Júlio de Castilhos Sarubbi da Cunha Neto
ESPORTE NA TV: NARRATIVA, O CANAL DO ESPETÁCULO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras – Mestrado, Área de
Concentração em Leitura e Cognição, Universidade
de Santa Cruz do Sul – UNISC, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre em Letras.
Orientadora: Profª. Drª. Eunice Terezinha Piazza Gai
Santa Cruz do Sul, junho de 2007
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Catalogação: Bibliotecária Solange Padilha Ortiz CRB 10/1211
C972e Cunha Neto, Júlio de Castilhos Sarubbi da
Esporte na tv : narrativa, o canal do espetáculo / Júlio de Castilhos Sarubbi
da Cunha Neto; orientadora, Eunice Piazza Gai. - 2007.
152 p. : il.
Dissertação (mestrado) – Universidade de Santa Cruz do Sul, 2007.
Bibliografia.
1.Telejornalismo. 2. Teledifusão esportiva. 3.Narrativa (Retórica) 4.Gêneros literários. 5. Metáfora. 6.Cognição. I. Gai, Eunice Piazza. II. Universidade de Santa Cruz do Sul. Programa de Pós-Graduação em Letras.
CDD: 070.195
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AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos aqueles que, nestes últimos dois anos, colaboraram de alguma
forma para a realização deste trabalho. As palavras de incentivo, os conselhos nos
momentos certos e a compreensão das dificuldades por mim enfrentadas deram-me forças
para vencer este que, sem dúvidas, mostrou-se o maior desafio a já cruzar meu caminho. É
a lembrança mais marcante que guardo de colegas, professores, amigos e familiares neste
período de provação.
Estendo meus agradecimentos à Coordenação do Mestrado em Letras da
Universidade de Santa Cruz do Sul, pela aposta em minha pessoa para integrar a primeira
turma de mestrandos deste curso; e, da mesma forma, à CAPES – Fundação Coordenação
de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior – por conceder-me a bolsa de estudos, sem
a qual meu retorno aos bancos acadêmicos se tornaria inviável.
Para finalizar, deixo nestas linhas um agradecimento especial à minha orientadora,
Profª. Drª. Eunice Terezinha Piazza Gai, pela lealdade demonstrada ao longo da elaboração
desta pesquisa. Além de me abrir os horizontes da narratologia, sua contribuição mais
significativa veio do companheirismo e da confiança em mim depositada desde a escolha do
tema norteador do presente estudo. Certamente, foi a fonte da qual busquei as forças
necessárias para chegar ao fim desta jornada.
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O milagre não é dar vida ao corpo extinto,
Ou luz ao cego, ou eloqüência ao mudo...
Nem mudar água pura em vinho tinto...
Milagre é acreditarem nisso tudo!
Mario Quintana
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RESUMO
Esta dissertação apresenta como objeto de estudo a reportagem esportiva de
televisão. Sua finalidade consiste em encontrar na estrutura desse gênero textual elementos
constitutivos da narrativa literária e, posteriormente, explicar de que forma essa relação
exerce influência no processo cognitivo de elaboração e transmissão da mensagem advinda
da mídia eletrônica. A metodologia empregada envolve a análise de reportagens de TV –
previamente selecionadas pelo autor deste trabalho – segundo os pressupostos de
importantes estudiosos da narrativa e do fenômeno lingüístico da metáfora. As teorias
utilizadas como referência nesse procedimento evidenciam no texto televisivo aspectos
normalmente observáveis nas páginas da ficção, como o ponto-de-vista do narrador, o
personagem heróico e o tempo e espaço narrativo. A forma como se dá a sobreposição dos
dois gêneros textuais permite, ainda, compreender a transformação da linguagem
telejornalística em espetáculo, sobretudo no tocante aos eventos esportivos tratados como
notícia. Ao unir a informação ao imaginário, a reportagem de TV fornece à audiência um
simulacro da realidade, um retrato do mundo mais belo e emocionante do que a experiência
empírica é capaz de comprovar.
Palavras-chave: telejornalismo, narrativa, gêneros textuais, metáfora, cognição.
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ABSTRACT
This dissertation presents as its subject of study the television sports report. Its purpose
consists in identifying constitutive elements from literary narrative in that textual genre
structure and, afterward, explaining how this relation influences upon the cognitive process of
electronic media message elaboration and transmission. The methodology applied here
comprehends the analysis of TV reports – previously selected by this study’s author –
according to the postulate from important theorists of narrative and the linguistic
phenomenon of metaphor. The ideas used as references during this procedure give
evidence in the television text to some aspects usually observable in the fiction work’s pages,
such as the narrator’s point-of-view, the heroic character and narrative time and space. The
way the two textual genres overlay each other even allows to understand the transformation
of the journalistic language into a spectacle, especially when it refers to the sportive events
treated as news. Linking information to the imaginary, television report gives to the audience
a reality-based simulacrum, a world perspective much more beautiful and exciting than
empirical experience is able to prove.
Key-words: telejournalism, narrative, textual genres, metaphor, cognition.
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
1 Hibridização textual ........................................................................................................... 25
2 Sistema de redação estilo pirâmide invertida .................................................................... 35
3 Composição do signo lingüístico de Saussure .................................................................. 44
4 Significação verbal da linguagem televisiva ...................................................................... 43
5 Significação não-verbal da linguagem televisiva ............................................................... 48
6 Emissão metafórica na edição telejornalística ................................................................... 52
7 Circuitos do foco narrativo literário .................................................................................... 77
8 Circuitos do foco narrativo jornalístico ............................................................................... 78
9 Significação metafórica nas reportagens 1 e 2 .................................................................. 86
10 Imagem como ato de significação ................................................................................... 88
11 Triângulo significativo da Reportagem 3 ......................................................................... 89
12 Percurso dos heróis na Reportagem 2 .......................................................................... 103
13 Tempo da história na Reportagem 1 ............................................................................. 120
14 Tempo da história na Reportagem 2 ............................................................................. 121
15 Tempo da história na Reportagem 3 ............................................................................. 122
16 Tempo do discurso na Reportagem 1 ........................................................................... 124
17 Tempo do discurso na Reportagem 2 ........................................................................... 125
18 Tempo do discurso na Reportagem 3 ........................................................................... 127
19 Dimensão espacial na Reportagem 1 ............................................................................ 134
20 Dimensão espacial na Reportagem 2 ............................................................................ 135
21 Dimensão espacial na Reportagem 3 ............................................................................ 136
22 Hibridização textual das reportagens analisadas .......................................................... 138
9
LISTA DE TABELAS
1 Associação entre texto e imagem na reportagem televisiva ............................................. 39
2 Classificação das reportagens do corpus .......................................................................... 60
3 Transcrição da Reportagem 1 ........................................................................................... 63
4 Transcrição da Reportagem 2 ........................................................................................... 67
5 Transcrição da Reportagem 3 ........................................................................................... 71
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12
1 GÊNEROS TEXTUAIS: A MANIFESTAÇÃO DO CONHECIMENTO ................................
18
1.1 Os gêneros textuais na organização da linguagem ........................................................ 20
1.1.1 A hibridização textual ................................................................................................... 23
2 A REPORTAGEM DE TV: TEXTO, IMAGEM E METÁFORA ........................................... 27
2.1 A produção da notícia ..................................................................................................... 29
2.1.1 A pauta esportiva ......................................................................................................... 32
2.2 O texto jornalístico de TV ............................................................................................... 34
2.2.1 O texto em acordo com a imagem ............................................................................... 37
2.3 A edição da reportagem televisiva .................................................................................. 40
2.3.1 Metáfora e edição ........................................................................................................ 43
3 ERA UMA VEZ NOS GRAMADOS E NAS PISTAS DE CORRIDA ...................................
53
3.1 Por que narrativa? .......................................................................................................... 54
3.2 A composição do corpus ................................................................................................ 59
3.2.1 Esporte, uma paixão nacional ..................................................................................... 61
3.2.2 O esporte na tela ......................................................................................................... 63
3.3 Narrativa no ar: o esporte como notícia .......................................................................... 74
3.3.1 Repórter: o olhar de quem narra ................................................................................. 75
3.3.1.1 A metáfora do contar e do mostrar ........................................................................... 82
3.3.2 Os heróis do esporte ................................................................................................... 90
3.3.3 A dimensão episódica ................................................................................................ 104
3.3.4 A dimensão temporal ................................................................................................. 117
11
3.3.5 A dimensão espacial .................................................................................................. 130
3.3.6 Hibridização, de fato .................................................................................................. 137
4 O ESPETÁCULO NARRATIVO DO ESPORTE NA TV ................................................... 140
4.1 Narrativa como espetáculo ........................................................................................... 143
4.2 A supremacia da estética ............................................................................................. 146
REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 149
12
INTRODUÇÃO
Logo em meus primeiros dias como estudante universitário, uma incursão pela
biblioteca fez-me deparar com uma curiosa afirmação acerca da carreira pela qual me
apaixonara. Nas páginas iniciais de um pequeno livro, assim estava escrito: “Jornalismo,
independentemente de qualquer definição acadêmica, é uma fascinante batalha pela
conquista das mentes e corações de seus alvos: leitores, telespectadores ou ouvintes”
(ROSSI, 1984, p. 7). O caráter intrigante de tal premissa reside nem tanto naquilo que
sustenta, mas – predominantemente – no que deixa de exaltar. Uma vez referente à
atividade noticiosa, o conceito acima causa surpresa ao ignorar o bem primordial desse
campo de trabalho: a informação.
Isso significa que a transmissão de notícias, por si só, já não basta para resumir a
práxis jornalística? De acordo com a metáfora que converte o jornalismo numa batalha, é
preciso ir além do modelo de comunicação tão pesquisado nos bancos acadêmicos: mais do
que conduzir a mensagem por um canal que a leve do emissor ao receptor, deve-se ainda
trabalhá-la, maquiá-la, enfim, torná-la atrativa ao maior número possível de pessoas. Mas
como fazer com que um só enunciado supere a complexa ontogênese de cada indivíduo e
repercuta de maneira homogênea no contingente populacional participante desse diálogo?
Assim como qualquer atividade realizada na linguagem, espera-se que o jornalismo
recorra à construção textual como ferramenta para materializar o conhecimento e transmiti-
lo a outrem. Considerando-se a propriedade referencial da notícia, cabe a repórteres,
editores e redatores a missão de apreender os fatos ocorridos numa dada realidade social e,
através da codificação lingüística, torná-los plenamente assimiláveis pela capacidade
cognitiva do grupo de receptores almejado. É evidente que esse processo de significação
não percorre um único caminho. Dentre as infinitas possibilidades de conferir sentido a um
evento testemunhado em seu estado bruto, os jornalistas necessariamente optarão por
aquelas que tornam a notícia uma leitura digna de curiosidade.
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Desse modo, acredito que a palavra, no ofício jornalístico, seja realmente a arma mais
poderosa a ser empregada na conquista de corações e mentes. Se, por um lado, a ética
exige do texto noticioso o maior grau de fidelidade possível aos eventos sociais geradores
de informação, também é indiscutível que esses mesmos acontecimentos estejam sujeitos a
interpretações. É nesse hiato entre o fato e sua versão que os jornalistas investem a
criatividade: selecionam os aspectos componentes da notícia, valorizam uns em detrimento
de outros e, assim, estabelecem uma hierarquia de conteúdos na superfície textual. Eis a
fórmula da manchete que “vende” o jornal ou da chamada capaz de manter a audiência
atenta perante a televisão.
Essa dualidade entre o real e o textual tem me despertado o interesse não apenas em
meus esforços investigativos referentes à linguagem jornalística, como também no meu
exercício profissional enquanto repórter televisivo. Pois na mídia eletrônica a palavra recebe
um reforço fundamental para persuadir a opinião pública: a imagem, por sua vez carregada
de um apelo emocional tão ou mais eficiente. O artifício audiovisual, de fato, é o que
diferencia a linguagem do telejornalismo da empregada pelos demais meios de
comunicação de massa e, comparativamente, incide com maior intensidade sobre as
capacidades sensoriais humanas. Afinal, numa mesma construção significativa o texto
falado e as cenas capturadas pela câmera adotam, entre si, uma postura complementar
para que o espectador sinta-se intimamente ligado à versão do mundo que lhe é
apresentada. Não é por acaso que os acontecimentos mais marcantes da atualidade
perpetuaram-se na memória coletiva através das mensagens transmitidas na tela: as
pessoas, no conforto de suas casas, viram admiradas o homem pisar na Lua, mísseis
bombardear o Iraque e as torres gêmeas de Nova York tombar ante a mais audaciosa ação
terrorista da História. Entretanto, são incapazes de lembrar com igual precisão das palavras
impressas em jornais ou revistas no tocante a esses mesmos fatos.
A cumplicidade entre o verbal e o visual é observável, principalmente, na mais
complexa modalidade de notícia em TV, isto é, a reportagem. Isso porque a junção desses
componentes sígnicos vai ao encontro de uma das mais urgentes necessidades das
emissoras: condensar, em poucos minutos de programação televisiva, o máximo possível de
informações referentes aos “principais fatos do dia”, sem que estas percam sua atratividade.
Assim, a voz do repórter dita o ritmo das imagens e sons registrados in loco na realidade
objetiva, resumindo-os e interpretando-os num encadeamento lógico de início, meio e fim.
Nesse mesmo espaço restrito temporalmente, o espectador assiste atentamente a um
universo particular de cores e movimentos construído especialmente para impressioná-lo.
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Dentre os temas predominantes do processo diário de elaboração e veiculação de
reportagens, considero o esporte aquele que mais intensamente dialoga com os
sentimentos dos indivíduos componentes da audiência. E a explicação para isso reside na
própria natureza das competições esportivas regularmente transmitidas pela TV. A disputa,
qualquer que seja a modalidade, lida com um número considerável de emoções: a alegria
dos vencedores, a frustração dos vencidos, o desejo de superar um obstáculo e o temor de
ser subjugado pelas adversidades não coexistem apenas em quadras, campos, raias e
pistas, mas também contagiam as arquibancadas e os sofás das salas de estar,
aproximando afetivamente os desportistas dos espectadores. É preciso ressaltar que, na
maioria das vezes, os competidores levam consigo o nome de seu país, estado ou
comunidade de torcedores, elevando essa afinidade a uma escala ainda maior. O atleta,
com isso, torna-se o representante de uma identidade cultural que busca a supremacia
sobre as demais.
Logo, o que esperar de repórteres e editores televisivos senão fazer uso do apelo
emocional inerente ao esporte como um chamariz para alcançar parcelas cada vez maiores
de público? Tenho observado, diariamente, que os programas esportivos tendem a conduzir
suas reportagens além do jogo em si. Tão importante quanto o placar final de uma partida
ou saber quem cruza primeiro a linha de chegada tem sido acompanhar as ações e os
sentimentos daqueles que perseguem os resultados. É como numa história, centrada em
personagens de caráter heróico e suas respectivas aventuras. As ilhas de edição unem
texto, voz e imagem para contar em segundos a saga do craque de futebol que livrou seu
time da derrota ou a difícil infância do atleta que persistiu na vida até sagrar-se campeão. O
noticiário esportivo, assim, chega aos olhos e ouvidos do público mediante uma clara
aproximação com a dramaturgia. É por isso que, apesar de defenderem o compromisso com
a veracidade dos fatos, as empresas jornalísticas sempre estimaram – e seguem estimando
– aqueles repórteres capazes de “contar boas histórias”, que reconhecem nas ações mais
prosaicas um lampejo de humanidade através do qual conduzirão sua atividade
interpretativa.
Assim mesmo, não concordaria em enquadrar a reportagem telejornalística na
categoria das criações textuais de âmbito literário. O que proponho, nesta pesquisa, não é a
descoberta de um novo gênero de texto. Reportagens sempre estarão encerradas nas
fronteiras do jornalismo, haja visto que vislumbram na informação referente à realidade
concreta o seu bem maior. Contudo, intriga-me a forma que o todo significativo das matérias
televisivas de esporte assume para efetuar com êxito a construção de conhecimento e sua
15
posterior transmissão aos telespectadores. Minha hipótese, portanto, é de que a
aproximação com a literatura possa, de algum modo, explicar esse processo cognitivo.
Acredito que a narrativa seja o gênero que com mais propriedade se incorpora à
linguagem telejornalística, essencialmente no que diz respeito à estruturação de suas
construções textuais. E essa escolha de modo algum deve ser tomada como aleatória.
Refiro-me, acima de tudo, ao meio de expressão do conhecimento que tem vigorado desde
o início dos tempos. Nos primórdios da cultura greco-latina, os filósofos pré-socráticos já se
valiam do artifício narrativo para tornar público os nobres feitos dos heróis mitológicos.
A ciência, a história, a filosofia mostram que a matriz ainda é válida e que tudo na vida está para ser contado, e as imagens poéticas, vagas, incertas, nebulosas permeiam todos os discursos, para a glória ou o desdouro da raça humana. (GAI, 2005, p. 87).
Isso significa que o homem sempre soube ordenar lingüisticamente o conhecimento
observável no cotidiano. Não obstante, há correntes da Psicologia que atrelam essa prática
à sua própria configuração cognitiva. A mente humana, dessa forma, só reconhece outros
indivíduos, coisas, lugares e situações enquanto experiências narradas. Logo, não seria
exagero afirmar que tudo aquilo que desafia a capacidade de compreensão das pessoas
termina por se transformar numa história, uma seqüência de ações logicamente
organizadas. Ao dominar o incomum e submetê-lo à coletividade, a narrativa deixa a sombra
da literatura e ganha luz própria enquanto um importante recurso epistemológico.
Mediante o exposto até aqui, fica evidente que, neste estudo promovo um confronto
entre dois gêneros textuais distintos. E é exatamente nisso que reside meu objetivo primeiro:
localizar, na composição audiovisual da reportagem esportiva de TV, aspectos inerentes à
narrativa. Em complemento a isso, outra meta por mim traçada consiste no desvendamento
do papel dessa sobreposição de textos no processo de construção do conhecimento a ser
transmitido ao público.
Sendo o texto meu ponto de partida, convém começar situando-o enquanto
manifestação do conhecimento através da língua e, posteriormente, apontar seu modo de
atuação. Assim, no primeiro capítulo, tomo a teoria bakhtiniana como base para atestar a
plasticidade dos gêneros resultante de sua funcionalidade sócio-pragmática. Os
pressupostos utilizados nesse segmento comprovam que os mecanismos lingüísticos em
questão se redefinem constantemente, combinando-se entre si para fazer emergir novas
possibilidades de comunicação. A partir de Marcuschi (2002), amplio essa idéia ao
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desenvolver a noção de hibridização textual, através da qual demonstro como opera o
fenômeno lingüístico que leva um gênero de texto a assumir características de outro.
No segundo capítulo, trato de inscrever definitivamente a reportagem de TV na
categoria de gênero textual. Conceituando-a como uma construção lingüística voltada às
massas, realizo uma análise pormenorizada de seus aspectos constitutivos que a tornam
uma mensagem pretensamente universalizada. De início, faço uso de minha experiência
profissional e dos postulados de pesquisadores do Jornalismo para descrever os principais
passos para a elaboração da notícia – a matéria-prima de qualquer reportagem. A seguir,
destaco a relação entre o texto e a imagem como o grande diferencial do telejornalismo em
comparação com os demais meios de comunicação de massa. A incorporação de
dispositivos audiovisuais também é apontada como fator preponderante para a elaboração
textual da mensagem televisiva, uma vez que o verbal e o imagético não podem divergir,
sob a pena de pôr em risco a credibilidade do jornalista em sua tarefa diária de transmitir
informações.
Ainda no mesmo capítulo, reforço a análise da complementaridade estabelecida entre
texto e imagem. O viés teórico por mim desenvolvido consiste em demonstrar que o
processo de edição em telejornalismo pode ser considerado um fenômeno de significação
intimamente ligado à ação da metáfora. À luz da Semiologia de Saussure (1975), da
Semiótica de Peirce (1999), das considerações sobre as metáforas visuais de Carone Netto
(1974) e, por fim, do sistema metafórico criado por Searle (2002), busco comprovar que a
justaposição dos signos verbais e audiovisuais da reportagem apresenta um terceiro termo
que se distingue qualitativamente desses fragmentos, se dispostos de forma isolada.
O terceiro capítulo contempla a investigação por mim proposta e, por essa razão, é
também o mais denso do presente trabalho. Inicialmente, faço um breve esclarecimento
acerca do método de pesquisa utilizado e, em meio a isso, justifico mais minuciosamente a
opção pela narrativa como gênero norteador de minha análise textual. Neste ponto, retomo
seu relevante papel como ordenador da estrutura cognitiva humana e, conseqüentemente,
do conhecimento apreensível em suas condições naturais.
No momento seguinte, descrevo o corpus do estudo, ou seja, as três reportagens
telejornalísticas de esporte que selecionei para serem submetidas à aproximação com o
modelo diegético. Trata-se de matérias veiculadas em programas esportivos da Rede Globo
de Televisão, referentes a modalidades de competição de grande apelo junto ao público
telespectador: o futebol e o automobilismo. Estas produções textuais e imagéticas estão
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transcritas nesta dissertação de forma a fornecer ao leitor uma clara noção de suas
particularidades audiovisuais.
Para a identificação de elementos narrativos nas três reportagens selecionadas, utilizo
como referencial teórico os postulados de renomados autores, tais como Propp (1984),
Forster (1974), Eco (1994), e D’Onófrio (2004). A partir deles, divido a análise de acordo
com os principais elementos constitutivos da estrutura diegética, isto é, o foco narrativo, o
personagem heróico e as dimensões episódica, temporal e espacial. Esse método de estudo
possibilita-me comprovar a hibridização existente entre os dois gêneros de texto aqui
confrontados.
Por fim, o quarto capítulo traz as considerações conclusivas desta dissertação. Nele,
busco evidenciar que a estruturação narrativa da reportagem resulta em sua transformação
numa espécie de espetáculo midiático, marcado pela mescla do drama e da informação
numa mesma unidade textual. Discorro, ainda, sobre as implicações desse predomínio da
forma sobre o conteúdo para a conquista da audiência.
Este trabalho, elaborado para a conclusão do curso de Mestrado em Letras da
Universidade de Santa Cruz do Sul – área de concentração em Leitura e Cognição – pode
ser considerado um estudo de caráter transdisciplinar, uma vez que se mostra receptivo a
contribuições oriundas de diferentes áreas do saber. Trata-se, de fato, de uma abordagem
coerente ao tema proposto nestas linhas: a tendência da cultura midiática tem sido
incorporar à sua linguagem uma diversidade crescente de gêneros, exigindo do homem, em
sua eterna busca por conhecimento, uma flexibilidade epistemológica cada vez maior para a
compreensão do grande mosaico do mundo.
18
GÊNEROS TEXTUAIS: A MANIFESTAÇÃO DO CONHECIMENTO
A descoberta do fogo tornou-se referência imediata à idéia da superioridade humana
sobre as demais formas de vida terrestres. Entretanto, esse processo evolutivo não pode ser
atribuído a simples obras do acaso. Sua origem reside, inevitavelmente, na ação conjunta
de duas aspirações inerentes ao homem que caracterizam a sua condição peculiar: a busca
do conhecer e o desenvolvimento da linguagem. As habilidades manuais certamente
impulsionaram a humanidade na escala de evolução, mas foi a partir da interação verbal
que a espécie estabeleceu um sistema mediador de seu trabalho cooperado.
Se é válido afirmar que as demais espécies animais também se caracterizam por
exercerem atividades coletivamente organizadas, cabe ressaltar que essas ações
dispensam qualquer contestação ao meio. Um cachorro, um cavalo ou um pássaro reagem
diretamente aos sinais que recebem e, por isso, não são capazes de emitir novos sinais,
num esforço dialógico. A espécie humana, por outro lado, compartilha representações
comunicáveis do mundo que a cerca. De acordo com Bronckart (2003), tal habilidade
emergiu da confecção das primeiras ferramentas artesanais, cujo uso foi determinante para
ampliar as capacidades comportamentais do ser humano. “A exploração desses
instrumentos no quadro de atividades complexas requeria, inelutavelmente, um mecanismo
de acordo sobre o próprio contexto da atividade e sobre a parte da atividade que devia
caber aos indivíduos instrumentalizados” (BRONCKART, 2003, p. 32). As primeiras
produções sonoras decorrentes desse episódio foram, de fato, o passo inicial para a
configuração sócio-comunicativa do homem.
Para Maturana e Varela (2002), é justamente na comunicação com outros indivíduos
que o conhecimento emerge para a humanidade. Isso, porque o homem é um ser
constituído na linguagem: as palavras não apenas revelam o que pensa, como também
projetam suas ações. Trata-se de um observador por natureza e as explicações de suas
experiências não se dão de outra forma senão através de conversações. “Toda reflexão,
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inclusive a que se faz sobre os fundamentos do conhecer humano, ocorre necessariamente
na linguagem, que é nossa maneira particular de ser humanos e de estar no fazer humano”
(MATURANA & VARELA, 2002, p. 32).
Ainda sob a égide da linha teórica de Maturana e Varela (2002), atenta-se para o fato
de que relacionar linguagem a conhecimento corresponde a admitir que as informações lá
fora não estejam prontamente disponíveis para serem incorporadas pelo cérebro humano.
Ao contrário do que indica a visão convencional de mundo, o processo certamente é bem
mais complexo. Qualquer distinção que, por ventura, o homem vier a fazer resultará num
operar na linguagem. Tal sistema não reflete uma fraqueza da condição humana, mas a
atrela a um domínio explicativo sem o qual não poderia existir.
Os postulados de Maturana e Varela (2002) reforçam a noção – pertinente a este
trabalho – de que as ações na linguagem são determinadas pelo e no social. Essa
perspectiva é compartilhada com os sócio-interacionistas que encontraram na estética
bakhtiniana a base de seus estudos. Portanto, apesar de não consistir na corrente teórica
norteadora desta pesquisa, a Biologia do Conhecimento torna-se um importante ponto de
partida para que se ignore a idéia de que as experiências humanas são definitivas e
inquestionáveis e, como tal, fornecem o espelho fiel de uma realidade concreta.
Portanto, o mundo objetivo que se apresenta aos olhos do ser humano é muito menos
uma convicção do que uma versão idealizada pela influência de sua própria formação sócio-
cultural. Essa conclusão é o que me conduz ao problema deste capítulo: sendo a linguagem
uma espécie de molde às reflexões e experiências humanas, poderá, conseqüentemente,
adentrar numa dimensão estética como meio de revelar o conhecimento?
A proposta, aqui, é apresentar a narrativa como o modelo estético em questão. Se a
linguagem possibilita ao homem não apenas interagir com o mundo, como também torná-lo
produtor do conhecimento, essa entidade pode ser considerada um dos principais
instrumentos dos quais ele se serve para estruturar as suas ações na esfera comunicativa.
No campo da Psicologia e da Pedagogia, há autores que condicionam o pensamento
humano ao artifício narrativo. E não é difícil entender o porquê desse pressuposto: a
mediação pela linguagem investe o ser humano do papel de um contador de histórias que
constrói o saber ao relatar sua realidade social.
Bruner (1997a), por exemplo, destaca a importância da narrativa para o que denomina
de psicologia popular. De acordo com o autor, ela consiste num poderoso instrumento para
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fixar nossas experiências sociais na memória. Em suas interações, os seres humanos criam
noções culturalmente determinadas do canônico e do comum. As explicações narrativas
entram em cena justamente quando surgem estados que possam entrar em conflito com o
convencionalmente aceito: cabe a elas a tarefa de dar-lhes a verossimilhança necessária
para que sejam assimilados pela condição humana e impedir, assim, a violação do sistema
de significados inerente à mesma.
Mas deixarei para ampliar essa noção adiante, num momento mais oportuno. Antes de
analisar a narrativa em si e seus elementos constitutivos, convém localizar essa entidade
dentro da funcionalidade sócio-comunicativa da língua. Acredito que ela deve ser
compreendida como um significativo exemplo de ações verbais definidas através de práticas
sociais recorrentes na história: os gêneros textuais.
1.1 Os gêneros textuais na organização da linguagem
Mostrei até aqui que a linguagem é a forma pela qual o pensamento se materializa,
como resultado das interações sócio-comunicativas do homem. Poderia até dizer mais: o
uso da língua está relacionado de uma forma ou de outra a todas as modalidades de ação
humanas. Mas para compreendermos melhor o fenômeno, é preciso igualmente identificar o
que permite à linguagem manifestar-se.
Bakhtin (1992) atribui essa característica funcional aos enunciados – sejam eles orais
ou escritos. O autor russo define o enunciado como a unidade concreta da comunicação
verbal, composta por três elementos:
1) conteúdo temático: é a valoração do tema do enunciado num determinado tempo e
contexto;
2) estilo verbal: refere-se à seleção dos elementos léxicos, fraseológicos e gramaticais
para a construção do enunciado;
3) construção composicional: diz respeito ao esquema através do qual o conteúdo
temático se apresenta na organização textual (narração, descrição, exposição, etc.).
21
Conforme a teoria bakhtiniana, as fronteiras do enunciado são determinadas pela
alternância dos sujeitos falantes (ou locutores) na relação dialógica.
Todo enunciado – desde a breve réplica (monolexemática) até o romance ou tratado científico – comporta um começo absoluto e um fim absoluto: antes de seu início, há os enunciados dos outros, depois de seu fim, há os enunciados-respostas dos outros (ainda que seja como uma compreensão responsiva ativa muda ou como um ato-resposta baseado em tal compreensão). O locutor termina seu enunciado para passar a palavra ao outro ou para dar lugar à compreensão responsiva ativa do outro. (BAKHTIN, 1992, p. 294).
Por essa razão, o enunciado surge como um evento único na esfera comunicativa.
Não há como reproduzi-lo, uma vez que a resposta ativa confere ao ouvinte um certo grau
de autonomia. Desse modo, ele pode concordar, adaptar, completar, rejeitar ou executar o
que lhe havia sido dito. “[...] toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de
outra, forçosamente a produz: o ouvinte torna-se o locutor” (BAKHTIN, 1992, p. 290).
Aliás, todo locutor, por si só, já se encontra numa posição responsiva. Ainda que seu
enunciado seja estilisticamente dotado de ineditismo, ele sempre pressupõe a existência de
outros anteriores, com os quais mantém um determinado tipo de relação. Consideremos a
seguinte passagem da obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis:
Multidão, cujo amor cobicei até a morte, era assim que eu me vingava às vezes de ti; deixava burburinhar em volta do meu corpo a gente humana, sem a ouvir, como o Prometeu de Ésquilo fazia os seus verdugos. Ah! Tu cuidavas encadear-me ao rochedo da tua frivolidade, da tua indiferença ou da tua agitação? Frágeis cadeias, amiga minha; eu rompia-as de um gesto de Gulliver. (MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 178).
Em poucas linhas, Machado de Assis serve-se de dois clássicos da literatura, sem
desprover o texto de seu habitual brilhantismo. Por mais original que seja o enunciado
acima, ele assume uma relação responsiva com outros dois, anteriores: a peça teatral
Prometeu Acorrentado, do poeta grego Ésquilo (525-456 a.C.), e a obra As viagens de
Gulliver, do irlandês Jonathan Swift (1667-1745). Do primeiro, há uma clara referência ao
castigo imposto por Zeus ao herói mitológico, acorrentando-o a uma rocha. Já da outra obra,
Machado de Assis toma de empréstimo o trecho da história em que o protagonista livra-se
facilmente das amarras com as quais os minúsculos habitantes de uma ilha o mantinham
prisioneiro. Como é possível constatar, um enunciado – enquanto evento comunicativo único
– não pode ser repetido, apenas mencionado.
22
A partir dessa funcionalidade sócio-comunicativa do enunciado, Bakhtin (1992) trata de
diferenciá-lo da oração. Enquanto o primeiro é definido como uma unidade concreta da
comunicação verbal, a outra assume um caráter abstrato e que, por isso, não pode ser
concebida além das fronteiras da gramática. Mostrei anteriormente que o enunciado existe
numa realidade extra-verbal e que essa existência é justificada na atitude responsiva que
estabelece com outros enunciados. A oração, por sua vez, não induz a um significado per
se, pois sua relação está restrita a outras orações, no campo verbal. Em suma, pode ser
exemplificada na forma de uma palavra isolada que funciona exclusivamente em prol da
língua. “A oração, como unidade da língua, também é neutra, e não comporta aspectos
expressivos: ela os recebe (mais exatamente, participa deles) somente dentro do enunciado
concreto” (BAKHTIN, 1992, p. 309).
A distinção acima reforça a concepção do enunciado como um elo na cadeia
comunicativa. Com isso, percebe-se que cada nova interação nessa esfera – por mais
passiva que possa parecer – faz surgir um novo conhecimento. Entretanto, a unicidade dos
enunciados não significa que os mesmos não possam se manifestar na forma de estruturas
relativamente estáveis. Pelo contrário: são justamente esses fenômenos, conhecidos como
gêneros textuais, os responsáveis pela ordenação das atividades do cotidiano.
Numa releitura das teorias bakhtinianas, Marcuschi (2003) conceitua os gêneros
textuais como textos empiricamente determinados. Como conseqüência, sua organização
está diretamente vinculada à função comunicativa que exercem. “São de difícil definição
formal, devendo ser contemplados em seus usos e condicionamentos sócio-pragmáticos
caracterizados como práticas discursivas” (MARCUSCHI, 2003, p. 20). Ainda que aspectos
formais possam, sim, definir certos gêneros textuais, a análise das propriedades lingüísticas
não se mostra como prioridade em seu estudo. Nesse sentido, Marcuschi (2003) remete-os
a um novo tipo de gramática: a gramática social.
É possível, a partir daí, enquadrar os gêneros textuais na categoria de fatos sociais. Se
for válido dizer que eles são determinados pelas situações sócio-comunicativas do dia-a-dia,
logo, não há dificuldade em deduzir que sua maleabilidade vem se intensificando ao longo
da História. Essa crescente plasticidade pode ser creditada à atuação conjunta de duas
forças: uma, tecnológica; e outra, de cunho sócio-pragmático.
A primeira força apresenta a evolução dos gêneros textuais como resultante dos
avanços técnicos na área da comunicação. Assim como a invenção da escrita, no século VII
a.C., permitiu a multiplicidade de gêneros, a sua contínua expansão foi deflagrada a partir
23
do século XVI, com a criação da prensa de tipos móveis por Gutenberg1. Hoje, sob a
afirmação da cultura eletrônica, os antigos gêneros – entre os quais figuram a conversa
casual e a carta pessoal – sobrevivem ao lado dos modernos, como a conversa ao telefone,
a notícia jornalística, a propaganda, o e-mail e o chat pela internet. Se nos primórdios da
tradição oral e da escrita esses eventos textuais existiam em número reduzido, hoje, os
esforços em quantificá-los mostram-se imprecisos.
No entanto, acreditar que o surgimento de novas tecnologias já seja suficiente para
induzir a uma variedade maior de gêneros é adotar uma ótica deveras simplista para o
problema. Devemos entender as inovações técnicas como um terreno fértil para novas
formas de interação na linguagem, pois é a intensidade com a qual esses avanços são
utilizados que realmente amplia as opções de eventos comunicativos num determinado
contexto sócio-cultural. Todo mecanismo comunicativo que venha a ser criado necessitará
da incorporação de um ou mais gêneros já existentes para atingir sua finalidade – ou seja,
promover o diálogo entre seus usuários. “O e-mail (correio eletrônico) gera mensagens
eletrônicas que têm nas cartas (pessoais, comerciais etc.) e nos bilhetes os seus
antecessores. Contudo, as cartas eletrônicas são gêneros novos com identidades próprias”
(MARCUSCHI, 2003, p. 21).
Logo, acredito que o sucesso de novos eventos comunicativos depende
essencialmente da função pragmática que desenvolverão. Para que isso ocorra, esses
gêneros devem se apropriar de outros, previamente consolidados pelos usos e convenções
da sociedade na qual venham a se estabelecer. Essa relação está plenamente ancorada no
caráter responsivo dos enunciados – conforme visto anteriormente – e revela uma das
propriedades mais significativas dos gêneros textuais: sua capacidade de se redefinirem
com grande freqüência, por meio de um processo que chamarei de hibridização textual.
1.1.1 A hibridização textual
Ainda que prefira dedicar uma atenção exclusiva à literatura, Todorov (1980) apresenta
uma proposta pertinente ao estudo das diversas categorias de gêneros textuais. Ele
sustenta que a origem dessas entidades lingüísticas não se dá de outra forma senão a partir
1 O alemão Johannes Gutenberg (1398-1468) é creditado pela História como o inventor da imprensa. Sua prensa de caracteres móveis teria sido criada em 1440, usando tipos de metal nos quais as letras do alfabeto eram gravadas em relevo para, posteriormente, serem embebidas em tinta – possibilitando, assim, sua impressão.
24
de outros gêneros. “Um novo gênero é sempre a transformação de um ou de vários gêneros
antigos: por inversão, por deslocamento, por combinação” (TODOROV, 1980, p. 46). Essa
plasticidade revela um certo grau de dicotomia na concepção dessas unidades
comunicativas. Seus alicerces bakhtinianos os têm como tipos de enunciados detentores de
uma relativa estabilidade. Porém, isso não significa que sejam estruturas estanques, que se
encerram em si mesmas. Pelo contrário: os gêneros textuais variam conforme o histórico de
leitura dos interlocutores.
O uso de um gênero textual, portanto, sempre se caracterizará como uma atividade
seletiva. Tanto o locutor quanto o ouvinte recorrem a gêneros anteriores, numa tentativa de
alcançar os seus objetivos específicos: enquanto o primeiro pretende explicitar uma idéia,
delimitando a possibilidade de sentidos que ela possa assumir, o outro busca reconhecer e
diferenciar o gênero em questão, construindo o conhecimento dentro dessa mesma fronteira
verbal. “É porque os gêneros existem como instituição, que funcionam como ‘horizontes de
expectativa’ para os leitores, como ‘modelos de escritura’ para os autores” (TODOROV,
1980, p. 49).
Mas apesar de incorporar produtos pré-determinados pela cultura, um gênero textual
nunca se restringirá a eles. A própria interação verbal – na qual ele se realiza – consiste
num processo de transformação cultural. Isso, porque toda ação na esfera comunicativa
ocorre por gêneros textuais, e esses, por sua vez, são estruturas híbridas. Isso significa que
um mesmo gênero é capaz de comportar uma diversidade de outros gêneros. “Uma
publicidade pode ter o formato de um poema ou de uma lista de produtos em oferta; o que
conta é que divulgue os produtos e estimule a compra por parte dos clientes ou usuários
daquele produto” (MARCUSCHI, 2002, p. 30).
É exatamente esse o princípio da hibridização textual: a função é o fator determinante
para a dinamicidade dessa mescla – e, nesse sentido, sempre predomina sobre a forma.
Como ilustração, proponho uma breve análise do célebre Poema tirado de uma notícia de
jornal, do poeta modernista Manuel Bandeira:
João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem númeroUma noite ele chegou no bar Vinte de NovembroBebeuCantouDançouDepois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.2
2 Disponível em http://www.revista.agulha.nom.br/manuelbandeira04.html#poema.
Função do gênero A
Função do gênero B
Forma dogênero B
Forma dogênero A
25
No exemplo anterior, o conteúdo temático, o estilo verbal e a construção composicional
remetem, inicialmente, a um texto pertencente ao gênero notícia jornalística. De fato, ele
relata de forma objetiva um fato que poderia figurar perfeitamente nas páginas policiais de
um jornal impresso. Todavia, a sua função não é informativa, uma vez que não se refere a
um acontecimento recente cuja divulgação possa despertar o interesse público. Ainda que
assuma as características de uma notícia, o gênero textual possui uma outra finalidade:
mostrar como a poesia nasce do encontro do escritor com o cotidiano.
Para visualizar melhor essa mescla de gêneros, recorro ao modelo de diagrama
formulado por Marcuschi (2002), adaptado ao exemplo anteriormente averiguado:
Figura 1 – Hibridização textual
Fonte: diagrama elaborado pelo autor, a partir de modelo formulado por Marcuschi (2002).
Se a hibridização textual é determinada pela funcionalidade dos gêneros que a
compõem, logo, essas ações são reveladoras da ideologia da sociedade na qual esse
fenômeno lingüístico toma forma. “Não é por acaso que a epopéia é possível numa época, o
romance numa outra, o herói individual opondo-se ao herói coletivo da outra: cada uma
dessas escolhas depende do quadro ideológico no interior do qual ela se dá” (TODOROV,
1980, p. 50). Logo, os gêneros textuais assumem a categoria de codificações das normas e
costumes de uma sociedade, atestadas através da História.
Partindo dessa premissa, torna-se pertinente indagar quais seriam os gêneros aptos a
representar com mais propriedade as normas sociais vigentes. Para isso, acredito que seja
imprescindível compreendê-los dentro da cultura da informação que pauta as mais diversas
atividades cotidianas do homem moderno. O conhecimento, nos dias atuais, notabiliza-se
por percorrer com crescente velocidade os caminhos da comunicação. Conseqüentemente,
Função de um poema no formato de uma notícia
Poema
Notícia
26
a sabedoria dos fatos, restrita a poucos enquanto forma de poder na Antiguidade, assumiu
um caráter universal – vencendo, com isso, as barreiras do tempo e do espaço para atingir
um número cada vez maior de pessoas. É evidente, então, que uma variedade de formas
inéditas de manifestação da linguagem venha ao encontro dessa necessidade dos novos
tempos.
No capítulo seguinte, optarei pela análise de um desses gêneros, que figura entre os
mais influentes nesta nova ordem social, caracterizada pelo fluxo intenso de informação: a
reportagem televisiva. Diante da importância atribuída aos meios de comunicação de massa
na intermediação do homem com a realidade que o cerca, acredito que a mensagem
transmitida pelo jornalismo de televisão – devido a seu livre acesso às mais diversas
camadas populacionais – exerça um papel fundamental na construção de experiências
coletivas. Os princípios que delimitam esse processo referencial serão detalhados a seguir.
27
2 A REPORTAGEM DE TV: TEXTO, IMAGEM E METÁFORA
O trabalho que proponho deve ser compreendido, em sua essência, como um estudo
sobre gêneros textuais. À luz da teoria de Marcuschi (2002), os gêneros verificados nesta
pesquisa não serão vistos de forma isolada quanto à função sócio-pragmática que exercem.
Conforme destaquei no capítulo anterior, é justamente o seu papel na atividade
comunicativa cotidiana que determina a um texto o gênero ao qual virá a pertencer. Logo,
meus próximos esforços concentrar-se-ão em descrever um dos gêneros textuais que mais
têm contribuído para projetar a cultura da sociedade contemporânea: a reportagem de
televisão.
Antes de tudo, a reportagem televisiva deve ser vista como um gênero voltado às
massas. E isso se deve à crescente popularização do suporte no qual se manifesta. A partir
da segunda metade do século XX, a TV se mostrou capaz de abranger uma considerável
parcela da população brasileira, em escala muito maior do que os demais veículos de
comunicação puderam atingir. De acordo com Lustosa (1996), a política de estímulo à
industrialização, implantada por Juscelino Kubitschek e intensificada durante os governos
militares, disseminou os aparelhos de televisão por entre as mais variadas camadas sociais.
A classe média passou a receber melhores salários e os aparelhos receptores de TV foram se popularizando, tanto pela redução de seus preços unitários quanto pelos mecanismos de financiamento a longo prazo, para bens de consumo duráveis, com crediários de 24 até 36 prestações, sem entrada. Nos anos seguintes, quase todos os assalariados conseguiram comprar seu televisor, o que permitiu a massificação da televisão. (LUSTOSA, 1996, p. 57).
No Brasil, as precárias condições sócio-econômicas de grande parte de seus
habitantes estão entre os fatores que mais significativamente impulsionaram a televisão
como a principal via de informação e entretenimento. Em primeiro lugar, a notícia advinda da
TV não necessita ser comprada regularmente – ao contrário da exigência quanto a jornais
impressos e revistas. Além disso, o público televisivo comporta um grande contingente de
28
indivíduos iletrados, avessos à leitura de notícias na mídia impressa. Para Rezende (2000,
p. 23), “mesmo os poucos jornais de circulação nacional, com tiragens acima de 500 mil
exemplares, têm um público muito menor se comparado aos dos principais telejornais
veiculados no horário nobre.”
Mas apenas o predomínio da oralidade na cultura brasileira não basta para explicar a
consolidação da TV como o veículo de maior prestígio junto à população. Deve-se atentar,
ainda, para sua característica mais marcante e, ao mesmo tempo, o seu maior diferencial
em comparação aos demais meios de comunicação de massa: a utilização da imagem
enquanto recurso para a divulgação de informações. Os dispositivos visuais conferem uma
dinamicidade maior à mensagem, pois permitem que o espectador assimile a informação
sem a necessidade de uma descrição completa da cena narrada. Diante da tela, o que os
olhos do espectador registram já se traduz em conhecimento.
O apelo visual do telejornalismo, entretanto, não se resume à economia verbal
resultante da conjunção texto/imagem. Essa propriedade também proporciona à mensagem
televisiva um grau de confiabilidade maior do que nos demais veículos de comunicação.
Essa estrutura bidimensional reforça a proposição de emissão ‘objetiva’ e ‘imparcial’ do jornalismo, uma vez que o telejornal passa a produzir sentidos de ‘verdade’ exatamente por mostrar as imagens do acontecimento. Potencialmente, a notícia na televisão adquire, portanto, alto grau de credibilidade. (PICCININ, 2006, p. 139).
Os benefícios dos recursos audiovisuais, dessa forma, permitem ao jornalismo
televisivo a comunicação com espectadores de todas as camadas sociais. Porém, esse
mesmo poder de alcance é também o responsável pela imposição de limites verbais à
mensagem televisiva. O jornalista de TV fala para milhões de pessoas simultaneamente e,
impossibilitado de tratar cada telespectador conforme a sua especificidade, vê-se obrigado a
uniformizar a linguagem empregada na transmissão da notícia. Assim como os demais
programas da grade televisiva, o telejornalismo promove uma homogeneização da
audiência: o público passa a ser representado por um perfil médio de espectador “definido
pelos departamentos de pesquisa ou marketing das emissoras” (REZENDE, 2000, p. 25).
Portanto, se a linguagem televisiva vê-se obrigada a obedecer a determinadas regras
para abranger uma vasta camada populacional, uma análise minuciosa de seus elementos
constitutivos torna-se oportuna para compreender apropriadamente essa pretensa
uniformização da mensagem. Levando-se em consideração que o presente estudo
apresenta como objeto a reportagem esportiva de TV, a pormenorização a seguir
29
compreenderá três segmentos específicos, em conformidade com as diferentes etapas de
construção do gênero: a produção da notícia, o texto e sua relação com a imagem e a
edição.
2.1 A produção da notícia
O título acima, aparentemente, pode causar estranheza, pois já é de conhecimento
que a reportagem televisiva é o único gênero jornalístico submetido à pesquisa proposta
nesta dissertação. Entretanto, julgo ser fundamental começar defendendo aqui a concepção
de notícia como o ponto de partida de qualquer matéria. Apesar de também poder se
constituir num gênero à parte, a notícia possui um alcance restrito ao fato relatado e suas
conseqüências. A reportagem, por sua vez, confere profundidade a esses mesmos
aspectos, o que requer um trabalho investigativo mais apurado, uma extensão maior de
texto e uma maior riqueza de conteúdo. Em suma, isso significa que a notícia não é uma
reportagem, mas a reportagem pode perfeitamente incorporar uma notícia em sua estrutura
textual.
Ao detalhar a produção da reportagem televisiva, considero imprescindível eleger a
pauta o elemento primordial desse processo. Refiro-me àquilo que indubitavelmente
centraliza o foco de editores, produtores e repórteres no início de seu dia, na reunião em
que são discutidos os assuntos que ganharão destaque no telejornal. Pois a pauta nada
mais é do que o estágio embrionário de uma notícia. É a proposta daquilo que pode ser
trabalhado para se tornar uma informação compreensível e atrativa ao telespectador.
Diariamente, o pauteiro se depara com uma quantidade impressionante de
informações sobre o que acontece em sua cidade, em seu país ou no mundo. Mas apenas o
conhecimento desses fatos sociais não basta para a elaboração de uma pauta merecedora
de matéria jornalística. Embora muitos acontecimentos por si só já atinjam um nível de
importância suficiente para gerar repercussão junto ao público, é sabido que a criatividade
dos pauteiros tem sido determinante para a elaboração de reportagens relevantes para a
sociedade.
Idéias, criação, é o que o jornal exige do pauteiro. Ele deve fornecer diariamente aos editores pelo menos uma ou duas laudas de sugestões. Como preenchê-las, senão usando da sua imaginação, recorrendo a livros,
30
jornais e revistas e trocando idéias com colegas e amigos? (ERBOLATO, 1991, p. 178).
No meio televisivo, porém, esse esforço criativo é exigido de forma ainda mais intensa.
Segundo Barbeiro e Lima (2002, p. 111), “a pauta tem na televisão uma importância maior
que em outros veículos por suas peculiaridades. A atenção exigida para a elaboração de
uma reportagem de TV aumenta a importância do planejamento.” Em primeiro lugar, o
pauteiro deve condicionar a cobertura jornalística televisiva à presença da equipe de
reportagem no local onde os acontecimentos se desenrolam. E isso inevitavelmente, exige a
mobilização de um número de profissionais maior do que o necessário no jornal impresso ou
no rádio. O trabalho cooperado na televisão envolve pelo menos um repórter e um
cinegrafista. Entretanto, em emissoras de TV que dispõem de melhor infra-estrutura, o grupo
pode receber ainda o reforço de um produtor e um auxiliar de iluminação.
Mas os complicadores no planejamento da pauta televisiva não se limitam a recursos
humanos. Uma vez que a captação de imagem e som se constitui na razão de ser do
telejornalismo, o pauteiro deve avaliar, ainda, se a cobertura do fato resultará em atrativos
audiovisuais suficientes para a composição da reportagem. Esse aspecto será exposto com
maior ênfase em breve, neste mesmo capítulo.
Afora as particularidades da mídia eletrônica, a pauta na TV objetiva a notícia assim
como nos demais veículos informativos. Assim, o suposto valor jornalístico desta última
decorre de critérios-padrão adotados pela imprensa em geral. Erbolato (1991) entende que
a notícia deva ser recente, inédita, verdadeira, objetiva e de interesse público. As duas
primeiras exigências justificam-se pela já mencionada sede de conhecimento inerente à
espécie humana. De fato, o espectador não apenas é ávido por novidades como também
deseja sabê-las sempre antes dos outros. Por essa razão, a notícia da semana anterior,
divulgada no telejornal de hoje, certamente será classificada como antiga e,
conseqüentemente, perderá o seu poder de atração junto à audiência. “O público deseja
fatos novos e, por isso, a técnica é redigir sobre o que aconteceu ontem ou recentemente”
(ERBOLATO, 1991, p. 55).
Já as demais características, apesar de normalmente vinculadas à definição de notícia,
apresentam sérias controvérsias – e, por essa razão, não podem escapar de uma
abordagem crítica. Inicialmente, é preciso esclarecer até que ponto o jornalista deve ser
visto como uma espécie de “porta-voz do povo”, capaz de veicular exatamente aquilo pelo
qual o telespectador nutre grande interesse. Piccinin (2006) questiona essa percepção
ingênua, condicionando a construção do telejornal a “padrões absolutos” adotados pelos
31
profissionais das redações. Os jornalistas de televisão não percorrem as ruas com o
propósito único de desvendar a carência informativa do público. Ao invés disso, trabalham a
partir da idéia de uma audiência imaginada, presumida, através da qual pretendem explicar
a escolha de determinadas notícias em detrimento de outras, assim como o tratamento
dispensado aos assuntos merecedores de veiculação.
Por outras palavras, os jornalistas estão convencidos de que detêm um conhecimento preciso do que interessa ao público, assim como as melhores formas que devem ser adotadas para contar uma estória. Na contrapartida, quanto mais julgam que sabem, mais parecem que, na busca de adequação das rotinas produtivas, da cultura profissional e da linguagem do veículo, produzem o mesmo, condicionam suas visões de mundo. (PICCININ, 2006, p. 143).
De igual modo, defender a objetividade e a verdade em qualquer prática jornalística
consiste tão somente num artifício retórico geralmente utilizado para conferir credibilidade
aos veículos de comunicação. A notícia, sobretudo, é um relato acerca de um
acontecimento, e não a sua transposição literal para a mensagem jornalística. “Qualquer
redator ou relator de um fato é parcial inclusive ao escolher o melhor ângulo para descrevê-
lo, como se recomenda nas redações” (LUSTOSA, 1996, p. 22). Há, portanto, uma nítida
diferença entre a verdade alegada pelos jornalistas e os veículos que os representam e a
versão dos fenômenos sociais à qual o telespectador assiste em sua casa.
Na história do telejornalismo brasileiro, um dos exemplos mais célebres de
parcialidade nos veículos televisivos tomou forma no segundo turno das eleições
presidenciais de 1989. Após o debate entre os dois candidatos promovido pela Rede Globo
de Televisão, a reportagem referente ao evento – divulgada nos telejornais da emissora –
apresentou uma edição claramente favorável a Fernando Collor de Mello, que viria a ser o
vencedor do pleito. “Alguns postulantes denunciaram e protestaram sistematicamente contra
as redes nacionais de televisão pelo notório favorecimento a determinados candidatos de
sua escolha” (LUSTOSA, 1996, p. 22).
Ainda de acordo com o conceito de notícia enquanto um relato dos fatos sociais
presenciados pelo jornalista, é importante destacar que a utilização das fontes merece
cautela na elaboração da mensagem a ser veiculada para o grande público. Erbolato (1991,
p. 183) classifica a fonte como “qualquer pessoa que presta informações ao repórter.” Com
base nisso, uma das exigências básicas da ética profissional do jornalismo diz respeito à
tarefa de ouvir todos os lados envolvidos na notícia, com o intuito de sustentar a
neutralidade do discurso. No entanto, dar voz à determinada pessoa numa reportagem já
resulta na divulgação de uma versão dos acontecimentos. A rotina do repórter exige-lhe que
32
ouça um expressivo número de indivíduos para compor a informação levada ao domínio
público. E a escolha dessas fontes por si só já fere a tão defendida imparcialidade do
jornalismo: cada pessoa tem uma história para contar; e certamente o faz, orientada por
suas especificidades enquanto indivíduo social e culturalmente determinado.
2.1.1 A pauta esportiva
O jornalismo esportivo ocupa lugar de destaque na grade de programação das
principais emissoras televisivas. Invariavelmente, não apenas os telejornais mais
conceituados incorporam um bloco de notícias esportivas em seu espelho3, como também
as empresas de TV investem em programas voltados exclusivamente à cobertura
jornalística de esporte. “Nenhuma especialização – nem mesmo a religiosa – tem mais
espaço e tempo nos veículos do que a esportiva” (BAHIA, 1990, p. 224).
Esse segmento do jornalismo desfruta de grande apelo popular, uma vez que sua
função, embora predominantemente informativa, também se confunde com o
entretenimento. Seu público-alvo é aquele interessado nos espetáculos esportivos, o
indivíduo que liga o televisor em busca de notícias condizentes aos fatos que transitam ao
redor dos mesmos: o desempenho de seu time nos gramados de futebol, os preparativos
para a próxima etapa da Fórmula-1 ou até mesmo a vida pessoal de seu atleta favorito.
Bahia (1990) ressalta que o jornalista esportivo deve atender a múltiplos e restritos
espectadores, cada qual atento às novidades sobre a modalidade de sua preferência –
como futebol, vôlei, tênis, basquete ou automobilismo, para citar alguns exemplos.
Independentemente do evento a ser transformado em notícia, a inscrição na esfera do
espetáculo faz da cobertura esportiva um espaço lúdico face à seriedade alegada pelas
emissoras de TV na divulgação dos demais assuntos comportados em seus telejornais. A
emoção é um elemento indissociável da transmissão esportiva pelos meios de
comunicação. “Ela está nos olhos do jogador que faz o gol do título, na decepção da derrota,
nas piscinas, quadras e pistas” (BARBEIRO & RANGEL, 2006, p. 45). A notícia de uma
competição esportiva assume os ares de uma história de vencedores e vencidos; portanto, é
previsível que o calor da disputa aqueça também o relato do repórter presente no epicentro
da emoção.3 De acordo com Piccinin (2006, p. 152), “espelho é a palavra usada para designar a relação e a ordem de entrada das matérias no telejornal, sua divisão em blocos, a previsão dos comerciais, chamadas e encerramento.”
33
A mescla entre o informar e o divertir, porém, torna o jornalismo esportivo alvo de
descrédito perante alguns teóricos da comunicação. Seguindo essa linha, Jespers (1998)
impõe restrições ao caráter informativo desse tipo de cobertura jornalística. Como exemplo,
cita as entrevistas realizadas com os atletas no intervalo entre as competições. A seu ver,
são, na maioria dos casos, “conversas-ritos” (JESPERS, 1998, p. 53), cuja finalidade
consiste apenas em valorizar os entrevistados enquanto celebridades de um grande
espetáculo. Realmente, os campeonatos esportivos são dotados de intensa rivalidade, haja
visto que todo clube possui torcedores que o incentivam na conquista do título. Logo, não é
surpresa que os jogadores mais habilidosos sejam alçados à condição de ídolos perante
esse contingente de espectadores emocionalmente envolvidos com o fato jornalístico.
Contudo, a controvérsia no noticiário esportivo reside no fato de que, apesar do vínculo
com a emoção e o espetáculo, essa especialização também exige do repórter um amplo
conhecimento técnico das demais formas de cobertura jornalística. “O jornalista que cobre
esportes deve estar preparado para cobrir qualquer assunto” (BARBEIRO & LIMA, 2002, p.
107). Invariavelmente, as pautas esportivas não envolvem apenas as competições em si,
mas também fatos restritos aos bastidores, como doping de atletas, transferência de
jogadores para outros times ou escândalos de corrupção envolvendo dirigentes de clubes.
São acontecimentos que exigem do jornalista uma capacidade de apuração tão precisa
quanto nas demais coberturas especializadas.
O jornalismo esportivo, portanto, não deve ser situado numa categoria inferior de
cobertura jornalística ou compreendido como um “pseudojornalismo”. O que se verifica é
exatamente o oposto: a importância crescente atribuída às competições desportivas pelos
meios de comunicação resulta na convergência de um número cada vez maior de editorias
dentro do tema Esporte. Inúmeros assuntos que, a princípio, caberiam à editoria de Política,
Economia ou, até mesmo, Polícia encontram sua origem justamente em ocasiões
esportivas. Não raro os telejornais voltados exclusivamente ao esporte divulgam
reportagens sobre a violência das torcidas organizadas nos estádios de futebol ou a
aprovação de leis federais que incidem diretamente na vida dos atletas, no gerenciamento
dos clubes ou na organização de competições. Diante dessa diversidade de pautas, aliada à
necessidade de emocionar o público, a criatividade se constitui num importante instrumento
para o jornalista esportivo em sua tarefa diária de elaboração da notícia.
2.2 O texto jornalístico de TV
34
O jornalismo, em qualquer uma de suas modalidades, vale-se basicamente da
linguagem para atingir o seu intento, ou seja, a transmissão de informações a milhares ou,
até mesmo, milhões de pessoas. Pois entre o fato cotidiano e o público, há tão somente o
papel interpretativo dos veículos de comunicação, que fornecem um relato dos fenômenos
sociais que julgam de interesse ao espectador. “Afinal, o texto [...] é que dará consistência a
um acontecimento para sua inclusão em um programa noticioso” (LUSTOSA, 1996, p. 31).
Como já foi aqui explicitado, o ser humano não encontra as informações já elaboradas na
realidade objetiva. Logo, submeter as condições naturais de determinado fato a um domínio
explicativo é atribuição inadiável também da atividade jornalística.
A notícia, desse modo, surge como a matéria-prima do jornalismo. Por essa razão,
cabe aqui não apenas defini-la como um relato dos acontecimentos, mas também distingui-
la das outras possibilidades de interpretação textual dos fatos. Sem sombra de dúvidas,
esse diferencial consiste no seu condicionamento às técnicas de redação pertinentes à
profissão do repórter. No processo comunicativo condizente aos veículos jornalísticos, há
um emissor que almeja conquistar a confiança de um receptor que, por sua vez, objetiva a
informação correta, imparcial e de fácil compreensão. Essa espécie de contrato
inexoravelmente incidirá sobre a mensagem – ou seja, o texto noticioso que se apresentará
aos olhos e ouvidos do público.
Lustosa (1996) destaca quatro elementos que considera essenciais para a produção
de um bom texto de notícia: a objetividade, a clareza, a concisão e a precisão. O primeiro
requisito exige do redator a capacidade de priorizar o fato que vier a avaliar como o
principal. “Se o repórter vai noticiar um assalto a banco, a primeira coisa a dizer é que o
banco foi assaltado, quantos ladrões eram e quanto levaram” (LUSTOSA, 1996, p. 81). Esse
procedimento evita que o texto recaia numa valorização excessiva dos detalhes e,
conseqüentemente, prejudique a sua compreensão pelo leitor.
A redação da notícia a partir dos fatos culminantes vai ao encontro da técnica do lead
(ou lide)4, incorporada ao estilo jornalístico brasileiro a partir da década de 1950. Trata-se do
parágrafo que introduz a notícia, formulado sob o intuito de atrair a atenção do público por
intermédio de um resumo dos acontecimentos elencados como os mais importantes. A
4 Apesar de diversos manuais de redação definirem o lead como uma técnica jornalística exclusiva dos jornais impressos, sua influência é percebida na composição textual dos demais veículos. Diante disso, a presença desse método no presente capítulo justifica-se por servir de referência também ao segmento inicial da reportagem televisiva, como será visto em breve.
35
fórmula requer a resposta a seis perguntas básicas quanto ao fato social relatado: Quem? O
quê? Quando? Onde? Como? Por quê?
De forma geral, o lead é usado na técnica de apresentação das matérias definida por
Erbolato (1991, p. 66) como pirâmide invertida. De acordo com esse sistema, o parágrafo
inicial que resume os acontecimentos fundamentais à notícia precede a disposição dos
pormenores em grau decrescente de relevância:
Figura 2 – Sistema de redação estilo pirâmide invertida
Fonte: diagrama elaborado pelo autor, a partir de sistema formulado por Erbolato (1991).
Porém, é importante ressaltar que Erbolato (1991) admite, ainda, outra possibilidade
de utilização do lead, indiferente à disposição seqüencial dos fatos numa escala de
importância definida pelo redator. Na forma de apresentação que denomina sistema misto, a
estrutura da notícia inicia igualmente com o resumo dos acontecimentos culminantes, mas,
dessa vez, tem prosseguimento com a narração dos fatos em ordem cronológica. Essa
alteração, contudo, não exime o lead de exercer a sua função primordial, ou seja, atrair o
interesse do público para o restante da matéria através de um relato objetivo dos eventos de
destaque na notícia.
Dando continuidade aos requisitos necessários para a redação da notícia, Lustosa
(1996) afirma que, para prover o texto de clareza, o repórter nunca deve escrever sobre
aquilo do qual não detém amplo conhecimento ou que não fora devidamente checado. “Se
tem dúvida sobre um detalhe que achou importante e não conseguiu entender, não deve
conjeturar” (LUSTOSA, 1996, p. 82). É dever do jornalista fazer com que o público entenda
a sua mensagem com a maior agilidade possível e, nesse ponto, muitos profissionais –
LEAD Entrada ou fatos culminantes
Fatos relevantes vinculados à entrada
Pormenores interessantes
Detalhes dispensáveis
TEXTO JORNALÍSTICO
1°
2°3°
4°
36
principalmente no início de sua carreira – falham ao incluírem no texto palavras ou
expressões das quais desconhecem o significado.
A concisão, portanto, é fundamental na composição do estilo verbal da notícia. De fato,
o talento do repórter também reside na sua capacidade de fornecer o máximo de
informações acerca de um fato com o uso do mínimo possível de palavras. A soberba tende
a ser o principal empecilho de muitos profissionais de imprensa no cumprimento dessa
técnica: há casos em que o profissional, no desejo de demonstrar amplo conhecimento
sobre determinado assunto, estende o texto além do necessário, mediante um detalhamento
excessivo do fenômeno relatado. Conforme Lustosa (1996, p. 82), “o redator não deve dizer
em dez palavras o que pode dizer em duas.”
Mas se um texto jornalístico eficiente é aquele que diz muito em poucas linhas, esse
pouco que se apresenta ao público deve se constituir de fatos narrados com precisão. De
acordo com Erbolato (1991, p. 39), “escrever bem é apenas parte da atividade profissional
do repórter. Ele deve saber também apurar a notícia, ser tão bom nisto quanto em redação.”
Essa cautela é recomendada principalmente em matérias que envolvem números, lugares
ou nomes de pessoas. Uma informação incorreta afeta seriamente a credibilidade do veículo
de comunicação, obrigando-o à imediata reparação do equívoco. Dessa forma, o repórter
deve habituar-se a sempre confirmar e reconfirmar os dados captados na produção da
notícia.
Se no jornalismo em geral a qualidade da redação está estreitamente ligada aos
requisitos acima explicitados, o grau de importância dessas técnicas eleva-se ainda mais
nos veículos televisivos. O texto na TV fundamenta-se na linguagem oral e, por esse motivo,
está submetido a limitações temporais e espaciais. Uma vez que se valha de uma
combinação sonora, esse tipo de notícia só pode ser divulgado uma única vez – ao contrário
do texto de jornais ou revistas, passíveis de uma releitura quantas vezes o público desejar.
Assim sendo, a preocupação do repórter televisivo deve estar voltada a uma produção
textual que permita a compreensão imediata da mensagem por parte do receptor.
Maciel (1995) acredita que a linguagem do telejornal deve manter uma postura
intimista frente ao telespectador. Por isso, o texto da notícia televisiva normalmente é
redigido como numa conversa, de forma simples e coloquial. Mesmo assuntos que exigem
um conhecimento especializado – como descobertas científicas, processos jurídicos ou
movimentações do mercado financeiro, por exemplo – são relatados com clareza e
37
didatismo suficientes para que a informação seja transmitida com facilidade para públicos de
todas as camadas sociais e níveis de escolaridade.
Estudiosos da linguagem de televisão e profissionais mais experientes costumam dizer que, diante do telespectador, temos de nos comportar como se estivéssemos contando as notícias do dia para um parente ou amigo, sentado no sofá da sala de visitas. (MACIEL, 1995, p. 31).
O sempre escasso tempo dos telejornais também direciona a construção do texto
noticioso. Nos programas jornalísticos factuais, a duração das matérias televisivas é medida
em segundos. Dessa forma, não é surpresa que um repórter de TV veja-se obrigado a
condensar em um minuto todas as informações e entrevistas captadas para a composição
de sua notícia. Por essa razão, o ritmo das matérias televisivas é composto basicamente por
frases curtas. Segundo Paternostro (1999, p. 68), “uma série de frases curtas dá um sentido
de ação à notícia e passa informações sem rodeios.” O ideal é que entre um ponto final e
outro seja apresentada apenas uma idéia, como mostra o exemplo abaixo:
Assaltantes causam pânico em Passo do Sobrado, no Vale do Rio Pardo. Dois
bancos foram roubados e uma pessoa ficou ferida.5
Em suma, escrever para a TV por si só já se torna um exercício de hibridização textual
à parte. Levando em consideração que os gêneros textuais alteram sua configuração e se
combinam uns com os outros conforme o seu uso sócio-pragmático, pode-se afirmar aqui
que a linguagem televisiva aproxima o texto que se lê nos jornais do diálogo oral, em tom
intimista, como nas conversas casuais. Essa união de estilos mostra-se ideal para os
propósitos das emissoras de TV: enquanto veículos de grande alcance, não distinguem ricos
de pobres, homens de mulheres ou iletrados de bacharéis. A “democratização” da notícia,
acessível a todos, é sobretudo um importante artifício para elevar os índices de audiência.
2.2.1 O texto em acordo com a imagem
Os postulados acima evidenciam as particularidades do texto televisivo em
comparação às demais modalidades jornalísticas. Entretanto, quando se fala em jornalismo
de TV, inevitavelmente é a imagem que desponta como o grande diferencial desse meio
eletrônico de transmissão de notícias. “É com a imagem que a televisão compete com o
5 Texto apresentado no telejornal RBS Notícias, em Porto Alegre, no dia 21 de setembro de 2006.
38
rádio e o jornal. É com a imagem que a TV exerce o seu fascínio e prende a atenção das
pessoas” (PATERNOSTRO, 1999, p. 61). Se o jornal impresso permite uma análise
detalhada da informação e o rádio possui a capacidade de transmitir a notícia
simultaneamente ao acontecimento, também é verdade que a mensagem audiovisual
própria da televisão exerce um impacto emocional maior no espectador.
Por esse motivo, estar presente na pauta diária da imprensa não é a única exigência
para que uma notícia ocupe uma parcela do tempo dos telejornais. Em muitos casos, a
própria imagem já se torna um fato jornalístico. No Rio Grande do Sul, um exemplo recente
foi o ato de vandalismo provocado por torcedores durante a partida de futebol entre
Internacional e Grêmio realizada no dia 30 de julho de 2006. As câmeras de TV
conseguiram registrar o exato momento em que os arruaceiros incendiavam banheiros
químicos e, das arquibancadas do estádio Beira-Rio, arremessavam as cabines no fosso
que separa o público do gramado. A cena gerou repercussão em telejornais de todo o país,
reabrindo o debate sobre a violência das torcidas nos embates futebolísticos. Certamente, o
impacto não teria sido o mesmo se o fato fosse registrado apenas verbalmente nas páginas
dos jornais impressos.
Saber conciliar o seu texto à utilização da imagem, portanto, é o desafio primordial de
todo repórter de TV. Paternostro (1999) chega ao ponto de considerar a redação da notícia
televisiva uma revisão de conceitos no campo do jornalismo. Isso porque, no processo de
produção do telejornal, a palavra se torna apenas parte do todo significativo: sua função é
servir de suporte à imagem, conferindo-lhe um determinado sentido.
Ao contrário da linguagem verbal, as imagens não são passíveis de serem
classificadas como num dicionário. Tampouco estão dispostas linearmente, numa seqüência
obrigatória. “São constituídas como os comportamentos, as atitudes e os gestos de uma
certa fluidez de formas, cores e enquadramentos, o que as torna difíceis de descrever e
interpretar” (BECKER, 2004, p. 65). É daí que surge a necessidade de interferência do
repórter televisivo: ao escolher as angulações apropriadas do fato captado pelas lentes da
câmera e associá-las à enunciação, o profissional de TV confere aos recursos audiovisuais
uma ordenação espaço-temporal disciplinada por suas impressões enquanto testemunha do
fenômeno social narrado.
Apesar do já mencionado poder de sedução inerente à imagem, na notícia televisiva
ela sempre atuará numa relação de complementaridade com o texto. Logo, saber dosar a
informação visual com a verbal é um talento a mais que se impõe ao repórter que redige
39
para a TV. Barbeiro e Lima (2002) alertam para a importância de se tomar conhecimento
das imagens captadas antes de iniciar a construção textual. Uma vez que a cena em si já
possui uma propriedade descritiva, fazer as palavras dizerem o que o espectador é capaz
de perceber com os próprios olhos significa incorrer numa redundância. A enunciação verbal
não pode contrariar as imagens, mas torná-la óbvia demais também é uma decisão
equivocada.
Para exemplificar como a associação entre texto e imagem deve gerar um conjunto
significativo coeso, reproduzirei abaixo o trecho de uma reportagem alusiva ao desfile de
carros alegóricos da Oktoberfest de Santa Cruz do Sul – reconhecidamente a maior festa
em estilo germânico do Rio Grande do Sul.6 Sem sombra de dúvidas, trata-se de uma
matéria jornalística composta por belas imagens, o que exige do repórter um cuidado à parte
em sua condução narrativa:
Tabela 1 – Associação entre texto e imagem na reportagem televisiva
TEXTO IMAGEM
Essa folia em estilo germânico esbanja irreverência.
Pessoas vestidas em trajes germânicos, pedalando em uma bicicleta de vários assentos
Cada um inventa a sua dança... Grupos folclóricos de dança alemã fazendo malabarismos
...o seu jeito próprio de extravasar a alegria.
(sobe som7 ambiente)
Mulher com vestido típico germânico, dando cambalhotas, ao som dos gritos e aplausos do público
E que tal um passeio de bicicleta para todos os tamanhos?
Pessoas em trajes germânicos, pedalando bicicletas de vários tamanhos
As crianças também pegam carona. Menino em traje germânico, abraçando o mascote da festa
Afinal, Oktoberfest é programa para toda a família.
Casal de mãos dadas com o filho, todos com trajes típicos germânicos
Fonte: tabela elaborada pelo autor
6 Reportagem veiculada no telejornal Bom Dia Rio Grande, da RBS TV, em Porto Alegre, no dia 9 de outubro de 2006.7 A técnica denominada sobe som refere-se ao momento em que o áudio captado junto à imagem ganha destaque na reportagem, sem o acompanhamento da locução na voz do repórter.
40
No trecho de reportagem destacado, nota-se que texto e imagem exercem uma
relação de dependência mútua. A enunciação verbal, isoladamente, não basta para
estabelecer uma significação clara, ou seja, deixa margem para muitas dúvidas acerca do
sentido que o locutor deseja inferir ao seu respectivo ouvinte. O mesmo ocorre com a
seqüência imagética, que, por si só, prescinde de uma ordenação pela linguagem.
Para esclarecer com maior propriedade essa interação entre os recursos verbais e
não-verbais que compõem a reportagem televisiva, acredito que os pressupostos do
capítulo em questão, deste ponto em diante, devam adentrar numa etapa essencial para a
construção do gênero: a edição. Nesse sentido, especificarei de que forma a reportagem se
diferencia dos demais gêneros de notícia na TV e, num momento posterior, demonstrarei
que a união dos elementos textuais e audiovisuais inerentes ao mesmo se constitui,
impreterivelmente, num fenômeno metafórico de significação.
2.3 A edição da reportagem televisiva
Até o presente momento, expus as características do texto da notícia de TV,
contemplando tanto seus aspectos coincidentes com a linguagem empregada pelos demais
veículos de comunicação quanto as suas peculiaridades – em especial, a relação de
complementaridade que estabelece com os dispositivos audiovisuais essenciais à
transmissão televisiva. Todavia, a notícia se constitui no produto primário do jornalismo e,
como tal, é passível de ser estruturada sob diversas formas. Neste trabalho, os
pressupostos concentrar-se-ão na análise de uma dessas possibilidades: a reportagem.
Para Maciel (1995, p. 60), a reportagem “é a forma mais complexa e mais completa de
apresentação da notícia na televisão.” Certamente, trata-se do gênero televisivo que
comporta o maior número de elementos verbais e não-verbais em sua estrutura. De igual
modo, é também o que requer a participação de mais pessoas: além do repórter, há, ainda,
a presença do apresentador e dos entrevistados.
Por essa razão, o tempo da reportagem tende a ser o mais longo dentre as inúmeras
formas de notícia na TV. Sua duração nos telejornais diários pode variar de um a três
minutos – podendo, ainda, se estender além desse limite, em casos excepcionais. Conforme
Maciel (1995), essa estrutura comporta cinco partes que considera como básicas:
41
1) cabeça: é a forma de notícia que segue o princípio do lead. Lida pelo apresentador
do telejornal, diante da câmera, no estúdio, deve conter um resumo da reportagem
veiculada a posteriori. Sua função, portanto, é atrair a atenção do telespectador para a
notícia, respondendo as seis questões essenciais do jornalismo já citadas neste capítulo.
2) off: é o texto da matéria, redigido e narrado pelo repórter. Sua característica
primordial reside em fornecer o suporte às imagens dispostas de modo seqüencial na
reportagem. De fato, a existência do off está condicionada à presença dos recursos não-
verbais. Assim sendo, é imprescindível que seja construído sob o intuito de conferir um
sentido aos dispositivos audiovisuais, sempre com respeito à complementaridade mútua que
marca a relação entre texto e imagem da reportagem televisiva.
3) boletim (ou passagem): trata-se da narração feita pelo repórter no momento em que
o mesmo está diante da câmera. Embora muitos jornalistas de TV utilizem essa forma de
notícia para fins meramente estéticos, com a pretensão de “assinar” a reportagem, a sua
presença na matéria deve ser essencialmente estratégica. A passagem é normalmente
utilizada na ausência de artifícios visuais que possam representar uma importante
informação. Assim sendo, cabe ao repórter “emprestar” a sua própria imagem para transmitir
o relato do acontecimento. Outra finalidade desse recurso consiste em destacar um
determinado fato, fazendo com que a figura do jornalista confira-lhe um elevado grau de
importância perante os demais dados apresentados na matéria.
4) sonoras: são os depoimentos dos entrevistados, registrados pela câmera e
reproduzidos na matéria telejornalística. Atuam normalmente como complementos das
informações apresentadas no off ou na passagem. Ao contrário das entrevistas concedidas
em talk shows, as pessoas ouvidas não têm a sua fala divulgada na íntegra. O que aparece
na reportagem é tão somente um breve trecho do depoimento das mesmas, uma espécie de
“recorte” normalmente inferior a 20 segundos ou no tempo suficiente para que o
pronunciamento do entrevistado não prejudique a concisão do texto noticioso. As sonoras
exercem um papel-chave em matérias jornalísticas referentes a acontecimentos polêmicos,
pois a deontologia do jornalismo exige a concessão da palavra a todos os lados
contraditórios do fato.
5) pé: situado no encerramento da reportagem, trata-se de um texto curto, lido no
estúdio pelo apresentador, diante da câmera, sob o intuito de fornecer uma informação
complementar à reportagem. É comum os telejornais recorrerem ao pé como forma de
divulgar a posição de uma pessoa ou instituição denunciada na matéria televisiva por crimes
42
ou práticas irregulares. Em muitos casos, o espectador também pode ser informado de que
a equipe de reportagem não conseguiu encontrar o referido denunciado para falar sobre o
assunto em questão. Mas esses são apenas os exemplos mais recorrentes de redação do
pé da matéria. Maciel (1995, p. 61) indica, ainda, uma segunda função desse texto de
encerramento: “evitar que a última palavra de uma reportagem fique com alguns dos
entrevistados” – o que pode causar a impressão de favorecimento a uma das versões
contrapostas na notícia.
Contudo, é importante salientar que a estruturação de uma reportagem televisiva não
está condicionada à presença constante de todos esses segmentos. Ainda que alguns
elementos sejam obrigatórios para o gênero – como é o caso da cabeça e do off – a
coexistência dos outros é meramente opcional. A maleabilidade da reportagem permite, por
exemplo, que seu desfecho prescinda de um pé. Em outros casos, a presença da passagem
alterna-se com a ausência de sonoras ou vice-versa. Da mesma forma, a disposição das
partes constitutivas da reportagem não obedece a uma seqüência predeterminada. Embora
seja inegável que a cabeça deva sempre iniciar a matéria jornalística e o pé encerrá-la, os
demais componentes variam sua ordem de apresentação conforme a preferência do
repórter ou editor.8
É a edição, aliás, que confere à reportagem de TV o formato apropriado à importância
jornalística atribuída à notícia que se pretende relatar. Os manuais geralmente definem esse
processo como a montagem da matéria televisiva por meio da seleção de sons e imagens.
Com o uso de equipamentos eletrônicos, o editor une os elementos verbais e não-verbais da
reportagem num conjunto significativo lógico, coeso e de fácil compreensão para o público.
Entretanto, Paternostro (1999) vai além, alçando a edição a um status de arte, sobretudo
comparando-a ao esforço de contar uma história. “Por ser uma arte requer paciência,
dedicação, concentração, habilidade, criatividade e sensibilidade” (PATERNOSTRO, 1999,
p. 128).
Logo, a prática da edição em telejornalismo vai ao encontro da já mencionada
habilidade humana de apreender o conhecimento em seu estado bruto e conferir-lhe um
determinado sentido – ou seja, uma ordenação verbal e imagética situada no espaço e no
tempo. Pois diante das infinitas possibilidades de significação do fenômeno social
testemunhado, o jornalista elegerá apenas uma, avalizada por suas convicções pessoais e
pelas técnicas indispensáveis ao exercício de sua profissão. Segundo Paternostro (1999, p.
8 A ordenação dos elementos constitutivos da reportagem televisiva pode ser observada no capítulo seguinte, na transcrição das três reportagens telejornalísticas selecionadas para a pesquisa proposta.
43
131), “a edição de uma matéria é totalmente subjetiva. Nunca haverá duas edições iguais do
mesmo assunto feitas por repórteres diferentes.”
Tendo em vista a compreensão do processo de edição em telejornalismo, é preciso,
portanto, empreender uma análise minuciosa do conjunto semântico integrado pela
linguagem verbal e não-verbal que permite ao repórter compor a sua própria versão da
realidade objetiva. Pois é justamente essa distinção que orienta o presente estudo: o fato
que se apresenta aos olhos do jornalista difere da interpretação desse mesmo fato
transmitida para um perfil médio de espectador. Com efeito, a dicotomia entre o
acontecimento e a sua significação abre o caminho para que se estabeleça uma relação de
similitude entre a edição jornalística e a atividade poética. Ambas inevitavelmente servem-se
da metáfora como artifício cognitivo para induzir seus ouvintes a construir o conhecimento a
partir dos significados pretendidos pelos locutores. Esse modo de operar na linguagem será
devidamente esclarecido nas linhas que se seguem.
2.3.1 Metáfora e edição
Para evidenciar a ação da metáfora no processo significativo da edição em TV, faz-se
necessário, inevitavelmente, insistir na noção de reportagem televisiva como mera
representação da realidade física. Essa propriedade referencial, por sua vez, está
condicionada à atuação de signos verbais e não-verbais que, combinados, devem formular
uma seqüência lógica possível de ser assimilada pelo ouvinte. Em decorrência disso, a
análise que aqui se busca empreender dependerá de uma breve incursão ao campo da
Semiótica, tendo em vista desvendar o princípio que rege a atuação conjunta desses
elementos, indispensável à montagem da matéria telejornalística.
O componente verbal da reportagem televisiva, evidentemente, é o próprio texto
noticioso. Levando-se em consideração que sua forma de transmissão obedece às técnicas
empregadas pelas emissoras de TV, reforça-se, aqui, que se trata de um texto falado, feito
especialmente para ser captado pelo espectador através do sentido da audição. Como
resultado dessa propriedade, é também linear e irreversível, pois se resigna plenamente à
ação temporal. Um segundo no tempo do telejornal é um segundo de informação que, uma
vez perdida, não mais será possível recuperar em seu contexto original.
44
É nesse sentido que o aspecto verbal da reportagem telejornalística encontra relativo
amparo no sistema semiológico desenvolvido por Saussure (1975). Nele, o signo, enquanto
entidade referencial, une uma imagem acústica9 a um conceito. Esses termos, de acordo
com a perspectiva saussuriana, podem ser substituídos, respectivamente, por significante e
significado. Os laços que unem esses dois componentes do signo lingüístico podem ser
exemplificados do seguinte modo: tomando-se a palavra inglesa star como significante,
verificar-se-á que a mesma exprime o conceito “estrela”, tal como o aceitamos
convencionalmente. Esse processo de significação está ilustrado na figura abaixo:
Figura 3 – Composição do signo lingüístico de Saussure
Fonte: diagrama elaborado pelo autor, a partir de sistema formulado por Saussure (1975).
Com base nessa teoria, não estaria o próprio texto falado do telejornal enquadrado na
definição de significante, haja visto que sua ação consiste igualmente em provocar uma
impressão no espectador, mediante sua manifestação verbal? Particularmente, não apenas
concordo com essa possibilidade, como também acredito que o texto televisivo se encaixe
de modo mais específico na noção de significante acústico, assim denominado por
Saussure (1975) por se tratar de um componente sígnico de natureza auditiva. Logo, ao
recorrer à audição para fomentar um significado junto ao ouvinte, mostra-se dependente da
linha do tempo na mesma intensidade que o enunciado jornalístico.
As semelhanças, contudo, terminam nesse ponto. Fosse o objeto de estudo desta
pesquisa o texto da radiodifusão, certamente a identificação do enunciado jornalístico com o
significante acústico seria completa. Afinal, o ouvinte teria tão somente a mensagem falada
como referência informativa, induzindo a sua imaginação a associar um conceito às
combinações sonoras emitidas linearmente. Mas a linguagem verbal da TV está em
comunhão com a imagem, e isso, sob qualquer aspecto, não pode ser ignorado. No texto
telejornalístico, cada palavra encontra uma cena correspondente.
9 Saussure (1975) define a imagem acústica não como um som material, mas como a impressão psíquica suscitada por esse som.
SIGNIFICANTE
SIGNIFICADO
STAR
“ESTRELA”
STAR
45
Para demonstrar essa interdependência entre os elementos verbais e não-verbais no
conjunto significativo da reportagem de TV, reproduzirei o seguinte trecho da matéria
jornalística transcrita anteriormente:
Essa folia em estilo germânico esbanja irreverência.
Isoladamente, sem o recurso audiovisual, é possível especular alguns prováveis
conceitos que o significante acústico folia em estilo germânico induziria o ouvinte a adotar:
uma festa alemã, talvez um carnaval na Alemanha ou, ainda, um momento de
confraternização entre indivíduos alemães. Assim mesmo, cada espectador descreveria
mentalmente uma cena particular, orientada por sua formação sócio-cultural, qualquer que
fosse o significado escolhido. Entretanto, a imagem que se apresenta simultaneamente ao
enunciado verbal revela um desfile de carros alegóricos, ornamentados segundo a temática
da Oktoberfest e acompanhados por pessoas vestidas com trajes típicos germânicos.
Dessa forma, se na linguagem televisiva um significante acústico obtém um
determinado significado, é porque, entre ambos, encontra-se uma imagem que direciona
essa relação significativa a um sentido predeterminado. É justamente essa a peculiaridade
da significação verbal na reportagem jornalística de televisão: os artifícios audiovisuais
selecionados pelo editor atuam como o elo das duas partes constitutivas do signo
lingüístico, reduzindo consideravelmente a autonomia do ouvinte em sua tentativa de
construir o conhecimento a partir de referências verbais.
Em síntese, a significação verbal da linguagem televisiva se distingue da teoria de
Saussure (1975) como na ilustração abaixo:
Figura 4 – Significação verbal da linguagem televisiva
Fonte: diagrama elaborado pelo autor
SIGNIFICANTE SIGNIFICADO
RECURSOSAUDIOVISUAIS
Semiologia de Saussure
Linguagem televisiva
46
No entanto, proponho, aqui, percorrer um outro caminho no processo significativo da
reportagem televisiva, não mais adotando a enunciação verbal como ponto de partida, mas
sim os elementos não-verbais – mais precisamente, as inserções de imagem e som
intrínsecas à edição. De fato, inúmeros estudiosos do telejornalismo argumentam que a
linguagem da TV, além das palavras e suas combinações, possui uma propriedade icônica,
isto é, recorre à percepção visual para promover uma representação do mundo concreto.
Por intermédio da visão, uma forma pode tanto ser denotadora de si mesma (uma figura geométrica, por exemplo) quanto de outra forma que o receptor reconhece pertencente ao quadro referencial de sua realidade física (um animal) ou cultural (um eletrodoméstico). (REZENDE, 2000, p. 38).
A Semiótica de Peirce (1999) caracteriza o ícone como uma espécie de signo ou
representâmen. Trata-se de um elemento que, ao estabelecer uma relação com seu objeto,
gera uma idéia interpretante. No caso específico do ícone, a sua relação com a coisa a ser
representada não deve ser regida por outro critério senão o da semelhança. De acordo com
esse princípio, a imagem está inscrita nessa categoria de signo não-verbal, pois consiste em
nada menos que um retrato do objeto existente na realidade física. É o que ocorre com as
cenas selecionadas na edição da reportagem alusiva ao desfile da Oktoberfest, transcrita
anteriormente: os registros espaço-temporais das pessoas trajadas como alemães, dos
carros alegóricos e das bandas típicas atuam como ícones. São aspectos comuns tanto ao
signo quanto ao objeto e, por isso, permitem ao telespectador formular o conceito de um
desfile temático de rua – ou, na pior das hipóteses, chegar a uma idéia aproximada desse
mesmo objeto.
Ainda compreendendo o segmento significativo não-verbal da reportagem de TV, é
preciso atentar, também, para a relevante atuação dos dispositivos sonoros na edição
telejornalística. Pois a propriedade auditiva da televisão não se limita àquilo que é dito pelo
repórter, pelo apresentador ou pelos entrevistados. A mensagem televisiva é
multissensorial. Por isso, em conjunto com as imagens, o editor recorre a sons ambientes ou
efeitos sonoros como auxiliares para conferi-la um determinado sentido.
Mas os artifícios sonoros possuem uma forma de ação distinta da imagem no processo
de significação do telejornal. Novamente amparado pela classificação dos signos não-
verbais postulada por Peirce (1999), acredito que os recursos auditivos não-verbais da
reportagem televisiva apresentam as mesmas funções de um índice. Neste caso, fala-se de
um representâmen cuja relação com o objeto se dá através do princípio de conseqüência.
São exemplos de índices: uma batida na porta, um barômetro, um relógio ou um sinal de
47
fumaça. “Tudo o que atrai a atenção é índice. Tudo o que nos surpreende é índice, na
medida em que assinala a junção entre duas porções de experiência” (PEIRCE, 1999, p.
67).
É exatamente dessa forma que opera uma trilha sonora inserida pelo editor em um
determinado trecho da reportagem. Exemplo: se numa matéria televisiva referente à guerra
entre policiais e traficantes a opção for por uma música estilo heavy metal, certamente esse
elemento não-verbal indicará que se trata de um fato marcado pela violência, devido à
agressividade do arranjo rítmico. Os índices sonoros também são geralmente usados para
indicar o local onde a reportagem foi realizada: o canto de um pássaro – captado como som
ambiente e valorizado como um sobe som – pode reforçar a biodiversidade de um paraíso
ecológico na mesma intensidade em que uma música típica árabe consolida na memória do
espectador o fato da matéria correspondente estar localizada no Oriente Médio.
Porém, por mais que a incorporação de signos icônicos e indicativos seja o diferencial
da linguagem televisiva perante os demais meios de difusão de notícias, é impossível
ignorar o fato de que esses elementos não-verbais sejam orientados pela enunciação verbal
– não podendo prescindir da mesma. Uma imagem, acompanhada apenas de seu
respectivo som ambiente, abre caminho para a polissemia. Quem se depara com uma
referência meramente visual pode compará-la, analisá-la, reconstruí-la mentalmente e, dela,
extrair diversos significados.
O mesmo, contudo, não se deve esperar de um telejornal ou de um programa educativo, em que se exige o máximo de precisão, de clareza, na elaboração da mensagem, justamente para impedir que ela desencadeie um caos sígnico, ao se abrir uma infinidade de alternativas de leituras e interpretações. (REZENDE, 2000, p. 48).
A informação não-verbal da reportagem de TV, portanto, depende da palavra para
provê-la de um significado imediato e previamente estabelecido pelo emissor. Se a
enunciação verbal não deve descrever a imagem – sob a pena da redundância – espera-se
que, pelo menos, possa explicá-la, enriquecê-la e, sobretudo, evitar que o espectador desvie
sua atenção para outros sentidos alheios àquele almejado pelo repórter/editor em sua
interpretação do fato noticiado.
Em síntese:
Quadro referencial
OBJETO
Realidade concreta
ÍCONE+
ÍNDICE
INTERPRETANTE
ENUNCIAÇÃO VERBAL
Semiótica Peirceana
Linguagem Televisiva
48
Figura 5 – Significação não-verbal da linguagem televisiva
Fonte: diagrama elaborado pelo autor
Conforme explicitei anteriormente, o percurso é o inverso se a significação verbal for
tomada como ponto de partida: daí, é a imagem que tem o poder de conferir um sentido
predeterminado aos signos verbais. Ressalta-se, com isso, que ambas as possibilidades de
significação são legítimas e nenhuma, em especial, deve ser avaliada como preponderante
no conjunto epistemológico da reportagem de TV. Minha intenção ao principiar a análise
semiótica tanto pelos signos verbais quanto pelos audiovisuais é fortalecer a noção de que a
edição telejornalística constrói um quadro referencial a partir da complementaridade entre
texto e imagem.
Ora a imagem impõe-se em sua plenitude, ora basta a palavra para a transmissão de uma notícia televisiva. Entre esses pólos, desponta uma grande variedade de alternativas, todas elas se constituindo como expressões legítimas do telejornalismo. Em vez de se proclamar o império do icônico no discurso televisivo, parece mais factível a hipótese de que a construção da mensagem da TV reflete uma complexa intervenção de signos de natureza diversa e em contínua interação. (REZENDE, 2000, p. 45).
É com base na multiplicidade sígnica da linguagem televisiva que se torna possível
esclarecer de modo apropriado como a edição da reportagem de TV resulta num fenômeno
metafórico de significação. Ao encontro dessa idéia, Carone Netto (1974, p. 15) aponta uma
similaridade entre os conceitos de metáfora e montagem: “não só a primeira é, em certo
sentido, uma junção de elementos incongruentes que aponta para um ‘terceiro termo’, [...]
como também a montagem é uma metáfora, na medida em que se apresenta como uma
idéia que salta da colisão de signos ou imagens justapostas.”
49
É fato que Carone Netto (1974) vale-se dessa concepção como método investigativo
da obra poética do autor austríaco Georg Trakl. Mas de forma alguma assume uma postura
restritiva quanto a essa forma de operar na linguagem. A montagem existente na poesia
trakliana fundamenta-se em metáforas visuais e, por essa razão, seus princípios podem se
estender a outras modalidades de expressão, como o cinema, por exemplo.
[...] as imagens isoladas do poema se comportam como as “tomadas” ou os fotogramas montados num filme, articulando planos e cenas cujo significado seria auferível pela forma em que essas unidades colaboram ou colidem umas com as outras na consciência de quem lê o poema (como ocorre na mente de quem vê o filme). (CARONE NETTO, 1974, p. 15).
Tendo isso em vista, Carone Netto (1974) defende que, tanto num poema quanto num
filme, a justaposição de imagens visa muito mais ao conceito produzido do que os
elementos isolados, instrumentos da atividade de significação. Mediante esse princípio, a
montagem final de uma película sempre irá se distinguir dos seus fragmentos, consolidando,
dessa forma, o efeito metafórico. Assim, se a técnica cinematográfica é apontada como um
modelo de inserção da metáfora visual, é perfeitamente admissível que esse fenômeno
significativo possa ser aplicado, também, no telejornalismo, haja visto que ambos os
gêneros se caracterizam pela imagem em movimento e acompanhada da enunciação verbal
manifestada oralmente.
Em síntese, trabalha-se, aqui, a idéia de metáfora enquanto a soma de duas partes
independentes entre si que leva a um terceiro termo qualitativamente diferenciado de seus
componentes. Essa operação é claramente identificável na edição da reportagem televisiva
– e não seria exagero vincular ambos os conceitos numa relação praticamente sinonímica.
Como já foi devidamente explicitado neste mesmo capítulo, a matéria telejornalística
compreende, em sua estrutura, dois sistemas singulares de significação: um, verbal; e outro,
audiovisual. Separadamente, o texto falado e a imagem reportam-se à capacidade
imaginativa do receptor, proporcionando-lhe uma ampla gama de sentidos, através dos
quais usufruirá de uma maior liberdade na construção da mensagem. Todavia, é na sua
coexistência como produto final da edição que os signos levarão o ouvinte a inferir um outro
significado, justamente aquele pretendido pelo emissor.
Existe, portanto, um contraste de significados entre os componentes sensoriais da
reportagem televisiva e a versão definitiva da mesma, já submetida ao processo de edição.
Essa dualidade, com efeito, enquadra-se na teoria da metáfora de Searle (2002), que
contrapõe duas espécies de sentenças: a emissão literal e a emissão metafórica. No
50
primeiro caso, o significado literal coincide com o significado da emissão do falante, ou seja,
o emissor manifesta, na frase, justamente aquilo que pretende dizer. Já no outro tipo de
sentença, os dois significados divergem entre si. Searle (2002), por essa razão, sustenta
que cada metáfora encontra uma paráfrase correspondente. Exemplo: na sentença
(MET) João é um cavalo,
o falante quer dizer, na verdade, que
(PAR) João é um indivíduo grosseiro, violento e sem educação.
Tomando por base os casos simples de sujeito-predicado, como o apresentado acima,
Searle (2002) propõe uma forma geral da emissão metafórica, na qual o falante, ao dizer
que “S é P”, quer significar, na verdade, que S é R. Primeiramente, deve-se entender, por
“S”, o objeto concreto que será submetido ao quadro referencial através do esforço
interpretativo do falante ou emissor. “P”, por sua vez, equivale ao predicado cujo sentido
deve ser compreendido em sua forma literal. Por último, o termo “R” remete ao significado
da emissão, isto é, aquilo que o falante pretende, de fato, dizer.
O grande problema desse modelo teórico, no entanto, consiste em apurar sob que
condições opera essa transferência de significados. Em outras palavras, “como é possível
emitir ‘S é P’ e querer significar ‘S é R’, e como é possível a transmissão desse significado
do falante ao ouvinte” (SEARLE, 2002, p. 133). Pois esse impasse inexiste na construção
metafórica resultante da edição em telejornalismo. Se toda reportagem televisiva parte de
um fato social “S” que, sob o domínio explicativo do jornalista, dá lugar a um conceito “R”
acerca do mesmo, é porque há não apenas uma, mas duas categorias de predicados literais
que, justapostos, induzem o espectador a assimilar a emissão metafórica pretendida pelo
falante. Essas categorias, previsivelmente, dizem respeito aos signos verbais e não-verbais.
Dessa forma, proponho classificar a primeira espécie como predicado literal P1, ao passo
que a outra deve ser inserida na categoria P2.
Mas por que é possível compreender os signos constitutivos da linguagem televisiva
como predicados emitidos literalmente? Ora, porque tanto o texto falado quanto a imagem,
isoladamente, significam ao espectador exatamente aquilo que este ouve ou vê. Tomarei
novamente como exemplo o trecho da reportagem alusiva ao desfile de carros alegóricos da
Oktoberfest: na esfera enunciativa, o significante acústico “folia em estilo germânico” possui
como única referência concreta as palavras proferidas oralmente. Na ausência de imagens
51
para ampará-lo, o receptor inevitavelmente ver-se-á obrigado a compreender a mensagem a
partir do sentido literal daquilo que sua audição for capaz de apreender. No caso do termo
“folia”, é possível associá-lo às idéias de “festa”, “carnaval” ou “farra”, entre outras opções
semelhantes. Enfim, quaisquer que sejam os significados atribuídos ao significante acústico,
estes não devem fugir àquilo que o ouvinte encontraria se recorresse a um dicionário.
O processo cognitivo funciona de modo similar com a imagem constitutiva da
reportagem de TV. Ao se deparar com as cenas captadas pela lente das câmeras, o
espectador dificilmente questionará o que se passa diante de seus olhos. Supondo que a
reportagem referente ao desfile temático da Oktoberfest prescinda de signos verbais, o
telespectador estaria apto a analisar, comparar e atribuir qualidades ao que vê. Entretanto,
não haveria como negar que as imagens mostram pessoas vestidas com trajes germânicos,
dançando alegremente junto a carros alegóricos que transitam pela rua ao som de bandas
típicas alemãs. É válido, aqui, lembrar que os artifícios visuais são dotados de uma
propriedade icônica, o que faz com que representem com elevado grau de fidelidade aquilo
que se apresenta fora do nível referencial. Não é por acaso que o jornalismo televisivo
desfruta de alta credibilidade perante o seu público: a imagem – com a qual o telejornal
compete com o rádio e o jornal impresso – transmite a confiança de que o fato registrado
realmente ocorreu.
Obviamente, a separação das duas modalidades sígnicas da reportagem televisiva
deve ser compreendida, aqui, como mera suposição, tendo em vista apenas inseri-las
dentro do conceito de predicados literais, postulado por Searle (2002). A matéria
telejornalística não pode ser concebida sem a interação dos elementos verbais e não-
verbais, pois somente através de sua coexistência é que a edição alcançará o significado
pretendido pelo repórter/emissor da mensagem. A justaposição dos signos intrínsecos à
emissão televisiva já foi detalhada num momento anterior, mas cabe ressaltar que a
complementaridade entre texto falado e a imagem é que dará ao objeto existente na
realidade concreta um sentido diferente daqueles aos quais ambos os elementos são
capazes de induzir, se compreendidos isoladamente. No exemplo trabalhado aqui, verifica-
se que o significante acústico “folia em estilo germânico” e a imagem de pessoas, carros
alegóricos e bandas ostentando motivos típicos alemães, combinados, conferem ao desfile
da Oktoberfest – evento retratado na reportagem – a dimensão de uma grande festa
popular, enfim, uma espécie de “carnaval” dedicado à cultura germânica. Assim, a imagem
direciona o texto a um determinado significado e vice-versa, fornecendo ao telespectador
um conceito do fenômeno social distinto daquele que o ouvinte poderia formular ao
presenciar o acontecimento na hora e no local em que ocorreu.
52
A figura abaixo resume com propriedade esse processo metafórico:
Figura 6 – Emissão metafórica na edição telejornalística
Fonte: diagrama elaborado pelo autor, a partir de sistema formulado por Searle (2002).
O condicionamento da edição televisiva à emissão metafórica de um fato social torna
seriamente discutível o discurso de veracidade normalmente atribuído à mensagem
produzida pelos telejornais. Mediante a complexa interação entre signos verbais e não-
verbais detalhada acima, é impossível acreditar que o relato noticioso leve ao conhecimento
dos espectadores um fenômeno concreto com as exatas dimensões de sua ocorrência, sem
que a interpretação do emissor interfira no processo comunicativo. O jornalista de televisão
que reclama para a sua reportagem a verdade inabalável dos fatos ignora o fato de que a
matéria editada não apenas é uma referência a um objeto exterior, como também essa
referência se dá através de uma terceiridade: é antes o resultado da complementaridade de
elementos também inscritos numa esfera representativa do que uma alusão direta ao objeto
em si.
A reportagem telejornalística, em suma, deve ser relegada a uma atividade referencial
de segunda ordem. Mas é preciso dizer mais: tomando novamente de empréstimo à forma
geral da metáfora elaborada por Searle (2002), cabe lembrar que a versão final da
mensagem noticiosa, extraída da atuação conjunta entre os signos verbais e não-verbais,
assume tão somente o sentido almejado por seu respectivo emissor. Diante dessa premissa,
o presente capítulo encerra com uma importante indagação: de posse dos componentes
sígnicos que se reportam diretamente ao fato registrado na realidade objetiva, não possuiria
o repórter a liberdade de combiná-los sob o intuito de conferir ao evento relatado a
dimensão que julgar apropriada? Se a edição no jornalismo de TV se constitui numa
atividade metafórica, é essencial destacar que o objeto-alvo dessa significação está sujeito a
uma transmutação valorativa. E esse processo cognitivo, aliás, obedece a modelos há muito
S R
Realidade concreta Quadro referencial(processo de edição)
Quadro referencial(divulgação da
reportagem)
P1 P2+Fenômeno social Texto falado Imagem Reportagem
Objeto Predicados literais Metáfora
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incorporados ao nosso contexto sócio-cultural. É o que demonstrarei na próxima etapa deste
estudo.
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3 ERA UMA VEZ NOS GRAMADOS E NAS PISTAS DE CORRIDA
O objetivo principal deste trabalho é identificar elementos constitutivos da narrativa nas
reportagens televisivas que compõem o corpus deste estudo e, de forma simultânea,
verificar de que modo esses mesmos elementos se estruturam. Trata-se, portanto, de um
esforço interpretativo de um fenômeno lingüístico em particular, ou seja, a hibridização
textual que une dois gêneros diferentes.
Para isso, a metodologia da pesquisa proposta neste capítulo consiste na análise e
interpretação do gênero reportagem esportiva de TV a partir de pressupostos inscritos no
estudo da narratologia. O procedimento em questão adota como base as contribuições
teóricas de importantes autores dessa área do saber, que indicarão o caminho para
evidenciar os processos cognitivos existentes na construção e veiculação da linguagem
telejornalística.
Logo, ao selecionar as reportagens esportivas de televisão que serão submetidas à
análise, encontrei na narrativa uma possibilidade de modelo estético a partir do qual esses
textos possam ter sido produzidos. Conforme explicitei num momento anterior, todo texto
justifica a sua configuração num determinado contexto sócio-pragmático e, por isso, está
sujeito a uma constante combinação com outros gêneros já existentes.
E por que atribuir especificamente à narrativa um papel ordenador dos elementos
semântico-sintáticos das reportagens escolhidas? Antes mesmo de apresentar o corpus
deste estudo, considero fundamental conferir a essa pergunta a resposta apropriada.
55
3.1 Por que narrativa?
A arte de contar histórias pode ser considerada uma das mais antigas formas de
comunicação de que se tem conhecimento. O gosto pelo mito e o imaginário acompanha a
humanidade desde o surgimento das primeiras tribos e, por esse motivo, não é surpresa que
alguns autores lancem especulações quando à gênese da tradição oral. Forster (1974, p.
20), por exemplo, propõe que o Homem de Neanderthal, por sua estrutura craniana, já se
tornara um contador de histórias: “A audiência primitiva era uma audiência de cabeludos,
bocejando ao redor do fogo, fatigada das contendas contra o mamute ou o rinoceronte
peludo [...]”.
Ainda nos primórdios das civilizações, essa atividade alcançou um grau de
desenvolvimento capaz de nos presentear com um importante legado cultural, cuja
importância influencia até mesmo o pensamento do homem moderno. A principal referência
recai sobre a mitologia que tornou a Grécia Antiga uma das precursoras da cultura ocidental.
Já no âmbito da linguagem escrita, é curioso notar que a Bíblia – sem dúvidas, a obra mais
lida de toda a História – caracteriza-se justamente por reunir um conjunto de histórias para
transmitir o conhecimento.
Difundir lendas, mitos e costumes ao longo das gerações sempre foi o papel dos
contadores de histórias. Para Benjamin (1987), isso ocorre porque a experiência que passa
de pessoa para pessoa é a fonte da qual as histórias se originam. Nesse sentido, o autor
destaca dois grupos fundamentais de narradores anônimos, responsáveis pela transmissão
oral de suas experiências: o viajante que vem de longe e o indivíduo que ganha a vida
honestamente, sem ter que se afastar de seu povo. Portanto, foi a partir da integração
desses dois tipos, no sistema corporativo medieval, que o universo ficcional pôde se
expandir de modo ainda mais consistente. “O mestre sedentário e os aprendizes migrantes
trabalhavam juntos na mesma oficina; cada mestre tinha sido um aprendiz ambulante antes
de se fixar em sua pátria ou no estrangeiro” (BENJAMIN, 1987, p. 199). Em suma, foi a
união de duas formas de saber: o do passado com o trazido das terras distantes.
Hoje, sob o efeito dos avanços tecnológicos que impulsionaram a indústria da
informação e do entretenimento, a arte de contar histórias foi disseminada por uma
infinidade de outros gêneros além da tradição oral e da literatura – como o cinema, o rádio e
os programas televisivos.
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O fogo aceso para aquecer as salas de leituras se alastrou e ganhou a praça, o teatro, a televisão, as rádios, os clubes, as feiras de livros, os centros culturais. A atividade que parecia ser destinada a professores e bibliotecários conquistou outros adeptos: atores, mímicos, músicos, poetas, escritores, avós, donas de casas, recreadores e até curiosos! (SISTO, 2001, p. 80).
No entanto, a preservação desse hábito não se deve apenas ao aprimoramento
técnico. O homem é um contador de histórias por excelência e faz jus a essa condição na
tentativa de domar o conhecimento que permeia o mundo ao seu redor. É como se
apanhasse a natureza em seu estado bruto e, através das palavras, domesticasse a mesma
sob a forma de significados. O simbolismo presente nas histórias ajuda o ser humano a
compreender os seus próprios dilemas, assim como molda uma identidade cultural que o
une aos seus semelhantes dentro de um mesmo espaço social. Isso, porque toda história
carrega dentro de si uma forma de sabedoria – ainda que, em muitos casos, de forma
extremamente sutil. “Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa
dimensão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida [...]” (BENJAMIN, 1987, p.
200).
É neste ponto que reforço o caráter epistemológico do ato de contar histórias. E insisto
nisso ao considerar que essa atividade ocorre exclusivamente no interior do domínio da
narrativa. O ato de narrar nunca termina nas palavras de quem conta a história. Conforme
apontei anteriormente na teoria dos gêneros textuais, a narrativa sempre oferece lacunas
que permitem ao ouvinte imprimir a sua própria marca pessoal no que lhe é dito. E essas
brechas no discurso decorrem do fato de que, na arte de narrar, “o contexto psicológico da
ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o
episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação” (BENJAMIN, 1987, p.
203).
Relacionar narrativa a conhecimento não é uma idéia nova. De fato, sua origem nos
remete à Poética, de Aristóteles (1966), cujos pressupostos datam, aproximadamente, de
335 a.C. O princípio aristotélico consiste em tratar toda obra ficcional como mimese ou
imitação. Para o filósofo grego, os imitadores inevitavelmente imitam homens que realizam
alguma ação. Logo, como todos os homens se distinguem por suas composições
particulares de vícios e virtudes, os poetas inevitavelmente imitarão tanto homens melhores,
iguais ou piores. “O imitar é congênito no homem (e nisso difere dos outros viventes, pois,
de todos, é ele o mais imitador, e, por imitação, apreende as primeiras noções) e os homens
se comprazem no imitado” (ARISTÓTELES, 1966, p. 71).
57
Entretanto, é preciso distinguir o conceito de imitação sustentado por Aristóteles
daquele ao qual nos referimos convencionalmente. Este último, por sua vez, tem relação
direta com a visão de outro filósofo grego: Platão distancia a imitação do real, relegando-a
ao status de uma ilusão motivada pelos sentidos. Dessa forma, ela está ligada à pior parte
da alma, uma vez que sua paixão repele o bom senso e a torna contrária ao saber
intelectual. O mundo das idéias, segundo esta ótica, mantém-se inalcançável pela atividade
poética. Já o pressuposto aristotélico segue a direção oposta, no sentido em que concebe a
imitação como uma força criadora. “Imitar, para Aristóteles, é uma forma de conhecer que
inclusive diferencia o homem dos outros seres vivos e lhe dá prazer” (LEITE, 2000, p. 10). É
por isso que Aristóteles considera a poesia mais séria e filosófica do que a história. Como
espaço aberto à ficção, torna-se um campo fértil para novas formas de saber.
É exatamente esse horizonte para o conhecimento que institui o ato de narrar como
articulador de nossas atividades cotidianas e de nosso modo de compreender a nós
mesmos e nossa realidade. Isso se torna plenamente possível devido a uma habilidade
inerente à condição humana: a interpretação, decorrente da necessidade de darmos sentido
a tudo o que nos cerca. Para Larossa (2003), todo esforço de interpretação só pode ser
pensado dentro de uma atividade lingüística e, mais precisamente, manifesta-se através de
uma estruturação narrativa.
Para dizer numa só proposição, o sentido de quem somos é análogo à construção e interpretação de um texto narrativo e, como tal, obtém seu significado tanto das relações de intertextualidade que mantém com outros textos como de seu funcionamento pragmático num contexto.10
Assim, a história pessoal de cada indivíduo é ordenada da mesma forma daquelas
que, desde a nossa infância, acostumamo-nos a ler nos livros. Digo isso porque o conceito
moderno de narrativa pouco mudou comparativamente ao embrião aristotélico. Aos olhos
formalistas ou estruturalistas, ela sempre se manteve uma entidade una, completa e
coerente, onde atores ou personagens desenvolvem suas ações. E assim o é
especificamente por compreender uma seqüência lógico-temporal entre um princípio, um
meio e um fim. Essas partes constitutivas são descritas da seguinte forma por Aristóteles
(1966, p. 76):
10 Por decirlo en una sola proposición, el sentido de quién somos es análogo a la construccíon y la interpretación de un texto narrativo y, como tal, obtiene su significado tanto de las relaciones de intertextualidad que mantiene com otros textos como de su funcionamiento pragmático en un contexto” (LAROSSA, 2003, p. 608, tradução do autor).
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“Princípio” é o que não contém em si mesmo o que quer que siga necessariamente outra coisa, e que, pelo contrário, tem depois de si algo com que está ou estará necessariamente unido, “Fim”, ao invés, é o que naturalmente sucede a outra coisa, por necessidade ou porque assim acontece na maioria dos casos, e que, depois de si, nada tem. “Meio” é o que está depois de alguma coisa e tem outra depois de si.
Diante de tal encadeamento, como não identificar uma semelhança entre o princípio
diegético e o tempo que rege a nossa própria existência? “A vida diária também é cheia do
sentido de tempo. Pensamos num acontecimento como ocorrido antes ou depois de outro”
(FORSTER, 1974, p. 21). Do nascimento à morte, da alvorada ao crepúsculo, da partida à
chegada, a humanidade sustenta sua consciência de vida através de um arranjo temporal,
inevitavelmente compreendido entre um início e um fim.
Por essa razão, Larossa (2003) afirma que nossas histórias pessoais são contadas e
interpretadas conforme um tempo narrado. A influência diegética em nosso olhar sobre o
mundo está vinculada também à nossa experiência, ou seja, ao que acontece conosco no
decorrer do tempo de nossas vidas. Se entre o início e o fim há um intervalo em que nada
ocorre, não existe vida – e, logo, nada há que possa ser narrado. Viver a vida, portanto,
consiste em manter-se receptivo aos acontecimentos, ser afetado pelos mesmos e agir em
resposta. Cada acontecimento possui o seu próprio significado numa história pessoal. Mas,
ao mesmo tempo, ele é componente de um todo significativo, necessário para revisar os
episódios passados e antecipar os vindouros na estrutura narrativa.
E quem vive essa história, essa série de acontecimentos dispostos num fluxo
cronológico coeso? Pois não somos nós mesmos, seres de carne e osso, transpostos para o
domínio do imaginário e configurados como personagens das narrativas pessoais? Ao
contar uma história, refiro-me a mim mesmo e às pessoas que conheço, assim como essas
pessoas também contam histórias sobre mim e os outros. Mas essas referências não
passam de interpretações; logo, da materialização lingüística de esforços em representar o
mundo que se entrecruzam numa constante relação significativa. Conforme Larossa (2003,
p. 624):
só podemos responder à pergunta sobre quem somos contando alguma história. É ao narrarmos a nós mesmos e o que nos acontece, ao construirmos o personagem que somos, que nos construímos como indivíduos particulares, como um quem. Por outro lado, só compreendemos quem é a outra pessoa ao compreender as narrações de si que ela mesma e outros nos fazem ou ao narrarmos nós mesmos uma parte significativa de sua história.11
11 “[...] a la pregunta de quién somos sólo podemos responder contando alguna historia. Es al narrarmos a nosotros mismos en lo que nos pasa, al construir el carácter (el personaje) que somos,
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Isso tudo faz da narrativa um instrumento indispensável para fixar a experiência social
na memória humana. Bruner (1997a) credita essa propriedade ao fato de o gênero narrativo
ser capaz de estabelecer uma ponte entre o excepcional e o previsível. Certamente, uma
cultura não pode ser sustentada exclusivamente pela canonicidade, visto que, além de
manter um conjunto de normas, sua competência também reside em dar significado àquilo
que foge do comum. Uma situação convencional, por si mesma, é autoexplicativa, pois
remete a algo que “todo mundo faz”. Em contrapartida, as exceções à regra sempre incitam
à pergunta do “por quê?” e, invariavelmente, recebem como resposta uma história capaz de
expor as razões para um determinado comportamento excepcional. Para ilustrar esse
procedimento, evoco o seguinte exemplo, formulado por Bruner (1997a, p. 50):
Se alguém entra na agência de correio, desfralda a bandeira americana e começa a acená-la, em resposta à sua pergunta intrigada o seu interlocutor psicológico-popular dirá a você que hoje provavelmente é alguma data nacional que ele mesmo esquecera, que o posto local da Legião Americana pode estar fazendo uma campanha para angariar fundos ou, simplesmente, que o homem com a bandeira é algum tipo de maluco nacionalista cuja imaginação foi tocada por alguma coisa que ele leu em um jornal esta manhã.
É com base nisso que o próprio Bruner (1997b) diferencia a teoria científica da
narrativa. A primeira necessita ser testada e comprovada. Sua viabilidade, portanto, está
condicionada a uma explicação. Pois bem: a narrativa não precisa – e nem pode – ser
explicada. Sua pretensão não é reproduzir a natureza tal qual a encontramos na realidade
física, mas tão somente interpretá-la a partir do ponto-de-vista adotado pelo narrador. Com
isso, a história se torna verossímil, uma vez que reduz o conflito entre uma situação
excepcional e o comportamento canônico culturalmente determinado.
Atribuir à narrativa esse papel conciliador equivale, sem sombra de dúvidas, a
reconhecê-la como um mecanismo pragmático. E não poderia ser diferente, afinal, refiro-me
a um gênero textual, ou seja, a uma entidade lingüística configurada segundo as
necessidades sócio-comunicativas do cotidiano. O ser humano conta e ouve histórias numa
reunião familiar, no ambiente de trabalho, num encontro amoroso, na sala de aula, etc.
Diante dessa diversidade de situações socialmente institucionalizadas, a forma como
constrói sua história varia de acordo com o destinatário. Larossa (2003) afirma que, com
isso, o narrador almeja provocar um sentido específico e, conseqüentemente, promover uma
espécie de “controle” da interpretação.
que nos construimos como individuos particulares, como un quién. Por otra parte, sólo comprendemos quién es otra persona al comprender las narraciones de sí que ella misma u otros nos hacen, o al narrar nosotros mismos alguna parte significativa de su historia” (LAROSSA, 2003, p. 624, tradução do autor).
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E como esse direcionamento de sentidos pode se tornar possível? A meu ver,
exatamente pela relação responsiva que o narrador firma com textos previamente
estabelecidos – e cujo princípio expus no primeiro capítulo deste estudo. Larossa (2003)
salienta que toda história pessoal é um conjunto de outras narrativas que lemos e ouvimos
e, nesse sentido, destaca o papel das histórias exemplares. Trata-se das histórias a partir
das quais o indivíduo sente-se tentado a pensar a sua própria. Elas podem convertê-la em
estereótipo ou, ainda, ampliar a compreensão do narrador sobre si mesmo. Não por acaso a
cultura literária sagrou-se um importante instrumento de reflexão sobre a condição humana,
a expressão ideal da “imitação criadora” de Aristóteles (1966): o dilema de Fausto12 ou o
flagelo de Naziazeno13 são ângulos diferentes do olhar sobre a existência.
As considerações acima me permitem abrir o caminho para realizar a análise proposta
neste trabalho. Em síntese, sustentei que a construção de significados a partir do modelo
narrativo é uma atividade responsiva em relação a textos anteriores e, além disso, funciona
de forma pragmática de acordo com a situação sócio-comunicativa em que se encontra.
Portanto, as propriedades epistemológicas da diegese não podem ser negligenciadas por
um dos meios de comunicação mais influentes de nossa sociedade: o jornalismo televisivo.
“A televisão tem uma espécie de monopólio de fato sobre a formação das cabeças de uma
parcela muito importante da população” (BOURDIEU, 1997, P. 23). Com base nisso,
demonstrarei, em breve, que o gênero reportagem de televisão também recorre a elementos
constitutivos da narrativa e, como conseqüência, viabiliza espaços para interpretações
direcionadas.
3.2 A composição do corpus
Pertencer ao gênero reportagem de televisão foi justamente o primeiro requisito para
os textos que compõem o corpus deste estudo. Assim, optei por reunir três matérias
jornalísticas, veiculadas em rede nacional no segundo semestre de 2005. O período de
divulgação, contudo, é irrelevante para a análise pretendida – neste caso, apenas coincide
com o intervalo de tempo em que empreendi a seleção do material pertinente a este
trabalho. Meu interesse foi essencialmente reunir um material que apresentasse indícios de
12 Personagem-título da obra mais célebre do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), Fausto é um intelectual desiludido com o mundo, que aceita vender sua alma ao diabo em troca dos prazeres da vida.13 Protagonista do romance Os ratos, do escritor gaúcho Dyonélio Machado (1895-1986). A história conta o drama de Naziazeno, que parte em busca de dinheiro para pagar o fornecimento de leite.
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narrativa em sua estrutura textual. Para tanto, procurei as reportagens propriamente ditas na
programação da emissora de TV aberta de maior alcance nos lares brasileiros: a Rede
Globo de Televisão. Segundo dados divulgados no site institucional da empresa14, sua
estrutura de difusão compreende 121 emissoras, entre geradoras e afiliadas, que garantem
a transmissão do seu sinal em 99,84% dos 5.043 municípios do país.
Todas as reportagens foram extraídas da programação esportiva da TV Globo. Mais
precisamente, das duas principais atrações jornalísticas da emissora nesse segmento: duas
matérias foram veiculadas no programa Globo Esporte, criado há 25 anos e normalmente
transmitido de segunda-feira a sábado, no horário entre 12h45min e 13h15min; e a outra foi
apresentada no Esporte Espetacular, veiculado pela primeira vez há trinta anos e que ocupa
a grande de programação nas manhãs de domingo.
Portanto, cabe destacar que o outro requisito fundamental para a delimitação do
corpus diz respeito à temática das reportagens escolhidas. As três matérias, sem distinção,
promovem a cobertura de um fato noticioso relacionado ao esporte, conforme demonstra a
tabela abaixo:
Tabela 2 – Classificação das reportagens do corpus
FATO NOTICIADO PROGRAMA DATA DE VEICULAÇÃO
Reportagem 1 A folga na fazenda do piloto de Stock Car Hoover Orsi
Esporte Espetacular
11/09/2005
Reportagem 2 A chegada ao Brasil do filho sueco do ex-jogador de futebol
Mané Garrincha
Globo Esporte
07/11/2005
Reportagem 3 Jogo de futebol Vasco x Paysandu, pela Série A do
Campeonato Brasileiro 2005
Globo Esporte
21/11/2005
Fonte: tabela elaborada pelo autor
3.2.1 Esporte, uma paixão nacional14 Disponível em: http://redeglobo3.globo.com/institucional
62
Observando atentamente os fatos noticiados em cada uma das reportagens, é possível
perceber que seu enfoque está direcionado a duas modalidades esportivas específicas: o
automobilismo e o futebol. Esse aspecto também exerceu influência na composição do
corpus, uma vez que esses eventos possuem um grande apelo junto ao público brasileiro –
capazes, portanto, de mobilizar um grande contingente de torcedores nos estádios, nos
autódromos e, certamente, diante da televisão.
O automobilismo possui, há pelo menos 34 anos, uma forte identificação com o público
brasileiro. Em sua principal categoria, a Fórmula 1, os pilotos do Brasil souberam conquistar
espaço entre os grandes vencedores. De fato, o país possui o maior número de títulos
mundiais: são oito, à frente da Inglaterra e da Alemanha, detentoras de sete conquistas. A
trilha de vitórias, aberta por Emerson Fittipaldi com os títulos de 1972 e 1974, foi seguida
com louvor pelos tricampeões Nelson Piquet e Ayrton Senna. Este último, apesar de sua
morte prematura em 1994, ainda segue na memória coletiva como o símbolo definitivo da
brasilidade nas pistas de corrida. Quem acompanhou a competição nas últimas duas
décadas não esquece do famoso Tema da Vitória – entoado nas transmissões da Rede
Globo em cada prova vencida por Senna – nem da célebre imagem da bandeira nacional
agitada pelo próprio piloto ainda dentro do cockpit, em meio à euforia de cruzar em primeiro
a linha de chegada.
A paixão do brasileiro pela velocidade também é verificada na Stock Car, tema de uma
das reportagens selecionadas para o corpus do estudo. Reconhecidamente a principal
categoria do automobilismo nacional, a competição tem levado cada vez mais torcedores
aos autódromos. Se, em 1999, o público era de oito mil pessoas a cada prova, em 2006
essa média alcançou a marca de 33 mil. O crescimento também multiplicou
consideravelmente as cifras da Stock Car brasileira: nos últimos sete anos, os promotores
do campeonato aumentaram seu faturamento de R$ 20 milhões para R$ 250 milhões.15
Entretanto, nem mesmo o espetáculo milionário da Stock Car é capaz de destituir o
futebol do posto de preferência nacional. A relação do brasileiro com esse esporte
transcende as quatro linhas do campo e as arquibancadas dos estádios. Gastaldo (2002)
chega ao ponto de incluí-la entre as manifestações culturais que moldam a identidade do
país, como o carnaval e as religiões afro-brasileiras. E arrisco-me a dizer que, em
15 Fonte: reportagem publicada na revista eletrônica ISTOÉ DINHEIRO on-line, disponível em: http://www.terra.com.br/istoedinheiro/469/negocios/formula_de_lucros.htm
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determinadas ocasiões, assume uma preponderância sobre as mesmas: nos centros
urbanos onde a rivalidade clubística está fortemente enraizada na formação cultural da
população, assumir a torcida por um time se torna condição obrigatória. É comum encontrar
pessoas que não tenham uma resposta imediata quanto à sua preferência partidária ou
orientação religiosa. No entanto, quando questionadas sobre futebol, prontamente declaram-
se flamenguistas, gremistas, colorados, são-paulinos, etc.
E de que forma o Brasil contemporâneo passou a fortalecer seus laços com o futebol?
Segundo Gastaldo (2002), foi a partir da conquista da primeira Copa do Mundo pela Seleção
Brasileira, em 1958, na Suécia, que o esporte se tornou um relevante fator de diferenciação
do brasileiro em relação aos povos estrangeiros. No futebol, foi criada uma espécie de
identidade brasileira, da qual a conduta conhecida como “malandragem” se tornou o
principal expoente. O “ser malandro” – que, no contexto sócio-cultural do Brasil, refere-se ao
indivíduo malicioso e oportunista – no jogo, corresponde ao equilíbrio psicológico, à
esperteza e à experiência.
Essa identidade faz do futebol-arte – marcado pela técnica e a plasticidade das
jogadas – um motivo de orgulho para os brasileiros e, por conseqüência, um argumento de
supremacia ante o futebol-força característico das nações européias, no qual impera a
imposição física dos atletas. Afinal de contas, foi “jogando bonito” que a Seleção Brasileira
alcançou a marca inédita de cinco títulos mundiais. Não é por acaso que o sentimento de
patriotismo no Brasil alcança o seu ápice não nas comemorações cívicas, como o sete de
setembro; mas durante a Copa do Mundo, quando “se celebra o ideal da nacionalidade
triunfante, num clima de competição internacional em que o Brasil é sempre favorito, ‘o
melhor do mundo’, mesmo quando perde” (GASTALDO, 2002, p. 22).
Como mediador entre o acontecimento e o público, o jornalismo nitidamente exerce
papel preponderante para a manutenção dessa correspondência entre o brasileiro e as
modalidades esportivas mencionadas. Aqui, novamente ponho em questão o que expus no
capítulo anterior acerca da relação entre o ocorrido e a sua conversão em notícia: o que é
transposto para o veículo de comunicação consiste tão somente numa visão fragmentada do
mundo real, determinada por um conjunto de critérios intrínsecos à atividade jornalística. E
dentre eles, cabe salientar, sempre predominará a transformação do fato num relato capaz
de despertar o interesse do espectador.
3.2.2 O esporte na tela
64
Nas reportagens esportivas de televisão reunidas no corpus desta pesquisa, verifica-se
claramente que o relato feito por seus respectivos repórteres não se restringe ao fato
noticiado. Com o auxílio de recursos audiovisuais – como é de se esperar no jornalismo
televisivo – os três textos selecionados apontam para o caminho oposto: tecem uma malha
de sentidos além do acontecimento em si, imergindo a notícia na esfera do extraordinário.
Como expliquei num momento anterior, a ação conjunta dos signos verbais e não-verbais
resulta num efeito metafórico que possibilita às reportagens de televisão dimensionar os
eventos narrados da forma mais apropriada à conquista da audiência.
Tendo em vista que não há um método que assegure a reprodução fiel desse conjunto
significativo da reportagem telejornalística, optei por descrever o corpus segundo o
procedimento de translação, definido por Rose (2004) como uma codificação ou transcrição
da linguagem empregada no texto de TV. Dada a complexidade do objeto de estudo,
ressalta-se, nessa prática, que “ao transcrever material televisivo, devemos tomar decisões
sobre como descrever os visuais, se vamos incluir pausas e hesitações na fala, e como
descrever os efeitos especiais, tais como música ou mudanças na iluminação” (ROSE,
2004. p. 344). Assim, dividi a transcrição de cada uma das reportagens analisadas em dois
planos: o verbal, correspondente ao texto; e o audiovisual, referente às imagens (Im) e aos
efeitos sonoros (ES). Respeitei, para isso, a terminologia usual da prática telejornalística – já
esclarecida no capítulo anterior.
Na Reportagem 1, esses dois planos foram combinados sob o intuito de exaltar o estilo
de vida do entrevistado fora de sua principal ocupação. A matéria do repórter Cleiton
Conservani mostra o piloto Hoover Orsi num momento idílico, em sua fazenda, repousando
após conquistar uma importante vitória em uma das etapas do campeonato de 2005 da
Stock Car. A reportagem está transcrita da seguinte forma:
Tabela 3 – Transcrição da Reportagem 1
PLANO VERBAL PLANO AUDIOVISUAL
CABEÇA: Nada como a natureza para esfriar a cabeça e aliviar as tensões do dia-a-dia. Essa é a estratégia de um piloto da Stock Car para continuar vencendo as corridas.
Im = Apresentadora anunciando a matéria no estúdio; chroma key ao fundo
Im = Hoover Orsi andando numa estrada de terra, em slow motion; enquadramento em suas
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(não há texto)pernas, usando calça jeans e botas
ES = Música em ritmo lento, estilo faroeste
PASSAGEM (Cleiton Conservani): “Da estradinha de terra, sem pressa, para o asfalto, a mais de 200 quilômetros por hora.”
Im = O repórter Cleiton Conservani fala sentado numa porteira
(não há texto) Im = Carro de Hoover em alta velocidade, numa pista de corrida
ES = Música em ritmo mais acelerado
(não há texto) Im = Close nas mãos de Hoover, podando bonsais, em slow motion
ES = Música em ritmo lento, estilo faroeste
PASSAGEM (Cleiton Conservani): “As mãos que podam as plantas com cuidado também precisam de sensibilidade com o volante.”
Im = Cleiton fala enquanto passa por uma porteira de fazenda
(não há texto) Im = Carro de Hoover em alta velocidade na pista de corrida
ES = Música em ritmo acelerado
PASSAGEM (Cleiton Conservani): “O caubói Hoover Orsi gosta de um cavalinho. Mas ele prefere mesmo é domar as máquinas com 450 cavalos de potência. Um é pouco?”
SONORA (Hoover Orsi): “Um é pouco.”
Im = Enquanto Cleiton fala, a câmera mostra Hoover e, a seguir, enquadra o repórter junto, ambos montados em cavalos
(não há texto)
Im = Carro de Hoover em alta velocidade na
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pista de corrida, dessa vez em slow motion
ES = música em ritmo lento, estilo faroeste
OFF: O vice-líder da temporada nasceu em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Na adolescência, se mudou (sic) para São Paulo, morou nos Estados Unidos e, agora, está de volta à terra natal. Hoover aposta na fórmula da simplicidade para engrenar de vez no campeonato.
Im = Começa com um close na roda de um trator; em seguida, mostra Hoover dirigindo o veículo e, depois, montado em um cavalo
SONORA (Hoover Orsi): “Moro num sítio, tranqüilidade total... Com certeza, chego nas (sic) corridas com a cabeça mais tranqüila do que dos outros pilotos que moram naquela agitação da cidade.”
Im = Hoover falando, com a casa da fazenda ao fundo
OFF: Na última etapa, em Londrina, ele mostrou que a vida no campo está surtindo efeito. Pilotou com tranqüilidade nas 33 voltas e venceu de ponta-a-ponta. Foi a segunda vitória dele.
Im = Cenas de Hoover durante a etapa de Londrina da Stock Car: cruzando a linha de chegada, correndo a prova e chegando ao box com a equipe em festa
OFF: O líder do campeonato, Cacá Bueno, não completou a corrida por causa de um acidente com Tiago Matos, companheiro de equipe.
SOBE SOM (narrador da transmissão ao vivo): “Batida forte, ali, ó!”
Im = Acidente de Cacá Bueno, na etapa de Londrina
ES = sobe som do locutor da Rede Globo, na ocasião da transmissão ao vivo da prova
OFF: Depois de seis etapas, apenas 14 pontos separam Hoover de Cacá.
Im = Hoover no pódio, festejando o título da etapa de Londrina
OFF: Na fazenda, ele encara o perigo com a mesma prudência que (sic) acelera na pista. E no pasto, o respeito é ainda maior.
Im = Hoover andando na fazenda e chegando perto de um boi para acariciá-lo; em seguida, close do rosto do animal cheirando a câmera
SOBE SOM (Hoover Orsi): “Ó, ó... Tá brabo!”
Im = Boi avançando a cabeça contra o rosto de Hoover
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SONORA (Hoover Orsi): “Meus adversários eu consigo lidar com eles na pista, mas, agora, com um... com um bicho desses, se estiver atrás de mim, é só sair correndo, mesmo!”
(risos de Cleiton)
Im = A sonora de Hoover é totalmente coberta por um close da cara do boi
OFF: O inofensivo filhote de quero-quero não representa nenhum perigo.
Im = Hoover segurando um filhote de quero-quero na mão e, depois, tentando devolvê-lo ao ninho, no chão, enquanto olha para o céu à procura de algo
OFF: Mas a mãe aguarda um descuido para atacar...
Im = Quero-quero voando
ES = Sobe som do quero-quero gritando
OFF: ...assim como os rivais devem fazer, em Brasília.
Im = Hoover devolvendo o filhote ao ninho
SONORA (Hoover Orsi): “Vamos acelerar, a minha equipe tá numa evolução muito grande, o carro melhorando a cada corrida, Brasília é a sede da minha equipe, com certeza a gente vai ter um carro bem acertado pra lá e não vejo a hora de chegar ao dia 18.”
Im = Durante a sonora, Hoover fala a Cleiton enquanto acaricia a cabeça de um bezerro
OFF: Enquanto isso, Hoover se dedica à coleção de bonsais...
Im = Hoover caminhando num viveiro de bonsais e podando uma das plantas
ES = Música estilo faroeste, mas em ritmo mais rápido do que a do início da reportagem
OFF: ...e brinca com os bezerros. Os animais são bem mais dóceis e confiáveis do que os
Im = Hoover acariciando os bezerros; após, caminhando em direção aos mesmos, que se afastam, intimidados
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pilotos, que não têm medo...ES = Continua a música estilo faroeste
OFF: ...do caubói do asfalto.Im = Cenas de Hoover na corrida se alternam com uma outra, do piloto acariciando os bezerros na fazenda; encerra com um slow motion do carro dele correndo
ES = Continua a música estilo faroeste até o fim da reportagem
Fonte: tabela elaborada pelo autor
Na Reportagem 2, apresento mais um exemplo de fato jornalístico que transcende a
prática do esporte em si. Neste caso, o futebol é apenas o pretexto para uma história
marcada pela emoção do resgate dos valores familiares. Nela, o repórter Edson Vianna
mostra o encontro das filhas do falecido craque da Seleção Brasileira Mané Garrincha com o
irmão sueco, fruto de um relacionamento extraconjugal do jogador durante uma visita à
Europa. A matéria relata o encontro, sem deixar de realizar um resgate da genialidade do
célebre atleta nos gramados. Sua estrutura está descrita na tabela abaixo:
Tabela 4 – Transcrição da Reportagem 2
PLANO VERBAL PLANO AUDIOVISUAL
CABEÇA: Há 46 anos, na cidade de Olmea, norte da Suécia, nascia um bebê chamado Ulf. Anos depois, ele veio a descobrir que tinha uma ligação genética com o futebol brasileiro e, agora, tem a oportunidade de conhecer a família.
Im = Apresentadora anunciando a matéria no estúdio; chroma key ao fundo
OFF: Márcia e Rosângela olham ansiosas! Não é todo dia que duas brasileiras conhecem o irmão sueco.
Im = Márcia e Rosângela no saguão do aeroporto, ansiosas, tentando olhar algo distante
SONORA (Rosângela, filha de Garrincha): “É curioso, né? E... ai, eu to muito nervosa! Mas chegou muito cedo...”
Im = Rosângela falando, com várias pessoas no saguão do aeroporto, ao fundo
SONORA (Márcia, filha de Garrincha): “Tem sido muito gostoso a ansiedade, sabe? Aquela coisa de ver, abraçar... Muito legal!”
Im = Márcia falando, com várias pessoas no saguão do aeroporto, ao fundo
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OFF: Foi quando Garrincha voltou à Suécia com o Botafogo, um ano após encantar o país na Copa de 58. Ele conheceu uma sueca. Um encontro bastou.
Im = Cenas antigas, em preto-e-branco, de Garrincha driblando os adversários e do público no estádio vibrando.
ES = Música no ritmo de chorinho
SONORA (Rosângela): “A gente queria conhecer, mas só pra gente ir lá, não dava. Tem que esperar a oportunidade dele vir até aqui, né?”
Im = Rosângela falando, com várias pessoas no aeroporto, ao fundo
OFF: Ulf Lindberg é o sétimo da excursão a desembarcar... Im = Ulf chegando ao saguão do aeroporto
OFF: ...como sete era a inesquecível camisa do pai.
Im = Cena antiga, em preto-e-branco, de Garrincha de costas, o número sete da camisa do Botafogo em destaque
OFF: E o jeito de andar elimina qualquer dúvida. Familiar, com certeza!
Im = Enquanto Ulf caminha, a câmera enquadra apenas as pernas dele; após, uma imagem antiga, em preto-e-branco, de Garrincha caminhando da mesma maneira
OFF: O abraço que esperou 46 anos é tímido, mas carinhoso. Quase uma lembrança.
Im = Ulf abraça Márcia, com fotógrafos registrando o momento (a cena termina em slow motion)
SONORA (Márcia): “O sorriso... hã... o olhar... tá... parece muito! Os lábios, né?”
Im = Enquanto Márcia fala, o enquadramento transita entre ela e Ulf, terminando com um close no rosto dele
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OFF: Ulf diz que somente agora se sentiu pronto para conhecer a família brasileira.
Im = Ulf, entre seu filho e Márcia, fala em sueco ao microfone da reportagem
OFF: De sangue, a única. Ele foi deixado pela mãe – que nunca viu – num orfanato, quando nasceu. Aos oito anos, descobriu que era a herança de um gênio.
Im = Cenas de Ulf na Suécia, olhando e reunindo fotos e reportagens de jornais a respeito de Garrincha
ES = Música no ritmo de chorinho
OFF: Ele fala que as pessoas na Suécia não esquecem a Seleção de 58. E sempre dizem: “Lá está o filho de Garrincha!”
Im = Começa com imagem de Ulf falando ao microfone da reportagem; muda para imagens antigas, em preto-e-branco, de Garrincha marcando gol e driblando os adversários
ES = Música no ritmo de chorinho, junto às imagens antigas
OFF: E com a marca do futebol no DNA.
Im = Foto preto-e-branco de Ulf mais jovem, fazendo embaixadas com uma bola
ES = Música no ritmo de chorinho
PASSAGEM (Edson Vianna): “Ulf chegou a trabalhar como treinador, mas, hoje, vende lanches em uma praça, em Hansal, na Suécia. E, segundo ele, o talento para o futebol pulou uma geração: foi parar no filho, Martin.”
Im = Edson Vianna falando para a câmera, que o tira de enquadramento, mostra Ulf com as irmãs e realiza um close no rosto do filho do sueco
OFF: Inevitavelmente, chega a bola. Martin tabela com Rafael e as palavras se tornam dispensáveis no primeiro contato entre primos tão improváveis.
Im = Martin e Rafael trocam passes com a bola, de cabeça
SONORA (Rosângela): “Nós estamos muito emocionada (sic), eu não sei nem o que eu vou falar, de tão... tô suando frio...”
Im = Rosângela fala, com uma porta de vidro ao fundo
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OFF: Ulf diz que tudo é muito intenso! Cada dia no Brasil vai ser especial. Quer conhecer o Botafogo e a cidade onde o pai nasceu. Ele que se prepare!
Im = Primeiramente, Ulf fala ao microfone da reportagem; após, a câmera o mostra praticando embaixadas, de forma desajeitada
SONORA (Rosângela): “Churrasco, feijoada... Pra ele provar, ver se ele nunca comeu, né? Aí, vamos fazer um pouquinho de comida, né? Brasileira, pra ele.”
Im = Rosângela fala, com uma porta de vidro ao fundo
OFF: Mimos para o único irmão homem ainda vivo.
Im = Ulf tenta praticar embaixadas, mas involuntariamente chuta a bola para longe
OFF: No total, Garrincha teve quinze filhos.Im = Imagem congelada de Ulf na casa dele, enquanto uma foto preto-e-branco de Garrincha surge ao lado dele (efeito visual da reportagem)
OFF: O grande encontro é sábado, em Pau Grande, a cidade-natal.
Im = As duas irmãs, uma de cada lado, beijam Ulf no rosto
OFF: E promete ser tão alegre quanto cada jogada, cada drible, cada lance do patriarca. Simples e genial, ele fez o Brasil tão feliz que a gente até se sente parte da família, também.
Im = uma série de cenas antigas – a maioria em preto e branco – de Garrincha driblando e fazendo gol
ES = Música no ritmo de chorinho
Fonte: tabela elaborada pelo autor
Por último, a Reportagem 3 parte de uma proposta diferente em comparação ao
restante do corpus, pois, desta vez, o fato noticiado consiste, sim, num evento esportivo. O
repórter Régis Rösing relata não apenas a partida de futebol disputada entre Vasco da
Gama e Paysandu, como também apresenta a situação de ambos os times no Campeonato
Brasileiro 2005 antes e depois do confronto. Contudo, na reportagem analisada, Rösing
manteve o estilo que o alçou ao status de um dos mais notáveis repórteres esportivos da
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televisão brasileira: o uso recorrente de metáforas em suas matérias. É através delas,
ignorando muitas vezes o sentido literal das palavras, que suas reportagens buscam a
correspondência entre texto, imagem e som. Esta, que também me propus a analisar, não
foi exceção. A transcrição abaixo comprova que sua configuração significativa eleva o fato
narrado a um patamar além de um simples jogo de futebol:
Tabela 5 – Transcrição da Reportagem 3
PLANO VERBAL PLANO AUDIOVISUAL
CABEÇA: Ele já marcou 20 gols em 29 jogos, média de 0,69 por jogo. Estamos falando de Romário, que deixou o Paysandu mais perto da Segundona.
Im = Apresentadora anunciando a matéria no estúdio; chroma key ao fundo
OFF: Na lona, estava o Gigante da Colina.
Im = Boneco inflável gigante, caído ao chão do estádio de São Januário, do Vasco da Gama
OFF: Nocauteado por... cinco cruzados do Figueirense!
Im = Cinco gols do Figueirense, na partida contra o Vasco; a imagem congela após o último
ES = Cada gol recebe o efeito sonoro de um tiro e, após o último, surge uma música vibrante que remete à Idade Média
OFF: Empurra, puxa, segura... Tentam de tudo para reanimá-lo.
Im = Série de imagens rápidas dos funcionários do estádio tentando erguer o boneco inflável
SOBE SOM (torcida vascaína): “Sou eu, sou eu...”
Im = Festa da torcida, nas arquibancadas; torcedores cantam e mexem os braços de forma uniforme
ES = Sobe som da torcida cantando
Im = Romário conduzindo a bola no pé e cumprimentando o repórter Régis Rösing ao
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OFF: Sou eu, Doutor Romário! Trazendo comigo o remédio. Se é assim, toca aqui, baixinho! E bom trabalho!
passar por ele
SOBE SOM (Romário para Robson): “Bom trabalho!”
PASSAGEM (Régis Rösing): “Romário e Robgol. Os dois brigam pela artilharia do Campeonato Brasileiro.”
Im = A imagem começa em Romário e Robson se cumprimentando e pára em Régis Rösing, que completa a sua fala
OFF: O Gigante da Colina se levanta...Im = Boneco inflável gigante de pé
ES = Música de suspense
OFF: ...com o empurrãozinho do Diego, no primeiro minuto do segundo tempo.
Im = Gol de Diego e replay do lance, em slow motion
OFF: Aos quatro minutos, volta a caminhar...
Im = Boneco inflável sendo puxado por funcionários do estádio
ES = Música de suspense
OFF: ...com a injeção de vitamina na veia dada pelo Moraes.
Im = Moraes chuta forte, de fora da área adversária, e manda a bola no ângulo superior esquerdo da goleira do Paysandu, marcando o gol; em seguida, o lance é mostrado num replay em slow motion
OFF: Aos sete minutos, já respira aliviado...Im = Boneco inflável de pé
ES = Música de suspense
(não há texto)Im = Close no ventilador do boneco inflável
ES = Sobe som do barulho do ventilador
OFF: ...com a dose dupla intercalada que recebeu: Marco Brito... Romário... Marco Brito...
Im = Troca de passes entre Marco Brito e Romário, que culmina no gol deste último; após, o replay do lance, em slow motion
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Romário, que faz três a zero...
OFF: ...e sai à procura do companheiro para agradecer o passe que recebeu. “Cadê ele? Cadê ele?” “Ta lá”, aponta o Diego.
Im = Romário olha para os lados, à procura de Marco Brito e a imagem congela no momento em que Diego aponta a localização do jogador
(não há texto)Im = Romário abraça Marco Brito
ES = Sobe som da torcida vibrando
OFF: E aos 41 minutos, para segurar o Gigante da Colina...
Im = Funcionário do estádio segura uma corda para manter o boneco em pé
OFF: ...ainda mais na Série A, Romário faz Vasco quatro a zero.
Im = Gol de Romário, o quarto do Vasco e o último da partida; em seguida, o lance é mostrado em replay, em velocidade normal
OFF: Renato Gaúcho vai até o banco de reservas do Paysandu de Carlos Alberto Torres, que, agora, tem 99,8 por cento de risco de ser rebaixado.
SOBE SOM (Renato para Carlos Alberto): “Desculpa, aí, mas é por causa da profissão.”
Im = Câmera acompanha o técnico do Vasco, Renato Gaúcho, indo à casamata do Paysandu e abraçando o técnico Carlos Alberto Torres.
ES = Sobe som Renato se desculpando para Carlos Alberto
SONORA (Régis pergunta): “E agora, Carlos Alberto?”
SONORA (Carlos Alberto responde): “Quê? Agora vamos embora, pra casa, ficar torcendo para os outros resultados favorecerem a nossa equipe, mas ainda acho difícil. Porém, nada é impossível em futebol.”
Im = Enquanto responde ao repórter, Carlos Alberto Torres deixa a casamata e, durante a sonora, foi inserida a imagem de um chute a gol do Paysandu, que acerta a trave da goleira vascaína; logo após, volta para a imagem do técnico respondendo à pergunta
SONORA (Régis exclama): “Vinte gols!”
SONORA (Romário responde): “É, fico feliz... hã... por ter... hã... ajudado o Vasco mais uma vez, fiz dois gols e conseguido chegar um pouco mais próximo, aí, do artilheiro do campeonato.”
Im = Enquanto caminha em direção ao vestiário, Romário responde à pergunta, cercado por repórteres
75
OFF: Um gol apenas separa Romário de Robson.
Im = Prossegue a imagem anterior, com Romário se dirigindo ao vestiário
OFF: Isso já é o suficiente para fazer... Im = Repete o ultimo gol da partida, em slow motion
OFF: ...o Gigante da Colina desejar uma ótima semana para todos.
Im = Começa no boneco gigante de pé e, a seguir, enquadra o placar eletrônico do estádio com a mensagem “Uma ótima semana para todos”
ES = Música de suspense
SOBE SOM (torcida): “Sou eu... sou eu...”Im = Segue a imagem do placar eletrônico
ES = Sobe som da torcida cantando
Fonte: tabela elaborada pelo autor
3.3 Narrativa no ar: o esporte como notícia
O procedimento de translação acima revela com propriedade que há muito mais nas
reportagens selecionadas do que simples relatos de fatos noticiosos. Um olhar superficial
acerca da ação conjunta entre seus planos verbal e audiovisual já basta para pôr em
evidência similaridades com as histórias que a tradição oral e os livros perpetuaram no
imaginário coletivo. De fato, as três matérias jornalísticas em análise partem de
personagens específicos, que enfrentam uma trama envolta em percalços para atingir o seu
respectivo “final feliz” – seja a glória de uma conquista, o merecido repouso ou a
reestruturação familiar.
Essa relação será aprofundada à luz de alguns dos principais nomes da narratologia,
aos quais recorrerei segundo uma conduta seletiva, pertinente ao que o corpus da pesquisa
apresenta em sua composição textual e imagética. Dessa forma, a análise a seguir
contemplará cinco aspectos constitutivos da narrativa, que julgo serem imprescindíveis para
a compreensão da estrutura diegética: o foco narrativo, os personagens heróicos, a
76
dimensão episódica, a dimensão temporal e a dimensão espacial. Esses elementos
fornecerão a base para uma posterior crítica da espetacularização do cotidiano – objetivo
último deste trabalho.
3.3.1 Repórter: o olhar de quem narra
Começarei, portanto, com a exigência básica de qualquer texto que se suponha
narrativo: a presença tanto daquele que narra o acontecido quanto do outro a quem essa
mesma narração se destina. Conforme Benveniste (1976), a comunicação lingüística por si
só já pressupõe a participação das pessoas eu e tu, que podem ser respectivamente
identificadas aqui como o narrador e o ouvinte. Esses sujeitos nem sempre estão
claramente visíveis na superfície do texto narrativo. Cabe, portanto, a um sistema de signos
a tarefa de imprimir as suas marcas, ainda que de forma sutil.
Barthes (1976) sustenta que os signos do ouvinte estão mais disfarçados do que os do
narrador – por sua vez, plenamente observáveis numa narrativa em primeira pessoa, por
exemplo. Os signos de leitura, dessa forma, podem ser localizados toda vez que o sujeito
eu relaciona fatos dos quais tem perfeito conhecimento, “pois não teria sentido que o
narrador desse a si mesmo uma informação” (BARTHES, 1976, p. 47). Essa relação eu/tu é
justamente o que move qualquer produção jornalística: todos os fatos dispostos numa
matéria já foram previamente coletados pelo repórter antes de sua transformação em
notícia. Assim, a sua posterior divulgação não visa ao jornalista já ciente dos
acontecimentos, mas ao público que recorre aos meios midiáticos para manter-se
informado.
Mediante essa idéia, não é surpresa que o próprio repórter seja classificado como o
narrador dos textos pertencentes ao gênero reportagem de televisão. Portanto,
considerando que o presente trabalho está centrado nas condições de produção das
matérias televisivas selecionadas, minha análise, de início, voltar-se-á exclusivamente para
o foco narrativo, ou seja, para as formas de manifestação do narrador no conjunto
significativo textual.
Um ponto crucial no foco narrativo das obras literárias sempre foi a diferenciação entre
o autor e o narrador. Para Barthes (1976, p. 48), “narrador e personagem são
essencialmente ‘seres de papel’; o autor (material) de uma narrativa não se pode confundir
77
em nada com o narrador desta narrativa”. De uma forma geral, quem escreve cria um
personagem, atrelado a um nível referencial, através do qual conta a história pretendida.
Com isso, o narrador se constitui num ser ficcional autônomo. “As idéias, os
sentimentos, a cosmovisão do narrador de um texto literário não coincidem necessariamente
com o ponto de vista do autor” (D’ONÓFRIO, 2004, p. 54). É como no seguinte trecho de A
paixão segundo G.H., de Clarice Lispector:
Não fora eu quem repelira o quarto, como havia por um instante sentido à porta. O quarto, com sua barata secreta, é que me repelira. De início eu fora rejeitada pela visão de uma nudez tão forte como a de uma miragem; pois não fora a miragem de um oásis que eu tivera, mas a miragem de um deserto. Depois eu fora imobilizada pela mensagem dura na parede: as figuras de mão espalmada haviam sido um dos sucessivos vigias à entrada do sarcófago. E agora eu entendia que a barata e Janair eram os verdadeiros habitantes do quarto. (LISPECTOR, 1998, p. 49).
No romance em questão, o sujeito eu remete à personagem G.H. e,
conseqüentemente, aos seus conflitos internos. A adoção da perspectiva em primeira
pessoa, portanto, foi o modo que a autora julgou conveniente para expor ao leitor a angústia
da personagem ao rever suas convicções sobre uma sociedade sustentada pela
desigualdade de classes. Não se trata, portanto, de sentimentos guardados no íntimo da
própria escritora. O que existe, aqui, é um nítido contraste entre os circuitos externo e
interno da atividade lingüística: a autora, Clarice Lispector, pertencente à realidade física,
cria uma narradora, G.H., cuja história está restrita aos limites do texto literário.
Em síntese:
Figura 7 – Circuitos do foco narrativo literário
CIRCUITO EXTERNO(realidade física) CIRCUITO INTERNO
(texto literário)
Autor(escritor)
Narrador(personagem)
78
Fonte: diagrama elaborado pelo autor
Pois bem: até aqui, referi-me exclusivamente à diferenciação dos emissores no âmbito
da literatura. Considerando as três reportagens televisivas constitutivas do corpus desta
pesquisa, afirmo que essa distinção se mantém apenas parcialmente na enunciação
jornalística. Primeiramente, é preciso esclarecer que o repórter transita entre os dois
circuitos do foco narrativo. Na Reportagem 1, por exemplo, quem relata o estilo de vida do
piloto Hoover Orsi é o mesmo Cleiton Conservani que efetivamente o acompanhou, ora
conversando com o entrevistado, ora observando sua interação com os animais e seus
demais passatempos. A participação do repórter na realidade física e na esfera criativa
verifica-se de igual modo nas outras duas matérias televisivas: o próprio Edson Vianna narra
o encontro familiar que, de fato, testemunhou; e Régis Rösing, por sua vez, conta ao público
o que seu olhar registrou durante o jogo entre Vasco da Gama e Paysandu, assim como os
fatos dos bastidores que avaliou como merecedores de exposição.
Mas de forma alguma o repórter assume sozinho a responsabilidade pela criação
textual. No circuito externo, a exclusividade de um único autor encontra-se abalada por um
dos principais filtros aos quais a notícia se submete no decorrer de sua elaboração: a
intervenção editorial. As matérias jornalísticas produzidas pelos três repórteres citados
acima dificilmente passaram incólumes pelo olhar de um ou mais editores antes de sua
veiculação. E estes, ao revisarem, modificarem ou aprovarem os textos, estarão, da mesma
forma, admitindo sua participação como emissores do enunciado. Estabelece-se, com isso,
uma relação de co-autoria com o repórter, detentor do conhecimento extraído diretamente
das ruas.
Em suma, o foco narrativo jornalístico admite a existência de duas espécies autorais: o
emissor que age, na maioria das vezes anônimo, nos bastidores das redações; e um outro,
que não apenas toma parte do processo criativo como também habita cada linha do texto
imaginado. Isso inevitavelmente torna o repórter um narrador por excelência, isento da
necessidade de buscar no campo da fantasia um outro que conte a história em seu lugar. O
seu comprometimento com a veracidade dos fatos noticiados exige que ele próprio assuma
a responsabilidade de contar o que viu. Neste caso, criar um personagem para narrar a
reportagem significaria ferir a objetividade tão defendida pelos profissionais do jornalismo
em seu esforço de transpor o cotidiano para os meios midiáticos. É a controversa natureza
da narratividade jornalística: por mais que a notícia, em essência, seja um recorte da
realidade mediado pelo ponto de vista de quem a produz, a presença desse mesmo
79
jornalista com convicções e ideologias próprias confere-lhe um grau de credibilidade junto
ao público que um narrador provindo do imaginário seria incapaz de alcançar.
Assim, o foco narrativo no interior da atividade jornalística pode ser ilustrado como no
modelo a seguir:
Figura 8 – Circuitos do foco narrativo jornalístico
Fonte: diagrama elaborado pelo autor
Porém, essa co-autoria ou a unificação do autor e do narrador no mesmo repórter,
enquanto particularidades do foco narrativo jornalístico, não o eximem de adotar
características inerentes ao espectro de determinadas modalidades de textos literários.
Acredito que essa similaridade recai sobre a tipologia de narradores empregada em ambos
os gêneros textuais. Se na literatura a variação de vozes nos circuitos externo e interno
induz a uma multiplicidade de formas de manifestação do narrador, no jornalismo algumas
dessas possibilidades são tomadas de empréstimo, a fim de que, ao espectador, seja não
apenas relatada uma informação, mas também contada uma história extraída de
acontecimentos previamente testemunhados pelo repórter.
Por isso mesmo, digo que o espectro narrativo das reportagens jornalísticas
analisadas enquadra-se perfeitamente na categoria que Friedman (2002) denominou “eu”
como testemunha. Nessa modalidade, a postura do narrador limita-se tão somente a relatar
os acontecimentos tais como o foram apresentados. Renega, dessa forma, a vantagem de
observar a história de todos os ângulos imagináveis – ou seja, uma onisciência capaz de
revelar até mesmo os estados interiores dos personagens. No limite último de sua atuação,
o narrador-testemunha pode colher depoimentos dos demais indivíduos envolvidos na ação
e, ainda, fazer inferências acerca do que pensam ou podem vir a fazer.
CIRCUITO EXTERNO(realidade física)
CIRCUITO INTERNO(texto jornalístico)
Repórter/Editor(es)(autor) Repórter
(narrador)
80
Não por acaso as fronteiras de atuação do narrador-testemunha coincidem com as
adotadas pelo repórter que segue fielmente as normas éticas e morais do jornalismo. Em
ambos os casos, o princípio que rege a construção textual adota os próprios acontecimentos
como o limiar da enunciação. Na literatura, por uma questão estética: a configuração do “eu”
narrador é tão somente uma das escolhas possíveis do autor da obra para que consiga
transmitir a história de maneira apropriada ao leitor. No jornalismo, por uma tentativa de
manter a aparência de imparcialidade do veículo de comunicação. “Testemunha, não é à toa
esse nome: apela-se para o testemunho de alguém, quando se está em busca da verdade
ou querendo fazer algo parecer como tal” (LEITE, 2001, p. 37).
Os repórteres-narradores das três matérias selecionadas não devem ser vistos sob
outra roupagem. Sua presença no nível referencial está condicionada a uma localização
periférica, numa distância suficiente para acompanhar o acontecimento narrado sem que
interfiram na sua evolução. Podem, sim, tomar para si a função de personagens, mas longe
de assumirem o papel dos protagonistas das histórias que contam. Seria, conforme
D’Onófrio (2004), o perfil de um personagem ad hoc, isto é, presente na dimensão textual
sob o único intuito de relatar as ações dos outros.
Entretanto, como condicionar inteiramente a matéria jornalística ao ponto de vista de
um único narrador-testemunha, sendo que esse mesmo personagem não detém a
exclusividade da fala? Assim como a Reportagem 1 concede a voz a Hoover Orsi, nas
outras duas ainda mais pessoas fazem-se ouvir: Ulf e suas irmãs brasileiras, na Reportagem
2; o jogador de futebol Romário e o técnico Carlos Alberto Torres, na Reportagem 3. Porém,
evito considerar seus enunciados como manifestações autônomas. Acima de tudo, devem
ser vistos como sonoras previamente selecionadas pelos narradores-repórteres durante o
processo de edição das matérias. Ainda que o recurso do som e da imagem torne
incontestável a autoria dos depoimentos, eles só estão presentes nas reportagens a critério
do próprio narrador. Sua função é justamente preencher lacunas que o repórter, impedido
pelo princípio da imparcialidade, revela-se incapaz de suprir. Abaixo, um exemplo extraído
da Reportagem 216:
PLANO VERBAL PLANO AUDIOVISUAL
OFF: Márcia e Rosângela olham ansiosas! Não é todo dia que duas brasileiras conhecem o irmão sueco.
Im = Márcia e Rosângela no saguão do aeroporto, ansiosas, tentando olhar algo distante
16 No decorrer deste capítulo, retomarei alguns trechos das reportagens submetidas anteriormente ao procedimento de translação, sob o intuito de ilustrar minhas considerações de forma mais nítida.
81
SONORA (Rosângela, filha de Garrincha): “É curioso, né? E... ai, eu to muito nervosa! Mas chegou muito cedo...”
Im = Rosângela falando, com várias pessoas no saguão do aeroporto, ao fundo
SONORA (Márcia, filha de Garrincha): “Tem sido muito gostoso a ansiedade, sabe? Aquela coisa de ver, abraçar... Muito legal!”
Im = Márcia falando, com várias pessoas no saguão do aeroporto, ao fundo
Neste caso, verifica-se que as sonoras das filhas de Garrincha estão presentes na
reportagem como um artifício para transmitir de forma convincente ao espectador a emoção
de ambas momentos antes do encontro com o irmão desconhecido. É um componente
importante do acontecimento que o repórter presenciou e, como tal, mereceu ser
reproduzido para o conhecimento do ouvinte. Portanto, conceder a voz a outras pessoas na
matéria telejornalística é uma espécie de empréstimo que não pode ser desvinculada do
ponto de vista do narrador-testemunha. Ao submeterem-se à separação criteriosa do
repórter e dos editores, os personagens, ainda que indiretamente, nunca falam sozinhos em
seus depoimentos à TV.
Logo, se a apresentação dos fatos decorre direta ou indiretamente do conhecimento
adquirido por um personagem situado na periferia da ação, esse ponto de vista está incluído
no conceito de “visão com”, desenvolvido por Pouillon (1974), no qual tudo o que for contado
deve ser considerado a partir do pensamento do narrador. “Em suma, não é mais a
descrição do mundo em que vive que sugere o sujeito: a descrição do sujeito é que sugere o
seu meio e suas ocupações” (POUILLON, 1974, p. 61).
O grau de subjetividade dessa modalidade de visão faz com que Pouillon (1974)
aponte a narração em primeira pessoa como uma de suas manifestações recorrentes.
Todavia, essa característica dificilmente é encontrada no gênero reportagem televisiva, no
qual a preocupação é sustentar uma postura de neutralidade em relação aos eventos
noticiados. Mas de que forma, então, o espectador pode saber que está assistindo ao relato
de um narrador mais ou menos envolvido na história?
Justamente pelas ferramentas audiovisuais que diferenciam a televisão dos demais
veículos midiáticos. Para começar: o texto na TV é um texto falado e, como se verifica nas
matérias jornalísticas reunidas no corpus deste trabalho, o off na voz do próprio repórter é o
canal de acesso do ouvinte ao plano verbal do produto telejornalístico. Além disso, grande
parte das reportagens veiculadas em televisão apresenta a passagem como uma espécie de
assinatura, uma garantia de que o jornalista esteve realmente no local dos fatos e, lá, colheu
82
as informações e impressões necessárias para a redação do texto. Cleiton Conservani, na
Reportagem 1, utiliza três vezes esse recurso. De fato, não apenas o público o vê na
fazenda, como também percebe sua interação com o cenário: o repórter senta na cerca,
abre a porteira e anda a cavalo ao mesmo tempo em que conversa com Hoover Orsi – este
sim, o personagem principal da história. Enfim, atesta a tranqüilidade do refúgio rural que
constituirá a base de seu esforço criativo.
De forma mais tímida, a passagem também é usada nas outras duas matérias de TV
analisadas – uma única vez, como é a praxe na maioria das reportagens televisivas. Na
Reportagem 2, a câmera enquadra Edson Vianna no aeroporto, a poucos passos de Ulf e
suas recém-conhecidas irmãs brasileiras; e na Reportagem 3, Régis Rösing é visto no
gramado do estádio de São Januário, momentos antes do confronto entre Vasco e
Paysandu, assistindo e comentando o encontro dos dois principais jogadores das equipes.
Por essas razões, tudo o que é transmitido ao ouvinte em qualquer reportagem
telejornalística está restrito aos limites da perspectiva individual do repórter-narrador. Tal
como o personagem que, ao exercer a função testemunhal, imprime nas páginas do livro a
sua visão própria sobre os outros e expõe ao leitor a sua consciência sobre as coisas, o
jornalista televisivo promove a sua seleção particular em meio às infinitas possibilidades de
interpretação dos acontecimentos que presencia. Por mais distante que se encontre no
momento em que os fatos ocorrem, é na recriação dos mesmos para o público que o
repórter mostra efetivamente a sua intervenção. Mas se tudo o que o espectador sabe sobre
o fato noticiado é tão somente uma representação do que o repórter-narrador testemunhou,
convém averiguar também sob quais prismas esse tipo de acontecimento é apresentado ao
público.
3.3.1.1 A metáfora do contar e do mostrar
Se os fatos indubitavelmente aconteceram e os jornalistas estiveram lá, como
testemunhas, é válido, assim mesmo, questionar a veracidade do que relatam nas matérias
de sua autoria? Acredito que a resposta está na dualidade das formas de apresentação do
foco narrativo, originalmente conceituadas por Friedman (2002): o sumário narrativo,
equivalente à ação de “contar” o evento ao ouvinte; e a cena imediata, cuja responsabilidade
reside em “mostrar” os pormenores do acontecimento. Suas diferenças são esmiuçadas da
seguinte forma:
83
[...] o sumário narrativo é uma apresentação ou relato generalizado de uma série de eventos cobrindo alguma extensão de tempo e uma variedade de locais, e parece ser o modo normal, simples, de narrar; a cena imediata emerge tão logo os detalhes específicos, contínuos e sucessivos de tempo, espaço, ação e personagem começam a aparecer. Não o diálogo tão-somente, mas detalhes concretos dentro de uma estrutura específica de espaço-tempo é [sic] o sine qua non da cena. (FRIEDMAN, 2002, p. 172).
No sumário narrativo, o que prevalece na superfície textual é a atitude do narrador, e
não o evento em si, como pode ser visto neste trecho de Quem faz gemer a terra, de
Charles Kiefer:
A vida seguiu adiante, como segue, os mortos morrendo aos poucos, se apagando dentro da gente. No ano seguinte, derrubei o mato e cobri tudo de soja. Então, quando todos plantaram, quando não havia nem um capãozinho de açoita-cavalo em toda a região, o tempo demudou, o ar ficou seco e quente, uma fornalha, as chuvas diminuíram. As folhas do sojal amarelavam antes da hora, caíam e as vagens murchavam sem grãos. Nem dava pra colher, não valia a pena. Mandei meus onze filhos lavrarem tudo, mas eles se recusaram a trabalhar com o arado, queriam alugar um trator. Peguei o Petiço e me fui pro campo. No terceiro dia, o cavalo arriou as patas dianteiras. Desci o relho com raiva e vontade, ele não levantou mais. De repente, eu vi os olhos tristes do cavalo. Eram os olhos do velho Moisés. (KIEFER, 1991, p. 89).
No texto acima, as impressões do narrador (“uma fornalha”, “não valia a pena”) são
claramente perceptíveis ao longo do relato dos acontecimentos. Mas as marcas da
enunciação no texto vão além: avançam o tempo, resumem-no (“No ano seguinte”, “No
terceiro dia”), de forma a imprimir um ritmo próprio à narração, independentemente da
duração efetiva dos fatos.
O contrário ocorre na cena imediata, ilustrada aqui por uma breve passagem da novela
Amores de Liúba, de autoria do escritor russo Nikolai Leskov:
Ao soar a última batida do relógio dando as dez horas, Pawlin encostava o bastão numa coluna, tirava o chapéu de três bicos e punha, em lugar dele, um boné ornado de galões dourados, atravessando em seguida o portão rumo ao pátio. De passagem, e sem dizer uma palavra, batia com os dedos à porta do mordomo. A esse sinal saíam dela imediatamente dois moços fortes, um deles carregando um machado e o outro um martelo e uma torquês. (LESKOV, 19--, p. 96).
Nesse modo de apresentação, percebe-se que o evento predomina, pois os detalhes
espaciais (a coluna, o pátio, o quarto do mordomo), temporais (dez horas) e dos
personagens (Pawlin e seus chapéus, os dois moços e suas ferramentas) são descritos
como se o próprio leitor fosse convidado a acompanhar os acontecimentos no tempo que
84
levam para se desenvolver. O ponto de vista do narrador parece desaparecer, uma vez que
os fatos, na medida em que se desenrolam, conferem a sensação de que são narrados por
si mesmos.
Friedman (2002) salienta que dificilmente uma obra narrativa faz uso de apenas uma
dessas formas de apresentação, em seu estado puro. “De fato, a principal virtude do
medium narrativo é sua infinita flexibilidade, ora expandindo em detalhes vívidos, ora
contraindo em econômico sumário” (FRIEDMAN, 2002, p. 172). Igualmente delimitada pela
visão de um narrador, a reportagem jornalística não existe sem essa equivalência entre o
contar e o mostrar. A princípio, sua premissa de intermediar o público e os “fatos do dia”
exige que assuma uma postura exclusivamente informativa, situando o espectador através
da resposta às seis perguntas básicas da notícia (O quê? Quem? Quando? Como? Onde?
Por quê?). O diferencial, no caso da televisão, é que a imagem e o áudio são os principais
recursos utilizados para essa função descritiva e, ao mesmo tempo, tornam-se poderosos
instrumentos para conferir um aspecto de veracidade ao evento reproduzido na tela.
Entretanto, apesar dessa qualidade autodescritiva da imagem, a palavra, sob domínio do
narrador-testemunha, detém o poder de lançá-la a um patamar além do que os olhos do
público, por si próprios, são capazes de alcançar.
Tendo em vista o corpus deste trabalho, arrisco-me a dizer que, tanto na Reportagem
1 quanto na Reportagem 2, o plano audiovisual concentra a pormenorização do cenário
narrativo, permitindo que, no plano verbal, os repórteres-narradores possuam uma maior
liberdade discursiva, própria para a sumarização. Na primeira matéria selecionada para esta
análise, por exemplo, o repórter Cleiton Conservani isenta-se de descrever verbalmente
todos os passos de Hoover Orsi no cenário bucólico onde a matéria jornalística se
desenvolve. Num momento inicial da reportagem a imagem mostra o piloto no volante de um
trator, mas no trecho correspondente do off o narrador opta por contar de forma abreviada a
transição do “caubói do asfalto” pelos lugares onde morou e sua estratégia para vencer o
campeonato de Stock Car:
PLANO VERBAL PLANO AUDIOVISUAL
OFF: O vice-líder da temporada nasceu em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Na adolescência, se mudou (sic) para São Paulo, morou nos Estados Unidos e, agora, está de volta à terra natal. Hoover aposta na fórmula da simplicidade para engrenar de vez no campeonato.
Im = Começa com um close na roda de um trator; em seguida, mostra Hoover dirigindo o veículo e, depois, montado em um cavalo
85
Da mesma forma, a imagem de Hoover dedicando-se ao trato do rebanho bovino
dispensa uma transcrição literal em palavras. Em frações de segundo, a câmera já abastece
o público com detalhes, como o céu nublado, a pastagem rasteira com palmeiras ao longe e
a pelagem branca dos bois. No texto correspondente, então, o repórter dedica-se a
comparar a dificuldade do personagem em lidar com os animais e os desafios que enfrenta
nas pistas de corrida. Neste caso, a edição usufrui também de índices sonoros para conferir
um maior grau de verossimilhança ao perigo:
PLANO VERBAL PLANO AUDIOVISUAL
OFF: Na fazenda, ele encara o perigo com a mesma prudência que (sic) acelera na pista. E no pasto, o respeito é ainda maior.
Im = Hoover andando na fazenda e chegando perto de um boi para acariciá-lo; em seguida, close do rosto do animal cheirando a câmera
SOBE SOM (Hoover Orsi): “Ó, ó... Tá brabo!”Im = Boi avançando a cabeça contra o rosto de Hoover
No exemplo acima, comprova-se, de fato, que a imagem propriamente dita não é
capaz de conferir à Reportagem 1 esse efeito comparativo entre os perigos da Stock Car e
da fazenda de Hoover Orsi. Se imagem e verbo nem sempre coincidem na descrição literal
de um acontecimento, ambos podem ser combinados sob o intuito de fornecer à matéria
jornalística um sentido mais amplo do que os seus registros imagéticos.
Essa técnica também pode ser identificada na Reportagem 2: as imagens registram
objetivamente a chegada do filho sueco de Garrincha ao Rio de Janeiro, mas somente o off
pode acrescentar-lhes um tom narrativo marcado pela emoção. No plano verbal dessa
reportagem, os detalhes do fato são menos importantes do que o seu significado para as
pessoas envolvidas no evento relatado. Em alguns trechos, a indicação inicial até alcança o
status de uma cena imediata. Entretanto, o aspecto do texto logo alterna para uma
sumarização na qual o narrador imprime uma visão humanizada do acontecimento, como no
trecho reproduzido abaixo:
PLANO VERBAL PLANO AUDIOVISUAL
OFF: Inevitavelmente, chega a bola. Martin
PLANO VERBAL
PLANO AUDIOVISUAL
Sumárionarrativo
P1
Cenaimediata
P2
86
tabela com Rafael e as palavras se tornam dispensáveis no primeiro contato entre primos tão improváveis.
Im = Martin e Rafael trocam passes com a bola, de cabeça
Percebe-se que a descrição da imagem – fosse ela transcrita para o plano verbal da
matéria televisiva – já bastaria para informar o espectador sobre a brincadeira entre os
primos Martin e Rafael. Todavia, é a interferência do narrador que orienta o ouvinte para o
significado afetivo da cena divulgada. Eis que a metáfora própria da linguagem televisiva
entra novamente em ação: a imagem captada pela câmera, sozinha, apenas remete ao
sentido literal de uma brincadeira entre dois jovens. Mas é a partir da sua combinação com o
discurso que esse momento de descontração passa a representar o tema da reportagem em
si, ou seja, o primeiro encontro de parentes separados pela distância, mas que o futebol foi
capaz de unir.
Em síntese, a análise do espectro narrativo das reportagens 1 e 2 já fornecem
subsídios para concluir que o sumário narrativo e a cena imediata operam como duas
emissões literais que, combinadas, conferem às matérias jornalísticas o efeito metafórico
inerente à linguagem televisiva. Neste caso, retomando Searle (2002), a fórmula de S = P
subdivide-se em duas, sendo o texto falado correspondente a P1 e a imagem equivalente a
P2. Como componentes de um conjunto coeso, ambos resultam na transformação do
acontecimento (S) em sua versão editada (R) e mediada pelo espectro do narrador-
testemunha. Essa significação metafórica pode ser ilustrada como na fórmula a seguir:
Figura 9 – Significação metafórica nas reportagens 1 e 2
S R+
87
Fonte: diagrama elaborado pelo autor, a partir de sistema formulado por Searle (2002).
Na Reportagem 3, a metáfora televisiva também obedece a esse princípio. Contudo,
dessa vez a integração imagem/texto falado eleva ao quadrado esse fenômeno lingüístico.
Se nas matérias jornalísticas anteriores os planos verbal e audiovisual contemplam um
mesmo tema – ainda que devam ser tratados como versões diferentes de seus respectivos
fatos noticiados – nesta última peça do corpus, texto e imagem, analisados isoladamente na
maior parte da reportagem, fornecem a falsa impressão de estarem se referindo a dois
acontecimentos distintos. Assim, enquanto, no plano audiovisual, o narrador mostra os
momentos mais importantes de uma partida de futebol, no plano verbal, ele conta a história
do “Gigante da Colina” que, com a ajuda de “Doutor Romário” e seus companheiros, busca
reerguer-se após a derrota numa “batalha” anterior. Essa propriedade, presente quase que
inteiramente na matéria de TV em questão, pode ser demonstrada neste trecho:
PLANO VERBAL PLANO AUDIOVISUAL
OFF: O Gigante da Colina se levanta... Im = Boneco inflável gigante de péES = Música de suspense
OFF: ...com o empurrãozinho do Diego, no primeiro minuto do segundo tempo.
Im = Gol de Diego e replay do lance, em slow motion
OFF: Aos quatro minutos, volta a caminhar... Im = Boneco inflável sendo puxado por funcionários do estádioES = Música de suspense
OFF: ...com a injeção de vitamina na veia dada pelo Moraes.
Im = Moraes chuta forte, de fora da área adversária, e manda a bola em um dos ângulos da goleira do Paysandu, fazendo o gol; em seguida, o lance é mostrado num replay em slow motion
O curioso é que, se por um lado o texto falado e a seqüência de imagens assumem
sentidos diferentes ao serem compreendidos separadamente, por outro revelam um mesmo
ritmo de apresentação dos fatos se dispostos de forma paralela. Proponho considerar essa
equivalência um requisito para que o receptor alcance o significado pretendido pelos
emissores da matéria telejornalística. Isso porque a metáfora, na Reportagem 3, não é só
resultado da ação conjunta dos planos verbal e audiovisual: dessa vez, também se
manifesta já nas fronteiras do texto falado. De fato, o “empurrãozinho” ou a “injeção de
88
vitamina na veia” mencionados no off não foram concebidos na reportagem visando seus
significados convencionais.
Portanto, é preciso que as ações sejam apresentadas concomitantemente em ambos
os planos da reportagem: no verbal, a partir de um significado sentencial que se pretende
figurativo; e no audiovisual, através do registro em som e imagem de como o evento
literalmente ocorreu. O plano audiovisual, assim, evidencia o que o narrador quis realmente
significar. Se, no texto falado, é dito, por exemplo, que
(MET) O Gigante da Colina se levanta com o empurrãozinho de Diego
a imagem correspondente ao “empurrãozinho” traz à tona a paráfrase
(PAR) O Vasco da Gama começa a construir a vitória a partir do chute sutil de Diego,
que resulta no primeiro gol do time na partida.
Do mesmo modo, quando o plano verbal apresenta a sentença
(MET) Aos quatro minutos, volta a caminhar com a injeção de vitamina na veia dada
pelo Moraes
a imagem editada paralelamente ao significante “injeção de vitamina na veia” revela que os
emissores almejam dizer que
(PAR) O Vasco da Gama amplia a sua vantagem aos quatro minutos do primeiro
tempo, quando Moraes chuta forte, levando a bola ao ângulo superior esquerdo da goleira
do Paysandu e marcando o segundo gol do time carioca.
Os papéis no processo de codificação nos exemplos acima, dessa forma, estão
devidamente distribuídos: a imagem converte-se num ato de significação, por intermédio do
qual o significante compreendido no texto falado atinge o significado proposto pelos
emissores. Em síntese, se o significado último de S é R e não P, isso só se manifesta, na
Reportagem 3, através da mediação do que for visível ao espectador, como demonstra a
figura abaixo:
PLANO VERBAL PLANO AUDIOVISUAL CONJUNTO SIGNIFICATIVO
89
Figura 10 – Imagem como ato de significação
Fonte: diagrama elaborado pelo autor
Não por acaso preferi analisar por último o significante “Gigante da Colina”. De fato,
trata-se de um processo de significação à parte, dotado de uma complexidade maior do que
a verificada nos exemplos anteriores. Especificamente neste caso, a imagem que
acompanha o texto falado não se iguala ao significado da emissão. Pelo contrário: em vez
de esclarecer uma metáfora criada na emissão do enunciado, é ela quem confere o efeito
metafórico à sentença. A saber, “Gigante da Colina” é o nome popular atribuído ao clube
Vasco da Gama e, certamente, essa referência imediata traduz o significado almejado pelos
emissores do texto. Entretanto, sempre que esse sujeito surge como significante no circuito
interno, o plano audiovisual evoca a imagem de um boneco gigante, erguido no estádio de
São Januário – local em que o evento noticiado ocorre. Essa figura do boneco, enquanto
ícone, aproxima-se tanto do significante (“Gigante da Colina”) quanto do significado
pretendido (“Vasco da Gama”): é alta, como se espera de um gigante; e veste a camiseta do
time de futebol em questão, como uma espécie de mascote. É o elemento-chave para
assegurar a metáfora através da qual o narrador-testemunha confere à reportagem os ares
de uma narrativa literária, pois, para significar a necessidade da equipe do Vasco da Gama
de conseguir a vitória na partida noticiada, o repórter conta a história do “Gigante da Colina”
que busca curar as feridas de uma batalha em que fora abatido.
Esse triângulo significativo pode ser ilustrado da seguinte forma:
TEXTO FALADO(significante)
IMAGEM(ato de significação)
REPORTAGEM(significado da
emissão)
S = P S = R
Significante
Ícone
Significado da emissão
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Figura 11 – Triângulo significativo da Reportagem 3
Fonte: diagrama elaborado pelo autor
As possibilidades de significação expostas no estudo do foco narrativo das
reportagens televisivas comprometem o postulado que defende a veracidade como
característica primordial de qualquer produção jornalística. Não pretendo afirmar que a
construção textual no telejornalismo esteja assentada inteiramente na esfera do imaginário.
Os fatos não devem ser ignorados pelos repórteres-narradores, pois, certamente,
constituem a base da notícia. Contudo, a sua transformação em relato testemunhal, a partir
das impressões do jornalista sobre o ocorrido, torna a isenção uma meta inatingível, a
despeito do que defendem os manuais de ética e redação. Como desconsiderar, por
exemplo, a metáfora como um fenômeno lingüístico inerente à edição de reportagens
televisivas? A conciliação da imagem captada pela câmera com o texto escrito pelo repórter
– com ou sem o auxílio de um editor – inevitavelmente incidirá num significado diferente
daquele fornecido pelo evento em si, sem a intermediação do veículo de imprensa. Seja
qual for o acontecimento noticiado, sua dimensão na tela da TV só tomará a proporção que
o repórter-narrador desejar.
Portanto, se a fidelidade aos fatos revela-se muito mais um mito do que uma
experiência pragmática da atividade jornalística, acredito que a hibridização textual entre
reportagem e narrativa funcione como um mecanismo regulador da liberdade de criação do
repórter, preservando, dessa forma, a sua credibilidade junto ao espectador. De que outro
modo, numa mesma matéria telejornalística, admite-se contar a história de um gigante
abatido em combate sem prejuízo à verossimilhança necessária para mostrar os principais
lances de uma partida de futebol? Ou, ainda, transformar um piloto de automobilismo num
S = R
“GIGANTE DA COLINA”
VASCO DA GAMA
S = P
Circuito interno
Circuito externo
91
caubói e, assim mesmo, manter a atenção do público ao desempenho do mesmo nas
pistas? Há, sem dúvidas, um contrato entre espectador e repórter que permite a este último
justapor fatos vividos e imaginados, rendendo-se à ousadia fantasiosa sem que abra
distância da realidade física. Já dizia Pouillon (1974) que emissor e ouvinte só compartilham
uma mesma consciência acerca das coisas e das pessoas se ambos pertencerem a mundos
mentais semelhantes. Ora, a narrativa é universal enquanto modelo estético do
conhecimento – e assim tem sido desde o começo dos tempos. Assim como os melhores
informantes sempre souberam contar boas histórias, são justamente estas as que mais
perduram no imaginário coletivo.
Pois a distinção da forma como o repórter se manifesta na matéria telejornalística – e,
de igual modo, dos processos significativos envolvidos nesse sistema particular de
enunciação – é apenas o primeiro passo para comprovar a similaridade estrutural entre a
reportagem televisiva e a narrativa ficcional. Uma vez verificado que o jornalista exerce um
papel análogo ao de um contador de histórias, darei prosseguimento à análise tendo em
vista estender essa correspondência aos elementos constitutivos do conjunto significativo de
sua autoria. Afinal de contas, se os telejornais diários alimentam o olhar curioso da
audiência falando de pessoas e dos fatos que vivem, e se esse estrato da realidade
apresenta uma delimitação espaço-temporal própria, não se está distante daquilo que a
literatura reserva ao leitor no folhear das páginas dos livros.
3.3.2 Os heróis do esporte
Ao dispor do som e da imagem como recursos para levar ao espectador as notícias do
dia, o jornalista de televisão faz muito mais do que transmitir informações. Demonstrei, no
item anterior, que a existência de um plano audiovisual como componente das matérias
televisivas possibilita ao repórter uma ousadia maior na narração do evento a ser
reproduzido na construção textual. Já é sabido que o texto, na reportagem de TV, não deve
se deter ao que a imagem, por sua capacidade autodescritiva, já é capaz de informar. A
palavra, desse modo, emerge como um complemento ao que as câmeras mostram, e essa
associação, inevitavelmente, pressupõe uma interpretação dos fatos. Conforme verificado
no foco narrativo das reportagens que constituem o corpus deste estudo, o apelo ao
emocional e ao fantástico é uma opção recorrente de preenchimento do vácuo existente
entre a imagem e sua conceituação verbal.
92
Nas reportagens 1, 2 e 3, percebe-se que “humanizar” o relato foi a estratégia
escolhida pelos narradores para provê-las de emoção. A linha narrativa nos três exemplos
centraliza os fatos numa única pessoa, fazendo com que os repórteres testemunhem
exclusivamente as situações que se desenvolvem ao redor da mesma. Nesse sentido, cada
matéria analisada possui o seu próprio protagonista. Na primeira, o repórter-narrador junta-
se a Hoover Orsi para apreciar o estilo de vida simples do qual o piloto usufrui em sua
fazenda. O sueco Ulf, por sua vez, é o elemento central da segunda reportagem: o repórter
não apenas relata o encontro com suas irmãs até então desconhecidas, como também
resgata as dificuldades enfrentadas pelo filho de Garrincha na juventude. E, por fim, a
Reportagem 3 privilegia Romário em sua narrativa, haja visto que ele recebe a maior parte
do mérito pela salvação do “Gigante da Colina”.
Posicionar um indivíduo no papel de protagonista numa narrativa pressupõe,
primeiramente, a sua compreensão na categoria de um personagem. Isso porque as
pessoas de carne e osso submetem-se a uma metamorfose ao adentrarem no plano
referencial da reportagem televisiva. Uma vez deslocadas para o interior da narrativa
jornalística, renunciam às mais diversas facetas que denunciam a complexidade de sua
ontogênese. Na tela, prevalece uma só: aquela que o repórter não somente testemunhou
como também julgou apropriada para a significação pretendida. Assim, as pessoas,
enquanto personagens da matéria jornalística, perdem a autonomia sobre sua própria
identidade. Estão à mercê do repórter-narrador, que elabora uma representação desses
seres tridimensionais delimitada unicamente pelo registro de um fragmento espaço-temporal
da realidade física.
Pode-se dizer, portanto, que as pessoas existem como seres tridimensionais no
mundo objetivo, ao passo que os personagens, enquanto criações na linguagem,
restringem-se aos limites estabelecidos pelo texto. Partindo desse postulado, Brait (1985, p.
11) sugere o seguinte método de investigação:
Se quisermos saber alguma coisa a respeito de personagens, teremos que encarar frente a frente a construção do texto, a maneira que o autor encontrou para dar forma às suas criaturas, e aí pinçar a independência, a autonomia e a “vida” desses seres de ficção. É somente sob essa perspectiva, tentativa de deslindamento do espaço habitado pelos personagens, que poderemos, se útil e se necessário, vasculhar a existência da personagem enquanto representação de uma realidade exterior ao texto.
Na Reportagem 1, a estratégia textual para a caracterização do protagonista está em
boa parte condicionada à dicotomia dos dois espaços nos quais a narrativa se desenvolve.
93
É possível perceber isso já nos segundos iniciais da matéria jornalística, quando o contraste
entre a natureza e a máquina surge como pretexto para apresentar o personagem principal:
PLANO VERBAL PLANO AUDIOVISUAL
(não há texto)
Im = Hoover Orsi andando numa estrada de terra, em slow motion; enquadramento em suas pernas, usando calça jeans e botasES = Música em ritmo lento, estilo faroeste
PASSAGEM (Cleiton Conservani): “Da estradinha de terra, sem pressa, para o asfalto, a mais de 200 quilômetros por hora.”
Im = O repórter Cleiton Conservani fala sentado numa porteira
(não há texto)Im = Carro de Hoover em alta velocidade, numa pista de corridaES = Música em ritmo mais acelerado
(não há texto) Im = Close nas mãos de Hoover, podando bonsais, em slow motionES = Música em ritmo lento, estilo faroeste
PASSAGEM (Cleiton Conservani): “As mãos que podam as plantas com cuidado também precisam de sensibilidade com o volante.”
Im = Cleiton fala enquanto passa por uma porteira de fazenda
(não há texto)Im = Carro de Hoover em alta velocidade na pista de corridaES = Música em ritmo acelerado
Uma vez definidos os espaços de atuação do protagonista, é somente a partir da
terceira passagem que ocorre a sua nominação:
PLANO VERBAL PLANO AUDIOVISUAL
PASSAGEM (Cleiton Conservani): “O caubói Hoover Orsi gosta de um cavalinho. Mas ele prefere mesmo é domar as máquinas com 450 cavalos de potência. Um é pouco?”SONORA (Hoover Orsi): “Um é pouco.”
Im = Enquanto Cleiton fala, a câmera mostra Hoover e, a seguir, enquadra o repórter junto, ambos montados em cavalos
Nesse momento, a referência nominal ao personagem se dá através de uma
individualização: seu nome (Hoover) e sobrenome (Orsi) são precedidos de um artigo
94
definido, seguido pela função específica de “caubói”. Recomendo uma atenção especial a
essa função, pois se trata de um elemento essencial para determinar o arquétipo que
envolve o protagonista durante toda a matéria televisiva. Se é evidente que a carreira de
piloto de automobilismo é o que justifica a presença de Hoover Orsi numa reportagem de
televisão, no texto analisado o repórter-narrador nunca se refere a ele como tal – ao menos
diretamente. Na Reportagem 1 do corpus, a característica predominante do personagem
não é outra senão a sua devoção às lidas do campo.
Essa faceta de Hoover Orsi ganha força na sumarização correspondente à sua
trajetória de vida:
PLANO VERBAL PLANO AUDIOVISUAL
OFF: O vice-líder da temporada nasceu em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Na adolescência, se mudou (sic) para São Paulo, morou nos Estados Unidos e, agora, está de volta à terra natal. Hoover aposta na fórmula da simplicidade para engrenar de vez no campeonato.
Im = Começa com um close na roda de um trator; em seguida, mostra Hoover dirigindo o veículo e, depois, montado em um cavalo
No trecho do off acima, o repórter-narrador fornece uma espécie de explicação ao
ouvinte sobre a origem da predileção do protagonista pelo estilo de vida rural. O fato de
Hoover Orsi ter nascido em Mato Grosso do Sul já pressupõe uma infância ambientada –
pelo menos em parte – numa fazenda. É essa mesma rotina que, após anos longe de sua
cidade natal, o personagem busca resgatar, como uma espécie de trunfo para o seu
sucesso nas corridas. Não é por acaso que as imagens correspondentes ao segmento
textual destacado limitam-se a mostrar Hoover em atividades próprias de seu pequeno
paraíso bucólico.
Por essa razão, o ponto de vista narrativo sustentado na Reportagem 1 relega o bom
desempenho do piloto nas pistas a um plano secundário. Sua competência ao volante,
desse modo, é apenas conseqüência do sossego revitalizante que encontra em sua
fazenda:
PLANO VERBAL PLANO AUDIOVISUAL
OFF: Na última etapa, em Londrina, ele mostrou que a vida no campo está surtindo efeito. Pilotou com tranqüilidade nas 33 voltas e venceu de
Im = Cenas de Hoover durante a etapa de Londrina da Stock Car: cruzando a linha de chegada, correndo a prova e chegando ao box com a equipe em festa
95
ponta-a-ponta. Foi a segunda vitória dele.
O personagem Hoover Orsi, com isso, é retratado como um vencedor em ambos os
espaços pelos quais transita no nível referencial do texto jornalístico. Sua audácia em
desafiar os inimigos acompanha-o tanto nos circuitos automobilísticos quanto nas cercanias
de seu refúgio campestre. Os dois espaços são nitidamente análogos, pois – cada um ao
seu modo – reservam perigos com os quais o protagonista demonstra lidar com
naturalidade:
PLANO VERBAL PLANO AUDIOVISUAL
OFF: O inofensivo filhote de quero-quero não representa nenhum perigo.
Im = Hoover segurando um filhote de quero-quero na mão e, depois, tentando devolvê-lo ao ninho, no chão, enquanto olha para o céu à procura de algo
OFF: Mas a mãe aguarda um descuido para atacar...
Im = Quero-quero voandoES = Sobe som do quero-quero gritando
OFF: ...assim como os rivais devem fazer, em Brasília.
Im = Hoover devolvendo o filhote ao ninho
Dessa forma, Hoover Orsi só existe no texto como o “caubói do asfalto”, capaz de
“domar” tanto os cavalos de sua fazenda quanto os carros com os quais disputa as corridas.
Esse modelo é reforçado no fim da matéria analisada, como numa espécie de parecer
definitivo acerca da identidade da figura central da história:
PLANO VERBAL PLANO AUDIOVISUAL
OFF: Enquanto isso, Hoover se dedica à coleção de bonsais...
Im = Hoover caminhando num viveiro de bonsais e podando uma das plantasES = Música estilo faroeste, mas em ritmo mais rápido do que a do início da reportagem
OFF: ...e brinca com os bezerros. Os animais são bem mais dóceis e confiáveis do que os pilotos, que não têm medo...
Im = Hoover acariciando os bezerros; após, caminhando em direção aos mesmos, que se afastam, intimidadosES = Continua a música estilo faroeste
96
OFF: ...do caubói do asfalto. Im = Cenas de Hoover na corrida se alternam com uma outra, do piloto acariciando os bezerros na fazenda; encerra com um slow motion do carro dele correndoES = Continua a música estilo faroeste até o fim da reportagem
No entanto, considerar o estereótipo de “caubói do asfalto” unicamente um resultado
da oposição entre os dois espaços nos quais a narrativa jornalística se apresenta é deixar
em aberto uma parte importante do problema da composição do personagem dessa matéria
jornalística. A dualidade fazenda/pistas de corrida sem sombra de dúvidas sumariza a
persona de Hoover Orsi, ou seja, orienta o ouvinte a compreender o personagem dentro dos
limites estabelecidos pelos espaços selecionados na reportagem. Mas o telespectador, com
propriedade, poderia indagar: “Por que não Hoover Orsi, o bom filho? Ou Hoover Orsi, o
amigo fiel? Ou, simplesmente, Hoover Orsi, o campeão das corridas?”
É neste ponto que a categorização do “caubói” atém-se a um determinado valor, em
detrimento de outros. Muito mais do que as botas e o chapéu característicos, Hoover Orsi é
inserido nessa roupagem por suas demonstrações de valentia retratadas na matéria
televisiva. Independente do espaço no qual surge o perigo – campo ou asfalto – a reação do
personagem inexoravelmente pende para a ousadia em desafiá-lo. Foi assim que venceu a
corrida em Londrina sem tomar conhecimento do forte adversário Cacá Bueno e obteve
êxito em invadir o ninho do quero-quero sem que a ave o atacasse.
Mas que fenômeno possibilita ao estereótipo “caubói” significar simultaneamente
“valentia”, “coragem”, ou “destreza”? Para responder a esse questionamento, apoio-me
novamente numa teoria da metáfora; mais precisamente, no que Lakoff & Johnson (2002)
denominam conceito metafórico. Esse postulado sustenta que o sistema conceptual
ordinário do ser humano vale-se de metáforas já em sua origem. De fato, “a metáfora está
infiltrada na vida cotidiana, não apenas na linguagem, mas também no pensamento e na
ação” (LAKOFF & JOHNSON, 2002, p. 45). Ao aplicar esse pressuposto ao problema do
“caubói do asfalto”, afirmo que as pessoas não apenas associam o caubói à idéia de
valentia, como também se espera que os sujeitos inseridos nesse estereótipo ajam como tal.
Pois não é a própria cultura dos caubóis marcada por provas de força e coragem?
Normalmente imagina-se um caubói ora montado num touro enfurecido, ora preparando o
laço para deter o gado arredio ou, ainda, confrontando um desafeto num duelo de armas de
fogo – a exemplo do que os filmes de faroeste tanto fomentaram no imaginário coletivo.
97
Com Hoover Orsi, portanto, esse conceito metafórico não poderia ser sistematizado de
forma diferente. Ao imergir no circuito interno do texto jornalístico como um personagem que
deve agir e ser pensado exclusivamente sob a faceta de um caubói, o valor preponderante
para a sua configuração como um ser da linguagem previsivelmente o tornará um sujeito
destemido, que de forma alguma permite ser sobrepujado pelos desafios que o cercam.
O protagonista da Reportagem 2 também não escapa de uma classificação modelar.
De modo geral, o narrador mantém um padrão ao longo do texto jornalístico: vincular Ulf
Lindberg à célebre figura de Mané Garrincha. Na matéria jornalística, o sueco é retratado
como a herança perdida de um dos maiores gênios do futebol mundial. Esse laço que une
os dois personagens, portanto, revela-se a força motriz da matéria televisiva em questão.
A estratégia textual é claramente observável logo na primeira vez em que ocorre a
nominação do personagem principal. Nota-se que até mesmo nas pequenas coincidências a
sumarização promovida pelo narrador busca identificar semelhanças entre Ulf e Garrincha:
PLANO VERBAL PLANO AUDIOVISUAL
OFF: Ulf Lindberg é o sétimo da excursão a desembarcar... Im = Ulf chegando ao saguão do aeroporto
OFF: ...como sete era a inesquecível camisa do pai.
Im = Cena antiga, em preto-e-branco, de Garrincha de costas, o número sete da camisa do Botafogo em destaque
Essa identificação é acentuada assim que o repórter-narrador recorre à genética. O
“gênio das pernas tortas” – como ficou conhecido pelos gramados brasileiros e
internacionais – transmitiu ao seu filho a sua mais notável característica física. A estratégia
textual, dessa forma, vale-se desse aspecto como meio de comprovar a filiação de Ulf e, ao
mesmo tempo, torná-lo parte de uma linhagem distinta:
PLANO VERBAL PLANO AUDIOVISUAL
OFF: E o jeito de andar elimina qualquer dúvida. Familiar, com certeza!
Im = Enquanto Ulf caminha, a câmera enquadra apenas as pernas dele; após, uma imagem antiga, em preto-e-branco, de Garrincha caminhando da mesma maneira
OFF: O abraço que esperou 46 anos é tímido, mas carinhoso. Quase uma lembrança.
Im = Ulf abraça Márcia, com fotógrafos registrando o momento (a cena termina em slow motion)
Im = Enquanto Márcia fala, o enquadramento
98
SONORA (Márcia): “O sorriso... hã... o olhar... tá... parece muito! Os lábios, né?” transita entre ela e Ulf, terminando com um close
no rosto dele
Entretanto, é impossível falar de Mané Garrincha sem associá-lo de forma imediata ao
futebol. Por esse motivo, o esporte também emerge como forma de intensificar ainda mais o
parentesco entre o craque e seu filho sueco. A reportagem mostra que – com ou sem
sucesso – ambos dedicaram pelo menos parte de suas vidas à bola:
PLANO VERBAL PLANO AUDIOVISUAL
OFF: Ele fala que as pessoas na Suécia não esquecem a Seleção de 58. E sempre dizem: “Lá está o filho de Garrincha!”
Im = Começa com imagem de Ulf falando ao microfone da reportagem; muda para imagens antigas, em preto-e-branco, de Garrincha marcando gol e driblando os adversários
ES = Música no ritmo de chorinho, junto às imagens antigas
OFF: E com a marca do futebol no DNA.Im = Foto preto-e-branco de Ulf mais jovem, fazendo embaixadas com uma bolaES = Música no ritmo de chorinho
PASSAGEM (Edson Vianna): “Ulf chegou a trabalhar como treinador, mas, hoje, vende lanches em uma praça, em Hansal, na Suécia. E, segundo ele, o talento para o futebol pulou uma geração: foi parar no filho, Martin.”
Im = Edson Vianna falando para a câmera, que o tira de enquadramento, mostra Ulf com as irmãs e realiza um close no rosto do filho do sueco
Mas a similaridade entre Ulf e Garrincha, apesar de fundamental para a análise do
protagonista, não basta para explicar por completo a composição do personagem na
estrutura narrativa da Reportagem 2. Ainda que essa relação pai-filho possa ser
considerada o elemento central da matéria, é preciso também ressaltar o esforço do sueco
em reconciliar-se com suas origens. Essa obstinação não está exposta de forma explícita na
superfície textual, mas, ainda assim, pode-se afirmar que ela reside de forma concreta no
circuito interno da reportagem televisiva. Afinal de contas, Ulf não viajou milhares de
quilômetros da Suécia para o Brasil simplesmente por turismo, nem por compromissos
profissionais. Sua finalidade única é resgatar o convívio com sua família, que lhe foi negado
por conta das complicações geradas pela relação entre seus pais.
Entretanto, é no plano audiovisual – mais especificamente através das imagens – que
a busca solitária de Ulf ganha ares de dramaticidade. Isso pode ser comprovado no seguinte
trecho da matéria:
99
PLANO VERBAL PLANO AUDIOVISUAL
OFF: Ulf diz que somente agora se sentiu pronto para conhecer a família brasileira.
Im = Ulf, entre seu filho e Márcia, fala em sueco ao microfone da reportagem
OFF: De sangue, a única. Ele foi deixado pela mãe – que nunca viu – num orfanato, quando nasceu. Aos oito anos, descobriu que era a herança de um gênio.
Im = Cenas de Ulf na Suécia, olhando e reunindo fotos e reportagens de jornais a respeito de GarrinchaES = Música no ritmo de chorinho
As imagens mostram que, ainda na Suécia, Ulf dedicou uma boa parte de sua vida
atrás de respostas sobre seu parentesco com Garrincha. Mesmo de forma breve, a cena do
sueco reunindo fotos e recortes de jornais referentes ao craque do futebol diz muito:
evidencia que o encontro com a família que nunca antes conhecera tornara-se uma idéia
fixa que vinha alimentando o personagem aos poucos. Do mesmo modo, é possível
perceber que a busca de Ulf por informações sobre sua origem forneceu-lhe o suporte
necessário para o tão desejado encontro.
Em suma, assim como na reportagem em que Hoover Orsi é o elemento central, a
Reportagem 2 também promove uma composição do protagonista em duas partes:
primeiramente, Ulf Lindberg é apresentado segundo as características do pai, o célebre
Mané Garrincha. De fato, é imprescindível atrelá-lo ao gênio do futebol, uma vez que a
elaboração dessa matéria telejornalística não alcançaria a mesma repercussão se Ulf fosse
filho de um anônimo. Após essa comparação, o ouvinte tem acesso ao valor principal que
move o personagem, ou seja, a persistência em elucidar as dúvidas quanto à sua própria
existência. Uma vez presentes no nível referencial da reportagem jornalística, tanto os
recortes de jornal quanto a longa viagem fazem Ulf existir na linguagem, acima de tudo,
como uma pessoa que não desiste fácil de seus objetivos e, portanto, capaz de enfrentar as
mais diversas adversidades para alcançá-los.
Por fim, a Reportagem 3 desenvolve uma estrutura narrativa diferenciada no que diz
respeito à apresentação do seu protagonista. A princípio, o telespectador é levado a
acreditar que a matéria televisiva concentra o seu foco no Gigante da Colina – que,
conforme salientei antes, trata-se de uma referência metafórica ao time Vasco da Gama.
Todavia, a presença de Romário nos principais momentos da história contada pelo repórter-
narrador eleva o jogador ao primeiro plano da narração.
100
A existência de Romário na Reportagem 3 está inteiramente condicionada à existência
de um Gigante da Colina em apuros. A matéria inicia justamente expondo ao ouvinte essa
situação de perigo enfrentada pelo Vasco. Assim, não é surpresa que a primeira menção ao
personagem ocorra no sentido de considerá-lo uma solução para o problema:
PLANO VERBAL PLANO AUDIOVISUAL
OFF: Na lona, estava o Gigante da Colina.
Im = Boneco inflável gigante, caído ao chão do estádio de São Januário, do Vasco da Gama
OFF: Nocauteado por... cinco cruzados do Figueirense!
Im = Cinco gols do Figueirense, na partida contra o Vasco; a imagem congela após o últimoES = Cada gol recebe o efeito sonoro de um tiro e, após o último, surge uma música vibrante que remete à Idade Média
OFF: Empurra, puxa, segura... Tentam de tudo para reanimá-lo.
Im = Série de imagens rápidas dos funcionários do estádio tentando erguer o boneco inflável
SOBE SOM (torcida vascaína): “Sou eu, sou eu...”
Im = Festa da torcida, nas arquibancadas; torcedores cantam e mexem os braços de forma uniformeES = Sobe som da torcida cantando
OFF: Sou eu, Doutor Romário! Trazendo comigo o remédio. Se é assim, toca aqui, baixinho! E bom trabalho!
Im = Romário conduzindo a bola no pé e cumprimentando o repórter Régis Rösing ao passar por ele
No trecho destacado acima, é possível perceber que, novamente, o conceito
metafórico defendido por Lakoff & Johnson (2002) exerce um papel importante na
classificação do protagonista. Por que isso é tão evidente? Ora, quando o narrador se refere
a Romário na função de “doutor”, isso não significa que o personagem atue na área da
Medicina, nem que ao menos possua um diploma de médico. Descarta-se, dessa forma, o
sentido literal da expressão. Mas por qual motivo, então, o célebre jogador de futebol está
associado a essa outra atividade profissional? Acredito que isso se deva à sua
responsabilidade de sanar um problema. O ser humano acostumou-se a conceituar uma
solução como uma cura. Assim, os impasses tendem a ser resolvidos da mesma forma que
um médico encontra a cura para uma doença. Realmente, Romário encontra-se diante de
um desafio, ou seja, “curar” o combalido Gigante da Colina que se abatera pela derrota, a
pior “chaga” do futebol.
Mas a função de “doutor” imposta a Romário nessa reportagem não limita as suas
possibilidades de significação a metáforas médicas. Se, por um lado, é sabido que “doutor”
101
é aquele que cura, por outro, também se tornou costume chamar desse modo as pessoas
que dominam um determinado tipo de conhecimento. No caso de Romário, a matéria
inegavelmente exalta a sua habilidade com a bola:
PLANO VERBAL PLANO AUDIOVISUAL
SONORA (Régis exclama): “Vinte gols!”SONORA (Romário responde): “É, fico feliz... hã... por ter... hã... ajudado o Vasco mais uma vez, fiz dois gols e conseguido chegar um pouco mais próximo, aí, do artilheiro do campeonato.”
Im = Enquanto caminha em direção ao vestiário, Romário responde à pergunta, cercado por repórteres
OFF: Um gol apenas separa Romário de Robson.
Im = Prossegue a imagem anterior, com Romário se dirigindo ao vestiário
OFF: Isso já é o suficiente para fazer... Im = Repete o ultimo gol da partida, em slow motion
OFF: ...o Gigante da Colina desejar uma ótima semana para todos.
Im = Começa no boneco gigante de pé e, a seguir, enquadra o placar eletrônico do estádio com a mensagem “Uma ótima semana para todos”ES = Música de suspense
É por esse motivo que, apesar de uma equipe de futebol ser composta por onze
jogadores, a Reportagem 3 confere grande parte dos méritos da vitória a apenas um atleta.
Conforme a sumarização formulada pelo repórter-narrador, Romário se torna uma espécie
de “doutor da bola”, especialista em descobrir os segredos dos gramados que o levam ao
gol com mais eficiência do que os adversários e, até mesmo, seus companheiros de time.
Por mais que outros jogadores do Vasco também ajudem a construir o placar da partida, é
ele quem possui a vocação para artilheiro e, conseqüentemente, detém o “remédio” que
livrará o Gigante da Colina de sua derrocada.
Assim como Romário e sua habilidade no futebol, os protagonistas das demais
reportagens analisadas também são dotados de grandezas que os diferenciam do perfil
médio das pessoas. É válido lembrar: Hoover Orsi possui a coragem necessária para
superar até mesmo os mais competitivos pilotos da Stock Car brasileira; e Ulf Lindberg,
através de sua obstinação, conquistou o direito de ostentar a herança de um dos maiores
gênios do futebol de todos os tempos. Será exagero, portanto, reuni-los numa mesma
categoria, como heróis de uma narrativa voltada às massas?
Certamente, os personagens mencionados acima possuem atributos suficientes para
se tornarem alvo da idolatria das pessoas ditas comuns. Diante disso, Hoover, Ulf e Romário
102
– enquanto heróis modernos – encontram plena correspondência nos homens de índole
nobre tão exaltados em verso e prosa pelos poetas antigos.
Se, a exemplo das antigas formas de poesia, as reportagens televisivas atuais são
capazes de imitar homens de alto e baixo valor, logo, não é surpresa que também possam
ser classificadas quanto ao gênero condizente ao caráter de seus personagens. De acordo
com a teoria aristotélica que ergueu os alicerces da narratologia, à tragédia e à epopéia
cabe imitar as ações consideradas elevadas, ao passo que a comédia deve se encarregar
da imitação dos homens inferiores, “não, todavia, quanto a toda espécie de vícios, mas só
quanto àquela parte do torpe que é o ridículo” (ARISTÓTELES, 1966, p. 73). Diante dessa
divisão, creio que as três reportagens analisadas neste estudo, indistintamente, agem
segundo os princípios que regem os dois primeiros tipos de gênero poético citados.
No entanto, ainda que seja possível apontar a imitação de personagens elevados
como o fator de semelhança entre as matérias televisivas selecionadas e os gêneros trágico
e épico, essa hibridização textual não é assim tão simples. Para Kothe (1987), considerar a
tragédia e a epopéia apenas narrativas referentes a heróis elevados é ignorar uma diferença
básica entre essas duas formas antigas de arte:
Ainda que passe por grandes dificuldades e provações, e ainda que venha a constituir boa parte de sua grandeza através de uma série de “baixezas” (matar, mentir, tripudiar cadáveres, enganar e mentir), a narrativa épica clássica, adotando o ponto de vista do herói, trata de metamorfosear a negatividade em positividade, e o herói épico tem, por isso, um percurso fundamentalmente mais pelo elevado do que o herói trágico, cujo percurso é o da queda. Mas a queda do herói trágico é o que lhe possibilita resplandecer em sua grandeza, assim como as “baixezas” do herói épico é o que lhe elevam. (KOTHE, p. 12, 1987).
O postulado acima torna os protagonistas das reportagens analisadas mais próximos
do conceito de herói épico do que propriamente do tipo trágico. Apesar de não realizarem
baixezas ao longo de suas respectivas narrativas, os personagens indubitavelmente
submetem-se a uma série de provações até conseguirem o seu intento. A Reportagem 1,
por exemplo, deixa claro que Hoover Orsi não veio à vida na condição de campeão das
pistas de corrida. Sua infância, aparentemente, foi típica de um menino comum de Mato
Grosso do Sul. Posteriormente, precisou sair de casa, conhecer o mundo e se aperfeiçoar
para conseguir superar os adversários e chegar ao pódio da Stock Car brasileira. Com Ulf
Lindberg, as dificuldades são comparativamente maiores: o bebê abandonado pela própria
mãe cresceu como um homem sedento por respostas sobre sua origem e mostrou-se capaz
de vencer as distâncias geográfica e cultural para reatar os laços com seus familiares.
103
Apesar de igualmente se adequar ao conceito de herói épico, o caso de Romário, na
Reportagem 3, merece uma atenção à parte. De forma alguma o personagem comete algum
tipo de ato reprovável durante a narrativa da qual participa. Entretanto, ele próprio
representa um estereótipo próprio da cultura brasileira – e, mais especificamente, do futebol
– que o classifica como um tipo “baixo”: o jogador malandro, atrevido, que usa sua
esperteza para driblar os adversários e conquistar a vantagem nos gramados. Na
reportagem em questão, a postura de Romário antes e depois da partida põe em evidência
essa faceta do personagem. Em ambos os momentos, ele segue impassível, seguro de si e
indiferente ao assédio da imprensa ávida por um depoimento seu. Essa pompa, ao apito do
árbitro, cede lugar à genialidade heróica: o craque marca dois gols, livra seu time das
últimas colocações do campeonato e se aproxima ainda mais do título de artilheiro da
competição. Como num poema épico, as ações inferiores constituem o caminho através do
qual o protagonista alcança sua grandeza redentora ao final da aventura narrada.
A vitória, portanto, marca o fim do percurso traçado pelos heróis das reportagens
selecionadas. Em qualquer um desses casos, a trajetória dos personagens é crescente: eles
começam do zero e ascendem até se sagrarem vencedores naquilo que tanto almejam. É
exatamente o oposto do verificado na tragédia, na qual a derrocada do herói torna-se um
requisito para sua grandeza vir à tona. Assim como Romário proporcionou a vitória para a
torcida vascaína, Prometeu trouxe o fogo do Olimpo para a humanidade. Contudo, a célebre
tragédia de Ésquilo chega ao fim com o herói severamente punido por um Zeus enfurecido e
impiedoso. Por outro lado, o jogador de futebol tem sua ousadia reconhecida pelo coro nas
arquibancadas e o assédio dos jornalistas.
Seguindo esse pressuposto, Kothe (1987, p. 28) resume a diferença básica entre os
dois gêneros poéticos ao dizer que “a epopéia é a história dos vencedores, enquanto a
tragédia é a história dos vencidos”. Com base nisso, é possível, ainda, identificar um
fragmento trágico em um dos textos contemplados no presente estudo. Na Reportagem 2, a
trajetória pessoal de Ulf contrasta com a de seu pai. Mané Garrincha está presente apenas
em memória no texto jornalístico; logo, submeteu-se ao desfecho reservado à maioria dos
heróis das tragédias: encontrar, na morte, o reconhecimento por seus feitos grandiosos.
Superado pelo destino, o “gênio das pernas tortas” está eternizado como um dos maiores
jogadores de futebol de todos os tempos. Ulf, do contrário, desafiou o que a vida lhe
reservava, construiu seu próprio caminho e transpôs obstáculos até alcançar sua grandeza.
Em síntese:
104
Figura 12 – Percurso dos heróis na Reportagem 2
Fonte: diagrama elaborado pelo autor, a partir de modelo formulado por Kothe (1987).
Assim surgem os heróis da mídia, versões revisitadas dos homens valorosos trazidos
à vida nas narrativas épicas dos grandes autores da Antiguidade. Os repórteres-narradores
dos textos compreendidos nesta pesquisa, de fato, retomam o que Homero já realizara com
o viajante Ulisses, em sua Odisséia: tanto nas matérias televisivas quanto no poema épico,
os heróis notabilizam-se por façanhas glorificantes – e, em casos específicos, inscritas na
esfera do fantástico. Assim como Ulisses recorreu à inteligência para subjugar o ciclope
Polifemo, Romário valeu-se de seu bom futebol para devolver as forças ao “Gigante da
Colina”. São dois exemplos de peripécias próprias dos heróis épicos: por mais que suas
vitórias sejam grandiosas, sempre decorrem de ações restritas às capacidades humanas.
As considerações até aqui confirmam minha percepção inicial de que as reportagens
componentes do corpus desta pesquisa assumem a função, acima de tudo, de histórias
sobre pessoas. Todavia, não são alusivas a pessoas comuns. Uma vez transformados em
seres de papel, os indivíduos submetidos ao foco narrativo dessas matérias são despidos de
sua complexidade ontológica. Dessa forma, imperfeições são omitidas, virtudes exaltadas e
ações alçadas ao patamar de aventuras exemplares. Hoover Orsi, na pele de um “caubói do
asfalto”; Ulf Lindberg, como “a herança de um gênio”; e, por fim, “Doutor” Romário
representam valores nobres aos quais a humanidade normalmente aspira – como valentia,
determinação e talento, respectivamente. Ao encontro disso, Campbell (1949, p. 28)
sustenta que o herói “é o homem ou mulher que conseguiu vencer suas limitações históricas
pessoais e locais e alcançou formas normalmente válidas, humanas.” Conseqüentemente, o
personagem heróico torna-se universal não apenas enquanto projeção daquilo que o
homem tanto deseja, mas também como fonte de inspiração para o mesmo. No caso dos
personagens analisados, percebe-se que, afora as especificidades existentes em suas
Garrincha(tragédia)
Ulf(epopéia)
Vitória
Morte
GRANDEZA
105
trajetórias pessoais de ascensão, seus arquétipos são os mesmos que vêm alimentando os
rituais, a mitologia e o imaginário coletivo desde o alvorecer da cultura humana.
3.3.3 A dimensão episódica
Uma vez classificados como heróis de textos funcionalmente narrativos, os
personagens das matérias jornalísticas selecionadas nitidamente se destacam por viverem
uma aventura ao fim da qual alcançarão o triunfo glorificante. Essa busca é inerente à
condição de todo personagem nobre, pois a série de desafios dispostos no caminho do
indivíduo narrado constitui a prova qualificadora de sua grandeza. Na trilha do herói, a
superação sempre precederá a recompensa.
Há, sobretudo, uma espécie de ordenamento no mito do herói. E, realmente, a
concepção estrutural desse gênero não poderia ser vista de modo diferente, uma vez que o
próprio Aristóteles (1966, p. 74) define o mito propriamente dito como “composição dos
atos”. Trata-se, incontestavelmente, de uma relação quase sinonímica com a noção de
seqüencialidade de ações que configura a visão contemporânea acerca da narrativa.
Sendo esse gênero, portanto, uma composição de ações, faz-se necessário averiguar
a sua morfologia, ou seja, os seus diferentes eventos constitutivos e as relações que
estabelecem entre si. São eles que darão vida à dimensão episódica, ou seja, à disposição
dos acontecimentos que confere à história sua formatação. Aristóteles (1966), ao estudar a
estrutura do mito, foi quem primeiro estabeleceu uma classificação no corpo narrativo. Como
ressaltei neste mesmo capítulo, o filósofo grego o segmentou em princípio, meio e fim,
caracterizando o texto bem composto como um todo que, como tal, não pode começar e
nem terminar ao acaso.
A teoria serviu de base para que outros autores da narratologia ampliassem a proposta
de estruturação da história. O exemplo mais notável é o do formalista russo Vladimir Propp
(1984), que dedicou seus estudos à morfologia nos contos de magia. A revolução que
provocara eliminou o estudo dos textos artísticos segundo critérios externos – como a
escola a que o escritor pertence ou a época em que a obra foi concebida. “Uma narrativa é
vista como uma obra de arte que, assim como uma estátua ou um quadro, uma vez
produzida passa a ter uma vida independente do autor e da época” (D’ONÓFRIO, 2004, p.
66).
106
A morfologia postulada por Propp (1984) segue o rastro deixado por Aristóteles (1966).
Assim como o filósofo em suas considerações sobre o mito, o autor russo também sustenta
o predomínio das ações sobre os personagens. “[...] pode-se estabelecer que os
personagens do conto maravilhoso, por mais diferentes que sejam, realizam freqüentemente
as mesmas ações” (PROPP, 1984, p. 26). Elas são as partes constituintes do conto e,
portanto, estão dispostas numa seqüência lógica. Pela ótica formalista, a ordem na qual as
funções dos personagens se apresentam é rigorosamente idêntica.
Dando continuidade ao pensamento de Propp (1984), vemos que as regras relativas à
estruturação do conto maravilhoso restringem o número de funções dos personagens. O
formalista russo chega ao ponto de identificar trinta e um tipos distintos, precedidos por uma
situação inicial que, embora não seja incluída como uma função, mostra-se um elemento
morfológico de grande importância. “Enumeram-se os membros de uma família, ou o futuro
herói (por exemplo, um soldado) e é apresentado simplesmente pela menção de seu nome
ou indicação de sua situação” (PROPP, 1984, p. 31). Posteriormente, são dispostas as
seguintes funções:
I – Um dos membros da família afasta-se de casa;
II – O herói depara-se com uma proibição;
III – O herói transgride a proibição;
IV – O antagonista busca informações;
V – O antagonista é informado sobre sua vítima;
VI – O antagonista tenta enganar a vítima para apossar-se de seus bens;
VII – A vítima é enganada pelo antagonista;
VIII – O antagonista causa dano a um dos membros da família;
IX – O pedido de socorro é feito ao herói;
X – O herói aceita o pedido;
107
XI – O herói sai de casa;
XII – O herói enfrenta uma provação;
XIII – O herói supera a prova;
XIV – O herói recebe um objeto mágico (ou uma habilidade mágica);
XV – O herói é levado ao lugar onde está o objeto que procura;
XVI – O herói confronta o seu antagonista;
XVII – O herói recebe uma marca (ferimento ou um outro sinal);
XVIII – O antagonista é derrotado;
XIX – O dano inicial é reparado;
XX – O herói regressa;
XXI – O herói é perseguido;
XXII – O herói é salvo da perseguição;
XXIII – O herói volta incógnito para casa ou chega a um local estrangeiro;
XXIV – Um falso herói rouba o objeto e atribui a glória a si;
XXV – O herói recebe uma tarefa difícil;
XXVI – O herói realiza a tarefa;
XXVII – O herói conquista o reconhecimento;
XXVIII – O falso herói é desmascarado;
XXIX – O herói ganha uma aparência melhor;
108
XXX – O inimigo é punido;
XXXI – O herói se casa e assume o trono.
Apesar de já evidenciar o importante papel de Propp (1984) para o estudo da
narratologia, meu propósito, aqui, não consiste em definir um número exato de funções que
possa revelar a estrutura canônica do texto narrativo. O próprio modelo proppiano ainda
vem sendo motivo de amplas discussões sobre a enumeração e a aplicação desses
eventos. A presença da morfologia dos contos maravilhosos neste trabalho vem tão
somente ao encontro da minha preocupação em apontar uma seqüência diegética nas três
reportagens em análise. Essa ordem, a meu ver, está distribuída em três partes essenciais.
Independente do número de funções enumeradas por Propp (1984), os acontecimentos de
qualquer texto que se suponha narrativo devem, necessariamente, ser distribuídos entre
início, meio e fim.
D’Onófrio (2004, p. 73) também afirma que “toda narrativa tem um ponto de partida,
um caminho a percorrer e um ponto de chegada”. Por esse motivo, acredito que seus
pressupostos sobre a tripartição da fábula17 sejam pertinentes para que possamos
aprofundar a investigação do esqueleto narrativo convencional e identificá-lo nas matérias
jornalísticas do corpus. Assim como na morfologia de Propp (1984), essa teoria opõe o
estado de equilíbrio no princípio e no fim da narrativa à ação concentrada no meio da
história. Dessa forma, temos, na ordem, uma situação inicial, as transformações (subdividas
em dois tipos) e uma situação final.
A respeito da situação inicial (Si), D’Onófrio (2004) reforça o princípio adotado na
análise morfológica dos contos de magia russos: ela não pode ser considerada uma função,
uma vez que sua principal característica é a ausência de ações. Por ser estática, a situação
inicial não deflagra o conflito, mas o potencializa para a sua eclosão posterior. De modo
geral, essa virtualização conflitual deve-se ao fato de termos um sujeito (S) separado (U) do
objeto (O) pelo qual tem apreço. Nas narrativas que zelam por um determinado status quo,
recai sobre o vilão o papel de sujeito da situação enunciativa. É ele que se encontra num
estado de carência, afastado do objeto pretendido, que, por sua vez, está sob o domínio do
17 Tomachevski, citado por D’Onófrio (2004, p. 73), define fábula como “o conjunto de acontecimentos ligados entre si que nos são comunicados no decorrer da obra”. Este conceito – largamente utilizado pelos autores formalistas – equivale ao atribuído por Aristóteles (1966) ao mito. Neste trabalho, adotarei essa denominação por conveniência ao que acredito ser a ordem fundamental dos eventos na dimensão episódica da narrativa. Posteriormente, demonstrarei como a esfera discursiva compreende, ainda, outras seqüências possíveis.
109
convencionalmente aceito. Com isso, a situação inicial recebe o status de um enunciado de
estado disjuntivo (EED), que pode ser assim representado:
Si = EED ou S U O
Diante disso, é possível deduzir que as reportagens analisadas nesta pesquisa não se
resumem à presença dos heróis identificados anteriormente, mas também por seus
respectivos objetos e vilões ávidos por possuí-los. Situada numa partida de futebol, a
Reportagem 3 torna essa relação mais nítida do que nas outras duas narrativas: a vitória é o
objeto almejado pelas duas equipes envolvidas na disputa. Portanto, se temos Romário, do
lado do Vasco da Gama, personificado como o herói da história contada pelo repórter-
narrador, os times adversários, conseqüentemente, assumem a condição de inimigos,
determinados a impedir o seu triunfo. Na situação inicial, percebe-se que o “Gigante da
Colina” – enquanto representação icônica da equipe vascaína – goza de uma situação
estável no campeonato, até ser abatido pelos “cinco cruzados do Figueirense”, que tomam
para si a vitória.
A Reportagem 1 apresenta um estado disjuntivo inicial semelhante ao do exemplo
acima. Ainda que numa proporção menor, a matéria jornalística também remete a uma
disputa esportiva – mais precisamente, às corridas de automobilismo. Portanto, também é
evidente que, ao herói Hoover Orsi, opõem-se os adversários, que objetivam subir ao pódio
tanto quanto o protagonista dessa história. Enquanto vilões da narrativa, sua carência inicial
consiste em demover Hoover da tranqüilidade em seu refúgio idílico para superá-lo nas
pistas. Novamente, a vitória emerge como o objeto de disputa entre duas forças. Dessa vez,
porém, a sua relevância transcende o evento esportivo em si: representa, ainda, a paz de
espírito recompensadora daqueles que cumprem a missão proposta.
Na Reportagem 2, contudo, a distribuição de papéis intrínseca à situação inicial é
dotada de um grau de complexidade maior em comparação às outras duas matérias
televisivas selecionadas. Apesar de possuir o futebol como tema da narrativa, não se trata,
nesse caso, de um duelo no qual a vantagem no placar determina os vencedores e os
vencidos. Conforme mencionado no item anterior deste capítulo, a busca empreendida por
Ulf visa à recuperação de seus laços familiares com Mané Garrincha. Assim sendo, deve-se
entender como a situação inicial dessa história a concepção do personagem principal como
resultado de uma aventura amorosa entre seu pai brasileiro e sua mãe sueca. Com base na
translação da matéria televisiva, sabe-se que Ulf será, posteriormente, abandonado pela
própria mãe num orfanato, privando-o de quaisquer laços familiares.
110
No entanto, questiono, nessa reportagem, a personificação do vilão numa única
pessoa. Uma vez definida a família como o objeto que move a narrativa em questão,
proponho considerar a mãe de Ulf apenas um instrumento para uma série de circunstâncias
sócio-culturais que culminaram no abandono do herdeiro de Garrincha. Nesse sentido, as
diferenças entre os pais do personagem eram acentuadas o suficiente para eliminar
qualquer possibilidade de constituição de uma família convencional. Assim como houve um
afastamento por parte do jogador, sua então namorada optou por desfazer-se da criança,
fruto de um romance fugaz e, por isso mesmo, um alvo em potencial da recriminação da
sociedade. Portanto, são essas mesmas distâncias – geográfica e cultural, prioritariamente –
que estabelecem com Ulf a disputa pelo objeto desejado.
Inevitavelmente, o conflito que desencadeará a aventura do herói na estrutura
narrativa depende da investida bem-sucedida, ainda que temporária, da força inimiga.
D’Onófrio (2004) afirma que, no estágio seguinte ao enunciado de estado disjuntivo, a
narrativa é movida pela superação da carência que gera a sua tensão inicial. Com efeito, o
sujeito sai de sua inércia para se aproximar gradualmente do objeto almejado. Em suma,
ocorre uma transformação (Tr1), que converte o sinal de disjunção (U) em conjunção (∩):
Tr1 = S U O → S ∩ O
Para Todorov (1980), a transformação desempenha um papel tão relevante quanto a
sucessão na narrativa. De fato, o autor classifica esses elementos como os dois princípios
inerentes ao gênero em questão. Se é inegável que um texto narrativo não pode prescindir
de uma seqüência de ações, também não podemos ignorar que essa sucessão seja movida
por relações de transformação: da intencionalidade à realização, do equilíbrio ao conflito ou
do dano à reação, para citar alguns exemplos.
É verdade que essa transformação goza de um estatuto particular; sem dúvida, isso se deve ao lugar singular que a negação ocupa em nosso sistema de pensamento. A passagem de A para não-A é de certo modo o paradigma de toda mudança. (TODOROV, 1980, p. 65).
Tendo isso em vista, D’Onófrio (2004), divide a parte intermediária de sua tripartição
fabular em dois tipos de transformações: inicialmente, a que culmina no dano provocado
pelo vilão; e, na seqüência desta, a reparação do dano. No primeiro tipo, o indivíduo que
sente a falta de algo decide agir para dar fim ao seu problema, assumindo uma atitude de
111
negação no que se refere ao seu estado anterior de carência. Nas reportagens 1 e 3, os
oponentes de Hoover e Romário nitidamente desejam superá-los a fim de conseguir para si
próprios a vitória nos eventos esportivos disputados. Mas o caso de Ulf Lindberg novamente
deve ser visto sob uma ótica mais aprofundada: sua mãe nega o fato de ter gerado um filho
a partir de uma relação passageira. Apesar de não estar cristalizada na superfície textual, é
possível arriscar que sua carência possa estar vinculada a uma necessidade de obedecer
às condutas sociais vigentes – as quais, evidentemente, não vêem com bons olhos uma
gravidez indesejada, sem o endosso de um matrimônio ou qualquer modalidade de união
estável.
Todavia, D’Onófrio (2004) salienta que a transformação não depende exclusivamente
do estado de carência do sujeito. É preciso, ainda, que o anti-sujeito crie as condições
necessárias à vilania – o que normalmente ocorre de forma involuntária. Tanto a morfologia
dos contos maravilhosos quanto a estrutura narrativa das reportagens analisadas apontam
uma função do herói propícia para a ação inimiga: o afastamento do personagem de seu
espaço de segurança. “De um modo geral, a função de afastamento significa a falta de
proteção seja para quem vai (pois é obrigado a enfrentar um lugar ‘atópico’), seja para quem
fica (pois a sociedade está com sua ‘força’ ausente)” (D’ONÓFRIO, 2004, p. 78). Assim
como Chapeuzinho Vermelho submete-se ao ataque do lobo ao afastar-se de casa e
adentrar a perigosa floresta, os heróis das reportagens 1 e 3 também sofrem o dano ao
saírem de seus respectivos refúgios18. Na Reportagem 2, porém, o malefício não está
condicionado à saída do herói. Uma vez que Garrincha, ao voltar para o Brasil, comprova a
ilegitimidade de Ulf enquanto seu herdeiro, o protagonista fica à mercê das exigências sócio-
culturais que o impedem de requerer seus laços de sangue. O afastamento de seu pai,
portanto, é proporcional à proibição de sustentar sua linhagem.
Portanto, ao subjugar a vítima e roubar-lhe o objeto valoroso, o vilão não apenas dá
fim à sua carência, como também perverte o status quo. O antagonista não aceita a
ideologia imposta pela sociedade vigente e, como tal, sofre a marginalização diante da
mesma. É por essa razão que o roubo do objeto o é tão importante, pois através dele o
inimigo vislumbra a possibilidade de “corrigir” uma injustiça, transferindo essa privação aos
defensores dos valores convencionalmente aceitos. A relação é dicotômica: ao tomar o
poder para si, o vilão (S1) sempre irá abalar a ordem natural das coisas, representada pela
figura do herói ou anti-sujeito (S2). Isso se resume a uma transferência de objeto,
esquematizada da seguinte forma por D’Onófrio (2004):
18 Esses lugares serão identificados com maior propriedade no segmento referente à dimensão espacial, ao fim deste mesmo capítulo.
112
S1UO∩S2 → S1∩OUS2
Diante dessa vital transformação, constata-se que chegar ao dano corresponde a
alcançar o coração da história. “Esta função é extremamente importante, pois é ela na
realidade que dá movimento ao conto maravilhoso” (PROPP, 1984, p. 35). Tomemos como
exemplo as trinta e uma funções citadas anteriormente: da primeira à sétima, deparamo-nos
tão somente com uma situação preparatória ao malefício gerado ao herói através da
interferência do vilão. Na Reportagem 3, o dano é claramente identificado como a derrota
imposta à equipe do Vasco da Gama pelos “cinco cruzados do Figueirense”, que relega o
time carioca à incômoda proximidade da zona de rebaixamento no Campeonato Brasileiro.
Neste caso, o golpe desferido pelos adversários compromete a grandiosidade do “Gigante
da Colina” que, combalido, desperta a aventura de Romário, lançado corajosamente ao
resgate da ordem inicial. Em relação à Reportagem 2, insisto em afirmar que o prejuízo
sofrido por Ulf é nada mais que a ausência de uma família, imposta pela conduta social que
teria obrigado sua mãe a abandoná-lo.
A Reportagem 1, por sua vez, apresenta um tipo particular de dano: apesar de o
personagem ser afastado de seu estado inicial de equilíbrio, o malefício próprio de uma
competição esportiva não chega, de fato, a ocorrer. Longe de sua fazenda, onde goza de
um repouso revigorante, Hoover Orsi é constantemente ameaçado pelos demais pilotos que
tentam vencê-lo nos circuitos de automobilismo. Na narrativa analisada, porém, o herói não
sucumbe aos esforços de seus inimigos e consegue sagrar-se vencedor na aventura à qual
se propôs. Mas não se pode, assim mesmo, descartar a existência de uma transformação
relativamente benéfica aos sujeitos do enunciado de estado disjuntivo: ao afastarem Hoover
de seu paraíso bucólico, os demais pilotos retomam a possibilidade de superá-lo, fazendo
com que o personagem, antes imerso num espaço próprio de proteção, passe a sofrer a
tensão inerente a um ambiente hostil. Trata-se, portanto, de um tipo específico de dano que,
assim como os demais, motivará o herói a aceitar a busca pelo estado inicial de equilíbrio da
narrativa.
O personagem heróico, portanto, torna-se o defensor da ideologia dominante. Sua
inserção na trama requer que ele estabeleça um acordo com a sociedade, no sentido de
aceitar um determinado pedido de socorro e encarregar-se de reaver o objeto perdido.
Romário, por exemplo, atende ao apelo da torcida vascaína, apreensiva quanto à
possibilidade de rebaixamento de seu time no campeonato. Ulf, por sua vez, satisfaz a
vontade de todos os apreciadores do bom futebol, ao lutar para que a herança do “gênio das
113
pernas tortas” – que tanto encantou o mundo e encheu os brasileiros de orgulho – não se
perca em vão. Por fim, Hoover Orsi também não trava uma batalha solitária, haja visto que
sua equipe depende tanto de seu sucesso quanto o herói propriamente dito. Essa
interdependência entre o piloto e seus aliados é evidenciada no cenário narrativo da
Reportagem 1, no plano audiovisual do trecho destacado abaixo:
PLANO VERBAL PLANO AUDIOVISUAL
OFF: Na última etapa, em Londrina, ele mostrou que a vida no campo está surtindo efeito. Pilotou com tranqüilidade nas 33 voltas e venceu de ponta-a-ponta. Foi a segunda vitória dele.
Im = Cenas de Hoover durante a etapa de Londrina da Stock Car: cruzando a linha de chegada, correndo a prova e chegando ao box com a equipe em festa
Essa espécie de “contrato” entre o herói e o interesse coletivo determina o início do
segundo segmento de transformações, compreendido justamente entre o dano e a sua
reparação. Comparativamente ao primeiro tipo, é possível afirmar que a diferença
fundamental da segunda série de transformações (Tr2) está no principal sujeito da situação
enunciativa: o herói toma o lugar antes preenchido por seu antagonista. Assim, o estado de
carência permanece impulsionando as ações, pois o personagem heróico também tenta
suprir uma falta decorrente da distância em que o objeto se encontra. Dessa vez, porém, a
supressão depende das ações do próprio sujeito, haja visto que seu caminho é tomado de
desafios. Greimas, citado por D’Onófrio (2004), distingue três tipos de provas neste resgate:
1) Prova qualificante: trata-se de um teste imposto ao herói por um tipo de personagem
que Propp (1984) denomina de doador. Na lista canônica da morfologia dos contos, está
representada nas funções XVII e XVIII (a proposição do teste e a reação do herói,
respectivamente). Ao superar o desafio, o herói é recompensado pelo doador com um meio
para facilitar sua busca. Esse apoio pode vir na forma de um conselho, um objeto, ou, ainda,
um ajudante.
2) Prova principal: é o confronto entre o herói e seu antagonista. Compreende tanto a
luta propriamente dita (função XVI) quanto a vitória (XVII). Como conseqüência, o
personagem heróico obtém a reparação do dano (XVIII) que fora causado pelo vilão.
3) Prova glorificante: é a última provação do herói, cujo objetivo consiste em diferenciá-
lo de um impostor, que reivindica a glória para si. Envolve a oferta da tarefa (XXV), o êxito
do herói (XXVI) e, conseqüentemente, o reconhecimento do mesmo (XVII). No universo dos
contos de fadas, um dos exemplos mais célebres está em Cinderella: ao calçar o sapato de
114
cristal, a protagonista frustra as pretensões das irmãs más e comprova ser a verdadeira
pretendente do príncipe.
Nas matérias televisivas analisadas neste trabalho, certamente a carência provocada
pelas vilanias induz os personagens heróicos a aceitarem suas respectivas trilhas de
desafios. Na Reportagem 1, Hoover Orsi busca reaver o seu espaço de segurança, junto à
tranqüilidade de sua fazenda. Mas sabe que isso somente será possível após superar seus
adversários nas pistas e cruzar em primeiro a linha de chegada. Eis o seu desafio particular:
recuperar sua condição de campeão, sendo o mais veloz e astuto dentre os pilotos
competidores da Stock Car brasileira. Na matéria televisiva, a corrida em Londrina consiste
na prova principal enfrentada pelo “caubói do asfalto”, na qual o personagem torna-se o
vencedor incontestável e, conseqüentemente, é recompensado com o retorno triunfante ao
seu refúgio rural.
As demais modalidades de testes também estão presentes no caminho de Hoover
Orsi, mas sua disponibilidade na estrutura diegética da reportagem reveste-se de sutilezas.
Sobre a prova qualificante, é possível averiguar a presença de doadores que ajudam o piloto
a atingir a sua glória. Esses, por sua vez, estão incorporados nos companheiros de equipe
que vibram com a façanha do herói ao final da corrida. Ainda que o sumário narrativo não os
contemple, a cena por si só já permite ao público lançar inferências sobre a sua colaboração
para a vitória do herói. Quanto à prova glorificante, proponho identificá-la nos pequenos
desafios que atestam a valentia de Hoover também em sua própria fazenda. O ataque do
quero-quero ou a rebeldia dos bois são testes que, superados, comprovam a faceta de
“caubói do asfalto” atribuída pelo repórter-narrador ao seu protagonista.
A carência do herói da Reportagem 2 já fora exposta neste mesmo capítulo. Ulf, acima
de tudo, anseia pela reconquista de seu espaço enquanto integrante da família de
Garrincha. Para ajudá-lo em sua busca, a figura do doador não surge na forma de pessoas
e, sim, como objetos: são justamente as notícias de jornal que o personagem recolheu antes
de sua empreitada, na tentativa de obter informações sobre seu pai. Ainda que a estrutura
narrativa da matéria televisiva não apresente uma prova qualificante, os objetos-ajudantes
certamente fornecem subsídios para que o protagonista persista em seu intento.
A particularidade da Reportagem 2 é que as duas provas seguintes se entrecruzam de
um modo curioso: sua ação conjunta resulta na transformação do nêmesis da narrativa na
resolução da carência do herói. A prova principal que Ulf deve confrontar, conforme explicitei
anteriormente, é a distância geográfica e sócio-cultural que o impossibilitou de desfrutar de
115
um convívio em família. Entretanto, nem mesmo esses complicadores impedem suas irmãs
de vislumbrarem no parente perdido traços característicos do pai. Em suma, a diferença de
idioma e outros aspectos culturais impedem uma comunicação eficiente entre os irmãos,
mas ainda assim Ulf consegue superar a prova glorificante ao legitimizar os seus laços de
sangue através de sua semelhança física com Mané Garrincha.
Por último, a Reportagem 3 nitidamente atrela as provações do herói a condições
intrínsecas à modalidade esportiva do futebol. Assim como na Reportagem 2, a prova
qualificante também inexiste para o personagem Romário. Todavia, os doadores encontram-
se perfeitamente visíveis na estrutura textual: são justamente os companheiros de equipe do
protagonista que o auxiliam na tarefa de reerguer o “Gigante da Colina” e,
conseqüentemente, contribuem para consagrá-lo em sua heróica jornada. Trata-se de algo
totalmente previsível num esporte coletivo, pois, ainda que um jogador se destaque dos
demais, a ação dos “coadjuvantes” na partida é fundamental para que o grupo alcance a
vitória.
Essa interdependência entre o herói e seus doadores é exemplificada com propriedade
no seguinte trecho da matéria:
PLANO VERBAL PLANO AUDIOVISUAL
OFF: Aos sete minutos, já respira aliviado... Im = Boneco inflável de pé
ES = Música de suspense
(não há texto) Im = Close no ventilador do boneco inflável
ES = Sobe som do barulho do ventilador
OFF: ...com a dose dupla intercalada que recebeu: Marco Brito... Romário... Marco Brito... Romário, que faz três a zero...
Im = Troca de passes entre Marco Brito e Romário, que culmina no gol deste último; após, o replay do lance, em slow motion
OFF: ...e sai à procura do companheiro para agradecer o passe que recebeu. “Cadê ele? Cadê ele?” “Ta lá”, aponta o Diego.
Im = Romário olha para os lados, à procura de Marco Brito e a imagem congela no momento em que Diego aponta a localização do jogador
116
Na reportagem em questão, a estrutura diegética claramente dedica a Diego, Morais e
Marco Brito a tarefa de preparar o caminho de Romário para que, de forma arrebatadora, o
herói propriamente dito desfira o último golpe nos adversários para reaver o objeto-valor. É
curioso notar que, na medida em que a narrativa avança, os doadores sutilmente
desaparecem para que o personagem heróico entre em cena. Após fornecerem as suas
próprias doses do “remédio” para recuperar o “Gigante da Colina”, é “doutor Romário”,
imprescindivelmente, quem deve proporcionar a cura definitiva para o mal que se abate
sobre a equipe vascaína.
O jogo de futebol, aliás, já constitui por si só a prova principal na saga do herói na
Reportagem 3. A própria concepção de confronto ou duelo, inerente a essa prática
esportiva, aponta a existência de uma disputa de poder, na qual a vitória aparece como o
objeto a ser conquistado. Logo, se esse tipo de teste é um estágio da narrativa tomado pela
luta, o embate da matéria analisada necessariamente está focado em Romário,
representando o Vasco da Gama, contra a equipe do Paysandu, que deseja subtrair-lhe o
direito de recuperar o seu time no campeonato. Tal como na tendência verificada na
morfologia dos contos maravilhosos, o lado vencedor da partida acaba sendo justamente
aquele amparado pelo personagem heróico. “O representante e defensor dos valores sociais
é o herói, que é chamado ou se oferece para reparar o dano cometido pelo inimigo e restituir
à sociedade o objeto-valor dela alienado” (D’ONÓFRIO, p. 82, 2004).
A prova glorificante, por sua vez, é apenas insinuada nas entrelinhas da narrativa
jornalística. No jogo relatado pelo repórter-narrador, o herói Romário não está sozinho na
busca pelo reconhecimento público. Assim como ele, Robson, nas linhas inimigas, procura
manter-se como o supremo artilheiro do campeonato. Portanto, a exemplo da trajetória do
herói postulada por Propp (1984), a missão de Romário não termina no resgate do objeto. É
preciso, ainda, que o personagem desqualifique seu rival, prove o seu valor e torne sua
façanha digna de admiração. Realmente, Romário faz muito mais que Robson ao longo da
partida: marca dois gols, enquanto o artilheiro inimigo não demonstra a mesma eficiência. O
reconhecimento público do herói é nítido nos instantes finais da reportagem: Romário é
cercado pela imprensa, numa amostra irrefutável de sua celebridade.
Em síntese, as provações impostas aos heróis das reportagens selecionadas
pressupõem, antes de qualquer coisa, um enfrentamento entre duas forças antagônicas.
Com base nisso, D’Onófrio (2004) retoma a importância da prova principal, conferindo-lhe
117
um papel central na dimensão episódica da narrativa. O ponto-chave é o fato de que a
recompensa ao vencedor do combate nunca muda: sempre será a posse do objeto-valor. E
esse prêmio, por sua vez, é o que permite dar à história o seu desfecho, com o
restabelecimento da ordem verificada na situação inicial. A narrativa, portanto, revela-se um
espaço de circulação de objetos, conforme aponta o esquema abaixo:
Tr2 = S1∩OUS2 → S1UO∩S2
Com a volta do equilíbrio e eliminada a existência de ações que possam induzir ao
conflito, chegamos à situação final (Sf) da narrativa. Como última parte da tripartição, ela
assume a condição de um enunciado de estado conjuntivo (EEC), pois o sujeito finalmente
está unido ao objeto-valor. A exemplo de Ulisses, que volta para os braços de sua amada
Penélope ao fim de sua jornada de vinte anos pelos mares, Hoover Orsi retorna ao seu
refúgio idílico após uma consagradora vitória nas pistas, Ulf Lindberg resgata o seu vínculo
familiar com Garrincha e, por fim, Romário revigora o outrora combalido “Gigante da Colina”.
Seguindo a fórmula que D’Onófrio (2004) aplicara à situação inicial, arrisco-me, portanto, a
representar de modo semelhante o segmento derradeiro do esqueleto diegético:
Sf = EEC ou S∩O
A análise da dimensão episódica das reportagens componentes do corpus desta
pesquisa permite-me ampliar ainda mais as considerações acerca do já mencionado
aspecto universal da saga do herói. Muito mais do que os arquétipos atribuídos aos
personagens de cada texto jornalístico, o relato das aventuras às quais são lançados
também refletem padrões estéticos já cristalizados na antiga tradição de difundir histórias
sobre seres notáveis. Por isso é que, apesar de pertencerem a universos tão singulares
entre si, Hoover, Ulf e Romário convergem numa mesma trajetória composta de carência,
luta e glória. Esse caminho, aliás, é conhecido de todos os grandes heróis que ganharam
seu sopro de vida pelo gênio dos primeiros grandes narradores. Seja na notícia efêmera e
instantânea que ganha a tela da TV ou nas páginas dos inesquecíveis clássicos literários, a
morfologia do conto de Propp (1984) ainda se mostra digna de reconhecimento. Mudam-se
os meios, mas a humanidade persiste em ser guiada por modelos ancestrais do imaginário
coletivo.
3.3.4 A dimensão temporal
118
Concluída a análise seqüencial dos acontecimentos no esqueleto narrativo das
reportagens selecionadas, volto minhas atenções, agora, ao elemento ordenador dessa
mesma composição. De fato, não podemos pensar na diegese sem considerar que tanto
sua dimensão discursiva quanto seu conteúdo temático dependem de uma localização no
tempo. Essa exigência sempre esteve atrelada ao conceito de narrativa, desde a sua
emergência com Aristóteles (1966). Ao atribuí-la um encadeamento de início, meio e fim, o
filósofo grego já induziu uma necessidade temporal na sua estruturação, ou seja, as ações
teriam que suceder umas às outras. Essa noção, posteriormente, foi revisitada pelo
formalismo russo, do qual Vladimir Propp (1984) tornou-se um dos expoentes.
Evidentemente, não podemos negar que os eventos seguem esse sentido na
morfologia narrativa, afinal, a reparação do dano só pode ocorrer após a sua concretização
– e esta, por sua vez, é motivada por um estado anterior de carência. Romário, por exemplo,
somente salva o “Gigante da Colina” após este ter sofrido o golpe dos inimigos, pois, do
contrário, a intervenção do herói revelar-se-ia desnecessária. Entretanto, ao verificarmos, a
partir de agora, a dimensão temporal diegética, veremos que o modo como esses mesmos
fatos são apresentados na esfera enunciativa nem sempre necessita obedecer ao modelo
aristotélico. É o que me permite, neste momento, expor a diferença fundamental entre a
dimensão episódica e a dimensão temporal, através da ótica de Nunes (1998): responde, a
primeira, pela ordem dos acontecimentos; à outra, incide a configuração da ordem do
discurso. Nesse último caso, as categorias temporais, apesar de sua diversidade,
convergem numa mesma função:
[...] recobrem, em vez de uma identidade, relações variáveis entre acontecimentos, ora com apoio nos estados do mundo físico, ora nos estados vividos, ora na enunciação lingüística, nas condições objetivas da cultura, nas visões de mundo e no desenvolvimento social e histórico. (NUNES, 1998, p. 23).
A pluralidade do tempo torna por demais ousada a tarefa de partilhá-lo em diferentes
conceitos. Por esse motivo, minha pretensão aqui consiste apenas em resumir em três as
modalidades da dimensão temporal que considero de elevada importância ao estudo do
corpus: o tempo real, o tempo da história e o tempo do discurso. Justifico essa seleção ao
reconhecer que o primeiro tipo funciona como um modelo para o segundo. Entretanto, será
o tempo do discurso que dará ao texto narrativo a configuração temporal verificável no ato
da leitura.
119
Nunes (1988) afirma que o tempo real é correspondente à ordem natural das coisas.
Para lidarmos com essa modalidade, é necessário, acima de tudo, adotar a percepção mais
óbvia da humanidade acerca do tempo: a idéia de que o presente justifica a sua existência
tanto em função de um passado quanto em função dos projetos futuros. Isso porque o
tempo físico é provido de um princípio de causalidade que de forma alguma admite
inversões em seu direcionamento.
De fato, o arranjo dos eventos propicia essa confusão entre tempo e lógica. Ora, qual
seria, então, seu princípio norteador? Ricouer (1995) defende que o ordenamento das ações
prescinde de uma seqüencialidade e, para tanto, lembra o fato de Aristóteles considerar o
mito uma ação completa. No entanto, essa totalidade seria explicada simplesmente por uma
relação de causa e efeito, porquanto que uma ação só se realizaria em caso de
necessidade.
Na minha concepção, tempo e causalidade não podem ser pensados de forma isolada,
pois é justamente essa interdependência que aponta a direção dos acontecimentos.
Assim, dizer que um evento antecede outro é afirmar que, sem o primeiro (causa), o segundo (efeito) não existiria, a ordem temporal acompanhando a conexão que os une e que não pode ser invertida (o efeito não pode vir antes da causa), a menos que a Natureza desandasse. (NUNES, 1988, p. 19).
É desse modo que podemos distinguir, no tempo real, um viés cronológico que segue
o seu movimento indiferentemente ao estado de consciência dos indivíduos. Essa
objetividade revela outro aspecto inerente a essa categoria temporal: a possibilidade de ser
mensurada. Afinal, remete-nos à inevitabilidade do passar das horas, do contar dos dias e,
numa escala maior, dos nossos próprios ciclos de vida – valendo-se ora de escalas
dimensionadas pela própria ordem natural, ora pela quantificação imposta pelo homem.
É fato que a narrativa procura sustentar, na medida do possível, uma relação de
verossimilhança com o mundo exterior (conforme demonstrarei de forma mais nítida no
subcapítulo seguinte). Por essa razão, o aspecto cronológico do tempo real torna-se a base
para que o tempo da história organize o seu aspecto episódico. Pois o tempo da história é
aquele imerso no campo do imaginário e, como tal, caminha segundo seus personagens,
objetos e situações, que vêm a compor os diversos eventos de sua estrutura.
120
Essa emulação do tempo real é exatamente o que ocorre na estrutura diegética das
reportagens analisadas. Em qualquer um dos casos selecionados para o presente estudo,
há uma seqüência de eventos dispostos conforme um arranjo cronológico e entrelaçados
por uma relação de causalidade. Na Reportagem 1, o amadurecimento do personagem
principal, enquanto processo inevitável da natureza humana, coincide com o encadeamento
episódico. A história contada pelo repórter-narrador tem seu início na infância do
protagonista, o “caubói do asfalto” Hoover Orsi. De fato, trata-se do episódio mais remoto
retratado no texto jornalístico e, de acordo com a condição inerente à situação inicial da
dimensão episódica, é onde se encontra o equilíbrio proporcionado pela posse do objeto-
valor por parte do protagonista. Hoover, nessa etapa de sua vida, é uma criança vivendo em
Mato Grosso do Sul – estado brasileiro cujo território é, em grande parte, ocupado por
grandes propriedades rurais, geralmente exploradas para o cultivo da soja ou a criação de
gado. A seguir, a proximidade da idade adulta induz o herói a investir em sua “aventura”.
Assim, o personagem deixa a tranqüilidade do campo e viaja pelo mundo em busca de
desafios no calor do asfalto e no ritmo alucinante das pistas de corrida. Nessa etapa,
portanto, há a carência do herói em retomar a sua condição inicial. Ao encontro disso, o seu
feito mais recente (a vitória incontestável na etapa de Londrina da Stock Car brasileira)
torna-se a transformação reparadora do dano. Com a façanha realizada, a narrativa chega
ao seu estágio final, no qual Hoover reencontra a paz de sua fazenda como uma espécie de
recompensa pela sua conquista.
O tempo da história na Reportagem 1, com isso, pode ser ilustrado do seguinte modo:
Figura 13 – Tempo da história na Reportagem 1
Fonte: diagrama elaborado pelo autor
FAZENDA VIAGENS CORRIDAS FAZENDA
LINHA DO TEMPO
DIMENSÃO EPISÓDICA
Infância Adolescência Fase Adulta Momento atual
Si Tr1 Tr2 Sf
121
A Reportagem 2 também apresenta um ordenamento de ações cronologicamente
situadas. Nesse texto, o episódio que origina a seqüência narrativa é claramente identificado
no trecho a seguir:
PLANO VERBAL PLANO AUDIOVISUAL
OFF: Foi quando Garrincha voltou à Suécia com o Botafogo, um ano após encantar o país na Copa de 58. Ele conheceu uma sueca. Um encontro bastou.
Im = Cenas antigas, em preto-e-branco, de Garrincha driblando os adversários e do público no estádio vibrando.ES = Música no ritmo de chorinho
Novamente, o tempo real norteia a disposição dos episódios, uma vez que a aventura
amorosa entre Garrincha e sua amante sueca resultará no nascimento de Ulf. É válido
lembrar que esse momento deve ser considerado a situação inicial do esqueleto diegético,
pois o protagonista tem a sua filiação legitimada. A seguir, porém, esse mesmo direito é
extraído do herói, que se vê obrigado a passar a infância num orfanato, longe do convívio de
um pai e de uma mãe. A essa transformação, que induz ao dano, segue-se a segunda
modalidade, já com Ulf na fase adulta: a superação dessa falta e o início de sua jornada
para reaver seus laços de sangue, representada por sua viagem ao Brasil. Por fim, o
restabelecimento do equilíbrio inicial encerra a linha temporal da história nessa matéria
televisiva, haja visto que o herói encontra o seu “final feliz” ao lado de suas irmãs e tem sua
herança genética reconhecida.
Em suma:
Figura 14 – Tempo da história na Reportagem 2
Fonte: diagrama elaborado pelo autor
NASCIMENTO ORFANATO VIAGEM FAMÍLIA
LINHA DO TEMPO
DIMENSÃO EPISÓDICA
Início de vida Juventude Fase Adulta Momento atual
Si Tr1 Tr2 Sf
122
Até então, as reportagens apresentam um tempo da história fundamentado nos ciclos
de vida próprios do ser humano. No entanto, a Reportagem 3 utiliza outra opção de tempo
real para ordenar seus eventos. Uma vez que os acontecimentos principais estão restritos
aos 90 minutos típicos de uma partida de futebol, é justamente essa modalidade esportiva
que determina a cronologia dos episódios narrados.
Primeiramente, nota-se que a seqüência diegética inicial ocorre no intervalo entre dois
jogos específicos. No confronto diante do Figueirense, o Vasco da Gama – ou “Gigante da
Colina”, em sua significação icônica – encontra a sua derrocada, sendo severamente
golpeado pelo adversário. Assim, uma rodada se passa entre a concretização do dano e a
busca empreendida pelo herói para saná-lo. A segunda modalidade de transformação,
referente à recuperação do objeto-valor, toma forma justamente na partida seguinte, entre
Vasco e Paysandu. Gol após gol, é somente através da vitória diante do novo adversário
que Romário e seus “auxiliares” mostram-se aptos a devolver o vigor ao “Gigante da Colina”.
Essa seqüência de eventos pode ser ilustrada como no modelo a seguir:
Figura 15 – Tempo da história na Reportagem 3
Fonte: diagrama elaborado pelo autor
Ao voltar a falar em “seqüência de eventos”, inevitavelmente insisto na causalidade
como fator determinante desse arranjo temporal, na medida em que o conceito tradicional
de narrativa só admite uma ação decorrente de uma outra. Mas apenas isso não basta: é
necessário que, novamente, a noção do todo seja respeitada, uma vez que “toda diegese
pressupõe um começo, um meio e um fim” (D’ONÓFRIO, 2004, p. 99). Por mais que o
GIGANTE VIGOROSO
QUEDA DO GIGANTE
ASCENSÃO DO GIGANTE
GIGANTE VIGOROSO
LINHA DO TEMPO
DIMENSÃO EPISÓDICA
Vasco x Figueirense Vasco x Paysandu
Si Tr1 Tr2 Sf
123
tempo da história esteja restrito ao plano referencial, definitivamente não podemos admiti-lo
de forma alheia à seqüencialidade passado-presente-futuro.19
Porém, esse mesmo triângulo seqüencial submete-se a uma nova relação no tempo do
discurso. Nessa modalidade temporal, há, acima de tudo, uma centralização a partir de um
instante atual, único e irreversível. Segundo Maingueneau (2001, p. 45), trata-se de um
sistema “que distribui passado e futuro em função do momento de enunciação”. Refiro-me,
portanto, a uma categoria de tempo regulada pelo exercício da palavra – a qual poderíamos
perfeitamente enquadrar como uma espécie de tempo de quem fala.
Por estar vinculado ao domínio da palavra, o tempo do discurso assume a condição de
uma forma de expressão. E eis aqui o seu principal ponto de divergência com o já
explicitado rigor do tempo real: o narrador pode tanto optar por seguir a ordem linear dos
acontecimentos, como hierarquizá-los através de inversões nessa seqüência. O tempo do
discurso, assim, “é linear, quando a narração segue a ordem cronológica dos fatos; é
invertido, quando o narrador nos diz antes um fato que aconteceu depois ou vice-versa”
(D’ONÓFRIO, 2004, p. 100). Visto que a narrativa se apresenta através da linguagem, cabe
exatamente ao tempo do discurso configurá-la.
Portanto, ao verificar a forma como os eventos estão dispostos na enunciação das
reportagens selecionadas, afirmo que, em nenhuma delas o tempo do discurso corre
paralelamente ao tempo da história. Em maior ou menor escala, os repórteres-narradores
fazem uso de anacronias, ou seja, recursos semântico-sintáticos cuja função consiste em
alterar a seqüência temporal.
A Reportagem 1 logo de início recorre à analepse, cuja função é resgatar um fato que,
pela cronologia diegética, está localizado num momento anterior da história. Esse exercício
de retrospecção é recorrente não apenas na literatura, mas também no cinema – basta
lembrar dos flashbacks no decorrer da trama. A matéria jornalística em questão igualmente
parte de um episódio avançado do esqueleto narrativo para, posteriormente, remontar ao
passado. Tão logo os primeiros segundos da cena imediata são revelados aos olhos do
telespectador, vê-se que o herói goza de uma situação estável, distante de qualquer conflito.
A dúvida, portanto, reside em saber de que forma o personagem alcançou tal recompensa.
19 D’Onófrio (2004) cita, ainda, o tempo psicológico como uma categoria dentro do tempo da história narrada. Essa modalidade temporal fundamenta-se nos processos mentais dos personagens e, por isso, não será considerada no presente trabalho, uma vez que as reportagens televisivas analisadas não contemplam o fluxo de consciência dos sujeitos envolvidos no plano enunciativo.
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4
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De acordo com a tripartição fabular em D’Onófrio (2004), o momento de ordem e
equilíbrio só se torna possível mediante duas condições: como a parte inicial da seqüência
episódica; ou como a conclusão da mesma. No decorrer da reportagem, o ouvinte logo
percebe que se trata da segunda forma de organização do discurso. O aqui e agora da
matéria está claramente situado na paisagem campestre usada pelo protagonista como um
refúgio de paz e tranqüilidade, enquanto as provações do herói são referidas como eventos
passados. Assim, a anacronia desenvolvida pelo repórter-narrador leva ao conhecimento do
público a trajetória de amadurecimento pessoal e profissional que alçou seu herói ao
panteão dos campeões do automobilismo.
Comparativamente ao tempo da história, o tempo do discurso na Reportagem 1
resume-se à seguinte fórmula:
Figura 16 – Tempo do discurso na Reportagem 1
Fonte: diagrama elaborado pelo autor
Essa mesma inversão temporal pode ser verificada de modo ainda mais intenso na
Reportagem 2. Os primeiros instantes da matéria jornalística remetem à espera das irmãs
de Ulf pelo tão esperado encontro com o meio-irmão estrangeiro para, em seguida,
promover uma viagem ao tempo que explique ao espectador a razão desse acontecimento.
A narrativa subitamente volta à década de 50, quando, numa viagem à Suécia, o jogador
Mané Garrincha vivera uma aventura amorosa com uma mulher local que resultara no
nascimento de um filho seu. Na etapa seguinte da seqüência enunciativa, há um retorno ao
período presente, com a chegada de Ulf e a emocionada recepção de sua família brasileira.
Uma segunda ocorrência de flashback toma forma em seguida, sob o intuito de mostrar as
dificuldades sofridas pelo protagonista até o encontro com suas irmãs de sangue. A
Infância em Mato Grosso do Sul
Viagem pelo mundo
Provas de automobilismo
ANALEPSE
Descanso na fazenda
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3
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narração centra-se, nesse momento, no abandono de Ulf em um orfanato e na descoberta
de seu parentesco com Garrincha. Posteriormente, há um novo salto temporal ao presente
da enunciação, de forma a conferir uma intensidade maior ao aspecto emotivo do primeiro
encontro dos irmãos distantes. E, para encerrar a reportagem, pela terceira e última vez o
foco narrativo recorre ao passado, mais especificamente à lembrança da genialidade de
Garrincha nos gramados de futebol.
Eis, portanto, a síntese das inversões temporais na reportagem analisada:
Figura 17 – Tempo do discurso na Reportagem 2
Fonte: diagrama elaborado pelo autor
Julgo importante reconhecer que boa parte da analepse existente no tempo do
discurso da Reportagem 2 está condicionada ao mesmo fato que transformou a saga de Ulf
numa notícia de divulgação nacional. Fosse o personagem o filho de um anônimo qualquer,
certamente a busca por suas origens se igualaria ao drama de uma multidão de pessoas
cujo nascimento indesejado também as afastou de seus parentes de sangue. Assim sendo,
perder-se-ia o apelo do ineditismo, do pitoresco, que torna uma matéria jornalística digna de
destaque num telejornal diário. Mas a situação sobre a qual discorro envolve diretamente
um dos maiores craques da história do futebol. Mané Garrincha é indubitavelmente o grande
chamariz da Reportagem 2 e justifica plenamente as incursões ao passado no plano
enunciativo. São justamente as lembranças dos grandes feitos do craque que permitem ao
espectador compreender por que a matéria trata Ulf, acima de tudo, como “a herança de um
gênio”.
Garrincha se destaca no futebol
Garrincha tem um filho com uma sueca
PASSADO
Ulf chega ao Brasil
Ulf é recebido pelas irmãs
PRESENTE
Irmãs esperam por Ulf
Ulf é abandonado pela mãe
Analepse
LEGENDA
Volta ao presente
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Ainda sobre as anacronias identificadas nas reportagens 1 e 2, julgo pertinente apontar
uma outra possibilidade de distorção temporal em suas respectivas estruturas narrativas: a
prolepse, cuja função consiste em antecipar um episódio na história. Em ambas as matérias
televisivas, esse avanço no tempo foi timidamente utilizado – e, dessa forma, merece
apenas uma breve citação no presente estudo. Na Reportagem 1, o narrador adianta ao
público o próximo desafio de Hoover Orsi, ou seja, a etapa da Stock Car de Brasília. Sem
dúvidas, trata-se de uma nova provação que, se superada, fornecerá ao personagem
novamente o descanso em seu refúgio rural. Já o narrador da Reportagem 2, por sua vez,
antecipa o passo seguinte de Ulf na reconciliação com sua família: conhecer Pau Grande, a
cidade-natal de seu finado pai.
Se as reportagens 1 e 2 recorrem constantemente às inversões temporais, a
Reportagem 3, por outro lado, pouco depende dessa estratégia de linguagem como forma
de configuração do discurso. Há apenas uma breve utilização da analepse nos segundos
iniciais da matéria televisiva, sob o intuito de informar o ouvinte sobre o dano sofrido pelo
“Gigante da Colina” na partida anterior à relatada na narrativa. O que se segue é uma
estruturação do tempo do discurso similar à do tempo da história. Ou seja, os fatos são
narrados na medida em que ocorrem.
A razão disso é o fato de a Reportagem 3 adotar um jogo de futebol como palco dos
eventos relatados ao espectador. Portanto, o repórter-narrador necessariamente deve
obedecer a uma espécie de “roteiro”, ditado pelo transcorrer dos 90 minutos da partida. Se,
por um lado, é permitido que avalie os principais momentos do jogo e os condense em
apenas um ou dois minutos de reportagem, por outro, ele não pode alterar a ordem em que
os acontecimentos se desenrolam, sob a pena de comprometer a verossimilhança.
Dessa forma, o ouvinte é levado a acompanhar o salvamento do “Gigante da Colina”
num ordenamento discursivo praticamente paralelo à seqüência do tempo real. De início, é
de seu conhecimento o fato de o personagem estar numa difícil situação no Campeonato
Brasileiro, devido a uma derrota retumbante diante da equipe do Figueirense. A seguir, são
narrados os principais passos de Romário e seus “auxiliares” no esforço bem-sucedido da
revitalização do colosso, enquanto representação icônica da equipe do Vasco da Gama:
primeiro, o gol de Diego; no momento seguinte, o tento assinalado por Morais; e, para
finalizar, as duas bolas mandadas para a rede por Romário. É importante destacar nessa
seqüência temporal o lamento do técnico adversário, Carlos Alberto Torres, quanto à
complicada situação de seu Paysandu após a derrota, e o reconhecimento de Romário
como o grande herói do jogo: são acontecimentos que, nitidamente, estabelecem uma
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relação de causalidade com os fatos transcorridos durante os 90 minutos de partida e que,
portanto, só devem vir à tona no sumário narrativo nos instantes finais do mesmo. Um jogo
de futebol, acima de tudo, é uma história de vencedores e vencidos.
Com isso, o tempo do discurso se apresenta, de modo ilustrativo, da seguinte forma na
Reportagem 3:
Figura 18 – Tempo do discurso na Reportagem 3
Fonte: diagrama elaborado pelo autor
A análise temporal da Reportagem 3 mostra que a história possui um grande mérito:
“fazer a audiência saber o que acontece depois” (FORSTER, 1974, p. 21). Esse elemento é
ignorado por muitos narratologistas, que optam por limitar o conceito de estrutura narrativa a
uma seqüencialidade de ações temporalmente estabelecida. Compartilho, portanto, da visão
de Forster (1974), que acrescenta ao princípio de totalidade diegética o suspense como
aspecto primordial de qualquer história. Esse fator mostra-se indispensável para que muitas
narrativas sobrevivam à ação do tempo e à dinamicidade cada vez mais intensa das práticas
sócio-comunicativas.
Conforme afirmei no primeiro capítulo deste trabalho, a sede de conhecimento é
inerente à condição humana e desempenha um papel-chave na escala evolutiva da espécie.
Por esse motivo, o homem aprendeu desde cedo a despertar a curiosidade dos outros
contando boas histórias. Na pré-história da humanidade, o narrador via-se obrigado a
manter o interesse de sua audiência, sob a ameaça de ser morto e devorado pelos
integrantes de sua tribo. Foi nessa mesma linha que Sherazade soube ludibriar a morte
pelas mãos de seu tirânico marido. A espinha dorsal de As mil e uma noites certamente
reside no suspense criado pela princesa no intervalo entre seu silêncio ao amanhecer e a
retomada da narração no cair da noite seguinte.
Derrota para o Figueirense Gigante “na
lona” Gols de Romário e seus
“auxiliares”ANALEPSE Gigante recuperado
Lamento do adversário
Reconhecimento de Romário
128
É óbvio que, nos dias atuais, os narradores não mais são passíveis da crueldade típica
dos ouvintes insatisfeitos de antigamente. No entanto, o suspense segue sendo
determinante para a atratividade de uma narrativa. Da mesma forma que o sucesso de um
romance depende do número de leitores, a reportagem televisiva, enquanto gênero
moderno, condiciona o seu sucesso à dimensão de público que é capaz de atrair diante da
TV. Se, na Reportagem 3, o ato heróico de Romário e a salvação do “Gigante da Colina”
fossem apresentados logo no início da sumarização narrativa, certamente o interesse do
público inexistiria quanto aos demais acontecimentos do jogo. Assim, é preciso que a
dramaticidade e o anseio pelo próximo passo conquistem a fidelidade do público do primeiro
ao último instante.
É exatamente esse o papel do suspense: infiltrar-se nas lacunas da estrutura narrativa
e preenchê-las de expectativa. Ao virar de página ou a cada pausa na locução, o público
invariavelmente inclina-se para a mesma inquietude: o que vem depois? “Alguns de nós não
querem saber mais nada – nada há em nós senão a primitiva curiosidade e,
conseqüentemente, outros julgamentos literários são ridículos” (FORSTER, 1974, p. 21). O
fracasso de qualquer história está na incapacidade de manter o ouvinte agradavelmente
refém de sua imprevisibilidade fantástica.
Mas o que dizer das demais matérias televisivas, cujo tempo do discurso não
demonstra igual conformidade ao tempo da história e, conseqüentemente, à dimensão
episódica? Acredito que tanto a Reportagem 1 quanto a Reportagem 2 alcançam um grau
de complexidade maior na disposição dos fatos sumarizados. Nesses dois exemplos, a
história torna-se obscurecida pelas marcas do enredo. Isso porque, além de manter a
audiência atenta à ordem das ações, ele exige, ainda, inteligência e memória por parte da
mesma.
Por que inteligência? Justamente porque um enredo admite suspensões na seqüência
temporal, forçando o expectador a ir além de simplesmente percorrer linearmente os fatos
da história. Para envolver-se com o enredo, o leitor deve captar mentalmente um
determinado acontecimento. “Ele o vê a partir de dois pontos de vista: isolado e em relação
aos outros fatos que leu nas páginas anteriores” (FORSTER, 1974, p. 70). O público ideal
de um enredo não pode preestabelecer uma visão sobre um fato. Sua expectativa deve se
manter “em suspensão”, até deparar-se com o elemento-surpresa em algum ponto
específico da trama.
129
E qual o papel da memória? Ora, está estreitamente vinculado ao da inteligência: sem
memória, não há espaço para a compreensão. “O criador de enredos espera que nos
lembremos, e nós esperamos que ele não deixe pontas soltas” (FORSTER, 1974, p. 71). O
público deve sempre parar e reconsiderar, sem deixar aquele ponto de interrogação na
intriga se esvair de sua mente ao longo da leitura. Na Reportagem 1, por exemplo, é
impossível compreender a necessidade de repouso de Hoover Orsi em sua fazenda sem
remontar ao desafio superado pelo personagem nas pistas de corrida. De modo semelhante,
a espera de Márcia e Rosângela no aeroporto só encontra justificativa quando a aventura
amorosa de Garrincha na Suécia é trazida à tona na enunciação.
Assim mesmo, é válido questionar: o que impede um narrador de dispor os
acontecimentos sempre na ordem de uma história, desenvolvendo, em muitos casos, um
enredo anacrônico? Se a proposta, neste trabalho, fosse a análise do texto jornalístico per
se, sem qualquer relação intertextual com outro gênero, o mais apropriado seria indicar a
atualidade do fato noticiado como o elemento preponderante para a ordenação dos eventos
na dimensão temporal. No capítulo anterior, demonstrei que o aspecto de novidade é um
dos requisitos mais importantes para garantir a noticiabilidade de um acontecimento. Assim,
nada mais previsível na prática jornalística do que iniciar a estrutura de uma reportagem a
partir do acontecimento mais atual para, num momento seguinte, dedicar-se à
pormenorização do mesmo.
Porém, o presente trabalho não tem a pretensão de isolar o texto jornalístico da
inevitável maleabilidade dos gêneros, provocada pela constante evolução das práticas
sócio-comunicativas humanas. Pelo contrário: os esforços, até aqui, evidenciam uma clara
hibridização textual entre os gêneros reportagem televisiva e narrativa ficcional. Logo, se as
matérias jornalísticas analisadas nesta pesquisa apresentam elementos narrativos em sua
estrutura, a factualidade deixa de ser critério imprescindível para a definição de sua
seqüência temporal. Se, na Reportagem 1, o fato mais recente (o descanso de Hoover Orsi
em sua fazenda) é, também, o que dá início ao tempo do discurso, o mesmo não se observa
nas demais matérias componentes do corpus: seus respectivos repórteres-narradores
optam por começar o seu relato com eventos situados no início ou na parte intermediária da
dimensão episódica.
Portanto, ainda que um evento-chave esteja situado no início do esqueleto episódico,
não interessa ao locutor apresentá-lo de imediato. Sua intenção é manter a atenção do
expectador até o fim da narração, exigindo-lhe um constante estado de alerta aos
acontecimentos; afinal, cada um remete a uma peça no grande quebra-cabeça da trama –
130
cuja solução, normalmente, está reservada ao grand finale. Por esse motivo, acredito que
todo enredo deve despertar o mistério, na mesma proporção em que uma história depende
do suspense.
Forster (1974) indica como fator resultante desse mistério a beleza do enredo. Isso,
porque após as idas e vindas, as considerações e reconsiderações sobre os episódios da
narrativa, o expectador deve chegar ao final da mesma com uma sensação de algo
“esteticamente compacto” (FORSTER, 1974, p. 71). Por mais anacrônica que seja uma
narrativa, percebe-se novamente que ela não pode se desprender do caráter de uma ação
completa. Aristóteles (1966, p. 76), como fundador desse princípio, afirma que “o belo, – ser
vivente ou o que quer que se componha de partes –, não só deve ter essas partes
ordenadas, mas também uma grandeza que não seja qualquer.” E essa grandeza,
imprescindivelmente, implica algo plenamente apreensível pela memória humana.
3.3.5 A dimensão espacial
Discorrer sobre o tempo e deixar de contemplar o espaço seria uma falta grave no
estudo da estrutura narrativa das reportagens componentes do corpus. Ainda que a
dimensão temporal seja a principal ordenadora da seqüencialidade diegética, de forma
nenhuma se deve desconsiderar o cenário em que ela se estabelece. Pelo contrário, está
justamente na dimensão espacial um dos aspectos essenciais para a configuração do texto
narrativo: a verossimilhança com o mundo – por assim dizer – real.
Mas como essa transição entre os espaços real e textual torna-se possível? Proponho
tomar como base as considerações de Eco (1994, p.81) sobre o acordo ficcional entre o
autor e o leitor do texto literário, na medida em que “o leitor tem que saber que o que está
sendo narrado é uma história imaginária, mas nem por isso deve pensar que o escritor está
contando mentiras”. Não é surpresa que a narrativa detém essa capacidade de fazer o
ouvinte levar a sério algo que sabe se tratar de um faz de conta. E o grande motivo disso é o
fato de uma história nunca ser uma absoluta abstração. Por mais elementos fantásticos que
deva compreender, é previsível que ela use a realidade como pano de fundo.
Esse “empréstimo” de aspectos do cotidiano induz ao verossímil em duas etapas: num
primeiro momento, faz com que o ouvinte busque em sua experiência de mundo uma base
para a compreensão do conteúdo temático narrado; e, num estágio seguinte, fornece o
131
alicerce para que o autor invista na fantasia. Os contos de fadas em que animais assumem
comportamentos humanizados são exemplos notáveis dessa mescla. Assim, ao se deparar
com o clássico A cigarra e a formiga, o leitor normalmente aceita que os personagens
principais possam falar. Porém, só passa a reconhecê-los enquanto “cigarra” e “formiga” no
momento em que suas características correspondem às dos insetos dos quais tem
conhecimento.
Assim como o texto literário, o jornalístico também exerce essa influência sobre o seu
respectivo público. É preciso, porém, ressaltar algumas diferenças básicas no contrato
ficcional inerente aos dois gêneros: primeiramente, a reportagem jornalística não se lança
abertamente ao público como um produto da fantasia. Apesar de ser uma representação
simbólica, fruto de um esforço intelectual de seu autor, os princípios de objetividade e
imparcialidade da práxis jornalística requerem que transmita aos ouvintes a aparência de
uma versão mais próxima o suficiente da verdade em todos os seus níveis de produção – da
captação dos dados à sua transcrição como notícia. Entretanto, os exemplos que compõem
o corpus do presente estudo indicam a possibilidade de utilização de recursos fantásticos
como auxiliares na transformação de um evento em produto midiático. Esses, contudo,
estão inscritos apenas sutilmente na esfera do imaginário, na linha tênue que separa o fato
social da sua representação. Na Reportagem 1, por exemplo, não há animais falantes ou
seres de magia na trama narrada; mas assim mesmo a personificação de Hoover Orsi como
um “caubói do asfalto” revela-se um estereótipo advindo exclusivamente da criatividade do
autor/narrador. Portanto, na reportagem televisiva ou nas obras literárias, devemos
considerar que o espaço diegético “contém dados de realidade que, numa instância
posterior, podem alcançar uma dimensão simbólica” (DIMAS, 1985, p. 20).
Enquanto cenário da obra ficcional, esse mesmo espaço da diegese torna-se o local
onde os personagens se desenvolvem e revelam as suas condições sociais e psicológicas.
Diante disso, Bachelard (1993) promoveu uma topoanálise20 da narrativa, com o intuito de
esclarecer essa simbologia entre espaço e personagens. Desse estudo, destaco a seguir
dois conceitos formulados pelo autor:
1) espaço tópico (Et): refere-se ao espaço íntimo do personagem, ao qual ele está
acostumado e, conseqüentemente, onde se sente protegido. Normalmente está associado à
sua casa, ao convívio familiar, à sua cidade ou ao seu país.
20 O termo topoanálise usa como referência a palavra grega topos, correspondente a lugar.
132
2) espaço atópico (Ea): é o oposto do espaço tópico, uma vez que remete o
personagem a um lugar hostil, no qual se sente ameaçado. Por um lado, sua aura de
mistério atrai o personagem à aventura; por outro, é nele que o inimigo encontra as
condições mais favoráveis para interferir na história. Nos contos de fada, esse espaço é
constantemente representado por um bosque ou um castelo assustador.
A diferenciação desses dois espaços exige-me o esforço de retornar algumas páginas
e observar a morfologia proppiana sob uma nova perspectiva. Levarei em consideração
mais uma vez todo o percurso episódico traçado pelos personagens: da sua situação inicial,
transitando pela concretização do dano, a sua posterior reparação e a chegada à situação
final, com o restabelecimento do equilíbrio anteriormente abalado. Cabe, aqui, ressaltar que
a dimensão episódica da narrativa pode ser classificada como um lugar de circulação de
objetos-valor, porquanto os eventos são movidos pelo desejo de forças antagônicas em
possuí-los. Mas essa constante alternância entre caos e ordem não traria à luz, também,
uma transição topográfica na relação dos personagens com o cenário ficcional?
Analisarei essa relação, num primeiro momento, de acordo com as funções do
personagem heróico da Reportagem 1. Para começar, acredito que, na situação inicial do
esqueleto diegético, Hoover Orsi está em seu ambiente particular de segurança: o sumário
narrativo situa a infância do personagem em Mato Grosso do Sul, presumivelmente no
mesmo ambiente idílico que encerrará a seqüência episódica da matéria jornalística. É
nesse espaço que o status quo encontra-se inabalado, haja visto que o herói goza de um
estado de tranqüilidade próprio de quem está em seu lugar de origem e ainda não se lançou
à aventura por terrenos inóspitos. Em suma, a fazenda é o espaço tópico do “caubói”
Hoover Orsi – a sua casa ou reduto, portanto.
Para Bachelard (1993), a imagem da casa, por si só, já traduz um espaço poético de
proteção e conforto. Em conformidade ao esqueleto narrativo, pode-se afirmar que essas
qualidades fornecem ao herói a sustentação necessária à sua inevitável jornada.
Antes de ser “jogado no mundo”, como professam as metafísicas apressadas, o homem é colocado no berço de sua casa. E sempre, nos nossos devaneios, ela é um grande berço. Uma metafísica concreta não pode deixar de lado esse fato, esse simples fato, na medida em que ele é um valor, um grande valor ao qual voltamos nos nossos devaneios. O ser é imediatamente um valor. A vida começa bem, começa fechada, protegida, agasalhada no regaço da casa. (BACHELARD, 1993, p. 26).
133
Evidentemente, a aventura em busca do objeto-valor exige do herói um afastamento
de seu espaço tópico. Ao empreender sua jornada para perseguir as vitórias nos circuitos de
automobilismo, Hoover abre mão da segurança de seu refúgio campestre e adentra num
território no qual está ininterruptamente à mercê da ação inimiga. A pista de corrida é o
espaço no qual inúmeros outros pilotos desejam tirá-lo do páreo e impedir seu momento de
glória no pódio. Por isso mesmo, torna-se também um lugar de apreensão e vigília
constantes. Qualquer descuido pode pôr a perder o tão sonhado primeiro lugar ao fim da
prova e, como resultado, comprometer o repouso recompensador na volta ao seu espaço de
proteção. A pista de corrida, enquanto lugar de disputa e de tensão, inevitavelmente assume
a condição de espaço atópico do protagonista da Reportagem 1.
Os dispositivos audiovisuais da reportagem em questão mais do que evidenciam o
antagonismo da sua topologia: também transformam o contraste entre o conforto da fazenda
e a adrenalina do asfalto o elemento-chave da sua estruturação diegética. Já nos instantes
iniciais da matéria televisiva, a cena imediata vale-se de índices sonoros para contrapor os
dois espaços. A edição da reportagem vincula as imagens referentes ao ambiente rural e ao
circuito de corrida a trilhas sonoras específicas. Trata-se, acima de tudo, de um processo
metafórico de significação, haja visto que a combinação entre imagem e som induz a uma
valoração de cada um dos espaços: o ritmo lento da música executada durante as imagens
da fazenda evidencia a calmaria de um local isolado da turbulência dos centros urbanos; e,
por outro lado, a música acelerada que se ouve durante as cenas de corrida salienta o
nervosismo e a apreensão próprias dos participantes dessa modalidade esportiva.
Esse destaque conferido à oposição entre os dois espaços topológicos da reportagem
justifica-se pela própria personificação de Hoover Orsi enquanto personagem de uma
narrativa. Como já explicitei na análise dos personagens heróicos, na transição do real para
a sua representação o piloto assume a identidade de um “caubói do asfalto”, ou seja, de um
indivíduo atraído tanto pelo estilo de vida rústico junto às pastagens e ao gado quanto pela
emoção da velocidade ao volante de um carro de corrida. Na Reportagem 1, esses dois
lugares assumem funções peculiares, ordenadas pela clássica morfologia diegética:
enquanto a fazenda é um espaço de equilíbrio, o circuito automobilístico volta-se
inteiramente à luta, a um esforço heróico de seu protagonista, que almeja restabelecer
justamente aquela normalidade verificada na situação inicial.
Assim, a distribuição topológica na Reportagem 1 resume-se à seguinte fórmula:
134
Figura 19 – Dimensão espacial na Reportagem 1
Fonte: diagrama elaborado pelo autor
A Reportagem 2 também move seu herói entre espaços tópicos e atópicos, ainda que
não esteja fundamentada nessa dualidade de modo tão intenso quanto no exemplo anterior.
Entretanto, a matéria jornalística não fala mais em lugares físicos, como fazendas ou
circuitos de corrida. Neste caso, a topologia utiliza como critério o convívio familiar para
distinguir os espaços de conforto e de hostilidade entre os quais o protagonista se alterna.
Inicialmente, o esqueleto narrativo está situado na relação proibida de Garrincha, da
qual Ulf é trazido à vida. Defendo, portanto, que o vínculo do personagem ao seu pai
equivale ao equilíbrio inerente à situação inicial de qualquer seqüência diegética
convencional. Assim sendo, o espaço tópico de Ulf é imprescindivelmente aquele no qual
possa usufruir, em sua plenitude, do reconhecimento enquanto a “herança do gênio”.
Esse mesmo apreço ao vínculo paterno constitui-se também no objeto-valor
perseguido por Ulf ao longo da trama. Já é de conhecimento neste trabalho que, após sua
concepção, o protagonista será privado de quaisquer laços de parentesco com Garrincha ao
ser abandonado por sua própria genitora em um orfanato. Novamente, verifica-se que o
herói precisará penetrar num território estranho a fim de recuperar-se do dano que lhe fora
causado e reaver a sua condição anterior. No caso específico da Reportagem 2, Ulf ver-se-á
obrigado a confrontar as diferenças sócio-culturais entre suecos e brasileiros para poder
conquistar seu reconhecimento como filho do inesquecível craque dos gramados. Seu
espaço atópico, portanto, é esse ambiente desconhecido, imprevisível, tão distante de seu
mundo, mas ao mesmo tempo indispensável para suprir sua carência.
FAZENDA
Et
CORRIDA
Ea
S1∩OUS2
S1UO∩S2
Si Tr1
Tr2Sf
135
O curioso na Reportagem 2, porém, ocorre a partir da retomada do objeto-valor por
parte do personagem heróico. Ao contrário do desfecho da Reportagem 1, dessa vez o
protagonista não necessita voltar ao seu lugar de origem para usufruir da ordem inicial. É no
próprio terreno inóspito que Ulf não apenas resgata como mantém os seus laços de sangue.
A semelhança incontestável com seu pai obscurece as diferenças culturais entre o
personagem e suas irmãs e termina por dotar um espaço que, a princípio, parecia-lhe
desconfortável, de um aconchego próprio de um lar. Assim, Ulf deixa de ser um mero
desconhecido para Márcia e Rosângela. A desconfiança cede lugar a afagos e planos para
um típico churrasco em família, metamorfoseando um espaço anteriormente atópico em
tópico.
Essa transformação pode ser assim ilustrada:
Figura 20 – Dimensão espacial na Reportagem 2
Fonte: diagrama elaborado pelo autor
Assim como na dimensão temporal, a Reportagem 3 também apresenta em sua
estrutura narrativa um vínculo muito forte entre a distribuição espacial e as regras do futebol.
Por essa razão, sua topoanálise merece uma atenção diferenciada em comparação aos
demais textos que compõem o corpus desta pesquisa. Demonstrarei, a seguir, que os
próprios espaços ocupados pelos jogadores durante um embate esportivo correspondem à
transição topológica resultante das transformações inerentes à tripartição fabular proposta
por D’Onófrio (2004).
Já é sabido que, no futebol, cada equipe possui o seu espaço delimitado na partida,
correspondente a cada uma das metades do gramado. Na crônica esportiva, são os
FAMÍLIA
Et
S1∩OUS2
S1UO∩S2
Si
Tr1
Tr2
Sf
FAMÍLIA
Et
DIFERENÇASÓCIO-CULTURAL
136
chamados campos de defesa, nos quais seus respectivos times tentam impedir o avanço
adversário ao mesmo tempo em que preparam a ofensiva em direção ao território do
mesmo. O sucesso de uma equipe na busca pelo gol, portanto, depende não apenas da sua
investida ao campo inimigo, mas também é preciso que o oponente esteja desprotegido
contra o ataque. De fato, essa dinâmica de jogo é similar às condições necessárias para a
configuração do dano no esqueleto narrativo. Ao considerar a dimensão episódica da
Reportagem 3 a partir da derrota imposta pelos “cinco cruzados do Figueirense” ao Vasco
da Gama, ver-se-á que o prejuízo sofrido pelo “Gigante da Colina” não pode ter ocorrido de
modo diferente: os descuidos da equipe resultaram no avanço bem-sucedido do adversário
ao seu campo de defesa, tornando o oponente o vencedor do duelo.
Uma vez subjugado em seu próprio espaço tópico, o “Gigante da Colina” depende da
incursão do herói ao território inimigo para resgatar aquilo que lhe fora usurpado na batalha
anterior – ou seja, a sua condição de vencedor. Romário, dessa forma, deve invadir o
campo de defesa do Paysandu, pois somente lá, confrontando o inimigo em seu terreno, é
que conseguirá os gols tão necessários para construir a vitória.
Diante do pressuposto acima, proponho a seguinte ilustração para sintetizar a
topoanálise da Reportagem 3:
Figura 21 – Dimensão espacial na Reportagem 3
Fonte: diagrama elaborado pelo autor
A topoanálise do jogo de futebol, com isso, apresenta uma clara semelhança com a
transição dos espaços nas histórias clássicas investigadas por Propp (1974). Tomando
como exemplo o conto Os gansos-cisnes, analisado pelo autor russo, vê-se que a heroína
da trama precisará adentrar o ninho das aves para resgatar seu irmão caçula, desafiando
seus opositores com a mesma ousadia experimentada por Romário em sua missão de
S1∩OUS2 S1UO∩S2
Tr1 Tr2
Et Ea
Vasco da Gama
Paysandu
137
salvar o “Gigante da Colina”. Em suma, tanto nas narrativas tradicionais quanto no duelo
esportivo relatado na Reportagem 3, é no espaço atópico, onde reside o perigo, que o dano
provocado pela ação do inimigo deve ser sanado para o restabelecimento do status quo.
Afinal de contas, um personagem somente poderá tornar-se herói fora de seu lugar de
proteção.
3.3.6 Hibridização, de fato
Ao finalizar a análise da dimensão espacial das matérias jornalísticas integrantes do
corpus, afirmo que o presente estudo está provido de argumentos suficientes para
comprovar a existência de uma relação intertextual entre os gêneros reportagem esportiva
de TV e narrativa ficcional. Afora as particularidades de cada um dos três textos jornalísticos
selecionados (pois do mesmo modo em que um fato social ocorre num momento único e
irreversível, suas possibilidades de significação são infinitas e variam conforme o seu
interpretante), todos os aspectos essenciais da estrutura diegética estão presentes em seu
conjunto verbal e audiovisual. As evidências reveladas neste capítulo não deixam margens
para dúvidas: se todo gênero textual não se encerra em si mesmo e incorpora elementos de
outros gêneros já consolidados, os autores das reportagens telejornalísticas demonstram
terem aprendido a beber da mesma fonte dos narradores que cultivaram a arte ancestral de
contar histórias.
Ao longo deste capítulo, mostrei que a transposição de eventos do mundo real para a
sua representação em verbo, som e imagem possui uma grande afinidade com a estrutura
narrativa identificada pelos pressupostos aristotélicos e reformulada por Propp (1974). As
matérias jornalísticas escolhidas para este trabalho estão centradas em seres
tridimensionais, pertencentes à realidade objetiva com a qual nos deparamos em nosso dia-
a-dia. Mas uma vez imersas na linguagem televisiva, suas experiências pessoais se
inscrevem na esfera do imaginário, utilizando como modelo as clássicas histórias dos heróis
que superam todo e qualquer malefício tendo em vista o resgate de sua nobreza e de um
equilíbrio natural previamente deturpado. Não apenas as pessoas retratadas na tela são
elevadas à categoria de heróis, como a disposição dos eventos noticiados obedece a uma
seqüencialidade diegética, marcada pelo conflito de forças do bem e do mal em seus
respectivos espaços de domínio.
Função do gênero A
Função do gênero B
Forma dogênero B
Forma dogênero A
138
É preciso ressaltar, contudo, que não almejo lançar aqui as bases para um gênero
textual novo. Minha intenção consiste apenas em revelar que os textos jornalísticos de TV –
sobretudo aqueles referentes a figuras ilustres do meio esportivo – estão sujeitos à
incorporação de elementos da narrativa tradicional. As reportagens selecionadas para esta
pesquisa em momento algum deixam de ser produções jornalísticas. De acordo com
Marcuschi (2002), a função sempre será determinante para a definição de um gênero
textual. E a função das reportagens analisadas corresponde plenamente ao dever
jornalístico, ou seja: informar o telespectador sobre um fato de interesse público ou, no
mínimo, de caráter incomum.
Logo, as reportagens submetidas à análise neste estudo possuem uma função
informativa preponderante sobre a sua forma narrativa. Essa mescla de gêneros é o que
caracteriza a hibridização textual das três matérias jornalísticas em questão. Novamente ao
encontro da teoria de Marcuschi (2002), proponho usar o seguinte diagrama para ilustrar a
plasticidade desses textos:
Figura 22 – Hibridização textual das reportagens analisadas
Fonte: diagrama elaborado pelo autor, a partir de modelo formulado por Marcuschi (2002).
Porém, a comprovação do caráter híbrido das reportagens analisadas – assim como a
elucidação da forma como essa relação intertextual se concretiza – aponta uma dualidade
entre a proposta desse gênero e a sua composição significativa audiovisual. Por um lado, a
predominância da função confere ao texto jornalístico televisivo um elevado grau de
credibilidade junto ao seu público. Acima de tudo, o seu dever é informar um grande
contingente de interlocutores, agindo como intermediário entre os mesmos e os
acontecimentos registrados pelo olhar do repórter. Uma vez fundamentada em fatos
extraídos da realidade objetiva e submetidos ao espectro narrativo do eu testemunhal, a
Função de uma reportagem de TV no formato de uma narrativa
Reportagem de TV
Narrativa
139
reportagem lança-se como um retrato fidedigno e imparcial do cotidiano. Mas, ao investigar
a forma como esse mesmo relato se apresenta ao telespectador, torno essa alegada
veracidade alvo de questionamento. Afinal de contas, como acreditar fielmente num discurso
que, apesar de remeter a eventos concretos, recorre a um modelo originalmente ficcional
para transmitir conhecimento?
Diante de todos os elementos narrativos tomados de empréstimo pelas reportagens
analisadas, discordo plenamente dos telejornais que se anunciam ao grande público como
portadores da “verdade absoluta dos fatos”. Acima de qualquer outra concepção, a
reportagem de TV deve ser entendida como uma versão dos acontecimentos. E, no tocante
à técnica empregada em sua produção, uma versão editada desses mesmos fatos. Assim
como em qualquer modalidade de enunciado, o jornalístico visa à ordenação da realidade
sob uma perspectiva própria de seu sujeito falante. O mundo que chega ao lar do
espectador pela tela eletrônica nada mais é do que o mundo visto pelo ângulo de um outro
observador; um todo significativo delimitado por aquilo que a câmera pôde captar e o
repórter, interpretar. Não restam dúvidas de que, apesar dos avanços tecnológicos e da
velocidade crescente da informação, a arte de contar histórias perpetua-se nas mais
diversas atividades relativas à comunicação humana.
140
4 O ESPETÁCULO NARRATIVO DO ESPORTE NA TV
Ao traçar nestas linhas as considerações finais do presente trabalho, convém,
primeiramente, reafirmar a posição – sustentada desde o seu princípio – de que as
reportagens televisivas analisadas não devem ser inscritas na categoria de manifestações
artísticas. Tal declaração, aparentemente, pode soar contraditória. Afinal de contas, este
estudo demonstrou que o gênero reportagem esportiva de TV admite incorporar, em sua
estrutura, os mesmos preceitos das narrativas normalmente encontradas nas páginas das
obras de ficção. Entretanto, a posse de tais atributos deve ser compreendida tão somente
como um empréstimo para que a matéria telejornalística cumpra o seu objetivo máximo, ou
seja, atrair o interesse do maior número possível de espectadores.
Há de se considerar, inicialmente, que ambos os gêneros possuem os seus
respectivos suportes, através dos quais são trazidos ao conhecimento da coletividade. Diria
que a publicação de obras literárias nos veículos jornalísticos é uma prática do passado,
esquecida na belle époque dos romances de folhetim. Nos dias atuais, as páginas dos
impressos diários ainda estampam crônicas do cotidiano, oriundas do talento de seus
colaboradores regulares – invariavelmente, escritores de prestígio junto à comunidade de
leitores. Contudo, uma vez dispostas lado-a-lado de textos noticiosos, constituem um gênero
próprio enquanto crônicas de jornal. Atreladas a um suporte de valor jornalístico em sua
essência, conseqüentemente não integram o mesmo domínio literário daquelas compiladas
nas páginas dos livros.
Da mesma forma, nada daquilo que é trazido a público nos programas noticiosos de
TV deve escapar ao domínio do jornalismo. Enquanto suporte do gênero reportagem
televisiva, o telejornal atrela-o a uma função informativa independentemente da forma que
venha a assumir. As matérias telejornalísticas analisadas no capítulo anterior, com efeito,
estruturam-se a partir do esqueleto diegético tradicional, mas isso não basta para sobrepujar
a sua real finalidade e, ao mesmo tempo, considerá-las criações próprias da literatura. Esta,
141
por sua vez, reserva seus próprios espaços para exercer sua faculdade imaginativa: é nos
livros, no teatro ou no cinema que a formatação narrativa está destinada a auxiliar na
construção de textos artisticamente determinados.
Por estarem condicionadas a suportes diferentes, a reportagem televisiva e a narrativa
ficcional cristalizam-se como métodos distintos do operar na linguagem. Como já foi visto
anteriormente neste trabalho, o primeiro gênero paga um alto preço por sua pretensão em
se reportar a um grande contingente populacional. Apesar da criatividade exigida de um
jornalista que almeja tornar a sua composição audiovisual atrativa aos espectadores, este
mesmo profissional torna-se refém de um conjunto de normas consolidadas após décadas
de prática nas redações – uma espécie de “guia” para o bem escrever no jornalismo de TV.
Nada do que estiver compreendido na dimensão verbal da reportagem deve escapar ao
estilo de texto simples, direto e coloquial. Além de elaborar uma mensagem capaz de
superar a heterogeneidade sócio-cultural de seu público, o telejornal possui um tempo
escasso para tal tarefa. Os fatos – e tão somente os fatos – devem concentrar todo o
esforço criativo do redator.
Comparativamente à reportagem televisiva, a narrativa literária desfruta de uma
liberdade de estilo irrestrita. De acordo com Wellek e Warren (1962, p. 28), “a linguagem
literária está longe de ser apenas referencial: tem o seu lado expressivo, comunica o tom e a
atitude do orador ou do escritor.” Os poetas e romancistas eximem-se do compromisso com
os fatos ocorridos na realidade externa. Dessa forma, não estão presos à figura de
testemunhas oculares dos acontecimentos – como é característico do ofício de jornalista.
Para contar uma história, usufruem dos mais diversos recursos lingüísticos, como a
ambigüidade, a aliteração, a rima e a métrica. E, uma vez que adotam como referência um
mundo ficcional, isento de proposições lógicas, nada escapa ao seu olhar onipresente:
podem percorrer desde as evidências superficiais do cenário até os cantos mais recônditos
da alma humana.
Até na lírica subjectiva (sic), o “eu” do poeta é um “eu” dramático, fictício. Uma personagem de romance é diferente de uma figura histórica ou de uma figura da vida real. É formada meramente pelas frases que a descrevem ou pelas que foram postas em sua boca pelo autor. Não possui nem passado, nem futuro, nem, às vezes, continuidade de vida. (WELLEK & WARREN, 1962, p. 31).
Em decorrência disso, também é possível traçar uma linha divisória entre as relações
que jornalismo e literatura mantêm com a verdade. De um modo geral, a enunciação na
imprensa está fortemente pautada na credibilidade que a mesma almeja firmar com seu
142
público. Pois – conforme já explicitado neste estudo – o jornalista carrega consigo a
responsabilidade de mediar o acesso das pessoas aos acontecimentos da realidade que
julga despertar-lhes interesse. Dessa forma, o apelo do relato jornalístico será tanto maior
quanto a sua capacidade de transmitir um elevado grau de fidelidade àquilo que toma forma
no mundo concreto. A verdade no jornalismo, portanto, não passa de uma estratégia de
persuasão, haja visto que a mensagem produzida pelos veículos de comunicação nada mais
é do que um olhar particularizado de uma testemunha sobre algo ou alguém.
Definitivamente, estabelece-se um contrato de veracidade entre o emissor e o receptor
desse processo comunicativo: o texto jornalístico, através de seu conjunto de regras de
redação, apresenta-se como verdadeiro na mesma intensidade em que seu respectivo
público acredita ser o mesmo o portador da real dimensão dos fatos.
A literatura, por sua vez, não deve sequer pretender tomar para si a verdade
correspondente à realidade física, uma vez que se encerra nos limites do imaginário. Isso
não significa, contudo, que as obras ficcionais estejam fadadas a mentir. Conforme Warren
e Wellek (1962, p. 41), “o oposto da ‘ficção’ não é a ‘verdade’, mas o ‘facto’ (sic) ou a
‘existência’ no tempo e no espaço.” Se, para o jornalismo, verdadeiro é aquilo que
corresponde fielmente ao mundo concreto, na arte literária a verdade é muito mais filosófica
do que mera representação de elementos que lhe são externos.
Retomando o contrato ficcional defendido por Eco (1994) e mencionado no capítulo
anterior, entende-se que a literatura age sob o intuito de criar um conjunto coerente e
verossímil, através do qual o autor propõe sua concepção autônoma da vida. Essa
composição, misto de elementos fantásticos com aqueles observáveis na realidade
cotidiana, invariavelmente levará o receptor a transpassar o seu esforço reflexivo além das
fronteiras da obra ficcional. Mesmo ciente de que nem sempre encontrará, fora do domínio
artístico, a correspondência àquilo que a ficcionalidade lhe apresenta, o público
normalmente extrai da literatura um ou outro valor plenamente aplicável em sua experiência
prática. É como nas histórias infantis, contadas às crianças mediante a intenção de
repassar-lhes um ensinamento moral – tão verdadeiro nos limites do imaginário quanto na
vivência do concreto. “Essa é a função consoladora da narrativa – a razão pela qual as
pessoas contam histórias e têm contado histórias desde o início dos tempos. E sempre foi a
função suprema do mito: encontrar uma forma no tumulto da experiência humana” (ECO,
1994, p. 93).
Em suma, os argumentos expostos até aqui dão força à hibridização textual trazida à
tona no final do capítulo anterior. O fato de as reportagens analisadas nesta pesquisa
143
estruturarem-se conforme composições diegéticas não basta para provê-las de legítimo
valor literário. Ao mesmo tempo, em nada as exime de exercerem as funções esperadas de
um gênero jornalístico. De fato, é exatamente a função que se constitui no fator
determinante para especificar o gênero, e não a forma sob a qual este é apresentado.
Já antecipei, no início deste capítulo conclusivo, minha posição de que as matérias
televisivas compreendidas no corpus do presente estudo tão somente assumem a
formatação narrativa enquanto um artifício para conquistar a audiência. Mas sob qual
premissa as reportagens esportivas em questão, uma vez imersas na estética própria de
outro gênero, desenvolvem essa faculdade persuasiva? Creio que o encerramento do
presente trabalho não pode prescindir da resolução do problema proposto.
4.1 Narrativa como espetáculo
Neste ponto, é válido resgatar os pressupostos de Bruner (1997a) no tocante à
narrativa enquanto método de organização da experiência humana. Já foi visto, neste
estudo, que a estrutura diegética age como um instrumento para dar significado àquilo que
escapa ao canônico. Assim, o “contar uma história” torna-se um recurso interpretativo para
situações que, ao contrário dos comportamentos já incorporados à cultura, não se explicam
por si mesmas. É por essa razão que a narrativa é considerada pelo autor uma forma de
saber: o seu uso inevitavelmente implica numa negociação de significados entre o emissor e
o receptor, conquanto que o primeiro, ao narrar uma determinada experiência, sociabiliza-a,
adequando a mesma à rede de expectativas existente entre os indivíduos.
Partindo do conceito de notícia enquanto matéria-prima do jornalismo, torna-se
impossível dissociar o gênero reportagem de TV desse processo de significação. Pois entre
os requisitos que conferem à notícia o seu valor jornalístico, figuram o ineditismo e, até
mesmo, o caráter pitoresco creditado ao fato que se pretende transpor ao nível referencial
da matéria televisiva. Diante disso, que outro mecanismo lingüístico senão a narrativa
mostra-se tão recorrente na tarefa de construir sentidos a partir de eventos dotados de tal
imprevisibilidade? Não é à toa que a edição de uma reportagem telejornalística tem sido
constantemente comparada à criação diegética: não apenas os acontecimentos narrados
são sumarizados seqüencialmente – em obediência a um princípio cronológico – como
também é conferido aos mesmos um forte apelo emocional. Rezende (2000, p.40) atribui
esse último aspecto às propriedades audiovisuais do meio televisivo:
144
A mensagem televisiva multidimensional e multissensorial tende a atuar com mais intensidade sobre o receptor, repercutindo quase diretamente em sua afetividade, sem passar pela mediação do intelecto. Na comunicação audiovisual, portanto, registra-se o predomínio da sensação sobre a consciência, dos valores emocionais sobre os racionais.
Apesar de a reportagem televisiva não poder ser considerada uma produção de valor
literário, esse peso emocional torna inegável a sua afinidade formal com a dramaturgia. Nas
matérias telejornalísticas aqui analisadas, comprovou-se que a metáfora resultante da
combinação dos signos verbais e não-verbais possui o poder de conferir uma dramaticidade
maior aos eventos registrados na realidade física. As pessoas de carne-e-osso vistas pelo
espectador transformam-se em personagens tão logo o repórter exerça a palavra – e, como
resultado dessa mesma intervenção, os acontecimentos relatados estão sujeitos a compor
tramas de romance, suspense ou aventura. Isso porque a edição, acima de tudo, é a
escolha de um entre diversos ângulos possíveis para a narração de um fato. E esse
processo vai além da seleção da melhor imagem para ilustrar o que se pretende dizer. Mais
do que mostrar, o jornalismo de televisão impõe ao público o que deve ser visto. Afinal de
contas, o que a tela apresenta aos milhões de lares não passa de uma versão atestada pela
ótica de um narrador-testemunha. Assim, é plenamente aceitável que um embate
futebolístico assuma os ares de uma batalha épica, que um vendedor ambulante sueco seja
a herança de um gênio ou que um campeão do automobilismo ostente o estereótipo de um
destemido caubói.
É neste ponto que as reportagens componentes do corpus deste estudo inserem-se
naquilo que Morin (2005) afirma ser uma das principais características das produções
inerentes à cultura de massa: o sincretismo21. Como um gênero elaborado sob o intuito de
estabelecer um elo comunicativo universal, a reportagem de TV vê-se obrigada a mesclar o
informativo e o romanesco num mesmo conjunto de normas de redação e difusão. Uma vez
ancoradas no noticiário esportivo, as matérias aqui analisadas aparentemente repercutem
apenas num seleto grupo de espectadores que vislumbra no esporte, nos jogos ou nas
competições o seu foco de interesse. Entretanto, ao contagiarem seu nível referencial com
elementos advindos do imaginário, essas mesmas produções telejornalísticas tornam-se
aptas a dialogar com um número nitidamente maior de pessoas, portadoras de uma gama
irrestrita de predileções.
É previsível que grande parte dos telespectadores não detenha o conhecimento pleno
das regras ou, ainda, da evolução das competições esportivas que atuam como pano-de-21 Morin (2005) conceitua o sincretismo como a tendência de abarcar diversos conteúdos numa mesma estrutura lingüística homogeneizada. Essa estratégia retórica objetiva uma assimilação eufórica desses mesmos conteúdos por parte do ouvinte.
145
fundo das reportagens em questão. De qualquer modo, a construção de significados
identificada nessas matérias fala a todos os seguimentos de audiência, atraídos para a
frente da tela que mostra o quão surpreendentemente comovente e empolgante pode ser a
vida das celebridades do esporte. O desejo do sucesso, a admiração da coragem e a
correspondência do amor são aspirações capazes de transpor toda espécie de barreiras
culturais. Não por acaso é justamente esse o conjunto de valores sobre o qual os repórteres
fundamentam suas respectivas produções textuais e imagéticas, devidamente analisadas
aqui. Enquanto personagens principais de histórias da “vida real”, Hoover Orsi, Ulf Lindberg
e Romário alcançam um status de nobreza perante um contingente de anônimos fascinados
por suas ações, igualmente elevadas à categoria de feitos heróicos.
O encontro do real com o imaginário, esse sincretismo, faz com que as celebridades
do esporte sejam dotadas de uma dupla natureza: humana e, ao mesmo tempo, divina.
Conforme Morin (2005, p. 105), a cultura de massa investe as vedetes da informação no
papel de “olimpianos modernos”, ou seja, personalidades cuja vivência individual não foge
do cotidiano vivenciado pelos indivíduos comuns; no entanto, suas ações, disseminadas via
transmissão televisiva, amplificam-se na esfera do sobre-humano. Em suma, nasce uma
nova mitologia, habitada por heróis e semideuses que alimentam o sonho dos “mortais”
telespectadores. “Conjugando a vida quotidiana e a vida olimpiana, os olimpianos se tornam
modelos de cultura no sentido etnográfico do termo, isto é, modelos de vida” (MORIN, 2005,
p. 107).
Logo, não se pode relegar ao campo da coincidência o fato das seqüências diegéticas
das três reportagens analisadas culminarem no tradicional happy end. Tal desfecho é
descrito por Morin (2005, p. 92) como “a felicidade dos heróis simpáticos, adquirida de modo
quase providencial, depois das provas que, normalmente, deveriam conduzir a um fracasso
ou a uma saída trágica”. Diferentemente dos heróis trágicos, Hoover, Ulf e Romário são
exemplos de bem-aventurança e, por esse motivo, suas aventuras são destinadas a
fomentar o imaginário coletivo com a recorrente idéia da vitória dos bons e dos justos, o bem
sobrepujando o mal. É válido, neste ponto, lembrar que os personagens acima citados
correspondem plenamente ao arquétipo dos heróis épicos, isto é, seres capazes de feitos
fantásticos sem abdicarem de sua humanidade. E, exatamente por serem humanos
enobrecidos, há, do outro lado da tela, um forte anseio pelo seu happy end: identificados
com os ídolos do esporte, o espectador deseja que seus alter ego livrem-se do sofrimento e
encontrem o rumo da eterna felicidade.
Ao encontro dessa idéia, Subirats (1989) atribui à representação do mundo pela
difusão midial os ares de um grande espetáculo. Apesar de popularmente considerada uma
146
janela para a vida cotidiana, a televisão é vista pelo autor como um equivalente a um quadro
paisagístico. Uma vez compostos por signos ordenados sob o intuito de favorecer uma
interpretação universal, ambos promovem uma distorção dramática da realidade objetiva
através de censuras, deslocamentos, simplificações ou redundâncias. “A paisagem pintada
é um universo ordenado, heróico, sublime” (SUBIRATS, 1989, p. 76). E da mesma forma
age a estruturação narrativa das reportagens-alvo do presente estudo. Sob o efeito do
espetáculo televisivo, o mundo despe-se de seus malogros, ou seja, os eventos extraídos
para o nível referencial da tela pequena ancoram-se no belo, no harmônico e na simetria. Se
há adversidades, sua existência justifica-se como um artifício para que os heróis divinizados
– enquanto extensões dos sonhos acalentados pelos espectadores – triunfem na defesa dos
valores moralmente aceitos e das virtudes socialmente louváveis.
Enfim, o prosaico é alçado ao épico, o que reforça o aspecto icônico da linguagem
televisiva e encerra em definitivo sua relação com a realidade no âmbito da pretensão.
Enquanto espetáculo da vida real, o telejornalismo constrói um mundo-metáfora do mundo
concreto, ao passo que a mensagem transmitida à audiência se define como uma analogia
que, em hipótese alguma, mostra-se capaz de substituir a experiência empírica das coisas.
Seu caráter é estritamente contemplativo: a explosão de mísseis no Oriente Médio ou o
tremor de terra nas Filipinas ecoam nos lares ao redor do globo; contudo, são somente
simulações pela imagem, um teatro do mundo que em nada colabora para a vivência
subjetiva de seu público.
4.2 A supremacia da estética
A definição das reportagens analisadas como relatos espetacularizados de eventos
sociais induz à soma de mais um conceito para a distinção do processo telejornalístico de
representação do real. Segundo Subirats (1989), a imagem midiática, ao competir
ontologicamente com o ser do objeto representado, leva à criação de um simulacro, ou seja,
uma ilusão cenográfica que se impõe como mais verdadeira do que a experiência individual
ou subjetiva. Aqui, é fundamental destacar a propriedade estritamente estética desse
fenômeno. Como réplica do mundo já existente na realidade física, o simulacro detém-se
unicamente nos aspectos externos do mesmo, dimensionados na forma de uma imitação
teatral.
147
Diria que se trata, da mesma forma, de uma variação moderna do célebre mito
platônico da caverna22. A reportagem telejornalística, com sua composição sígnica de
elementos verbais e não-verbais, é a sombra através da qual o ouvinte, acorrentado pelo
encantamento do espetáculo audiovisual, obtém acesso ao fato extraído da realidade
concreta. Portanto, não apenas se distingue do universo empiricamente vivenciado, como
também cria um outro, análogo e irreal, restrito ao espectro narrativo do repórter-
testemunha. “O simulacro é a representação do mundo tornado mundo como vontade, como
ser em e para si, como unidade consumada do sujeito e do objeto, perfeitamente fechada e
opaca à experiência” (SUBIRATS, 1989, p. 65).
Com isso, a mensagem televisiva se institui como uma estética já acabada da
realidade, limitando a participação da audiência a um papel meramente contemplativo. No
interior do simulacro midial, informação e ficção estão inteiramente entrelaçadas e, como
conseqüência, impõem ao telespectador uma consciência virtual de sua existência subjetiva.
Em concorrência ao mundo concreto das interações sociais, prepondera o universo do
espetáculo e das belas imagens, cujo delírio suscita a sensação, igualmente irreal, de
completa satisfação dos anseios individuais.
Conforme a análise das reportagens selecionadas pôde comprovar, o jornalismo
esportivo é um notável exemplo dessa transfiguração estética da informação. De certa
forma, o próprio conceito de jogo ou competição já induz a uma fuga do cotidiano para um
mundo imaginário, delimitado no espaço e no tempo. “O jogo lança sobre nós um feitiço: é
‘fascinante’, ‘cativante’. Está cheio das duas qualidades mais nobres que somos capazes de
ver nas coisas: o ritmo e a harmonia” (HUIZINGA, 2004, p. 13). Logo, o espectador que se
depara com uma atração esportiva de televisão inevitavelmente projeta-se no espaço lúdico,
constituído por suas próprias regras. Ainda que como torcedor, limitando-se à contemplação
diante da tela, o ser humano vislumbra no jogo algo mais do que uma realização material: a
satisfação de apoiar seu atleta ou agremiação na busca pela vitória ou na superação de
qualquer outro desafio.
Mas a que se deve esse apelo crescente aos simulacros da informação, esteticamente
determinados pelos ideais de beleza e harmonia? Marcondes Filho (1993) acredita na volta
do misticismo aos dias atuais. Porém, não se reporta àquele misticismo característico dos
tempos pré-modernos, no qual os dogmas religiosos e a sabedoria divina soterravam
22 O mito refere-se à lenda de escravos, acorrentados numa caverna, cuja única referência do mundo exterior são as sombras emitidas por outras pessoas, do outro lado do muro que os separa da saída. “Aquelas sombras e sons espectrais [...] seriam, para os escravos, toda a realidade” (SUBIRATS, 1989, p. 60).
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qualquer tentativa de avanço das correntes racionalistas. O novo misticismo, de certo modo,
também possui os seus deuses, mas esses são reverenciados pela indústria da imagem, do
consumo e dos universos fictícios. O modelo atual de jornalismo acompanha essa
tendência, tendo em vista atenuar os conflitos sociais e as crises do cotidiano.
Assim, os noticiários constroem-se ao sabor do que se decide montar. O poder monopolista dos media tornou-se uma espécie de estimulador de massas a ponto de essas realizarem a fantasia tão repetida nos exemplos de cinema: elas de fato entram na tela, já que o mundo vivido perdeu totalmente seu charme. (MARCONDES FILHO, 1993, p. 63).
O telejornalismo, dessa forma, impulsiona a cultura do lazer, mas não o lazer em
família, entre amigos, enfim, socialmente situado. Trata-se de um divertimento privado,
distante das agruras do mundo lá fora e imerso na ilusão. Diante da tela, o espectador
assiste ao show da vida, ao espetáculo narrativo no qual a realidade levada aos seus
sentidos – senão verdadeira – é sempre mais colorida e emocionante. Conforme Morin
(2005, p. 77), “é por meio do estético que se estabelece a relação de consumo imaginário”.
Distante do alcance das mãos, a beleza do teatro do mundo exerce um prazer invisível ao
seu público, inscrito tão somente como voyeur perante a vitrine ornamentada do real.
É nisso que se evidencia a relação mercadológica que os veículos de informação
mantêm com o público. A notícia, matéria-prima do jornalismo, é trabalhada nas redações
de modo a tornar o acontecimento narrado um produto altamente vendável. “Ele não só é
embelezado, limpado, pintado de novo, como ocorre em outras mercadorias na prateleira
para atrair a atenção do comprador; o fato social aqui também é acirrado, exagerado,
forçado” (MARCONDES FILHO, 1989, p. 29). Transformado num bem de consumo, o
jornalismo não mais é avaliado por seu valor de uso e, sim, por seu visual. Aqui, não mais
interessa a banalidade do assunto convertido em relato noticioso. Quanto mais atraente for
sua representação imagética, tão maior será a garantia de audiência e, conseqüentemente,
a sustentabilidade financeira das empresas de comunicação. Na batalha diária pela
conquista de corações e mentes, o jornalismo parece disposto a lutar nas trincheiras do
interesse econômico – e, invariavelmente, sai vencedor. O preço dessa vitória recai sobre o
público, afastado da condição de agente transformador e cada vez mais entregue ao
ilusionismo de um mundo virtual.
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