos, interagindo com os mesmos. Isso abrange condições físicas
e biológicas, a exemplo de solo, clima e suprimento de alimentos,
quanto, no que diz respeito aos seres humanos, a considerações de
ordem social, cultural, econômica e política. Assim, pode-se afirmar
que meio ambiente é o lugar onde se manifesta a vida, seja a vida
humana ou de qualquer outro tipo, e também todos os elementos que
fazem parte dela (FARIAS, 2007, p.27).
A partir da passagem acima podemos depreender a existência de quatro
desdobramentos do conceito jurídico de Meio Ambiente, a saber:
Meio Ambiente Natural;
Meio Ambiente Artificial;
Meio Ambiente Cultural;
Meio Ambiente do Trabalho
Chama-se à atenção ao fato de que tal divisão tem fins puramente metodológicos,
uma vez que o Meio Ambiente é uno, indivisível (FARIAS, 2007, p. 30).
1.1MEIO AMBIENTE NATURAL
É constituído pelos recursos naturais que estão presentes em todo o planeta. Trata-se
da atmosfera, dos elementos da biosfera, pelas águas, pelo solo, pelo subsolo (bem como os
recursos naturais), pela fauna e pela flora.
De acordo com Fiorillo (2012, p. 78) meio ambiente natural é tutelado pelo caput do
art. 225 da Magna Carta de 1988, acima transcrito, e imediatamente pelo § 1º, I, III e VII do
mesmo artigo:
“§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder
Público:
I – preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover
o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;
(...)
III – definir, em todo as unidades da Federação, espaços territoriais
e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a
alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada
qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que
justifiquem sua proteção;
(...)
VII – proteger a fauna e flora, vedadas, na forma da lei, as práticas
que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção das
espécies ou submetam os animais a crueldade”.
O meio ambiente natural é a definição mais comum que temos sobre o tema,
sendo, desse modo, um conceito de fácil entendimento. Não obstante, o Estado brasileiro faz
mais do que simples definir ao satisfazer, conforme verifica-se na transcrição acima, a
proteção do meio ambiente natural.
1.2 MEIO AMBIENTE ARTIFICIAL
Contemporaneamente, é impossível não considerar o meio ambiente artificial,
principalmente quando levamos em conta que mais de 80% da população brasileira vive em
zonas urbanas (FARIAS, 2007, p. 32). Afinal, tal desdobramento considera as edificações
artificiais, ou seja, as alterações feitas no meio ambiente pelo ser humano.
Contudo, o meio ambiente artificial abarca também a zona rural, pois refere-se aos
espaços habitáveis pelos seres humanos, desse modo, compreende-se tal desdobramento
quando os espaços naturais cedem lugar ou se integram às edificações humanas (FARIAS,
2007).
Existem, ademais, na doutrina os conceitos de espaço urbano fechado e o espaço
urbano aberto. Aquele é composto pelo conjunto de edificações, já o espaço urbano aberto,
por sua vez, consiste nos equipamentos públicos (FIORILLO, 2012, p. 79).
Constitucionalmente, o meio ambiente artificial recebe atenção não apenas no art.
225 da Carta Magna, mas também nos arts. 182 (referente à política urbana); 21, XX
(competência da União Federal de instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano), 5º,
XXIII, etc.
1.3 MEIO AMBIENTE CULTURAL
Reconhecendo a importância da cultura como elemento formador do meio no qual
vivemos, bem como um elemento que nos identifica como pertencentes a um lugar, através de
valores característicos, o Direito Ambiental brasileiro, através de declaração constitucional
abraçou tal desdobramento. O conceito do meio ambiente cultural é apresentado no art. 216
da Constituição Federal, a saber:
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de
natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais incluem:
I- as formas de expressão;
II – os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços
destinados às manifestações artístico-culturais;
V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico,
artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
É possível que o meio ambiente cultural seja compreendido como meio ambiente
artificial, como em, por exemplo, se tratando de determinadas edificações que estão em
processo de tombamento. Percebe-se, desse modo, que o patrimônio cultural constitui
princípio fundamental da República Federativa do Brasil, pois traduz a história de um povo, a
sua formação, cultura, ou seja, os próprios elementos identificadores de sua cidadania
(FIORILLO, 2012, p.80).
1.4 MEIO AMBIENTE DO TRABALHO
Tal desdobramento não se restringe às relações de caráter empregatício, é mais
amplo, pois prima pela salubridade e incolumidade do trabalhador de qualquer atividade
realizada, independendo do lugar ou da pessoa que o realize.
A Constituição Federal trata do meio ambiente do trabalho nos art. 7º (caput, XXII e
XXIII) e art. 200 (caput, VIII):
Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de
outros que visem à melhoria de sua condição social:
(...)
XXII – redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de
normas de saúde, higiene e segurança;
XXIII – adicional de remuneração para as atividades penosas,
insalubres ou perigosas, na forma da lei.
Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras
atribuições, nos termos da lei:
(...)
VIII – colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido
o do trabalho.
Conforme anteriormente mencionado, o meio ambiente do trabalho tem um escopo mais
amplo do que meramente trabalhista. Busca-se evitar que atividades laborais, empresas,
causem danos ambientais. Visualizando as atividades financeiras, as empresas buscam,
basicamente, lucros, ignorando os riscos que suas atividades causam ao meio ambiente.
Então, conforme é apresentado na literatura “(...) é mais importante eliminar os riscos para o
trabalhador, evitando assim uma parte significativa dos danos ambientais que tem ocorrido
ultimamente, do que lutar por adicionais de insalubridade” (FARIAS, 2007, p. 36).
Mesmo diante das previsões constitucionais, ainda é necessário caminhar muito a fim de
desenvolver melhores políticas relacionadas ao meio ambiente. Conforme elucida Moraes
(2004, p. 13), o meio ambiente é um tema que vem ganhando importância aos poucos e que já
alcançou a puberdade legal, já possuindo características de um adulto, contudo ainda está
distante da maturidade.
2.0 SEGURANÇA HUMANA E AS SUAS DIMENSÕES
O termo Segurança Humana foi introduzido pelo relatório de desenvolvimento
humano da ONU, em 1994. Para melhor compreender tal termo, é necessário entendermos o
contexto político no qual surgiu a Segurança Humana, bem como a relevância da segurança
na esfera internacional.
Ao longo da história, o mundo testemunhou até onde as aspirações humanas,
legitimadas por ações estatais, foram capazes de ir. Testemunhamos vários conflitos, várias
guerras, tendo duas destas se destacado, a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. Nelas fomos
capazes de mostrar toda a ferocidade que pode existir no âmago humano.
Por outro lado, fomos capazes também de mostrar a ânsia pela existência pacífica, de
preocuparmo-nos com os direitos humanos e com a intervenção humanitária. Contudo, essas
preocupações altruísticas são consequências dos fatos deletérios que assolaram a humanidade,
que nos ensinaram que uma parceria pode render mais frutos do que uma existência
conflituosa.
Contemplando as relações estatais no cenário internacional, podemos observar como
tais relações vão, aos poucos, conquistando a maturidade. No mundo entre guerras, Carr
(2001) apresentou o livro intitulado “Vinte Anos de Crise”, o qual descreve as relações
internacionais como conflituosas, movidas por interesses primários de sobrevivência dos
estados e ressaltou a importância de que um estado não dependa de outro, pois, desse modo,
estaria à mercê dos interesses alheios, tal comportamento é denominado por Carr como
autarquia, o que hoje é convencionalmente chamado de autossuficiência pela literatura.
Neste ponto, chama-se à atenção para o contexto no qual a obra de Carr foi escrita.
Trata-se da Europa entre a Primeira e Segunda Guerra Mundial. Assim, a obra é pertinente ao
seu tempo, tendo bebido da fonte do dilema de segurança de Hobbes do “estado de natureza”
(JACKSON, 2007, p. 103). Malgrado tal fato, vimos determinadas ações estatais objetivando
a consolidação de meios pacíficos para a resolução de conflitos no meio internacional. A
fracassada Liga das Nações, por exemplo, foi um intento pensado, pelo então presidente
americano Woodrow Wilson, para por fim à ausência de um órgão “regulador”
internacional(FRIEDE, 2008, p. 149).
A Segunda Guerra Mundial, por outro lado, provou ao mundo que os interesses
estatais podem ser mais fortes do que uma coalisão de estados, resultando no fracasso da
empreitada visualizada por Wilson. Esses mesmos interesses estatais foram capazes de unir
distintos estados em grupos, compartilhando uma política e uma ideologia semelhante,
durante a Segunda Grande Guerra. De um lado os países do Eixo (Alemanha, Itália, Japão),
do outro os países aliados (Estados Unidos, Reino Unido e União Soviética) (VICENTINO,
2000, p. 386).
Com a vitória dos aliados, o mundo caminhou para outro conflito, dessa vez, sem
armas, predominantemente ideológico, denominado de Guerra Fria. Diante da existência de
duas superpotências, cada qual expressando seus valores e buscando enfraquecer
ideologicamente a outra, o mundo se viu bipolar. De um lado do polo, os EUA, do outro a
então URSS (NOGUEIRA, 2005, p. 44).
Duas potências que outrora lutaram juntas contra as forças dos países do eixo, agora
se encontram politica-ideologicamente separadas, o que exemplifica o jogo de poder entre os
estados, que cada qual busca o seu próprio benefício.
A história havia caminhado, então, para a Guerra Fria. Durante anos, a comunidade
internacional esteve apreensiva quanto a tal guerra, afinal, o término da Segunda Guerra
Mundial se deu com a demonstração da força militar americana, ao utilizar duas bombas
atômicas contra o Japão. Na Guerra Fria, a realidade era outra, tratava-se de duas
superpotências que dominam a tecnologia atômica e, após alguns anos, eram capazes de
produzir bombas de hidrogênio.
O jogo parecia empatado, pois nenhum dos dois países era capaz de utilizar tamanha
força por medo de uma retaliação, resultando em controles de armamentos através de agências
e tratados (como a Agência Internacional de Energia Atômica - AIEA e o tratado de não
proliferação de armas nucleares) (WIGHT, 2003, p. 294). A busca da supremacia ideológica
de cada ator-chave da Guerra Fria passou a ser feita por outros meios, como a corrida
armamentista.
Com o fim da União Soviética, consequentemente, teve-se o fim da Guerra Fria, em
1991. O mundo, outrora bipolar, agora encontra-sesob a égide da supremacia americana, em
termos políticos, econômicos, militares, tecnológicos e ideológicos. Desse modo,
inevitavelmente, durante o período de 1914 a 1991 as relações mundiais entre os estados se
modificaram e amadureceram. Um dos maiores símbolos desse amadurecimento é a
Organização das Nações Unidas, que, ao contrário da sua falecida sucessora Liga das Nações,
não pereceu diante de algum conflito iminente.
É notório que a ONU é uma organização criada e dirigida pelas grandes potências,
mas tal fato não é relevante para o presente texto, mas sim o fato de se ter criado no cenário
internacional, anárquico (pois não possui um dirigente central, como nos países soberanos)
(BULL, 2002, p. 57), uma organização com o escopo de evitar futuros conflitos.
Por anos, compreendeu-se que a questão da segurança nacional dos estados deveria
ser centrada na figura dos próprios estados, o que justifica, por exemplo, a ocorrência de
guerras às quais primam pela preservação da segurança de um dado estado. Contudo, diante
do advento do amadurecimento político e das mudanças nas relações internacionais, a
abordagem da Segurança Humana foi apresentada no relatório de desenvolvimento humano
da ONU de 1994, sob a égide do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento –
PNUD.
A nova abordagem apresentada vai de encontro ao paradigma tradicional de
segurança centrada no estado, pois esta é falha ao proteger efetivamente os cidadãos de um
estado. Desse modo, a Segurança Humana preconiza a segurança centrada no indivíduo
humano, tendo os direitos humanos como diretrizes.
Assim, no mundo pós-guerra fria foi que surgiu tal abordagem. Após anos de
evolução e revolução no cenário internacional, surgiu a ONU como uma consequência de
tantos desentendimentos entre os estados e como uma tentativa de se buscar estabilidade nas
relações internacionais, bem como de se AM
A Segurança Humana potencialmente oferece uma nova abordagem
tanto para a segurança como para o desenvolvimento. Atuais políticas
de segurança ainda tendem a focarem nas ameaças aos estados e nas
capacidades militares tradicionais. (...) A Segurança Humana trata da
segurança dos indivíduos e comunidades em vez da segurança de
estados, e combina direitos humanos e desenvolvimento humano
(KALDOR, 2007, p. 182). (Tradução nossa)
O conceito apresentado pela Human Security Network é suficiente para
aprofundarmo-nos mais no entendimento do tema, apresentado da seguinte forma:
Um mundo humano onde as pessoas possam viver em segurança e
dignidade, livres da pobreza e desespero, ainda é um sonho para muitos
e deveria ser aproveitado por todos. Em tal mundo, a todo indivíduo
seria garantido liberdade face ao medo e liberdade face às privações,
com igual oportunidade de completamente desenvolver suas
capacidades humanas. Construir a segurança humana é essencial para
alcançar tal objetivo. Em essência, segurança humana significa
liberdade de ameaças generalizadas aos direitos das pessoas, sua
segurança e até suas vidas3. (Tradução nossa)
3Human Security Homepage.<http://www.humansecuritynetwork.org/menu-e.asp> Acesso em: 15/04/11.
Observando os conceitos apresentados por Kaldor e pela Human Security Network,
percebemos a importância dada ao indivíduo humano pela abordagem. O escopo da
Segurança Humana é garantir que nenhuma pessoa sofra qualquer tipo de coação que venha a
obstruir o desenvolvimento de suas capacidades humanas, seja tal coação cometida por outro
indivíduo, por grupo, facção, entre tantos outros agentes, incluindo o próprio estado.
Caminha-se para a compreensão de que a Segurança Humana é uma abordagem que
descentraliza o estado como principal ente, alvo, de proteção, e centraliza as pessoas
humanas, pois estas são mais frágeis e compõem a matriz de um estado. Pode-se falar em
agrupamentos humanos sem estado, mas não em estado sem pessoas. Assim, surge o impasse
entre a Segurança Nacional (estado-centralizada) e a Segurança Humana (humana-
centralizada). Não se tem por escopo, aqui, confrontar uma abordagem com a outra, mas sim
tratar acerca da última, a fim de mostrar novas perspectivas, novas abordagens políticas.
Os problemas a serem enfrentados pelos governantes são inúmeros. Entretanto,
correspondem a, basicamente, as questões levantadas pelas sete dimensões da abordagem,
como bem resume Kaldor (2007, p. 183) tais problemas:
Segurança é frequentemente vista como ausência de violência física,
enquanto desenvolvimento é visto como desenvolvimento material –
melhorando os padrões de vida. Mas essa é uma falsa distinção. Ambos
os conceitos incluem “liberdade face ao medo” e “liberdade face às
privações”. Segurança é sobre confrontar vulnerabilidades extremas,
não apenas em guerras, mas em desastres naturais e causados pelo
homem, bem como a fome, tsunamis, furacões. (Tradução nossa).
Conforme podemos depreender de Kaldor, o conceito de segurança é mais amplo.
Envolve desenvolvimento, devendo este ser mais do um padrão de vida decente. A aludida
autora, faz referência a outros tipos de segurança que envolvem a abordagem, como a do
sentimento de segurança nas ruas e a segurança ser capaz de influenciar as tomadas de
decisões políticas.
Assim como o relatório da ONU de 1994, Kaldor elucida que o conceito de
segurança precisa ser mais abrangente. Afinal, nas guerras hodiernas apenas uma minoria das
mortes é causada em campos de batalhas. O lado abjeto da guerra arranca suas vítimas da
violência deliberada contra civis, resultando em terror, limpeza étnica e genocídio. Arranca
ainda suas vítimas através de efeitos indiretos da guerra, como a ausência ao acesso de
cuidados médicos, fome, propagação de doenças, falta de moradias, etc (KALDOR, 2007, p.
183).
Em 2010, foi apresentado o relatório da ONU sobre Segurança Humana. Já no
parágrafo 10, em seu segundo tópico (The
increasedinterdependenciesofthreatsandchallenges), o relatório traz o seguinte texto:
(...) Não importa quão poderosos ou aparentemente isolados os
governos podem ser, o fluxo atual de mercadorias, finanças e pessoas
aumentam os riscos e as incertezas confrontando a comunidade
internacional. É nesse ambiente interconectado que os governos são
convidados a considerarem a sobrevivência, subsistência e dignidade
dos indivíduos como base fundamental para a sua segurança. Pois,
nenhum país pode aproveitar desenvolvimento sem segurança,
segurança sem desenvolvimento, e nem sem respeito pelos direitos
humanos. Essa relação triangular aumenta o reconhecimento de que a
pobreza, o conflito e as reclamações da sociedade podem alimentar um
ao outro em um ciclo vicioso. Como resultado, a garantia da segurança
nacional não mais cabe apenas ao poder militar. Essencial para
enfrentar as ameaças da segurança são também as políticas de saúde,
social, ambiental, econômica, militar e sistemas culturais que juntos
reduzem a subsistência de conflitos, ajudam a superar os obstáculos
para o desenvolvimento e promovem liberdade humana para todos
(General Assembly, 2010, p. 3). (Tradução nossa).
O relatório de 2010 ressalta a interconexão das dimensões que compõem a Segurança
Humana, mostrando que a instabilidade de uma afetará outra dimensão. Por isso, o poder
militar é compreendido como insuficiente como determinador da Segurança dos estados, bem
como da segurança humana. Além disso, podemos perceber a necessidade de se estabelecer
altos padrões de desenvolvimento em todas as dimensões que englobam a Segurança Humana.
É notório que os padrões almejados pela abordagem são mais vivenciados nos países
desenvolvidos. Tal fato faz com que esses padrões sejam cada vez mais elevados
(NOGUEIRA, 2005, p. 212). Desse modo, os países em via de desenvolvimento apresentam
mais problemas a serem enfrentados, a serem superados. O caminho ao desenvolvimento,
feito por tais países, deve ser feito com o veículo correto a fim de se obter êxito.
Entendem-se como tais veículos as políticas adotadas pelos estados que devem ser
capazes de engendrar desenvolvimento. Nesse diapasão, podemos contemplar a aplicação da
Segurança Humana em tais politicas, moldando o viés destas, dando-lhes um esboço humano,
primando pela existência de uma sociedade na qual os indivíduos humanos possam
desenvolver plenamente suas capacidades, em um estado estável e seguro.
3.0 SEGURANÇA HUMANA E O DIREITO AMBIENTAL BRASILEIRO
O estudo do direito ambiental brasileiro sob a luz da Segurança Humana remonta à
Conferência de Estocolmo, em 1972 e à Conferência do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente
e Desenvolvimento, em 1992.
Na Conferência de Estocolmo foram estabelecidos 26 princípios, os quais
constituíram importante fonte do direito ambiental brasileiro e estão presentes no preâmbulo
da Declaração do Rio de Janeiro.
Um dos temas tratados por ambas as Conferências diz respeito ao meio ambiente
como direito humano, ou seja, a securitização do meio ambiente, conforme roga a Segurança
Humana. Acerca do tema, aduz a doutrina:
O meio ambiente de qualidade com um direito humano é o que
estabelece o Princípio 1, que fixa, do mesmo modo, a ‘obrigação de
proteger e melhorar o meio ambiente, para as gerações presentes e
futuras’. Esse princípio inspirou o caput do art. 225 da Constituição
Federal de 1988, que trata do ‘meio ambiente ecologicamente
equilibrado’ como direito de todos, ‘impondo-se ao Poder Público e à
coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e
futuras gerações’. (...). (GRANZIERA, 2011, p. 38).
As Conferências ainda trataram do desenvolvimento sustentável, proteção da
biodiversidade, luta contra a poluição, combate à pobreza, planejamento, desenvolvimento
tecnológico, limitação à soberania territorial dos Estados, cooperação e adequação das
soluções à especificidade dos problemas. Assim, é possível vislumbrar o teor da segurança
humana já sendo tratado desde 1972, através da Conferência de Estocolmo.
Ao tratar do combate à pobreza, a Conferência de Estocolmo apresenta Princípios
que prezam pela estabilidade de preços e pagamento adequado para as commodites, prezam
também pelo indispensável trabalho educacional em prol do meio ambiente. No que tange os
países desenvolvidos, o Princípio 11 dispõe que “as políticas ambientais de todos os países
deveriam melhorar e não afetar adversamente o potencial desenvolvimentista atual e futuro,
dos países em desenvolvimento, nem obstar o atendimento de melhores condições de vida
para todos” (GRANZIERA, 2011, p. 38).
No que diz respeito à soberania, um dos pontos-chave da segurança humana, o
Princípio 22 aduz sobre a necessidade que os “Estados cooperarem no desenvolvimento do
direito internacional, no que se refere à possibilidade de indenização das vítimas da poluição e
outros danos ambientais, que as atividades realizadas dentro da jurisdição ou sob controle de
tais Estados causem às zonas situadas fora de sua jurisdição”.
Outro ponto-chave diz respeito à guerra e à paz, aqui tratados no Princípio 26. Nas
palavras de Granziera (GRANZIERA, 2011, p. 40):
Refletindo uma preocupação da época, em que a Guerra Fria pairava
como ameaça à Humanidade, o Princípio 26 determina que se deve
‘livrar o homem e o meio humano dos efeitos de armas nucleares e dos
demais meios de destruição maciça. Os Estados devem procurar chegar
rapidamente a um acordo, nos organismos internacionais competentes,
sobre a eliminação e completa destruição de armas’.
Todos os Princípios da Conferência de Estocolmo vão ao encontro da Segurança
Humana, em especial o n. 26, acima transcrito. Objetivando a proteção humana, tal princípio
reza que os Estados devem eliminar suas armas através de um entendimento realizado por via
de organismos internacionais. Tais perspectivas de desarmamento e de soberania/indenização
são bases da Segurança Humana, pois de acordo com esta a função primordial do Estado
moderno não é mais de autodefesa e autossuficiência, mas sim de defesa humana e de
interdependência.
Ao disciplinar sobre o meio ambiente como direito humano, a Declaração do Rio de
Janeiro coloca os indivíduos humanos no cerne da questão, afirmando, através do Princípio 1,
que “os seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável.
Têm direito a uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a natureza”.
Alterando o enfoque do meio ambiente saudável como um direito
exclusivamente do homem, Michel Prieur pondera que o direito ao
meio ambiente, como direito humano, enseja alguma dificuldade em
sua formulação concreta, pois a proteção ambiental concerne não só ao
homem, mas a todos os seres vivos e à biosfera. ‘Mais que um direito
humano no sentido estrito, deve tratar-se de um direito da espécie que
protege tanto o homem como o meio em que ele vive’. De acordo com
esse posicionamento, o homem faz parte do meio ambiente, integrando
a natureza, que possui valor por si própria e não apenas em função dos
interesses do homem (GRANZIERA, 2011, p. 48).
Quanto à guerra e à paz, assim como na Conferência de Estocolmo, também foi tema
de discussão na Declaração do Rio de Janeiro. Afinal, trata-se de um tema de considerável
relevância para a consideração de um Estado humano-centralizado ou estado-centralizado.
Aduz Granziera:
A guerra e a paz também foram objeto de tratamento pela Declaração
do Rio de Janeiro. ‘A paz, o desenvolvimento e a proteção ambiental
são interdependentes e indivisíveis’, conforme disposto no Princípio 25.
Já a guerra, por definição ‘é prejudicial ao desenvolvimento
sustentável’, cabendo aos Estados ‘respeitar o direito internacional
aplicável à proteção do meio ambiente em tempos de conflitos armados
e cooperar para seu desenvolvimento progressivo, quando necessário’.
É o que determina o Princípio 24. A solução de controvérsias, nos
termos do Princípio 26, deverá ser efetuada de ‘forma pacífica,
utilizando-se dos meios apropriados, de conformidade com a Carta das
Nações Unidas’ (GRANZIERA, 2011, p. 51).
Desse modo, pode-se perceber que a Declaração roga por fins pacíficos para a solução
de conflitos, resguardando a vida humana, bem como colocando esta no ponto central de
proteção estatal, ao invés do próprio estado.
É, então, nesse diapasão que o direito ambiental brasileiro é compreendido como
antropocêntrico. Entende-se, através desse viés, que o direito ao meio ambiente é voltado para
a satisfação das necessidades humanas. Tem-se, assim, o Princípio n. 1 da Declaração do Rio
de Janeiro sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992, corroborando com esse
pensamento:
Os seres humanos estão no centro das preocupações com o
desenvolvimento sustentável. Têm direito a uma vida saudável e
produtiva, em harmonia com a natureza (FIORILLO, 2012, p. 70).
A passagem acima nos remete ao conceito apresentado por Kaldorsobre
Segurança Humana:
A Segurança Humana potencialmente oferece uma nova abordagem
tanto para a segurança como para o desenvolvimento. Atuais políticas
de segurança ainda tendem a focarem nas ameaças aos estados e nas
capacidades militares tradicionais. (...) A Segurança Humana trata da
segurança dos indivíduos e comunidades em vez da segurança de
estados, e combina direitos humanos e desenvolvimento humano
(KALDOR, 2007, p. 82). (Tradução nossa)
Percebe-se que o conceito de Segurança Humana apontado por Kaldor
compartilha completamente dos mesmos ideais que o Princípio n. 1 da Declaração do Rio de
Janeiro. Desse modo, os princípios da Conferência de Estocolmo e a Declaração do Rio de
Janeiro sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, observadas pelo ordenamento brasileiro,
não conflitam com a Segurança Humana, ao contrário, vão ao encontro da abordagem.
Ademais, a visão antropocêntrica, adotada no Estado brasileiro, se adequa
completamente ao conceito da política humana-centrada, vislumbrada pela Segurança
Humana. Acerca do tema disciplina-se que:
A Constituição Federal de 1988, ao estabelecer em seus princípios
fundamentais a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) como
fundamento destinado a interpretar todo o sistema constitucional,
adotou visão (necessariamente com reflexos em toda a legislação
infraconstitucional – nela incluída toda a legislação ambiental)
explicitamente antropocêntrica, atribuindo aos brasileiros e
estrangeiros residentes no País (arts. 1º, I, e 5º da Carta Magna) uma
posição de centralidade em relação ao nosso sistema de direito positivo
(FIORILLO, 2012, p. 68).
Ao observar os Princípios da Conferência de Estocolmo e da Declaração do Rio de
Janeiro, é possível atentar e buscar combater as três opções apontadas por Brauch,
denominadas pelo autor de “no-win”, o que faz referência à dificuldade de opções enfrentadas
de forma individual, por famílias, clãs, etc, no que concerne estresses ambientais, perigos
naturais, emergências complexas. Tais eventos extremos põem, para os mais vulneráveis, três
opções “no-win”, a saber: morrer, ser forçado a se mudar e migrar ou lutar pela sobrevivência
própria e de sua família (BRAUCH, 2008, p. 21).
Na luta contra situações nas quais os indivíduos humanos têm seus direitos
basilares atingidos por motivos relacionados ao meio ambiente, como descreve Brauch, deve
o Estado brasileiro buscar políticas que visem a preservar e proteger tais direitos. É nesse
diapasão que os princípios do direito ambiental brasileiro emanam. Como notório, tais
princípios beberam da fonte das Conferências de Estocolmo e do Rio de Janeiro, as quais
foram arautos dos direitos humanos no seio do direito ao meio ambiente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo da história humana, sempre se buscou o desenvolvimento nas mais diversas
formas, cultural, científico, literário, artístico, etc. Contudo, durante um longo período de
nossa história, a espécie humana viveu sem se questionar quanto aos eventuais impactos que
poderiam ser causados ao meio ambiente, em nome do “desenvolvimento”, em especial o
industrial.
Inevitavelmente, todo o desenvolvimento logrado serviu para tornar a humanidade
consciente quanto ao meio no qual vivemos. Outrossim, iniciou-se a compreensão da
importância da preservação ambiental, até como modo de perpetuação da vida humana no
planeta.
Desse modo, diferentes ciências passaram a estudar e/ou tutelar o meio ambiente.
Assim, a Ciência Jurídica não pode ser indiferente quanto ao tema, vindo a regulamentar a
condição jurídica ambiental. Dentro do diapasão jurídico e internacionalista, surgiu uma
abordagem, pautada nos direitos humanos, e sendo um reflexo da história humana,
denominada de Segurança Humana.
Assim, buscando uma abordagem mais ampla, na qual o indivíduo humano
desempenha papel importante em prol da segurança do meio ambiente, pois tal indivíduo é
compreendido como parte integrante e não como um ser aparte do meio ambiente, a
Segurança Humanaapresenta a perspectiva centrada no indivíduo e pautada nos direitos
humanos.
Foi necessário, então, que novos temas de discussão fossem agregados às agendas
políticas. Entre esses temas temos os direitos humanos, a cidadania (observando a formação
cidadã nos espaços nacionais e internacionais), a questão dos gêneros, etc. Desse modo, é
necessário que se tenha no Estado brasileiro políticas que envolvam os direitos humanos, bem
como a formação cidadã, a questão do gênero, etc. visando a garantir a dignidade da pessoa
humana.
Contemplando tal importância na dimensão ambiental, temos a securitização do meio
ambiente como uma forma de incluir a temática envolvendo os recursos naturais (sua
utilização, escassez, etc.) no rol dos direitos humanos e a discussão inerente ao tema acerca da
soberania estatal.
No que tange ao Estado brasileiro, sabe-se que o mesmo teve como fonte para os
princípios ambientais duas grandes conferências, a de Estocolmo, de 1972, e a do Rio de
Janeiro, de 1992. Ao respeitar e seguir os princípios da Conferência de Estocolmo e da
Conferência do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, o Direito Ambiental
brasileiro foi completamente ao encontro dos preceitos da Segurança Humana, tendo tratado
do meio ambiente sob o viés dos direitos humanos.
Tal entendimento emana do fato de que, tanto para a Conferência de Estocolmo como
para a Conferência do Rio de Janeiro, o indivíduo humano é indissociável ao meio ambiente,
fazendo parte deste, por isso, temos, em ambas as conferências, a perspectiva antropocêntrica
do meio ambiente, tendo sido tal perspectiva recepcionada pelo ordenamento jurídico
brasileiro.
Desse modo, no que toca à matéria legal, ou seja, a legislação ambiental, podemos
vislumbrar o pensamento político focado na Segurança Humana, reconhecendo as
interconexões do meio ambiente e a sociedade e as nossas percepções do meio ambiente e o
modo como interagimos com o mesmo é histórica, social e politicamente construídas.
O mais importante, contudo, é a inclusão da matéria ambiental no rol dos direitos
humanos, descentralizado o Estado como o ente mais importante. Caminha-se para a
centralização do individuo humano, ou seja, as outrora atividades realizadas pelo Estado,
centralizadas no próprio Estado, passaram a ser centralizadas no indivíduo humano. Entende-
se, assim, que o Estado tem o dever ínsito de proteger aqueles que nele estão, mais do quê
proteger a si mesmo.
No que tange a matéria ambiental, tal dever do Estado, aplicado aos direitos humanos,
estabelece condições as quais objetivam as garantias preconizadas pelos direitos humanos, ou
seja, a aplicação de políticas que atentem para fatores como migração por razões climáticas,
desastres ambientais e as suas consequências, o correto uso dos recursos ambientais, educação
ambiental, entre outros.
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CIDADANIA AMBIENTAL
Constitutionalism and the Evolution of the Procedural Protection of the Environment through Public Civil Action. Challenges and Environmental Citizenship
Luiz Gustavo Levate1
RESUMO
O meio ambiente se erige como direito fundamental de 3ª dimensão e como direito fundamental “completo” na construção de Robert Alexy. A sua proteção e dos demais direitos difusos e coletivos não se dá somente por medidas administrativas e legislativas, necessitando, na maioria das vezes, da intervenção judicial. Todos os sistemas processuais eram voltados para a proteção de direitos individuais. Entretanto, como fruto da segunda onda renovatória de acesso à Justiça, a defesa daqueles direitos passou a ser realizada principalmente pela Ação Civil Pública, portadora de dignidade constitucional. O seu diálogo com o Código de Defesa do Consumidor fez surgir um microssistema processual de direitos difusos e coletivos com institutos processuais adequados à tutela dos direitos meta-individuais. Apesar da defesa destes interesses ter origem remota em Roma e origem próxima no Projeto Florença no século XX, decorrente de novas exigências sociais e das inovações tecnológicas, tendo, ainda, como instrumento primeiro as Class Actions do direito-norte americano, há, deveras, muitos desafios a serem ultrapassados no direito brasileiro para uma eficiente tutela jurisdicional do meio ambiente, onde se desponta o exercício de uma cidadania ambiental.
Palavras-chave: Ação Civil Pública – Meio Ambiente - Desafios
ABSTRACT
The environment becomes a third dimension fundamental right and a “complete” fundamental right in Robert Alexy’s theory. Its protection and the protection of others collective rights are not done only by administrative and legal measures, needing, in most cases, Judiciary intervention. All systems targeted individual rights protection. However, as a result of the second Judiciary renewals wave of Justice access, the defense of those rights started to be done mainly by public civil claim, that has constitutional dignity. Its dialogues with the Consumer Law gave rise to a collective right process microsystem, adequate to the protection
1 E-mail: [email protected]
of these rights. Despite the fact that the defense of these rights first appeared in Rome and have a close origin in the Florence Project in the XX century, due to new social demands and technological innovations having, still, as the first instrument the Class Actions from North American system, there are a lot of challenges to be overcome in Brazilian Law System to an efficient environmental jurisdictional protection, where citizenship emerges.
Key words: Public Civil Action - Environment - Challenges
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO. 2. O PROCESSO NO PARADIGMA JURÍDICO- CONSTITUCIONAL
DO ESTADO LIBERAL. 3. O PROCESSO NO PARADIGMA JURÍDICO-
CONSTITUCIONAL DO ESTADO SOCIAL. 4. O PARADIGMA JURÍDICO
CONSTITUCIONAL DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. 5 A RELAÇÃO
ENTRE CONSTITUIÇÃO E PROCESSO AMBIENTAL. 5.1 A face procedimental dos
direitos fundamentais: uma breve visita à Jelinek, Häberle e Alexy. 5.2. A Fundamentação
Constitucional do Processo na Constituição da República de 1988. 5.3 Origem próxima e
remota do direito processual coletivo. 6. DIREITO PROCESSUAL COLETIVO
BRASILEIRO. 7. OBSTÁCULOS À PROTEÇÃO AMBIENTAL PELA AÇÃO CIVIL
PÚBLICA E O EXERCÍCIO DE UMA CIDADANIA AMBIENTAL. 8 CONCLUSÃO. 9.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
1 INTRODUÇÃO
O objeto do presente estudo é a contextualização da tutela jurisdicional do meio
ambiente por meio da ação civil pública, sua evolução histórica, sua fundamentação
constitucional e os desafios para fazer dela um mecanismo de eficiente proteção. Para se
atingir o objetivo proposto é necessário o estudo das características gerais do processo nos
diversos paradigmas jurídicos- constitucionais, a análise da relação do processo com a
Constituição, da face procedimental dos direitos fundamentais e a intercomunicação entre a
lei de Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor.
A importância da temática ambiental exige a identificação dos obstáculos e sugestões
para uma efetiva proteção do meio ambiente por meio do processo e através do efetivo
exercício de uma cidadania ambiental.
O grau de proteção que determinado ordenamento jurídico confere ao meio ambiente
depende de sua base jurídico-moral ser centrada numa inspiração antropocêntrica ou
ecocêntrica. Segundo Keith Thomas,
Com efeito, as formas de relacionamento da espécie humana com o mundo natural são ditadas pelas diferentes cosmovisões ou modos de enxergar o mundo que nos cerca. As cosmovisões, por seu turno, são inspiradas pelas diversas culturas que se sucedem com o fluir do tempo, e em vários espaços do globo, ou seja, ao longo da História. A História, por sua vez, trabalha com as coordenadas básicas de tempo
(quando) e de lugar (onde); é na conjugação de tempo e lugar que os acontecimentos e as culturas se desenvolvem. Por aí se pode ver que nos distintos contextos históricos as relações do Homem com a Natureza são também muito diferentes, além de serem permanentemente complexas” (THOMAS, 1994, Apud Fiorillo, 2001, p. 5).
Estribados numa ética ocidental judaico-cristã os antropocentristas, do mais
fundamentalista ao antropocentrista responsável, sempre enxergaram o homem como centro
de todas as coisas e do universo, senhor da natureza, devendo explorá-la e dela retirar seu
sustento de forma ilimitada, pois a natureza e os animais não gozariam de um valor de per si,
mas somente enquanto servissem ao homem e a seus caprichos. Apoiados nas teorias
econômicas desde o século XV sustentavam que o homem deveria explorar a natureza,
mesmo sabendo que os recursos são escassos, apesar das ilimitadas necessidades, pois no
futuro a tecnologia seria capaz de repor ou substituir os recursos naturais.
Em ponto contrário se encontram os ecocentristas, cujo pensamento considera a
natureza e demais seres vivos como dotados de um valor especial e próprio e não apenas
como coisa a serviço do Homem. Desfeita a coisificação da natureza, que teve em Keith
Thomas um de seus primeiros defensores na modernidade percebeu-se que “ a natureza carece
de uma proteção pelos valores que ela representa em si mesma, proteção que, muitas vezes,
terá de ser dirigida contra o próprio homem (THOMAS, 1994, Apud Fiorillo, 2001. p. 17).
Ainda segundo o autor,
O que há de novo no período moderno é que, quando Montaigne, no século XVI, e os libertinos franceses, no século XVII, resgataram a antiga contestação dos céticos à ‘soberania imaginária’ do homem sobre as outras criaturas, descobriram, pela primeira vez, que na tradição cristã havia autores que concordariam com eles. Em meados do século XVI, John Bradford, mártir mariano, contestou abertamente a doutrina escolástica de que os animais foram feitos exclusivamente para o amparo do homem. No século XVII, tornou-se cada vez mais comum defender que a natureza existia para a glória divina e que Deus se preocupava tanto com o bem-estar das plantas e animais quanto com o do homem. Durante a Guerra Civil houve sectários que levaram tal tese à sua conclusão lógica. ‘Deus ama tanto as criaturas que rastejam no chão quanto os melhores santos’ dizia um deles, ‘e não há diferença entre a carne de um homem e a carne de um sapo. (THOMAS, 1994, apud Fiorillo 2001, p. 20)
A Constituição Republicana de 1988 ao tratar do meio ambiente como direito
fundamental adota uma concepção antropocentrista moderada ao consagrar a teoria do
desenvolvimento sustentável, cujas preocupações se voltam para o âmbito social, econômico e
ambiental, protegendo bens e valores naturais, paisagísticos, urbanísticos, ecológicos e
históricos, tendo sempre, porém, como centro de suas atenções o homem, pois o
desenvolvimento sustentável impõe ao Poder Público e a coletividade “o dever de defendê-lo
e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”, assegurando a todos uma existência digna
(BRASIL, 1988), cuja nova chancela foi dada no documento final da Conferência das Nações
Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável realizada em junho de 2012 na cidade do Rio de
Janeiro (R+20) denominado “The Future we want” (O Futuro que queremos).
Ao analisar os direitos humanos de terceira geração, Paulo Bonavides assim se
expressa a fim de demonstrar, sua abrangência e importância, a humanidade como seu sujeito
ativo e, ainda, seu conteúdo
Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos da terceira geração tendem a cristalizar-se neste fim de século enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano, mesmo num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade correta. Os publicistas e os juristas já os enumeram com familiaridade, assinalando-lhe o caráter fascinante do coroamento de uma evolução de trezentos anos dos direitos fundamentais. Emergiram eles da reflexão sobre temas referentes ao desenvolvimento à paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade". (BONAVIDES, 2001, p.517).
Justifica-se a escolha do tema em razão das ações coletivas (ação civil pública) e as
tutelas inibitórias em geral serem utilizadas cada vez mais como principal e mais efetivo
instrumento para a proteção dos bens de valor ecológico. Portanto, faz-se, indispensável,
estudar a evolução do processo civil para a correta identificação do contexto histórico do
surgimento da ação civil pública e seus precedentes no direito comparado, a fim de que se
possa identificar as vicissitudes da tutela jurisdicional, para se encontrar a solução para tais
problemas.
Metodologicamente, a análise do objeto de qualquer ciência pressupõe
compreendermos o momento histórico em que os sujeitos e o objeto estavam inseridos, sob
pena de cometermos grave injustiça. Afirma Francisco Amaral (2006, p.110), “ser impossível
uma perfeita compreensão do fenômeno jurídico, sem o recurso à investigação histórica”.
As condições históricas e o estágio da evolução humana em determinado período, ou
de acordo com Bobbio (2004, p. 90-91) “certas transformações sociais e certas inovações
técnicas que fazem exigir novas exigências, imprevisíveis e inexeqüíveis antes que essas
transformações e inovações tivessem ocorrido”, vão condicionar e influenciar a concepção de
mundo, e no nosso caso, a criação, a compreensão, a interpretação e a aplicação do Direito
(estes três últimos como um “processo unitário” na ótica Gadameriana), já que aquelas
transformações e inovações vão levar ao surgimento paulatino de novos direitos e à
conformação dos já existentes, o que exige uma nova compreensão do fenômeno jurídico e da
Sociedade. Tal função é cumprida de forma satisfatória quando se tem em vista a noção de
“paradigma”.
No âmbito jurídico encontramos no vocábulo “teoria” a definição mais simples, não,
porém, menos acertada de “paradigma”. O que é preciso ficar claro é que ainda que entendido
como modelo, realização científica, matriz disciplinar ou teoria (no campo do Direito), com
funções de estabilizador de tensões ou fornecedor de soluções modelares, de propiciar auxílio
na percepção de mundo, de ser informador e conformador da aplicação do Direito ou de servir
de norte interpretativo para a compreensão de normas e princípios, a mudança de um
paradigma jurídico-constitucional, em razão do movimento cíclico e pendular inevitável da
história, não se dá sem resistências do próprio homem. É o que nos afirma com pena de
mestre Cattoni de Oliveira,
Todo processo de alteração de paradigma, quer seja na ciência, quer seja na vida, não se dá sem resistências. Afinal, não são todos os que, abertamente, reconhecem o esgotamento de uma concepção de mundo na qual construíram seu modo de compreender o trabalho científico, assim como a si próprios. O paradigma no qual nos movemos é constitutivo de nós mesmos. Ultrapassá-lo no sentido de sermos capazes de adquirir um novo horizonte de possibilidade de doação de sentidos à nossa auto-compreensão e à sociedade, ao mundo e à vida, mais amplo, rico e complexo do que o anterior, é saltar para além da linha de Rhodes, que um paradigma pode representar. Implica reconhecer, por um lado, o caráter finito, falível e precário da condição humana, algo que exige o aprendizado crítico e reflexivo em face de tradições sempre carentes de justificação, e requer o quase sempre doloroso abandono daquilo que mais óbvio, natural, certo e assentado até então nos parecia.(CATTONI DE OLIVEIRA, 2004, p.1-2)
Realizado este intróito com a identificação da problemática do estudo e a forma de
atingir seu objetivo, face a importância que o tema ganha a cada dia e, principalmente, em
função do acontecimento recente da Rio +20, buscar-se-á demonstrar, num primeiro
momento, a evolução do contexto histórico dentro do qual esteve inserido o processo para se
entender o surgimento da ação civil pública no modelo que conhecemos.
2. O PROCESSO NO PARADIGMA JURÍDICO CONSTITUCIONAL DO ESTADO
LIBERAL
O paradigma da pré-modernidade, apesar da idade moderna compreender o período
entre a queda de Constantinopla em 1453 e a Revolução Francesa de 1789, tinha como
características principais o absolutismo do rei, que sobre tudo sabia e decidia, inclusive a
religião, em razão da origem divina do seu poder, uma sociedade fundada na tradição e nos
costumes, bem como a intervenção ou dirigismo dos Estados Nacionais na economia como
conseqüência do mercantilismo.
Apesar do constitucionalismo moderno ser timbrado pela organização do Estado e
limitação do Poder Estatal pela previsão de direitos e garantias fundamentais inseridos numa
Constituição vista como lei fundamental do Estado, é possível se falar em constitucionalismo
desde a antiguidade nos Estados Teocráticos (v.g povo hebreu), pois aquele significa
limitação do poder, e nos dizeres de Karl Lowenstein (1979) “ o dominador, longe de ostentar
um poder absoluto e arbitrário, estava limitado pela lei do Senhor, que submetia igualmente
governantes e governados: aqui radicava sua constituição material”.
Importante para o presente trabalho destacar as características do processo judicial,
conhecido à época como processo comum. Consoante Dierle José Coelho Nunes (2008), em
lição baseada em Taruffo e Denti, à semelhança dos demais ramos do Direito, o processo não
estava codificado em um corpo unitário e homogêneo de leis, o que levava a um esvaziamento
da função diretora do procedimento das mãos de um Juiz-expectador, que se apresentava
somente no momento de decidir e, por outro lado, era o processo controlado pelas partes
(característica advinda da exigência da forma escrita). A sua condução ficava a cargo dos
advogados, cujo papel se sobressaía em razão do tecnicismo e formalismo dos procedimentos.
Além disso, havia uma pluralidade de jurisdições com constantes conflitos de competências
(jurídica, eclesiástica, feudal v.g.). O processo era, assim, uma sucessão caótica de atos,
estribado na forma escrita e numa formalidade exacerbada e extremamente complicada, tendo
no juiz a figura de um mero espectador , como explica Dierle Nunes (2008), que sintetiza de
forma única as características do processo comum
a) monopólio do procedimento escrito (...); b) proibição de imediatidade do juiz com as partes e as provas, com a utilização de terceiros (...) que substituem o magistrado na coleta e exame das testemunhas, que se dá in câmera (sigilosamente); c) utilização do sistema de apreciação de provas tarifário (prova legal), (...); d) devido à ausência de direção formal do procedimento pelo juiz este se desenvolve de modo descontínuo e fragmentário; e) as partes e, primordialmente, são os senhores incontrolados do procedimento (...) com a utilização de táticas protelatórias, recursos e manobras abusivas; e f) como conseqüência das características anteriores, gerava-
se uma enorme duração dos processos cíveis, não constituindo raridade uma tramitação processual por várias décadas (...).(NUNES,2008, p. 64 - 65).
O Estado Liberal ou de Direito coincide com o surgimento do constitucionalismo
moderno, onde constituições escritas passam a organizar o Estado e a limitar os poderes do
soberano por meio da previsão de direitos e garantias fundamentais de direito material e
processual. Com a Revolução Francesa e a teoria liberal de John Locke, cujo fundamento era
a “Razão”, estavam lançadas, assim, as bases para o Liberalismo e para o individualismo.
Explicando o significado do termo, aponta Norberto Bobbio (2004, p.75-77) que a
“concepção individualista significa que primeiro vem o indivíduo (o indivíduo singular, deve
se observar), que tem valor em si mesmo, e depois vem o Estado, e não vice-versa, já que o
Estado é feito pelo indivíduo e este não é feito pelo Estado”, para em seguida concluir que “a
doutrina filosófica que fez do indivíduo, e não mais da sociedade, o ponto de partida para a
construção de uma doutrina da moral e do direito foi o jusnaturalismo. (...) O individualismo é
a base filosófica da democracia: uma cabeça, um voto. Já Francisco Amaral (2006) traça de
forma escorreita as características do Estado Liberal ou de Direito
a) império da lei, no sentido de que todos os poderes dela derivam, como expressão da vontade geral. O primado da lei é a característica fundamental, subordinando-se a lei à constituição, conforme a hierarquia das normas; b) divisão dos poderes, respectivamente, Legislativo, Judiciário e Executivo, a que correspondem três momentos do processo jurídico: formação, aplicação e execução das leis (...). c) generalidade e abstração das regras jurídicas; d) distinção entre direito público e privado (...); e) crença na completude e na neutralidade do ordenamento jurídico; f) concepção do homem como um abstrato sujeito de direito, por efeito do processo de abstração do direito moderno, e correspondente à idéia de homem livre e igual, da tradição iluminista (...). Enfim, o Estado de Direito é o Estado da legalidade e da liberdade dos indivíduos, livres e iguais”.(AMARAL, 2006, p. 16)
Consoante demonstrado, o processo comum da fase pré-liberal tinha como
características principais a forma escrita, o domínio processual das partes, a passividade do
juiz e a valorização do contraditório. A codificação das leis processuais, também promovida
por Napoleão (Código de Processo Civil de 1806 e a Lei de Organização Judiciária de 1810),
como forma de trazer segurança às partes e organizar o arcabouço legislativo processual por
meio de leis elaboradas pelos representantes do povo “não ousaram romper por completo com
toda a relação com o sistema judiciário do Ancien Régime”, segundo Dierle Nunes (2003,
p.72), já que o processo da fase liberal vai preservar a forma escrita e o domínio das partes.
Ademais, em ambos os momentos havia uma coincidência perfeita entre o titular do direto
material e o titular do direito de ação em quase todas as hipóteses, pois o estágio de
desenvolvimento humano ainda não permitia se falar em direitos meta-individuais.
Contudo, ainda segundo Dierle Nunes (2008), estribado em Picardi, já no século
XVII foram elaborados os códigos de processo Saxão de 1622 e a Ordonnance Civile na
França em 1667. Segundo o autor (2008), no processo comum da fase pré-liberal destacava-se
a importância do contraditório - audiência preventiva . Para Hespanha citado por Nunes
2008, p.66) “a aplicação de uma qualquer medida coactiva em relação a um súbdito (...) não
pode ocorrer sem a participação do destinatário, ao qual deve ser oferecido um meio de se
defender”, lembrando que o termo súdito se refere aqui a uma classe especial de pessoas, não
abrangendo todo o povo.
Entretanto, na fase liberal e posteriormente mais enfaticamente no Estado Social com
o protagonismo judicial, o princípio do contraditório, de fundamentação jus naturalista, é
reduzido a um mero dizer e contradizer, a uma informação e reação - na verdade com
resquícios de aplicação, nesta ótica, por grande número de juízes atualmente.
A forma escrita e o domínio das partes no processo, portanto, vão se projetar nos
princípios da igualdade formal e dispositivo. O homem do século XVIII é o homem abstrato,
sem consideração com suas idiossincrasias ou particularidades, significando a igualdade que
os homens são iguais no gozo de suas liberdades e isonômicos perante a lei.
Lado outro, como no Estado Liberal há predomínio da vontade das partes e a
passividade judicial, bem como a consagração da autonomia da vontade, teremos como
corolário o princípio dispositivo do qual, segundo Dierle Nunes (2008, p.76), “se extrai o
veto ao juiz de instaurar e manifestar-se de ofício dentro do processo (...) ou seja,
independentemente da provocação das partes, elemento essencial para a concepção liberal do
processo como coisa das partes”, não havendo que se falar, portanto, em legitimação
extraordinária e defesa de direito alheio em nome próprio
Acontece que o Estado de Direito inaugurado no século XVIII representou uma
mudança de comportamento e de concepção do mundo – paradigma- e do Próprio Estado,
que vinha desde a antiguidade. Apesar de trazer heranças da pré-modernidade, e no campo
jurídico do próprio Antigo Regime, num processo lento, cuja ruptura se dá com a Revolução
Francesa e a Independência dos Estados Unidos, o Estado Liberal não foi capaz de responder
aos anseios de todos os cidadãos, mas apenas de uma classe, a burguesia.
A evolução econômica provocada pelo desenvolvimento do comércio e pelas
inovações tecnológicas com a Revolução Industrial gerou transformações sociais com o
surgimento de uma nova classe – Proletariado- cujo grau de exploração do homem pelo
homem alcançou níveis jamais vistos. Como nos ensina José Luiz Quadro Magalhães,
Esse individualismo dos séculos XVII e XVIII corporificado no Estado Liberal e a atitude de omissão do Estado diante dos problemas sociais e econômicos conduziu os homens a um capitalismo desumano e escravizador. O século XIX conheceu desajustamentos e misérias sociais que a Revolução Industrial agravou e que o Liberalismo deixou alastrar em proporções crescentes e incontroláveis. Combatida pelo pensamento marxista e pelo extremismo violento fascista, a liberal-democracia viu-se encurralada. O Estado não mais podia continuar se omitindo perante os problemas sociais e econômicos (MAGALHÃES, 2000, p44) ;
Neste sentido, já é clássica a lição de Paulo Bonavides quando relata a derrocada do
paradigma jurídico constitucional do Estado Liberal, o que permite vislumbrar o
irrompimento de direitos difusos em razão das transformações sociais ocorridas
Quando o Estado, coagido pela pressão das massas, pelas reivindicações que a impaciência do quarto estado fez ao poder político, confere, no Estado constitucional ou fora deste, os direitos do trabalho, da previdência, da educação, intervém na economia como distribuidor, dita o salário, manipula a moeda, regula os preços, combate o desemprego, protege os enfermos, dá ao trabalhador e ao burocrata a casa própria, controla as profissões, compra a produção, financia as exportações, concede o crédito, institui comissões de abastecimento, provê necessidades individuais, enfrenta crises econômicas, coloca na sociedade todas as classes na mais estreita dependência de seu poderio econômico, político e social, em suma, estende sua influencia a quase todos os domínios que dantes pertenciam, em grande parte, à área de iniciativa individual, nesse instante o Estado, pode, com justiça, receber a denominação de Estado social. (BONAVIDES, 2007, p.186)
Identificados a complexidade e massificação da sociedade com um ambiente
propício para uma enorme conflituosidade social, no próximo ponto demonstrar-se-á o
contexto do paradigma jurídico-constitucional do Estado Social como ambiente propício ao
surgimento da tutela coletiva e as características do socialismo processual.
3. O PROCESSO NO PARADIGMA JURÍDICO CONSTITUCIONAL DO ESTADO
SOCIAL.
A revolução industrial, a exploração desmensurada do homem pelo próprio homem e
a massificação da sociedade fez eclodir “a conflituosidade social decorrente das novas
exigências da sociedade de massas, o que tornou premente a regulação e a proteção dos
interesses transindividuais”, na bem pontuada análise de Gregório Assagra (2003, p.53)
O gérmen do Estado Social, como v.g. o direito ao trabalho, já estava inscritos nas
Constituições Francesas de 1793 e 1848. Mas foi apenas no Sec. XX, depois da primeira e,
em maior grau ainda, depois da segunda guerra mundial, que se converteram no equipamento-
padrão do constitucionalismo. No entanto, ficou convencionado que a “certidão de
nascimento” do Estado Social está na Constituição mexicana de 1917, que além dos direitos
ao trabalho, à assistência e à seguridade promoveu, ainda que retoricamente, uma reforma
agrária sem precedentes, bem como na Constituição de Weimar de 1919, que igualmente
garantiu diversos direitos sociais, como forma de compensação dos males provocados pelo
Liberalismo.
O Paradigma Jurídico-Constitucional do Estado Social caracteriza-se por uma fase
inicial de intervenção estatal na atividade laboral, passando por uma intervenção generalizada
na economia, até atingir seu apogeu após a segunda grande guerra, de acordo com a
observação de Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira da Silva (2003). Esse Estado Social, que
busca corrigir as distorções liberais, com a utilização de políticas afirmativas e consagração
de direitos sociais para os trabalhadores, pobres e excluídos, vai evoluir para um Estado de
Bem Estar Social (Welfare State), na incensurável lição de Carlos Miguel Herrera (2010,
p.18), pois “através da extensão do sistema de seguridade social a todos os cidadãos, sem
limites de renda, a idéia de integração social toma a forma da universalidade”. A
denominação “Estado Social” é assim consagrada, porque “as Constituições passam a ser
lidas como estatuto jurídico-político do Estado e da sociedade. Daí Estado Social”, consoante
nos ensina Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira (2002. p 60).
O individualismo levou a graves desajustamentos sócio-econômicos e o Estado se
apresenta no século XIX como o instrumento de correção destas distorções, pois que o
mercado e os indivíduos não conseguiram, por si só, permitir que os ideais de liberdade,
igualdade e fraternidade da Revolução Francesa do século anterior se realizassem na prática.
O Estado passa a exercer, assim, uma função assistencialista.
No estudo da evolução do arcabouço processual percebeu-se que no processo comum
da pré-modernidade e no processo liberal, que trouxe consigo diversas características do
Antigo Regime, o juiz tem diante do processo uma figura passiva de mero expectador. O
controle do processo estava nas mãos das partes (individualismo e autonomia da vontade) e
dos advogados. A forma escrita predominava e o contato do juiz com as partes era reduzido
ao momento decisório, pois se acreditava que estas características, bem como a proibição de
atuação oficiosa do magistrado, trariam uma esperada imparcialidade. Essas características
eternizavam o processo que, não raro, poderia durar décadas. Tal imparcialidade era buscada,
ainda, na idéia de completude do ordenamento jurídico, que permitia ao juiz “boca da lei” tão
somente uma interpretação literal ou gramatical, característica da Escola da Exegese. Este
arcabouço teórico não atendia as novas exigências processuais que irão surgir para a defesa
dos novéis direitos meta-individuais, e é justamente esta concepção liberal-oitocentista do
processo que dificulta, hodiernamente, a defesa daqueles direitos.
Entretanto, com a sucessão do novo paradigma, cuja função é servir de vetor
interpretativo, muda também a interpretação e a aplicação do Direito. Como forma de
compensar os efeitos deletérios do individualismo e a incapacidade do Legislativo em sua
atuação abstrata, bem como do Executivo em sua atuação concreta por falta de recursos no
alcance dos fins e metas estatais de propiciar a todos indistintamente o bem comum, no
Estado Social pretende-se que, segundo Flaviane Barros e Dierle Nunes (2010, p.7549) “o
juiz em sua decisão proceda à correção prática dos erros perpetrados por outras esferas
estatais”. Assim, aquele juiz meramente expectador é elevado à categoria de protagonista do
processo judicial, cabendo a ele a representação dos hiposuficientes. O processo passa a ter
como características:
i)o ativismo judicial, quando o juiz passou a exercer uma atividade compensatória de déficits de igualdade material; (ii) abandono da exclusividade da forma escrita, com a prática de atos processuais na forma oral; (iii) parcialidade do juiz; (iv) tolhimento da liberdade das partes; (v) atuação oficiosa do juiz, cedendo o princípio dispositivo ao princípio inquisitório; (vi) O processo como relação jurídica, onde os sujeitos processuais teriam direitos e deveres uns em relação aos outros. (NUNES,2008, p 80-117).
Por pressões da classe burguesa houve a necessidade de se buscar um processo mais
célere e procedimentalmente mais simples para que fosse compreendido até mesmo por leigos
-a classe burguesa financiava estudos e pesquisas desde o mecenato, mas a classe em si não
tinha um nível cultural elevado-, pois a demora na solução de seus conflitos representava um
entrave para seus negócios, seus investimentos e para o ganho de seu lucro. A forma escrita
atrasava muito o andamento da marcha processual e a oralidade, além trazer amplos poderes
para o juiz, se apresentava como o remédio para o atraso, se de fato fosse utilizada. Klein,
citado por Nunes afirma que
Para esses indivíduos, o mais importante de tudo é uma resolução rápida, decisiva do processo. Mesmo juízos pouco precisos, pequenos erros, eles os preferem no comércio a deixar durar por um longo tempo a penosa incerteza da disputa não resolvida, incerteza que inibe suas ulteriores transações. (KLEIN apud NUNES 2008, p.85)
As principais figuras que influenciaram a reestruturação do processo no Estado
Social foram os austríacos Anton Menger, Secretário do Ministério da Justiça, que promoveu
profundas alterações na legislação de seu país, Franz Klein, jurista discípulo de Menger, e o
alemão Oskar Von Büllow. O ponto central da reação de Menger, explica Nunes (2008), às
características do processo liberal se concentrava na passividade da postura do juiz, pois que
além de não compensar as desigualdades materiais entre ricos e pobres permitia que o
processo durasse décadas em razão do controle da marcha processual se encontrar nas mãos
das partes e dos advogados. Dierle Nunes (2008, p.104) revela que “àquela época, o
pensamento que conduzia ao protagonismo judicial poderia ser mesmo defensável, uma vez
que os juristas lutavam contra a aplicação liberal do direito (...), que impunha a prevalência
dos interesses privados em detrimento dos sociais”.
O protagonismo judicial emerge, portanto, como a principal característica do
processo no Estado Social. Abandona-se a idéia daquele Estado de leis acabadas e perfeitas
como obra da razão humana, que garantiam a igualdade formal entre as partes, e se constrói
um Estado de Juízes. O juiz, na ótica Calamandriana, é o representante do Estado no processo
e deve atuar de modo a corrigir as imperfeições e as omissões dos outros poderes estatais. O
intervencionismo típico do Estado Social se apresenta também no processo. Cappelletti ao
escrever sobre a relação entre os interesses individuais e a atuação judicial ensina que
Os juízes poderiam adotar muito bem uma posição de simples rejeição, recusando-se a entrar na arena dos conflitos coletivos e de classe. Tal atitude negativa teria, contudo, a consequência prática de excluir do judiciário a possibilidade de exercer influência e controle justamente naqueles conflitos, que se tornaram de importância sempre mais capital nas sociedades modernas. Desse modo, a ‘ordre judiciaire’, abrigada na sua imagem oitocentista, terminaria por se tornar uma sobrevivente, talvez respeitável, mas irrelevante e obsoleta, porque incapaz de adaptar-se às exigências de um mundo radicalmente transformado; e, mais cedo ou mais tarde, outros organismos ‘quase judiciários’ e procedimentos terminariam por ser criados, ou gradualmente adaptados, para atender às novas e urgentes solicitações sociais. (...) A outra alternativa, pelo contrário, é a de que os próprios juízes sejam capazes de ‘crescer’, erguendo- -se à altura dessas novas e permanentes aspirações, que saibam, portanto, tornar-se eles mesmos protetores dos novos direitos ‘difusos’, ‘coletivos’ e ‘fragmentados’, tão característicos e importantes da nossa civilização de massa, além dos tradicionais direitos individuais” (CAPPELLETTI, 1993, p. 59, grifos nossos).
É nesse ambiente do Estado Social que vai nascer o Projeto Florença, idealizados
por Capelleti e Garth e dentro dele é que surgirá a idéia de necessidade de defesa dos
interesses difusos e coletivos. Esse projeto absorveu provocou o que se denominou de ondas
renovatórias de acesso a Justiça, que compreenderia: (i) Assistência judiciária aos
necessitados, (ii) Representação jurídica para os interesses difusos e (iii) Novo enfoque sobre
a justiça preocupando-se com o consumidor do Judiciário, atacando as barreiras de acesso à
justiça. O que interessa ao presente estudo, especificamente, é a segunda onda. Portanto, os
obstáculos de acesso a uma ordem jurídica justa, segundo respeitosa doutrina, como v.g.
Cândido Dinamarco (2009) residiriam no problema da a) admissão ao processo (legitimação
extraordinária para a defesa dos interesses meta-individuais); b) modo-de-ser-do-processo
(existência de uma tutela jurisdicional adequada aos novos direitos que surgiam); c) justiça na
decisão (aplicação correta do direito), d) a utilidade nas decisões (que necessita de um
arcabouço processual adequado e eficiente para atender a máxima Chiovendiana da máxima
efetividade do processo). Ao tratar do interesses difusos Cappelletti ensina que
Os interesses difusos representam um fenômeno típico e de importância crescente, da sociedade moderna, caracterizado pela passagem de uma economia baseada principalmente em seus relatórios individuais para uma economia em cujo trabalho, produção, turismo comunicação, assistência social e previdência, etc, são fenômenos de massa. Se pensarmos no desenvolvimento dos direitos sociais típicos, ressalto, do moderno Estado social ou promocional esses podem comportar benefícios ou vantagens nos contornos das vastas categorias (Cappelletti, 2002, p 78).
Assim, o grande problema a ser enfrentado pela tutela coletiva era o fato de os
institutos do direito processual estarem todos voltados para a defesa de direitos individuais. A
própria Constituição Federal anterior dispunha que a lei não excluiria do controle judicial a
lesão a direito individual (BRASIL 1967). Desta forma, a conformação dos institutos do
Direito Processual (lisitsconsórcio, legitimidade, coisa julgada e etc.) para a tutela de conflitos
interindividuais não se adequava ao Direito Processual para tutela de conflitos coletivos.
Como o Estado Social não respondeu mais às demandas sociais diante de todas as
transformações ocorridas em todos os âmbitos, entra em colapso este paradigma
constitucional, que exigirá novas soluções modelares. Parejo Alfonso bem retrata a atmosfera
contraditória que se tornou reveladora da crise do Estado Social
Por um lado um sentimento de satisfação e de plenitude históricas, fundados na obtenção de um grau de desenvolvimento econômico-social e , portanto, de riqueza e de qualidade de vida, bem como de aperfeiçoamento da convivência política, sem paralelo na história. (...) Por outro lado, um sentimento de insatisfação, desassossego e insegurança, decorrente do paulatino esgotamento do modelo de desenvolvimento e progresso, especialmente visível no afloramento de seus limites e na dificuldade de que padece para resolver de forma satisfatória os problemas de integração social que ele próprio suscita. É também patente a incapacidade do sistema para encarar com êxito complexas e novas questões (basicamente a ameaça do equilíbrio do meio ambiente e o domínio das interrogações fundamentais colocadas pelo progresso científico e tecnológico), e é um facto a crise de confiança no Estado, quanto à sua capacidade de direcção e controlo dos problemas sociais, bem como de resolução satisfatória dos problemas de convivência política. (PAREJO ALFONSO, 1990, apud DA SILVA, 2003, pg123-124, grifos nossos).
Surge como resposta a essa crise o paradigma do Estado Democrático de Direito, que
vai determinar, dentre outras modificações, uma nova relação entre Constituição e Processo,
além de ganhar o direito processual coletivo natureza, berço e dignidade constitucionais, pois
terá sede na própria Constituição. Assim, necessário verificar a nova conformação ditada pelo
novo Paradigma.
4. O PARADIGMA JURÍDICO CONSTITUCIONAL DO ESTADO DEMOCRÁTICO
DE DIREITO.
O Estado Democrático de Direto vai resultar da conjugação entre o Estado de Direito
e o Estado Democrático. Dessa forma, este paradigma absorve os princípios do
constitucionalismo moderno de organização e limitação dos poderes (funções) estatais pela
previsão legal (constitucional) de direitos e garantias fundamentais, estando o próprio Estado
submetido ao direito. Esse direito deve ser fruto da soberania popular, é delegada aos
representantes do povo, cuja produção legislativa deve refletir os anseios da sociedade, pois é
ela que vai regular as relações entre os particulares, entre estes e o Estado, bem como o
funcionamento deste último. A legitimidade do Direito percorre um ciclo, pois o poder que
pertence ao povo é transformado em Direito para ter como destinatário os próprios indivíduos.
Jürgen Habermas é considerado um dos principais teóricos do Estado Democrático de
Direito em função de sua teoria do discurso e procedimental do direito. Sua crítica principal
aos paradigmas anteriores residia no fato dos indivíduos não participarem da vida estatal por
meio de uma razão comunicativa que os permitisse se sentirem não só como destinatários,
mas como co-autores de uma ordem jurídica autônoma, fazendo do Direito um sistema
legítimo, mas desde que obedecido um processo de formação institucionalizado, neutro e livre
de coações. Ademais, numa sociedade secularizada e pós-metafísica a fonte normativa deveria
ser apenas mediata, superando-se, assim, a razão prática e uma de suas maiores expressões: o
imperativo categórico Kantiano, que orientava e informava o agir do indivíduo
(HABERMAS, 2003).
A teoria Habermasiana procura revelar uma nova relação entre a autonomia pública e
a privada, intenta estabelecer um nexo interno entre soberania e direitos fundamentais, bem
como superar a compreensão de subordinação entre o Direito e a Moral, para revelar sua co-
originalidade e simultaneidade, fazendo dele o fator de integração social. A participação e a
fiscalização constantes na formação da vontade estatal e na criação do próprio direito irão
permitir que o cidadão saia de sua situação de consumidor para a de co-autor da ordem
jurídica não mais heterônoma, autorizando-o a construir seu próprio projeto de vida.
Nessa linha de entendimento, a existência de um Estado com maior ou menor grau de
democracia vai depender do efetivo exercício da cidadania, que deve englobar uma dimensão
civil (autodeterminação), social (direitos prestacionais) e política (participação), abrangendo,
assim, mais do que apenas os direitos fundamentais de primeira dimensão. Essa é uma
situação ideal de cidadania, e ao reconhecer seus diferentes níveis Calmon de Passos(2002,
s/p) ensina que “ entre o zero da ausência total e o cem da cidadania plena, há gradações que
devemos identificar em cada momento histórico e em cada espaço político específico”
Com o fracasso e derrocada do Estado Social, que não tinha mais condições de se
manter frentes os custos que passou a não mais suportar (em razão do aumento da expectativa
de vida, elevadas taxas de natalidade, maior demanda por serviços básicos, além das novas
exigências materiais) e toda ineficiência demonstrada por sua burocracia, houve a exigência
de uma mudança na teoria econômica. Era necessário enxugar a máquina estatal, reduzir os
déficits fiscais e implantar uma nova Constituição Econômica.
A partir dos governos de Margareth Tatcher na Inglaterra e de Ronald Reagan nos
EUA, Daniel Sarmento (2005, p. 44) identifica que se tornou “hegemônico no processo de
globalização o discurso, encampado pelo “Consenso de Washington”, de que os direitos
sociais sobrecarregam a economia com o peso de tributos exagerados, levam à ineficiência do
estado e dos agentes econômicos”, e, mesmo assim, por manter todo esse arquétipo e
conformação faziam dele um Estado Paternalista e Patrimonialista, geradores do fisiologismo
que vai impregnar, fruto da nossa cultura, todos os poderes estatais. Havia, assim, necessidade
de se privatizar o Estado, não só se desfazendo das empresas governamentais, mas criando um
modelo onde ele não deveria ser o principal promotor dos direitos sociais, como fazia o
Welfare State ao assumir este encargo, devendo se relegar os excluídos à caridade,
beneficência privada e à própria sorte.
Desta forma, o conservadorismo norte-americano e inglês fez com que um conjunto
de instituições financeiras sediadas na capital dos EUA, capitaneadas pelo Fundo Monetário
Internacional, impusessem aos países de terceiro mundo e em desenvolvimento (Briscs) a
adoção de medidas econômicas que reduzissem o tamanho da burocracia estatal, a dívida
externa, o câncer inflacionário e permitisse o retorno dos investimentos em infra-estrutura
com a entrada e permanência de capital estrangeiro, ainda que a custo de juros elevadíssimos
e de uma política cambial maquiada. Diante deste quadro Luiz Alberto Moniz Bandeira
descreve o cenário do consenso de Washington e que de fato veio a ser implementado no
Brasil a partir da década de 90, principalmente com o Governo do ex- presidente Fernando
Henrique Cardoso
Naquela oportunidade, o economista norte-americano John Williamson apresentou um documento, que continha dez propostas de reforma econômica sobre as quais havia amplo consenso em Washington, tanto entre os membros do Congresso e da Administração, quanto entre os tecnocratas das instituições financeiras internacionais, agências econômicas do Governo norte-americano, Federal Reserve Board e think tanks. As propostas, visando a estabilização monetária e ao pleno restabelecimento das leis de mercado, consistiam em: 1 - disciplina fiscal; 2- mudanças das prioridades de gastos públicos; 3 - reforma tributária; 4 - taxas de juros positivas; 5 - taxas de câmbio de acordo com as leis de mercado; 6 - liberalização do comércio; 7 - fim das restrições aos investimentos estrangeiros; 8 - privatização das empresas estatais; 9- desregulamentação das atividades econômicas; 10- garantia dos direitos da propriedade . (BANDEIRA, 2002, p. 135).
Esse novo modelo econômico ao ser implantado foi justificado pela globalização e
traz grandes riscos ao Estado Democrático de Direito. Ademais, houve a necessidade de
transformação na relação entre os indivíduos e o Estado, já que aqueles buscavam sua
emancipação e participação na formação da vontade estatal, e uma nova postura dos poderes
estatais. O neoliberalismo foi, assim, descrito por Paulo Bonavides, para quem este novo
modelo foi implantado por um golpe institucional com forma de pseudo-legalidade, cujo
domínio desrespeita e empobrece a Constituição Política e a própria democracia, pois, além
de tudo já descrito
(...) Destroça também a harmonia e a independência dos poderes e se abraça com uma política externa e interna que fere os fundamentos da república, deixando esta sem força para combatê-lo, ao mesmo tempo que lhe atraiçoa os objetivos fundamentais. Quem criou o clima para o golpe de Estado institucional foi a globalização. Quem o desferiu foi o neoliberalismo. (...) Golpe muito mais devastador e funesto que aquele do modelo clássico e tradicional. (...) O golpe do Estado institucional, ao contrário do golpe de Estado governamental, não remove governos, mas regimes, não entende com pessoas, mas com valores, não busca direitos, mas privilégios, não invade poderes, mas o domina por cooptação de seus titulares; tudo obra em discreto silêncio, na clandestinidade, e não ousa vir a público declarar suas intenções, que vão fluindo de medidas provisórias, privatizações, variações de política cambial, arrocho de salários, opressão tributária, favorecimento escandaloso da casta de banqueiros, desemprego, domínio da mídia, desmoralização social da classe média, minada desde as bases, submissão passiva a organismos internacionais, desmantelamento de sindicatos, perseguição de servidores públicos, recessão, seguindo assim à risca receita prescrita pelo neoliberalismo globalizador, até a perda total da identidade nacional e redução do país ao status de colônia, numa marcha sem retorno. Com o sobredito golpe, liberais e globalizadores se apoderam em definitivo não apenas do governo, mas das instituições, regidos por um pensamento que contradiz a conservação das bases sobre as quais repousa a teoria do Estado Nacional soberano, refratária, por natureza e essência, aos cânones da globalização. Donos do regime, das instituições, da Constituição, da soberania, do Estado e do Governo, graças ao golpe de Estado institucional, os autores desse golpe se tornam também os senhores absolutos dos destinos do país ( BONAVIDES, 2001, apud, NUNES, 2008, p. 219).
O neoliberalismo deixou nebulosa a relação entre o público e o privado. No campo
político-jurídico proclama-se no Brasil em 1988 um Estado Democrático de Direito, cuja
principal característica é a participação e fiscalização constantes do cidadão nos poderes
estatais. No âmbito do processo coletivo vários foram os entraves opostos pelo modelo
neoliberal, que ora se aponta, dentre outros: (i) a tentativa de limitar o alcance da coisa
julgada ao se confundir os institutos da competência e da coisa julgada, mormente na causas
envolvendo direitos do consumidor e a questão ambiental (art. 16 da lei 9494/97); (ii)
exigência de instrução da petição inicial com autorização assemblear no caso de defesa de
interesses coletivos de associados de entidades (art. 2-A da lei 9494/97) e (iii) impossibilidade
jurídica da demanda coletiva cujo objeto fosse tributo e FGTS (parágrafo único do art. 1º da
lei 7347/85).
Entretanto, consoante Castanheira Neves(1984) citado por Da Silva (1997, p.59) “é
possível passar da crise à crítica e indo além da radiografia dos problemas do Estado Social,
proceder a uma atitude reflexiva de refundamentação” Essa fundação e justificação do Estado
Democrático de Direito (Estado Pós-Social) tem como princípios ativos do antídoto, além da
redefinição das funções do Estado alterando sua atuação quantitativa (Liberais) ou
qualitativamente (Socialistas), conforme a ideologia política, a valorização do indivíduo e sua
participação na formação da vontade estatal, assim apresentados por Da Silva
1)O pôr em questão do crescimento do Estado e das funções por ele desempenhadas, procurando reequacionar o papel do Estado e redimensionar a extensão do seu aparelho (...); 2) A revalorização da sociedade civil, que acompanha essa relativa desvalorização da importância do Estado (...); 3) A defesa da participação dos indivíduos no processo de tomada de decisões, quer política, quer administrativa, aparece como outra manifestação do Estado Pós-Social; 4) O aumento da importância dos direitos do indivíduo, como meio de defesa deste contra todas as formas de atuação. (...) a liberdade do cidadão contra o poder não se pode dirigir, apenas, contra o poder do Estado, mas também contra o poder econômico, o poder empresarial, o poder sindical, o poder da comunicação social, etc. (DA SILVA, 1997, p 60-61)
Uma vez delineados os contornos do atual paradigma jurídico constitucional pode-se
retomar o estudo da tutela jurisdicional do meio ambiente a fim de se demonstrar o arcabouço
processual constitucional para sua proteção, a relação do processo com os direitos
fundamentais para, então, apontarmos os obstáculos à efetiva proteção ambiental e uma
direção para tornar efetiva aquela tutela.
5 A RELAÇÃO ENTRE CONSTITUIÇÃO E PROCESSO AMBIENTAL.
A literatura Constitucional e Processual têm por costume relacionar Constituição e
Processo através do Direito Constitucional Processual, cujo objeto seria as normas de caráter
constitucional, que vão estruturar e informar o processo, como o contraditório, a isonomia, a
ampla defesa e a fundamentação das decisões, e por meio do Direito Processual
Constitucional, cujo conteúdo seria as normas de caráter processuais que vão assegurar a
supremacia, a aplicação e a eficácia da Constituição, como as normas que regulam os
processos de Controle de Constitucionalidade, o Mandado de Segurança, a Ação Popular, a
Ação Civil Pública e etc.. Segundo Baracho (1984, p 120), a unidade fundamental dos
diversos tipos de processo vai encontrar sustentação em dois pontos “a) unidade
constitucional dos distintos instrumentos processuais; b) são eles estabelecidos e assegurados
para a tutela dos direitos do homem”.
As Constituições modernas são organizadoras do Estado e limitadoras do poder
estatal, através da previsão de direitos e garantias fundamentais. Por isso é indispensável se
trabalhar a face procedimental dos direitos fundamentais, pois a tutela ambiental será feita por
meio das ações constitucionais.
5.1 A face procedimental dos direitos fundamentais: uma breve visita à Jelinek, Häberle
e Alexy
A Constitucionalização do processo e sua relação com os direitos humanos não é
nova. Em 1892 Georg Jellinek elaborou uma teoria segundo a qual a relação entre o indivíduo
e o Estado, ou ainda entre Estado e direitos individuais se subdividiria em quatro status. O
positivo, o ativo, o negativo e o passivo. Segundo Alexy (2008, p 254-275). O status positivo
corresponderia ao direito de exigir prestações positivas ao Estado, enquanto o negativo
corresponderia ao direito de exigir a omissão do Estado na esfera de liberdade do indivíduo.
Já o status passivo significa a sujeição do indivíduo ao poder do Estado. O último status seria
o ativo que corresponderia ao direito de participar na formação da vontade do Estado (status
da cidadania ativa). José Miguel Garcia Medina bem ilustra esta relação revelada por Jellinek
a transportando para a seara do processo,
Pode-se dizer, seguindo esta teoria, que o direito de exigir do Estado a prestação jurisdicional corresponde ao denominado status positivo (ou status civitatis). Mas o status positivo não esgota o papel das partes, no processo. No status passivo (ou status subiectionis) leva-se em conta a sujeição do indivíduo ao Estado; no
negativo (status libertatis), a liberdade frente ao Estado. Assim, o status libertatis tem a ver com a faculdade de agir em juízo, que condiciona o início da atividade jurisdicional; sob outra face, ao exercer o direito de ação a parte reclama do órgão a prestação jurisdicional que lhe deve ser conferida pelo Estado (status positivo); mas o pedido apresentado pelo autor pode ser ou não julgado procedente, e a este resultado se submeterão as partes, o que é manifestação do status subiectionis. Além destas formas de status, reconhece-se que as partes têm status activus processualis. (MEDINA ,2010, p. 16-17)
As Constituições Européias promulgadas após a Segunda Guerra Mundial trouxeram
garantias constitucionais de índole processual. Hector Fix-Zamudio citado por Baracho (1984,
p 139), entendia já em 1974 que “a verdadeira garantia das disposições fundamentais
consiste, essencialmente, em sua proteção processual”. Foi também na década de 70 do século
passado que Peter Häberle, com base na teoria de Jellinek, desdobrou a idéia de status ativo
em status activus processualis. Para Häberle aqui residiria o aspecto procedimental dos
direitos fundamentais. Assim, para que os direitos fundamentais, o meio ambiente entre eles,
cumprissem sua missão não bastaria que fossem os mesmos declarados e considerados apenas
como direitos subjetivos materiais, necessitando, deveras, serem encarados como normas de
organização e em sua faceta procedimental.
Quem mais recentemente desenvolveu esta idéia foi Robert Alexy (2008). Ao tratar
em sua obra “Teoria dos Direito Fundamentais” dos direitos Sociais ou de 2ª dimensão o
doutrinador alemão, após conceituá-los como direitos dos indivíduos de exigir prestação
positivas do Estado, os subdivide em a) direitos de proteção; b) direitos de organização e
procedimento e c) direitos à prestação em sentido estrito. Neste momento nos interessa tratar
dos direitos de organização e procedimento, não sem antes definir com Alexy (2008, p. 450),
os direitos de proteção como “ os direitos fundamentais em face do Estado a que este o proteja
contra intervenções de terceiros”, e os direitos à prestação em sentido estrito como “direitos
do indivíduo, em face do Estado, a algo que o indivíduo, se dispusesse de meios financeiros
suficientes e se houvesse uma oferta suficiente no mercado, poderia obter também de
particulares”, continua o autor ( 2008, p. 499), como o direito à assistência social, ao trabalho,
saúde, educação e etc.
Os direitos de organização e procedimento ou tão somente direitos procedimentais
podem ter como destinatários, segundo o mestre alemão, o Tribunal quando entendido como
proteção jurídica efetiva ou o legislador quando seu objeto for a criação de normas
procedimentais. A teoria de Alexy é sobremaneira importante para o meio ambiente
considerado na sua dimensão fundamental por atribuir “direitos a procedimentos aos direitos
fundamentais materiais”, conforme Alexy (2008, p. 475).
Vale dizer, de nada adianta ter um direito fundamental declarado se não for possível
perseguir sua proteção efetiva perante um Tribunal. Destarte, a proteção efetiva ou a faceta
procedimental de determinado direito fundamental compõe o núcleo essencial deste mesmo
direito. Tal construção revela a importância de os direitos e garantias processuais estejam
timbradas de forma indelével no rol de direitos fundamentais de uma Constituição rígida
como a brasileira, a fim de que não seja necessário a ela recorrer quando houver risco de
supressão de uma garantia processual. Como a Lei Fundamental Alemã não traz um rol
extenso de garantias processuais e nem a blindagem conferida pela Constituição Brasileira – o
que não tem impedido na prática a desconsideração e desrespeito a essas mesmas garantias-
foi necessário à Alexy desenvolver um raciocínio, para o direito alemão, com base na teoria
do status negativo de Jellinek, revelador de que
Inúmeras posições jurídicas procedimentais de direito ordinário existem em virtude de normas de direito ordinário. Se sua existência for exigida pelos direitos fundamentais - e isso é o que em grande medida ocorre – o conteúdo jurídico-procedimental das normas de direitos fundamentais consiste também na proibição de sua eliminação, ou seja, em protegê-las contra atos de revogação. (ALEXY, 2008, p. 477).
Alexy classifica o meio ambiente como direito fundamental completo, apresentando
suas diversas facetas e características nos seguintes termos
Um direito fundamental ao meio ambiente corresponde mais àquilo que acima se denominou “direito fundamental completo”. Ele é formado por um feixe de posições de espécies bastante distintas. Assim, aquele que propõe a introdução de um direito fundamental ao meio ambiente, ou que pretende atribuí-lo por meio de interpretação a um dispositivo de direito fundamental existente, pode incorporar a esse feixe, dentre outros, um direito a que o estado se abstenha de determinadas intervenções no meio ambiente (direito de defesa), um direito a que o Estado proteja o titular do direito fundamental contra intervenções de terceiros que sejam lesivas ao meio ambiente (direito a proteção), um direito a que o Estado inclua o titular do direito fundamental nos procedimentos relevantes para o meio ambiente (direito a procedimentos) e um direito a que o próprio Estado tome medidas fáticas benéficas ao meio ambiente (direito à prestação fática). (ALEXY, 2008, p. 443, grifos nossos).
Assim, mais uma vez se revela importante a relação entre Constituição, Processo e
Direitos Fundamentais. Conferindo destaque ao status ativo de Jellinek elevado à categoria de
status activus processualis por Peter Häberle como forma de participar da formação da
vontade do Estado, demonstra-se junto com José Miguel Garcia Medina a importância dessa
relação com o Estado Democrático de Direito
Segundo este autor [Häberle], o status activus processualis é a síntese de todas as normas e formas que dizem respeito à participação procedimental, através do Estado, daqueles que tiveram seus direitos fundamentais atingidos. O status
activus processualis, assim, corresponde ao direito de participar “no procedimento da decisão da competência dos poderes públicos”. Tal participação não se limita ao direito de se manifestar e de ser ouvido, mas, mais que isso, consiste em poder influir decisivamente nos destinos do processo. Não se confundem as situações em que se encontram as partes, no processo, frente ao Estado, no status positivo e no status ativo: além de poder exigir do Estado a proteção jurídica inerente ao direito material (status positivo), a parte deve poder participar ativamente do processo (status activus processualis). O status activus processualis tem importante papel, no Estado Democrático de Direito, já que através deste se assegura a plenitude das outras formas de status. (MEDINA, 2010, p. 17)
A face procedimental dos direitos fundamentais vem comprovar a intrínseca relação
entre Constituição, Processo e Direitos Fundamentais ao demonstrar que a proteção jurídica
efetiva de um direito fundamental, que se dá por meio do procedimento (rectius, processo),
requer seja aquela faceta considerada como pertencente de forma indissociável ao núcleo
deste direito, bem como vem apresentar a possibilidade e a necessidade de através do status
activus processualis, exercer sua cidadania de forma à participar da formação da vontade do
Estado. Visto isso pode-se demonstrar o tratamento dado pela Constituição Brasileira ao
processo judicial ambiental.
5.2 A Fundamentação Constitucional do Processo na Constituição da República de
1988.
Na Constituição da República de 1988 a fundamentação constitucional que dá ao
processo civil um pedigree reside na consagração do Paradigma Jurídico-constitucional do
Estado Democrático de Direito em seu artigo 1º, que vê no procedimento discursivo-dialógico
a legitimação do processo; nos artigos: art. 5º, incisos LIV – devido processo legal -;LV -
contraditório e ampla defesa -; LXXII - "habeas-data"-; LXXVIII – duração razoável do
Processo- ; art. 22, incisos I e XXVII e art. 24, inciso X e XI – competência para legislar - ;
art.96- exigência que as normas regimentais dos tribunais observem às normas de processo e
de garantias processuais das partes- e art. 102- controle abstrato de constitucionalidade;
(BRASIL 1988) .
Neste sentido podemos verificar como foi generoso o constituinte originário ao se
utilizar do vocábulo processo como um complexo normativo constitucionalizado e garantidor
de direitos fundamentais. Ao contrário do Direito Alemão, nossa Constituição erige as
garantias processuais como direito fundamental e como cláusula pétrea. Nela se encontram os
princípios estruturais e informativos do processo, como visto acima. Trata a Constituição de
1988 não só do processo jurisdicional, mas também do legislativo (artigo 59) e do
administrativo em diversas passagens, além de todos os intrumentos de proteção ao meio
ambiente terem fundamentação constitucional. Antes de se estudar as normas constitucionais
de proteção processual concreta ao meio ambiente se faz necessário pesquisar a origem do
direito processual coletivo.
5.3 Origem próxima e remota do direito processual coletivo
O direito processual coletivo possui uma origem remota e outra próxima. No Direito
romano havia uma espécie de Ação Popular para tutelar interesses comunitários, como os
interditos, que visavam evitar a obstrução de caminhos, pois em Roma não se tinha uma
concepção nítida de personalidade jurídica do Estado e os direitos e bens públicos pertenciam,
portanto, aos cidadãos romanos.
Na Inglaterra do século XII existia, por exemplo, conflitos envolvendo as
comunidades dos vilarejos contra os senhores por problemas relativos à administração dos
feudos e corporações questionando o pagamento de tributos pelo Senhor feudal. Na origem
remota não havia uma preocupação com a legitimidade ativa. O Foco principal era o mérito
do litígio, sendo a questão da legitimidade como algo problemático ou secundário. Nessa
época só se tutelavam direitos individuais homogêneos e direitos coletivos, até mesmo porque
com a situação tecnológica e estágio de desenvolvimento humano não se falava em sociedade
massificada e de direitos difusos! O fato histórico que faz surgir os direitos difusos e a
necessidade de sua proteção é a Revolução Industrial, pois a partir daí é que surgem a
massificação dos conflitos sociais e a criação de sindicatos, associações e etc!
Como origem próxima do processo coletivo pode se identificar, como já realizado
acima, o Projeto de Florença e ondas renovatórias de acesso à Justiça (década de 60 do século
XX). Na década de 70 surgem ações coletivas na França, Inglaterra e Estados Unidos, num
estágio mais avançado, pois se passou a ter uma preocupação com os aspectos meta-
individuais dos institutos de processo civil.
Na Itália, a proteção é insuficiente, pois não adota um modelo pluralista de
legitimidade. Encontram dificuldade já na conceituação do que seria “interesse difuso” e
coletivo, o que vem a refletir na legitimidade. Não há um microssistema de proteção aos
interesses difusos e coletivos. Já o ordenamento francês é mais avançado que o Italiano, mas a
matéria administrativa é julgada pelo Contencioso Administrativo e não pela justiça ordinária.
O principal instrumento de proteção aos direitos individuais na França está na Lei de Royer de
1973, que protege os interesses dos consumidores na matéria penal e em alguns casos admite
a proteção ao meio ambiente. Outrossim, na Alemanha não há instrumentos adequados de
tutela coletiva. Para o direito Alemão os interesses coletivos seriam a soma dos interesses
individuais, não havendo reconhecimento expresso de ações coletivas. No ordenamento
espanhol não existe a ação coletiva como as Class Actions (pedido indenizatório) à
semelhança do que existe nos Estados Unidos, sendo que legislação mais avançada é a
relativa aos direitos dos consumidores.
Entretanto é necessário destacar que a Ação Civil Pública brasileira foi inspirada nas
Class Actions, cuja origem data do século XVII no Bill of Peace. Nos Estados Unidos surgem
em 1842 com a Federal Equity Rule 48. Depois de algumas alterações em 1938 entrou em
vigor a Rule 23 do Código de Processo Civil cujos pontos principais, segundo Gregório
Assagra (Almeida, 2007, pg 189) são : (i) A autorização de representação dos interessados é
presumida (opt -out), ou seja, a pessoa deve optar por sair do processo se não quiser sofre os
efeitos da coisa julgada; (ii) A legitimidade é ampla tanto pelo número de interessados, quanto
pela existência de interesses comuns, pedidos ou defesas idênticas (Representação Adequada);
(iii) podendo haver Class action quando: a) O ajuizamento de ações separadas faça surgir o
risco de decisões contraditórias e tornarem ainda mais difícil a defesa daqueles que não
integrarem a lide; b) O adversário do grupo atuou ou recusou-se a atuar de modo uniform
perante os membros da classe; (c) Quando o tribunal verificar que as questões de fato e de
direito sobressaiam das questões meramente individuais.
No Brasil é publicada a lei da Ação Civil Pública em 1985 e o Código de Defesa do
Consumidor em 1990 como principais instrumentos de proteção ao meio ambiente e demais
direitos difusos e coletivos. O Brasil goza hoje do status de sistema processual com o maior
grau de desenvolvimento científico em matéria de defesa do meio ambiente, adequando os
institutos de direito processual individual ao direito processual no coletivo, apesar de todas as
vicissitudes que serão oportunamente elencadas. Ao comentar a legislação brasileira sobre
direitos difusos e coletivos Barbosa Moreira (1991, p. 198) descreve que o direito brasileiro
coletivo é “extremamente rico em remédios desse tipo. E o que é mais interessante é que já
agora essa riqueza está incorporada à Constituição”.
Assim, visto o presente ponto deve se analisar o direito processual coletivo Brasileiro
como forma de identificar como é feita a tutela jurisdicional do meio ambiente.
6. DIREITO PROCESSUAL COLETIVO BRASILEIRO
Como definição sintética, podemos dizer com base nos ensinamentos de Gregório
Assagra Almeida (2007, p165) que “o processo coletivo é o ramo do Direito Processual que
possui natureza de direito Processual-Constitucional-social, cujo conjunto de normas e
princípios a ele pertinente visa disciplinar a ação coletiva”, cujo âmbito de atuação busca
“tutelar, no plano abstrato, a congruência do ordenamento jurídico em relação à Constituição
e, no plano concreto, pretensões coletivas em sentido lato, decorrentes dos conflitos coletivos
ocorridos no dia a dia da conflituosidade social”.
O direito processual coletivo entra na classe das tutelas jurisdicionais diferenciadas
em razão das peculiaridades do direito material tutelado, na busca da efetividade do processo,
o que não deixa de ser uma forma de superar os obstáculos apontados para um acesso a uma
ordem jurídica justa. A instrumentalidade não pode ser do processo, mas da norma processual,
pois o processo é modo de agir do Estado, modo de produção estatal. O processo não pode ser
instrumento de legitimação da atividade do juiz, como se ele pudesse decidir livremente
dentro do processo, devendo legitimar o próprio direito com efetiva participação das partes.
Desta forma, esse ramo do direito processual se subdivide em direito processual
coletivo especial e direito processual coletivo comum. O direito processual coletivo especial é
responsável pela tutela do direito objetivo através da ADIN, ADC e todas aquelas ações
inseridas no controle abstrato de constitucionalidade, cuja função é assegurar a superioridade
normativa da Constituição. O controle de constitucionalidade é típico de Constituições rígidas
e o objeto material do Direito Processual Coletivo Especial é a defesa de um interesse coletivo
em sentido amplo.
No âmbito do direito processual coletivo comum que visa a tutela dos direitos
difusos e coletivos, tutela esta do direto subjetivo tem como principais instrumentos para a
proteção do bem ambiental com fundamentação constitutcional (i) a AÇÃO CIVIL
PÚBLICA, procedimento previsto constitucionalmente (art. 129, III), e disciplinado em
conjunto, em nível infraconstitucional, pela Lei n. 7.347 e pelo Código de Defesa do
Consumidor; (ii) a AÇÃO POPULAR, cuja previsão constitucional está no art. 5º, LXXIII,
CR/1988, com procedimento disciplinado pela Lei n. 4.717/65, que operacionaliza o
exercício da jurisdição coletiva através de demanda ajuizada por um cidadão, podendo ter o
meio ambiente como objeto (previsão na Constituição da República e não na LACP); (iii)
MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO, previsto no art. 5º, LXIX, CR/1988,
modalidade coletiva no inciso LXX e (iii) DISSÍDIO COLETIVO, previsto no § 2º do art.
114 da CR/1988 para a proteção do meio ambiente do trabalho.
Na verdade, a defesa dos interesses difusos e coletivos se dá através de um
microssistema processual, em razão do intercâmbio entre as normas processuais do Código
Consumerista e a Lei da Ação Civil Pública. De fato os artigos 90 da Lei 8069/90 (BRASIL
1990) e 21 da Lei 7347/85 (BRASIL 1985) criam um microssistema processual de direitos
difusos e coletivos, devendo o operador do direito, segundo Gregório Assagra “valer-se
desses dois sistemas (CDC + LACP) para resolver qualquer problema pertinente à
aplicabilidade do direito processual coletivo comum “. (Almeida, 2003, p. 582, grifo do
autor). No sentido de que o CDC e a LACP são normas de superdireito processual coletivo
comum também é o ensinamento de Nelson Nery Júnior:
Pelo CDC 90, são aplicáveis às ações fundadas no sistema do CDC as disposições processuais da LACP. Pela norma ora comentada, são aplicáveis às ações
ajuizadas com fundamento na LACP as disposições processuais que encerram todo
o Tít. III do CDC, bem como as demais disposições processuais que se encontram
pelo corpo do CDC, como, por exemplo, a inversão do ônus da prova (CDC 6º
VIII). Este instituto, embora se encontre topicamente no Tít. I do Código, é disposição processual e, portanto, integra ontológica e teleologicamente o Tít. III, isto é, a defesa do consumidor em juízo. Há, portanto, perfeita sintonia entre os dois sistemas processuais, para a defesa dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. (NERY JÚNIOR, NERY, 2002, p. 1373)
Desta forma, a proteção processual do meio ambiente e demais direitos difusos e
coletivos por meio da ação civil pública se dá de forma integrada com os instrumentos
coletivo-processuais do Código de Defesa do Consumidor. Por derradeiro é necessário
destacar que esse microssitema processual da legislação ordinária possui dignidade
constitucional, fazendo do Brasil o ordenamento jurídico com o maior arsenal legislativo para
a proteção dos interesses meta-individuais, cujo maior destaque é a Ação Civil Pública, seja
por seu amplo rol de legitimados ativamente, bem como pelo seu caráter de tutela inibitória,
cominatória e indenizatória, o que não significa não tenha esse sistema desafios a serem
atingidos.
7. OBSTÁCULOS À PROTEÇÃO AMBIENTAL PELA AÇÃO CIVIL PÚBLICA E O
EXERCÍCIO DE UMA CIDADANIA AMBIENTAL
Apesar do ordenamento jurídico brasileiro contar com instrumentos de defesa dos
direitos difusos e coletivos tanto em nível especial de controle abstrato de constitucionalidade,
quanto em nível de proteção de direitos subjetivos, ainda que para uma classe de vários
indivíduos, muitas vezes indeterminados, e de contarmos com microssistema processual de
proteção a estes direitos considerados um dos mais avançados do mundo, de acordo com
Gregório Assagra de Almeida (2007), alguns fatores têm contribuído para a ineficácia dos
instrumentos processuais de tutela coletiva. São eles: (i) Resistência à concepção coletiva do
Direito Processual; (ii) Formação liberal-individualista do profissional do Direito; (iii) Apego
a regras ortodoxas do CPC e do CC; (iv) Ensino jurídico e currículos universitários; (v)
Resistência à atuação do MP como legitimado ativo no direito processual coletivo; (vi)
Tímida atuação dos demais legitimados ativos; (vii) Resistência autoritária do Poder
Executivo nacional às conquistas do direito processual coletivo; (viii) Distorcida exigibilidade
dos Tribunais de que os direitos individuais homogêneos devam ser indisponíveis para fins de
legitimidade do MP; (ix) Problema organizacional do judiciário brasileiro; (x) Problema da
interpretação restritiva em torno do controle difuso de constitucionalidade através de ACP
A superação destes obstáculos pode ser facilitada pelo exercício da cidadania
ambiental, pois há uma ilusão de que a lei e os detentores do poder solucionarão os problemas
existentes. Essa sobrecarga imposta ao Direito, que já carrega o fardo de promover a
integração social nas sociedades pós-metafísicas ou secularizadas, uma vez superados os
costumes, a religião, e a tradição como fatores de integração típicos de sociedades arcaicas,
em razão da mudança de paradigma, deve ser aliviada pelo retorno da política como espaço de
decisão legítimo como forma de impedir que a relação entre aquilo que o povo deseja (input)
e aquilo que a decisão governamental implementa e promove (output) seja realizado para
satisfazer os interesses hegemônicos em oposição à vontade do povo, cujos interesses
deveriam ser realizados, para se evitar o fenômeno de refração política que insiste em ocorrer.
Para isso faz-se necessário o efetivo desenvolvimento da cidadania, cuja observação é feita
por Calmon de Passos
A única maneira de nos contrapormos a essa refração é passarmos a gerar o poder comunicativamente, o que se busca alcançar através da democracia participativa, ainda não suficientemente teorizada e muito menos institucionalizada, mesmo de forma incipiente, constituindo-se mais uma idéia de força que urna realidade institucional. As reflexões precedentes permitem concluir-se, com segurança, que o dizer sobre o direito, apenas, é insuficiente e despistador, mesmo quando se cuide dos ditos direitos fundamentais. Em termos de cidadania efetiva, esses direitos, para que realmente sejam direitos, pedem sua realização no concreto-histórico. Assim, a efetividade da cidadania assenta muito menos no que se diz que ela seja e muito mais naquilo que se pode implementar, na organização política, em termos de efetiva participação nas decisões, acesso amplo a informações e real poder de controle sobre a execução das decisões e responsabilização dos agentes públicos, sejam eles legisladores, administradores ou julgadores.( PASSOS, 2002, s/p, grifos nossos).
Desta forma, num Estado Democrático de Direito se faz premente que a sociedade
civil organizada, no âmbito ambiental, tenha uma contribuição direta na formação da vontade
estatal ao participar de Organizações Não-Governamentais, associações de bairro, entidades
de defesa do meio ambiente, de tomadas de decisões diretas em , v.g., orçamentos
participativos, onde ele aponta e direciona a atuação administrativa, mas sobretudo através de
um comportamento ambiental que respeite os limites da ecologia.
A fiscalização e cobrança constantes do Poder Executivo, a utilização do Legislativo
como uma arena de discussão pública e até mesmo o ingresso de ações populares ou de ações
civis públicas (quando integrantes de uma associação), tudo tendo como objeto final a
proteção do meio ambiente forma uma teia completa de tutela ao bem ecológico, suprindo as
falhas e otimizando a atuação dos poderes públicos, o que se traduz no exercício de uma
cidadania ambiental, ao invés de se aguardar que a lei ou a superação dos obstáculos do
processo coletivo, sozinhos, resolvam o problema.
Faz-se necessário, assim, muito mais uma alteração de comportamento,
conscientização dos cidadãos na temática tanto das ações coletivas como da tutela ambiental
por outros meios como a participação na formação da vontade estadual e na fiscalização de
sua atuação para que a cidadania ambiental se revele mais um instrumento de proteção ao
meio ambiente.
8 CONCLUSÃO
A defesa processual dos direitos difusos e coletivos só surgiu no século XX, pois o
estágio de desenvolvimento histórico e as condicionantes tecnológicas só passaram a exigir
este tipo tutela após a Revolução Industrial, apesar de encontrarmos uma origem remota de
ações em que determinadas pessoas tinham legitimidade para a defesa de direitos que não
eram seus, mas de toda a coletividade.
O novo paradigma do Estado Pós-Social trouxe consigo uma nova relação entre
Constituição, Processo e Direitos Fundamentais com a superação do entendimento vigente no
Estado Social sobre as normas constitucionais programáticas. Ademais, o neo-positivismo, a
normatização dos princípios, a constitucionalização do direito e a compreensão da
Constituição como uma ordem objetiva de valores proporcionaram profundas alterações na
ordem jurídica.
Pra se fazer real a possibilidade de mudança é indispensável o efetivo exercício da
cidadania e a máxima mitigação da alienação política dos cidadãos, já que ela é alcançada não
pela concessão dos detentores do poder, mas por meio da luta e empenho de cada cidadão na
busca do controle do poder, que é seu e está apenas delegado. Uma cidadania ampla e
independente engloba a titularidade de direitos na esfera social (prestacional), política, civil
de acordo com Passos (2002). Para o autor (2002,s/p) ser considerado um cidadão em sua
plenitude “significa poder de participação efetiva na vida política e participação com
preservação do poder de autodeterminação pessoal, seja em termos de impor abstenções ao
Estado, seja em termos de lhe exigir prestações.”
É necessário que a proteção ao meio ambiente como bem coletivo das presentes e
futuras gerações seja realizada de modo eficaz, superando os obstáculos, hoje, enfrentados
pela tutela processual coletiva e principalmente pela ação civil pública. A urgente preservação
ambiental exige que novos instrumentos e novas teorias sejam capazes de dar uma resposta
adequada às exigências do mundo pós-moderno, entretanto, todo ese movimiento será tardio
caso não haja o exercício da denominada cidadania ambiental.
9. BIBLIOGRAFIA ALEXY, Robert. Teoria dos Direito Fundamentais. Trad. de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo :Malheiros Editora, 2008. 669 p. AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 6ª ed. Rio de Janeiro:Renovar. 2006.662 p. ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito Processual Coletivo Brasileiro: Um novo ramo do direito processual. São Paulo: Saraiva, 2003. BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. As políticas neoliberais e a crise da América do Sul. Revista brasileira de política internacional. Brasília, n. 2, p. 135-144, 2002. BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Processo Constitucional. Rio de Janeiro: Ed. Forense 1984. 408p. BARROS, Flaviane de Magalhães; NUNES, Dierle José. Estudo Sobre o Movimento de Reformas Processuais Macroestruturais: A Necessidade de Adequação ao Devido Processo Legislativo. Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010. p. 7544-7564. BOBBIO, Norberto. A Era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Editora campus. 2004. 232 p.
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Contributo da ação popular para o exercício da cidadania ambiental.
Rachel Cardone*
1
RESUMO
A denominada sociedade de risco da modernidade desencadeou o nascimento de um novo modelo de estado: o Estado Socioambiental de Direito. Assim, uma nova tarefa foi traçada ao próprio Estado e aos cidadãos, ao se perceber a relevância da preservação de um meio ambiente saudável para o bem estar de todos. Todavia, tem-se percebido uma apatia dos indivíduos na busca dessa meta ao entender que o mero regramento constitucional basta à solução da crise ambiental instaurada. Nessa senda, é mister o despertar de uma cidadania ativa em prol da natureza, a qual pode ser exercida através da ação popular, remédio constitucional consagrado contra atos de ilegalidades ao meio ambiente. Palavras-Chave: Estado socioambiental. Dever fundamental. Cidadania ambiental. Ação popular.
RESUMEN
La sociedad del riesgo de la modernidad desencadenó el surgimiento de un nuevo modelo de estado: el Estado Socioambiental de Derecho. Así, una nueva tarea fue trazada al propio Estado y a los ciudadanos, al se perceber la relevancia de la preservación de un medio ambiente saludable para el bienestar de todos. Todavía, se percibe una apatia de los individuos en la búsqueda de esa meta al entenderse que el mero reglamiento constitucional basta a la solución de la crisis ambiental instaurada. En ese camino, es muchísimo importante el despertar de una ciudadania ativa en pro de la naturaleza, que puede ser ejercida a través de la acción popular, recurso constitucional consagrado. Palabras-Clave: Estado socioambiental. Deber fundamental. Ciudadania ambiental. Acción popular.
1. Introdução
O presente estudo almeja evidenciar a relevância do uso da ação popular como exercício
da cidadania frente à crise ambiental, deflagrada mais fortemente na virada do século XXI,
* Mestranda em Direito Ambiental pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Graduada em Direito e Letras Português/Inglês pela Universidade Federal de Rio Grande/RS (FURG). Especialista em Direito Civil e Empresarial pela FURG. Advogada e Professora titular da Faculdade Anhanguera. Site: www.rachelcardone.com.br
decorrente das grandes modificações sociais, políticas e econômicas da contemporaneidade.
Dessa forma, iniciar-se-á esclarecendo a atual proposta constitucional para o Estado brasileiro em
que se ultrapassam os limites de garantia de uma sociedade justa em termos democráticos e
sociais, pretendendo uma proposta com dimensões ambientais.
Para tanto, é indispensável uma vinculação não só estatal na defesa do meio ambiente,
mas também, da participação ativa do cidadão. Essa incumbência está atrelada ao novo modelo
de sociedade, onde o Estado democrático não tem demonstrado ser capaz de cumprir suas
promessas institucionais, seja pelo assoberbamento de funções no âmbito dos três poderes, seja
pela ausência de efetivação das normas ambientais.
A seguir, passar-se-á a analisar a urgência da redefinição de uma identidade ecológica, na
forma de um dever de exercício da cidadania, para depois adentrar-se no uso da ação popular
como forma de exercitar sua cidadania frente ao seu novo dever constitucional de proteção do
meio ambiente.
Nesse contexto, o presente artigo almeja evidenciar o novo desafio do cidadão brasileiro
frente a essa nova preocupação global, na busca da efetivação da garantia constitucional a um
ambiente saudável e equilibrado, o que deverá ser feito com uma participação política efetiva,
irrestrita e consciente, que vem se mostrando esmaecida pela falsa ideia de uma proteção
normativa, já há muito não exercida eficazmente pelo Estado.
2. Nova tarefa do cidadão no Estado Socioambiental na defesa de seu direito
fundamental
As mudanças na sociedade, no evoluir dos séculos, obrigou o Estado a se transmudar
para acompanhar as quebras de paradigmas decorrentes das reivindicações dos cidadãos ou de
movimentos políticos, garantindo-se dos direitos civis aos atuais direitos ambientais. Tais direitos
são tão relevantes na contemporaneidade que o Estado Constitucional é denominado não apenas
Democrático ou Social, mas Ambiental, na medida em que almeja garantir como um direito
fundamental o ambiente saudável.
O atual Estado está comprometido com a proteção e promoção da dignidade humana a
partir de uma compreensão multidimensional e não reducionista, haja vista ter a dignidade uma
referência cultural relativa e cambiante, ajustada aos valores presentes no contexto cultural2.
No que tange a essa dimensão ecológica da dignidade humana, faz-se relevante destacar
que a Carta Constitucional brasileira vigente consagra, no seu art. 1º, inciso III, a dignidade da
pessoa humana como o princípio primordial, inaugurando a lei fundamental, a dignidade, como
critério de legitimação de toda a trama normativa do sistema jurídico. Dessa forma, não há como
se olvidar do reconhecimento de que uma vida digna e saudável depende diretamente da
preservação dos recursos naturais essenciais. Nessa linha de pensamento defende-se a
necessidade de tutelar a dignidade inerente a outras formas de vida, rechaçando-se o paradigma
ético antropocêntrico de matriz kantiana. Nesse diapasão, Fensterseifer3 alerta que:
O conteúdo conceitual e normativo do princípio da dignidade humana da pessoa humana está intrinsecamente relacionado à qualidade do ambiente (onde o ser humano vive, mora, trabalha, estuda, pratica lazer, bem como o que ele come, veste, etc.). A vida e a saúde humanas (ou como refere o caput do artigo 225 da Constituição Federal, conjugando tais valores, a sadia qualidade de vida) só são possíveis, dentro dos padrões mínimos exigidos constitucionalmente para o desenvolvimento pleno da existência humana, num ambiente natural onde haja qualidade ambiental da água que se bebe, dos alimentos que se comem, do solo onde se planta, do ar que se respira, da paisagem que se vê, do patrimônio histórico e cultural que se contempla, do som que se escuta, entre outras manifestações da dimensão ambiental. (2008, p.61. Grifo do autor).
Nesta senda, vários dispositivos legais de alta relevância à tutela ecológica foram
inseridos no sistema jurídico brasileiro, servindo de sustentáculo do Estado Socioambiental de
Direito. Clara está a existência de suporte legislativo para o desenvolvimento de um Estado,
teoricamente capaz de proporcionar um meio ambiente saudável, com crescimento econômico,
sem impor restrições demasiadas às liberdades individuais.
Eis, então, o nascimento do Estado Socioambiental4 de Direito brasileiro. Segundo
Canotilho5 este novo padrão de Estado contemporâneo apresenta a integração da juridicidade,
democracia, sociabilidade e sustentabilidade ambiental, de modo a obrigar a adoção de medidas
institucionais, responsabilizando-se perante as gerações futuras.
2HABERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. Trad. Ingo Wolfgang Sarlet e Pedro Scherer de Mello. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. 2.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 127. 3 FENSTERSEIFER. Tiago. Direitos fundamentais e Proteção do Ambiente: a dimensão ecológica da dignidade humana. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 61. 4 Importa consignar a existência de outras terminologias empregadas para denominar o Estado que pretende proteger os direitos ambientais. 5CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de Direito. Cadernos Democráticos, Fundação Mário Soares. Lisboa: Gradiva, n. 7. 1998. p.23.
A proteção ao ambiente foi erigida a categoria de direito fundamental6, inobstante não
esteja no catálogo contido no art. 5° da Constituição Federal de 1988, pois nos preleciona Alexy7
que da norma constitucional retiramos princípios e regras e delas os valores jurídicos
sacramentados em nosso ordenamento, assim, a Constituição admite outros direitos
fundamentais constantes das leis, aliás, este é sentido dado pelo parágrafo 2° do referido artigo.
O constitucionalismo socioambiental, portanto, um modelo adiante do
constitucionalismo social, deflagrado nas últimas décadas e, influenciado pelo ordenamento
internacional, preocupa-se com a formação de uma cultura ambientalista no espaço político-
jurídico contemporâneo, promovendo o ambiente equilibrado a um direito humano fundamental,
haja vista a imprescindibilidade do bem-estar existencial. Nessa mesma perspectiva, cumpre ao
Estado Socioambiental como fim e tarefa o desenvolvimento e a sustentabilidade em todas as
suas dimensões a partir dos pilares econômico, social, cultural e ambiental.
Na linha do novo pensamento jurídico, tanto o Estado, como os indivíduos estão
atrelados a este contrato político-jurídico ecológico onde, necessariamente, o homem deve
abandonar sua condição de predador do mundo natural para adotar postura ecocêntrica. É tarefa
do Estado a proteção e preservação, assim como, um direito/dever do indivíduo a garantia a um
meio ambiente ecologicamente equilibrado, como consequência deste direito ter alçado o status de
um direito fundamental, frente à galopante degradação.
Portanto, o texto constitucional consagra o princípio da cooperação, também na seara
ambiental, ao prescrever atuação conjunta na escolha de prioridades e nos processos decisórios
de política ambiental, bem como, o equilíbrio entre a liberdade individual e a necessidade social.
Pode-se afirmar que tal princípio resulta de uma divisão de funções dentro da ordem econômica
na adequação entre os interesses mais significativos e orientação do desenvolvimento político.
Afirmam Sarlet e Fensterseifer8 a despeito do binômio dever/tarefa da proteção ao ambiente:
Há, portanto, o reconhecimento, pela ordem constitucional, da dupla funcionalidade da proteção ambiental no ordenamento jurídico brasileiro, que assume tanto a forma de um objetivo e tarefa do Estado quanto de um direito (e dever) fundamental do indivíduo e da coletividade, implicando um complexo de direitos e deveres fundamentais de cunho ecológico. (2010, p. 10 Grifo do autor).
6No caso das normas que estabelecem direitos e garantias fundamentais, o art. 5°, § 1°, da Constituição, já declara expressamente que elas têm aplicação imediata. Entretanto, há séria controvérsia doutrinária sobre o alcance desse dispositivo: se aplicável a todos os direitos fundamentais ou se restrita aos direitos individuais e coletivos previstos apenas no art. 5°. Sarlet tem o entendimento é no sentido de que o § 1° não é restritivo, o que podem defender alguns doutrinadores devido à situação topográfica do dispositivo. Mesmo por uma interpretação literal, a norma abrange todo o Título II da Constituição, cuja epígrafe é “Dos direitos e garantias fundamentais”, assim como formulado no dispositivo ora analisado: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. 7 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2009. p.82. 8SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Notas sobre os deveres de proteção do Estado e a garantia da proibição de retrocesso em matéria socioambiental. In: AUGUSTIN, Sérgio; STEINMETZ, Wilson (Orgs.). Direito constitucional do ambiente: teoria e aplicação. Caxias do Sul: EDUCS, 2011. p. 10.
A crise ambiental, desencadeada por esta postura parasita do homem, exige agora, uma
postura ativa para retroceder, estancar ou reduzir as consequências desastrosas de sua atitude
antropocêntrica prepotente. A titularidade ativa, para além de um dever fundamental de proteção
ambiental restrito do Estado, também o é da coletividade, independente de sua capacidade
política ou enquadramento político, consubstanciada como titular a humanidade9.
3. Mudança de paradigma para redefinição de uma identidade ecológica.
Desse contexto atual, há reconhecimento que a qualidade e o equilíbrio ambiental são
imprescindíveis para uma vida digna. Mais do que isso, a tutela de outros direitos fundamentais
historicamente conquistados - tais como o direito à vida, à moradia, à saúde e à alimentação -
torna-se inócua se não estiver vinculada à proteção do ambiente. Bobbio considera que o “direito
de viver num ambiente não poluído”10 é o mais relevante, dentre os assim denominados, direitos
de terceira geração ou dimensão.
A tentativa de incorporação de uma consciência ecológica é bastante incipiente e a
situação de vulnerabilidade existencial do ser humano em decorrência da degradação ambiental é
capaz de prejudicar e comprometer o bem-estar individual e coletivo. Nesse contexto de crise, o
primeiro passo foi dado quando o Direito Constitucional e, mais precisamente, a Teoria dos
Direitos Fundamentais, evoluiu no sentido de apresentar diretrizes à solução dos graves
problemas que se apresentam, resta a concretização do direito. Essa etapa deverá ser
necessariamente trilhada no processo de “afirmação histórica dos direitos humanos”.11 A respeito
do tema, Vieira de Andrade assevera que:
Os sociólogos descrevem a sociedade atual, já obviamente pós-industrial, como uma “sociedade de risco” (Beck) ou uma “sociedade do desaparecimento” (Breuer), na medida em que corre “perigos ecológicos” (e perigos genéticos) ou, segundo alguns, caminha mesmo, por força do seu próprio movimento, para a destruição das condições de vida naturais e sociais (e da própria pessoa) – é dizer, na medida em que ocorre o perigo de passar, ou transita efectivamente, da autoreferência (autopoiesis) para a autodestruição”. (Grifo do autor).
Segundo Capra (1996, p.25-25)12, principal autor que discorre sobre a conexão entre
todo o sistema natural, possui uma percepção ecológica profunda, reconhecendo a
interdependência fundamental de todos os fenômenos e o fato de que, como indivíduos e
9 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004. p. 141. 10 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 4. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1995. p. 06. 11 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. 12CAPRA, Fritjof. A teia da vida. Trad. de Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 1996. p. 25-26.
sociedades, estão todos encaixados nos processos cíclicos da natureza e que qualquer
modificação desse quebra-cabeça do sistema natural, consequências advirão em desfavor da “teia
da vida”. Assim, a percepção da ecologia profunda é uma percepção a ser entendida como o
mundo de consciência no qual o indivíduo tem uma sensação de conexidade com o cosmos
como um todo, sendo apenas mais uma peça.
A atual crise ambiental propõe a necessidade de internalizar uma nova cultura
emergente em todo um conjunto de disciplinas na construção de um conhecimento capaz de
captar a multicausalidade e as relações de interdependência dos processos de ordem natural e
social. Para, a partir disso, construir o Estado Socioambiental, assim como, consolidar uma
racionalidade orientada aos objetivos de um desenvolvimento sustentável, equitativo e duradouro. 13 Caso não se forme uma consciência ecológica, o Estado precisará usar instrumentos
repressivos, que por sua vez, são geradores de restrição da liberdade, justo o que não se deseja
nos Estados contemporâneos. Esta cooperação Estado/indivíduo exige metas de proteção
ambiental para se assegurar o bem comum, mesmo que isso implique em restrições a interesses
individuais.
Este nascer para uma consciência ecológica é um desafio enorme na medida em que não
sabemos lidar com a complexidade que envolve a degradação ambiental ocasionada pelo simples
fato da existência humana. Kloepfer 14aponta como razões permanentes da sobrecarga ao meio
ambiente, a impossibilidade de remover os danos passados, a continuidade dos atos de
degradação, o desconhecimento da perniciosidade dos atos predatórios, o comportamento de
risco do ser humano e a demora de resultados das medidas protetivas.
Ademais, não se deve esquecer que o Direito Ambiental está engatinhando
historicamente, haja vista, ter surgido muito recentemente (a partir dos anos 70 do século
passado) não há uma receita pronta para se alcançar o objetivo do novo Estado Socioambiental
de Direito. Sabe-se que se pretende a proteção do meio ambiente, mas questões surgem: como
fazê-lo, qual a limitação do uso da natureza e quais remédios utilizáveis para proteger. Essa
abordagem ecológica do direito explicita uma interdependência entre deveres e direitos, o ser
humano precisa saber usufruir dos recursos naturais, reconhecendo sua dependência do meio.
Notório o compromisso jurídico, assumido pela sociedade contemporânea, em conciliar
crescimento econômico com o cuidado do meio ambiente. Aquele bem-estar humano, associado
aos bens materiais, não justifica mais a devastação do meio natural, pois este, também
13FREITAS, Vladimir Passos de. Direito Ambiental em evolução. Curitiba: Juruá, 2007. p. 39. 14KLOEPFER, Michael. A caminho do Estado Ambiental? A transformação da República Federal e econômica da República Federal da Alemanha através da proteção ambiental especialmente desde a perspectiva da ciência jurídica. In:___.Estado Socioambiental e Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 41.
proporciona qualidade de vida para as pessoas. A elaboração de normas tem se mostrado
ineficiente para o alcance dos objetivos traçados pelo Estado Socioambiental de Direito.
É indispensável um despertar para uma nova forma de pensar frente aos complexos
problemas ecológicos, na busca de uma Sociedade mais harmoniosa com seus objetivos e isto só
ocorrerá através de uma ética ambiental15 de todos os personagens desta história, uma interação e
cooperação entre os indivíduos, políticos, administradores, magistrados, cientistas, operadores do
direito. Diante desta crise ecológica Ost16 adverte:
[...] é efectivamente (sic) nossa convicção que, enquanto não for repensada a nossa relação com a natureza e enquanto não formos capazes de descobrir o que dela nos distingue e o que a ela nos liga, os nossos esforços serão em vão, como testemunha a tão relativa efectividade (sic) do direito ambiental e a tão modesta eficácia das políticas públicas neste domínio. (1995, p.9).
Assim, uma interiorização de valores éticos com atos verdadeiramente empenhados com
o meio natural resultará em mudanças comportamentais, pois são atitudes que impedirão o uso
da natureza de forma indiscriminada, conscientes da finitude dos recursos e do compromisso
com o futuro. Portanto, pode-se afirmar que a ameaça ao ambiente é questão eminentemente
ética e depende de uma alteração de conduta. Singer17, sobre o desenvolvimento de uma ética
ambiental, esclarece:
A longo prazo, o conjunto de virtudes éticas louvadas e o conjunto de proibições éticas adotadas pela ética das sociedades específicas vão sempre refletir as condições sob as quais elas devem existir e atuar, para que possam sobreviver. (2002, p.300).
O reconhecimento, por parte do Estado, dos direitos civis e sociais, foi decorrente de
longas e, muitas vezes, violentas reivindicações populares no exercício da cidadania, tudo para o
interesse de uma maioria oprimida, fruto de mutações originadas pelo processo de
industrialização e provocadas pela evolução do Estado Liberal para o Estado Democrático de
Direito, tendo como um desses marcos a Revolução Francesa. Estranhamente, inobstante a
devastação do ambiente, a poluição e o notório risco para o bem-estar individual e coletivo desse
comportamento destrutivo do homem não houve um despertar suficiente para um movimento
capaz de romper com esse processo.
15 Em busca de uma ética ambiental, o pensamento de MEDEIROS, é que “A questão levantada, neste momento, acerca da relevância de se estabelecer um compromisso sócio-jurídico de preservação do ambiente no qual estamos inseridos, está alicerçada na idéia de que não estamos buscando a proteção do direito de propriedades, de liberdade, de defesa perante o Estado, de prestação social. Procuramos enraizar o respeito ao outro, o respeito às pessoas, como seres vivos, o direito à vida em geral. O grande mérito do direito-dever à preservação ambiental consiste em não desenvolver apenas buscas imediatistas, mas sim, a defesa das medidas a longo prazo. Este direito-dever não se encontra circunscrito a um determinado tempo e espaço, está arraigado ao hoje e a tudo aquilo que está por vir”. MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura. op. cit. p. 193.
16 OST, François. A natureza a margem da lei: a ecologia à prova do Direito. Lisboa: Piaget, 1995. p.9. 17SINGER, Peter. Ética Prática. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 300.
Diante do crescente abuso da utilização dos recursos naturais e da poluição em todas as
suas formas, em grande parte decorrente das consequências do capitalismo, na medida em que
incrementa o consumismo, torna-se urgente a redefinição de uma identidade ecológica, na forma
de um dever de exercício de cidadania. Para tanto, há que se repensar sobre a ambivalência
civilizatória, vez que para termos a liberdade de utilizar desmedidamente os recursos naturais
perderemos em segurança ambiental.
4. Participação política do cidadão
A sociedade é, para Rawls, uma associação de pessoas que confere caráter vinculativo a
um determinado conjunto de regras e atua de acordo com elas. Essas normas existem para
cimentar um sistema de cooperação entre todos para benefício de todos, assim, numa sociedade
existe certa identidade de interesses, pois todos têm a ganhar com a cooperação: vivem melhor
em sociedade do que viveriam isolados. No entanto, também existe conflito de interesses, pois os
indivíduos não são indiferentes à maneira como são distribuídas as benesses que resultam da sua
colaboração na medida em que todos preferem receber uma fração maior. Assim, o papel da
justiça é mais profundo, exige-se um definir da atribuição de direitos e deveres e a de distribuir os
encargos e os benefícios da cooperação social que só se desenvolve pela vinculação dos
indivíduos à comunidade política. 18
O grande desafio que se apresenta é o da efetiva participação cidadã nos mecanismos
e/ou instrumentos que os determinam. Relevante trazer à baila as lições de Ricoeur, que sugere
que o sujeito de direitos deriva necessariamente do sujeito capaz. Para ele, ser capaz é ter o
saber/poder valorar suas próprias ações, bem como, as ações alheias, de forma a distinguir o
bom e o indispensável nelas. Nessa construção do si capaz, é fundamental a consideração da auto-
estima (vinculada a uma avaliação ética de boa-vida) e do auto-respeito (vinculado a uma
moralidade universal) na construção “ética e moral do si-mesmo”.
Nessa linha de raciocínio, ao indagar quem é o sujeito do direito, acaba elevando a
discussão para o nível do reconhecimento ético, hábil em identificar o outro como pessoa digna
de ser estimada e respeitada. Busca-se formar um sujeito capacitado a desenvolver o seu papel na
sociedade como cidadão, como condição existencial indispensável para o aperfeiçoamento de seu
intelecto e de sua vocação para a política.19
18 RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. Tradução Almiro Pisetta; Lenita Maria Rímoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 19 RICOEUR, Paul. O Justo. Tradução Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p.24.
O aporte Ricœuriano permite enxergar o sujeito de direito como apto a ser estimado e
respeitado, e, consequentemente, capaz de constituir-se em agente ético na reflexão e construção
da política e na formação de sociedades mais justas. Posicionando-se no sentido de que, sem a
mediação institucional, o indivíduo é um esboço de homem, entende ser primordial para sua
realização o enquadramento a um corpo político, meio pelo qual seria possível existir uma
verdadeira cidadania.
Complementando essa linha de ideia “El concepto de ciudadanía está íntimamente
ligado, por un lado, a la idea de derechos individuales y, por el otro, a la noción de vínculo con
una comunidad particular”20 exigindo um equilíbrio entre direitos e responsabilidades, motivo
pelo qual indispensável seu exercício para o sucesso das políticas ambientalistas, às quais se exige
cooperação voluntária dos cidadãos.
O acesso do cidadão comum ao exercício político pode ser exercido através do voto,
iniciativas populares para projetos de leis, ação popular, audiências públicas, etc., mas não
podemos olvidar de que suas limitações necessitam ser combatidas mediante ações que
aproximem sociedade e governo, no sentido de permitir novos acordos e novas formas de
decisão, buscando ampliar a participação popular.
É mister superar a ausência de representatividade dos partidos políticos, os quais têm se
mostrado especialistas no exercício de discurso hipócrita divergente, crítico ao establishment até a
chegada ao poder e apático ao alcançá-lo, num jogo político afrontoso e infiel aos interesses dos
cidadãos, seus representados, pondo em jogo o real sentido da democracia, tudo na salvaguarda
das forcas econômico-financeiras.21
Faz-se necessária uma retomada da participação do cidadão para o exercício de seus
direitos fundamentais, impondo a mudança de um discurso vazio, para um verdadeiro
comprometimento com ações vinculativas do Estado no cumprimento dos princípios
constitucionais. Isto é, ainda, mais fundamental em sociedades fragmentadas e injustas, com
grandes contingentes de cidadãos excluídos, como a sociedade brasileira.
A efetivação da participação popular no exercício da cidadania possibilita gerar políticas
com legitimidade e aceitação social na superação de conflitos para além da mera fiscalização das
ações do Estado. Essa consciência cidadã ativa, participante e crítica só pode ser formada por
meio das informações sobre as questões públicas e da democratização das decisões: formação de
uma verdadeira parceria entre Estado-sociedade.
20 KYMLICKA, Will; NORMAN, Wayne. “El retorno del ciudadano: una revisión de la producción reciente en teoría de la ciudadanía”. Disponível em: <http://www.cholonautas.edu.pe/modulo/upload/kymlick.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2012. 21 AZEVEDO, Plauto Faraco. Ecocivilização. São Paulo: RT, 2008. p. 17.
Para a compreensão da dimensão do exercício da cidadania, vale conferir as palavras
Kymlicka e Norman:
Para la mayor parte de la teoría política de posguerra, los conceptos normativos fundamentales eran democracia (para evaluar los procedimientos de decisión) y justicia (para evaluar los resultados). Cuando se hablaba de la idea de ciudadanía, se la veía como derivada de las nociones de democracia y justicia; un ciudadano es alguien que tiene derechos democráticos y exigencias de justicia. Pero hoy toma fuerza a lo largo de todo el espectro político la idea de que el concepto de ciudadanía debe jugar un rol normativo independiente en toda teoría política plausible, y que la promoción de la ciudadanía responsable es un objetivo de primera magnitud para las políticas públicas. ( Grifo do autor).22
O exercício da cidadania é capaz de promover uma qualificação das pessoas sobre seus
direitos e deveres ao meio ambiente saudável e para o qual a reflexão livre é o instrumento
fundamental. O pleno exercício da cidadania ambiental, portanto, permite criar e consolidar,
instrumentos democráticos para a gestão do ambiente ecologicamente equilibrado, considerado
pela Lei Fundamental como um bem de todos, inapropriável por quem quer que seja.
A participação política desperta os indivíduos para problemas além de seus interesses
particulares ao perceberem que os assuntos públicos devem ser objeto de sua atenção, v.g, as
manifestações populares a cerca do Código Florestal. O exercício da cidadania ambiental deve
conduzir e definir as políticas públicas que promovam a justiça social em harmonia com a
natureza, para tanto, é indispensável a desconstrução de consciências adormecidas, onde os
interesses econômicos tornam os custos ecológicos e sociais questões secundárias frente à
ditadura global do mercado, o culto do lucro.
A participação popular na conservação do meio ambiente é corolário desse papel de
sujeito de direito, agente de construção de uma sociedade mais justa, na medida em que se insere
em um quadro mais amplo da participação, diante dos interesses difusos e coletivos. Aponta
Kiss23 que “o direito ambiental faz os cidadãos saírem de um estatuto passivo de beneficiários,
fazendo-os partilhar da responsabilidade na gestão dos interesses da coletividade inteira.”
O papel da sociedade no cenário político deve ser efetivado por meio de um exercício
efetivo da democracia no que concerne à defesa dos interesses difusos do cidadão, especialmente
na defesa do meio ambiente, já consagrado como um direito fundamental. Os direitos
fundamentais são resultados da positivação constitucional de valores básicos e, que ao lado dos
princípios fundamentais, constituem o núcleo basilar de nossa estrutura constitucional
democrática, razão pela qual há vinculação do direito fundamental ao meio ambiente saudável e o
exercício da democracia.24 Nessa esteira, complementa Canotilho25:
22 KYMLICKA, op. cit., p.09. 23KISS, Alexandre-Charles; MACHADO, Paulo A. Leme, Direito Ambiental Brasileiro. [S.l.]:[s.n.],[20-?]. p. 94. 24 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura. op. cit. p. 155.
[...] como resulta da própria sistematização dos direitos, liberdades e garantias, em direitos, liberdades e garantias pessoais de participação política e direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores, a base antropológica dos direitos fundamentais não é apenas o ‘homem individual’, mas também o homem inserido em relações sociopolíticas e socioeconômicas e em grupos de várias natureza, com funções sociais diferenciadas. (1998, p.372).
Nessa perspectiva, pode-se afirmar que a liberdade de participação do cidadão, como
intervencionista nos processos decisórios, constitui ingrediente primordial ao exercício das
demais liberdades protegidas pelos direitos fundamentais. O direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado desenvolve uma nova forma de cidadania na medida em que o ser
humano possui compromisso intergeracional.
5. A ação popular ambiental
A ação popular nasceu do direito romano, numa época em que não havia uma noção
definida de Estado. O cidadão poderia encaminhar ao juiz uma demanda, buscando a tutela de
um bem, direito ou interesse que não lhe pertencia, mas sim à coletividade. Assim, na época,
havia uma estrita relação entre o cidadão e a res publica, fazendo surgir um sentimento
institucionalizado que, esta última, pertencia de algum modo a cada um dos cidadãos romanos.
Considerando esta forte relação existente, legitimava-se o cidadão a demandar pela tutela de um
direito da coletividade.
Hodiernamente, a ação popular tem outro formato, na lição do Professor Celso
Antonio Pacheco Fiorillo: “[...] a ação popular é um dos remédios jurisdicionais mais antigos e,
mesmo com marchas e contramarchas da história, podemos dizer que foi o pioneiro da defesa
dos direitos coletivos lato sensu”. 26
A ação popular - entendida como um dos remédios constitucionais estabelecidos pela
Constituição da República de 1988 - representa como um dos instrumentos mais relevantes de
exercício da cidadania em nosso ordenamento jurídico, vez que visa à proteção dos direitos
fundamentais difusos, tais como o meio ambiente, moralidade administrativa, patrimônio
histórico e cultural. Somente através da efetiva participação política nasce o comprometimento
dos indivíduos com as causas que são de interesse coletivo e da sociedade, de forma global.
Foi originariamente concebida com vistas à defesa do patrimônio público, mais
recentemente, foi alargada sua abrangência para incluir, dentre os interesses tuteláveis a
25CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998. p. 372. 26FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 331.
moralidade administrativa, o meio ambiente e o patrimônio histórico e cultural. Pode-se afirmar,
pois, que a ação popular constitucional brasileira encontra-se prevista, como garantia
constitucional, no artigo 5o, LXXIII da CF/88:
Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência.
A elevação da ação popular ao plano constitucional e a ampliação dos casos de seu
cabimento, incluindo-se a proteção do meio ambiente, em prol da sadia qualidade de vida e da vida
com dignidade, se constituiu em importante avanço para a cidadania27, embora o instituto da ação
popular existisse no plano infraconstitucional (Lei 4.717/65).
A previsão do instituto é garantia fundamental, não apenas por estar incluída no título
referente aos direitos e garantias fundamentais, mas, principalmente, por assegurar um dos
princípios basilares do nosso Estado Democrático de Direito, o princípio da dignidade da pessoa
humana. A participação do povo nas decisões políticas do nosso Estado é um direito
fundamental previsto constitucionalmente e, por isso, deve ser garantido a todo povo brasileiro28.
Vislumbra-se, de forma concreta, que a população encontra no referido instituto, um
instrumento que permite a fiscalização e o combate dos atos comprometedores da integridade do
meio ambiente natural. Tem por objetivo a desconstituição de um ato lesivo e à condenação dos
responsáveis do poder público ou terceiros à reposição do statu quo anterior, admitindo-se a
condenação à indenização por perdas e danos. Nessa perspectiva, integra a tutela jurisdicional a
possibilidade de obter reparação do dano ambiental, a título individual, com dimensão coletiva
difusa em face do bem protegido. Na lição de Celso Antonio Pacheco Fiorillo29:
[...] a ação popular presta-se à defesa de bens de natureza pública (patrimônio público) e difusa (meio ambiente), o que implica a adoção de procedimentos distintos. Com efeito, tratando-se da defesa do meio ambiente, o procedimento a ser adotado será o previsto na Lei Civil Pública e no Código do Consumidor, constituindo, como sabemos, a base da jurisdição civil coletiva. Por outro lado, tratando-se da defesa de bem de natureza pública, o procedimento a ser utilizado será o previsto na Lei nº 4.717/65. (2003, p.334).
27Na ação popular ‘a situação legitimante’ é a constante no art. 5º, LXXIII da CF e nos arts. 1º e 4º da Lei 4.717/65, ou seja, a atribuição, a qualquer cidadão, do direito a uma gestão eficiente e proba da coisa pública (patrimônio público, meio ambiente, moralidade administrativa) Sendo assim, tal ‘situação legitimante’ deve passar, logicamente, pelo exame do conceito de “cidadão”. [...] Todavia, somente essa condição de ‘brasileiro’ não basta para conferir legitimidade ativa na ação popular, porque os tetos exigem ainda o implemento da condição de eleitor, a saber: a prova de estar o brasileiro no gozo dos direitos políticos (direito de voto, que a Constituição Federal atribui, obrigatoriamente, ‘para os maiores de 18 anos” e, facultativamente, para os analfabetos, os maiores de setenta anos, os maiores de dezesseis e menores de 18 anos’), vedado tal direito aos estrangeiros (art. 14, § 1º, incisos e alíneas e § 2º). 28 Legitima-se, assim, em nível constitucional, o uso da ação popular para a defesa do meio ambiente. O legitimado para propor a demanda é o cidadão, como tal entendido o brasileiro que esteja no gozo de seus direitos políticos, ou seja, o eleitor (art. 1º, §3º, da Lei n. 4.717/65). 29FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 334.
Trata-se, então, de uma garantia à participação civil nos posicionamentos da
administração pública no sentido de preservar os princípios e interesses que a coletividade
considera mais relevantes. A utilização de ações populares de caráter ambiental veio corroborar
com os novos princípios ditados pelo texto constitucional, que preconizou a defesa do
patrimônio ambiental ao cidadão.
O cidadão passa a desempenhar função dúplice na medida em que é beneficiário e
destinatário da defesa ambiental, exercendo responsabilidade social compartilhada junto com o
Estado, aliás, conforme preceitua o artigo 225 do texto constitucional, com legitimidade ativa
inconteste, para reivindicar direito coletivo, sem ter que demonstrar interesse pessoal no ato
lesivo ao meio ambiente.
Nessa seara, a legitimidade concedida ao cidadão, de acesso à tutela jurisdicional de
proteção do ambiente via ação popular implica, necessariamente, na configuração de um direito
subjetivo ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, claramente compatível com a autonomia
do bem ambiental, bem este notoriamente de relevância para a coletividade e caracterizado, como
bem jurídico autônomo e de direito difuso.
Importante ressaltar que a ação popular ainda não é instrumento utilizado com
frequência pelo cidadão brasileiro na defesa dos interesses ambientais. Em pesquisas processuais
pelos endereços eletrônicos de diversos Tribunais dos Estados brasileiros30, percebe-se que raros
são aqueles em que é possível encontrar material mais expressivo que trate sobre a referida ação.
Observa-se que a busca pelo Poder Judiciário é reservada para a tutela de questões outras -
financeiras, econômicas e políticas - sendo que a proteção ambiental está ainda à margem da
proteção judiciária por parte da própria coletividade.
O instrumento da ação popular ambiental tem por escopo atender a possibilidade
jurídica de o cidadão exercer vigilância sobre a adequação dos fins da atividade do poder estatal à
sua efetiva realização no alcance do bem comum da população. Visa impugnar atos
administrativos que causem dano ao meio ambiente e apurar a responsabilidade do agende
agressor, dessa forma, o cidadão se torna parte legítima ao mecanismo de controle dos atos da
Administração Pública.
6. Conclusão.
30 Em consulta no site do TJRS (11/07/2012) foram encontrados 44 ocorrências para a pesquisa “ação popular“ e “meio ambiente“, incluídas apelações cíveis, agravos de instrumentos, embargos declaratórios [...] de 1987 até 2012, ou seja, em 35 anos.
A dinâmica da sociedade atual descortina inúmeros riscos na medida em que o uso
descontrolado dos recursos naturais, do consumismo material e dos avanços tecnológicos
desordenados geram degradação ambiental. Preponderam-se as incertezas científicas e os riscos
desconhecidos em meio à complexidade social. Não se desconhece que os riscos sempre
pertenceram à sociedade, mas os riscos atuais se diferenciam por serem caracterizados como
globais, invisíveis, imperceptíveis, decorrentes do modelo de produção industrial que gera danos
irreversíveis.
É indispensável o surgimento de uma reação ética para uma mudança significativa no
pensamento, com o escopo de preservar todas as demais formas de vida na Terra, conciliando-se
os interesses de ordem econômica com os de ordem ecológica sem exaurir a capacidade natural
da terra de se reproduzir, pois a sorte do planeta e da humanidade são indissociáveis.
Infelizmente, essa compreensão ainda não despontou entre a maioria dos nossos líderes políticos
que se recusam a reconhecer que esta mudança de postura afeta o bem-estar das gerações futuras.
Contudo, como essa tarefa não cabe tão-somente ao Estado, o cidadão deve posicionar
ativamente no meio social. A função do cidadão construída na Constituição federal de 1988
abarca uma participação efetiva, sem restrições de qualquer natureza dos interessados na
preservação dos bens ambientais tutelados.
Todos os indivíduos, seja a posição que estejam na sociedade, devem governar-se
livremente com a consciência do dever de conservar o meio ambiente não só do ponto de vista
legal, mas principalmente do ético, como um compromisso, uma responsabilidade pela qualidade
ambiental e, para isso se concretizar, os indivíduos devem agir relegando os interesses pessoas na
tomada das decisões.
A ação popular ambiental constitui em um dos mais extraordinários instrumentos de
tutela da coletividade, pois permite ao cidadão, isoladamente considerado, agir em juízo na defesa
de um interesse que não é apenas dele, mas da coletividade como um todo.
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A TUTELA JUDICIAL-PARTICIPATIVA DO AMBIENTE: O LUGA R DOS JUIZADOS ESPECIAIS12
THE PROTECTION JUDICIAL PARTICIPATORY OF THE ENVIRONMENTAL: THE
PLACE OF SPECIAL COURTS
Márcio Ricardo Staffen3
Zenildo Bodnar 4
Resumo: O presente artigo analisa a importância da democratização do processo judicial
ambiental como forma de concretização do direito e dever fundamental de proteção do meio
ambiente pelo Poder Judiciário, via Juizados Especiais. O presente trabalho destaca a
insuficiência da dogmática processual clássica para a resolução dos conflitos ambientais.
Defende-se a necessidade da consolidação de um novo paradigma de prestação jurisdicional
que assegure e facilite a participação direta do cidadão no tratamento dos conflitos
ambientais, com especial ênfase à audiência judicial participativa. Utilizou-se, para o
desenvolvimento desta presente pesquisa, o método indutivo, operacionalizado pelas técnicas
de conceitos operacionais e da pesquisa bibliográfica.
Palavras-chave: Ambiente; Tutela judicial; Juizados Especiais.
Abstract: This paper analyzes the importance of democratization of the judicial process
environment as a way of realizing the fundamental right and duty to protect the environment
by the judiciary, through the Special Courts. This study highlights the inadequacy of the
classical dogmatic procedure for the resolution of environmental conflicts. It supports the
need for consolidation of a new paradigm of adjudication to ensure and facilitate the direct
1 Artigo desenvolvido no âmbito do Projeto de Pesquisa CNJ Acadêmico: “Juizados Especiais, Turmas Recursais e Turmas de Uniformização da Justiça Federal”. Com fomento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). 2 Agradecimentos especiais ao Prof. Dr. Michel Prieur e Prof. Dr. Álvaro Sanchez Bravo pelas lições ministradas. 3 Doutorando e Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí, na linha de pesquisa Principiologia, Constitucionalismo e Produção do Direito. Pesquisador do Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Possui graduação em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí. Professor em cursos de Especialização – UNIVALI – e Coordenador do Núcleo de Prática Jurídica - UNIDAVI. Advogado (OAB/SC). E-mail: [email protected] 4 Possui graduação em Direito pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, Mestrado em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí, Doutorado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, Pós Doutorado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e Pós Doutorado em Direito pela Universidad de Alicante - Espanha. Professor nos programas de Doutorado e Mestrado em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí. Coordenador do Projeto de Pesquisa CNJ Acadêmico sobre “Juizados Especiais, turmas recursais e turmas de uniformização da Justiça Federal”. Pesquisador CNPq. Juiz Federal. E-mail: [email protected]
participation of citizens in dealing with environmental conflicts, with special emphasis on
participatory judicial hearing. It was used for the development of this research, the inductive
method, operated by the techniques of operational concepts and literature.
Keywords: Environment; Guardianship order; Special Courts.
Introdução
A sociedade contemporânea da globalização, da revolução tecnológica e de ataques
suicidas do homem ao meio ambiente, caracteriza um novo tempo. Um tempo de grandes
mudanças e transformações, as quais atingem espaços jurídicos, políticos, econômicos e até
culturais. Surgem, então, novos direitos, novos atores sociais e novas demandas, as quais
reclamam novas formas de equacionamento e proteção de bens juridicamente considerados.
Esta nova realidade impõe grandes desafios ao Judiciário e exige de seus integrantes
novas formas de prestação jurisdicional, mais democráticas, eficazes socialmente, e
comprometidas com os reais anseios da comunidade, que transcenda a ideia de processo como
direito subjetivo, e avance além da visão instrumental, presa as questões individuais, típicas
do paradigma liberal-normativista e que, de alguma maneira, expõe a surrealidade de Kafka.
Neste artigo, defende-se a necessidade de uma nova dogmática processual para a
tutela do meio ambiente. Respostas jurisdicionais mais efetivas necessitam de uma nova
construção processual, capaz de resolver os problemas da atualidade. Pois, como é de notório
conhecimento, as questões do século XXI são debatidas, ainda a partir da lógica jurídica do
século XVIII, derivada imediata das glosas medievais. Sem demora, faz-se imperioso olhar o
novo com a visão renovada.
Propõe-se a consolidação de uma nova cultura na prestação jurisdicional para a
proteção do direito fundamental ao meio ambiente sadio e equilibrado. Cultura esta que
efetivamente contribua para a emancipação do homem na sociedade, dotada de sensibilidade
moderna, com uma perspectiva mais humana, que efetivamente transforme o foro judicial em
um espaço ampliado de cidadania substancialmente democrática (MIGLINO, 2010, p. 57).
Com urgência, na vigência do Estado Democrático de Direito, é preciso resgatar o devido
processo legal material e, necessariamente o princípio do contraditório na óptica de Elio
Fazzalari. Para tal desiderato, ganha relevo a análise do lugar dos Juizados Especiais em
relação a tutela judicial-participativa do ambiente. A partir de sua sistemática processual
própria, pautada pela postura ativa dos destinatários da decisão em conexão com a
simplicidade das formas vislumbram-se novas possibilidades de efetiva proteção ambiental.
1. O papel do Poder Judiciário na concretização das normais ambientais
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 impõe ao Estado e à
sociedade o dever de preservar e proteger o meio ambiente em todos os lugares e tempos para
todas as gerações vindouras (CRFB/1988 art. 225). O Poder Judiciário como um dos Poderes
do Estado tem a função proeminente de fazer valer este comando constitucional e também o
dever fundamental do proteger o meio ambiente. A função promocional do direito presente
nas decisões do Poder Judiciário merece especial realce em matéria ambiental tendo em vista
a natureza pedagógica das decisões as quais devem promover uma nova cultura ecológica
conservacionista estimulando ações concretas em prol do meio ambiente saudável.
Destaca Freitas (1998, p. 29-30) que o juiz possui papel relevante por exercer um dos
poderes da República “em nome do povo e ter por obrigação defender e preservar o meio
ambiente para presentes e futuras gerações” (CRFB/1988, arts. 1º, parágrafo único e 225,
caput) e também como intérprete das normas ambientais. Os problemas do direito do
ambiente são altamente complexos e cada vez mais rodeados de incertezas e novos desafios.
As fórmulas generalistas estabelecidas pelo Estado através de seus legisladores para o meio
ambiente nem sempre são adequadas para a solução da infinita quantidade de casos e
situações existentes, considerando o conceito aberto e relativo do próprio ambiente.
A dogmática processual tradicional construída apenas para resolver conflitos
individuais, também não equaciona com eficácia as ofensas aos bens ambientais. Por isso,
deve o Estado constitucional ecológico facilitar o acesso do cidadão à justiça ambiental, não
apenas criando novos instrumentos de defesa, mas principalmente conferindo uma
interpretação adequada aos instrumentos processuais já existentes como da Ação Civil
Pública e a Ação Popular, para conferir-lhes a verdadeira amplitude e potencialidade. Dentro
deste contexto, o papel do Poder Judiciário é ainda mais importante na concretização do
direito fundamental, ao meio ambiente saudável e do dever fundamental de todos de protegê-
lo para a construção deste verdadeiro Estado constitucional ecológico. As tensões entre o
homem e a natureza formam uma constante na história da humanidade. A busca irresponsável
do progresso tem levado o homem a ser o inimigo número um da natureza à medida que é o
maior protagonista de condutas ofensivas ao ambiente. Assim, o compromisso de todos e em
especial do Poder Judiciário é contribuir para a mudança deste paradigma individualista
desenvolvendo uma nova ética mais solidária, responsável e comprometida com o meio
ambiente, patrimônio maior de toda a humanidade.
Para alcançar este desiderato a jurisdição deverá focar a análise na idéia de dever
fundamental, pois o meio ambiente antes de ser um direito intergeracional é um dever
fundamental que impõe uma conduta ativa de todos os membros da sociedade organizada em
especial dos poderes públicos. A construção de uma nova hermenêutica focada na idéia de
dever fundamental certamente representará um ganho de efetividade, pois é muito mais
importante identificar os responsáveis pelo descumprimento do dever fundamental do que os
titulares de eventual direito subjetivo.
Na jurisdição focada na idéia de dever fundamental, merece destaque o papel do
magistrado em especial a sua sensibilidade humana. Isso porque a decisão precisa ter a cara
do juiz, de seu pensamento responsável e de seu sentimento de justiça afinado com os reais
anseios da sociedade a que serve. Os juízes, enquanto peças chaves para o engrandecimento
da democracia, devem protagonizar em cada ato a transformação da sociedade, cada vez mais
plural e diversificada no novo milênio. O magistrado idealista precisa acreditar que pode
mudar o mundo para melhor, banindo dele a ética egoísta e disseminando uma ética solidária
e ambientalmente correta.
O escopo social e político do processo ambiental exige a adoção de procedimentos
mais flexíveis e democráticos, que possibilitem a participação mais efetiva das partes e de
todos os interessados, mormente em questões que envolvam expressivo número de pessoas e
interesses colidentes, como ocorre nas lides ambientais, pois nestes casos a demanda não
interessa apenas às partes formalmente constituídas e representadas na relação processual,
interessa a toda sociedade. A sociedade atual da revolução tecnológica e da intensificação do
fenômeno da globalização é muito mais desafiadora para os juízes. Este quadro demonstra a
grande responsabilidade que tem a magistratura para a construção de um mundo melhor, mais
humano e igualitário e com mais oportunidades para todos. O juiz cidadão, comprometido
com os novos reclamos da sociedade contemporânea, deve buscar no cotidiano de sua
atuação, ampliar os mecanismos de acesso ao pleno desenvolvimento humano, conferindo
especial proteção aos direitos fundamentais (sociais e individuais), previstos pela nossa
Constituição explícita ou implicitamente (meio ambiente, alimento/salário, moradia,
educação, saúde, emprego e outros).
Pajardi (1989, p. 165) defende que devemos criar um novo operador do direito,
menos técnico e que saiba superar, integrar e completar a técnica com sensibilidade social e
abundância de humanidade. A importância da sensibilidade social do julgador também é
destacada por Faria (1992, p. 112), o qual é enfático ao afirmar que na resolução de conflitos
sociais o juiz deve atuar como um ‘arquiteto social’, modificando as concepções
discriminatórias da ordem jurídica vigente, valendo-se de suas sentenças como instrumentos,
que auxiliem os grupos e as classes subalternas a se constituírem efetivamente como ‘sujeitos
coletivos de direito’.
É concretizando os Direitos Fundamentais e em especial o direito de todos ao meio
ambiente protegido, que o magistrado estará legitimando a sua atuação diante da sociedade.
Ibañez (2002, p. 381) é enfático ao concluir que a legitimidade original do juiz deve
completa-se necessariamente “mediante o exercício do poder judicial numa autêntica
qualidade constitucional, pela sua funcionalidade efectiva de garantia dos direitos
fundamentais”. Como pacificador social deve o magistrado incentivar com responsabilidade a
conciliação, valorizando fórmulas e critérios eleitos pelos próprios litigantes para colocar fim
ao litígio, ainda que tenha que utilizar procedimentos não previstos pelo legislador processual,
como audiências públicas, com a participação de representantes de associações, autoridades
públicas, dentre outros, ainda que não estejam formalmente incluídos na relação processual.
2. Necessidade de uma nova dogmática processual à tutela do ambiente
A configuração dos novos direitos a sua ordem de conflituosidade, que comportam e
a diversidade de configuração exigem uma nova dogmática processual para sua adequada
tutela. Não é possível solucionar de maneira eficaz os conflitos envolvendo interesses difusos
e coletivos com os instrumentos jurídicos construídos para a tutela judicial dos direitos
interindividuais. Para a maioria da doutrina a ação é ainda entendida como sendo um direito
subjetivo, ou seja, direito de cada um. Seu exercício válido requer que seja demonstrado já no
início de forma instrumental e provisória que a pretensão é objetiva e subjetivamente razoável
(possibilidade jurídica do pedido) e quem pede é o provável titular da relação jurídica de
direito material (legitimidade).
As ações constitucionais utilizadas na proteção do meio ambiente perdem a sua
efetividade em função da teimosia dos operadores do direito em aplicar as concepções
clássicas do processo tradicional às lides coletivas, fato este que empobrece a sua eficácia e
diminui a potencialidade destes importantes instrumentos de tutela dos novos direitos.
Os direitos difusos exigem uma revisão acerca de institutos como: legitimidade,
verdade real, contraditório, coisa julgada, adstrição ou congruência, inércia, dentre outros
dogmas do processo tradicional arquitetado para a solução dos conflitos individuais. A
legitimidade tanto ativa como passiva deve ser vista numa perspectiva ampliada. A coisa
julgada deve ter efeitos erga omnes. O juiz deve julgar além do pedido quando outras medidas
forem necessárias para a plena proteção do meio ambiente e não pode ser um mero expectador
inerte do desenrolar do processo, deve antes assumir uma postura ativa na busca da verdade
suficiente e da plena realização da justiça.
Na tutela ambiental não precisa o juiz buscar a verdade material, tendo em vista que
esta é por demais utópica e inatingível, deverá lutar por uma verdade ideal, suficiente,
especialmente em sede de cognição sumária quando é instado a prestar a tutela de urgência.
As inevitáveis crises de incertezas na avaliação da prova devem sempre colocar o risco do
lado oposto ao meio ambiente (LUHMANN, 1980, p. 107).
O contraditório como garantia constitucional substancial não pode ser entendido
como um singelo direito de informação e de reação da parte formalmente habilitada no
processo. O contraditório não é apenas a faculdade de dizer e de contradizer, mas sim a
oportunidade concreta de participação das partes e intervenientes na construção ativa do
provimento jurisdicional final como se verá na seqüência. O provimento jurisdicional será
produzido à efetiva cooperação de todos e não será um ato de capricho ou autoritarismo do
magistrado. A superação dos obstáculos à efetividade das ações constitucionais depende da
mudança da mentalidade dos operadores do direito. Os institutos processuais devem sempre
ser entendidos/interpretados à luz da Constituição Federal, e o acesso à justiça como princípio
básico do Estado Democrático de Direito deve ser compreendido numa noção bem mais
ampla que a singela preocupação com custas judiciais.
A utilização adequada e eficaz das ações constitucionais, com a superação dos
conceitos e dogmas da processualística clássica, antes até de grandes reformas legislativas,
depende principalmente da conscientização dos operadores jurídicos para que o tão almejado
acesso à justiça seja um ideal ao alcance de todos os cidadãos. Importa reconhecer, em linhas
gerais que no panorama que se desnuda já não basta advogar por um circuito clássico
procedimentalista, adstrito ao modelo liberal. É preciso reconhecer o Poder Judiciário como
instituição basilar nas democracias hodiernas, não limitado às funções meramente
declaratórias. O Judiciário, o Ministério Público e demais instituições envolvidas na prática
jurídica, necessitam reger um efetivo sistema de freios e contrapesos interessado na
participação dos destinatários do ato decisório, a partir de um ambiente democraticamente
substancial que substitua a ideia de que a decisão judicial é uma mera aplicação lógico-
aritmética.
A prestação jurisdicional também possui um caráter pedagógico, pois deve servir
como forma de educação, confirmando-se assim a conclusão de Nalini (1998, p. 11) quanto
ao papel do Juiz na conscientização ecológica segundo o qual “o julgamento contém,
subsidiariamente à solução da controvérsia à solução da controvérsia, um ensinamento”.
2.1 Princípio da participação e o acesso à justiça ambiental
Um dos princípios ambientais mais importantes é o princípio da participação
segundo o qual os cidadãos devem participar dos procedimentos e das decisões ambientais,
não apenas por serem os destinatários diretos destas, mas também pelo compromisso que
todos devem ter para com a defesa e a proteção do meio ambiente. A participação de todos na
proteção dos bens ambientais é salutar para o desenvolvimento de uma ética ambiental
comprometida com um modo de vida ambientalmente correto e afinada com os princípios da
ecologia, os quais religam o homem com a teia da vida (BOFF, 2000). O princípio da
participação conforme Fiorillo (2003, p. 39) é o agir em conjunto que contempla dois
elementos fundamentais: a informação e a educação. A participação é relevante para que o
cidadão seja informado acerca de suas responsabilidades para com o meio ambiente. A
participação dos cidadãos nos procedimentos é fundamental para que tenham a plena
convicção de que no processo tudo acontece pelo esforço sério, justo e intenso na
investigação da verdade e na busca da justiça para que tenham certeza que a ajuda das
instituições em especial do Poder Judiciário repercutirá positivamente na proteção dos seus
direitos (LUHMANN, 1980, p. 105).
A importância da participação nas ações judiciais como forma de acesso à justiça é
destacada por Machado (2000, p. 77) o qual após apontar como fundamentos para a
participação a Convenção de Aarhus (Art. 9º. § §1-5) e a Declaração do Rio de Janeiro de
1992, enfatiza que: “a possibilidade de as pessoas e de as associações agirem perante o Poder
Judiciário é um dos pilares do Direito Ambiental”.
A participação no procedimento para Luhmann (1980, p. 96-97) tem um valor
especial é cooperação de todos, fato que serve não apenas para a compreensão das “premissas
obrigatórias de comportamento e de compromisso pessoal”. O devido processo legal
substancial aplicado ao meio ambiente deve ser construído a partir da concretização dos
direitos e garantias fundamentais e da participação dos cidadãos nos procedimentos
administrativos e judiciais.
A participação é o ponto de partida para a proteção efetiva do meio ambiente.
Ninguém vai salvar o planeta sozinho, pois somente o engajamento de todos na gestão dos
recursos naturais e do potencial ecológico do planeta é que garantirá um projeto civilizatório
mais promissor para o futuro da humanidade. A construção da decisão em matéria ambiental
não pode prescindir da efetiva participação, especialmente considerando as suas necessárias
imbricações dos fatores econômicos, políticos e sociais. A interação destes fatores
potencializa o interesse da população na construção das decisões quer seja no plano
legislativo, administrativo ou judicial.
O Estado não pode abrir mão da parceria efetiva da sociedade civil na tutela do
ambiente, pois foi exatamente da tomada da consciência coletiva da crise ecológica do planeta
é que surgiu o Direito Ambiental. Para que os cidadãos reconheçam a importância das normas
e das decisões ambientais é de fundamental importância que participem da sua construção,
pois como principais destinatários delas precisam antes de tudo de informação e de tomada da
consciência. Neste cenário, as figuras petrificadas ganham vida, de sorte que o direito e o
ideal de justiça transcendem o caráter de ficção para invadir a realidade.
Na atual sociedade de riscos incertos, globais e futuros é fundamental a participação
de todos os atores na tomada de decisão. Esta necessidade é destacada por Leite e Ayala
(2004, p. 121) segundo os quais a composição de interesses e ponderações completas somente
serão possíveis “mediante processos bem informados, que garantam participação pública e
democrática no momento da seleção das escolhas adequadas”. Especialmente porque a ciência
não fornece respostas corretas e conclusivas acerca das complexas questões da atual
sociedade do risco, sendo imprescindível uma abordagem transdisciplinar. Isso tudo porque a
gestão ambiental democrática, além de imprescindível, é “um convite à ação dos cidadãos
para participar na produção de suas condições de existência e em seus projetos de vida”
(LEFF, 2005, p. 57).
2.2 Audiência judicial participativa
A possibilidade de convocação de audiências públicas, para a discussão de
importantes temas de interresse coletivo, passou a ganhar especial atenção do legislador a
partir da Constituição de 1988. O artigo 58, § 2º, inciso II, prevê a possibilidade de
convocação de audiências públicas pelas comissões legislativas, com entidades da sociedade
civil e com especialistas em determinadas matérias.
O Direito Ambiental Brasileiro, seguindo uma tendência mundial5, assegura ao
cidadão a possibilidade de participar da política ambiental, nas diversas esferas de poder do
Estado: a) Legislativo: no processo de criação do Direito Ambiental por meio de iniciativa
popular, referendo e plebiscito; b) Executivo: composição de órgãos colegiados, a exemplo do
CONAMA, e a participação em audiências públicas realizadas na execução dos Estudos de
Impactos Ambientais e na apresentação dos respectivos relatórios (nos casos de impacto
ambiental mais significativo, conforme resoluções de nº 001/86 e 009/87 do CONAMA); c)
5 A participação no processo de licenciamento é assegurada como estratégia democrática de implementação ambiental nos seguintes países: Canadá, França, Suíça, Noruega, Itália, Grécia e é recomendada por diretiva para todos os países da União Europeia.
Judiciário: legitimidade para propor: ação popular, mandado de segurança e mandado de
injunção.
Apesar destas possibilidades, formalmente garantidas ao cidadão, o que se observa
na prática é um grave déficit democrático, especialmente no que se refere ao acesso à justiça.
Não há notícia de participação popular no processo de criação do Direito Ambiental no Brasil,
pois os raríssimos casos em que ocorreu a iniciativa popular, plebiscito e referendo, trataram
de outros temas. A participação do cidadão nas audiências públicas realizadas na fase do
licenciamento, apesar de constituir um importante avanço está estratégia de legitimação ainda
não vem sendo utilizada adequadamente. Especialmente pela falta de conscientização da
população, pela falta de oportunidade de manifestação qualificada para o público em geral e
até em função dos locais e horários em que estas audiências são realizadas.
O que é mais relevante destacar, considerando os objetivos específicos deste artigo, é
a carência de legitimação democrática para a gestão e implementação das políticas públicas e
das decisões em matéria ambiental no âmbito da jurisdição. No Direito Brasileiro o cidadão,
apesar de o maior interessado na tutela do ideal meio ambiente, foi praticamente esquecido
pelo legislador que somente reservou algumas hipóteses restritas que possibilitam a sua
intervenção. A Lei da Ação Civil Pública, apesar da inclusão recente da Defensoria Pública
como legitimada, ainda exclui, numa opção infeliz e autoritária, a participação ativa do
cidadão da tutela do meio ambiente ao negar ao maior advogado do meio ambiente o poder de
ação que é uma forma de exercício substancial de democracia. No caso da Ação Popular a
participação do cidadão na tutela do meio ambiente, mesmo após o advento da Constituição
de 1988, ainda é restrita aos casos em que há participação do Poder Público, pois exige que
atos ou omissões deste sejam impugnados.
Neste contexto, é fundamental que o cidadão tenha oportunidade de participar, como
sujeito ativo e protagonista das decisões ambientais, por intermédio das audiências públicas
judiciais, contribuindo com o tratamento adequado das lides ambientais. A convocação de
audiências públicas no processo judicial deverá em todos os casos em que a participação
popular seja relevante em razão do alto grau de litigiosidade e da quantidade de direitos
fundamentais envolvidos e em rota de colisão. Como, por exemplo, nos caos de ocupações
irregulares de áreas de Preservação Permanente, criações de parques, dentre outros.
A democratização do Acesso à Justiça Ambiental por vias especiais, com ampla
participação popular, por intermédio de audiências públicas judiciais, é a melhor forma de
legitimar a atuação do Poder Judiciário na tutela do ambiente e também servirá como
mecanismo estratégico de conscientização e educação ambiental. É com a cooperação de
todos e com a inteligência coletiva que será possível assegurar a proteção efetiva dos
interesses e direitos fundamentais envolvidos direta ou indiretamente nos litígios ambientais,
em especial a garantia plena da higidez ambiental para uma melhora contínua das condições
de existência humana no planeta.
Acerca deste prisma, aproximando Psicologia e Direito parece relevante no estágio
em que se vive concordar que o Direito caminha rumo uma “zona de conforto”6 e prevenção
de danos, prejuízos e vítimas. Há nisso uma confluência de interesses com o modo de
jurisdicionar em sede de audiência judicial participativa, onde os participantes propõem uma
resposta legal a todas as principais causas de conflito suscitadas pela alteridade, desigualdade
ou pela relação de foraclusão do terceiro via contraditório.
2.3 O processo como procedimento em contraditório
Os direitos acerca do meio ambiente reclamam enquanto direitos difusos uma nova
caracterização à teoria do processo. Tal renovação impõe uma compreensão própria que
substitua a ideia de que o rito se fazia pelo rito e a forma se cumpria pela forma. A ciência
processual não é só a ciência das petições, das provas, dos recursos, das execuções, das
orientações jurisprudenciais, das formas, dos prazos (GONÇALVES, 2001, p. 47).
De igual forma, na vigência do Estado Democrático de Direito, fixar o conceito de
processo como relação jurídica, na questão do direito subjetivo ou na teoria da situação
jurídica reproduz o problema do direito subjetivo como poder de exigir a conduta de outrem.
A prática do processo como relação jurídica corrobora na noção de ascendência do sujeito
ativo sobre o sujeito passivo (FAZZALARI, 2006), uma vez que este é obrigado a satisfazer a
vontade daquele não importando as razões da celeuma. Por sua vez, a teoria da situação
jurídica dá um passo avante quando substitui a máxima da relação jurídica sustentada no
direito subjetivo pela disciplina da lei que regula as faculdades, poderes e deveres. Isto,
porém, é pouco. Apenas tira o processo da ideia de individualismo para centrá-lo num espaço
normativo, ambos típicos do paradigma de Estado Liberal alicerçado no dogma da autonomia
da vontade.
Por tudo o que já foi adiantado alhures, Elio Fazzalari apresenta uma senda hábil ao
escopo democrático-participativo do processo. Ao estabelecer com primazia a noção de
processo como procedimento em contraditório, e fazer do contraditório o elemento distintivo
de processo e procedimento, Fazzalari afastou o retrógado clichê da relação jurídica
processual que sustenta a instrumentalidade do processo, incapaz neste momento de dar
respostas efetivas aos problemas sociais. Neste quarto, a proposta do processo como
6 Sugere-se: MELMAN (2008, p. 105-106).
procedimento em contraditório traduz o ápice do pensamento jurídico na condução
efetivamente dialética e democrática do processo. É justamente o contraditório que distingui o
processo do procedimento.
Para se identificar, portanto, o processo é fundamental a participação dos
destinatários da decisão em contraditório paritário. Isso não significa a mera participação dos
sujeitos do processo, não é o dizer e o contra dizer, não se resume em discussão. De igual
forma, o contraditório não se exaure com a mera oitiva da parte, cuja máxima ainda impera na
noção de audiatur (...) et altera pars (visão instrumental). Para Gonçalves (2001, p. 127) o
“contraditório é a igualdade de oportunidade no processo, é a igual oportunidade de igual
tratamento, que se funda na liberdade de todos perante a lei”, para quem a igualdade jurídica
propiciada pelo contraditório é condição de justiça no processo.
Acrescente-se, que a exteriorização do princípio do contraditório, na proposta de
Fazzalari se opera em dois momentos. Inicialmente com a informazione, consistente no dever
de informação para que possam ser exercidas as posições jurídicas em face das normas
processuais e, em seguida, num segundo momento, a reazione, revelada pela possibilidade de
movimento processual, sem se constituir, todavia, em obrigação. Deste argumento brota a
noção de contraditório em simétrica paridade, que vincula compulsoriamente o autor, o réu, o
interveniente, o juiz, o representante do Ministério Público (quando necessário) e seus
auxiliares a atuarem em pé de igualdade. Aqui novamente visualiza-se um contraponto a
noção instrumental do processo, pois garante a dialética participação não só de autor e réu,
tradicionais destinatários do ato, mas também das demais pessoas envolvidas na atividade
jurisdicional. Sob este enfoque, todos são partes.
Contudo, as lições de Fazzalari (2006, p. 49) não se encerram na noção de processo
como procedimento em contraditório. Traz a baila o conceito de norma como um cânone de
valoração de uma conduta, entendida como alguma coisa de aprovável, de preferível em
determinada cultura. Assim, a exposição deste panorama permite afastar a nefasta proposta de
Kelsen que concentrou o estudo da juridicidade no ilícito, para quem o processo traduz um
ilícito (GONÇALVES, 2001, p. 155). Para Fazzalari, portanto, o processo deve ser
compreendido e praticado como uma garantia, logo, quando se inicia um processo não se
exercita um ilícito, ao reverso, se pratica um direito constitucionalmente assegurado.
Embora já consignado, ainda vivencia-se um momento de solução de conflitos
orientado pela matriz individual-liberal-normativista suportada pelo primado da auto-
regulação. Todavia, como nos instrui Nunes (2006, p. 52), a noção de legitimidade está
vinculada aos procedimentos que possibilitam a participação igualitária e efetiva do indivíduo
na construção do provimento, sendo que a legitimidade do direito “se dá pela empreitada
cooperativa, que se apresenta por meio de procedimentos que possibilitam a participação
igualitária e efetiva de todos os interessados no processo de produção das leis, bem como no
processo de aplicação das normas.”
Neste quadro renovado, a Constituição passa a ser a pedra angular para a edificação
de um sistema decisório democrático cultivado dialeticamente que, necessita ser
compreendida, essencialmente, como a interpretação e a estruturação de um sistema de
Direitos Fundamentais que subsidia as condições procedimentais de institucionalização
jurídica das formas de comunicação, nos dizeres de Oliveira (2001, p. 257). É exatamente
neste contexto comunicativo-processual-constitucional que o princípio do contraditório na
percepção de Fazzalari ganha relevância, uma vez que defende um modelo substancial de
participação, além de um simples procedimento. Através do princípio do contraditório é que
se estabelece racionalmente uma relação comunicativa [argumentativa] entre os destinatários
do provimento jurisdicional, tanto na esfera administrativa quanto na judicial. Recordando as
aulas de Física, o princípio do contraditório necessita urgentemente ser praticado como uma
força centrípeta que, por sua dinâmica tem o condão de trazer todas as considerações para o
núcleo do processo.
Como bem observa Habermas (2003, p. 215), todo aquele que se envolve numa
prática argumentativa tem que supor inicialmente que, em princípio, todos os possíveis
afetados podem participar, na condição de livres e iguais, de uma “garimpagem cooperativa”
em busca da verdade, na qual a coerção que se admite é a do melhor argumento,
exclusivamente. Logo, o processo deixa de ser uma luta, cujo objetivo é erradicar o
adversário, para assumir o caráter de um jogo, em que impera a racionalidade dos atores que
buscam vencer pela maior “liquidez” de seus argumentos.
Pela perspectiva habermasiana, pode-se afirmar que todos os participantes do
processo, quaisquer que sejam seus fundamentos, fornecem, via princípio do contraditório,
contribuições ao discurso que, praticado em simétrica paridade possibilitam que a decisão
final seja uma “fusão de horizontes”, como quer Gadamer (2003, p. 591). Não resta dúvida
que, segundo Gonçalves (2001, p. 167):
[...] se lhes é garantido, pelo contraditório, a participação nos atos processuais que preparam o provimento, é uma conseqüência dessa garantia que as partes saibam por que
um pedido foi negado ou por que uma condenação foi imposta. Elas viveram o processo, ou tiveram a garantia de vivê-lo, participaram do seu desenvolvimento, reconstruindo a situação de direito material sobre que deveria incidir o provimento e, nessa reconstrução,
fizeram, juntamente com o juiz, o próprio processo, na expectativa do provimento final.
Por esta razão, a verdade das proposições ou a correção das normas depende, em
última instância, de que se possa alcançar um consenso num ambiente de total liberdade e de
simetria entre os envolvidos no diálogo discursivo-argumentativo (ATIENZA, 2003, p. 163).
Ademais, o Direito Ambiental enquanto direito difuso requer para a sua execução o
engajamento do maior número possível de indivíduos, haja vista o real interesse de todos.
Para tanto, é preciso constituir espaços de cidadania e democracia para tal tarefa. Ante o
exposto, é evidente que o contraditório não se resume simplesmente em um princípio ou
Direito Fundamental. Sua existência e satisfação substancial tipificam a materialização do
Estado Democrático de Direito. Assim, para que este seja realmente produtivo, há de se ter
um verdadeiro espaço ao contraditório, cabendo aos órgãos jurisdicionais velar pela real
simetria e equilíbrio das posições cultivadas discursivamente (IBAÑEZ, 2005). Eis o papel
das audiências judiciais participativas e a capacidade da proposta de Elio Fazzalari que
convidam todos isonômica e indistintamente para participarem dos processos decisivos.
3. Afinal, qual o lugar dos Juizados Especiais?
Em linhas gerais, o excesso de formalismo, a morosidade na prolatação de decisões
somadas ao custo pecuniário da demanda são causas comuns à suposta crise do Poder
Judiciário e o nascedouro do sistema dos Juizados Especiais. A conclusão de que tais máculas
acabam por afastar o jurisdicionado da jurisdição reclama novas formas de resoluções de
pretensões resistidas no seio do Estado. Do contrário, o sentimento de descrédito produzido
cria uma bolha de litigiosidade contida paralela a modos privados de autotutela a qual escapa
do controle estatal.
Ainda que se reconheça um progressivo esforço na Constituição de medidas judiciais
em matéria ambiental, com a expansão das ações previstas na legislação, tal como, ação civil
pública, ação popular, mandado de segurança, ações de procedimento sumaríssimo, ações
cautelares, tutelas inibitórias e afins é preciso admitir que o sucesso destas medidas passa
necessariamente pela informação e pela participação em juízo. Não bastam as propostas de
erradicação de litigiosidade contida decorrente da repressão, contenção ou repressão de
direitos sem uma prévia minimização da litigiosidade latente, na qual os indivíduos vivem em
completa inércia, privados de discernimento e reivindicações (WATANABE, 1985).
Neste sentido, o sistema dos Juizados Especiais, pensado a partir da Lei 9.099/1995,
determina uma nova forma de processualidade, orientada compulsoriamente pela oralidade,
simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade (Lei 9.099/95, art. 2º), cuja
competência atinge as causas pautadas em ações individuais (as quais não podem ser
descartadas na seara ambiental) cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor
potencial ofensivo (CRFB/88, art. 98, I). É justamente sobre tais princípios que uma nova
prática de tutela judicial-participativa do ambiente carece ser implementada.
Prática esta que se movimente no sentido de dar vazão à conciliação e à equidade no
intuito primeiro de trazer à resolução dos conflitos ambientais de forma direta e substancial os
destinatários da decisão e beneficiários de um ambiente sadio e equilibrado. Contudo, o
sucesso da iniciativa não se faz por si só. Conforme já dito, necessário se apresenta uma nova
compreensão teórico-normativa-processual, que transcenda a mobilização excludente da
Teoria Geral do Processo, para avançar em propostas inclusivas, participativas e
democráticas, ciente, por sua vez, da necessidade de baixa formalidade e alta participação.
Não por acaso:
Para que a jurisdição obtenha resultados positivos na realização de múltiplos objetivos sociais, solucionando falhas de mercado ou do processo político, como um importante produtor de decisões sociais é preciso ensejar aos interessados amplo acesso, de forma a
lhes conferir iniciativa em defesa dos valores juridicamente protegidos. A aptidão da jurisdição em proporcionar a fácil propositura de ações deve ser proporcional à efetividade de suas respostas, de forma a atuar não apenas na solução de litígios, mas também a
demover – e a desestimular – os agentes da prática de atos contrários ao interesse público protegido. (SALLES, 1998, p. 126)
Considerando as razões expostas, as manifestações em enunciado do Fórum Nacional
dos Juizados Especiais (FONAJE 97) e Fórum Nacional dos Juizados Especiais Federais
(FONAJEF 22) e as práticas experimentais com Juizados Especiais Volantes Ambientais nos
Estados de Mato Grosso e Amazonas merecem ser ampliadas em nível nacional a fim de
diminuir procedimentos esparsos para litígios ambientais, maior exigibilidade e efetividade
dos direitos relativos ao ambiente e conscientização da população. Eis o lócus dos Juizados
Especiais. Assim, a questão suscitada acerca do lugar dos Juizados Especiais na defesa do
ambiente propõe um fluxo de expansão dos seus limites de ação. Não se resume em um
desafio à dogmática jurídica ou à teoria geral do processo, mas, sobretudo, ao modo que se
exercita judicialmente a tutela ambiental além do caráter repressivo dos Juizados Especiais
Criminais. A par dessa fluidez processual e funcional, a universalidade da jurisdição supera a
clássica ideia de direito de demandar em juízo para apresentar-se como uma das
possibilidades (não residual, mas constitucionalmente assegurada) de resolução dos conflitos,
a qual não pode ser encarada como um convite à litigância, nos dizeres de Mancuso (2009, p.
359).
Conclusões articuladas
O Poder Judiciário deve facilitar o acesso à justiça ambiental e a democratização do
processo judicial com a utilização de procedimentos que assegurem a participação direta dos
cidadãos nos procedimentos jurisdicionais em matéria ambiental. A participação efetiva dos
destinatários das normas ambientais é a melhor estratégia a ser utilizada para o tratamento das
lides ambientais mais complexas, tendo em vista que concretiza também os princípios da:
informação, educação, conscientização e comprometimento solidário com proteção do meio
ambiente.
Para tanto, faz-se imperioso inaugurar uma nova concepção de teoria do processo,
voltada para o Direito Ambiental que, fundamentalmente promova a garantia do processo
como procedimento em contraditório; um processo de inclusão dos indivíduos em um
ambiente dialético, no qual se reconhece o mérito de tratar cada sujeito do direito como igual
e idêntico, e no qual prevaleça a simplicidade e a efetividade das decisões, tal como se
propõem o sistema dos Juizados Especiais. A melhor forma de assegurar o princípio da
participação no processo judicial é a realização de audiências judiciais participativas, em
espaços judiciais próprios, nos quais deve ser oportunizada a participação direta dos cidadãos,
de especialistas na matéria e das autoridades públicas, tudo para a construção conjunta da
decisão social e ambientalmente mais justa e consequente.
Desta forma, a discussão não se apresenta somente sobre o tipo de processo que se
possui e as consequências da sua prática irrefletida, mas, sobretudo, impõe uma meditação
sobre o tipo de Estado que se vislumbra. Somente quem está envolvido no processo de defesa
do ambiente tem substancialmente interesse neste propósito.
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MEDIAÇÃO DE CONFLITOS SOCIOAMBIENTIAS: METODOLOGIA
APLICADA PARA PREVENÇÃO E RESOLUÇÃO DE CONFLITOS EM
CONVÊNIO COM O MINISTÉRIO PÚBLICO DE MINAS GERAIS.
Andressa de Oliveira Lanchotti1
Fernanda Aparecida Mendes e Silva Garcia Assumpção2
RESUMO:
A mediação de conflitos socioambientais deve ser planejada de forma a garantir a
licitude da resolução, uma vez que não é possível a renúncia, pelo Ministério Público,
dos limites legais inerentes à proteção ambiental. Após realizada a delimitação legal,
deve-se buscar a enumeração de hipóteses técnicas para o estudo de cada uma,
detalhadamente, por equipe multidisciplinar, buscando a que melhor satisfaz
custo/benefício (levando em conta, sempre, os limites legais). Também deve ser
enumerado outros fatores que condicionam o cumprimento da resolução escolhida, tais
como: prazo razoável, partes indiretamente envolvidas, dentre outros. Os deveres
institucionais e legais do representante do Ministério Público jamais podem ser
desconsiderados, bem como sua obrigatória participação, sob pena de ser nulo qualquer
acordo acerca do conflito de natureza socioambiental.
O Convênio firmado com o Ministério Público de Minas Gerais visa a instituição de tal
método, de forma a possibilitar um amplo diálogo com a sociedade, órgãos públicos,
infrator e demais interessados, com o auxílio de técnicos em engenharia ambiental,
biologia, dentre outras formações e a concepção jurídica do problema a ser resolvido.
PALAVRAS-CHAVE: conflito socioambiental; mediação; Ministério Público;
metodologia de resolução e prevenção de conflito.
RÉSUMÉ:
La médiation des conflits environnementaux devraient être prévues pour assurer la
légalité de la résolution, car il n'est pas possible la démission par les procureurs des
limites légales inhérentes à la protection de l'environnement. Après avoir effectué la
1 Bacharel em direito pela Universidade de São Paulo - USP. Promotora de Justiça da Comarca de Nova
Lima/MG. Coordenadora Auxiliar da Coordenadoria Estadual das Promotorias de Justiça de Habitação e
Urbanismo de Minas Gerais. Especialista em Direito Público pela PUC-Minas, Especialista em
Legislação, Impacto e Recuperação Ambiental pela Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP, Mestre
em Direito Internacional e Comparado do Meio Ambiente pela Universidade de Limoges-França. Mestre
em Engenharia Ambiental pela UFOP. Doutoranda em Direitos Fundamentais e Liberdades Públicas pela
Universidade de Castilla-La Mancha – Espanha.
2 Professora de Direito Ambiental e Direito Minerário; Coordenadora dos cursos de pós-graduação lato
sensu em Direito Ambiental e em Regime Jurídico dos Recursos Minerais na Faculdade Milton Campos.
Coordenadora do CEDIMA – Centro de Estudos de Direito Minerário e Ambiental e da Câmara de
Mediação de Conflitos Socioambientais. Advogada sócia na Mendes e Carone Sociedade de Advogados.
délimitation juridique doit être recherchée énumération des hypothèses techniques pour
l'étude de chaque en détail par une équipe pluridisciplinaire, la recherche qui rencontre
mieux les coûts / bénéfices (en tenant compte, le cas les limites légales). Il faut
également énuméré d'autres facteurs qui influent sur la mise en œuvre de la
résolution choisie comme raisonnables, les portions indirectement impliqués, entre
autres. Les fonctions institutionnelles et juridiques du ministère public ne peut jamais
être négligée, ainsi que sa participation obligatoire, sous peine d'être nul tout accord sur
la nature des conflits environnementaux.
L'accord signé avec le ministère de la fonction publique Minas Gerais vise l’use d'une
telle méthode, afin de permettre à un large dialogue avec la société, les organismes
gouvernementaux et d'autres délinquants intéressés, avec l'aide d'experts en ingénierie,
en biologie environnementale, parmi d'autres formations et la conception juridique du
problème à résoudre.
MOT-CLÉ : conflit environnement; mediation; Procurer Géneral; methodologie por
résolution et prevention des conflit.
1- INTRODUÇÃO
Os conflitos socioambientais são reconhecidos, atualmente, como uma nova
onda3 na (r)evolução relacional, envolvendo, ora partes privadas, ora múltiplas partes
em defesa de um direito difuso: a sustentabilidade e a qualidade ambiental. O Ministério
Público possui atribuição constitucional de atuar na proteção do patrimônio público e
social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. Para execução desta
importante tarefa, utiliza-se de métodos extrajudiciais e judiciais. Participa ativamente
nas decisões dos Conselhos de Meio Ambiente, além de atuar como fiscal da lei nos
processos de licenciamento ambiental.
A mediação surgiu, neste contexto, como uma forma de resolução eficaz de
conflitos socioambientais, com atuação preventiva e resolutiva, evitando-se a
judicialização das questões, além de propiciar a formação de uma oportunidade para o
diálogo com todos, sejam os interessados na conduta que o Ministério Público está
contestando, sejam outros autores, interessados na exploração do mesmo bem
3 Instituição do Direito ao Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado, por meio do tratamento
constitucional, dado pelo artigo 225 da Carta Magna. A proteção do meio ambiente foi classificada como
um direito difuso à partir da Conferência de Estocolmo, em 1972, sendo internalizado, no Brasil, pela Lei
6.938/81, a qual instituiu a Política Nacional de Meio Ambiente. É relativamente novo, sendo
paulatinamente abordado por categorias com interesses distintos, objetivando a negociação de direitos
ambientais, econômicos e sociais de todos os envolvidos.
ambiental, ou na preservação deste, encampando os aspectos ambiental, cultural ou
artificial.
O sistema tradicional, pautado na jurisdição, não é formatado para o amplo
debate4, a participação efetiva daqueles que se sentirão afetados pela atuação de um ou
poucos no meio ambiente natural, cultural e artificial. Enfatiza-se apenas o aspecto legal
da questão, de subsunção do fato à norma, raramente alcançando a profundidade da
questão e o largo âmbito de afetados direta ou indiretamente, pela ação questionada pelo
Ministério Público.
Com o objetivo de resolver as questões de maneira mais eficaz, com legitimação
de todos os possíveis interessados na questão, a Profa. Fernanda Aparecida Mendes e
Silva Garcia Assumpção, na coordenação do CEDIMA – Centro de Estudos de Direito
Minerário e Ambiental5, desenvolveu um Método de Mediação de Conflitos de natureza
difusa. Foi assinado Convênio entre o Ministério Público de Minas Gerais e a Faculdade
Milton Campos, para a implementação deste método, em projeto piloto experimental, na
Comarca de Nova Lima – MG.
Para a exposição desta experiência, objetivo deste artigo, faz-se necessário
teorizar o conflito, suas dimensões, interações e concepções científicas básicas que
fundamentam o método e sua prática. Neste diapasão, serão tratadas as diferentes
perspectivas do conflito de natureza difusa e transdisciplinar: economia, sociedade,
meio ambiente e normatividade (Direito). Posteriormente, segue o estudo do conflito,
desde a concepção da psicanálise à interpretação social de Kaplan, sob o signo da
coletividade. Então, com uma breve exposição da base científica utilizada para a
construção do método, desenvolver-se-á a exposição de sua aplicação em decorrência
do convênio assinado, demonstrando a atuação do MP na resolução não demandista das
questões socioambientais, diferenciando, por fim, em termos práticos, as diferenças e
semelhanças entre o Termo de Mediação (produto do método desenvolvido) e o TAC
4 Para a instituição deste debate seria necessária a implementação de uma sistemática processual que
garantisse a intervenção de terceiros em todos os ritos processuais , além de um amicus curae ilimitado. Na atual situação jurisdicional, a adoção de tal sistemática significaria um atraso ainda maior na resolução das questões. 5 Fruto do Convênio entre SECTES – Secretaria de Ciência e Tecnologia e Ensino Superior de Minas
Gerais, via Polo de Excelência Mineral e a Faculdade Milton Campos, tendo sido inaugurado em junho de 2009.
(Termo de Ajustamento de Conduta), instrumento corriqueiramente utilizado pelo MP,
pautando-se na Lei de Ação Civil Pública.
2- - Direito, Economia, Sociedade e Meio Ambiente: interações possíveis.
A vida cotidiana demonstra uma série de influências, vistas em sistemas
autopoiéticos, por uns, ou em mútuas interferências e interações, por outros, refletindo
ora a formação de conflitos, ora a resolução destes. Estudar a relevância e atuação de
áreas distintas e considera-las para a resolução de qualquer questão é o primeiro passo
para uma pacificação legitimada e efetiva.
A sociedade interage por meio de normas previamente estabelecidas, sendo estas
pautadas pela evolução dinâmica dos valores. Estas regras sofrem, diuturnamente, as
influências do sistema político-econômico e da necessidade crescente da proteção ao
meio ambiente devido à pressão sofrida pela atuação humana. Tudo isso determina o
nível de vida, em termos de conforto, educação, lazer e oportunidades de trabalho para
todos, tendo como base o modelo econômico adotado. Interesses divergentes sobre o
uso (ou não uso) de determinados recursos naturais são inatos à própria relação social,
conflitando pessoas (físicas ou jurídicas) e/ou comunidades tradicionais em torno de
uma mesma questão.
Em todas as searas aqui citadas, podem ser analisados casos de interesses
contrários, que foram resolvidos de diferentes formas, demonstrando que a situação é
única, devendo ser analisada e trabalhada com suas peculiaridades. O uso de exemplos
semelhantes leva à resolução do conflito, por vezes, ao fracasso, tendo em vista que,
mesmo havendo possibilidade de resolução idêntica, o sentimento de efetiva justiça a
todos será, com certeza, diverso. Assim, a questão será formalmente resolvida, sem,
contudo, trazer pacificação social e o retorno do conflito ocorrerá.
2.1- Aspectos econômicos ressaltados no estudo da dinâmica do conflito
socioambiental:
Identificar os interesses econômicos em um conflito que se diz socioambiental é
o primeiro passo para análise da dinâmica deste, visando a reconhecer seu surgimento,
desenvolvimento e estado atual. Afirmamos que todo conflito socioambiental é também
um conflito econômico, pelo menos para uma das partes envolvidas. Esclarecer a todos
o perfil de cada parte, tendo em vista seus reais interesses, sentimentos e perspectivas, é
uma condição para a resolução eficaz da questão. Deve-se observar, também, o
momento econômico que se vive no mercado e as exigências econômico-financeiras em
relação aos envolvidos no conflito. Mais além, deve-se buscar a função social do
exercício daquela atividade econômica, no determinado contexto que se encontra.
LANDES, MOKYR e BAUMOL (2010) trazem uma reflexão sobre a história do
empreendedorismo desde a mesopotâmia, resgatando “A Origem das Corporações”,
enumerando acontecimentos que retratam a evolução socioeconômica e a resolução de
conflitos. Anunciam a existência de três tipos de empreendedores: os não inovadores, os
inovadores produtivos e os improdutivos. Estes últimos foram exemplificados como os
piratas e demais ladrões que desenvolveram a economia sem a construção positiva de
nada, apenas transferindo propriedade de outrem para si. Também são classificados
como improdutivos os empreendedores que apenas especulam o mercado, ou aqueles
que fazem parte de uma política pública de “aumento do bolo”, sem qualquer
preocupação com sua divisão, havendo crescimento no aumento da desigualdade
socioeconômica, considerados nesta categoria, a nobreza inglesa, na Idade Média, a
qual utilizava de seu poder econômico para “comprar” os favores reais. Por fim,
assumem esta classificação aqueles que “empregam novos métodos de rentismo,
práticas ilegais e outras atividades improdutivas e até mesmo socialmente prejudiciais6”
(BAUMOL e STROM, 2010, p. 607). Os empreendedores produtivos são classificados
como aqueles que, por sua atividade, provocam a reorganização do mercado,
6 Outros exemplos são dados pelos autores: “Entre os protótipos desse empreendedor estão o indivíduo
que encontra uma brecha para a burocracia corrupta e o advogado que reconhece a oportunidade de assumir uma causa nova e lucrativa. Exemplos mais extremos são os fundadores de firmas que fazem parte do crime organizado, ou os caudilhos que mantém milícias particulares. Essas pessoas podem ser tão inovadoras quanto o fundador de uma fábrica de artigos legítimos, mas não contribuem para a economia e podem até mesmo apropriar-se de parte de seu produto”. (p. 607-8)
introduzindo novidades que significam novas propriedades. Ou seja, criam valores que
servem, efetivamente, à sociedade. Estes foram fomentados, em um segundo momento7,
com a criação da lei de patentes, antitruste e falência.
Neste contexto, demonstra-se que a luta pelo poder ou pela superposição de
valores e interesses sempre foi uma constante. Também esclarece, por fatos históricos,
que o desenvolvimento econômico sempre sofreu a interferência dos fatores culturais e
religiosos. BAUMOL e STROM (2010, p. 606) exemplificam com a história de
formação dos bancos:
“Propõe que o valor cultural atribuído à probidade entre os
cavalheiros foi um requisito indispensável para a ascensão do
moderno sistema bancário, junto com instrumentos financeiros
como as letras de câmbio. A confiança entre cavalheiros
permitiu a efetivação de transações entre estrangeiros situados
em pontos distantes nas quais quem despachava mercadorias
confiava no pagamento e o recebedor confiava em que a
encomenda seria despachada. Susan Wolcott também examina o
papel da cultura na formação do sistema financeiro, focalizando
o sistema de castas na Índia”8.
Demonstra, então, que os valores culturais interferem na criação de instituições
hábeis a desenvolver e garantir uma equidade (ou não) no mercado econômico.
Também demonstram que manobras realizadas inicialmente para satisfação de fins
individualistas, acabam por gerar consequências futuras de conteúdo social e altruísta,
como a carta de patente na Inglaterra, inicialmente utilizada para beneficiar alguns,
acabou se tornando instrumento de defesa da propriedade intelectual e fator de defesa
do empreendedorismo inovador produtivo.
A identificação, na condução de um conflito, dos envolvidos e das suas
intenções conduz ao entendimento da relevância de seus interesses no contexto
interpessoal e/ou difuso. Para se chegar a este nível de aprofundamento no conflito, faz-
7 Disse “num segundo momento”, tendo em vista a realidade histórica contada por BAUMOL e STROM,
no capítulo 18 “Conhecimento útil”, em empreendedorismo: algumas implicações históricas”. Explicaram que: “Na verdade, as cartas patentes eram emitidas na Inglaterra para incentivar a transferência de propriedade intelectual (PI) para outros países e, por essa razão, eram concedidas a produtores que, tendo roubado ideias de seu próprio país, trouxeram-nas à Inglaterra onde a patente lhes dava o monopólio sobre a produção e venda do artigo em questão durante certo tempo. (...) A patente só se tornou instrumento de proteção aos inventores em decorrência da cólera parlamentar contra o uso indevido de cartas patentes pela Coroa para recompensar seus favoritos e para outros propósitos sem relação com a correta administração da propriedade intelectual”. ‘Conhecimento útil’ em empreendedorismo: algumas implicações históricas. William J. Baumon e Robert Strom, in. LANDES, David S.; MOKYR, Joel; BAUMOL, William J. A origem das corporações: uma visão histórica do empreendedorismo da mesopotâmia aos dias atuais. São Paulo Campus, 2010. p. 612-613.
se necessário um estudo profundo do passado, presente e pretensão de futuro das partes
envolvidas.
BARCELOS9(2003), ao explicar o contexto da Nova Economia Institucional,
cita exemplo de um conflito entre pessoas interessadas na manutenção do repasse de
verbas públicas para a educação de primeiro e segundo grau, e outras interessadas no
aumento (via diminuição daquela) de repasse ao ensino superior, mais especificamente,
à pesquisa. Explica o autor que a Nova Economia Institucional se baseia no
estabelecimento de instituições, no Direito de Propriedade, nos Custos de Transação e
na Performance Econômica. Quando existem conflitos, há formas de mediação com
base em pagamentos compensatórios (side payments), os quais se fiam em um contrato
para a garantia de seu cumprimento, uma vez que, na atualidade, não mais existem os
cavalheiros do reino inglês dos séculos de desenvolvimento das instituições bancárias.
E, para o caso do conflito legislativo inerente ao repasse de verbas educacionais, o autor
sugere um pagamento compensatório para a manutenção do repasse para as escolas de
primeiro e segundo grau, sendo o compromisso assumido pelos interessados na
manutenção deste repasse, de cumprirem a aplicação de questionários provenientes dos
pesquisadores, junto à população, ou do desenvolvimento de outra atividade que, por si
só, substitua o gasto que os pesquisadores teriam.
Ainda sob o viés econômico, devem ser consideradas a Economia Ambiental e a
Economia dos Recursos Naturais, sendo esta responsável pela análise do fluxo de
recursos naturais que saem do meio ambiente em direção ao mercado, considerando
sempre o estoque natural do planeta. A Economia Ambiental preocupa-se com o fluxo
de resíduos, de vários setores econômicos, em direção à natureza, quantificando
monetariamente o impacto e o dano ambiental. Também são utilizadas para uma gestão
ambiental eficiente. Neste sentido, existe a Curva Ambiental de Kuznets, a qual
“estabelece uma relação teorizada entre o desenvolvimento econômico e a degradação
ambiental que pode ser descrita na forma de uma letra ‘U’ invertida. Esse modelo
sugere que os estágios iniciais da industrialização estão relacionados com aumentos dos
níveis de poluição, e o desenvolvimento mais avançado está relacionado a uma
9BARCELOS, Raphael Magalhães. A Nova Economia Institucional: teoria e aplicações. Brasília:
UNB, 2003. Site: http://vsites.unb.br/face/eco/peteco/dload/monos_012003/Raphael.pdf.
Acesso em 06 de abril de 2012.
preocupação crescente com a qualidade ambiental e o correspondente fortalecimento
das leis ambientais10
”. É utilizada como forma de demonstrar possibilidades de
reconciliação entre desenvolvimento e qualidade ambiental.
Para a análise de conflito socioambiental, a dinâmica de seu desenrolar, tendo
em vista o aspecto econômico a ele inerente é de extrema relevância. O método de
mediação de conflitos socioambientais aplicado pelo CEDIMA busca, através do
esclarecimento da realidade fática (passado, presente e perspectivas futuras), identificar
as partes, seus interesses e sua relação com o mercado, bem como a contribuição, a
curto, médio e longo prazo, que sua atividade terá na seara econômica, social e
ambiental. Acreditamos na aplicação otimista da Curva Ambiental de Kuznets,
principalmente se houver a efetivação de um sistema participativo popular nas decisões
acerca do meio ambiente.
2.2- O Direito na Mediação de Conflitos Socioambientais
O ordenamento jurídico brasileiro traz uma gama imensa de regulamentos acerca
do uso dos recursos naturais, instituindo limites à degradação (impacto) ambiental, e
proibindo o dano ambiental, sob pena de punições nas searas administrativa e penal,
além das obrigações cíveis de recuperação e indenização, de forma cumulativa.
Quando se fala em método alternativo de resolução de conflito, como a
mediação e a conciliação, imediatamente é vista a possibilidade de transação pelo dano,
de concessões mútuas entre as partes. Isto gera, por sua vez, uma inconstitucionalidade,
vez que a proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado é um Direito
Fundamental, inscrito no artigo 225 da Carta Magna, não sendo possível sua renúncia.
Neste sentido, é importante esclarecer que o método utilizado pelo CEDIMA
não possibilita tais manobras de renúncia à proteção ambiental, não havendo a
possibilidade de anuência, pelos envolvidos (principalmente o Ministério Público), de
consolidação de dano ambiental e/ou desrespeito aos limites estabelecidos em lei. O que
10
THOMAS, Janet M.; CALLAN, Scott J. Economia Ambiental: aplicações, políticas e teoria. São Paulo: Cengage Learnig, 2010, p. 487. Os autores elucidam a existência de contrapontos otimista, pessimista e convencional, os quais alteram a curva, tornando-a mais branda ou acentuada, conforme a crença de estabilização do impacto ambiental causado pelo desenvolvimento econômico ou o retorno, após certo nível de desenvolvimento, a proteção ambiental efetiva, respectivamente.
se busca é a possibilidade, caso tenha havido o desrespeito à lei, por parte de algum dos
envolvidos, que este retorne aos limites da legalidade, conforme planos de atuação
escritos após diálogo entre todos os interessados, possibilitando, assim, uma
recuperação e/ou proteção efetiva do bem ambiental. Busca-se uma solução científica e
executável, tendo em vista a natureza do dano, a realidade fática do local, tempo e
partes envolvidas e os limites do impacto ambiental legalmente estabelecidos.
2.3- Do Meio Ambiente como elemento crucial na análise do conflito:
Ao tratar os conflitos socioambientais, é evidente que o foco central será o
impacto (ou dano) a ser potencialmente causado (esfera preventiva) ou a recuperação da
qualidade ambiental (esfera de recuperação e repressão).
O Método de Mediação de Conflitos Socioambientais do CEDIMA visa a
conhecer profundamente a atividade que está sendo questionada, de forma científica e
imparcial, trazendo a todos a informação técnica e precisa, sob a forma de explicações
claras e acessíveis ao entendimento de todos.
Neste sentido, ocorrerá, com certa frequência, o diagnóstico de falsos conflitos,
uma vez que poderá ser detectado, por exemplo, que a ação contestada não é a que tem
nexo causal com o dano/impacto que se quer contestar (preventiva ou repressivamente).
Outras vezes, a exposição científica e imparcial trará entendimento ao próprio autor da
ação, quanto às suas consequências, tornando evidente, para ele próprio, como deverá
agir quanto ao fato. Ou, poderá acontecer que, devido ao conhecimento profundo dos
fatos, chegar-se-á à conclusão de que os instrumentos que se pretende utilizar para
evitar e/ou recuperar o dano, não é o mais conveniente, ou a conclusão de que não é
executável, sendo o custo/benefício de outro método mais eficiente e eficaz. Esta atitude
pode, inclusive, contrariar laudos de vistoria realizados por técnicos dos órgãos
ambientais, que poderão ter acesso (se do seu interesse) às recomendações surgidas das
próprias partes, e registradas no Termo de Mediação. Isto pode acontecer devido ao
aprofundamento na questão. Os laudos feitos pelos técnicos não possuem o
esclarecimento prévio de um diálogo entre as partes, podendo, por isso, pecarem quanto
a melhor recomendação a ser feita para cada caso.
Todo o método criado tem como base a informação clara e acessível a qualquer
cidadão, independente de seu grau de instrução. O papel primordial do mediador é, além
de conduzir e facilitar o diálogo, empoderar as partes com informações científicas de
cunho ambiental, econômico e social. Assim, o trabalho realizado visa a,
primordialmente, que haja um diálogo entre iguais (em termos de informação técnica).
E, se caso uma das partes for considerada hipossuficiente, não bastando explicação de
ordem acadêmica, imparcial e técnica, instituições de ensino ou Organizações Não
Governamentais serão convidadas (se ainda não tiverem se pronunciado sobre a
questão) a participar das reuniões, como parte interessada, possibilitando um
fortalecimento daquele diretamente afetado pela conduta, mas sem condições de manter
um diálogo com os demais. Além das ONGs, o Ministério Público estará sempre
garantindo um diálogo aberto, defendendo a constitucionalidade, a legalidade e a
legitimação do Termo de Mediação.
2.4- A Sociedade e a oitiva da sua demanda.
A questão ambiental só se torna um conflito quando existem interesses sociais
contrários à ação que está sendo questionada. O interesse divergente pode consistir, por
exemplo, no uso do bem ambiental, ou na estipulação de contraprestação que está sendo
questionada pela sociedade, tendo em vista entender insuficiente ou incoerente com seus
propósitos. Também ocorre, frequentemente, a sobreposição, com base no
custo/benefício, de interesses econômicos (nacionais, regionais, etc.) em relação a
interesses sociais de uma determinada população (tradicional ou não). Adota-se, para
esta tomada de decisão, o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado
(ou sobre o menos público). E, muitas vezes, há o desrespeito a Direitos Fundamentais,
tão relevantes quanto o desenvolvimento econômico do país.
E, o pior de tudo nesta situação é que a comunidade afetada não consegue se
fazer ouvir, seja pela ausência de pessoal qualificado para discursar, seja pela falta de
entendimento quanto aos seus direitos constitucionais e infraconstitucionais, seja por
acreditar que “é assim mesmo”, numa atitude de consolo com a realidade fática.
O exercício da cidadania não é concretizado no Brasil, principalmente quando se
trata da participação na gestão ambiental. O desconhecimento quanto a ecologia,
hidrologia, hidrogeologia, sociologia, economia, dentre outras ciências, predomina no
“homem médio”, grande massa de brasileiros. A mídia aliena, a escola não constrói
cidadãos críticos e os interesses não nobres corrompem comunidades com discursos
pobres e sem base teórico-científica alguma.
A participação das comunidades em conselhos de meio ambiente se faz mediante
representação de bairro, associações, Organizações Não Governamentais, dentre outras
categorias. Porém, o que se pode observar é que estas pessoas, assim com as demais
integrantes de conselhos de unidades de conservação, de meio ambiente, comitês de
bacia hidrográfica, dentre outros, não são preparadas para o exercício desta importante
função pública que executam. Discussões infrutíferas, sem condições de serem
executadas, representam perda de tempo a todos, além de grande perda para a gestão
ambiental e social.
A Câmara de Mediação de Conflitos Socioambientais do CEDIMA tem como
meta o preparo informacional das partes envolvidas na questão, fazendo, se for o caso, o
pedido de acompanhamento daqueles que não tiverem condição intelectual de entender
os fatos, por outras instituições (ONGs, universidades, etc.), sob pena de todo o diálogo
não ser legitimador do Termo de Mediação, possibilitando que o conflito floresça
novamente, com as mesmas partes, mesmo contexto, em momento próximo.
3- O Conflito Socioambiental Difuso.
A natureza difusa do conflito socioambiental significa que há uma gama
indeterminada de sujeitos envolvidos e interessados na questão. Estes sujeitos devem
ser identificados e trazidos para o debate. Como bem explica a Constituição Federal de
1988, são sujeitos de direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado as presentes
e futuras gerações, deixando claro o contexto difuso.
Porém, faz-se necessário o estudo psicanalítico de cada uma das partes, bem
como da interação delas. Para tanto, parte-se da teoria psicanalítica de FREUD (1926),
em que é constatado que o ser humano é conflituoso, por sua natureza, tendo três
elementos principais que lhe causam mal-estar: 1- o próprio corpo, fadado ao
desaparecimento; 2- a impossibilidade de controlar o mundo; 3- o outro (relacionamento
social). Neste sentido, FREUD analisa as inúmeras possibilidades que o homem utiliza
para a busca da felicidade (entendida como objetivo da vida), sendo que alguns
consideram a ausência de sofrimento, a própria felicidade. No entanto, FREUD critica
as fórmulas utilizadas, tendo em vista serem parciais, não conseguindo encampar todos
os aspectos da vida. Também diz que o conflito e falta de felicidade são inerentes à
existência humana, uma vez que considera impossível viver em eterna felicidade, por
considerá-la um sentimento que só pode existir de maneira episódica, sob pena de
transformar-se em um morno sentimento, até total esvaziamento do êxtase. Da mesma
forma, diz que o conflito não significa, por si só, inimizade, servindo, muitas vezes,
para a superação e evolução das relações sociais. Quanto às normas que regem a vida
social, considera-as insuficientes para a realização do objetivo almejado. Isto é
explicado pela complexidade das relações interpessoais, bem como das alterações de
valores, as quais as mudanças nas normas não alcança nem acompanha.
Partindo deste pressuposto teórico e fático, o método se utiliza da
COMUNICAÇÃO NÃO-VIOLENTA, de ROSENBERG (2006), a qual prevê a
abordagem do conflito com empatia, baseando-se em quatro elementos: observação,
sentimento, necessidade e pedido11
. No entanto, a percepção do conflito se dá, por se
tratar de natureza difusa, conforme os pressupostos de KAPLAN (2005), levando-se em
conta a existência não apenas de seres humanos individualmente considerados, mas,
sobretudo, de um “super ser” social, difusamente considerado.
Quanto à sistemática social, é imprescindível a adoção do método de
‘concertation sociale12
’ do Instituto Comédie13
, de origem francesa, o qual prevê amplo
diálogo e empoderamento das partes, de forma a possibilitar uma melhor organização
das ideias, pontos convergentes e divergentes.
O conflito socioambiental difuso é considerado, então, sob o enfoque
interindividual e sob o enfoque supraindividual, não se podendo deixar de observar
quaisquer destas searas, sob pena de não legitimidade do diálogo para a construção do
Termo de Mediação.
11
Para a percepção do conflito, também são utilizadas várias técnicas ligadas à psicologia, como a linguagem corporal, a neurolinguística e a interpretação sistemática do discurso. 12
Este método também é utilizado na Bélgica, principalmente quando se trata de negociações trabalhistas, para a Convenção Coletiva de Trabalho. É uma sistemática que organiza os discursos, possibilitando uma forma mais eficaz de resolver a questão. No Brasil, as audiências públicas referentes a licenciamento ambiental deveria assumir esta forma, já que, infelizmente, não há uma efetiva oitiva da população, por esta não se organizar, não havendo um discurso harmônico, integrado e tecnicamente embasado. A concertação social é uma forma de enriquecer discursos, tornando-os tecnicamente aceitáveis. No site do Comédie podem ser encontradas mais informações sobre o assunto, como as ferramentas utilizadas na Concertação social. http://www.comedie.org/outils.php. 13
www.comedie.org Acesso em 02 de abril de 2012.
4- O papel do Ministério Público na proteção do meio ambiente por meio da
resolução consensual de conflito.
A Constituição Federal de 1988 dispõe em seu artigo 127, caput, que o
Ministério Público é uma ‘‘instituição permanente, essencial à função jurisdicional do
Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos
interesses sociais e individuais indisponíveis‘‘.
De acordo com o art. 129 da Constituição Brasileira são funções institucionais
do Ministério Público:
I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;
II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância
pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas
necessárias a sua garantia;
III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do
patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos
e coletivos;
IV - promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de
intervenção da União e dos Estados, nos casos previstos nesta Constituição;
V - defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas;
VI - expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua
competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma
da lei complementar respectiva;
VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei
complementar mencionada no artigo anterior;
VIII - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial,
indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais;
IX - exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis
com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria
jurídica de entidades públicas.
A promoção da ação civil pública para a proteção dos interesses públicos e
sociais, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos foi introduzida no
ordenamento jurídico brasileiro pela Lei de Política Nacional do Meio Ambiente (Lei
6938/81), que, em seu artigo 14, parágrafo 1o, estabelece:
Art. 14 - Sem prejuízo das penalidades definidas pela legislação federal, estadual
e municipal, o não cumprimento das medidas necessárias à preservação ou
correção dos inconvenientes e danos causados pela degradação da qualidade
ambiental sujeitará os transgressores:
§ 1º Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor
obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os
danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O
Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de
responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente.
No ano de 1985, foi editada a Lei 7347/85 (LACP adiante), que disciplina a ação
civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor,
a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico e dá outras
providências. Tal lei estabelece em seu artigo 5º que possuem legitimidade para propor
a ação principal e a ação cautelar:
I - o Ministério Público;
II - a Defensoria Pública;
III - a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;
IV - a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista;
V - a associação que, concomitantemente:
a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil;
b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao
consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico,
estético, histórico, turístico e paisagístico.
Entre todos os legitimados à propositura da ação civil pública o Ministério
Público é o mais ativo. Quando não atua no processo como parte, o membro do
Ministério Público deve intervir como fiscal da lei. Ademais, quando ocorre a
desistência infundada ou o abandono da ação por parte da associação legitimada autora,
o Ministério Público ou outro legitimado deve assumir o polo ativo da ação. O artigo 5o
da LACP também admite o litisconsórcio voluntário entre os Ministérios Públicos da
União, do Distrito Federal e dos Estados. O artigo 6o da LACP estabelece que:
‘‘Qualquer pessoa poderá e o servidor público deverá provocar a iniciativa do
Ministério Público, ministrando-lhe informações sobre fatos que constituam objeto da
ação civil e indicando-lhe os elementos de convicção“.
Quando, no exercício de suas funções, os juízes ou tribunais tomem
conhecimento de fatos que possam gerar a propositura de uma ação civil pública
deverão enviar as peças correspondentes ao Ministério Público, para que tal órgão tome
as providências cabíveis (art. 7o, LACP).
4.1- O compromisso de ajustamento de conduta -TAC.
Com a finalidade de permitir que o Ministério Público exerça sua relevante
função de defesa dos interesses difusos e coletivos, a LACP, em seu art. 8º, parágrafo
1º, instituiu uma importante ferramenta jurídica, o inquérito civil, dispondo que o
Ministério Público poderá instaurá-lo, sob sua presidência, ou requisitar, de qualquer
organismo público ou particular, certidões, informações, exames ou perícias, no prazo
que assinalar, o qual não poderá ser inferior a 10 (dez) dias úteis.
O inquérito civil, expressamente previsto pela Constituição Federal de 1988 (art.
129, inciso III, CF/88), é um procedimento de caráter administrativo, que permite ao
membro do Ministério Público colher os elementos de prova necessários para a
formação de sua convicção.
Verificada a ocorrência de um ilícito civil contrário aos interesses difusos e
coletivos, o Ministério Público não necessariamente deverá propor uma ação civil
pública, pois o art. 5o, parágrafo 6
o, da LACP, estabelece outra importante ferramenta
jurídica, que permite a solução consensual dos conflitos enfrentados, dispondo que: “§
6° Os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de
ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá
eficácia de título executivo extrajudicial“.
O compromisso de ajustamento de conduta é um instrumento que permite que os
autores públicos legitimados à propositura da ação civil pública negociem com os
infratores reais ou potenciais dos interesses difusos e coletivos, entre os quais o meio
ambiente, e obtenham um compromisso formal do cumprimento de medidas preventivas
e repressivas de responsabilidade, bem como de sanções no caso de seu
descumprimento, mantendo flexibilidade nos prazos e condições para o cumprimento
das obrigações e deveres legais, sem qualquer espécie de renúncia ao bem jurídico
protegido.
A doutrina não é uníssona a respeito da natureza jurídica do compromisso de
ajustamento de conduta. Para alguns autores seria um acordo limitado, para outros um
ato jurídico e para outros uma transação. A melhor classificação é a que o conceitua
como um negócio jurídico, pois enfatiza seu aspecto bilateral. Não é uma transação,
pois tal categoria necessariamente implicaria na concessão de direitos recíprocos.
O objeto do compromisso de ajustamento de conduta é a responsabilização civil
do infrator, por meio do estabelecimento de medidas preventivas e reparatórias do dano
ao meio ambiente. Acessoriamente, são previstas sanções para o caso de
descumprimento de tais medidas.
Carvalho Filho (2001) define o compromisso de ajustamento de conduta como:
“o ato jurídico pelo qual a pessoa, reconhecendo implicitamente que sua conduta
ofende interesse difuso ou coletivo, assume o compromisso de eliminar a ofensa através
da adequação de seu comportamento às exigências legais."
Cumpre ressaltar, que não é requisito de validade do termo de ajustamento de
conduta sua homologação por um juiz. Todavia, tal homologação pode ser realizada,
dando ao compromisso o caráter de título executivo judicial.
O artigo 21 da LACP dispõe que se aplicam à defesa dos direitos e interesses
difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei
que instituiu o Código de Defesa do Consumidor.
Por sua vez, o Título III da Lei N º 8.078/1990 (Código de Defesa do
Consumidor) em seu artigo 81, parágrafo único, I, define como interesses ou direitos
difusos os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas
indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato. Em tal categoria encontra-se a
proteção do meio ambiente, um direito ou interesse suis generis, cujo titular não é nem
o Estado, nem os particulares.
De acordo com as normas constitucionais e legais o Ministério Público está
legitimado a propor o Termo de Ajustamento de Conduta para a proteção do meio
ambiente.
4.2- A principiologia do compromisso de ajustamento de conduta.
4.2.1-. O princípio do acesso à justiça.
O compromisso de ajustamento de conduta integra a terceira onda de acesso à
justiça, pois é um meio econômico, rápido e justo. A jurisprudência brasileira vem
entendendo que não pode haver qualquer limitação ao acesso à justiça no caso de ofensa
a direitos transindividuais (Nesse sentido: TAMG-Ag. 0325021-1 1 1 º C. Civil. Rel.
Juiz Silas Vieira, J. 09 de outubro de 2001). Os prazos e condições estabelecidos devem
ser adequados à proteção do direito e ao mesmo tempo o menos gravosos possíveis ao
compromissário. Esta proporcionalidade deve ser mantida até o cumprimento do ajuste.
Deve ser permitida a assistência de um advogado, em caso de solicitação do
compromissário.
4.2.2- O princípio da proteção preventiva.
É a capacidade de se prevenir a ocorrência de um dano ambiental ou ao menos a
continuidade da prática de comportamentos lesivos ao meio ambiente. No compromisso
de ajustamento de conduta podem ser estipuladas obrigações futuras. As obrigações de
fazer ou não fazer estão de acordo com a sua natureza preventiva. É também necessário
que sejam estipuladas medidas coercitivas para a garantia do cumprimento do ajuste.
4.2.3. O principio da tutela específica.
No compromisso de ajustamento de conduta deve se buscar a tutela do meio
ambiente, estipulando-se obrigações de fazer ou não fazer, as quais devem ser certas e
determinadas. Deve ser dada absoluta prioridade à execução das obrigações principais e,
somente em caso de impossibilidade, devem ser previstas indenizações pecuniárias por
danos e prejuízos ocorridos.
4.2.4. O principio da aplicação negociada da lei (conciliação).
Não se faz necessário o reconhecimento de culpa pelo compromissário. Todavia,
a negociação não pode abarcar o direito material violado (a proteção ou recuperação do
meio ambiente), mas apenas os prazos e as condições para o cumprimento das
obrigações e deveres legais pelo compromissário.
4.2.5. O principio democrático.
Relação de causa e efeito com o Estado Democrático de Direito. É necessária a
existência de normas jurídicas para a celebração do ajuste. Deve ser dada ampla
divulgação ao compromisso, permitindo-se inclusive a assistência de um representante
do grupo titular dos direitos violados.
4.3- O compromisso de ajustamento de conduta em defesa do meio ambiente.
O meio ambiente pode ser dividido em:
a) Meio ambiente natural (artigo 3, inciso I, da Lei 6.938/81): Não há uma ação do ser
humano. Por exemplo: a flora, a fauna, a terra, o mar, o ar, a paisagem, etc.
b) Meio ambiente artificial: Sofre a ação do ser humano. Por exemplo: meio ambiente
urbano (as cidades).
c) Meio ambiente cultural: São os valores históricos e culturais de uma nação. Por
exemplo: o patrimônio histórico e cultural.
A LACP prevê expressamente a pertinência da ação civil pública e, portanto, do
compromisso de ajustamento de conduta para a proteção do meio ambiente (artigo 1º,
inciso I). Por tal razão, não se mostra adequada, qualquer interpretação restritiva do uso
do compromisso de ajustamento de conduta para a proteção do meio ambiente. Todo
tipo de ameaça (de dano ou de impacto) ou de degradação (a lesão ou o impacto em si)
ao meio ambiente natural, artificial o cultural pode ser objeto de um termo de
ajustamento de conduta. Em tais casos, a proteção do meio ambiente configura uma das
espécies de proteção dos interesses difusos.
Podem ser citados como exemplos de compromissos de ajustamento de conduta
ambientais, os TACs propostos pelo Ministério Público visando a cessar a
contaminação acústica, visual, do ar, da água, do solo, do subsolo, como também os
TACs propostos em defesa da fauna, da flora, do patrimônio cultural e artificial, etc.
Deve ser ressaltado, que para a defesa do meio ambiente o sistema jurídico
brasileiro adota a teoria do risco integral. De acordo com tal teoria, uma
responsabilidade objetiva agravada, que não admite exceções, deve ser aplicada quando
o bem jurídico afetado for o meio ambiente, sendo necessária apenas a comprovação da
relação de causalidade entre a conduta lesiva e o dano ambiental ocorrido.
5- O TAC e o Termo de Mediação: diferenças e semelhanças.
O trabalho desenvolvido na Câmara de Mediação de Conflitos Socioambientais
tem como objetivo final a instituição de Termos de Mediação, os quais serão
construídos pelas próprias partes, caso cheguem a alguma solução harmônica, ou será
redigido pelo Mediador, sob a forma de Termo de Mediação Negativa.
O que é importante esclarecer é que, caso não haja Termo de Mediação Positiva,
redigida pelas próprias partes, o único documento que será redigido na Câmara de
Mediação é um Termo simples, o qual informará que houve (ou não) presença das
partes envolvidas no conflito, não tendo chegado a um acordo. Este documento será
enviado a todas as partes, inclusive ao Ministério Público, que tomará as medidas
judiciais que entender cabíveis.
O Termo de Mediação positiva, redigido pelas partes, possui natureza jurídica
contratual, composto por testemunhas, valendo como Título Executivo Extrajudicial.
Porém, o que o diferencia do TAC – Termo de Ajustamento de Conduta é a forma de
sua construção, que se dá de maneira negociada, através de amplo diálogo e
empoderamento das partes, legitimando o acordado, o qual será mais facilmente
cumprido por todos, por configurar-se produto da legitimação através da participação
democrática. Todos devem assiná-lo, inclusive população interessada, ONGs, entidades
governamentais, outras empresas, Ministério Público e o Mediador.
Para acompanhar o cumprimento dos termos descritos no documento, será
composta uma Comissão Fiscalizadora, composta por membros indicados na
negociação (entre todos os envolvidos, interessados direta e indiretamente no assunto),
devendo estes apresentar para a Câmara de Mediação de Conflitos Socioambientais, um
relatório, em sazonalidade a ser determinada no Termo de Mediação, no qual constará
também o nome de todos que comporão a Comissão Fiscalizadora.
6- CONCLUSÕES.
O Ministério Público vem desenvolvendo um papel de fundamental importância
na defesa dos direitos difusos e coletivos, utilizando o compromisso de ajustamento de
conduta como primeira opção para solucionar os conflitos relacionados aos direitos e
interesses que de acordo com a Constituição Federal de 1988 deve proteger, entre os
quais o meio ambiente.
De acordo com o estudo intitulado “Compromisso de ajustamento ambiental e
sua execução: análise crítica e sugestões para aprimoramento“, elaborado pelo Instituto
o Direito por um Planeta Verde o número de TACs firmados pelos Ministérios Públicos
Estaduais brasileiros é superior ao número de ações civis públicas propostas. Somente
no Ministério Público Federal o número de TACs não supera o de ações civis públicas.
Tal fato se justifica porque os conflitos en nível federal normalmente envolvem mais de
um estado federado, englobando distintos interesses que, por sua natureza, são mais
difíceis de serem solucionados consensualmente.
O Ministério Público brasileiro prefere propor compromissos de Ajustamento de
Conduta a judicializar os conflitos que enfrenta por vários fatores, sendo o principal a
celeridade alcançada com este instrumento, o que diminui em muito o risco de
ocorrência de danos ambientais irreversíveis ou de grande magnitude.
Do mesmo modo, com a solução de consenso é mais provável que os infratores
cumpram com as suas obrigações, tornando a proteção do meio ambiente mais efetiva.
Com o aumento progressivo do seu quadro em todo o Brasil e,
consequentemente, com a criação de Promotorias de Justiça especializadas na Defesa do
Meio Ambiente, o Ministério Publico vem desempenhando um papel importante para
garantir a proteção do meio ambiente, estabelecendo nos compromissos de ajustamento
de conduta não apenas medidas repressivas, mas também preventivas, sobretudo quando
estipuladas ainda na fase de avaliação de impacto ambiental.
Todavia, para que a proteção ambiental alcance ainda maior efetividade é
indispensável o incremento da participação da sociedade civil, que deve ser capaz de
intervir ainda na fase embrionária de tomada das decisões públicas. Com a câmara de
mediação de conflitos ambientais o Ministério Público tem a possibilidade de resolver
de maneira definitiva as demandas que enfrenta, pois as soluciona da melhor maneira
para a comunidade, o que confere maior eficácia e legitimidade aos Termos de
Ajustamento de Conduta firmados. A sociedade civil amplia o seu papel e sua
responsabilidade na proteção do meio ambiente, pois os cidadãos deixam de ser meros
denunciantes para se tornarem atores, capazes de influir e modificar sua própria
realidade. É o que se busca com a criação da câmara de mediação de conflitos
ambientais.
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MAZZILLI, Hugo Nigro. A proteção dos interesses difusos em juízo: o meio ambiente,
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THOMAS, Janet M.; CALLAN, Scott J. Economia Ambiental: aplicações, políticas e
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O MINISTÉRIO PÚBLICO E A GESTÃO DO BEM JURÍDICO MEIO
AMBIENTE
THE PROSECUTOR AND THE LEGAL MANAGEMENT OF
ENVIRONMENT
Diógenes Baleeiro Neto
*
RESUMO
A legítima utilização, pelo Ministério Público, dos mecanismos judiciais e extraprocessuais de
proteção ambiental, aliada à carência estrutural da Administração Pública, tem tornado o órgão
ministerial, na prática, a principal instituição responsável pela gestão do bem jurídico meio ambiente.
Tal situação não se coaduna com o comando constitucional que acomete ao Poder Público, em todas
as suas esferas, o dever de zelar pelo preservação do meio ambiente, o que torna a situação fática ora
vivenciada contrária ao Estado Democrático de Direito. O presente trabalho visará identificar as
causas e as possíveis soluções para a consecução de uma proteção ambiental democrática.
PALAVRAS-CHAVE Ministério Público; Funções essenciais à justiça; Meio ambiente; Administração Pública;
Competência; Legitimidade; Constituição Federal; Dano ambiental; Gestão ambiental.
ABSTRACT
The legitimate utilization, by prosecutors organisms, of judicial and extra-procedural mechanisms of
environmental legal protection, together with the structural deficiencies of Brazillian Public
Administration, has transformed that organism, in practice, the main institution directly responsible for
managing the environment. This reported situation is absolutely inconsistent with the Brazillian
constitutional command that affects the public government, in all its three policy spheres, the duty to
take care for the environmental preservation, which makes the factual situation now experienced
totally against the democratic state principles. This work will aim at identifying the causes and
possible solutions to achieve a democratic environment legal protection.
KEY-WORDS Prosecutor; Essential functions to justice; Environment, Public Administration; Competence;
Legitimacy; Constitution; environmental damage; Environmental Management.
1 INTRODUÇÃO
O Ministério Público tornou-se, após o advento da Constituição Federal de 1988, a
instituição pública responsável pela cura dos interesses indisponíveis da sociedade, ainda que
contrapostos ao do Poder Público. A Carta de 1988, por outro lado, em seu art. 225, conferiu a
todos, e precipuamente à Administração Pública, os deveres jurídicos de defesa e proteção do
meio ambiente para as presentes e futuras gerações.
Estando o equilíbrio ambiental inserido na ideia de patrimônio indisponível da
sociedade, tornou-se corriqueira a ocorrência de conflitos entre Administração Pública e
* Mestrando em Direito pela Escola Superior Dom Helder Câmara, Procurador do Estado de Minas Gerais.
Ministério Público no que respeita à missão das instituições de defender o meio ambiente.
Tais conflitos são potencializados pela imprecisa definição do que venha a ser dano ambiental
e pela desafiadora dificuldade de compatibilização da manutenção do equilíbrio ambiental
com o crescimento econômico.
Em campos contrapostos, o Ministério Público justifica sua postura mais proativa na
recorrente omissão estatal no que se refere à adoção de medidas de proteção ambiental, ao
passo que a Administração Pública costuma reagir a tal postura, ao argumento de que é seu o
papel institucional de gestor do meio ambiente.
Partindo de tais premissas fáticas e jurídicas, o presente trabalho visa perquirir acerca
da existência e do conteúdo dos limites jurídicos impostos à atuação do Ministério Público na
cura do bem jurídico meio ambiente, buscando, assim, apresentar soluções aos frequentes
conflitos interinstitucionais que, não raro, são prejudiciais à própria consecução do equilíbrio
ambiental, e, portanto, aos interesses da sociedade.
2 MEIO AMBIENTE COMO BEM JURÍDICO E SUA TUTELA JURISDICIONAL
E ADMINISTRATIVA
Concebem-se como bens jurídicos os valores caros à sociedade, merecedores de tutela
pelo Direito, através dos seus diversos instrumentos e garantias.
A preocupação com o meio ambiente, que ganhou corpo na segunda metade do Século
XX, impôs aos estudiosos do Direito a tarefa de desenvolver teorias, conceitos e princípios
que viabilizassem a sua adequada tutela jurídica.
No Brasil, a ideia de meio ambiente como bem jurídico passou a ter status
constitucional a partir de 1988, sobretudo em razão do disposto no art. 225 da vigente
Constituição da República1.
As características essenciais desse bem jurídico de recente percepção, aliadas ao que
dispõe o texto constitucional, conduzem à evidente conclusão de que se trata de um bem cujos
titulares são indeterminados. Daí o acerto de se considerar o meio ambiente, em regra, como
um bem jurídico de titularidade difusa, insuscetível de apropriação individual e fonte de
obrigações imputáveis a toda a coletividade.
1 Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.
Nas palavras de Carla Amado Gomes (2010, p. 54),
Na sua vertente imaterial, os bens ambientais naturais são usáveis por todos, sem
determinação de parte e prescindindo de título específico – o que é suficiente para
conferir ao uso a natureza de interesse de facto, mas insuficiente para densificar um
direito. Por isso são bens colectivos, em virtude da disseminação das suas
potencialidades de aproveitamento por um conjunto indeterminável de pessoas. O
carácter transfronteiriço, não forçosamente dos suportes físicos de alguns destes bens,
mas da difusão das suas qualidades extrínsecas, impede a identificação, à partida, de
um universo estanque de usuários; porém, há motivos jurídico-políticos que visam
operacionalizar a noção de interesse na utilização das qualidades do bem.
De outro lado, não há, entre os doutrinadores, consenso acerca do conteúdo jurídico da
expressão meio ambiente, havendo desde concepções que nele incluem todas as interações
entre todas as formas de vida (nelas incluída a humana) e o espaço que as rodeiam, a outras
mais restritas, que compreendem apenas as relações entre o homem e os elementos da
natureza.
Em nível infraconstitucional, a Lei n. 6.938/81, em seu art. 3º, I, define meio ambiente
como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e
biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”.
Apesar da definição legal, a circunstância de ser recente a formulação científica da
ideia de meio ambiente como bem jurídico ainda não tornou possível, como visto, um
consenso doutrinário quanto aos precisos contornos do seu conceito.
Contudo, é razoável considerar como objeto de proteção ambiental não apenas o
equilíbrio entre o homem e os elementos da natureza, como também as interações envolvendo
outras dimensões da vida humana (meio ambiente artificial, cultural e do trabalho), sempre
tendo em vista a desafiadora tarefa de conciliar fatores sociais, econômicos e naturais, com
vistas ao alcance da almejada sustentabilidade.
De qualquer forma, seja qual for a concepção a se considerar, certo é que o meio
ambiente, em todas as suas dimensões, é bem jurídico de titularidade difusa, merecedor de
tutela jurídica diversa da concedida a interesses individuais.
Partindo-se, portanto, da premissa de que o equilíbrio ambiental é um bem jurídico de
que é titular toda a coletividade, cabendo a todos – Poder Público e sociedade civil, nos
termos do art. 225 da Constituição Federal de 1988 - o dever de defendê-lo para as presentes e
futuras gerações, é razoável concluir que o ordenamento jurídico brasileiro confere ampla
legitimidade para que o dever de defesa do meio ambiente seja exercido em juízo.
De fato, a qualquer cidadão é lícito provocar o exercício da jurisdição para fazer cessar
atividade ou anular ato jurídico lesivo ao meio ambiente, através da ação popular,
instrumento consagrado no art. 5º, LXXIII, da Constituição Federal2.
Nas palavras de Conselvan e Cambi (2012, p. 690),
pela leitura constitucional da ação popular, pode-se afirmar que tem legitimidade ativa
para a sua propositura todo aquele que verifica a lesão ou possível lesão ao patrimônio
público, histórico e cultural, à moralidade administrativa ou ao meio ambiente. O
autor da ação popular é uma espécie de “cavalheiro cruzado”da legalidade e da
moralidade pública ou da defesa do meio ambiente. É uma expressão de solidariedade
para com todos os cidadãos honestos ou animados de espírito cívico ou preocupados
com o equilíbrio ambiental.
Integra, portanto, o conceito moderno de cidadania a possibilidade de postular
judicialmente, em nome próprio, a tutela de um bem jurídico comum a todos, superada que
está a ideia de que o indivíduo encontra-se em estado de sujeição ativa apenas naquilo que
respeita à sua esfera particular de interesses jurídicos.
A possibilidade de proteção judicial do meio ambiente através de demandas ajuizadas
pelos cidadãos, contudo, não retira a validade de normas que conferem igual legitimidade a
instituições públicas ou privadas, igualmente comprometidas com a defesa desse bem
jurídico, dentro do contexto de titularidade transindividual em que o colocou a Constituição.
Inicialmente, o legislador brasileiro enxergou no Ministério Público a instituição
pública adequada à proteção judicial do meio ambiente, conferindo-lhe, no art. 14, § 1º, da Lei
n. 6.938/81, “legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos
causados ao meio ambiente”.
Tal legitimidade foi posteriormente estendida pela Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil
Pública) à União, aos Estados, aos Municípios, às entidades da administração indireta e às
associações com pelo menos um ano de constituição e que incluíssem a proteção ambiental
entre as suas finalidades institucionais3.
2 LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio
público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência; 3 Redação original do art. 5º da Lei da Ação Civil Pública: A ação principal e a cautelar poderão ser propostas
pelo Ministério Público, pela União, pelos Estados e Municípios. Poderão também ser propostas por autarquia, empresa pública, fundação, sociedade de economia mista ou por associação que: l - esteja constituída há pelo menos um ano, nos termos da lei civil;
Em 1988, a ação civil pública passou a ter previsão constitucional, tendo o art. 129 da
vigente Constituição expressamente atribuído a sua titularidade ao Ministério Público4, sem
prejuízo de extensão legal da legitimidade a outras instituições5.
A Lei n. 7.347/85, então, que já previa um extenso rol de legitimados ativos, a par do
órgão ministerial, foi sucessivamente reformada neste particular, sendo merecedoras de
especial registro as alterações promovidas pelo Código de Defesa do Consumidor6, que tornou
dispensável, em alguns casos, o requisito de pré-constituição da associação autora, e pela Lei
n. 11.448/07, que incluiu expressamente a Defensoria Pública como órgão legitimado à
propositura de ação civil pública.
Sobre a extensão do rol de legitimados, em especial no que respeita à inclusão neste da
Defensoria Pública, observa Fensterseifer (2011, p. 127-128):
A ampliação da legitimidade para a propositura de determinadas ações, especialmente
diante da tutela de direitos difusos e coletivos, como no caso da ação civil pública e da
ação direta de inconstitucionalidade, também toma uma feição de concretização do
princípio democrático e da garantia do acesso à justiça, bem como conforma a
perspectiva procedimental dos direitos fundamentais. Assim, de forma a romper com
uma concepção democrática tradicional, espelhada basicamente em uma abordagem
representativa e indireta, a abertura cada vez maior das portas do Poder Judiciário e o
reconhecimento de tal podem como uma instância política legitimada
constitucionalmente a atuar na proteção dos direitos fundamentais justificam uma
atuação judicial crescente dos cidadãos, individualmente ou por meio das instâncias
coletivas (associações civis etc.) ou mesmo estatais (Defensoria Pública, Ministério
Público, Ibama etc.), o que deve ser tido como uma legítima forma de atuação política,
compatível com os ditames de uma democracia participativa e direta.
Realmente, a imperatividade do princípio democrático, associada à inquestionável
relevância do bem jurídico protegido, torna impositiva a extensão da legitimidade para a
defesa judicial dos interesses difusos, nestes incluído o equilíbrio ambiental, a outras
instituições que não o Ministério Público, sendo indubitavelmente constitucional a expressa
previsão da Defensoria Pública no rol de legitimados da Lei n. 7.347/85.7
II - inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio-ambiente, ao consumidor, ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. 4 Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: (...) III - promover o inquérito civil e a ação civil
pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos; 5 § 1º - A legitimação do Ministério Público para as ações civis previstas neste artigo não impede a de terceiros,
nas mesmas hipóteses, segundo o disposto nesta Constituição e na lei. 6 Lei n. 8.078/90.
7 De se registrar, contudo, que tramita no STF a ADI n. 3.943, em que se questiona a constitucionalidade da Lei
n. 11.448/07.
No que respeita à gestão do meio ambiente, contudo, apesar da essencial participação
da coletividade sob as mais diversas formas, as políticas públicas que visam à sua
macroproteção são tarefas incumbidas pela Constituição à Administração Pública.
É verdade que a Lei Fundamental confere responsabilidades e competências próprias
às organizações da sociedade civil, sobretudo no que respeita a “interesses sociais gerais e
particulares, que devem estar sintonizados com o bem comum” (MILARÉ, 2009, p. 299).
No entanto, é inegável que a circunstância de ser o meio ambiente bem comum e de
domínio público conduz à conclusão de que o seu gestor primordial será o Poder Público.
A respeito, leciona Milaré (2009, p. 303):
Como bem difuso e de uso coletivo, o meio ambiente é impessoal e não pode gerir-se
por si mesmo: ele carece de proteção. A salvaguarda lhe vem do Poder Público, seu
“tutor” qualificado, já que se trata de patrimônio público. É oportuno relembrar que a
tutela administrativa, em muitos casos, encontra ressonância e reforço na Ética e na
Moral. Desde as mais remotas culturas e civilizações, exercer a tutela era uma forma
de “administrar a Justiça” e velar pelos fracos e indefesos. Em se tratando do meio
ambiente, esta observação é plenamente válida, seja pela natureza do bem tutelado e
sua fragilidade ecológica, seja em função do interesse e dos aspectos sociais que
acompanham a ação tutelar.
Assim, compete prioritariamente à Administração Pública, em todas as esferas, o
exercício da atividade de gestão relacionada com a conservação do meio ambiente e com a
manutenção do equilíbrio ambiental.
Tal conclusão, contudo, não exclui nem diminui o papel das demais instituições,
públicas ou privadas, ou mesmo dos cidadãos individualmente considerados, no desempenho
de tais atividades, na medida em que a todos eles conferem-se os poderes de fiscalizar as
atividades administrativas e de participar das decisões políticas, seja através da composição
dos órgãos colegiados, seja por meio de participação em audiências públicas nos
procedimentos de licenciamento ambiental.
3 O MINISTÉRIO PÚBLICO E A DEFESA DO MEIO AMBIENTE
No Brasil, desde o período colonial, sempre houve, nas diversas ordenações que
institucionalizaram e disciplinaram o funcionamento da Justiça, a previsão de funções que
hoje são exercidas em conjunto pelas instituições que compõem as procuraturas
constitucionais (Ministério Público, Advocacia de Estado e Defensoria Pública).
O texto constitucional de 1934 foi o primeiro a prever a figura do Ministério Público,
definindo-o como “órgão de cooperação nas atividades governamentais” e estabelecendo
regras gerais de organização e funcionamento, sem aprofundar-se, contudo, na explicitação de
sua competência e de seus princípios basilares.
A primeira Constituição a fazê-lo com maior profundidade foi a de 1988, que incluiu o
órgão ministerial entre as Funções Essenciais à Justiça, ao lado da Advocacia, da Defensoria
Pública e da Advocacia Pública (Advocacia de Estado8).
A vigente Constituição trouxe uma disciplina mais detalhada do Ministério Público,
merecendo destaque:
a) A definição constitucional das suas funções institucionais (defesa da ordem
jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis);9
b) O desdobramento de suas funções institucionais, destacando-se, para os fins do
presente trabalho, as de zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos
serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição (art. 129,
inciso II) e de promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do
patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e
coletivos (art. 129, inciso III);
c) Explicitação dos princípios institucionais do Ministério Público (unidade,
indivisibilidade e independência funcional);10
d) A criação de instituição incumbida da representação judicial e consultoria jurídica
da União (AGU), retirando do Ministério Público tal atribuição.
Como se vê, a Constituição de 1988 foi responsável por significativos avanços na
estruturação e amadurecimento institucional do parquet, instituindo princípios, explicitando
suas funções e retirando-lhes aquelas de competência de outras instituições.
A respeito, observa Mougenot Bonfim apud Luís Roberto Gomes (2003, p. 11):
8 Para Diogo de Figueiredo Moreira Neto, a expressão Advocacia Pública é equivocada, sendo mais apropriado
falar em Advocacia de Estado, uma vez que as demais funções essenciais à justiça exercem a advocacia e são de natureza pública (MOREIRA NETO, 2006, p. 188). 9 Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado,
incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. 10
Art. 127, § 1º - São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.
Inexiste no direito comparado, ou mesmo nos antecedentes nacionais, momento algum
no espaço ou na história, presente ou remota, em que tenha o poder constituinte no
regime democrático entregue tantos mecanismos jurídico-legais ao Ministério Público
para salvaguarda dos mais lídimos interesses e valores sociais, como o previsto na
Constituição Federal. Tal como está, o Ministério Público brasileiro coloca-se
constitucionalmente como paradigma avançado a qualquer Estado independente; leva,
pois, modelo ao exterior e, nesse sentido, não tem exemplo a importar.
Pode-se dizer que tais avanços já vinham sendo anunciados antes mesmo da
Constituição de 1988, haja vista ter o Ministério Público recebido da Lei, poucos anos antes,
atribuições relevantes, especialmente no que se refere à defesa de interesses transindividuais
indisponíveis, seara em que se inclui o meio ambiente.
Como já mencionado alhures, as Leis n. 6.938/81 e 7.347/85 trouxeram previsões que
viabilizavam o ajuizamento, pelo parquet, de ações civis públicas em defesa do meio
ambiente, antes mesmo da previsão contida no art. 129 da vigente Constituição.
Tal amadurecimento, resultante, em grande medida, do pioneirismo do Ministério
Público no que respeita à defesa de interesses transindividuais, fez com que tal instituição
viesse a se tornar de facto o principal legitimado para o ajuizamento de ações civis públicas.
A timidez dos demais colegitimados, sobretudo o Poder Público, é um dos desafios a
serem superados para a consecução de uma jurisdição coletiva eficaz no Brasil.
A respeito, observa Gregório Assagra de Almeida (2003, p. 590):
O Ministério Público atualmente no Brasil é o principal protagonista na defesa dos
direitos massificados. Isso se dá porque ainda é muito tímida a atuação dos demais
legitimados coletivos ativos, os quais não são responsáveis, como já foi apontado pela
doutrina, pelo ajuizamento nem de 10% das ações coletivas já propostas no Brasil, o
que demonstra a fragilidade da democracia participativa no País.
Contudo, não é a atuação tímida dos demais colegitmados, decorrente de fatores
vários, a serem examinados mais adiante, a razão única do ora apontado protagonismo do
parquet. Muito se deve também à previsão, desenvolvimento e efetiva utilização, pelo órgão
ministerial, de instrumentos extraprocessuais de tutela dos direitos indisponíveis da sociedade
que lhe foram conferidos por Lei, em especial o inquérito civil, o compromisso de
ajustamento de conduta e as recomendações.
Milaré (2009, p. 1019-1020), um dos idealizadores do inquérito civil público, que
restou previsto na Lei n. 7.347/8511
e, posteriormente, absorvido pela Constituição Federal de
198812
, assim define tal instrumento:
O inquérito civil é procedimento investigatório, de caráter inquisitorial, unilateral e
facultativo, instaurado e presidido pelo Ministério Público, destinado a apurar a
ocorrência de danos efetivos ou potenciais a direitos ou interesses difusos, coletivos
ou individuais homogêneos ou outros que lhe incumba defender, servindo como
preparação para o exercício das atribuições inerentes às suas funções institucionais.
É através do inquérito civil, instaurado após a notícia de um fato que possa trazer
prejuízos a direitos transindividuais, que o órgão ministerial colhe os elementos
imprescindíveis ao ajuizamento de ações civis públicas, servindo tal mecanismo igualmente à
definição quanto ao uso ou não da via judicial ou de outros instrumentos que se revelem mais
adequados à tutela desses direitos.
Em outras palavras, a depender das informações colhidas no inquérito, o Ministério
Público decidirá, dentro do poder que lhe concedeu a Constituição Federal, pelo seu
arquivamento, pelo ajuizamento da ação civil pública ou pela adoção das providências
extrajudiciais que serão examinadas mais adiante (recomendação ou compromisso de
ajustamento de conduta).
Antes, porém, convém registrar que, conforme adverte Purvin de Figueiredo (2011, p.
48), apesar de se tratar o inquérito civil de um instrumento de utilização exclusiva do
Ministério Público, nada impede que membros das demais funções essenciais à justiça ligadas
à tutela do meio ambiente (Defensores Públicos e Advogados de Estado) notifiquem
extrajudicialmente o poluidor para que se busque uma solução não judicial do problema.
Tal solução pode ser obtida através do segundo instrumento extraprocessual a ser aqui
examinado, este de utilização não mais exclusiva do Ministério Público: o compromisso de
ajustamento de conduta.
Trata-se de mecanismo previsto no art. 5º, § 6º, da Lei n. 7.347/8513
, nesta incluído
pelo Código de Defesa do Consumidor, passível de manejo pelos órgãos públicos legitimados
11
Art. 8º, § 1º O Ministério Público poderá instaurar, sob sua presidência, inquérito civil, ou requisitar, de qualquer organismo público ou particular, certidões, informações, exames ou perícias, no prazo que assinalar, o qual não poderá ser inferior a 10 (dez) dias úteis. 12
Art. 129, III, CF/88 13
§ 6° Os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial.
à propositura de ação civil pública, a fim de compor controvérsias envolvendo direitos
transindividuais sem a necessidade de acionamento da via judicial.
Conforme alerta Mirra, citado por Fernandes (2008, p. 55), antes mesmo da alteração
da Lei da Ação Civil Pública pelo CDC, o direito brasileiro já contemplava a realização de
acordos envolvendo direitos difusos, com a edição da Lei n. 7.661/88, que instituiu o Plano
Nacional de Gerenciamento Costeiro.
Naquele diploma, contudo, a realização de acordo somente era admitida em juízo e no
âmbito de ações de reparação aos danos ao meio ambiente ocorridos na zona costeira.
Com o advento do Código de Defesa do Consumidor, viabilizou-se, de maneira geral,
a celebração de compromissos extrajudiciais de ajustamento de conduta envolvendo direitos
transindividuais, superando-se em definitivo o paradigma segundo o qual tais direitos seriam
insuscetíveis de transação.
Enfim, o compromisso de ajustamento é uma possível via a ser utilizada pelo
Ministério Público, quando o ajuizamento de ação civil pública revelar-se providência
inadequada, em razão de sua onerosidade.
A respeito, observa Gomes (2003, p. 251):
Trata-se de solução mais rápida e menos custosa do conflito de interesses, nem sendo
necessário lembrar que um processo dessa natureza demora anos para chegar ao final,
sem contar a necessidade de posterior execução da sentença.
Além disso, os elevados custos processuais que envolvem o trâmite de uma ação civil
pública, que na grande maioria dos casos depende de perícias de difícil e demorada
realização, incentivam a via do ajustamento, até porque o numerário que se gastaria
com isso poderia ser direcionado para a concretização do objetivo pretendido, com
evidente economia de recursos públicos.
De igual forma, revela-se muitas vezes mais eficaz e menos onerosa a opção pela
recomendação, que consiste “num ato formal não coercitivo dirigido ao investigado, no qual é
expressamente traduzida a vontade da ordem jurídica pelo Ministério Público, que toma
posição e sugere a realização de determinada conduta referente a um caso concreto”
(GOMES, 2003, p. 237).
Através da recomendação, o órgão ministerial, evitando, a priori, a via judicial, indica,
ao sujeito passivo de uma investigação realizada através de inquérito civil, os caminhos que,
sob sua ótica, representam a vontade do ordenamento jurídico, encaminhando-lhe sugestões
de adaptação de sua conduta aos ditames legais.
De se observar que as recomendações não ostentam a natureza coercitiva própria das
decisões judiciais. São apenas orientações que podem ou não ser seguidas pelo seu
destinatário, não havendo qualquer consequência jurídica decorrente do descumprimento.
De acordo com Gomes (2003, p. 238),
recomendação não é ordem, Não impõe. Não obriga. Não acarreta se descumprida
consequências jurídicas automáticas dela decorrentes. Apenas aponta o caminho
considerado correto pelo Ministério Público diante do ordenamento jurídico, com a
marca de uma instituição respeitável, destinada à defesa da sociedade, sugerindo que
seja seguido, sob pena da tomada das medidas cabíveis.
Ocorre que, muitas vezes, por razões várias, como analisaremos mais adiante, as
recomendações do Ministério Público acabam sendo absorvidas por seus destinatários como
se ordens judiciais fossem, o que acaba por transformar o parquet em um órgão gestor de
facto dos bens jurídicos difusos, como é o caso do meio ambiente.
Tal situação ganha contornos mais gravosos quando as recomendações são dirigidas
aos agentes públicos verdadeiramente responsáveis pela gestão ambiental, que acabam
colocando-se em verdadeira posição de subserviência hierárquica ao Ministério Público,
acolhendo pura e simplesmente as suas orientações, sem qualquer questionamento.
Trata-se, conforme se examinará a seguir, de um verdadeiro desvirtuamento do
sistema democrático brasileiro, na medida em que decisões administrativas acabam, na
prática, sendo tomadas por uma instituição que, apesar de sua inquestionável importância para
a consecução de uma ordem jurídica justa, não detém, a priori, dentre as suas funções
institucionais, competência para formulação e execução de políticas públicas, acometidas que
estão estas à Administração Pública.
4 CONFLITOS INTERINSTITUCIONAIS
Não são raras as situações em que uma crise jurídica envolvendo direitos difusos
resulta na contraposição de interesses entre o Ministério Público e o próprio Estado. Tal se
deve ao fato de que algumas políticas públicas (ou a falta delas) são consideradas pelo órgão
ministerial como lesivas aos interesses da sociedade.
Especificamente no que respeita ao meio ambiente, situações há em que atividades
desempenhadas pelo próprio Estado são apontadas como poluidoras, sendo dirigidas ao ente
público pretensões de prevenção ou reparação de danos ambientais. É o que ocorre, por
exemplo, quando o Poder Público é o responsável por alguma obra que esteja sendo executada
com prejuízo ao equilíbrio ambiental.
Há ainda outras hipóteses, algumas extremamente controversas, de responsabilização
do Estado por dano ambiental. Costuma-se incluir o ente público entre os responsáveis por
dano ambiental, por exemplo, nos casos de omissão quanto ao dever de fiscalizar ou de
deficiência do processo de licenciamento ambiental.
Invoca-se como justificativa o destaque que a Constituição Federal dá, no art. 225, ao
dever do Estado de defender e preservar o meio ambiente, do que se extrairia sua
responsabilidade solidária por omissão toda vez que um dano se consumasse, à míngua da
fiscalização estatal.
A respeito, argumenta Milaré (2009, p. 966):
Segundo entendemos, o Estado também pode ser solidariamente responsabilizado
pelos danos ambientais provocados por terceiros, já que é seu dever fiscalizar e
impedir que tais danos aconteçam. Esta posição mais se reforça com a cláusula
constitucional que impôs ao Poder Público o dever de defender o meio ambiente e de
preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
O mesmo autor, contudo, considerando que a responsabilização do Estado pode vir a
representar uma dupla punição da própria sociedade, ressalva que “convém, diante das regras
da solidariedade entre os responsáveis, só acionar o Estado quando puder ser increpada a ele a
causação direta do dano” (MILARÉ, 2009, p. 967).
A responsabilidade civil do Estado por condutas comissivas ou omissivas de seus
agentes, de forma geral, é expressamente prevista no art. 37, § 6º, da Constituição Federal14
.
Inquestionável, portanto, a nosso ver, que o Estado pode ser responsabilizado por dano
ao meio ambiente, havendo de se considerar, contudo, que, em tais casos, a conduta de algum
agente público deve guardar relação de causalidade direta com o prejuízo ambiental.
Não se pode responsabilizar o Estado por todo e qualquer prejuízo, individual ou
coletivo, invocando-se, pura e simplesmente, uma falha no dever de fiscalizar, sob pena de
completa banalização do instituto da responsabilidade civil.
14
§ 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Estar-se-ia, assim, a emprestar ao Estado o papel de verdadeiro segurador universal
(FIGUEIREDO, 2010, p. 278), na medida em que lhe incumbiria o dever de fiscalização de
atividades em praticamente todos os setores da sociedade, o que o tornaria responsável por
praticamente todo e qualquer dano que viesse a ser suportado por alguém.
A título ilustrativo, ao adotar-se tal posicionamento, o Poder Público seria responsável
por qualquer dano suportado pelo consumidor, por falhar na fiscalização do cumprimento das
respectivas normas de proteção; por todos os danos decorrentes de ilícito penal, devido à
ausência de policiamento ostensivo que evitasse a prática de infrações de tal natureza; e,
ainda, por algumas indenizações trabalhistas devidas por empregadores particulares a seus
empregados, em razão da ineficiência da fiscalização dos auditores fiscais do trabalho.
Tais conclusões não são nada razoáveis, o que torna impositivo examinar com cuidado
o estado de sujeição jurídica do Estado em tais situações.
É de se identificar, no caso concreto, a existência de verdadeiro nexo de causalidade
entre a falha da fiscalização estatal e o dano suportado pelo meio ambiente, a fim de que se
possa colocar o Estado na condição de sujeito passivo.
E, neste particular, assume especial importância o instrumento extraprocessual da
recomendação, a que se aludiu no tópico precedente.
Identificando uma situação de potencial dano ambiental, e que possa ser evitada
através de imediata intervenção estatal, convém ao Ministério Público, ao dela tomar
conhecimento, comunicar o fato às autoridades ambientais competentes e, se possível,
recomendar medidas específicas a serem adotadas a fim de evitar a lesão ao meio ambiente.
Permanecendo a autoridade estatal omissa, aí sim cabe responsabilizá-la pela omissão,
pelo que poderá valer-se o órgão ministerial da via judicial ou, a depender do caso concreto,
da celebração de compromisso de ajustamento de conduta.
De seu turno, cabe à autoridade destinatária da recomendação, ao tomar conhecimento,
analisar e identificar se o caso concreto efetivamente reclama intervenção estatal e, ainda, se é
ela ou outra a competente para a prática de atos que façam cessar a atividade lesiva.
As razões expostas pelo Ministério Público devem ser examinadas com seriedade e
ponderadas, por advirem de órgão constitucionalmente acometido à proteção de valores caros
à sociedade.
O que não pode o agente estatal, contudo, é tomar a recomendação como se tivesse
força de decisão judicial e deixar de exercer o seu papel de administrador, transformando-se
em mero executor de “ordens” provenientes do órgão ministerial.
Ocorre que, muitas vezes, acaba sendo esta a postura adotada pelo agente, que
abandona por completo as atividades de análise e ponderação, limitando-se a cumprir
recomendações ministeriais.
De se observar que recomendações há em que são questionados atos legítimos
praticados pela Administração Pública, mas que acabam sendo desfeitos em razão do temor
reverencial em relação às orientações ministeriais. Tal se deve ao fato, alertado por Siqueira
(2011, p. 203), de que, “tratando-se de matéria ambiental, o sentimento e a ideologia
contaminam, com maior frequência, os autores da ação”.
Outros casos há em que a desorientação dos servidores públicos que lidam com o meio
ambiente a respeito dos papéis institucionais das funções essenciais à justiça acaba por tornar
ineficiente a sua atividade.
Tais servidores, ao responderem a pedidos de informações ao Ministério Público, por
desconhecerem o papel institucional deste, dão por encerrada a sua atuação, quando deveriam
agir concretamente.
Este, aliás, é o alerta feito por Figueiredo (2011, p. 36):
Parece que tais servidores acreditariam que suas informações estão sendo prestadas a
quem poderia, a partir da conjunção dos elementos obtidos, com base nos princípios
da prevenção e da precaução, evitar a ocorrência do dano ambiental prenunciado ou,
pelo menos, fazer cessar o mais rapidamente possível os efeitos do dano em curso.
Esta constatação fática demonstra a urgente necessidade de se esclarecer à
Administração Ambiental dos três níveis da federação quais são as atribuições dos
órgãos da Advocacia Pública das respectivas pessoas jurídicas de direito público.
Nesse lamentável jogo de erros de comunicação, prefere-se deixar aos Advogados de
Estado a tarefa de, em suas bancas, defender a pessoa jurídica de direito público em
ações civis públicas propostas pelo Ministério Público com base em informações
privilegiadas que poderiam ter sido tempestivamente utilizadas para corrigir ou fazer
cessar imediatamente o dano ambiental. E, com isto, o poluidor direto, quase sempre
um particular, ganha um importante aliado neste litisconsórcio passivo não desejado
por quem tem a função de defender o interesse público primário: o Advogado do
Estado, que, pelo menos na esfera judicial, ficará adstrito ao dever de fidelidade de
patrocínio do Estado.
A administração pública, na realidade, é que muitas vezes acaba transmutando o
Ministério Público em órgão gestor, desvirtuando completamente o sistema democrático, ao
manter o ciclo vicioso apontado acima.
Tal subversão acaba sendo alimentada pela imprensa, que costuma noticiar
recomendações ministeriais ou mesmo a propositura de ações civis públicas com dizeres do
tipo “Ministério Público proíbe tal atividade” ou “MP veda comercialização de tal produto”.
Ora, vedações e proibições decorrem ou do exercício do poder de polícia pela
Administração Pública ou dos efeitos de uma decisão judicial. Não são atos do Ministério
Público que ensejam, per se, a paralisação, v.g., de uma atividade nociva ao meio ambiente. A
atuação proativa ministerial muitas vezes pode, sim, apresentar tais resultados se chancelada
pelo Judiciário ou acatada pela Administração.
Some-se a isto o fato de que nem sempre o posicionamento do Ministério Público
representará fidedignamente o interesse da sociedade. Há casos, inclusive, em que há
interesses sociais contrapostos, não havendo falar em um único bem comum, cabendo ao
administrador ponderar e apresentar as soluções mais adequadas.
Situação emblemática e que pode ilustrar muito bem tal situação é o caso das sacolas
plásticas, exaustivamente veiculado na imprensa, em que os interesses consumeristas estão
em contraposição aos ambientais. Em alguns estados, o Ministério Público recomendou a
proibição das sacolas plásticas, ao argumento de que eram nocivas ao meio ambiente. Já em
São Paulo, onde haviam sido banidas voluntariamente pelos supermercados, houve
recomendação ministerial para que voltassem a ser fornecidas, em razão do prejuízo que
estava sendo impingido aos consumidores15
.
Assim, a ausência de um único interesse legítimo a ser tutelado torna necessária a
tomada de uma decisão pelos órgãos democraticamente incumbidos de fazê-lo, a fim de
conciliar bens jurídicos contrapostos.
É de se ponderar, contudo, que a ineficiência estatal acaba abrindo espaço para que o
Ministério Público, enquanto curador dos interesses indisponíveis da sociedade, assuma papel
mais proativo, exercendo função negligenciada pela Administração.
Embora tal atuação, muitas vezes, traga resultados benéficos à sociedade, não se pode
admiti-la como regra em um Estado Democrático de Direito. Não se pode substituir instâncias
deliberativas democráticas por decisões unilaterais de um órgão, ainda que seja este detentor
da nobre função de zelar pelo interesse público.
15
O que muitos veículos da imprensa, aliás, noticiaram como uma determinação do Ministério Público.
A mudança de tal quadro, que resulta em uma cada vez mais intensa fragilização da
democracia brasileira, passa, inicialmente, por uma valorização, pelo Poder Público, de suas
instituições ligadas à administração ambiental.
Fortalecidas, tais instituições podem reunir condições de agir de sorte a evitar o
surgimento de crises jurídicas envolvendo o meio ambiente, e, ainda, de identificar, dentre as
recomendações do Ministério Público, quais são efetivamente as que merecem ser acatadas,
resultando na modificação de uma atuação administrativa.
Contudo, esta não é a realidade que se observa no Brasil, conforme aponta Polippo
(2008, p. 168):
As tentativas de fortalecimento institucional do sistema têm esbarrado na nas
deficiências crônicas da administração pública nacional e estadual, gradualmente
esvaziadas em termos de pessoal técnico, salários e recursos, com a reforma do
Estado, que vem sendo colocada em prática sem a introdução de uma nova proposta
de regulação pública para a questão ambiental e mantendo precariamente as estruturas
existentes.
A falta de estrutura e de informações adequadas e concatenadas entre si faz com que
os atos da administração ambiental sejam mais motivados pelo temor causado pela coerção
das recomendações ministeriais do que, propriamente, pelo balizamento que lhe é exigido
entre os diversos valores jurídico-sociais que lhe são acometidos.
Tal situação é mais acentuada nos Municípios, que receberam da Constituição
Federal16
, competência administrativa em matéria ambiental, mas que, de forma geral, não a
vem exercendo adequadamente.
Antes da regulamentação do art. 23 da vigente Constituição pela Lei Complementar n.
140/11, já alertava Siqueira (2006, p. 68):
Com efeito, boa parte dos Municípios brasileiros não possui, ainda, condições
materiais para o exercício precípuo da competência administrativa em matéria
ambiental.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, do total de
5.560 municípios brasileiros, somente 3.769 possuem alguma estrutura na área de
meio ambiente. Destes, apenas 326 possuem em sua organização administrativa uma
secretaria exclusivamente de meio ambiente. (IBGE – Pesquisa de informações
16 Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (...)VI - proteger
o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas; VII - preservar as florestas, a fauna e a flora;
básicas municipais – Perfil dos Municípios brasileiros – Suplemento de meio
ambiente – Maio de 2005).
Segundo a mesma fonte de pesquisa, apenas 1.895 municípios possuem conselhos
municipais de meio ambiente. Destes, apenas 1.451 realizaram alguma reunião nos
últimos 12(doze) meses.
Assim, sem embargo da interpretação literal da norma, não se pode, em face da
importância do tema, desconsiderar simplesmente a atual precária situação dos
Municípios brasileiros, em um sistema centralizador de captação de recursos.
Convém observar, contudo, que a escassez de investimentos públicos em gestão
ambiental no Brasil, ao menos no patamar que se consideraria razoável, apenas reflete,
lamentavelmente, a verdadeira falta de preocupação social com as questões relativas ao meio
ambiente.
Embora se tenha evoluído muito nas últimas décadas, com o surgimento de entidades
da sociedade civil ligadas à proteção ambiental, é fato que a grande maioria da população,
sobretudo em países que ainda apresentam deficiências na área social e econômica, ainda não
tem o meio ambiente equilibrado como prioridade.
É fundamental, portanto, a atuação das instituições, estatais ou não, no sentido de
alertar os segmentos menos instruídos da sociedade para a importância da proteção ao meio
ambiente para a sua própria sobrevida. Tal conscientização talvez possa vir a refletir-se,
futuramente, em uma maior valorização estatal das estruturas governamentais ligadas à
administração ambiental.
Por outro lado, há ainda de se superar a timidez das demais instituições legitimadas à
tutela do meio ambiente, sobretudo Defensoria Pública e Advocacia de Estado, no que
respeita à efetiva atuação em prol do equilíbrio ambiental.
Milaré (2009, p. 1155) afirma que o Ministério Público tem sido o principal
interlocutor da sociedade no que respeita às questões envolvendo o meio ambiente.
Sem embargo da validade de tal afirmação, é de se observar, contudo, que, em muitos
casos, tal interlocução haveria de ser feita pela Defensoria Pública, que é a função essencial à
justiça presente nas camadas sociais menos favorecidas, e que tem por atribuição, além da
representação judicial dos desassistidos, também o exercício de um papel informador junto a
tais segmentos sociais.
Não é demais lembrar que muitos dos problemas ambientais, provavelmente os mais
graves, são sentidos mais diretamente pelas classes menos favorecidas, normalmente
estabelecidas em aglomerados urbanos carentes de serviços básicos como saneamento, saúde
etc. e mais expostos aos efeitos da poluição, por se situarem em zonas periféricas, próximas
aos estabelecimentos industriais.
Noutro giro, à Advocacia de Estado, de um modo geral, tem-se relegado, na prática, a
função de exercer o patrocínio judicial dos interesses governamentais nas ações civis públicas
ajuizadas em desfavor do Poder Público, quando muitas demandas poderiam ser evitadas se
houvesse um efetivo desenvolvimento de sua atividade consultiva na área ambiental.
Outros casos há, ainda, em que a atuação do Estado em juízo haveria de se realizar em
conjunto com o Ministério Público, como, aliás, vem ocorrendo aos poucos em Minas Gerais,
como noticia Siqueira (2011, p. 213), mas que, lamentavelmente, ainda não é a regra.
Identificado com precisão quem seja o efetivo causador do dano ambiental, é muito
mais proveitosa à tutela do meio ambiente que as instituições trabalhem em conjunto, e não
em campos opostos, haja vista ser o equilíbrio ambiental um bem jurídico de que todos são
titulares.
Enfim, superados os óbices aqui apontados, seguramente chegar-se-á a um sistema
verdadeiramente democrático de tutela administrativa e judicial do meio ambiente.
5 CONCLUSÕES
O Ministério Público recebeu, da Constituição de 1988, tratamento diferenciado em
relação à tutela jurisdicional do meio ambiente, em razão de seu amadurecimento
institucional, e vem exercendo importante papel nesse sentido, utilizando mecanismos
processuais (ação civil pública) e extraprocessuais (inquérito civil, compromisso de
ajustamento de conduta e recomendações) de tutela de interesses transindividuais.
O exercício de tais instrumentos, contudo, não pode transmutar o Ministério Público
em órgão de gestão do meio ambiente, uma vez que tal função foi acometida pela
Constituição à Administração Pública, a quem compete sopesar valores ambientais, sociais e
econômicos para a elaboração e execução das políticas públicas.
A incompleta estruturação da administração ambiental no Brasil tem conduzido à
inação estatal no que respeita à gestão do meio ambiente, o que tem exigido do Ministério
Público uma atuação mais proativa, que o torna, aos olhos da sociedade, o verdadeiro gestor
de facto desse bem jurídico.
A mudança de tal quadro passa, em primeiro lugar, pela realização de investimentos
adequados na estruturação das instituições estatais ligadas à proteção do meio ambiente, o que
depende de uma maior conscientização coletiva acerca da sua importância, uma vez que as
prioridades governamentais, apesar de algumas distorções, apenas refletem, em maior ou
menor grau, os anseios sociais.
É necessário, ainda, fortalecer a atuação das demais funções essenciais à justiça, de
sorte a viabilizar a sua atuação, judicial e extrajudicial, em defesa do meio ambiente, dentro
de suas atribuições institucionais, o que contribuirá para o alcance de uma proteção ambiental
democrática.
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O ALCANCE DA EFETIVIDADE DO DIREITO SOCIOAMBIENTAL MEDIANTE A
ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO
Mariana Almeida Passos de Freitas
Servidora pública na Justiça Federal em Curitiba – Vara Ambiental. Mestre em Direito
Econômico e Social pela PUCPR e doutoranda pela mesma Universidade.
Resumo: O presente artigo busca realizar uma análise acerca da possibilidade de alcance da
efetividade do direito socioambiental através da atuação do Poder Judiciário. De fato, o direito
ambiental evoluiu para um novo ramo correspondente ao direito socioambiental, direito
fundamental e definitivamente consolidado com a Constituição Federal de 1988. Apesar da
vasta legislação, observa-se que os problemas socioambientais ainda persistem, carecendo a
matéria da necessária efetividade, sendo perfeitamente aplicável a Teoria do Garantismo
(Luigi Ferrajoli). Estudando o direito socioambiental a partir de uma análise sistêmica,
tratando-o como um sistema intermediário entre o aberto e o fechado, observa-se ser o Poder
Judiciário importante forma de ingresso de elementos em referido sistema, possibilitando a
renovação do direito socioambiental. Assim, diante do fenômeno da judicialização, com o
grande poder nas mãos do Judiciário, tratando-se de agente de mudanças, possível
concretizador de direitos fundamentais, verifica-se que a referida efetividade do direito
socioambiental pode ser alcançada por meio da atuação do Poder Judiciário, desde que
munido de mecanismos mais efetivos.
Palavras-chave: Direito socioambiental; efetividade; garantismo; Poder Judiciário;
judicialização.
THE SCOPE OF EFFECTIVENESS OF ENVIRONMENTAL LAW THROUGH THE
PERFORMANCE OF THE JUDICIARY
Abstract: this article seeks to analyze the possibility of the Social-environmental Law reach
effectiveness through the Judicial Power. In fact, Environmental Law has evolved to a new
branch corresponding to the Social-environmental Law, a fundamental right established by
the Federal Constitution of 1988. Despite extensive legislation, socio-environmental problems
still persist, lacking the necessary effectiveness in the matter, being perfectly applicable the
“Teoria do Garantismo (Luigi Ferrajoli). By studying the Socio-environmental Law from a
systemic analysis and treating it as an intermediate system between the open and the closed
one, it is possible to observe that the Judicial Power is an important way for the introduction
of elements in such system, enabling the renewal of the Socio-environmental Law. Thus,
regarding the phenomenon of judicialization, with a great power in the hands of the Judiciary
as an agent of change, responsible for enforcing the fundamental rights, it is observed that the
effectiveness of the Socio-environmental Law can be achieved through the Judicial Power
action, provided it is supplied with more effective mechanisms. Key-words: Socio-environmental Law; effectiveness; “Garantismo “; judicial power; judicialization.
Sumário: 1. Introdução – 2. Do direito ambiental ao socioambiental – 3. Direito
socioambiental como direito difuso – 4. Direito socioambiental como direito fundamental – 5.
Análise jurídica sobre o direito socioambiental no Brasil, na atualidade – 6. A busca pela
efetividade – 7. Teoria garantista de Luigi Ferrajoli – 8. O direito socioambiental visto como
sistema - 9. A atuação do Poder Judiciário em matéria socioambiental - 10. O alcance da
efetividade do direito socioambiental através da atuação do Poder Judiciário – 11. Conclusão
1. Introdução
Com efeito, atualmente existe uma preocupação internacional com a eficiência da
Justiça e da sua atuação especificamente nas questões socioambientais. Neste ainda novo e
importante ramo do Direito, essencial mesmo à sobrevivência do homem na Terra,
considerado como direito fundamental, as providências vão desde a celebração de tratados até
posições mais radicais, que pregam a impossibilidade de desenvolvimento. O direito
socioambiental está na pauta de discussões e certamente será objeto de debates acirrados nos
próximos anos, na medida em que os recursos naturais se tornem mais escassos.
Desde que promulgada a Constituição Federal de 1988, referido ramo do direito
fortaleceu-se de forma definitiva, a doutrina desenvolveu-se e a legislação infraconstitucional
tornou-se uma das mais evoluídas no mundo.
Nada obstante, ainda é possível notar que a almejada efetividade não foi alcançada.
O descumprimento da legislação por parte da população ainda é enorme; a atuação do Poder
Executivo, através dos órgãos ambientais componentes do SISNAMA, ainda é deficitária; o
Poder Legislativo vem apresentando projetos de lei visando a modificação de normas, em
detrimento do meio ambiente, como é o caso do Código Florestal; os direitos territoriais de
indígenas e quilombolas ainda são de difícil assimilação.
Dentro deste panorama, evidencia-se a cobrança por parte da população, do Poder
Judiciário, para prolação de boas decisões, com efetividade e sem morosidade, em relação a
questões socioambientais. Contudo, é possível verificar que em grande parte das decisões
judiciais a questão econômica ainda vem predominando sobre a socioambiental, havendo
ainda dificuldades a serem enfrentadas pelos juízes, principalmente em razão do caráter difuso
deste direito e das peculiaridades a ele inerentes.
De qualquer forma, levando-se em consideração o crescimento do acesso à justiça
socioambiental, o fenômeno da judicialização da política (com possibilidade do Judiciário
revogar leis inconstitucionais e declarar nulos atos administrativos), aliado ao fato de que
atualmente as causas de matéria socioambiental mais complexas e relevantes acabam sendo
decididas pelo Poder Judiciário, é possível pensar sobre a possibilidade de alcance da
efetividade do direito socioambiental através da atuação do Poder Judiciário.
Destarte, o que se pretende com o presente estudo é demonstrar referida possibilidade,
aliando o estudo do direito socioambiental com o do Poder Judiciário, e como este pode tornar
finalmente efetivo o direito em debate.
Para isso, será feito um estudo do direito socioambiental como direito fundamental,
mas analisando-o não de forma isolada, mas como um sistema, devido às peculiaridades e ele
inerentes e às interações com o entorno. Por sua vez, a análise do direito socioambiental em
nosso país será feita à luz da teoria garantista, de Luigi Ferrajoli, no ponto em que indica o
garantismo como uma teoria jurídica da validade e da efetividade, demonstrando a distância
entre a norma e sua aplicabilidade nos casos concretos (efetividade). Na sequência, será
abordada a atual situação do direito socioambiental junto ao Poder Judiciário, a partir do
fenômeno da judicialização, indicando as dificuldades existentes, necessidade de mudanças e
como a efetividade deste ramo do direito pode ser alcançada.
2. Do direito ambiental ao socioambiental
De fato, a atual e importante situação em que se encontra o direito socioambiental no
Brasil não foi alcançada de forma rápida. Contrariamente, muitas décadas se passaram até que
este ramo do direito fosse relativamente reconhecido.
De fato, o socioambientalismo no Brasil nasce da união entre os movimentos sociais e
o movimento ambientalista propriamente dito. De fato, este movimento específico, que
posteriormente transformou-se em ramo do direito, surgiu a partir do momento que se
vislumbrou a impossibilidade, ao menos em um país periférico como o nosso, da preocupação
estritamente preservacionista do meio ambiente. Ou seja, em um país com tantos problemas
sociais, não é possível a análise e estudo de determinadas questões com olhos postos apenas
da situação ambiental propriamente dita.
Cumpre destacar que os países pobres encontram-se geralmente localizados em
ecossistemas ricos, frágeis e complexos em zonas tropicais (como o caso da Amazônia, em
nosso país), sendo que a proteção dos recursos e também seu aproveitamento com finalidade
desenvolvimentista estão ligados à transformação da ordem econômica internacional, o que
demonstra uma complexidade muito maior em relação àqueles países.
Assim, o socioambientalismo nasceu em meados da década de 80, identificando-se
com o processo de redemocratização do país, pós regime militar e com o advento da nova
Constituição Federal de 1988. Foi neste período que se iniciaram as alianças entre o
movimento social e o ambientalista, levando ao surgimento da Aliança dos Povos da Floresta,
considerada um dos marcos do socioambientalismo.
Mas, na verdade, o documento que realmente impulsionou e reconheceu o
socioambientalismo foi a Constituição Federal de 1988. Além do artigo dedicado
exclusivamente ao meio ambiente (art. 225), reconheceu os direitos indígenas, nos arts. 231 e
232, mais especificamente: organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, além
dos direitos territoriais sobre terras tradicionalmente ocupadas; e os direitos dos quilombolas,
de forma a garantir também direitos territoriais (art. 68 do ADCT). Não fosse isso, dedica
outro capítulo à proteção da cultura (arts. 215 e 216), além de garantir a função social da
propriedade.
Assim, conforme destaca Juliana Santilli e será visto de forma mais aprofundada
adiante:
O socioambientalismo nasceu, portanto, baseado no pressuposto de que as políticas públicas ambientais só teriam eficácia social e sustentabilidade política se incluíssem as comunidades locais e promovessem uma repartição socialmente justa e equitativa dos benefícios derivados da exploração dos recursos naturais1.
3. Direito socioambiental como direito difuso
1 SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e novos direitos. São Paulo: Peirópolis, 2005, p. 35.
No Brasil, o que se verifica na nossa Constituição atual é a existência de quatro
matérias básicas que, nada obstante estejam fisicamente separadas, encontram-se em estreita
ligação, deixando o texto constitucional harmônico, prevendo a proteção de direitos coletivos.
E referidas questões são: a proteção ambiental, valores étnicos, preservação do patrimônio
cultural e função social da propriedade Como destaca Carlos Frederico Marés de Souza Filho,
a Constituição abre portas para um novo direito fundado no pluralismo e multietnicidade2.
De fato, o meio ambiente não se restringe a bens naturais. Em análise sistêmica e
harmônica da Constituição de 1988 é simples verificar que não é só a natureza que importa
juridicamente falando, mas também o direito à cultura, além dos bens artificiais, que se
encontram previstos e diretamente relacionados com a questão ambiental, como algo único.
Na verdade, já é praticamente uma unanimidade na doutrina brasileira a concepção
holística de meio ambiente, na qual estão compreendidas as dimensões relativas ao meio
ambiente natural, ao meio ambiente cultural e ao meio ambiente artificial”3.
Na mesma esteira do já acima abordado, note-se que para o direito socioambiental o
que importa é o caráter coletivo dos direitos e não sua realização individual, e não tem como
ser diferente, cumprindo destacar que como direito coletivo deve-se entender, também por
direitos que não são economicamente valoráveis e que não podem ser individualmente
apropriados.
Dessa forma, diante do quadro exposto, verifica-se que o antigo sistema jurídico,
privado e individual, viu-se diante de direitos coletivos, direitos de povos em relação a outros
povos, os quais foram reconhecidos com o direito à autodeterminação dos povos, ao
autogoverno, ao território e aos recursos naturais, além do direito à própria cultura, língua,
religião, costumes e organização normativa, como visto acima. Dessa forma, nossa cultura
jurídica constitucional construiu um sistema de garantias de direitos individuais relacionados
aos bens físicos e patrimoniais e, nada obstante referidos direitos individuais constituam-se
como um óbice à efetividade de direitos difusos, eles permanecem garantidos no ordenamento
jurídico estatal, devendo ser respeitados. E ai se encontra a dificuldade.
Note-se que os chamados novos direitos estão diretamente relacionados justamente
com os novos sujeitos, acima elencados. O próprio art. 225 da Constituição Federal dispõe
que “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado” (grifou-se), isto é,
trata-se de real garantia a todos, independentemente do disposto no caput do art. 5°, que se 2 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Introdução ao direito socioambiental. In: LIMA, André (org.). O direito para o Brasil socioambiental. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 23. 3 MARCHESAN, Ana Maria Moreira. A tutela do patrimônio cultural sob o enfoque do direito ambiental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 84.
refere a brasileiros e estrangeiros residentes no país. Ou seja, realmente todas as pessoas têm o
direito previsto, não se levando em consideração fronteiras ou nacionalidades.
Destarte, todos os aspectos supra referidos (proteção ambiental, direito à cultura,
direitos étnicos e função social da propriedade) devem ser tratados como uma unidade,
harmônica, em conjunto, e nunca de forma separada e individualizada. E é nesta união e
harmonização que se configura o direito socioambiental.
Resta evidente que no direito socioambiental a configuração individualizada do titular
desaparece, ou seja, independentemente de qualquer situação todos têm direito a um meio
ambiente ecologicamente equilibrado, e não somente aqueles que têm risco de serem afetados
por um desequilíbrio ambiental. Ademais, todos também possuem direito à preservação dos
bens culturais, mesmo que não se importem ou não gostem da cultura local4.
Destarte, são socioambientais quaisquer bens que sejam necessários à manutenção da
biodiversidade e sociodiversidade, ou que representam ou fazem referência a culturas e
conhecimento coletivo. Além disso – e aqui há especial importância para o presente trabalho –
podem ser reconhecidos por sentença judicial, o que demonstra o grande poder em mãos dos
magistrados5.
Assim, o direito socioambiental forma-se por um conjunto de normas jurídicas
destinadas à proteção da sócio e biodiversidade, de forma a promover o direito
ecologicamente equilibrado, sem se olvidar dos grupos sociais e proteção da cultura.
O que o termo socioambiental busca é compatibilizar as atividades humanas em geral
(principalmente o crescimento econômico) com a manutenção das bases naturais, com
conservação do ecossistema6.
É importante também notar que diante desta nova configuração do direito ambiental
como socioambiental, diversos aspectos foram inovados, sendo um deles o fato de que estão
sendo incorporados a estes novos direitos ambientais e culturais demandas de autogestão das
condições de produção e estilo de vida dos povos7. Na verdade, aqui o que se vê é uma
reapropriação da natureza com finalidade de sobrevivência, tendo em vista, principalmente, o
fato de que diversas comunidades, principalmente a indígena, dependem dela para viver. Ou
seja, possuem uma relação direta, como uma simbiose, diferente daquela que a sociedade em
geral possui. A identidade étnica e a autonomia cultural de diversos povos encontra-se
4 SOUZA FILHO. O renascer dos povos indígenas para o direito. Curitiba: Juruá, 1998, p. 177. 5 MARÉS, Introdução, p. 39. 6 VEIGA, José Eli da. A emergência socioambiental. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2007, 0. 91. 7 LEFF, Saber ambiental. 7 ed. Tradução: Lúcia Mathilde Endlich Orth. Petrópolis: Editora Vozes, 2009, p. 78.
baseada na natureza, o que vem a demonstrar ainda mais a relevância do direito
socioambiental, até porque, como destaca Enrique Leff, os novos direitos indígenas e
ambientais vêm questionando e transformando a norma estabelecida pelo sistema de
regulamentação jurídica da sociedade, para abrir caminho a novas demandas sociais e novas
utopias”8. Assim, com a abertura de novas demandas sociais, é certo que novas demandas
judiciais inevitavelmente também surgirão.
De fato, a própria ecologia não se relaciona somente com a natureza, mas também com
a sociedade e a cultura, formando a ecologia humana ou social. Ou seja, o ambiente possui
múltiplos ecossistemas e correlações que não têm a ver somente com a natureza. Segundo
Maria Ester Mena Barreto Camino, baseada em Leonardo Boff, e o que é a ecologia senão
‘relação, interação e dialogação de todas as coisas existentes (viventes ou não) entre si e com
tudo o que existe, real ou potencial?’ (...) ‘Numa visão ecológica, tudo o que existe, coexiste
(...) e subsiste através de uma teia infinita de relações omnicompreensivas. Nada existe fora
da relação, tudo se relaciona com tudo em todos os pontos’”9.
Diante do exposto, observa-se que os vetores que dão suporte ao movimento
ambientalista brasileiro são o multiculturalismo, autodeterminação, jusdiversidade, direitos
coletivos de populações tradicionais e proteção ambiental10.
4. Direito socioambiental como direito fundamental
É o direito socioambiental um direito fundamental? No presente trabalho, entende-se
que sim, conforme será visto deste ponto em diante, partindo-se da questão referente ao
direito ambiental propriamente dito.
No plano internacional, observa-se que o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado não se encontra previsto em tratados referentes a direitos humanos. É certo que
alguns instrumentos aproximam-se disto, como a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, que prevê em seu art. 3o que toda pessoa tem direito à vida, e no seu art. 25, que
tem direito à saúde e bem-estar. Ou seja, não há nada explícito, mas a aproximação com o
problema ambiental é evidente.
8 LEFF, op. cit., p. 78. 9 CAMINO, Maria Ester Mena Barreto. Jurisgaia: a ética jurídico-ambiental. In: FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de (org.). Temas de direito ambiental e urbanístico – cf. MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 2 ed. São Paulo: RT, 2001, p. 71-72. 10 SILVEIRA, Edson Damas da. Meio ambiente, terras indígenas e defesa nacional. Curitiba: Juruá, 2010, p. 49.
No plano interno, Sabe-se que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
previsto no art. 225 da Constituição Federal, é considerado como um direito humano
fundamental, apesar de não se encontrar elencado no art. 5° da Constituição Federal,
constituindo-se em direito implícito. Na verdade, o próprio art. 5°, em seu parágrafo 2°, prevê
que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do
regime e dos princípios por ela adotada, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte”.
Deste modo, o direito expresso no art. 225 é equiparado a direito fundamental, até
mesmo pelo fato de – através de uma leitura sistemática – garantir o direito fundamental à
vida e o princípio da dignidade humana11. Portanto, a compreensão material do direito
fundamental que invoca a ideia de direito humano, inato à concepção do homem e correlata à
sua capacidade de ação, invoca o direito ao meio ambiente como inerente ao rol dos direitos
fundamentais12.
Cristiane Derani assevera que:
Portanto, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito fundamental, porque é uma prerrogativa individual prevista constitucionalmente, cuja realização envolve uma série de atividades públicas e privadas, produzindo não só a sua consolidação no mundo da vida como trazendo, em decorrência disto, uma melhora das condições de desenvolvimento das potencialidades individuais, bem como uma ordem social livre13.
O homem necessita de um meio ambiente ecologicamente equilibrado para viver com
dignidade. Patrícia Bianchi menciona ser impossível imaginar uma vida digna em lugares
onde existem péssimas condições ambientais e sanitárias como, por exemplo, os lugares onde
esgotos domésticos e industriais correm a céu aberto e, muitas vezes, as águas contaminadas
são reutilizadas para o consumo humano e animal”14.
11 DAIBERT, Arlindo. Notas sobre proteção ambiental e o Direito de propriedade no Direito Brasileiro. In: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson. (Org.) O Direito e o tempo: estudos em homenagem ao Professor Ricardo Pereira Lira. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 580-581. 12 KASSMAYER, Karin. Cidades, riscos e conflitos socioambientais urbanos: desafios à regulamentação juridical na perspectiva da justice socioambiental. Tese de doutorado, Universidade Federal do Paraná. Curitiba: 2009, p. 97. 13 DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 207. 14 BIANCHI, Patrícia. Eficácia das normas ambientais. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 234.
Aqui, cumpre notar que, conforme atesta Antonio Perez Luño, já que o Estado de
Direito exige, para que seja tal, garantir os direitos fundamentais, enquanto estes exigem e
implicam, para a sua realização, o Estado de Direito15.
Conforme destaca Ney de Barros Bello Filho:
o direito fundamental ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, propriamente dito, é um direito que se realiza de diversas formas, e pode ser demonstrado a partir do direito às políticas públicas do Estado e também desde o direito à inação do Estado, em respeito ao direito de viver em uma sociedade ambientalmente equilibrada. Como expressão de um direito fundamental completo, o direito fundamental ao ambiente sadio e ecologicamente equilibrado se expressa como uma realização da igualdade16.
Por fim, cumpre destacar, como afirma Ingo Sarlet, que as normas de direito
fundamental, como a referente ao meio ambiente, são de aplicabilidade imediata. Assim, é
necessário estender a aplicabilidade do art. 5o, § 1o, para todo direito ou garantia que esteja na
Constituição, ou constitucionalizado17.
5. Análise jurídica sobre o direito socioambiental no Brasil, na atualidade
É fato que os termos socioambiental e desenvolvimento sustentável já ganharam uma
importante colocação na sociedade atual, inclusive no âmbito jurídico. Contudo, os resultados
efetivamente alcançados após toda a evolução legislativa e jurisprudencial até então ocorrida
são bastante tímidos. Na verdade, o que ainda existe é uma grande distância entre a questão
em tese e a prática.
Tratando especificamente da questão ambiental na atualidade, Plauto Faraco de
Azevedo assevera que o desastre ambiental mundial se expande mais a cada dia que passa e
que na falta de medidas decisivas capazes de determinar uma mudança de rumo, poderemos
chegar ao limite ecológico inexorável, em que a ação do novos taumaturgos da tecnociência
revelar-se-á impotente, apesar de sua incomensurável pretensão. Alertas não faltam diante das
15 LUÑO, Antonio Perez. Los derechos fundamental. 7 ed., Madrid: Tecnos, 1998, p. 47. 16 MELLO FILHO, Ney de Barros. Pressupostos sociológicos e dogmáticos da fundamentalidade do direito ao ambiente sadio e ecologicamente equilibrado. Tese de doutorado. Florianópolis, 2006, UFSC, p. 356. 17 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 86.
constantes afrontas à natureza e do consumismo desbragado, embora não atinjam ‘a
inconsciência da tecnociência’, isto é, de seus mentores18.
E prossegue apontando que a situação atual do ambiente demonstra a insuficiência da
ética vigente, antropocêntrica, individualista, incapaz de perceber a íntima ligação entre todos
os organismos vivos, em interconexão entre eles e com o meio inorgânico, cujos recursos são
exauríveis, razão por que sua utilização tem de ser prudente e orientada por uma ética da
solidariedade, em que sobressaia a responsabilidade transgeracional. Só assim poder-se-á
preservar e assegurar a vida a presente geração e àquelas que venham a sucedê-la19.
Especificamente acerca da questão socioambiental, Virgílio Viana aponta como um
dos motivos de mencionada situação de falta de efetividade, a distância entre os tomadores de
decisão em relação à realidade. Destaca que parte significativa dos ecossistemas naturais
remanescentes do Brasil encontra-se em áreas habitadas por populações tradicionais20.
Salienta o autor que o processo convencional de tomada de decisões normalmente não
envolve as populações tradicionais de forma efetiva, mas apenas para constar. As decisões
sobre políticas e estratégias de conservação de florestas não respeitam e nem incorporam as
populações tradicionais.
Virgílio Viana, então, defende que o termo desenvolvimento sustentável é equivocado,
a partir do momento que é lido como des-envolvimento, ou seja, o não envolvimento, sendo
que o que deveria ocorrer é justamente o envolvimento, principalmente entre a população
tradicional e nossa sociedade.
O envolvimento sustentável tem dois componentes básicos. Primeiro, as ações
voltadas para a transformação da realidade devem fortalecer o envolvimento das relações das
sociedades com os ecossistemas locais. Segundo, os processos de tomada de decisão devem
buscar a participação ativa das populações relacionadas com os diferentes ecossistemas,
especialmente as populações diretamente envolvidas com a sua gestão.
O envolvimento sustentável deve buscar reverter o distanciamento do homem em
relação à natureza. Ao se envolver as sociedades com os ecossistemas locais, são fortalecidos
os vínculos econômicos, sociais, espirituais, culturais e ecológicos. O envolvimento
sustentável coloca a necessidade de uma profunda mudança na política de conservação das
18 AZEVEDO, Plauto Faraco de. Ecocivilização: ambiente e direito no limiar da vida. 2 ed. São Paulo: RT, 2008, p. 90 19 AZEVEDO, op. cit., p. 94. 20 Trabalho apresentado no Seminário Alternativas de Manejo Sustentável dos Recursos Naturais no Vale do Ribeira, realizado no período de 15 a 19/6/99, na Ilha Comprida.
florestas brasileiras.
De fato, mesmo tendo a situação atual do direito socioambiental evoluído bastante em
comparação a alguns anos atrás não se pode deixar de notar que, nas palavras de Marés:
A mesquinhez, intolerância e brutalidade do ordenamento montado em torno do estado nacional sequer permitem reconhecer que no território por ele delimitado existem de fato outros povos com costumes, tradições, crenças, valores, modos de vida e sistemas de resoluções de conflitos bem diferentes daquele imposto pela classe que tomou conta do controle político central21.
Nas palavras de referido autor, as populações tradicionais brasileiras constituem-se em
“minorias invisíveis”. Atualmente grande parte da população tem conhecimento de sua
existência, porém, as tratam como algo distante, até inimaginável, ou mesmo como pessoas
selvagens.
6. A busca pela efetividade
Diante do quadro acima elaborado, acerca da atual situação do direito socioambiental,
importante deixar claro o que vem a ser a pretensa efetividade que se pretende que o direito
socioambiental alcance.
Cumpre, então, destacar desde já que efetividade e eficácia são conceitos diversos.
Para tanto, será neste ponto utilizada a doutrina de Luís Roberto Barroso, de que a eficácia de
um ato jurídico ou norma constitui-se na sua aptidão para produzir efeitos, para atingir a
finalidade para a qual foi criado, indicando a qualidade de produzir seus efeitos típicos22. A
efetividade, por sua vez, chamada também por alguns de eficácia social (a jurídica é a acima
já referida), significa a verdadeira realização da norma no mundo dos fatos, é o desempenho
de sua função social, “a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo
e o ser da realidade social”23.
Ressalte-se que, mesmo que se trate de uma regra excelente, de nada adianta se não
possui a esperada efetividade, isto é, a real aplicação com êxito no mundo dos fatos – e o
mesmo entendimento deve ser aplicado para os dispositivos que digam respeito a direitos
21 SILVEIRA, op. cit., p. 30. 22 BARROSO, Luis Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 5 ed. Rio de Janeiro:Renovar, 2000, p. 83. 23 BARROSO, O direito constitucional …, p. 85.
fundamentais. Conforme destaca Cristiane Derani, já partindo do entendimento de que as
normas constitucionais de direitos fundamentais possuem eficácia imediata,
A facticidade das normas sobre direitos fundamentais se revela em atuações políticas, capazes de assegurar o exercício das liberdades expressas naqueles dispositivos, sobretudo em sua dimensão social. Assim, a efetividade dos direitos fundamentais torna-se questão de operação sistemática de uma política de direitos fundamentais24.
Com efeito, apesar da previsão constitucional constante do art. 225, que determina
expressamente que todos possuem direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado,
”bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras
gerações,”, além dos demais dispositivos constantes de referida carta e já acima citados
(pertinentes ao direito à cultura, questões étnicas e função social da propriedade), sem olvidar
da farta e abrangente legislação ambiental infraconstitucional, o fato é que a efetividade do
direito socioambiental ainda está longe de ser atingida, devendo buscar-se a razão para tanto,
para que se tente solucioná-la.
É verdade que apesar de algumas falhas e lacunas, a legislação socioambiental
brasileira é de boa qualidade. Trata-se de legislação abrangente, que procura abarcar o maior
número possível de assuntos em voga. É certo também que dificuldades existem, como as
inúmeras normas administrativas, que acabam complementando leis ou até falando além do
que nelas previsto. De fato, somos surpreendidos a cada momento com uma nova resolução,
instrução normativa, portaria, etc, o que dificulta bastante a aplicação efetiva do direito
socioambiental.
Pierpaolo Bottini, ao falar sobre a atual sociedade de riscos e a atual legislação
ambiental, aponta que “Há uma dificuldade de engessar na lei todas as características de uma
realidade heterogênea e dinâmica, e determinar riscos sobre os quais não existe consenso
social”25. Continua ressaltando que o próprio legislador escolhe pela imprecisão dos termos
utilizados, para que a lei não se torne obsoleta e também para que haja consenso em sua
aprovação. Aqui, o legislador delega para outra autoridade a complementação da lei e referida
complementação, inclusive no que diz respeito aos riscos, será feita por uma autoridade
executiva e também pela judiciária, esta geralmente em última instância. 24 DERANI, op. cit., p. 215. 25 BOTTINI, Pierpaolo. Reforma do Poder Judiciário e meio ambiente. In: JÚNIOR, Jarbas Soares; MIRANDA, Marcos Paulo de Souza; e PITOMBEIRA, Sheila Cavalcante (coord.). Efetividade da tutela ambiental. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2008, p. 157.
Na verdade, nada obstante a legislação ambiental brasileira possuir uma considerável
qualidade, os fatos concretos nos mostram que o meio ambiente continua sendo desrespeitado,
possuindo ainda grande parte da sociedade concepções totalmente ultrapassadas acerca da
relação homem e natureza – e certamente ainda mais ultrapassada quando envolve questões
étnicas, culturais e de propriedade. Ademais, referido panorama pode ser facilmente
vislumbrado ao analisarmos as notícia diárias na imprensa, informando o acontecimento de
situações tais como desmates ilegais, tráfico de animais, extrações ilegais de minérios, dentre
outras. Conforme afirma Plauto Faraco de Azevedo:
Examinando-se o conjunto da legislação ambiental, anterior e posterior à Constituição de 1988, constata-se, de um lado, a pertinência de suas linhas maiores, e, de outro, o seu número estarrecedor. Mas a impressão maior é de sua ineficácia, uma vez que suas normas são verdadeiramente muito pouco aplicadas26.
Saindo do Poder Legislativo e passando para o Poder Executivo, vislumbra-se que a
situação não é tão diferente. Como destaca novamente Pierpaolo Bottini, é recorrente a crítica
que todos nós fazemos à dificuldade do Poder Executivo, seja Federal, seja Estadual, seja
Municipal, de fiscalizar a lesão ao meio ambiente, de fiscalizar os empreendimentos, de
estabelecer parâmetros, para que aquelas atividades respeitem a Legislação27
Mesmo que exista boa intenção para tanto, o fato é que os órgãos ambientais do Poder
Executivo possuem escassos recursos para efetuar fiscalizações efetivas, recursos estes tanto
financeiros, quanto de pessoal. E, nada obstante possuam poder de polícia, há diversos
problemas inerentes à atividade, como a dificuldade de apreensões (de veículos ou produtos
florestais), por falta de local onde armazená-los, e também de execução de multas, o que
acaba sendo feito através de execuções fiscais que nunca têm fim. Ou seja, por mais que
sejam dotados de poder de polícia, os órgãos ambientais possuem uma dificuldade grande na
efetivação da legislação ambiental.
Destarte, o que se verifica na realidade atual, é que por mais que a legislação brasileira
seja boa e o Poder Executivo busque atuar dentro de suas possibilidades, as dificuldades
acabam preponderando, o que gera um visível descumprimento das normas socioambientais,
tanto a nível constitucional quanto infraconstitucional.
Por mais que a mentalidade da nossa sociedade tenha já mudado bastante nos últimos
anos, é muito fácil vislumbrar até os dias de hoje o desrespeito com a natureza, o grande
26 AZEVEDO, op. cit., p. 100. 27 BOTTINI, op. cit., p. 160-161.
número de desmatamento e queimadas ilegais; além da mentalidade ainda focada nos direitos
individuais e de propriedade, sem preocupação com sua função socioambiental e sem pensar
nos direitos coletivos, principalmente pertinentes às comunidades tradicionais, das quais os
indígenas e os quilombolas são o maior expoente.
Dessa forma, diante do quadro exposto, observa-se que apesar da boa legislação e da
atuação do Poder Executivo, as normas de direito socioambiental não possuem a almejada
efetividade, o que demonstra não existir, em nosso país, a devida garantia aos bens e direitos
socioambientais, pois não aplicáveis na prática.
7. Teoria garantista de Luigi Ferrajoli
A situação analisada no item anterior, demonstrando a pouca efetividade da legislação
socioambiental, demonstra a relação direta entre ela e a teoria garantista, desenvolvida por
Luigi Ferrajoli, em seu livro Direito e Razão28.
Inicialmente, cumpre destacar que nada obstante tenha referida teoria sua origem
vinculada ao direito penal, ela evoluiu de modo a alcançar todos os demais campos do
ordenamento jurídico. Neste sentido, observa-se que Luigi Ferrajoli, em seu livro Direito e
Razão, dedicou os dois últimos capítulos a indicar a aplicação da teoria garantista também nos
demais ramos do direito.
Com efeito, ela possui três significações, segundo destaca o próprio Ferrajoli, quais
sejam: garantismo como um modelo normativo de direito, garantismo como uma teoria
jurídica da validade e da efetividade e garantismo como uma filosofia política do direito. A
que nos interessa no presente trabalho é a segunda significação, ou seja, a teoria jurídica da
validade e efetividade como “categorias distintas não só entre si mas, também, pela
‘existência’ ou ‘vigor’ das normas. Neste sentido, a palavra garantismo exprime uma
aproximação teórica que mantém separados o ‘ser’ do ‘dever ser’ no direito29. Isto é, referida
teoria evidencia a distância entre a existência da forma da norma (entendida aqui como regras
e princípios) e sua efetiva aplicabilidade, real cumprimento, além do respeito e concretização
no plano dos fatos. Isto é justamente o que ocorre com o direito socioambiental, com ótima
legislação e pouca efetividade prática.
28 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. 29 FERRAJOLI, op. cit., p. 756.
Rode Anélia Martins ensina que o que interessa à sociedade é a eficácia das normas, e
não simplesmente sua existência. Assim, a visão garantista do direito caminha junto com a
expectativa da população, buscando o efetivo cumprimento das leis. “Assim, o garantismo
tem como eixo que as normas devem ser cumpridas, especialmente se protetoras dos direitos e
garantias fundamentais, como é o caso da proteção do ambiente”30.
Na verdade, o respeito à dignidade da pessoa humana e os outros direitos
fundamentais (dentre eles o direito socioambiental) formam a base da teoria garantista,
chegando-se, assim, à democracia material, com respeito aos direitos fundamentais de forma
concreta, garantindo a eficácia no plano dos fatos31.
Referida teoria é especialmente relevante nos tempos atuais, levando-se em conta que,
ainda hoje, há enorme desrespeito à legislação ambiental e social.
Destarte, cabe também ao Poder Judiciário, quando do julgamento de causas concretas
pertinentes a direito socioambiental, a garantia do cumprimento das leis, princípios e da
Constituição Federal, se os demais poderes não atuarem desta forma, aplicando-se, assim, a
teoria do garantismo ora abordada.
8. O direito socioambiental visto como sistema
A partir do já acima analisado, é inevitável vislumbrar que a pretensa efetividade do
direito socioambiental envolve diversas esferas da sociedade, tais como a política, social,
ambiental, econômica, jurídica, etc, sendo matéria multidisciplinar. Destarte, para que ele seja
devidamente compreendido e eficiente, deve-se realizar estudo não só de um aspecto restrito,
mas de um amplo sistema, partindo-se de um ponto específico para o todo, para seu entorno.
Isto demonstra a necessidade de análise do direito socioambiental como um sistema, para que
possamos estudar, posteriormente, a melhor forma de alcance da efetividade.
Referida análise sistêmica se opõe à ideia de compartimentalização do conhecimento
em categorias estanques e fragmentadas. Na verdade, a teoria sistêmica busca a unificação de
diversas áreas, num processo multidisciplinar, com o propósito de compreender o universo e
suas particularidades32.
30 MARTINS, Rode Anélia. Eficácia do sistema normativo ambiental: um análise a partir da degradação ambiental no campus da Universidade Federal de Santa Catarina. Dissertação (Mestrado em Direito) – Curso Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2002, p. 223. 31 BIANCHI, op. cit., p. 343. 32 BIANCHI, op. cit., p. 94.
Ademais, a ideia de um direito socioambiental estudado a partir de uma perspectiva
sistêmica deu-se visando não restringi-lo a um simples aglomerado de normas (regras e
princípios), até porque possui um bem peculiar e de grande relevância para tutelar. Não fosse
isso, o ramo do direito em mesa possui modo único de operação, é direito difuso e pluriétnico;
envolve uma imensidade de normas, princípios, instituições, definições técnicas, que estão
totalmente relacionados, sendo de impossível separação, mas que formam uma unidade e
possuem uma lógica própria33.
Outrossim, todos os elementos que constituem o sistema jurídico socioambiental
possuem um único núcleo valorativo a partir do qual devem ser interpretados, dado pelos
princípios estruturantes do Direito Ambiental. Esta é uma constatação importante para a
adoção do socioambientalismo como paradigma para o sistema jurídico-ambiental, já que,
como destacado, requer uma interpretação integrada do conjunto de direitos sociais e
ambientais, que não podem ser adequadamente entendidos e protegidos se considerados
isoladamente34.
De fato, utiliza-se neste estudo a concepção de sistema jurídico-ambiental
desenvolvido por Fernanda de Salles Cavedon35, em sua tese de doutorado, de que, como
preconizam Niklas Luhmann e Gunter Teubner, a influência de fatores do entorno sobre o
interior do sistema jurídico ambiental não se dá de forma direta, como se fosse um sistema
totalmente aberto. Trás o sistema jurídico ambiental como uma sub-espécie do sistema
jurídico, com linguagem, lógica e forma de operar próprios, através dos quais seleciona e
interpreta as informações oriundas do seu meio envolvente e as reconstrói, a fim de que
possam ser incorporadas ao sistema. Ou seja, a influência vem do entorno, isto é inevitável,
mas uma vez dentro do sistema, ele a transforma, adequando-a à língua por este sistema
falada. Dessa forma, referidas influências são capazes de promover alterações no interior do
sistema, adequando-o às transformações processadas no entorno, e isto pode promover sua
renovação. Esta é uma teoria intermediária entre a dos sistema abertos e dos sistemas
fechados.
Note-se que a incorporação de referidos elementos no direito socioambiental pode
ocorrer através de processamento de conflitos jurídico-ambientais dentro do Poder Judiciário,
33 CAVEDON, Fernanda de Salles; VIEIRA, Ricardo Stanziola. Acesso à justica ambiental: um novo enfoque do acesso à justiça a partir da sua aproximação com a teoria da justiça ambiental. 2007. http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/campos/fernanda_cavedon_e_ricardo_vieira.pdf, acesso em 01.04.2012. 34 CAVEDON e VIEIRA, op. cit. 35 Em sua tese de doutorado – Renovação do sistema jurídico-ambiental e realização do acesso à justiça ambiental pela atividade criadora no âmbito da decisão judicial dos conflitos jurídico-ambientais.
que serve como uma forma de entrada das informações no sistema. Desta forma, se os
conflitos incidentes sobre a sociobiodiversidade forem tratados pelo Direito e pela esfera
jurídico-institucional a partir do paradigma do socioambientalismo e da justiça ambiental,
poderão produzir decisões, incorporadas ao sistema jurídico-ambiental, para além da
dogmática jurídica tradicional e permeadas de questões socioeconômicas, políticas, étnicas e
culturais, que influenciam na construção do conflito36.
Decisão judiciais sobre o tema poderão reorientar o sistema jurídico ambiental neste
sentido, podendo inclusive renová-lo.
Por isso, conforme esses elementos trazidos da teoria sistêmica, pode-se pretender
uma evolução ou renovação no sistema jurídico-ambiental, por meio do atendimento da
necessidade urgente de proteção ao meio ambiente, apresentada nas demandas judiciais,
promovendo-se, dessa forma, a efetividade de direitos já consagrados, através da interpretação
criativa e interdisciplinar (ou mesmo transdisciplinar), que leve em conta o sistema como um
todo, com todas as suas particularidades inerentes, ao contrário de se promover a
fragmentação do mesmo37.
Ademais, Fernanda Cavedon propõe, ainda, a renovação do sistema por meio da
atividade criativa e transformadora do Judiciário, na captação de elementos do mundo da vida,
processando-os na linguagem e na lógica do direito, inserindo-os no ambiente interno do
sistema, num processo sob a égide da justiça ambiental.
Dessa forma, o direito socioambiental visto como um sistema intermediário entre o
aberto e o fechado, pode se desenvolver através da atuação do Poder Judiciário, de forma a
alcançar inclusive sua efetividade, como será melhor visto adiante.
9. A atuação do Poder Judiciário em matéria socioambiental
O fenômeno da judicialização38, concorde-se ou não, é notório tanto em nosso país,
quanto no exterior, consubstanciando-se na submissão do Poder Executivo e do Poder
Legislativo a decisões emanadas pelo Poder Judiciário, principalmente provenientes de cortes
constitucionais, de modo a revisar suas políticas, nas mais diversas áreas, inclusive na
socioambiental, o que demonstra a evidente expansão do Poder Judiciário. Este novo
36 CAVEDON e VIEIRA, op. cit. 37 BIANCHI, op. cit., p. 102. 38 A judicialização possui, na verdade, dois contextos (MACIEL e KNOER, 2002): o primeiro refere-se à expansão das áreas de atuação dos tribunais, por intermédio do controle de constitucionalidade de ações legislativas e executivas; o segundo, diz respeito à introdução ou expansão dos procedimentos judiciais junto aos poderes Executivo e Legislativo.
panorama proporcionou a participação do Judiciário em processos decisórios, algo
inimaginável há tempos atrás39.
Com efeito, com base na Constituição do país, como é o caso do Brasil, o Poder
Judiciário pode revogar leis e até mesmo declarar nulos atos emanados da Administração. Isto
ocorre pois no Brasil o legislador constituinte confiou ao Supremo Tribunal Federal o
controle abstrato da constitucionalidade das leis, operacionalizando-se através de ADI´s.
Trata-se de um poder bastante elevado nas mãos de poucos.
As ações judiciais no Brasil aumentam a cada dia, sendo certo que as pessoas buscam
sempre uma maior garantia de seus direitos. A Constituição Brasileira de 1988 é
extremamente garantista elaborada em um contexto pós ditadura militar, busca tutelar toda e
qualquer forma de direito individual ou coletivo. Dessa forma, as ações judiciais que visam
declarar inconstitucionalidade, bem como que pretendem ingerir-se em questões
eminentemente pertinentes à Administração Pública, referentes a políticas públicas,
aumentam a cada ano.
Assim, o acesso à justiça é grande, bem como a diversidade de ações judiciais, o que
certamente redunda em maior judicialização.
Não fosse isso, outro motivo que certamente leva à judicialização é o descrédito, em
nosso país, no Poder Legislativo e no Executivo. Tantos são os escândalos diários que, apesar
de tudo, principalmente das últimas notícias divulgadas pela mídia, o Judiciário ainda é o
poder que inspira maior credibilidade.
E não é somente isso. Os próprios poderes Legislativo e Executivo preferem muitas
vezes eximirem-se de qualquer responsabilidade e deixar as questões mais complexas e
polêmicas nas mãos do Judiciário, a fim de não se desgastarem em futuras eleições.
Assim, devidamente demonstrada a importância social atual conferida ao Poder
Judiciário, cumpre destacar constituir-se, também, em agente de mudanças, efetivo
concretizador dos direitos fundamentais e, obviamente, o principal responsável pela produção
de justiça, sempre em busca da efetividade das normas que visam proteger a dignidade da
pessoa humana.
E a questão socioambiental, encontra-se sob o manto da judicialização acima tratada?
Certamente sim. Dessa forma, passamos a apreciar a questão da atuação do Poder Judiciário
em matéria socioambiental, principalmente levando em consideração a teoria do garantismo e
o direito socioambiental entendido como sistema, consoante já fundamentado acima. 39 TATE, C. Neal; VALLINDER, Torbjörn. The global expansion of judicial Power. 1995: New York University Press.
Neste contexto, destaca Cláudia Maria Barbosa que:
A atuação do Judiciário para a defesa e proteção dos direitos socioambientais deixa neste contexto de ser apenas uma questão política para tornar-se um dever deste Poder com toda a sociedade brasileira, e é neste quadro que deve inserir-se a preocupação com as reformas do Poder Judiciário no Brasil40.
É inegável o papel que possui o Poder Judiciário na concretização da efetividade do
direito socioambiental. É certo que até os anos 80 as ações e sentenças de cunho
ambiental/socioambiental eram praticamente inexistentes, tendo aumentado bastante após a
promulgação da Lei de Ação Civil Pública. Atualmente a rapidez de julgamento e qualidade
de decisões proferidas vem crescendo a olhos vistos, mas ainda não se encontra em situação
satisfatória, principalmente pelo fato de que os juízes levaram um longo tempo (e muitos
ainda levam) para se adaptarem aos processos sem cunho individualista, mas sim coletivo. Na
verdade, até os dias de hoje ainda existe dentre os juristas uma certa mentalidade focada nos
direitos privados, sendo difícil para muitos operadores do direito, inclusive magistrados,
compreenderem o espírito coletivo do direito socioambiental.
Contudo, é certo que os juízes não têm a possibilitar de se omitirem quando uma
questão de matéria socioambiental lhes é dirigida. Dados os fatos, ele deve decidir. Por esta
razão, destacam Ingo Wolfgang Sarlet e Tiago Fensterseifer que “A não adoção de medidas
protetivas – legislativas e executivas – por parte do Estado, no sentido de assegurar a eficácia
e efetividade do direito fundamental em questão resulta em prática inconstitucional, passível,
portanto, de controle judicial, tanto sob a via abstrata quanto difusa”41.
E, com efeito, a judicialização das questões socioambientais é hodiernamente uma
realidade. Observa José Renato Nalini:
Ao decidir a lide ambiental com serenidade, mas atento à realidade normativa erigida em preceito constitucional, o Juiz não estará se substituindo ao parlamento ou ao governo. Estará judicando, em visão mais consentânea da tarefa outorgada ao Judiciário, encarregado de fazer Justiça,
40 BARBOSA, Cláudia Maria. Reflexões para um judiciário socioambientalmente responsável. Revista da Faculdade de Direito – UFPF, Curitiba, n° 28, p. 107-120, 2008, p 116-117. 41 SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 228.
não de aplicar singelamente a literalidade de leis, sem antes aferir sua compatibilidade com a vontade constitucional42.
Ademais, certamente estará fazendo com que importantes questões do entorno
ingressem no sistema jurídico socioambiental, como já acima referido.
No entanto, existem ainda algumas grandes dificuldades enfrentadas pelos juízes,
quando do julgamento e tramitação de ações de cunho socioambiental, além do caráter
coletivo, e que acabam por não tornar este ramo do direito tão efetivo como poderia ser. As
dificuldades são, principalmente: grande número de tutelas de urgência; matérias de cunho
eminentemente preventivo; decisões a serem tomadas com base em princípios; a produção de
provas (complexa e dispendiosa); o desconhecimento da matéria por grande parte dos juízes; a
necessidade muitas vezes de enfrentar o poder econômico; a busca da harmonização entre o
direito ambiental e outros direitos fundamentais; a tentativa de solução do confronto entre o
regramento de direitos individuais e o ordenamento jurídico socioambiental, de cunho
coletivo; a formação, de grande parte dos juízes, em sólidos princípios de direito privado.
A par de referidas dificuldades, os dois maiores problemas citados pela sociedade
brasileira atual, no que diz respeito ao Poder Judiciário, são a morosidade e a falta de
previsibilidade. Particularmente no caso de processos socioambientais, a morosidade é um
grande problema, na medida em que determinado fato pode consumar-se (como um dano
ambiental grave) e o meio ambiente nunca mais ser devidamente restabelecido. A falta de
previsibilidade das decisões também se trata de grande problema, o que pode vir inclusive a
desestimular as pessoas de ingressarem com ações.
10. O alcance da efetividade do direito socioambiental através da atuação do Poder
Judiciário
Como se sabe, muitas ações judiciais socioambientais de grande relevância ainda são
extintas por problemas formais, de legitimação ou falta de algum documento, o que demonstra
que nada obstante a situação esteja muito avançada em comparação com alguns anos atrás,
ainda há dificuldade na implementação de referido direito. Muitas tutelas de urgência não são
concedidas sob a justificativa de não haver provas, sem a utilização do princípio da prevenção
42 NALINI, José Renato. Magistratura e meio ambiente. Notas para intervenção oral em Seminário sobre o Meio Ambiente, realizado pela Fundação Faria Lima, em São Paulo, em 29 de junho de 1995. http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/revista2/artigo7.htm. Acesso em 01.04.2012.
e da precaução, ou, ainda, a elaboração de decisões inexeqüíveis, que redundam também em
falta de efetividade. Assim, fica claro que muitas dificuldades ainda existem e devem ser
superadas.
Sydnei Sanches em 1988, já dizia que “não faltam normas constitucionais e legais de
proteção ao meio ambiente, seja no campo do direito material, seja no do processual, as quais,
obviamente, poderão sempre merecer aprimoramentos e avanços, também não falta doutrina
autorizada de ilustres juristas, nacionais e alienígenas, e de eminentes especialistas de direito
ambiental”43.
Dentro deste panorama, cumpre destacar a já ocorrência do aumento do acesso à
justiça em matéria ambiental, este, no entanto, ainda não definitivamente concretizado. Como
acesso à justiça deve-se levar em consideração as duas finalidades básicas do sistema jurídico,
quais sejam: que o sistema seja igualmente acessível a todos e que produza resultados
individual e socialmente justos44, e não a conceituação simplista de ingresso com ações
judiciais.
Conforme já acima mencionado, os conflitos socioambientais, caracterizados por seu
caráter transindividual de titulares e indivisibilidade do bem,
tornou necessário o desenvolvimento de instrumentos processuais adequados às peculiaridades da sua tutela na via judicial, e o estabelecimento de critérios de justiça para o tratamento dos conflitos jurídico-ambientais. É neste contexto que se destaca o movimento de acesso à justiça na esfera ambiental, visando garantir a realização dos direitos ambientais, não apenas pela disponibilização de instrumentos processuais adequados aos conflitos jurídico-ambientais, mas também pela busca de soluções comprometidas com a realização da justiça ambiental45.
Por sua vez, conforme destacam os mesmos autores, “A justiça ambiental tem como
foco central a distribuição eqüitativa de riscos, custos e benefícios ambientais,
independentemente de fatores como raça, renda, posição social e poder; o acesso aos recursos
ambientais e aos processos decisórios, em condições de igualdade de poder na conformação
da decisão final”. Assim, é ainda necessária a ocorrência de um acesso à justiça que una as
teorias do acesso puro e a da justiça ambiental, tendo em vista que os “grupos fragilizados por
questões socioeconômicas e informacionais, que afetam a sua aptidão para o exercício da
cidadania, enfrentam maiores dificuldades no que se refere à defesa e representação de seus 43 SANCHES, Sydney. O Poder Judiciário e a tutela do meio ambiente. In: Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado Federal, 1988, p. 27-28. 44 CAPPELLETTI, Mauro, GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 8. 45 CAVEDON e VIEIRA, op. cit.
direitos e interesses”46. Contudo, referida operacionalização exige condições estruturais e
instrumentos operacionais igualmente acessíveis a todos, de forma facilitada, principalmente
dentro do Poder Judiciário.
Diante do exposto, verifica-se que a necessária efetividade do direito socioambiental
ainda não foi alcançada, mas está próxima, e pode sim ser feita por meio da atuação do Poder
Judiciário. E por efetividade leia-se não somente a prolação de decisão judicial, mas tudo que
envolve a questão, inclusive do ponto de vista extra processual, as repercussões da decisão,
sua efetiva execução, finalidades, etc, conforme á referido neste trabalho.
Apenas para enfatizar, Carlos Alberto de Salles sintetiza bem esta ideia:
Em rápida síntese o conceito de efetividade implica uma consideração de meios e fins, podendo ter-se por efetivo aquele processo que atinge as finalidades a que se destina, considerando o conjunto de objetivos implícitos no direito material e a totalidade da repercussão da atividade jurisdicional sobre dada situação de fato47.
É verdade que nada obstante existam ainda as dificuldades já referidas, o Poder
Judiciário vem decidindo com muito mais preocupação as questões referentes ao direito
ambiental. São exemplos as decisões referentes às limitações ao direito de propriedade em
choque com os deveres de proteção ao ambiente de particulares (STJ, Resp 343741/PR); à
garantia do saneamento básico (STJ, AGA 138901/GO, STJ Resp 429.570/GO); à proibição
de importação de pneus usados (ADPF – 101).
De fato, a efetividade deste ramo do direito pode ser atingida através da atuação do
Poder Judiciário, levando-se em conta o novo papel que possuem os magistrados, conforme
destacam Ingo Wolfgang Sarlet e Tiano Fensterseifer, “especialmente quando estiver em
causa processo de natureza coletiva, como ocorre nas ações civis públicas ambientais,
projetando um ‘agir’ simultaneamente proativo e protetivo para com o ambiente e os direitos
socioambientais”48.
Assim, o Poder Judiciário brasileiro deve ser municiado de mecanismos mais efetivos
para a proteção de bens e direitos socioambientais, tanto estruturais, quanto com relação à
formação do magistrados. A princípio, a conscientização dos próprios juízes acerca de sua
relevância e possibilidade de tornar efetivo um direito fundamental deveria ser feita.
46 CAVEDON e VIEIRA, op. cit. 47 SALLES, Carlos Alberto de. Execução judicial em matéria ambiental. São Paulo: RT, 1998, p. 42. 48 SARLET e FENSTERSEIFER, op. cit., p. 231.
Contudo, ainda há necessidade da realização de mudanças para que o Poder Judiciário
possa tornar efetivo o direito socioambiental. Conforme destaca Cláudia Maria Barbosa:
Seja como for, a ausência de planejamento e metas, e a indefinição quanto a ações de curto, médio e longo prazo, colabora para a manutenção do statu quo e dificulta a construção de um Judiciário socioambientalmente responsável, uma vez que sequer discute as premissas nas quais o mesmo estaria assentado. Se, de um lado, há indefinição, de outro a própria Constituição já fixou os objetivos e metas para a sociedade brasileira, e esses são os pontos que devem nortear o planejamento e as ações para a efetiva reforma do Judiciário. Por determinação constitucional, o Brasil é um Estado Democrático, fundado na dignidade da pessoa humana, que objetiva a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, em um ambiente ecologicamente equilibrado, preservado para as presentes e futuras gerações. A concretização deste modelo deve orientar o comportamento do poder público e dos particulares49.
Dessa forma, o planejamento e a instituição de metas são essenciais como forma de se
efetivar o direito socioambiental, principalmente pelo fato de que a concretização de referido
direito contraria totalmente a lógica jurídica comum, de direito individual e baseado em
princípios de direito privado. Por essa razão, a boa formação dos magistrados também é de
extrema importância.
Consoante sustenta Virgílio Viana:
O envolvimento sustentável impõe a necessidade de uma mudança profunda dos técnicos e autoridades. Até quando vamos conviver com decisões tomadas em gabinetes distantes da realidade, por técnicos e autoridades que ignoram o conhecimento daqueles que estão profundamente envolvidos com os ecossistemas naturais? Até quando se manterá o desuso de métodos participativos para a tomada de decisões? Aí também a mudança deve ser radical e urgente50.
Uma dessas mudanças é a especialização da matéria socioambiental dentro do Poder
Judiciário. Dessa forma, poderia haver um estudo mais aprofundado acerca dos temas
referentes ao direito socioambiental, com julgamentos mais céleres e mais qualificados, além
de propiciar um aumento no acesso à justiça ambiental, considerando a publicidade e
importância a ser dada à referida especialização. Rodolfo Camargo Mancuso aponta a criação
49 BARBOSA, op. cit., p. 116. 50 VIANA, op. cit., p. 244.
de varas especializadas na matéria ambiental como um reflexo do acesso à justiça, na defesa
dos interesses metaindividuais em juízo51.
Cappelletti já sustentava que o aspecto mais importante da reforma do processo refere-
se no que denomina desvio especializado, além da criação de tribunais especializados, aspecto
este que possibilitaria um melhor acesso à justiça52. Para Vladimir Passos de Freitas, “sem a
menor sombra de dúvida, a especialização constitui a melhor via para que haja eficiência e
ganho de qualidade”53.
Destarte, fica evidente a possibilidade do Poder Judiciário vir a suprir esta falta de
efetividade do direito socioambiental, por possuir um enorme poder em suas mãos. No
entanto, algumas reformas são essenciais pois, como ensinam novamente Ingo Wolfgang
Sarlet e Tiago Fensterseifer, apesar da forte intervenção deste poder na tutela socioambiental:
Ainda há muito por fazer, até mesmo por não faltarem exemplos de decisões no mínimo polêmicas por parte de Juízes e Tribunais, além de uma série de situações que apontam para um evidente descaso com a tutela ambiental, privilegiando outros valores, notadamente o da livre iniciativa, além de, por vezes, atenderem aos reclamos injustificados (jurídica e moralmente) do poder econômico54.
11. Conclusão
Diante do estudo ora elaborado, conclui-se, inicialmente, que o direito
socioambiental já é ramo do direito definitivamente incorporado em nosso país, sendo
evidente sua relevância, inclusive como forma de proteção à vida e à dignidade da pessoa
humana, razão pela qual é considerado como direito fundamental em nosso país. Decorre de
análise harmônica dos dispositivos constitucionais, envolvendo questões referentes ao direito
ambiental propriamente dito, patrimônio cultural, valores étnicos e função social da
propriedade, constituindo-se por bens com bio e sociodiversidade. No entanto, as normas
socioambientais, apesar de consideradas como satisfatórias, ainda não possuem a necessária
efetividade, entendida esta como a realização, no plano fático, das normas previstas, incluídos
51 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Jurisdição coletiva e coisa julgada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 77-78. 52 CAPPELLETTI e GARTH, op. cit., p. 90-94. 53 FREITAS, Vladimir Passos de. O poder judiciário e o direito ambiental no Brasil. In: Revista da Escola Nacional da Magistratura, v. 2, n° 4, out./2007, p. 104. 54 SARLET e FENSTERSEIFER, op. cit., p. 250.
aqui os princípios, havendo conformidade entre norma e conduta. Ademais, a atividade do
Executivo tampouco se encontra em situação efetiva.
De fato, a situação ora relatada tem estreita relação com a teoria garantista
desenvolvida por Luigi Ferrajoli, a qual busca a efetiva aplicação de direitos garantidos no
plano dos fatos, em casos concretos, andando junto com a expectativa da população, devendo
haver cumprimento das garantias fundamentais, como é o direito socioambiental. Conclui-se,
portanto, neste ponto, caber também ao Poder Judiciário a garantia do cumprimento das leis
socioambientais, princípios e da Constituição Federal, se os demais poderes não atuarem desta
forma.
Extrai-se, outrossim, do presente estudo que o direito socioambiental deve ser
estudado a partir de uma análise sistêmica, de forma a não restringi-lo a um aglomerado de
normas e princípios, mas sim a uma matéria com estreitas relações diretas com política,
economia, cientificismo, o que inclusive a torna mais complexa e de mais difícil efetivação.
Ou seja, não é possível a realização de abordagem do direito socioambiental de forma isolada,
mas sempre interagindo com seu entorno.
De fato, o Poder Judiciário serve como uma importante forma de ingresso de
elementos dentro do sistema socioambiental, sendo este uma porta de entrada, havendo a
possibilidade de renovação do direito socioambiental, a ser feita por este poder. Assim, a
efetividade pode ser promovida, pela renovação do sistema através de uma atitude criativa e
transformadora do Judiciário, que deverá retirar elementos da vida concreta, processá-los em
linguagem jurídica e inseri-los no ambiente do sistema.
Dentro deste panorama, importante é o fenômeno da judicialização, demonstrando o
papel político dos juízes e principalmente dos tribunais constitucionais, sendo que as questões
mais complexas, inclusive de direito socioambiental, acabam sendo definitivamente decididas
pelo Judiciário, possuindo este um grande poder em suas mãos – de invalidar atos
administrativos e reconhecer inconstitucionalidade de leis, podendo, assim, promover o
desenvolvimento do direito socioambiental
Constitui-se o Judiciário atualmente em agente de mudanças, efetivo concretizador
dos direitos fundamentais e o principal responsável pela produção de justiça, sempre em
busca da efetividade das normas que visem proteger a dignidade da pessoa humana. Nesta
perspectiva, tem o Judiciário dever de proteção e garantia do direito fundamental
socioambiental. É verdade que ainda existem inúmeras dificuldades a serem enfrentadas pelo
poder para o julgamento de questões socioambientais, mas elas devem ser superadas, pois, do
contrário, a efetividade dos direitos fundamentais nunca será alcançada.
Com efeito, não basta a previsão de instrumentos processuais adequados para a
solução dos conflitos socioambientais, mas também o esforço e a busca de soluções
comprometidas com a realização da justiça ambiental.
Diante do exposto, verifica-se que a necessária efetividade do direito socioambiental
ainda não foi atingida, mas está próxima, e pode ser feita por meio da atuação do Poder
Judiciário, considerando os poderes que possui atualmente em suas mãos. Assim, o Poder
Judiciário brasileiro deve ser municiado de mecanismos mais efetivos para a proteção de bens
e direitos socioambientais, tanto estruturais, quanto com relação à formação do magistrados.
A princípio, a conscientização dos próprios juízes acerca de sua relevância e possibilidade de
tornar efetivo um direito fundamental deveria ser feita. Dessa forma, o planejamento e a
instituição de metas são essenciais como forma de se efetivar o direito socioambiental. Uma
dessas mudanças é a especialização da matéria socioambiental dentro do Poder Judiciário.
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FISCALIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO GENÉTICO E DO CONHECIMENTO
TRADICIONAL ASSOCIADO, NO ÂMBITO DO IBAMA
FISCALIZATION OF GENETIC HERITAGE AND ASSOCIATED TRADITIONAL
KNOWLEDGE, UNDER THE IBAMA.
Daniel Abrahão do Nascimento1
Valmir César Pozzetti2
RESUMO
O presente artigo é uma reflexão sobre a fiscalização do Patrimônio Genético e do
Conhecimento Tradicional Associado no âmbito do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e
dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA. Baseado nas análises da Medida Provisória nº
2.186 de 2001, do Decreto nº 3.945 de 2001 (modificado pelo Decreto nº. 4.946/03), do
Decreto 5.459 de 2005, o estudo traz o arcabouço jurídico que tutela a matéria, apresenta os
procedimentos administrativos da fiscalização no âmbito da administração pública federal e
faz um diagnóstico da realidade. Além de apresentar conceitos, trazer os aspectos práticos da
atividade fiscalizatória de proteção e Fiscalização do Patrimônio Genético, bem como do
Conhecimento Tradicional Associado e, traz ainda sugestões práticas como: a necessidade de
aplicação de sanções mais severas aos infratores, a educação e conscientização dos povos
tradicionais, a difusão de conhecimento e participação da sociedade neste processo, bem
como a necessidade de uma estrutura mais adequada (em termos de equipamentos e pessoal)
do IBAMA para melhorar a fiscalização e a proteção do patrimônio genético e do
conhecimento tradicional associado, no intuito de assegurar ao país e à população envolvida,
os recursos financeiros advindos da atividade de exploração destes recursos.
PALAVRAS CHAVES: Fiscalização; Patrimônio Genético; Conhecimento Tradicional
Associado.
ABSTRACT
This article is a reflection on the supervision of Genetic Heritage and Associated
Traditional Knowledge within the Brazilian Institute of Environment and Renewable Natural
Resources - IBAMA. Based on analyzes of Provisional Measure No. 2186 of 2001, Decree
1 Engenheiro Agrônomo, Advogado, Analista Ambiental e Agente Ambiental Federal do IBAMA no Aeroporto
Internacional Eduardo Gomes em Manaus, Mestrando do Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da
Universidade do Estado do Amazonas. 2 Professor Adjunto do Mestrado em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas. Mestre e
Doutor em Direito Ambiental Comparado, pela Université de Limoges, França.
No. 3945 of 2001 (amended by Decree. 4.946/03) of Decree 5459 of 2005, the study provides
the legal framework that protects the matter, has the administrative procedures of supervision
within the federal government and makes a diagnosis of reality. Besides presenting concepts,
bringing the practical aspects of activity fiscalization Protection and Monitoring of Genetic
Heritage and Associated Traditional Knowledge, and also brings practical suggestions such
as: the need for harsher penalties for offenders, education and awareness traditional peoples,
the diffusion of knowledge and society participation in this process as well as the need for a
more appropriate (in terms of equipment and personnel) from IBAMA to improve the
oversight and protection of genetic resources and associated traditional knowledge in order to
assure the country and the people involved, the financial resources arising from the activity of
exploitation of these resources.
KEYWORDS: Fiscalization; Genetic Heritage; Associated Traditional Knowledge.
INTRODUÇÃO
O Brasil, desde o seu descobrimento até os dias atuais, é alvo de cobiça pela sua
megadiversidade biológica. Por esse motivo deveria ter um sistema eficaz de proteção à coleta
e ao acesso a esse patrimônio natural. Infelizmente, isto não ocorre, pois o país está à mercê
de sucessivos saques aos seus estoques de recursos naturais e quase nada foi feito ou é feito
para se evitar esse abuso por parte dos “Piratas Ambientais”.
No pretérito, os recursos genéticos eram considerados patrimônio da humanidade
e podiam ser acessados livremente até entrar em vigor a Convenção sobre Diversidade
Biológica (CDB) 3 na qual o Brasil passou a fazer parte como país membro desde 1994. A
partir daí, passaram-se desencadear estudos e projetos legislativos acerca do assunto,
culminando em 23 de agosto de 2001 na MP (medida provisória) 2.186-16, que estabelece
normas legais para regular o acesso aos recursos genéticos e conhecimento tradicional
associado no território brasileiro. Essa MP foi regulamentada pelo Decreto nº. 3.945 de 2001
(modificado pelo Decreto nº. 4.946/03).
Neste sentido, diante desta problemática, o presente artigo se justifica em virtude
de o Brasil ainda não ter elaborado nenhuma lei sobre a biopirataria, com definições e
tipificações legais claras sobre o assunto e, ainda, que a MP 2186-16, que criou o CGEN,
ainda não foi transformada em lei. Muito se discute, sobre sua vigência e efeitos jurídicos
3 Assinada no Rio de Janeiro em 05 de junho de 1992 e promulgada internamente pelo Decreto n°. 2.519, de 16
de março de 1998.
desta MP, em virtude do princípio da legalidade inserto no artigo 5º da Constituição Federal
brasileira.
Hoje, o acesso e a remessa do patrimônio genético bem como o acesso ao
conhecimento tradicional associado, existente no país, passaram a depender de autorização do
Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN)4, ficando sujeito à repartição de
benefícios, nos termos e nas condições legalmente estabelecidos; preservou-se o intercâmbio
e a difusão de componente do patrimônio genético e do conhecimento tradicional associado
praticado entre as comunidades indígenas e entre as comunidades locais, desde que em seu
próprio benefício e baseados na prática costumeira. A falta de legislação protetiva eficaz não
pode ser motivo para permitir a violação dos direitos dos povos tradicionais.
No, dia 07 de junho de 2005, foi publicado o Decreto n° 5.4595, que disciplina as
sanções aplicáveis às condutas e atividades lesivas ao patrimônio genético ou ao
conhecimento tradicional associado e dá outras providências. Através desse instrumento legal,
abriu-se um horizonte maior na proteção e fiscalização dessa biodiversidade em relação à
apropriação do patrimônio genético e conhecimento tradicional associado. Antes, esse tipo de
ação de apropriação, não estava caracterizado como infração administrativa6 pela lei
brasileira. O Patrimônio genético e o conhecimento tradicional associado sofriam com o
descaso da tutela legal em relação às atitudes e formas sutis de sua apropriação, mas hoje com
a definição se torna urgente à intervenção do Estado na proteção desses patrimônios de forma
eficaz.
Por tanto o presente trabalho visa diagnosticar e analisar a proteção do patrimônio
genético e do conhecimento tradicional associado a partir da prática fiscalizatória atual do
IBAMA7 e das sanções administrativas previstas pelo referido decreto.
4 O CGEN, órgão de caráter deliberativo e normativo criado pela MP 2.186-16 no âmbito do Ministério do Meio
Ambiente, é integrado por representantes de diversos Ministérios (do Meio Ambiente, da Ciência e Tecnologia,
da Saúde, da Justiça, da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, da Defesa, da Cultura, das Relações Exteriores,
do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior), órgãos e entidades da Administração Pública Federal
(IBAMA), Instituto de Pesquisa Jardim Botânico do Rio de Janeiro, CNPq, Instituto Nacional de Pesquisa da
Amazônia, Museu Paraense Emílio Goeldi, Embrapa, Fundação Oswaldo Cruz, Funai, Instituto Nacional de
Propriedade Industrial, Fundação Cultural Palmares, com direito a voto — e representantes da sociedade civil,
com direito a voz — Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Associação Brasileira de
Organizações Não Governamentais (Abong), Associação Brasileira das Empresas de Biotecnologia (Abrabi),
Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (Cebds), Comissão Nacional de
Articulação das Comunidades Negras Rurais e Quilombolas, Conselho Nacional de Seringueiros (CNS) e
Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia (Coiab) e Ministério Público. 5 Regulamenta o art. 30 da Medida Provisória n° 2.186-16 de 23 de agosto de 2001. 6 Art 1º do Decreto 5.459/2005: Considera-se infração Administrativa contra o patrimônio genético ou ao
conhecimento tradicional associado toda ação ou omissão que viole as normas da Medida Provisória nº 2.186-16
de 23 de agosto de 2001, e demais disposições pertinentes. 7 Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
Assim, o objetivo deste artigo é evidenciar aspectos jurídicos e a autonomia do
IBAMA- Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renováveis – para fiscalizar o
Patrimônio Genético e Conhecimentos Tradicionais, e assegurar que os recursos daí oriundos,
sejam repartidos de forma adequada, beneficiando a todos aos agentes envolvidos, permitindo
não só o progresso advindos das novas descobertas e tecnologias, mas também o
desenvolvimento sustentável, gerando emprego, renda e dignidade aos povos tradicionais,
milenares proprietários destes conhecimentos e recursos.
O método utilizado para realizar a presente pesquisa, quanto aos fins, é o
explorativo descritivo e, quanto aos meios, bibliográfico.
FISCALIZAÇÃO
No tocante à fiscalização e controle dos recursos naturais e conhecimentos
tradicionais, o Decreto 5.459 de 07 de junho de 2005 define como “infração administrativa
todo ato comissivo e omisso lesivo ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional
associado que viole as normas da Medida Provisória no 2.186-16 e demais disposições
pertinentes”. Incumbe à fiscalização detectar ou constatar a prática de tais atos e promover os
procedimentos próprios para sua devida apuração, sendo legalmente competente para a
fiscalização : o IBAMA, o Comando da Marinha e, através de convênios com estes, os órgãos
estaduais e municipais integrantes do Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA).
Optou-se para dar maior ênfase, neste trabalho, a fiscalização no âmbito do
IBAMA (já que o Comando da Marinha se limita a fiscalizar no âmbito de águas
jurisdicionais brasileiras e da plataforma continental brasileira) e para fins didáticos optou-se
por dividir a fiscalização do patrimônio genético da fiscalização do conhecimento tradicional
associado, mesmo porque o próprio decreto divide-os em capítulos referindo-se às infrações
pertinentes a cada um.
FISCALIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO GENÉTICO
De acordo com Pereira8 tratando-se da conservação, manejo e monitoramento da
biodiversidade, os componentes vivos na natureza são melhores classificados de acordo com
uma hierarquia “bio-espacial” que possui cinco níveis: (1) ecossistemas, (2) comunidades, (3)
espécies, (4) populações, (5) genes. Segundo esse autor, o manejo da biodiversidade e as
estratégias empregadas, na sua preservação e conservação, foram desenvolvidos sobre duas
8 PEREIRA, H. 2002. Biodiversidade: a Biblioteca da Vida. In: Rivas, A. & Freitas, C. E. C. (Orgs)
Amazônia: uma perspectiva interdisciplinar. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 271p.
formas: “in situ” – no local de origem e que trata dos quatro primeiros níveis hierárquicos
(ecossistemas, comunidades, espécies e populações), por exemplo, os métodos referem-se à
manutenção de plantas e animais em seus “habitat’s” de origem; e “ex situ” – fora do local de
origem e que trata dos três últimos níveis hierárquicos (espécies, populações e genes), em
especial o genético, referem-se, por exemplo, a manutenção dos organismos em estruturas tais
como bancos de germoplasma, campos de germoplasma ou jardins botânicos.
A estratégia de conservação e proteção que tem sido mais adotada pelo governo
brasileiro tem sido a “in situ”, através de criação das Unidades de Conservação: Estações
Ecológicas, Reservas Biológicas, Florestas Nacionais (FLONAS), Área de Proteção
Ambiental (APA), Reservas Extrativistas (RESEX), etc. e das ações de fiscalização voltadas
para essa modalidade, por ser mais exigida pela opinião pública e mais amparada
historicamente pela legislação9. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade,
criado através da Lei 11.516/2007, passou a ter a incumbência de executar, também, as ações
de fiscalização nas Unidades de Conservação Federais, porém não exclui o exercício supletivo
do IBAMA10
.
A estratégia da conservação e proteção da biodiversidade “ex situ” tem tido pouca
atenção e repercussão. Recentemente, a sociedade vem “notando” com mais afinco, a
importância da manipulação genética, com a biotecnologia e a engenharia genética. É através
desses mecanismos de manipulação e informação genética que muitas instituições e
organizações internacionais vêm querendo se apropriar desses recursos, através de
patenteamentos e registros, como forma de dominação tecnológica e econômica. Não que não
seja importante a descoberta tecnológica de uma informação ou de uma aplicação de
determinado “valor” intrínseco de uma espécie, mas é justa a devida e a real repartição de
benefícios a quem de direito. Aliás, é de suma importância para o progresso, tais avanços, mas
a sustentabilidade só ocorrerá com a consequente repartição dos benefícios que essa
manipulação poderá gerar.
As remessas desses recursos genéticos são feitas através de amostras, geralmente,
conforme definição de patrimônio genético que é em sua maior parte formado de pequenos
volumes, mas que são capazes de serem manipulados e multiplicados para a obtenção de um
conjunto maior “ex situ”. São substâncias por essência, capazes de reprodução, regeneração,
9 A definição de Unidade de Conservação está no Art2º, I da Lei 9.985/2000 que define como: espaço territorial
e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente
instituído pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de
administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção 10 Art.1º, I e §único da Lei 11.516/2007.
multiplicação e que trazem informações, por isso essas porções são denominadas de amostras.
Pela própria natureza, trata-se de materiais que são altamente portátil o que dificulta, muitas
vezes, a sua aparição, por isso torna-se difícil, após serem coletados “in situ”, a sua
fiscalização, principalmente quando chegam aos laboratórios e espaços onde são
manipulados, ou seja, na dimensão “ex situ”. Daí o desafio de se fiscalizar e de se combater o
ato lesivo nessa dimensão, a saber, no curso do local de origem e ao local de manipulação.
Por isso é importante tecer alguns pontos do trabalho prático da fiscalização do patrimônio
genético em relação ao Decreto Nº. 5.459, de 7 de junho de 2005 e as infrações ali previstas.
O “ACESSO” AO PATRIMÔNIO GENÉTICO
O Decreto 5.459/05 tipifica como ilícito o “acesso” sem autorização aso
Patrimônio genético, in verbis :
Art. 15. Acessar componente do patrimônio genético para fins de pesquisa
científica sem autorização do órgão competente ou em desacordo com a
obtida:[...]
Art. 16. Acessar componente do patrimônio genético para fins de
bioprospecção ou desenvolvimento tecnológico, sem autorização do órgão
competente ou em desacordo com a obtida: [...]
De acordo com a definição contido no artigo supra, o termo “acessar” significa
obter amostra do componente do patrimônio genético com as finalidades descritas no caput
dos artigos acima. O mesmo é o cerne do tipo infracionário que descreve o ato lesivo
mediante as finalidades (“para fins de”), sendo estas que os define. Acessar para fins de
pesquisa científica, bioprospecção, desenvolvimento tecnológico ou também para constituir
ou integrar coleção ex situ, sem autorização do órgão competente ou em desacordo com a
obtida é infração.
Como avaliar ou apurar, no ato da fiscalização, a finalidade sem a declaração do
portador do material, quando não há indícios claros dessa finalidade na amostra? A questão da
finalidade se torna elemento subjetivo na composição do tipo infracional, daí a sua
dificuldade. Se não houver indícios claros ou a declaração do portador no ato fiscalizatório,
como apurar? Não há espaço para especulações ou previsões infundadas no procedimento
fiscalizatório, sob pena de o agente cometer o crime de exercício arbitrário ou abuso de
poder11
.
Para exemplificar a situação acima descrita, é como se, por exemplo, no ato
fiscalizatório, encontrarmos um indivíduo portando várias embalagens de pedaços de cascas,
11 Art.350 do Código Penal
de folhas e raízes de árvores da Amazônia. Neste caso, sabe-se que este material pode ser
utilizado tanto para fins de pesquisa, como bioprospecção, como desenvolvimento
tecnológico, como também pode ser utilizado para constituir coleção “ex situ”. Ou seja,
situações que remetem à infração. Mas, também pode ser utilizado para fins terapêuticos ou
fortificantes (baseados no conhecimento e na medicina popular) como produção de chás,
como é comercializado em quaisquer “biroscas ou barracas” das cidades. Portanto, sem a
finalidade de acessar o patrimônio genético, mas somente utilizando o material como
consumidor final. É exatamente o que diferencia coletar, de acessar, como mostra na cartilha
do IBAMA12
:
[...] a coleta visa obter organismos ou amostra de material biológico. O acesso visa
isolar, identificar ou utilizar INFORMAÇÃO DE ORIGEM GENÉTICA contida
nos organismos ou nas amostras de material biológico coletados, NA FORMA DE
moléculas e substâncias provenientes do metabolismo dos organismos e de extratos
obtidos destes organismos. Pode haver coleta sem acesso.
Neste sentido é que o servidor deve, então, fazer uso e invocar o Princípio da
Precaução13
em sede de matéria ambiental, uma vez que se não tiver certeza das intenções do
agente deve proceder à apreensão do material e sancionar com advertência14
, portanto, sem
culminar em multa simples, com caráter educativo para o agente. Neste sentido é a orientação
do IBAMA15
:
ORIENTAÇÃO JURÍDICA UNIFORMIZADA N.° 35
EMENTA: Delimitação na aplicação das sanções de advertência e multa simples
para fins de punição do infrator.
- Aplica-se a sanção de Advertência quando não houver dano configurado, mas,
no entanto, pelo tipo da ação praticada a norma comina uma sanção, ou seja, nos
casos de perseguir, previsto no art. 11 e no art. 20 do Decreto n° 3.179/99, quando
configurado apenas o ato tendente, ou nos casos de irregularidade de pequeno
12 Disponível em:< http://www.ibama.gov.br/patrimonio/CartilhaAcesso190805.pdf>. Acesso no dia 19 ago.
2012. 13
É um principio que impõe ao operador do direito a busca de respostas ao imperativo de segurança forçada e a
regulamentação das dúvidas nascidas da ciência, para que se possa garantir o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, para as presentes e futuras gerações, objetivando o afastamento do próprio risco.
Este risco pode ser hipotético ou certo. A partir da caracterização do risco hipotético e do risco certo é possível
realizar a distinção entre os princípios da precaução e da prevenção. - SILVA, Solange Teles da: “Princípio de
precaução: uma nova postura em face dos riscos e incertezas científicas” In VARELLA, Marcelo Dias.
PLATIAU, Ana Flávia Barros (org.). Princípio da Precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, pp. 75-92. 14 Art. 11 do Decreto 5.459/2005: A sanção de advertência será aplicada às infrações de pequeno potencial
ofensivo, a critério da autoridade autuante, quando ela, considerando os antecedentes do autuado, entender esta
providência como mais educativa, sem prejuízo das demais sanções previstas no art. 10. 15 Orientações jurídicas uniformizadas são elaboradas pela Procuradoria Geral junto ao IBAMA (PROGE), para
dar subsídio as atuações dos fiscais nas apurações e procedimentos dos crimes ambientais.
potencial lesivo ao meio ambiente que apontem, justificadamente, a possibilidade de
reversibilidade do dano ao status quo ante. Entretanto, por trata-se de sanção prevista
na Lei n° 9.605/98, deve ser instaurado o processo administrativo, para garantia da
ampla defesa e do contraditório, nos termos do art. 71 da lei citada.. A multa simples
deve sempre ser aplicada nos casos em que o dano ambiental esteja consolidado.
Em contrapartida, quando ocorrer situações onde há indícios claros da finalidade
da infração, tais como: organismos, sementes (sem estar perfuradas, porque as perfuradas são
utilizadas geralmente em artesanatos), substâncias líquidas (tipo: soros, venenos) ou quaisquer
materiais com acondicionamento em embalagens térmicas (para conservar a viabilidade, o
poder de reprodução, regeneração e multiplicação), em tubos de ensaios ou outros recipientes
quaisquer usados em laboratório, principalmente, com qualquer conteúdo conservador ou em
meio de cultura, principalmente com identificações através de nomes científicos. (presumindo
a qualificação da descrição do tipo infracional), ou tendo o portador autorização para o acesso
e esta estiver em desacordo; é indubitável a presença da infração. Para tanto o agente deve
agir de acordo com os procedimentos da legislação, conforme descritos no artigo 10 do
Decreto Nº 5.459, de 7 de junho de 2005:
Art. 10. As infrações administrativas contra o patrimônio genético ou ao
conhecimento tradicional associado serão punidas com as seguintes sanções,
aplicáveis, isolada ou cumulativamente, às pessoas físicas ou jurídicas:
I - advertência;
II - multa;
III - apreensão das amostras de componentes do patrimônio genético e dos
instrumentos utilizados na sua coleta ou no processamento ou dos produtos obtidos a
partir de informação sobre conhecimento tradicional associado;
IV - apreensão dos produtos derivados de amostra de componente do patrimônio
genético ou do conhecimento tradicional associado;
V - suspensão da venda do produto derivado de amostra de componente do
patrimônio genético ou do conhecimento tradicional associado e sua apreensão;
VI - embargo da atividade;
VII - interdição parcial ou total do estabelecimento, atividade ou empreendimento;
VIII - suspensão de registro, patente, licença ou autorização;
IX - cancelamento de registro, patente, licença ou autorização;
X - perda ou restrição de incentivo e benefício fiscal concedidos pelo governo;
XI - perda ou suspensão da participação em linha de financiamento em
estabelecimento oficial de crédito;
XII - intervenção no estabelecimento; e
XIII - proibição de contratar com a administração pública, por período de até cinco
anos.
§ 1o Entende-se como produtos obtidos a partir de informação sobre conhecimento
tradicional associado, previstos no inciso III do caput, os registros, em quaisquer
meios, de informações relacionadas a este conhecimento.
§ 2o Se o autuado, com uma única conduta, cometer mais de uma infração, ser-lhe-
ão aplicadas, cumulativamente, as sanções a ela cominadas.
§ 3o As sanções previstas nos incisos I e III a XIII poderão ser aplicadas
independente da previsão única de pena de multa para as infrações administrativas
descritas neste Decreto.
Importante destacar que, em certas situações, o servidor público deve utilizar-se
do bom senso, como por exemplo, se um menino for flagrado com dois vidros com insetos
(um vidro com um inseto já morto e outro com formigas) e, segundo a mãe que o
acompanhar, ele é estudante de biologia, e a coleta era apenas por curiosidade que havia
coletado em um passeio na floresta; prontamente, o material deve ser apreendido, as formigas
devem ser soltas e o estudante advertido sem cominação de multa.
A “REMESSA”COMO INFRAÇÃO
O Decreto Federal nº 5.459/2005, no intuito de abraçar e penalizar todas as hipóteses de
infração, traz em seu bojo a infração de “remeter”:
Art. 17. Remeter para o exterior amostra de componente do patrimônio genético sem
autorização do órgão competente ou em desacordo com a autorização obtida:
Multa mínima de R$ 10.000,00 (dez mil reais) e máxima de R$ 5.000.000,00 (cinco
milhões de reais), quando se tratar de pessoa jurídica, e multa mínima de R$
5.000,00 (cinco mil reais) e máxima de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais), quando
se tratar de pessoa física.
§ 1o Pune-se a tentativa do cometimento da infração de que trata o caput com a
multa correspondente à infração consumada, diminuída de um terço.
§ 2o Diz-se tentada uma infração, quando, iniciada a sua execução, não se consuma
por circunstâncias alheias à vontade do agente.
§ 3o A pena prevista no caput será aumentada da metade se a amostra for obtida a
partir de espécie constante da lista oficial da fauna brasileira ameaçada de extinção e
do Anexo I da Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Flora e
Fauna Selvagens em Perigo de Extinção - CITES.
§ 4o A pena prevista no caput será aplicada em dobro se a amostra for obtida a partir
de espécie constante da lista oficial de fauna brasileira ameaçada de extinção e do
Anexo II da CITES.
§ 5o A pena prevista no caput será aplicada em dobro se a amostra for obtida a partir
de espécie constante da lista oficial da flora brasileira ameaçada de extinção.
As ações de fiscalização à infração de “remessa” do componente do patrimônio
genético para o exterior é mais acentuadas nas áreas portuárias, aeroportuárias, rodoviárias,
principalmente em locais de fronteiras ou estratégicos com certa proximidade das áreas de
coletas. Nessas áreas ocorre muito essas infrações, bem como sua tentativa; por isso, são
previstas as diversas sutilezas da parte dos infratores, tais como: preferem os horários
noturnos das passagens/viagens (geralmente onde há pouca fiscalização) e utilizam
camuflagem das embalagens, tais como a “aparência de oficialidade”, como por exemplo, a
utilização de uma caixa de isopor com selo da ANVISA16
que, em seu interior, continha uma
tartaruga).
16 Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
O perigo é maior quando ocorre certo ato, amparado oficialmente, utilizado para
fins criminosos ao patrimônio genético. Por exemplo: a exportação de peixes ornamentais
feito em Manaus-AM e Santarém-PA, autorizados pelo IBAMA. Quem garante que os peixes
estão sendo utilizados para fins ornamentais? Ou que a própria água, em que esses peixes
estão acondicionados, não está sendo utilizada para pesquisa de microorganismos (algas,
bactérias, etc.) contidos na sua composição?
Recentemente, essa questão dos peixes ornamentais foi levantada, na Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI) da Biopirataria17
, onde foram questionadas: a aprovação da
lista das espécies para exportação e se essas espécies liberadas foram provenientes de
pesquisa. Um dos depoentes disse “que as espécies são indicadas pelos próprios exportadores
com objetivos puramente comerciais e através de um acordo com o IBAMA, disse que soube
quando participou de uma câmara técnica sobre o assunto”. Segundo o depoente: “é um cartel,
ou seja, um grupo de cinco, seis empresas que formam uma associação e que trata desse
acordo com o órgão; das cento e oitenta (180) espécies poucas foram pesquisadas, não se sabe
o que pode ser retirada da natureza e a quantidade de espécie que não venham causar
desequilíbrio ecológico. E há certos indícios de biopirataria porque que através dessa remessa
“oficial”, o que não está sendo pesquisada aqui, provavelmente está sendo pesquisado lá
fora”.
É temerário saber, e nada fazer, que essas empresas “extraem” os peixes
ornamentais diretamente dos rios da Amazônia, ou seja, não criam em cativeiro, não tem custo
e exportam livremente sem nenhuma restrição, deixando o país, de receber quaisquer
participação nos possíveis frutos das descobertas cientificas futuras, advindas destas espécies.
Há um contrassenso, pois, de outra parte, há diversas espécies comerciais com finalidade de
consumo final para alimentação que passam pelo crivo rigoroso da fiscalização, na época do
defeso (procriação e tamanho mínimo de captura), justamente para não desequilibrar o
ecossistema e diminuir os estoques naturais das espécies nos rios. Há uma necessidade do
IBAMA reparar tal ato, para não fomentar ou contribuir com a provável infração de remessa
do patrimônio genético.
Este é, então, mais um ponto que justifica o presente artigo, pois o objetivo ‘;e que
a sociedade como um todo e, principalmente a comunidade acadêmica, tome conhecimento da
causa e passe a agir no sentido de cobrar politicas publicas protetivas.
17 42ª Reunião da Comissão Parlamentar de Inquérito, destinada a investigar o tráfico de animais e plantas
silvestres brasileiros, a exploração e comércio ilegal de madeiras e a biopirataria, ocorrida no dia 15/09/2005.
Disponível em:<www.camara.gov.br/internet/comissao>. Acesso em 7 agot. 2012.
Essa infração de remeter, bem como a sua tentativa, é punível com agravantes na
aplicação da pena e podem se constituir concursos de crimes, previstos na lei de crimes
ambientais n° 9.605/9818
, quando sua amostra for não só parte, mas também, como quase em
todas as ocasiões, é a própria espécie da fauna e flora em extinção que é remetida. Os
infratores, ao serem flagrados, devem ser penalizados com esses enquadramentos para serem
punidos de forma mais severas, ou seja, também devem ser punidos por crime e não somente
por uma infração administrativa.
Na prática, a fiscalização dessa infração é viabilizada e facilitada, na sua maior
parte, com equipamentos de raios-X de bagagens instalados em locais estratégicos nos portos
e aeroportos, além de inspeção de cargas e vistorias de bagagens. Mas o IBAMA,
infelizmente, não conta com esses equipamentos. Na sua maior parte as operações de
fiscalização com raios-X são feitas em parceria com a Receita Federal e a Infraero, nos
aeroportos internacionais que possuem esses serviços.
Não há ainda infraestrutura para esse tipo de fiscalização nas áreas de fronteiras e
em locais estratégicos, mesmos nos portos e aeroportos. Há uma urgente necessidade da
fiscalização do IBAMA investir em equipamentos e pessoal capacitado. Inclusive, promover
para seus os fiscais treinamento em serviços de investigação e inteligência para combater esse
tipo de ato lesivo ao patrimônio genético. Porque, pela sua característica de portabilidade, as
amostras permitem ser remessadas de formas sutis e imperceptíveis para o exterior,
configurando uma forma inequívoca de biopirataria e sendo muito difícil de ser apurada.
AS INFRAÇÕES DE “DEIXAR DE REPARTIR E PRESTAR INFORMAÇÃO FALSA
OU OMITIR INFORMAÇÕES”.
O Decreto nº 5.459/2005 também tipifica a conduta de “deixar de repartir e falsidade de
informações”, in verbis :
Art. 18. Deixar de repartir, quando existentes, os benefícios resultantes da
exploração econômica de produto ou processo desenvolvido a partir do
acesso a amostra do patrimônio genético ou do conhecimento tradicional
associado com quem de direito, de acordo com o disposto na Medida
Provisória no 2.186-16, de 2001, ou de acordo com o Contrato de Utilização
do Patrimônio Genético e de Repartição de Benefícios anuído pelo Conselho
de Gestão do Patrimônio Genético: [...]
Art. 19. Prestar falsa informação ou omitir ao Poder Público informação
essencial sobre atividade de pesquisa, bioprospecção ou desenvolvimento
18 Artigos 29, 46 e 53 da LEI Nº 9.605, DE 12 DE FEVEREIRO DE 1998.
tecnológico relacionada ao patrimônio genético, por ocasião de auditoria,
fiscalização ou requerimento de autorização de acesso ou remessa: [...]
O IBAMA possui uma cartilha19
que tem explicações sobre o acesso ao
Patrimônio Genético e remessa de amostra deste. O objetivo é “orientar, esclarecer e subsidiar
técnicos e usuários do IBAMA sobre a legislação e procedimentos relativos ás autorizações de
acesso ao patrimônio genético e remessa de componente do patrimônio genético, com
finalidade de pesquisa científica”. Também existe na rede mundial as “Regras para o Acesso
Legal ao Patrimônio Genético e Conhecimento Tradicional Associado”20
, editada pelo CGEN
(Conselho de Gestão do Patrimônio Genético) que orienta e credencia as pessoas jurídicas,
quando a finalidade da remessa envolver acesso ao patrimônio genético, visando atividades
com potencial econômico, como bioprospecção, desenvolvimento tecnológico.
O SISBIO21
é o sistema propriamente criado para cadastrar e autorizar por meio
eletrônico os pesquisadores para ao acesso para fins científicos e didáticos (ensino superior)
de: Coleta e transporte de material biológico; Captura ou marcação de animais silvestres in
situ; Manutenção temporária de espécimes de fauna silvestre em cativeiro para
experimentação científica; Realização de pesquisa em unidade de conservação federal ou em
cavernas.
Através dessas orientações e posterior credenciamentos no SISBIO, as empresas e
as pessoas passam a fazer parte do banco de dados do IBAMA, ICMBIO22
e do CGEN, onde
obtém as devidas autorizações. Com isso passam a ser objetos de fiscalização do IBAMA nas
suas atividades, nos seus contratos de Utilização do Patrimônio Genético e de Repartição de
Benefícios, seus termos de transferências de material (TTM), termos de responsabilidade de
transporte de amostras de componentes do patrimônio genético (TRTM), seus documentos de
comprovação e apresentação exigidos nas solicitações de autorizações, etc.
Enfim se, no ato fiscalizatório ou através de auditoria, apurar que ocorreu
descumprimento de contrato, deixando de repartir os benefícios ou foram omitidas ou
prestadas informações falsas nos pedidos de autorização ao poder público, as empresas
credenciadas bem como as pessoas envolvidas são passivas de autuações e de sanções
previstas nos artigos supracitados.
19 Disponível em:<http://www.ibama.gov.br/patrimonio/CartilhaAcesso190805.pdf>. Acesso em 19 ago. 2012. 20Disponível em:<http://www.mma.gov.br/port/cgen>. Acesso em 02 ago. 2012. 21 Sistema de Autorização e Informação em Biodiversidade – Instituído pela Instrução Normativa IBAMA nº
154, de 01 de março de 2007. 22 O Instituto Chico Mendes de Conservação a Biodiversidade – ICMBIO, através da Portaria nº236/2008 do
Ministério do Meio Ambiente - MMA, passou a gerir o SIBIO e aprovar as suas atividades. (Art. 1º e 2º )
FISCALIZAÇÃO DO CONHECIMENTO TRADICIONAL ASSOCIADO
Fiscalizar conhecimento é fiscalizar informações. Conforme dissemos, uma das
formas que se permite apurar as infrações cometidas ao conhecimento tradicional associado é
através do cumprimento do reconhecimento dessas informações, através das repartições de
benefícios provenientes da exigência de uma relação contratual. Essa é a forma que a
fiscalização deve atuar de uma maneira mais provável, onde os indícios são claros. De outra
forma, se torna um tanto complexa a forma de fiscalizar e proteger a informação.
Isto só ocorreria quando houvesse alguma denúncia por parte das comunidades ou
grupos tradicionais lesados da apropriação indébita dos seus conhecimentos. Portanto há
necessidade das instituições governamentais23
e não governamentais (ONGS) que estão em
contato com esse patrimônio intelectual e cultural, promover uma maior difusão e educação
dessas comunidades ou grupos tradicionais acerca dessa proteção legal dos seus
conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético, como forma de prevenção.
Geralmente, os povos das florestas ou chamados tradicionais não tem sequer
noção do valor dos seus conhecimentos e informações; ou seja, os principais interessados não
sabem o valor que possuem. É certo que os mesmos não possuem “ocas ou barracos”
armazenando livros ou conhecimentos escritos, em formas de bibliotecas, mas o
conhecimento é passado na mente dos indivíduos de geração para geração. Somente quem
freqüenta os espaços das comunidades tradicionais, sabe como as pessoas se sentem
orgulhosas em divulgar seus conhecimentos e suas pajelanças. O que torna a fiscalização um
tanto complexa e de difícil atuação na apuração dos acessos e divulgação dos seus
conhecimentos.
O Decreto 5.459/05 separa um Capítulo para descrever as infrações cometidas ao
conhecimento tradicional associado, nele estão previstas ações lesivas e suas respectivas
sanções. A começar pelos acessos não autorizados do conhecimento tradicional, conforme
explicado anteriormente, sobre as infrações do acesso ao patrimônio genético, o legislador
pune também os acessos de acordo com a finalidade, como mostram os artigos 20 e 21 a
seguir:
Art. 20. Acessar conhecimento tradicional associado para fins de pesquisa
científica sem a autorização do órgão competente ou em desacordo com a
obtida:
Multa mínima de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) e máxima de R$ 500.000,00
(quinhentos mil reais), quando se tratar de pessoa jurídica, e multa mínima de
R$ 1.000,00 (mil reais) e máxima de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais),
quando se tratar de pessoa física.
23 Empresas de Extensão Rural, Fundação Nacional do Índio (FUNAI), IBAMA, ICMBIO, INCRA (Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária), etc.
Art. 21. Acessar conhecimento tradicional associado para fins de
bioprospecção ou desenvolvimento tecnológico sem a autorização do órgão
competente ou em desacordo com a obtida:
Multa mínima de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais) e máxima de R$
15.000.000,00 (quinze milhões de reais), quando se tratar de pessoa jurídica,
e multa mínima de R$ 10.000,00 (dez mil reais) e máxima de R$ 100.000,00
(cem mil reais), quando se tratar de pessoa física.
§ 1o A pena prevista no caput será aumentada de um terço caso haja
reivindicação de direito de propriedade industrial de qualquer natureza
relacionado a produto ou processo obtido a partir do acesso ilícito junto a
órgão nacional ou estrangeiro competente.
§ 2o A pena prevista no caput será aumentada de metade se houver
exploração econômica de produto ou processo obtido a partir de acesso ilícito
ao conhecimento tradicional associado.
É lamentável, o aparecimento tardio da legislação punitiva desse acesso
clandestino ao conhecimento tradicional e nenhuma punição criminal. Tendo em vista que a
maior parte desse conhecimento já fora acessado de forma gratuita e muitas empresas
internacionais já estão auferindo milhões de dólares através das bioprospecções, pesquisas e
avanços tecnológicos que geraram princípios ativos, compostos e propriedades industriais já
patenteadas. Também grande parte do conteúdo desses conhecimentos já está publicada em
diversos livros, auferindo lucros as editoras e os falsos autores, não repartindo nenhum
benefício com as populações detentoras do conhecimento tradicional.
Em pretérito recentemente foi lançado em Santarém no Estado do Pará, um livro
intitulado Frutíferas e Plantas Úteis na Vida Amazônica24
, que a seguinte descrição:
Frutíferas e Plantas Úteis na Amazônia integra saberes científicos e
tradicionais sobre 21 espécies de árvores, cipós e palmeiras com grande
importância para as populações locais. As pesquisas ecológicas, cantos,
receita, lendas e ilustrações valorizam a cultura amazônica transmitem
práticas que servem para as pessoas do campo e cidade.
Nesta época de rápidas mudanças no uso da floresta, é preciso conciliar os
diferentes interesses para gerar benefícios a todos. A idéia de apresentar as
descobertas científicas e conhecimento tradicional em um livro ilustrado com
uma linguagem simples nasceu da percepção de que os resultados da pesquisa
são raramente devolvidos para as pessoas do interior.
Se fosse permitida a retroatividade do Decreto 5.459/05, certamente a empresa, os
autores e pesquisadores envolvidos nessa publicação, já deveriam ser autuados, com fulcro
nos seus artigos 22 ou 23 que dizem:
Art. 22. Divulgar, transmitir ou retransmitir dados ou informações que
integram ou constituem conhecimento tradicional associado, sem autorização
do órgão competente ou em desacordo com a autorização obtida, quando
exigida:
Multa mínima de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) e máxima de R$ 500.000,00
24 Shanley, Patrícia. Frutíferas e Plantas Úteis na Vida Amazônica. Belém: CIFOR/ Imazon, 2005.
(quinhentos mil reais), quando se tratar de pessoa jurídica, e multa mínima de
R$ 1.000,00 (mil reais) e máxima de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais),
quando se tratar de pessoa física.
Art. 23. Omitir a origem de conhecimento tradicional associado em
publicação, registro, inventário, utilização, exploração, transmissão ou
qualquer forma de divulgação em que este conhecimento seja direta ou
indiretamente mencionado:
Multa mínima de R$ 10.000,00 (dez mil reais) e máxima de R$ 200.000,00
(duzentos mil reais), quando se tratar de pessoa jurídica, e multa mínima de
R$ 5.000,00 (cinco mil reais) e máxima de R$ 20.000,00 (vinte mil reais),
quando se tratar de pessoa física.
Mas como diz o dito popular “antes tarde do que nunca”. A legislação está em
vigor desde a data de sua promulgação para frente. Basta à fiscalização, ficar atenta para as
informações e publicações que tratam de conhecimento tradicional associado e as novas
propostas de autorizações para acesso e remessa desse conhecimento. Na ocasião das
auditorias, fiscalizações e no requerimento de acesso e remessa (art.24 do decreto 5.459/05), é
necessário constante trabalho para apurar as infrações e responsabilizar os infratores com as
sanções previstas, quando os mesmos: acessar, divulgar, transmitir, retransmitir sem
autorização e omitir, quando solicitadas, às informações sobre atividades de acesso ao
conhecimento tradicional.
Mas é fundamental que se promova a educação ambiental e divulgação do valor
do conhecimento nas comunidades tradicionais e nas aldeias indígenas, à fim de que os
mesmos sejam seus próprios gestores e tenham como parceiros o IBAMA, o CGEN, bem
como o Ministério Público para fazer valer os seus direitos à repartição dos benefícios
provindos desses conhecimentos. Essas populações são verdadeiros “atalhos” ou “canais”
para descobertas de princípios ativos, substâncias tecnológicas e enfim, patrimônios genéticos
que muito dão lucro a quem processa e os detêm.
Por esse motivo, é de vital importância tornarmos público essas reflexões e
informações, também junto à comunidade acadêmica e científica, à fim de que esforços sejam
implementados para assegurarmos a devida proteção destes recursos; pois esse “ouro verde”
pertence ao Brasil e ao seu povo. No mundo globalizado, quem quer que deseje explorar estes
recursos, deverá repartir os benefícios deste produção, com aqueles que detém as fontes de
produção e do conhecimento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante das colocações apresentadas, se percebe o quanto se tem de desafios e
lições a serem aprendidas nesse campo de atuação do IBAMA. A sociedade sempre espera
por respostas, ou seja, uma atuação eficaz da fiscalização com maior proteção desse rico
patrimônio chamado biodiversidade e do seu valoroso conhecimento associado, que colocará
a nação em posição de destaque e superioridade.
Não há lugar mais para as expropriações e furtos da biodiversidade e do
conhecimento tradicional, num contexto de profundas mudanças tecnológicas e acirradas
competições econômicas. O país deve acordar para essas transformações, principalmente no
campo das informações, para tanto é necessário que a sociedade se aproprie de conhecimentos
para poder se apropriar de suas riquezas.
As maiores apreensões e combates aos crimes ambientais são provenientes de
informações advindas de denúncias, A participação da sociedade civil é fundamental no
processo fiscalizatório. Pode ser a mais sutil das investidas contra a natureza, mas se houver,
naquela dimensão, um indivíduo consciente que denuncie, o crime é apurado e combatido.
Mas isso também não basta, é preciso uma conscientização maior por parte dos operadores do
direito, da comunidade científica e, principalmente, uma maior vontade política e ética dos
governantes para a maior instrumentalização desse segmento estratégico, que são os órgãos do
meio ambiente nas esferas municipal, estadual e federal.
Também é fundamental o papel dos legisladores em criar leis penais específicas
para esse tipo de furto do patrimônio genético e do conhecimento tradicional associado, que é
um patrimônio imaterial. Melhorando o poder coercitivo do Estado evitar-se-á que cientistas
estrangeiros infratores e pessoas inescrupulosas saiam impunes do país. Pois somente as
multas e penas administrativas não os intimidam, eles saem do país sem até pagá-las ou
cumpri-las. São necessárias normas penais de detenção e reclusão, pois só assim é que o
individuo infrator, diante da perda da liberdade, diminuirá a prática de ações ilícitas.
Indubitavelmente, além da sociedade consciente, também será necessário que o
IBAMA seja equipado e preparado para atender as suas demandas, melhorando assim a
eficácia dos instrumentos de proteção da megadiversidade biológica brasileira e do seu
patrimônio intelectual associado.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Congresso Nacional, Brasília,
1988.
BRASIL. Decreto nº. 5.459, de 07 de junho de 2005. Regulamenta o art. 30 da Medida
Provisória no 2.186-16, de 23 de agosto de 2001, disciplinando as sanções aplicáveis às
condutas e atividades lesivas ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional
associado e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em:
03 de janeiro de 2012;
______. Decreto Lei 2.848 de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 04 de janeiro de 2012;
______. Decreto nº. 6.514, de 22 de julho de 2008. Dispõe sobre a especificação das
sanções aplicáveis às condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras
providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 04 de janeiro de 2012;
______. Lei 9.605 de 12 de fevereiro de 1988. Dispõe sobre as sanções penais e
administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras
providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 03 de janeiro de 2012;
______. Lei 6938 de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio
Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 03 de janeiro de 2012;
______. Medida Provisória Nº 2.186-16, de 23 de agosto de 2001. Regulamenta o inciso II
do § 1º e o § 4º do Art. 225 da Constituição, os arts. 1º, 8º, alínea "j", 10, alínea "c", 15 e 16,
alíneas 3 e 4 da Convenção sobre Diversidade Biológica, dispõe sobre o acesso ao patrimônio
genético, a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado, a repartição de
benefícios e o acesso à tecnologia e transferência de tecnologia para sua conservação e
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A CONCESSÃO DE INCENTIVOS FISCAIS COMO INSTRUMENTO DA
POLÍTICA NACIONAL DE RESÍDUOS SÓLIDOS: UMA POSSIBILIDADE
ABERTA À DISCUSSÃO
GRANTING TAX INCENTIVES AS A TOOL OF THE NATIONAL SOLID
WASTE: A CHANCE TO OPEN DISCUSSION
Germana Parente Neiva Belchior 1
Fernanda Mara de Oliveira Macedo Carneiro Pacobahyba 2
RESUMO
No âmbito do Direito Ambiental, um dos temas que mais demanda investigação é a
questão em torno dos resíduos sólidos, problemática oriunda dos efeitos deletérios de
uma sociedade de consumo, pós-industrial, pós-moderna, coberta por riscos não apenas
previsíveis, mas também imprevisíveis. Dentro desse contexto, em 2 de agosto de 2010,
foi publicada a Lei nº 12.305, que instituiu a Política Nacional dos Resíduos Sólidos
(PNRS), tratando de um conjunto de princípios, objetivos e instrumentos para uma
gestão integrada dos resíduos sólidos. Dentre os instrumentos previstos na PNRS,
destaca-se a utilização de incentivos fiscais em atividades econômicas que se coadunem
com o desenvolvimento sustentável, sendo este o objeto de investigação deste trabalho
científico. A partir de uma pesquisa de natureza bibliográfica, descritiva e exploratória,
verifica-se que o desenho dos incentivos fiscais na PNRS deve ser o mais amplo
possível, incluindo desde desonerações tributárias até melhores condições para o
cumprimento das obrigações tributárias, sejam elas principais ou acessórias. Conclui-se,
ainda, que há de ser ampliada a base de exações tributárias as quais podem ser aplicados
tais incentivos, abarcando todos aqueles tributos que incidam sobre empresas que
realizem atividades condizentes com os objetivos estabelecidos na lei da PNRS.
PALAVRAS-CHAVE
MEIO AMBIENTE; RESÍDUOS SÓLIDOS; POLÍTICAS PÚBLICAS; INCENTIVOS
FISCAIS.
ABSTRACT
Under the Environmental Law, one of the issues that demand more research is around
the issue of solid waste, problems arising from the deleterious effects of a consumer
1 Doutoranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Direito Constitucional
pela Universidade Federal do Ceará. Analista jurídica da Secretaria da Fazenda do Estado do Ceará.
Professora universitária. E-mail: [email protected] 2 Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR. Especialista em Direito
Empresarial pela Universidade Estadual do Ceará – UECE. Analista jurídica da Secretaria da Fazenda do
Estado do Ceará. Professora universitária. E-mail: [email protected]
society, postindustrial, postmodern, covered for risks not only predictable, but also
unpredictable. Within this context, on August 2, 2010, was published Law No. 12.305,
which established the National Policy of Solid Waste (PNRS), dealing with a set of
principles, objectives and instruments for management integrated solid waste. Among
the tools provided in PNRS, we highlight the use of tax incentives in economic
activities that are consistent with sustainable development, which is the object of
investigation of this scientific work. From a bibliographical research, descriptive and
exploratory, it appears that the design of tax incentives on PNRS should be as broad as
possible, ranging from tax cuts until better conditions for the fulfillment of tax
obligations, whether principal or accessory. We conclude further that there is to be
extended to base tax exactions which can be applied such incentives, embracing all
those taxes levied on companies that perform activities consistent with the goals
established in law PNRS.
KEY-WORDS
ENVIRONMENT; SOLID WASTE; PUBLIC POLICY; TAX INCENTIVES.
INTRODUÇÃO
Ao considerar o aumento da demanda por uma infinidade de produtos,
estimulada pela lógica da sociedade de consumo, bem como a ineficiência dos
processos produtivos e o superprocessamento de alimentos, a temática em torno dos
resíduos sólidos se torna um dos problemas mais relevantes no atual contexto
socioambiental e econômico.
Depois de quase duas décadas de discussão, a Lei nº 12.305, de 2 de agosto de
2010, instituiu a Política Nacional dos Resíduos Sólidos (PNRS), que trata de um
conjunto de princípios, objetivos e instrumentos para uma gestão integrada dos resíduos
sólidos.
Dentre os instrumentos previstos na PNRS, destaca-se a utilização de incentivos
fiscais em atividades econômicas que se coadunem com o desenvolvimento sustentável,
conforme previsto em seu art. 8º, inciso IV, contribuindo, assim, para uma gestão
efetiva de resíduos.
O estudo é relevante na medida em que a PNRS é recente no ordenamento
jurídico brasileiro, o que demanda pesquisa em torno de sua efetivação. Sabe-se que o
fato de existir uma política em torno dos resíduos sólidos não significa que, por si só,
seja suficiente para garantir que seja implementada.
É exatamente dentro dessa linha que a PNRS traz metas que devem ser seguidas
pelos Estados e municípios, incluindo condicionantes de repasses financeiros como
forma de estimular a planificação e o gerenciamento dos resíduos, de acordo com seus
arts. 16 e 18.
Dessa forma, o objetivo geral deste trabalho é investigar a possibilidade da
utilização dos incentivos fiscais para a efetivação de uma política de resíduos sólidos.
Destaca-se, por oportuno, que não se abordará a questão em torno dos incentivos
financeiros e creditícios, não obstante reconhecer a sua importância como instrumentos
da PNRS.
Em um primeiro momento, discute-se a racionalidade complexa que permeia o
Direito Ambiental, caracterizada por uma sociedade de risco, pós-moderna e de
consumo, o que demanda uma gestão preventiva e precaucional dos riscos e danos
ambientais. Em seguida, aborda-se a conjuntura que ensejou a criação da Política
Nacional de Resíduos Sólidos, a partir da Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010,
destacando algumas nuances de sua estruturação para, por fim, enfrentar os desafios em
torno da utilização de incentivos fiscais como instrumento de implementação dos
objetivos da PNRS.
A metodologia utilizada é bibliográfica, descritiva e exploratória, a partir de
estudos desenvolvidos na doutrina brasileira e estrangeira, por meio de um diálogo inter
e transdisciplinar.
1 RISCO, PÓS-MODERNIDADE E MEIO AMBIENTE: UM DIÁLOGO
PRELIMINAR NECESSÁRIO
A modernidade é uma das consequências geradas pelo Iluminismo, momento
histórico marcado pela Revolução Francesa, acontecimento que causou transformações
irreversíveis na sociedade. Proclama-se, a partir de então, de forma mais incisiva, o
racionalismo, o antropocentrismo clássico e o universalismo.
Nas palavras de Giddens (1991, p. 11), modernidade “refere-se a estilo, costume
de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que
ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência”.
O lema da Revolução de 1789 — Liberdade, Igualdade e Fraternidade — não
alcançou todos os homens, o que produziu a intensificação das diferenças entre classes
sociais e, principalmente, entre países. Embora as suas promessas tenham sido guiadas
pelo tom da universalidade, terminaram incumpridas para diversas localidades. A
existência de uma vida moderna – com segurança, liberdade e disponibilidade de bem-
estar – ficou longe de ser alcançada por todos. Assim, pode-se considerar o projeto
utópico da Revolução Francesa, em parte, fracassado. Boa parte daquilo que se pregava,
não aconteceu.
É exatamente desse fracasso que se considera ter nascido o atual momento da
pós-modernidade, marcado por uma sociedade pós-industrial, de consumo, assim como
pelo risco e excessivo individualismo do homem.
No entanto, Giddens (1991, p. 13) destaca que “em vez de estarmos entrando
num período de pós-modernidade, estamos alcançando um período em que as
conseqüências da modernidade estão se tornando mais radicalizadas e universalizadas
do que antes”. Na mesma linha, aponta Charles (2009) que o atual momento deve ser
conceituado como “hipermoderno”, pois retrata o excesso de características modernas.
O futuro passou a ser visto como algo “assustadoramente desconhecido e
impenetrável. [...]. No mar das incertezas, procura-se a salvação nas ilhotas da
segurança”, consoante anota Bauman (2004). Referidas ilhas, no entanto, garantidoras
de segurança, são incertas demais, inserindo o homem cada vez mais em sentimentos
relacionados ao medo e à insegurança.
Ante tal realidade é que se deve buscar estabelecer zonas seguras para a
humanidade. Não se pode viver à mercê de riscos e de incertezas, de forma total, sob
pena de se viver em um verdadeiro caos ou retroceder ao estado de natureza
hobbesiano.
A pós-modernidade é caracterizada ainda pela liquidez dos conceitos. Diz-se
líquido aquilo que não é sólido, isto é, que não se enquadra em formas rígidas. Ao
contrário, trata-se de conceitos maleáveis, flexíveis, fluidos. Essa nova realidade reflete
diretamente na vida do homem que sofre diante da crise de valores, da falta de
referência, como bem relata Bauman (2004).
Por se viver em uma sociedade marcada por conceitos frágeis, perdem-se
referências e valores, o que submete a risco o andamento da civilização, que já não sabe
onde está, muito menos para onde irá, diante de tantas incertezas.
Vive-se, pois, em uma fase de transição, em que homens e mulheres adentram
uma época marcada pelo mal-estar social, fruto das aflições e sofrimentos típicos da
pós-modernidade, aturdidos pela escassez de sentido, pela porosidade dos limites,
incongruência das sequências, volubilidade da lógica e fragilidade das autoridades
(BAUMAN, 1998). É a própria constatação da crise paradigmática típica do século
XXI.
O “caráter líquido dos conceitos”, referido por Bauman, não está limitado às
relações humanas. Ao contrário, percebe-se que a insegurança e a incerteza estão se
espalhando por todo o conhecimento científico, provocando, assim, uma crise no
paradigma moderno de ciência.
Segundo Prigogine (1996, p. 13), “a ciência clássica privilegiava a ordem, a
estabilidade, ao passo que em todos os níveis de observação reconhecemos agora o
papel primordial das flutuações e da instabilidade”. Trata-se exatamente dos dogmas de
verdade e de certeza, pautados em uma racionalidade clássica, elementos estes que
permearam a ideia de ciência concebida durante a modernidade.
Nesse sentido, o senso comum se reabilita, se constrói, na medida em que todo
processo de conhecimento também se torna um autoconhecimento. Sujeito e objeto
estão cada vez mais integrados e interdependentes. Para Prigogine (1996, p. 14) , “[...]
assistimos ao surgimento de uma ciência que não mais se limita a situações
simplificadas, mas se põe diante da complexidade do mundo real”. Diante dessa nova
subjetividade, verifica-se o surgimento de uma ciência pós-moderna, vinculada a uma
nova racionalidade (SANTOS, 1989, p. 70).
Na mesma linha é o entendimento de Popper (2004, p. 14), ao asseverar que “o
conhecimento não começa de percepções ou observações ou de coleção de fatos ou
números, porém, começa mais propriamente, de problemas”. Ao se deparar com um
problema e achar uma solução adequada, não significa o fim de um ciclo, pois a cada
nova solução, há novos problemas, surgindo a necessidade de novas soluções.
Depara-se com questionamentos e inquietações que a ciência moderna não
consegue responder, tendo em vista que a racionalidade clássica está pautada em um
pensamento linear e cartesiano. Não há como se “encaixotar” todos os problemas a
partir de um silogismo. É por isso que a ciência pós-moderna se abre, se reinventa e se
constrói a partir de uma racionalidade complexa.
Sobre o tema, manifestam-se Morin e Moigne (2000, p. 209-212):
O desenvolvimento do conhecimento científico é poderoso meio de
detecção dos erros e de luta contra ilusões. Entretanto, os paradigmas
que controlam a ciência podem desenvolver ilusões, e nenhuma teoria
científica está imune para sempre contra o erro. Além disso, o
conhecimento científico não pode tratar sozinho dos problemas
epistemológicos, filosóficos e éticos.
Trabalhar com a ideia de uma verdade absoluta ou pautado em paradigmas, com
o objetivo de elaborar um conhecimento científico, é criar falsas conclusões sobre a
pesquisa, pois o meio utilizado para o fim limita o senso crítico e as possibilidades de
conclusões do pesquisador.
Portanto, a ciência pós-moderna é pautada em uma racionalidade complexa.
Pensar complexo é abandonar o pensamento linear fundamentado no paradigma
moderno e nas certezas científicas, passando a entender o mundo sob uma visão global,
não uniforme e líquido; é perceber que o pensamento científico deve estar sempre
acessível a novas perspectivas.
Dentro desse contexto, toda essa discussão em torno da ciência, da pós-
modernidade e da complexidade influenciam diretamente o Direito, em especial o
Direito Ambiental, que é ontologicamente complexo.
Muitas das consequências negativas dos danos ambientais não são sentidas de
forma mais concreta pela sociedade. Pelo menos não em relação àquela sociedade da
geração que contribuiu diretamente para o impacto. Parece que o meio ambiente está
muito distante, pois seus efeitos não são visualizados de uma forma mais presente no
dia a dia das pessoas. Não traz, assim, repercussão, de imediato, para a geração atual.
Em outras palavras, o que se faz hoje não tem como ser percebido
momentaneamente. A geração atual sofre o descaso daquela que lhe antecedeu. E a
atual contribui para os impactos que serão sofridos por aquela que ainda está por vir. Ou
seja, “todo o passado é uma etapa preparatória para o presente e todo o presente é uma
etapa preparatória para o futuro”. (JONAS, 2006, p. 55)
Diante da complexidade que paira em torno das questões ambientais, Canotilho
(2008, p. 1) aponta a existência de problemas ambientais de primeira e de segunda
geração. Da mesma forma que ocorre na teoria das gerações de direitos fundamentais,
as duas gerações de problemas ambientais não são excludentes, mas complementares,
demonstrando a maturidade do Direito Ambiental em um determinado ordenamento
jurídico.
Ensina o autor que na primeira fase de normatização da tutela jurídica do meio
ambiente ocorre a criação de instrumentos de controle e de prevenção da poluição, bem
como a “subjectivização do direito ao ambiente como direito fundamental ambiental”
(CANOTILHO, 2008, p. 1). Neste momento, percebe-se a importância da utilização dos
princípios da prevenção e do poluidor-pagador, amparados por uma racionalidade
técnica clássica e econômica, como proclama a modernidade simples.
Dentro desse contexto, a revolução industrial do século XVIII foi o embrião do
que se chama hoje de sociedade de risco (BECK, 1998), potencializada pelo
desenvolvimento tecno-científico e caracterizada pelo incremento na incerteza quanto às
consequências das atividades e tecnologias empregadas no processo econômico.
(ROCHA, 2009)
A sociedade de risco, segundo Beck (1998, p. 13), “designa uma fase no
desenvolvimento da sociedade moderna, em que os riscos sociais, políticos, econômicos
e individuais tendem cada vez mais a escapar das instituições para o controle a proteção
da sociedade industrial”.
Os riscos na chamada modernidade simples eram predominante locais,
verificados a partir da insalubridade do ambiente em que viviam os proletariados e
outras pessoas nos lugares poluídos pela indústria. (GOLDBLATT , 1996)
Os perigos podiam ser identificados pelos sentidos humanos, haja vista que se
relacionavam com riscos concretos, vinculados ao maquinário e à poluição gerada pela
emergência da Revolução Industrial. A causalidade simples era, pois, suficiente para
justificar e oferecer respostas à intervenção humana no meio ambiente.
Ocorre que a sociedade pós-industrial produz riscos que podem ser controlados e
outros que escapam ou neutralizam os mecanismos de controle típicos da sociedade
industrial.
Nessa linha, destaca-se que Beck aponta a existência de duas modalidades de
risco: o concreto ou potencial, que é visível e previsível pelo conhecimento humano
(modernidade simples); e o abstrato, que tem como característica a invisibilidade e a
imprevisibilidade pela racionalidade humana (modernidade reflexiva ou pós-
modernidade).
Sob a mesma ideia de Beck, aponta Giddens (2002) que o risco é expressão de
sociedades que se organizam sob a ênfase da inovação, da mudança e da ousadia.
Questiona-se, por conseguinte, a própria prudência e cautela da ciência em lidar com as
inovações tecnológicas e ambientais que, mesmo trazendo benefícios, estão causando
riscos sociais não mensuráveis.
Para agravar ainda mais o clima de incertezas a que se está imerso, o
desenvolvimento econômico abafa as consequências negativas do seu progresso, isto é,
há uma invisibilidade dos riscos ecológicos, decorrente do fato de que o Estado e os
setores privados interessados utilizam meios e instrumentos para ocultar as origens e os
efeitos do risco ecológico, com o objetivo de diminuir suas consequências, ou melhor,
com o fim de transmitir para a sociedade uma falsa ideia de que o risco ecológico está
controlado.
É o que Beck (1995) apontou como irresponsabilidade organizada. Para o
teórico, apesar da consciência da existência de riscos, estes são ocultados pelo Poder
Público e pelo setor privado. Assim, a irresponsabilidade organizada acaba
transformando o “Estado em faz de conta”, em “Estado fantoche”, que só dá
publicidade aos fatos científicos de acordo com seus interesses.
É de se notar que a sociedade contemporânea está pautada em uma
irresponsabilidade organizada, haja vista que as instituições públicas e civis parecem
ainda não terem se despertado para a necessidade de uma gestão compartilhada do risco.
Aliás, caso tenham se atentado, é preferível o silêncio, contribuindo para um anonimato
geral. No entanto, na medida em que a sociedade percebe uma incongruência do
discurso público com as consequências da crise ambiental e dos riscos a ela inerentes,
perde-se o referencial sólido do próprio Poder Público, incorporando-se à liquidez
sugerida por Bauman.
Como se vê, o risco é inerente à vida em sociedade. A aceitabilidade do risco é
própria da necessidade de desenvolvimento da civilização. Hodiernamente, o risco da
vida em sociedade adquiriu proporções oceânicas, nunca antes imaginadas, marcando a
civilização pós-moderna por uma atmosfera de insegurança e de incertezas, fruto dos
excessivos riscos aceitos por esta.
É preciso construir uma governança dos riscos. Nesse sentido, o Direito, como
ciência, precisa abrir espaços para discussões em torno de novas formas de
sociabilidade, por meio da criação de instrumentos jurídicos que busquem trazer à baila
medidas de gerenciamento preventivo do risco, baseado nos princípios da prevenção, da
precaução, da responsabilização e da solidariedade.
Goldblatt (1996), ao analisar a obra de Beck, aponta que as formas
contemporâneas de degradação do ambiente evidenciadas pelo referido autor não estão
limitadas em termos de espaço ao âmbito do seu impacto, muito menos confinadas em
um âmbito social a determinadas sociedades. Ao contrário, são potencialmente globais
dentro do seu alcance.
Dessa forma, constata-se que a razão humana, ora absoluta, que permitiu ao
homem a busca pela ciência e tecnologia como resposta para todas suas inquietações,
tornou-se relativa. Nem tudo o que o homem conhece é feito de forma segura, restando
espaços vazios incalculáveis que podem ser a causa de efeitos irreparáveis.
Aqui, embora de forma lenta, é visualizada a transição de um antropocentrismo
tradicional (ou limitado) para várias discussões éticas em torno do meio ambiente e da
vida em geral, sendo plantada a ideia da preocupação com as futuras gerações, cuja
dimensão será abordada em um segundo momento.
No âmbito do Direito Ambiental, tem-se que o risco concreto ou potencial é
controlado pelo princípio da prevenção, enquanto o abstrato encontra-se amparado no
princípio da precaução, ao investigar a probabilidade de o risco existir por meio da
verossimilhança e de evidências, mesmo não detendo o ser humano a capacidade
perfeita de compreender este fenômeno. Trata-se do que Canotilho (1998) intitula como
segunda geração de problemas ambientais.
Sobre o tema, destaca Milaré (2009, p. 140) que “os avanços proporcionados
pela ciência e pela técnica não significam necessariamente uma elevação do progresso e
do bem-estar, como se pensou a partir da Idade Moderna, na linha de uma espécie de
‘otimismo técnico’.” Explica, ainda, o autor que “a racionalidade técnica deixa de ser
encarada como um instrumento neutro para a promoção de objetivos da humanidade,
sendo indiscutível a sua potencialidade para se converter em mecanismo de opressão do
homem sobre a natureza.” (MILARÉ, 2008, p. 141)
Desta feita, a segunda geração de problemas ambientais é marcada por uma
“sensitividade ecológica mais sistêmica e cientificamente ancorada e pela relevância do
pluralismo legal global na regulação das questões ecológicas” (CANOTILHO, 1998, p.
2). Nesta ocasião, visualizam-se os efeitos combinados dos vários fatores de poluição e
de suas implicações globais e duradouras, como o efeito estufa, a destruição da
biodiversidade, as mudanças climáticas, dentre outros.
Percebe-se que a segunda geração preocupa-se com o porvir, com o dano
ambiental futuro e transfronteiriço, com as próximas gerações e com a função
preventiva do Direito, típicos de uma sociedade de risco (modernidade reflexiva ou pós-
modernidade). Neste momento, os estudos são voltados aos princípios da precaução e
da solidariedade.
Ao analisar o direito português, Canotilho (2008, p. 3) afirma que seu texto
constitucional é aberto, acolhendo tanto “instrumentos dúcteis como a informação, o
procedimento, a autoregulação e a flexibilização”, bem como medidas diretivas
“reconduzíveis a planos e controlos ambientais estratégicos”. Assim, as gerações de
problemas ambientais são abordadas por dois paradigmas distintos, sendo o primeiro o
paradigma da flexibilização, inspirado no pensamento cartesiano, enquanto o segundo,
ao se preocupar com o déficit de comando e de eficácia do momento anterior, trata-se de
um “paradigma do planejamento orientador e directivo”. (destaque no original)
A utilização do conceito de controle é adequada se considerar o Direito na
função tradicional de proteção-repressão. Com o emergente paradigma do Estado de
Direito Ambiental, a função do ordenamento jurídico, ora ecologizado, além de
controlar o comportamento dos indivíduos, baseia-se no direcionamento de
comportamentos desejáveis à luz da sustentabilidade.
É preciso que se construa numa racionalidade complexa, que investigue os
problemas ecológicos que são cada vez mais incertos, inseguros, imprevisíveis,
irreversíveis, transfronteiriços, graves, transdisciplinares e líquidos, como é o caso os
resíduos sólidos, temática principal deste trabalho científico.
2 A PROBLEMÁTICA EM TORNO DO ESTABELECIMENTO DE UMA
POLÍTICA NACIONAL DE RESÍDUOS SÓLIDOS
O desenvolvimento econômico opera sem que haja uma tutela adequada do meio
ambiente, ou seja, sem que se observe a capacidade de renovação dos recursos naturais
renováveis, os limites físicos e éticos à utilização dos não renováveis e de assimilação
dos resíduos pela natureza (KISS, 1988).
No Brasil, a proteção ambiental foi motivo de preocupação do constituinte por
se revelar essencial à promoção da dignidade da pessoa humana, ocupando, por
conseguinte, o patamar não apenas de direito fundamental, mas também de dever do
Estado, da sociedade e dos cidadãos, de acordo com a previsão do art. 225, da
Constituição Federal de 1988 (CF/88). Trata-se de um dever ético e jurídico, cujos
titulares possuem obrigações positivas e negativas, orientado pelos princípios que
estruturam o Direito Ambiental.
Em virtude da competência legislativa concorrente em matéria ambiental, nos
termos do art. 24, incisos VI e VIII, da CF/88, caberá à União estabelecer as normas
gerais, deixando aos Estados a competência suplementar. Referido dispositivo é a
fundamentação do princípio do mínimo existencial ecológico3, na medida em que impõe
um padrão mínimo ambiental que deve ser seguidos por todos os demais entes
federativos.
No âmbito do Direito Ambiental, um dos temas que mais demanda investigação
é a questão em torno dos resíduos sólidos, problemática oriunda dos efeitos deletérios
de uma sociedade de consumo, pós-industrial, pós-moderna, coberta por riscos não
apenas previsíveis, mas também imprevisíveis, conforme foi discutido no tópico inicial
deste trabalho.
Dentro desse contexto, a Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010, instituiu a
Política Nacional dos Resíduos Sólidos (PNRS), que trata de um conjunto de princípios,
objetivos e instrumentos para uma gestão integrada dos resíduos sólidos. 4Apesar do
atraso em relação a outros países, a norma não perde sua importância, uma vez que
prevê institutos inovadores ao direito positivo pátrio, como a logística reversa e a
responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos.
3 Referido princípio não é pacífico na doutrina pátria, mas sua defesa é fortalecida devido à competência
legislativa concorrente para as questões ambientais. (BELCHIOR, 2011) 4 Expõe Guerra (2012, p. 43) que, até a edição da citada lei, o Brasil apresentava sua gestão de resíduos
pautada por algumas ações pontuais do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) e outras
voluntárias por parte do mercado.
Ponto fundamental é entender o que são resíduos sólidos, tendo em vista as
nuances que permeiam seu conceito. Segundo Aragão (2006, p. 79), “o conceito de
resíduo tem sobressaltado a doutrina, agitado a jurisprudência, perturbado os
legisladores e desesperados os operadores econômicos”. Em seguida, afirma a
pesquisadora de Coimbra que “os resíduos são objetos corpóreos, apropriáveis e que por
serem desinteressantes para seu detentor, ele enjeitou”.
No que concerne à PNRS, o conceito de resíduos sólidos encontra-se
amplamente definido no inciso XVI do art. 3º. 5 Em seguida, o legislador previu no art.
13 a classificação dos resíduos quanto à origem e à periculosidade. 6
A PNRS prevê, em seu art. 9º, que na gestão e gerenciamento de resíduos
sólidos, deve ser observada a ordem de prioridade: “não geração, redução, reutilização,
reciclagem, tratamento dos resíduos sólidos e disposição final ambientalmente adequada
dos rejeitos”. De acordo com o referido dispositivo, uma política de reciclagem e
tratamento dos resíduos, por exemplo, deve estar necessariamente atrelada a medidas de
não geração, redução e reutilização.
Isto se deve ao fato de que durante o processo de extração, transformação e
consumo, são produzidos rejeitos que causam problemas ao ambiente e aos seres
humanos. Conviver com estes rejeitos tem se tornado cada vez mais difícil, em função
do aumento de quantidade dos prejuízos e dos riscos previsíveis (e até imprevisíveis)
que os mesmos acarretam, o que induz uma nova perspectiva econômica. (AGUILERA,
2006)
Decretar o seu fim não parece possível, mas é preciso uma gestão preventiva
adequada dos resíduos, incluindo as novas tecnologias existentes (DERNBACH, 2009).
Sobre o tema, Weizsäcker (2010) diz que cabe ao Estado criar condições econômicas
que permitam um desenvolvimento sustentável, a partir do aumento da produtividade
5 “[...] resíduos sólidos: material, substância, objeto ou bem descartado resultante de atividades humanas
em sociedade, a cuja destinação final se procede, se propõe proceder ou se está obrigado a proceder, nos
estados sólido ou semissólido, bem como gases contidos em recipientes e líquidos cujas particularidades
tornem inviável o seu lançamento na rede pública de esgotos ou em corpos d’água, ou exijam para isso
soluções técnica ou economicamente inviáveis em face da melhor tecnologia disponível; [...] “ 6 Quanto à origem, os resíduos se classificam em resíduos domiciliares, resíduos de limpeza urbana,
resíduos sólidos urbanos, resíduos de estabelecimentos comerciais e prestadores de serviços, resíduos dos
serviços públicos de saneamento básico, resíduos industriais, resíduos de serviços de saúde, resíduos da
construção civil, resíduos agrossilvopastoris, resíduos de serviços de transportes e, por fim, resíduos de
mineração. Quanto à periculosidade, os resíduos são perigosos ou não perigosos.
dos recursos naturais. Dessa forma, o Estado deve fomentar o uso de novas tecnologias
para crescimento com prosperidade e qualidade de vida.
De acordo com estudos desenvolvidos pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA), com a finalidade de gerar subsídios para elaboração do Plano
Nacional de Resíduos Sólidos, a quantidade de resíduos encaminhados para destinação
final aumentou, em média, 35% entre os anos de 2000 a 2008. Sobre a distribuição per
capita, somente os municípios de grande porte apresentaram nesse período redução
significativa do total de resíduos encaminhados para um destino final. (IPEA, 2011)
Dentre as espécies de destinação final utilizadas no Brasil, segundo dados do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), verifica-se que em 2008 mais de
90% do total de resíduos foram depostos em solo (aterro sanitário, aterro controlado e
vazadouro a céu aberto, chamados lixões). (IBGE, 2010)
Outro problema é a dificuldade da destinação de resíduos orgânicos, que
representam mais de 50% de matéria coletada, tendo em vista que as unidades de
compostagem ainda são poucas no país, o que faz com que a matéria orgânica seja
misturada com outros resíduos, cujo destino é aterros e lixões. Segundo o IPEA (2011),
apenas 1,6% são destinados à compostagem. 7
Ao analisar as dificuldades para a efetivação da fração orgânica via
compostagem, Wiedemann (1999) afirma que os motivos são a não separação dos
resíduos na fonte geradora, a insuficiência de manutenção do processo, bem como a
carência de investimentos e de tecnologia adequada para a coleta deste tipo de material.
Ocorre que a má gestão e a falta de controle dos aterros pode transformá-los em
lixões. Segundo o IBGE (2010), existiam em 2008 cerca de 2.906 unidades de lixões em
todo o Brasil, o que fez a PNRS ter indicado, em seu art. 54, a erradicação de lixões até
2014.
A eliminação do chorume e a não emissão de gases poluentes e com efeito de
estufa devem ser metas a serem alcançadas pelas novas tecnologias limpas de
processamento dos resíduos sólidos urbanos. No mínimo, não havendo possibilidade de
se impedir a geração de gases, devem ser buscados meios de captá-los e valorizá-los,
impedindo, assim, suas liberações.
7 Das 27 unidades federativas, somente 14 possuem unidades de compostagens, estando concentradas em
municípios do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Minas Gerais.
O aproveitamento energético do gás de aterro, além de seu valor como fonte
descentralizada de energia elétrica, diminui o potencial de efeito estufa dos gases
emitidos na conversão de metano (CH4) em gás carbônico (CO2). Ademais, referido
aproveitamento pode substituir fontes fósseis de geração da matriz enérgica brasileira
por uma fonte renovável. (IPEA, 2011)
É indiscutível, por outro lado, que projetos de recuperação de gás de aterro e
geração de energia por combustão de gás de aterro devem estar atrelados a uma política
de destinação otimizada de resíduos sólidos. Dessa forma, é mister considerar o balanço
energético de uma gestão de resíduos que englobe coleta seletiva, reuso, reciclagem de
materiais e captação de gás de aterro para fins energético, na medida em que soma a
economia de energia oriunda da produção de bens de matéria-prima reciclada com a
geração de energia propriamente dita proveniente de centrais térmicas funcionando a
biogás ou com base em resíduos. Logo, não precisa extrair de novo, ou seja, do zero.
Dessa forma, não há dúvida de que para que os objetivos da PNRS sejam
perseguidos, o Estado deve utilizar instrumentos que fomentá-los, cujo rol está previsto
no art. 8º.
Dentre os instrumentos especificados na lei, o inciso IX do art. 8º, PNRS, traz
“incentivos fiscais, financeiros e creditícios”. Trata-se, pois, de um mecanismo para
efetivação do desenvolvimento sustentável, princípio da ordem econômica adotado pela
ordem jurídica brasileira, bem como em vários documentos internacionais. (KRELL,
2004)
O foco deste trabalho, que será desenvolvido a seguir, será investigar a
possibilidade da utilização dos incentivos fiscais para a efetivação de uma política de
resíduos sólidos, não abordando, por conseguinte, os incentivos financeiros e
creditícios, não obstante sua importância como instrumentos da PNRS.
3 OS INCENTIVOS FISCAIS COMO MEDIDAS DO DIREITO TRIBUTÁRIO
AMBIENTAL PARA ASSEGURAR OS OBJETIVOS DA POLÍTICA
NACIONAL DE RESÍDUOS SÓLIDOS
Ao se abordar questões incipientes em matéria de Direito Tributário Ambiental,
ressaltam-se os princípios e valores a serem aplicados à matéria, notadamente para que
se possa delimitar os instrumentos tributários que hão de ser utilizados, a fim de se
alcançar a plenitude das disposições contidas no art. 225 da CF/88.
Nesse sentido, Torres (2005, p. 23) indica que, vinculado ao valor liberdade,
estaria o princípio da imunidade do mínimo ecológico; ao valor justiça, encontram-se os
princípios do poluidor-pagador, do usuário-pagador, da capacidade contributiva e do
custo/benefício; ao valor segurança, visualizam-se os princípios da prevenção, da
precaução, da legalidade tributária e da tipicidade tributária e, por fim, ao valor
solidariedade, os princípios da capacidade contributiva solidária e da solidariedade de
grupo.
Diante de tais princípios, pode-se aferir o quanto os instrumentos fiscais “podem
ser usados para surtir efeitos sobre interesses públicos relativos ao controle das
garantias de meio ambiente natural saudável, garantia de ambiente do trabalho,
preservação dos espaços urbanos ou dos bens culturais”. (TORRES, 2005, p. 99)
Contudo, ao se falar na utilização desses instrumentos fiscais, normalmente se
constrói o raciocínio com vistas a conceder incentivos ou benefícios fiscais. Isso se dá
pela própria definição de tributo contida no art. 3° do CTN como “toda prestação
pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não
constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade
administrativa plenamente vinculada”.
Com isso, é inerente à própria definição dos tributos estes não constituírem
“sanção por ato ilícito”, o que excluiria, em um primeiro momento, a possibilidade de se
criarem tributos para efetivar os princípios ligados ao valor justiça. Nesse sentido, as
contraprestações instituídas em decorrência direta da aplicação do princípio do
poluidor-pagador ou do usuário-pagador, por exemplo, não poderiam ter natureza
tributária, por se tratarem uma verdadeira sanção àquele que polui.
Contudo, tal pensamento expressa o conceito negativo de sanção, classicamente
bem delimitado e que é intuído naturalmente ao se tentar se interpretar o signo
isoladamente. Porém, a partir do século XIX, com a construção empreendida por
Jeremy Bentham, delimita-se o que se pode chamar de um marco no direito premial,
com a utilização das chamadas sanções positivas. (TRENNEPOHL, 2008, p. 24)
Tal construção veio a ser melhor estruturada, entretanto, a partir dos estudos de
Bobbio (2007. Para este, a teoria geral do direito contemporânea ainda é permeada por
uma “concepção repressiva do direito”: estrutura-se um ordenamento coativo e que
estabelece um vínculo necessário e indissolúvel entre direito e coação.
Continua o autor ao afirmar que
Na literatura filosófica e sociológica, o termo “sanção” é empregado
em sentido amplo, para que nele caibam não apenas as consequências
desagradáveis da inobservância das normas, mas também as
consequências agradáveis da observância, distinguindo-se, no genus
sanção, duas species: as sanções positivas e as sanções negativas.
(BOBBIO, 2007, p. 7)
É a partir então dessa nova possibilidade que Bobbio (2007, p. 8) constrói um
modelo para essas sanções positivas no qual estas se poderiam se caracterizar por um
conteúdo retributivo ou mesmo indenizatório: aquela sintetizaria condutas pautadas
naquilo que seria desejado socialmente; esta seria uma compensação pelo dispêndio de
esforços na busca de vantagens para a comunidade. (TRENNEPOHL, 2008, p. 25)
A partir do caráter retributivo, buscar-se-ia tornar menos onerosa a operação,
seja por meio de subvenções, incentivos financeiros ou mesmo creditícios. Já no tocante
ao caráter indenizatório, almejar-se-ia tornar a operação mais atrativa, a partir da criação
de uma vantagem ou da eliminação de uma desvantagem: aqui residem as isenções
fiscais para Bobbio (2007, p. 18).
Tal modificação se processa em virtude da mudança profunda em um Estado não
intervencionista, liberal, limitado à preservação de situações constituídas, e cuja missão
era a de manter a ordem e possibilitar a convivência dentro da mais ampla liberdade. A
partir daqui, a ordem social surge como uma realidade a ser conformada com o atuar
positivo e promocional do Estado contemporâneo. (BELCHIOR; PORTELA, 2007)
Nesse sentido, o Direito Tributário Ambiental que ora se constrói ingressa com
caracteres típicos de um Estado assistencial, no qual ressaltam as normas de
organização, e há de ser compreendido como ramo de atuação coordenada, como um
conjunto das “normas jurídicas tributárias elaboradas em concurso com o exercício de
competências ambientais, para determinar o uso do tributo na função instrumental de
garantia, promoção ou preservação de bens ambientais”. (TÔRRES, 2005, p. 101-102)
Com tal configuração e abstraindo-se das noções primeiras do ordenamento
enquanto mero sancionador, os incentivos ganham em potência e justificam-se em face
das novas necessidades sociais de ordenação, para as quais todos têm dever de colaborar
para atingir metas comunitárias, perseguindo fins comuns. Esse é bem o espírito
expresso no art. 225 da CF/88, matriz ecológica brasileira.
Algumas perguntas bastante corriqueiras podem ser feitas: se o produto ou
serviço sustentável é mais caro, tendo em vista a complexidade de seu processo
produtivo, como o consumidor/usuário com menor capacidade financeira poderá
adquiri-lo? O que fazer para que o produto ou serviço que cause menos impacto
ambiental seja atraente e estimulado? Como o consumidor/usuário pode ter acesso às
informações desse produto ou serviço?
Um exemplo é o caso do papel reciclado: ele é mais caro, exatamente devido ao
processo de transformação e até inviável para alguns aportes tecnológicos. Há uma
discussão em relação à sua qualidade, bem como à quantidade de matéria-prima
reciclada existente em sua produção, o que provocaria um questionamento em torno de
qual percentual de matéria-prima reciclada um produto deve conter para ser considerado
menos prejudicial ao meio ambiente. Muitas vezes, verifica-se que a tecnologia
disponível não é com ele compatível, como impressoras, máquinas de xérox, dentre
outras.
Obviamente que o Direito Tributário Ambiental não tem como resolver todas
essas questões, cujo diálogo deve ser intermediado por outras áreas que trata de temas
como o consumo sustentável, economia verde, saúde pública, dentre outras.
Pode-se citar a rotulagem ambiental, que é o conjunto de normas elaboradas pela
Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, em consonância com a
International Organization for Standardization – ISO, que estabelece os princípios e os
procedimentos para o desenvolvimento de programas de rotulagem ambiental, de forma
a certificar produtos que causem um menor impacto no meio ambiente, bem como
proporcionar informações para o consumo sustentável.
No entanto, especificamente no âmbito do Direito Tributário Ambiental, resta
agora identificar o que seriam esses incentivos fiscais e qual seria a aplicabilidade
desses institutos na PNRS. Aqui se passa a incursionar a doutrina tributarista que trata
do tema como forma de, mais à frente, conciliar-se com as medidas ambientais
adequadas e atingir, ao final, o maior bem comum possível.
Uma primeira observação que se faz pertinente e que já foi alertada por
Nogueira (1995, p. 1987) é a de o CTN não contém um só dispositivo que trate acerca
de incentivos fiscais. Dessa forma, o principal diploma infraconstitucional em matéria
de tributação é omisso quanto à matéria, passando tal disciplina às leis específicas dos
tributos. Nesse tocante, há de se destacar a Lei Complementar n° 24/75, que trata
especificamente da celebração de convênios para a concessão de isenções relativas ao
Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e sobre a Prestação de Serviços de
Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicações (ICMS).
Ademais, sem aprofundar a matéria, a própria delimitação do que seriam estes
incentivos fiscais, a despeito de ser tratada de forma pontual pelo legislador, também é
parcamente tratada pela doutrina ou mesmo pela jurisprudência. Nesse sentido, tanto o
STF quanto o STJ tratam as expressões “incentivos fiscais” e “benefícios fiscais” como
sinônimas e, em alguns casos, enquadrariam as próprias isenções como uma categoria à
parte destes8, o que contraria o conceito mais usual.
A fim de suprir tal lacuna no direito pátrio, poder-se-ia recorrer à definição de
Nabais (2005, p. 425), ao tratar do Estatuto de Benefícios Fiscais português:
Quanto ao seu conceito, devemos referir, tendo em conta, de resto, os
arts. 2° e 3° do Estatuto de Benefícios Fiscais, que os benefícios
fiscais se enquadram numa noção mais ampla – a noção de
desagravamentos fiscais – que integra: de um lado, as não sujeições
tributárias (ou desagravamentos fiscais strictu sensu), cuja
modalidade mais significativa é constituída pelas chamadas exclusões
tributárias (que estão para as não sujeições tributárias como as
isenções estão para os benefícios fiscais); de outro, os benefícios
fiscais.
De acordo com o conceito apresentado, o professor português cria duas
hipóteses para o que entende como benefícios fiscais e que, na legislação brasileira, em
muito se assemelha aos conceitos de imunidade e de isenção. Contudo, a fim de resolver
a questão para a PNRS, ainda não se conseguiu indicar a extensão da expressão
“incentivos fiscais”.
Nesse tocante, para o que se pretende desenvolver neste trabalho, passar-se-á a
indicar que o conceito de incentivos fiscais é sinônimo do conceito de benefícios fiscais,
à semelhança do que se vê na jurisprudência. Essa tomada de atitude quanto aos
institutos confere aos incentivos, além de uma natureza puramente financeira, um
caráter fiscal evidente, o qual seria próprio dos benefícios.
8 Conforme se depreende da própria ementa da ADI 2345/SC, relatada pelo Min. Cezar Peluso, na qual
foi assim disposto: “Não pode o Estado-membro conceder isenção, incentivo ou
benefício fiscal, relativos ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços - ICMS, de modo
unilateral, mediante decreto ou outro ato normativo, sem prévia celebração de convênio
intergovernamental no âmbito do CONFAZ” (destacado).
Ao se pesquisar alguns doutrinadores tributaristas, percebe-se uma lacuna
quanto ao tratamento da matéria, o que dificulta sobremaneira o desenho do conceito
que se quer aplicar em virtude da disposição expressa na lei da PNRS. Contudo, em
virtude da largueza de tal lei e dos princípios e objetivos que esta conforma, a noção
mais adequada aos incentivos, que representam instrumentos da PNRS, não poderia
deixar de ser a mais ampla possível.
Nesse mister, adotar-se-á a enunciação feita por Melo (2009, p. 339-340), que ao
se referir especificamente à Guerra Fiscal no ICMS, trata das espécies de benefícios,
enquanto sinônimo de incentivos:
Além da isenção tributária, os referidos convênios também têm
concedido demais incentivos de natureza diversificada,
especialmente a redução de base de cálculo, o crédito presumido do
imposto e a anistia.
Entretanto, unilateralmente, as unidades federativas têm expedido
leis, decretos, e atos administrativos, outorgando vantagens fiscais,
financeiras, creditícias e operacionais, que afetam a carga impositiva,
a saber:
a) fiscais: isenção de imposto para novas empresas, sem
produção similar no Estado, válida por determinado período de
tempo; isenção ou redução do imposto para micro e pequenas
empresas, redução da alíquota do imposto para situações e produções
especiais; postergação dos prazos para pagamento, adiamento do
pagamento do imposto por longo prazo; isenção ou redução do
imposto sobre produtos específicos destinados ao exterior;
b) financeiros: aquisição de ativos fixos; formação ou
recomposição de capital de trabalho; financiamento do pagamento do
imposto; participação acionária; financiamento para o
desenvolvimento tecnológico; financiamento para empresas de
turismo;
c) estímulo para infra-estrutura: venda de lotes e galpões por
preços reduzidos; permuta de terrenos para a localização de empresas;
doação de áreas e lotes industriais; implantação de áreas e distritos
industriais;
d) outros estímulos: simplificação do processo de registro de
empresas; simplificação do processo de licitação para pequenas
empresas; assistência técnica na elaboração do projeto; apoio à
formação de capacitação de pessoal. (destacado)
Nesse sentido, defende-se que, enquanto instrumento da PNRS, a concessão de
incentivos fiscais possa ser operacionalizada por qualquer das formas indicadas na
alínea “a” acima, o que compreende as clássicas dispensas para o pagamento do tributo,
como é o caso da isenção, mas também acrescenta hipóteses de mero diferimento dos
impostos e que, pelo caráter financeiro evidente, já se configurará em um interessante
incentivo.
Assim, ao serem enunciadas as indústrias de reciclagem, a lei da PNRS, em seu
inciso VI, art. 7°, afirma que estas devem ser incentivadas, “tendo em vista fomentar o
uso de matérias-primas e insumos derivados de materiais recicláveis e reciclados”. O
incentivo fiscal a ser aplicado poderia se configurar sob a forma de isenções em suas
operações ou serviços prestados, atribuição de um crédito presumido e redução na base
de cálculo dos impostos devidos por essas empresas.
Ademais, além desses instrumentos desoneratórios, a estas empresas poderiam
ser concedidos diferimentos, que representam uma postergação para o cumprimento das
obrigações tributárias principais, e que podem representar forte instrumento financeiro à
disposição das organizações, por deixarem maior soma de recursos desimpedida para
novos investimentos empresariais.
Ainda no tocante ao desenho que esses incentivos fiscais podem ter na PNRS,
deve-se fazer o alerta de que, a depender da atuação da empresa a ser incentivada, várias
espécies tributárias poderiam comportar tais benefícios. Assim, empresas cuja maior
parte das atividades esteja sujeita ao ICMS poderiam ser desoneradas de tais tributos; da
mesma forma, ao se tratar do ISS, do IPI, dentre outros.
Com tudo isso, o desenho dos incentivos fiscais na PNRS pode ser o mais amplo
possível, incluindo desde desonerações tributárias até melhores condições para o
cumprimento das obrigações tributárias, sejam elas principais ou acessórias. Há de ser
ampliada, também, a base de exações tributárias as quais podem ser aplicados tais
incentivos, abarcando todos aqueles tributos que incidam sobre empresas que realizem
atividades condizentes com os objetivos estabelecidos na lei da PNRS.
Por fim, há de se deixar destacado, também, que a concessão desses incentivos
deve estar inserida em um contexto de moral tributária do Estado e do próprio
contribuinte. A moral tributária do Estado se conforma a partir da elaboração de um
direito tributário justo e em conformidade com os direitos fundamentais, partindo de
uma ideia básica de igualdade da justiça e dos direitos diante da lei. (TORRES, 2005, p.
13)
Nesse sentido, os incentivos a serem fixados pelo Estado devem ser
proporcionais aos objetivos a serem alcançados pelas empresas, evitando-se, assim,
favorecimentos desarrazoados ou desmotivados. Há de ficar claro, ainda, que a fruição
de tais incentivos há de guardar estrita consonância com a norma sobre a matéria e
destinada exclusivamente àqueles que preencham os requisitos para tais benefícios.
Não é demais repetir a advertência feita por Tipke (2002, p. 29) quanto àqueles
que operam a norma tributária ao afirmar “quien desee aplicar tal programa completo al
Derecho tributario debe ser ante todo um tributarista com excelentes y detallados
conocimientos de la Parte General y Especial, pero también debe dominar la ética
filosófica y el Derecho constitucional”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No âmbito do Direito Ambiental, um dos temas que mais demanda investigação
é a questão em torno dos resíduos sólidos, problemática oriunda dos efeitos deletérios
de uma sociedade de consumo, pós-industrial, pós-moderna, coberta por riscos não
apenas previsíveis, mas também imprevisíveis.
Apesar do atraso em relação a outros países, a Lei nº 12.305, de 2 de agosto de
2010, que criou a Política Nacional dos Resíduos Sólidos (PNRS), não perde sua
importância, uma vez que prevê institutos inovadores ao direito positivo pátrio, como a
logística reversa e a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos.
Dentro da lógica da competência legislativa concorrente em matéria ambiental, o
legislador impôs metas que deveriam ter sido concluídas no prazo de dois anos após a
data da publicação da lei, consoante o art. 55, ou seja, até o dia 3 de agosto de
2012. Logo, Estados e municípios deveriam ter elaborado seus planos até a data citada,
sob pena de não receberem incentivos e créditos da União.
O fato é que poucos dos entes federativos brasileiros já concluíram a
planificação dos resíduos, o que reforça a necessidade deste estudo, que pode ser
utilizado para auxiliá-los em uma orientação técnico-científica no processo de
efetivação e gerenciamento dos resíduos no que concerne aos incentivos fiscais.
Nesse sentido, permanece uma lacuna quanto à disciplina dos incentivos fiscais
a serem ofertados, em sintonia com expressa disposição legal relativamente à PNRS. A
própria abrangência desses incentivos fiscais, com a completa definição das
desonerações tributárias que poderão ser proporcionadas às empresas que atuem
conforme a PNRS, ainda segue em aberto.
Há de se destacar, contudo, que tais incentivos devem guardar pertinências com
os princípios e objetivos estabelecidos na própria Lei n° 12.305/10 e serem expressos na
exata medida do atingimento das finalidades contidas na norma, aproveitando-se do
caráter extrafiscal que os tributos conseguem alcançar.
Isto posto, conclui-se que os incentivos fiscais em sede de PNRS possuem ampla
espectro de atuação, prestigiando-se interpretações que abarquem os tradicionais
conceitos de benefícios fiscais, o que se coaduna com o espírito da norma e com a
proteção conferida ao meio ambiente pela Constituição Federal de 1988.
Contudo, deve-se atentar para o fato de que tais incentivos ou benefícios fiscais
devem ser gozados em um ambiente de plena moralidade tanto por parte das empresas
quanto por parte dos agentes dos fiscos incumbidos de operacionalizá-los, a fim de se
resguardar o interesse público e maximizar o alcance dos direitos fundamentais
previstos na CF.
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THE IPTU AS AN INSTRUMENT FOR SUSTAINABLE DEVELOPMENT
Ana Luisa Sousa Faria1
RESUMO Preservar e proteger o meio ambiente é competência do Estado, compreendendo-se União, Estado, Distrito Federal e Municípios (CF, art. 23, VI e VII). Trata-se, portanto, de competência comum dos entes federativos tutelar e garantir a preservação ambiental, que deve ser realizada em conjunto com a coletividade (CF, art. 225). Diante da obrigação imposta pela Constituição Federal, o Estado necessita utilizar meios, oferecidos pelo próprio ordenamento jurídico, para desempenhar a função de mentor de uma política ambiental que garanta a defesa do meio ambiente. É nesse prisma que o direito tributário passa a ser instrumento de proteção ambiental, quando além do caráter arrecadatório, função inerente para carrear recursos aos cofres públicos, oferece a função extrafiscal ou indutora para estimular condutas ambientalmente corretas. O tributo surge, então, para estimular os agentes econômicos às escolhas ambientalmente corretas, e desestimular as práticas danosas. Trata-se de uma política de incentivo à preservação fundada em estímulos econômicos. Por esse entendimento, o tributo pode auxiliar também no desenvolvimento regional e na implementação de políticas públicas. Diante da relevância do tema, foi realizada uma pesquisa explicativa, de abordagem qualitativa, com delineamento voltado para a pesquisa bibliográfica, cuja finalidade é compreender como o direito tributário, através das normas tributárias indutoras, especialmente, o IPTU, podem ser instrumento de proteção e desenvolvimento do meio ambiente artificial, para que este atingirá o patamar da sustentabilidade. PALAVRAS-CHAVE: Meio Ambiente; Tributação indutora; Função social da propriedade; IPTU.
ABSTRACT Preserving and protecting the environment is the responsibility of the State, it being understood Federal, State, Federal District and municipalities (Constitution, Article 23., VI and VII). It is therefore common competence of federal guardianship and ensure environmental preservation, to be held in conjunction with the community (CF, art. 225). Faced with the obligation imposed by the Constitution, the State needs to use the means offered by the legal system to play the role of mentor to an environmental policy that ensures protection of the environment. It is in this light that the tax law becomes an instrument of environmental protection, as well as revenue collection of the character, function inherent to adduce resources to the public coffers, extrafiscal offers the function to induce or encourage conduct environmentally sound. The tribute comes, then, to encourage economic agents to environmentally friendly choices and discourage harmful practices. It is a policy of encouraging the preservation founded in economic stimulus. By understanding this, the tax can also assist in regional development and implementation of public policies. Given the importance of the topic, a survey was conducted explanatory qualitative approach, with a design focused on literature, whose purpose is to understand how the tax law, tax law through the inductor, especially property taxes, can be an instrument of protection and development of the artificial environment so that it will reach the level of sustainability.
1 Advogada. Especialista em Direito Tributária pela Universidade do Sul de Santa Catarina. Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas. Especialista em Auditoria Fiscal e Tributária. (Cursando).
KEYWORDS: Environment; Taxation inducer; Social function of property; IPTU (Taxes).
1 INTRODUÇÃO
Para a proteção do meio ambiente, como direito fundamental, são necessários
mecanismos para que o Poder Público, juntamente com a sociedade, possam assegurar o
direito ao meio ecologicamente equilibrado e uma sadia qualidade de vida. O IPTU em seu
caráter extrafiscal, é um forte instrumento na viabilização da política ambiental.
Através da concessão de benefícios fiscais, o IPTU poderá adequar-se à defesa do
meio ambiente, estimulando aos agentes condutas, ambientalmente, corretas.
Ao intervir no exercício do direito de propriedade, o IPTU progressivo para atender à
função social da propriedade ou IPTU Verde/Ecológico como incentivo à proteção do meio
ambiente, é objeto central desse estudo, e será analisado como potente instrumento para o
desenvolvimento sustentável no meio ambiente urbano.
Em um primeiro momento, o trabalho abordará o município enquanto ente federativo
responsável pela instituição do IPTU. Posteriormente, será feita uma abordagem do IPTU e do
meio ambiente urbano, analisando-se a política urbana, a progressividade do IPTU e sua
correlação com a política de desenvolvimento urbano; e o IPTU como instrumento para o uso
adequado e ocupação do solo urbano. Por fim, será estudado o IPTU sobre as áreas de
proteção ambiental e a Lei n. 1091/2006 como política fiscal do município de Manaus para
preservação do meio ambiente.
2 O MUNICÍPIO ENQUANTO ENTE FEDERATIVO RESPONSÁVEL PELA INSTITUIÇÃO DO IPTU
Conforme previsão Constitucional, a República Federativa do Brasil é composta pela
união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal (art. 1 da CF). Assim seus
componentes deverão zelar pelo bom funcionamento do “ente federativo”, gerando um
relacionamento de fidelidade recíproca.
Para que o federalismo possa existir é necessário que os membros estejam em aliança
e harmonia, pois a sua “existência não pode basear-se na felicidade de alguns Municípios,
construída sobre a infelicidade de outros Municípios”. (MACHADO, 2010, p. 371).
A Constituição Federal traz um sistema de repartição de competências, onde caberá à
União competência privativa e concorrente; aos Estados e Distrito Federal competência
concorrente e suplementar e aos Municípios resta a competência residual e complementar.
Em se tratando de matéria ambiental, a Constituição Federal estabeleceu, em muitos
aspectos, competência concorrente, entretanto, ressalvou para a União o monopólio para
legislar sobre águas, recursos minerais, energia e atividades nucleares de qualquer natureza.
(art. 22 da CF).
Os Municípios terão, então, competência para legislar em questões de interesse local,
e ainda, suplementar as legislações estaduais e federais, no que forem omissas, desde que não
sejam matérias privativas daqueles entes. Ensina Machado (2010, p.374) que:
o “interesse local” não precisa incidir ou compreender, necessariamente, todo o território do município, mas uma localidade, ou várias localidade, de que compõem um município. Foi feliz a expressão usada pela Constituição Federal de 1988. Portanto, pode ser objeto de legislação municipal aquilo que seja de conveniência de um quarteirão, de um bairro, de um subdistrito ou de um distrito.
Em alguns casos, o interesse local poderá não ser unânime. Poderá ocorrer, por
exemplo, de haver conflitos nos próprios interesses locais, quando parte dos munícipes apoiar
o desenvolvimento econômico e outra facção ser adepto à conservação do meio ambiente.
Cretella Júnior e Meirelles (1991; 1999) afirmam que o interesse local não está adstrito à
exclusividade, mas sim, à predominância, o que inclui a sadia qualidade de vida e ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado.
É de competência dos municípios instituir Imposto sobre a Propriedade Predial e
Territorial Urbana (art. 156, I, CF), Transmissão inter vivos, a qualquer título, por ato
oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis,
exceto os de garantia, bem como a cessão de direitos à sua aquisição (art. 156, II, CF) e sobre
os serviços de qualquer natureza (art. 156, III, CF).
Desde a época do Império, as Constituições brasileiras outorgam ao Município a
instituição do IPTU. Anteriormente, tal imposto era denominado de décima urbana e incidia
sobre os imóveis edificados. Seu surgimento ocorreu em 19 de maio de 1799, quando a
Rainha D. Maria solicitou do governador da Bahia um empréstimo e propôs como
compensação conceder àquele o estabelecimento de décimas, nas casas das cidades marítimas.
(BRUNO, 2002, p. 182).
Na Constituição Política do Império, outorgada por D. Pedro em 1824, a questão
tributária estava alocada no Título VII – “Da administração e Economias da Província (art.
165 a 172). A competência municipal para a instituição do IPTU adveio do Ato Adicional de
1834 que determinou a criação de Assembléias Provinciais, quando estas deveriam fixar as
despesas municipais e provinciais, e ainda, a criação e cobrança de impostos, desde que estes
não conflitassem com as normas relativas à tributação geral do Estado. As constituições
posteriores de 1891, 1934, 1937, 1946 e 1967 foram incisivas em conceder ao Município a
competência para instituição do Imposto Predial e Territorial Urbano. (BRUNO, 2002, p. 183-
186).
A constituição de 1988, no art. 156, I, estabelece ser de competência dos Municípios
a instituição do IPTU - Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana, e “no
âmbito da competência tributária municipal, o IPTU é a grande ferramenta tributária a serviço
da conservação ambiental” (SEBASTIÃO, 2010, p. 282), e para a ordenação das cidades,
contidas no Plano Diretor. Dessa forma, caberá a esse ente federativo, através da edição de lei
ordinária, instituir tal imposto. O Código Tributário Nacional faz essa mesma previsão no art.
32 e seguintes.
Expõe Folmann (2002, p.508) que,
(...) o município detém o poder-dever de preservar o meio ambiente e combater a poluição, podendo valer-se da Tributação Ambiental como importante e eficiente instrumento condicionador de condutas dos particulares, direcionando-as em benefício do ambiente das cidades, promovendo o bem estar social na forma do disposto no art. 225 da CF/88, ou seja, a sadia qualidade de vida no âmbito urbano, sendo o IPTU, um tributo potencial para esse fim.
Não há, nesse patamar, discussão doutrinária quanto à delegação de competência aos
Municípios para instituição do IPTU. Tal concessão está intimamente ligada ao fato de que
cabe à municipalidade a implementação de serviços públicos essenciais, que poderão
beneficiar à propriedade predial e territorial urbana.
Portanto, será contribuinte do IPTU todo aquele com direito de gozo sobre o bem
imóvel, seja ele pleno ou limitado. São considerados sujeitos passivos: o proprietário (pleno,
ou na condição de co-proprietário), o titular de domínio útil (enfiteuta ou usufrutuário) e o
possuidor (quando há a possibilidade de aquisição do domínio ou propriedade pela
usucapião).
O fato gerador desse imposto dar-se-á com a propriedade, com o domínio útil ou a
posse de bem imóvel, em zonas urbanas do município, consumando-se no primeiro dia do ano
civil.
O conceito de zona urbana, onde incidirá o IPTU, deverá ser extraído da lei ordinária
municipal, a qual conterá ao menos dois dos melhoramentos previstos no art. 32, §§ 1° e 2° do
Código Tributário Nacional2.
Os elementos espacial e temporal do fato gerador são o território urbano do
município e o momento da apuração, ou seja, no primeiro dia do ano; respectivamente. A base
de cálculo do imposto será sempre o valor venal do imóvel, sem computar o valor dos bens
móveis que o compuser.
Além da instituição do IPTU pelos municípios, caberá, também, a este ente
federativo a criação do Plano Diretor, previsto no art. 182 da CF, cujo objetivo primordial é o
planejamento urbano e efetividade da função social das cidades. Segundo Machado (2010, p.
378) trata-se de um conjunto de normas, elaboradas por lei municipal específica para regular
as atividades do próprio poder público e das pessoas físicas e jurídicas de Direito Público ou
Privado.
No âmbito de sua competência suplementar, caberá aos Municípios utilizar da Ação
Civil Pública (Lei nº 7.347/85 de 24 de julho de 1985) para induzir os particulares e demais
poderes públicos ao cumprimento das obrigações tributárias e ambientais. Diversos
Municípios têm criado procuradorias especializadas nessa matéria para orientar e representar
a administração pública em seus deveres específicos.
3 O IPTU E O MEIO AMBIENTE URBANO
“O meio ambiente artificial é compreendido pelo espaço urbano construído,
consistente no conjunto de edificações (chamado de espaço urbano fechado), e pelos
equipamentos públicos (espaço urbano aberto)”. (FIORILLO, 2010, p. 435).
O IPTU é o imposto utilizado como instrumento de política urbana e da consolidação
da função social das cidades. Nesse aspecto, tal tributo, utilizado em seu caráter extrafiscal,
2 Art. 32 (...) §1°. Para efeito deste imposto entende-se como zona urbana a definida em lei municipal, observando o requisito mínimo da existência de melhoramentos indicados em pelo menos 2 (dois) dos incisos seguintes, construídos ou mantidos pelo Poder Público: I – meio fio ou calçamento, com canalização de águas pluviais; II – abastecimento de água; III- sistema de esgotos sanitários; IV – rede de iluminação pública, com ou sem posteamento para distribuição domiciliar; V – escola primária ou posto de saúde a uma distância máxima de 3 (três) quilômetros do imóvel considerado. § 2°. A lei municipal urbana pode considerar urbanas as áreas urbanizáveis, ou de expansão urbana, constantes de loteamentos aprovados pelos órgãos competentes, destinados à habitação ou ao comércio, mesmo que localizados fora das zonas definidas nos termos do parágrafo anterior.
tem o condão de estimular e desestimular condutas, sem afetar a receita auferida com
impostos, devido a previsão do art. 167, IV, CF3.
Souza (2004, 91) expõe que:
Em planejamento e gestão urbanos, os tributos não interessam sob o ângulo estritamente fiscal, vale dizer, de seu potencial de arrecadação. Tão ou mais importante é, na verdade, a extrafiscalidade dos tributos, isto é, sua capacidade de permitirem que outros objetivos que não somente o de arrecadação, sejam perseguidos – seja o desestímulo de práticas que atentem contra o interesse coletivo (minimamente salvaguardado, na Constituição de 1998, por meio do princípio da “função social da propriedade”), seja a promoção da redistribuição indireta de renda, sejam a orientação e o disciplinamento da expansão urbana, seja, ainda, o incentivo a determinadas atividades.
Serão estudadas, nos próximos tópicos, as regras para utilização do IPTU em seu
caráter extrafiscal: progressividade no tempo e em razão do uso e localidade do imóvel; a
política urbana e o meio ambiente urbano; a aplicação do IPTU no uso e ocupação do solo
urbano e o IPTU com a finalidade de preservação ambiental.
3.1 A POLÍTICA URBANA E O MEIO AMBIENTE URBANO
A política de desenvolvimento urbano, executada pelo poder público municipal,
conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento
das funções social da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. (art. 182, CF).
A propriedade urbana estará cumprindo com sua função social, sempre que atender
as exigências de ordenação das cidades, previstas no plano diretor. (art. 182, § 2°, CF). Dentre
tais determinações está a implantação de políticas de preservação e proteção ao meio
ambiente, que garantam o bem-estar e a qualidade de vida da população.
Segundo Fiorillo e Ferreira (2005, p. 22-23), a Constituição de 1988 estabeleceu
novo tratamento ao meio ambiente, bem como articulou a vida da pessoa humana com o meio.
Estabeleceu regramentos ao meio ambiente artificial, que compreende o espaço urbano
construído e as complexas relações que envolvem as pessoas em um território. Criou
parâmetros e orientação jurídica da política urbana com o objetivo de implementar a função
social das cidades e garantir a qualidade de vida de seus habitantes.
3 Art. 167. São vedados: IV - a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas a repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os arts. 158 e 159, a destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde, para manutenção e desenvolvimento do ensino e para realização de atividades da administração tributária, como determinado, respectivamente, pelos arts. 198, § 2º, 212 e 37, XXII, e a prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita, previstas no art. 165, § 8º, bem como o disposto no § 4º deste artigo.
O principal objetivo do desenvolvimento urbano é promover a dignidade da pessoa
humana, prevista no art. 1, III, da CF/88), garantido o direito a moradia, saneamento básico,
infraestrutura urbana, transporte, trabalho, lazer etc. (RAMOS, 2011, p. 30).
Sobre o espaço urbano e o conceito de cidades, Silva (2009, p. 24-26) afirma que
nem todo núcleo habitacional pode receber o título de “urbano”. Para que um centro habitacional seja conceituado como urbano torna-se necessário preencher, no mínimo, os seguintes requisitos: (1) densidade demográfica específica; (2) profissões urbanas como comércio e manufaturas, com suficiente diversificação; (3) economia urbana permanente, com relações especiais com o meio rural; (4) existência de camada urbana com produção, consumo e direito próprios. Não basta, pois, a existência de um aglomerado de casas para configurar-se um núcleo urbano. (...) O Centro urbano no Brasil só adquire a categoria de cidade quando seu território se transforma em Município.
A urbanização ou concentração urbana acaba gerando transtornos que prejudicam o
meio ambiente urbano. Para que esses problemas sejam solucionados é necessária a promoção
de um projeto de urbanificação, que consiste na reurbanização ou criação de núcleos urbanos.
Ramos (2011, p. 32) expõe que não se deve confundir urbanização com urbanificação, sendo
que este é o remédio para aquele.
Figueiredo (2005, p.33) entende que a urbanificação deu origem ao direito
urbanístico como ciência, sendo este “o conjunto de normas disciplinadoras do ordenamento
urbano”.
Para Moreira Neto (1977, p. 60) será de interesse do urbanismo tudo o que diz
respeito aos espaços habitáveis, bem como os instrumentos jurídicos à disposição do Estado
para que a convivência da população seja baseada na segurança, funcionalidade e conforto.
Nesse ponto, considera-se que o urbanismo traz incutido em seu bojo o conceito de
território, uma vez que engloba o setor urbano e rural, e “objetiva a organização dos espaços
habitáveis visando à realização da qualidade de vida humana”. (MACHADO, 2010, p. 31).
Entretanto, ater-se-á ao meio ambiente urbano, objeto espacial desta pesquisa, e a aplicação
do IPTU sobre as áreas urbanas.
Prevê o art. 5, XXII da CF/88 que o direito de propriedade é uma garantia
fundamental. Entretanto, o próprio texto constitucional estabelece limites ao exercício do
direito de propriedade, na medida em que estabelece que esta atenderá a sua função social.
(art. 5, XXIII da CF). A ordem econômica, através do princípio da ponderação, conforma os
princípios da propriedade privada à função social da propriedade. (Art. 170, II e III, CF).
Figueiredo (2005, p. 34) afirma que no Estado moderno o direito de propriedade
tende a se delinear aos interesses sociais, ultrapassando as premissas da propriedade privada –
usar, gozar e dispor - entendido como direito, eminentemente, individual.
No entendimento de Tepedido (2001, p. 23):
A propriedade, portanto, não seria mais aquela atribuição de poder tendencialmente plena, cujos confins são definidos extremamente, ou de qualquer modo que, até uma certa demarcação, o proprietário teria espaço livre para suas atividades e para a emanação de sua senhoria sobre o bem. A determinação do conteúdo da propriedade, ao contrário, dependerá de centros de interesses extraproprietários, os quais vão ser regulados no âmbito da relação jurídica de propriedade.
O código civil de 2002 inaugura a função social da propriedade, quando esta passa a
ser instrumento do projeto constitucional de defesa ao meio ambiente, ao adequar a finalidade
econômica à proteção da flora, fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o
patrimônio histórico e artístico, bem como evitar a poluição do ar e das águas. (art. 1228, § 1°,
CC/02).
Juntamente com a proteção do meio ambiente natural, estabeleceu-se a política de
desenvolvimento urbano voltada para a propriedade urbana e para garantir o desenvolvimento
das funções sociais das cidades e a sadia qualidade de vida de seus habitantes. (art. 182 da
CF).
É a Lei n. 10.257 de 10 de julho de 2001 – Estatuto da Cidade – que estabelece
diretrizes e “normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade
urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do
equilíbrio ambiental”. (art. 1º, parágrafo único).
As cidades atenderão, então, a sua função social quando atingirem o
desenvolvimento de suas funções sociais – moradia, lazer, trabalho, interação entre os seres
humanos e etc. – previstas no Estatuto da Cidade e reafirmadas pelo Plano Diretor,
obrigatório para as cidades com mais de 20 mil habitantes. (RAMOS, 2011, p. 37).
A Urbanificação das cidades ocorrerá através do planejamento municipal, que
seguirá as premissas contidas no art. 4, do Estatuto da Cidade, quais sejam: o planejamento
urbano municipal, o plano diretor, o parcelamento, o uso e a ocupação do solo, zoneamento
ambiental, plano plurianual, diretrizes orçamentárias, gestão orçamentária participativa,
planos, programas e projetos setoriais e planos de desenvolvimento econômico e social.
Dentre os itens elencados pelo Estatuto da Cidade, o Plano Diretor4 é o mais
importante para a política de desenvolvimento urbano. Segundo Alochio (2005, p. 24) a
ordenação adequada do espaço urbano deve ser realizada por um conjunto de atores –
arquitetos, urbanistas, construtores e empreendedores, Poder Público e os operadores do
direito – com capacidade para desenvolver ações que melhorem o ambiente artificialmente
construído.
Por fazer parte do processo de planejamento municipal, o Plano Diretor Urbano
deverá trazer diretrizes que orientem a elaboração do Plano Plurianual, as diretrizes
orçamentárias e o orçamento anual, que deverá ser cumprido pela Administração Pública.
Por previsão constitucional, o Poder Público Municipal deverá exigir do proprietário
do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova o adequado
aproveitamento, podendo utilizar do parcelamento ou edificação compulsório; imposto sobre
a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; desapropriação com
pagamento mediante título da dívida pública. (art. 182, § 4°, CF5) (grifo nosso).
Para que os instrumentos de política pública sejam implementados, necessitam de
aprovação prévia do Plano Diretor pela Câmara Municipal, conforme previsão do art. 41, III,
do Estatuto da Cidade. (RAMOS, 2011, p. 40).
O Estatuto da Cidade apresentou normas gerais do direito urbanístico para que a
propriedade cumpra a sua função social, gerando o devido equilíbrio do meio ambiente
urbano. Cabe, então, aos municípios a elaboração de leis específicas e do Plano Diretor para a
efetivação de tais instrumentos. Sundfeld (2002, p. 52-53) expõe que:
De um lado, será preciso que, por meio do plano diretor editado por lei (arts. 39-42), o Município formule o planejamento, tomando necessariamente as seguintes decisões, relacionadas a vários dos instrumentos urbanísticos previsto pelo Estatuto da Cidade: a) delimitar as áreas urbanas em relação às quais se poderá exigir o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios (art. 5, caput, c/c o art. 42, I); b)fixar o coeficiente de aproveitamento básico dos terrenos para fins de edificação (art. 28, § 2°); c) fixar o coeficiente de aproveitamento máximo dos terrenos para fins de edificação (art. 28, § 3º); d) indicar as áreas em que o direito de construir
4 O Plano Diretor está regulado no Capítulo III, do art. 39 ao 42 da Lei n. 10.257 – Estatuto da Cidade.
5 Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes. § 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:I - parcelamento ou edificação compulsórios;II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.
poderá ser exercido acima do coeficiente básico e até o limite do coeficiente máximo, mediante outorga onerosa (art. 28, caput); e) indicar as áreas em que será permitida a alteração onerosa do uso do solo (art. 29). Além disso, o plano deverá fornecer as bases para que leis específicas delimitem áreas em que incidirá o direito de preempção (art. 25) e aquelas em que serão realizadas operações consorciadas (art. 32); bem como para que a lei municipal autorize a transferência do direito de construir (art. 35). Depois, outras leis municipais deverão: (...) b) relativamente ao IPTU progressivo: fixar sua alíquota (art. 7, § 1º).
Portanto, ao Estatuto da Cidade, como lei geral, coube adequar os instrumentos de
política econômica, tributária, financeira e dos gastos públicos aos objetivos do
desenvolvimento urbano, para que as cidades possam a vir cumprir a sua função social.
O IPTU através de sua função extrafiscal, é forte mecanismo para influenciar na
ordenação e preservação do meio ambiente urbano.
3.2 A PROGRESSIVIDADE DO IPTU E SUA CORRELAÇÃO COM A POLÍTICA DE DESENVOLVIMENTO URBANO
O Imposto, em seu caráter fiscal, é um tributo exigido para assegurar o
funcionamento Estado e da coletividade; todo valor arrecadado deverá ser revestido em
educação, saúde, transporte, segurança e outros deveres da Administração para garantir
qualidade de vida aos cidadãos. Sob a ótica da função extrafiscal, o tributo torna-se
instrumento para estimular e desestimular condutas, especialmente, na esfera ambiental.
Nesse prisma o IPTU, além de auxiliar na manutenção do Estado, poderá ser
utilizado em seu caráter extrafiscal, cujo objetivo é assegurar o bom cumprimento da função
social da propriedade. (CF, art. 156, § 1º; art. 182, § 4º, II). O princípio da progressividade, de
acordo com o texto constitucional, “consiste na majoração de alíquotas na medida em que a
base cálculo é elevada”. Trata-se de um aspecto quantitativo que decorre da progressividade
fiscal e extrafiscal. A progressividade fiscal tem fins meramente arrecadatórios, e está
intimamente ligada ao princípio da capacidade contributiva. A segunda, por sua vez, tem o
condão de moldar condutas. (MELO, 1997, 9. 35-36).
A progressividade do IPTU está adstrita à política urbana, pois deve ser instrumento
para ordenar a função social das cidades, como meio de expansão urbana. Para tanto, serão
levadas em conta a localização, a forma de utilização e ocupação da propriedade.
Assim como a instituição do imposto, de acordo com o princípio da autonomia
municipal cabe, também, ao Município a política de desenvolvimento urbano, cujo objetivo é
o desenvolvimento da função social das cidades e garantir o bem-estar dos cidadãos.
Conforme exposto anteriormente, a norma geral para a instituição dessa política é o Estatuto
da Cidade (lei n. 10.257/2001) e no âmbito municipal, o Plano Diretor, que deve ser criado,
por lei específica, por este ente federativo, e nele deve estar contida a previsão de
progressividade do IPTU.
Tal progressividade impõe ao contribuinte a “correta” utilização de sua propriedade,
pois, caso contrário, estabelecer-se-á prazo para que se adeque aos preceitos da política
urbana, estabelecida no Plano Diretor,e quando descumpridas poderão acarretar na
desapropriação do patrimônio imobiliário. Expõe Bruno (2002, p. 201) que
trata-se de uma forma de aplicação de penalidade, imputada ao proprietário de imóvel que não promova sua adequada utilização, e cuja aplicabilidade deverá ser posta em prática de forma seqüencial, isto é, se a sanção de parcelamento ou edificação do solo não surtir efeitos que levem a utilização adequada da propriedade, atendendo a sua função social, aí sim, o poder público municipal poderá instituir o imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana (IPTU) com alíquotas progressivas no tempo. (grifo nosso)
O IPTU progressivo será, então, aplicado como uma “sanção” de natureza punitiva,
valendo-se de seu caráter eminentemente extrafiscal, para se coadunar com a concretização da
política urbana e da justiça social.
3.2.1 O IPTU progressivo no tempo
O IPTU progressivo no tempo tem previsão constitucional (art. 182, § 4º) e está
contido dentro do capítulo referente à Política Urbana.
A progressividade será aplicada quando o proprietário do imóvel urbano não atender
à notificação do Poder Público para dar à propriedade sua devida função social. Em
consequência, o Poder Executivo Municipal poderá determinar o parcelamento, a edificação
ou a utilização compulsórios do solo urbano não edificado, subutilizado ou não-utilizado, de
área prevista no Plano Diretor (art. 5º, Estatuto da Cidade).
É considerado subutilizado o imóvel cujo aproveitamento é inferior ao mínimo
definido no plano diretor. (art. 5, § 1º, I, Estatuto da Cidade). Os imóveis não utilizados,
normalmente, são oriundos de especulação imobiliária dos proprietários que buscam obter
maiores valores com sua comercialização. Ramos (2011, p. 92) expõe que essa não-utilização
em áreas dotadas de infra-estrutura pelo Poder Público, acaba gerando o crescimento urbano
em outras áreas ainda sem planejamento para tal fim, provocando o “encarecimento per capita
dos serviços de utilidade pública”.
Souza (2004, p. 230-231) comenta que é extremamente necessária a progressividade
extrafiscal do IPTU, diante da escassez de moradia e dos “vazios urbanos” gerados pela
atividade especulativa sobre os imóveis. Por outro lado, argumenta que parece descabida a
aplicação de tal progressividade em áreas desprovidas de infra-estrutura básica, pois estará
sendo punido indevidamente o proprietário, já que o próprio Poder Público não proporciona
meios para que a propriedade exerça sua função social. Para tanto, deve o Estado fornecer a
estrutura adequada à expansão urbana, e assim, cobrar que se faça cumprir o planejamento
urbano.
A progressividade, no tempo, das alíquotas do IPTU deverá ser precedida de
notificação ao contribuinte, dando-lhe, sob condições e prazo determinado, a oportunidade de
parcelar, edificar ou utilizar, compulsoriamente, a propriedade em desconformidade.
O Estatuto da Cidade (art. 7º) prevê que se não atendida a devida adequação da
propriedade, será aplicado o IPTU progressivo, através da majoração de alíquotas num prazo
de cinco anos consecutivos.
O Plano Diretor ou outra lei específica que especificar o parcelamento, a edificação
ou a utilização compulsória da propriedade não edificada, subutilizada ou não utilizada,
deverá, também, fixar o valor da alíquota a ser aplicada a cada ano; sendo que está não
excederá duas vezes ao valor referente ao ano anterior, respeitada a alíquota máxima de
quinze por cento. (art. 7º, § 1º, Estatuto da Cidade).
Souza (2004, p. 228) esclarece que o que ocorre, concretamente, caso o proprietário
não dê à sua propriedade a devida função social, é o lançamento do valor do IPTU com “uma
constante majoração anual, sob a forma de crescente percentual”.
A progressividade do IPTU é, portanto, considerada como uma forma de estimular a
função social da propriedade e desestimular a não-utilização ou subutilização do imóvel.
Mukai (2001) afirma que o IPTU progressivo é aplicado como penalidade ao proprietário,
entretanto, utilizar o termo “pena” ou “sanção” é temerário, pois o tributo é distinto de sanção
de ato ilícito, conforme o art. 3º do CTN6; e utilizar o IPTU de forma sancionatória poderá
eivá-lo de ilegalidade. O problema, entretanto, pode ser superado a partir do entendimento de
que a não-utilização da propriedade para cumprir sua função social, não constitui ato ilícito; é
mera liberalidade sujeita a sanções administrativas.
6 Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada. (Código Tributário Nacional).
Não cumprida a obrigação de parcelamento, edificação ou utilização, por parte do
proprietário/contribuinte poderá o Poder Público: a) manter a cobrança pela alíquota máxima,
até que se cumpra a referida obrigação (art. 7, § 2°, Estatuto da Cidade); ou b) proceder à
desapropriação do imóvel, com pagamento em títulos da dívida pública. (art. 8º, Estatuto da
Cidade).
O direito tributário contém o princípio do não-confisco. Isso significa que ao atingir
a alíquota máxima, não poderá mais ser cobrado o IPTU progressivo no tempo por mais cinco
anos, pois a manutenção da alíquota de quinze por cento será considerada confisco. Dessa
forma, cabe ao Poder Público proceder com a desapropriação do imóvel, e pagamento ao
contribuinte com títulos da dívida pública. (RAMOS, 2011, p. 94).
Costa (2003, p. 111-112) partilha do mesmo entendimento acima exposto:
As normas contidas nesses dois parágrafos do art. 7 fazem refletir quanto à constitucionalidade de seus comandos. Cabe lembrar que o art. 150, IV, do Texto Fundamental veda às pessoas políticas a utilização de tributo com efeito de confisco. Em estudo monográfico acerca do princípio da capacidade contributiva definimos confisco como a absorção total ou substancial da propriedade privada pelo Estado sem a correspondente indenização. (...) a manutenção da exigência fiscal pela alíquota máxima além do prazo de cinco anos, caso não seja cumprida a obrigação de parcelar, edificar ou utilizar o solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado a que se refere o art. 5 da Lei, revela-se descabida, pois, indubitavelmente, nesta hipótese, o confisco restará consumado.
Segundo previsão do art. 7, § 3°, Estatuto da Cidade, é vedada a concessão de
isenções ou de anistia relativas à tributação progressiva no tempo.
Silva (2000, 440-441) expõe que, diante de uma economia estabilizada, a
progressividade é um importante instrumento para a “ordenação urbanística”, através da
aplicação do IPTU progressivo no tempo; podendo atingir alíquota de quinze por cento.
Percentual, normalmente, superior ao da taxa Selic e da inflação.
O IPTU progressivo no tempo é um dos principais instrumentos, de que dispõe a
Administração Pública, para frear a especulação imobiliária. Através desse imposto, a
municipalidade pode por em prática os ditames da justiça social e coibir “disparidades sócio-
espaciais”. Ademais, além de captar recursos para a melhoria da infraestrutura do município,
auxilia também na regulação fundiária “de áreas residenciais segregadas”, o que evita,
sobremaneira, os vazios urbanos. (SOUZA, 2004, p. 226-227).
Souza (2004, p. 230) salienta, ainda, que a instituição do IPTU progressivo no tempo
deve ser cercada de precauções, especialmente, quanto à especulação imobiliária do terreno,
para que não se cometam injustiças a pretexto de realizar justiça social. A primeira coisa a ser
feita é definir o tamanho mínimo a partir do qual um terreno, se não mantido ocupado, poderá
ser alvo da tributação progressiva no tempo.
Portanto, sob essa ótica, não é necessário que um terreno esteja completamente
ocupado para cumpra à função social da propriedade. Esses limites de tamanho deverão ser
pré-estabelecidos para que possam ser analisados em caso de subutilização. É o plano diretor
quem deverá estabelecer esses parâmetros de acordo com a realidade de cada município.
3.2.2 A cobrança de IPTU de acordo com o valor, a localização e uso do imóvel
A redação original do art. 156, § 1º da Constituição Federal de 1988 concedeu aos
municípios a competência para instituir o IPTU progressivo, de forma a assegurar a função
social da propriedade.
Após a Emenda Constitucional nº 29 de 13 de setembro e 2000, o artigo supracitado
passou a dispor, que sem prejuízo da progressividade no tempo a que se refere o art. 182, § 4º,
II da CF, o IPTU poderá ser progressivo em razão do valor do imóvel e ter alíquotas
diferenciadas de acordo com a localização e o uso do imóvel. (art. 156, § 1°, I e II, CF).
Dessa forma, por previsão constitucional, o IPTU poderá ser: a) proporcional; b)
progressivo no tempo; c) progressivo em razão do valor do imóvel; d) possuir alíquotas
diferenciadas de acordo com a localização e o uso do imóvel. (progressividade fiscal e
extrafiscal).
Imprescindível ressaltar, que as leis municipais que instituíram a progressão das
alíquotas do IPTU de acordo com a localização e o uso do imóvel antes da EC nº 29/2000
padecem de inconstitucionalidade, pois o advento da Emenda não convalida lei
inconstitucional. (RAMOS, 2011, p. 98).
Nesse mesmo sentido, ensina Mello (1999, p. 162) que
não é de admitir que Emenda Constitucional superveniente à lei inconstitucional, mas com ela compatível, receba validação dali para o futuro. Antes, ter-se-á de entender que, se o legislador deseja produzir nova lei e com o mesmo teor, que o faça então editando-a novamente, já agora – e só agora – dentro das possibilidades efetivamente comprovadas pelo sistema normativo. Tal solução, única tolerável, é quanto menos, irretorquível nos caso em que a Emenda sucede a breve prazo à lei inconstitucional, patenteando o intuito de coonestar-lhe o vício.
O Supremo Tribunal Federal adotou o mesmo entendimento, através do Recurso
Extraordinário nº 357.950-9/RS, onde restou declara a inconstitucionalidade do art. 3, da Lei
nº 9.178 de 27 de novembro de 1998. Os municípios, a partir de tal julgado, deveriam
elaborar nova legislação e instituir o IPTU progressivo em razão do valor do imóvel e com
alíquotas diferenciadas, de acordo com a localização e a utilização do imóvel, pelos preceitos
do novo texto constitucional.
Em 24 de setembro de 2003, o STF editou a Súmula nº 668, onde prevê que “é
inconstitucional a lei municipal que tenha estabelecido antes da Emenda Constitucional
29/2000, alíquotas progressivas para o IPTU, salvo de destinadas a assegurar o cumprimento
da função social da propriedade urbana”.
Apesar de sumulada pelo STF a questão do IPTU progressivo, não restaram sanadas
as dúvidas quanto à inconstitucionalidade da Emenda 29/2000, já que poderia violar direitos e
garantias individuais dos contribuintes (art. 60, § 4, IV, CF). Martins e Barreto (2002,
p.105/126) asseveram que a Emenda é eivada de inconstitucionalidade, pois afronta cláusula
pétrea, já que, por regra, os impostos são proporcionais, e apenas se admite a progressividade
autorizada pelo Poder Constituinte originário.
Fiorillo e Ferreira (2010, p. 93-99) adotam o entendimento de que a progressividade
do IPTU só será constitucional quanto tiver a finalidade de dar cumprimento à função social
da propriedade, de acordo com a interpretação sistemática dos art. 156 e 182 da CF. E
concluem que apenas o Poder Constituinte originário poderia excepcionar hipóteses de
progressividade para impostos reais.
Tal questão conflituosa foi apreciada pelo Supremo Tribunal Federal com o
julgamento do Recurso Extraordinário nº 423.768-7/SP. O Recurso pretendia a revisão de
acórdão que declarou a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 13.250 de 27 de dezembro
de 2001, que estabelecia alíquota progressiva para o IPTU tendo por base o valor venal do
imóvel. Entretanto, não houve uma decisão conclusiva, pois o julgamento não foi concluído
por desistência da parte recorrente.
Em 2006, o Supremo Tribunal Federal novamente voltou a apreciar a questão e, ao
dar provimento ao Recurso interposto pelo Município de são Paulo, decidiu pela
constitucionalidade da Emenda nº 29/2000 e da lei municipal. Em interpretação sistemática da
Constituição Federal, o STF entendeu que a nova emenda apenas elucidou a graduação dos
impostos não tendo ferido qualquer direito ou garantia constitucional, já que o texto anterior à
emenda já trazia referências quanto à progressividade do IPTU correlacionando-o com a
capacidade econômica do contribuinte.
Expõe Ramos (2011, p. 101) que essa progressividade é uma espécie
“progressividade-sanção”, pois o instituto da progressividade tributária está intimamente
ligado ao cumprimento da função social da propriedade urbana, especialmente, se tomadas
por base à política pública necessária à ordenação do solo urbano.
Superada a questão da constitucionalidade da Emenda 29/2000, tem-se que é
legítima a progressividade do IPTU dos contribuintes com maior poder aquisitivo, sendo,
portanto, uma tributação fundada no cárter fiscal do imposto.
Os municípios poderão adotar, dessa forma, alíquotas diferenciadas em razão da
destinação da propriedade – uso residencial, comercial, de serviços e industrial – ou pela
localização da propriedade na zona urbana do município, de acordo com a política urbana a
ser desenvolvida no município. (RAMOS, 2011, p. 101).
Para que seja utilizado o IPTU com alíquotas diferenciadas pela localização do
imóvel, é necessário que os parâmetros estejam devidamente fixados no Plano Diretor. Caso a
região seja considerada residencial, uma indústria ou comércio terá alíquota mais elevada para
se instalar, por exemplo. A aplicação das alíquotas diferenciadas de acordo com a localização
do imóvel deve se fundar em critérios racionais, e sempre deve haver uma correlação com a
política de desenvolvimento urbano e de fiel cumprimento da função social da propriedade,
sob pena da simples progressão fiscal estar eivada de inconstitucionalidade.
3.3 O IPTU COMO INSTRUMENTO PARA O USO ADEQUADO E OCUPAÇÃO DO SOLO URBANO
O Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257/01 é a medida regulamentadora dos art. 182 e
183 da Constituição Federal e o principal instrumento da Administração Pública para orientar
o uso, o desenvolvimento e a expansão das cidades.
Ensina Ribeiro (2002, p. 437) que:
essa legislação estabelece normas que regulam o uso da propriedade urbana, visando a uma melhor execução da política urbana, melhoria da segurança, do bem-estar das pessoas e do equilíbrio ambiental. Com eles os municípios dispõem de um marco regulatório para a política urbana, que pode levar a importantes avanços.
O Estatuto da Cidade traz uma política de gestão democrática com a participação
popular e de associações representativas da comunidade para a formulação e execução da
política de desenvolvimento urbano. O principal objetivo dessa política é garantir o
cumprimento da função social da propriedade através de normas que regulem o uso da
propriedade em prol da coletividade.
Para a implementação da política de desenvolvimento urbano, o Estatuto da Cidade
prevê os seguintes institutos que darão efetividade à função social da propriedade: o
parcelamento, edificação ou utilização compulsórios do solo urbano não edificado,
subutilizado ou não utilizado.
Tais institutos estão previstos no art. 5º do Estatuto da Cidade, onde prevê que lei
municipal específica para área incluída no Plano Diretor poderá determinar o parcelamento, a
edificação ou a utilização compulsórios do solo urbano não edificado, subutilizado ou não
utilizado, devendo fixar as condições e os prazos para a implementação da referida obrigação.
O objetivo dessa política é evitar, através da instituição de lei municipal, a utilização
inadequada do imóvel urbano, compelindo o proprietário a utilizar a propriedade, dando-lhe a
sua devida função social, conforme prevê o art. 182 e 183 da Constituição Federal.
O proprietário de imóvel urbano possui direitos (inviolabilidade do direito à
propriedade e a garantia do direito à propriedade) e deveres (toda propriedade deve atender
sua função social), constitucionalmente previstos. Tais direitos e deveres são garantias
fundamentais previstas no art. 5º, caput, XXII e XXIII e art. 182, § 2º da CF.
O planejamento da política urbana é obrigatório para a Administração Pública e
indicativa ao setor privado (art. 174, CF) e o instrumento básico para o desenvolvimento e
expansão urbana é o Plano Diretor, que deverá ser elaborado com a cooperação das
associações representativas.
A Lei nº 10.257/01 veio regulamentar a normatização constitucional que pretender
coibir a especulação imobiliária nas cidades. Portanto, nos municípios com Plano Diretor
vigente, as áreas não utilizadas ou subutilizadas, “situadas em regiões dotadas de infra-
estrutura”, poderão sofrer edificação e parcelamento compulsórios (art. 5º e 6º). (RIBEIRO,
2002, p. 439).
Ribeiro (2002) expõe que o município é dotado de competência para determinar os
critérios para que um solo seja considerado inutilizado ou subutilizado, podendo conceder
prazos e condições que induzam ao seu adequando aproveitamento. No caso de
descumprimento, o município poderá utilizar-se do IPTU progressivo no tempo.
A progressividade temporal é uma “penalização” ao proprietário/ contribuinte que
não dá a sua propriedade a devida função social. A utilização do IPTU progressivo no tempo
ocorrerá, somente, quando já tiver sido imposta a obrigatoriedade de parcelamento ou
edificação compulsória do solo urbano.
Tais instrumentos como a edificação compulsória, o IPTU progressivo e a
desapropriação com pagamentos em títulos da dívida pública poderão efetivar o crescimento
das cidades, através de um projeto de urbanização consolidada.
4 O IPTU SOBRE AS ÁREAS DE PROTEÇÃO AMBIENTAL
A questão ambiental, a partir da década de 1970 vem sendo objeto de debates no
cenário internacional, o que originou a necessidade de políticas conjuntas entre os países na
proteção do patrimônio ambiental.
O Brasil, detentor de rico acervo biológico, acompanhou essa tendência, e desde a
Carta Magna de 1988 vem criando uma legislação específica para a preservação do meio
ambiente, especialmente no concerne às Unidades de Conservação. Essas áreas possuem
diversas restrições quanto a sua utilização, o que, por vezes, vem conflitar com o direito de
propriedade.
A política de desenvolvimento urbano e aplicação do IPTU progressivo no tempo
deverão, portanto, adequar-se as Unidades de Conservação urbanas, pois são áreas
constitucionalmente protegidas. Ensina Kuntz e Nogueira (2002, p.470) que
No âmbito do direito ambiental, as denominadas Unidades de Conservação são porções delimitadas do território nacional, especialmente protegidas por lei, para preservar os elementos naturais de importância ecológica ou ambiental.
É obrigação da Administração Pública a criação das Unidades de Conservação (art.
225, § 1º, III)7. Isso ocorre, porque é dever do Estado a preservação do meio ambiente, que
em conjunto com a coletividade, devem evitar que a ação humana cause o esgotamento dos
recursos naturais.
Para criar Unidades de Conservação serão analisadas as características naturais do
local, e definidos os objetivos da conservação e o nível de intervenção humana, para
classificá-la em uma das espécies de UC. Essas áreas foram devidamente regulamentadas pela
Lei Federal nº 9.985 de 18 de julho de 2000 que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de
Conservação da Natureza (SNUC). (KUNTZ; NOGUEIRA, 2002, p. 470).
7 Art. 225, § 1º, III: Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público – definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a suspensão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem a sua proteção.
Existem duas espécies de Unidades de Conservação: Unidades de Proteção Integral e
Unidades de Uso Sustentável. As primeiras são áreas que visam à preservação integral da
natureza, disponibilizando-se, apenas o uso indireto dos recursos naturais, ou seja, não é
permitida a coleta, consumo e dano dos recursos existentes. São exemplos dessa espécie: as
Reservas Biológicas, Estações Ecológicas, Parques Nacionais, etc.
Nesse caso, há uma interferência direta no direito de propriedade, pois normalmente,
não são mantidas a posse e o domínio do proprietário. Essas áreas são desapropriadas e
passam a compor o acervo de bens público, por disposição legal, e, portanto, não estão
sujeitas à tributação.
A segunda espécie são as Unidades de Conservação de Uso Sustentável. Nesse grupo
estão as áreas em que a conservação dos recursos naturais deve estar em compatibilidade com
o uso sustentável de parte dos recursos existentes. São as Áreas de Relevante Interesse
Ecológico, as Áreas de Proteção Ambiental e as Reservas Particulares do Patrimônio.
Ensina Magalhães que essa espécie de UC permite a visitação pública e a utilização
sustentável dos recursos naturais, de acordo com o art. 2, XI, da Lei nº 9.985/00. Essas áreas
podem coexistir em propriedades particulares, sem que esta seja passível de desapropriação.
(2001, p. 118).
As Unidades de Conservação que permanecem sob o domínio de seus proprietários
estão sujeitas a tributação. Entretanto, a preservação do meio em compatibilidade com o uso
racional dos recursos, gera diversas limitações quanto à utilização da propriedade,
especialmente no concerne à exploração econômica. (KUNTZ; NOGUEIRA, 2002, p. 472).
Por determinação da Lei nº 9.985/00 as restrições impostas, quanto a alteração da
área ou de atividades degradantes e a integração da exploração econômica com o uso
sustentável dos recursos naturais deverão estar definidas no Plano de Manejo, a ser elaborado
pelo Poder Público com a colaboração da coletividade.
Portanto, o proprietário de Unidade de Conservação de Uso Sustentável deverá
obedecer, além da normatização geral, às demais normas estabelecidas pelo Estado, quanto à
restrição de utilização da propriedade. Qualquer desobediência a essas normas, estabelecidas
no Plano de Manejo, serão punidas nas esferas administrativa, civil e penal.
Kuntz e Nogueira (2002, p. 472) entendem que essas restrições impostas acabam por
gerar prejuízo econômico ao proprietário da área onde está contida a Unidade de
Conservação.
Senão vejamos. Não obstante à necessidade do cumprimento de sua função social, já mencionada, e não entrando neste mérito, as restrições impostas pela legislação ambiental às propriedades que permanecem sob domínio privado (sem ocorrer desapropriação), em nosso entendimento, constituem, sem sombra de dúvida, prejuízo do conteúdo econômico da propriedade do imóvel.
Conclui, ainda, que os imóveis que contem Unidade de Conservação, e, portanto,
todas as restrições legais que essa área impõe se comparados a um imóvel normal, sem
qualquer limitação, não podem sofrer o mesmo tipo de tributação. (KUNTZ E NOGUEIRA,
2002, p. 473).
Os tribunais superiores8 têm entendido que essas áreas desapropriadas, para
instalação de Unidades de Conservação acabam, por “esvaziar” o conteúdo econômico da
propriedade particular, o que, por sua vez, gera, também, um tratamento tributário
diferenciado.
Portanto, o proprietário encarregado pela preservação ambiental de área abrangida
por uma Unidade de Conservação merece tratamento tributário, através de incentivos ou
isenções, e até, tributação mais rigorosa em caso de degradação ambiental.
A incidência do Imposto Predial Territorial Urbano para Unidades de Conservação,
seguindo esta política, deverá adequar-se como medida protetiva ao meio ambiente, já que é
previsão constitucional a aplicação de alíquotas diferenciadas para o IPTU de acordo o uso do
imóvel. Portanto, se o imóvel recebe restrição ou gravame quanto à sua utilidade, deve
receber, também, um tratamento tributário adequado. Resta claro, todavia, que a preservação
ambiental e a propriedade privada devem ser ponderadas para que se possa atingir o
desenvolvimento econômico-social.
Como exemplo dessa política, o Município de São Paulo, com a edição da Lei nº
10.365 de 22 de setembro de 1987, concedeu incentivos ao contribuinte do IPTU em cuja
propriedade seja mantida intacta a vegetação e declarada de preservação permanente ou
perpétua. O Rio de Janeiro criou a Lei nº 691 de 24 de dezembro de 1984, onde concede
isenção de IPTU aos terrenos com relevância para a preservação paisagista, para as reservas
florestais, e para qualquer terreno com área superior a 10.000 metros quadrados coberto por
florestas. (FOLMANN, 2002, p. 509-510).
O município de Curitiba, através da Lei nº 6.819 de 24 de dezembro de 1986, criou
um Setor Especial de Áreas Verdes, composto por imóveis cadastrados no Departamento de
8 “(...) Limitações administrativas que afeta o conteúdo econômico do direito de propriedade (...)” (STF, RE 134.297/SP 1º Turma, relator Min. Celso de Mello) “(...) esvaziou o conteúdo econômico da propriedade, ao destacar do domínio as prerrogativas de usar e fruir do
bem(...)” (STJ, RESP 52.905-0, 1ª Turma, relator Min. Humberto Gomes de Barros.
Parques, Praças e Preservação da Prefeitura e que contenham áreas verdes. Em relação às
áreas degradadas, se estas foram recuperadas receberão isenção total do imposto imobiliário
quando a área verde for superior a 80% do terreno; o tributo será reduzido em 80% se
mantidas 50% da cobertura florestal; e redução de 50% quando for preservada entre 30% a
49% das áreas verdes. (FOLMANN, 2002, p. 509).
O Município de Manaus abriga diversas Unidades de Conservação, na área urbana.
São exemplos: Jardim Botânico Adolpho Ducke, o Parque Municipal do Mindú, o Refúgio da
Vida Silvestre Sauim Castanheiras e a Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Tupé.
O Jardim Botânico de Manaus Adolpho Ducke está em uma área de 5km², o que
corresponde a 5% da Reserva Florestal Adolpho Ducke. O objetivo do projeto é evitar o
crescimento urbano desordenado na zona leste da cidade e explorar o conhecimento sobre a
fauna e flora da região e divulgar tais informações à comunidade. Foi criado no ano de 2000,
pela Prefeitura de Manaus em Parceria com Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia9.
O Parque do Mindú foi criado no ano 1989 na Zona Centro-Sul de Manaus, com o
objetivo de proteger o Saium-de-Manaus, primata nativo da região. Atualmente, é uma área
de grande visitação turística devido às suas trilhas e pela diversidade de elementos do
ecossistema amazônico.
O Refúgio da Vida Silvestre Saium Castanheiras é uma espécie de Unidade de
Conservação de Proteção Integral. Sua criação advém do Decreto Federal nº 87.455 de 12 de
agosto de 1982, com o objetivo de, também, preservar o habitat dos Saium-de-Manaus e das
castanheiras. Dentro dessa área encontra-se uma das nascentes do Igarapé do Quarenta. Essa
UC resgata e reabilita os animais da fauna amazônica. Em 2009 mais de 3200 animais foram
tratados e, aproximadamente, 70% foi devolvida à natureza.
A Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Tupé tem por objetivo preservar a
natureza e assegurar a qualidade de vida das populações tradicionais, e ainda, conservar o
conhecimento tradicional dessas comunidades e suas técnicas de manejo do ambiente. A
Reserva foi criada pelo Decreto nº 8.044 de 08 de novembro de 2005 e possui 12.000
hectares.
Conforme afirmado anteriormente, se a propriedade possui restrições, que acabam
por afetar seu desenvolvimento econômico, merecem um tratamento tributário diferenciado,
especialmente quanto aos tributos que incidem sobre a propriedade.
9 INPA. Unidades de Conservação. Disponível em: HTTP://pdbff.inpa.gov.br/treina5p.htm. Acesso em 13fev.2012.
5 ANÁLISE DA LEI 1.091/2006 – POLÍTICA FISCAL DO MUNICÍPIO DE MANAUS PARA PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE
O Município de Manaus está localizado em uma área de livre comércio, cujo projeto
é desenvolvido pela Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa), que é uma
autarquia vinculada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. O
principal objetivo da Suframa é implementar um modelo de desenvolvimento regional que
viabilize o crescimento econômico utilizando os recursos naturais de forma sustentável e
guarneça a qualidade de vida da população.
A Suframa é composta por três pólos (comercial, industrial e agropecuário) que
visam ampliar o projeto de desenvolvimento regional de forma a envolver todos os Estados da
área de abrangência, atraindo investimentos e promovendo o crescimento sustentável dos
setores econômicos.
O desenvolvimento sustentável – harmonização do crescimento econômico com a
proteção ao meio ambiente – é uma necessidade urgente, pois é premissa básica para a sadia
qualidade de vida da população.
O princípio 8 (oito) da Declaração do Rio de Janeiro, em 1992, estabelece “para
alcançar o desenvolvimento sustentável e uma melhor qualidade de vida para todas as
pessoas, os Estados devem reduzir e eliminar os sistemas de produção e consumo não-
sustentáveis e fomentar políticas demográficas apropriadas”.
É, então, através de uma política tributária de incentivos, como isenções para a
utilização de combustível renovável, produtos não-poluentes, manutenção de florestas nativas
que se consolida o princípio do desenvolvimento sustentável. Esse incentivo compatibilizado
com a proteção ao meio ambiente é o grande desafio do Estado do Amazonas. (GUSMÃO,
2008, p. 167).
Nessa ótica foi editada a Lei Estadual nº 2.826 de 29 de setembro de 2003,
estabelecendo uma política com incentivos fiscais e extrafiscais, cujo objetivo e a
consolidação dos pólos que compõem a Suframa, o crescimento econômico do Estado, bem
como da proteção ao meio ambiente. (parágrafo único, do art. 1º).
Diversas disposições legais anteriores trataram do tema, entretanto, apresentavam
sérias falhas e distorções, como, por exemplo, a ausência de incentivo ao setor florestal10.
10 Regulamento da Política dos Incentivos Fiscais, art. 12, previsto na Lei nº 1.939/89: Excluem-se dos incentivos de que trata a Lei nº 1.939/89, os produtos das empresas que explorem quaisquer das seguintes atividades: V – beneficiamento elementar de produtos de origem vegetal e animal, como preparação primária de couros e peles, beneficiamento de sal, preparação de fumos, serragem de madeiras e outras atividades
A antiga previsão legal era adepta da teoria naturalista, onde se pretendia somente a
proteção ambiental, desestimulando a atividade industrial sem apontar qualquer contrapartida
para o desenvolvimento econômico da região. Aguiar (2006, p. 8-9) ensina que o grande
problema na Amazônia é a pobreza e a incipiente educação, pois ambas caminham juntas e só
poderão começar a ser sanadas com uma gestão adequada dos recursos naturais – usar e
preservar.
A nova Lei nº 2.826/03 trouxe uma série de incentivos, como isenções, crédito de
estímulo, redução de base de cálculo e alíquotas e crédito fiscal presumido de regionalização,
concessão de financiamentos para produtos de origem vegetal e animal, com certificação
ambiental, industrial, comercial e de prestação de serviços, entre outros11.
Desta feita, busca-se a harmonização do crescimento econômico com a preservação
ambiental, evitando-se, de qualquer forma, atividades que gerem impactos nocivos ao meio
ambiente. (art. 8º).
Toda empresa que se instala na região abrangida pelo projeto de desenvolvimento
regional deve ter um projeto técnico-econômico, em que fique demonstrada a viabilidade do
empreendimento e o atendimento às disposições legais da Lei nº 2.826/03. Deve, portanto,
estar munida com a licença prévia expedida pelo órgão responsável pela política estadual de
prevenção e controle de poluição, melhoria e recuperação do meio ambiente. (GUSMÃO,
2008, p. 170).
Após aprovado o projeto e expedida a licença prévia, as empresas terão que manter
programas de gestão de qualidade, meio ambiente, de segurança e saúde ocupacional (art. 19,
IV). Caso infringidas as disposições legais, ficará suspenso o incentivo até que haja a
regularização, podendo, ainda perder o benefício em caso de reincidência, em um período de
doze meses. (art. 45, II, b) e art. 45, § 2º).
assemelhadas; (...) VIII – obtenção de produtos de origem extrativista caracterizados por processo elementar de produção (...). 11 Lei nº 2.826/03: art. 4º. A concessão dos incentivos fiscais caberá unicamente aos produtos resultantes de atividades consideradas de fundamental interesse ao desenvolvimento do Estado. § 1º: Consideram-se de fundamental interesse ao desenvolvimento do Estado, para efeito do que dispõe esta Lei, as empresas cujas atividades satisfaça pelo menos 3 (três) das seguintes condições: I – concorram para o adensamento da cadeia produtiva, com o objetivo de integrar e consolidar o parque industrial, agroindustrial e de industria de base florestal do Estado; II – contribuam para o incremento do volume de produção industrial, agroindustrial e florestal do Estado; III – contribuam para o aumento da exportação para os mercados nacional e internacional; IV – promovam investimento em pesquisa e desenvolvimento de tecnologia de processo e/ou produto; V- contribuam para substituir importações nacionais e/ou estrangeiras; VI- promovam interiorização de desenvolvimento econômico e social do Estado; VII – concorram para a utilização racional e sustentável de matéria prima florestal e de princípios ativos da biodiversidade amazônica, bem como dos respectivos insumos resultantes de sua exploração; VIII- contribuam para o aumento das produções agropecuárias e afins, pesqueira e florestal do Estado; IX- gerem empregos diretos e/ou indiretos no Estado; X- promovam atividades ligadas à industria do turismo.
A política de incentivo fiscal do Estado tem o condão de promover o
desenvolvimento social e econômico da região, entretanto, toda essa política deve ser
compatibilizada com a necessidade de preservação do meio ambiente amazônico.
5.1 O IPTU VERDE E AS RESERVAS NATURAIS DE PATRIMÔNIO NACIONAL
A política de incentivos fiscais para a promoção do desenvolvimento regional criada
pelo município de Manaus é voltada para a Zona Franca. O município concede isenção de
IPTU - Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana, taxas de licença e de
serviços, a todas as empresas que criarem um mínimo de 500 empregos diretos, no início da
atividade, tendo que os manter pelo período do benefício. (Lei nº 427 de 08 de janeiro de
1998).
Quanto à política ambiental tem-se concedido incentivos tributários para a
preservação de bens ambientais, como as florestas nativas. Trata-se de previsão
constitucional, onde a Floresta Amazônica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense, e a
Zona Costeira são patrimônios nacionais que devem ser preservados, quanto ao uso dos
recursos naturais. (art. 225, §4° da CF).
Em obediência a Constituição Federal de 1988, o município de Manaus criou o
Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana com fins de preservação ambiental -
IPTU Verde12, onde estarão isentos todos os proprietários das áreas florestais reconhecidos
como Reserva Particular de Patrimônio Natural (RPPN)13.
Expõe Gusmão (2008, p. 172) que,
As Reservas Particulares de Patrimônio Natural (florestas nativas), uma vez assim reconhecidas, têm caráter perpétuo, não podendo ser desfeita a qualificação. Essas reservas, após o competente licenciamento do órgão municipal responsável por sua qualificação de Patrimônio Natural, podem ser utilizadas para visitação e para a prática de atividades educacionais, científicas, culturais, recreativas e de lazer, devendo, no entanto, ser mantido o objetivo principal de preservação ambiental.
12 Lei n 1.091/06. Art. 43 A área do imóvel reconhecida pelo Poder Público Municipal como Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), nos termos da Lei Municipal n. 886, de 14 de outubro de 2005, está isento do IPTU, devendo o contribuinte observar os procedimentos regulamentares. 13São exemplos de Reservas Particulares no Município de Manaus, a RPPN Nazaré das Lages e Lages, com área de 52,06 ha, criada pela portaria n. 49/95, a RPPN Laço do Amor, com área de 8 ha, criada pela portaria 22/2000, a RPPN Bela Vista, com área de 27,35 ha, criada pela Portaria n. 72/95. Recentemente, a prefeitura de Manaus oficializou a criação da RPPN Sócrates Bonfim, pelo Decreto 152/2009, co área de 23 há, localizada próxima ao Igarapé do Tabatinga (prefeitura de Manaus).
A Lei n. 1.091/06 (art. 43) também prevê a redução de 75% de IPTU aos imóveis
destinados às atividades agrícolas, que se encontrem na zona de expansão urbana do
município de Manaus, com o intuito de desestimular a manutenção de áreas improdutivas. A
isenção, também, poderá ser estendida ao outros imóveis de uso agrícola, desde que previsto
nas leis de diretrizes urbanas.
A política ambiental instituída pelo Estado do Amazonas visa a contribuir com a
política tributária com vistas a preservação do meio ambiente, por certo que não será capaz de
inibir, totalmente, a degradação dos recursos naturais, entretanto, estimulará a utilização desse
mecanismo indutor para o desenvolvimento sustentável.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A coletividade tem direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado como
garantia da sadia qualidade de vida, sendo obrigação do Poder Público e da coletividade
protegê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
O foco central da pesquisa ateve-se ao meio ambiente urbano, que é o espaço urbano
construído, e na política urbana, executada pela administração pública municipal, cujo
objetivo é o pleno desenvolvimento da função social das cidades e a qualidade de vida de seus
habitantes.
O desenvolvimento urbano está previsto na Constituição Federal de 1988 (art. 182, §
4º, II) e é regulamento pela Lei nº 10.257/2001 – Estatuto da Cidade. A partir da
regulamentação federal, cada município, com mais de 20 mil habitantes, estabelecerá as
diretrizes de sua política pública, através Plano Diretor a ser editado.
Um dos instrumentos da Administração Pública Municipal para a implementação
dessa política, é a utilização da tributação ambiental, que deverá ser utilizada de acordo com o
sistema tributário e ambiental projetados pelo constituinte de 1988. É através de uma
interpretação sistemática do direito ambiental e tributário e da observância dos princípios
pertinentes, que se origina o direito tributário ambiental brasileiro.
Dentro do sistema constitucional tributário existem vários requisitos para a
instituição dos tributos e para a distribuição de competências tributárias aos entes da
República Federativa Brasileira. A sistemática do direito tributário é rígida e não permite a
criação de outros tributos, senão aqueles previstos no texto constitucional, salvo determinadas
exceções como o imposto residual a ser instituído pela União, ou outras fontes de custeio para
a seguridade social.
Desta feita, só se utilizará de tributos já existentes para implementar o
desenvolvimento da função social das cidades e do bem-estar do cidadãos, bem como para
intervir na economia. O tributo será, então, utilizado, em seu caráter fiscal e extrafiscal para
auxiliar nas políticas públicas ambientais.
O projeto da tributação ambiental não é a criação de novos tributos residuais
(competência da União), mas sim o desenvolvimento de um sistema que induza o contribuinte
a ter ações mais benéficas ao meio ambiente, já que a carga tributária brasileira é
extremamente onerosa, especialmente, se observados os serviços públicos fornecidos à
população.
Nessa premissa, o direito tributário dispõe dos tributos extrafiscais ou indutores para
estimular ou desestimular condutas, através da concessão de isenções e incentivos aos
contribuintes “ambientalmente corretos”. Os tributos adequados para a finalidade de proteção
ao meio ambiente obedecerão aos princípios tributários gerais, com seus regramentos
específicos, não havendo qualquer tipo de exceção por se tratar de matéria ambiental.
O tributo ambiental, conforme explanado, é delimitado para buscar a efetivação do
meio ambiente ecologicamente equilibrado, e esse fator poderá ser especificado pela regra-
matriz de incidência tributária. A extrafiscalidade, também, é ponto central nesse estudo, pois
é através do caráter finalístico do tributo, que surge a possibilidade de intervenção na
atividade econômica e para induzir determinadas condutas sociais, especialmente àquelas
voltadas para a preservação ambiental.
Por previsão constitucional (art. 167, IV), é vedada a vinculação de receitas oriundas
de impostos, portanto, o imposto ambiental somente poderá ser utilizado como mecanismo de
política pública, uma vez que não serão geradas receitas vinculadas a esse viés.
Entretanto, através do caráter indutor do imposto, este poderá ser utilizado para
desestimular condutas nocivas ao meio ambiente e estimular o contribuinte a desenvolver sua
atividade econômica utilizando de forma racional os recursos naturais.
O IPTU progressivo no tempo é um dos instrumentos imprescindíveis para a
implementação das políticas públicas e para o desenvolvimento da função social das cidades e
da melhoria da qualidade de vida dos cidadãos, desde que aplicado através do parâmetros
legais.
Além da progressividade do IPTU no tempo, tal tributo poderá ser progressivo,
também, em razão do valor do imóvel (art. 156, § 1º, I, CF) e possuir alíquotas diferenciadas
de acordo com a localização e o uso do imóvel (art. 156, § 1º, II, CF). Essas espécies de
progressão do IPTU foram instituídas pela Emenda Constitucional nº 29/2000, e poderão ser
utilizadas pelos municípios que editaram a lei específica de cobrança após a emenda.
Através da análise do instituto, percebe-se que o IPTU é importante instrumento para
a preservação ambiental, na medida em que a concessão de incentivos estimula e induz o
proprietário contribuinte a dar à propriedade sua devida função social, contribuindo,
sobremaneira, para o desenvolvimento sustentável do meio ambiente urbano.
Visando a preservação do meio ambiente, o município de Manaus criou o Imposto
sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana com fins de preservação ambiental - IPTU
Verde, onde estarão isentos todos os proprietários das áreas florestais reconhecidas como
Reserva Particular de Patrimônio Natural (RPPN).
O objetivo geral da pesquisa era estudar o IPTU, como instrumento jurídico, posto à
disposição do Estado, para intervir na economia com a finalidade precípua de preservação ao
meio ambiente.
Portanto, conclui-se que a utilização correta do IPTU, seja ele progressivo no tempo,
o IPTU verde, ou, ainda, o IPTU progressivo em razão do valor, uso e localização do imóvel
são mecanismo fundamentais para, através do direito tributário, induzir o
contribuinte/proprietário a preservação do meio ambiente natural e desenvolvimento do meio
ambiente urbano.
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JUSTIÇA CLIMÁTICA E JUSTIÇA FISCAL: A TRIBUTAÇÃO
AMBIENTALMENTE ORIENTADA PARA A PROTEÇÃO DO CLIMA
GIUSTIZIA CLIMATICA ED GIUSTIZIA FISCALE: LA TASSAZIONE AMBIENTALE
ORIENTATA ALLA PROTEZIONE DEL CLIMA
Paulo Sérgio Miranda Gabriel Filho●
RESUMO Este artigo aborda a questão da intervenção do Estado no domínio econômico, por meio da tributação, com o propósito de aumentar o nível de proteção do clima, analisando-se a situação sob o ângulo da justiça climática e da justiça fiscal. Essas duas modalidades de justiça possuem características semelhantes e possuem uma perfeita conexão entre si. No tocante à justiça climática, analisamos sua dimensão ética e na seara da justiça fiscal, analisamos seus princípio e limitações constitucionais. Nesse caminho, terminamos o presente trabalho com uma análise da tributação ambientalmente orientada para a proteção do clima em outros países e no Brasil. PALAVRAS-CHAVE : Direito ambiental tributário; Justiça ambiental; Justiça climática; Justiça Fiscal; Proteção do clima.
RIASSUNTO Questo articolo affronta la questione dell'intervento statale in campo economico, attraverso la tassazione, al fine di aumentare il livello di protezione del clima, analizzando la situazione dal punto di vista della giustizia climatica e giustizia fiscale. Queste due forme di giustizia hanno caratteristiche simili e dispone di una connessione perfetta tra di loro. Per quanto riguarda la giustizia climatica, abbiamo analizzato la sua dimensione etica e la raccolta della giustizia fiscale, abbiamo analizzato il suoi principi e limiti costituzionali. In questo modo, finiamo questo lavoro con l'analisi di protezione fiscale orientata verso l'ambiente climatico in altri paesi e Brasile. PAROLE CHIAVE : Tassazione ambientale; Giustizia ambientale; Giustizia climática; Giustizia fiscale; Protezione del clima.
Introdução
Historicamente, o clima sempre variou de modo natural e, nessa esteira, a história da
humanidade apresentou ciclos, ora de esfriamento e ora de aquecimento. Atualmente,
encontramo-nos em um ciclo de aquecimento, no qual o Sol apresenta-se no ponto mais alto
de atividade nos últimos trezentos anos.
● Mestrando em Direito Agroambiental do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Especialista em Direito Empresarial pela UFMT. Diplomado pelo Centro Interamericano de Administrações Tributárias (CIAT), Panamá. Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil, exercendo atualmente a função de Chefe do Serviço de Orientação e Análise Tributária (SEORT) da Delegacia da Receita Federal do Brasil em Cuiabá/MT (DRF/CBA/MT). Instrutor da Escola de Administração Fazendária (ESAF).
Em que pese essa afirmação, é cediço que a intensidade e a velocidade com que a
temperatura global tem aumentado nas últimas décadas não guardam proporcionalidade com o
tempo mínimo necessário de compatibilidade para que a natureza possa absorver essas
alterações e se adaptar por meio de sua biodiversidade e de seus ecossistemas. Isso acontece
porque as atividades antrópicas estão contribuindo para as mudanças climáticas em maior
grau do que seria prudente e aceitável.
Essas alterações causarão impactos ambientais, econômicos e sociais que afetarão
todos os países, em maior ou menor grau. Temos, então, um direito de todos — o meio
ambiente ecologicamente equilibrado, do qual fazem parte as condições climáticas necessárias
a tal intento — e ao mesmo tempo um dever de todos, qual seja, envidar esforços para que
esse objetivo seja alcançado, para a geração atual e para as futuras gerações, o que se
denomina eqüidade intra e intergeracional, respectivamente. Esse dever, portanto, perpassa
pela proteção do clima em suas dimensões nacional e internacional.
A Humanidade ainda não se deu conta plenamente de que vive em uma era de
ecocídios. Essa expressão, cunhada pela primeira vez pelo professor Richard Falk, significa
qualquer destruição em larga escala do meio ambiente ou à exploração excessiva de recursos
não-renováveis, ultrapassando seu ponto de equilíbrio.
A professora Rosa Maria, em prefácio da obra de Liliana Allodi Rossit[1], afirma:
Enfrenta-se, hoje, as possibilidades de ecocidios (termo referido por Richard Falk, em 1973, esclarece a Autora), ou seja, ações e medidas de diferente porte e origem, desde as armas químicas à utilização da energia atômica, transmissão de doenças, bombardeios de vírus (via a imaginação!), todos factíveis, de tal modo que os limites da ciência e da ação humana, portanto, batem às portas da sobrevivência humana e da dignidade da pessoa (...)
Importante, nesse caminhar, trazermos a lume as palavras de Eric Hobsbawm[2]:
Nosso mundo corre risco de explosão e implosão. Tem de mudar. Não sabemos para onde estamos indo. Só sabemos que a história nos trouxe até este ponto e (...) por quê. Contudo, uma coisa é clara. Se a Humanidade quer ter um futuro reconhecível, não pode ser pelo prolongamento do passado ou do presente. Se tentarmos construir o terceiro milênio nessa base, vamos fracassar.
É nesse contexto de crise que iniciamos nosso trabalho e nos propomos a partir de
agora a percorrer brevemente os conceitos de justiça ambiental, justiça climática e justiça
fiscal, bem como as imbricações as duas últimas. Ao final, indicamos se caminhamos, ou não,
rumo a direção que deve ser seguida para sairmos dessa era de ecocídios.
1. Justiça ambiental
Na lição de Henri Acselrad et al.[3], a noção de justiça ambiental é cunhada a partir do
contraponto com o termo injustiça ambiental:
Para designar esse fenômeno de imposição desproporcional dos riscos ambientais às populações menos dotadas de recursos financeiros, políticos e informacionais, tem sido consagrado o termo injustiça ambiental. Como contraponto, cunhou-se a noção de justiça ambiental para denominar um quadro de vida futuro no qual essa dimensão ambiental da injustiça social venha a ser superada. Essa noção tem sido utilizada, sobretudo, para constituir uma nova perspectiva a integrar lutas ambientais e sociais (grifos do autor).
Em outras palavras, injustiça ambiental ocorre quando os danos ambientais são
suportados em maior peso pelos grupos sociais mais vulneráveis, os quais se enquadram nessa
situação pelos mais diversos critérios, como raça, etnia1 e renda.
Entre as diversas organizações que militam ao redor do mundo na causa da justiça
ambiental, podemos citar a Fundação Justiça Ambiental2, no âmbito internacional, e a Rede
Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA3), no âmbito nacional.
Segundo a Fundação citada, a proteção do meio ambiente é uma questão de vida ou
morte para as pessoas mais pobres do mundo, e não somente uma questão de qualidade de
vida. Para uma grande parcela da população mundial, a degradação ambiental é sinônimo de
pobreza, fome e vulnerabilidade, essa entendida em suas faces social e ambiental[4].
A RBJA[5] define justiça ambiental como o conjunto de princípios e práticas que:
a - asseguram que nenhum grupo social, seja ele étnico, racial ou de classe, suporte uma parcela desproporcional das conseqüências ambientais negativas de operações econômicas, de decisões de políticas e de programas federais, estaduais, locais, assim como da ausência ou omissão de tais políticas; b - asseguram acesso justo e eqüitativo, direto e indireto, aos recursos ambientais do país; c - asseguram amplo acesso às informações relevantes sobre o uso dos recursos ambientais e a destinação de rejeitos e localização de fontes de riscos ambientais, bem como processos democráticos e participativos na definição de políticas, planos, programas e projetos que lhes dizem respeito; d - favorecem a constituição de sujeitos coletivos de direitos, movimentos sociais e organizações populares para serem protagonistas na construção de modelos
1 Cumpre esclarecer que o conceito de etnia engloba o conceito de raça. Esse compreende apenas os fatores morfológicos, como cor de pele, constituição física, estatura, etc, enquanto aquele também compreende os fatores culturais, como a nacionalidade, religião, língua e as tradições. 2 Environmental Justice Foundation. De origem inglesa, foi criada na Grã-Bretanha em 2000 e transformada em instituição de caridade em 2001. Seu principal objetivo é garantir que as habilidades e o conhecimento adquiridos em matéria de justiça ambiental sejam disseminados para as gerações futuras de defensores dos direitos humanos e das questões ambientais. Para maiores informações, cf. http://www.ejfoundation.org/. 3 A RBJA foi criada em 2001, por ocasião do Seminário Internacional Justiça Ambiental e Cidadania, realizado de 24 a 27 de setembro do mesmo ano na cidade de Niterói/RJ, reunindo representações de diferentes movimentos sociais, ONG’s, pesquisadores de diferentes regiões do Brasil, além de um certo número de pesquisadores e representantes do movimento de Justiça Ambiental dos EUA, entre os quais Robert D. Bullard. Para maiores informações, cf. www.justicaambiental.org.br.
alternativos de desenvolvimento, que assegurem a democratização do acesso aos recursos ambientais e a sustentabilidade do seu uso.
Nessa definição, vemos presentes os princípios da informação e da participação[6], os
quais estão plasmados no princípio 10 da Declaração do Rio sobre meio ambiente e
desenvolvimento de 1992, in verbis:
O melhor modo de tratar as questões ambientais é com a participação de todos os cidadãos interessados, em vários níveis. No plano nacional, toda pessoa deverá ter acesso adequado à informação sobre o ambiente de que dispõem as autoridades públicas, incluída a informação sobre os materiais e as atividades que oferecem perigo a suas comunidades, assim como a oportunidade de participar dos processos de adoção de decisões. Os Estados deverão facilitar e fomentar a sensibilização e a participação do público, colocando a informação à disposição de todos. Deverá ser proporcionado acesso efetivo aos procedimentos judiciais e administrativos, entre os quais o ressarcimento de danos e recursos pertinentes.
Por fim, em que pese a ponderação dos problemas sociais nas discussões sobre
políticas públicas ambientais, é forçoso reconhecer que, em nosso país, não observamos um
uso freqüente do conceito de justiça ambiental. É dizer, não vemos a integração das
dimensões ambiental, social e ética nos discursos e nas práticas pertinentes ao
desenvolvimento sustentável.
2. Mudanças climáticas como uma questão de justiça ambiental[7]
Dados do Relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças do Clima (IPCC)
do ano de 2007[8] comprovam que determinadas regiões e grupos humanos serão
especialmente afetados pelas mudanças climáticas. Alerta que a vulnerabilidade em face das
mudanças climáticas pode ser agravada pela pobreza e acesso desigual a recursos.
O Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) do Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (PNUD) do biênio 2007/2008[9] reconhece que os habitantes de
países pobres correm riscos muito maiores de serem vítimas de catástrofes climáticas do que
os de países com renda elevadas.
Como vulnerabilidade de uma determinada região ou grupo humano, podemos
entender como sinônimo de um quadro de desigualdade interna e economia frágil, somado a
um baixo desenvolvimento humano.
O seu eficaz enfrentamento requer a incorporação dos pressupostos da justiça
ambiental e eqüidade, visando não apenas mitigar as emissões em uma escala global, mas
também reduzir os níveis de vulnerabilidade para que se possa enfrentar melhor as
conseqüências das mudanças climáticas e realizar a justa distribuição dos seus custos e riscos.
A RBJA[10] faz a ligação entre justiça ambiental e justiça climática quando afirma
que uma de suas lutas é defender “os direitos dos atingidos pelas mudanças climáticas,
exigindo que as políticas de mitigação e adaptação priorizem a assistência aos grupos
diretamente afetados”. Essa ligação é destacada também por Joan Martinéz Alier[11], pois
segundo ele, a questão climática, entre outras, deve ser incluída na pauta de debates e decisões
sobre a justiça ambiental.
3. Justiça climática
Em breves linhas, podemos conceituar a justiça climática como sendo o
desdobramento do paradigma da justiça ambiental e da percepção de que os impactos das
mudanças climáticas atingem grupos sociais distintos de forma e intensidade diferentes.
Segundo os autores Juliana Malerba e Jean Pierre Leroy[12], justiça climática é
o conjunto de princípios que asseguram que nenhum grupo de pessoas, sejam grupos étnicos, raciais ou de classes, suporte uma parcela desproporcional de degradação do espaço coletivo provocada pelo câmbio climático tal que afete gravemente a qualidade de vida, inviabilize a sua reprodução e os obriga a migrar.
Da mesma forma como observamos anteriormente, há os movimentos por justiça
climática, uma vez que se apresentam como uma especialização temática no interior dos
movimentos por justiça ambiental. Há, portanto, uma articulação entre pesquisadores e
organizações da sociedade civil para promover a justiça climática e contestar as medidas
institucionais adotadas para enfrentar as mudanças climáticas.
O exemplo mais conhecido para ser citado é a Rede de Durban pela Justiça
Climática[13], pela qual mais de 200 grupos assinaram a declaração de Durban sobre
Mercado de Carbono em 2004, na África do Sul.
Esse movimento argumenta que aqueles que são os menos responsáveis pelas
emissões de gases de efeito estufa serão aqueles que mais sofrerão com os impactos das
mudanças. Seu objetivo é a distribuição equitativa e justa dos efeitos das mudanças climáticas
e a conseqüente redução de vulnerabilidades.
4. Dimensão ética da justiça climática
Nesse momento, cabe-nos conceituar ética, moral e justiça, bem como abordarmos um
pouco sobre a crise da ética, perpassando por suas complexidades espaciais e temporais. Essas
são mais bem compreendidas com os experimentos mentais do dilema do prisioneiro e da
tragédia dos bens comuns, aplicados ao contexto das mudanças climáticas.
Devemos entender a ética como um código de conduta que rege os atos praticados por
um indivíduo ou por um grupo. É dizer, a ética configura-se como um conjunto de princípios
morais aplicados na distinção entre o certo e o errado. Restringindo-se o conceito para a seara
ambiental, quando aplicamos a ética em questões comportamentais atinentes ao meio
ambiente, encontramos o que se denomina de ética ambiental[14].
A moral determina normas de conduta com a finalidade de estabelecer uma ordem
entre os atos que pretendem alcançar o bem. O objetivo da moral, portanto, é que o homem
afaste-se do mal e paute sua conduta pelo bem. Ela divide-se em religiosa, individual e social.
Diferentemente do direito, a moral é unilateral e a sanção moral não é coercitiva, restringindo-
se somente ao foro íntimo, como por exemplo, o arrependimento, desprestígio e a reprovação
social[15].
Após termos definido justiça ambiental e justiça climática, temos condições de
exprimir um conceito mais amplo que é o conceito de justiça. Dessa forma, trazemos a lume a
lição de Alf Ross[16]:
Como princípio do direito, a justiça delimita e harmoniza os desejos, as pretensões e interesses conflitantes na vida social da comunidade. Uma vez adotada a idéia de que todos os problemas jurídicos são problemas de distribuição, o postulado de justiça equivale a uma exigência de igualdade na distribuição ou partilha de vantagens ou cargas. A justiça é igualdade. Este pensamento foi formulado no século IV a.C. pelos pitagóricos, que simbolizavam a justiça com o número quadrado, no qual o igual está unido ao igual. A idéia de justiça como igualdade, desde então, tem se apresentado sob inumeráveis variantes.
A esse conceito, acrescenta-se a advertência aristotélica[17] de que devemos tratar os
iguais de maneira igual e os desiguais de maneira desigual.
A crise da ética a que nos referimos é a crise da conduta humana numa ordem
industrial capitalista, a qual carece de sustentabilidade. Nesse cenário, o homem gera um
mundo de aparente bem estar e felicidade, com o seu amplo poder tecnológico, baseado num
paradigma ilimitado de obtenção, apropriação e acumulação de riquezas, partindo do
pressuposto que os recursos naturais são infinitos. Falha duplamente em suas premissas, pois
os recursos naturais são limitados e o bem estar e a felicidade não são para todos por motivos
de desigualdades econômicas, sociais e ambientais. Temos aqui a idéia de ecocídio, vista no
início do presente trabalho.
O dilema do prisioneiro é um caso clássico da teoria dos jogos, cujas bases remontam
aos estudos do matemático John Nash. Nesse dilema, o mais importante para o prisioneiro é o
tempo de prisão. Temos dois prisioneiros, A e B, em celas separadas e sem comunicação um
com o outro. São acusados de um crime para o qual a polícia não possui provas. Dessa forma,
ela propõe um acordo: trair o outro ou ficar quieto mediante um sistema de recompensas e
penalidades. Se um trai e o outro fica quieto, esse será condenado a dez anos de prisão e
aquele ficará livre. Se houver mútua traição, os dois serão condenados a cinco anos de prisão.
Se ambos ficarem quietos, como não há provas, os dois receberão uma pena menor de um mês
apenas.
A idéia central é que, sob certas condições, se cada membro de um grupo confia nos
demais, eles podem tomar decisões que levem ao melhor resultado para todos. Entretanto, se
não há confiança, cada um buscará resultados que sejam melhores para si, mas que podem
significar perdas para o grupo como um todo.
O enfrentamento das mudanças climáticas também pode ser visto sob a ótica do
dilema do prisioneiro. Todos os países podem se beneficiar de condições climáticas menos
adversas. Mas cada país individualmente tende a resistir à redução das emissões de CO2,
entendendo que tal procedimento implicaria perdas econômicas imediatas. O benefício de
cada um em manter seu padrão atual é entendido como maior do que o benefício que tal
mudança traria a todos.
Temos uma aproximação maior do exemplo para a eqüidade intergeracional a respeito
das mudanças climáticas, quando analisamos uma versão temporal do dilema sob crivo. É
dizer, num cenário em que a viagem no tempo é algo corriqueiro para criminosos e policiais,
os crimes são cometidos em diferentes pontos da linha do tempo e os policiais conseguem
prender A e B. O mesmo acordo é proposto e as escolhas são as mesmas, porém são feitas de
maneira mais rápida, já que a pressão maior estará com quem estiver mais a frente na linha do
tempo. Repise-se que B está em um momento posterior no tempo em relação a A. Na ocasião
em que B tiver a oportunidade de delatar A, este poderá ter morrido, não sofrendo as
conseqüências de sua escolha. Constata-se novamente que a racionalidade individual da não
cooperação (delatar o outro priosioneiro) é a bússola do caminho seguido, mesmo sabendo
que a racionalidade coletiva da cooperação (ficar quieto) geraria o melhor resultado para
todos. Em sede de mudanças climáticas, é melhor poluir hoje e auferir os resultados
econômicos desse dano ambiental do que cooperar para protegermos o meio ambiente para as
gerações futuras.
Partindo-se de texto clássico do final da década de 1960, “A Tragédia dos Bens
Comuns[18]”, de Garret Hardin, o experimento mental de mesmo nome foi desenvolvido a
partir da idéia do pasto comum (o bem comum, aberto a todos) no qual cada criador de gado
tentaria manter o máximo possível de gado próprio. Nesse caso, o mais importante para o
criador é o valor do seu rebanho individual. Imaginemos que para um pasto comum, tenhamos
seis criadores de gados. A capacidade máxima desse pasto é de trezentos gados, sendo
cinqüenta para cada um. A partir desse número, não haverá alimento para todos, causando o
emagrecimento do rebanho como um todo e a conseqüente diminuição do valor individual do
gado.
Todos sofrem com essa desvalorização. Como o que importa é o valor do rebanho
individual, aquele que possui um número maior de gados será o único beneficiário dessa nova
situação, pois terá o rebanho mais valioso.
Esse experimento evidencia que a racionalidade individual de explorar um recurso
comum o máximo possível é colocada em prática em detrimento de uma racionalidade
coletiva de respeitar a capacidade máxima desse mesmo recurso, alcançando-se, assim, o
melhor benefício para o grupo de criadores de gado. Em outras palavras, uma tragédia pode
ser gerada pela conduta individualista do ser humano ao compartilhar uma fonte de bens
comuns, como o ar atmosférico, por exemplo, ou a capacidade de absorção do meio ambiente.
Na visão de James Garvey[19], com a qual compartilhamos, a análise dos dois
experimentos permite concluir que:
Os aspectos dos problemas que acompanham a reflexão sobre a mudança climática parecem condizer com as duas versões do dilema do prisioneiro e a tragédia dos bens comuns. Os países que consideram obedecer aos termos de tratados como o de Kyoto estão em uma posição parecida de um prisioneiro que pensa sobre trair um companheiro anterior. Agir segundo seus próprios interesses, poluindo e se beneficiando do uso ilimitado de energia, é bem parecido com a coisa individualmente racional a fazer – principalmente se, até onde sabemos, essa for a atitude do outro. Explorar um recurso comum, como as propriedades de absorção de carbono do planeta, também pode parece uma boa idéia. Todos compartilham da perda do recurso comum, mas apenas o poluidor desfruta dos benefícios de usar energia extra e jogar mais dióxido de carbono na atmosfera. E melhor ainda, em vez de os outros vaqueiros contarem seu rebanho e conferirem a nós a responsabilidade pelo sofrimento de seus animais, as gerações futuras é que realmente vão pagar a conta. Como alguns ainda brincam de balanço e o resto ainda não nasceu, é improvável que haja objeção.
Diante desse cenário, surge a necessidade da intervenção do Estado no domínio
econômico, autorizada constitucionalmente[20], para garantir a efetiva proteção do meio
ambiente e, conseqüentemente, do clima. Nesse papel, o Estado atuará como mediador das
necessidades individuais e das necessidades coletivas intra e intergeracionais. Como seu
principal instrumento, temos a utilização dos tributos, conforme veremos a seguir.
5. Justiça fiscal
Numa visão introdutória e principiológica, Klaus Tipke define que “justiça fiscal em
sentido jurídico é a execução sistematicamente consequente da igualdade tributária e dos
princípios, que concretizam o princípio da igualdade”[21]. Prosseguindo seu estudo sobre a
justiça fiscal, esse autor afirma que o dever de pagar impostos pode ser assumido como um
dever fundamental. É dizer, o tributo não pode ser entendido somente como um sacrifício
exigido do contribuinte, mas também como uma contribuição imprescindível para que o ente
tributante tenha recursos em nível suficiente para realizar suas tarefas em proveito de toda a
sociedade[22].
Partindo dessa visão, entendemos que se configura como justiça fiscal, a distribuição
da carga tributária de um ente tributante (União, estado ou município) com equidade (critério
qualitativo) e na medida estritamente necessária (critério quantitativo) para o funcionamento
adequado da máquina pública. Esse, por sua vez, possui duas facetas: a eficiente prestação de
serviços públicos e o menor nível de interferência possível no comportamento dos agentes
econômicos.
Pelo critério qualitativo, justiça fiscal significa que o ente tributante tem o dever de
não gerar discriminações nem privilégios, distribuindo a carga tributária de modo equitativo,
proporcional, i.e., de modo justo. Desse modo, o ente tributante no exercício do seu poder de
tributar, não deve gerar injustiças com a tributação.
Segundo o critério quantitativo, a carga tributária deve ser a mínima necessária para
que a máquina pública funcione adequadamente. Temos aqui presente o princípio da
proporcionalidade[23], pois ele traz axiologicamente a idéia de justa medida, moderação e
proibição de excesso.
Em suma, a justiça fiscal traduz-se como a relação equitativa e eficientemente correta
na distribuição de recursos e encargos entre o poder público, o cidadão e a sociedade.
Apresenta-se como um valor a ser alcançado pelas normas tributárias e, complementa Paulo
Caliendo, “determina, desse modo, as razões para o agir no âmbito de determinado
ordenamento jurídico e exclui, portanto, a possibilidade de soluções ausentes de fundamentos
éticos ou meramente formais”[24].
6. Princípios e limitações constitucionais decorrentes da justiça fiscal[25]
A Carta Magna estabelece diversos mecanismos e ferramentas com o objetivo de
limitar o poder de tributar do Estado em prol da justiça na tributação. Podemos citar, entre
outros, os princípios da capacidade contributiva, isonomia fiscal, personalização[26],
proporcionalidade, progressividade, seletividade[27], não discriminação tributária pela
procedência ou destino dos bens[28] e uniformidade geográfica[29]. São princípios que
existem para fomentar justiça nas relações tributárias.
Dentro do escopo do presente trabalho, cumpre-nos comentar e destacar sobre a
capacidade contributiva e a isonomia fiscal.
Previsto expressamente em nosso Texto Maior, o princípio da capacidade contributiva
encontra-se assim previsto:
Art. 145, § 1º - Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.
Em que pese sua menção especificamente para os impostos, entendemos que o
presente princípio irradia-se por todas as espécies tributárias[30], a saber: impostos, taxas,
contribuições de melhoria, contribuições especiais e empréstimos compulsórios[31].
Sobre a questão do princípio ora em análise ter a denominação de capacidade
contributiva e o artigo constitucional citado utilizar o termo capacidade econômica, esclarece-
nos Ricardo Berzosa Saliba[32] que:
podemos verificar tal diferença da seguinte maneira: (i) capacidade econômica é a que diz respeito à riqueza exteriorizada por uma pessoa ou sua aptidão; (ii) já a capacidade contributiva, é a que se refere ao que efetivamente o contribuinte pode arcar com o pagamento do tributo. Trata esse princípio, de uma disciplina segundo a qual cada contribuinte, pessoa física ou jurídica, deve ser tributado de acordo com a sua exata capacidade de retirada de patrimônio sem que isso afete sua dignidade como cidadão ou personalidade, ou seja, o mínimo existencial para as suas necessárias despesas periódicas. Com isso, nas exatas medidas que cada contribuinte pode despender, é que o Estado poderá dar andamento aos seus gastos públicos.
Em síntese, é sinônimo de justiça, do ponto de vista jurídico e econômico, que aquele
que tem mais riqueza pague proporcionalmente mais tributos do que aquele que tem menor
riqueza, garantindo-se o mínimo existencial e a vedação de confisco[33]. Na mesma toada,
Roque Antonio Carrazza[34] conclui que o princípio da capacidade contributiva,
“intimamente ligado ao princípio da igualdade, é um dos mecanismos mais eficazes para que
se alcance a tão almejada Justiça Fiscal”.
O princípio da isonomia fiscal4, por sua vez, decorre do princípio da igualdade,
insculpido no art. 5º, caput, da Constituição Federal, segundo o qual “todos são iguais perante
a lei, sem distinção de qualquer natureza (...)”. Na esfera tributária, temos o regramento do
4 Esse princípio também é citado na doutrina do direito tributário como princípio da igualdade tributária ou somente princípio da igualdade.
artigo 150, inciso II da Carta Magna[35], vedando ao ente tributante tratar de maneira
desigual os contribuintes inseridos em uma situação equivalente. Ressalta Hugo de Brito
Machado[36] que a dificuldade maior da isonomia fiscal aparece quando as leis estabelecem
discriminações. Elas sempre as farão, mas não devem descuidar da utilização de critérios
admissíveis e razoáveis de maneira a não violar esse princípio basilar da justiça fiscal e,
conseqüentemente, do direito tributário.
Nesse quadro de justiça fiscal, além dos princípios que ora expusemos, não podemos
olvidar da função extrafiscal dos tributos ou extrafiscalidade[37].
A extrafiscalidade é definida por José Casalta Nabais[38] como o:
conjunto de normas que, embora formalmente integrem o direito fiscal, tem por finalidade principal ou dominante a consecução de determinados resultados económicos ou sociais através da utilização do instrumento fiscal e não a obtenção de receitas para fazer face às despesas públicas. Trata-se assim de normas (fiscais) que, ao preverem uma tributação, isto é, uma ablação ou amputação pecuniária (impostos), ou uma não tributação ou uma tributação menor à requerida pelo critério da capacidade contributiva, isto é, uma renúncia total ou parcial a essa ablação ou amputação (benefícios fiscais), estão dominadas pelo intuito de actuar directamente sobre os comportamentos econômicos e sociais dos seus destinatários, desincentivando-os, neutralizando-os nos seus efeitos económicos e sociais e fomentando-os, ou seja, de normas que contêm medidas de política econômica e social.
Em tempo, cabe anotar que o professor da Faculdade de Direito de Coimbra divide a
natureza das normas jurídico-fiscais em fiscal e extrafiscal. A primeira natureza constitui
domínio do direito tributário clássico e a segunda, do direito tributário econômico, os quais
são chamados por ele de direito fiscal e direito econômico fiscal, respectivamente[39].
Cabe-nos trazer a lume, nesse ponto do nosso estudo, a lição de Claudia Alexandra
Dias Soares[40] sobre a celeuma da compatibilidade, ou não, do principio da capacidade
contributiva com a natureza extrafiscal das normas tributárias. Segundo a professora
portuguesa, aquele princípio:
(...) é um pressuposto e um parâmetro da tributação que garante a justiça material da mesma. Enquanto pressuposto que dá lugar à detração patrimonial coactiva manda que esta se baseie na “potencialidade econômica do contribuinte, expressa na titularidade ou utilização de riqueza”. Já enquanto critério esta capacidade opera como um limite negativo (...) e como medida do imposto. Contudo, enquanto critério a capacidade contributiva não vale, no seu âmbito objectivo, para os impostos (ambientais) extrafiscais nem para os agravamentos extrafiscais de impostos.
Comentando com propriedade essa lição, Fábio Fraga Gonçalves e Janssen Hiroshi
Murayama[41] explicam que:
Como pressuposto, significa, sob o ponto de vista objetivo, que o legislador é obrigado a adotar como hipótese de incidência um fato com conteúdo econômico revelador de riqueza; e, sob o ponto de vista subjetivo, que o contribuinte deve
possuir meios financeiros para arcar com a tributação que lhe é imposta sem que seja afetado o seu mínimo essencial, nem sejam confiscados os seus bens. (...) Como parâmetro, a capacidade contributiva está atrelada à forma com que serão graduados os tributos. Encontra-se, portanto, intimamente ligada à proporcionalidade e a progressividade (...)
O tema da extrafiscalidade, portanto, relaciona-se tanto com a justiça fiscal quanto
com os princípios da isonomia fiscal e da capacidade contributiva, sendo esse, como vimos,
somente em sua faceta de pressuposto de tributação. Olvidar da capacidade contributiva na
implementação de tributos extrafiscais, repise-se, é correr o risco do Estado incorrer em
excessos no exercício de seu poder de tributar.
7. Tributação ambientalmente orientada para a proteção do clima
No ponto em que chegamos do desenvolvimento do presente trabalho, trazemos a
colação a experiência internacional e nacional vivenciadas no tema, bem como o arcabouço
normativo em que se fundamenta.
Antes disso, cabe-nos uma definição, em breves linhas, sobre a tributação ambiental.
Para conceituar o tributo ambiental, trazemos a lume a definição do professor italiano Victor
Uckmar[42], segundo o qual:
tributo ambiental em sentido lato é, de fato, qualquer tributo que tem como objectivo declarado a proteção, genericamente entendida, dos bens naturais. Tributo ambiental em sentido estrito é, por sua vez, um tributo que internaliza o fator poluidor, elevando-o a fato gerador. Tal construção permite alcançar igualmente, mas de modo indireto, o objetivo último da norma, que é a proteção do ecossistema. Aumentando-se de maneira imediata e direta o custo de determinados fatores de produção – ou métodos de produção –, pode-se, de fato, orientar o comportamento dos contribuintes na direção de formas alternativas de consumo, obtendo-se assim, sob a forma de um efeito indireto da tributação, o objetivo último predeterminado, i.e., a diminuição do uso do fator de produção poluidor e, dessa forma, a diminuição da poluição ambiental.
Na lição de Roberto Ferraz[43], os tributos ambientalmente orientados têm seu
campo próprio no âmbito da atividade lícita e exercem a função de ser instrumento de
internalização dos custos ambientais das atividades lícitas que sejam nocivas ao meio
ambiente ou perigosas, i.e., há uma preponderância de sua função extrafiscal. À guisa de
conceituação, em resumo, podemos definir que tributo ambientalmente orientado é todo
aquele que consegue alterar as condutas dos contribuintes de maneira que o economicamente
mais viável seja também o ambientalmente mais sustentável. Essa definição se coaduna com a
definição de Victor Uckmar para tributo ambiental em sentido lato.
7.1. Experiência internacional
Devemos citar, prima facie, as principais normas internacionais que prevêem a
tributação ambientalmente orientada, com destaque para as que têm a proteção do clima como
alvo.
De maneira geral, para a proteção do meio ambiente, o princípio 16 da Eco-925 prevê
expressamente a utilização de instrumentos econômicos, entre os quais se destaca a tributação
ambientalmente orientada, in verbis:
Princípio 16: As autoridades nacionais deveriam procurar fomentar a internalização dos custos ambientais e o uso de instrumentos econômicos, tendo em conta o critério de que o causador da contaminação deveria, por princípio, arcar com os seus respectivos custos de reabilitação, considerando o interesse público, e sem distorcer o comércio e as inversões internacionais.
No texto da Agenda 21, os artigos 8.2 e 8.27, entre outros[44], afirmam a necessidade
de consideração do meio ambiente nas políticas fiscais, os quais assim rezam:
8.2. (...) Nos últimos anos, alguns Governos também começaram a fazer mudanças significativas nas estruturas institucionais governamentais que permitam uma consideração mais sistemática do meio ambiente no momento em que se tomam decisões de caráter econômico, social, fiscal, energético, agrícola, da área dos transportes e do comércio e outras políticas, bem como das implicações decorrentes das políticas adotadas nessas áreas para o meio ambiente. (...) 8.27. As leis e regulamentações ambientais são importantes mas não podem por si sós pretender resolver todos os problemas relativos a meio ambiente e desenvolvimento. Preços, mercados e políticas fiscais e econômicas governamentais também desempenham um papel complementar na determinação de atitudes e comportamentos em relação ao meio ambiente.
O Protocolo de Kyoto6, em seu artigo 2º, estabelece a tributação ambientalmente
orientada como uma das políticas públicas de proteção do clima:
Art. 2º, 1. Cada Parte incluída no Anexo I, ao cumprir seus compromissos quantificados de limitação e redução de emissões assumidos sob o Artigo 3, a fim de promover o desenvolvimento sustentável, deve: (a) Implementar e/ou aprimorar políticas e medidas de acordo com suas circunstâncias nacionais, tais como: (...) v. A redução gradual ou eliminação de imperfeições de mercado, de incentivos fiscais, de isenções tributárias e tarifárias e de subsídios para
5 A Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CNUMAD), também chamada de Eco-92, foi realizada entre 3 e 14 de junho de 1992 no Rio de Janeiro. 6 O Protocolo de Quioto entrou em vigor em 16/02/2005 após ter sido negociado e discutido na cidade de Quioto, no Japão, no ano de 1997. É o resultado coercitivo da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança Climática. Foi aberto para assinaturas em 11/12/1997 e ratificado em 15/03/99. Posteriormente, foi aprovado pelo Congresso Nacional e promulgado pelo Decreto nº 5.445 de 12 de maio de 2005.
todos os setores emissores de gases de efeito estufa que sejam contrários ao objetivo da Convenção e aplicação de instrumentos de mercado; (...)
Entre os tributos ambientalmente orientados para proteção do clima, descritos na
literatura internacional[45], destacamos os tributos sobre as emissões de CO2, SO2, NOx e
outras fontes de contaminação atmosférica, v.g., os combustíveis primários (gasolina, diesel,
carvão e gás natural).
Na Suécia — que é o país de maior êxito, segundo estudo da professora italiana
Silvana Dalmazzone[46], da Universidade de Torino —, por exemplo, em razão da instituição
de um tributo ambiental, o teor médio de enxofre dos combustíveis caiu 40% em dois anos,
com reduções significativas das respectivas emissões. Da mesma forma, o chumbo foi
erradicado da gasolina e as emissões de óxidos de nitrogênio (NOx) foram reduzidas em 35%,
também em um período de dois anos. Essa última forma de tributação levou a um aumento
dramático na adoção de tecnologias de redução existentes. Antes do imposto, somente 7% das
empresas adotavam essa tecnologia. Um ano após a tributação, esse número saltou para
62%[47].
A Alemanha[48] também obteve excelentes resultados com a tributação ambiental
sobre combustíveis fósseis e, hodiernamente, apresenta um quadro de redução da utilização de
combustível e diesel, mesmo diante de um aumento de sua frota de veículos. Esse fato é
atribuído, em grande parte, à mudança da tributação sobre veículos, a partir do momento em
que esse tributo passou a ser ambientalmente orientado, preponderando sua natureza
extrafiscal. A mudança ocorreu quando os carros movidos à energia elétrica ou com redução
de emissões passaram a ter uma tributação menor em relação aos demais veículos.
Como primeiro país europeu a implementar um tributo ambiental específico sobre
emissões de CO2, temos a Finlândia em 1990. Esse Por meio de um imposto, comentam
Ronaldo Seroa da Motta e Carlos Eduardo Frickmann Young[49] que ele:
é cobrado de acordo com o conteúdo de CO2, sendo incorporado como uma sobretaxa por tonelada de carbono contida na combustão. Assim, o imposto sobre supérfluos tem uma componente “carbono” e outra “energia”. A distribuição das receitas totais é de cerca de 60% carbono / 40% energia.
Na Noruega[50], existe tributação ambiental, por meio de impostos, sobre os
combustíveis fósseis, sobre a emissão de CO2, SO2 e chumbo. Existe uma diferenciação para
gasolina e óleos que contenham chumbo ou enxofre, os quais sofrem uma maior tributação.
Por fim, em âmbito estadual, temos na Espanha, a experiência da Galícia com o
imposto sobre a poluição atmosférica[51].
7.2. Perspectiva nacional
Por ocasião da COP-157, o Brasil — que em razão do desmatamento e de queimadas,
está entre os cinco maiores países emissores de CO2 no mundo — assumiu importantes metas
de redução de suas emissões. Nesse sentido, aprovou em 2009, leis de políticas climáticas.
São elas as Leis nos 12.114 e 12.187, de 9 e 29 de dezembro de 2009, respectivamente. A
primeira cria o Fundo Nacional sobre Mudança do Clima (FNMC) e a segunda institui a
Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC). Ambas são de grande importância para
o futuro do país rumo a uma sociedade e uma economia de baixa emissão de carbono. Para o
presente trabalho, interessa-nos o regramento do artigo 6º, VI, segundo o qual um dos
instrumentos da PNMC são “as medidas fiscais e tributárias destinadas a estimular a redução
das emissões e remoção de gases de efeito estufa, incluindo alíquotas diferenciadas, isenções,
compensações e incentivos, a serem estabelecidos em lei específica”.
Em relação a criação de tributos ambientais, podemos citar o Projeto de Lei (PL)
5383/2008[52], de autoria do deputado federal José Paulo Tóffano do PV/SP, o qual instituía
Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico incidente sobre a importação e a
fabricação de automóveis (CIDE Automóvel). A chamada Cide-Automóvel teria alíquota de
3% sobre o valor de fabricação ou importação do veículo. Metade dos recursos seria destinada
a programas de transporte coletivo urbano e de transporte não motorizado, v.g., ciclovias, em
municípios com população acima de 100 mil habitantes. Outros 35% iriam para projetos de
reflorestamento em áreas degradadas e áreas de preservação permanente, a fim de compensar
a emissão de gases de efeito estufa; e 15%, para programas de controle de poluição do ar por
veículos automotores.
O PL foi rejeitado pela Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável
(CMADS). O relator do PL, deputado federal Gervásio Silva do PSDB/SC, argumentou que o
imposto implicaria em bis in idem, uma vez que parte dos recursos da Cide-Combustíveis já
são destinados a programas ambientais. Em 31/01/2011, o PL foi arquivado pela Mesa
Diretora da Câmara dos Deputados (MESA).
7 A 15ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, conhecida como COP 15, foi um encontro importante para a prevenção de desastres climáticos. O evento, realizado entre os dias 07 e 18 de dezembro de 2009, em Copenhague, Dinamarca, reuniu líderes de todo o mundo e pretendia definir o comportamento dos países para a diminuição do aquecimento global. É importante lembrar que para diminuir a emissão de gases de efeito estufa é necessário adotar alterações no modelo de desenvolvimento econômico e social, como a redução do uso de combustíveis fósseis, energia limpa e renovável, o fim do desmatamento e a mudança de hábitos de consumo. Adotando medidas como essas, será possível estabilizar a concentração global de carbono até 2017, quando deve começar a cair, chegando a ser 80% menor do que em 1990.
Esse fato demonstra que seguir pelo caminho dos tributos ambientais em sentido
estrito com a rigidez constitucional que permeia o Sistema Tributário Nacional brasileiro não
é a melhor solução para aumentarmos o nível de proteção do meio ambiente. Devemos, então,
trabalhar no sentido de transformar os tributos existentes em tributos ambientalmente
orientados para a proteção do clima.
Um exemplo disso é o Imposto Territorial Rural (ITR), o qual transformou, em
meados dos anos 90, o tratamento dado para as áreas ambientais[53] de áreas improdutivas —
e, conseqüentemente, tributáveis — para áreas não tributáveis, intencionando aumentar, com
isso, o nível de proteção do meio ambiente e do clima, tendo em vista que o desmatamento é
uma das principais fontes de emissão dos gases do efeito estufa. Em que pese essa mudança,
esse imposto, de competência da União ou dos municípios mediante convênio[54], carece de
uma maior fiscalização para que possa incrementar sua expressividade na proteção do meio
ambiente e do clima.
Considerações finais
Nesses tempos de crise ambiental, devemos entender que o sistema econômico
vigente tem um claro limite: a ecologia. O caminho seguro a ser trilhado, portanto, é em
direção a uma era de ecocivilização, “em que, respeitando-se os direitos humanos, o homem
se reconheça como parte da natureza, e não como seu senhor, que dela pode dispor a seu bel-
prazer”[55].
No mesmo compasso, os princípios estampados na Convenção-Quadro das Nações
Unidas sobre mudanças climáticas são mais do que um norte a ser seguido, os quais devem
ser colocados em prática todos os dias. Dentre eles, destacam-se os princípios da cooperação
internacional, da educação ambiental, da informação, da participação pública, além do sempre
almejado acesso à justiça ambiental. Esses três últimos princípios são chamados pelos
professores Patryck de Araújo Ayala e Valerio de Oliveira Mazzuoli como “tripé de Aarhus”,
sendo “pressuposto indispensável para a formação de uma nova arquitetura para a gestão de
riscos de sociedades complexas”[56].
Partindo da justiça ambiental, comentamos sobre a justiça climática. Torna-se
necessário manter na memória as recomendações do sociólogo Anthony Giddens[57].
Segundo esse autor, devemos introduzir a preocupação com as mudanças climáticas em todos
os órgãos de governo e na vida cotidiana das pessoas, ao mesmo tempo em que é forçoso
reconhecer os enormes problemas derivados dessas mudanças. Em nível governamental, é
preciso evitar transformar o aquecimento global em capital político e não descuidar das
questões de justiça social, as quais se desdobram em questões de justiça ambiental e climática.
Todos os países serão afetados, porém nas nações mais pobres o sofrimento será maior
que nas desenvolvidas. O mundo rico tem a obrigação de ajudar, por meio da cooperação
entre os países. Além disso, as políticas adotadas devem ter uma perspectiva de longo prazo,
suprapartidárias, sob pena de não serem eficazes.
Conforme demonstramos no presente trabalho, existe uma perfeita relação entre
justiça climática e justiça fiscal. Nesse sentido, é a lição de Ana Maria de Oliveira
Nusdeo[58]:
Essa discussão parte da premissa de que todas as leis e atos estatais relacionados à implementação de políticas no interesse público têm efeitos distributivos, vale dizer, implicam na transferência de benefícios e custos entre diferentes grupos sociais. Às vezes, os custos e benefícios transferidos são simplesmente recursos financeiros, tal como ocorre com a concessão de um benefício social a determinado grupo (por exemplo, idosos ou deficientes) ou a instalação de um equipamento público em certa região (por exemplo, um parque ou uma escola). Essas vantagens, atribuídas a grupos específicos, são financiadas pela arrecadação fiscal entre contribuintes não pertencentes aos grupos beneficiados. No entanto, os efeitos distributivos de normas e de políticas públicas ambientais não se limitam aos aspectos financeiros, podendo implicar a submissão de determinados grupos a condições ambientalmente desfavoráveis ou premiar outros em prejuízo dos demais.
Para alcançarmos a justiça climática por meio da justiça fiscal, a extrafiscalidade
exerce papel fundamental ao orientar os indivíduos no interesse coletivo, visando corrigir as
desigualdades econômicas, sociais e ambientais geradas pela sociedade em suas escolhas
guiadas pela racionalidade individual. Em outras palavras, é o que denominamos de tributação
ambientalmente orientada para a proteção do clima.
O Protocolo de Kyoto, em que pese a não assinatura por três dos principais
responsáveis pelas emissões dos gases de efeito estufa (Estados Unidos, Canadá e Austrália),
traduz-se em instrumento capaz de fazer a teoria da redução das emissões confirmar-se no
campo prático. Esse tratado reforça, mormente, os princípios da responsabilidade comum mas
diferenciada bem como o da eqüidade intergeracional. Além disso, resta claro que existe uma
ponte sólida entre o crescimento econômico e a preservação do meio ambiente, cuja base de
sustentação é o tão comentado princípio do desenvolvimento sustentável. Esperamos que sua
nova fase a partir de 2012, ano da Conferência Rio+20, seja exitosa e supere as expectativas
da Humanidade.
De um modo geral, os países europeus possuem mais experiência internacional com a
tributação ambiental do que os outros países. Como vimos, o caminho escolhido é tributar os
outputs em vez dos inputs. Como exemplos, podemos citar as emissões de poluentes no ar
atmosférico e energia, respectivamente. A dificuldade em tributar os inputs deve-se, segundo
Cleucio Santos Nunes[59], aos “efeitos em cascata que geram, além das dificuldades de
competição no mercado internacional, pois tal medida deveria ser conjunta, ou seja, adotada
por toda a comunidade internacional economicamente ativa”.
No Brasil, o tema é recente e ainda pouco estudado. Temos algumas proposições
legislativas mal sucedidas, como vimos no caso da CIDE Automóvel, fruto da rigidez
constitucional que permeia o Sistema Tributário Nacional brasileiro. Isso impede, em
princípio, a replicação das experiências estrangeiras com os tributos ambientais stricto sensu.
O país possui arcabouço normativo com previsão do uso da tributação ambiental para
a proteção do clima, segundo o art. 6º, inciso VI da Lei nº 12.187/2009. Para vencer a citada
rigidez constitucional, a melhor solução para aumentarmos o nível de proteção do meio
ambiente é trabalhar no sentido de transformar os tributos existentes em tributos
ambientalmente orientados para a proteção do clima. Nesse cenário, ganha destaque o
potencial que possui o ITR desde a sua mudança legislativa em meados dos anos 90, quando
passou a ser um tributo ambientalmente orientado. Dizemos isso porque esse tributo carece de
uma maior fiscalização para realizar todo o seu potencial de proteção do clima por meio do
combate ao desmatamento.
Por todo o exposto, entendemos pertinente encerrar nosso trabalho reforçando o
caráter estratégico de que se reveste a educação – no nosso caso, mais precisamente a
educação ambiental, em especial sobre as mudanças climáticas −, cristalizada na frase do
Imperador chinês Kuan Tsu, que já no século 5 a. C., profetizava: “Se você está pensando 1
ano à frente, plante uma semente; se você está pensando 10 anos à frente, plante uma árvore;
se você está pensando 100 anos à frente, eduque as pessoas”.
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[1] ROSSIT, Liliana Allodi. Educação e cooperação internacional na proteção do meio ambiente. São Paulo: IOB Thomson, 2006, p. 11. [2] HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX – 1914-1991. Trad. Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 562. [3] ACSELRAD, Henri et al. O que é justiça ambiental. Rio de Janeiro: Garamond, 2009, p. 9. [4] Disponível em: <http://www.ejfoundation.org/page231.html>. Acesso em: 27 fev. 2012.
[5] Disponível em: <http://www.justicaambiental.org.br/_justicaambiental/pagina.php ?id=229>. Acesso em: 27 fev. 2012. [6] Cf. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 18. ed. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 97-108.
[7] Cf. CAVEDON, Fernanda de Salles; VIEIRA, Ricardo Stanziola; DIEHL, F. P. As mudanças climáticas como uma questão de justiça ambiental: contribuições do direito da sustentabilidade para uma justiça climatica. In: Antonio Herman Benjamin; Eladio Lecey; Silvia Cappelli (orgs). Mudanças Climáticas, biodiversidade e uso sustentável de energia. São Paulo: Imprensa Oficial do estado de São Paulo, 2008, v. 1, p. 743-758. [8] IPCC Synthesis Report. Fourth Assessment Report: Climate Change 2007 (AR4). Disponível em: <http://www.ipcc.ch/pdf/assessment-report/ar4/syr/ar4_syr_sp.pdf>. Acesso em: 27 fev. 2012. [9] Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Relatório de Desenvolvimento Humano 2007/2008. Combater a mudança do clima: Solidariedade Humana em um mundo dividido. Disponível em: <http://www.pnud.org.br/arquivos/rdh/rdh20072008/hdr_20072008_pt_complete.pdf>. Acesso em: 27 fev. 2012. [10] Disponível em: <http://www.justicaambiental.org.br/_justicaambiental/pagina.php? id=229>. Acesso em: 27 fev. 2012. [11] ALIER, Juan Martínez. O ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e linguagens de valoração. Tradução de Maurício Waldman. 1. ed. 2. reimpr. São Paulo: Contexto, 2011, p. 351-352. [12] LEROY, Jean Pierre; MALERBA, Juliana. Justiça Climática e ambiental. In: Fórum Brasileiro de ONG’s e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento. Mudanças Climáticas e o Brasil: contribuições e diretrizes para incorporar questões de mudança de clima em políticas públicas. Brasília, 2008, p. 48. [13] Em inglês, Durban Group for climate justice. Disponível em: <http://www.durbanclimatejustice.org/ >. Acesso em: 27 fev. 2012. [14] NALINI, José Renato. Ética ambiental. 3. Ed. Campinas, SP: Millennium, 2010, p. 259. [15] BRANCATO, Ricardo Teixeira. Instituições de direito público e de direito privado. 12. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 2-6. [16] ROSS, Alf. Direito e justiça. Tradução de Edson Bini. Bauru, SP: EDIPRO, 2003, p. 313-314. [17] “Se as pessoas não são iguais, não receberão coisas iguais; mas isso é origem de disputas e de queixas (como quando iguais têm e recebem partes desiguais, ou quando desiguais recebem partes iguais)” (ARISTÓTELES. Ética a Nicômano. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2005, p. 108-109). Cf. BARBOSA, Rui. Oração aos moços. Edição
popular anotada por Adriano da Gama Kury. 5. ed. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1997, p. 25. [18] Cf. OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito. Tradução de Joana Chaves. Lisboa: Piaget, 1995, p. 149-155. [19] GARVEY, James. Mudanças climáticas: considerações éticas: o certo e o errado no aquecimento global. Tradução de Rogério Bettoni. Série Rosari de Filosofia. São Paulo: Rosari, 2010, p. 54-55. [20] CRFB, arts. 170, 173, 174 e 225. Cf. MODÉ, Fernando Magalhães. Tributação ambiental: a função do tributo na proteção do meio ambiente. Curitiba: Juruá, 2003, p. 39-41 e 46-48. [21] LANG, Joachim; TIPKE, Klaus. Direito tributário (Steuerrecht). Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008. Tradução da 18. ed. alemã, totalmente refeita, de Luiz Doria Furquim, 1 v., p. 394. [22] TIPKE, Klaus; YAMASHITA, Douglas. Justiça fiscal e o princípio da capacidade contributiva. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 15-16. [23] Cf. PONTES, Helenilson Cunha. O princípio da proporcionalidade e o direito tributário. São Paulo: Dialética, 2000. [24] SILVEIRA, Paulo Antônio Caliendo Velloso da. Direito tributário e análise econômica do Direito: uma visão crítica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p. 133. [25] No âmbito dos princípios vinculados à justiça tributária ambiental, cf. TORRES, Ricardo Lobo. Valores e princípios no direito tributário ambiental. In: TÔRRES, Heleno Taveira (org.). Direito tributário ambiental. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 26-30. [26] Cf. AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 161-164. [27] Sobre progressividade, seletividade, cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 353-363 e p.372-374. [28] Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 163. [29] Cf. PAULSEN, Leandro. Curso de direito tributário. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 110-111. [30] PAULSEN, Leandro. Direito tributário: Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e da jurisprudência. 10. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado; ESMAFE, 2008, p. 68. Em sentido contrário, cf. COSTA, Regina Helena. Princípio da capacidade contributiva. 2. ed., São Paulo: Malheiros, 1996, p. 101-102; COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 5 ed., Rio de Janeiro: 2000, p. 83.
[31] Cf. PAULSEN, Leandro. Curso de direito tributário. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 37-39. [32] SALIBA, Ricardo Berzosa. Fundamentos do direito tributário ambiental. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 241. [33] Na doutrina de Ricardo Lobo Torres, essas garantias seriam os limites verticais inferior e superior do princípio da capacidade contributiva, respectivamente (Tratado de direito constitucional financeiro e tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, 2 v, p. 304-307). [34] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 23. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 87. [35] “CFRB/88, art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: II - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos”. [36] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 29. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 39. [37] Cf. MARINS, James; TEODOROVICZ, Jeferson. Extrafiscalidade socioambiental. In: MACHADO, Paulo Affonso Leme; MILARÉ, Édis (org.). Direito ambiental: tutela do meio ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. Coleção doutrinas essenciais, 4 v, p. 1229-1275. [38] NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a compreensão do estado fiscal contemporâneo. Reimpressão. Coimbra: Almedina, 2009, p. 629. Entendemos, portanto, que a extrafiscalidade não se configura como princípio e sim como função do tributo. Em sentido contrário, cf. GOUVÊA, Marcus de Freitas. A extrafiscalidade no direito tributário. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2006, p. 43. [39] NABAIS, José Casalta, loc. cit. (nota anterior). [40] SOARES, Cláudia Alexandra Dias. O imposto ecológico: contributo para o estudo dos instrumentos económicos de defesa do ambiente. Coimbra editora, 2001, p. 312-313. [41] GONÇALVES, Fábio Fraga; MURAYAMA, Janssen Hiroshi. Releitura do princípio da capacidade contributiva sob a ótica do direito tributário ambiental. In: ORLANDO, Breno Ladeira Kingma et al. (coord.). Direito tributário ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 44. [42] UCKMAR, Victor. La nuova dimensione del “tributo ambientale” e la sua compatibilità com l’ordinamento italiano. In: TÔRRES, Heleno Taveira (org.). Direito tributário ambiental. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 357. [43] FERRAZ, Roberto. Tributação ambientalmente orientada e as espécies tributárias no Brasil. In: TÔRRES, Heleno Taveira (org.). Direito tributário ambiental. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 340-341, tradução nossa.
[44] Em várias passagens, a Agenda 21 faz menção a tributação ambientalmente orientada. Cf. artigos 7.30.(c), 8.4.(c), 8.32.(c), 21.24.(c), 32.6.(b) , 33.16.(b) e 34.18.(c), (d) e (I). [45] LÓPEZ-GUZMÁN GUZMÁN, Tomás J. Fiscalidad ambiental: análisis y efectos distributivos. Granada: Comares, 2002, p. 47-51 e 64-83. [46] DALMAZZONE, Silvana. Le politiche di protezione ambientale nell’Unione Europea in: G.Vitali (a cura di), Imprese e mercati nell’Europa della moneta única. Utet, 2001. [47] UNEP, 2011, Towards a Green Economy: Pathways to Sustainable Development and Poverty Eradication - A Synthesis for Policy Makers. Disponível em: <http://www.oecd.org/dataoecd/20/60/ 47678910.pdf>. Acesso em: 13 jun. 2011. [48] BUENO, Luís Felipe Krieger Moura; COSTA, Luiz Eugênio Porto Severo da; FREITAS NETO, Jayme Barboza de. O tributo ambiental à luz do direito comparado. In: ORLANDO, Breno Ladeira Kingma et al. (coord.). Direito tributário ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 72. [49] SEROA DA MOTTA, Ronaldo; YOUNG, Carlos Eduardo Frickmann (coords). Instrumentos econômicos para a gestão ambiental no Brasil. Brasília: MMA, 1997, p. 36. [50] SEROA DA MOTTA, Ronaldo; YOUNG, Carlos Eduardo Frickmann (coords), loc. cit (nota anterior). [51] BORRERO MORO, Cristóbal José. El impuesto sobrelacontaminación atmosférica. In: YACOLCA ESTARES, Daniel Irwin (coord.). Tributación Ambiental. Lima: Grijley, 2009, p. 151-172. [52] Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?id Proposicao=400427>. Acesso em: 27/02/2012. [53] Área de Preservação Permanente (APP) e Reserva Legal (RL), entre outras. Cf. Lei nº 9.393/96, art. 10, inciso II. [54] Cf. Constituição Federal, art. 153, VI e § 4º. [55] AZEVEDO, Plauto Faraco de. Ecocivilização: ambiente e direito no limiar da vida. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 150. [56] AYALA, Patryck de Araújo; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Cooperação internacional para a preservação do meio ambiente: o direito brasileiro e a convenção de Aarhus. Revista da AJURIS, v. 37, n. 120, dez. 2010, p. 294. [57] GIDDENS, Anthony. A política da mudança climática. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, passim. [58] Disponível em: <http://www.esmpu.gov.br/dicionario/tikiindex.php?page=justi% C3%A7a+ambiental>. Acesso em: 27 fev. 2012.
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Resumo: Este texto visa discutir a situação do deslocamento de pessoas pelo mundo, com especial atenção para os chamados refugiados ambientais. Por primeiro, busca-se uma tentativa de conceituar a figura dos refugiados ambientais. Depois, a preocupação passa a ser com a realidade brasileira, ressaltando o problema das pessoas atingidas pelas construções de barragens, o impacto ao meio ambiente e a luta das pessoas deslocadas por tais construções, em defesa dos seus direitos. Em seguida, trata-se da dívida social no que tange à construção de barragens no Brasil e a necessidade de elaboração de políticas públicas eficientes para a defesa de direitos individuais, coletivos e da dignidade dos deslocados pela construção de barragens. Ao final, conclui-se que os programas de reassentamento precisam ser aprofundados para que tais pessoas superar ameaças físicas e problemas materiais, psicológicos e jurídicos oriundos do deslocamento forçado e, com isso, terem restabelecida a dignidade.
Palavras-chaves: Refugiados ambientais; barragens, geração de energia, restauração da dignidade e cidadania.
Abstract: This paper aims to discuss the state of displacement of people around the world, with special attention to the so-called environmental refugees. By first looking up an attempt to conceptualize the figure of environmental refugees. Then the concern is now with the Brazilian reality, highlighting the problem of people affected by the dam construction, the impact on the environment and the struggle of the people displaced by such constructions, in defense of their rights. Then it is the social debt in relation to the construction of dams in Brazil and the need for development of efficient public policies for the defense of individual rights and collective dignity of the displaced by dams. At the end, it is concluded that the resettlement programs must be deepened to such people overcome physical threats and material problems, psychological and legal aspects arising from forced displacement and, therefore, have restored their dignity.
Keywords: Environmental Refugees, dams, power generation, restoration of dignity and citizenship.
Sumário: 1. Introdução; 2. Em busca de um conceito para o termo refugiados ambientais; 3. Os deslocados pelas construções das barragens no Brasil; 4. A dívida social brasileira frente aos Refugiados Ambientais; 5. Considerações Finais; 6. Referências.
1 Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1986). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1997), Doutor em Direito pela mesma instituição (2003), Pós-doutor pelo Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (2007). Pós-doutorando pela Universidade Federal de Santa Catarina (2012-2013). Especialista em Ciências Ambientais pela Universidade São Francisco (2000). Bacharel em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (2011). Atualmente é professor da Universidade Metodista de Piracicaba e da Universidade Paulista. Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo.
1. INTRODUÇÃO
O deslocamento de pessoas pelo mundo é um tema antigo bastando, por exemplo,
relembrar a trajetória dos hebreus (semitas) que viviam em tribos nômades, eram conduzidos
por chefes e, na época de Hamurabi (1810 a.C. -1750 a.C.), atravessam a Palestina e se
estabelecem no Egito. Este povo, no entanto, acaba por promover O Êxodo, em razão da
perseguição e da escravidão faraônica. Assim, sob o comando de Moisés, provavelmente em
1230 a.C se vêem obrigados a retornar (o Êxodo) à Palestina para se instalarem entre os hititas e
os egípcios.
Porém, percebe-se que o deslocamento de pessoas pelo mundo se acentua na medida em
que a população mundial aumenta. De fato, existem vários fatores que provocam o refúgio e
dentre eles destacam-se as guerras, os conflitos civis e a vingança.
Além disso, tem-se como causa para o refúgio as repressões provenientes de Estados
totalitários, as questões culturais e problemas oriundos de natureza socioeconômico que acabam
propiciando a fuga massiva de pessoas o que, na maioria das vezes, enseja que o refugiado seja
obrigado a sair da região que o aflige somente com a roupa do corpo.
Os fatores mencionados passaram a ser um problema que atinge não somente aos
refugiados em si, mas também a toda comunidade, pois agravam os problemas de ordem
política e econômica e prejudicam o desenvolvimento do país, acentuando, desta forma, a luta
de classes entre ricos e pobres, marcando mais intensamente a linha divisória entre exploradores
e explorados.
Ademais, o drama dos refugiados demonstra que os governos não possuem força
política suficiente, sendo inaptos no controle das rebeliões civis ou de guerrilhas. Alia-se a este
fato, o subdesenvolvimento econômico que segrega as classes sociais que não recebem o
quinhão de uma partilha justa de renda, o que leva a agravar as disputas por recursos naturais e
faz aflorar choques culturais e religiosos de maneira mais intensa.
Todos estes fatores permitem dizer que o Estado tem responsabilidade civil, ambiental
e, por vezes, penal em relação aos refugiados.
Atualmente, os problemas decorrentes de refúgio são causados cada vez mais por
aspectos ambientais, eis que tais fatores representam um elo de ligação com toda comunidade
internacional. Por conseguinte, apesar de diversas legislações assegurarem o cumprimento e a
garantia dos Direitos Fundamentais, estes ainda são amplamente desrespeitados.
Este trabalho tem como objetivo mostrar algumas das dificuldades enfrentadas pelos
refugiados ambientais frente à realidade brasileira, com atenção especial aos atingidos pela
construção de barragens, bem como as possíveis soluções para os diversos problemas.
Por primeiro, apresenta-se o conceito de refugiados ambientais e os dispositivos legais
que tratam do assunto.
Em seguida, expõem-se alguns aspectos legais e ambientais decorrentes do surgimento
das barragens.
Finalmente, sustenta-se que os refugiados ambientais devem ser acolhidos pelo
ordenamento jurídico internacional e, consequentemente, possam desfrutar do status de cidadão
e da proteção, para não terem seus direitos humanos violados.
2.. EM BUSCA DE UM CONCEITO PARA O TERMO REFUGIADOS AMBIENTAIS
Para se ter claro a definição de refugiados ambientais é preciso compreender o que são
refugiados e no que estes se distinguem de deslocados internos e de asilados.
Segundo a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, datada de 1951, refugiados
são pessoas obrigadas a fugirem ou deixarem seus países, individualmente, em grupo ou em
massa, por questões de ordens políticas, religiosas, militares ou outros problemas.
Desta maneira, a definição de refugiado é ditada pelo art. 1º da referida Convenção,
devidamente emendada pelo Protocolo de 1967, que ampliou os limites geográficos e territoriais
do referido documento, eis que para este só poderiam ser refugiados aqueles que estivessem
ligados a fatos ocorridos com antes de 1 de Janeiro de 1951.
Assim refugiado é toda pessoa que “devido a fundados temores de ser perseguida por
motivos de raça, religião, nacionalidade, por pertencer a determinado grupo social e por suas
opiniões políticas, se encontre fora do país de sua nacionalidade e não possa ou, por causa dos
ditos temores, não queira recorrer a proteção de tal país; ou que, carecendo de nacionalidade e
estando, em consequência de tais acontecimentos, fora do país onde tivera sua residência
habitual, não possa ou, por causa dos ditos temores, não queira a ele regressar” (ACNUR,
1951, p. 1).
Com efeito, é importante observar que cabe ao Alto Comissariado das Nações Unidas
para os Refugiados (ACNUR) órgão da ONU, criado pela Resolução n.º 428 da Assembleia das
Nações Unidas, datada de 14 de dezembro de 1950, tem a missão de dar apoio e proteção aos
refugiados de todo o mundo.
Os deslocados internos, por sua vez, são pessoas que se deslocam dentro de seu próprio
país. Estes são muitas vezes denominados de refugiados. Porém, pela definição apresentada,
percebe-se o erro, eis que estes ao contrário dos refugiados, não promovem a travessia de
fronteiras internacionais para obterem segurança, pois permanecem em seu país de origem.
Além disso, mesmo que a fuga se dê por razões semelhantes às dos refugiados (conflito
armado, violência generalizada, violações de direitos humanos), os deslocados
internos permanecem sob a proteção de seu próprio governo, mormente este governo possa ser
a causa da evasão. Como cidadãos, elas mantêm todos os seus direitos e são protegidos pelo
direito dos direitos humanos e o direito internacional humanitário.
Não obstante todas estas considerações o próprio Alto Comissariado das Nações Unidas
para os Refugiados chega a admitir que:
Ainda que a noção de “pessoas deslocadas internamente” seja agora largamente utilizada pelas instituições humanitárias e decisores políticos, continua a existir uma surpreendente falta de clareza acerca de seu significado exato. A comunidade internacional ainda não estabeleceu uma definição jurídica e formal do termo e, embora tenham sido envidados um certo numero de esforços para preencher esta lacuna conceptual, as definições propostas ou eram demasiado abrangentes ou demasiado estreitas e, por conseguinte, de limitado valor analítico ou operacional (ACNUR, 1998, p.97).
É importante observar também que antes do advento da II Guerra Mundial existiam
instrumentos específicos para determinados refugiados, mas com o número extraordinário de
pessoas refugiadas com o fim da guerra passou a ser uma preocupação mundial e a comunidade
internacional, por razões humanitárias, assumiu a tarefa de protegê-las juridicamente de forma
mais ampla, fez-se necessário um instrumento geral, que abarcasse todos os refugiados (São
Paulo, 2000, p. 482).
Com isso tem-se também a figura do asilado. Neste sentido, Flávia Piovesan destaca
(s/d, p. 77-78) que o refúgio “é medida essencialmente humanitária, enquanto que o asilo é
medida essencialmente política”. A autora complementa este pensar ao destacar que “o refúgio é
um instrumento jurídico internacional, tendo alcance universal e o asilo é um instituto jurídico
regional, tendo alcance na região da América latina”.
Por fim, a figura do refugiado ambiental, também denominado de refugiado climático, é
uma categoria de pessoas que não encontra guarida na definição da Convenção Relativa ao
Estatuto dos Refugiados, tão pouco no Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados.
De fato, tais pessoas são forçadas a emigrar de sua terra de origem em decorrência de
mudanças climáticas e alterações no meio ambiente, tais como secas intensas, desertificação,
esgotamento do solo, enchentes, aumento do nível do mar ou eventos sazonais como as
monções, erupção de vulcões etc. Tais fatores levam a ocorrência de migrações decorrentes da
degradação ambiental e mudanças climáticas.
A degradação ambiental e as mudanças climáticas tem levado a uma série de alterações
no meio ambiente, obrigando pessoas, nos diversos pontos do planeta a se deslocarem. O
Relatório do ACNUR prevê aumento significativo de deslocamentos nos próximos dez anos,
por causa de conflitos, desastres naturais e mudanças climáticas (ACNUR, 2012, p. 2).
Segundo dados da ONU, calcula-se que na atualidade já existam 50 milhões de pessoas
que abandonaram suas casas por problemas decorrentes de desastres naturais ou mudanças
climáticas e estimativas mais pessimistas da referida Organização revelam que, em 2050, o
número de refugiados ambientais será da ordem de 250 milhões a 1 bilhão de pessoas.
(ACNUR, 2012, p. 26).
Por tudo isso, faz-se necessário incluí-los em uma definição jurídica que lhes
proporcione proteção e, por ser assim, o termo tem sido utilizado de forma genérica e ampla,
recepcionando, também os deslocados ambientais, permitindo, assim, sua proteção, tal qual a
proteção geral dos refugiados.
Com efeito, vale destacar que a proteção ao refugiado encontra abrigo na Declaração
Universal dos Direitos Humanos ao estabelecer que toda pessoa vítima de perseguição tenha o
direito de procurar e de gozar asilo em outros países.
Nesta esteira, além dos instrumentos legais já elencados, destaca-se, também, o
entendimento do PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente) que define os
refugiados ambientais como aquelas pessoas que foram obrigadas a abandonar temporária ou
definitivamente a zona onde tradicionalmente vivem devido ao visível declínio do ambiente (por
razões naturais ou humanas) perturbando a sua existência e/ou a qualidade da mesma de tal
maneira que a subsistência dessas pessoas entram em perigo (PNUMA, 2012, p.1).
Assim, com o declínio do ambiente, tem-se o surgimento de uma transformação no
campo físico, químico e/ou biológico do ecossistema, que, por conseguinte, fará com que esse
meio ambiente temporária ou permanentemente não possa ser utilizado (PNUMA, 2012, p.1).
Esse dispositivo abrange, de maneira didática, as diversas hipóteses de refúgio
ambiental que podemos observar nos últimos anos, em especial quanto à de conceitos não
suficientemente estudados e perceptíveis, visto que, engloba situações em todos os espectros de
ameaça e efetivo prejuízo.
Além disso, uma pessoa pode ser considerada refugiada pelo ACNUR de com o seu
Estatuto mandata refugees e, também, pela Convenção e Protocolo.
Portanto, uma pessoa, independente de se encontrar em um país signatário da
Convenção ou do Protocolo, pode receber a proteção do ACNUR.
Igualmente à Convenção Internacional de Genebra e o Protocolo de 1967 mencionados,
a Declaração de Cartagena, assinada em 1984, considera refugiados, pessoas que tenham fugido
dos seus países porque sua vida, segurança ou liberdade encontra-se ameaçada pela violência
generalizada, a agressão estrangeira, os conflitos internos, a violação massiva dos Direitos
Humanos ou outras circunstâncias que tenham afetado gravemente a ordem pública (ACNUR,
1984, p. 3).
Constata-se aqui também a ausência da inclusão das situações referentes aos desastres
ambientais, naturais ou provocados pelo homem, como causas para o surgimento de refugiados
ambientais, bem como se restringe a garantia apenas às pessoas que fogem de seus países, com
nítida intenção limitadora de direitos. Enfim, observa-se a falta de clareza dos textos atuais e
dos instrumentos internacionais de proteção aos refugiados de uma maneira geral.
Contudo, em relação aos refugiados ambientais a questão é mais dramática, pois estes
não são amparados pelos acordos internacionais, embora, o seu crescimento pelo mundo seja
avassalador e, em breve, possa superar o número oficial de pessoas em situação de risco, que se
referem aos refugiados políticos e pessoas em busca de asilo, pelas mais variadas formas de
perseguições.
Neste sentido, boa parte da doutrina e dos ambientalistas comunga do mesmo pensar de
Guido Fernando da Silva Soares (2003, p. 173) ao explicar que “as normas de proteção
internacional ao meio ambiente têm sido consideradas como um complemento aos direitos do
homem, em particular o direito à vida, e à saúde humana”.
Por isso, a definição do termo refugiado ambiental permitiria que tais grupos sociais
pudessem receber assistência semelhante aos demais tipos de refugiados, dentre elas auxílio
financeiro, direito a solicitar asilo e possibilidade de participar de políticas de reassentamento.
Uma alternativa possível é apresentada por María Méndez Rocasolano (2011, p. 477) ao
enfatizar que para reduzir a imigração forçada é necessário uma “intervencion pacífica en sus
causas y motivaciones, desde un enfoque nuevo de dignidad referida al colectivo humano, la
dignidad de la humanidad donde se podría mantener el concepto de ciudadania universal ligado
a la defensa de todos los derechos de todos, mas alla de las fronteras”.
Assim sendo, o reconhecimento do grupo de refugiados ambientais poderia facilitar a
essas pessoas o apoio e o socorro internacional de que elas carecem.
No Brasil, de outro lado, a proteção aos refugiados encontra-se estabelecida na
Constituição Federal de 1988. A Constituição é clara quanto à inserção do Brasil no Sistema
Internacional de Proteção dos Direitos Humanos, abrangendo a proteção dos Refugiados, que é
referida logo nos Princípios das Relações Internacionais Brasileiras, no art. 4º, onde se insere o
Asilo e a prevalência dos Direitos Humanos.
Além disso, como norma de proteção infraconstitucional, o legislador brasileiro
estabeleceu por meio da Lei nº. 9.474/1997, seguindo as determinações internacionais do
Estatuto dos Refugiados, preconizando no art. 1º, incisos I, II e III que:
Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontra-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; a pessoa que não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual não possa ou não queira regressar a ele, em função de tais circunstancias; e, a pessoa que devido a grave e generalizada violação de direitos humanos é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.
Desta maneira, como nas legislações anteriormente citadas, a norma brasileira não
possui um mandato global que protege ou presta assistência a pessoas que tenham sido
deslocadas no seu próprio país.
Porém, como observa Liliane Gracieli Breitwisser (2009, p. 153) “o Brasil é um forte
candidato a receptor de maciços volumes de deslocados por fatores ambientais”, em razão do
seu tamanho territorial, dos problemas que atingem os demais países da América latina e da
maior rigidez da legislação ambiental aqui vigente.
A par de tal situação o Brasil, além da situação dramática, crônica e quase irremediável
da seca que atinge o nordeste do país, também está a enfrentar uma série de problemas oriundos
de inundações e enchentes recentes nos Estados de Santa Catarina, Rio de Janeiro, Acre,
Amazonas e Pará que produziram milhares de desabrigados e deslocados.
No entanto, em que pese as restrições apontadas quanto às normas protetivas, o Brasil
sempre teve um papel pioneiro e de liderança na proteção internacional dos refugiados.
Vale lembrar que o Brasil foi o primeiro país do Cone Sul a ratificar a Convenção
relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, no ano de 1960. Foi ainda um dos primeiros
países integrantes do Comitê Executivo do ACNUR, responsável pela aprovação dos programas
e orçamentos anuais da agência (ACNUR, 2005, p. 1).
Neste sentido, a Lei n. 9.474/97 também criou um órgão responsável para analisar e
julgar o pedido de refúgio: o Comitê Nacional para Refugiados (CONARE), composto por
representantes dos Ministérios da Justiça, das Relações Exteriores, do Trabalho, da Saúde, da
Educação e do Desporto, do Departamento da Polícia Federal (DPF) e da Caritas. O CONARE
está atrelado ao Ministério da Justiça, que o preside.
Por fim, o relatório A Situação dos Refugiados do Mundo: Na Busca por Solidariedade,
lançado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), aponta as
lacunas legais que aumentam a vulnerabilidade das pessoas que precisam migrar por causa de
desastres ambientais (ACNUR, 2012, p. 26). Essa lacuna normativa citada pelos especialistas da
ONU faz com que os refugiados ambientais fiquem sem proteção internacional.
O documento afirma que já há mais deslocados por desastres naturais do que por
conflitos armados, mas a lei internacional não reconhece como refugiado quem deixa um país
para fugir de mudanças climáticas e desastres naturais. E nesta mudança de perfil, coloca o
deslocamento interno como um desafio primordial (ACNUR, 2012, p. 19).
De fato, a ocorrência de catástrofes naturais tais como tsunamis, terremotos,
inundações, enchentes ou furacões levam a destruição de casas, estabelecimentos comerciais e
bens materiais diversos que, por vezes, gera o êxodo de comunidades inteiras, ceifa a vida de
milhares de pessoas e deixa milhares de outras desabrigadas.
O caos que se instala em tais comunidades também gera distúrbios sociais intensos que
contribuem para o aumento da miséria e de ataques criminosos, obrigando o deslocamento das
pessoas atingidas.
Segundo o Alto Comissário da ONU para Refugiados, António Guterres, o mundo está
gerando rapidamente mais deslocamentos do que soluções para o problema, isto significa
apenas uma coisa: mais pessoas vivendo muito tempo no exílio, impossibilitadas de voltar para
casa e de se estabelecer em um lugar ou em outro. O deslocamento global é um problema
internacional que exige soluções internacionais, principalmente soluções políticas (ACNUR,
2012, p. 2).
Desta maneira, uma grande solidariedade internacional é necessária para lidar com estes
desafios.
Ademais, é preciso ter claro que o conceito de refugiado, ainda imperante é fruto das
ideias surgidas ao final da Segunda Guerra Mundial, que tinha em mira a quantidade de pessoas
deslocadas em razão de conflitos bélicos de grandes proporções. O referido conceito, como já
destacado, abrange os perseguidos por opinião política, questões raciais, opção religiosa,
nacionalidade e associação a determinado grupo social.
Contudo, após quase 70 anos do fim da Segunda Guerra Mundial vê-se que os
problemas de ordem climática e ambiental estão a gerar um intenso volume de movimentação
de populações pelo mundo.
Neste sentido, merece destaque, por exemplo, o trabalho de Sebastião Salgado,
economista e fotógrafo que durante seis anos percorreu quarenta países colhendo imagens de
pessoas fugindo ou como ele denomina de uma humanidade em trânsito. As imagens recolhidas
por Sebastião Salgado (2000, p. 07) no livro Êxodos revelam, como ele diz:
uma história perturbadora, pois poucas pessoas abandonam a terra natal por vontade própria. Em geral elas se tornam imigrantes, refugiadas ou exiladas constrangidas por forças que não têm como controlar, fugindo da pobreza, da repressão e das guerras. Partem com os pertences que conseguem carregar, avançam como podem a bordo de frágeis embarcações, espremidas em trens, caminhões, a pé. Viajam sozinhas, com famílias ou em grupos. Algumas sabem para onde estão indo, confiantes de que as espera uma vida melhor. Outras estão simplesmente em fuga, aliviadas por estarem vivas. Muitas não conseguirão chegar a lugar nenhum.
Portanto, necessário e premente se faz aumentar as oportunidades de reassentamento de
refugiados em países industrializados, desenvolver projetos cooperativos que promovam
o regresso voluntário sustentável ou a integração local, além do apoio às comunidades que
acolhem refugiados.
Tudo isso se soma ao fato de que o deslocamento de pessoas pelo mundo sempre
obedeceu ao impulso natural do ser humano em busca de melhoria de vida e, sendo assim, como
revela María Méndez Rocasolano (2011, p 483) para obtenção de uma vida digna:
El primer paso esta en creer que la violacion de cualquier derecho en particular, afecta a todos los derechos humanos y que cuando se violan los Derechos Humanos, es agraviada la dignidad de la humanidad y de todos y cada uno de los hombres. El desconocimiento y el menosprecio de los Derechos Humanos ha dado lugar a actos de barbarie ultrajante para la historia y conciencia de la humanidad, por lo que si algo ha de hacer el primer mundo, es esforzarse en imponer ahi donde no se respeten, el reconocimiento y la aplicacion universal y efectiva de los derechos humanos. Para ella seamos coherentes y no limitemos la libertad, hagamos esfuerzos para conseguir el eficaz desarrollo y ejercicio de este derecho a lo largo y ancho de nuestro Planeta.
Enfim, é preciso, pois, que se estabeleça um novo pacto de divisão de esforços e
responsabilidades em todo o campo da proteção aos refugiados, desde a prevenção de conflitos
à solução dos problemas (ACNUR, 2012, p. 2).
3. OS DESLOCADOS PELAS CONSTRUÇÕES DAS BARRAGENS NO BRASIL
Uma das formas de se obter energia é pelo uso da água. Assim, a forma mais corriqueira
é o armazenamento de energia por meio da interrupção do curso de um rio, impedindo o seu
fluxo normal em direção ao mar.
Isto se dá com a construção de barragens, na qual se cria alta pressão de água que uma
vez armazenada e, posteriormente, deslocada em desníveis e movimentadas propicia-se um
rendimento energético. Mas, como explica Samuel Murgel Branco (1997, p. 38):
Nem sempre, porém, isso é possível. Na maior parte dos casos, representam-se rios de grande caudal e pequeno declive, aproveitando-se desníveis de 10, 20 ou 50 metros. É claro que, quanto menor o declive maior terá de ser o volume de água a ser represado para produzir o mesmo resultado energético e, quanto mais plano o terreno, maior será a área de represamento para acumular o volume necessário de água. Assim, se o leito do rio for profundamente escavado ou encaixado no seu vale, conseguir-se-á, mediante o barramento, o acúmulo de um considerável volume de água preenchendo do vale, formulado um lago profundo, com pequena área inundação.
De fato, o lago que se forma em razão do barramento constitui um reservatório e a água
ao cair irá permitir a movimentação das turbinas, liberando energia potencial, que será
transformada em energia dinâmica.
Mas quando a altura da queda d’água é pequena, problemas surgem como destaca
Samuel Murgel Branco (1997, p. 38) ao explicar a situação da represa de Balbina, construída no
rio Uatumã, na Amazônia, que exigiu a inundação de aproximadamente 2.400 quilômetros de
floresta “para acumular um volume de água relativamente pequeno (apenas 7 metros de
profundidade), o qual, caindo de um pequeno desnível, produz uma quantidade de energia
irrisória em relação à imensidão da obra” em comparação à inundação e aos prejuízos causados
para os demais usos da água na região.
Por tudo isso, na atualidade, a construção de usinas hidroelétricas são criticadas, pois a
geração desta modalidade de energia envolve um grande impacto ao meio ambiente natural em
que está inserida, causando diversos problemas à biota e ao homem e às suas interações com o
meio que o cerca.
Neste particular, Helena da Silva Freire Tundisi (1991, p. 41) explica que tais impactos
ambientais geram reflexos sociais, econômicos e culturais, pois a construção de barragens
ocasiona a inundação de grandes áreas e “traz problemas de realocação das populações
existentes, com prejuízos à flora e à fauna locais”, além do “incremento das possibilidades da
transmissão de “doenças aquáticas”, como a esquistossomose e a malária (devido à poluição dos
reservatórios), a extinção dos peixes migratórios cujo processo de reprodução é dependente das
correntes dos rios, etc”.
Esta observação ainda se complementa com as explicações de Sandra Baptista da Cunha
(2003, p. 236) ao revelar que as condições naturais dos rios se modificam pela participação
antrópica levada a efeito pelo homem por meio de obras de engenharia, “como construções de
barragens, pontes e diques, retificação dos leitos, alargamento e aprofundamento da calha”.
Tais obras acentuam o “entalhe e aprofundamento dos leitos, no sentido de reduzir a ocorrência
de enchentes, são exemplos que alteram o nível de base local, geram retomada erosiva nas
encostas e a consequente formação de ravinas e voçorocas”.
No Brasil, até 1950 as companhias privadas eram as responsáveis pela geração de
energia elétrica, mas com a criação da Eletrobrás em 1963, o governo federal passa a gerir todo
o sistema de energia elétrica. Desde então a capacidade de geração de energia tem se elevado.
O setor elétrico volta à privatização a partir de 1995, com a venda de várias empresas
estatais que compunham o sistema elétrico brasileiro e, atualmente, 94,5% dos domicílios
dispõem de eletricidade, sendo que o faturamento do setor este ano é da ordem de 100 bilhões
de reais (Capital Aberto, 2006, p. 23), mas há em boa parte do território nacional sistemas
inadequados de distribuição da energia gerada.
É importante observar que o Brasil tem um imenso potencial hidrelétrico, considerando
o terceiro em termos mundiais, com cerca de 258.000 mW e aproveitamento potencial de 31%.
Os especialistas do setor visualizam a possibilidade de até 2030 acrescerem 100.000 mW ao
parque hidrelétrico nacional, sendo 60.000 mW provenientes da região Amazônica, totalizando
170.000 mW, conforme dados da holding EDP no Brasil (EDP, 2012).
De fato, como enfatizam Vânia Mattozo e C. Celso de Brasil Camargo (2005, p. 42) “na
região Norte, onde existem vários problemas de fornecimento, muitas localidades ainda são
atendidas por sistemas deficientes de geração térmica movida a óleo diesel”.
Além disso, também de acordo com dados da EDP, o “Sistema de Distribuição
Brasileiro é composto por 64 distribuidoras, sendo 19 estatais e 45 privadas”, sendo que as 11
maiores empresas de distribuição são responsáveis por fornecerem 54% da energia elétrica. O
consumo de energia elétrica no Brasil, por sua vez, totalizou 392.764 gWh em 2008, sendo 54%
consumido pela Região Sudeste. Destes números a classe Industrial é a responsável pelo
consumo de 179.977 gWh, o que corresponde a 46% do total da energia elétrica consumida,
destacando-se como maiores consumidores as áreas de siderurgia, metalurgia e papel e celulose,
sendo que o consumo da classe residencial, período, totalizou 94.660 gWh, 24% do total, com
consumo per capita de 148 kWh/mês (EDP, 2012).
Por esta razão, o problema da construção de barragens e de outros empreendimentos de
grande porte, tais como estradas, linhas de transmissão de energia elétrica e projetos de
mineração, a partir dos Planos Nacionais de Desenvolvimento (PNDs) entre 1975 e 1985, foram
os responsáveis pela realização de “estudos de impacto ambiental, bancados por empresas
estatais e privadas”, sendo que “medidas de mitigação desses impactos também eram cobradas”,
como explicam Luís Henrique Cunha e Maria Célia Nunes Coelho (2003, p.51).
Não obstante tais considerações é importante observar, como destaca Dirceu Benincá
(2011, p. 32), que “as empresas preferem se instalar onde as bases naturais são mais
vantajosas”. Na última década, por exemplo, “muitas indústrias eletrointensivas de capital
internacional estão se transferindo para países periféricos que dispõem de grande potencial
energético”.
Assim, é fato que em relação aos aspectos legais e ambientais, as barragens necessitam
do Licenciamento Ambiental e da Outorga de Direito de Uso de Recursos Hídricos, sendo que
existe um conjunto de normas que disciplinam a construção e a operação de barragens.
Por primeiro, a Resolução CONAMA nº. 237/97 determina que, a princípio, todas as
barragens, dependerão de prévio Licenciamento Ambiental2 (CONAMA, 1997, p. 1). Para a
obtenção da Licença Ambiental, a Resolução CONAMA nº. 001/86, art. 2º. destaca que toda
obra modificadora do meio ambiente dependerá de elaboração de estudo de impacto ambiental e
respectivo relatório de impacto ambiental - RIMA, a serem submetidos à aprovação do órgão
estadual competente, e do IBAMA em caráter supletivo, o licenciamento de atividades
modificadoras do meio ambiente3 (CONAMA, 1986, p. 1).
No Brasil, no entanto, em atividades como as de usinas hidrelétricas ou nucleares o
Estado não só participa ativamente da construção, como se apresenta como sócio dos
empreendimentos, sendo que em tais situações o órgão licenciador é o IBAMA. Diante deste
fato como destaca Paulo Affonso Leme Machado (2012, p. 322):
Depara-se com a impossibilidade de um licenciamento eficiente, impessoal e moral diante da vontade do Chefe do Executivo frente à atuação de um órgão, que é seu dependente hierárquico. É a lição popular, a ser usada pela Ciência da Administração, de que quando se choca a panela de ferro com a panela de barro, é esta que sempre quebra. Quando o Governo busca uma licença ambiental no próprio Governo, vemos que ele atua como “juiz de sua própria causa”, o que resvala para a autocracia.
2 Art. 1º - Para efeito desta Resolução são adotadas as seguintes definições: I - Licenciamento
Ambiental: procedimento administrativo pelo qual o órgão ambiental competente licencia a localização, instalação, ampliação e a operação de empreendimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, consideradas efetiva ou potencialmente poluidoras ou daquelas que, sob qualquer forma, possam causar degradação ambiental, considerando as disposições legais e regulamentares e as normas técnicas aplicáveis ao caso. 3 Art. 2º – A localização, construção, instalação, ampliação, modificação e operação de
empreendimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais consideradas efetiva ou potencialmente poluidoras, bem como os empreendimentos capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, dependerão de prévio licenciamento do órgão ambiental competente, sem prejuízo de outras licenças legalmente exigíveis; § 1º – Estão sujeitos ao licenciamento ambiental os empreendimentos e as atividades relacionadas no Anexo 1, parte integrante desta Resolução; § 2º – Caberá ao órgão ambiental competente definir os critérios de exigibilidade, o detalhamento e a complementação do Anexo 1, levando em consideração as especificidades, os riscos ambientais, o porte e outras características do empreendimento ou atividade.
De outro lado, no que toca à regulamentação, na gestão dos recursos hídricos, dois
instrumentos são de suma importância: a outorga dos direitos de uso de recursos hídricos e a
cobrança pelo uso de recursos hídricos (BRASIL, 1997, p. 1).
A outorga de direito de uso de recursos hídricos, como se sabe, é o ato administrativo
mediante o qual a autoridade outorgante faculta ao outorgado previamente ou mediante o direito
de uso de recurso hídrico, por prazo determinado, nos termos e nas condições expressas no
respectivo ato, consideradas as legislações específicas vigentes (BRASIL, 2001, p. 8).
A outorga não implica alienação total ou parcial das águas, que são inalienáveis, mas o
simples direito de uso. A outorga confere apenas o direito ao uso da água, mas não transfere a
sua propriedade, já que a água é um bem de domínio público. As diversas fases de inventário,
viabilidade, construção e operação de barragens devem atender a vários diplomas legais
relacionados com o meio ambiente (BRASIL, 2001, p. 8).
Além disso, a princípio, todas as barragens estão sujeitas quanto à cobrança pela
utilização do uso da água. Neste sentido, o art. 21 da Lei 9.433/1997 trata de critérios para a
cobrança de captação e lançamento de efluentes, mas nada especifica sobre barragens ou
acumulações. No entanto, na fixação dos valores a serem cobrados pelo uso dos recursos
hídricos devem ser observados, dentre outros, nas derivações, captações e extrações de água, o
volume retirado e seu regime de variação.
Ademais, nos lançamentos de esgotos e demais resíduos líquidos ou gasosos, o volume
lançado e seu regime de variação e as características físico-químicas, biológicas e de toxidade
do afluente. No entanto, o termo “dentre outros” sugere que a cobrança pode ser aplicada às
barragens.
Acrescente-se que a Resolução CNRH nº. 37/04, art. 8º, atribui ao proprietário da
barragem a responsabilidade pela segurança da obra, em relação aos aspectos relacionados à
segurança da barragem, devendo assegurar que seu projeto, construção, operação e manutenção
sejam executados por profissionais legalmente habilitados.
Tudo isso se complementa com a Constituição da República Federativa do Brasil de
1988 que dedica um capítulo inteiro (Título VIII, Capítulo VI, art. 225) ao meio ambiente, o
qual considera ser um direito de todos o meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso
comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à
coletividade o dever de defendê-lo para as presentes e futuras gerações.
A Lei nº. 6.938, de 1981, recepcionada pelo Texto Constitucional, instituiu a Política
Nacional do Meio Ambiente e têm por objetivo a preservação, melhoria e recuperação da
qualidade ambiental propícia à vida; inclui, entre vários instrumentos, a avaliação de impactos
ambientais; prevê o licenciamento ambiental para a construção, instalação, ampliação e
funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais,
considerados efetiva ou potencialmente poluidores, bem como os capazes, sob qualquer forma,
de causar degradação ambiental.
A mesma Lei introduziu o princípio da responsabilidade objetiva, mediante o qual o
poluidor é obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou a reparar os
danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade.
Estes dispositivos são complementados pela lei dos crimes ambientais (9.605/98) que
prevê várias sanções administrativas (arts. 70/80) e penais (arts. 29/69A), de forma a estabelecer
uma relação mais justa entre a gravidade da infração e a pena.
De outro lado, o art. 2º, inciso I da Resolução Conselho Nacional de Recursos Hídricos
nº. 37/04, define as barragens como:
Estrutura construída transversalmente em um corpo de água, dotada de mecanismos de controle com a finalidade de obter a elevação do seu nível de água ou de criar um reservatório de acumulação de água ou de regularização de vazões.
A Lei 12.334/10, em art. 2º, inciso I, por sua vez revela que as barragens são:
Qualquer estrutura em um curso permanente ou temporário de água para fins de contenção ou acumulação de substâncias líquidas ou de misturas de líquidos e sólidos, compreendendo o barramento e as estruturas associadas.
Com efeito, é certo que tais definições devem ser complementadas pelos dados
recolhidos nos anais do XXVII Seminário do Comitê Brasileiro de Barragens, sobre “a questão
ambiental nos estudos, projetos e construção de barragens”. Este documento destaca como
requisitos primordiais para que uma barragem seja considerada sustentável a compatibilidade
dos seguintes fatores (JURAS, 2007, p. 6-7):
a) reduzir o número de pessoas afetadas, principalmente que necessitem de reassentamento involuntário; b) evitar problemas de sedimentação no reservatório, para aumentar sua vida útil; c) manter a produção pesqueira, para efeito de contribuição com a nutrição da população; d) garantia da diversidade genética de espécies, evitando as extinções de espécies; e) os ganhos com a geração de energia devem superar as perdas na produção agrícola e terras de qualidade equivalentes para os atingidos; f) a qualidade da água deve se manter em níveis aceitáveis; g) as alterações no ciclo hidrológico não devem comprometer os outros usos da água pela população, nem os ecossistemas, principalmente as zonas úmidas especiais; h) as barragens devem ter integração regional e evitar perdas culturais e estéticas; i) a produção de gases de efeito estufa não deve exceder a de uma termelétrica equivalente.
Assim, conforme já enfatizado, a construção de uma barragem gera um obstáculo à
vazão natural do curso d’água. Esta barragem, dependendo das suas dimensões, cria um lago
artificial decorrente do represamento das águas, lago este cujo nível é determinado pelo volume
de água represado e capaz de provocar a inundação em caráter definitivo de territórios
anteriormente ocupados (BERMANN, 2008, p. 233).
Contudo, conforme enfatiza Dirceu Benincá (2011, p. 18) as hidrelétricas são
enxergadas como “ícones do desenvolvimento dos negócios, da economia e da vida como um
todo”. No entanto, a construção de tais obras monumentais de engenharia, na maioria das vezes
“inundam vastas áreas de terras, destroem florestas, extinguem espécies animais, expulsam
inúmeras famílias de seus locais de vida etc.”.
Com efeito, diante de tais fatos é de extrema importância as observações de Maria Stela
Marcondes de Moraes (1994, p. 162) ao estudar o Movimento dos Atingidos pelas Barragens da
Bacia do Rio Uruguai (CRAB):
Em depoimento escrito (setembro de 1990), Luiz Dalla Costa, então secretário geral da CRAB, sintetiza as razoes que justificam a luta contra as barragens, agrupando-as em quatro itens: razões ambientais, socioculturais, econômicas e de falta de democracia. Relata que estas razões foram enviadas às autoridades em várias oportunidades, sempre acompanhadas da ressalva: “Nossa luta não é contra o progresso: nossa luta é de resistência na terra”. Não por acaso, uma das razoes socioeconômicas que justificam o repúdio é justamente a ausência de um plano de reassentamento para as famílias desalojadas., donde se deduz que o “Não” significa condição muito mais do que negação. Fica implícito que, na verdade, o “Não” afirma vontades e reitera reivindicações, entre as quais o direito ao reassentamento.
Tem-se com isso, que a ocupação anterior – seja por elementos naturais (cobertura
vegetal nativa e habituais de uma variedade, geralmente, diversificada de espécies animais); seja
pelo elemento antrópico, isto é, pela presença social do homem que se apropriou do sítio
territorial para habitar, para cultivar, para se locomover ou para seu lazer, o que também
determina uma forma de apropriação cultural deste território – acaba sendo substantivamente
alterada, ou mesmo virtualmente extinta, através da implantação do novo sítio energético que a
usina hidrelétrica vai conformar des/restruturando o território anterior (BERMANN, 2008, p.
233).
No entanto como explica José Fernando Vidal de Souza (2007, p. 65) “o lugar onde se
habita é, por excelência, um local de trocas afetivas e representa uma necessidade humana
fundamental que permite a socialização, a inviolabilidade do território e a sensação de
segurança e liberdade que leva o indivíduo a se despojar das armaduras e hábitos sociais
inerentes do espaço público”.
Daí a pertinência da observação da cientista social Cintya Maria Costa Rodrigues (1999,
p.165) ao revelar que para todo deslocado compulsório ou desapropriado em situação como esta
o passado “não é a simples expressão de uma participação individual em um evento específico”,
mas “um passado cuja vivência foi compartilhada coletivamente, envolvendo um grupo que,
tradicionalmente, se organiza, de forma particularmente corporada para reproduzir sua vida
econômica e sociocultural”.
Enfim, o deslocamento compulsório rompe com a unidade de grupo e a memória do
deslocamento passa a estar diretamente associada à memória da perda.
No âmbito brasileiro, segundo Dirceu Benincá (2011, p. 32) a Comissão de Barragens
no ano de 2000 registrou 594 grandes barragens e o acréscimo de outras 494 hidrelétricas até
2015 e, ainda, segundo informações do MAB, a partir de dados do Ministério de Minas e
Energia e da Eletrobras, outros “1443 projetos de barragens estão inventariados ou com estudos
de viabilidade para serem construídos até 2030”.
Se durante a década de 1980 viu-se crescer a ideia intervencionista do Estado na
economia, como explica Adriana Lannes Souza (2012, p. 52), ao ressaltar que no Brasil esse
viés se deu pela via do neoconservadora ou neoliberal ditada por pensadores americanos. Mas à
medida que as economias desenvolvidas passaram a encolher, o modelo keynesiano “de
manutenção do pleno emprego, via de crescimento econômico acelerado, que sustentavam tanto
a intervenção do Estado na economia como em todo o aparato para o desenvolvimento de
infraestrutura e de indústria de base” caíram em descrédito.
Com isso, paulatinamente, a partir do governo Fernando Henrique, na metade da década
de 1990, tem-se a retomada do modelo desenvolvimentista, a partir da desestatização e
privatização de várias estatais do setor industrial.
Atualmente, o acréscimo vertiginoso na construção de barragens é resultante como
explica Dirceu Benincá (2011, p. 32) “da opção governamental a partir de uma visão
desenvolvimentista e, especialmente sob o governo Lula”, em razão do projeto governamental
intitulado Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), bem como do Programa Luz para
Todos, instituído pelos Decretos 4.873, de 31 de novembro de 2003 e Decreto 6.442, de 25 de
abril de 2008, que pretende universalizar a energia elétrica no Brasil.
Segundo Adriana Lannes Souza (2012, p. 60) no Programa Luz para Todos, ano de
2007, foram beneficiadas 5 milhões de pessoas em todo país, sendo que “o programa está
orçado em R$ 20 bilhões, dos quais R$ 14 3 bilhões em recursos do Governo Federal e o
restante partilhado entre os governos estaduais, concessionárias e cooperativas de eletrificação
rural.”.
Diante disso, ao contrário da tentativa de se atrelar a construção de barragens com
desenvolvimento sustentável, verifica-se que estas são de fato causadoras de grandes
degradações da qualidade ambiental. A constatação deste fato gera como consequência a
necessidade de que atividade deve ser precedida de uma série de procedimentos cogentes, cujo
descumprimento implica na ilegalidade da atividade, passível, portanto de reparação do dano
causado.
Por isso, é de extrema importância minimizar os danos causados por este tipo de
construção e intervenção humana na natureza, valendo trazer à baila as considerações de Helena
da Silva Freire Tundisi (1991, p. 41) ao ressaltar que:
Um controle sistemático da erosão e da qualidade da água, um reassentamento das populações deslocadas, escadas para peixes, aeração das águas profundas, evitando o crescimento de microrganismos anaeróbicos, e otimização do transporte de energia a grandes distâncias (ainda um grande problema nesse sistema) minimizariam os impactos mencionados e melhorariam as condições de fornecimento de energia elétrico aos grandes centros consumidores.
Neste particular, a inundação de 5,3 mil k² de florestas, principalmente na região
Amazônica, nos próximos dez anos, aliada a real possibilidade de transformação de vários rios
em escadas de lagos artificiais, com a extinção de várias espécies de peixes de grande valor
nutricional e econômico, além da alteração da biota existente em tais espaços, implica em altos
custos e muitos inestimáveis, capazes de gerar desastres ambientais de grande monta para
grande massa de pessoas. Com efeito, neste contexto, é certo que serão construídas cinco
hidroelétricas no Rio Tapajós, no estado de Pará até 2020.
Para tanto, no dia 06 de janeiro de 2012 a presidente Dilma Rousseff assinou a medida
provisória 558 que desafetou áreas de conservação na região da Amazônia, situada nos estados
do Amazonas, Rondônia e Pará, bem como alterou os limites de três parques nacionais, três
florestas e uma área de proteção ambiental (APA) para viabilizar a implantação dos
aproveitamentos hidrelétricos Tabajara, São Luiz dos Tapajós e Jatobá, além dos reservatórios
das usinas do Rio Madeira – Santo Antônio e Jirau.
Entretanto, a fala governamental encontra amparo no pensar de vários técnicos que
enxergam a possibilidade compatibilizar a construção de barragens com benefícios
socioambientais. Neste sentido é o entendimento de Diniz, Regis e Melo (2012, p. 16) para
quem:
À medida que a sociedade entende que a tecnologia hidroenergética pode e deve estar atrelada ao desenvolvimento sustentável nas dimensões social, econômica e ambiental, os reservatórios e barragens podem, além de gerar energia elétrica limpa e renovável, dar acesso à água de abastecimento doméstico, água para irrigação de atividade agrícola, promover o controle de enchentes e de secas, proporcionar a revitalização de ecossistemas, permitir a navegação fluvial, favorecer a piscicultura, o lazer e o turismo.
Contudo, este retrato não leva em conta uma série de problemas gerados pela
construção de barragens, seja no âmbito ambiental, seja na esfera social, em especial quando
tais construções são feitas em áreas especialmente protegidas.
O Parque Nacional Campos Amazônicos possui área distribuída pelos estados de
Rondônia, Amazonas e Mato Grosso e perderá 3.000 hectares para construção da Hidrelétrica
Tabajara, cuja capacidade é de 350 mW. O referido Parque perderá ainda mais 30.000 hectares
da unidade para reassentar agricultores familiares.
O Parque Nacional Mapinguari, localizado no interior do Amazonas, por sua vez,
perderá 8.000 hectares. A área desafetada será alagada para a construção das usinas hidrelétricas
de Jirau e Santo Antônio, no estado de Rondônia. Além disso, o Parque Nacional da Amazônia
também perderá cerca de 2,5% para construção das hidrelétricas de São Luiz do Tapajós, cuja
capacidade instalada é de 6.000 mW. Cerca de 30 mil hectares do parque serão destinada para
reassentar os agricultores que ocupam o local.
A hidrelétrica de Belo Monte, a ser construída no Rio Xingu, consumirá cinco anos,
inundará uma área 58%, limitará a 516 quilômetros quadrados, um quinto da superfície que
inundou Tucuruí.
Contudo, o trecho sujeito à inundação, ou seja, 100 km da Volta Grande do Xingu,
correspondente a uma curva do rio, em forma de ferradura, que sofrerá danos irreparáveis, pois
haverá estiagem permanente e o rio perderá boa parte de suas águas retidas em uma represa e
desviadas por um canal para uma segunda represa geradora de energia. Neste trecho vivem
cerca de 180 índios em duas reservas, Paquiçamba e Arara, além de centenas de famílias
camponesas. Ademais, a alteração dos ciclos e fluxos hidrológicos extinguirá várias espécies de
peixes, redução de mamíferos e quelônios amazônicos.
Não é à toa que Kirovsky e Sabanay (2012, 122) revelam que os pescadores são
reconhecidamente “um dos grupos mais resilientes e atingidos pela construção de barragens e
são protagonistas prioritários na pauta de responsabilidade social, ambiental e econômica dos
empreendimentos”. Porém, “o conhecimento dos pescadores mostra-se essencial para tomadas
de decisão mais acertadas quanto à gestão dos recursos aquáticos, vitais para o sucesso dos
empreendimentos hidrelétricos”.
É certo, também que o Rio Xingu tem sua vazão ampliada com as chuvas do inverno,
podendo atingir 30 mil metros cúbicos por segundo, entre março e abril, e uma vazão baixa no
verão, podendo chegar a menos de 500 metros cúbicos entre setembro e outubro.
Desta forma, a menor quantidade de água durante uma época do ano facilita a pesca no
rio, ou seja, permite recurso alimentar e principal fonte de proteínas nesta região e, quando
aumenta a sua vazão, durante o verão, facilita o meio de transporte na Amazônia. Por fim, Belo
Monte obrigará a realocação de aproximadamente 7 mil famílias.
A referida Medida Provisória permitiu a desafetação de 75.630 hectares de cinco
unidades federais de conservação, inclusive 18.700 hectares do Parque Nacional da Amazônia,
para abrir caminho aos reservatórios de duas megabarragens: São Luiz do Tapajós e Jatobá.
Mas não é só.
De fato, a Medida Provisória 558 de 2012 já foi convertida na Lei nº. 12.678 de 25 de
junho de 2012, também alterou os limites do Parque Nacional da Amazônia, do Parque
Nacional dos Campos Amazônicos, do Parque Nacional Mapinguari, da Floresta Nacional de
Itaituba I, da Floresta Nacional de Itaituba II, da Floresta Nacional do Crepori e da Área de
Proteção Ambiental do Tapajós.
Com isso, as obras para construção de hidrelétricas no Complexo de Tapajós
acarretarão a diminuição de áreas na Área de Proteção Ambiental (APA) Tapajós e as Florestas
Nacionais (Flonas) Itaituba I e II que perderão, respectivamente, 1,3%, 2,5% e 7,9% de suas
áreas originais.
Verifica-se, assim, que estas áreas de Unidades de Conservação (UCs) na Amazônia
que irão abrigar os canteiros e os reservatórios das grandes hidrelétricas ameaçam ecossistemas
de biodiversidade especial e única. Em contrapartida, a tabela abaixo indica o potencial elétrico
a ser obtido com a construção de tais barragens:
Hidroelétrica Entrada em operação Rio Potência (MW)
São Luiz do Tapajós 2017 Tapajós 6.133
Cachoeira dos Patos 2019 Jamanxim 528
Jatobá 2020 Tapajós 2.336
Jamanxim 2020 Jamanxim 881
Cachoeira do caí 2020 Jamanxim 802
Fonte: MMA/Ibama
Com isso, se já é grande a apreensão quanto aos efeitos causados pela construção de
Belo Monte, tem-se que o custo ambiental será mais intenso em relação à usina de São Luiz do
Tapajós, que produzirá 6.133 megawatts de energia, com a construção de um muro de 3.483
metros de comprimento, com 39 metros de altura dentro do Parque Nacional da Amazônia, uma
das áreas mais protegidas da região, face a grande biodiversidade.
A inundação total será de 1.368 km² de floresta virgem, algo como quase o tamanho da
cidade de São Paulo e duas vezes e meia a inundação que será causada pela hidrelétrica de Belo
Monte. Os dados das usinas de São Luiz e Jatobá podem ser conferidos pela tabela seguinte:
São Luiz do Tapajós Jatobá
Potencia Instalada 6.133MW 2.336MW
Potencia Firme 3.369MW 1283MW
Cumprimento da barragem 3.483m 1287m
Altura da barragem 39m 35,5m
Quantidade de turbina 33 máquinas 40 máquinas
Área do Reservatório 722,2 Km² 646,3 Km²
Cumprimento do Reservatório 117km 131km
Fonte: MMA/Ibama
A leitura de todos os dados apontados revela que no Complexo do Tapajós a deslocação
de pessoas será baixa, eis que o município mais próximo, Itaituba, de 110 mil habitantes, se
localiza a quase 70 quilômetros abaixo do local previsto para a construção da barragem de São
Luiz e atingirá comunidades ribeirinhas e aldeias indígenas, contudo, causará um grande
impacto ambiental.
Com efeito, em matéria para o Jornal Valor Econômico André Borges revela que “no
referido parque já foram catalogadas mais de 390 espécies de aves e outras 400 de peixes e a
riqueza entre os mamíferos inclui animais em extinção como onça-pintada, onça-vermelha,
tamanduá-bandeira e jaguatirica” (2012, p. A12).
Na mesma matéria os especialistas calculam que 90% das espécies de peixes
desaparecem da região, pois as espécies que conseguirem subir a escada da usina chegarão ao
lago da barragem com a necessidade de muito oxigênio devido ao esforço, mas encontrarão uma
água represada, com baixa quantidade oxigênio.
Por fim, o enchimento dos lagos dessas usinas ainda ocasionará a inundação de pelo
menos 60 km da rodovia Transamazônica (BR-230) e 112 km da estrada de terra do Parque
Nacional da Amazônia.
O deslocamento das pessoas vítimas da construção de barragens levou a edição do
Decreto-lei nº. 7.342, 26/10/2010 que instituiu o cadastro socioeconômico para identificação,
qualificação e registro público da população atingida por empreendimentos de geração de
energia hidrelétrica. O art. 2º. contempla os integrantes de populações sujeitos aos seguintes
impactos:
I - perda de propriedade ou da posse de imóvel localizado no polígono do empreendimento; II - perda da capacidade produtiva das terras de parcela remanescente de imóvel que faça limite com o polígono do empreendimento e por ele tenha sido parcialmente atingido; III - perda de áreas de exercício da atividade pesqueira e dos recursos pesqueiros, inviabilizando a atividade extrativa ou produtiva; IV - perda de fontes de renda e trabalho das quais os atingidos dependam economicamente, em virtude da ruptura de vínculo com áreas do polígono do empreendimento; V - prejuízos comprovados às atividades produtivas locais, com inviabilização de estabelecimento; VI - inviabilização do acesso ou de atividade de manejo dos recursos naturais e pesqueiros localizados nas áreas do polígono do empreendimento, incluindo as terras de domínio público e uso coletivo, afetando a renda, a subsistência e o modo de vida de populações; e VII - prejuízos comprovados às atividades produtivas locais a jusante e a montante do reservatório, afetando a renda, a subsistência e o modo de vida de populações. Parágrafo único. Para os efeitos do disposto neste Decreto, o polígono do empreendimento abrange áreas sujeitas à desapropriação ou negociação direta entre proprietário ou possuidor e empreendedor, incluindo as áreas reservadas ao canteiro de obras, ao enchimento do reservatório e à respectiva área de preservação permanente, às vias de acesso e às demais obras acessórias do empreendimento.
Observa-se que com a inundação de florestas há deslocamento de vários povos da
floresta e de grande parte da população indígena. Contudo, em relação a estes a proteção é bem
maior que os demais deslocados.
De fato, as populações indígenas são protegidas dentre outros documentos pela
Convenção sobre a Proteção a Integração das Populações Indígenas e outras Populações Tribais
e Semitribais de Países Independentes, que entre nós foi promulgada pelo Decreto 58.824 de
14.07.1966.
O artigo 12 da referida Convenção dispõe que “as populações interessadas não devem
ser deslocadas de seus territórios habituais sem seu livre consentimento, a não ser de
conformidade com a legislação nacional por motivos que visem à segurança nacional, no
interesse do desenvolvimento econômico do país ou no interesse da saúde de tais populações”.
Assim, a construção de barragens em terras indígenas deve obedecer tais requisitos e
como observa Américo Luís Martins da Silva (2006, p.160) o deslocamento é sempre a titulo
excepcional e “os interessados devem receber terras de qualidade ao menos igual à das que
ocupavam anteriormente e que permitam satisfazer suas necessidades atuais e assegurar seu
desenvolvimento futuro”.
Além disso, “quando houver possibilidade de encontrar outra ocupação ou os
interessados preferirem receber uma indenização em espécie ou em dinheiro devem ser assim
indenizados com as devidas garantias”, bem como na hipótese da remoção da comunidade
indígena esta “deve ser integralmente ressarcida dos prejuízos decorrentes da remoção”.
(SILVA, 2006, p.160)
Não obstante tais considerações é importante observar que após a construção das
barragens é de vital importância a preservação do potencial hidráulico que se faz mediante a
gestão dos reservatórios de hidrelétricas.
Mas como explicam Campagnoli e Tundisi (2012, p. 177) a vida útil dos grandes
reservatórios brasileiros deve ser recalculada, a partir dos “volumes atuais de assoreamento
acumulado desde as fases iniciais de operação, e comparada aos atuais aportes de sedimentos
decorrentes das diversas ocupações de suas bacias de contribuição”. E concluem ainda que:
Como estes sistemas artificiais são atratores de investimentos, promovendo uma aceleração da economia e desenvolvimento local e regional, os seus usos múltiplos e o aumento da atividade antrópica produzem muitos impactos, que tem como como resultado deterioração da água, assoreamento do reservatório e biodiversidade aquática (CAMPAGNOLI; TUNDISI, 2012, p. 181).
Por fim, segundo o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) estima-se, por
exemplo, que nos últimos 50 anos o número de deslocados por barragens no país atingiu um
milhão pessoas, que sofreram perdas materiais e culturais incalculáveis, pois presenciaram a
destruição de suas cidades, vilas, igrejas e cemitérios, bem como foram obrigados a recomeçar a
vida sem planejamento e em franco desrespeito aos direitos humanos, em face da nítida
acentuação das já graves desigualdades sociais existentes, dentre elas a miséria e a
desestruturação social, familiar e individual.
Assim sendo, a construção de barragens não se limita a uma tentativa de conciliação de
integração de Engenharia, Ecologia e Limnologia com vistas à utilização dos recursos hídricos
voltado para programas governamentais de desenvolvimento duvidoso.
O papel do Direito nesta área é o de fazer valer o seu instrumental e exigir que a
legislação seja obedecida em especial com a exigência de rigorosos estudos de impactos
ambientais, para se evitar danos causados pela construção de barragens, bem como o
deslocamento de pessoas, o êxodo rural e a marginalização de grupos sociais em franco
desrespeito à dignidade da pessoa humana, inviabilizando a construção da cidadania, em favor
de um suposto progresso de poucos.
4. A DÍVIDA SOCIAL BRASILEIRA FRENTE AOS REFUGIADOS AMBIENTAIS
Vê-se diante do exposto que o problema enfrentado pelos refugiados tem como causa
principal a violação dos direitos humanos, os quais devem ser respeitados a todo o momento. O
dever de respeitar e fazer respeitar os direitos humanos como um todo, é de responsabilidade do
Estado, o qual não pode ficar inerte perante as violações das normas de direitos elementares
(SÃO PAULO, 2000, p. 476).
Como destaca Sebastião Salgado (2000, 12-13) os refugiados não se confundem com os
imigrantes, muito embora possam ter com estes semelhanças, eis que:
Os refugiados e pessoas deslocadas se distinguem dos migrantes porque não sonham com uma vida diferente. Em geral são comuns – “civis inocentes”, na linguagem dos diplomatas - levando suas vidas de agricultores, estudantes ou donas de casa até o momento em que têm seus destinos violentamente associados devido à repressão ou à guerra. De repente, além de perderem casa, ocupação e, às vezes, entes queridos são despojados até da própria identidade. Tornam-se pessoas em fuga, rostos em noticiários televisivos ou em fotografias, números em campos de refugiados, longas filas à espera das distribuições de alimento. Contrato cruel, o deles: em troca da sobrevivência têm de abrir mão da dignidade.
Não obstante as diferenças ora apontadas vê-se que a situação dos refugiados é
semelhante à dos migrantes nos grandes centros. De fato, neste contexto Daniel Joseph Hogan
(1995, p 154) enfatiza com precisão que:
Os pobres foram empurrados para as periferias ambientalmente precárias, uma precariedade evitada não só pelos mais ricos, mas também pela indústria. Emprego é mais disponível nas áreas centrais. Melhor servidas, levando à migração pendular em larga escala. Assim, migração seletiva primeiro dirige as população mais pobres para os espaços menos desejados.
Assim, constata-se que também os refugiados ambientais, geralmente, passam a morar
em regiões menos protegidas ambientalmente e são expostos à qualidade ambiental deteriorada.
Por esta razão, é importante ter em conta as políticas públicas que contemplam os
refugiados e os Poderes Públicos nos âmbitos federal, estadual e municipal devem trabalhar
conjuntamente com objetivo de debelar os problemas oriundos do deslocamento destas pessoas.
Espera-se, pois, a implementação de mecanismos viáveis e capazes de garantir a
proteção e a concretização dos direitos humanos, sociais, econômicos, culturais às vítimas que
sofreram desequilíbrios ambientais, pois conforme explicam José Fernando Vidal de Souza e
Tônia Andrea Horbatiuk Dutra (2011, p. 08):
A crise da humanidade ameaça não apenas com a sua extinção por uma hecatombe, como em determinados momentos da história já se registrou, mas nos coloca novamente diante do risco concreto das práticas totalitárias, ao transformar ‘rostos’ em ‘massa’. A condição dos refugiados ambientais, os sen papier, os excluídos do livre mercado, não corre o risco de assemelhar-se à dos incômodos judeus da história recente?
Importa desta maneira salientar que tais políticas, além de serem formalmente previstas,
sejam estabelecidas e implementadas a partir de valores éticos, humanitários e de solidariedade
social, sob pena de pouco contribuir para a efetiva garantia dos direitos fundamentais, o respeito
à dignidade e a cidadania de todo ser humano.
De fato, os deslocados ambientais inicialmente lutam para ser reassentados de forma
integral, mas, paulatinamente, passam a se preocuparem e reunirem em pequenos grupos.
Depois, a luta ganha uma dimensão de reivindicação individual por um pequeno pedaço
de terra ou um lote de terreno e acabam por perder a dimensão do coletivo. Daí a importância
dos movimentos sociais que permitam não só a construção de mecanismos de resistência e
resiliência em pró da defesa de direitos individuais, coletivos e da dignidade, em busca de uma
sociedade mais justa e democrática.
É por isso que Dirceu Benincá (2011, p. 291) sustenta que o MAB “capacita os
subalternos para o exercício da cidadania política e ecológica” e sintetiza que:
Em síntese, além de prosseguir com a posição contrária à construção de grandes barragens, o MAB propõe e luta em vista de que: a água e a energia estejam a serviço e sob o controle da população; seja superada a visão mercadológica em relação a elas; sejam extintos os subsídios aos grandes consumidores. Defende a institucionalização do direito da energia a toda a população brasileira, bem como a criação de subsídios para as famílias de baixa renda e a isenção de pagamento às que consomem até 100KW/mês. Sugere a busca de fontes energéticas pelos critérios de economia e sustentabilidade ambiental. Enfim, no conjunto de suas proposições, consta a democratização dos processos de planejamento, organização da produção e distribuição da energia, envolvendo a participação ativa e efetiva da população brasileira.
Portanto, a opção desenvolvimentista não pode ser encarada como fundamento para a
sustentabilidade e sinônimo de progresso, pautado pela lógica do capitalismo.
Pensar na produção de energia não pode ser criar benefícios para poucos e dificuldades
e tormentos para muitos. Assim, se não há como se evitar a deslocação forçada, é necessário a
existência de uma política séria de reinstalação das pessoas.
Além disso, é necessária a obediência a princípios que incluam o compromisso de se
evitar nova deslocação ou minimizar as suas consequências, bem como mecanismos que
permitam restabelecer as condições de vida e os meios de subsistência das populações afetadas,
bem como melhorar os benefícios às pessoas reinstaladas, para que estas encontrem um porto
seguro junto aos membros da sua família, do seu clã ou da sua comunidade e possam gozar da
proteção e de assistência fornecidas pelas organizações nacionais e internacionais, caso seja
necessário.
Afinal, como ressalta Ricardo Bown (2005, p. 07/08) “as trocas raciais e culturais fazem
parte da cultura de um povo, e a diversidade tanto pode gerar conflitos quanto contribuir para a
harmonia”, pois as diferenças devem ser encaradas e respeitadas, uma vez que “a historia da
humanidade é construída através da interação das pessoas no mundo” e a experiência pessoal de
cada um “ajuda a formar a sociedade em que vive”, permitindo que a tolerância, o respeito e a
dignidade sejam transmitidas para as gerações futuras.
CONSIDERAÇÕES FINAIS.
A tragédia humana expressa pelo movimento de pessoas no mundo, como consequência
da deslocação forçada, tem impossiblitado que milhões destas pessoas possam exercer o direito
fundamental de viver em paz, com segurança, sem receio ou em à sua terra.
É neste contexto que se destaca a ideia de refugiado, identificada como sinônimo de
pessoas angustiadas, empobrecidas, marginalizadas, maltratadas e que são obrigadas a fugirem
de seus espaços originais para locais desconhecidos. Este fenômeno de deslocação forçada não é
algo novo, sendo comum na história da civilização humana o emprego de violência,
perseguições e conflitos armados para obtenção de objetivos políticos, militares ou econômicos.
Porém, na atualidade, o deslocamento forçado é um fenômeno gravíssimo e complexo,
que decorre de rompimento com velhas ideologias e ações de desenvolvimento em larga escala,
fruto de um modelo capitalista predador.
Ao longo deste trabalho podemos observar que o número de pessoas obrigadas a se
deslocarem em decorrência de ações de desenvolvimento urbano em grande escala vem
crescente ano a ano, em especial no que toca a construção de barragens.
O deslocamento gera um número crescente e desconhecido de pessoas que acabam por
ser desenraizadas de seus locais de origem, sempre induzidas pela falsa noção de que o
desenvolvimento a todos beneficia.
Com a construção de grandes barragens no Brasil, a partir dos anos 70, do século
passado, tem-se que inúmeras pessoas foram reinstaladas em terras com más condições de
cultivo ou obrigadas a se deslocarem para centros urbanos ou regiões industrializadas e
obrigados a competir pelos poucos empregos disponíveis na região, contribuindo para a
elevação do número de desempregados.
Este tipo de deslocação, ao que tudo indica, não parece que vá diminuir no futuro,
devido aos processos de desenvolvimento econômico, de urbanização e de crescimento
demográfico que atualmente têm lugar em numerosos países de baixo e médio rendimento.
Para sobreviverem, em determinadas situações, as pessoas são obrigadas a recorrer ao
corte clandestino de árvores, para a produção de carvão agravando ainda mais os problemas
ambientais da região.
Ademais, a construção de barragens gera para as populações locais deslocadas um
intenso fator de empobrecimento.
A conscientização em relação aos problemas ligados à deslocação forçada tem
aumentado, com maior preocupação com a violação dos direitos humanos fundamentais, por
resistência das populações que se opõem à sua deslocação forçada, em especial a paralização de
planos para a execução de barragens, como se vê no caso de grupos indígenas e dos movimentos
sociais, como o MAB.
Porém, a insegurança é a mola propulsora desta mobilização, eis que os planos para
construção de barragens geralmente são obscuros e não respeitam o princípio da informação,
tendo em conta o baixo nível de proteção e assistência fornecido aos deslocados e, por vezes,
não respeita a elaboração correta de estudos de impacto ambiental (EIA) para apuração dos
danos causados por tais construções.
Com isso, acentuam-se as ameaças físicas, os problemas materiais (com falta de
alimentos, água e higiene), psicológicos e jurídicos do grande número de pessoas deslocadas
internamente, que passam a gozar de pouca ou nenhuma liberdade de circulação.
Porém, a realidade brasileira ainda engatinha nesta área, demonstrando grandes
problemas para receber e reassentar refugiados, eis que o país ainda está em processo de
construção de suas políticas públicas voltadas para solução do deslocamento compulsório. Alia-
se a este fato a necessidade premente de aperfeiçoamento da legislação nacional para correta
realização de políticas concretas sobre o assunto.
Os programas de reassentamento precisam ser aprofundados para abarcar amplamente a
área da assistência, oferecendo educação e atendimento médico nos hospitais públicos aos
refugiados.
Nesta esteira, também se exige um aperfeiçoamento na área dos direitos humanos, pois
as regras existentes são gerais e não específicas e dificultam uma ampla proteção aos refugiados
ambientais, seja como âmbito externo ou interno.
Assim, o caminho primeiro que se impõe não é outro senão estender a legislação já
existente para a proteção dos refugiados aos refugiados ambientais.
Depois, impõe-se aos Estados que reunidos em organizações desenvolvam uma luta
eficiente para definir corretamente o conceito de refugiados ambientais, por meio de legislação
específica, capaz de garantir a natureza jurídica, a delimitação de direitos e a proteção devida a
estas pessoas.
Enfim, o drama dos refugiados ambientais nos leva a refletir que a espécie humana é
uma só e as diferenças existentes entre os povos jamais pode inviabilizar que a vida possa ser
vivida em sua plenitude, como expressão maior da dignidade humana, eis que todos os homens
são iguais em qualquer lugar do planeta.
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ADOLESCÊNCIA.
ENVIRONMENTAL PROTECTION OF CHILDREN AND TEENS - THE NEED
FOR A DIALOGUE BETWEEN THE LARGEST ENVIRONMENTAL LAW,
THE DOCTRINE OF CONSTITUTIONAL PROTECTION INTEGRAL AND
PUBLIC POLICIES OF PROTECTING CHILDREN AND ADOLESCENTS.
Roberta Oliveira Lima1
Ricardo Stanziola Vieira2
“Eu quase que nada não sei, mas desconfio de
muita coisa.”
João Guimarães Rosa
Resumo
O presente artigo tem como objeto de estudo a proteção socioambiental de crianças e
adolescentes e a necessidade de um maior diálogo entre áreas distintas mas não
excludentes como o Direito Ambiental e o Direito da Criança e do Adolescente, bem
como a existência de políticas públicas de proteção socioambiental para crianças e
adolescentes. Esta é uma questão pouco discutida, mas diretamente relacionada à
sustentabilidade e à efetiva existência de uma proteção integral às crianças e
adolescentes. Utilizou-se o método da pesquisa bibliográfica e documental, sendo
imperativa a menção de alguns conceitos como: sociedade de risco,
socioambientalismo, justiça ambiental, vulnerabilidade socioambiental da criança e do
adolescente, falta de democratização dos riscos, a questão da injustiça ambiental e sua
relação com a infância, bem como a existência de políticas públicas socioambientais de
proteção à criança e ao adolescente. Buscou-se dar especial ênfase ao papel dos
Conselhos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente e seu real e efetivo
desempenho na proteção socioambiental de crianças e adolescentes.
Palavras-chave: Proteção Integral; Crianças; Adolescentes; Sustentabilidade.
1Advogada. Curso Superior em Teologia (STC). Mestranda em Gestão de Políticas Públicas (UNIVALI).
E-mail: [email protected].
2Possui graduação em Direito pela USP (1996), Mestrado em Direito pela UFSC (1999) e Doutorado em
Ciências Humanas pela UFSC (2004). Pós doutorado no Centro de Pesquisa Interdisciplinar em Direito
Ambiental, Urbanismo e gestão do território (Crideau, Universidade de Limoges - França, 2007-2008).
Docente Titular nos Cursos de Mestrado e Doutorado do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
Ciência Jurídica e no Curso de Mestrado em Políticas Públicas - UNIVALI. E-mail:
Abstract
This article has as its object of study the environmental protection of children and
adolescents and the need for greater dialogue between different areas but not exclusive
as the Environmental Law and Rights of Children and Adolescents, and the existence of
public policies for environmental protection children and adolescents. This is an issue
little discussed, but directly related to the sustainability and existence of an effective full
protection to children and adolescents. It was used the bibliographic and documentary
research method which makes the mentioning of some concepts such as risk society,
socio-environmentalism, environmental justice, social and environmental vulnerability
of children and adolescents, lack of progress towards democratization of the risks,
environmental injustice and its relation to childhood and the existence of social and
environmental public policies to protect children and adolescents. We intended to
emphasize the role of the Councils under the Statute of Children and Adolescents and
their real and effective performance in protecting children and adolescents.
Keywords: Integral Protection; Children; Adolescents; Sustainability.
Introdução
Inicialmente cumpre mencionar que o Texto Constitucional, em especial no
artigo 2273, transformou a antiga rotina das crianças em “situação irregular” para
construir a moderna doutrina da “proteção integral”, onde, de fato, as crianças passaram
a ser sujeitos de direitos e não meros espectadores dos deslindes do Estado sobre suas
vidas.
Corroborando tal entendimento, Miguel e Lima (2010, p. 206) afirmam que:
[...] uma das ultimas categorias sociais que recebeu o status de cidadão
foi a das crianças. Isto somente lhes foi concedido com a promulgação
da atual Constituição, em 1988.
Nessa linha de pensamento, em 1990, veio a lume a Lei Federal 8.069/90 –
Estatuto da Criança e do Adolescente, reconhecida, inclusive pela ONU, como uma das
legislações mais modernas e avançadas de proteção à criança e a adolescência.
Esses três diplomas legais: a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e
do Adolescente e a Convenção Sobre os Direitos da Criança compuseram um valioso
instrumental jurídico para a proteção da criança, do adolescente e do jovem,
3 Art. 227 – CF/88: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao
jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência comunitária, além de
colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão.”
possibilitando a diminuição das mazelas que afligem essa vulnerável parcela da
população.
Pode-se considerar o Direito da Criança e do Adolescente como um direito de
novíssima geração que veio na trilha de importantes conquistas de nosso país, através
do processo de redemocratização e da consequente promulgação da Constituição
Federal. Mais estritamente ligada à questão da infância e da juventude tivemos a
Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, no ano de 1989, e em 1990 veio à
lume o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Tal cenário composto por este avançado arcabouço legal tencionou impingir à
situação da criança e do adolescente de nosso país uma nova realidade, onde os
mesmos, ainda que considerados legalmente como pessoas em desenvolvimento, são
considerados sujeitos de direitos e deveres e de absoluta prioridade.
As melhorias trazidas por estas recentes legislações são inegáveis, entretanto,
há muito ainda para se avançar e, realmente, trazer à existência um dos mais valorosos
princípios nelas expostos, a saber: A Proteção Integral da Criança e do Adolescente.
Questões como risco, vulnerabilidade socioambiental, justiça ambiental e
sustentabilidade são muitas vezes discutidas sem levar em conta uma parcela digna de
um olhar mais apurado por parte de nossos legisladores e gestores públicos.
Infelizmente, uma dos temas menos debatidos pela doutrina pátria é a relação
entre o direito ambiental ou socioambiental e os direitos das crianças e adolescentes.
Talden Farias (2007) assevera que:
O problema é que para a legislação ambiental brasileira a criança é tão
titular do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado quanto
o adulto, inexistindo qualquer tratamento diferenciado para aqueles
que são mais vulneráveis à contaminação. (...) Uma prova disso é que
os níveis de poluição permitidos pela legislação, tratados pelo inciso I
do art. 9º da Lei nº 6.938/81 (Lei da Política Nacional do Meio
Ambiente) como padrões de qualidade, tem um caráter geral e não
levam em consideração as peculiaridades das crianças.
O presente artigo busca investigar alguns pontos desta brecha que se apresenta
latente e, para tanto, buscará tocar em pontos como: a doutrina da proteção integral, a
proteção socioambiental da criança e do adolescente na sociedade de risco, a falta de
democratização dos riscos, injustiça ambiental e infância, além de Políticas Públicas
socioambientais de proteção à criança e ao adolescente, buscando dar especial ênfase ao
papel dos Conselhos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente e seu real e
efetivo desempenho na proteção socioambiental destes, para tanto se utilizou do método
de pesquisa bibliográfico e documental.
1. A Doutrina da Proteção Integral – Breves Conceituações
Segundo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (2010, p. 610), doutrina “é o
conjunto de princípios que servem de base a um sistema religioso, político, filosófico,
científico, etc.”
Percebe-se a partir desta inferência que quando fala-se de “doutrina”
referimo-nos a existência de uma ideia ou valor central, o qual é desenvolvido por
princípios e regras.
A proteção integral das crianças tem sua verdadeira emergência na França e
está associada à Lei de 24 de julho de 1889, que permitia aos tribunais decidir a
privação do poder paternal. Já na Guardianship of Infants Act (1925) do Reino Unido, o
“bem estar” da criança devia ser a “consideração primeira e primordial”. Assim, a
“proteção especial” das crianças tornou-se a norma fundamental consensual do Direito
da Infância, cite-se como exemplo, um acórdão de 30 de abril de 1959, no qual um
Tribunal de Paris afirmou que a autoridade paternal tem como única legitimidade os
deveres que cabem aos pais “no interesse superior da criança”. (MONTEIRO, 2002, p.
145)
É salutar ainda informar que o termo “o interesse superior da criança”
aparece pela primeira vez num texto internacional, contido na Declaração dos Direitos
da Criança, em 1959, que estabelecia em seu princípio de n. 02 que: “A criança deve
beneficiar de uma proteção especial (...) na adopção de leis como esse fim, o interesse
superior da criança deve ser a consideração determinante.” (MONTEIRO, 2002, p. 146,
grifo nosso).
No Brasil, como já mencionado na introdução, a referida Doutrina da
Proteção Integral tem sua aparição a partir da Constituição Federal de 1988 que se
propôs a colocar abaixo a antiga doutrina do menor em situação irregular encontrada em
vigor até então, por força da Lei nº 6.697/79 – Código de Menores e estabelecer um
novo parâmetro de proteção e efetivação dos direitos da criança e do adolescente.
O art. 227 da Constituição Federal insculpiu, desta maneira, a doutrina da
proteção integral, a qual se encontra em consonância com o princípio fundamental da
dignidade da pessoa humana.
Ao regulamentar o supra referido dispositivo constitucional, o Estatuto da
Criança e do Adolescente – Lei nº 8.069/90 reproduziu o conceito da proteção integral
em seus artigos 1º ao 6º.
Um ponto importante a ser observado na doutrina da proteção integral
refere-se a sua normatividade, situando-a no conceito moderno de que os princípios,
especialmente os positivados na Constituição Federal tem caráter obrigatório,
vinculando não apenas o legislador, como também governantes e governados e o
próprio Judiciário, quando da solução de casos concretos. Portanto, afirma Oliva (2006,
p. 89): “é superada a ideia de que os princípios servem apenas de diretrizes, tendo
conteúdo meramente programático. Na nova concepção, princípios e regras são espécies
de gênero e forma.”
Desta forma, se adotarmos a classificação proposta por Atienza e Manero
(1991, p. 105-106), a doutrina da proteção integral contem “princípio em sentido estrito
e não mera diretriz ou norma programática”
Gonçalves (2202, p. 15) informa que referida doutrina possibilitou a
superação do Direito tradicional, o qual não percebia a criança como indivíduo, bem
como o Direito moderno que tratava a criança e o adolescente como menor incapaz e
objeto da manipulação adulta. Na era pós-moderna a criança e o adolescente são
tratados como sujeitos de direitos em sua integralidade.
O Artigo 1º da Lei 8069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente
expressamente informa que: ”Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao
adolescente.” [grifo nosso]
Em comentário ao referido artigo, Oliva (2006, p. 103) citando Antônio
Chaves, comenta que o significado da expressão “proteção integral”:
Quer dizer amparo completo, não só da criança e do adolescente sob o
ponto de vista material e espiritual, como também a sua salvaguarda
desde o momento da concepção, zelando pela assistência à saúde e
bem-estar da gestante e da família, natural ou substituta da qual irá
fazer parte.
Para Garrido de Paula (2002, p. 23) a proteção integral constitui-se em
expressão designativa de um sistema no qual crianças e adolescentes figuram como
titulares de interesses subordinantes frente à família, à sociedade e ao Estado. Segundo
o referido autor, na construção da ideia de proteção integral, partiu-se do pressuposto
que:
Crianças e adolescentes reclamam proteção jurídica frente à família, à
sociedade e ao Estado, entidades que não raras vezes, a pretexto de
protegê-los, negam seus interesses, entre os quais os mais básicos.
Integral, portanto, no sentido de totalidade de suas relações
interpessoais, sem qualquer tipo de exclusão. (2002, p. 23).
Vale salientar que em cumprimento ao comando normativo constitucional, o
Estatuto disciplinou os direitos fundamentais da criança e do adolescente, podendo-se
citar o direito à vida e saúde (arts. 7º a 14); direito à liberdade, ao respeito e à dignidade
(arts. 15 a 18); direito à convivência familiar e comunitária (arts. 19 a 52); direito à
educação, à cultura, ao esporte e ao lazer (arts. 53 a 59); e direito à profissionalização e
à proteção no trabalho (arts. 60 a 69).
Observe-se que não é uma proteção qualquer assegurada à criança e ao
adolescente pela Constituição Federal, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e por
outras normas, incluindo convenções internacionais que conferem substância ao referido
princípio: temos uma proteção rotulada como “integral”. Tal adjetivação não é
sobremodo aleatória ou despropositada. Segundo Oliva (2202, p. 104): “Teve a
finalidade de realçar que essa especial proteção, que tem caráter de absoluta
prioridade, deve ser total, completa, cabal, envolvendo, como agentes de sua
efetivação, família, sociedade e Estado.” (grifo nosso)
Afirmações como as feitas acima por Oliva servem como parâmetro para a
investigação do papel do Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente na proteção
socioambiental de crianças e adolescentes como veremos em um tópico mais à frente ao
problematizarmos de forma breve o papel dos conselhos como órgãos consultivos, mas
também deliberativos e formuladores de políticas públicas que atentem para a interface
necessária entre a doutrina da proteção integral e o direito ambiental.
Declarações como a proposta por Oliva servem ainda para que nos
interroguemos ao nos depararmos com situações recentemente noticiadas em nossas
mídias, como, por exemplo, o caso de interdição pela Promotoria do Meio Ambiente de
São Paulo de um parque municipal com o solo contaminado por metais tóxico e outros
elementos poluentes. 4
4 Promotoria do Meio Ambiente pediu o fechamento do parque municipal Leopoldina Villas-Bôas, na
zona oeste de São Paulo. O motivo é que parte da área, segundo laudo que consta do processo, está
Como falarmos em proteção socioambiental se temos crianças e
adolescentes frequentando parques municipais com áreas contaminadas por lodo de
esgoto, metais pesados e outros produtos químicos cancerígenos? Como considerarmos
que em situações como a ora relatada a observação da condição peculiar de pessoas em
desenvolvimento está sendo respeitada?
2. A proteção socioambiental da criança e do adolescente na sociedade de risco
Inicialmente, é preciso entender que ao falarmos da proteção socioambiental da
criança e do adolescente, referimo-nos à uma parcela da população que tem
peculiaridades intrínsecas.
Tratar da questão da proteção socioambiental de crianças e adolescentes é
também agregar à discussão a questão da vulnerabilidade socioambiental desta parcela
da população que já é por natureza vulnerável, e que, para tanto, merece tratamento
diferenciado nas mais diversas esferas.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma que todos são iguais e
que possuem os mesmos direitos e liberdades, mas também reconhece que a infância
tem direito a cuidados e a assistências especiais. A infância possui uma cidadania que é
compatível com a devida consideração de sua diferença em relação aos adultos, ou seja,
de sua identidade como criança.( BARATTA , 2001, p. 69)
A Constituição Federal, por seu turno, prevê no artigo 225 a imposição ao
Poder Público e à coletividade do dever de defender e preservar o meio ambiente
ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações.
Outro ponto que cabe ressaltar é que o socioambientalismo que permeia a
Constituição Federal brasileira privilegia e valoriza as dimensões materiais e imateriais
contaminada. "Há a suspeita de que a contaminação possa atingir todo o parque", afirmou o promotor
José Eduardo Lutti, que pediu a interdição do parque até que a prefeitura e a Sabesp, antiga dona do
terreno, solucionem a questão.
Aberto em janeiro de 2010, o parque tem 55 mil m² e funciona na área que serviu como estação de
tratamento de esgoto e oficina de manutenção dos veículos da Sabesp (companhia de saneamento de São
Paulo) de 1959 e 1989.
O parecer técnico do Departamento de Controle da Qualidade Ambiental da Secretaria do Verde e do
Meio Ambiente, um órgão municipal, concluiu que a área está poluída por lodo de esgoto, metais pesados
e outros produtos químicos cancerígenos.
Para a Promotoria, a contaminação ameaça a saúde dos frequentadores. Segundo Lutti, três pessoas
relataram ter passado mal após ir ao parque.
"O ideal é que hoje ninguém frequente o parque. Mas, se isso não for possível, deve-se evitar entrar em
contato com água e se aproximar das tubulações, pois já foi confirmando que nelas há gás metano."
Promotoria pede interdição de parque “contaminado”. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/60180-promotoria-pede-interdicao-de-parque-
contaminado.shtml. Acesso em: 08/2012
(tangíveis ou intangíveis) dos bens e direitos socioambientais, bem como a
transversalidade das políticas públicas socioambientais, a função socioambiental da
propriedade e a consolidação de processos democráticos de participação social na
gestão ambiental. Desta forma, o casamento socioambiental norteia e fundamenta toda a
legislação infraconstitucional brasileira, conferindo-lhe coerência e unidade axiológica-
normativa.(SANTILLI, 2005, p. 93).
Carlos Marés (2002, p. 38) assim define:
Os bens socioambientais são todos aqueles que adquirem
essencialidade para a manutenção da vida de todas as espécies
(biodiversidade) e de todas as culturas humanas (sociodiversidade).
Assim, os bens ambientais podem ser naturais ou culturais, ou, se
melhor podemos dizer, a razão da preservação há de ser
predominantemente natural ou cultural se tem como finalidade a bio
ou a sociodiversidade, ou a ambos, numa interação necessária entre o
ser humano e o ambiente em que vive.
Verifica-se, ainda, que o sociambientalismo contribui para os primeiros
passos de discussão e construção de um Direito de Sustentabilidade.
O alcance da sustentabilidade preconiza a promoção da qualidade de vida
em toda a sua amplitude. Amplitude esta que inclui a geração e distribuição de renda,
desenvolvimento humano e econômico equitativo, acesso à educação e à informação,
possibilidade de exercício da cidadania e democratização dos processos decisórios,
multiculturalismo, superação de exclusão social e ambiental. Este é o objeto do Direito
da Sustentabilidade, mais amplo que o objeto do Direito Ambiental. Sua meta é a
integração entre as questões ambientais stricto sensu, social, econômica, política e
cultural no tratamento dos dilemas de sustentabilidade enfrentados pela sociedade
contemporânea. Configura-se, portanto, como um direito pós-moderno, marcado por sua
incompletude, dinamicidade, multiplicidade e interdisciplinaridade, que assume a forma
de um direito-rede, proposto por Ost (1991, p. 241-272) e corroborado por Monediaire
(2005, p. 146-167).
Morin e Kern (Apud PETRAGLIA, 2010, p. 72) exemplificam a questão do
desenvolvimento mencionando que:
“O Desenvolvimento tem dois aspectos. Por um lado, é um mito
global em que as sociedades industriais atingem o bem-estar, reduzem
as suas desigualdades extremas e proporcionam aos indivíduos o
máximo de felicidade que uma sociedade pode dispensar. Por outro
lado, é uma concepção redutora, em que o crescimento econômico é o
motor necessário e suficiente de todos os desenvolvimentos sociais,
psíquicos e morais. Esta concepção técnico-econômica ignora os
problemas humanos da identidade, da comunidade, da solidariedade e
da cultura. Assim, a noção de desenvolvimento continua gravemente
subdesenvolvida. A noção de subdesenvolvimento é um produto pobre
e abstrato da noção pobre e abstrata de desenvolvimento.” (MORIN e
KERN Apud PETRAGLIA, 2010, p. 72)
Após estas breves conceituações do que venha a ser socioambientalismo,
direito da sustentabilidade e desenvolvimento é possível perceber que a proteção
integral de crianças e adolescentes em conformidade com a já exposta Doutrina da
Proteção Integral deve ser perpassada por este olhar mais integral e complexo, pois
como alerta Morin é preciso ponderar o fato de que hoje as incertezas parecem ter
corroído boa parte das certezas reinantes. Neste contexto, o desenvolvimento dos
conhecimentos científicos põe em crise a cientificidade que suscitara esse
desenvolvimento (MORIN, 2005, p. 329), na forma que:
“Quanto mais multidimensionais se tornam os problemas, maior a
incapacidade para pensá-lo em sua multidimensionalidade; quanto
mais progride a crise, mais progride a incapacidade para pensá-la;
quanto mais globais se tornam os problemas, mais impensáveis se
tornam. A inteligência cega se torna, assim, inconsciente e
irresponsável, incapaz de encarar o contexto e complexo planetários.
(MORIN, 2009, p. 19)
Entretanto:
[...] Tendemos a viver num mundo de certezas, de uma perspectiva
sólida e inquestionável, em que nossas convicções nos dizem que as
coisas são da maneira como as vemos e que não pode haver alternativa
ao que parece certo. Tal é a nossa situação cotidiana, nossa condição
cultural. Nosso modo corrente de sermos humanos.( MATURANA,
H.R.; VARELA, F.J , 2011, p. 11)
Ocorre que “conhecer e pensar não é chegar a uma verdade absolutamente
certa, mas dialogar com as incertezas” (MORIN, 2008, p. 59).
Dialogar com a incerteza, no dizer de Edgar Morin, remete-nos à sociedade de
risco, na qual as certezas já não possuem espaços fixos, ou sequer possuem espaços, por
assim dizer.
Edgar Morin (2008, p. 59) destaca que, diante da incerteza do futuro, podemos
observar três princípios:
O primeiro é o cerebral: o conhecimento nunca é um reflexo do real,
mas sempre tradução e construção, isto é, comporta risco de erro; o
segundo é físico: o conhecimento dos fatos é sempre tributário de
interpretação e o terceiro é epistemológico: decorre da crise dos
fundamentos da certeza, em filosofia (a partir de Nietzche), depois em
ciência (a partir de Bachelard e Popper)
Tais princípios nos remetem ao fato de que a incerteza é uma constante a ser
levada em conta. Os desafios impostos à proteção normativa do meio ambiente agora se
desenvolvem no interior de uma sociedade mundial de risco, a qual lida, sobretudo, com
conflitos relacionados à gestão da incerteza em diversos graus (LEITE, J.R.; AYALA,
P.A. 2004. p. 214).
Isto porque, como explica Ulrich Beck (2001, p. 123):
Não há ninguém que conheça de verdade o resultado global – ao nível
do conhecimento positivo, a situação é radicalmente ‘indecidível’ -,
mas isso não obsta que tenhamos que decidir. A época do risco impõe
a todos nós a carga de tomar decisões cruciais que podem afetar a
nossa sobrevivência mesmo sem nenhum fundamento adequado no
conhecimento.
Benjamim (2001, p. 74) percebe essa modificação funcional do Direito do
Ambiente, que teria passado “[...] de um direito de danos, preocupado em reparar o que
nem sempre é reparável ou mesmo quantificável (na perspectiva da natureza), para um
direito de riscos, que busca evitar a degradação do ambiente”.
Para tanto, convém atribuir importância ao papel da avaliação integral dos riscos
como pressuposto para o exercício adequado da função de proteção. Parece ser esta a
forma pela qual poderão ser conformadas e corrigidas as desfuncionalidades e
deficiências do funcionamento do sistema de normas em matéria ambiental. A forma
pela qual os sistemas de regulação ambiental poderiam ajustar-se às incertezas causadas
pelo ecossistema é a gestão de risco (LEITE, J.R. M.; AYALA, P.A. 2004. p. 207)
J.R. Morato Leite (2004, p. 209) ensina:
[...] O risco, como salientado, impõe também uma obrigação de
ordenar a decisão, levando-se em consideração também dados do
futuro, o que importa afirmar que os interesses e direitos das
futuras gerações deverão ser considerados nos processos de
decisão influenciados pelo risco. [sem destaque no original]
Benjamin (2001, p. 74), reproduzindo a lição de Cristopher Stone, salienta que
as gerações futuras dão, em nosso modelo global, mais peso à equação da proteção do
meio ambiente, pois permitem que os interesses dos não-nascidos, os nossos
descendentes, sejam somados aos do presente, obrigando-nos, desta forma, a refazer os
cálculos.
Entretanto, uma das questões menos debatidas pela doutrina pátria é a
relação entre o Direito Socioambiental e o Direito da Criança e do Adolescente. A
infância e a adolescência sofrem com a degradação que assola o planeta de uma forma
particularmente diferente, haja vista serem consideradas legalmente como portadoras da
condição peculiar de pessoas em
O que se percebe é que de tais circunstâncias parece emergir uma crescente
tensão, onde de fato deveria haver conexão, pois como se falar em proteção integral se
em relação aos crimes ambientais (como já citado neste artigo) não existe diferenciação
entre crianças, adolescentes e adultos?
A seguir, passaremos a uma nova contextualização onde abordaremos a falta de
democratização dos riscos e sua relação com a infância e a injustiça ambiental.
3. A falta de democratização dos riscos: injustiça ambiental e infância
Ao abordarmos a questão socioambiental, alguns conceitos e termos não
podem ser deixados de lado. Um deles refere-se à Justiça Ambiental. O movimento de
justiça ambiental configura-se como a fusão de duas agendas de reivindicações: direitos
civis e direitos humanos e ambientalistas.
O movimento ambientalista caracterizou-se por partir da concepção de que os
problemas ambientais atingem a todos indistintamente, enquanto o Movimento de
Justiça Ambiental ressaltava a desigualdade na distribuição de riscos e custos
ambientais.
O movimento por Justiça Ambiental surgiu nos Estados Unidos da América, em
meados de 1980, como fruto de articulação de movimentos sociais de defesa dos
direitos de populações pobres e de etnias discriminadas e vulnerabilizadas, expostas a
riscos de contaminação tóxica pelo fato de habitarem regiões periféricas de grandes
depósitos de lixo tóxico e radioativo ou de grandes indústrias de efluentes químicos.
Nasceu, pois, originalmente atrelado às lutas contra o que se nomeou de racismo
ambiental, expressão cunhada em virtude da constatação de uma pesquisa realizada por
Robert D. Bullard em 1987, a pedido da Comissão de Justiça Racial da United Church
of Christ, que demonstrou ser o componente racial fator determinante nas políticas de
distribuição espacialmente desigual da poluição e degradação ambiental (ACSELRAD;
MELLO; BEZERRA, 2009. p. 19).
Podemos, portanto, afirmar que Justiça Ambiental designa a distribuição
equitativa de riscos, custos e benefícios ambientais, independentemente de fatores não
justificáveis racionalmente, tais como etnia, renda, posição social e poder; o igual
acesso aos recursos ambientais e aos processos decisórios de caráter ambiental,
traduzindo-se na sua democratização. Requer condições estruturais favoráveis à
organização e emponderamento da coletividade como sujeitos ativos do processo de
gestão ambiental, traduzindo-se na sua democratização.
Ainda em relação à questão atinente à injustiça ambiental, pode-se considerar a
mesma como uma espécie de discriminação ambiental, pois impõe a certos grupos já
fragilizados, por condições socioeconômicas, raciais e informacionais, uma carga
desproporcional de custos ambientais quando comparados à sociedade em geral. O que
se percebe, de fato, é a forte relação existente entre a degradação ambiental e a injustiça
social.
Como já visto, o movimento da Justiça Ambiental vem avançando e seu foco
tem se estendido há muito para além da questão racial, indo sobretudo para a questão de
classes.
A. A. Rossotto Ioris (2009, p. 389) menciona a importância de não se perder de
vista a função protetiva e preventiva presente em princípios da justiça ambiental,
afirmando:
Se é inegável que as questões do meio ambiente atraem uma atenção
cada vez maior nos dias de hoje, falta ainda reconhecer a centralidade
dos princípios de justiça ambiental para a proteção ecológica, a
atividade econômica ou mesmo o futuro da democracia brasileira. A
importância da noção de justiça ambiental decorre da constatação de
que a crescente escassez de recursos naturais e de que a
desestabilização dos ecossistemas afetam de modo desigual, e muitas
vezes injusto, diferentes grupos sociais ou áreas geográficas [grifo
nosso]
Pode-se considerar crianças e adolescentes como pertencentes a um destes
grupos sociais que já possuem intrinsecamente condições particulares de
vulnerabilidade, e que, não obstante tal condição, ao serem expostas à situações de
degradação ou desestabilização ambiental são afetadas de modo desigual, haja vista a
sua situação peculiar de pessoa em desenvolvimento (art. 4º Estatuto da Criança e do
Adolescente).
Algumas estatísticas merecem ser destacadas para corroborar tal entendimento
de que crianças e adolescentes são sujeitos de injustiça ambiental.
O PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), no seu
relatório de Desenvolvimento Humano 2007/2008, reconhece que os habitantes de
países pobres correm risco muito maior de serem vítimas de catástrofes climáticas do
que os de países com renda elevada. Segundo o estudo do PNUD, o impacto nas nações
pobres é 78 vezes maior. A cada 19 moradores de países em desenvolvimento, 1 foi
vítima de tragédias como secas, tsunamis e furacões entre 2000 e 2004. Nos países
desenvolvidos, o número é de 1 a cada 1500.
O “Atlas da Saúde Infantil” que a Organização Mundial da Saúde lançou em
2004 traz dados alarmantes. Afirma que a poluição mata mais de 3 milhões de crianças
a cada ano. Na Quarta Conferência Ministerial sobre Ambiente e Saúde que a referida
instituição realizou naquele mesmo ano, cuja temática central focava o Plano de Ação
para a Saúde e o Ambiente da Criança, estudos foram apresentados comprovando que a
capacidade de eliminar substâncias tóxicas da água e do ar é inferior em crianças.
Segundo o relatório “O Meio Ambiente Importa", que o Banco Mundial
apresentou à comunidade internacional em outubro de 2005, as crianças sofrem mais
com a poluição do que os adultos. Os dados do referido relatório comprovam ainda que
na América Latina e no Caribe existem em torno de 100 milhões de crianças vivendo
em condições ambientais de completa inadequação, fato este intrinsecamente ligado ao
grande número de mortes e doenças entre elas.
Outro dado interessante é revelado por uma pesquisa divulgada em 2006 pela
Cruz Vermelha e pelo Grupo de Trabalho Ambiental dos Estados Unidos a partir do
sangue de cordões umbilicais. A pesquisa apontou que os bebês começam a se
contaminar ainda no ventre da mãe, pois foram detectadas, nas amostras, substâncias
tóxicas como derivados do petróleo, mercúrio e pesticidas. Entre as cerca de 287
substâncias tóxicas detectadas, 180 causam câncer em seres humanos ou animais, 271
são tóxicas para o cérebro e para o sistema nervoso, e 208 causam defeitos de nascença
ou desenvolvimento anormal.
Temos também problemas como: o agravamento do efeito estufa, as explosões
de usinas nucleares como a de Chernobyl, na Ucrânia (1986) e a de Fukushima, no
Japão (2011), o vazamento de gás radioativo na usina nuclear em Kozloduy, na Bulgária
(2011), a extinção de espécies animais, o esgotamento de recursos naturais não
renováveis, a significativa supressão da vegetação essencial para a qualidade de vida, a
biotecnologia que avança a passos largos sem uma fiscalização consistente, a pobreza
em grande escala, além do crescimento demográfico. Esses são exemplos de
implicações danosas, frutos de um progresso global não planejado e, certamente,
comprometedor da proteção integral e absoluta de crianças e adolescentes.
Observa-se que um dos grandes problemas a ser enfrentado pela sociedade de
risco é a falta de democratização dos mesmos. A artificialidade é característica dos
novos riscos, uma vez que podem ser gerados pelo comportamento humano, o que pode
propiciar a manifestação popularmente conhecida como efeito borboleta5, a qual
estabelece que pequenas decisões ou condutas simples – ou até mesmo a falta delas –
podem ser amplificadas por uma vasta cadeia de conexões capazes de gerar
consequências trágicas no futuro. Para exemplificar o que se afirma, Mendoza Buergo
(2001, p. 25) cita o buraco da camada de ozônio e a poluição atmosférica, que nada
mais são do que consequências de pequenas decisões humanas, tomadas por diversas
pessoas ao mesmo tempo e de forma involuntária.
Ressalte-se que, no caso pátrio, grande parte desse tipo de contaminação acaba
ocorrendo de forma legal sob o aspecto administrativo e criminal, apesar da adoção da
responsabilidade objetiva em matéria ambiental. Confirmando tal hipótese tem-se o fato
de que a Lei nº 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais) não estabelece qualquer agravante
para a contaminação de crianças nos casos de contaminação do meio ambiente.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, por seu turno, não trata claramente da
questão socioambiental.
Talden Farias (2007) assim observa:
A Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) não trata
expressamente da questão ambiental, deixando de enfatizar que
criança alguma pode se desenvolver plenamente em um contexto de
degradação ambiental. Entretanto, não se pode deixar de vislumbrar
uma referência pelo menos indireta ao assunto quando o art. 3º6
dispõe que a criança e o adolescente gozam de todos os direitos
fundamentais inerentes à pessoa humana a fim de lhes facultar o
desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em
5 Efeito borboleta é um termo que se refere às condições iniciais dentro da teoria do caos. Este efeito foi
analisado pela primeira vez em 1963 por Edward Lorenz. Segundo a cultura popular, a teoria apresentada,
o bater de asas de uma simples borboleta poderia influenciar o curso natural das coisas e, assim, talvez
provocar um tufão do outro lado do mundo. Porém isso se mostra apenas como uma interpretação
alegórica do fato. O que acontece é que quando movimentos caóticos são analisados através de gráficos,
sua representação passa de aleatória para padronizada depois de uma série de marcações onde o gráfico
depois de analisado passa a ter o formato de borboleta. (MELO, Tibério de Bassi. ENTRE A GESTÃO
DO RISCO E O DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO UMA GOVERNANÇA AMBIENTAL
LEGÍTIMA. Disponível em: http://www.pangeaambiental.com.br/site/artigos/nanotecnologia.pdf.
Acesso em: 02/2012). 6 BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os
direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei,
assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes
facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de
dignidade.
condições de liberdade e de dignidade, ou quando o art. 7º7 determina
que a criança e o adolescente tem direito a proteção, à vida e à saúde,
mediante o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições
dignas de existência. [sem destaque e notas de rodapé no original]
Antes de adentrar-se na questão relativa à existência ou inexistência de
políticas públicas ligadas à proteção socioambiental de crianças e adolescentes e o papel
dos Conselhos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente em tal efetivação, vale
a reflexão de Henri Acserald (2006), que brilhantemente sintetizou vulnerabilidade e
risco, assim dizendo:
Da noção de risco à noção de vulnerabilidade, buscou-se melhor
articular as condições que favorecem a suscetibilidade de sujeitos a
agravos. Conforme assinala Ayres: “Enquanto com a noção de risco
buscou-se ‘calcular a probabilidade de ocorrência’ de um agravo em
um grupo qualquer com determinada característica, ‘abstraídas outras
condições intervenientes’, com a noção de vulnerabilidade procura-se
‘julgar a suscetibilidade’ do grupo a esse agravo, ‘dado um certo
conjunto de condições intercorrentes’. A disposição a tratar as
condições de vulnerabilidade como uma questão de direitos humanos,
por sua vez, é apresentada também como destinada a vinculá-las às
suas raízes sociais mais profundas, estimulando e potencializando a
mobilização das pessoas para a transformação destas condições.
Para finalizar, vale reproduzir o relato de Henri Acselrad em seu artigo Justiça
Ambiental – novas articulações entre meio ambiente e democracia8 que
emblematicamente demonstra a relação entre a falta de democratização dos riscos, a
injustiça ambiental e a infância,:
A morte de uma criança de um ano de idade, ocorrida em maio de
2000 na Baixada Fluminense no Rio de Janeiro, por intoxicação com
produtos tóxicos com que brincava em um terreno baldio situado ao
lado de sua casa, chamou a atenção para o descalabro do lançamento
descontrolado de resíduos industriais perigosos nos espaços públicos,
notadamente nos bairros habitados por populações de baixa renda.
Apenas diante de ocorrências como esta, tem-se aberto espaço para a
discussão mais geral sobre a desigualdade social na exposição da
população aos riscos ambientais em nosso país. Este debate parece
ainda ter sido pouco aprofundado, inclusive pelas próprias forças
democráticas. Cabe a pergunta: como os movimentos sociais no Brasil
poderiam melhor articular a questão dos riscos ambientais com o
debate sobre as condições de existência da população e com o
processo de construção de direitos no país? Como evidenciar a
dimensão ambiental do projeto de construção democrática da
7 BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Art. 7º A criança e o adolescente têm direito a
proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento
e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência. 8 Sem referências bibliográficas completas para citação, artigo Disponível em:
http://www.ecoterrabrasil.com.br/home/index.php?pg=temas&tipo=temas&cd=200. Acesso em: 07/2012.
sociedade brasileira? Como fazer entender que os incêndios florestais
em Roraima, a seca no Nordeste, a desigual exposição dos grupos
sociais aos riscos da poluição são a expressão do mesmo processo de
produção da desigualdade ambiental que distancia ricos e pobres,
brancos e negros em nosso país?
4. Políticas Públicas de proteção à criança e ao adolescente
O artigo 227 da Constituição Federal menciona a absoluta prioridade de
crianças, adolescentes e jovens como sujeitos de direitos. Entretanto, a regulamentação
de tal dispositivo ocorreu através do Estatuto da Criança e do Adolescente, razão pela
qual o presente artigo se concentrará em tal dispositivo legal de forma mais específica.
O Estatuto da Criança e do Adolescente visou estabelecer mecanismos
necessários ao atendimento de crianças e adolescentes em suas necessidades básicas e
essenciais.
Assim Milano e Milano Filho (2002, 179) esclarecem que:
A Proteção judicial aos interesses individuais, difusos e coletivos,
denominação abrangente, deve ser exercida na medida em que não
haja oferecimento dos serviços ou direitos, ou a oferta destes seja
irregular, tanto no aspecto da quantidade, ou seja, a oferta não atende
ao volume de procura e necessidade, como no aspecto qualitativo,
demonstrando-se pouca eficiência e qualidade do serviço.
O Artigo 208 do Estatuto, de forma exemplificativa9, enumera o rol dos
direitos e serviços essenciais, cuja não oferta ou oferecimento irregular podem propiciar
iniciativa processual com o objetivo de compelir o Poder Público competente,
responsável direto pelos direitos elencados, sem exclusão, todavia, de outros interesses
próprios da infância e adolescência, abrangidos em legislação constitucional ou infra-
constitucional.
É preciso salientar que o Estatuto da Criança e do Adolescente carrega consigo
uma responsabilidade comunitária pela proteção socioambiental da criança e do
adolescente, assim preconizada em artigos como o 4º, o 70 e 7210
do referido estatuto,
9 BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente Art. 208. Regem-se pelas disposições desta Lei as
ações de responsabilidade por ofensa aos direitos assegurados à criança e ao adolescente, referentes ao
não oferecimento ou oferta irregular: [...]§ 1o As hipóteses previstas neste artigo não excluem da proteção
judicial outros interesses individuais, difusos ou coletivos, próprios da infância e da adolescência,
protegidos pela Constituição e pela Lei. 10
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente Art. 4º É dever da família, da comunidade, da
sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos
referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura,
à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Parágrafo único. A garantia
entre outros, fazendo-se, inclusive, referência no Art. 73 sobre a inobservância de tais
normas (Arts. 70 e 72) e a responsabilidade da pessoa física ou jurídica.
O Ministério Público tem suas funções previstas no ECA que, segundo o Art.
200 do referido dispositivo legal, serão exercidas nos termos da respectiva Lei
Orgânica. Entre suas competências ressalta-se a estipulada no Art. 201, V, que assim
diz:
Art. 201. Compete ao Ministério Público:
[...]
V - promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção
dos interesses individuais, difusos ou coletivos relativos à infância e à
adolescência, inclusive os definidos no art. 220, § 3º inciso II, da
Constituição Federal;11
Todavia, entende-se que o que mais pode trazer uma eficaz proteção e
responsabilização aos danos socioambientais provocados às Crianças e Adolescentes
está presente na sistematização do Estatuto da Criança e do Adolescente em forma de
Conselhos.
Tais conselhos organizam-se em forma de natureza deliberativa e de controle,
constituindo-se em órgãos de decisão e acompanhamento das ações públicas, possuindo
autoridade para: analisar a situação da infância e dos adolescentes, intervir nas várias
políticas e propor medidas necessárias ao pleno atendimento das diretrizes do ECA. Ou
seja, são órgãos com vocação específica, a saber, definir e controlar as Políticas
Públicas de atenção à criança e ao adolescente em cada instância.
Desta feita, o Conselho Nacional estipula normas gerais e é responsável pelas
diretrizes e pela articulação da Política Nacional. Os Conselhos Estaduais são
responsáveis pela formulação, implementação, coordenação e fiscalização da política
em seu âmbito territorial. Já os Conselhos Municipais são responsáveis pela formulação,
implementação e controle das Políticas Públicas no âmbito local.
Segundo o Art. 131:
de prioridade compreende: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b)
precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação
e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas
relacionadas com a proteção à infância e à juventude.
Art. 70. É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do
adolescente.
Art. 72. As obrigações previstas nesta Lei não excluem da prevenção especial outras decorrentes dos
princípios por ela adotados 11
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Art. 201
“O Conselho Tutelar é órgão permanente e autônomo, não jurisdicional,
encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do
adolescente, definidos nesta Lei.”12
O Conselho tutelar pode ser considerado como o órgão representante da
comunidade na Administração Municipal, sendo encarregado de assegurar o
cumprimento dos Direitos da Criança e do Adolescente, podendo ser considerado um
importante instrumento de mudança social e do Estado.
O artigo 132 do ECA diz que cada município, independentemente do número
de habitantes, deve ter no mínimo 1 (um) Conselho Tutelar, composto por 5 (cinco)
membros escolhidos pela comunidade por eleição direta para mandato de três anos,
sendo permitida uma reeleição. A Lei determina ainda como requisitos básicos para ser
conselheiro tutelar válido em todo o país: ter reconhecida idoneidade moral, idade
superior a 21 anos e morar no município há mais de dois anos.
Em relação às atribuições do Conselho Tutelar, percebe-se que as mesmas não
elencam de forma explícita a questão socioambiental, sendo seu foco mais voltado para
questões individuais, administrativas e penais13
.
Ocorre que o Art. 9814
do Estatuto da Criança e do Adolescente menciona as
medidas protetivas à criança e ao adolescente, as quais devem acompanhar os direitos
12
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Art. 131 13
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Art. 136. São atribuições do Conselho Tutelar:
I – atender as crianças e adolescentes nas hipóteses previstas nos arts. 98 e 105, aplicando as medidas
previstas no art. 101, I a VII;
II – atender e aconselhar os pais ou responsável, aplicando as medidas previstas no art. 129, I a VII;
III – promover a execução de suas decisões, podendo para tanto:
a) requisitar serviços públicos nas áreas de saúde, educação, serviço social, previdência, trabalho e
segurança;
b) representar junto à autoridade judiciária nos casos de descumprimento injustificado de suas
deliberações.
IV – encaminhar ao Ministério Público notícia de fato que constitua infração administrativa ou penal
contra os direitos da criança ou adolescente;
V – encaminhar à autoridade judiciária os casos de sua competência;
VI – providenciar a medida estabelecida pela autoridade judiciária, dentre as previstas no art. 101, de I a
VI, para o adolescente autor de ato infracional;
VII – expedir notificações;
VIII – requisitar certidões de nascimento e de óbito de criança ou adolescente quando necessário;
IX – assessorar o Poder Executivo local na elaboração da proposta orçamentária para planos e programas
de atendimento dos direitos da criança e do adolescente;
X – representar, em nome da pessoa e da família, contra a violação dos direitos previstos no art. 220, § 3º,
inciso II, da Constituição Federal;
XI – representar ao Ministério Público para efeito das ações de perda ou suspensão do poder familiar,
após esgotadas as possibilidades de manutenção da criança ou do adolescente junto à família natural. 14
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente Art. 98. As medidas de proteção à criança e ao
adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados:
reconhecidos nesta Lei, cuja objetividade, ainda que de forma não totalmente explícita,
também traz efetividade e aplicabilidade à proteção socioambiental da criança e do
adolescente. O Art. 100, por exemplo, traz, em seu parágrafo único, princípios
pertinentes e preciosíssimos ao cabimento legal de um amparo socioambiental à criança
e ao adolescente.
Observe-se:
Art. 100. Na aplicação das medidas levar-se-ão em conta as
necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao
fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.
Parágrafo único. São também princípios que regem a aplicação das
medidas:
I - condição da criança e do adolescente como sujeitos de direitos:
crianças e adolescentes são os titulares dos direitos previstos nesta e
em outras Leis, bem como na Constituição Federal; II - proteção
integral e prioritária: a interpretação e aplicação de toda e qualquer
norma contida nesta Lei deve ser voltada à proteção integral e
prioritária dos direitos de que crianças e adolescentes são titulares; III
- responsabilidade primária e solidária do poder público: a plena
efetivação dos direitos assegurados a crianças e a adolescentes por
esta Lei e pela Constituição Federal, salvo nos casos por esta
expressamente ressalvados, é de responsabilidade primária e solidária
das 3 (três) esferas de governo, sem prejuízo da municipalização do
atendimento e da possibilidade da execução de programas por
entidades não governamentais; IV - interesse superior da criança e
do adolescente: a intervenção deve atender prioritariamente aos
interesses e direitos da criança e do adolescente, sem prejuízo da
consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da
pluralidade dos interesses presentes no caso concreto; V -
privacidade: a promoção dos direitos e proteção da criança e do
adolescente deve ser efetuada no respeito pela intimidade, direito à
imagem e reserva da sua vida privada; VI - intervenção precoce: a
intervenção das autoridades competentes deve ser efetuada logo que a
situação de perigo seja conhecida; VII - intervenção mínima: a
intervenção deve ser exercida exclusivamente pelas autoridades e
instituições cuja ação seja indispensável à efetiva promoção dos
direitos e à proteção da criança e do adolescente; VIII -
proporcionalidade e atualidade: a intervenção deve ser a necessária
e adequada à situação de perigo em que a criança ou o adolescente se
encontram no momento em que a decisão é tomada; IX -
responsabilidade parental: a intervenção deve ser efetuada de modo
que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o
adolescente; X - prevalência da família: na promoção de direitos e
na proteção da criança e do adolescente deve ser dada prevalência às
medidas que os mantenham ou reintegrem na sua família natural ou
extensa ou, se isto não for possível, que promovam a sua integração
I - por ação ou omissão da sociedade ou do Estado; II - por falta, omissão ou abuso dos pais ou
responsável; III - em razão de sua conduta.
em família substituta; XI - obrigatoriedade da informação: a
criança e o adolescente, respeitado seu estágio de desenvolvimento e
capacidade de compreensão, seus pais ou responsável devem ser
informados dos seus direitos, dos motivos que determinaram a
intervenção e da forma como esta se processa; [...]
Percebe-se, diante do acima exposto, que a responsabilidade pela proteção
socioambiental de crianças e adolescentes pode estar vinculada aos conselhos previstos
no Estatuto da Criança e do Adolescente. Sugere-se, inclusive, que os Conselhos
Tutelares, por terem atuação em esfera municipal e local, encarreguem-se de
efetivamente resguardar a referida proteção socioambiental de crianças e adolescentes,
seja de forma concorrente ou de forma específica, com a criação, por exemplo, de uma
espécie de Conselho Tutelar Ambiental de proteção socioambiental à Criança e ao
Adolescente.
Por fim, não relacionado aos Conselhos de Direitos mas diretamente ligada à
questão da proteção socioambiental de crianças e adolescentes, temos uma recente
parceria entre a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, o
Ministério da Integração Nacional e o Fundo das Nações Unidas para a Infância
(Unicef) que visa ajudar na capacitação de profissionais que atendem crianças em
situações de risco ou catástrofes naturais no país.
O termo de parceria foi assinado em 12 de julho de 2012 na 9ª Conferência
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e declara que durante as
emergências, meninas e meninos encontram-se mais expostos às situações que podem
afetar permanentemente seu desenvolvimento físico e psicológico.
Demonstra-se assim que o Brasil parece iniciar um caminho inovador, além de
colocar os direitos humanos de crianças e adolescentes no centro da ação de preparação,
resposta e recuperação das emergências. “É importante que a criança tenha prioridade
absoluta”, explica o representante do Unicef no Brasil, Gary Stahl15
.
15 Gary Stahl destacou que o Unicef promoverá a capacitação de profissionais que atuam na área de
Defesa Civil. “Vamos capacitar também atores da sociedade civil, que tem um papel importante na
resposta às urgências, aproveitando toda experiência do Unicef”, afirmou. A medida ainda assegura que
crianças e adolescentes tenham prioridade no planejamento de ações de proteção humana. De acordo com
o documento, “tais grupos etários são especialmente vulneráveis em situações de riscos e desastres, não
apenas pelas consequências imediatas (riscos de morte, maior exposição a doença e violência), mas
também em longo prazo, com relação ao seu desenvolvimento futuro (atraso escolar, sofrimento psíquico,
reabilitação motora, entre outros).” (CRISTALDO, Heloísa. Unicef vai capacitar Defesa Civil para
atender crianças em situação de risco e desastres naturais. Disponível em: http://www.sustenta-
habilidade.org/2012/07/unicef-vai-capacitar-defesa-civil-para.html. Acesso em: agosto/2012)
Considerações finais
Diante de fatores como sociedade de risco e realidades como a vulnerabilidade
socioambiental é impossível não atentar para a realidade de crianças e adolescentes
inseridos em tais contextos. Os mesmos são a “futura geração” que precisa ter no
presente seus direitos resguardados.
A Justiça Ambiental tangencia o contexto da proteção socioambiental de
crianças e adolescentes, demonstrando que esta parcela da população tem sido afetada
de forma desigual e desproporcional, merecendo um olhar apurado e uma proteção
eficaz, a qual resta, ainda longínqua, em legislações mais específicas como a Lei de
Crimes Ambientais (Lei 9.605/98), que não onera de forma diferenciada os crimes
ambientais cometidos contra crianças e adolescentes.
Todavia, relatos de importantes órgãos como o PNUD, a OMS e como
recentemente visto, o UNICEF, não deixam margem para que se questione o maior peso
causado pelos danos ambientais no desenvolvimento de crianças e adolescentes, e
também o consequente problema relacionado a um real desenvolvimento sustentável
inerente ao caso, ou seja, é vital o alcance da sustentabilidade na proteção dos direitos
de crianças e adolescentes.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, por seu turno, apresenta aparentes
lacunas que podem ser sanadas ao debruçarmo-nos, principalmente, sobre princípios
nele elencados e que podem ser atrelados à questão da proteção socioambiental da
infância e adolescência.
Percebe-se que a estrutura de Conselhos, nas mais diversas esferas estatais
previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, pode funcionar como importante
instrumento de proteção socioambiental de crianças e adolescentes, que é de
responsabilidade comum.
Por fim, percebe-se nítido o desafio de que venham à tona maiores discussões e
informações acerca de tão importante temática, sobrepujando realidades ainda presentes
como a falta de compromisso ético, vontade política e competência técnica na condução
de políticas públicas desta área. Resta a esperança de que a menoridade etária não
trasmude-se em uma menoridade de direitos e proteções essenciais à proteção integral
de pessoas em desenvolvimento, como as crianças e os adolescentes.
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POLUIÇÃO SONORA E DIREITO AO SILÊNCIO: DESAFIOS DA SUSTENTABILIDADE
“AO SOM” DO NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO AMERICANO
NOISE POLLUTION AND SILENCE LAW: SUSTAINABILITY CHALLENGES
"THE SOUND" OF THE NEW LATIN AMERICAN CONSTITUTIONALISM
José Osório do Nascimento Neto∗∗∗∗
RESUMO
Sob a ótica do Direito Ambiental, a presente pesquisa acadêmica tem por objetivo fornecer, de uma forma descritivo-interpretativa, uma visão multidisciplinar da poluição sonora e do direito ao silêncio como desafios da sustentabilidade para o meio ambiente artificial, no contexto do novo constitucionalismo latino americano. Para tanto, preliminarmente, serão abordados os aspectos gerais dos conceitos de som, vibração, ruído e suas respectivas variantes com os fundamentos da Física, a partir de onde se pode estabelecer a relação entre o chamado “som indesejável” e os danos à saúde humana. Num segundo momento, parte-se para o estudo da poluição sonora dentro do Direito, sendo fundamental o conhecimento do seu histórico jurídico, cujos direitos e deveres da atualidade encontram-se presentes na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, nas resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA, bem como no novo constitucionalismo latino americano. Neste contexto, são analisados os instrumentos legais de controle à poluição, que dispõem sobre a classificação dos ruídos urbanos, da proteção ao bem-estar social, bem como do planejamento ao sossego público, todos pautados pela referencia da sustentabilidade. Por fim, são levantados alguns casos pontuais da gestão administrativa do Ministério Público e da jurisprudência pátria, que, em conjunto com os demais pontos deste trabalho, nos revelam uma carência de discussão enfática e propositiva, tanto do ponto de vista jurídico, quanto cultural, sobre a poluição sonora e o direito ao silêncio como desafios da sustentabilidade para o meio ambiente artificial.
PALAVRAS-CHAVE: POLUIÇÃO SONORA; DIREITO AO SILÊNCIO; MEIO AMBIENTE ARTIFICIAL; SUSTENTABILIDADE; CONSTITUCIONALISMO LATINO AMERICANO.
∗ Professor das Faculdades Integradas do Brasil (UniBrasil) e da Faculdade Cenecista de Campo Largo. Doutorando e Mestre em Direito Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Especialista em Direito Contemporâneo com ênfase em Direito Público pela Universidade Candido Mendes. Graduado em Direito também pela PUCPR. Realizou aperfeiçoamento de EaD Docência: Metodologia do Ensino Superior e Metodologia de Pesquisa Científica, pela Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (FGV/RJ). Membro da Associação Paranaense de Direito e Economia (ADEPAR). Advogado.
ABSTRACT
From the perspective of environmental law, this research aims to provide academic, in a descriptive and interpretative, a multidisciplinary view of the noise pollution and the right to silence as sustainability challenges for the artificial environment in the context of the new constitutionalism Latin. For that, preliminarily, we discuss the general aspects of the concepts of sound, vibration, noise, and their respective variants with the fundamentals of physics, from where one can establish the relationship between the so-called "unwanted sound" and damage to human health . Secondly, part to the study of noise pollution within the law, and fundamental knowledge of its legal history, whose rights and duties of today are present in the Constitution of the Federative Republic of Brazil in 1988, in the Council resolutions national Environment – CONAMA, as well as the new Latin American constitutionalism. In this context, analyzes the legal instruments to control pollution, which provide for the classification of urban noise, protection of social welfare, as well as planning the public peace, all guided by reference to sustainability. Finally, some are raised individual cases of administrative prosecutors and jurisprudence homeland, which, together with other points of this paper, we show a lack of discussion emphatic, both from a legal standpoint, the physical and cultural on noise pollution and the right to silence as sustainability challenges for the artificial environment.
KEY WORDS: NOISE POLLUTION; SILENCE LAW; ARTIFICIAL ENVIRONMENT; SUSTAINABILITY; CONSTITUTIONALISM LATIN AMERICAN.
1. INTRODUÇÃO
O crescimento populacional e concentração urbana vêm passando por processos de
mudanças profundas. Essas mudanças permitiram que houvesse uma deterioração do meio
ambiente, contaminando o ar, o solo, a água e o silêncio nas cidades, este último, objeto de
estudo desse trabalho. O progresso implica no aumento da produção do ruído, onde os
principais vilões da poluição sonora em cidades são o tráfego e a construção civil, explicados
pela necessidade de transporte e habitação. A instalação do comércio e da indústria, em áreas
antes estritamente residenciais, agrava ainda mais o problema, levantando o tema poluição
sonora e do direito ao silêncio como desafios da sustentabilidade para o meio ambiente
artificial.
A partir desta problemática, tem-se que a chamada poluição sonora deve ser entendida
como um subproduto da civilização tecnológica e urbana, capaz de produzir incômodo e
danos específicos ao organismo humano. A poluição acústica é considerada pela maioria da
população das grandes cidades como um fator ambiental muito importante, que incide de
forma principal na sua qualidade de vida. Na poluição ambiental urbana, o ruído ambiental é
uma conseqüência direta não desejada das próprias atividades que ocorrem nas grandes
cidades, cuja análise descritivo-interpretativa constitui objeto de estudo da presente pesquisa
acadêmica.
Assim, sob a ótica do Direito Ambiental, este trabalho tem por objetivo fornecer uma
visão multidisciplinar da poluição sonora e do direito ao silêncio como desafios da
sustentabilidade para o meio ambiente artificial, no contexto do novo constitucionalismo
latino americano. Sua construção metodológica se inicia com a abordagem dos aspectos gerais
dos conceitos de som, vibração, ruído e suas respectivas variantes com os fundamentos da
Física, a partir de onde se pode estabelecer a relação entre o chamado “som indesejável” e os
danos à saúde humana.
Num segundo momento, parte-se para o estudo da poluição sonora dentro do Direito,
sendo fundamental o conhecimento do seu histórico jurídico, cujos direitos e deveres da
atualidade encontram-se presentes na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988,
nas resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA, bem como no novo
constitucionalismo latino americano. Neste mesmo contexto, são analisados os instrumentos
legais de controle à poluição, que dispõem sobre a classificação dos ruídos urbanos, da
proteção ao bem-estar social, bem como do planejamento ao sossego público, todos pautados
pela referencia da sustentabilidade.
Por fim, são levantados alguns casos pontuais empíricos da gestão administrativa do
Ministério Público e da jurisprudência pátria, que, em conjunto com os demais pontos deste
trabalho, revelam novos direcionamentos do estudo latino americano, tanto do ponto de vista
jurídico, quanto físico-cultural, sobre a poluição sonora e o direito ao silêncio como desafios
da sustentabilidade para o meio ambiente artificial.
2. DEFINIÇÃO CONSTITUTIVA DE TERMOS IMPORTANTES PARA O
CONTEXTO DA PESQUISA MULTIDISCIPLINAR
O conceito de som vem da Física, sendo este a vibração acústica capaz de provocar
sensações auditivas. Dentro deste amplo conceito, tem-se, em sentido mais restrito, a
vibração, assim caracterizada pelo movimento oscilatório, transmitido pelo solo ou por uma
estrutura qualquer (CALÇADA; SAMPAIO, 1998, p. 459). O ruído, por sua vez, constitui-se
como o som capaz de causar perturbação ao sossego público ou efeitos psicológicos e
fisiológicos negativos em seres humanos e animais. Assim, pode-se dizer que o som, como
poluição sonora, está associado ao “ruído estridente” ou ao “som não desejado”.
Isso significa que a poluição sonora se faz presente quando a emissão de um som ou
ruído que seja, direta ou indiretamente, ofensivo ou nocivo à saúde, à segurança e ao bem
estar da coletividade, valendo ressaltar que, embora o conceito de som seja perfeitamente
definido pela Física, o conceito de “som não desejado” (como poluição) é muito relativo. Por
exemplo, para muitos, um show de rock não passa de uma fonte extraordinária de poluição
auditiva; para outros, é a pura expressão da arte musical contemporânea. (LACERDA, 2005,
p. 85).
Para fins práticos, o som é medido pela pressão que ele exerce no sistema auditivo
humano. Na medida em que essa pressão provoca danos à saúde humana, comportamentais ou
físicos, ela deve ser tratada como poluição, sendo a medida da intensidade do som feita em
decibéis (dB), unidade proposta por Graham Bell. A partir desta breve apresentação dos
termos, é interessante recordar alguns dos principais elementos da Física, relativos ao som.
3. A FÍSICA E O SOM – ALTURA, TIMBRE E INTENSIDADE PARA ALÉM DO
DIREITO
O som propaga-se a diferentes velocidades, em função do meio – no ar, ele se propaga
a 345 m/s; na água, a 1.430 m/s; e, no vácuo, não há propagação, pois o som é uma onda
mecânica (EIGER, 2005, p. 208). O som possui três qualidades essenciais: a altura, o timbre e
a intensidade. A qualidade que permite a uma pessoa classificar um som como mais grave
(mais baixo) ou mais agudo (mais alto) que outro é denominada altura do som. Essa
qualidade fisiológica está intimamente ligada com a propriedade física chamada de
“freqüência”. Assim, quanto maior for a freqüência de um som, tanto mais agudo ele será.
Analogicamente, quanto menor for a freqüência, tanto mais grave será o som.
Por isso, “é comum se dizer que, de um modo geral, a voz da mulher é mais aguda que
a do homem, ou, reciprocamente, a voz do homem é mais grave que a da mulher, pois a voz
da mulher apresenta freqüências compreendidas entre 200 e 400 Hz; e, a do homem, entre 100
e 200 Hz”. (CALÇADA; SAMPAIO, 1998, p. 522).
Por outro lado, quando um instrumento musical emite uma nota, o som emitido é, na
verdade, uma onda sonora resultante da superposição de várias vibrações com diferentes
freqüências e intensidades. Conforme o instrumento, variam em intensidade os harmônicos
que acompanham o som fundamental, determinando o timbre do referido instrumento. Por
isso distinguimos perfeitamente uma mesma nota “dó” emitida por um violino ou por um
piano, por exemplo.
A intensidade, por sua vez, depende da amplitude do movimento vibratório; da
superfície da fonte; da distancia entre o ouvido e a fonte; e, da natureza do meio entre a fonte
e o receptor. Tudo isso condiciona dizer se o som é forte ou fraco.
A seguir, apresenta-se uma série de sons, acompanhados de seu nível de intensidade
(LACERDA, 2005, p. 92): próximo ao silêncio total – 0 dB; um sussurro – 15 dB; conversa
tranqüila – 40 dB; voz humana (alta) – 75 dB; uma máquina de cortar grama – 90 dB; ruído
do metrô – 90 dB; caminhão – 100 dB; buzina de um automóvel – 110 dB; trovão – 120 dB;
turbina de avião – 130 dB; um tiro ou um rojão – 140 dB.
Um dos grandes e graves problemas de nossa sociedade tecnológica é a poluição
sonora. Vive-se num mundo em que, culturalmente, o normal é o ruído ou o barulho
constante. O silencio é uma rara exceção. Por isso, o número de pessoas com deficiências
auditivas aumenta assustadoramente, verificando-se que o ouvido humano, submetido
continuamente a sons de nível de intensidade superior a 80 dB, sofre lesões irreparáveis e
irreversíveis, que causam um déficit na audição. A partir de aproximadamente 120 dB, a
sensação já passa a ser de dor, além dos problemas causados.
4. O RUÍDO E OS DANOS À SAÚDE HUMANA: QUESTÕES DE INTERESSE
PÚBLICO
Interesse público, interesse coletivo e interesse privado são conceitos auto-referentes e
complementares entre si. O interesse público é valor construído a partir de referência a
variados conteúdos constitucionais, mas só se aperfeiçoa com a concretização dos efeitos
pretendidos. (SANTOS, 2012, p. 2140). Para compreender melhor os impactos do ruído na
saúde humana, é importante uma pequena descrição do sistema auditivo, como bem lecionam
Caio Sérgio CALÇADA e José Luiz SAMPAIO (1998, p. 453-454):
O ouvido humano é um dispositivo que tem a capacidade de receber as ondas sonoras e transformá-las em sensações que denominamos de sons. Ao ser atingido por uma onda sonora, o tímpano passa a vibrar com a mesma freqüência, determinando um movimento vibratório que, por meio dos ossículos do ouvido (martelo, bigorna e estribo), é transmitido para determinada janela oval e daí para o ouvido interno, onde se converte num impulso nervoso enviado ao cérebro, por meio do nervo auditivo, dando-nos a sensação do som.
Isso significa que o campo auditivo está restrito ao limite de audição e ao limite da
dor. E, a poluição sonora, mesmo em níveis exagerados, produz efeitos moderados e
imediatos na zona de sensibilidade do ouvindo, motivos pelos quais seus efeitos atuam no
corpo lentamente e, somente com o passar do tempo, se percebem alterações como a surdez
que vem às vezes acompanhada de desequilíbrios psíquicos e de doenças degenerativas.
Uma série de pesquisas mostra os efeitos dos sons excessivos na saúde humana. Como
exemplo, pode-se citar o estudo denominado “Ambiente urbano e percepção da poluição
sonora”, cuja pesquisa (LACERDA, 2005, p. 88):
avaliou a percepção da população de uma grande cidade em relação à poluição sonora (ruído urbano). Buscou-se identificar quais fontes sonoras são percebidas com maior freqüência pela população e quais reações psico-sociais relacionadas ao ruído urbano são identificados por ela. Foi utilizado um questionário composto de questões fechadas, abrangendo aspectos demográficos e aspectos psico-sociais referentes ao ruído ambiental. Oitocentos e noventa e dois (892) indivíduos participaram da pesquisa. As principais fontes de ruído citadas pelos moradores como causadoras de incômodo foram: 1) o tráfego de veículos (67 %), 2) os vizinhos (33%), 3) o barulho de sirenes (23%), 4) o barulho de animais (21%) e 5) o barulho gerado pela construção civil (21 %). As principais reações psico-sociais foram: 1) irritabilidade (55%), 2) baixa concentração (28%), 3) insônia (20%) e 4) dor de cabeça (19%). Os resultados obtidos coincidem com dados obtidos em pesquisas desenvolvidas na Europa, EUA e no Brasil, de que a poluição sonora ambiental influencia a qualidade de vida da população, gerando reações psico-sociais importantes, como: 1) irritabilidade e 2) insônia. Estes podem estar na base de outras doenças (disfunções cardiovasculares), podendo interferir na saúde e no bem estar dos indivíduos em particular e de uma população urbana como um todo, gerando um problema de saúde pública.
Assim, muitas pessoas não conseguem identificar o ruído como um dos principais
agentes agressores e, cada vez mais, vão ficando desorientadas por não saberem localizar a
causa desse mal. Os termos saúde e ruído vêm sendo associados cada vez mais. Percebe-se
que, com o passar do tempo, fica evidente que o ruído interfere, de uma forma ou de outra, na
saúde do homem. Geralmente são interferências desagradáveis e, muitas vezes,
irrecuperáveis. Nesse contexto, é interessante notar que os efeitos do ruído na audição humana
podem ser divididos em três grupos (SANTOS, 2006, p. 223):
(i) Temporary Threshold Shift (TTS) – é a diminuição da sensibilidade auditiva, resultante de exposição a níveis de pressão sonora elevados. É uma alteração temporária, que é recuperada após um período de repouso auditivo; (ii) Trauma acústico – é a perda auditiva súbita, geralmente decorrente de exposição a ruído de impacto. É uma alteração irreversível; (iii) Perda Auditiva Induzida por Ruído (PAIR) – é conseqüência de uma exposição a ruído de alta intensidade, durante longos períodos (meses, anos).
Outros problemas associados ao ruído são desconforto, perturbações no trabalho e
perda de rendimento, associados ao incômodo que é acusado por níveis excessivos de ruído.
As condições gerais de existência humana, incluindo-se o estilo de vida, permitem a
possibilidade de exposição do ruído, por estar associado às formas sociocultural e
socioambiental.
5. A POLUIÇÃO SONORA, O MEIO AMBIENTE ARTIFICIAL E O DIREITO
AMBIENTAL BRASILEIRO
A poluição sonora consiste no conjunto de compressões e rarefações do meio em que
se irradia a partir da fonte emissora, sendo semelhante a uma onda que se propaga desde o
centro de um reservatório de água.
Celso Antônio Pacheco FIORILLO (2012, p. 328) classifica a poluição sonora
segundo os seus aspectos temporais da seguinte forma: (i) contínuo – pouca oscilação de
freqüência e acústica, que se mantêm constantes. É denominado ruído ambiental de fundo; (ii)
flutuantes – os níveis de pressão acústica e espetro de freqüência variam em função do tempo,
de forma periódica ou aleatória, como acontece no tráfego de automóveis de uma determinada
via pública; (iii) transitórios – o ruído se inicia e termina em período determinado; e, (iv) de
impactos – aumentos elevados de pressão acústica. São transitórios. É o caso de um avião que
ultrapassa a barreira do som.
A poluição sonora é o tipo mais difuso de poluição, pois em praticamente todos os
lugares onde o ser humano habita ou interage existe alguma forma de emissão de ruídos,
sendo por isso mais difícil identificar e controlar as suas fontes. Nesse sentido, Paulo Affonso
Leme MACHADO (2012, p. 779), leciona:
Como efeitos do ruído sobre a saúde em geral registram-se sintomas de grande fadiga, lassidão, fraqueza. O ritmo cardíaco acelera-se e a pressão arterial aumenta. Quando ao sistema respiratório, pode-se registrar dispnéia e impressão de asfixia. No concernente ao aparelho digestivo, as glândulas encarregadas de fabricar ou de regular os elementos químicos fundamentais para o equilíbrio humano são atingidas (como supra-renais, hipófise).
Novamente, Celso Antônio Pacheco FIORILLO (2012, p. 337) complementa o
raciocínio da seguinte forma:
De fato, os efeitos dos ruídos não são diminutos. Informam os especialistas que ficar surdo é só uma das conseqüências. Diz-se que o resultado mais traiçoeiro ocorre em níveis moderados de ruído, porque lentamente vão causando estresse, distúrbios físicos, mentais e psicológicos, insônia e problemas auditivos. Além disso, sintomas secundários aparecem: aumento da pressão arterial, paralisação do estômago e intestino, má irrigação da pele e até mesmo impotência sexual.
Acrescente-se que a poluição sonora e o estresse auditivo são os terceiros causadores
de maior incidência de doenças do trabalho (FARIAS, 2007, p. 567). Além disso, verifica-se
que o ruído estressante libera substâncias excitantes no cérebro, tornando as pessoas sem
motivação própria, incapazes de suportar o silêncio.
5.1. BREVE HISTÓRICO JURÍDICO
Avaliação do nível de ruído em ambientes é feita segundo dois critérios básicos:
conforto acústico e ocupacional (BORGES, 1976, p. 34). O conforto acústico foi fixado pela
Portaria do Ministério do Interior nº. 92, de 19 de junho de 1980, sendo esta a primeira das
normas gerais nacionais que procurou disciplinar a questão da:
emissão de sons e ruídos, em decorrência de quaisquer atividades industriais, comerciais, sociais ou recreativas, inclusive as de propaganda, obedecerá no interesse da saúde, da segurança e do sossego público, aos padrões, critérios diretrizes estabelecidos nesta Portaria. Consideram-se prejudiciais à saúde, à segurança e ao sossego público para os fins do item anterior, os sons e ruídos que: a) atinjam, no ambiente exterior do recinto em que têm origem, nível de som de mais de 10 (dez) decibéis – dB (A), acima do ruído de fundo existente no loco sem tráfego; b) independentemente do ruído de fundo, atinjam no ambiente exterior recinto em que tem origem, mais de 70 (setenta) decibéis – dB (A), durante o dia e 60 (sessenta) decibéis – dB (A), durante a noite; c) alcancem, no interior do recinto em que são produzidos, níveis de som superiores aos considerados aceitáveis pela Norma NB-95, da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, ou das que lhe sucederem.
O critério ocupacional, por sua vez, foi fixado pela Portaria do Ministério do Trabalho
nº. 3.214 R 15, de 08 de junho de 1978, tratando dos efeitos auditivos causados pelo ruído.
Para ruídos contínuos, foram estabelecidos os seguintes limites: 8 horas – 85 dB; 4 horas – 90
dB; 2 horas – 94 dB; 1 hora – 100 dB; 30 minutos – 105 dB; 15 minutos – 110 dB; 07
minutos – 115 dB, definindo-se, portanto, a relação tempo/decibéis para a ocupação laboral.
5.1.1. A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988
COMO REFERÊNCIA DO NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO
AMERICANO
A Constituição não regula apenas aspectos públicos, mas também aspectos privados
dos vários interesses sociais em disputa por capital simbólico. Por isso, o interesse público
resulta da interpretação da Constituição da República e do restante do ordenamento jurídico.
O interesse público é indeterminado, mas isso não o torna indeterminável; portanto, esse
conceito não é vazio e possui conteúdo normativo. (SANTOS, 2010, p. 2140). A Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988 – CR/88 contemplou a forma clássica de repartição
constitucional das competências entre os entes federativos: poderes expressamente
enumerados da União (arts. 21 e 22) e dos Municípios (art. 30), e poderes remanescentes
reservados aos Estados (§ 1º, do art. 25).
Além disso, a CR/88 acrescentou as competências políticas administrativas comuns
(art. 23) e as competências legislativas concorrentes (art. 24). Assim, nos termos do inciso VI,
do art. 23, a competência administrativa proteger o meio ambiente e combater a poluição em
qualquer de suas formas é comum à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios,
o que significa que dizer que todos são responsáveis e devem atuar.
No âmbito da competência legislativa, concorrem, em matéria de proteção ambiental e
controle da poluição (SANTOS, 2006, p. 234), apenas a União, os Estados e o Distrito
Federal, conforme disposto no inciso VI, do art. 24, sendo certo que a competência da União
limita-se ao estabelecimento de normais gerais (§ 2º, do art. 24), podendo os Estados e o
Distrito Federal legislarem a respeito somente na ausência dessas normas e enquanto durar
essa ausência (§§ 3º e 4º, do art. 24).
No que toca aos Municípios, possuem competência para suplementar, no que couber,
as legislações federal e estadual (inciso II, do art. 30). Contudo, ao fazê-lo, não podem
confrontar com as normas federais e estaduais. Nesse passo, vale transcrever a lição de Paulo
Affonso Leme MACHADO (2012, p. 789), ao enfocar especificamente a questão da poluição
sonora, no comentário sobre o tema “ruído”:
deve o Município pesquisar a existência de normas federais e estaduais sobre poluição sonora e, se existirem, exigir o cumprimento das mesmas. Contudo, pode o Município não só suplementar essas normas, com outras mais restritivas, como no interesse local inovar, ou seja, criar normas, quando as existentes forem insuficientes.
Consoante se verifica, sem sede de competência concorrente para legislar sobre
matéria ambiental, a competência suplementar municipal deve ser exercida dentro dos limites
estabelecidos pela legislação suplementada e, se necessário, poderá ser ainda mais restritiva,
nunca mais concessiva (MENHEM, 2004, p. 263).
No Constitucionalismo contemporâneo (neoconstitucionalismo), pode-se encontrar o
modelo prescritivo de Constituição entendida esta como norma. Nesta concepção, não há
diferenciação entre o plano do ser e do dever ser. A Constituição é um sistema normativo que
abriga valores, portanto a norma constitucional não é e nem pode ser portadora de qualquer
conteúdo. A Constituição constitui um acordo sobre os valores fundamentais que, positivados,
irradiam os seus efeitos por todo o ordenamento jurídico (DUARTE; POZZOLO, 2006, p.
89).
O Constitucionalismo contemporâneo caracteriza-se, principalmente, por se apresentar
como uma noção superadora do Estado de Direito Legislativo, que estruturou o
desenvolvimento do modelo liberal de Estado de Direito, caracterizado, especialmente por
uma Constituição que instrumentaliza limites ao poder, estabelecendo a sua organização
essencial (SANCHÍS, 1999, p. 17). Ao estabelecer a rematerialização dos documentos
constitucionais por meio da introdução, nestes, dos princípios, faz da Constituição uma
unidade material, uma ordem de valores protegida e estendida na sua realização por um
procedimento efetivo de controle da constitucionalidade das leis.
5.1.2. AS RESOLUÇÕES DO CONAMA E A TUTELA JURÍDICA PREVENTIVA
AO MEIO AMBIENTE ARTIFICIAL
A Resolução do CONAMA nº. 001, de 08 de março de 1990, estabelece que a emissão
de ruídos em decorrência de quaisquer atividades industriais, comerciais, sociais ou
recreativas, inclusive as de propaganda política, não devem ser superiores aos considerados
aceitáveis pela Norma NBR 10.151 – “Avaliação do Ruído em Áreas Habitadas Visando o
Conforto da Comunidade”, da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT.
Vale destacar que referida Resolução não se caracteriza como sendo uma norma
voltada para monitoramento e desenvolvimento de estratégias de longo prazo, visando a
redução da exposição sonora da população.
Nesse sentido, Denise da Silva de SOUZA (2004, p. 184) complementa, lembrando
que a Resolução “tenta abarcar as duas situações, ou seja, situações de curto prazo (por
exemplo: mediante reclamações) e situações de longo prazo (por exemplo, para fins de
planejamento do uso do solo e de avaliações de longo prazo)”.
A Resolução do CONAMA nº. 002, de 08 de março de 1990, instituiu em caráter
nacional o programa nacional Educação e Controle da Poluição Sonora – Silêncio. Entre seus
objetivos, está o de divulgar junto à população, através dos meios de comunicação
disponíveis, matéria educativa e conscientizadora dos efeitos prejudiciais causados pelo
excesso de ruído; e introduzir o tema “poluição sonora” nos cursos secundários da rede oficial
e privada de ensino, por meio de um Programa de Educação Nacional.
Aqui, Denise da Silva de SOUZA (2004, p. 185) afirma que “de acordo com a
experiência européia, esta divulgação é mais eficiente quando realizada em âmbito limitado
no espaço do que em campanhas nacionais, que são, em geral, ocasionais e limitadas no
tempo”.
A Resolução do CONAMA nº. 002, de 11 de fevereiro de 1993, por sua vez,
estabelece limites máximos de ruído com veículos em aceleração e na condição parado, para
motocicletas, motonetas, triciclos, ciclomotores, bicicletas com motor auxiliar e veículos
assemelhados, nacionais ou importados, sendo esta alterada pela Resolução do CONAMA nº.
268/00, sobre método alternativo para monitoramento de ruído de motociclos.
A Resolução do CONAMA nº. 020, de 07 de dezembro de 1994, instituiu a
obrigatoriedade do uso do “Selo Ruído” em eletrodomésticos produzidos e importados e que
gerem ruído no seu funcionamento.
Isso significa que a informação do “Selo Ruído” ao público pode orientar a escolha de
aparelhos eletrodomésticos com menos ruídos, levando os fabricantes a tomarem medidas
destinadas a reduzir as emissões sonoras dos aparelhos que são produzidos, contribuindo,
assim, para a redução da poluição sonora.
No que concerne ao tema das competências atribuídas constitucionalmente aos
Municípios, como visto no item acima 5.2 desta pesquisa, deve ficar consignado que, quando
se trata de legislar sobre matéria ambiental, adentramos na esfera da competência concorrente,
atribuída à União, aos Estados e ao Distrito Federal, nos termos do art. 24, da CR/88.
Dessa forma, cabe aos Municípios, apenas a função suplementar, nos termos do inciso
II, do art. 30, da CR/88, não tendo pertinência a invocação da competência para legislar sobre
interesse local, prevista no inciso I do mesmo art., para fins de estabelecer padrões mais
permissivos do que aqueles estabelecidos pela norma geral federal ou pela legislação estadual,
se houver.
Nesse sentido, apenas a título de exemplo, os art. 8 e 9, da Lei Municipal de Curitiba
nº. 10.625, de 19 de dezembro de 2002, dispõem que: (i) a realização de shows, concertos e
apresentações musicais de caráter cultural e artísticos, em áreas públicas ou particulares; bem
como (ii) a utilização das áreas dos parques e praças municipais com uso de equipamentos
sonoros, alto falantes, fogos de artifício ou outros meios que possam causar poluição sonora;
dependem, respectivamente, de prévio licenciamento ambiental da Secretaria Municipal do
Meio Ambiente, independente de outras licenças exigíveis.
Além disso, nos termos do art. 11 da mesma lei, não se compreendem, por exemplo,
como proibições de ruídos e sons produzidos: (i) por sinos de igrejas ou templos religiosos,
desde que sirvam exclusivamente para indicar as horas ou anunciar a realização de atos ou
cultos religiosos; (ii) por alarme sonoro de segurança, residencial ou veicular, desde que o
sinal sonoro não se prolongue por tempo superior à 15 minutos; (iii) por culto religioso,
realizado no período diurno e vespertino, desde que não ultrapasse o limite de 65 dB(A).
Assim, referidos exemplos significam que aos Municípios resta a possibilidade de
editar novas regras, mais restritivas, na medida em que, reconhecendo necessidades de seus
munícipes, podem reduzir os níveis de tolerância estabelecidos em norma geral federal ou na
forma supletiva estadual.
5.2. PLANEJAMENTO-CONTROLE E DIREITO AO SILENCIO COMO
DESAFIOS DA SUSTENTABILIDADE: REFLEXÕES NECESSÁRIAS
Ao possuir como escopo central a pessoa humana, a constituição Federal de 1988 tem
o homem, em todas as suas dimensões, como principal destinatário. O desenvolvimento
sustentável, centrado na pessoa humana, envolve como elementos essenciais o respeito dos
direitos humanos e das liberdades fundamentais, incluindo, entre outros, o sistema de governo
transparente e responsável, bem como a observância dos princípios democráticos que
presidem a organização do estado e se destinam a assegurar a legitimidade da sua autoridade e
a legalidade das suas ações (CANOTILHO, 2006, p. 329).
José Eli da VEIGA (2008, p. 191) indaga que o uso do termo “sustentabilidade”
carrega uma série de conceitos sobre os quais não existe, e não deve existir, definição
fechada, uma vez que a noção deve ser principiológica e não taxativa. Assim, após inúmeros
fóruns e debates acerca do que se pretende alcançar com a ideia de sustentabilidade, tem-se
que a expressão deve englobar a perspectiva de harmonia entre as dimensões “social, cultural,
ecológica, ambiental, territorial, econômica, política nacional e política internacional” (p.
171). Deve englobar, ainda, as noções de viabilidade e desejabilidade, tendo em vista que a
mera ideia de continuidade ou durabilidade decorrem de uma banalização e desgaste da
expressão “sustentabilidade”.
O termo "sustentável" agasalha concepções de possibilidade de sustento e mantença,
continuidade, permanência, dentre outras conotações ligadas a provimento ou disponibilidade
de recursos e condições para que um ser possa se manter realizando atividades que garantam a
sua sobrevivência. (NUSDEO, 2009, p. 144).
A análise teórica da sustentabilidade implica buscar a compreensão de uma
contradição intrínseca ao seu conceito. O desenvolvimento sustentável, ao mesmo tempo em
que busca manter as bases do capitalismo, busca a preservação ambiental. Alia-se ao
crescimento econômico o uso equilibrado dos recursos naturais, desde que se atente à
qualidade ambiental. A sustentabilidade é um princípio–instrumento da ordem econômica,
que busca alternativas e meios à guisa da redução da degradação ambiental. A imposição legal
impõe a busca de soluções alternativas aos empreendedores que minimizem os impactos
negativos ao meio ambiente (KÄSSMAYER, 2009, p. 115). Em outros termos, a
sustentabilidade é um princípio válido para todos os recursos tutelados pela esfera ambiental,
não se aplicando a recursos não-renováveis ou a atividades capazes de produzir danos
irreversíveis (RISTER, 2007, p. 297) como, por exemplo, do direito ao silencio.
A partir destas reformulações política, econômica e social voltadas para a
sustentabilidade, foram instituídos novos princípios diretivos de planejamento e programação,
definidos por Cristiane DERANI (2008, p. 232) como princípios-essência1 e princípios-base2,
para o desenvolvimento das atividades em todos os setores produtivos, que acabaram
inseridas na atual ordem constitucional brasileira, visando à conformidade com a proteção do
meio ambiente.
Nesse contexto, tem-se que o valor ambiental do direito ao silencio, também traduzido
pela expressão “tranquilidade sonora” pode ser tutelado processualmente pela via da ação
civil pública (FIGUEIREDO, 2011, p. 360). Em tal hipótese, todos os entes mencionados no
art. 5º da Lei 7.427/85 estarão legitimados para a propositura de ação visando a cessação da
poluição sonora. O Superior Tribunal de Justiça reconhece a competência do Ministério
Público para a defesa do interesse público3 a um meio ambiente artificial tranquilo. Referida
ideia de planejamento-controle, em conjunto com a análise empírica do direito ao silêncio,
será trabalhada no item a seguir, por meio de um levantamento de jurisprudência pátria e
atuação do MP a partir do novo constitucionalismo latino americano.
1 Referem-se a um bem essencial à existência da sociedade, “elegendo um ethos do comportamento social”. Exemplo: caput do artigo. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. Cf.: DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. p. 232-236. 2 “Prescrições destinadas a estruturar a organização da sociedade, ou de determinada atividade que a integra. São princípios que garantem à sociedade uma estrutura específica de atuação”. Exemplos: inciso III do artigo 170, referente à função social da propriedade; e, inciso IV do artigo 1º, referente à livre iniciativa, ambos da CF/88. Cf.: DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. p. 236-237. 3 Para compreensão do Interesse Público, recomenda-se a leitura da obra: GABARDO, Emerson. Interesse público e subsidiariedade: o Estado e a sociedade civil para além do bem e do mal. Belo Horizonte: Fórum, 2009.
5.3. ANÁLISE CRÍTICA DA JURISPRUDENCIA PÁTRIA E DA ATUAÇÃO DO
MINISTÉRIO PÚBLICO A PARTIR DO NOVO CONSTITUCIONALISMO
LATINO AMERICANO
O reconhecimento de um conjunto de princípios historicamente situados e que
influenciam as decisões do universo do Direito, pelo que, a ele acabam sendo internas,
expandindo o constitucionalismo nos rumos do neoconstitucionalismo (DUARTE;
POZZOLO, 2006, p. 55). Apesar desta consagração na linguagem coloquial metafórica, o
Superior Tribunal de Justiça4 entende que a conduta de provocar ruído, zoada, barulho ou som
alto, ainda que muito acima do volume permitido, não se enquadra no art. 54, da Lei nº. 9.605,
cuja redação assim dispõe: “causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem
ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais
ou a destruição significativa da flora”.
É inegável que o atual momento da teoria jurídica e, especialmente, é importante
ressaltar, da teoria constitucional, implicam uma série de mudanças significativas na maneira
de compreender, conceituar e aplicar o direito. Essa é uma transformação paulatina que vem
sendo percebida de maneira mais impactante por teóricos europeus e latino-americanos.5
Este entendimento segue a linha de que referida lei, dispondo sobre as sanções penais
e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, tem por
escopo a preservação do meio ambiente. Isso significa dizer que, para a caracterização do
delito previsto no referido artigo da lei em comento, a poluição gerada deve ter o condão de,
ao menos, poder causar danos à saúde humana, fato inocorrente6 com a simples conduta de
realizar atividades com a emissão de sons e ruídos.
Além do art. 54 da Lei nº. 9.6057, de 12 de fevereiro de 1998, dentre os poucas
referencias de jurisprudência sobre poluição sonora, tem-se destaque para o caso de emissão
de ruído sonoro acima do permitido na legislação, onde é imposta a condenação do
responsável pela poluição sonora em indenização por danos morais às vítimas do ato ilícito.
4 STJ, Habeas Corpus nº. 60.654 – PE. Processo nº. 2006/0123484-1. Relator Ministro Nilson Naves. j. 11.12.2008. p. 09.03.2009. 5 O Constitucionalismo Americano e Anglo-Saxão (Common Law) percebem as mudanças, mas não com tanta contundência quanto os sistemas de Civil Law que as percebem com um impacto diferenciado no sentido de que esses sistemas possuíram uma construção jurídica baseada em um apego mais forte à lei como estrutura formal, enquanto aqueles sistemas já estavam mais acostumados a perceber o direito também como fruto de uma construção de raciocínios jurídicos cristalizados nos precedentes judiciais. 6 STJ, Habeas Corpus nº. 54536 – MS. Processo nº. 2006/0032046-2. Ministro Felix Fischer. j. 06.06.2006. p. 01.08.2006. 7 Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente.
Parecendo razoável, portanto, caracterizar o dano moral pelos seus próprios elementos,
como a privação ou diminuição daqueles bens que têm um valor precípuo na vida do homem
e que são a paz, a tranqüilidade de espírito, a liberdade individual, a integridade individual, a
integridade física, a honra e os demais sagrados afetos8.
Nesse mesmo sentido, ilustra-se a ementa9 abaixo, onde, segundo a respectiva súmula,
negaram provimento ao primeiro apelo, mas deram provimento ao segundo, sendo vencido o
desembargador vogal:
BAR. POLUIÇÃO SONORA. COMPROVAÇÃO. REINCIDÊNCIA. PERTURBAÇÃO DA PAZ. SUSPENSÃO DAS ATIVIDADES. DANO MORAL DEVIDO. FIXAÇÃO COM PRUDENTE ARBÍTRIO. A sonorização de bares e restaurantes que não contenham isolamento acústico deve-se restringir ao ambiente interno, sendo ilegal e poluidora aquela que ultrapassa os limites do ambiente interno e perturba a paz da coletividade, notadamente após as 22 horas.
Neste caso, é importante ressaltar que, quanto ao valor fixado a título de dano moral,
este foi firmado de forma equilibrada, de modo a não causar um enriquecimento ilícito aos
ofendidos e, ao mesmo tempo, servindo como punição sócio-educativa ao causador do dano.
O volume do som e os ruídos provocam, sem dúvida alguma, uma relevante poluição,
assim compreendida como toda alteração das propriedades naturais do meio ambiente causada
por agente de qualquer espécie, prejudicial à saúde, à segurança ou ao bem-estar da população
sujeita aos seus efeitos.
A partir deste contexto, é possível se afirmar que o Ministério Público possui
legitimação ativa para promover a ação civil pública, em defesa de interesses difusos da
sociedade, visando afastar poluição sonora, conforme ementa abaixo:
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. POLUIÇÃO SONORA. ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE ATIVA. I - O órgão do Ministério Público tem legitimação para promover a ação civil pública para a defesa de interesses difusos da sociedade, visando afastar poluição sonora. II - Ao Município compete proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas, conforme dispõe o artigo 23, VI, da Constituição Federal. Remessa e apelo parcialmente providos10.
8 TJMG, Apelação Cível nº. 1.0188.05.035859-0/001. Processo nº. 1.0188.05.035859-0/001(1). Relator Desembargador Adilson Lamounier. j. 25.10.2007. p. 14.11.2007. 9 TJMG, Apelação Cível, Processo nº. 1.0024.06.031055-4/001. Relator Juiz Antônio de Pádua. j. 10.08.2007. p. 01.09.2007. 10 TJGO, Duplo Grau de Jurisdição nº. 15206-7/195. Processo nº. 2007/02140494. Relator Desembargador Carlos Escher. 4ª Câmara Cível. j. 29.09.2007.
Segundo o STJ11, a questão em exame não necessita de maiores ilações, máxime
porque o Ministério Público ostenta legitimidade para propor ação civil pública em defesa do
meio ambiente, inclusive, na hipótese de poluição sonora decorrente de excesso de ruídos,
com fundamento nos termos do inciso III, do art. 129, da CR/88, bem como dos incisos I e IV,
do art. 1º, combinados com o art. 5º, ambos da Lei nº. 7.34712, de 24 de julho de 1985.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em resposta à problemática apresentada, podem ser extraídas algumas conclusões
articuladas, com as quais se pretende contribuir para o debate desse importante tema:
(i) o caráter diferencial desse novo constitucionalismo latino americano, entre
outros aspectos, se concentra na singularidade do fenômeno da constitucionalização dos
ordenamentos jurídicos contemporâneos, promovido ante uma Constituição que se
caracterizará por seu caráter principiológico;
(ii) o embasamento da competência comum em matéria ambiental, suporte do
princípio do desenvolvimento com sustentabilidade, decorre do caput do art. 225 da CR/88,
segundo o qual “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso
comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à
coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”;
(iii) silencio é o direito que todo cidadão tem para poder viver em harmonia social.
Ninguém pode desrespeitar o sossego alheio em sua residência ou local de trabalho. O barulho
aceitável é aquele previamente estabelecido na legislação (em sentido amplo) vigente de cada
país. Ultrapassar estes limites significa não apenas adentrar no direito alheio, mas, também,
comprometer o planejamento-controle de responsabilidade de todos e o direito ao silencio
como interesse público.
(iv) os efeitos da poluição sonora – para além do tempo e do espaço – são de resto
ainda pouco estudados, porque é difícil se compreender uma forma de agressão que só se
manifesta como resultado de uma exposição costumeiramente prolongada; e, que, por isso,
sofre a interferência de um elevado número de variáveis difíceis ou impossíveis de se
controlar;
11 STJ, Recurso Especial nº. 858.547 – MG. Processo nº. 2006/0133366-1. 1ª Turma. Relator Ministro Luiz Fux. j. 12.02.2008. p. 04.08.2008. 12 Disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (vetado), e dá outras providências.
(v) o problema da poluição sonora, por ganhar contornos de saúde pública, merece
uma atenção mais rigorosa, em virtude das graves conseqüências que ocasionam para o
conjunto da sociedade, reforçando-se o debate em torno do novo constitucionalismo
americano para esta temática do direito ao silencio como interesse público.
(vi) verifica-se a necessidade não apenas de um debate em torno do processo de
implemento de políticas públicas de gestão da poluição sonora, mas, também, a uma análise
mais acurada dos dispositivos normativos, que podem reduzir os níveis de tolerância
estabelecidos em norma geral federal ou na forma supletiva estadual, sem omissão, é claro,
dos raros, mas interessantes e curiosos registros de jurisprudência dos tribunais pátrios;
Em geral, a poluição sonora está efetivamente na origem de um enorme número de
problemas para todos aqueles que de uma forma ou de outra beneficiam do maravilhoso
sentido da audição. Trata-se, na realidade, de uma questão cultural, onde o primeiro passo se
firma na tomada de consciência de que este é um problema em que somos a causa, uma das
vítimas e a única solução.
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