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Cristina Nogueira da Silva
Constitucionalismo e Imprio
A cidadania no Ultramar portugus
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NOTA PRVIA 5
INTRODUO 7
1. O indgena na literatura colonial dos finais do sculo XIX-incio do sculo XX
13
2. O indgena nas polticas coloniais da Monarquia constitucional .................. 32
3. Colonialismo e anti-colonialismo no pensamento poltico dos scs. XVIII/XIX.
52
3.1. O pressuposto da civilizao. ..................................................................... 61
3.2. Direito Internacional e colonialismo. ............................................................. 65
3.3. Silvestre Pinheiro Ferreira anotando Vattel. ................................................. 69
3.4. Economistas e colonialismo : a utilidade das colnias. ................................ 72
3.5. Pragmatismo, nacionalismo e utilitarismo .................................................... 76
3.6. O anti-colonialismo de Jeremy Bentham. ................................................... 79
3.7. A Revoluo francesa e a representao poltica das colnias ................... 89
3.8. A Revoluo liberal espanhola e a representao poltica das colnias ..... 93
4. O modelo vintista positivado. ............................................................................ 96
4.1.Uma unidade instvel: uma Nao de terras descontnuas, distantes e diversas96
4.2. Os laos da liberdade. .................................................................................. 99
4.3. Uma unidade instvel: a desconfiana e o cime. ................................... 103
4.4. Especificidades ultramarinas: diversidade de interesses, diversidade de
normas. 109
4.5. Especificidades intra-ultramarinas: frica e sia ..................................... 111
4.6. A unidade da Nao e o contratualismo federal: Nao, Ptria(s), Indivduos114
4.7. Concluso ................................................................................................... 119
5. Unidade e diversidades no primeiro texto constitucional portugus .......... 124
6. O dogma da unidade e da representao poltica do ultramar na Carta
constitucional e na Constituio de 1838 ............................................................................. 125
6.1. A legislao eleitoral e as especificidades da representao poltica do
ultramar. 128
6.2. A memria da independncia brasileira ..................................................... 131
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3
6.3. Os conhecimentos locais. ........................................................................... 132
6.4. Concluso: a representao poltica como smbolo ................................... 136
7. A cidadania das populaes do ultramar no direito constitucional portugus do
sculo XIX 143
7.1. Estado Nao e igualdade dos estatutos pessoais .................................... 143
7.2. Direitos naturais, direitos polticos, direitos civis, nacionalidade ................ 146
7.3. Direitos polticos e cidadania no constitucionalismo portugus. ................ 159
7.4. Direitos civis e cidadania ............................................................................ 163
7.5. O estatuto poltico e civil das populaes do ultramar. .............................. 165
7.5.1 Os cidados portugueses do ultramar........................................................ 167
7.5.2 Cidadania portuguesa e catolicidade ......................................................... 183
7.5.3 O Cdigo civil de 1867 e os usos e costumes dos povos nativos. .......... 212
7.6. Concluso ................................................................................................... 232
8. Em transio para a cidadania. ........................................................................ 234
8.1. Os escravos ................................................................................................ 237
8.1.1. A escravido nos textos constitucionais portugueses ............................... 237
8.1.2. A doutrina jurdica portuguesa e a escravatura. ....................................... 245
8.1.3. Contexto poltico-ideolgico das discusses constitucionais sobre os
escravos 252
8.1.4. Aplicaes ptrias. .................................................................................... 265
8.2. Os ndios ..................................................................................................... 287
8.2.1. A independncia do Brasil e a obliterao constitucional dos nativos ... 299
8.2.2.A alienabilidade do territrio ultramarino e o consentimento das populaes 305
8.3. Misses civilizacionais .............................................................................. 308
8.3.1. Um paradigma iluminista ........................................................................... 313
8.3.2. Um paradigma utilitarista ........................................................................... 315
9. Os quase cidados ........................................................................................ 321
9.2. Vassalos e cidados. .................................................................................. 321
9.2.1. Estrangeiros atpicos: os sobados ............................................................ 325
9.2.2. O direito internacional: entre civilizados, sobre incivilizados ............... 328
9.2.3. The black mans burden os cidados carregadores. ............................. 339
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4
9.3. Graduando os cidados: os libertos. .......................................................... 354
9.3.1. A discusso vintista ................................................................................... 357
9.3.2. A condio dos libertos na Carta e na Constituio de 1838 ................... 367
9.3.3. A condio dos libertos no Acto Adicional de 1852 .................................. 368
9.3.4. As leis eleitorais. ........................................................................................ 376
9.3.5. A doutrina jurdica...................................................................................... 377
9.3.6. O sentido liberal da palavra liberto ............................................................ 380
9.3.7. O estatuto dos libertos como estatuto civil. ............................................... 382
9.3.8. Cidadania constitucional e menoridade civil ............................................. 390
9.3.9. De libertos a ingnuos ............................................................................... 392
9.3.10. Ingenuidade e vadiagem ......................................................................... 399
9.3.11. Concluso ............................................................................................... 402
10. Diferenas intra-ultramarinas: Amrica, frica, sia................................. 406
10.1. Constituio de 1822 .............................................................................. 406
10.2. A Carta Constitucional e a Constituio de 1838 ................................... 411
10.3. A especificidade ultramarina na Constituio de 1838: antecedentes 414
10.3.1. Assimilacionismo e especializao nos anos 30. ............................. 414
10.3.2. A Madeira e os Aores no so ultramar ............................................. 420
10.4. Constitucionalizao da diferena ultramarina e des-constitucionalizao do
ultramar (Constituio de 1838, legislao de 1842-43, Acto Adicional). ....... 422
10.4.1. Os fins explicitados: distncia/ urgncia/ conhecimento. ....................... 424
10.4.2. A Constituio e o princpio do governo limitado ................................. 425
10.4.3. Os direitos polticos dos povos do ultramar. ........................................ 427
10.4.4. A universalidade do governo representativo e dos direitos .................... 429
10.4.5. Os cidados ultramarinos e a participao poltica .............................. 431
10.4.6. A representao ultramarina no Parlamento como libi ......................... 432
10.4.7. Outras formas de participao poltica ................................................... 434
10.4.8. Misso civilizacional e assembleias legislativas .................................. 436
10.4.9. Os fins ocultos da especialidade das leis. ............................................ 438
10.4.10. O princpio da constitucionalidade das leis no ultramar ....................... 441
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5
10.4.11. Concluso ............................................................................................. 446
11. Assimilacionismo legislativo ........................................................................... 455
11.1. Execuo progressiva dos Cdigos ....................................................... 455
11.2. Aplicao da legislao metropolitana ao ultramar ................................ 457
11.3. Adaptao dos Cdigos ......................................................................... 460
11.3.1. Codificao administrativa ...................................................................... 461
11.3.2. Codificao penal ................................................................................... 463
11.3.3. Leis de organizao judicial .................................................................... 466
11.4. Administrao da justia ......................................................................... 472
11.4.1. Especialidade na administrao da justia no ultramar ......................... 479
11.5. Administrao civil .................................................................................. 491
11.5.1. Diviso administrativa do territrio .......................................................... 491
11.5.2. Os rgos locais da administrao ......................................................... 495
11.6. Legislao eleitoral ................................................................................. 506
12. Concluso .......................................................................................................... 517
Bibliografia 527
NOTA PRVIA
Este livro corresponde, no essencial, dissertao de doutoramento defendida na
Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa no ano de 2005. A sua organizao interna
praticamente a mesma, sendo apenas de destacar a recente elaborao da introduo, a
reviso formal do texto, para a sua edio, e algumas actualizaes bibliogrficas, resultantes de
leituras entretanto feitas e cuja incorporao no texto original se revelou importante. Como a
explicao da organizao do trabalho est feita na referida introduo e no captulo inicial, vou
aproveitar este espao para agradecer s pessoas que me acompanharam e me apoiaram
durante e a realizao do trabalho que conduziu publicao deste livro.
Agradeo, em primeiro lugar, s pessoas que aceitaram ser os orientadores da
dissertao. Ao Professor Antnio Hespanha, por ter estado ligado sua gnese, e a quem devo o
melhor de toda a minha formao cientfica, adquirida ao longo de muitos anos de convvio
intelectual e pessoal. As horas (incontveis) passadas a debater com ele os temas tratados e as
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perspectivas tericas a partir das quais esses temas podem ser compreendidos esto presentes
nas pginas deste trabalho. Foi ele quem me chamou a ateno para um dos lados mais sombrios
do pensamento liberal contemporneo, o da sua convivncia com o imperialismo e a colonizao.
Sem, contudo, me ter feito desistir de olhar para o lado mais luminoso daquele(s) pensamento(s),
a fora expansiva dos conceitos, neles inventados, de liberdade individual e de igualdade, e
mesmo o seu apelo a um esforo (na aparncia contraditrio) de reconstruo racional do mundo.
Ao Professor Valentim Alexandre, pela sua disponibilidade e tambm pelas crticas que
nunca deixou de tecer aos textos que lhe fui enviando. Sem essas crticas e sem as coordenadas
definidas pelo seu conhecimento sobre a histria do Imprio portugus na poca contempornea e
os seus diversos contextos temporais e geogrficos eu ter-me ia enredado ainda mais na(s)
lgica(s) internas da narrativa doutrinal e poltica. So muitos os riscos que esse enredo comporta:
a subtraco simplificadora dessas narrativas aos contextos polticos e sociolgicos sem os quais
elas passam a ser descritas de forma acrtica e, no limite, a legitimao dessas narrativas e dos
comportamentos que lhes estiveram associados.
dispensvel referir que, apesar de orientadores, no so responsveis por eventuais
desorientaes que o trabalho comporte.
Agradeo tambm Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa e aos seus
fundadores, Diogo Freitas do Amaral e Carlos Ferreira de Almeida, por terem concebido uma
Faculdade de Direito onde pessoas como eu, com formao em Histria, primeiro, em Histria e
Sociologia do poder, depois, puderam encontrar o seu lugar. E tambm aos colegas das vrias
disciplinas, jurdicas e no jurdicas, por me terem ajudado a conhecer um pouco o mundo, antes
muito distante, das formulaes jurdicas. Particularmente ao Rui Pinto Duarte, tambm pela
ateno com que leu alguns dos meus textos. Ao Armando Marques Guedes, por ter partilhado
comigo as suas preciosas e inesgotveis informaes bibliogrficas, que muito enriqueceram as
aulas que fui leccionando enquanto investiguei e redigi esta dissertao. Ao Miguel Poiares
Maduro, pelas muitas discusses, mesmo aquelas em que estivemos em desacordo, mas,
principalmente, pelo carinho e pela amizade. Teresa Beleza, pela amizade e empatia, que
tambm resultaram da proximidade dos nossos interesses cientficos.
Aos funcionrios da Faculdade, pela sua simpatia e competncia, e sobretudo ao sector
mais ligado informtica, em particular ao Dr. Antnio Delfino, por ter perdido algumas horas de
um fim de tarde a consertar um longo texto que eu no conseguia fazer passar do cran do
computador para o papel.
Aos meus amigos, que se revelaram ainda mais e ainda melhores nas piores alturas, pela
disponibilidade, pela ajuda, pelo carinho, pela inteligncia e pela empatia. -me impossvel no
nomear primeiro aqueles que, por circunstncias da vida, estiveram mais prximos: a Alexandra
Barbosa, o Rafael Mora, o Antnio Hespanha, o Paulo Ferreira, o Nuno Monteiro, a Lcia Amaral,
o Marcos Ribeiro e a Carla Arajo. A ngela Barreto Xavier, o Pedro Cardim, o Carlos Petit e o
Antnio Serrano foram (e so), alm de grandes amigos, interlocutores especiais, com quem
continuo e continuarei a aprender muito. Mais recentemente, tambm partilhei com o Carlos
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7
muitas das ideias que me ocuparam a mente durante a redao desta tese, e agradeo-lhe muito
o carinho, a pacincia, a acutilncia das suas observaes, muitas delas mediadas por
experincias concretas da sua vida.
Tambm, por razes prximas das anteriores, agradeo minha famlia, ao Joaquim, e,
particularmente, aos meus pais, aos meus sogros e minha irm, a Ana Isabel. Sem eles teria
sido impossvel ter terminado este trabalho. Sobretudo graas a outros dois membros da famlia,
os mais pequenos e os que, para minha felicidade, ocupam o lugar maior na minha vida, o Joo
Rafael e o Andr.
Dedico este livro aos meus pais e memria do meu tio, Victor Manuel Duarte Silva
INTRODUO
O tema deste trabalho o estatuto das populaes (sobretudo as nativas, mas no s)
dos territrios colonizados pelos portugueses no sculo XIX, a sua posio formal face
cidadania. Para o desenvolver, procurei responder a algumas questes que considerei
fundamentais para conhecer essa posio. Procurei saber, nomeadamente, que direitos polticos e
civis foram reconhecidos a essas populaes ou por elas conseguidos, se participaram
politicamente e como (se estiveram ou no representadas no Parlamento metropolitano, se se
fizeram representar em assembleias locais), se as Constituies oitocentistas lhes garantiram
direitos iguais aos dos portugueses da metrpole, ou se, pelo contrrio, admitiram a vigncia de
princpios de excepo no seu governo e na definio dos seus estatutos pessoais. Se, no caso
das populaes nativas, elas puderam regular as suas vidas de acordo com formas jurdicas
tradicionais, se essas formas foram respeitadas ou apenas provisoriamente toleradas pela
administrao colonial. Finalmente, se foram percepcionados como pessoas com algum grau de
sentimento de pertena nao portuguesa. Procurei tambm saber se os territrios que
habitavam eram partes iguais do territrio nacional ou se, pelo contrrio, eram percebidos como
territrios diferentes, que deviam ser governados de forma diferente. A investigao em torno
destas questes colocou-me perante um problema mais vasto da historiografia sobre o
colonialismo oitocentista, o de saber como que o liberalismo de oitocentos e as suas categorias
direitos fundamentais/constitucionais, cidadania, nao, governo representativo e limitado,
separao de poderes - conviveram com o problema do governo das populaes e dos territrios
colonizados.
Muitas destas questes evocam problemas que se colocam s sociedades liberais
contemporneas. Se no fosse assim, possvel que no tivessem aqui sido formuladas, que no
se tivessem convertido em objecto de uma investigao histrica. O mundo contemporno que
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8
um dos lugares a partir do qual escrevo estas linhas tambm o mundo ps-colonial. Neste, os
antigos ultramares (designao que se usou para descrever o conjunto heterogneo de territrios
e de populaes que o mar separava das metrpoles europeias) esto agora na(s) Europa(s) e
a(s) Europa(s) nos ultramares, fazendo com que o pluralismo cultural e tico das comunidades
polticas (tambm as que resultaram dos processos de independncias que acompanharam as
descolonizaes) se tenha transformado numa questo pensada escala global. Reflecte-se,
por exemplo, sobre a melhor forma de encontar princpios jurdicos e politicos capazes de
transcender essa diversidade, mas tambm sobre o risco, inerente, de esse objectivo ser trado
pela atribuio de validade universal a valores particulares 1? Reflecte-se tambm sobre a
possibilidade de fazer coexistir a diferena cultural, tica, religiosa, numa mesma comunidade
poltica, sem, com isso, fragilizar a sua coeso, a sua unidade moral, sem se correr o risco de
uma retraco comunitria para o particularismo2. A estas reflexes associam-se outras, sobre
as vantagens e as fragilidades de modelos mais diferenciados ou modelos mais unitrios de
cidadania. O reconhecimento da importncia da diversidade cultural deve resultar no
reconhecimento, pela lei do Estado, de direitos especiais a grupos minoritrios3? Podem estes
governar-se pelas suas instituies e tradies sem se correr o risco de essa acomodao
multicultural resultar na fragilizao de direitos individuais dos cidados que so membros
subordinados desses grupos?4 Ou, pelo contrrio, prefervel optar por modelos mais unitrios
de cidadania? Por polticas de integrao que promovam padres mnimos de homegeneidade
cultural, capazes de fortalecer os sentimentos de pertena e identidade considerados susceptveis
de manter coesas as comunidades polticas, sobretudo as naes. Correndo-se, neste caso, o
risco de suscitar fenmenos de culturalismo reactivo5. Reflecte-se, fiinalmente, sobre a
possibilidade de construir uma cidadania transnacional, um cidado cosmopolita. Mas, nesse
caso, fundada em que valores, em que direitos, e garantido por que instituies?
1 Por exemplo, o falso universalismo do universalismo moral do liberalismo, nas palavras de Bo
Strath, The State and its critics, in Quentin Skinner & Bo Strath, States & Citizens, History, Theory,
Prospects, Cambridge, Cambridge University Press, 2003, p 186. Uma proposta para uma descoberta
multicultural de valores universalizveis pode encontrar-se em Boaventura Sousa Santos, Por uma
concepo multicultural de direitos humanos, in Revista Crtica de Cincias Sociais, n 48, 1997, pp. 11-32.
2 V. Bo Strath, The State and its critics, cit., p. 186.
3 Group-differentiated rights, na terminologia de Will Kymlicka em Multicultural Citizenship,
Oxford, Oxford University Press, 1995, p. 6 e ss., onde procura demonstrar que o reconhecimeno desses
direitos, que o autor organiza numa tipologia detalhada, constitui uma exigncia das sociedades liberais e
no, como defendem os seus crticos, uma forma de enfraquecer os direitos individuais (A compreehensive
theory of justice in a multicultural state will include both universal rights, assigned to individuals regardless
of group membership, and certain group-differentiated rights or special status for minority cultures, p. 6).
4 V. Ayelet Schachar, Multicultural jurisdictions, Cultural Differences and Womens Rights,
Cambridge, Cambridge University Press, 2001, p. 3 e ss., onde se faz a exposio dos riscos que comporta
este fenmeno que a autora designa por paradox of multicultural diversity.
5 reactive cuturalism, [] a response aimed at group self-preservation which takes as its goal the
maintenance of a separate and distinct ethos, v. idem, ibidem, p. 11.
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9
Como disse, todas estas questes apenas evocam os problemas que se colocaram
administrao colonial dos sculos XIX e XX. No constituem uma reposio dos mesmos
problemas, nem as questes colocadas, como as respostas encontradas, poderiam ter sido as
mesmas. Em primeiro lugar, porque o contexto colonial em que problemas da mesma natureza se
colocaram j no existe. Depois, porque a cultura dos direitos e os conceitos de cidadania eram
diferentes. Finalmente, porque era tambm outra a sensibilidade e at a conscincia da -
diversidade cultural. Com iremos ver, a ideia de garantir a homogeneidade dos comportamentos e
valores das comunidades polticas foi to forte na cultura poltica de oitocentos que, na verdade,
dificilmente se podia ter concebido outra forma de integrao que no fosse a integrao do
igual. Assim, se, hoje, a ideia de integrao comporta, quase sempre, um certo grau de
reconhecimento das diferenas culturais - ainda que no haja acordo quanto a esse grau, que
pode ir da indiferena, nos difference-blind citizenship models6, sua proteco positiva -, no
sculo XIX ela comportou sempre algum grau de apagamento das diversidades culturais, de
absoro pelo colonizado dos valores culturais do colonizador, de uma certa assimilao 7.
Antes de o mostrar, nas pginas deste trabalho, vou tentar explicar porqu, nas restantes
pginas desta introduo.
*
A estrutura universalista do pensamento liberal oitocentista, na sua matriz iluminista,
permitiria pensar, em abstracto, que, nos primeiros anos do sculo XIX, pelo menos, a resposta s
questes formuladas nas primeiras linhas desta introduo que foram debatidas nos
Parlamentos da poca, tendo a gerado perplexidades e silncios, mas tambm algumas decises
inesperadas teria sido positiva. No entanto, por motivos pragmticos, mas tambm de natureza
conceptual, a resposta oitocentista foi muito mais complexa.
6 V. Idem, ibidem, p. 6.
7 Sobre os diversos processos descritos pelo conceito de assimilao e a descrio dos problemas dessa forma de integrao cultural nas sociedades contemporneas v. L. Za, Assimilacion, in Dictionary of
Race, Ehtnicity & Culture, ed. Guido Bolaffi, Raffaele Bracalenti, Peter Braham, and Sandro Gindro,
London, Sage Publications, 2003, pp. 19-21. Formalmente, os termos assimilao ou assilimacionismo
designaram, quando aplicados s situaes coloniais, polticas nas quais as colnias seriam governadas de
forma semelhante metrpole e/ou os povos culturalmente diferentes que habitavam os territrios coloniais
passariam, depois de sujeitos a uma aprendizagem civilizacional, a ser cidados europeus. A assimilao
podia ser parcial, quando se admitia que os indivduos nativos se tornassem cidados do Estado colonial
desde se pudessem considerar, pelo seu comportamento, educao, grau de conhecimento da lngua do
colonizador, ocupao e rendimento, j assimilados. E podia ser, hipoteticamente, uma assimilao total,
quando os habitantes das colnias fossem genericamente tratados como cidados iguais aos da metrpole, o
que nunca sucedeu. A palavra podia ainda designar o processo, progressivo e unilateral, de absoro dos
valores culturais do colonizador, processo que pressupunha a passividade da parte assimilada, tal como foi
imaginado nos discursos dos colonizadores.
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Na verdade, o postulado do indivduo como sujeito de direitos, independentemente do
tempo e das circunstncias teve alguns efeitos de incluso relativamente s populaes nativas
dos territrios no europeus. A referncia ao indivduo livre e igual, se, por um lado, facilitou a
ocultao de situaes de desigualdade real tornou, por outro, mais difcil legitimar as
desigualdades formais, gerando as perplexidades de que falei atrs e alguns dos efeitos de
incluso de que falarei neste trabalho. O tema da escravido foi, quanto a esse aspecto, exemplar:
a impossibilidade terica e filosfica de acomodar o estatuto do escravo s categorias do
pensamento setecentista e oitocentista tiveram um lugar importante na explicao dos processos
abolicionistas que, lentamente, foram acabando com a escravido nos territrios colonizados pelos
europeus.
Houve, no entanto, ao lado de previsveis dificuldades de natureza prtico-institucional
mas tambm da ausncia de vontade poltica, nos momentos em que o tema foi discutido, uma
dificuldade conceptual em incluir na cidadania o conjunto daquelas populaes. Em primeiro lugar
porque, tal como sucedeu com outras metrpoles, dificilmente os portugueses de oitocentos
podiam incluir na sua comunidade imaginada o conjunto dos povos nativos de frica, da Amrica
e da sia. A Nao portuguesa era, para os polticos e juristas do sculo XIX, identificada como
uma comunidade orgnica, um conjunto de pessoas ligadas pela mesma lngua, cultura,
genealogia e pela mesma religio8. Era tambm uma comunidade afectiva, baseava nos laos que
ligavam os cidados portugueses comunidade, a privilegiar os sentimentos de amor, fidelidade,
e de implicao moral, facilitados pela convivncia histrica e inter-geracional. No ultramar, onde
viviam, como afirmavam os deputados portugueses, pessoas com hbitos, costumes, religio, e
raas diferentes, no era fcil saber quem podia ou no podia ser portugus. Essas incertezas e
indefinies reflectiram-se na doutrina jurdica, na legislao produzida na metrpole e nos
regulamentos produzidos nas provncias ultramarinas, fazendo com que na metrpole portuguesa
nunca se tenha sabido, em rigor, quem eram (e quantos eram) os portugueses que viviam no
ultramar portugus. A esta dificuldade acrescentou-se uma outra, relacionada com a natureza
elitista e culturalmente conotada do conceito oitocentista de cidadania: a autonomia individual, a
condio que o pensamento liberal oitocentista exigiu, em geral, para que algum, europeu ou no
europeu, acedesse ao exerccio pleno dos direitos, no era uma capacidade inata. Considerava-se
que ela s emergia num certo estado de civilizao ao qual as leis do progresso histrico
conduziriam, mas em tempos diferentes, o conjunto da humanidade. O fim desta Histria, era,
como se mostrar, um fim cosmopoltico, uma federao de povos finalmente iguais, partilhando
valores e culturas materiais semelhantes. Nessa altura, os princpios da liberdade, das luzes e da
razo da Europa espalhar-se-iam por todos os continentes, como anunciaram muitos intelectuais
8 V. Jos Sobral, Naes e nacionalismo algumas teorias recentes sobre a sua gnese e
persistncia na Europa (ocidental) e o caso portugus, Inforgeo, n 11, 1996 e Memria e Identidade
Nacional: Consideraes de carcter geral e o caso portugus in Manuel Carlos Silva (org.), Nao e
Estado, Entre o Global e o Local, Porto, Edies Afrontamento, 2006, pp. 27-49.
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da poca9. Acontece que, nesta narrativa, na qual as ambies universalistas e uniformizadoras
da modernidade surgem expressivamente associadas universalizao da experincia histrica
vivida por (alguns) povos europeus, o fim da Histria ainda estava longe: a generalidade dos
povos nativos dos territrios no europeus vivia ainda estdios civilizacionais muito anteriores
aquisio da autonomia da vontade requerida para o exerccio pleno da cidadania no mundo
civilizado. Seriam, no entanto, inevitavelmente resgatadas da sua incivilidade, ou atravs de um
lei de necessidade histrica, cujos fins pr-fixados o contacto com os europeus facilitaria, ou por
meio de uma interveno poltica positiva, capaz de acelerar o seu progresso civilizacional
atravs de mtodos que podiam ser mais ou menos interventivos/impositivos, como se ver ao
longo deste trabalho.
O momento da incluso universal ocorreria no momento em que todos atingissem o
mesmo patamar civilizacional, o que significava que aquelas populaes viviam, no presente,
numa situao de transitoriedade (entre o estado no civilizado e o estado civilizado), situao
qual se associaram muitos efeitos de excluso. Se a diversidade de condies individuais
obrigou a repensar, no interior das prprias sociedades europeias, o universalismo implcito nos
conceitos do pensamento poltico da poca nomeadamente, o da igual participao poltica dos
cidados -, a diversidade dos territrios colonizados e das suas populaes colocou dificuldades
ainda maiores, fazendo com que, por vezes, o problema no chegasse sequer a ser formulado.
O fim da Histria coincidiria com o fim da diversidade cultural, diramos hoje. Acontece
que, para a maioria dos intelectuais e polticos da poca, a questo da diversidade cultural no se
colocava nos termos em que hoje colocada. A maior parte dos povos de cultura e religio
diferentes da europeia que tinham nascido no ultramar no eram percepcionadas como tal mas
antes como povos que viviam estdios diferentes de um mesmo percurso histrico universal. De
certo modo, j tinham sido assimilados (aos primitivos europeus), ainda antes da assimilao
(aos europeus j civilizados). No entanto, a prpria reflexo sobre a diferena que separava o
mundo j civilizado desses mundos ainda atrasados (ou estacionrios), sobre o que devia ou no
ser feito para eliminar essa diferena, para tornar os segundos iguais aos primeiros, reforou a
distncia, adiando cada vez mais o momento da incluso, eternizando o processo de transio.
Capturados nesta ambivalncia, excludos e includos de forma contraditria, os povos nativos dos
territrios colonizados passaram a ocupar um lugar situado entre a excluso baseada na sua
diferena (no seu atraso) e um contnuo convite a tornarem-se iguais (a evoluir
civilizacionalmente), o lugar onde se gerariam as identidades fracturadas do colonialismo e do
ps-colonialismo10
. Foi esse lugar que tornou difcil falar sobre as pertenas nacionais, os direitos
9 V. Denis Diderot Esquisse dun tableau historique des progrs de lesprit humain (1793), cit em
Tzvetan Todorov, Nous et les autres: la rflexion franaise sur la diversit humaine, Paris, ditions du Seuil,
1989, p. 341. Diderot dedica todo este ensaio enumerao dos momentos, factos e personalidades
(cientistas, filsofos) que ilustram o progresso histrico (v. http://fr.wikisource.org/wiki/Esquisse...).
10 V. Peter Fitzpatrick and Eve Darian-Smith, Laws of the Postcolonial: an insistent introduction,
in Peter Fitzpatrick and Eve Darian-Smith (eds.), Laws of the Postcolonial, Ann Arbor, The University of
Michigan Press, 1999, p. 2 e ss.
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e a cidadania destas populaes. Essa dificuldade explica por que que os polticos e juristas
portugueses do sculo XIX, nos raros momentos em que foram confrontados com o problema
que, para eles, no foi, de facto, um problema central -, nunca decidiram, de forma clara e
definitiva, se e que populaes nativas do conjunto territorial que descreviam como sendo um
Imprio eram integradas por cidados (ou quase cidados) portugueses, por vassalos da Coroa
portuguesa, por sbditos por direito de conquista ou, simplesmente, por estrangeiros, s vezes
inimigos. Era difcil distinguir, em momentos diferentes do processo, quem eram, no ultramar, os
inimigos, os ainda sbditos, os vassalos, os quase cidados ou os plenamente cidados11
.
Como procurarei demonstrar neste trabalho, isso dependia, no territrio colonial portugus, de
vrias circunstncias. Dependia, talvez em primeiro lugar, da maior ou menor proximidade ao
padro cultural europeu/portugus. Mas dependia tambm do comportamento conjuntural dos
diversos grupos que integravam essas populaes. Em momentos de rebelio, por exemplo, eram
facilmente remetidas para a condio de povos rudes e selvagens, cujo governo requeria
medidas excepcionais, musculadas. Dependia igualmente da maior ou menor disponibilidade de
alguns desses grupos para se identificar com os projectos da metrpole ou com os das
autoridades coloniais locais e dos equilbrios locais de poder. Dependia ainda de representaes
sobre a hierarquia dos povos, representaes nas quais os povos africanos, de acordo com
classificaes cannicas da poca, estavam mais distantes da possibilidade da cidadania dos que,
por exemplo, alguns povos asiticos. Dependia, finalmente, das perspectivas dos diferentes
governos metropolitanos em matria de poltica colonial. Como se ir, ver, nos momentos em que
o Marqus de S da Bandeira esteve frente da Secretaria de Estado da Marinha e Ultramar, a
tendncia foi para uma (generalizada) maior incluso. Em outros momentos, a excluso ganhou
contornos muito definidos, como sucedeu nos primeiros anos da dcada de sessenta do sculo
XIX.
O discurso comum a estas conjunturas foi o de que as populaes nativas podiam
aprender a ser civilizadas e portuguesas, variando os mtodos de ensino que se foram
propondo. Mas houve outros momentos em que essas populaes foram mesmo esquecidas,
passando a aco colonizadora a ser descrita como uma aco pela qual os territrios no
europeus seriam colonizados por populao europeia, originariamente portuguesa. Por vezes,
estes dois registos confundiram-se, tornando difcil destrinar qual seria, afinal, a origem dos
portugueses que povoariam o Imprio.
11 Esta dificuldade em decidir se os nativos deviam ser tratados como sbditos da nao ou
estrangeiros inimigos, que podiam ser capturados em raids e baleados foi caracterstica de outros imprios,
como mostra Lauren Benton, Law and Colonial Cultures, Legal Regimes in World History: 1400-1900,
Cambridge, Cambridge University Press, 2002, p. 197. E foi um fenmeno que se verificou at muito tarde,
como se percebe atravs das palavras de Elisabeth Thompson, quando afirma, em relao s populaes da
Sria e do Lbano que ficaram sujeitas ao Mandato francs depois da I Guerra, que no havia uma frontiera
clara, aos olhos dos contemporneos, que pudesse separar o estatuto de sbdito do de cidado (), v.
Colonial Citizens, Republican Rights, Paternal Privilege, and Gender in French Syria and Lebanon, New
York, Columbia University Press, 1999, p. 2-5.
-
13
Falta agora recordar, para concluir, que estas indefinies viriam a ser clarificadas com a
criao, preparada pela literatura colonial desde os finais do sculo XIX mas s consumada no
sculo seguinte, de um estatuto jurdico diferenciado para as populaes nativas das colnias
portuguesas, o estatuto do indgena, semelhana do que outras naes colonizadoras estavam
na altura a fazer ou j tinham feito12
. A necessidade, sentida pelos autores daquela literatura, de
reforar os fundamentos cientficos desse estatuto com as lies da histria, fez com que o
estatuto do indgena surgisse nela como o resultado de uma desejvel ruptura com o passado
recente do colonialismo portugus, no qual o indgena tinha sido plenamente cidado. Na verdade,
foi esta estranha afirmao, que me conduziu investigao de que resultou este trabalho. A
questo inicial foi, de facto, uma questo simples: saber se os indgenas de que falava a literatura
sobre direito e administrao colonial a partir dos finais do sculo XIX tinham mesmo sido, at
esse momento, cidados portugueses. Por esse motivo comearei, no primeiro captulo, por falar
sobre o que foi, nessa literatura, o indgena e sobre o contexto, de manipulao da memria, no
qual os antepassados desses indgenas foram convertidos em cidados portugueses. Depois, num
segundo captulo, desenvolverei algumas reflexes em torno do pensamento colonialista e anti-
colonialista europeu dos finais do sculo XVIIII primeira metade do sculo XIX. Nesse capitulo
irei descrever as representaes setecentistas e primo-oitocentistas sobre os povos no europeus
e mostrar que o nativo dos territrios colonizados no teve, nas reflexes sobre a colonizao, o
mesmo peso que passou a ter na literatura colonial dos finais do sculo. Que o conceito de
indgena por oposio a cidado no existia. A estes captulos, de contextualizao, seguem-se
aqueles onde sero analisadas a forma como o problema ultramarino foi abordado no
constitucionalismo, na doutrina, na legislao e no discurso poltico portugus de oitocentos.
1. O indgena na literatura colonial dos finais do sculo XIX-incio do sculo XX
O indgena dos territrios colonizados pelos europeus, enquanto sujeito de uma poltica
especificamente pensada para ele, a poltica do indigenato, ocupou um lugar central nos textos
sobre poltica e administrao colonial que se escreveram em Portugal a partir do ltimo quartel do
sculo XIX. Ao lado do colono e do Estado metropolitano, ele constitua, nas palavras de Rui
Ulrich (1883-1966), professor da cadeira de Administrao Colonial na Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra (1906-1910), o terceiro vrtice a ter em considerao na arquitectura
de uma boa poltica colonial13
.
Nesses textos escritos, sob a forma de monografias, tratados, relatrios e lies, por
scios e colaboradores da Sociedade de Geografia de Lisboa, criada em 1875, por regentes da
12 Por exemplo, a Frana, que, a partir de 1887, imps a todas as suas colnias a aplicao de um
Code de lindignat, primeiramente pensado para a Arglia, no qual os indivduos nativos das colnias
francesas foram considerados, em geral, sbditos, por oposio a cidados franceses, estatuto que s podiam
adquirir mediante critrios definidos nesse Cdigo. Enquanto sbditos franceses o indgenas eram, por
exemplo, submetidos a leis penais especiais e a regimes de trabalho obrigatrio
13 V. Rui Ulrich, Poltica Colonial, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1909.
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14
cadeira de direito colonial na Universidade de Coimbra, criada em 190114
, por professores da
Escola Colonial, criada em 190615
, e tambm por administradores coloniais, oficiais do exrcito,
comissrios rgios e ministros16
, a palavra indgena designava um conceito caracterizado por um
elevado grau de abstraco. A sua concretizao geogrfica era muito genrica, pois dizia
respeito a povos nativos de todos os territrios colonizados por europeus, em frica, na Amrica
ou na sia. O universo semntico do conceito era tambm muito amplo, porque s no abrangia
os povos nativos do continente europeu. As populaes nativas dos outros continentes eram nele
apreendidas como um conjunto humano relativamente indiferenciado, porque alm de dispensar
qualquer referncia diversidade tnica ou cultural das comunidades em que os indgenas viviam,
o conceito no remetia para qualquer distino ou identificao social no interior dessas
comunidades. A palavra indgena podia designar o nativo de qualquer parte de qualquer territrio
colonizado por europeus e, da mesma maneira, podia designar tanto o soba africano ou o prncipe
indiano, como os respectivos sbditos.
Havia, no entanto, um elemento antropolgico comum, que unificava este conjunto
humano internamente indiferenciado: a sua posio distante face s formas civilizadas de vida a
que a Histria tinha conduzido as sociedades europeias. Indgenas eram, ento, os naturais
14 A sua criao, que foi um sinal do processo de institucionalizao, em Portugal, da cincia
colonial, ocorreu com a reforma do curso de Direito da Universidade de Coimbra, em 1901 (v. Decreto de
24 de Dezembro de 1901, Dirio do Governo, n 294, 28 de Dezembro de 1901, p. 1156). As primeiras lies
escritas foram as de Marnoco e Souza, Administrao colonial, preleces feitas ao curso do 4 ano jurdico
do ano de 1906-1907, 1906 (o autor seria Ministro da Marinha e Ultramar no ltimo governo da Monarquia),
e as de Rui Ennes Ulrich, que escreveu Cincia e administrao colonial, I: Introduo, lies feitas ao
curso do 4 anno jurdico no anno de 1907-1908 (1908) e Poltica colonial. Lies feitas ao curso do 4 anno
juridico no anno de 1908-1909 (1909). 15
Destacamos, pelo desenvolvimento e singularidade de algumas das suas reflexes, a obra
intitulada Poltica Indgena (1910), de Lopo Vaz de Sampaio e Mello (1883-1949), oficial da Marinha e
professor na Escola Superior Colonial, onde regeu as cadeiras de Poltica Indgena e Etnologia e Etnografia
Coloniais (1926-46) e onde dirigiu o Anurio da Escola Colonial (1926-42). Foi, alm disso, fundador da
Revista de Estudos Coloniais da Escola Superior Colonial (1948-1954), scio da Sociedade de Geografia de
Lisboa (fundada em 1875) e membro do Instituto Colonial Internacional de Bruxelas. 16
Entre os inmeros autores e ttulos podem destacar-se Antnio Enes, duas vezes Comissrio
Rgio em Moambique (em 1891 e em 1894) e Ministro da Marinha e Ultramar depois do Ultimatum
(escreveu Moambique - relatrio apresentado ao Governo, 1893); vrios militares que colaboraram com ele
nas campanhas de pacificao, entre os quais Henrique de Paiva Couceiro (escreveu Angola (Dois annos de
Governo, Junho de 1907-Junho de 1909). Histria e Comentrios, 1910, e Angola, Estudo Administrativo,
1898); Mouzinho de Albuquerque, Governador do Distrito de Loureno Marques em 1895, depois
Governador e Comissrio Rgio na mesma provncia (escreveu Moambique, 1896-1898, 1899); Freire d
Andrade, Director Geral das Colnias, Secretrio-Geral do Ministrio da Marinha e Ultramar, Ministro dos
Negcios estrangeiros em 1914, Governador-geral de Moambique (escreveu Relatrios sobre Moambique,
1910); Aires de Ornellas, Ministro da Marinha e Ultramar em 1907 (escreveu Raas e lnguas indgenas em
Moambique, 1901, e A nossa administrao colonial. O que , o que deve ser, 1903); Alfredo Augusto
Caldas Xavier (escreveu Estudos coloniais, 1889); Eduardo Costa, Governador do distrito de Moambique
(1897) e Benguela (1904) e Governador-geral de Angola em 1907 (escreveu o Estudo sobre a Administrao
Civil das provncias Ultramarinas, 1903), O Distrito de Moambique em 1888 (notas e apontamentos), 1902
e Ocupao militar e domnio efectivo nas nossas colnias, 1903); Albano de Magalhes, juiz no ultramar
(escreveu Estudos Coloniais, 1907); Artur Almeida Ribeiro, Ministro do Ultramar em 1914 (escreveu
Administrao Civil das Provncias Ultramarinas, Proposta de Lei Orgnica e Relatrio apresentado ao
Congresso pelo Ministro das Colnias, 1914, e Administrao Financeiras das Provncias Ultramarinas,
1917).
-
15
daqueles outros continentes cuja cultura e formas de vida se caracterizavam, em todas as suas
manifestaes - morais, religiosas, econmicas -, por um certo grau de primitivismo.
Do ponto de vista jurdico um ponto de vista de grande relevncia, porque o direito
desempenhou um papel determinante na construo e na fixao do conceito -, eram indgenas
aqueles nativos que no se distinguiam, culturalmente, do comum da sua raa. Ou mesmo os
nativos que, tendo-se j distanciado, culturalmente, daqueles com quem partilhavam a raa,
ainda no tinham adquirido, pelo menos em grau suficiente, os hbitos e valores civilizados. Por
um motivo ou pelo outro, estes indgenas no podiam ser sujeitos de formas representativas de
governo ou exercer direitos civis e polticos iguais aos dos cidados das metrpoles europeias. O
seu estatuto jurdico era, portanto, o de no cidado.
Na literatura jurdica dos sculos XIX e XX o conceito de indgena tinha uma marcada
conotao racial, j que quase sempre se acrescentava naturalidade e cultura, enquanto
variveis identificadoras, a raa dos indgenas. Num dos primeiros documentos em que esta
categoria de pessoas foi juridicamente descrita em Portugal, eram indgenas os nascidos no
ultramar, de pai e me indgenas e que no se distingam pela sua instruo e costumes do
comum da sua raa 17
. A primeira lei portuguesa onde foi finalmente pensado um estatuto pessoal
(civil, poltico e criminal) prprio para o indgena, em 1914, determinou que pudesse ser cidado
da Repblica, com todos os direitos civis e polticos, o indivduo de cor que falasse portugus ou
qualquer outra lngua culta, que no praticasse os usos e costumes caractersticos do meio
indgena, que exercesse profisso, comrcio ou indstria, ou que possusse bens de que se
mantivesse. Os indivduos de cor que no satisfizessem cumulativamente aquelas condies eram
considerados indgenas, o que significava que seriam apenas sbditos da Repblica
portuguesa18
.
A racializao do conceito de indgena desapareceu no Decreto equivalente que se seguiu
(n 7.151 de 19 de Novembro de 1920), no qual o termo indgena passou a ser aplicado aos naturais
das colnias que vivem e desejam continuar a viver sob os usos e costumes privativos dos
agregados sociais indgenas, mas no aos que adoptem os usos e costumes pblicos dos europeus,
e se submetam s leis e regulamentos impostos aos indivduos europeus do mesmo nvel social19
,
mas ressurgiu no Dec. lei n 12.533 de 23 de Outubro de 1926, a Carta bsica que estabeleceu o
Estatuto poltico, civil e criminal dos indgenas de Angola e Moambique. A, voltaram a ser
17 V. Dec de 20 de Setembro de 1894, que regulou o art. 3 do dec de 20 de Fevereiro de 1894
(aprovando o Regimento da administrao da justia nas provncias ultramarinas), subl. nosso. 18
Esta concluso concretizava-se, por exemplo, em disposies que afastavam os indgenas do
exerccio dos direitos polticos nas instituies centrais, embora admitissem a sua participao em
instituies representativas locais, v. Bases n 16 a 18 da Lei n 277 de 15 de Agosto de 1914 (Lei orgnica
da administrao civil das provncias ultramarinas) em Artur R. de Almeida Ribeiro, Administrao Civil
das Provncias Ultramarinas, proposta de Lei Orgnica e Relatrio apresentado ao Congresso pelo Ministro
das Colnias, Lisboa, Imprensa Nacional, 1914, p. 20. Estas Bases foram discutidas e aprovadas, mas nunca
chegaram a ser aplicadas. 19
V. Dirio do Governo, n 237, de 22 de Novembro de 1920, p. 1614.
-
16
indgenas os indivduos de raa negra ou dela descendentes que, pela sua ilustrao e costumes, se
no distingam do comum daquela raa (art. 3), a quem se negaram direitos polticos ou de
participao em outras instituies que no apenas as suas, as tradicionais. Depois deste, houve
ainda o Estatuto Poltico, Civil e Criminal dos Indgenas de 1929 (Dec. n 16 473, de 6 de
Fevereiro), com uma definio exactamente igual anterior (art. 2) e o Estatuto dos Indgenas das
Provncias da Guin, Angola e Moambique (D.L. n 39 666, de 20 de Maio de 1954), com algumas
alteraes 20
.
A leitura dos textos doutrinrios e da legislao permite, finalmente, compreender que o
conceito de indgena comportava uma conotao de transitoriedade mais (ou menos) evidente.
Eram indgenas os que ainda no tinham abandonado o seu modo tradicional de vida, aqueles
que, para os olhares europeus, ainda eram todos iguais, na sua fundamental distncia
relativamente ao mundo civilizado. Isso significava que aqueles nativos de outros continentes ou
aqueles indivduos de cor que j tinham franqueado o limiar da diferenciao e da
individualidade, j no eram indgenas. Distinguiam-se (ou as autoridades coloniais os
distinguiam) entre eles21
. No futuro, todos acabariam por ultrapassar a fronteira que os libertaria
da condio de indgenas. Era esse o resultado natural do fenmeno colonial, na sua dimenso de
misso civilizadora conduzida pelo colonizador europeu. Como se fazia notar nas primeiras
pginas dos tratados de que se tem vindo a falar, um dos elementos identificadores do fenmeno
colonial era, exactamente, o de pr em contacto povos com graus civilizacionais diferentes,
estando um desses povos, o povo colonizador, obrigado a cumprir a misso de conduzir o outro, o
povo colonizado, a graus mais elevados de civilizao. A colonizao era, ela prpria, uma
consequncia da diversidade das civilizaes e das raas, sendo a aco civilizadora sobre as
pessoas e sobre as coisas o que a distinguia de fenmenos vizinhos, como a ocupao de um
territrio, a conquista, a subordinao poltica, o imperialismo ou a emigrao, explicava Marnoco
e Souza. Independentemente das suas causas e de outros fins a ela associados, como a
vantagem econmica ou o prestgio nacional, a colonizao podia sempre definir-se como uma
aco exercida por um povo civilizado sobre um pas de civilizao inferior, com o fim de o
transformar progressivamente, pelo aproveitamento dos seus recursos naturais e pelo
melhoramento das condies materiais e morais de existncia dos indgenas 22
.
20 V. A.D.S., Estatuto dos Indgenas in Fernando Rosas e J.M. Brando de Brito (orgs.),
Dicionrio de Histria do Estado Novo, Lisboa, Bertrand, 1996, vol. I, p. 320.
21O que no queria dizer que se assemelhassem logo aos cidados da metrpole. O Estatuto de 1954
viria, por isso, a inventar um terceiro patamar, o daqueles que, distinguindo-se entre eles, ainda no se
assemelhavam a ns, os indgenas destribalizados, v. Jos Carlos Ney Ferreira e Vasco Soares da Veiga,
Estatuto dos Indgenas das Provncias da Guin, Angola e Moambique, Lisboa, 1957, p. 26 e ss. Por isso
que, ao contrrio dos Estatutos dos anos 20, neste os indgenas eram [] os indivduos de raa negra ou
seus descendentes que [] no possuam ainda a ilustrao e hbitos individuais e sociais pressupostos para a
integral aplicao do direito pblico e privado dos cidados portugueses (art. 2, sublinhados nossos). Ainda
que j se distinguissem do comum da sua raa. 22
V. Marnoco e Souza, Administrao Colonial, Preleces feitas ao curso do 4 Ano Jurdico do
ano de 1906-1907, Coimbra, Tipografia Frana Amado, 1906, p.8 e ss. Foi com estas lies que o autor, lente
catedrtico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, deu incio, ali, ao ensino da disciplina de
-
17
Esta ideia dos Imprios como espaos morais no era uma ideia nova. Desde Roma que
o objectivo tico de fundar uma comunidade humana universal, civilizada e bem governada,
esteve associado ideia imperial. Esse objectivo foi, no discurso teolgico da missionao crist,
um objectivo de natureza sobretudo espiritual, que converteu os imprios europeus da poca
moderna em espaos de expanso do cristianismo. O discurso humanitarista das Luzes, como se
ver mais detalhadamente ao longo deste trabalho, voltou a associar as formaes imperiais
realizao de objectivos ticos universalistas, mas acentuando a dimenso laica dessa realizao:
mais do que libertar os povos nativos de formas primitivas de religiosidade, era preciso tambm
resgat-los da sua infantilidade civilizacional23
, emancip-los de modos de produo primitivos (a
pastorcia, a pesca, a recoleco), ensinar-lhes as formas civilizadas de governo. Porm, a partir
da segunda metade do sculo XIX, a poca em que os textos aqui estudados foram escritos, essa
misso civilizacional passou a fundamentar-se, de um modo cada vez mais claro, em teorias
evolucionistas sobre a histria biolgica da humanidade, teorias que justificavam, em termos
ticos, mas tambm cientficos, a conquista e a tutela dos povos mais atrasados pelos povos
mais avanados. Nessa altura, superioridade civilizacional dos europeus acrescentou-se a sua
superioridade racial, biologicamente determinada, explicando o seu impulso expansionista em
direco aos territrios situados fora da Europa. A presena de populaes europeias em
territrios no europeus passou ento a ser percebida como um sinal de fora e de superioridade
racial: superioridade racial face s populaes nativas, constitudas por raas inferiores
europeia, mas tambm das naes europeias entre si, distinguindo as expansionistas das no
expansionistas24
. O campo de referncias tericas era, ento, o da fundamentao biolgica
(racial) da desigualdade entre as populaes humanas, que tinha tido uma das suas primeiras
manifestaes na obra do francs Joseph Arthur (1816-1882), conde de Gobineau, em Essai sur
lingalit des races humaines (1853-55), e o do darwinismo social, elaborado pelo filsofo ingls
Herbert Spencer (1820-1893) a partir da teoria da seleco natural de Darwin e da sua aplicao
direito colonial. Que esta definio recolhia unanimidade mostram as reflexes de Rui Ulrich, que em muitos
aspectos discordava de Marnoco e Souza, em Poltica Colonial [], cit., p. 4: para haver colonizao []
preciso que parta de um pais civilizado e que se destine a um pais desabitado ou apenas ocupado por um
povo selvagem ou de civilizao inferior. E ainda isto no basta; para que haja colonizao indispensvel
uma aco civilizadora dos emigrantes sobre as coisas e os homens do pas ocupado[...]. Tambm a sujeio
poltica sem aco civilizadora no bastava, embora, juntamente com o factor econmico, todos fossem
ingredientes da colonizao. Uma colnia era, afinal, [] uma regio subordinada econmica e
politicamente a um estado de civilizao superior, o qual exerce nela e nos seus habitantes uma aco
civilizadora (ibid., p. 7). 23
Uday Singh Metha, Liberalism and Empire: A study in Nineteenth-century British Liberal
Thought, Chicago, Chicago University Press, 1999, pp. 31 e ss.
24 Se os seres humanos so essencialmente desiguais, se pertencem a raas superiores ou inferiores,
em conflito entre si, se a civilidade criada pelo homem europeu constitui o ponto mais alto da caminhada
progressiva da humanidade, se o Estado vontade de poder e expresso da vitalidade da raa, os Estados
europeus no podiam deixar de promover uma aco de conquista que colocasse sob seu domnio as raas e
culturas extra-europeias, para as conduzir (ou no) civilidade, V. Pietro Costa, Civitas, Storia della
Cittadinanza[], vol. 3, cit., p. 477. Sobre o tema em geral veja-se, neste livro, pp. 405 e ss.
-
18
s sociedades humanas25
. J o campo de referncias empricas era o das investigaes
antropomtricas e craniomtricas da nova cincia antropolgica naturalista, investigaes
conhecidas em Portugal atravs dos trabalhos inspiradores de Armand de Quatrefages (1810-
1892), professor da cadeira de Antropologia no Museu de Histria natural de Paris, do antroplogo
Paul Broca (1824-1880), fundador da Escola Antropolgica de Paris, em 1859, e do seu discpulo,
Paul Topinard, a grande referncia, j nas ltimas dcadas do sculo XIX , do impulsionador da
primeira escola universitria de antropologia em Portugal (a Escola de Antropologia de Coimbra), o
antropobilogo Eusbio Tamagnini (1880-1972) 26
.
Sendo agora uma inevitabilidade cientfica, resultado da natural competio entre
Naes que se apresentavam como organismos vivos, em crescimento ou em processo de
degenerao, a expanso colonial preservava, como referi, o seu significado tico, com o
correspondente dever de tutelar os povos atrasados, de os conduzir civilizao. S que, agora, a
necessidade cientfica acrescentava a este um outro destino possvel, apropriado para os povos
incapazes de civilidade: a aniquilao. Como recorda o historiador Pietro Costa, a colonizao
tinha-se convertido, simultaneamente, numa imposio gerada []pelas necessidades vitais das
populaes europeias, reduzidas a espaos restritos e superpovoados, enquanto uma boa parte
do Globo estava nas mos de pequenos grupos de homens imbecis, impotentes, infantis e numa
resposta adequada a []uma exigncia profunda do processo histrico, que condenava
impiedosamente os povos incapazes de elevar-se civilizao [...] 27
.
O desaparecimento era, portanto, o destino que a Histria reservava aos indgenas: ou
porque, depois de instrudos e civilizados pela presena europeia, deixariam de o ser, passariam a
ser cidados europeus; ou em virtude de um outro processo, mais violento, de extino, que
alguns acreditavam ser o resultado natural do confronto de uma raa e civilizao superiores com
uma raa e civilizao inferior. Levy Maria Jordo (Visconde de Paiva Manso), um conhecido
jurista (penalista) portugus da primeira metade do sculo XIX, discorreu, apoiando-se nos
ensinamentos de Armand Quatrefages28
, sobre estes dois destinos possveis:
25 Sobre o darwinismo social na filosofia de Spencer e nos ensaios de William Graham Sumner, seu
discpulo, professor de sociologia em Yale na segunda metade do sculo XIX, bem como as apropriaes
contraditrias de que esta teoria foi objecto, v. Edward Caudill, Darwinian Myths, The Legends and Miuses
of a Theory, Knoxville, The University of Tennesse Press, 1997, caps. 4 e 5. A se mostra tambm como as
apropriaes do registo mais agressivo destas teorias resultaram da nfase na ideia de competio na teoria da
seleco natural de Darwin e na consequente omisso da funo da cooperao na evoluo, de certa forma
presente na ideia da misso civilizacional. Sobre o darwinismo em Portugal v. Ana Leonor Pereira, Darwin
em Portugal (1865-1914), Filosofia, Histria, Engenharia Social, Coimbra, Almedina, 2001. 26
Essas referncias, que foram partilhadas pelo Antroplogo Antnio Mendes Correia (1888-1969),
o antropobilogo que liderou a Escola de Antropologia do Porto, esto documentadas em Ricardo Roque,
Antropologia e Imprio: Fonseca Cardoso e expedio ndia em 1895, Lisboa, ICS, 2001, pp. 137 e ss. e
p. 166.
27 V. Pietro Costa, Civitas, Storia della Cittadinanza in Europa, vol. 3: La civilt liberale, Roma,
Editori Laterza, 2001, p. 487, subl. nosso. 28
Nomeadamente em Les Polynsiens et leurs migrations, publicado em 1866.
-
19
H porm duas leis supremas que regem os povos mais ou menos civilizados,
logo que a onda sempre crescente da raa caucsica chega a alcan-los. Ou se retiram
diante dela, e se aniquilam progressivamente em regies afastadas, cercados e dizimados
pelas misrias da expatriao a lei do aniquilamento progressivo; ou se incorporam
lentamente populao nova que absorve os seus elementos mais vivazes, no tardando
o resto a extinguir-se, como exilado no meio de um mundo novo a lei da incorporao
lenta. So ambas manifestaes diferentes de uma outra lei secreta e inevitvel, a da
descrena da raa indgena, lei independente da vontade humana e verdadeiramente
providencial 29
.
A centralidade que o problema indgena e os tpicos a ele associados adquiriram nesta
poca reflecte um contexto mais geral, relacionando-se com o interesse crescente dos pases
europeus, a partir da dcada de setenta do sculo XIX, pela posse de territrios em frica, bem
como pela administrao das respectivas populaes nativas 30
. Em 1884-85, durante a realizao
da Conferncia de Berlim, a partilha do continente africano tinha sido, como se sabe,
acompanhada da elaborao das normas do moderno direito pblico colonial que deviam presidir
quer ao reconhecimento dos direitos de propriedade colonial, quer ao tratamento das populaes
nativas dos territrios colonizados31
. Este contexto favoreceu a autonomizao de um novo campo
cientfico, vocacionado para a produo de saberes que tornassem mais racionais/produtivos os
programas de administrao colonial, fenmeno do qual resultou a constituio de um corpus
literrio autnomo, dirigido para a compreenso dos modernos princpios de colonizao
cientfica, dos quais deviam ser deduzidos os direitos e deveres dos Estados colonizadores para
com as populaes nativas dos territrios colonizados. Boa parte destes saberes foram produzidos
com o apoio de instituies vocacionadas para o estudo da questo colonial africana, que se
29 V. Visconde de Paiva Manso (Levy Maria Jordo), Loureno Marques (Delagoa Bay), Lisboa,
Imprensa Nacional, 1870, p. xxvii. A mesma lei era recordada em quase todos os manuais europeus sobre
direito e administrao coloniais, e, nomeadamente, num dos primeiros e mais citados em Portugal, o de
Arthur Girault, professor de economia poltica na Universidade de Poitiers e membro do Instituto Colonial
Internacional, cuja obra mais conhecida, objecto de sucessivas edies (1903, 1907, 1921, 1927, 1943) se
constituiu num manual para os estudantes de direito em toda a Europa. Nesse livro, o autor no s
comprovava, com exemplos, que todos os povos superiores em civilizao colonizaram, como reconhecia a
existncia de uma lei comum a todos os seres vivos, pela qual [] os indivduos menos bem dotados
desaparecem no confronto com os mais dotados. A extino progressiva das raas inferiores no confronto
com as raas civilizadas [] a condio do prprio progresso, v. Arthur Girault, Prncipes de
Colonisation et de Lgislation Coloniale, Paris, Librairie de la Socit du Recueil J.-B Sirey et du Journal du
Palais, 1907 (3 ed.), p. 8 e p. 27. 30
At c. de 1875, a presena europeia em frica no envolveu uma inteno planeada de
administrar populaes africanas, situao que mudou a partir dessa altura, v. Crawford Young, The African
Colonial State in Comparative Prospective, New Haven, Yale University Press, 1994, 82 e ss. Um primeiro
sintoma dessa mudana foi a Conferncia (internacional) Geogrfica de Bruxelas, que reuniu a 12 de
Setembro de 1876. 31
Como se sabe, a partir da Conferncia de Berlim, os direitos de propriedade colonial passaram a
fundar-se, nas zonas costeiras, pela ocupao efectiva do territrio e pela instalao de um equipamento
administrativo mnimo, v. Nuno Severiano Teixeira, Colnias e colonizao portuguesa na cena
internacional (1885-1930), in Histria da Expanso Portuguesa, Lisboa, C. Leitores, vol. IV, 1998, p. 501.
Por outro lado, o art. 6 do Acto Geral da Conferncia de Berlim era dedicado conservao das populaes
indgenas e do melhoramento das suas condies materiais e morais de existncia.
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multiplicam na mesma poca32
, tendo os seus postulados e os programas coloniais neles
fundados sido discutidos em conferncias internacionais e nacionais. Exemplo desses congressos,
que asseguraram a circulao dos novos saberes sobre a administrao colonial, foram o Congrs
Colonial Internationale de Paris (1889, com delegados portugueses), os Congressos promovidos
pelo Instituto Colonial Internacional de Bruxelas (fundado em 1894), ou o Congresso de Sociologia
colonial (1900)33
e, em Portugal, o Congresso Colonial Nacional de 1901, depois repetido em 1924
e 193034
, ou, j em 1934, o I Congresso Nacional de Antropologia Colonial, reflectindo este ltimo
uma intensificao do interesse da antropologia portuguesa pelas populaes coloniais e tambm
a colaborao oficial e activa dos antroplogos portugueses na poltica colonial do Estado
Novo35
. Entre os agentes cientficos desta nova cincia da administrao colonial contaram-se
nomes vindos de reas disciplinares diversas, como o do economista francs Paul Leroy-Beaulieu,
De la Colonisation Chez les Peuples Modernes (1874)36
, o do j referido professor Arthur Girault,
Principes de Colonisation et de Legislation Coloniale (1895), o do poltico e naturalista Jean-Marie
Antoine de Lanessan (1843-1919), botnico, Professor na Faculdade de Medecina de Paris,
governador civil e militar da Indochina francesa na ltima dcada do sculo XIX e autor, entre
outras obras, do livro Prncipes de Colonisation (Paris, Flix Alcan, 1897), o de Paul S. Reinsh,
professor da Universidade de Wisconsin, Colonial Administration, an Introduction to the study of
colonial institutions (1905), o de Franois Jules Harmand, fsico da marinha fancesa que tambm
ocupou diversos cargos na Tailndia, ndia, Chile e Japo, autor de Domination et Colonisation
(1910), o de Charles de Lannoy, Professor da Universidade de Direito de Gand, autor de
Lorganisation coloniale Belge (1913), ou o de Poultney Bigelow, The children of the Nations: a
study of colonization and its problems (1901), para referir apenas alguns dos mais citados pela
literatura colonial portuguesa. Apesar da diversidade de perspectivas sobre o tema de que
tratavam, todos estes autores tinham em comum a ambio de fundar em bases cientficas a
organizao e administrao coloniais.
32 Como, em Portugal, a Sociedade de Geografia de Lisboa, em 1875, seguida da criao, no
Ministrio do Ultramar, da Comisso Central Permanente de Geografia (1876), depois integrada na
Sociedade de Geografia (1880), ou da Comisso de Cartografia, criada em 1883 para coordenar as
exploraes geogrficas e a delimitao de fronteiras coloniais. Sobre o lugar destas instituies na
constituio de saberes antropolgicos sobre o ultramar e as suas populaes v. Rui M. Pereira, introd. a
Jorge Dias, Os Macondes de Moambique, I: Aspectos Histricos e Econmicos, Lisboa, CNCDP e IICT,
1998 e Ricardo Roque, Antropologia e Imprio, cit., p. 282 e ss. Sobre a origem, o funcionamento e as
motivaes dos membros da Sociedade de Geografia de Lisboa, v. ngela Guimares, Uma corrente do
Colonialismo Portugus: a Sociedade de Geografia de Lisboa, 1875-1895, Lisboa, Livros Horizonte, 1984. 33
Este particularmente importante, j que a poltica indgena foi o tema central das suas actas. 34
Uma sntese dos temas tratados no primeiro Congresso Colonial pode encontrar-se em Congresso
Colonial Nacional, teses, Lisboa, Tip. da Companhia Nacional Editora, 1900, onde est documentada esta
centralidade concedido questo indgena.
35 Gonalo Duro dos Santos, A Escola de Antroploga de Coimbra, 1885-1950, Lisboa, ICS, 2005,
pp. 34 e ss. e 168.
36 Um outro teorizador de polticas assimilacionistas, v. Martin Deming Lewis, "One Hundred
Million Frenchmen: the Assimilation Theory in French Colonial Policy", in Comparative Studies in
Society and History, vol. IV, n 2, Jan. 1962, p. 136.
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Discorrer sobre a administrao e o destino das populaes nativas tornou-se ainda mais
importante por ter ganho fora, nos encontros ento realizados, a ideia, que dominou em boa parte
desta literatura, de que sem o contributo daquelas populaes sem o brao indgena , no era
possvel explorar a maioria dos territrios coloniais em frica. As concluses da climatologia, uma
nova cincia auxiliar da colonizao, ditavam que o homem branco no podia aclimatar-se na
maioria dos territrios africanos. A colonizao africana devia especializar-se no estabelecimento
de colnias tropicais de explorao (de fazendas), baseadas na explorao massiva de mo-de-
obra nativa, reservando-se o povoamento europeu para zonas restritas, onde a singularidade das
condies geogrficas e climticas o favorecesse37
. Em 1915 essa tese j podia ser enunciada,
num registo absolutamente cientfico, por acadmicos relativamente distantes dos problemas
prticos que o fenmeno colonial colocava, como era o caso de Fernando Emygdio Garcia (1838-
1904), Professor de Direito administrativo na Universidade de Coimbra cuja vida foi inteiramente
dedicada ao ensino e, atravs dele, introduo e divulgao do sociologismo jurdico em
Portugal:
[...] as condies de adaptao da raa branca unicamente possveis de modo
formal nas regies de planaltos da zona inter tropical, fazem com que a colonizao
africana tenha como regra o carcter de fazendas: isto , de colnias onde a emigrao
em massa dos habitantes da metrpole para o exerccio de todos os misteres e para a
reproduo integral dos caracteres da raa impossvel ou, pelo menos, contingente e
onde, portanto, uma minoria de capitalistas europeus explora com a mo-de-obra indgena
a riqueza agrcola desenvolvida em ordem produo exclusiva ou largamente
predominante dos gneros de exportao38
.
Estes discursos, abstraindo de algumas (importantes) diferenas que os distinguiam entre
si, estavam embebidos de posies positivistas sobre a diversidade humana, que relegavam para
o plano da metafsica categorias jurdico-polticas abstractas, como os direitos do Homem priori,
anteriores sociedade, ou qualquer frmula universal de governar os homens. No era adequado
pensar os direitos, o direito e as formas de governo independentemente da considerao dos
povos e das suas determinaes raciais, culturais, civilizacionais. Sendo assim, a resposta que
davam questo dos direitos e das formas de governo adequadas aos povos nativos dos
territrios ultramarinos situava-se num registo muito distante do das doutrinas jusnaturalistas dos
sculos XVII-XVII ou do universalismo das Luzes. Os indgenas tinham direitos, mas estes no
derivavam da sua condio de homem igual e universal. Pelo contrrio, sendo cultural e
racialmente muito diferentes dos europeus, no deviam ser submetidos a formas de governo
37 Com dados fornecidos por essa nova cincia era possvel classificar as colnias em funo do
respectivo clima e indicar, em funo disso, o tipo de colonizao que nelas podia resultar; v., por exemplo,
Modo pratico de organizar Cartas Geogrficas populares das nossas colnias, indicando as zonas mais
salubres e mais prprias para colnias agrcolas ou de plantao, etc., in Congresso Colonial Nacional
Teses, Lisboa, cit., p. 4. 38
v. Fernando Emygdio Garcia, Colonizao e Colnias Portuguesas, 1864-1914, Coimbra, F.
Frana Amado, 1915, p. 16.
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similares. O clculo dos seus direitos e o achamento das formas de governo que lhes eram
apropriadas deviam resultar de uma avaliao rigorosa, cientfica, das suas caractersticas
culturais e antropolgicas concretas, bem como das finalidades da colonizao. Dessa avaliao
resultava sempre a necessidade de pensar e desenvolver polticas experimentais, positivas,
capazes de, por um lado, proteger o indgena dos colonos, vindos de uma cultura superior e
vtimas do deslize predatrio da sua prpria virilidade e, por outro lado, de o subtrair ao estado
de menoridade em que vivia39
. Em discursos mais racialistas, nos quais as caractersticas das
raas eram descritas como fixas e imutveis, a ideia que assomava era mesmo a de
funcionalizar a inferioridade racial aos objectivos dos Estados colonizadores. At que, do confronto
entre as duas populaes, resultasse a extino da mais fraca . Estes discursos, nos quais noes
associadas s polticas eugnicas esbatiam o ideal de misso civilizacional, no tiveram um
impacto forte na cultura poltica e intelectual portuguesa, cuja matriz catlica era mais orientada
pelas ideias de educao e proteco dos povos40
. Mas foi no contexto de reflexes como as
que acabei de descrever acerca dos direitos dos homens que o Ministro portugus das colnias
entre 1914 e 1917, Artur Ribeiro dos Santos, interpretou a criao, em 1894, pela terceira
Repblica Francesa, de um Ministrio das Colnias, como um sinal positivo de que os princpios
abstractos, que o Ministro considerava serem tpicos da tradicional poltica assimilacionista dos
republicanos franceses, tinham perdido o seu antigo predomnio:
Sente-se que o governo central composto de homens novos, educados na escola
moderna da cincia positiva, avessa a utopias, os quais tm a seu lado [...] os grandes tratados de
colonizao, cheios de ensinamentos [...] e de recomendaes prticas derivadas do estudo do
modelo ingls 41
.
39 Importa notar que muitas vezes, nestes discursos, o conceito de colono era quase to abstracto
quanto o de indgena, podendo designar o senhor das roas em S. Tom e Prncipe como o mais miservel
dos emigrados europeus, que tambm povoavam a mesma ilha, como recentemente se mostrou em Augusto
Nascimento, rfos da Raa, Europeus entre a fortuna e a desventura no S. Tom e Prncipe colonial, S.
Tom, Instituto Cames, Centro Cultural Portugus em S. Tom e Prncipe, 2002. Por esse motivo, optei por
escrever a palavra colono tambm em itlico.
40 Gonalo Duro dos Santos, A Escola de Antroploga de Coimbra, cit., p. 169. No obstante,
aquelas orientaes manifestaram-se em obras de autores influentes, como Oliveira Martins em O Brasil e as
Colnias Portuguesas, Lisboa, Guimares Editores, 1953 (1 ed.: 1880), ou em Eduardo Costa (v., deste
ltimo autor, Estudo sobre a Administrao Civil das nossas possesses africanas (Memria apresentada ao
Congresso Colonial Nacional, Lisboa, Imprensa Nacional, 1903, p. 173 e ss: Nas colnias africanas, o
indgena no estabelece concorrncia com o europeu, estando livre, pelo menos por muitas geraes, do
extermnio a que toda a raa inferior est votada, quando se estabelece [] em concorrncia com outra
superior). Sobre o impacto (duradouro) das obras de Oliveira Martins na ideologia e na poltica colonial
portuguesa dos finais do sculo XIX e XX v. Alexandre, Valentim, "Questo Nacional e Questo Colonial
em Oliveira Martins", in Anlise Social, vol. XXXI, n 135, 1996. A mostra-se como, a partir do terceiro
quartel do sculo XIX, a obra de Oliveira Martins est em perfeita consonncia com o nacionalismo
organicista, com o darwinismo social, com a teoria da extino (e total sujeio) das raas inferiores, nas suas
verses mais radicalizadas; o que, apesar da influncia das suas ideias, o singulariza na literatura portuguesa.
41 V. Administrao financeira das provncias ultramarinas, proposta de lei orgnica e relatrio
apresentados ao Congresso pelo Ministro das Colnias Artur R. de Almeida Ribeiro, e leis n 277 e 278,
Coimbra, Imprensa da Universidade, 1917, p. 32.
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Com isso, dizia ainda o Ministro, os republicanos franceses tinham posto termo ao []
pensamento simptico, mas irrealizvel, de as amalgamar [as colnias] com o continente em um
mesmo e nico organismo nacional, em que pretos e brancos, irmanados, gozassem da pura
doutrina da Dclaration des Droits 42
Face a estes objectivos e aos postulados cientficos que lhes estavam associados, a
pergunta, retoricamente formulada, da qual se partiu, para pensar o problema do governo das
populaes nativas, em Portugal como nos outros pases com colnias, foi a seguinte: deviam
estes indgenas ser tratados como cidados europeus ou deviam ser pensados, para ele,
estatutos e formas de governo alternativas, diferentes das formas de governo europeias ?
Esta pergunta desdobrava-se em muitas outras, to retricas quanto a primeira. Os
autores dos programas de colonizao perguntavam-se, por exemplo, se os indgenas deviam
estar submetidos mesma lei que obrigava os cidados das respectivas metrpoles, ou se deviam
ser sujeitos de uma legislao especialmente pensada para eles; e, tambm, se essa legislao
especial devia submeter-se ao princpio da constitucionalidade, da garantia dos direitos e
liberdades consagrados nos cdigos constitucionais europeus, o que equivalia a perguntar se
esses cdigos deviam vigorar nos territrios coloniais e quais as pessoas cujos direitos eles
deviam proteger43
. Perguntavam-se, tambm, se os indgenas deviam ter o direito poltico de se
fazer representar, atravs do voto, nos parlamentos metropolitanos. Se podiam participar na
administrao colonial e de que forma: integrados nos rgos da administrao local europeia ou,
pelo contrrio, atravs dos seus rgos tradicionais de administrao, fiscalizados pelas
autoridades coloniais (indirect rule)?44
.
Igualmente importante era saber se os indgenas deviam regular-se pelas leis civis da
metrpole, ser sujeitos aos processos civis metropolitanos, ser criminalmente condenados pelo
direito penal da metrpole. Deviam ser julgados por tribunais europeus ? Comuns ou especiais ?
42 V. Artur R. de Almeida Ribeiro, Descentralizao na Legislao e na Administrao das
Colnias, in Antologia Colonial Portuguesa, Lisboa, Agncia Geral das Colnias, 1946, vol. I: Poltica e
Administrao, p. 153. 43
Sobre a importao dos cdigos europeus para as colnias, com especial referncia ao caso
indiano v. Kiran Deshta, Uniform Civil code. In Retrospect and Prospect, New Delhi, Deep & Deep
Publications, 1999. 44
Sobre esta forma colonial de governo indirecto aplicado ndia (ou seja, no perodo que aqui nos
interessa) v. Michael H. Fisher, Indirect Rule In India. Residents and The Residency System, 1764 -1857,
Oxford, Oxford University Press, 1991. Os primeiros sintomas de importao, pelos portugueses, de polticas
inspiradas na indirect rule britnica foram o Decreto de 23 de Maio de 1907, que reorganizou
administrativamente a provncia de Moambique, da autoria do ento Ministro da Marinha e Ultramar Aires
de Ornellas (um decreto no qual a regulamentao dos deveres dos rgulos e outras autoridades africanas foi
entregue a um Secretrio dos Negcios Indgenas, cap.VIII, art. 37, 2) e o Regulamento das Circunscries
Administrativas de Angola, de 1912, que reconheceu s autoridades gentlicas as suas funes tradicionais
desde que a autoridade do chefe convenha autoridade administrativa e ela a confirme, cit. em Jos
Gonalo de Santa Rita, O contacto das raas nas colnias portuguesas. Seus efeitos Polticos e Sociais.
Legislao Portuguesa, in Congresso do Mundo Portugus, vol. XV: Memrias e Comunicaes
apresentadas ao Congresso Colonial (IX Congresso), tomo 2, seco II, Lisboa, 1940, p. 25.
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Ou deviam manter-se, para eles, as justias indgenas ? E que relao devia haver entre uma e
a outra ordem jurdica, quando a opo era a do pluralismo jurdico ?
Problemtico era, ainda, saber, caso a opo fosse por um modelo diferenciador, onde
devia ser produzida a legislao para o ultramar: na metrpole (e, aqui, se no parlamento ou se
directamente pelos governos), ou nas colnias ? E, neste ltimo caso, pelos respectivos
governadores, nomeados pelo poder central da metrpole, ou em instituies representativas
locais ? Que grupos populacionais deviam, finalmente, integrar estas instituies?
Estas questes no envolviam apenas, como se percebe, problemas de poltica colonial.
Envolviam tambm temas centrais da teoria poltica liberal e do constitucionalismo oitocentista,
como a cidadania, os direitos constitucionais, a igualdade perante a lei, o governo representativo e
limitado, a separao de poderes. Assim, era a prpria construo do Estado constitucional
oitocentista que o fenmeno colonial obrigava a repensar45
.
A resposta s questes acima formuladas variava no detalhe. Mas, neste fim do sculo,
numa altura em que os colonizadores j estavam a actuar no terreno, em contacto com a realidade
das tarefas quotidianas, todas iam no mesmo sentido, o sentido da especialidade.
Afirmar que a especialidade devia ser o princpio orientador da organizao da
administrao colonial significava, na literatura colonial oitocentista, vrias coisas. Significava, em
primeiro lugar, que as colnias no deviam estar sujeitas s constituies polticas da metrpole,
mas ser dotadas de leis orgnicas especiais, de constituies privativas46
. No que dizia respeito
ao seu governo, os autores daquela literatura afirmavam que no era adequado concentrar as
funes legislativas e executivas na metrpole, por causa da natureza diversa e essencialmente
diferente da legislao ultramarina, para cuja elaborao os deputados da metrpole careciam dos
conhecimentos (e do interesse) necessrios - uma constatao que vinha muitas vezes
acompanhada de comentrios anti-parlamentares, j muito comuns na poca, sobretudo nos
pases da Europa do Sul. Pelo contrrio, uma arquitectura administrativa colonial correcta exigia a
[] descentralizao, sobre o executivo, [de] uma parte da competncia do legislativo[]47
, a
autonomia dos governos coloniais locais relativamente metrpole, a definio de [] sucessivas
esferas de aco e de competncia dos governos locais, do governo da metrpole e do poder
legislativo, transportando deste para os outros dois e do segundo para os primeiros parcelas, de
valor decrescente, da funo legislativa e executiva, mas com carcter de concesso permanente,
45 Sobre esse temas, numa abordagem genrica, v. Maurizio Fioravanti, Appunti di Storia delle
Costituzioni Moderne, le Libert fondamentali, Torino, G. Giappichelli Editore, 1995, p. 81 e ss. e , do
mesmo autor, Costituzione, Bologna, Il Mulino, 1999, pp. 85 e ss. 46
As primeiras Leis Orgnicas para as colnias portuguesas, j citadas nesta introduo, foram
aprovadas em 1914, v. Artur R. de Almeida Ribeiro, Administrao Civil das Provncias Utramarinas, cit.
47 V. Ernesto de Vilhena, Questes coloniais, Discursos e Artigos, Lisboa, O Autor, 1910-11, p.
293.
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embora limitada48
. Era este o regime de descentralizao administrativa adequado s colnias
cuja populao era maioritariamente indgena porque, contrariamente ao que sucedia com as
colnias de povoamento europeu, aquelas no dispunham de populao em nmero e capacidade
suficientes para se governarem autonomamente. As outras de que eram exemplo alguns dos
territrios que integravam o Imprio Britnico, como a Unio da frica do Sul, o Canad, ou a
Austrlia, podiam existir num regime de quase independncia da metrpole, auto-governando-se
atravs de assembleias legislativas locais, residindo a o fundamento para que o Imprio britnico
fosse designado como um Imprio de liberdade. Nas primeiras, pelo contrrio, a simples
desconcentrao de funes, quando muito [] acompanhada da representao dos colonos em
corpos de constituio varivel, no raro, meramente consultivos era, para a maioria dos autores,
o grau de autonomia adequado49
. Foi esse o regime consagrado no nico e escassamente
discutido ttulo da Constituio republicana de 1911 dedicado s provncias ultramarinas50
. A
especializao e a descentralizao estiveram tambm presentes no esprito da lei republicana de
15 de Agosto de 1914, nomeadamente quando, no respectivo relatrio, se convidava o Parlamento
portugus a limitar-se, em relao s colnias, a formular princpios e disposies de carcter
geral, sem descer especializao, que da competncia do executivo da metrpole e dos
governos locais das colnias, muito mais aptos para precisar os termos em que tal especializao
deve ser feita51
.
Neste regime administrativo, o indgena no era, portanto, um sujeito poltico52
. Era, em
vez disso, o objecto de um regime jurdico e administrativo especial, a organizar pelas leis
especiais do indigenato. A elaborao destas leis era tarefa do Governador-geral, no devendo
48 V. Artur R. de Almeida Ribeiro, Descentralizao na Legislao e na Administrao[], cit., p.
156. 49
V. Artur R de Almeida Ribeiro, Administrao Financeiras das Provncias Ultramarinas,
Proposta de Lei Orgnica e Relatrio apresentados ao Congresso pelo Ministro das Colnias[]e Leis ns
277 e 278, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1917, p. 13. Tambm em Fernando Emygdio da Silva a
[] desconcentrao das atribuies do funcionalismo colonial hierarquicamente subordinado metrpole
era o regime adequado s fazendas, por oposio a descentralizao institucional das colnias de
povoamento, v. Colonizao e Colnias , cit., p. 26. Eduardo Costa considerava que a autonomia
administrativa colonial se obteria mediante a outorga de larga iniciativa e fortes meios de aco s
autoridades coloniais (Ministro e governadores) e chamando-se (com prudncia) os representantes do seu
comrcio, da sua agricultura, em resumo, dos contribuintes da raa dominante a dar a sua opinio e o seu
voto sobre a administrao e economia da colnia, v. Eduardo Costa em Estudo Sobre a Administrao
Civil[], cit., p. 8. 50
Na administrao das provncias Ultramarinas predominar o regime de descentralizao, com
leis especiais adequadas ao estado de civilizao de cada uma delas, tit. V, art. 67. Alm deste, havia o
polmico art. 87, a restringir a descentralizao (Quando estiver encerrado o Congresso poder o Governo
tomar as medidas que julgar necessrias e urgentes para as provncias ultramarinas). Foi ao abrigo deste
artigo que se aprovaram as Leis Orgnicas de 1914. 51
V. Relatrio da Lei n 277 de 15 de Agosto de 1914 (Lei orgnica da administrao civil das
provncias ultramarinas), cit. em Alfredo Hctor Wilensky, La administracin de justicia en frica
continental portuguesa,Lisboa, Junta de Investigaes do Ultramar,1971, p. 112. 52
Os rgos da administrao eram reservados aos colonos, embora aqui as opinies se dividissem,
havendo os que davam entrada aos indgenas, como aprendizes, naqueles organismos, e os que remetiam a
sua participao exclusivamente para as instituies indgenas, como defendia Eduardo Costa, Estudo
Sobre a Administrao Civil[], cit., p. 162 e ss.
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este ser limitado, nessa sua funo legislativa, pelos direitos civis e polticos dos cidados, como
explicava o Ministro responsvel pelo primeiro texto legislativo portugus onde se contemplou uma
poltica