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UNIVERSIDADE FEDERAL DO SUL E SUDESTE DO PAR
INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DINMICAS
TERRITORIAIS E SOCIEDADE NA AMAZNIA
REA: INTERDISCIPLINAR
CRISTIANO BENTO DA SILVA
A COMUNICAO DA USINA HIDRELTRICA DE MARAB
TRADUZINDO UMA SITUAO SOCIAL DE CONFLITO: reflexes a partir de
um territrio ribeirinho do sudeste paraense
MARAB-PA 2014
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CRISTIANO BENTO DA SILVA
A COMUNICAO DA USINA HIDRELTRICA DE MARAB
TRADUZINDO UMA SITUAO SOCIAL DE CONFLITO: reflexes a partir de
um territrio ribeirinho do sudeste paraense
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de
Ps-Graduao em Dinmicas Territoriais e Sociedade na
Amaznia (PDTSA), da Universidade Federal do Sul e
Sudeste do Par, campus de Marab, como um dos
requisitos para a obteno do titulo de mestre em
Dinmicas Territoriais e Sociedade na Amaznia.
Orientador: Prof. Dr. Alexandre Silva dos Santos Filho
MARAB-PA 2014
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CRISTIANO BENTO DA SILVA
A COMUNICAO DA USINA HIDRELTRICA DE MARAB
TRADUZINDO UMA SITUAO SOCIAL DE CONFLITO: reflexes a partir de
um territrio ribeirinho do sudeste paraense
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em
Dinmicas Territoriais e Sociedade na Amaznia (PDTSA), da Universidade Federal do
Sul e Sudeste do Par, campus de Marab, como um dos requisitos para a obteno do
titulo de mestre em Dinmicas Territoriais e Sociedade na Amaznia.
Aprovado por:
__________________________________________________________________.
Prof. Dr. Alexandre Silva dos Santos Filho (Orientador/UNIFESSPA)
__________________________________________________________________.
Prof. Dr. Rosa E. Acevedo Marin (Examinadora/UFPA)
__________________________________________________________________.
Prof. Dr. Snia M. S. Barbosa Magalhes Santos (Examinadora/ UFPA)
__________________________________________________________________.
Prof. Dr. Nilsa Brito (Examinadora suplente/UNIFESSPA)
Data: ______/______/_____
MARAB-PA 2014
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minha famlia.
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AGRADECIMENTOS
Inicio agradecendo a todos os professores do Programa de Ps-graduao em
Dinmicas Territoriais e Sociedade na Amaznia pela coragem em iniciarem e
continuarem levando adiante o primeiro programa de mestrado pblico dessa regio.
De modo igual, agradeo ao professor Alixa por se dispor a conduzir a minha
orientao e por me auxiliar neste novo caminho/percurso da vida acadmica. Apesar
das minhas limitaes (terico-metodolgicas e em relao conduo do tema),
finalmente conseguimos produzir esta dissertao.
No poderia deixar de agradecer ao migo Bruno Malheiro, por depositar a sua
confiana em mim e por mostrar que conhecimento social no se faz sem dialogar com
as experincias e com a realidade concreta das pessoas. Alm disso, devo a ele a
continuidade das pesquisas sobre esta temtica, j que foi sobre o seu incentivo que
pude ingressar no mestrado e esticar as pesquisas nesse mbito.
Indispensvel no lembrar o amigo Marcelo Melo e a amiga Edileuza Miranda,
j que me auxiliarem nos momentos difceis, e por sempre insistirem no fato de que no
possvel praticar uma neutralidade diante das questes sociais.
Agradeo a minha amiga Etiane, pelo incentivo e carinho com que me trata e por
me emprestar o seu computador, por mais de um ms, diante do fato de que o meu
resolveu criar vida prpria e decidiu no mais me emprestar os seus servios.
Tambm a Rita, Mayka e a professora Rosa por permitirem a minha insero, na
condio de colaborador, na equipe do Projeto Nova Cartografia Social da Amaznia
(PNCSA) do sudeste paraense. Foram momentos muito produtivos e, com certeza,
repercutiram no aprendizado que trago na minha bagagem. E claro, pude ver mais de
perto as tenses com que se defrontam, cotidianamente, as Mulheres Quebradeiras de
Coco Babau, Indgenas e vrios outros grupos engalfinhados em disputas pela vida em
seus territrios.
Agradeo a Priscila, por estar comigo nessa empreitada e por me auxiliar na
transcrio das entrevistas. Agradeo-a tambm pelo afeto com o qual sempre me
acolhe.
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A todos os habitantes da vila Esprito Santo por compartilharem comigo as suas
angustias em relao barragem de Marab, e tambm por compartilharem as suas
histrias e diversos momentos de alegria.
Agradeo s pessoas que compe o Movimento dos Atingidos por Barragens em
Marab, em especial a Dani, Rogrio, Cristiano e a Giseli, por fazerem com que eu
tivesse legitimidade para adentrar na vila Esprito Santo. Em outros termos, eles
tornaram a minha pesquisa possvel, pois me apresentaram ao grupo e, a partir de ento,
tive possibilidades de conduzir as entrevistas em campo.
Tambm agradeo a CAPES pelo apoio financeiro durante boa parte do
mestrado.
No posso me furtar a agradecer professora Clia Conglio que brigou para que
as quatro bolsas iniciais disponveis para o mestrado, e esquecidas em algum lugar
institucional por ai, fossem achadas e liberadas.
Aos amigos da minha turma Flvia, Valtey, Renato, Tiese, Andre, Anilson,
Laecio, Ribamar, Rose, Joyce, Bressan, tambm agradeo pelo tempo em que passamos
juntos e pelas discusses que travamos, seja em sala de aula ou em qualquer outro
espao. Fomos as cobaias do mestrado. No fim, s consigo avistar pontos positivos
em todo esse processo.
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RESUMO
Este trabalho aborda o tema do conflito social tendo como referncia a disputa pelo
territrio ribeirinho da vila Esprito Santo (sudeste paraense), o qual est sendo
pleiteado para a construo da Usina Hidreltrica (UHE) de Marab. Os agentes sociais
daquele espao veem de forma crtica a ideia de terem que deixar o seu territrio, que
representado, dentre outras formas, tanto como um espao de reproduo material da
vida, quanto como espao de referncia simblica. Esta situao especfica conduz este
trabalho a perseguir o seguinte objetivo, qual seja: estudar a dimenso do conflito que
permeia a relao entre os agentes sociais do territrio ribeirinho da vila Esprito Santo
e os grupos vinculados ao projeto de construo da Usina Hidreltrica de Marab. No
plano metodolgico o esforo para discutir o conceito de conflito social buscando um
dialogo com a noo de territrio na perspectiva geogrfica. Ainda, nessa discusso,
optou-se por tratar da noo de efeitos sociais para falar do comportamento revelado
pelos grupos sociais quando estes esto sob a ameaa de barragens. A partir disso foi
possvel compreender que os conflitos sociais no entorno de projetos hidreltricos no
s desintegra os grupos, mas impulsiona-os a relaes de cooperao. E o objetivo deles
a autopreservao. No contexto da vila Esprito Santo as relaes sociais entre os
habitantes dali e os segmentos empresariais vinculados barragem de Marab no
nada amistosa. H um processo de construo social do conflito na medida em que falta
esclarecimento sobre o que vai significar (numa escala mais aprofundada) a presena
desta tecnologia no referido territrio. Ali, a comunicao/anncio da referida usina
hidreltrica significa a perda da tranquilidade de viver o presente, e as narrativas se
referem ao futuro como um lugar de incertezas. Portanto, o futuro sempre tido como
um tempo onde no vai haver possibilidades de uma vida digna. E isso concorre para
que a barragem de Marab, j em processo, simbolize algo desastroso para a existncia
(simblica e cultural) naquele territrio, o que faz dela algo contestvel.
Palavras- Chaves: Conflito Social; Hidreltrica de Marab; Territrio; Efeitos Sociais;
Sofrimento Social.
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ABSTRACT
This work addresses the social conflict theme with reference to the dispute over coastal
territory from the Esprito Santo village (Par southeast), which is being pleaded to the
construction of the Marab hydroelectric plant. The social agents that space see
critically the idea of having their territory, which is represented, among other ways, both
as a space of material reproduction of life, as a space of symbolic reference. This
specific situation leads this work to pursue the following objective, which is: to study
the dimension of the conflict that exists in the relationship among the social agents the
coastal territory from the Esprito Santo village and the attached groups to the Marab
hydroelectric plant construction project. In the methodological plan the effort is to
discuss the concept of social conflict seeking a dialogue with the territory in the
geographical perspective. Yet in this discussion, was chosen to deal with the social
effects notion to speak of the revealed behavior by social groups when they are under
threat of dams. From this it was possible to understand that social conflicts around the
hydroelectric projects not only disintegrates groups, but drives them to relations of
cooperation. And their objective is self-preservation. In the context of the Esprito Santo
village the social relations among the inhabitants there and the business segments
related to dam Marab is nothing friendly. There is a process of social construction of
conflict in the measure that lack clarity about what will mean (in a more detailed scale)
the presence of this technology in that territory. There, the communication/advertising
of said hydroelectric plant means losing the tranquility of living in the present, and the
narratives refer to the future as a place of uncertainty. Therefore, the future is always
seen as time where there will be possibilities for a decent life. And it contributes to the
dam of Marab, in the process, symbolize something disastrous for the existence
(symbolic and cultural) that territory, making it something questionable.
Key-words: social conflict; Marab hydroelectric; territory; social effects; social
suffering
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LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 Barragens no rio Tocantins at 2025.................................................................... 47
FIGURA 2 Cadeia de barragens na bacia do rio Tocantins at 2025..................................... 48
FIGURA 3 Projeo da rea atingida pela UHE de Marab................................................... 56
FIGURA 4 Reserva Indgena Me Maria............................................................................... 58
FIGURA 5 UMA DAS PORTAS DE ENTRADA E SADA DA VILA APINAJS:
ilustrao do porto em poca de seca do rio Tocantins........................................
64
FIGURA 6 UMA DAS PORTAS DE ENTRADA E SADA DA VILA APINAJS:
ilustrao do porto em poca de cheia do rio Tocantins.......................................
65
FIGURA 7 REGIO DE LOCALIZAO DA UHE DE MARAB: seta laranja
indicando o lugar de instalao da barragem, que corresponde, ao mesmo
tempo, ao eixo do territrio da vila Esprito Santo..
78
FIGURA 8 PRIMEIRO EIXO DE CIRCULAO: o rio como referncia espacial
histrica................................................................
79
FIGURA 9 SEGUNDO EIXO DE CIRCULAO: a consolidao da estrada como meio
alternativo de deslocamento.............................................................................
80
FIGURA 10 DOIS EIXOS DE INSTALAO DA VILA ESPRITO SANTO: espao
original de existncia (seta amarela), e o lugar atual onde ela se encontra (seta
vermelha)..............................................................................................................
81
FIGURA 11 IGREJA CATLICA: um dos smbolos da religiosidade presente na dinmica
da vila...................................................................................................................
88
FIGURA 12 SANTURIO DE SANTO EXPEDITO: lugar de culto de mais uma das
tradies religiosas do grupo............................................................................
90
FIGURA 13 PRDIO DA ESCOLA JOS FREIRE DE ALENCAR: hoje ele utilizado
como residncia e, a rea externa, como estacionamento direcionado aos
turistas..............................................................................................................
92
FIGURA 14 ANTIGA SALA DE AULA DA ESCOLA JOS FREIRE DE ALENCAR:
marco do primeiro espao voltado para a educao institucionalizada na vila
Esprito Santo.......................................................................................................
93
FIGURA 15 ENCONTRO S MARGENS DO RIO TOCANTINS: o debate sobre as
repercusses da Usina Hidreltrica de Marab no territrio da Vila Esprito
Santo.
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LISTA DE QUADROS
QUADRO 1 Alagamento total de reas urbanas pela UHE de Marab........ 57
QUADRO 2 Alagamento parcial de reas urbanas pela UHE de Marab........ 57
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LISTA DE SIGLAS
ANEEL Agncia Nacional de Energia Eltrica
BID Banco Interamericano de Desenvolvimento
CHESF Companhia Hidreltrica do So Francisco
CNEC Consrcio Nacional de Engenheiros Construtores
CPT Comisso Pastoral da Terra
CRAB Comisso Regional dos Atingidos por Barragens
DNIT Departamento Nacional de Infraestrutura e Trnsito
EIA Estudo de Impacto Ambiental
ELETROBRS - Centrais Eltricas Brasileiras S/A
ELETRONORTE Centrais Eltricas do Norte do Brasil
EPE Empresa de Pesquisa Energtica
FUNAI Fundao Nacional do ndio
LASAT Laboratrio Scio-Agronmico do Araguaia-Tocantins
MAB Movimento dos Atingidos por Barragens
RIMA Relatrio de Impacto Ambiental
SGH Superintendncia de Gesto e Estudos Hidroenergticos
UHE Usina Hidreltrica
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INTRODUO...................................................................................................................
13
1.
BASE E FUNDAMENTOS: ELEMENTOS PARA PENSAR O FENMENO
SOCIAL DO CONFLITO..............................................................................................
18
1.1
Conflito social: alguns aspectos..............................................................
20
1.2 Contribuies da teoria de George Simmel para o estudo do conflito social......... 22 1.3 Territrio e conflito: uma aproximao conceitual necessria................................ 26 1.3.1 Territrio e conflito social: o contexto de edificao da UHE de Belo Monte. 30
1.4 A disputa pela definio de atingidos por barragens............................................... 35
1.5 Barragens na perspectiva dos efeitos sociais........................................................... 38
2.
USINAS HIDRELTRICAS E CONFLITOS SOCIAIS NO SUDESTE
PARAENSE.
46
2.1
A atualidade da barragem de Tucuru.....................................................................
46
2.2 A barragem de Marab e as demandas em conflito no sudeste paraense........ 54
3.
DISPUTANDO O TERRITRIO: A CONSTRUO SOCIAL DO CONFLITO
NA VILA ESPIRITO SANTO...
74
3.1 Discusso metodolgica.. 74 3.2 Espao da pesquisa: dinmica de formao da vila Esprito Santo e do crculo de
sociabilidade............
78
3.3 A experincia do contato com a Usina Hidreltrica de Marab.......... 94 3.4 a nossa vida que vai embora, a vida: a barragem de Marab como marco de
um tempo de perdas.................................................................................................
102
3.5 Autoavaliar-se como atingido................................................................................. 106 3.6 A soluo imprpria: ir morar na cidade............. 110 3.7 Resposta cabvel: possveis solues......
113
4. CONSIDERAES FINAIS......................................................................................... 117 REFERNCIAS.......................................................................................................... 119
SUMRIO
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INTRODUO
Este trabalho aborda o tema do conflito social tendo como referncia a disputa
por um territrio ribeirinho, no sudeste paraense, que est sendo pleiteado para a
construo da Usina Hidreltrica (UHE) de Marab. Trata-se da vila Esprito Santo1:
lcus emprico desta pesquisa. Ali, as experincias e prticas socioculturais
referenciadas nas guas do rio Tocantins esto ameaadas. Por isto, os agentes sociais
veem com um olhar crtico a ideia de terem que deixar o seu territrio, o qual
representado tanto como um espao de reproduo material da vida, quanto como
espao de referncia simblica.
A Usina Hidreltrica de Marab foi pensada para a Bacia do Araguaia-
Tocantins ainda na dcada de 1976, em virtude do primeiro estudo de inventrio
realizado pela Eletronorte. Depois de muito tempo sem ganhar destaque o referido
projeto foi reavivado, no limiar do sculo XXI, pelo governo brasileiro. Atravs do
oficio n. 1173/2005-SGH/ANEEL houve a liberao dos Estudos de Viabilidade
Tcnica, Econmica e Ambiental desta barragem. frente de tais estudos esto as
Centrais Eltricas do Norte do Brasil S.A (Eletronorte), e o grupo Construo e
Comrcio Camargo Corra S.A.
Conforme apontam os dados da Eletronorte, sero afetadas cerca de 7.888
pessoas, somando as populaes rurais e urbanas, do estado do Par, Tocantins e
Maranho. Estes nmeros, traduzidos em termos de famlias, correspondem a 2.075
grupos familiares. Destes, 858 habitam a zona urbana e 1.217 habitam o meio rural2.
Entretanto, tais nmeros tm sido contestados pelo Movimento dos Atingidos por
Barragens em Marab. Ao invs de serem afetados apenas 2.075 grupos familiares, a
estimativa a de que 10 mil famlias, que vivem as margens do rio Tocantins possam
ser atingidas pela construo desta tecnologia de utilizao das guas do rio.
1A vila Esprito Santo esta situada na regio sudeste do estado do Par, margem direita do Rio
Tocantins.
2ELETROBRAS/ELETRONORTE. AHE Marab. Cmara Municipal de Vereadores de Marab.
Apresentao de Power Point. 23 de maio de 2013.
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Na regio sudeste do Par, diversos espaos e suas organizaes sociais tambm
sero afetados, sobretudo, assentamentos, vilas e partes urbanas de municpios
estabelecidos margem do rio Tocantins. No principal eixo de alagamento est o
territrio da vila Esprito Santo: espao marcado para servir de canteiro de obras ao
projeto hidreltrico em destaque. Em virtude disto, a vila tem estado na agenda de
visitao do Movimento dos Atingidos por Barragens, de pessoas que desenvolvem
algum tipo de estudo ou mesmo de grupos interessadas em por a vista no primeiro
territrio a ser desabitado em funo do erguimento da barragem em destaque.
A comunicao da barragem de Marab repercute de forma desagradvel na vila
Esprito Santo. Isto porque causa intranquilidade nas mais de 100 famlias que,
historicamente, habitam aquele espao (RIBEIRO, 2013). Conviver com a notcia de
que o territrio em que vivem e se reproduzem social, econmica e culturalmente
dever ser desapropriado para a instalao de uma usina hidreltrica algo inquietante
para muitos. A situao se agrava quando j se sabe que a rede de relaes sociais,
experinciada naquele cotidiano atravs do parentesco, da vizinhana, da afiliao
religiosa, das relaes com outros lugares fora da vila, est em vias de ser
desconstruda. Essa situao social, no contexto da presente dissertao de mestrado,
ganha significncia em termos de problematizao.
Assim, ir aos os lugares de enunciao, isto , dialogar com aqueles agentes
sociais pode ser promissor no sentido de entender como eles lidam com esta questo e
de que forma est sendo construda a relao com os grupos a frente deste projeto
hidreltrico. Tornar essas vozes audveis significa perceber o desdobramento da atual
situao de ameaa de deslocamento compulsrio, e as dimenses da vida apresentadas
como afetadas.
Nesse sentido, e tendo em vista a temtica exposta, uma questo emerge como
central para orientar esta investigao: de que maneira a comunicao da Usina
Hidreltrica de Marab expressa uma dimenso de conflito social envolvendo os
agentes sociais do territrio da vila Esprito Santo e as instituies interessadas na
construo desta tecnologia?
Tendo em vista esta problemtica, a proposta estudar a dimenso do conflito
social que permeia a relao entre os agentes sociais do territrio ribeirinho da vila
Esprito Santo (sudeste paraense), e os grupos/instituies vinculados ao projeto de
construo da Usina Hidreltrica de Marab.
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A observao de diferentes situaes auxilia na operacionalizao da referida
pesquisa. Neste percurso necessrio apontar as experincias sociais de conflito
relacionadas a outros territrios interpelados pela presena de barragens; identificar a
dimenso dos efeitos sociais traduzida pelas aes de agentes sociais que pe em
questo este tipo de tecnologia; assinalar as avaliaes feitas pelos agentes sociais da
vila Esprito Santo diante do processo de comunicao de que a Usina Hidreltrica de
Marab ser instalada a altura do territrio no qual eles vivem; analisar com esta
situao de disputa pelo territrio remete a um processo de construo social do
conflito.
As argumentaes sobre o fenmeno social (e sociolgico) do conflito esto
assentadas na teoria simmeliana, a qual trata este fenmeno da sociedade afirmando que
ele possui uma escala gradativa de manifestao e tambm revela uma tendncia de
aproximao entre grupos que esto sob a ameaa de inimigos em comum. Alm disso,
as situaes de ameaas refletem positivamente na coeso interna de determinados
grupos sociais. Esta coeso, de acordo com Simmel (1983), aparece na forma de uma
unidade tanto em termos de pensamento quanto de ao.
Esta abordagem importante para apreender este universo no qual a barragem
de Marab est em processo e apresentada como um fato consumado, principalmente,
nos discursos dos grupos empreendedores (ELETRONORTE e Camargo Corra). Na
tentativa de exercitar a interdisciplinaridade, e tambm de dar conta de uma dimenso
mais ampla da realidade pesquisada, buscou-se apoio na concepo de territrio do
ponto de vista do entendimento de Haesbaert (2004).
Para este autor, o territrio que, de uma forma sinttica, representa a
espacialidade humana precisa ser analisado a partir de uma perspectiva integradora. Ou
seja, ele carrega sempre, de forma indissocivel, uma dimenso simblica, ou cultural
em sentido estrito, e uma dimenso material, de natureza econmico-poltica
(HAESBAERT, 2004, p. 74). Quando se trata da construo de empreendimentos
hidreltricos pode-se encarar a disputa por territrios como o centro dos conflitos.
Geralmente, o que se apresenta a valorizao do territrio numa perspectiva
econmica e poltica, onde a acumulao de capital d a tnica do processo. Ornelas
(2008), analisando a questo por essa perspectiva, reflete que no espao-tempo da
Amrica Latina os conflitos sociais no esto mais concentrados nos espaos da
explorao- como o mercado e a fbrica- e da poltica. Eles tem se espraiado at os
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territrios e afetado diversas modalidades de vida, as quais se referenciam (simblica e
geograficamente) nestes espaos. E ai a conflitualidade vai se desenhando em funo da
disputa pela existncia. E isto vlido para a compreenso das relaes na rbita da
Usina Hidreltrica de Marab, partindo do territrio da vila Esprito Santo.
A importncia desta pesquisa est ancorada em alguns aspectos. Ela relevante
porque, na situao atual em que se encontra a barragem de Marab, h uma certa
carncia de estudos dimensionando o modo como este projeto vem se inserindo no
sudeste paraense, apesar de que ele est em andamento (estudo) desde 2005. Ento,
oportuno trazer esse debate, a partir dos relatos de campo coletados na vila Esprito
Santo, porque ele contribui com a visibilidade do processo de chegada desta tecnologia
na regio.
Outro ponto que o estudo mencionado pretende construir um registro histrico
da forma como os agentes sociais da vila Esprito Santo esto lidando com a barragem
em destaque. E isto significa entender esta tecnologia atravs das narrativas coletadas
naquele territrio. Nesse sentido, possvel anotar que dimenses da vida compe o
contedo dos relatos, quando estes trazem tona o sentido de ameaa presente na Usina
Hidreltrica de Marab. Por outro lado, ficar evidente tambm o quanto as instituies
ligadas a este projeto vm estreitando (ou no) o dialogo com o grupo do territrio
pesquisado.
No plano terico, este trabalho pretende contribuir com os estudos que abordam
a temtica do conflito social, envolvendo projetos hidreltricos, articulando-a com uma
dimenso da vida, que o territrio- base de reproduo material e simblica de povos e
comunidades tradicionais, sobretudo, na Amaznia. Para isto abordou-se o exemplo do
recorte emprico feito a partir do territrio da vila Esprito Santo, nesse momento de
presena da barragem de Marab.
As argumentaes desta dissertao esto dispostas em trs captulos. O
primeiro captulo demonstra a fundamentao conceitual do estudo, trazendo o conceito
de conflito social baseado no entendimento simmeliano. Ainda, nessa perspectiva,
verifica-se como este fenmeno da sociedade tem sido inscrito em contextos marcados
pela construo de barragens, e qual tem sido o papel da disputa por territrios em todo
esse processo.
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O segundo captulo mostra, baseado em situaes concretas a partir do sudeste
paraense, a manifestao do conflito social e as suas relaes com a disputa pela vida
nos territrios. E isto se traduz, por exemplo, quando se demonstra a atualidade do
conflito no entorno da barragem de Tucuru, e tambm o desencadeamento das reaes
aps a comunicao da barragem de Marab.
O terceiro captulo pretende fornecer uma viso de como a comunicao da
Usina Hidreltrica de Marab repercute entre os agentes sociais da vila Esprito Santo, e
quais so os desdobramentos dessa situao. Ainda, a ideia verificar as experincias e
relaes sociais contabilizadas como ameaadas naquele territrio. Alm disso, busca-se
compreender o modo como as relaes estabelecidas entre os segmentos ligados esta
tecnologia e os grupos da vila Esprito Santo configura uma situao social de conflito.
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CAPITULO 1- BASE E FUNDAMENTOS: ELEMENTOS PARA PENSAR O
FENMENO SOCIAL DO CONFLITO
Numa perspectiva sociolgica, a origem do
conflito encontra-se na estrutura social. Em
todas as sociedades h interesses desiguais
para os cidados e para os grupos, o que leva
alguns deles a assumirem posies de domnio
relativamente aos outros. Por seu turno, e da
parte dos restantes surge a recusa desse
domnio.
Maria da Saudade Baltazar
O conflito impe um passo alm do agora
construdo. Ele uma ao desencadeadora de
reviravoltas, mudanas sociais, constituindo-se
num componente regular do prprio cotidiano
e substncia existente nos diversos
movimentos efetuados pelas mudanas nas
relaes humanas.
Jos O. Alcntara Junior
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O presente captulo se prope a discutir a fundamentao conceitual desta
pesquisa a partir de uma imerso na teoria sociolgica do conflito3de Simmel (1983),
especialmente. A ideia verificar como esse mbito do conhecimento sociolgico pode
contribuir para a compreenso das relaes de conflitualidade em contextos
reivindicados para a instalao de projetos hidreltricos, sobretudo, na vila Esprito
Santo- lcus desta pesquisa emprica. Ainda em termos de fundamentao conceitual, e
na tentativa de dar conta da realidade pesquisada, lanou-se mo do conceito de
territrio baseado na perspectiva de Haesbaert (2004).
Ornelas (2008) j sinalizava a fecundidade de pensar as relaes de disputa por
esta perspectiva. Para ele, no contexto da Amrica Latina o substrato dos conflitos
sociais transita dos espaos da explorao (o mercado, a fbrica) e da poltica at o
territrio. Desta maneira, o conflito tem chegado ao conjunto das esferas da existncia
social e tende a se expressar em sua maior agudeza em aquelas que constituem o
substrato da vida: as comunidades, suas condies de existncia e seus espaos
geogrficos e simblicos (ORNELAS, 2008, p. 93). Em outros termos, a expanso da
lgica capitalista alcanou uma escala to ampla que chegou a afetar os territrios onde
diversos grupos constroem as suas experincias de vida. Estes, por sua vez, se recusam
a ter as suas histrias escritas pela ao de outros que no sejam eles prprios. E ai a
conflitualidade vai se desenhando.
Na Amaznia brasileira, o conflito entre as populaes indgenas, pescadores,
extrativistas, mulheres quebradeiras de coco babau, pequenos comerciantes de beira de
rio, assentados e os propositores de usinas hidreltricas tende a revelar este aspecto. Os
efeitos sociais dessa conflitualidade mostram que a conduta humana, em tais situaes,
no pacifica.
Por isto, pensar as relaes entre o setor eltrico e os povos e comunidades
tradicionais que esto no eixo das barragens, por assim dizer, pensar em relaes de
disputa pela existncia nos territrios. Alis, a conflitualidade que modela as relaes
3 necessrio ressaltar o pioneirismo de Karl Marx na anlise sociolgica do fenmeno social do conflito.
Engels (2003) demonstra que, de acordo com o pensamento de Marx, tanto os conflitos polticos,
religiosos, filosficos, quanto os embates no plano ideolgico so expresses, mais ou menos claras, de
luta entre classes. Os conflitos entre classes, por sua vez, seriam condicionados pelo grau de
desenvolvimento da situao econmica destes agentes, e tambm pelo modo de produo e de troca no
qual eles esto inseridos. Embora no tenha deixado um tratado sociolgico sobre esse tema, o legado de
Karl Marx engloba esta discusso principalmente pelo mbito da luta de classes.
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entre estes segmentos da sociedade tem vrios desdobramentos, conforme se ver ao
longo da exposio.
1.1 CONFLITO SOCIAL: ALGUNS ASPECTOS
O conflito social tem sido analisado, cada vez mais, por diferentes abordagens.
Tem havido teorizaes diversas sobre este fenmeno, o que, de certo maneira,
enriquecedor para a temtica. Tavares dos Santos (1999), por exemplo, demonstra que,
na busca pelos homens e mulheres que tecem o espao social, necessrio se apoiar na
noo de relaes sociais e de agentes sociais.
De acordo com o referido autor, estes agentes sociais devem ser entendidos,
dentro das suas complexidades, pela posio de classe, de gnero ou de etnia; e
diferenciados internamente em classes, fraes de classe, categorias, grupos sociais
(TAVARES DOS SANTOS, 1999, p. 19). Ou seja, preciso observar a variedade de
sujeitos que esto na linha de confronto com os poderes dominantes e, com base nisso,
atentar para o fato de que todo esse conjunto constitudo por foras sociais e pode
engendrar estratgias de manuteno ou de transformao da ordem social.
Para Tavares dos Santos (2004), as relaes de sociabilidade passam por uma
espcie de transformao, que recente, onde coexistem processos como os de
integrao comunitria e de fragmentao social, de massificao e de individualizao,
de ocidentalizao e de desterritorializao.
As questes sociais se acirram, no incio do sculo XXI, o que faz desencadear
um processo de excluso social e o resultado pode ser visto na existncia dos sem
classe', 'sem terra', aqueles que vivem a excluso digital, os 'sem teto', aqueles que
passam fome ou os 'sem trabalho' (TAVARES DOS SANTOS, 2004, p. 4 grifos do
autor). Somado a isso, esto as repercusses das inovaes tecnolgicas, principalmente
no campo, onde acarretam grandes mudanas na dinmica de existncia individual e
coletiva de muitos agentes sociais.
Conforme o mencionado autor, todos estes processos devem-se, especialmente,
predominncia da mercantilizao do social, o que resulta na destruio de formas de
sociabilidades coletivas. E isto no deve ser visto s como um problema sociolgico,
mas tambm da sociedade.
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Silva (2011), tambm analisando a dimenso do conflito social, demonstra que
no se pode deixar s a cargo das perspectivas macro-histricas e macrossociolgicas a
compreenso deste fenmeno. Isto porque, cada nao, cada cultura, cada sociedade
engendra modelos de relaes sociais que so, peculiarmente, tecidas com os fios do
conflito. Nesse sentido, as avaliaes baseadas em parmetros microssociolgicos
poderiam contribuir com estes estudos na medida em que se preocupam, muito mais,
com as situaes particulares.
Entre criticas e consenso, Tavares dos Santos (2002) analisa que deve haver um
permanente dialogo com diferentes instrumentos tericos, sobretudo, incorporando
aqueles que primeiro se debruaram sobre o estudo dessa temtica, fazendo-os dialogar
com os aportes tericos praticados na contemporaneidade das cincias sociais. Com
base nisso, as possibilidades de acompanhar a dinmica da(s) realidade(s) pelo prisma
do conflito se tornam mais elsticas.
A atualidade dos estudos a respeito de situaes de conflito bastante profcua.
Elementos de aparente irrelevncia tm sido problematizados no mbito das cincias
sociais. Trata-se da incluso do sofrimento social, e da dor desencadeada por ele, no rol
das abordagens. Koury (1999) ressalta que a manifestao destes fenmenos est
intrnseca a exposio de populaes a situaes de risco determinadas. O sofrimento
social e a dor so fenmenos que no esto circunscritos, unicamente, s experincias
individuais. Tambm preciso avaliar as suas manifestaes no perdendo de vista a
coletividade. Ou seja, tem ai uma dimenso social.
De acordo com as anlises de Koury (1999, p. 76), a dor e o sofrimento podem
ser pensados como categorias analticas no quadro de uma cincia social. Por isso,
preciso, antes de tudo, buscar o espao social em que esses fenmenos se manifestam
para perceber as relaes que os originam. Em contextos de conflito, esses elementos
ganham notoriedade. Por outro lado, Barreto (2001) ressalta que o sofrimento social,
apesar de ser senso comum que ele faz parte da vida, dentro do campo das cincias
sociais tem sido timidamente abordado.
O sofrimento social remete a questo das emoes e est ligado com valores e
sentimentos do tipo dor, contentamento, honra, vergonha, humilhao, embarao,
orgulho, rejeio, medo, respeito, amor, inadequao, nojo, repugnncia, raiva, pesar
(BARRETO, 2001, p. 16). O conjunto destes elementos, no entanto, no deve ter suas
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origens imputadas, nica e exclusivamente, a motivaes puramente subjetivas. Eles
surgem das relaes objetivas de poder presentes na sociedade.
O sofrimento social, quando considerado por esse prisma, tem relaes com as
aes dos poderosos e tem sua visibilidade na esfera pblica, contrastando com aquele
sofrimento que se desenrola dentro da esfera privada e tem o individuo como seu
principal sujeito (BARRETO, 2001, p. 16). A configurao das relaes de
conflitualidade que influencia o desencadear desse elemento.
De acordo com Baltazar (2007), o comportamento humano bastante
complicado e tem mltiplas faces, sendo muito pouco provvel que uma nica
perspectiva terica possa dar conta de todas as suas caractersticas. Mas, como
identificar situaes de conflito? Baltazar (2007) ressalta que os primeiros passos
devem ser dados no sentido de apreender o contato entre os grupos. Sem contato entre
os setores em querela, no pode haver manifestao dos interesses em antagonismo.
Assim:
[] quanto mais frequente e sistemtica a comunicao, maior e mais clara a percepo da diferena de interesses entre os possveis adversrios, o que
por sua vez tende a intensificar aquela comunicao e contribuir para a sua
dinmica comportamental (BALTAZAR, 2007, p. 99).
Comunicar-se pode significar, alm da demarcao das diferenas de interesses,
a projeo de uma dada perspectiva da realidade como a nica vlida. E isto j se
apresenta no contexto em que a Usina Hidreltrica de Marab est em processo. Alis, o
que parece est em evidncia a sobreposio da lgica de explorao das guas do rio,
baseada na gerao de energia eltrica, como a forma legtima de utilizar aquele recurso
natural. Alm disso, a projeo desta tecnologia pode significar a anulao do lado
oposto que, no caso da realidade aqui estudada, o territrio da vila Esprito Santo.
1.2 CONTRIBUIES DA TEORIA DE GEORGE SIMMEL PARA O ESTUDO DO
CONFLITO SOCIAL
A teoria simmeliana reconhece que as sociedades, ao longo da histria, foram
edificadas com base em relaes onde se verifica a unidade dos grupos ou ento a
contrariedade dessas unidades. Nesse sentido, a contradio e o conflito, ao contrrio,
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no s precederam esta unidade como operam em cada momento de sua existncia
(SIMMEL, 1983, p. 124). Harmonia e desarmonia, associao e competio, tendncias
favorveis e opostas estiveram sempre presentes na dinmica da vida.
De acordo com a perspectiva em destaque, o fenmeno social do conflito possui
variantes que esto em permanente dilogo. Ele tem em seu substrato aspectos positivos
e caractersticas negativas. Na realidade concreta, o referido fenmeno expressa as suas
duas faces de maneira articulada. Por isso, elas podem at ser separadas no plano
conceitual, o que no deve ocorrer no plano emprico.
O esforo da teoria simmeliana ocorre no sentido de tomar o conflito que emerge
das esferas sociais e problematiz-lo a partir de uma perspectiva sociolgica. Para o
referido autor, todas as formas sociais aparecem sob nova luz quando vistas pelo
ngulo do carter sociologicamente positivo do conflito (Idem, 1983, p. 123). A crtica
simmeliana recai sobre as abordagens em que tal fenmeno aparece somente como algo
negativo, no sentido de que desarticulador dos grupos. E os tpicos tradicionais da
sociologia teriam dado uma grande contribuio a este respeito.
A teoria de George Simmel demonstra que as discordncias existentes no seio da
sociedade no so absolutamente meras deficincias sociolgicas ou exemplos
negativos. As foras em contradio concorrem, decisivamente, para a formao de
sociedades com arranjos coletivos e sociais especficos. Ainda, de acordo as anlises
deste autor:
O desaparecimento de energias de repulso (e isoladamente consideradas, de
destruio) no resulta sempre, em absoluto, numa vida social mais rica e
plena (assim como o desaparecimento de responsabilidades no resulta em
maior propriedade), mas num fenmeno to diferente e irrealizvel quanto se
um grupo fosse privado das foras de cooperao, afeio, ajuda mtua e
convergncia de interesses (SIMMEL, 1983, p. 127).
Jnior (2005, p. 8), analisando a questo do conflito definido por George
Simmel como algo tambm positivo, reflete sobre o fato de que, quando considerado
enquanto uma forma social, o conflito pode possibilitar momentos de construes e
destruies, quer sob as instituies, estruturas, arranjos, processos, relaes e
interaes sociais. A positividade mencionada no sentido de que o referido fenmeno
social no s destrutivo, isto , desagregador de grupos sociais. Ele tem influncia na
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organizao e aproximao dos grupos que esto em situao de querela com um poder
dominante. Na situao de conflito social, os defensores de interesses comuns tendem a
se tornar mais coesos.
Alm de entender o conflito como algo que repercute no processo de integrao
social, se reconhece tambm os seus diferentes graus de manifestao. Dependendo das
circunstncias, ele pode se expressar de forma latente, isto , pela averso e por
sentimentos de mtua estranheza e repulso que, num contato mais ntimo, no importa
quo ocasional, transforme-se imediatamente em dio e lutas reais (SIMMEL, 1983, p.
128). O conflito, nessa perspectiva, vai sendo modelado e construdo socialmente e nas
disputas.
De acordo com Junior (2005, p. 9), em anlise do conflito na perspectiva
simmeliana, este fenmeno social tende a se expressar sob a forma de um gradiente,
indo das relaes sociais speras at, s vezes, ao confronto fsico. Importante reter
este carter processual do conflito. Se encarado dessa forma, isto , em seus diferentes
nveis de existncia e manifestao, a possibilidade de estuda-lo quando ele ainda no
desembocou em dimenses mais acirradas de confronto pode ser viabilizada.
A teoria simmeliana demonstra que a antipatia a fase preliminar do
antagonismo concreto que engendra as distncias e as averses (SIMMEL 1983, p.
128). Ratificando o pressuposto de que o conflito um processo, a referida teoria
assinala que este fenmeno social deve ser buscado, tanto no mbito emprico quanto
terico, em conjunto com as situaes de cooperao. preciso entender como, nestas
situaes, os grupos esto buscando articulaes entre si e se tornando mais coesos,
internamente.
No sentido posto, h uma conexo entre as situaes sociais de conflito e a
aproximao dos membros internos de determinados grupos sociais, e destes com
grupos externos. Esta aproximao tem um propsito essencial, que o de defesa. Nos
casos envolvendo os enfrentamentos com projetos hidreltricos o que se defende a
continuao da vida nos espaos pretendidos para a instalao deste tipo de tecnologia.
Em outros termos, o impulso da autopreservao.
O conflito, na perspectiva simmeliana, tambm um elemento ordenador dos
confrontos. ele quem define e normatiza os embates. Assim,
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Se o conflito causado por um objeto, pela vontade de ter ou controlar
alguma coisa, pela raiva ou por vingana, tal objeto ou estado de coisas
desejado cria as condies que sujeitam a luta a normas ou restries
aplicveis a ambas as partes rivais (SIMMEL, 1983, p. 133-134).
As partes envolvidas na querela tendem a entrar em conflito por uma
determinada causa. E esta quem vai definir o formato do confronto. O conflito existe,
conforme demonstra Simmel (2011, p. 568), com o fito de resolver dualismos
divergentes, uma maneira de conseguir algum tipo de unidade, mesmo que seja
atravs da aniquilao de uma das partes em litgio. Nesse caso, torna-se necessrio
que o grupo pratique um comportamento semelhante, em uma situao tambm
idntica. Este um principio importante para a unidade grupal. Assim, as organizaes
sociais se apresentam de forma diferente nos tempos de paz e em tempos conflituosos,
onde a cada situao corresponde uma formatao social especifica.
A relao antagnica com um poder exterior provoca o estreitamento entre os
membros do grupo, intensificando a sua unidade em conscincia e ao. Simmel (1983)
salienta que, nos tempos de paz, o grupo permite aos antagonistas conviverem
conjuntamente em seu interior, mesmo sabendo que h divergncias. Entretanto, uma
condio de conflito, todavia, aproxima os membros to estreitamente e os sujeita a um
impulso to uniforme que eles precisam concordar ou se repelir completamente
(SIMMEL, 1983, p. 154). Quando ocorre a convivncia com os indivduos de
pensamento e conduta desviantes na situao de conflito, nada mais do que uma
aparente tolerncia, mas o objetivo o de expuls-los com maior tenacidade e
definitivamente do convvio com o grupo.
A teoria de George Simmel destaca que no so todas as situaes de conflito
que concorrem para a formao de uma unidade entre o grupo. Quando ele est
ameaado, essa possibilidade torna-se mais real. Ou seja, especialmente favorvel
unificao se, em vez da luta real contra o inimigo, existe uma ameaa permanente de
sua parte (SIMMEL, 1983, p. 162 grifos do autor). A unificao, nesse sentido, decorre
de uma situao de conflito sempre latente, mas nunca detonada. no processo do
confronto que os grupos tendem a cooperar.
O trabalho de George Simmel tem importncia nesta pesquisa por dois fatores
fundamentais: primeiro porque apresenta o conflito na sociedade como a causa da
aproximao entre grupos; segundo, porque mostra que o conflito possui diferentes
graus de manifestao. No primeiro caso, o conflito o fator que se inscreve na
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sociedade como algo que aproxima as pessoas cujos interesses so comuns. Mais que
isso, essa atitude representa um grau de maturidade poltica do grupo, adquirido em
funo da circunstncia conflituosa. Todavia, situaes como estas, e continuamente
importante enfatizar, so sempre corrosivas, individual e tambm socialmente.
O segundo fator est relacionado s indicaes simmelianas sobre os diferentes
graus de manifestao do conflito na sociedade. As possibilidades de ir s situaes de
confronto o mais prematuramente esto dadas, levando em considerao o modo como
as relaes sociais esto sendo construdas. Nesse sentido, essa perspectiva terica pode
nos auxiliar na compreenso da forma como esto sendo construdas as relaes entre os
segmentos empresariais ligados construo da Usina Hidreltrica de Marab, e os
agentes sociais da vila Esprito Santo (sudeste paraense). Compreender estas relaes
pode significar um entendimento do prprio processo de construo social do conflito,
j que a comunicao da barragem destacada j ecoa, naquela realidade, modelando a
opinio e o comportamento do grupo.
O que tem se revelado que os conflitos na rbita dos projetos hidreltricos
devem-se, de uma forma geral, s disputas por territrios. Nesse sentido, o territrio
acaba sendo visto pelos grupos econmicos interessados na construo dessas
tecnologias como uma fonte de recursos de onde se pode extrair lucros. Por outro lado,
desconsideram o fato de que este espao , ao mesmo tempo, abrigo econmico, poltico
e simblico- cultural da diversidade de grupos e classes sociais que o habitam. Cabe
ancorar aqui a definio de territrio sobre a qual este estudo constri as suas
argumentaes, relacionando-a, ao mesmo tempo, com o conceito de conflito social
aqui utilizada. Alis, sobre esta definio que o tpico a seguir pretende se debruar.
1.3 TERRITRIO E CONFLITO: UMA APROXIMAO CONCEITUAL
NECESSRIA
O conflito, tanto do ponto de vista conceitual quanto emprico, fornece uma base
essencial para este estudo. Quando se fala das relaes sociais de conflito envolvendo
diferentes agentes sociais afetados por projetos hidreltricos, preciso levar em
considerao que estes conflitos tm uma causa. Em geral eles se originam da disputa
por territrios, os quais, na maioria das vezes, so habitados por agentes sociais
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distintos e so, ao mesmo tempo, reivindicados pelo setor eltrico para erguimento de
barragens.
A argumentao sobre o fenmeno social do conflito nesse cenrio amaznico
em que a barragem de Marab (e tantas outras) est em processo pretende ocorrer
articulada ao entendimento de territrio na perspectiva de Haesbaert (2004). O referido
autor prope a discusso do conceito de territrio a partir de uma abordagem
multidisciplinar. Ainda que este conceito esteja presente em vrias disciplinas das
Cincias Humanas, o debate e a reflexo nesse sentido so bastante precrios.
De fato, o conceito de territrio deriva de uma diversidade de reas do
conhecimento, onde cada uma aborda este tema a partir de sua diretriz especifica.
Haesbaert (2004, p. 37 grifos do autor) demonstra que:
Enquanto o gegrafo tende a enfatizar a materialidade do territrio, em suas
mltiplas dimenses (...), a Cincia Poltica enfatiza sua construo a partir
de relaes de poder (na maioria das vezes ligada concepo de Estado); a
Economia, que prefere a noo de espao de territrio, percebe-o muitas
vezes como um fator locacional ou como uma das bases da produo
(enquanto fora produtiva); a antropologia destaca sua dimenso simblica, principalmente no estudo das sociedades ditas tradicionais; a Sociologia o
enfoca a partir de sua interveno nas relaes sociais, em sentido amplo, e a
Psicologia, finalmente, incorpora-o no debate sobre a construo da
subjetividade ou da identidade pessoal, ampliando-o a escala do individuo.
Os mltiplos enfoques assinalam a polissemia deste conceito. Deixam evidentes,
tambm, que perigoso tomar uma dessas perspectivas isoladamente, pois h um risco
de deixar de fora questes nas quais as outras abordagens podem auxiliar. Estas
separaes, conforme aponta o trecho acima, ocorrem devido aos recortes disciplinares.
De todas estas noes de territrio, quatro delas ganham centralidade: a
concepo politica, a simblico-cultural, a econmica e a natural. A concepo poltica
ou jurdico-politica diz respeito s relaes entre o espao e o poder. Nesta concepo,
que a mais difundida, o territrio tido como um espao delimitado e controlado por
meio do qual se exerce um determinado poder. Este poder, na maioria dos casos, mas
no somente, est relacionado ao poder poltico do Estado.
A segunda abordagem remete aos espaos de vivncia e interaes sociais nos
quais determinados grupos imprimem as suas marcas. A esta perspectiva d-se o nome
de cultural ou simblico-cultural. O territrio, nesse sentido, visto, sobretudo, como o
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produto da apropriao e valorizao simblica de um grupo em relao ao seu espao
vivido.
Um terceiro sentido de territrio, e com menos expresso, o que enfoca a
dimenso espacial das relaes econmicas. Concebe-se o territrio como fonte de
recursos que est ligado luta entre classes sociais e ao embate da relao capital-
trabalho, que permeia a diviso territorial do trabalho. A quarta definio de territrio
a mais antiga e pouco usual. Ela procura estabelecer uma relao entre o
comportamento dos homens- comportamento este tido como natural- e o seu ambiente
fsico. a viso natural de territrio.
De acordo a perspectiva haesbaertiana, para compreender com maior clareza o
conceito de territrio e as suas distines (estas mencionadas acima), necessrio
organizar o raciocnio em uma escala mais ampla. Ou seja, preciso ir alm da
diferenciao jurdico-poltica, simblico-cultural, econmica e natural deste conceito, e
buscar a fundamentao filosfica correspondente a cada abordagem. Nesse sentido,
Haesbaert (2004, p. 41 grifos do autor) organiza as perspectivas tericas por ele
adotadas na sua abordagem sobre o territrio segundo:
a) O binmio materialismo-idealismo, desdobrado em funo de duas outras perspectivas: i. a viso que denominamos parcial de territrio, ao enfatizar uma dimenso (seja a natural, a econmica, a poltica ou a cultural); ii. a perspectiva integradora de territrio, na resposta a problemtica que, condensadas atravs do espao, envolvem conjuntamente todas aquelas esferas.
b) O binmio espao-tempo, em dois sentidos: i. seu carter mais absoluto ou relacional: seja no sentido de incorporar ou no a dinmica temporal (relativizadora), seja na distino entre
entidade fsico-material (como coisa ou objeto) e social-histrica (como relao); ii. sua historicidade e geograficidade, isto , se se trata de um componente ou condio geral de
qualquer sociedade e espao geogrfico ou se est historicamente circunscrito a determinado
(s) perodos (s), grupos(s) social (is) e/ou espao (s) geogrfico (s).
Aqui, aparece a necessidade de pensar o conceito de territrio com base em mais
de uma perspectiva terica. Nesse sentido, o territrio envolve, simultaneamente, a
dimenso espacial material das relaes sociais e o conjunto de representaes sobre o
espao ou o imaginrio geogrfico que no apenas move como integra ou parte
indissocivel destas relaes (HAESBAERT, 2004, p. 42). Neste caso, ele possui um
sentido material e tambm simblico.
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Fragmentar a noo de territrio entre a concepo jurdico-politica, a
econmica, a naturalista extremamente arbitrria. Alis, todas estas abordagens, em
alguns momentos, vo dialogar com o campo do simblico, e todas elas fazem parte do
mundo do vivido, isto , da realidade concreta das pessoas.
Tendo em vista as diferentes perspectivas apresentadas, o autor prope uma
abordagem de territrio chamada de integradora. Passa-se, ento, a compreender que
o territrio tem intrnseca uma dimenso simblico- cultural, e uma dimenso material
cuja natureza predominantemente econmico-poltica. Justificando essa abordagem, o
autor destaca que:
[...] se a Etologia tende a colocar a questo de porque muitos animais se
comportam territorialmente, a Cincia Poltica procura discutir o papel do espao na construo de relaes de poder, e antropologia trata da questo de
smbolos atravs do territrio. No caberia ento Geografia, por privilegiar
o olhar sobre a espacialidade humana, uma viso integradora de territrio capaz de evidenciar a riqueza ou a condensao de dimenses sociais que o
espao manifesta?(HAESBAERT, 2004, p. 75 grifos do autor).
A leitura de territrio que o considera a partir de suas diferentes dimenses
(natural, poltica, econmica e simblico-cultural) remete, ao mesmo tempo, ao
conjunto das experincias humanas. Nesse processo, todas as esferas do vivido entram
no debate referente a esta categoria, que no s conceitual, mas tambm emprica.
Sendo assim, o territrio pode ser concebido a partir da imbricao de mltiplas
relaes de poder, do poder mais material das relaes econmico-polticas ao poder
mais simblico das relaes de ordem estritamente cultural, conforme analisa
Haesbaert (2004, p. 79).
Cabe esclarecer que a dimenso poltica do territrio no deve estar restrita ao
poder do Estado. H outros grupos que tambm exercem, de certa maneira, determinado
poder sobre um dado territrio. Por isso, de acordo com as proposies deste autor,
fundamental, para uma anlise mais rica das questes sociais, ter certo cuidado na hora
de definir o territrio. Conforme as suas anlises:
[...] o territrio no deve ser visto nem simplesmente como um objeto em sua
materialidade, evidncia emprica (...), nem como um mero instrumento
analtico ou conceito (geralmente a priori) elaborado pelo pesquisador.
Assim como no simplesmente fruto de uma descoberta frente ao real,
presente de forma inexorvel na nossa vida, tambm no uma mera
inveno, seja como instrumento de anlise dos estudiosos, seja como parte
da migrao geogrfica dos indivduos (HAESBAERT, 2004, p. 91 grifos do autor).
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O que define este espao so as relaes estabelecidas nele, por determinados
grupos sociais, num contexto especfico. O territrio pode significar abrigo, fonte de
recursos, espao de controle e de referncia simblica, de acordo com o grupo ou a
classe social que o habita. H, por exemplo, grupos que se apropriam do territrio e
fazem dele um espao revelador de parte ou de todas essas dimenses. Por outro lado,
existem grupos mais inclinados a se apoderar do territrio para exercer, puramente, a
dominao econmica ou poltica.
Estes casos remetem ao contexto da Amaznia, onde cresce exponencialmente a
construo de projetos hidreltricos e, consequentemente, a disputa pela vida nos
territrios. Nestas situaes, todas as dimenses do territrio tendem a aparecer, mas a
valorizao econmica e poltica busca, a todo custo, se sobrepor a outras formas
(lgicas) de apropriao e uso destes espaos. o que ocorre, por exemplo, no entorno
da construo da Usina Hidreltrica de Belo Monte (rio Xingu).
1.3.1 TERRITRIO E CONFLITO SOCIAL: O CONTEXTO DE EDIFICAO DA
UHE DE BELO MONTE
O projeto de construo da Usina Hidreltrica de Belo Monte um dos mais
polmicos, atualmente, na Amaznia. Tambm a construo das usinas hidreltricas de
Santo Antonio e de Jirau (ambas no rio Madeira), no estado de Rondnia, no mostra
grandes diferenas nesse sentido. As relaes de conflitualidade so protagonizadas,
sobretudo, por povos e comunidades tradicionais que no se rendem a dominao de
seus territrios por empreendimentos hidreltricos.
Para ilustrar-ainda que de forma breve- a dimenso destes conflitos tomando
como exemplo o que ocorre na rbita da barragem de Belo Monte, um resgate das
modificaes sofridas por este projeto fundamental. As origens desta tecnologia data
da dcada de 1970, na ocasio do desenvolvimento de estudos de Inventrio
Hidreltrico da Bacia Hidrogrfica do Rio Xingu (MELLO, 2013). Quando os estudos
foram apresentados pela Eletronorte, ainda na dcada de 1980, previu-se que o
aproveitamento total da Bacia Hidrogrfica do Rio Xingu seria feito com base em sete
barramentos. As intervenes naquela bacia hidrogrfica seriam, ento, responsveis
pela gerao de 19 mil megawatts (MW) de energia.
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As sete usinas, caso fossem construdas, inundariam cerca de 18.000 km,
atingindo 12 Terras Indgenas e outros diversificados grupos sociais da regio.
Conforme ressalta Mello (2013), a Usina Hidreltrica de Belo Monte (11 mil MW), at
ento denominada de Karara, faria parte do Complexo Hidreltrico de Altamira,
juntamente com a Usina Hidreltrica de Babaquara (6,6 mil MW). Ambas deveriam ser
construdas no rio Xingu.
No entanto, este primeiro projeto no se efetivou. Aps abandonar o projeto
original, o governo resolve retomar a construo da Usina Hidreltrica de Belo Monte
em 2005, modificando-o, em algumas partes, se comparado com o projeto anterior
(BERMAM, 2012). Nesse novo traado, o referido projeto passaria a ter um
reservatrio de 400 km, e no mais de 1. 225 km, como antes.
Mello (2013) analisa que o abandono do primeiro projeto da barragem de
Belo Monte deve-se forte resistncia dos grupos indgenas, movimentos sociais,
organizaes da sociedade civil, Igreja Catlica e partidos polticos de esquerda
durante a dcada de 1980. O momento mais decisivo foi o Grande Encontro dos
Povos Indgenas do Xingu, ocorrido em fevereiro de 1989, em Altamira (PA).
Neste evento houve uma cena, destacada por Alves (2010) como
emblemtica, que reveladora da dimenso do conflito que se instaurou desde o
anncio da Barragem de Belo Monte, at os dias atuais. O evento emblemtico
consiste no ato em que a ndia Tura, de posse de um faco, atrita aquela ferramenta
no rosto do ento presidente da Eletronorte.
Na atualidade, de acordo com Bermam (2012, p. 7), a retomada da construo da
Usina de Belo Monte representa o paradigma para o processo de expanso da fronteira
hidreltrica na bacia amaznica. Tal paradigma vem se afirmando, conforme este
autor, pela negao da democracia e desconsiderao das populaes tradicionais da
regio, e das relaes destas com os seus territrios. Por outro lado, a cena emblemtica
descrita no pargrafo anterior revela a existncia vigorosa de um processo de resistncia
encabeado, principalmente, por grupos indgenas que no parecem estar dispostos a
recuar.
Se ningum recua, as situaes de conflito continuam a modelar as relaes
sociais. Em 2008, no contexto de negao e disputa em relao instalao da Usina
Hidreltrica de Belo Monte, outro acontecimento emblemtico reatualiza a histria das
relaes entre os indgenas e a Eletronorte. Trata-se do Encontro dos povos do Xingu,
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organizado pelo Movimento Xingu Vivo que congrega uma diversidade de agentes
sociais contrrios a construo daquele projeto hidreltrico. Neste evento estavam
reunidas entidades governamentais e no governamentais, tribos indgenas, movimento
de mulheres, religiosas da Prelazia do Xingu, dentre outros (ALVES, 2010).
O objetivo daquela coletividade era debater as consequncias da construo da
barragem de Belo Monte para os grupos afetados. O desenrolar do evento foi
interpelado por uma ao que parecia espelhar a imagem daquela ao protagonizada
pela ndia Tuira. De acordo com Alves (2010, p. 7) no segundo dia, um dos diretores
da Eletronorte em seu discurso de apresentao, foi ferido por um ndio, gerando vrios
outros momentos de conflitos. Este fato teve repercusso nacional e revelou a
dimenso do conflito ali instaurado.
Apesar da existncia de situaes como estas, reveladoras da tenacidade com a
qual os indgenas dizem no construo daquela obra, o empreendimento no recua.
O ato de no recuar implicou na utilizao de estratgias para que o projeto continue
avanando.
A estratgia de diminuio da rea de alagamento resultou na retirada das Terras
Indgenas Juruna do Paquiamba e Terra Indgena Arara da Volta Grande do eixo de
inundao. O curso do rio ser modificado atendendo as estas exigncias. Para Bermam
(2012), o uso deste artificio tem como objetivo a no sujeio do governo e empresrios
aos princpios constitucionais que asseguram o direito de escuta das opinies dos
indgenas, e a aprovao do Congresso Nacional, em casos de remoo dos indgenas
dos territrios em que habitam.
Esta ao dos interessados na construo da Usina Hidreltrica de Belo Monte
pode significar, entretanto, algo desastroso para os agentes sociais que necessitam da
normalidade do curso do rio Xingu para manter a reproduo de seus modos de vida. De
acordo com Mello (2013, p. 128), O desvio do rio Xingu impede, na prtica, a
existncia fsica e social dos grupos que vivem em seu curso, uma vez que seu modo de
vida altamente dependente da existncia de um rio ntegro que permita a coexistncia
de usos diversos. revelia de todas estas questes a referida usina hidreltrica est
sendo materializada.
Para Bermam (2012), este avano na construo da Usina Hidreltrica de Belo
Monte significa, em contrapartida, o retrocesso na democracia, fato este demonstrado
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quando os grupos indgenas, e outras populaes tradicionais da regio de Altamira,
foram desconsiderados no processo decisrio a respeito da edificao daquela obra. Em
um desses momentos,
Os indgenas sofreram toda sorte de constrangimentos para participar dos
debates, as comunidades no foram consultadas, e as crticas levantadas
acabaram desconsideradas de forma sistemtica por um Painel de
Especialistas constitudo por cientistas e professores de importantes
universidades brasileiras (BERMAM, 2012, p. 11).
O respeito ao poder decisrio dos grupos indgenas, e outros agentes sociais, em
relao ao licenciamento da Usina Hidreltrica de Belo Monte representaria para os
empreendedores, de acordo com Mello (2013), um risco democrtico. O risco
democrtico, nesse sentido, o de que a sociedade prejudicada pela obra decidisse,
amparada na legislao pertinente, no se submeter a um tipo de investimento
econmico que ela entenda que, em ltima instncia, trar consequncias danosas para
si (MELLO, 2013, p. 130). O fato que, conforme destaca Bermam (2012), o governo
brasileiro virou as costas, por assim dizer, ao debate sobre as repercusses que esta obra
de engenharia pode acarretar vida e ao territrio de muitos agentes sociais.
Mello (2013), analisando o posicionamento dos indgenas Jurunas diante dos
acontecimentos desencadeados pela presena desta tecnologia, destaca alguns pontos
criticados. As crticas se relacionam, principalmente, falta de esclarecimentos sobre a
dimenso das interferncias que o territrio deste grupo social ir sofrer.
A incerteza sobre o que acontecer com a gua do rio Xingu, j que nela so
despejados dejetos advindos dos canteiros de obra da barragem, uma das situaes
apontadas. Ainda, nessa perspectiva, os indgenas Jurunas julgam que os
empreendedores deveriam atentar para os efeitos do projeto sobre as atuais condies de
existncia no territrio. Com a diminuio das guas do rio Xingu, a pesca poder ser
inviabilizada e as doenas podero se proliferar. Em funo disto, os indgenas
ressaltam que a sada ir morar na cidade, local representado como perigoso, o que
implica em perda de liberdade de se deslocar tranquilamente (MELLO, 2013).
Alm disso, a referida autora demonstra a existncia de outros aspectos
apontados como problemticos em relao construo da barragem de Belo Monte.
Dentre estes esto: a) as informaes desencontradas dos tcnicos sobre a real dimenso
da barragem e dos impactos que, muitas vezes, so at omitidos; b) a indefinio sobre
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o que vai acontecer com os grupos sociais situados a jusante4 da barragem, j que a gua
que transcorrer por ali ficar submetida ao controle humano, e no mais da natureza; c)
os impactos sobre a sade mental de muitos agentes sociais, em especial dos mais
velhos, que se veem obrigados a conviver com a ideia de que a vida tradicional e a
natureza vo mudar drasticamente; c) a preocupao com a proliferao de carapan e
mosquitos transmissores da malria, os quais se reproduzem em pocas da seca do rio
Xingu, nas guas paradas, e podero inviabilizar a vida nas aldeias; d) anota-se,
tambm, o receio em relao presso que os territrios indgenas iro sofrer, em
decorrncia da chegada de pessoas oriundas de cidades e estados diferentes; e) so
criticados, tambm, os limites temporais das indenizaes, pois as pessoas que nascem
naquele contexto esto sujeitas a um futuro incerto e no esto sendo, sequer, cogitadas
no EIA/RIMA.
Todos estes aspectos representam, no entendimento dos grupos indgenas que
esto nas reas ditas de influencia da barragem de Belo Monte, situaes que deveriam
constar nos Estudos de Impacto Ambiental daquele empreendimento. O conflito pela
defesa da vida nos territrios se estende a outros segmentos sociais, como o caso dos
pescadores.
No ms de setembro de 2012, pescadores5 mobilizados fizeram um protesto em
que chamaram a ateno para as condies de uso do rio, do ponto de vista da
navegabilidade, e tambm da atividade da pesca. A pesca-protesto se consubstanciou
numa estratgia de protesto orquestrada pelos pescadores, e teve durao de oito dias.
Sem serem ouvidos, os agentes sociais em questo, munidos de oito barcos desfilaram
pelas obras da barragem, atravessando o rio Xingu de margem a margem.
O desfile nos barcos simbolizava aquilo que para eles ser uma incgnita no
futuro. A inteno era saber se haver possibilidades de navegao, naquele rio, quando
a estrutura de concreto da barragem j estiver montada. A Usina Hidreltrica de Belo
4O termo tcnico que nomeia a rea abaixo do reservatrio de uma barragem jusante. E o termo que
nomeia a rea localizada acima do reservatrio montante.
5Informaes extradas de MOVIMENTO XINGU VIVO PARA SEMPRE. Pescadores continuam
acampados em protesto contra Belo Monte. Disponvel em
http://www.xinguvivo.org.br/2012/09/25/pescadores-continuam-acampados-em-protesto-contra-belo-monte/ Acessado em outubro de 2013.
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Monte representa um ncleo de agitao social de onde emergem situaes de conflito
evidenciando disputas distintas pela existncia nos territrios de sua influncia. E ai se
torna clara a valorizao econmica e poltica impondo ao territrio um ordenamento
capitalista, o qual se sobrepe a outras formas de apropriao deste espao- o caso dos
indgenas Jurunas e dos pescadores ilustra com clareza esta questo.
1.4 A DISPUTA PELA DEFINIO DE ATINGIDOS POR BARRAGENS
A conflitualidade no entorno de projetos hidreltricos emerge por uma
diversidade de prismas. Neste tpico, a ateno est voltada para a disputa pela
definio de atingidos por barragens. Uma definio insuficientemente formulada,
consequentemente, produz srias implicaes na realidade social de quem vitimado
pela implantao deste tipo de projeto.
Vainer (2008) destaca a dimenso econmica e financeira com que esta noo
aparece em documentos tcnicos do setor eltrico. Conforme analisa este autor, definir
atingidos por barragens s com base em pressupostos tcnicos e econmicos bastante
insuficiente.
Buscando alargar essa compreenso, Nbrega (2011, p. 131) demonstra ser
preciso considerar atingidos tambm os grupos e comunidades ameaadas por projetos
de barragens, independente das possibilidades de sua execuo. Em outros termos, os
momentos que precedem a materializao de um projeto desta natureza podem ser
bastante ricos, de um ponto de vista analtico.
Vainer (2008) aponta a existncia de grupos sociais, famlias e indivduos que
sentem os efeitos de projetos hidreltricos a partir do momento de sua comunicao.
Outros comeam a se sentir prejudicados aps a instalao do projeto, quando o
reservatrio enche. De certo modo, Anlises cuidadosas indicariam que ao longo do
ciclo do projeto, diferentes grupos e indivduos so afetados, de diferentes maneiras
(VAINER, 2008, p. 54). Muitas das consequncias antes da instalao de um projeto
deste tipo esto relacionadas incerteza em relao ao que fazer da vida, j que o
territrio est prestes a ser reapropriado por terceiros.
Este o caso, por exemplo, dos grupos que no sabem se podem continuar com
o curso normal da vida, semeando, investindo, fazendo novas aquisies para a sua
propriedade, ou se interrompem os projetos para o futuro (DAOU, 2013). Alm disto,
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de acordo com Daou (2013), a noo de atingido dos responsveis pela elaborao de
estudos nas reas de populaes a serem afetadas por empreendimentos hidreltricos se
ancora em perspectivas etnocntricas e em parmetros urbanos da vida.
O fato que, reconhecer uma abrangncia da noo de atingidos por barragens
para alm dos aspectos tcnicos e financeiros significa reconhecer direitos e os
detentores desses direitos e, consequentemente, inseri-los na agenda dos grupos
interessados na edificao de projetos hidreltricos.
Em outras palavras, estabelecer que determinado grupo social, famlia ou
individuo , ou foi, atingido por determinado empreendimento significa
reconhecer como legitimo- e, em alguns casos, como legal- seu direito a
algum tipo de ressarcimento ou indenizao, reabilitao ou reparao no
pecuniria (VAINER, 2008, p. 40).
Ainda que haja o reconhecimento de que um grupo social foi afetado por uma
determinada barragem, geralmente, se reconhece e se repara os danos materiais.
Entretanto, os problemas de ordem moral e as redefinies de identidade social, de certa
maneira, permanecem irreparveis (ALMEIDA, 1996).
A noo de atingidos varia conforme o contexto poltico-social e com o espao-
tempo em que est inscrita. Ela est tambm relacionada como o desenrolar e
desenlace dos conflitos opondo diferentes atores sociais envolvidos no processo de
concepo, implantao e operao de projetos hidreltricos (VAINER, 2008, p. 40-
41). A imposio dos agentes sociais tem grande repercusso nos rumos que a noo de
atingidos pode tomar. Como se evidencia, a atmosfera que circunda a construo de
Usinas Hidreltricas tende a ser conflituosa. Isto porque os interesses em jogo no so
os mesmos. Alis, esto cada vez mais polarizados.
Uma srie de implicaes sobre os direitos territoriais de quem foi,
forosamente, inscrito no grupo dos atingidos por barragens aparece como
desdobramento. O desrespeito por esses direitos, ademais, parece ser a principal
implicao. Em decorrncia disto, a disputa e os conflitos tem, necessariamente, se
desenrolado nas realidades pretendidas para implantao de usinas hidreltricas.
O fato que uma definio mais clara e que englobe o mximo de dimenses
possveis da vida humana afetadas pela implantao de barragens configura apenas o
incio de uma poltica socialmente responsvel. Isto somado
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[...] a adoo de avaliaes consistentes e rigorosas de alternativas, o exame
efetivo dos impactos previsveis, a opo por estratgias baseadas no
principio da preocupao e, acima de tudo, o respeito a processos
democrticos que garantem, desde a concepo do projeto (inventrio,
viabilidade, etc.), a efetiva e informada participao das populaes
interessadas nos processos de avaliao e de deciso (VAINER, 2008, p. 39-
40).
Essas especificaes do conta no s do que deve haver, mas do que no existe
nas formulaes que o setor eltrico pe em prtica. Se no h, por exemplo, uma
oferta rigorosa de alternativas aos atingidos e, muitas vezes, a opinio destes no
levada em considerao no processo decisrio sobre o erguimento de barragens, torna-
se pouco certo que no haver conflito no entorno da implantao desse tipo de
tecnologia.
O que se revela, portanto, o fato de que o setor eltrico tem como parmetro
definies incipiente de atingidos por barragens. A concepo territorial-patrimonialista,
destacada por Vainer (2008) como a mais tradicional, demonstra um dos primeiros
parmetros excludentes de definio de atingidos por barragens. Nesta concepo, o
simples fato de uma determinada rea constar como sendo de interesse dos
empreendedores j era motivo suficiente para que ela fosse declarada de interesse
pblico. O interesse pblico se consubstanciava no discurso legitimador das aes do
Estado e dos grupos econmicos a ele adjacentes.
Caso o ento proprietrio do lugar requerido manifestasse opinio em desacorde
com os interesses do setor eltrico, o dinheiro (indenizao) era depositado em juzo,
ficando sujeito contestao via judicirio pelo dono da propriedade, se achasse injusto
o valor. Nesta perspectiva, no h um debate sobre atingidos e nem a respeito de seus
direitos, e a desapropriao para atender o interesse pblico mascara e pe em suspenso
essas questes.
Nos dias de hoje, as prticas herdadas da concepo e das estratgias territoriais
patrimonialistas ainda se mantm vivas. Isto fica claro, de acordo com Vainer (2008, p.
44), quando o problema dos atingidos tem permanecido sob duas dimenses exclusivas:
o territrio atingido concebido como sendo a rea a ser inundada e a populao
atingida constituda pelos proprietrios da rea a ser inundada. Ou seja, a questo
continua sendo insuficiente analisada, e muitos agentes sociais atingidos so
invisibilizados no processo.
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Embora tenha havido um crescente esforo das agencias multilaterais (a
International Financial Corporation, ligada ao Banco Mundial, o prprio Banco Mundial
em suas diretrizes e o Banco Interamericano de Desenvolvimento BID) no sentido de
alargar a concepo de atingidos, Vainer (2008) afirma que, na prtica, a maioria das
empresas continua a agir com base na orientao ofertada pela concepo territorial-
patrimonialista de atingido.
Porm, apenas ali onde a resistncia organizada das populaes se mostrou
capaz de confrontar a intransigncia e estreiteza das empresas foi possvel observar
avanos prticos (VAINER, 2008, p. 63). Os avanos na disputa pela definio de
atingidos tem, necessariamente, que dialogar com a realidade e demandas dos prprios
atingidos. Se esta conexo est presente na definio de atingidos por barragens, pode
haver possibilidades de uma construo de elaboraes menos falveis e mais justas,
nesse sentido.
O avano de projetos hidreltricos sobre uma diversidade de grupos sociais faz
surgir reflexes e anlises em diversos sentidos, dado que o comportamento humano
bastante imprevisvel nessas situaes. A implantao da tecnologia de barragem
demonstra que o ser humano, nessas realidades, busca seu protagonismo apesar da
correlao de fora desigual. Longe de se acomodar s situaes impostas, os agentes
sociais tm reagido de diferentes maneiras. Tais reaes entram na literatura, sobretudo
scio - antropolgica, como efeitos sociais. dessa discusso que o tpico a seguir
pretende se ocupar.
1.5 BARRAGENS NA PERSPECTIVA DOS EFEITOS SOCIAIS
A noo de efeitos sociais ilustra o comportamento humano em face da presena
de tecnologias que operam baseadas no deslocamento forado. O deslocamento
compulsrio, um dos impactos mais marcantes e incisivos na vida dos grupos sociais
afetados por barragens, convm anotar, no tem sido operacionalizado conforme as
pretenses dos empreendedores. Tal evento demonstra que os agentes enredados nesses
contextos so mais que vtimas testemunhais de um destino imposto pelo setor eltrico.
Eles tambm so protagonistas dessas relaes.
A definio de efeitos sociais, nesse sentido, pode prolongar a noo de
impactos sociais e ajudar a entender as situaes que envolvem o deslocamento forado.
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Daou (2013, p. 85), destacando a pertinncia de Sigaud (1986) ao propor a definio de
efeitos sociais, ressalta que aquela autora Problematizava ento o uso da noo de
impacto no sentido de que no haveria respostas nicas e similares em decorrncia da
implantao de um mesmo tipo de projeto- hidreltrica. Era preciso buscar as
descontinuidades das aes, e no aquilo que as faziam semelhantes.
Para Sigaud (1992), a noo de impactos trai o protagonismo humano ao se
preocupar mais em visibilizar a incidncia das aes dos dominadores sobre os
dominados, de que com outras situaes ocorridas nesse processo. Tal preocupao no
deixa de ser relevante. Entretanto, o que os agentes sociais esto fazendo diante da
situao de dominao (ou dos impactos) tambm deve ser analisado.
Reis (1998) tambm reconhece que, pensar o contexto de construo de
barragem pela perspectiva dos impactos sociais no deixa de ser relevante para a
compreenso das mudanas socioculturais que tais empreendimentos acarretam. Por
outro lado,
Sua fragilidade reside, porm, no fato de assumirem uma perspectiva
unilateral, em relao virtual possibilidade dos atores sociais intervirem no
processo de mudanas, desencadeado pela implantao dos grandes projetos.
Isto , as populaes locais ou regionais afetadas por estes projetos foram
pensadas como agentes passivos, sendo supervalorizado o papel dos agentes
governamentais, a quem caberia a implantao das obras em questo (REIS,
1998, p. 06).
Por isso, de acordo com Sigaud (1992, p. 19), deve-se estar atento para O
quanto os efeitos de uma determinada opo tecnolgica so tambm o produto das
relaes sociais concretas, dos enfrentamentos e dos conflitos [...]. Alguns destes
efeitos tem sido invsibilizados por estudos que tratam, de forma simplificada, os
aspectos da vida em sociedade (Idem, 1992). A ao dos agentes sociais postos em
situao de subalternidade, por sua vez, fica invisibilizada.
A fim de desvelar a dimenso do comportamento humano onde as usinas
hidreltricas se instalam- dimenso esta traduzida pela definio de efeitos sociais-
buscou-se apoio na literatura de Daou (1996, 2013); Magalhes (1996, 2007); Sigaud
(1992, 1996) e Vianna (2012). Tais autores so pioneiros nessa discusso de cunho
scioantropolgica.
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Uma primeira reflexo por este ngulo est contida na anlise do processo de
construo da barragem6 de Sobradinho (1972 a 1979), no rio So Francisco, a 50 km
de Juazeiro, na Bahia e encabeada pela Companhia Hidreltrica do So Francisco-
CHESF.
De acordo com o que analisa Sigaud (1996), a comunicao de que a barragem
de Sobradinho iria ser construda foi recepcionada com uma total descrena por muitos
camponeses que viviam s margens do rio So Francisco, na cidade de Itapera. Os
camponeses no acreditaram na possibilidade de que o relato pudesse ser verdico. Para
eles, a cheia do rio comunicada no passaria de uma eventualidade, como as que
conheciam ou a respeito das quais os mais velhos lhes falavam (SIGAUD, 1996, p.
552). Essa situao acabou por mostrar que, tanto a crena quanto o comportamento
dos agentes sociais frente comunicao da barragem pode assumir formas distintas.
A proposta inicial da Companhia Hidreltrica do So Francisco CHESF- foi a
de que os camponeses consentissem em abandonar a beira do rio. Muitos no aceitaram
tal proposta, ao passo que outros aderiram a ela. A adeso s recomendaes da CHESF
foi entendida, naquele contexto, como uma forma de morte social. Isto em decorrncia
das perdas materiais e de prestgio junto ao grupo familiar que seriam acarretadas para
alguns camponeses.
Por outro lado, para muitos indivduos significava uma oportunidade de
ascenso social e de aquisio de prestgio (SIGAUD, 1996). De fato, houve quem
obtivesse, no novo lugar de moradia, bens materiais superiores aos que possua no lugar
anterior. Isso lhes agregava prestgio, principalmente, familiar.
Os camponeses de Itapera, em meio situao de ameaa de deslocamento
forado, mantiveram firmeza na oposio barragem e ao que lhes havia sugerido a
empresa. Conforme ressalta Sigaud (1996, p. 567 grifos da autora), Diante da recusa
expressiva [DOS CAMPONESES] em partir, a empresa viu-se constrangida, como no
caso de outros povos, a construir o ncleo na borda do lago. O ncleo aqui
considerado a cidade de Itapera, reconstruda s bordas do lago da barragem de
Sobradinho em atendimento s exigncias daqueles agentes sociais. A maneira como os
camponeses se comportaram em face do deslocamento compulsrio foi decisiva para a
6A materializao da barragem de Sobradinho resultou no deslocamento de cerca de 70.000 pessoas.
Conforme demonstra Daou (1996, p. 477), deste nmero 80 % eram camponeses que viviam nas margens e ilhas do trecho do rio onde se formou o lago de Sobradinho, com 4214 km de extenso [...].
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mudana no rumo desta poltica.
A situao de conflito descrita acima configura, basicamente, uma resposta dos
agentes sociais que estiveram na disputa pela existncia em um territrio cujas
caractersticas atendem as suas especificidades. Suas aes resultaram, ao menos em
parte, na imposio de decises que criaram certos constrangimentos para as empresas.
o protagonismo humano que se revela, apesar da correlao de fora desfavorvel.
Pensar as relaes sociais, nestas conjunturas, tendo como referncia s a ao dos
chamados poderosos pode ser pouco produtivo, o que destaca o trecho abaixo:
Como as populaes so obrigadas a abandonar locais de trabalho e moradia
pela fora- a fora dos decretos- lei e a fora das guas- tende-se a acreditar
que tudo aquilo que ocorre nestas situaes efeito direto da atuao
daqueles que promovem o deslocamento, como se tudo se devesse ao poder
dos que tm poder para exercer aquela fora (SIGAUD, 1996, p. 569).
Os efeitos sociais da presena de barragens no se resumem, to somente,
deciso dos grupos dominantes em deslocar, compulsoriamente, os agentes sociais
afetados. Ou seja, a via no de mo nica. Tais efeitos, em grande medida, derivam da
conduta e do protagonismo dos agentes sociais ao reagirem diante da situao que lhes
imposta pelo processo de deslocamento e reassentamento compulsrio. Cabe assinalar,
entretanto, que os camponeses de Itapera, mesmo tendo exercido influencia no processo
de deslocamento compulsrio, no conseguiram obter a reproduo do modo de vida e
das relaes sociais conforme aspiravam (SIGAUD, 1996). Fora das condies do
tempo de antes da barragem, essa tarefa parecia difcil. Isso mostra o quo irreparvel
pode ser a violncia cometida pela implantao da tecnologia de barragens.
Vianna (2012), em anlise das aes desencadeadas pelos camponeses da
comunidade de Lajeado Pepino (municpio de Paim Filho, Rio Grande do Sul), quando
estes se depararam com a comunicao da barragem de Machadinho (construda na
bacia do rio Uruguai, no inicio dos anos de 1980), revela o quo determinante foi o
protagonismo daqueles agentes sociais para a mudana nos rumos que a barragem iria
tomar e, tambm, as suas vidas.
Ao longo dos anos de 1980, nas regies que estavam na rea de interferncia do
lago da barragem de Machadinho, ocorreram vrias aes, principalmente, de colonos
que se sentiam ameaados em face da presena do referido projeto hidreltrico. Aes
como prises de funcionrios da ELETROSUL, empresa interessada no
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empreendimento; expulses de funcionrios dos domnios dos colonos; destruio e
retirada dos marcos delimitadores do reservatrio da barragem; bloqueio de estradas,
dentre outros processos de enfrentamento, constituram as estratgias de oposio
quela barragem (VIANNA, 2012). Alm das prises, ameaas e etc., os colonos
articulavam essa ao com outra estratgia: chamavam a ateno da mdia para
visibilizar o acontecimento.
Assim que os colonos da comunidade de Lajeado Pepino participaram,
ativamente, apesar de rotulados de politicamente atrasados, nas decises que mudaram o
curso dos acontecimentos naquele contexto. Um dos atos mais decisivos foi a priso de
um dos tcnicos a servio dos empreendedores, no ano de 1987 (Idem, 2012). As
prises eram realizadas objetivando, principalmente, negociar a liberdade da pessoa
detida por um acordo com a ELETROSUL.
No enredo deste conflito estava presente a Comisso Regional dos Atingidos por
Barragens (CR