DA INOCÊNCIA À CONSCIÊNCIA. O ESTUDO DOS CONTOS DE FADAS NA PERSPECTIVA DISCURSIVA.
Autora: Anita Fiori Krüger1
Orientadora: Profª Drª Maria Cleci Venturini2
RESUMO
A proposta desta pesquisa centra-se na leitura dos contos de fadas na perspectiva
discursiva e propõe-se a contribuir para o aprimoramento da competência linguística
e discursiva do aluno, utilizando-se dos pressupostos teóricos da Análise de
Discurso aplicada à leitura e interpretação de dois contos: “João e Maria” e
“Cinderela”, considerando a exterioridade/anterioridade e a discursividade. A escolha
dos contos de fadas, como objeto de estudo, deve-se ao fato dessas histórias
fazerem parte do imaginário dos sujeitos-alunos de todo e qualquer tempo. São
histórias que continuam a significar, entretanto, cabe à escola e aos professores
trabalhar de modo menos ingênuo essas questões, mostrando como a ideologia e o
inconsciente operam no discurso, produzindo efeitos de sentido. Pois, os contos de
fadas, apesar de fazerem parte de nossa cultura, muitas vezes, são significados de
modo simplista, sem se refletir em torno da submissão e das relações de classe.
Além disso, estas histórias encantam e isso é necessário e faz parte da leitura. O
encantamento seduz e nossos alunos precisam ser seduzidos pela leitura e pela
reflexão responsiva.
1 Possui graduação em Letras: Português/Literatura pela UNICENTRO – Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná (1992) e Especialização em Língua Portuguesa e Literatura, nível de Pós Graduação Lato Sensu pela UNOPAR – Universidade Norte do Paraná (1997). Atualmente é professora da Rede Pública do Estado do Paraná e encontra-se afastada para o PDE – Programa de Desenvolvimento Educacional.2 Possui graduação em Letras Língua Portuguesa e Literatura pela Universidade de Passo Fundo (1980), graduação em Licenciatura em Letras Língua Espanhola e Suas Literaturas pela Universidade de Passo Fundo (1998) e mestrado em Lingüística Aplicada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2001). Doutorado em Estudos Lingüísticos, pelo Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade Federal de Santa Maria (2008). Atualmente é professora da Universidade Estadual do Centro-Oeste.
Palavras-chaves: Leitura; contos de fada; interdiscursividade; simbólico.
ABSTRACT
The purpose of this research is centered on the reading of fairy tales in the
discoursive perspective and proposes for contribute to linguistic and discoursive
efficiency of the students, using the theoreticians presuppose of discourse analysis
applied to the reading and interpretation of two tales: "João e Maria" and "Cinderela",
considering the exteriority/anteriority and discursivity. The choice of fairy tales, as the
object of study was made by the fact these stories are part of the imaginary of
subject-students of any times. These stories continue to meaning, however, school
and teachers should practice reading in a less ingenuous way these questions,
revealing how the ideology and unconscious operate in the discourse producing
meaning. Although the fairy tales are part of our culture, they are meant to simplistic
manner on the submission and the relations classes. Moreover theses stories
fascinate and this is necessary and it is part of fascinate seduces and our students
need to be seduced by reading and responsive reflection.
Key-words: reading; tales fairy; interdiscoursivity; symbolic.
1 INTRODUÇÃO
Este artigo é resultado de um projeto desenvolvido para o PDE – Programa
de Desenvolvimento Educacional - da Secretaria de Estado da Educação do Paraná.
E sua implementação aconteceu no 6º ano F, da Escola Estadual Érico Veríssimo
que fica localizada na região central de Laranjeiras do Sul, e que atende alunos da
região central, da periferia e também do interior do município. Trata-se de alunos
que estão na faixa etária entre dez e treze anos e que possuem defasagem na
leitura, compreensão e interpretação de textos. Diante do exposto, neste trabalho,
nos propomos a contribuir para o aprimoramento da competência linguística e
discursiva do aluno, utilizando-se da Análise de Discurso aplicada na leitura de dois
contos de fadas: “João e Maria” e “Cinderela”, considerando a
exterioridade/anterioridade e a discursividade.
Consideramos inegável que uma das funções da escola seja a de ensinar a
ler e interpretar, isto é, oportunizar condições para que os alunos leiam e interpretem
e o façam de uma forma menos ingênua, indo além da materialidade linguística do
texto. Vemos a leitura como um dos pilares sobre os quais se pauta o trabalho com
a língua. Entretanto, esse trabalho como vem sendo realizado não atende à
crescente demanda da sociedade que cobra da escola e dos professores de
português a formação de leitores eficientes.
Ainda que pesquisadores e professores de todas as áreas reconheçam na
leitura um instrumento fundamental no processo de aprendizagem escolar, o que
geralmente ocorre é encontrarmos o aprendizado da leitura relacionado a situações
tediosas e pouco gratificantes, em que atividades de compreensão e interpretação
de texto acontecem de forma mecânica e artificial, valorizando mais os aspectos
estruturais da língua.
Não podemos, no entanto, responsabilizar apenas a escola por este trabalho
desarticulado, pois as desigualdades sociais e econômicas e a desestrutura familiar
também são determinantes, mas não há dúvida que um dos objetivos da escola seja
o de fazer com que a leitura esteja relacionada mais a um desejo que a uma
obrigação e que ela favoreça a prática social e discursiva, englobando sujeitos em
funcionamento social por meio da língua na história, nos termos de Pêcheux (1997).
É preciso mostrar aos alunos que a leitura tem uma dimensão social e histórica,
além de pessoal, lúdica e prazerosa. Ela é um processo que considera não só a
língua, mas também a exterioridade/anterioridade (pré-construídos), a ideologia e o
inconsciente, instaurando a discursividade. Em resumo, na leitura a língua funciona
na história.
A escolha dos contos de fadas como objeto de estudo, nesta pesquisa,
ocorreu por tratar-se de histórias que sempre estiveram presentes no imaginário
humano e, por séculos, sobrevivem, provocando as mais variadas sensações em
adultos e crianças. São narrativas que ultrapassaram as barreiras do tempo e
tornaram-se universais. Para quase todos nós, estas histórias são a primeira
experiência com a ficção, quase sempre contada por algum parente (pai, mãe, avó)
de forma acalorada à beira da cama.
Os contos de fadas estão enraizados em nossa cultura. Porém, para muitos,
eles se definem, equivocadamente, como histórias simplistas, pois na verdade são
obras de arte. Estas narrativas carregam em sua essência diversos significados,
memórias e atravessamentos ideológicos e pelo simbólico representam discursos
inconscientes e imaginários sociais. São apelos feitos ao mesmo tempo ao
consciente e ao inconsciente, pois no conteúdo dos contos de fadas, os fenômenos
psicológicos íntimos são corporificados de forma simbólica. Segundo Bettelheim:
Os contos de fadas são ímpares, não só como uma forma de literatura, mas como obras de arte integralmente compreensíveis pela criança como nenhuma outra forma de arte o é. Como sucede com toda grande arte, o significado mais profundo do conto de fadas será diferente para cada pessoa, e diferente para a mesma pessoa em vários momentos de sua vida. A criança extrairá significados diferentes do mesmo conto de fadas, dependendo de seus interesses e necessidades do momento. Tendo oportunidade voltará ao mesmo conto quando estiver pronta a ampliar os velhos significados ou substituí-los por novos. (BETTELHEIM, 2007, p.20-21).
Assim, um mesmo conto de fada pode ter um significado importante tanto
para uma criança de cinco anos como para uma de treze, embora os significados
pessoais que dele extraiam possam ser bem diferentes. Isto porque “o mesmo leitor
não lê o mesmo texto da mesma maneira em diferentes momentos e em condições
distintas de produção de leitura, e o mesmo texto é lido de maneiras diferentes em
diferentes épocas, por diferentes leitores.” (ORLANDI, 2008b, p.62).
Na perspectiva discursiva, os contos de fadas são estudados como discursos
fundadores, os quais retornam como memória em outros discursos. Exemplo disso,
é a sua própria estrutura, pois quando se lê ou diz ‘era uma vez’ ressoa no fio do
discurso os sentidos relacionados a reis e rainhas, aos contos.
Desta forma, acreditamos que partindo de textos que sejam do universo do
aluno ou com os quais ele já tenha alguma familiaridade, o trabalho com leitura e
interpretação se torne mais interessante e produtivo e resulte, de fato, no
aprimoramento da competência linguística e discursiva deste aluno. Pois, é
unanimidade entre os professores a constatação que muitos alunos avançam na
escolaridade sem ter assimilado o mecanismo da leitura. Por este motivo, as aulas
de leitura tornam-se um verdadeiro suplício, leitura emperrada, sem fluência,
entonação ou ritmo. E ao final do texto observa-se que não compreenderam o que
leram. Sem falar na falta de interesse e no descaso com que tratam essas aulas.
As avaliações educacionais, dentre elas, a Prova Brasil e Enem, também nos
revelam o baixo desempenho do aluno em relação à compreensão dos textos que lê.
Mesmo vivendo numa época denominada “era da informação”, que possibilita
acesso rápido à leitura de qualquer assunto, ainda assim, convivemos com o índice
crescente de analfabetismo funcional. Por isso, torna-se necessário o trabalho com a
leitura de uma forma mais significativa para que o aluno tenha a oportunidade de
aprimoramento, não só da sua competência linguística, mas também da sua
competência discursiva, de forma a garantir a sua inserção ativa e crítica na
sociedade, conforme explicita as Diretrizes Curriculares para a Educação Básica:
[...] o ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa visa aprimorar os conhecimentos linguísticos e discursivos dos alunos, para que eles possam compreender os discursos que os cercam e terem condições de interagir com esses discursos. Para isso, é relevante que a língua seja percebida como uma arena em que diversas vozes sociais se defrontam, manifestando diferentes opiniões. (DCE - LÍNGUA PORTUGUESA, 2008, p. 50).
Segundo Orlandi (2009, p. 26), a leitura ocorre em três níveis. O primeiro é o
inteligível, que se refere ao texto propriamente dito, basta conhecer o código
linguístico para que o texto seja inteligível. O segundo é o interpretável, aquele em
que o sentido está no co-texto (as outras frases do texto) e no contexto imediato. E o
terceiro é o compreensível, aquele que considera o contexto sócio-histórico (aquilo
que está fora do texto), considera outros sentidos que ali estão, os não-ditos no dito,
o que poderia ser dito e não foi. Compreender é saber como um objeto simbólico
produz sentidos.
Nesta perspectiva, definimos o leitor competente como alguém que
entende/interpreta/compreende o que lê e por esse processo considera também os
não-ditos, os silêncios, enfim os pré-construídos que sinalizam para discursos
outros, que retornam pelo trabalho da memória. Diante desta definição, algumas
questões nos intrigam: como proceder para que os alunos se tornem leitores
competentes? Quais procedimentos utilizar, considerando não somente os
conteúdos, mas como os sentidos se constituem? O que fazer para que os alunos
percebam os discursos que retornam em cada texto e contribuem para a atualização
dos sentidos?
Para responder a estes questionamentos, estabelecemos como objetivo geral:
“tomar o texto como objeto simbólico que encaminha para discursos, instaurando
relações entre as filiações históricas organizadas em memórias e as relações sociais
em redes significantes a partir dos contos de fadas”. Os objetivos específicos:
realizar a leitura polissêmica dos contos selecionados; buscar a interdiscursividade
nos contos elencados, descobrindo no intradiscurso a presença de não-ditos e de
memórias, enquanto pré-construídos; ajudar o aluno a compreender que todo texto
resulta de uma infinidade de outros textos e que o mesmo se constrói a partir das
condições de produção; parafrasear o conto “João e Maria”, contextualizando-o e
atualizando-o em situações similares percebidas nos dias de hoje; procurando
refletir acerca da paráfrase como repetição do mesmo ou como rompimento de
sentidos, que instaura a polissemia, a possibilidade de outros sentidos; contribuir
para o aprimoramento da competência linguística e discursiva do aluno, refletindo
acerca das condições de produção em relação à interpretação/compreensão.
2 DESENVOLVIMENTO
2.1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
A Análise de Discurso de vertente francesa serviu de embasamento teórico
para a fundamentação deste trabalho. A Análise de Discurso surgiu na década de 60
na França, tendo o discurso como objeto de estudo. Um dos precursores desse
campo disciplinar foi Michel Pêcheux, que ao propor estudar o discurso buscava ver
a língua não apenas como transmissão de informações ou o simples ato da fala,
mas a língua numa visão discursiva que busca a exterioridade da linguagem como a
ideologia e o fator social.
De acordo com Orlandi (2009), a Análise de Discurso é uma disciplina de
entremeio, sendo herdeira de três regiões do conhecimento: a Psicanálise, a
Linguística e o Marxismo, porém, não se submete a nenhuma delas, pois se situa
nas margens desses três campos de conhecimento.
Trabalha a noção de discurso que não se reduz ao objeto da Linguística, nem se deixa absorver pela Teoria Marxista e tampouco corresponde ao que teoriza a Psicanálise. Interroga a Linguística pela historicidade que ela deixa de lado, questiona o Materialismo perguntando pelo simbólico e se demarca da Psicanálise pelo modo como considerando a historicidade, trabalha a ideologia como materialmente relacionada ao inconsciente sem ser absorvida por ele. (ORLANDI, 2009, p. 20)
Segundo Pêcheux (1997), para a Análise de Discurso o sujeito tem a ilusão
de ser livre, de ser dono do seu dizer, mas na verdade ele é interpelado pela
ideologia e atravessado pelo inconsciente e a língua funciona em relação à
ideologia, ao inconsciente e à história. Desse modo, o sujeito se constitui na e pela
linguagem via interpelação ideológica e é, portanto, um sujeito assujeitado.
Assim, o discurso é o meio pelo qual o verbal se concretiza, ou seja, “o
discurso é a palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso
observa-se o homem falando”, conforme explicita Orlandi (2009, p.15). Os discursos
se movem em direção a outros discursos. Nunca estão sós, sempre estão
atravessados por outros discursos que o antecederam e que mantêm com ele um
duelo, ora legítimo, ora de confronto, pois quando um discurso é proferido, ele já
nasce filiado a uma teia tecida por outros discursos com semelhantes escolhas e
exclusões.
Segundo Venturini (2009), todo discurso é resultante de um processo
discursivo anterior, em que as instituições determinam o que pode ser visibilizado ou
apagado. Faz-se necessário pensar nos efeitos de sentido, que segundo Orlandi,
“são produzidos em condições de produção determinadas e estão, de alguma forma,
presentes no modo como se diz, deixando vestígios que o analista de discurso tem
de apreender”, (ORLANDI, 2002a, p. 30, apud VENTURINI, 2009, p. 120) como
parte do que não está dito ali, mas constitui o dizer pelo que está dito em outro lugar
em outro tempo.
Ainda conforme Venturini (2009), o real, o simbólico e o imaginário são três
registros distintos e fundamentais da realidade humana. O real é o impossível de ser
dito, de ser representado, só ocorre pela ilusão do sujeito de poder dizer tudo. Na
perspectiva discursiva, torna-se fundamental uma concepção de língua afetada pelo
real, pois isso permite reconhecer o equívoco como constitutivo da linguagem e
implicado pelo simbólico. A realidade diz respeito à montagem do simbólico e do
imaginário como um efeito de realidade. O real é aquilo que escapa a esta realidade,
que não pode ser mostrado nem manifesto no eixo do discurso, é uma fantasia
inconsciente, aquilo que o sujeito simula para si mesmo e para os outros como
sendo da ordem do real.
Na pesquisa em questão, os contos “João e Maria” e “Cinderela” foram a
materialidade linguística, por meio da qual analisamos as formações discursivas que
comparecem produzindo efeitos de sentidos, bem como, as condições de produção
(contexto sócio-histórico e cultural). Uma vez que é a formação discursiva que
determina o que pode ou deve ser dito e o que não pode ou não deve ser dito, é ela
que determina o posicionamento ideológico de um discurso. Já as condições de
produção estabelecem relações de força no interior do discurso e mantêm com a
linguagem uma relação necessária, constituindo com ela o sentido do texto. O
discurso muda de sentido segundo as posições daqueles que o empregam. Na
perspectiva discursiva, lê-se a partir de um lugar social e, é a partir disso que se
constroem os sentidos.
Os contos de fadas, assim como outras modalidades discursivas, constituem-
se através de ideologias decorrentes de um contexto sócio-histórico e cultural e
através de filiações em formações discursivas. Tal constituição não é
necessariamente proposital, pois involuntariamente colocamos em nossos textos
aquilo que faz parte de nossa história. Durante a constituição de um discurso, a
história do autor acaba definindo, mesmo que involuntariamente, seu modo de
construir o enunciado e também de dar visibilidade a determinados acontecimentos,
apagando outros, tendo em vista que ao falar/escrever ele se significa e é
significado, enquanto sujeito.
Segundo Orlandi (2009), a Análise de Discurso visa compreender como os
objetos simbólicos produzem sentidos, analisando assim os gestos de interpretação
que ela considera como atos no domínio do simbólico, pois eles intervêm no real do
sentido. A Análise de Discurso não estaciona na interpretação, trabalha seus limites,
seus mecanismos, como parte dos processos de significação. Também não procura
um sentido verdadeiro, literal. Não há uma verdade oculta atrás do texto. Há gestos
de interpretação que o constituem e que o analista deve ser capaz de compreender.
Produzindo, assim, novas práticas de leitura.
Por isso, se diz que nenhum discurso é autônomo e nem transparente, nele
ressoam outros discursos e memórias: trata-se da interdiscursividade, da
transdisciplinaridade, em que vários domínios do conhecimento contribuem para que
determinados efeitos de sentidos sejam instaurados, fazendo ressoar discursos de
longa ou de curta duração.
Deste modo, o texto constitui-se na relação do interdiscurso e do
intradiscurso. Conforme Orlandi (2009), a memória deve ser tratada como
interdiscurso, como o conjunto de dizeres já ditos e esquecidos que determinam o
que dizemos. Para que nossas palavras façam sentido é preciso que já tenham
sentido. Assim, o interdiscurso é definido como a memória que se estrutura pelo
esquecimento.
A memória, por sua vez, tem suas características, quando pensada em relação ao discurso. E, nessa perspectiva, ela é tratada como interdiscurso. Este é definido como aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente. Ou seja, é o que chamamos memória discursiva: o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra. (ORLANDI, 2009, p.31).
O intradiscurso, por sua vez, é aquilo que dizemos naquele momento dado e
em condições dadas, ou seja, é a formulação de um discurso a partir da realidade
presente. Pensando o discurso como uma teia a ser tecida, o intradiscurso é o “fio
do discurso”. Nele ressoam os efeitos do interdiscurso sobre si mesmo, dando a
ilusão de evidência dos sentidos.
Para Orlandi (2007), todo sujeito, ao dizer, produz um gesto de interpretação
que é a inscrição de seu dizer no interdiscurso para que ele faça sentido. Aí trabalha
um efeito ideológico elementar que está no fato de que todo discurso se liga a outro
discurso, por sua ausência necessária e de que o indivíduo é interpelado em sujeito
pela ideologia. Na Análise de Discurso, a leitura é vista como um ato de se colocar
um discurso em relação com outros discursos anteriores a ele, emaranhados nele e
posteriores a ele, como possibilidades infinitas de recriação, gerando novos
discursos.
A interpretação, por sua vez, está presente em toda e qualquer manifestação
da linguagem. Devemos pensar, ainda, nos diferentes gestos de interpretação, uma
vez que as diferentes linguagens, ou as diferentes formas de linguagem, com suas
diferentes materialidades, significam de modos distintos.
Segundo Pêcheux (2002), todo enunciado é intrinsecamente suscetível de
tornar-se outro, diferente de si mesmo, deslocar-se discursivamente de seu sentido
para derivar para outro. Todo enunciado, toda sequência de enunciados é, pois,
linguisticamente descritível como uma série de pontos de deriva possíveis,
oferecendo lugar à interpretação.
Para Orlandi (2009), os sentidos sempre são determinados ideologicamente.
Não há sentido que não o seja. Tudo que dizemos tem, pois, um traço ideológico em
relação a outros traços ideológicos. E isto não está na essência das palavras, mas
na discursividade, isto é, na maneira como, no discurso, a ideologia produz seus
efeitos, materializando-se nele. O estudo do discurso explicita a maneira como
linguagem e ideologia articulam-se em sua relação recíproca. Todo discurso se
delineia na relação com outros dizeres presentes e dizeres que se alojam na
memória.
Assim, a interpretação ocorre entre a memória institucional (arquivo) e os
efeitos da memória (interdiscurso). Se no âmbito da primeira a repetição congela, no
da segunda a repetição é a possibilidade mesma do sentido vir a ser outro, em que
presença e ausência se trabalham, paráfrase e polissemia se delimitam no
movimento da contradição entre o mesmo e o diferente. O dizer só faz sentido se a
formulação se inscrever na ordem do repetível, no domínio do interdiscurso. Ainda
segundo Orlandi:
[...] na perspectiva da Análise de Discurso, há um saber discursivo, uma memória que não se apreende, filiações de sentidos a que, enquanto seres simbólicos, estamos sujeitos e sobre as quais não temos controle, em termos de “transmissão” de sentidos. No entanto, em termos teóricos e analíticos, temos como entrar no discurso, pela sua textualização, estabelecendo uma relação com o funcionamento
discursivo, com os processos de constituição de sentidos ali inscritos e aprender assim os gestos de interpretação que os constituem, podendo aí vislumbrar a possibilidade de outras leituras. (ORLANDI, 2008b, p.69).
Por isso, em Análise de Discurso se diz que “ler é saber que o sentido sempre
pode ser outro" (ORLANDI, 2008a, p. 12). E isso nos mostra como a leitura é um
processo complexo e que envolve habilidades que vão muito além da mera
decodificação de símbolos ou do estudo dos elementos estruturais da língua. “Saber
ler é saber o que texto diz e o que ele não diz, mas que também o constitui
significativamente”. (ORLANDI, 2008a, p.10).
[...] não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia. Há, entre os diferentes modos de produção social, um modo específico que é o simbólico. Há pois, práticas simbólicas significando (produzindo) o social. A materialidade do simbólico assim concebido é o discurso. O discurso, definido em sua materialidade simbólica é “efeito de sentidos entre locutores”, trazendo em si as marcas da articulação da língua com a história para significar. (ORLANDI, 2008b, p.63).
Para Orlandi (2008b p. 63), quando se diz que o discurso é efeito de sentidos
entre locutores, pensa-se no efeito produzido pela inscrição da língua na história,
regida pelo mecanismo ideológico. Em decorrência, pensa-se a interpretação, pois
a interpretação torna visível a relação da língua com a história, o funcionamento da
ideologia. Não há sentido sem interpretação, por isso, haverá sempre uma
interpretação para dar visibilidade ao sentido que o sujeito pretendeu transmitir em
seu discurso.
Assim, percebendo no texto a contrapartida do discurso – efeito de sentidos
entre locutores – o texto não mais será uma unidade fechada nela mesma. Ele vai-
se abrir, enquanto objeto simbólico, para as diferentes possibilidades de leituras que
mostram o processo de textualização do discurso que sempre se faz com falhas,
com defeitos. As palavras não dizem tudo, elas são sujeitas a outras interpretações.
Por isso, fazemos reparos em nosso dizer, procurando fixar um sentido que nos
escapa.
Isto mostra a relação da língua com a história, que não é perfeitamente
articulada, resultando de um jogo da língua sobre a própria língua, face a sua
inscrição na história. É por isto que dizemos que o equívoco é constitutivo da
discursividade, ou seja, o equívoco é a inscrição da falha da língua na história. A
presença do equívoco e da contradição permite dizer que os sentidos não se
fecham, não são evidentes, embora pareçam ser.
De acordo com Pêcheux (2002, p. 54), esta questão das disciplinas de
interpretação ancora-se na existência de uma relação abrindo a possibilidade de
interpretar. E é porque há essa ligação que as filiações históricas podem se
organizar em memórias, e as relações sociais em redes significantes. De onde o fato
de “as coisas-a-saber” serem sempre tomadas em redes de memória dando lugar a
filiações identificadoras e não a aprendizagens por interação: a transferência não é
uma “interação”, e as filiações históricas nas quais se inscrevem os indivíduos não
são “máquinas de aprender”.
Com intuito de contribuir para o aprimoramento linguístico e discursivo dos
alunos, esta pesquisa pretendeu abordar estas reflexões e apontar caminhos que
favoreçam este aprimoramento, porque não basta que os alunos estejam em contato
com textos, pois se o trabalho com a leitura for realizado de modo superficial,
analisando apenas os elementos estruturais da língua, os resultados não produzirão
os efeitos esperados. Para que a leitura torne-se significativa, é preciso que o
professor encaminhe as aulas de leitura por meio de um suporte teórico consistente
que dê a oportunidade do aluno aprofundar-se na leitura, percebendo como o texto
produz sentido, colocando o dito em relação ao não dito. É preciso conduzi-lo para
além da superfície linguística do texto.
Segundo Orlandi (2008b), o princípio dessas práticas de leitura consistiria em
considerar a relação do que é dito em um discurso e o que é dito em outro, o que é
dito de um modo e o que é dito de outro, procurando “escutar” a presença do não
dito no que é dito: presença produzida por uma ausência necessária. Com esta
“escuta” o analista poderá ouvir, naquilo que o sujeito diz, aquilo que ele não diz,
mas que constitui igualmente os sentidos de “suas” palavras. Esta “escuta”, portanto,
vai além das evidências e comporta a opacidade da linguagem.
Os gestos de interpretação, portanto, são considerados como atos do
simbólico, isto é, não há linguagem sem interpretação e não há linguagem sem
ideologia. Podemos concluir que a leitura atesta os modos da materialização do
político.
Ler é fazer um gesto de interpretação configurando esse gesto na política da significação. Leituras diferentes não são gratuitas nem brotam naturalmente. Elas atestam modos de subjetivação distintos dos sujeitos pela sua relação com a materialidade da linguagem, ou melhor, com o corpo do texto, que guarda em si os vestígios da simbolização de relações de poder, na passagem do discurso a texto, em seus espaços abertos de significação. (ORLANDI, 2008b, p. 68).
Assim, o texto é o lugar do jogo dos sentidos, de trabalho da linguagem, de
funcionamento da discursividade. É tarefa do analista, portanto, compreender tanto
como os sentidos estão nele, quanto como ele pode ser lido. Isso mostra que o
analista não deve tomar o texto como o ponto de partida e nem como ponto de
chegada. Com os resultados da análise não é sobre o texto que fala o analista, mas
sobre o discurso. Uma vez atingido o processo discursivo que é o que faz o texto
significar, o texto ou os textos particulares analisados desaparecem como
referências específicas para dar lugar à compreensão de todo um processo
discursivo do qual eles – e outros que nem mesmo conhecemos – são parte. Isto
indica, também, a abertura do simbólico e a incompletude da linguagem.
Nesta vertente teórica, encaminhamos o trabalho com a leitura e a
interpretação dos contos “João e Maria” e “Cinderela”, na versão escrita pelos
irmãos Grimm. Jacob (1785-1863) e Wilhelm (1786-1859). Os irmãos Grimm foram
importantes filósofos alemães que registraram grande parte das histórias da tradição
oral de seu país. Mesmo vivendo num período de grande turbulência econômica, os
Grimm buscavam a identidade de seu povo, numa tentativa de tornar legítima a
cultura nacional escreveram livros compilando histórias da tradição oral, cujas
origens não se pode precisar, mas sabe-se que são antiquíssimas e que, não eram
destinadas ao público infantil, pois até o século XVII não havia distinção entre
crianças e adultos. Tais histórias logo caíram nas graças dos educadores.
Justamente num período em que se começava a descobrir o universo infantil.
Hoje, os contos de fadas são histórias que fazem parte do repertório de quase
todas as crianças na faixa etária escolar. Conforme Bettelheim (2007, p.16) é
característico dos contos de fadas enfocarem um dilema existencial de maneira
breve e incisiva. Isso permite à criança apreender o problema em sua forma mais
essencial, enquanto que uma trama mais complexa confundiria as coisas para ela. O
conto de fadas simplifica todas as situações. As personagens são esboçadas
claramente e todas são típicas em lugar de únicas.
Ao contrário do que acontece nas histórias infantis modernas, nos contos de
fadas, o mal é tão onipresente quanto a virtude. Em praticamente todo conto de
fada, o bem e o mal são corporificados sob a forma de algumas personagens e de
suas ações, uma vez que o bem e o mal são onipresentes na vida e as propensões
para ambos estão presentes no homem. É essa dualidade que coloca o problema
moral e requer a luta para resolvê-lo.
Os contos de fadas, diferentemente de qualquer outra forma de literatura, direcionam a criança para a descoberta de sua identidade e vocação, e também sugerem as experiências que são necessárias para desenvolver ainda mais o seu caráter. Os contos de fadas dão a entender que uma vida compensadora e boa está ao alcance da pessoa apesar da adversidade – mas apenas se ela não se intimidar com as lutas arriscadas sem as quais nunca se adquire a verdadeira identidade. Essas histórias garantem que, se uma criança ousar se engajar nessa busca atemorizante e onerosa, poderes benevolentes virão em seu auxílio e ela será bem-sucedida. As histórias também advertem que aqueles que são temerosos e tacanhos a ponto de não se arriscarem à autodescoberta devem se contentar com uma existência enfadonha – se um destino ainda pior não recair sobre eles. (BETTELHEIM, 2007, p. 34).
Ainda de acordo com Bettelheim (2007), os contos de fadas oferecem
personagens nas quais a criança pode exteriorizar aquilo que se passa em sua
mente. Também mostram à criança de que modo ela pode corporificar seus desejos
destrutivos numa personagem, obter satisfações de outra, identificar-se com uma
terceira, ter ligações ideais com uma quarta, segundo requeiram as suas
necessidades do momento. A criança reconhece o herói e se identifica com ele, pois
nada é mais verdadeiro para ela do que aquilo que deseja.
Para Venturini (2009), o sujeito desejante constitui-se pelo efeito de
espelhamento, procedimento em que os sujeitos da formação social se veem na
imagem do sujeito tomado como ideal de eu. Assim, através dos contos de fadas, a
criança ou adolescente pode exteriorizar seu desejo de ser como determinada
personagem e obter o consolo de que um dia será resgatado de sua posição inferior,
assim como ocorreu com a personagem.
O procedimento que o desencadeia é a identificação com o sujeito-objeto do desejo que se constitui na ordem do imaginário. Essa necessidade de identificação ocorre quando o objeto do desejo é visto ou é detentor de qualidades que satisfazem às demandas dos sujeitos tomados pela pulsão e pelo desejo. (VENTUTINI, 2009, p. 125).
Dessa forma, o discurso dos contos de fadas faz sentido para as crianças e
adolescentes pelo interdiscurso que contém todos os saberes e possibilita que eles
possam falar de si mesmos e de suas experiências e, por isso, assume grande
importância, pois permite a exteriorização de sentimentos, conflitos e fantasias
através da linguagem. Os sentidos deslizam e permitem que os contos de fadas
tornem-se relatos de experiências pessoais, pois nos contos de fadas aprendemos
sobre os problemas interiores dos seres humanos (presentes em quaisquer
sociedades e em todos os tempos) e sobre as possíveis soluções para os mesmos.
Porém, os contos de fadas não descrevem o mundo tal como é. Pois, não se
referem ao mundo exterior, embora, às vezes, possam começar de forma realista e
ter traços do cotidiano inscritos nele. Também não dão conselhos sobre o que
alguém deva fazer. Os contos de fadas são, essencialmente, terapêuticos porque a
criança ou adolescente encontra suas próprias soluções, por meio da contemplação
daquilo que a história parece sugerir acerca de si e de seus conflitos.
Para Bettelheim (2007), o conto de fada não vê objetivamente o mundo e o
que ocorre nele, mas sim sob a perspectiva do herói, que é sempre uma pessoa em
desenvolvimento, ou seja, a própria personagem. Uma vez que o leitor/ouvinte se
identifica com a personagem e vê todos os acontecimentos pelos olhos dela.
Os contos de fadas geralmente começam quando a vida da criança de certo
modo chegou a um impasse. Em “João e Maria”, a presença dos filhos cria
privações para os pais e, por causa disso, a vida se torna problemática para eles.
Em “Cinderela” é o sentimento de rejeição e o ciúme de suas irmãs que faz com ela
seja rebaixada e degradada; seus interesses são sacrificados em favor delas pela
mãe (madrasta), só lhe são feitas exigências sem nenhuma regalia.
Em “João e Maria”, é enfatizado o empenho da criança em agarrar-se aos
pais, mesmo tendo chegado a hora de enfrentar o mundo por conta própria, bem
como, a necessidade de transcender uma oralidade primitiva, simbolizada pela
fascinação infantil com a casa de doces. A história começa realisticamente. Os pais
são pobres e se preocupam com a capacidade de cuidar dos filhos. À noite,
discutem sua situação difícil e o que poderão fazer a respeito. Mesmo considerado
neste nível superficial, o conto de fada popular transmite uma verdade importante,
embora desagradável, a de que a pobreza e a privação não aperfeiçoam o caráter
do homem, antes o tornam mais egoísta, menos sensível aos sofrimentos dos outros
e, sendo assim, inclinado a praticar más ações.
No entanto, a angústia da separação, o medo de ser abandonado, o medo de
passar fome, incluindo a voracidade oral não estão restritos a um período particular
de desenvolvimento. Tais medos ocorrem em todas as idades no inconsciente (ego)
e, assim, este conto também tem significado para os adolescentes. Na verdade, o
adolescente pode achar bem mais difícil admitir conscientemente seu medo de ser
abandonado pelos pais ou de enfrentar sua voracidade oral. O uso de nomes bem
comuns faz deles termos genéricos, valendo para qualquer menino ou menina.
“Cinderela” é um dos contos de fadas mais conhecidos, e provavelmente
também um dos mais apreciados. Em “Cinderela” é vivenciada uma história a
respeito das agonias e esperanças que permeiam a rivalidade fraterna, bem como a
vitória da heroína degradada sobre as irmãs que a maltratam. “Cinderela” é um
conto de fada que exerce um fascínio quase tão forte para meninos quanto para
meninas, pois as crianças de ambos os sexos sofrem igualmente com a rivalidade
fraterna e têm o mesmo desejo de serem resgatados de sua posição inferior e de
sobrepujar aqueles que lhes parecem superiores.
Bettelheim (2007, p. 90) afirma que a criança acostumada a ler/ouvir contos
de fadas percebe que estes lhes falam na linguagem dos símbolos e não na
linguagem do cotidiano. Os contos de fadas nos transmitem desde o início, ao longo
da trama e no final que aquilo que está sendo narrado não é real. “Era uma vez”, “Há
muitos anos atrás”, “Num certo país” – esses começos sugerem que o que se segue
não pertence ao aqui e agora que conhecemos. Essa indefinição nos começos dos
contos simboliza que estamos deixando o mundo concreto da realidade comum. Por
outro lado, “velhos castelos”, “quartos trancados”, “florestas impenetráveis”, sugere
que alguma coisa que costuma estar muito escondida será revelada.
Nos dois contos, a figura da mãe é representada pela madrasta que, pela
interpretação de Bettelheim, pode ser a mesma pessoa, pois quando a mãe deixa de
ser a provedora de alimento e aconchego e passa a exigir da criança, ela torna-se
então a cruel madrasta a ponto de negar à criança algo que ela deseja. Assim, a
fantasia da madrasta má preserva a imagem da mãe boa, também ajuda a criança a
não se sentir arrasada ao perceber a mãe como má.
A figura do pai, nos dois contos, é representada como uma pessoa fraca,
passiva e de pouca utilidade. O aparecimento frequente de tais personagens nos
contos de fadas sugere que maridos dominados pelas esposas são comuns. São
pais que ou criam dificuldades insuperáveis para a criança ou não conseguem
ajudá-la a resolvê-los.
Em “João e Maria”, ser abandonados na floresta sugere simbolicamente ter
de tornar-se independente e, isto requer que se deixe a proteção do lar, uma
experiência dolorosa, repleta de perigos psicológicos, mas é um processo de
desenvolvimento inevitável; no qual, a dor é simbolizada pela infelicidade e
sofrimento das crianças ao serem forçadas a deixar o lar. Os riscos psicológicos são
representados pelos perigos com que os heróis se deparam em suas andanças.
Nesse conto, João está preso sob constante ameaça e Maria, porém, revela-se
como a salvadora e também representa o cuidado materno.
Os contos de fadas não deixam dúvidas na mente da criança de que devemos
suportar as adversidades da vida para se adquirir identidade própria e, apesar de
todas as angústias, não há dúvidas quanto ao final feliz. O herói vence todas as
provações e, apesar delas, permanece fiel a si próprio ou, ao passar por elas com
sucesso, alcançou sua verdadeira identidade e, de agora em diante “viverá feliz para
sempre” em seu reino, onde será governante de sua própria vida.
O conto de fadas oferece esperança à criança de que algum dia o reino será dela. Como ela não pode fazer por menos, mas não acredita poder obter esse reino por conta própria, o conto de fadas lhe diz que forças mágicas virão em seu auxílio. Isso reacende a esperança, que, sem tal fantasia, seria extinta pela dura realidade. Uma vez que o conto de fadas promete o tipo de triunfo que a criança almeja, ele é mais convincente psicologicamente do que
qualquer conto “realista” é capaz de ser. E, como garante que o reino será dela, a criança está pronta a acreditar no mais que a história de fadas ensina: que devemos deixar o lar para encontrar nosso reino; que ele não pode ser obtido imediatamente; que devemos assumir riscos e nos submeter a provações; que não podemos fazer tudo sozinhos e que necessitamos de outros que ajudem; e que, para garantir a sua ajuda, devemos satisfazer algumas de suas exigências. Justamente porque a promessa derradeira coincide com os desejos de vingança e de uma existência gloriosa por parte da criança, o conto de fadas enriquece a sua fantasia pra além de qualquer comparação. (BETTELHEIM, 2007, p. 188).
No final dos contos de fadas o herói é recompensado e a pessoa má encontra
a merecida sorte, satisfazendo assim a necessidade profunda da criança de que
prevaleça a justiça. Para a criança parece muito apropriado que o malfeitor padeça
da mesma sina que desejou infligir ao herói – como a bruxa em “João e Maria”, que
desejou cozinhar as crianças no forno e que é empurrada para dentro dele e
queimada até morrer. Pois, para que a ordem correta do mundo seja restabelecida é
necessário o castigo do malfeitor e com isso, eliminar a maldade do mundo, o que
não impedirá o herói de viver feliz para sempre.
Bettelheim enfatiza que a narração dos contos de fadas não deve ser feita
com intenções didáticas, pois um conto de fada é acima de tudo uma obra de arte.
“Isso implica que qualquer tentativa deliberada de oferecer algo específico a uma
pessoa em particular não pode ser o propósito de uma obra de arte”. (BETTELHEIM,
2007. P. 217).
Outra recomendação importante de Bettelheim é nunca “explicar” à criança os
significados dos contos de fadas, mas é importante que o narrador/leitor
compreenda os vários níveis de significado do conto, pois isso facilita à criança
extrair pistas da história para o melhor entendimento de si própria. Os contos de
fadas descrevem estados mentais interiores por meio de imagens e ações. Do
mesmo modo que uma criança reconhece a infelicidade quando uma pessoa está
chorando, também o conto não precisa se estender sobre a infelicidade de uma
pessoa. Quando a mãe de “Cinderela” morre, não nos é dito que “Cinderela” sofreu
por ela ou lamentou a perda e se sentiu sozinha, abandonada, desesperada, mas
simplesmente que “todos os dias ela ia ao túmulo da mãe e chorava”.
2.2 IMPLEMENTAÇÃO
O projeto de intervenção pedagógica foi levado ao conhecimento da direção,
da equipe pedagógica e dos demais professores da escola na semana pedagógica,
que ocorreu no mês de julho de 2011, para que pudéssemos discutir e elaborar as
estratégias para a sua efetivação, levando-se em consideração espaço físico e
materiais necessários.
Nesta etapa do trabalho, aplicamos as teorias estudadas e os
encaminhamentos elaborados durante a construção do projeto e do material
didático, utilizamos quatro aulas semanais da disciplina de Língua Portuguesa,
perfazendo um total de vinte aulas. As atividades avaliativas ocorreram ao final de
cada atividade, pela participação e relatos, orais e escritos, realizados pelos alunos.
Para a aplicação do processo de Análise de Discurso na leitura e
interpretação dos contos de fadas escolhidos, foi elaborada uma Unidade Didática,
onde foram descritos os encaminhamentos que orientaram a sua efetivação. O
primeiro passo foi o levantamento de discursos e de contextos sócio-históricos dos
alunos a respeito dos contos de fadas. A seguir levamos ao conhecimento dos
alunos informações acerca do gênero discursivo: contos de fadas, como surgiu e
quais são os principais autores, ou seja, foram levantadas as condições de
produção.
Depois foram feitas as leituras dos contos de fadas elencados, bem como a
interpretação oral e escrita. Foi o momento do trabalho com as paráfrases,
polissemias, metáforas e a relação dizer/não dizer. Nesta etapa, ocorreu a
contextualização e a atualização dos sentidos dos contos, trazendo para situações
reais do dia-a-dia. Proporcionamos, também, a leitura das versões cinematográficas
dos dois contos.
Na etapa seguinte, foram construídas novas versões para os contos, dizendo
de outra forma o que foi dito, isto para demonstrar que, ao contrário do que parece,
o dizer pode sim ser dito de outro modo, sem alterar sua definição semântica, mas
podendo alterar a forma como significa dentro do discurso, possibilitando que o
aluno fale de si mesmo, de seus desejos e fantasias, mesmo de maneira disfarçada.
Considera-se, ancorando-se em Orlandi (2009), que o dizer não é indiferente aos
sentidos, assim, a re-escritura do texto vai convocar e fazer ressoar outros
discursos, já ditos e esquecidos – os pré-construídos.
Com este trabalho, tornar-se possível identificar as inscrições dos sujeitos do
discurso em formações discursivas que estejam agindo sobre ele, e assim buscar os
processos discursivos, pelos quais a ideologia constitui no texto efeitos de evidência
e saturação do discurso. Para, enfim, identificar os efeitos de sentidos e os
processos instauradores desses sentidos, bem como retomar os discursos e
sentidos já significados antes em outro lugar. Com isso, sinalizamos que o sentido
sempre pode ser outro e que o texto não é fechado, mas encaminha para a
heterogeneidade.
2.3 ANÁLISE DOS RESULTADOS
Em todas as fases da implementação os alunos foram receptivos às
atividades que estavam sendo propostas. As atividades desenvolvidas certamente
contribuíram de alguma forma para o crescimento linguístico e discursivo destes
alunos e, também, na maneira em como irão ler e compreender textos.
A maior dificuldade percebida em todas as fases da implementação foi devido
à falta de fluência na leitura. A dificuldade na decodificação das palavras, a falta de
entonação adequada, pela não observância dos sinais de pontuação, são fatores
que contribuiram para a compreensão inadequada do texto ou não compreensão.
Muitas vezes, sendo necessária a interferência da professora.
Dificuldades, estas, que serão superadas intensificam-se as atividades de
leitura. Acredito que a leitura não seja um processo mecânico, que não seja apenas
decodificar, mas, acredito também, que saber decodificar é um fator que corrobora
para se chegar à competência linguística e discursiva. Isto, também, evidencia que
os sujeitos-alunos não estão acostumados a considerar a exterioridade, o que fica
fora do texto, mais precisamente, o contexto sócio-histórico.
Apesar disso, os alunos conseguiram contextualizar os contos e chegar a
atualização dos sentidos. O ano de 2011 foi marcado pelo empenho da imprensa em
divulgar diversos casos de abandonos de crianças, praticados pelos próprios pais,
na maioria das vezes, pela mãe e, também, pelo casamento do príncipe William e
Kate, os quais foram ótimos parâmetros para relacionar com “João e Maria” e com
“Cinderela”.
O conto que foi mais impactante para os alunos foi “João e Maria”. Durante as
aulas houve participação dos alunos discutindo, relatando fatos, refletindo acerca
destes fatos. Na pesquisa feita pelos alunos sobre o abandono de crianças, além de
notícias divulgadas em âmbito nacional, os alunos relataram casos acontecidos em
nosso município e que tiveram grande repercussão. Alguns alunos até conheciam as
pessoas envolvidas. Também teve o caso de um aluno, filho adotivo, que contou a
história de abandono pela qual passou até a adoção. Foi um relato importante para
que os alunos percebessem que crianças que passaram por situação de abandono e
maus-tratos não estão fadadas ao sofrimento pelo resto da vida, pois tal como
ocorreu nos contos “João e Maria” e “Cinderela”, estas crianças foram resgatadas,
tendo a oportunidade de conviver com pessoas que as amam e as respeitam.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao se chegar ao final deste trabalho, temos algumas considerações a fazer. A
primeira é a de que a Análise de Discurso é uma teoria que permite trabalhar com
vários tipos de textos e com crianças de diferentes faixas etárias, embora acredite
que, se este trabalho tivesse sido feito com alunos do 9º ano, por exemplo, seria
mais produtivo, havendo muito mais aspectos a serem explorados, devido a maior
maturidade destes alunos. No entanto, se a leitura, de acordo com os pressupostos
teóricos da Análise de Discurso, começar desde que a criança esteja sendo
alfabetizada, as possibilidades deste aluno tornar-se um cidadão crítico e consciente
serão muito maiores.
Este trabalho não se esgota aqui, pois os contos de fadas possuem uma
infinidade de aspectos a serem explorados. E também, por serem eternos e por não
dependerem de espaço e de tempo, apresentam versões sucessivas ao longo da
história, estão sempre sendo objetos de novas versões. A riqueza e as variações
das épocas e dos contextos sócio-históricos e culturais em que eles se inserem,
comprovam a sua importância. Os contos de fadas são eternos, apesar de variáveis
de acordo com o momento cultural em que foram produzidos, o que permite analisar
os efeitos de sentidos destes discursos na história e os efeitos da ideologia em cada
conto e em cada nova versão.
Um mesmo conto apresenta diferentes versões e os efeitos de sentido que
são instaurados também são diferentes, e isto, mais uma vez, prova que o texto não
é fechado em sim mesmo e que permite abertura do simbólico e a incompletude da
linguagem.
Através destas diferentes versões, percebemos que não existe apenas uma
maneira de contar uma história, seja contos de fadas ou não, podem ser contadas
de maneiras diferentes e através de linguagem diferentes, como ocorreu analisando
o discurso dos contos lidos e depois analisando a linguagem dos contos nas versões
cinematográficas. Também foi possível mostrar aos alunos os discursos dos contos
de fadas que retornam em outros discursos, como: filmes, músicas, etc.. O trabalho
com os contos de fadas é uma atividade enriquecedora, pois estes são a porta de
entrada para o mundo da ficção e da imaginação.
4 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. 6ª ed. São Paulo: Ática, 2000.
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VENTURINI, Maria Cleci. Imaginário urbano: espaço de rememoração/comemoração. Passo Fundo, RS: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2009.