Epistemologias que curam: por conhecimentos Indígenas, negras e Quilombolas na
Universidade Federal de Goiás
Marta Quintiliano
Universidade Federal de Goiás
Vanessa Fonte de Oliveira
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Letícia Jôkàhkwyj Krahô
Universidade Federal de Goiás
RESUMO: Este texto propõem uma reflexão acerca dos conhecimentos dos estudantes
indígenas, negros e negros quilombolas na pós-graduação da UFG que ao adentrar
dentro do espaços acadêmico acabam adormecidos em detrimento do conhecimento
eurocêntrico. Portanto como validar as matrizes de conhecimentos indígena, negra e
negra quilombola na academia? Como discursar/criar teorias em um espaço que por
muitos anos construiu os nossos corpos como objeto – exótico? É possível uma relação
assimétrica de saberes com a academia? Como metodologia utilizou a revisão
bibliográfica a partir dos autores negros, negros quilombolas e indígenas e etnografia
para captar as redes de significações construídas pelos sujeitos que antes eram
compreendidos apenas como objetos de pesquisa.
Introdução
Com objetivo de democratizar o Ensino Superior a Universidade Federal de Goiás
desde 2009 com o programa UFGInclui que tem como objetivo inserir as populações
que foram historicamente excluídas (indígenas, negras quilombolas, surdos Letras
Libras), porém com a aprovação da Lei das Cotas em 2017 que reserva 50% das vagas
para candidatos de escola públicas com renda inferiores, negros e indígenas a UFG
decide permanecer com o programa UFGInclui que reserva (1) vaga para o candidato
indígenas e (1) vaga negro quilombola e (15) vagas para o surdo letras para curso letras
libras em cada curso onde houver demanda.
Em 2013 com a criação do Coletivo de Estudantes Indígenas e Quilombolas da
UFG (Uneiq) e com demandas pontuais para entrada, permanência e saída quaisquer
curso que o estudante desejasse. Sendo assim, foi construída juntamente com a
coordenação de Inclusão e Permanência (CIP) estratégias de comunicação comunitária
para que mais candidatos pudessem ingressar na academia a partir de uma linguagem e
uso de ferramentas que as comunidades pudessem acessar. Como bem sabemos algumas
comunidades não tem acesso a direitos básico como, por exemplo, água e energia as
politicas públicas de fato não chegam às comunidades muitas delas existem no papel e
sabemos de muitos casos que foram publicizado nas mídias sociais de inauguração de
escolas, energias, estradas asfaltadas, porém as comunidades não receberam o serviço.
Por isso a importância de ocupar as universidades e compreender os códigos para ajudar
a comunidade em questões burocráticas.
Na primeira reunião dos estudantes do UFGInclui a maioria das falas afirmavam
que estavam na Universidade que existem demandas pontuais da comunidades que o
poder público não alcançam porque de fato não é de interesse. E ocupar o espaço
acadêmico tem com os objetivos bem definidos tornam-se profissionais em curso que a
comunidade demanda e atuarem nas comunidades. De acordo com a Vercilene F. Dias
A gente chega à Universidade com muita expectativa de aprender para
defender a nossa comunidade, no entanto o que acontece e o
epistemicídio dos nossos conhecimentos aprendemos na matriz
curricular branca, se queremos ter uma formação pluriespistemica é
uma busca para encontrar professores que oferecem disciplinas com
autores negros, indígenas e negros quilombolas e como os nossos
conhecimentos servissem apenas para abastecer a academia.( entrevista)
Para nós estudantes cotistas que transitam o espaço acadêmico torna-se um
desafio, os nossos corpos não são os desejáveis, tampouco os nossos conhecimentos e
por mais que tentamos nos posicionar na academia a estrutura acadêmica é branca. É
necessário problematizar a branquitude pois são eles que pensam, confeccionam os
planos pedagógicos, e a UFG com uma quantidade de estudante indígenas tanto na
Educação Intercultural como na graduação regular e os estudantes quilombolas e negros
é necessário levar a sério a inclusão de autores que contemple essa diversidade.
O Plano Pedagógico Político da UFG, no artigo 15, orienta que se deve ater a
inclusão nas matrizes curriculares dos cursos da universidade, para atender a “I -
História e Cultura Afrobrasileira, Africana e Indígena; II - Educação para os Direitos
Humanos; III - Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista; IV
- Educação Ambiental; V - Componente curricular de Libras”. Este último opcional
para o grau bacharelado. Os PPC em sua matriz curricular privilegia como optativa
libras, e as demais são ignoradas, sendo que história da cultura afro-brasileira, africana e
indígena contam com o esforço de alguns professores negros em oferecer disciplinas
optativas que contemplem os teóricos indígenas, negros e negros quilombolas, porém
essas disciplinas são as menos procuradas pelos estudantes não negros.
Não há como uma universidade se comprometer com a democratização do
acesso ao ensino superior e se eximir da responsabilidade da inclusão de outras formas
de saber, de valoração e reparação das violências às quais esses povos foram e ainda são
submetidos. Em concordância com a pesquisadora Célia Krakiabá no território
acadêmico os nossos corpos são a cura para esse espaço que está doente e através das
nossas pinturas e danças vão curando esse espaço.
Território nosso corpo, nosso Espirito.
Existem práticas de ensino que iremos detalhar no decorrer do texto que não se
insere no conhecimento eurocêntrico como saberes por serem praticados pelas
populações que ao longo da história foram marginalizados. Dessa forma, apontamos
Sueli Carneiro que afirma o epistemicídio como uma ferramenta poderosa de
extermínio dos conhecimentos produzidos pelos negros e acrescento indígenas, sendo
que ao matar o intelecto consequentemente o corpo morre “ se a sua mente está morta,
seu corpo ir embora é muito mais fácil”( KL Jayz, 2017).
A branquitude se constitui como a suprema em relação aos outros povos em
algumas situações usurpando os conhecimentos desses sujeitos pode citar inúmeros
exemplos de apropriação dos saberes que ao logo da construção da narrativa dos
colonizadores foram embranquecidas. Como por ex: Egito, Medicina, Geografia,
Matemática conhecimentos oriundos da África que foram reproduzidas pelos livros
didáticos e reforçados pelas mídias sociais, a ideia construir uma narrativa que excluem
e marginaliza os saberes que não foram embranquecidos por eles.
O movimento negro e os povos indígenas há tempo vêm reivindicando o direito
à educação diferenciada a partir da vivência da comunidade “parece impossível falar de
vida escolar sem falar da vida social da comunidade em que se vive” (Rodrigues, 2016).
As ações afirmativas trouxe um respiro na educação superior com entrada de outros
sujeitos com corpos e saberes que difere da branquitude, portanto as diferenças não
promoveram uma inserção dos conhecimentos nas grades curriculares eurocentrada e
apesar dos avanços da lei 10.639 e, posteriormente a Lei 11.645 que orienta o ensino da
cultura afro- brasileiras e indígenas em todas as esferas de ensino de forma positivada
para o combate da discriminação os cursos na sua maioria disponibiliza uma ou outra
disciplina para cumprimento do protocolo.
Pensar a academia como um espaço a ser ocupado por nós negros quilombolas,
negros e indígenas e quaisquer outras minoria política que queira acessar como um
direito negado ao longo da história. A ocupação desses espaços como um meio
estratégico de não sermos mais enganados pelos brancos que chegavam com o discurso
que é solidário as nossas demandas, quando na verdade estão do lado do estado. E, isso
ocorre justamente pela falta de uma matriz curricular que privilegia a história dos povos
negros, negros quilombolas e indígenas ao serem mencionadas nos livros didáticos as
narrativas normalmente aparecem de forma negativa que não colabora com a formação
de um sujeito que reconheça as diferenças e a diversidade de povos. No livro ideias para
adiar o fim do mundo o pesquisador Ailton Krenak nos afirma que:
A ideia de nós, os humanos, nos descolamos da terra, vivendo
numa abstração civilizatória, é absurda. Ela suprime a
diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de
existência e de hábitos. Oferece o mesmo cardápio, o mesmo
figurino e, se possível, a mesma língua para todo mundo (2019,
p.23).
O neoliberalismo se disfarça de diverso, plural e inclusivo quando se trata dos
povos indígenas, negros quilombolas, ciganos, ribeirinhos e outros povos com o
discurso que existe uma aliança. No entanto, não passam de estratégias construídas para
a dominação dos nossos corpos e espíritos e a destruição dos nossos territórios.
Podemos pensar a Educação como uma instância de poder criada e pensada para servir a
branquitude, e excluir/ punir todo o resto que busca preservar o seu modo de vida.
Sendo assim, nesse momento destacamos algumas atividades que priorizam e
dialogam com a educação, realizada por nós autoras do texto, tais como a oficina de
turbantes realizadas por Marta Quintiliano, a vivência da capoeira angola na
ancestralidade e nas redes familiares de Vanessa Fonte e as experiências de pintura e
vida krahô de Leiticia Krahô.
Oficinas de turbantes na luta antirracista
O pano na cabeça é uma herança da ancestralidade africana. Na minha família as
mulheres como homens sempre usaram os panos para proteger do sol quando iam
cultivar a terra, e em minhas memórias as mulheres estavam sempre utilizando o pano
de diferentes formas para carregar a lata de água na cabeça ou para participar de algum
evento. Cresci compreendendo a utilidade do pano na cabeça associado à proteção do
sol, estética que mais tarde na Universidade conheci com outro nome turbante que tem
haver com empoderamento da mulher negra.
E, assim na minha formatura da graduação usei o Turbante como homenagem
as mulheres e homens da minha família que não tiveram acesso à educação, porém não
deixam de serem produtores de saberes. A única de três turmas de formados em
comunicação a usar turbantes para alguns foi encarada com pêndulante, porém ninguém
se espantou com ausências de negros enquanto formados. No entanto uma africana que
estava formando também me disse “ você nos representa e isso ficará pra sempre na
história dessa Universidade”. Por sermos negados o direito de saber a história a nossa
memória aos poucos resgatam a nossa ancestralidade e nos impulsiona a criar nos
espaços alternativas de troca de conhecimentos.
Imagem 1: formatura da graduação em comunicação Social -2014.
Fonte: Arquivo pessoal
Compreendi que precisava repassar esse conhecimento para mais pessoas e
assim comecei desenvolver oficinas de Turbantes nas universidades, escolas públicas e
eventos que discutiam questões relacionadas à negritude. Todas as oficinas que fiz me
acrescentaram como uma mulher preta quilombola que busca preservar o seu modo de
viver no mundo, em alguns casos de racismo extremo, porém acredito que as oficinas
ajudaram mais na construção de seres humanos melhores. Além, de colaborar com a
construção de sujeitos antirracistas.
Imagem 2: Oficina de Turbante na Escola Municipal de Goiânia.
Fonte: Arquivo pessoal
Buracão da Arte: A Capoeira Angola como arte terapia
A capoeira é uma expressão da cultura afro-brasileira que mistura o corpo e
ancestralidade. A origem da Capoeira é um tema incerto na nossa história. Grande parte
das fontes pesquisadas acreditam na hipótese de que a Capoeira tenha sua origem no
Brasil, desenvolvida por povos africanos que foram escravizados e trazidos para o país.
Bem como as manifestações negras, a capoeira é um movimento de resistência
dos africanos no Brasil, posteriormente desenvolvido (movimento) por seus
descendentes afro-brasileiros. Hoje, há duas modalidades de capoeira: Angola e
Regional. Os maiores representantes dessas correntes são Mestre Pastinha, Vicente
Joaquim Ferreira Pastinha, (1889-1981) criador da Capoeira Angola e Mestre Bimba,
Manoel dos Reis Machado, (1900-1974) criador da Luta Regional Baiana, ambos
nascidos no estado da Bahia.
Dessa forma, temos o objetivo de pensar a Capoeira Angola desenvolvida no
grupo Só angola, localizado no Ponto de Cultura Buracão da Arte em Goiânia, como
uma arte terapia. O Grupo Só Angola, foi idealizado por Vandely Francisco e Vanderley
Francisco, dois irmãos negros, descendestes de indígenas, pela linhagem de sua avó
paterna da etnia Karajá, que iniciaram suas carreiras na Academia Cordão de Ouro, com
o Mestre Zumbi na Capoeira Regional de 1983 a 1986.
Imagem 3: Mestre Vermelho e Mestre Caçador, com o Mestre Waldemar e
Mestre Boca Rica na Bahia
Fonte: Associação de Capoeira Angola de Goiás
Após esse período iniciaram-se o intercâmbio entre Goiânia-Goiás com Bahia-
Salvador, e passaram então a praticar a Capoeira Angola com os Mestres renomados da
Bahia, como o Mestre Boca Rica, João Grande, João Pequeno, Valdemar, Bobó e
outros, e o curioso é que todos estes Mestres foram discípulos de Mestre Pastinha o
percussor da Capoeira Angola. Mestre Vermelho (Vandely) e Mestre Caçador
(Vanderley) se tornaram discípulos de Mestre Boca Rica, aluno de Mestre Pastinha1.
O grupo inicialmente era composto por seis pessoas: Mestre Vermelho, Mestre
Caçador, Besouro, Mestre Guaraná e as Contra Mestres Ana Maria e Valéria Costa, os
quais tiveram fundamental importância na divulgação e consolidação da Capoeira
Angola no Estado de Goiás, todos de Goiânia.
A Associação de Capoeira Angola do estado de Goiás foi fundada em 14 de julho
de 1988, e teve como presidente Mestre Vermelho (Vanderly Francisco) e, a partir desse
momento, o grupo foi se expandindo e hoje tem núcleos nas cidades de Pirenópolis,
Anápolis, Tocantins, Taquaruçu. Itumbiara, Florianópolis e recentemente na cidade de
Bordéus na França.
O Ponto de Cultura Buracão da Arte surgiu através da ideia de proporcionar
atividades culturais direcionadas para a comunidade local, crianças jovens, adultos
1 Vicente Ferreira Pastinha, conhecido por mestre Pastinha, foi um dos principais mestres de Capoeira da
história, começou a aprender capoeira aos 8 anos de idade com o Mestre africano Benedito. Tornou-se
professor de capoeira, assim organizou a arte do jogo e estabeleceu um método de ensino com base em
antigas tradições trazidas por africanos escravizados, que constitui a Capoeira Angola.
assim como para a população em geral. O desejo de transformar a Associação em Ponto
de Cultura fez com que o grupo elaborasse vários projetos, que foram apresentados à
Secretária de Cultura da Prefeitura, entretanto, tais projetos foram recusados.
A iniciativa foi exitosa somente quando um aluno se dispôs em escrever o projeto
Buracão da Arte no ano de 2010, assim em 2011 foi aprovado. O projeto é importante
para a comunidade, pois a região é carente de iniciativas por parte do poder público, no
sentido de promover a cultura e o lazer, que poderiam fomentar uma sociabilidade
saudável, vez que a região é conhecida pelos elevados índice de criminalidade violenta.
O Ponto de Cultura tem como objetivo, minimizar estes riscos e proporcionaram
desenvolvimento cultural, assim como uma integração social através das manifestações
culturais propostas. A principal atividade do “Buracão da Arte” é a Capoeira Angola,
ela é a mais procurada por crianças, jovens, adultos e idosos, ao questionarmos o
móvito, o Mestre Vermelho destaca que a Capoeira é uma terapia de resistência da
população negra, pois além de trabalhar com o corpo movimenta a mente.
TABELA 1: Capoeira Angola
Valores Motivações Expectativas
Respeito ao próximo;
Bondade;
Solidariedade;
Coletividade;
Trabalhar o corpo e a mente;
Coordenação motora;
Aprender sobre a cultura afro-
brasileira;
Tentar entender sobre as histórias
dos ancestrais que vieram do
Continente Africano para o Brasil;
Ser conhecedor dessa arte;
Equilíbrio físico e tentar
alcançar o equilíbrio da mente;
Ocupar um potencial na cultura;
Utilizando-se das atividades do Ponto de Cultura, a Capoeira Angola promove
uma preservação da regionalidade negra. O movimento interage com compreensões das
origens através das histórias africanas e afro-brasileiras, apoiando-se em materiais que
dê subsídios para o entendimento da cultura brasileira, como uma linguagem híbrida,
com um trabalho coletivo no qual o educador é na verdade, um “estimulador” e os
alunos os próprios “criadores”.
Conforme pontuou OLIVEIRA (2013) a Capoeira Angola, “trata-se, então, de
uma prática corporal que estabelece a inter-relação com o outro e com o conjunto (roda,
canto, jogo, instrumentos, luta e dança), esse conjunto da Capoeira, penetra no corpo do
praticante”.
Ao experimentarmos a pratica da Capoeira Angola junto ao grupo Só Angola,
tivemos a oportunidade de perceber que esta atividade é composta por uma
fundamentação filosófica impostas por relações, religião, educação, música, diálogo e
outras manifestações culturais.
Imagem 4: Roda de Capoeira Angola
Fonte: Associação de Capoeira Angola de Goiás
A estrutura musical de uma roda de Capoeira Angola é importante, cuja as
músicas orientam o entendimento sobre o estar presente naquele momento e naquele
lugar. O canto é puxado por quem está tocando um dos três berimbaus, os outros
respondem em forma de coro.
A roda inicia-se com um canto chamado ladainha depois temos os outros cantos
conhecidos como corridos. A bateria da roda de Capoeira Angola é composta por oito
pessoas e oito instrumentos sendo: três berimbaus (Gunga, médio e viola) dois
pandeiros, um agogô, um reco-reco e um atabaque. Ao som da bateria se desenrola o
jogo da capoeira, também conhecido como “vadiação”.
Segundo GOMES; e FERNANDES (2005) a aprendizagem da Capoeira está
baseada na memorização, e que todos os processos de aprendizagem acontecem através
da participação ativa de todos os alunos. Os saberes e fundamentos da Capoeira Angola
são transmitidos oralmente, pelos Mestres, ao observar as aulas se percebe que a
Capoeira Angola é um campo educativo, onde existe uma união de um processo do
conhecimento a ser desenvolvido e preservado, o Mestre e o aluno estão conectados
numa cumplicidade de vida.
Dessa forma concluímos que a prática da Capoeira Angola é sim considerada uma
arte terapia aos seus praticantes, porque ela trabalha com as movimentais corporais e
mentais. Mestre Pastinha disse sobre a Capoeira Angola “Mandinga de escravo em
ânsia de liberdade, seu princípio não tem método e seu fim é inconcebível ao mais sábio
capoeirista”. A capoeira Angola, movimenta o corpo e alma.
Grafismo do povo Krahô
Chegou um ponto em que as mulheres
botaram os homens para trás. Sabia que
tinha alguma coisa certa ainda. E foi com as
mulheres. Aí eu falei para os senhores: “O
homem também tem muita coisa para fazer,
só que tem coisas que os homens falam que é
deles, e não é. (KRAHÔ PRUMKWYJ,
2017, p. 110)
Sol ensinou para as mulheres-cabaças e elas
repassaram para os seus filhos e os homens-
croás. Envolvidos na rama que os
relacionam entre si, esses homens
compartilharam esse conhecimento.
(KRAHÔ PRUMKWYJ, 2017, p. 110)
O papel das mulheres nos contextos das aldeias do povo Krahô é muito
importante, em especial, os seus conhecimentos originários sobre as histórias de vida
desse povo. A história da estrela, Caxekwýj, reafirma o caráter matrilinear de Caxekwýj.
Ela é ensinada aos Mehi (indígena) pelos mais velhos das aldeias.
Por anos o povo Krahô viveu de um lado para ou outro até a ocuparem
definitivamente a Terra Indígena Kraholândia, hoje demarcada pelo Governo Federal.
Mesmo diante das distintas situações de imposição do não indígena sobre o povo Krahô,
esse não conseguiu retirar de nós os nossos traços culturais, os quais são muito
marcantes na cultura Krahô, que é a manutenção e o fortalecimento cotidiano de boa
parte de nossos ritos relacionados à memória, a vida social, a econômica e a espiritual.
Isto apesar do seu longo período de contato com a sociedade dominante não indígena,
desde as frentes de colonização, o povo indígena Krahô ainda mantém seus costumes,
dentre eles o de contar histórias. Na aldeia a vida é muito simples e calma. Nós, Mehi,
não estamos preocupados com nada. Se tiver roça plantada, se tem aula na escola, se
tem história sendo contada, se tem música, se vivemos no jeito Mehi, a preocupação é
pouca. As crianças passam o dia brincando e tomando banho no rio e só vão para casa
quando estão com fome ou os pais vão buscar brigando com eles.
Nossas aldeias são de formato circular, o que compreendemos a partir da
narrativa que conta que foi o Sol que deu a estrutura física para o povo Mehi. Conta a
história que o Sol desceu até a Terra e organizou a aldeia nesse formato considerando o
seu próprio formato circular, conforme apresenta a Figura a segui.
Kájpê Krî
Do alto dessa serra pudemos também observar e reafirmar a forma tradicional do
povo Krahô organizar suas aldeias no formato circular, tendo as casas dispostas ao
longo desse círculo. O formato circular de nossas aldeias, destaco uma dentre as várias
narrativas, por mim ouvidas desde a minha infância, a saber: A lua (Pytwýr)ê,
perpassando a criação e formação dos primeiros Mehi. Que, como o rôpin Pytwýrê não
mudava o seu comportamento Amcrô o Sol chamou para uma conversa séria! Assim
disse o Amcrô: – Temos que volta para céu – cojkwa, porque não podemos ficar mais
aqui na terra – pjê.
Na aldeia tudo é na prática, ela aprendeu a coletar frutas; a subir no pé da
bacaba, palmeira muito alta que precisa de muita técnica, para se retirar os frutos, que
ficam presos a um cacho, no alto do pé da bacaba. A tirar o jenipapo para fazer as tintas
que usamos para nos pintar; a ser corredora; tomar banho todos os dias, primeiro que os
outros, pois segundo minha bisavó, a água está limpa; a comer pouco, pois ela precisa
ser leve para fazer corridas; a saber quais comidas podem fazer mal, quando se tem um
nenê; quais os cuidados com o corpo; quais os alimentos certos para não ter cabelos
brancos; para não ter problemas nas vistas. A ser uma boa esposa e saber cuidar dos
filhos. Aprendemos assim: sabemos fazer desenho no corpo, pintar, cortar o cabelo do
jeito Krahô, só quem corta o cabelo das pessoas é a mulher mais velha que não
menstrua mais, uma mulher nova não pode cortar o cabelo de ninguém.
No meu Trabalho de Conclusão de Curso de graduação em História na
Universidade Federal de Tocantins (UFT), realizei estudos que descreveram alguns ritos
e narrativas do povo Krahô. Com o meu pertencimento e origem de ser Mehi, pude
trazer para o diálogo acadêmico as compreensões tradicionais face aos estudos
adquiridos no Ensino Superior. Um dos desafios enfrentados por mim agora, como
pesquisadora antropóloga é o de transformar o que aprendi na oralidade em escrita, que
são as narrativas do meu povo.
As pinturas corporais que são um símbolo para nós mehi, geralmente somos
pintados quando tem festas culturas, quando a gente vai pra uma caçada longe da aldeia,
nossas pinturas tem alguns significados, os dois que são as bases são um no vertical e
outro na horizontal. Nós nos pintamos com jenipapo (a fruta ainda verde) que ralamos,
esquentamos e depois de fria nós nos pintamos de forma coletiva, sempre tem alguém
que pinta depois é pintado, como disse anteriormente a pintura vai de acordo com o rito,
normalmente a pintura dura umas quinze dias no corpo, também tem o urucum que a
tinta fica vermelha no corpo também chamado como protetor solar que protege a pele,
em festas específicas usamos as penas dos passados como periquito e juriti (pequenos
aves do cerrado).
Festa kyjkajû
Fonte: Prum Krahô, 2003
Momento Intercultural na Escola Indígena Krahô
Fonte: https://portal.to.gov.br/noticia/2018/4/19/tocantins-apresenta-avancos-na-educacao-
indigena/, acesso em 25de agost.2019.
Nossas pinturas são importantes, pois nós diferenciamos de outros povos também
são usadas para momentos importantes antigamente também era usada para guerrear
entre outros grupos. Desde nossos os antepassados vem sendo preservado esses
costumes de pinturas que nos constituem como povos mehi, sendo assim cada povo tem
suas pinturas e sabe o quanto é importante para sua resistência como indígena. Fora da
aldeia é importante continuar fazendo as nossas pinturas como demarcação de outro
território, porém sem essas características somos criticadas pela sociedade não
indígenas e nas instituições, por isso a importância de manter a nossa cultura e nossos
traços através de nossas pinturas corporais.
E para (não) Concluir
Para nós o conhecimento tem que circular ele não cabe nas caixinhas, nem nas
bolhas, nem no Lattes. É importante que os conhecimentos circulem que de fato exista
uma troca de conhecimento, sabendo que todo o povo tem seus conhecimentos e que
eles possam dialogar dentro e fora da academia. Não podemos entrar nesse espaço e sair
apenas com os conhecimentos eurocêntricos temos as nossos mestres, as nossas
bibliotecas que não podem simplesmente desparecer quando entramos a Universidade.
Com um público de mais de trezentos estudantes indígenas e negros quilombolas
no UFGInclui é de suma importância que os currículos sejam repensados e que
adicionem conhecimentos das nossas comunidade. Compreendam que estamos
reivindicando o acréscimo de outros conhecimentos para que possamos sentir que existe
uma troca de conhecimentos, e que de faro a UFG valoriza os corpos de saberes que
circulam no espaço acadêmico. É que possamos também esta nesse espaço produzindo
conhecimentos que de fato irá impactar as nossas comunidades, através da nossa forma
de SER e EXISTIR nesse país que a cada dia nos matar em prol de uma sociedade que
acreditar fielmente na branquitude acrítica.
Destacamos que as questões indígenas negras e de negros quilombolas se
entrelaçam, e ressaltamos que esse texto não está concluído. Nossos diálogos estão em
constantes processos, dessa forma, o que podemos destacar é que esses entrelaçamentos
nos permitem criar e consolidar redes nesse meio acadêmico.
E percebemos que essas redes nos possibilitam caminhar, não só apenas em
dialogo com os nossos pares, mas também com as nossas comunidades e com as nossas
novas formas de fazer ciência, nas quais priorizamos nós como sujeitos da pesquisa das
nossas relações e demandas sociais.
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