Download - Desafios do século 21 Primeiro capítulo
c a p í t u l o um
Teologia e ecologia
Quando transbordou para além dos limites de seu
leito judaico original, a torrente caudalosa do evangelho
cristão não encontrou uma paisagem plana e sem história,
mas o oposto. Aquela paisagem greco-romana também ti-
nha seus leitos antigos, pelos quais convidava a correr as
águas do evangelho. Portanto, para compreender as formas
que a teologia cristã foi tomando naqueles primeiros sécu-
los de nossa era, é necessário entendermos algo daqueles
leitos antigos que contribuíram para canalizar a fé cristã em
direção aos rumos que tomaria no fi nal.
Desde tempos imemoráveis, os gregos como todo grupo
humano que busca subsistir no meio da natureza, se interes-
saram pelo mundo que os cercava. Alguns de seus fi lósofos
mais antigos diziam que o mundo é feito de água; outros,
de fogo; outros, dos quatro elementos água, fogo, ar e terra;
Desaf ios do século 21 para o pensamento cristão
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outros tratavam de explicar os movimentos do mundo e da
natureza em termos dos princípios do amor e do ódio; outros
diziam que tudo, inclusive os deuses, era composto de par-
tículas ínfi mas às quais chamavam de átomos. A todos estes
esforços para descobrir a essência das coisas deu-se o nome
de “fi losofi a”, cujo signifi cado é amor ou gosto pela sabedoria.
Finalmente, contudo, os grandes mestres gregos passa-
ram deste interesse por conhecer a natureza das coisas para
o interesse por conhecer a natureza do próprio conheci-
mento. Parece claro que quando um fi lósofo diz, por exem-
plo, que tudo é fogo, ele está ultrapassando os limites do
puramente empírico, fazendo um juízo que vai além do que
seus sentidos lhe dizem. Além disso, há casos nos quais os
sentidos nos enganam, como quando os olhos nos dizem
que um bastão se quebra ao ser introduzido na água.
As coisas estavam neste pé quando chegou o grande
fl orescimento da fi losofi a grega, com seus grandes mestres
Platão e Aristóteles.
Platão percebe não apenas que o conhecimento ultraspas-
sa os limites do empírico, mas também que os sentidos nunca
nos dão todos os dados necessários para chegar ao verdadeiro
conhecimento. De fato, se o verdadeiro conhecimento for o
conhecimento de realidades imutáveis, há uma descontinui-
dade radical entre esta meta e os dados que os sentidos nos
proporcionam, referindo-se todos às realidades passageiras.
Os sentidos me dizem que uma maçã é redonda, e a reco-
nheço como tal, mas o certo é que nunca vi coisa alguma que
seja pura e perfeitamente redonda. De onde então aprendi
essa ideia de redondeza? Consideremos outro exemplo. Dois
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sentidos me dizem que duas maçãs mais duas maçãs são qua-
tro maçãs, e que duas pedras mais duas pedras são quatro
pedras. Porém, além das maçãs e das pedras, o intelecto me
diz que dois e dois são quatro. De onde então aprendi que
dois e dois são quatro?
Com relação a essa pergunta, houve na Antiguidade duas
respostas fundamentais – respostas que são muito impor-
tantes para a questão ecológica e, sobretudo, para a questão
do modo pelo qual a igreja e a fé cristã têm se relacionado
com o mundo da natureza.
A primeira destas duas respostas é a de Platão. Essen-
cialmente, Platão diz que o verdadeiro conhecimento não
vem das percepções que os sentidos nos oferecem, mas de
outras realidades superiores e imutáveis. Há, então, dois ní-
veis de realidade ou por assim dizer, dois mundos: o mundo
dos sentidos, este mundo que vemos e que tocamos, mas
que não pode nos dar conhecimento verdadeiro de realida-
des imutáveis, e o mundo das ideias, mundo de realidades
imutáveis e inteligíveis, no qual está o verdadeiro conheci-
mento. Como sabemos, Platão explica nosso conhecimento
desse mundo das ideias em termos da pré-existência da al-
ma, de modo que se eu reconheço agora que essa maçã é re-
donda é porque naquela outra existência, antes de cair nesse
mundo do sensível, vi a ideia pura da redondeza cuja som-
bra agora reconheço na maçã. Para nossos propósitos aqui,
no entanto, o que nos importa enfatizar é o fato de que,
dada essa cisão entre o mundo do material e o mundo do
inteligível, e dada também uma cisão axiológica, de modo
que supostamente aquele mundo das ideias vale muitíssimo
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mais do que este mundo transitório das realidades mate-
riais, não há por que se preocupar demais com a natureza
que nos rodeia. O importante são as ideias, as realidades
que estão por trás dessa natureza. Assim, há na tradição
platônica uma forte tendência, se não antiecológica, de não
dar muita importância à ecologia – o que no fi nal das con-
tas vem a ser praticamente o mesmo.
O mais famoso dos discípulos de Platão, Aristóteles,
abordou o problema do conhecimento de um modo di-
ferente. Aristóteles concorda com seu mestre que há uma
diferença real entre os dados dos sentidos e o verdadeiro
conhecimento. Porém, não concorda com o modo pelo qual
Platão resolve o problema. Ao contrário; para Aristóteles,
os sentidos desempenham um papel crucial no processo
do conhecimento, que é um processo mediante o qual o
intelecto abstrai dos dados dos sentidos os conceitos que
constituem o conhecimento. Assim, por exemplo, embora
nunca tenha visto a redondeza propriamente dita, à medi-
da que vou vendo muitas maçãs e muitas pedras, e muitas
outras coisas semelhantes, vou abstraindo de todas elas esse
elemento comum ao qual chamo “redondo”. A ideia de “re-
dondo” não existe em si mesma, em um mundo das ideias,
como insinuava Platão, mas está nessa e naquela maçã,
nessa e naquela pedra etc. Para o tema que nos importa,
isto é, o interesse pela natureza, sua viabilidade e sua relação
com a raça humana, parece claro então que a teoria do co-
nhecimento que Aristóteles propõe é muito mais favorável
ao nosso estudo e, portanto, tanto à exploração quanto à
preocupação ecológica, do que a de Platão.
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Em resumo, voltando à nossa imagem do Evangelho
como um rio que transborda em seu leito, quando este
evangelho apresentou-se pela primeira vez ao mundo gre-
go-romano, foram-lhe oferecido dois leitos antigos pelos
quais a teologia cristã poderia correr. E um deles era mais
favorável que o outro às preocupações com o mundo e a
natureza.
Isto no campo das ideias. Porém, ainda que Platão não
tivesse gostado disso, o fato é que o ser humano nunca vive
puramente no mundo das ideias. O ser humano vive tam-
bém em um mundo de relações humanas, políticas, econô-
micas etc. Então, para entender aquela paisagem por onde
se esparramaram as águas do Evangelho, é preciso recordar
que Aristóteles tinha acabado de propor suas teorias quan-
do boa parte do arcabouço do mundo grego antigo veio
abaixo. Aristóteles foi mestre de um príncipe macedônio
chamado Alexandre, a quem a posteridade conhece como
Alexandre, o Grande. Em poucos anos, Alexandre e suas
falanges apropriaram-se não apenas de toda a Grécia anti-
ga, mas também de toda a bacia oriental do Mediterrâneo,
inclusive a Ásia Menor, a Síria, a Palestina e até o Egito; e
logo partiram em uma grande campanha de conquista em
direção ao Oriente, onde se apoderaram do antigo império
persa e chegaram às fronteiras da Índia.
Ainda que o império de Alexandre não tenha durado
muito, suas consequências perduraram por longo tem-
po e até recrudesceram com o passar dos anos. Onde an-
tes existiram culturas e modos de ver a vida relativamente
independentes uns dos outros, surgia agora uma cultura
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cosmopolita em que se mesclavam pessoas e ideias de mui-
tas origens e contextos diferentes. O grego tornou-se a lín-
gua comum do Mediterrâneo Ocidental – é por isso que
todo o Novo Testamento foi escrito em grego – e junto com
o idioma propagou-se também a cultura grega. Porém, essa
cultura supostamente grega já não era a da antiga Atenas
de Sócrates e Platão, mas uma cultura grega à qual se ha-
viam adicionado elementos de tantas outras culturas quan-
tas Alexandre e seus seguidores conquistaram. Além disso,
as culturas antigas subsistiam – todas elas subordinadas à
cultura grega dominante, mas ao mesmo tempo guardando
algo de sua identidade e suas práticas tradicionais.1
Tudo isso cresceu com a expansão do poderio romano,
que pouco a pouco foi ocupando o lugar dos sucessores de
Alexandre em toda a bacia oriental do Mediterrâneo. Ago-
ra, além de uma cultura comum, havia um Estado comum.
Deste Estado eram súditos tanto gregos quanto sírios,
egípcios, judeus, trácios etc. Todos esses povos mesclavam-
-se nas praças onde havia lugar de comércio, nos exércitos
de tropas auxiliares que os romanos recrutavam onde quer
que impusessem seu domínio e nas cidades que eram o or-
gulho do Império Romano.
E aqui é importante mencionar o sentido original de
uma palavra que sempre entra em jogo quando falamos de
1 Neste sentido e como uma refl exão preliminar acerca do tema de nosso quarto capítulo, cabe ressaltar o paralelismo entre o que se sucedeu no mundo antigo com as conquistas de Alexandre e o que sucedeu em nossa América com as conquistas ibéricas. Estas também pretenderam “civilizar” nossos antepassados indígenas, a quem se impuseram os idiomas, costumes e religião ibéricos. Por algum tempo, pareceu que as tradições ancestrais destas terras estavam a caminho de desaparecer. Porém, em épocas mais recentes temos visto o despertar das culturas, línguas e tradições antigas agora adaptadas aos desafi os do mundo moderno, mas nem por isso menos arraigadas na Antiguidade pré-colombiana.
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ecologia: a palavra “civilização”. Originalmente, “civilização”
era o mesmo que “cidadifi cação”. Para os romanos, como pa-
ra os antigos gregos, a maior invenção humana era assim a
cidade. Todo império, para subsistir, necessita de uma ideo-
logia que justifi que sua existência e suas ambições. Um dos
modos pelos quias os romanos justifi caram suas ambições
imperialistas foi precisamente seu programa civilizador, ou
seja, seu programa de construir e promover o crescimento
e o embelezamento das cidades. Assim, em um dos elogios
mais famosos ao Império Romano, o eloquente orador Élio
Aristides declara:
Tanto as partes costeiras quanto o interior se encheram de cidades, algumas recém-fundadas e outras aumentadas e melhoradas por vós. ... Por todas as partes há ginásios, fontes, arcadas monumentais, templos, ofi cinas, escolas, e pode-se dizer que todo o mundo civilizado, que desde o princípio adoeceu, fora trazido pela ciência correta a um estado de saúde. ... e por vossa, a celebração nunca acaba, como uma chama perene, mas avança de tempo em tempo e de população em população, demonstração de júbilo que
se justifi ca pela felicidade de que todos gozam.2
Contudo, o crescimento das cidades nem sempre era um
sinal da felicidade de que falava Élio Aristides. Em muitos
casos, o crescimento das cidades era devido mais aos fatores
que difi cultavam cada vez mais a vida no campo. Assim, por
exemplo, tem se falado muito acerca do enorme crescimento
da cidade de Alexandria, na desembocadura do Nilo. Essa
2 Oration rom. 4. 94, 97, 99.
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cidade, de origem relativamente recente, pois havia sido fun-
dada por Alexandre, o Grande no ano de 332 a.C., logo che-
gou a ser a segunda cidade do Império Romano, e a rivalizar
em tamanho e em esplendor com a própria Roma. Seu farol
era uma das maravilhas do mundo. E sua biblioteca e museu
(que na realidade era mais parecida com uma universidade
do que com um museu moderno) tornaram-na o principal
centro intelectual de todo o Império Romano. O que muitas
vezes se esquece é que o crescimento excessivo de Alexan-
dria era paralelo ao empobrecimento campestre do egípcio.
Visto que o clima do Egito é favorável à preservação de an-
tigos papiros, existem dados que nos permitem comprovar
o terrível impacto que as políticas “civilizadoras” ou “cidadi-
fi cadoras” de Roma tiveram sobre as zonas rurais do Egito.
Os impostos chegaram a tal nível que muitos camponeses
tiveram de abandonar as terras porque não podiam pagá-los.
Há registros de aldeias inteiras que se tornaram totalmente
despovoadas no transcurso de uma geração.
Enquanto isso, o governo, ao mesmo tempo em que tra-
tava de embelezar Alexandria e de dotá-la de toda sorte de
facilidades, promulgava decreto após decreto proibindo os
camponeses de viver na cidade – ainda que a própria exis-
tência de tais decretos mostrava sua inefi cácia.3
Tudo isto, que nos reporta a situações que todos co-
nhecemos nos dias de hoje, signifi cava que a população do
Império Romano – especialmente a urbana– era uma po-
pulação com um profundo sentimento de desarraigamento.
3 Há um estudo excelente desta situação no Egito, que provavelmente se repetia em outras províncias do Império Romano: Naphtali Lewis, Life in Egypt under Roman Rule (Oxford: Clarendon Press, 1983).
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O habitante típico de Alexandria, Éfeso, Antioquia ou
Corinto já não tinha uma identidade própria. Do mesmo
modo que a população judaica havia se espalhado por boa
parte do mundo conhecido, ao que chamamos de Diás-
pora, assim também se espalharam os egípcios, os gregos
e outros. Na própria Roma havia autores que se queixa-
vam da entrada de outras culturas e tradições, enquanto os
próprios autores romanos, mesmo os que escreviam sobre
as maravilhas da vida no campo, viviam na cidade.
Em síntese, o que isso tudo signifi ca é que a população
greco-romana do primeiro século, e especialmente a popu-
lação urbana, era uma população em transição, afastada de
suas raízes históricas, em dúvida acerca de suas religiões
ancestrais, em busca de identidade própria e, portanto, alie-
nada do mundo e da natureza.
Destacando nosso objetivo, é necessário então ressaltar
que quando a mensagem cristã transbordou para essa ba-
cia do Mediterrâneo, o que encontrou foi uma população
sedenta de sentido e de identidade, mas ao mesmo tempo
uma população que ansiava acalmar essa sede bebendo de
águas individualistas e ultramundanas. O habitante típico
daquelas cidades helenistas onde se pregou o Evangelho
nos primeiros séculos não queria que lhe falassem da natu-
reza nem do mundo físico, acerca dos quais tinha bem pou-
cas esperanças; queria antes que lhe falassem de sua alma,
de sua salvação eterna, de seu destino individual. (E que
seja dito de passagem, se pouco lhe interessava o mundo
físico, muito menos o mundo político no qual sua opinião
ou participação não servia para nada).
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É por isso que o gnosticismo constituía um rival e uma
ameaça tão grande para a igreja nascente. Bem se podia
dizer que o gnosticismo se adaptava melhor às necessidades
da época do que o cristianismo ortodoxo. O gnosticismo
conferia sentido àquele mundo confuso do primeiro sécu-
lo, simplesmente cortando o nó cego e dizendo que, afi nal
de contas, o mundo não tinha nenhuma importância. Ao
dizer que este mundo físico não é senão um obstáculo à
verdadeira salvação, o gnosticismo expressava precisamente
o que muitas pessoas queriam ouvir. Se o mundo é mau, se
não é mais que um obstáculo à minha salvação, o fato de
eu não ter encontrado meu lugar nele não é razão para me
preocupar.
Aqui não é o foro para uma ampla discussão das razões
pelas quais a igreja antiga rechaçou o gnosticismo. Basta
dizer que, apesar de seu atrativo, o gnosticismo parecia
radicalmente incompatível com a fé cristã. O cristianismo
afi rmava que o Deus que conhecemos em Jesus Cristo é
o mesmo Deus que no início criou todas as coisas e viu
que eram boas; o cristianismo afi rmava que entre as coisas
boas que Deus criou encontra-se o corpo humano, que
no fi nal há de ressuscitar para a vida eterna; sobretudo,
o cristianismo proclamava a encarnação de Deus em um
ser humano de carne e osso. Tudo isso era contrário ao
gnosticismo e, portanto, apesar de ter havido muitas ten-
tativas de ligar intimamente as duas doutrinas, no fi nal a
igreja cristã se declarou totalmente oposta ao gnosticismo.
Além do mais, pode-se dizer que tanto o Cânon do Novo
Testamento quanto o Credo dos Apóstolos são, pelo menos
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em parte, resultado do desejo dos cristãos ortodoxos de
deixar bem claro o contraste entre sua doutrina e a do
gnosticismo.4
Com relação ao que nos interessa aqui, parece fácil per-
ceber que, ao rechaçar o gnosticismo, o cristianismo recha-
çou uma doutrina que por sua natureza teria bem pouco a
dizer quanto à preocupação ecológica. Se a realidade física
é má por natureza, é de se esperar o fato de que ela vá mal,
e não há por que nos preocuparmos.
Todavia, apesar de todos os esforços antignósticos por
parte dos líderes da igreja, as tendências da época não
podiam deixar de afetar o modo como o evangelho era
interpretado. Ao mesmo tempo em que levavam a cabo
a grande campanha antignóstica, estes mesmos grandes
mestres do cristianismo se achavam envolvidos em outra
luta de iguais proporções para garantir um lugar para a fé
cristã dentro da cultura greco-romana. Quanto aos mo-
dos empregados para obter este lugar falaremos em outra
ocasião, quando discutirmos a questão da relação entre fé
e cultura. O que nos interessa saber de imediato é que
nesta campanha aqueles mestres do cristianismo encon-
traram nas doutrinas de Platão e de seus seguidores um
grande aliado. Ao se defrontar com as pessoas mais edu-
cadas entre os críticos do cristianismo, os teólogos cristãos
apelavam para várias doutrinas de Platão que pareciam
coincidir ou ao menos render apoio aos ensinamentos
cristãos.
4 Discuti este tema, mostrando como o credo precisa ser entendido deste modo, em Histo-ria del pensamiento cristiano, volume 1 (Miami: Caribe, 1992), p. 143-54.
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O que no principio foi um recurso apologético, pouco a
pouco foi se convertendo parcialmente no próprio conteú-
do da teologia cristã. E já para o fi m do século 2, muitos dos
teólogos cristãos mais distintos também eram platonianos.
Cem anos mais tarde, no fi m do século 3, a maioria dos
teólogos pertencia a essa escola. Ao fi nal do século 4, eram
bem poucos os teólogos que propunham uma alternativa ao
platonismo. E em meados do século 5, quando estas ques-
tões fi losófi cas se misturavam com o debate cristológico e
as autoridades imperiais interviram para forçar o consenso
neste debate, boa parte dos que sustentavam as teorias de
Aristóteles teve de partir para o exílio, que era na época o
império persa.
O resultado de tudo isso é que durante os primeiros sé-
culos da Idade Média os teólogos cristãos interpretavam
a realidade em termos essencialmente platônicos. Desta
perspectiva – talvez seja necessário repetir – o verdadeiro
conhecimento não é obtido por meio dos sentidos, nem
tampouco consiste em conhecer as coisas passageiras des-
se mundo. Seguindo uma adaptação ao platonismo clás-
sico proposta por Santo Agostinho no fi nal do século 4 e
meados do século 5, pensava-se que o conhecimento ver-
dadeiro fosse obtido mediante uma iluminação do Verbo
eterno de Deus. Visto que o estudo dos objetos materiais
pode nos ocultar essa iluminação, e no melhor dos casos
não contribui para ela, tal estudo não tem nenhum lugar na
vida da pessoa verdadeiramente sábia, o próprio Agostinho
mostra-se muito dolorido e arrependido porque em certa
ocasião se ativera por uns minutos a observar a conduta de
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uma lagartixa, quando na realidade deveria ter se ocupa-
do das verdades eternas. Séculos mais tarde, Anselmo de
Canterbury declarou que, porquanto o ser humano foi feito
para a contemplação de Deus, se por apenas um instante
afasta sua vista do Eterno, a fi m de contemplar em seu lugar
o mais formoso dos astros, não poderá em toda a eternidade
pagar por tal pecado.
Devido a tais preconceitos contra o conhecimento que
se obtém por meio dos sentidos, não há de nos estranhar o
fato de que durante os primeiros séculos da Idade Média a
observação sistemática da natureza e de seu funcionamen-
to e equilíbrios caíram em desuso. Certamente podemos
imaginar que os camponeses ainda observavam o céu e os
ventos para ver se iria chover ou se era uma boa época para
plantar. As mulheres que assavam o pão também observa-
vam como em épocas de calor o fermento levava menos
tempo para levedar a massa em comparação ao inverno.
Sem estas observações teria sido impossível viver. Porém,
do ponto de vista das elites intelectuais, e certamente dos
grandes mestres da religião, tudo isso era inferior, um em-
pecilho à contemplação das verdades eternas.
O efeito que tudo isso teve sobre o tema que discuti-
mos é ambivalente. Por um lado, os “avanços” tecnológicos
foram tão lentos que a questão da destruição do meio am-
biente foi apenas ventilada. Uma sociedade como aquela,
que não considerava o estudo das coisas materiais como
digno de se empreender, não poderia produzir grandes in-
ventos ou inovações. Provavelmente as duas invenções mais
importantes, do ponto de vista do meio ambiente, foram
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a invenção do arado de relha e dos arreios para cavalos.
Com eles produziu-se um aumento na terra cultivada, o
que, por sua vez, permitiu certo aumento da população em
áreas anteriormente pouco habitadas. Os bosques foram
reduzindo paulatinamente, ao ponto de a caça começar a
escassear e os nobres começarem a reservá-la para si. Esse
processo, porém, foi tão lento que quase ninguém percebeu
– e quem o percebeu não tinha os meios para constatar que
o que via em seu ambiente local era parte de um processo
geral. Por outro lado, devido à mesma falta de interesse na
realidade física e natural, as mesmas mudanças ecológicas
que estavam ocorrendo e puderam ser observadas passa-
ram despercebidas. Quando ocorria de alguém percebê-las,
não pensava que deveria ou poderia fazer grande coisa para
combatê-las.
Foi apenas nos séculos 12 e 13 que as coisas começaram
a mudar. Por uma série de motivos, dos quais o mais impor-
tante foram as Cruzadas, cresceu o contato com o mundo
muçulmano, tanto no Oriente Próximo quanto na Espanha
e na Sicília. Como resultado desses contatos, a Europa Oci-
dental cristã voltou a conhecer muitas das obras de Aris-
tóteles, que tinham sido esquecidas desde o século 5. Este
redescobrimento de Aristóteles gerou uma verdadeira revo-
lução fi losófi ca e teológica. A princípio, as autoridades das
igrejas, assim como quase todos os teólogos e professores de
teologia, se opuseram à “nova” fi losofi a. Houve condenações
e proibições de se estudar Aristóteles.
Como se sabe, os que assumiram a vanguarda nos esfor-
ços por produzir uma teologia que levasse em conta a re-
cém-descoberta fi losófi ca de Aristóteles foram São Tomás
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de Aquino e seu mestre, Alberto, o Grande. No começo, a
posição desses dois grandes mestres dominicanos encontrou
forte oposição tanto entre a hierarquia eclesiástica quanto
na comunidade teológica. Muitos foram os tratados escri-
tos para condenar a nova fi losofi a e teologia tomistas. No
fi m, contudo, impôs-se a teologia de São Tomás, com sua
forte dose de Aristóteles.
Para o que nos interessa aqui, é importante recordar o
que dissemos no início acerca do contraste entre o modo
como Aristóteles entendia o conhecimento e o modo como
seu mestre Platão o entendia. A reintrodução de Aristóteles
na Europa Ocidental não trouxe somente uma nova fi loso-
fi a ou um desafi o a algumas das doutrinas até então tidas
como tradicionais. O que Aristóteles levou à Europa Oci-
dental do século 18 foi uma maneira completamente nova
de ver o mundo – ou, melhor dizendo, um outro ângulo de
ver o próprio “ver” e, portanto, uma nova atitude de aplicar
o “ver” ao mundo das realidades físicas. Se o conhecimento
se baseia, como defendia Aristóteles, no processo median-
te o qual o intelecto abstrai os conceitos gerais dos casos
particulares que os sentidos percebem, então é importan-
te dedicar-se à observação destes casos particulares, destes
objetos sensíveis que para o platoniano não passavam de
obstáculo ao verdadeiro conhecimento.
Embora os teólogos tenham dado a importância mere-
cida a São Tomás e seu mestre – e talvez até mais do que
mereciam – a história das ideias e da civilização ocidental
não fez o mesmo. Foi a reintrodução de Aristóteles, cuja
iniciativa foi tomada por esses dois mestres, que tornou
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possível o grande despertar das ciências naturais que no
fi nal deu origem à explosão tecnológica que se tornou ca-
racterística fundamental da civilização ocidental na Idade
Moderna. Não foi por acaso que Alberto, o Grande, escre-
veu obras de astronomia, zoologia e botânica. Para Alberto
e Tomás — e graças a eles para as gerações posteriores — a
observação da natureza era campo próprio da atividade de
sábios e de cristãos.
Por outro lado, não se deve dar crédito demais a Aris-
tóteles e nem às concepções fi losófi cas que eram discutidas
nas universidades. Pouco antes de Tomás e de Alberto, São
Francisco cantara para o “irmão Sol”, “irmã Água” e “irmão
Lobo”. E antes ainda de São Francisco, São Bernardo de
Claraval escrevera inúmeros poemas, sermões e meditações
acerca da humanidade de Cristo – algo que não ocorrera
a São Anselmo, preocupado que estava com as realidades
imutáveis e puramente intelectuais.
Aconteceu que os séculos 12 e 13 foram épocas que, por
diversas razões, levaram ao questionamento de boa parte da
sabedoria tradicional, inclusive da interpretação platoniana
da fé cristã. As cruzadas haviam aberto novos horizontes à
Europa Ocidental. O crescimento das cidades e do comér-
cio forçava as pessoas de inclinação mais prática, a se ocu-
parem das necessidades físicas da vida, organizando-as de
maneira que até então não haviam sido necessárias. Até a
construção das grandes catedrais góticas, obra fundamental
da época, exigia que fosse prestada à pedra e à sua nature-
za uma atenção que elas não pareciam ter merecido antes.
Foi neste ambiente que irromperam as obras de Aristóteles,
Teologia e ecologia
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à imagem e semelhança de Deus, um senhorio que se limita
pelo amor. E percebemo-lo também na segunda narrativa,
onde a liberdade do ser humano para explorar a natureza
encontra limite simbólico na árvore proibida. A natureza
com certeza o alimentará, mas o humano terá de respeitar
certos limites.
Isto é o que Gênesis nos diz a respeito dos propósitos
de Deus para a criação. Porém, Gênesis nos diz mais. De-
pois da história da criação nos primeiros dois capítulos, o
terceiro conta a história do pecado. Se a existência da ár-
vore proibida no segundo capítulo nos fala dos limites do
governo humano sobre a natureza, e dos limites no seu de-
leite dela, o comer dessa mesma árvore no terceiro capítulo
nos fala da transgressão desses limites e suas consequências
para a humanidade. Fala-se muito sobre o tema da queda
e do pecado original. Porém, não se enfatiza o sufi ciente o
caráter ecológico desse pecado. Ao estender a mão e pegar
o fruto proibido, o homem e a mulher negam os limites que
Deus colocou para seu governo e deleite da natureza.
Gênesis 3 versículo 6 descreve as características dessa
árvore proibida pelos olhos da mulher tentada. Diante da
tentação, a árvore proibida é boa para se comer, agradável
aos olhos e desejável para dar entendimento. Em outras
palavras, transgredir os limites redundará em benefício
próprio. Não é esta a tentação ecológica que nos levou à
situação atual? Um empresário vê que uma ilha quase de-
serta, é boa para banhos de mar, agradável para tomar banho
de sol, e desejável para se ganhar muitos milhões. Ele com-
pra, toma posse dela e a transforma em um dos tantos falsos
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paraísos que surgiram nas últimas décadas em nossas terras
tropicais. E não apenas um empresário específi co, mas toda
sociedade baseada no que parece bom, agradável e desejável,
aos próprios olhos, é também uma sociedade na qual não há
limites para a contaminação atmosférica, o envenenamento
das águas, a destruição da fauna e da fl ora.
Porém, o Gênesis não se limita à transgressão dos limi-
tes. Determinadas consequências acompanham a transgres-
são. Muito poderia ser dito a este respeito. Mas, vamos nos
ater ao que segue a partir do versículo 17. Ali Deus diz ao
homem: ...maldita é a terra por tua causa. O fato de transgre-
dir os limites ecológicos comendo da árvore proibida não
resulta em dano somente para o ser humano transgressor
e para a árvore violada, mas para toda a criação. “Maldi-
ta é a terra.” Isto nos recorda o que vimos tantas vezes no
âmbito da ecologia: o equilíbrio da natureza é tão precio-
so que, quando a violamos em um ponto, as consequên-
cias dessa transgressão vão muito além do que poderíamos
imaginar. Queimamos as selvas amazônicas e causamos
mudanças climáticas na África. Espalhamos pesticidas em
nossos campos para melhorar as safras e destruímos não
apenas os insetos nocivos, mas também seus inimigos natu-
rais, de modo que temos de continuar desenvolvendo novos
inseticidas.
Porém, a maldição da terra afeta não apenas a própria
terra, mas também o ser humano. Maldita é a terra por tua
causa, com sofrimento comerás dela todos os dias da tua vida.
Ela te produzirá espinhos e ervas daninhas… Do suor do teu
rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra...
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Em outras palavras. "A terra será não apenas maldita por
tua causa, mas também maldita para ti. A terra que foi tua
mãe, porque dela foste feito, estes animais feitos do mesmo
pó que tu, e que, portanto, são teus irmãos, já não serão tua
mãe e teus irmãos, mas te serão contrários, terás de lutar
com eles para sobreviver; em certo sentido, serão teus ini-
migos. Do mesmo modo que haverá inimizade entre a mu-
lher e a serpente, assim também haverá inimizade entre ti e
toda a criação. Para completar as coisas, essa inimizade que
introduziste entre ti e a terra, entre ti e o pó, será inimizade
que chegará até ao mais profundo de teu ser. Porque pó eras
e ao pó retornarás. Eras parte dessa terra que violaste, e por
mais que te aches dono e senhor, tirano e explorador da
natureza, transgressor impune de teus limites, és parte dela,
e a ela retornarás".
Por último, antes de sair deste capítulo 3 de Gênesis, é
preciso perceber o que diz este livro logo depois da trans-
gressão a respeito das consequências para a natureza e para
a relação entre o ser humano e o restante do mundo natural.
No versículo 20 lemos que Adão chamou à sua mulher Eva.
Recordemos que esta foi a ajudadora idônea, companheira
igual a ele, carne de sua carne e osso de seus ossos, à qual
o homem se negou a dar nome, compartilhando com ela
seu próprio nome, chamando-a “mulher”. Agora, como re-
sultado da transgressão, a primeira coisa que o varão faz
é reclamar seu direito de posse e de controle sobre outro
ser humano, pondo-lhe um nome. A transgressão ecológi-
ca, o comer da árvore proibida, leva não somente à maldi-
ção da terra e das relações entre a humanidade e seu meio
Desaf ios do século 21 para o pensamento cristão
48
ambiente, mas também à maldição das relações humanas,
à objetualização do outro, à sociedade de domínio e explo-
ração mútua.
E também vemos isto na vida contemporânea. A explo-
ração e violação da natureza não ocorrem sem a exploração
e a violação das relações humanas. Visto que boa parte des-
tas relações humanas constitui a fi bra do que chamamos
atualmente de “economia”, deixaremos esse tema para o
próximo capítulo. Basta recordar que quando fazemos da
natureza um objeto de exploração, quando transgredimos
os limites de nossa relação com a natureza, já demos o pri-
meiro passo para transgredir os limites de nossa relação
com o próximo, que no fi nal das contas também é parte da
natureza. Do mesmo modo que a mulher tentada viu na ár-
vore um objeto digno de desejo, porque lhe pareceu bom e
agradável às suas vontades, na sociedade que carrega o selo
da transgressão nós nos relacionamos uns com os outros
com base no que o outro pode trazer de bom para nós.
Até aqui vimos que as Escrituras nos apresentam uma
visão bem real de nossa relação com a natureza, como as
consequências são devastadoras quando essa relação se per-
verte. Porém, a Bíblia não fala apenas do pecado e de suas
consequências. A Bíblia fala também de um Deus de amor
que não abandona sua criatura, ainda que ela o abandone.
A Bíblia fala de um Deus que se preocupa com sua criação,
ainda que a transgressão a tenha corrompido. A Bíblia fala
de um Deus de salvação. A Bíblia fala do Evangelho.
Aqui é preciso ressaltar acima de tudo a continuidade
entre tudo que acabamos de dizer acerca de Gênesis, e o
Teologia e ecologia
49
que lemos no restante do Antigo Testamento e no Novo. O
Deus do Antigo Testamento, o Deus Criador, é o mesmo
do Novo Testamento. Por isso, diz o Evangelho de João que
... este [mundo] foi feito por meio dele [o verbo]..., e que [o
verbo] veio para o que era seu ( Jo 1.10-11). Não é verdade
que no Antigo Testamento Deus se apresente a nós como
Criador e Juiz, e no Novo como Redentor e Perdoador.
Não. O Deus do Novo Testamento é o mesmo do Antigo
Testamento. E já no Antigo se fala da esperança de uma
restauração da ordem criada: O lobo habitará com o cordeiro, e
o leopardo se deitará com o cabrito. O bezerro, o leão e o animal
de engorda viverão juntos; e um menino pequeno os conduzirá
(Is 11.6). E o profeta Ezequiel:
Então ele me disse: Estas águas saem para a região oriental e, descendo pela Arabá, entrarão no mar Morto e, ao entrarem nas águas salgadas, estas se tornarão doces. E por onde quer que o rio passe, haverá todo ser vivo que vive em enxames e muitíssimo peixe; porque essas águas chegarão lá para que as águas do mar se tornem doces, e por onde quer que este rio passe, tudo viverá. Os pescadores estarão junto dele; haverá lugar para estender as redes desde En-Gedi até En-Eglaim; o seu peixe será em grande volume, segundo a sua espécie, como o peixe do mar Grande. Mas os seus charcos e os seus pântanos não fi carão doces; serão salgados. Junto do rio, em ambas as margens, nascerá todo tipo de árvore que dá fruto comestível. A sua folha murchará, nem o seu fruto faltará. Dará novos frutos nos seus meses, porque as suas águas saem do santuário. O seu fruto servirá de alimento, e a sua folha, de remédio. (Ez 47.8-12)
Desaf ios do século 21 para o pensamento cristão
50
No Novo Testamento e em toda tradição cristã existem
diversos ecos desta esperança. Paulo declara que na esperan-
ça de que também a própria criação seja libertada do cativeiro
da degeneração, para a liberdade da glória dos fi lhos de Deus
(Rm 8.21). Nesta passagem, que contém vários elementos
de difícil interpretação, uma coisa é clara: a solidariedade
do gênero humano com o restante da criação, tanto em sua
dor atual como em sua esperança futura: Pois sabemos que
toda a criação geme e agoniza até agora, como se sofresse dores
de parto; e não somente ela, mas também nós, que temos os pri-
meiros frutos do Espírito, também gememos em nosso íntimo,
aguardando ansiosamente nossa adoção, a redenção do nosso
corpo. (Rm 8.22-23). Em outras palavras: do mesmo modo
que agora, embora tendo sido salvos por obra de Jesus Cris-
to e possuindo as primícias do Espírito Santo, nossos cor-
pos continuam sujeitos à corrupção de toda carne, porém
esperam a ressurreição fi nal, assim também todo o restante
da criação física, embora sofra com dores como a de parto,
aguarda a consumação fi nal.
Ambrósio, o famoso bispo de Milão, que viveu por volta
do século 4, disse de maneira incisiva, referindo-se à ressur-
reição de Jesus Cristo: “Nele o mundo ressuscitou! Nele o
céu ressuscitou! Nele a terra ressuscitou!”6 Ou, como disse
São Tomás de Aquino em termos poéticos:
Uma vez realizado o juízo fi nal, a natureza humana acaba-rá totalmente situada em seu fi m. E como todas as coisas corporais existem em certo modo para o homem... então
6 De excessu frutris Satyri, II 120 (P.L. 16:1403).
Teologia e ecologia
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será conveniente que o estado de toda criatura corporal mude, a fi m de concordar com o estado dos homens que existiram outrora. E como os homens já serão incorrup-tíveis, será tirado de toda criatura corpórea o estado de geração e degeneração.7
Diante da crise ecológica do século 21, cabe-nos desen-
volver uma interpretação da natureza criada que, ao mesmo
tempo em que leve em conta sua condição de criação caída,
leve em conta também sua promessa de criação redimida.
Tudo que dissemos até agora acerca de como nós, que nos
chamamos de crentes em Cristo, precisamos manifestar
nosso amor e responsabilidade para com as demais pessoas,
e não apenas para com suas almas, mas também para com
seus corpos, temos de estender isso agora para a criação
que nos rodeia e da qual somos parte. A esperança cristã
não é apenas escatológica, mas, ao mesmo tempo, também
ecológica.
Para fi nalizar, seria bom levantarmos uma questão a res-
peito de uma passagem muito conhecida do apóstolo Paulo.
Em 2Co 5.17, lemos que Portanto, se alguém está em Cristo, é
nova criação; as coisas velhas já passaram, e surgiram coisas no-
vas. O que o texto grego diz literalmente é: “Se alguém está
em Cristo, nova criação”. A versão tradicional dá a entender
que quando alguém está em Cristo, essa pessoa muda, e vem
a ser uma nova criatura. Isto é certo. Porém, será que o texto
não diz muito mais que isso? Será que o texto não diz tam-
bém que para os que estão em Cristo toda a criação é nova
7 Suma contra gentiles 4.97 (B.A.C. 102:941).
Desaf ios do século 21 para o pensamento cristão
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– nova não porque tenha mudado, mas porque agora a vemos
não como inimiga, como a terra da qual temos de arrancar
o sustento, como natureza a ser dominada mas porque agora
a vemos como Deus a vê e nos vê, como criação redimida e
reconciliada com Deus e conosco? Paulo diz o mesmo dos
crentes. Diz que nossa vida está escondida com Cristo em
Deus, e quando Cristo, nossa vida, se manifestar, então nós
nos manifestaremos com ele em glória (Cl 3.3-4). Não seria
isto a que se refere o apóstolo Paulo quando diz que a criação
aguarda a revelação dos fi lhos de Deus (Rm 8.19)? Será que a
vida do restante da criação não está também escondida com
Cristo em Deus? Portanto, como fi nalização deste capítulo e
ponto de partida para nossa refl exão ecológica no século 21,
tomemos a famosa passagem da segunda epístola aos Co-
ríntios, porém traduzida literalmente, sugerindo que a escu-
temos dentro do contexto de tudo que foi dito: “Se alguém
está em Cristo, nova criação! As coisas velhas passaram, eis
que tudo se fez novo”.