Download - Cir Rose Hepatica
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CIRROSE HEPÁTICA E HIPERTENSÃO PORTAL
Prof. Dra. Ana LC Martinelli Dra. Andreza Corrêa Teixeira
Dra. Fernanda Fernandes Souza
A cirrose hepática é definida como uma lesão crônica do parênquima
hepático, caracterizada por fibrose difusa e nódulos de regeneração que
substituem o parênquima normal. É a via final comum de lesões hepáticas
crônicas de diferentes etiologias.
As principais etiologias da cirrose hepática são: alcoólica, hepatites
virais, biliar, metabólica, auto-imune, medicamentosa ou tóxica, congestiva, e
criptogênica.
A etiologia alcoólica ainda é uma das principais causas de doença
hepática crônica em várias partes do mundo. É conhecida como cirrose de
Laennec, e é caracterizada por micronódulos de regeneração (cirrose
micronodular). Entretanto, em fases avançadas, macronódulos podem ser
encontrados (cirrose macronodular). A cirrose hepática por álcool geralmente
ocorre quando há consumo significativo de álcool (>40g etanol/dia em homens e
20g etanol/dia em mulheres) por períodos de mais de 10 anos. Contudo, se
houver associação com outros fatores agressores do fígado, tais como
hepatites virais, síndrome metabólica, depósitos de ferro ou uso de
medicamentos hepatotóxicos, o período e a quantidade de álcool necessários
podem ser menores.
Ressalta-se que a cirrose é apenas uma das inúmeras conseqüências do
uso abusivo do álcool, bem como a neuropatia, a desnutrição, as insuficiências
pancreáticas endócrina e exócrina, entre outras.
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As hepatites virais também são causa importante de cirrose hepática em
todo o mundo. Os principais agentes são os vírus da hepatite B (HBV) e o vírus
da hepatite C (HCV). A hepatite B é altamente prevalente em países da Ásia e
da África; no Brasil, a prevalência estimada de infecção pelo vírus B é de 3,5 a
5%. O vírus C acomete cerca de 1,5-3% da população mundial; é responsável por
aproximadamente 40% dos casos de cirrose hepática. Acredita-se que na
hepatite C, a cirrose hepática se desenvolva em cerca de 20% dos indivíduos
com infecção crônica, e em geral, após 15-25 anos de infecção. Em mulheres e
crianças essa taxa é inferior.
A cirrose hepática biliar é conseqüência de agressão ou obstrução
prolongada das vias biliares intra-hepáticas ou extra-hepáticas, como ocorre
na cirrose hepática biliar secundária e na cirrose biliar primária. A cirrose
biliar secundária resulta da obstrução prolongada total ou parcial do ducto
hepático comum ou de seus principais ramos. A causa mais comum é a estenose
ou sub-estenose do ducto biliar comum pós-operatória ou causada por cálculos.
Outras causas obstrutivas incluem infecção, pancreatite crônica, colangite
esclerosante primária, atresia biliar congênita, fibrose cística, cisto de
colédoco, ou por medicamentos. A cirrose biliar primária é caracterizada por
colangite crônica destrutiva, não supurativa das vias biliares intra-hepáticas
(ductos biliares pequenos e médios), de causa desconhecida que cursa com
cirrose em sua fase final.
Dentre as causas metabólicas, destacam-se a esteato-hepatite não
alcoólica (“Nonalcoholic steatohepatitis” - NASH), a doença de Wilson
(acúmulo de cobre), a hemocromatose hereditária (acúmulo de ferro) e a
deficiência de alfa-1 anti-tripsina.
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A NASH é uma causa freqüente de doença hepática crônica, sendo
reconhecida, atualmente, como principal etiologia da cirrose classificada
anteriormente como criptogênica. Está associada com resistência insulínica e
síndrome metabólica, acometendo cerca de 2-3% da população mundial.
Caracteriza-se por depósitos de gordura no fígado, com inflamação e fibrose,
particularmente na zona 3 do parênquima hepático. Nas fases finais da cirrose,
a histologia é indistinguível de outras causas de doença hepática crônica.
A hepatite auto-imune também pode evoluir para cirrose hepática, e
nessa fase, os auto-anticorpos podem não mais ser detectados, dificultando o
diagnóstico etiológico.
Medicamentos e tóxicos devem sempre ser considerados potenciais
causas de doença hepática crônica e cirrose. Seu uso deve ser pesquisado
exaustivamente. Salienta-se a importância dos chás preparados com ervas
potencialmente hepatotóxicas.
A cirrose congestiva é uma conseqüência incomum da insuficiência
cardíaca crônica. Pode ainda ser observada em pacientes com obstrução da veia
hepática ou de seus ramos (Síndrome de Budd-Chiari). A avaliação
histopatológica é indistinguível de outras causas de cirrose.
As manifestações clínicas da cirrose são variáveis. A cirrose hepática
pode ser totalmente assintomática e o diagnóstico pode ser feito
incidentalmente em exames de rotina. Entretanto, as principais manifestações
se devem às complicações da cirrose. Salienta-se que essas complicações
independem da etiologia da doença hepática crônica. As principais complicações
são: hipertensão portal (manifestada por varizes esofágicas e gástricas,
gastropatia hipertensiva e esplenomegalia), ascite e peritonite bacteriana
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espontânea, encefalopatia hepática, síndrome hepato-renal e carcinoma
hepatocelular.
A gravidade da cirrose pode ser avaliada por vários métodos. O mais
conhecido e usado na prática clínica é a classificação de Child - Turcotte
modificada por Pugh, que utiliza parâmetros clínicos e laboratoriais, os quais
recebem valores (escores) (Tabela 1). A soma dos escores varia de 5 a 15, e os
pacientes são, então, classificados em A, B ou C. Essa avaliação tem valor
prognóstico e preditivo da taxa de sobrevida e da probabilidade de
complicações da cirrose. Assim, pacientes classificados como Child A tem
melhor prognóstico que os Child B, e estes por sua vez melhor que os Child C.
Tabela 1. Classificação da cirrose segundo Child- Turcotte modificado por Pugh
Parâmetro / escore 1 2 3
Bilirrubina* (mg/dl) < 2,0 2-3 >3
Albumina (g/l) >3,5 2,8-3,5 <2,8
INR <1,7 1,7-2,3 >2,3
Ascite ausente leve ou controlada moderada ou tensa
Grau de Encefalopatia ausente graus 1-2 graus 3-4
Classificação segundo soma de escores - Child A:5-6; Child B: 7-9; Child C: 10-15 *Cirrose biliar primária e colangite esclerosante primária: bilirrubina<4 (score1); 4-10: score 2; >10 score 3.
Hipertensão Portal
A hipertensão portal (gradiente de pressão venosa hepática >10 mmHg)
pode resultar do aumento da resistência ao fluxo portal ou do aumento do
fluxo sanguíneo portal, ou de ambos.
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Aumento de fluxo sanguíneo portal como causa primária de hipertensão
portal pode ocorrer, mas é um evento raro incluindo-se nessa condição as
fistulas arterio-venosas.
O aumento da resistência é o evento mais comum e pode ocorrer em
vários pontos, tendo como referência os sinusóides. Desse modo, é classificada
como pré-sinusoidal, sinusoidal e pós-sinusoidal.
Dentre as causas de aumento de resistência pré-sinuosidal podemos
citar a trombose da veia porta (obstrução extra-hepática) e a esquistosomose
mansônica (obstrução de ramos da veia porta intra-hepática). As causa pós-
sinusoidais incluem aumento de resistência por obstrução da veia cava inferior,
das veias hepáticas extra-hepáticas (Síndrome de Budd-Chiari), ou dos ramos
intra-hepáticos das veias hepáticas (Doença veno-oclusiva).
Na cirrose, o aumento da resistência é principalmente sinusoidal, mas
pode ocorrer em outros níveis. O aumento da resistência ao fluxo portal é o
principal evento nas fases iniciais da cirrose, mas em fases mais avançadas
ocorre também aumento do fluxo sanguíneo portal por aumento do fluxo
sanguíneo esplâncnico. A cirrose é a principal causa de hipertensão portal em
nosso meio.
As principais manifestações clínicas da hipertensão portal são:
hemorragia por varizes gastro-esofágicas ou gastropatia hipertensiva,
esplenomegalia, hiperesplenismo, ascite, encefalopatia hepática, circulação
colateral superficial (veias abdominais e peri-umbilicais) e varizes de reto.
O tratamento da hipertensão portal propriamente dita pode ser feito
utilizando-se shunts cirúrgicos (shunts porto-sistêmicos) ou por via percutânea
(TIPS- transjugular intrahepatic portosystemic shunt) que permitem alívio da
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hipertensão, ou por uso de medicamentos que reduzem o fluxo sanguíneo portal
(betabloqueadores não seletivos).
Varizes Esofagástricas e Gastropatia hipertensiva
Ruptura de varizes da junção gastro-esofágica é a causa mais comum de
sangramentos na hipertensão portal. Manifesta-se habitualmente por
hematêmese maciça seguida por melena, mas pode se manifestar apenas como
melena ou enterorragia.
A manifestação hemorrágica deve ser considerada uma emergência. O
paciente deve ser internado em um hospital, em regime de tratamento
intensivo ou semi-intensivo. Reposição da perda sanguínea para manter volume
intravascular deve ser avaliada; dois acessos calibrosos com reposição volêmica
(cristalóides) até transfusão sanguínea. A transfusão de concentrado de
hemácias deve ter o objetivo de manter hemoglobina > 8 mg/dl ou hematócrito
> 24%.
O paciente também deve ser submetido a tratamento medicamentoso
(uso de vasoconstrictores esplâncnicos como octreotide e terlipressina) e
endoscópico (endoscopia digestiva alta). As doses de octreotide e terlipressisa
sugeridas são descritas a seguir:
Octreotide: Bolus de 50 a 100 mcg IV em 10 minutos, seguido de infusão
contínua de 25 a 50 mcg/ hora por 5 dias.
Terlipressina: Dose de acordo com o peso do paciente. • < 50 kg: 1mg IV de 4/4 horas por 24 horas
• 50 a 70 kg: 1,5 mg IV de 4/4 horas por 24 horas
• > 70 kg: 2 mg IV de 4/4 horas por 24 horas
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Após, 1mg IV de 4/4 horas por mais 24 a 48 horas (máximo de 5
dias).
A endoscopia alta permite o diagnóstico do local do sangramento e a
intervenção terapêutica com ligadura das varizes sangrantes ou escleroterapia.
Colocação de TIPS ou shunts cirúrgicos deve ser considerada em pacientes
cujos tratamentos farmacológico e endoscópico não foram eficazes.
Profilaxia primária de peritonite bacteriana espontânea deve ser
realizada em pacientes com ou sem ascite. Naqueles com ascite, fazer punção
diagnóstica antes do início da dose profilática. Fazer norfloxacina 400 mg VO
de 12/12 horas por 7 dias, ou ciprofloxacina 200mg IV, 1 vez ao dia, até
conversão para norfloxacina VO.
Os agentes betabloqueadores (propranolol ou nadolol) devem ser
empregados na profilaxia secundária (prevenção de novo sangramento) ou
primária (paciente que nunca sangrou, mas tem risco de sangrar, como varizes
esofágicas de médio e grosso calibre desde que não haja contra-indicações. A
dose recomendada é aquela que reduz a freqüência cardíaca basal em 25%.
Esplenomegalia e Hiperesplenismo
Esplenomegalia pode ser totalmente assintomática ou causar
desconforto no hipocôndrio esquerdo. O hiperesplenismo pode ser detectado
por exames laboratoriais que mostram plaquetopenia, leucopenia e anemia
(podem ocorrer isoladamente ou em associação). Plaquetopenia pode ser a
manifestação pela qual o paciente procura o médico e a investigação permite o
diagnóstico de doença hepática.
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Não há nenhum tratamento específico para o hiperesplenismo.
Ascite
Ascite é definida por um acúmulo de fluido na cavidade peritoneal. Pode
ser a primeira manifestação da cirrose e hipertensão portal.
A ascite resulta do aumento da pressão hidrostática no sistema porta
(hipertensão portal), associado à diminuição da pressão oncótica
(hipoalbuminemia).
Na cirrose, evidências sugerem que a vasodilatação arteriolar
esplâncnica mediada pelo óxido nítrico resulta em hipovolemia relativa, ativação
do sistema renina-angitensina-aldosterona, liberação de hormônio aniti-
diurético e ativação do sistema nervoso simpático (Figura 1). Retenção de sódio
e de água são conseqüências desses eventos. Um componente de linfa hepática
pode contribuir para a ascite, particularmente quando há distorção e obstrução
dos sinusóides hepáticos.
A ascite é notada por aumento do volume abdominal. Ascite de grande
volume pode causar dispnéia e ortopnéia. Ao exame físico, é detectada por
macicez móvel (ascite de pequeno volume), semi-círculo de Skoda ou sinal do
piparote.
Todo paciente que apresente ascite pela primeira vez, ou quando
internado por quaisquer complicações, tais como: alteração da função renal,
encefalopatia hepática, sinais de infecção ou piora do estado geral, deverá ser
submetido a paracentese de pequeno volume para estudo do líquido ascítico. O
líquido deve ser coletado em condições assépticas, para contagem de células
(dois tubos de 10ml com citrato), cultura para aeróbios e anaeróbios (10ml em
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tubos de hemocultura), dosagem de proteína total e albumina (5ml em tubo
seco), e pesquisa de células neoplásicas (exame citológico – 5ml em tubo
contendo 5ml álcool 70%). Outras avaliações como dosagem de amilase, de
triglicerídeos, ou cultura para micobactérias, podem ser consideradas em
situações especiais.
O tratamento da ascite inclui dieta hipossódica (2g de sal/dia – 34 mEq
de sódio) e repouso. Se não houver resposta satisfatória ao tratamento,
diuréticos podem ser usados. A espironolactona é considerada primeira escolha
pelo seu efeito inibidor da aldosterona, uma vez que pacientes cirróticos têm
hiperaldosteronismo. A dose recomendada é de 100-400mg por dia, por via
oral. Se a resposta com espironolactona não for satisfatória, pode-se associar
a furosemida (40-160mg/dia).
O controle de resposta aos diuréticos deve ser feito com cuidado, a fim
de se evitar complicações. Recomenda-se perda de até 1 kg/dia em pacientes
com ascite e edema de membros inferiores, e de até 0,5 kg/dia nos pacientes
sem edema.
A paracentese é outra modalidade terapêutica e pode ser utilizada em
ascite de grande volume, para alívio dos sintomas. Após, pode ser instituído
esquema com diuréticos. Pacientes que não toleram diuréticos podem fazer
esquemas de paracentese de repetição para controle da ascite. Recomenda-se
a utilização de expansores de volume após paracentese de volumes superiores a
5 litros (exemplo: albumina humana 6 - 8g para cada litro de ascite removido,
por via endovenosa).
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Cirrose
Aumento da resistência vascular intra-hepática
hipertensão portal
vasodilatação esplâncnica
aumento do volume plasmático
circulação hiperdinânica hipotensão arterial aumento fatores neuro-humorais
retenção de sódio e água
ASCITE
Fig. 1 . Mecanismos de ascite na cirrose hepática
Peritonite bacteriana espontânea (PBE)
Os pacientes com cirrose e ascite podem desenvolver infecção
bacteriana aguda no líquido peritoneal, sem foco primário intra-abdominal,
denominada PBE. Sugere-se, atualmente, que a maioria dos episódios de PBE
seja resultado da translocação bacteriana de origem intestinal. Inicialmente, o
microorganismo migra para os linfonodos mesentéricos, passa pelo ducto
torácico, atinge a corrente sanguínea, e posteriormente, coloniza o líquido
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ascítico. Os fatores locais seriam incapazes de impedir a infecção,
progredindo para PBE.
A PBE deve ser suspeitada em todo paciente cirrótico que apresente
febre, dor abdominal, piora das condições gerais, alteração da função renal,
encefalopatia hepática ou hemorragia digestiva alta. Também deve ser
afastada em todo paciente cirrótico com ascite que seja internado por
quaisquer outros motivos.
O quadro clínico da PBE é variável. Sintomas típicos como febre, dor
abdominal e dor à descompressão brusca do abdome podem ocorrer, mas esses
sinais e sintomas podem faltar em muitos casos.
O diagnóstico é feito pela contagem de células do líquido ascítico (>250
polimorfonucleares /mm3 ) e por cultura positiva do líquido ascítico. A cultura
não é exame muito sensível, mas quando positiva, geralmente revela bacilos
gram negativos, particularmente a Escherichia coli. Entretanto,
microorganismos gram positivos também podem ser encontrados como
estreptococos, enterococos ou pneumococos. Os resultados de cultura
demoram pelo menos 48 horas, enquanto a contagem de células é método
simples e de fácil execução, e permite o diagnóstico rapidamente. Isso é
fundamental, uma vez que esses pacientes devem ser tratados o mais
precocemente possível para que se obtenha um melhor prognóstico. Assim, a
citologia do líquido ascítico é exame primordial para o diagnóstico precoce de
PBE, não se devendo aguardar resultado de cultura para tal.
Recomenda-se o tratamento com cefalosporinas de terceira geração
(cefotaxime ou ceftriaxone) ou amoxicilina com clavulanato ou ciprofloxacina.
Em nosso meio, dispomos e usamos de rotina a ceftriaxone (1g de 12/12 horas,
via intravenosa), que deve ser administrado por 5-15 dias, dependendo da
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gravidade e da evolução do caso. Recomenda-se o uso de albumina humana (1,5
g/kg no 1º dia e 1,0 g/kg no 3º dia, via intravenosa) para prevenir a síndrome
hepato-renal.
Recomenda-se a coleta de líquido ascítico para exame controle, 48 horas
após o início do tratamento, considerando-se resposta satisfatória se ocorrer
queda de 25% do número de polimorfonucleares comparado com os valores pré-
tratamento.
Uma vez feito o diagnóstico de PBE, recomenda-se a profilaxia
secundária com norfloxacina (400mg 1 vez/dia, via oral) ou ciprofloxacina
(750mg/semana por via oral) ou sulfametoxazol-trimetoprim (800mg-
160mg/dia, via oral) por tempo indefinido. A taxa de recorrência de PBE sem
profilaxia é de 70% em 1 ano.
Encefalopatia hepática (EH)
A encefalopatia hepática é definida como uma síndrome
neuropsiquiátrica complexa, caracterizada por distúrbios da consciência e do
comportamento, alterações na personalidade, sinais neurológicos flutuantes,
asterixis ou flapping e alterações eletroencefalográficas características (onda
lenta trifásica, alta voltagem, simétrica).
A EH pode ser aguda e reversível ou crônica e progressiva.
Acredita-se que a EH seja desencadeada por substâncias tóxicas que
atingem o cérebro. Essas substâncias não são detoxicadas pelo fígado devido à
função hepática muito comprometida, ou pela presença de shunts porto-
sistêmicos que impedem a detoxicação hepática. A principal substância
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envolvida nesse processo é a amônia. Outros compostos como mercaptanos,
ácidos graxos de cadeia curta, falsos neuro-transmissores (octopamina) podem
também estar envolvidos. Altos níveis de ácido gama-aminobutírico (GABA), um
neurotransmissor inibitório, no sistema nervoso central podem também ter
participação.
Os sintomas são inespecíficos e o diagnóstico de EH é geralmente de
exclusão, devendo-se afastar outras causas de encefalopatia. As
manifestações clínicas incluem alterações do nível de consciência e
comportamentais que podem evoluir de desorientação e confusão para torpor e
coma. Os sinais neurológicos incluem asterixis ou “flapping” (tremores
grosseiros das extremidades), rigidez e hiperreflexia.
As manifestações clínicas com os correspondentes estágios (graus de
EH) são mostradas na tabela 2. O estadiamento é importante para avaliar a
evolução do paciente e a reposta ao tratamento instituído.
A EH geralmente é desencadeada por fatores precipitantes, sendo os
mais importantes sangramento gastrointestinal, constipação intestinal,
azotemia, excesso de proteína na dieta, distúrbios hidroeletrolíticos e
metabólicos (hipocalemia, alcalose, hiponatremia, hipoxia, hipovolemia), uso de
drogas (diuréticos, benzodiazepínicos, sedativos, tranquilizantes), infecções,
cirurgias e shunts porto-sistêmicos. A correção desses fatores é fundamental
no tratamento da EH.
O tratamento da EH aguda é feito com restrição de proteínas na dieta
(0,5g/kg/dia; aumentar 10-20g/dia a cada 2-3 dias até alcançar 1,2g/kg/dia),
laxativos (lactulose 10-30ml por via oral, em 3-4 vezes/dia até atingir 3-4
evacuações pastosas por dia). Se a resposta não for adequada, pode ser
associado antibiótico de largo espectro por via oral (neomicina 0,5-1g/4x/dia
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ou metronidazol (250mg 3x/dia). Lavagem intestinal está indicada nos casos de
constipação intestinal e de hemorragia digestiva (enema com 900ml de soro
fisiológico 0,9% e glicerina 100ml).
Na EH crônica recomenda-se o uso de lactulose. Deve ser evitado o uso
prolongado de neomicina pelos efeitos nefrotóxicos e ototóxicos.
Tabela 2. Estágios da encefalopatia hepática
Estágio
Manifestações clínicas
I euforia ou depressão, leve confusão, fala arrastada, distúrbios do sono.
Asterixis pode estar ou não presente.
II letargia, confusão moderada. Asterixis presente
III confusão grave, fala incoerente, sonolento. Asterixis presente
IV Coma, inicialmente responsivo e mais tardiamente não responsivo.
Asterixis ausente
Síndrome Hepato-renal (SHR)
A SHR é definida como uma condição que ocorre em pacientes com
doença hepática crônica e hipertensão portal. É caracterizada por função renal
alterada e graves anormalidades na circulação arterial renal e na atividade de
sistemas vasoativos endógenos. Os rins são estruturalmente preservados.
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Acredita-se que a vasodilatação esplâncnica que ocorre em cirróticos
possa ser responsável pela intensa vasoconstricção renal.
As manifestações incluem azotemia, oligúria e hiponatremia. Outras
causas de disfunção renal devem ser afastadas como insuficiência renal pré-
nal, necrose tubular aguda, uso de drogas nefrotóxicas ou de contrastes
radiológicos.
Os exames laboratoriais revelam creatinina sérica >1,5 g/dl ou taxa de
filtração glomerular < 40ml/min, que não melhora com o uso de expansores de
volume (infusão intravenosa de 1.500 ml de solução salina) ou retirada de
diuréticos, exame do sedimento urinário normal, intensa retenção urinária de
sódio (concentração de sódio urinário muito baixa), proteinúria < 500mg/dia e
ultra-sonografia renal normal.
Dois tipos de SHR são reconhecidos e provavelmente representam
expressões distintas do mesmo mecanismo patogênico (figura 2).
A SHR tipo I é caracterizada por um aumento rápido e progressivo
da uréia e creatinina séricas (creatinina >2,5g/dl) dentro de um curto período
de tempo (duas semanas), oligúria, concentração de sódio urinário muito baixo,
hiponatremia e em alguns casos hipercalemia. Embora possa ocorrer em
pacientes com função renal prévia preservada, a SHR tipo I comumente
desenvolve-se em pacientes que já apresentam SHR tipo II expostos a algum
fator precipitante como infecções bacterianas, hemorragia digestiva,
cirurgias, paracentese sem utilização de expansores plasmáticos, dentre
outros. Quase todos os pacientes morrem 2-3 semanas após o início do quadro.
A SHR tipo II é caracterizada por redução moderada da função
renal (creatinina sérica entre 1,5 e 2,5 g/dl) que permanece estável durante
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meses. Ocorre geralmente em pacientes com função hepática relativamente
preservada, sendo que muitos desses apresentam ascite refratária.
O tratamento pode ser feito com vasoconstrictores esplâncnicos
(terlipressina: 0,5 - 2mg a cada 4 horas, via intravenosa) associados à albumina
humana (1g/Kg no 1º dia e depois 20-40g/dia, via intravenosa).
O “TIPS” parece ser também efetivo no tratamento de pacientes com
SHR. O principal efeito é diminuir a pressão portal. Na SHR tipo I, o “TIPS”
melhora a função circulatória e reduz a atividade dos sistemas
vasoconstrictores, resultando em aumento da perfusão renal e da taxa de
filtração glomerular, com queda nos níveis de creatinina sérica em cerca de
60% dos pacientes.
O prognóstico na SHP é muito ruim e a recuperação espontânea muito
rara. Na SHR tipo I, a sobrevida hospitalar é menor que 10% e o tempo de
sobrevida média é de duas semanas. Na SHR tipo II, o tempo de sobrevida é
maior, em torno de 6 meses em 50% dos casos.
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cirrose hepática
hipertensão portal
vasodilatação esplâncnica acentudada
estimulação dos sistemas vasoconstritores
vasocontrição renal
SHR tipo II
acentuação da hipoperfusão renal
isquemia renal
SHR tipo I Figura 2- Fisiopatologia da SHR.
Carcinoma Hepatocelular
O carcinoma hepatocelular (CHC) é um tumor primário do fígado,
altamente fatal que acomete aproximadamente 500.000 pessoas no mundo. A
grande maioria dos casos ocorre na África e Ásia, sendo a China o país de
HDA, PBE, INFECÇÕES
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maior prevalência. A América do Sul compõe área de baixa prevalência para o
CHC (< 5,0/100,000), e mais de 80% dos casos ocorrem em portadores de
doença hepática crônica. As principais causas de cirrose hepática nos pacientes
com CHC são as hepatites pelos vírus B e C, e a doença hepática alcoólica.
As manifestações clínicas incluem dor abdominal, massa palpável no
hipocôndrio direito, perda de peso, icterícia e ascite. Nos cirróticos, pode
haver piora da função hepática e as manifestações podem ser confundidas com
a própria evolução da doença.
A alfafetoproteína (AFP) é uma das ferramentas diagnósticas,
apresentando uma sensibilidade de aproximadamente 39 a 64% e uma
especificidade de 76 a 91%. Níveis séricos de AFP maiores que 400ng/ml e um
exame de imagem dinâmico mostrando lesão focal > 2cm de diâmetro com
hipervascularização arterial, é altamente sugestivo de CHC. Níveis crescentes
de AFP também sugerem CHC ou recorrência do tumor após tratamento
específico.
O rastreamento de lesão focal hepática deve ser realizado a cada 6
meses com dosagem de AFP sérica e US de abdome, em pacientes cirróticos de
qualquer etiologia ou em casos selecionados de portadores de infecção crônica
pelo vírus da hepatite B.
Os exames de imagem que são utilizados para o diagnóstico e o
estadiamento do tumor incluem: ultra-sonografia (US), tomografia
computadorizada (TC), ressonância nuclear magnética (RNM) e arteriografia
(angiografia de tronco celíaco e de artéria hepática).
O US é o exame usado de rotina em pacientes cirróticos, na tentativa de
se detectar precocemente o CHC. Lesões de até 3 cm de diâmetro são
geralmente hipoecóicas e as maiores que 3 cm podem ser hipo ou hiperecóicas.
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O US também permite a avaliação do número de lesões, invasão vascular ou de
ductos biliares e a presença de lesões metastáticas.
A TC deve ser helicloidal trifásica, e tipicamente observa-se
hipervascularização da lesão na fase arterial.
O achado típico na RNM é de lesão hiperintensa em T2, com sinais de
hipervascularização.
Na arteriografia, observa-se lesão hipervascularizada com vasos
tortuosos. Essa técnica é reservada para casos em que a TC ou a RNM não
foram capazes de definir o diagnóstico.
A biópsia e a citologia do nódulo hepático também podem ser utilizadas
no diagnóstico de CHC, principalmente nos casos em que o nódulo seja pequeno
ou os exames de imagem não possibilitarem o diagnóstico.
A abordagem diagnóstica do paciente com nódulo hepático está
esquematizada na figura 3.
USG abdome e AFP
Nódulo hepático Sem nódulo
1–2 cm > 2cm < 1cm AFP > 20 ng/ml AFP normal
biópsia/cito AFP>400ng/ml USG 3/3m** CT abdome*** + 1 imagem* ou 2 imagens*
CARCINOMA HEPATOCELULAR rastreamento US+AFP 6/6m
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Figura 3. Estratégia diagnóstica de CHC
* TC helicoidal trifásica, RNM ou angiografia (lesão focal > 2cm de diâmetro com
hipervascularização arterial).
** Se não houver evidência de crescimento da lesão focal e a AFP for normal por 1 a 2 anos,
continuar rastreamento com USG e AFP semestral. Se houver crescimento da lesão e/ou
aumento da AFP, solicitar TC de abdome.
*** Se encontrada lesão focal sugestiva de CHC, prosseguir investigação com RNM ou
arteriografia. Pode ser necessária biópsia/citologia. Se não for encontrada lesão focal,
prosseguir com rastreamento semestral com USG e AFP. (obs.: se houver aumento persistente
de AFP, discutir arteriografia).
Os principais locais de metástase do CHC são ossos, pulmão e adrenal.
O tratamento pode ser feito com ressecção cirúrgica em pacientes com
cirrose hepática, desde que em fase compensada da doença e sem complicações
(Child-Pugh A, com bilirrubina normal, tumor único menor que 5cm e na ausência
de hipertensão portal, de invasão vascular macroscópica e de metástases). A
recorrência tumoral com esse procedimento é de 70% em 5 anos.
O transplante de fígado pode ser indicado nos casos de cirrose hepática
Child-Pugh A que tenham contra-indicação à ressecção cirúrgica e nos casos de
cirrose hepática Child-Pugh B e C, desde que o tumor seja único e menor que 5
cm ou existam até 3 tumores, nenhum maior que 3cm, na ausência de invasão
vascular macroscópica e de metástases.
O tratamento percutâneo com alcoolização ou radiofreqüência está
indicado quando há contra-indicação de ressecção cirúrgica ou de transplante
de fígado. A quimioembolização arterial do tumor pode ser feita em pacientes
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com contra-indicação para ressecção cirúrgica, transplante de fígado e ablação
percutânea, desde que sejam Child-Pugh A ou B, com condição geral preservada
e ausência de metástases.
Bibliografia recomendada:
o Chung RT & Podolsky DK. Cirrhosis and its complications. In:
Harrisson´s. Principles of Internal Medicine. 16th ed. McGraw –
Hill, London, p. 1858-1868, 2005.
o Revista Medicina, volume 36, número 2/4, p. 294-306, 2003.