Download - BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência
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fditores AssistentesAnderson Nobara
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Dido Bessana
Pierre Bourdieu
OS USOS sociois do ci€mcioPor uma sociologia c1lnica
do campo cientlfico
Texto revisto pelo outor com 0 coloboro~6o dePatrick Champagne e Etienne Landais
Conferencio e debote organizados pelo grupo Sciencesen Questions, Paris, INRA, 11 de mar~a de 1997
Tradu~ao
Denice Barbaro Catani
© 1997 Institut National de 10 Recherche Agronomique (INRA)Titulo original em frances: Les usages soc;oux de /0 science.Pour une socio/ogie c/;nique du chomp sr:ientjfique
© 2003 do tradlH;oo brosileira:
Fvndo~ao Ediloro do UNESP (FEU)Pro~ do se, 10801001-900 - 560 Paulo -SPTel., (Oxxll) 3242-7171Fa", [Oxxll) [email protected]
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8778uBourdieu, Pierre, 1930-2002
Os usos sociais do ciencio: por umo sociologio cJinico do compocientifico / Pierre 8ourdieu; texto re....isto pelo autor com 0 colabo·ro~oo de Patrick Champagne e Etienne landais; troduc;oo Denice
Barbaro Cotani. - sao Paulo: Editoro UNESP. 2004.Troduc;ao de: Les usages socioux de 10 science: por une socioJogie
du chomp scientifique"Conferencia e debate orgonizodos pelo grupo Sciences en
Questions, Paris, lNRA, 11 de marc;o de 1997"
Inclui bibliografiaISBN 85-7139-530-6
1. Ciencio - Aspectos sociois. l. Titulo.
04-1083. CDD 306.45CDU 316_74,5
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••••A~ Btuilclta <1u£<litoru ~"itAriu
Sum6rio
Pref:l.cio - Patrick Champagne 7
OS USOS sociais cia ciencia - Por uma sociologiac11nica do campo cientffico 17
Introdu~ao 17
Os campos como microcosmos relativamenteautonomos 18
As propriedades especificasdos campos cientfficos 30
As duas especies de capital cientifico 35
o espa~o dos pontos de vista 43
A situa~o particular do INRA 48
Ir alem clas aparencias e clas falsas antinomias 53
Algumas proposi~6es normativas 59
Vma conversao coletiva 65
Discussao 70
Pref6cio
o grupo Sciencl'S en QUI'S/ions pediu-me que apresentasse brevemente Pierre Bourdieu antes de sua interven~ao entre os pesquisadores do Institut Nationalde la Recherche Agronomique - Paris (INRA). A tarefanao e fkit para mim, pelas rela~oes de trabalho quemantenho com Pierre Bourdieu hi muito tempo - quasetrinta anos -, e fico tentado a sair dessa dizendo quePierre Bourdieu e daquelas personalidades tao conhecidas que nao precisam mais ser apresentadas.
Poderia ter ficado nisso se, estimulado pela dificuldade, nao tivesse tentado levar a serio 0 pedido queme foi feito. E como apresentar, efetivamente, uma obratao importante e densa como a de Pierre Bourdieu, queestudou quase tudo: os camponeses, os artistas, a escola, os c1erigos, os patr6es, as classes populares etc.,e que abarcou tantas disciplinas: a etnologia, a sociologia, a filosofia, a sociolingiiistica, a economia, a hist6ria etc.' Como dar conta de uma obra que se constituiu ao lange de centenas de pesquisas conduzidas
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,I!II,
Pierre Bourdieu
diretameme ou orientadas, ou simplesmente lidas eassimiladas durante praticamente quarenta anos?
Diante da impossibilidade de resumir em cincominutos a obra de toda urna vida, porque nao estamosna televisiio, optei por Iimitar-me ao menos discutivele talvez ao mais facil, fomecendo apenas algumas re
ferencias biograficas e bibliograficas.
Pierre Bourdieu, 0 senhor poderia ter sido convidado para vir aqui por causa de seus trabalhos acercado mundo rural. Saindo da Escola Normal Superior que,no seu caso, se bern entendo, nao foi uma experienciatotalmeme encamada, 0 senhor come~ou, de fato, suacarreira trabalhando sobre a crise do mundo campones, tamo na Argelia, onde, durante 0 seu servi~o militar, fez seus primeiros contatos ime!eetuais, quamci napequena cidade do Beam, na qual 0 senhor nasceu em1930. Sua obra emao come~ pelos trabalhos acerca domundo rural. 0 senhor publicou, em colabora~aocomAbde! Malek Sayad Le deracinement [0 desenraizamen
to], 1 uma obra sobre a crise da agricultura tradicionalna Argelia, a qual foi preciso acrescentar Algerie 60
[Argetia 60],2 que foi publicada urn pouco mais tardee na qual 0 senhor analisa 0 encontro da sociedadecamponesa argelina tradicional com 0 espirito do capitalismo. Em 1962, na nova revista da Ecole des HautesEtudes en Sciences Sociales, Etudes Rurales, a senhorpublicou urn longo artigo intitulado "Celibat etcondition paysanne" ["Celibato e condi~ao campone-
1 Bourdieu, P., Sayad. A. I.e deracinemenl, lo crise de /'agri
eu/ture Iraditionne/le en Algene. Paris: Minuit, 1964.
2 Bourdieu, P. Algerie 60, structures economiques e/ structurestemporelles. Paris: Minuit, 1977.
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Os usos socia is do ciencic
sa"J,3 no qual mostra que a crise do campesinato naoencontra sua explica~o apenas no capitalismo agrario,mas tambem nos mecanismos muito mais sutis que serelacionam com a propria reprodu~o e, inclusive, coma reprodu~o biologica dos individuos.
Se hoje, no emamo, 0 senhor e aqui convidado,paradoxalmeme nao 0 e por causa desses trabalhosrurais, mas sobretudo em razao dos trabalhos que ternmarcado a sequencia de sua carreira e que fomeceramo material dos livros ma15 conhecidos ou rnais exatameme de Iivros cujos tirulos sao ma15 conhecidos. Naosei realmente se 15so resulta de um agudo semido domarketing editorial, mas e possive! resumir toda suaobra a partir da escolha judiciosa dos titulos de suaspublica~6es. 0 senhor, entretanto, come~ou mal, urnavez que seu primeiro livro, publicado em 1958 na cole~ao Que sais-je?, imitulava-se banalmente SOCiologiede 1'Algerie [Sociologia da Argelia],4 que surgiu algunsanos mais tarde com urn titulo bastante descritivo:Travail ettravailleurs en Algerie [Trabalho e trabalhadares na Argelia]5 Essas primeiras pesquisas permitiram, no emanto, que 0 senhor desenvolvesse um conceito destinado a urn grande futuro em seus trabalhosposteriores, refiro-me ao conceito de habitus.
Ao voltar para a Fran~, apos uma breve passagempela Universidade como maftre de conferences, 0 senhor foi eleito pela Ecole des Hautes Etudes como
3 Bourdieu, P. C€libat et condition paysanne. £"tudes Rura/es,n.5-6, p.32-136, avr.-sept. 1962.
4 Bourdieu, P. Soci%gie de /'A/gerie. Paris: PUF, 1958. (Coli.Que Sais-je?, 802).
5 Bourdieu, P. el al. Travail et travai/leurs en Algene. Paris; LaHaye, Mouton, 1963.
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Pierre Bourdieu
orientador de pesquisas. Trabalhou, nessa epoca, noCentre de Sociologie Europeenne, que havia sido criado com 0 benepliicito de Raymond Aron e que se dedica principalmente aanalise do sistema de ensino. Em1964, 0 senhor publicou urn primeiro balan~o <las pesquisas que concebeu e orientou, nurn livro Les heritiers
[Os herdeirosl,6 com 0 subtitulo "Os estudantes e a cul
tura". Essa obra, escrita com Jean-Claude Passeron, seraa primeira de uma longa serie de sucessos. 0 senhorcolocou em evidencia 0 papel do capital cultural nasele¢.io escolat. Publicou, a seguir, em 1966, Arnorpelaarte,7 no qual, a partir de uma serie de investiga~Oes
sobre a frequencia aos museus, foi aprofundada essano~ao de capital cultural e analisadas mais genericamente as funp3es sociais das praticas culturais. Em 1968,fundou seu proprio laboratorio: 0 Centre de Sociologiede l'Education et de la Culture, que ainda existe e como qual trabalha em estreita reJa~ao, ainda que 0 senhoresteja no College de France desde 1981.
Em 1970, urn novo livro com titulo bern escolhido,A reprodw;iicJ3 subintitulado "Elementos para uma teoria do sistema de ensino". Foi urn novo sucesso, mastambem 0 come~o dos primeiros mal-entendidos comos que se detem apenas nos titulos das suas obras e
6 Bourdieu, P., Passesron,]. C. Les berltiers, /es etudiants et laculture. Paris: Minuit, 1%4.
7 Bourdieu, P. el al. L'amour de I'art, les musees d'art et leurpublic. Paris: Minuil, 1966 led. bras.: Amor pela arte. Osmuseus de ane na Europa e seu publico. Sao Paulo: Edusp,
20031.
8 Bourdieu, P., Passeron, J. C. La reproduction. EMmell/S pourune throne du systl~ned'enseignement. Paris: Minuit, 1970
(ed. bras.: Reprodu~iio: elementos para uma teorta do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975],
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Os uses seciais da ciencia
que pensaram que esse livro demonstrava que a escola so reproduzia a estrutura social, enquanto 0 livro,para 0 senhor, e muito mais - parece-me - preteXlo paradesenvolver urn novo sistema conceitual, apoiado principalmente sobre uma no~ao que teria, ela propria,muito futuro: a no~ao de violencia simb6lica.
Ao lange dos anos 70, 0 senhor trabalhou numavasta pesquisa sobre os processos de diferencia~ao
social, verdadeira contribui~ao a uma teoria geral dasclasses sociais publicada em 1979 numa obra intituladaLa distinction [A distinr;iio]9 0 subtitulo "Critica socialdo julgamento" explicitava meJhor sua verdadeira ambi,ao, que era a de construir, numa perspectiva neokanriana, uma teoria sociologica das categorias queorganizam a perce~ao do mundo social e que por issocontribuem para produzi-lo. A publica~ao dessa obraensejou 0 convite de Bernard Pivot para 0 senhor ir atelevisao, e, depois disso, ele imaginou que 0 seu sucesso e ate a propria elei,ao dois anos mais tarde parao College de France the devem muito. Urn ano maistarde, uma outra obra, Le sens pratique [0 senso prati
co], 10 vern completar essa constru~ao. Nela, 0 senhorpropoe uma teoria do conhecimento sociologico, esfor,ando-se por situar sua sociologia com rela,ao acorrente objetivista simbolizada, na ernologia, por LeviStrauss e com rela~ao as correntes subjetivistas representadas pela fenomenologia sartriana.
A partir de 1975, 0 senhor retoma seus trabalhossobre 0 sistema de ensino, ampliando-os para a constitui~ao dos campos de produ¢.io erudila - anes, ciencias
9 Bourdieu, P. La distinction. Critiquesocialedujugement. Pa
ris: Minuit, 1979.10 Bourdieu, P. le sens pratique. Paris: Minuir, 1980.
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Pierre Bourdieu
etc. -, e deparamos ai com nosso objeto de hoje. Desde 1971 em "Le marche des biens symboliques" ["0
mercado dos bens simb6licos"l, urn artigo publicado emL'Annee Sociologique," a senhor lan~ou as bases dealgumas amllises posteriores nesse campo, distinguindo a que chamou 0 "campa da produ~ao em sentidoestrito", espa~o de produ~ao erudita, no qual as produtores tern par publico, essencialmente, as outrosprodutores, isto e, seus concorrentes diretos (0 senhorpensava, entao, sobretudo no campo artistico), do"campo da grande produ~o cultural" (0 jomalismo auas industrias culturais, par exemplo, que se dirigem aum grande publico).
Rapidamente, parem, nessa esteira a senhor estudouesse campa de produ~o restrito e particular que e acampo cient[fico e, em 1975, publicou urn artigo fundadar "La specificite du champ scientifique et les conditionssociales du progres de la raison" ["A especifkidade nocampo cient[fico e as eondi~6es sociais do progresso darazao"l, no qual 0 senhor rompe com a tradi~o dominante da soeiologia da eieneia e sua visao canciliadorada "comunidade dentifica", introduzindo, especialmente, as conceitos de campo eient[fico e de capital dentifico; tudo isso mostrando que a 16gica desse mercado no qual, no limite, pode-se, como nas maternaticas avan~adas, ter par clientes apenas as seus piares concorrentes - e favoravel ao progressa da razao. 12 Em 1984, a
11 Bourdieu, P. Le marche des biens symboliques. L 'Annee
Sociologique, 3' serie, v.22, p.49-126, 1971.12 Bourdieu, P. La specificite du champ scientifique et les
conditions sociales du progres de la raison. Sociofogie et
SocierrJs, v.VI!, n.t, p.91-118, mai 1975; e tambem, Le champscientifique. Actes de fa Recherche en Scumces Socia/est n.2
3, p.88-104, juin 1976.
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Os usos sociois do ciencia
senhor publicou Homo academicus,13 uma obra sabre° corpo docente e, mais genericamente, sobre a insti
tui~ao universitaria, sabre 0 academicismo, sobre aslutas entre as disciplinas, sabre a perspectiva escolastica,sabre a crise de Maio de 68 etc. Em 1989, novo livro,novo iitulo e novo sucesso com La noblesse d'Etat [A
nobreza do Estadol, subintitulado "Grandes eseolas ecorporativismo", entendido como um ataque contra aE A J4 e as Grandes Escolas, principalmente par aqueles que saem dessas escolas do poder, quando se tratade uma analise dessa instilUi~o muito singular que ea Estado.
Em 1992, a senhar publicou As regras da arte,IScom a subtitulo: "Genese e estrutura do campo literario", no qual propos uma teoria geral dos campos erefletiu sabre a que e uma revolu~ao simb6lica. Esselivro trata tambem do problema da fun,Ao social dosinteleetuais. 0 senhor decidiu, ao mesmo tempo, darurn novo golpe editorial que consistiu em produzir urnlivro grande, para que as jornalistas nao a lessem, mascom um bam titulo para que mesmo assim falassemdele. Para esse empreendimento reuniu em torno desi uma equipe de soci610gos, da qual eu mesmo fizparte, para produzir essa soma de quase mil paginasdedicadas ao livro A miseria do mundo16 Lan~ada em1993, essa obra tenta, a sua maneira, tamar acessivel,
13 Bourdieu, P. Homo academicus. Paris: Minuit, 1984.
14 ENA - Ecole Nationale d'Administration (£SCola Nacional deAdministra¢i.o). (N. T.)
15 Bourdieu, P. Les reg/es de l'art- genese et stnJcture du champ
litteraire. Paris: Seuil, 1992 led. bras.: Asregrasdaarte. 2.ed.
Sao Paulo: Cia. das Letra5, 2002].
16 Bourdieu, P. La misere du monde. Pari" Seuil, 1993 led. bras.,A mi.serla do mundo. 5.ed. Petropolis: Vozes, 2003].
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Pierre Bourdieu
para alem do drculo de profissionais, as aniilises maisavan01das da sociologia. Alguns meses mais tarde, 0 senhor recebeu, pelo conjunlo de sua obra, a Medailled'Or du CNRS,17 distinqao pela primeira vez atribuida aurn soci610go.
Mais recentemente, 0 senhor reincidiu, invertendo
sua eSlrategia editorial, pois fez urn Iivro bern peque
no, para que os jomalistas 0 lessem, mas sabre urn temado qual nao podem falar. E Sobre a televisao'B A jul
gar pelas rea~oes que enta~ suscitou, pode-se pensarque mais uma vez mirou corretamente. Mas, dessa vez l
o que os jornalistas leram mal foi 0 pr6prio tirulo, pois
muitos deles acreditaram estar lendo Contre la television
(Contra a televisaol, enquanto sua proposta - e estoubern a vontade para dizer - consiSlia sobrerudo numaimerrogaqao sobre a possivel comribuiqao das cienciassociais a uma melhor oriema~ao dessa tecnologia socialmenre invasiva que exerce uma influencia crescen
te sabre alguns universos> entre os quais 0 nosso.
Ficarei por aqui nesse breve panorama que dii ape
nas uma imagem muito incompleta de sua produ~ao
cientifica. De fata, seria necessario evocar ainda outras
titulos, entre os quais 0 oficio de soci6logo,19 que foi 0
breviario de toda uma gera~ao de pesquisadores des
de os anos 70, a revista Actes de la Recherche en
17 CNRS - Centre National de 18 Recherche Scientifique (Cen
tro Nacional da Pesquisa Cientifica). (N. T.)
18 Bourdieu, P. Sur/a television. Paris: Liber-Raisons d'Agir, 1996led. bras.: Sobre a televisiio. Seguido de A influifncia do jor
nalismo e logos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997J.
19 Bourdieu, P. e{ al. I.e metier de sociologue. Paris: Mou{on
Bordas, 1%8 led. br<lS.: Oojiciodeso<:i6togo. 4.ed. Petr6polis:Vozes, 20041.
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Os usos sociois do ciencio
Sciences Sociales que 0 senhor criou em 1975 e sempre dirigiu e que conta com grande notoriedade nacional e imernacional. Seria preciso citar tambem diversas obras nas quais foram reproduzidas viirias conferencias que deu sobre 0 seu trabalho: Questoes de so
ciologia,20 Coisasditas,2' Rtiponses[RespostaSJ,22 Raz6es
praticas,23 estudos que constituem a melhor inlrodu
~ao a uma obra que, por vezes, e de dificil acesso para
nao-especialistas.You passar-lhe a palavra, nao sem antes fazer uma
ultima observa~ao: a preseme conferencia, intitulada"Os usos sociais cia ciencia", tern, como 0 senhor deve
ter notado, urn tirulo relativamente banal. A explicaqaoe simples: esse tirulo nao e seu, mas nosso. Nao ha
duvida de que, no momento de editar eSla conferencia,o senhor nos ajudara a encontrar urn born SUblitulo!
Patrick Champagne
Diretor de Pesquisas do INRA
20 Bourdieu, P. Questions de sociologie. Paris: Minuit, 1980. red.bras.: Quest6es de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero,
1983).21 Bourdieu, P. Chases dites. Paris: Minuit, 1987 led. bras.: Coi
sas ditas. Sao Paulo: Brasiliense, 1990J.22 Bourdieu, P., Wacquant, L. Reponses. Pour une anthropologie
reflexive. Paris: SeuU, 1992.
23 Bourdieu, P. Raisonspratique5. Suylatbf§ortedai'action. Paris: Seuit, 1994 red. bras.: Raz6es prdlicas. Sabre a {eoria daal'ao. Campinas: Papirus, 19961.
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as uses seciois do ciencio
Por uma sociologia c1fnicado campo cientffico
Introduc;ao
Agrade~o a Palrick Champagne. Fiquei sensibilizado com a apresenra~ao que ele fez, porque ela forneee - 0 que nao e freqUenle - uma ideia baSlanle compIela e baslanre jUSla do meu trabalho. Isso faeililara minha tarefa de hoje.
ESIClU feliz por incluir-me nessa serie de eonfereneias, porque sua organiza~ao pareee-me uma maneirabaslanre exemplar, para uma inslilui~ao denrlfiea, deempreender uma reflexao coleliva sobre si pr6pria.Quero eonrribuir para essa reflexao sugerindo algumasquest5es sobre 0 que e a 16gica pr6pria do mundo cienlifieo e sobre a forma particular que essa 16giea assume no caso do INRA, com a esperan~ de deseneadearurn processo de auto-andlise coletiva. Penso que eslamos, hoje, em eondi~5es de conceber novas fonmasde reflexao. Trala-se, para'lanro, de mobilizar urn co-
17
Pierre Bourdieu
letivo, em torno de interroga~gesrelativamente elaboradas, em co;'di~i:ies tais que se possa produzir umaverdade sobre si proprio que, certamente, ele e 0 unico capaz de produzir. Condi~6es que, devo dizer, naome parecem ser cumpridas nas formas mais comuns deorganiza~ocoletiva cla reflexao, quer se trate de sindicatos quer de organiza~i:iesprofissionais quer de comissi:ies, como 0 INRA sabe bern, encarregados de proportransforma~i:iesou reformas mais ou menos profundas.
ao creio que basta reunir urn grupo para produzir areflexao cientifica, mas acredito que, com a condi~ao
de instaurar uma tal estrutura de troca que traga em simesma 0 principio de sua propria regula~ao, podemse instaurar formas de reflexao que hoje nao tern lugare que podem it alem de todas as especula~i:ies de especialistas (sobretudo em "cientometria") e de toclas asrecomenda~oes de comites e de comissi:ies. Desejocontribuir para fazer existir em sua institui~ao urn tallugar - a ser inventado - tentando, muito modestamente, submeter a urn exame cdtico rao radical quanto possivel as representa~6es endogenas ou exogenas, eruditas ou espontaneas, das quais 0 INRA tern sido objeto, e sobretudo fornecer os instrumentos de conhecimento que me pare~am indispensaveis a constru~o deuma representa~o vercladeira, portanto uti! para a a~o.
Os campos como microcosmosrelativamente autonomos
Quais sao os usas sociais cla dencia? Epossivel fazeruma ciencia da ciencia, uma ciencia social da produ
~ao da ciencia, capaz de descrever e de orientar os usossociais da ciencia' Para ter condi~i:ies de responder a
18
Os vsos sociois do ciencio
essas questoes, devo come~ar por lembrar algumasno~6es, como condi~oes para uma reflexao combativa,e em particular a n~ao de campo, da qual evocareirapidamente a genese.
Toclas as produ~6esculturais, a filosofia, a historia,a ciencia, a arte, a literatura etc., sao objetos de anali
ses com pretens6es cientificas. Ha uma historia cia literatura, uma hist6ria cla filosofia, uma hist6ria das ciencias etc., e em rodos esses campos encontra-se a mesmaoposic;ao, 0 mesmo antagonismol frequentemente con
siderados como irredutiveis - sendo 0 dominio da arte,certamente, um dos lugares onde essa oposi~ao e maisforte - entre as interpreta~6es que podem ser chamaclas internalistas ou internas e aquelas que se podemchamar de externalistas ou extemas. Grosso modo, ha,de um lado, os que sustentam que, para compreendera literatura ou a filosofia, basta ler os textos. Para os defensores desse fetichismo do texto autonomizado quefloresceu na Fran~ com a semiologia e que reflorescehoje em todos os lugares do mundo com 0 que se chama de pos-modernismo, 0 texto e 0 alfa e 0 i:imega enada mais h3 para ser conhecido, quer se trate de umtexto filosofico, de urn c6digo juridico ou de um poerna, a nao ser a letra do texto. Esquematizo um pouco,
mas bern pouco.
Em oposi~ao, uma outra tradi~o, freqiientementerepresentada por pessoas que se filiam ao marxismo,quer relacionar 0 texto ao contexto e propi:ie-se a interpretar as obras colocando-as em rela~ao com 0
mundo social ou 0 mundo econ6mico. Ha toda sortede exemplos dessa oposi~o, e remeto os interessadosao meu livro Les regles de I'art [As regras da artel, noqual evoco de modo mais preciso as diferentes correntes e referencias bibliograficas de apoio.
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Pierre Bourdieu
Ao se tratar da ciencia, encontram-se as mesmasoposi<;oes, com uma tradi<;ao de historia da ciencia quee, alias, bastante proxima da historia da filosofia. Essatradi<;iio, notoriamente representada na Fran<;a, descreve 0 processo de perpetua<;ao da ciencia como umaespecie de partenogenese, a ciencia engendrando-sea si propria, fora de qualquer interven<;ao do mundosocial.
.E para escapar a essa alternativa que elaborei ano<;iio de campo. .E uma ideia extrernamente simples,cuja fun<;iio negativa e bastante evidente. Oigo que paracompreender uma produ<;iio cultural (Iiteratura, ciencia etc.) nao basta referir-se ao contelido textual dessaprodu<;iio, tampouco referir-se ao contexto social contentando-se em estabelecer uma rela<;ao direta entre 0
texto e 0 contexto. 0 que chama de "erro do curtocircuito", erro que consisce em reJacionar uma obra
musical ou urn poema simbolista com as greves deFourmies ou as manifesta<;oes de Anzim, como fazemcertos historiadores da arte ou da Iiteratura. Minha hipatese consiste em supor que, entre esses dois palos,muito distanciados, entre os quais se supoe, urn pouco imprudentemente, que a Iiga<;ao possa se fazer,existe urn universe intermediario que chamo 0 campoliterano1 artistico1 juridico au cientifico, isto e, 0 uni
verso no qual estao inseridos os agentes e as institui<;oes que produzem, reproduzem ou difundem a arte,a literatura ou a ciencia. Esse universe e urn mundo
social como os outros, mas que obedece a leis sociaismais ou menos especfficas.
A no<;ao de campo esta af para designar esse espa~o re1ativamente aut6nomo, esse rnicrocosmo dotado
de suas leis proprias. Se, como 0 macrocosmo, ele esubmetido a leis sociais, essas nao sao as mesmas. Se
20
as usos sociois do ciencio
~e,.,u .~ -A0TONoMIAjamais escapa as imposi<;6es do macrocosmo, ele dis-pOe, com rela<;iio a este, de uma autonomia parcial maisou menos acentuada. E uma das grandes questoes quesurgirao a proposito dos campos (ou dos subcampos)cientfficos sera precisamente acerca do grau de autonomia que eles usufruem. Uma das diferen<;as relativamente simples, mas nem sempre faci! de medir, dequantificar, entre os diferentes campos cientificos, issoque se chamam as disciplinas, estara, de fato, em seugrau de autonomia. A mesrna coisa entre as institui<;6es.Poder-se-a perguntar, por exemplo, se 0 CNRS e rnaisautonomo do que 0 INRA e 0 INRA mais autonomo doque 0 INSEEI etc. Urn dos problemas conexos sera,evidentemente, 0 de saber qual e a natureza das pres-soes externas, a forma sob a qual elas se exercem, creditos, ordens, instru<;oes, contraros, e sob quais formasse manifestam as resistencias que caracterizam a auto
nomia1 ista e, quais sao os mecanismo$ que 0 micra
cosmo aciona para se Iibertar dessas imposi<;6es exter-nas e ter condi<;oes de reconhecer apenas suas propriasdetermina<;oes internas.
Em outras palavras, e preciso escapar a alternativada "ciencia pura", totalmente livre de qualquer necessidade SOCial, e da "ciencia escrava", sujeita a todas asdemandas politico-economicas. 0 campo cientlfico eurn mundo social e, como tal, faz imposi<;oes, solicita-~~oes etc., que sao, no entanto, relativamente indepen
dentes das pressoes do mundo social global que 0
envolve. De fato, as press6es externas, sejam de quenatureza forem, so se exercem por intermedio do cam-
"' ,~~.s.\1;';r-\O,e- ~~ AI'II.Jn)NOl'lft>r-
1 Instirut National de la Statistique des Etudes Economiques (Ins
tiruro Nacional de Estatisticas e Estudos Econ6micos). (N. TJ
,r'~ CA\Xl(2.. '00~ ~~"'g€-A\litl Nb \'1\ ll. Pierre Bour~ r-Y"'u
ON~~po, sao mediatizadas pela 16gica do campo. Uma dasmanifesta\;oes mais vislveis da autonomia do campo esua capacidade de refratar, retraduzindo sob uma forma especifica as pressoes ou as demandas externas.Como um fenomeno externo, uma catastrofe, uma calamidade (a peste negra da qual se procuram os efeitos na pintura), a doen9 da vaca-louca - que sei eu?vai se retraduzir num campo dado'
Dizemos que quanto mais autonomo for um campo, maior sera 0 seu poder de refra,,"-o e mais as imposi\;6es externas serao transfiguradas, a ponto, freqiientemente, de se tomarem perfeitamente irreconhedveis.
a grau de autonomia de urn campo tem por indicadorprincipal seu poder de refra,,"-o, de retradu\;ao. Inversamente, a heteronomia de um campo manifesta-se,essencialmente, pelo fato de que os problemas exteriores, em especial as problemas politicos, ai se exprimem
diretamente. Isso significa que a "politiza\;ao" de umadisciplina nao e indicio de uma grande autonomia, euma das maiores dificuldades encontradas pelas ciencias sociais para chegarem a autonomia e0 fato de quepessoas pouco competentes, do ponto de vista de normas espedficas, possam sempre intervir em nome deprindpios heter6nomos sem serem imediatamenredesqualificadas.
Se voce tentar dizer aos bi610gos que uma de suasdescobenas ede esquerda ou de direita, cat6lica ou naocat6lica, voce suscitara uma franca hilaridade, mas nemsempre foi assim. Em sociologia, ainda se pode dizeresse tipo de coisas. Em economia, evidentemente, podese tambem dizer isso, ainda que as economistas se
esforcem por fazer crer que isso nao e mais possive!.Todo campo, 0 campo cientifico por exemplo, eum
campo de for\;as e um campo de lutas para conservar
. " ...- OS~do ciencio
~ < t;x)t>1rN~oU transformar esse campo de forps. Pode-se, numprimeiro momento, descrever urn espa\;o cientifico ouum espa\;o religioso como um mundo fisico, comportando as rela\;oes de for\;a, as rela\;oes de domina,,"-o.as agentes - por exemplo, as empresas no caso docampo economico - criam 0 espa\;o, e 0 espa\;o s6existe (de alguma maneira) pelos agentes e pelas rela~oes objetivas entre os agentes que ai se encontram.Uma grande empresa deforma todo 0 espal'o econ6mico conferindo-Ihe uma cena estrulUra. No campocientifico, Einstein, tal como uma grande empresa,deformou todo 0 espa\;o em torno de si. Essa metafora "einsteiniana" a prop6sito do pr6prio Einstein significa que nao ha fisico, pequeno ou grande, em Brioudeou em Harvard que Cindependentemente de qualquercontato direto, de qualquer intera\;ao) nao tenha sidotocado, perturbado, marginalizado pela interven\;ao deEinstein, tanto quanto um grande estabelecimento que,ao baixar seus pre\;os, lan\;a fora do espa\;o economico toda uma popula\;ao de pequenos empresarios.
Nessas condi\;oes, e imponante, em seguida, paraa reflexao pratica, 0 que comanda os pontos de vista,o que comanda as interven\;oes cientificas, os lugaresde publica\;ao, os temas que escolhemos, os objetospelos quais nos interessamos etc. e a estrutura das rela~oes objetivas entre os diferentes agentes que sao,para empregar ainda a metafora "einsteiniana", os principios do campo. E a estrutura das relaf6es objetivasentre os agentes que determina 0 que eles podem e naopodem fazer. au, mais precisamente, e a posi,,"-o queeles ocupam nessa estrutura que determina ou orienta, pelo menos negativamente, suas tomadas de posi,,"-0. Isso significa que s6 compreendemos, verdadeiramente, 0 que <liz ou faz um agente engajado num
Pierre Bourdieu
campo (um economista, um escritor, um artista etc.) seestamos em condi~besde nos referirmos aposi~ao queele ocupa nesse campo, se sabemos "de onde ele fala",como se dizia de modo um tanto vago por volta de 1968- 0 que supbe que pudemos e soubemos fazer, previamente, 0 trabalho necessario para construir as rela~bes
objetivas que sao constitutivas da estrutura do campoem questao - em vez de nos contentarmos em nosreportar ao lugar que supostamente ele ocupa no espa~o social global, 0 que a tradi~ao marxista chama desua condi~ao de classe.
Essa estrutura e, grosso modo, determinada peladistribui\'ao do capital cientifico num dado momento.Em outras palavras, os agentes (individuos ou institui\,bes) caracterizados peto volume de seu capital determinam a estrutura do campo em propor\'ao ao seu peso,que depende do peso de todos os outros agentes, istoe, de todo 0 espa\,o. Mas, contrariamente, cada agenteage sob a pressao da estrutura do espa\,o que se impbea ele tanto mais brutalmente quanto seu peso relativoseja mais fragil. Essa pressao estrutural nao assume,necessariamente, a forma de uma imposi\=ao direta quese exerceria na intera\=ao Cordem, "influencia" etc.).
Igualmente, no campo economico, uma altera<;aode pre\,os decidida pelos dominantes muda 0 panorama de todas as empresas. Do mesmo modo que, nocampo intelectual dos anos 50, Sartre, com suas tomadas de posi\,ao, a prop6sito de Heidegger ou deFaulkner, comanda indiretamente as escolhas de Bataillee de Blanchot,> tanto quanto, no dominio da pesquisa
2 Cf. Boschetti, A. Sartre et les temps modernes. Paris: Minuit,
1985.
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Os usos sodois do dencia
iJS f\~-E.N1'6~ ~~ ~S <clB~')cientifica, os pesquisadores ou as pesquisas dominantes definem 0 que e, num dado momento do tempo, 0conjunto de objetos importantes, isto e, 0 conjunto dasquestbes que importam para os pesquisadores, sobreas quais eles vaG concentrar seus esfor,os e, se assimposso dizer, "cempensar", determinando uma concentra~ao de esfor~os de pesquisa.
Segue-se que, contrariamente ao que leva a crer numconstrutivismo idealista, os agentes fazem os fatos cientificos e ate mesmo fazem, em parte, 0 campo cientifico, mas a partir de uma posi,ao nesse campo - posi~ao essa que nao fizeram - e que contribui para definir suas possibilidades e suas impossibilidades. Contraa ilusao maquiavelica aqual alguns soci610gos da ciencia sucumbem, talvez porque tomem emprestado aoseruditos sua pr6pria visao "estrategica", para nao dizerdnica, do mundo cientffico, e precise, primeiramente,lembrar que nada e mais dificil e ate mesmo e impossivel de "manipular" do que um campo. Epreciso dizer,par outro lado, que, por muito versado que possa serna "gestao de redes" (com que tanto se preocupam aqueles que julgam servir-se de sua "ciencia" da ciencia parapromover suas teorias da ciencia e afirmar seu poderde especialistas no mundo da ciencia), as oportunidades que um agente singular tem de submeter as for,asdo campo aos seus desejos sao proporcionais asua for,a sobre 0 campo, isto e, ao seu capital de credito cientffico OU, mais precisamente, asua posi<;ao na estrutura da distribui\,ao do capital. Isso e verdadeiro, salvonos casas inteiramente excepcionais, nos quais, peruma descoberta revoluciomiria, capaz de questionar ospr6prios fundamentos da ordem cientifica estabelecida,um cientista redefine os pr6prios principios da distribui~ao do capital, as pr6prias regras do jogo.
/ I Mfo5>Jb1 G~\,..r<QS\~ <p{)~~l.i~
Pierre Bovrdiev
Disse que aquilo que define a estrutura de urn campo num dado momento e a estrutura da distribui~ao docapital cientifico entre os diferentes agentes enga)adosnesse campo. Muito bern, dirao, mas 0 que voce entende por capital? S6 posso responder brevemente: cadacampo e 0 lugar de constitui~aode uma forma especifica de capital. Como estabeleci ja em 19753 (a lembran~a das datas, quer dizer, das prioridades de descober
ta, e necessaria, as vezes, para se proteger contra as
malversa~oes, sobretudo quando elas se acompanhamde deforma~oes destinadas a dissimula-Ias), 0 capital
cientifico e uma especie particular do capital simb6li--l;r co (0 qual, sabe-se, e sempre fundado sobre atos de01 conhecimento e reconhecimento) que consiste no re
V' ·,·11 conhecimento (ou no credito) atribuido pelo conjuntoV' . ifi. if de pares-concorrentes no interiordo camp". C1ent ICO
IJ (0 numero de men~oes do CItatIOn Index e urn bornindicador, que se pode melhorar, como 0 fiz na pesquisa sobre 0 campo universitario frances, levando :mconta as sinais de reconhecimento e de consagra~o,
tais como os premios Nobel ou, em escala nacional, asmedalhas do CNRS e tambem as tradu~oes para as linguas estrangeiras). Voltarei, em seguida, as diferentesformas que podem assumir esse capital e os poderes
que ele proporciona aos seus detentores. .as capitalistas cientistas, se assim posso me expo
mir, nao tem quase nada em comum - se se poem aparte os efeitos das homologias estruturais - com oscapitalistas no sentido comum, isto e, aqueles que se
. 3 Bourdieu, P. La specificite du champ scientifique et lesconditions sociales du progres de La raison. Soci%gie elSocietes(MontriiaJ), v.VlI, n.J, pA, mal 1975.
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~~~u.~ ck.~ tmv..~Os usos socieis de ciencio tA...Q.....
encontram no campo economico (e a confusao, seperrnite dar a impressao de radicalismo, e extremamente perigosa, uma vez que volta a ignorar todas as espeCificidades ligadas a 16gica pr6pria do campo cientifico).Eevidente que 0 capital de pnstein nao era de natureza financeira. Esse capital, de urn tipo inteiramente
particular, repousa, por sua vez, sobre 0 reconhecimento de uma competencia que, para alem dos efeitos queela produz e em parte mediante esses efeitos, proporciona autoridade e contribui para definir nao somenteas regras do jogo, mas tambem suas regularidades, asleis segundo as quais vao se distribuir os lucros nessejogo, as leis que fazem que seja au nao importanteescrever sobre tal tema, que e brilhante ou ultrapassado, e 0 que e mais compensadar publicar no Americanjournal de tal e tal do que na Revue Franfaise disso e
daquilo.as campos sao as lugares de rela~oes de for~s
que implicam tendencias imanentes e probabilidadesobjetivas. Um campo nao se orienta totalmente aoacaso. Nem tudo nele e igualmente possivel e impossivel em cada momento. Entre as vantagens sociaisdaqueles que nasceram num campo, esta precisamente a fato de ter, par uma especie de ciencia infusa, 0
domlnio das leis imanentes do campo leis nao escritasque sao inscrilas na realidade em estado de tendencias e de ter 0 que se chama em rugby, mas tambemna Bolsa, 0 sentido do fogo' Por exemplo, numerososesrudos 0 confirmam, as estrategias de reconversao queos cientistas praticam e que os conduzem a passar deum dominio ou de um tema a outro sao muito desigual-
4 Sens du placemenl, no original. (N. T.)
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Pierre Bourdieu
mente provaveis de acordo com os agentes, 0 capitalde que dispoem, e segundo a reIa~ao com 0 capitaladquirido mediante sua pr6pria maneira de adquiriresse capital.
Essa arte de antecipar as tendencias, observada portada parte, que esta estreitamente ligada a uma origemsocial e escolar elevada e que permite apossar-se dosbons temas em boa hora, bons lugares de publica~ao
(ou mesmo de exposi~ao) etc. e urn dos fatores quedeterminam as diferen~s socia is rnais marcantes nascarreiras cientificas (e isso e mais manifesto ainda naarte moderna). Esse senso do jogo e, de infcio, urnsenso da hist6ria do jogo, no sentido do futuro dojogo. Como urn born jogador de rugby sabe para ondevai a bola e se poe la onde a bola vai cair, 0 born cientista jogadar e aquele que, sem ter necessidade de calcular, de ser clnico, faz as escolhas que compensam.Aqueles que nasceram no jogo tern 0 privilegio do"inatismo". Eles nao tern necessidade de serem cinicospara fazer 0 que e preciso quando e preciso e ganhara aposta.
Ha, portanto, estruturas objetivas, e alem disso halutas em torno dessas estruturas. Os agentes sociais,evidentemente, nao sao partlculas passivamente conduzidas pelas far~s do campo (mesmo se as vezes sediz que hi essa semelhan~: caso se observem algumas
,,\)evolu~oes politicas, como a do numero de nossos in~~'I' teleetuais, como nao dizer que a limalha segue realmen-
~'t' te as for~s do campo?). Eles tern disposi,oes adquiridas - nao desenvolverei aqui esse ponto - que chamode habitus, isto e, manelras de ser permanentes, duraveis que podem, em particular, leva-los a resistir, a oporse as for~s do campo. Aqueles que adquirem, longedo campo em que se inscrevem, as disposi~6es que nao
N0 U'rt1¢';' AS {lk,6tW l& B.~ ~as usos sociois do ciencio ~0 _
sao aquelas que esse campo exige. arriscam-se, par
exemplo, a estar sempre defasados, deslocados, malcolocados, mal em sua pr6pria pele, na contramao ena hora errada, com rodas as consequencias que sepossa imaginar. Mas eles podem tambem lutar com asfor~s do campo, resistir-Ihes e, em vez de submetersuas disposi~oes as estruturas, tentar modificar as esttuturas em razao de suas disposi~oes, para conformalas as suas disposi~6es.
Qualquer que seja 0 campo, ele e objeto de luratanto em sua representa~ao quanto em sua realidade.Adiferen~ maior entre urn campo e urn jogo (que naodevera ser esquecida por aqueles que se armam dateoria dos jogos para compreender os jogos sociais e,em particular, 0 jogo economico) e que 0 campo e urnjogo no qual as regras do jogo estao elas pr6prias postaS em jogo (como se ve rodas as vezes que uma revolu~o simb6lica - aquela operada por Manet, por exempIa - vern redefinir as pr6prias condi~oes de acesso aojogo, isto e, as propriedades que al funcionam comocapital e dao poder sobre 0 jogo e sobre os outros jogadores). Os agentes sociais estao inseridos na estrutura e em posi~6es que dependem do seu capital edesenvolvem esrraregias que dependem, elas pr6prias,em grande parte, dessas posi~oes, nos limites de suasdisposi~oes. Essas estrategias orientam-se seja para aconserva~o da estrutura seja para a sua transforma~o,
e pode-se genericamente verificar que quanto mais aspessoas ocupam uma posi~ao favorecida na estrutura,mais elas tendem a conservar ao mesmo tempo a estfutura e sua posi<;io, nos Hmites, no entanto, de suas
disposi~oes (isto e, de sua trajet6ria social, de sua origem social) que sao mais ou menos apropriadas a suaposi~ao.
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Pierre Bourdieu
As propriedades especfficasdos campos cientificos
Assim, tendo relembrado as propriedades mais gerais dos campos, tomando, de prop6sito, exemplos nocampo economico au no literario tanto quanta no cient!fico, gostaria agora de apresentar, rapidamente, as caraeteristicas especificas do campo cientifico. Quanto mais
lOS campos cientificos sao autonomos, mais eles esca.pam as leis sociais externas. Descartei, de infcio, uma. forma de reducionismo que consiste em reduzir as leis
segundo as quais um campo funciona pelas leis sociaisexteriores, 0 que chamei de erro do curto-circuito.
Hi, no entanto, uma segunda forma de reducionismo, mais sutil: e 0 que se chama 0 "grande programa"em sociologia das ciencias, "radicaliza,ao" indevida deposi,bes que defendo e que consiste em reduzir as estrategias dos eruditos as estrategias sociais das quaissempre sao urn aspecto e a seus determinantes sociaise em ignorar a sublima<;;ao dos interesses externos,politicos - isso e 6bvio - ou internos, ligados a luta nocampo e que se impbem pelas leis sociais do campo (eem particular pelas pressbes inerentes ao fato de quecada urn tern par clientes as seus pr6prios concorrentes). Sublima,ao que, tacitamente, exigida de todo recem-chegado, e implicada nessa forma particular deillusio inerente ao pertencimento a urn campo, isto e,a cren<;;a cientffica como interesse desinteressado e interesse pelo desinteresse, que leva a admitir, como sediz, que 0 jogo cientifico merece ser jogado, que elevale a pena, e que define os objetos dignos de interesse, interessantes, importantes, capazes, portanto, demerecer 0 investimento.
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Os usos sociois do cil3ncia
Em outras palavras, a campo, isto e, mais precisamente a economia antiecon6mica e a concorrencia regulada da qual ele e a lugar, produz essa forma particular de illusio que e a interesse cient!fico, au seja, uminteresse que com rela,ao as formas de interesse correntes na existencia cotidiana (e em particular no campoeconomico) aparece como desinteressada, gratuita. Mas,mais sutilmente, a interesse "puro", desinteressado, e uminteresse pelo desinteresse, forma de interesse que convem a todas as economias dos bens simb6licos, economias antiecon6micas, nas quais, de alguma maneira, ea desinteresse que "compensa". Ai esti uma das diferen<;;as mais radicais entre 0 "capitalista cientista" e a capitalista simplesmente. Segue-se que as estrategias dosagentes tem sempre, de algum modo, dupla face, ambiguas, interessadas e desinteressadas, pais sao inspiraclaspor uma especie de interesse pelo desinteresse e que sepode fazer delas duas descri,bes opostas, mas igualmente falsas, uma vez que unilaterais, uma hagiografica eidealizada, outra cinica e redutora que faz do "capitalista cientista" urn capitalista como as outros.
Tem-se, assim, testemunhos vindos de responsiveis pelas grandes revistas americanas de fisica quecontam que seus pesquisadores lhes telefonam dia enoite, angustiados, porque se pode perder a beneficio de vinte anos de pesquisa por cinco minutos deatraso. Compreende-se que nessas condi,bes se esteja lange da visao hagiogrifica da ciencia que e desmentida par tudo a que se conhece da verdade dapesquisa: as pligios, a roubo de ideias, as querelasde prioridades e tantas outras priticas que sao taoantigas quanta a pr6pria ciencia. Os eruditos sao interessados, tem vontade de chegar primeiro, de seremos melhores, de brilhar.
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Pierre Bourdieu
o paradoxo dos campos cientificos, entretanto, eque eles produzem, ao mesmo tempo, essas pulsOesdestrutivas e 0 controle dessas pulsOes. Se voce desejatriunfar sobre urn matemalico, e preciso faze-Io matemalicameme pela demonstra~aoou refuta~o. Evidentememe, ha sempre a possibilidade de que 0 soldadoromano corte a cabe~ de urn matematico, mas isso eurn "erro de categoria", diriam os filosefos. Pascal veria nisso urn ato de tirania que consiste em utilizar numaordem urn poder que pertence a outra ordem. Mas urntaltriunfo nao 0 e, realmente, segundo as normas pr6prias do campo. Acomece a mesma coisa com 0 sucessodesses autores que, nao podendo chegar a consagra~ao segundo as normas espedficas do campo Iiteriirio,se fazem e1eger para a Academia Francesa e passam 0
tempo a escrever nos jornais ou a se exibir na televi
sao. Numerosas consagra~oes temporais na ordem espiritual rem uma tal fun~ao compensatoria.
Quamo mais urn campo e heteronomo, mais a concorrencia e imperfeita e e mais Hcito para os agentesfazer intervir for~as nao-ciemfficas nas lutas cientificas.Ao contrario, quanto rnais urn campo e autonomo e
proximo de uma concorrencia pura e perfeita, mais acensura e puramente ciemifica e exclui a interven~ao
de for~as puramente sociais (argumento de autoridade, san~oes de carreira etc.) e as pressOes sociais assumem a forma de pressoes 16gicas, e reciprocameme:para se fazer valer ai, e preciso fazer valer razoes; paraai triunfar, e precise fazer triunfar argumentos, demonslra~Oes e refuta~oes.
A luta ciemifica e uma luta armada entre adversarios que possuem armas tao potenles e eficazes quanto 0 capital cientifico colerivamente acumulado no epelo campo (portanto, em estado incorporado, em cada
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Os usos sociois do ciencio
um dos agentes) seja mais importante e que estejam deacordo ao menos para invocar, como uma especie dearbitro ultimo, 0 veredito da experiencia, isto e, do
"real". Essa "realidade objeliva" aqual todo mundo serefere de maneira tiicita ou explicita nao e jamals, emdefinitivo, aquilo sobre 0 que os pesquisadores engajados no campo, num dado momenta do tempo, concordam em considerar como tal, e ela s6 se manifestano campo mediante as representa,6es que dela fazemaqueles que invocam sua arbitragem.
Esse pede tambem ser 0 case noutros campos, comoocampo religioso ou 0 campo poHtico, nos quais, emparticular, os adversarios lutam para impor principiosde visao e de divisao do mundo social, sistemas de classificac;Oes, em classes, regioes, naf;Qes, etnias etc., e nao
cessam de tomar per testemunho, de algum modo, 0
mundo social, de convoci-Io a depor, para pedir-Ihe queconfirme ou negue seus diagnosricos ou seus prognoslicos, suas visoes e suas previs6es. Mas 0 que faz a especificidade do campo ciemifico e aquilo sobre 0 que osconcorrentes estao de acerdo acerca dos principios deverifica~ao da conformidade ao "real", acerca dos metodos comuns de valida~ao de teses e de hipoteses, logosobre 0 contraro tacito, inseparavelmenre poHrico e cognitivo, que funda e rege 0 trabalho de objetiva,ao.
Em conseqUencia, aquilo com que se defronta nocampo sao constru~iies sociais concorrentes, representa,6es (com tudo 0 que a palavra implica de eXibi~ao
teatral destinada a fazer ver e a fazer valer uma maneirdde ver), mas representa~iies realistas que se pretendemfundadas numa "realidade" dotada de todos os meiosde impor seu veredito mediante 0 arsenal de metodos,instrumentos e tecrucas de experimenta~ocoletivamenreacumulados e colelivamenre empregados, sob a imposi-
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Pierre Bourdieu
~o das disciplinas e das censuras do campo e tambempela virtude invisivel da orquestra,ao dos habitus.
Tudo iria bem no melhor dos mundos cienrificospossiveis se a l6gica da concorrencia puramente cient!fica fundada apenas sobre a for,a de razbes e de argumenros nao Fosse contrariada e ate mesmo, em cer
tos casos, anulada par for,as e press6es extemas (comose ve no caso das ciencias que ainda estao a meio-<:aminho no processo de autonomiza~oe onde se podemsempre disfar,ar as censuras sociais em censuras cient!ficas e vestir de raz6es cienrificas os abusos do podersocial espedfico, como a autoridade administrativa ouo poder de nomea~omediante bancas de concursos).
De fato, 0 mundo da ciencia, como 0 mundo econamico, conhece rela,oes de far,a, fenamenos de concentra~o do capital e do poder ou mesmo de monop6lio, rela,bes sociajs de domina,ao que implicam umaapropria,ao dos meios de prodUl;:ao e de reprodu,ao,conhece tambem luras que, em parte, tern par m6velo controle dos meios de produ,ao e reprodu,ao especificos, pr6prios do subuniverso considerado. Se eassim, entre outras razoes, eporque a economia antie
conamica - volta rei a esse ponto - da ordem propriamente cientifica permanece enraizada na econemia e
porque mediante ela se tern acesso ao poder econ6mico (ou politico) e as estrategias propriamenre politicas que visam conquisca-Io ou conserva-lo.
A atividade cient!fica implica urn custo econamico,e 0 grau de autonomia de uma ciencia depende, porsua vez, do grau de necessidade de recursos econamicos que ela exige para se concretizar (os matematicos, sob esse aspecto, estao muito mais bern colocados do que os fisicos e os bi610gos). Mas dependesobretudo, tambem do grau em que 0 campo cientifi-
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Os usos sociols do ciencia
co esti protegido contra as inrrusoes (mediante, principalmente, 0 direiro de entrada mais ou menos elevado que ele imp6e aos recem-chegados e que dependedo capital cientifico coletivamente acumulado) e dograu em que e capaz de impor suas san,bes positivasou negativas.
As duos especies de capital cientffico
Segue-se que os campos sao 0 lugar de duas formasde poder que correspondem a duas especies de capitalcienrifico: de um lade, um poder que se pode chamartemporal (ou politico), poder institucional e instituc1onalizado que esti Iigado 11 ocupa,ao de posi,bes importanres nas institui,bes cienr!ficas, dire~o de laboratories ou departamentos, pertencimento a comissoes,
comites de avalia,ao etc., e ao poder sobre os meiosde produ~o (contratos, creditos, postos etc.) e de reprodu~o (poder de nomear e de fazer as carreiras) queela assegura. De outro, urn poder espedfico, "prestigio"pessoal que e mais ou menos independente do precedente, segundo os campos e as institui,bes, e que repousa quase exclusivamente sobre 0 reconhecimenro,pouco ou mal objetivado e institucionalizado, do conjunto de pares ou da fra,ao mais consagrada dentre eles(por exemplo, com os "colegios invisiveis" de eruditosunidos por rela,oes de estima mutua).
Dado que a inova,ao cientifica nao OCorre semrupturas sociais com os pressupostos em vigor (sempre correlativos de prerrogativas e de privilegios), 0
capital cient!fico "puro", ainda que esteja em conformidade com a imagem ideal que 0 campo quer ter e dar
3S
Pierre Bourdieu
de si pr6prio, e, pelo menos na fase de acumula¢.io inicial, mais exposro a contesta,ao e a critica, controversial, como dizem os anglo-saxoes, do que 0 capitalcientifico institucionalizado, e pode ocorrer, em algumas disciplinas, que os grandes inovadores (Braudel,Levi-Strauss, Dumezil, por exemplo, no caso das ciencias sociais) sejam marcados por estigmas de heresia eviolentamente combatidos pela institui,ao.
As duas especies de capital cientifico tern leis deacumula,ao diferentes: 0 capital cientlfico "puro" adquire-se, principalmente, pelas contribui,oes reconhecidas ao progresso da ciencia, as inven,oes ou as descobertas (as publica,oes, especialmenre nos 6rgaosrnais seletivos e mais prestigiosos, portanto aptos aconferir prestfgio it moda de bancos de credito simb6Iico, sao 0 melhor indicio); 0 capital cientlfico da institui,ao se adquire, essencialmenre, por estrategias politicas (especificas) que tern em comum 0 fato de todasexigirem tempo - participa,ao em comissoes, bancas(de leses, de concursos), col6quios mais ou menosconvencionais no plano cientifico, cerimonias, reunioes
etc. -, de modo que e dificil dizer se, como 0 professam habitualmente os detentores, sua acumula,ao e 0
principio (a titulo de compensa,ao) ou 0 resultado deurn menor exiro na acumula"J.o da forma rnais especifica e mais legitima do capital cientlfico.
Dificeis de acumular praticamente, as duas especiesde capital cientifico diferem tambem por suas formasde transmissao. 0 capital cientlfico "puro", que, fragilmente objetivado, tern qualquer coisa de imprecisoe permanece relativamente indeterminado, tern sempre
alguma coisa de carism,hico (na percep,ao comum estaIigado a pessoa, aos seus "dons" pessoais, e nao podeser objelo de urna "portaria de nomea¢.io"); desse as-
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as usos sociois do ciencio
( t'U-~\fL.,(..r~~pecto, e extrernamente dificil de transmitir na pratica(ainda que, diferentemente do profeta, do costureiro oudo poeta, 0 grande pesquisador possa transmitlr a parte rnais formalizada de sua competencia cientifica, massomente por urn longo e lento trabalho de forma,ao,ou methor, de colabora,ao, que leva muito tempo; emesmo se ele pode tambem, como todos os detentores de capital sirnb6lico, "consagrar" os pesquisadores,formados ou nao por ele, fazendo sua reputa,ao, assinando com eles, publicando-os, recomendando-os paraas insrancias de consagra,ao etc.).
Ao contrario, 0 capital cientifico institucionalizadotern quase as mesmas regras de transmissao que qualquer outra especie de capital burocratico, ainda que, emalguns casos, deva assumir a aparencia de uma "etei¢.io""pura", por exemplo, por meio de concursos que podem,de faro, estar muito pr6ximos dos concursos de recrutamento burocratico, no qual a defini,ao do posto esti,de algum modo, pre-ajustada a medida do candidatodesejado. O~ cerramenre nas opera,6es de coopta,ao,que visam perpetuar 0 corpo de pesquisadores, que 0
conflito entre os dois principios se faz mais visivel: osdetentores do capital cientlfico institucionalizado tendem a organizar os procedimentos - os concursos, porexemplo - segundo a 16gica da nomea,ao burocratica,enquanto os detentores do capital cientifico "puro" lendem a situar-se na 16gica "carismatica" do "inventor".)
Num belo artig05 - que, pela minucia de observa¢.io, rigor da analise e exatidao (modesta) da leoriza¢.io,
5 Shinn, T. Hierarchies des chercheurs et formes des recherches. Actes de fa Recherche en Sciences Sociales, n.74,
p.2·n, sept. 1988.
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Pierre Bevrdiev
se situa em exata oposi~ao a tendencia arual, midiaticae cmica, ao mesmo tempo, da sociologia das ciencias -, .Teny Shinn mostrou que as duas especies de capitalcientifico e as duas formas de poder podem coexistirno seio do mesmo laboratorio e para 0 melhor, em alguns casos, do empreendimento coletivo - tendo, de .um lado, 0 diretor do laboralorio que, muito informado do estado da pesquisa, em especial, pela frequencia aos comites e as comissoes, encarna de algumaforma a "ciencia normal" e produz trabalhos voltadospara a generaliza~ao, e, de outro, tendo tambem 0 pes- ,quisador prestigiado que se dedica a constru~ao de ,"modelos integrativos" e traz para outros pesquisadores, seniores e juniores, uma especie de suplemento deimagina~ocientifica (essa divisao do trabalho, obser- :vada num laboratorio de fisica, encontra-se em nume- i
rosos grupos de pesquisa pertencentes as mais diferen- .tes disciplinas). ,
Por razoes praticas, 0 acumulo das duas especies !de capital e, como ja indiquei, extremamente difici!. E ,podem-se caracterizar os pesquisadores pela posi~ao ique eles ocupam nessa estrutura, isto e, pela estrutura :de seu capital cientifico ou, mais precisamente, pelo:peso relativo de seu capital "puro" e de seu capital "ins- :titucional: tendo, num extremo, os detentores de um iforte credito especifico e de um fragil peso politico e, ;no extremo oposto, os detentores de um forte peso po- :litico e de um fragil credito cientifico (em especial, os:administradores cientificos).
Se ocorre que a acumula~ao de um forte creditocientifico (junto aos pares) favorece de modo continuo,e em geral tardiamente (quer dizer, quando ja e tardedemais), a obten~ao dos poderes economicos e politicos (da parte dos poderes administrativos, politicos
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Os uses socia is do ciencio I
{1.,e l--Ac.fh, g.e ~~ £1 tJ\{1oUW;etc.), a conversao do capital politico (especifico) empeder cientifico e CinfelizmenteO mais fkit e mais rapida, sobretudo para os que ocupam posi~6es mediasnas duas distribui~oes (do prestfgio e do poder) e que,mediante 0 poder que estao aptos a exercer sobre aprodu~ao e a reprodu~o (participa~ao no ConselhoNacional das Universidades, nas comissoes do CNRS,nas bancas de concursos de recrutamento e de aperfei<;oamento etc.), estao em condi~oes de assegurar aperpetua~ao da ortodoxia contra a inova<;ao (em especial, a favor de complexas alian~as mediante as quaisas eleitos pelos sindicatos - freqUentemente destinadosa se tomar executivos - podem dar seu apoio aos dirigentes mais fie is a ordem cientifica estabelecida).
As rela<;oes de for<;a simbolicas, no interior do campo cientifico, nlio tem a clareza penetrante que pode!he dar uma analise cientifica destinada a quantificar atemesmo as propriedades mais impalpaveis, como a reputa~o internaciona!. Em especial, mediante 0 dominio que-assegura sobre as instancias e os instrumentosde consagrar;ao, academias, diciomirios, premios oudistin<;oes (nacionais, pelo menos), 0 poder cientificoinstitucional (que, estando ligado ao dominic sobre asposi~oes na universidade e nas institui,oes de pesquisa, e quase estritamente nacional, 0 que contribui paraexplicar a defasagem entre as hierarquias nacionais eas hierarquias internacionais) chega a produzir 0 efeito de halo quase carismatico, especialmente sobre osjovens pesquisadores, freqUentemente levados (e naosomente pelo servilismo interessado) a emprestar asqualidades cientificas daqueles dos quais dependempara sua carreira e que podem assegurar-se assim declientelas doceis e de todo 0 cortejo de cita,oes decomplacencia e de homenagens academicas.
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Pierre Beurdieu Os uses SOCialS do Cll~ndo ~c:..oO(Lo.'WuPlO.s t>e 00 l>1i rJI\~ ~ ""R"M fOilAL
Ourra faror de inrerferencia, pelo menos aos olhos 0 que e cerro e que, quanto rnais a auronomiados "juniores", que conrribui significarivamenre para adquirida por urn campo for limirada e imperfeira e maisfazer 0 capiral simb6lico (esse "ser percebido", percipi, as defasagens forem marcadas entre as hierarquiasque depende da percep~ao e da aprecia~ao dos agen. remporais e as hierarquias cienrificas, mais os pode·tes engajados no campo) e 0 faro de que, como ja dis. res temporais que se fazem, com frequencia, os reose, 0 crediro cienrifico pode conrinuamenre assegurar, rransmissores dos poderes externos poderao inrervirapesar de tudo, uma forma de crediro politico (a pala. em lutas especificas, especialmente medianre 0 contralevra sendo sempre romada no senrido especifico), de sobre os postos, as subven,6es, os conrraros ere. queconsagral;iio remporal que, em alguns conrexros, pode permitem a pequena oligarquia dos que permanecemser urn faror de desencanramenro ou mesmo de des. nas comiss6es manrer suas clientelas. Como as diferen·credito (urn dos problemas dos inovadores, ao se con. tes disciplinas cienrificas tern necessidade de recursossagrarem, sobrerudo em Iiterarura, e 0 de conservar 0 economicos para se manrer, em diferenres graus, algunsprestigio atribuido a ruptura heretica de vanguarda). pesquisadores, as vezes convertidos em administrado·
Seria preciso analisar os efeitos dessa dualidade de res cientificos (mais ou menos direramenre associadospoderes no funcionamenro do campo cientifico. 0 cam. a pesquisa), podem, por inrermedio do conrrale dos repo seria rna is eficiente cienrificamente se os mais cursos que the assegura 0 capiral social, exercer sobrepresrigiados fossem tambem os mais poderasos? E su.' a pesquisa urn poder que se pode chamar de ridlnicopondo-se que Fosse rnais eficienre, seria necessariamen-' (no sentido de Pascal), uma vez que nao enconrra seute rnais suportavel? principio na 16gica especifica do campo.
Tudo leva a pensar que todo mundo (ou quase) se Assim, pelo fato de que sua auronomia com rela·beneficia com essa divisao de poderes e com esse com. ,ao aos poderes externos jamais e total e de que elespramisso hfbrido que evira 0 que poderia haver de. sao 0 lugar de dois principios de domina,ao, rempo·assustador nessa especie de teocracia epistemocnitica I ral e espedfico, todos esses universos sao caracteridos "melhores", ou inversamente numa cisao comple.' zados por uma ambigliidade estrutural: os connitos in·ta dos dois poderes condenando os "melhores" a rnais : telecruais sao rambem, sempre, de algum aspecto, concompleta imporencia. Mas nao e posslvel deixar de! fliros de poder. Toda estrategia de urn erudito comlamenrar 0 que pode rer de "funcional", nao para 0: porra, ao mesmo tempo, uma dimensao polirica (espragresso da ciencia, mas para 0 conforro dos pesqui- ipecifica) e uma dimensao cienrffica, e a explica,aosadores menos ativos e os menos produtivos, 0 fato de !deve sempre levar em conra, simultaneamenre, essesque 0 poder temporal sobre 0 campo cienruico seja IdoiS aspectos. Enrreranro, 0 peso relativo de urn e demuito frequenremenre pani/hado com uma tecnocracia !outro vana muito segundo 0 campo e a posi~ao noda pesquisa, isto e, por pesquisadores que nao sao, !campo: quanro mais os campos sao heteronomos,necessariamenre, os melhores do ponro de vista dos imaior e a defasagem enrre a estrurura de distribui,aocriterios cienrificos. 'no campo dos poderes nao-especificos (poliricos); por
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Pierre Bourdieu OS USO$ sociois do ciencio
o espa~o dos pontos de vista
te submetidas as imposi<;oes da coerencia l6gica e daverifica~o experimental.
urn lado, e por outro, a estrurura da distribui~ao dos.poderes especificos - 0 reconhecimento, 0 prestfgio
cientifico.Hal inclusive, universos nos quais as duas estrutu
ras estiio invertidas: a distribui<;ao dos professores de'letras e de ciencias humanas do ensino superior frances no espa<;o do campo universitario e tal que, quan- Entre os usos sociais da ciencia, hi urn, de fato, queto mais eles estao proximos do polo do poder, menos: quase sempre e esquecido e que, certamente, nao etern prestfgio (medido por indicadores como a Citation: menoS importante: aquele que consiste em colocar aIndex, 0 numera de tradu~6es e tada uma serie de. ciencia, e, mais especiftcamente, a ciencia da ciencia,
outros indicadores): de urn lado, as pessoas mais po- a servi<;o da ciencia, do progresso desta. Uma analisederosas, em particular do ponto de vista do controle da, puramente descritiva, como aquela que propus, podereprodu~odo corpo (aqueles que tern assento no C u,! conduzir as tomadas de posi<;ao prescritivas? Uma dasnas grandes comissoes examinadoras de concursos etc.)! virtudes da teoria do campo e que ela permite rompere da per:petua~ao do paradigma, da ortodoxia; de au·! com 0 conhecimento primeiro, necessariamente partro, as pessoas que tern a prestfgio, a notoriedade, o~ cial e arbitr1rio - cada urn ve a C'"mpo com uma certareconhecimento, sobretudo internacional, mas quel lucidez, mas a partir de urn ponto de vista dentro dotern poueo poder. Essa discordancia e~eradora de todol campo, que ele proprio nao ve -, e romper com as teourn conjunto de efeitos. Ela permlte aqueles que fraj rias semi-eruditas que so contem, em estado expHcito,
cassam contar historias, imputar, por exemplo, sua tn'J um dos pontos de vista sobre 0 campo.
posi<;ao intelectual a sua rna posi<;ao na ~rdem do Pj Para tornar isso eompreensivel, tenho 0 habito deder au denu nciar os detentores de prestlglo como s tamar 0 exemplo de duas analises criticas dos intelecse tratasse de detentores do poder. Ela tambem permi. tuais, publicadas no fim dos anos 50: num livro que tevete aos dominantes temporais - em oposi<;ao aos dOnu~. alguma notoriedade, L'opium des intellectuels [0 6pionantes espirituais - usufruir da ambiguidade da estru dos intelectuais], Raymond Aron esbo<;ou um quadrotura para apresentarem estrate~ias destinadas a repro daqueles que chamou de "intelectuais", iSlO e, segunduzir sua posi<;ao como estrateglas destlnadas a faz . do a defini~ao entao em vigor, os "inte\ectuais de esavan~ar a ciencia. I querda" dos quais os representantes mais tfpicos eram
Quer dizer que, nesses universos, para fazer prOj Sartre e Simone de I3eauvoir. Numa serie de artigos
gredir a cientificidade, e preciso fazer pro~redir ~ a~ lan<;ados em Ies Temps Modernes, revista de Jean-Paultonomia e, mais concretamente, as condl<;oes prJtlc Sartre, Simone de Beauvoir propunha uma evoca~o
da autonomia, criando barreiras na entrada, excluind metodica e argumentada do "pensamento de direita"a introdu<;ao e a utiliza~ao de armas nao-especificas! (encarnado, aos seus 01has, par Raymond Aron e al
favorecendo formas reguladas de competi~ao,sometr, guns outros).,
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Pierre Bourdiev
Urn e outro. no entanto. tinham em comUffi, para
alem da oposi~o radical que os separava, IOmar comouma representa~ao estritamente objetiva do seu objeto 0 que nao passava de urn ponto de vista particulare, embora muito lucidos (dessa lucidez interessada queinspira a concorrencia vivida como rivalidade ou hostilidade) do ponto de vista de seu concorrente, de serem cegos acerca de si proprios e sobretudo acerca doponto de vista a partir do qual apreendiam seu concorrente, isto e, sobre a fato de que, inscritos no mesmo
campo, ocupavam posi~iiesantag6nicas, principios desua lucidez e de sua cegueira.
t assim que a analise cientffica de urn campo - porexemplo, do campo das institui~oes de pesquisa, faculdades, CNRS, lNSEE, INSERM6 etc., no interior do qualo INRA ocupa uma deterrninada posi~o, ou do proprioINRA que funciona tambem como um subcampo relativamente autonomo, organizado em torno de suas prOprias oposi~oes - pede, a primeira vista, parecer muito proxima das representa~iies que os agentes praduzem, especialmente para as necessidades da polemicacontra seus concorrentes. A diferen~a, no entanto, eradical: de fato, as objetivaC;iies parciais e interessadasdos agentes engajados no campo, opiie-se a objetiva~o
do campo como urn conjunto de pontos de vista (noduplo sentido de visiies configuradas com base numponto do campo e em posi~iiesdos campos a partir dasquais essas visiies interessadas se configuram) queimplica tomar distancia com rela~o a cada urn dos
6 INSERl\.1 - Institut National de la Sante et de la Recherche
Medicale (Instituto Nacional de Saude e Investiga«;Oes Medicas). (N. T.)
Os vsos sociois do ciencio
pontos de vista particulares, de cada uma das tomadasde posi~o, comumente criticas.
Essa tomada de posic;ao objetivante (que se podeaplicar ao proprio sujeito objetivante quando ele tomapor objeto, como 0 fiz no Homo academicus, 0 mesmo campo do qual ele faz parte) esta implicada no fatode situar esses pontos de vista no eSpac;o das tomadasde posic;ao e relaciona-Ios as posi~oes correspondentes, isto e, ao mesmo tempo destituf-Ios de sua pretensao "absolutista" a objetividade (Iigada a ilusao da ausencia do ponto de vista) e tambem de explica-Ios, darlhes razao, toma-Ios compreensiveis, intelig[veis.
Observa-se que, para alem de toda intenc;ao moralizante, esse ponto de vista que objetiva os pontos devista e as constitui como tais, e que e frequenternente
descriro, sem razao, como "fixa~ao" reducionista, im
plica a substitui~ao de uma visao compreensiva e indulgente - segundo a formula "compreender e perdoar" - das diferentes posic;6es e tomadas de posic;6espor uma visao polemica, parcial e arbitraria dos pr6- ~~prios agentes que, como tal, e falsa, mesmo quando0'lque revela, desvela ou denuncia contem uma parte deverdade. Por isso, ela constitui uma contribuic;ao pos-sivel para a compreensao mutua dos ocupantes de diferentes posic;i'>es no campo e, ao mesmo tempo, paraa integra~o dessa instituic;ao que, de modo algum, im-plica a supressao das diferenc;as de pontos de vista.
Alem disso, longe de conduzir, como se poderia erer(e como se quer, freqiientemente, fazer crer), a umrelativismo que nao da razao a nenhum dos concorrentes a verdade, a constru~o do campo perrnite estabelecer a verdade das diferentes posic;6es e os limites de validade das diferentes tomadas de posic;ao(pretendentes ou nao a verdade) cujos defensores, ta-
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Pierre Bourdieu
citamente, concordam, COmO ja indiquei, a fim demobi/izar as mais potentes instrumentos de prova aude refuta('iio que Ihes assegurem as aquisi,,6es colerivasde sua ciencia. Ela permite assim romper com as semiobjetiva"oes erudiras ou com as objetiva"oes semierudiras que, s6 pela sua pretensao, diferem daquelasque os agentes sociais produzem, na vida cotidiana,apoiando-se sabre 0 conhecimento interessado (e asvezes, muito bern informado) que eles podem ter deseus concorrentes.
Essa e a razao pela qual, nas analises da estrururae do funcionamento do INRA que poderei renrar esbo\=ar, irei me arer a prudentes sugestoes, deixanda a
voces a cuidado de completii-Ias au prolonga-Ias segundo as ponti/hados, consciente que sou da imensainforma('iio que uma pesquisa sistematica deveria, deinicio, recolher, e da qual voces dispoem sabre uns eourros, uns sabre as OUCfOS, sabre as vfnculos - palfti
cos e sindicais, especialmente -, sobre as filia,,6es, ascarreiras etc., e que e constantemente acionada nos
exercicios de "sociologia selvagem", com freqiienciabastante pr6ximos da analise cientrfica, salvo pela ausencia da reflexividade.
A analise fundada sobre a apreensao do jogo comotal rompe com os jogos (e os jogos duplos) das imagens antag6nicas, fazendo aparecer tanto 0 que eles revelam sobre aqueles que os produzem (e sobre suaposi('iio no campo) quanto sobre aqueles aos quais elesse referem e sabre sua posi"ao. Essas represenra"oessociais interessadas e parciais que sao vividas e dadascomo objerivas e universais (sobrerudo no interior deuniversos eruditos nos quais os agenres dispoem, pelaprofissao, de insrrumentos poderosos de universaliza,dO) sao, de fato, armas nas luras internas.
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Os usas saciois do ciel"lcio
~O ~ - O. _ (1-\M-o ;vo.,., 0 h h~WYt-" ~'\ m 1IIN:<......
E assim, por exemplo, que a rer6rica da "demandasocial" que se impoe, parricularmente numa institui"aocientifica que reconhece oficialmenre as fun~oes sociaisda ciencia, inspira-se menos numa preocupa('iio real emsatisfazer as necessidades e as expectativas de tal ouqual categoria de "clientes" (grandes ou pequenos agricultores, industrias agroalimemicias, organiza~Oes agricolas, ministerios etc.), ou mesmo em ganhar assim seuapoio, do que de assegurar uma forma relarivamenteindiscutrvel de legitimidade e, simultaneamente, urnacrescimo de for~a simb6lica nas lutas internas de concorrencia pelo monop6lio da defini('iio legitima da prarica cientifica (poder-se-ia, nessa perspectiva, procederse a uma analise met6dica relacianando as romadas de
posi"oes e as posi,,6es, as atos dos Estados gerais dodesenvolvimento agricola de 1982).
Em suma, e precise naa esperdf da analise socio
l6gica revela,,6es radicais. E isso, especialmente, numainstitui~ao que, como 0 INRA, ocupa uma posi~ao dominada - com rela~ao ao prestigio cientifico - no campodas institui~oes de pesquisa e uma posi~ao mal definida entre a pesquisa aplicada e a pesquisa basica e quese encontra por isso inclinada a uma inquietude e a umaansiedade sobre si, parricularmente favoraveis a umalucidez mordaz e, por vezes, ate mesmo urn poucopatol6gica e autodestrutiva.
o que a analise sociol6gica traz, e que, num cerrosentido, muda tudo, e antes de qualquer coisa uma coloca"ao em perspectiva sistematica de visoes perspectivas que os agentes produzem para as necessidades desuas luras praticas no interior do campo, e que, a despeito de tudo 0 que eles fazem para "universaliza-Ias",como no exemplo da evoca('iio da "demanda social",encontram seu principio nas parricularidades de uma
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Pierre Bourdieu
posi~ao no pr6prio interior do campo, e que assimpostas em seus eixos mudam radicalmente de sentido
e de fun~ao.
A situa~ao particular do INRA
Assim, como nao ver que todas as ar:nbiguidades
que todos os campos conhecem (em diferentes grausde intensidade), mesmo os mais "puros", pelo fato defazerem coexistir prindpios internos e espedficos e
prindpios extemos e puramente sociais de domina~oou de hierarquiza~ao,s6 podem ser refor~ados,no casode uma institui~Joque, como 0 INRA, se caraaeriza poruma profunda ambiguidade estrutural e funciona17 Ecomo nao ver que todos os jogos duplos que evoquei,entre 0 prestfgio e 0 poder, as fun~oes cientfficas e as
fun~6es de servi~o, que permitem escapar as exigencias da ciencia em nome das obriga~oes a servi~o dacoletividade (como, alias, do ensino), encontram con
di~oes particularmente favoraveis'
1550 significa, muita cancretalnente, que se todas asinstitui~6es cientfficas podem e devem acomodar pesquisas nao aplicaveis das quais elas, inevitavelmente,tem exemplos, e isso sem animosidades (Dieudonnedisse, em algum lugar, que a pratica das matematicasnao precisa de outra justifica<;ao a nao ser "a gl6ria da
humanidade"), e a miseria, mas tambem a grandeza dospesquisadores dos institutos voltados para a pesquisaaplicada, que a todo instante sao lembrados pelos ou
tros e por eles proprios, com inquietude, apesar de tadahonra, da sua inutilidade social. A unica questao interessante que fica e saber se e preciso extrair dessa si-
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Os usos sociois do ci€mcia
tua<;ao particular os deleites de uma especie de culpabilidade original e inexpiavel ou urn acrescimo de exigencias e de possibilidades, Iigadas a necessidade deconciliar imperativos comumente separados, de maneiramais ou menos fictkia.
Sobre isso, devo exprimir meu desacordo com a
mane;ra pela qual fo; apresentada, aqui mesmo, par
Bruno Latour,7 uma no~ao como a de RANA - Recherche Appliquee non Applicable [Pesquisa Aplicada ao
Aplicave]J - que s6 confere um r6tulo de cientificidadeas intui~oest mais dnicas au mais desesperadas - issofrequentemente e a mesma coisa -, da auto-analise
end6gena tal como ela se exprimia com alguma felicidade na f6rmula oriunda das retlexoes coletivas deMaio de 68: "Pesquisadores que buscam, encontramse; buscam-se pesquisadores que encontrem". Sob aparencias de radicalismo critica, as semi-analises dessa especie lisonjeiam as expectativas mais convencionais econvenientes: em vez de incitar a uma reflexividadecrftica, ponanto construtiva, aqueles que se tornamresponsaveis encorajam 0 cinismo na pnitica cientffica,ou pior, fornecem argumentos para a visao empresarialdos quadros da institui~ao, mais preocupados em controlar e em constranger do que em compreender e trans
formar de modo inspirado e construtivo.
o INRA funciona como um campo, isso e um fato.
E a disti'incia entre os agentes e os departamentos, eles
pr6prios organizados segundo hierarquias com rela<;aoas quais nao e EacH determinar, em mais de urn caso, 0
que devem aos criterios administrativos (ou politicos)
7 latour, B. Ie melierde cbercbeur, regard d't.m anthropologue.Paris: INRA Editions, s. d. %p. (ColI. Sciences en Questfons).
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Pierre Bourdieu
e aos criterios propriamente cientfficos (0 que nada ternde excepcional e que se observa tambem, com frequencia, noutras institui~6es cientfficas), essa distancia e afparticularmente grande, em razao da dualidade de fun,oes declaradas e reivindicadas, a saber, a pesquisabasica e a pesquisa aplicada.
A tal ponto de alguns poderem se perguntar, nointerior da propria institui,ao, se, para ahem dos vinculose das dependencias comuns (mas que sao e1as proprias
clivididas e par vezes opostas), com rela,ao ao Ministerio cia Agricultura e ao Ministerio cia Pesquisa, ha urnourro principia cle unidacle alem cia referencia, paraalguns inteiramente te6rica, a urn mesmo objeto concreto, a munclo agricola.
E, cle fato, a custa cle se manter nos extremos eignorar todo 0 continuum clos agentes que combinam,em propon;6es diferentes, as caracterfsticas associadasas posi,oes polares, e a custa, sobretuclo, cle esquecerque numerosas pesquisas ditas "basicas" sao menos"puras" do que parecem e que numerosas pesquisasclitas "finalistas" poclem trazer contribui,oes clecisivas
apesquisa basica, pocler-se-ao opor categorias mutuamente exclusivas e incompatfveis (das quais se encontra 0 equivalente em outros universos, par exemplo, asfaculclacles cle Meclicina com a oposi,ao entre as clinicos, socialmente dominantes e os que se voltam paraa pesquisa basica, cientificamente clominantes): cle urn
laclo, as praticantes-clinicos, provenientes principalmente cia Escola de Agronomia, tern uma ativiclacle rnaisvoltacla para a comprova,ao cle saberes cientfficos e
tecnicos ja experimentados ou orientada para a verifica,ao au a vulgariza,ao cle conhecimentos estabeleciclos e para a pesquisa cle curto prazo, par vezes clesen
volvicla em colabora,ao com os produtores (e, inclusive,
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Os ~SfiS 8Ociois do ciencio V~r!!i/r.~. VV' 1IV\(.eJ: - T~7'--z.....c:;:e
If\l tA <~.so..64$"--14'-com esses produtor<!s de Lm tipo muito singular quesao os pequenos camponeses) e que visam resolver
rapiclamente problemas praticos; cle outro, os pesquisaclores, provenientes principalmente cia Universiclacle,dedicam-se a investiga,oes mais estritamente especiali
zaclas e sem ourro objetivo imecliato alem clo aumento
cle conhecimentos.
Tal visao socialmente construida das divisoes encontraria, sem dificuldades, para se nutrir, imagens es
tereotipadas que se afirmam, principalmente, nos perioclos cle conflito au cle crise: os pesquisaclores "puros" compreenclem bern que 0 reconhecimento socialeo peso politico (em urn senticlo muito amplo) que aspesquisaclores "aplicaclos" obtem clos usuarios, agricultares, membros de cooperativas ou de associa~oesprofissionais e sindicais, industriais, mas tambem de autoriclacles politicas, e clos quais testemunham suas numerosas participa,oes em responsabiliclacles e pocleres
temporais (gabinetes ministeriais etc.), tern por contrapartida, bern frequentemente, abclica,oes au clemissoescientfficas e sobretudo renuncias aautonomia. 0 interesse que os indivfduos ou as instancias externas ternpela pesquisa e seus resultaclos e, cle fato, sempre ambiguo e de "clois gumes", na meclicla em que a consi
clera,ao social que traz e que pode se tracluzir peloacesso a recursos ecan6micas e palfticos importantes,inacessiveis aos que se cleclicam apesquisa basica, tern
como contraparticla uma certa pretensao clos utilizacloresa avaliar e ate mesma a orientar a pesquisa.
Quanto aos pesquisadcires "aplicaclos", estes estao
bern colocaclos para perceber que a conclescenclenciaestatutaria que Ihes concedem alguns pesquisacloresditos "puros" mascara com frequencia a ansiedade oua insatisfac;aa de uma pesquisa que naa encontra sua
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Pierre Bourdieu
justifica0io nem do lado das realiza,oes cientfficas nemdo lado das aplica,oes praticas (pode mesmo ocorrerque, de posse das satisfa,oes e justifica,oes sociais quelhes asseguram suas atividades, vejam claramente asfun,oes compensat6rias que desempenham os engajamentos politicos mais ou menos ostensivos dos pesquisadores "puros", aos quais custa assumir a gratuidadesocial de uma atividade cientifica incapaz de obter 0
pleno reconhecimento cientifico).
A for~ relativa das duas posi,iies opostas varia, deurn lado, em razao da evolu,ao cientifica (por exemplo,com 0 aparecimento de novas disciplinas, como a genetica molecular), e, de outro, de modo bastante direto, em razao da conjuntura politica, e tambem, de forma mais subterranea, segundo 0 estado da conjunturaeconomica e social e da problematica dominante nosmeios dirigentes e no seio da institui,ao: algumas dasmudanps mais caracterfsticas da politica cientifica dadire,ao, como a coloca,ao entre parenteses da missaofinalista do INRA e a vontade de transformar 0 institutoem organismo de pesquisa avan,ada, competitiva noplano internacional, tern coincidido (sem que se possa estabelecer uma rela,ao de causa e efeito) com acrise da legitimidade da agricultura produtiva, sustentada pela politica agricola para a qual 0 I RA tern contribuido fortemente. Eem razao desses dois conjuntosde fatores que varia 0 sentido que e atribuido as grandes categorias de tomadas de posi,ao sobre os grandes debates (como aqueles que, hoje, suscitam as contradi,oes entre os imperativos de crescimento e de produtividade e a preocupa0io em conservar 0 patrimonio)e as rela,iies de for,a simb6lica entre aqueles que defendem, por exemplo, a produtividade e aqueles quese atem a defesa do patrim6nio, cujos interesses estao
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Os usos sociois do ciencio
ligados a diferentes estados do mundo economico esocial e do campo da institui,ao.
E 0 mal-estar que e fortemente sentido no INRA,
hoje, explica-se talvez pelo fato de que essa institui,aoperdeu (ou esta perdendo) 0 reconhecimento incondicional que Ihe devotava 0 meio agricola (tanto pormeio de suas instancias sindicais como dos pr6priosagricultores, referentes exaltados de urn discurso habirualmente populista), sem adquirir plenamente 0 reconhecimento cientifico internacional que, desde os anos70, parece tel. se tornado 0 objetivo principal, se nao 0
exclusivo, dos dirigentes.
Ir alem das aparenciase das falsas antinomias
Cuidarei para nao ir alem dessas hip6teses, que apobreza da informa,ao disponivel, especialmente aprop6sito da origem social dos pesquisadores e de suaevolu,ao ao longo do tempo, impede de verificar. 0que e certo e que as oposi,oes declaradas mascaramo fato de que, como certamente uma analise sociol6gica sistematica 0 mosrraria, as visoes polemicas e parciais que cada urn dos dois "campos" produz para asnecessidades de sua pr6pria justifica,ao deixam escapar, ao mesmo tempo, as propriedades e as interesses comuns e as justifica,oes nao-exclusivas vinculadas as duas fun,oes a que se propoe oficialmente ainstitui~ao.
Basta assumir 0 ponto de vista objetivante queimplica a constru,ao do universo do INRA como campo para ver-se que a originalidade da institui<;,Jo e 0
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Pierre Bourdieu
prindpio dos antagonismos que a dividem outra coisa
nao e que a dupla defini~ao das fun~6es que ela assinala para a pesquisa e que a faz reunir, no seio da pr6pria organiza~ao, dois momentos de toda empresa deprodu~aocientifica comumente separados (por exemplo, no dominio da pesquisa farmaceutica), 0 momen
to da inven{:iio e 0 momenta cIa inova!;iio, entendicIano sentido que a tradi~o economica da a essa palavrd, isto e, como transformac;d.o de inven~6es cientifi
cas em inova~6es geradoras de novas produtos e denovos lucros no mundo economico.
Sabe-se que um dos problemas a resolver, parapassar da inven~ao a inava~ao, e sabre a qual nume
rosos anaJistas tern refletido, e a da comunica~aoen
tre 0 campo cientffico e a campo economico. Os desafios nao sao as mesmos, os fins nao sao os mesmos,
os agentes tern filosofias de vida inteiramente diferentes, e ate opostas, e, portanto, geradoras de profundosmal-entendidos: de urn lado, a logica da luta especffica, interna ao campo; de outro, a pesquisa do luera,
da rentabilidade que leva a dar prioridade ao problema do screening, da indica~ao das inven~6es capazesde se tornar inova~6es (como descobrir as descobertas e as descabridores interessames e, antes ainda, como
estar informado disso) que remete ao problema dos gobetween, dos mediadores capazes de fazer vincular ainforma~ao e de assegurar a vinculo.
A originalidade indiscutivel do INRA reside no fatode que ele reune as duas categorias de personagens eas duas l6gicas, cientffica e economica, num mesma
espa~o social e, mais precisamente, numa institui~ao
publica (e talvez seja dessa constata~lo que e precisopartir para submeter it critica a posi~ao daqueles que,em nome da valoriza~ao da pesquisa, chegam as ve-
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Os usos socia is da ciencia
zes a desejar uma especie de privatiza~aodisfar~daoudeclarada da institui~ao). !sso significd que as duas fun~oes, inven~ao e inova~ao, pesquisa cientffica e pesquisa de aplica~oes e de produtos, cabem as insrancias pertencentes amesma institui~ao, mas que sobre
(Udo obedecem a mesma 16gica que e a das institui~oes
publicas, Iiberadas cIa pressao direta do mercado.
Um dos grandes paradoxos dos campos cientfficoseque eles devem, em grande parte, sua autonomia aofato de que sao financiados pelo Estado, logo colocados numa rela~ao de dependencia de um tipo particular, com respeito a uma insrancia capaz de sustentar e
de tornar possivel uma produ~ao que nao est<i submetida a san~ao imediata do mercado (como parenteSe,as homologias sao absolutamente evidentes com certonumero de produ~oes culturais, como a musica au apintura de vanguarda). Essa dependencia na independencia (au 0 inverso) nao e destituida de ambiguidades, uma vez que 0 Estado que assegura as condi~6es
minimas da autonomia tambem pode impor constrangimentos geradores de heteronomia e de se fazer deexpressao ou de transmissor das press6es de for~as
economicas (por exemplo, as organiza~6es agricolas)das quais supostamente ele libera.
Encontra-se al uma outra falsa antinomia, que aanalise pode facilmente dissolver: pode-se adotar comoestrategia servir-se do Estado para liberar-se da influencia do Estado, para lutar contra as press6es exercidaspelo Estado; pode-se tirar partido das garantias de autonomia que 0 Estado cia - por exemplo, as posi~6es,
tenures como dizem os anglo sax6es, de titular irremovlvel- para afinnar sua independencia com rela~ao
ao Estado. Este, diga-se de passagem, nao possui depr6prio, em sua realidade, 0 carater monolitico evoca-
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Pierre Bourdieu
do pela noyao de aparelho: os diferentes ministerios,os diferentes servi,os de um mesmo ministerio ou osdiferentes corpos sao separados por toda especie dediscordancias que sao faceis de explorar e, em especial em materia de pesquisa, nao tem os mesmos objetivos nem os mesmos 6rgaos de sele,ao de projetos e
de avalia,ao de resultados.o primeiro ato de uma ciencia social realmente
cientifica consistira em tomar por objeto de analise aconstru,ao social dos objetos de estudo propostoS pelas instancias estatais a sociologia - por exemplo, hoje,a de[inquencia, as "periferias", a droga etc. - e as categorias de analise que os acompanham e que sao acionadas sem problema pelas grandes institui,aes de pesquisa estatais, INSEE, CREDOC,8 sem falar dos institutosde opiniao, a prop6sito dos quais ja me referi a cien
cia sem cientista.A questiio da autonomia, no entanto, nao se pae em
termos rao diferentes do lade do pOlo do campo do INRA,ao qual incumbe mais particularmente a inova~ao, eque pode, ele tambem, reivindicar e afirmar sua independencia, tanto com rela<;:3o ao Estado quanto com rela<;:3o as for,as economicas e sociais, servindo-se, se foro caso - acham-se exemplos no passado do INRA - daindependencia que the assegura 0 Estado e a financiamenta estatal - por oposi,Jo aos contratos que ja implicam uma amea,a de heteronomia - para definir elemesmo seus pr6prios objetivos de pesquisa, sua pr6priademanda de interesse geral que nenhuma instancia
8 CREDOC - Centre de Recherches, d'Etudes et de Documen
tation sur Ie Consommation (Centro de Pesquisas, Estudos e
Documenta~ao sobre 0 Consumo). (N. T)
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Os usos sodais do ciencio
privada poderia formular ou financiar, em materia, porexemplo, de desenvolvimento da produtividade das empresas agricolas ou de defesa do patrimonio natural.
Nao estou certo de que as dirigentes da institui<;:3o,ocupados que estao, em todos os momentos, em tentar reduzir a ameap de divisao entre as praticos e os
pesquisadores, em nome de uma ideologia conciliadora(se falara, par exemplo, de "pesquisa basica orientada"e uma parte importante do esfor,o de todas as comissaes sucessivas, sobre a futuro do INRA, sabre suasfun~5es etc., visara operar a concilia~ao mais ou me
nDs ffiagica dos contrarios, por exemplo, as exigencias
dos universitarios e as expectativas dos utilizadores dosresultados), renham consciencia dos interesses e dasobriga,oes que todos os pesquisadores, "puros" ou"aplicados", tem em comum, na condi,ao de membrosde uma institui<;:3o do Estado, ponanto investida de umavoca<;:3o universal, transcendente aos interesses caregoriais que vao junto, comumente, com os financiamen
tos privados.
Seria preciso substituir 0 ecumenismo verbal e ineficaz e todos as discursos piedosos sobre a "demandasocial", suas exigencias e seus prejuizos por uma reflex'o aprofundada sabre os contratos que visam definirnao as posi,oes de principio, abstratas e gerais, pr6 aucontra as contratos, mas principios praricos de gestaodesses contratos (pense nisso que consiste em sO aceitaros problemas conforme a problematica do grupo depesquisadores - 0 que, a experiencia nos mostra, naoerao 6bvio - ou mesmo - e urn preceito que tenteiutilizar em meu grupo de pesquisa - s6 aceitar contratos sobre problemas ja estudados, ou, mais precisamente, 'vender" pesquisas ja feitas para financiar pesquisas em curso ou em projeto, portanto definidas segun-
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11
Pierre 60urdieu
do a propria logica da pesquisa e nao da demanda).Esses problemas, a pesquisa dita aplicada e a pesquisadita pura, para alem de todas as diferen0's que as separam, os tem em comum e poderiam trabalhar para
encontrar solu,oes comuns para eles.o confronto de visoes antagonistas que opoe a
autonomia dos pesquisadores ditos "puros" a heteronomia dos pesquisadores "aplicados" impede de verque aquilo que se confronta; na realidade, sao duasformas, ambas relativamente autonomas de pesquisa,uma voltada, antes, pelo menos na inten,ao, para ainven,ao cientifica e participante Cbem ou mal) da 16gica do campo cientifico, a outra voltada, antes, para ainova,ao, mas igualmente independente, para 0 melhore para 0 pior, das san,oes do mercado e capazes dedesignar, para si pr6pria, fins igualmente universais deservi,o publico e de pramo0io do interesse gera!. Deonde, fora das associa,oes e de movimentos destituidos, mais frequentemenre, dos recursos cientificos necessarios para a defesa de sua causa, se falaria, se 0 INRA
nao estivesse la para faze-Io, do patrimonio geneticorepresentado pelas especies vegetais ou animaisamea,adas, de prote,ao de ecossistemas ou ainda dedefesa dos recursos nao-renovaveis?
Evidentemente essa dualidade de fun,oes tem porefeito permitir a alguns fazer um jogo duplo e invocarconsciente ou inconscientemente as exigencias de aplica,ao para esquivar-se das exigencias da inven0io erecipracamente. Denunciar essas falhas faz parte dessasfinezas de semi-habeis as quais se sacrificam, de born .grado, os semi-soci6logos, imediaramente apravados .pelos administradores que se apoiam sobre suas falsasconstata,Des pessimistas para dar uma forma de autaridade as suas intervenc;:oes normativas ou repressivas.
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as usos sociois do ciencio
Mais diffcil, mais justa e mais necessaria e a compreensao da logica, sem duvida bastante misteriosa,dessa institui,ao que reune duas concep,oes da autonomia, duas concep'oes da pesquisa, duas concep,oesda inven,ao Ca inven,ao propriamente dita e a inova,ao) que, embora muito diferentes, repousam sobre 0
mesmo fundamento economico, a saber, a liberdaderelativa com rela0io a pressao economica proporcionaOO pela assistencia do Estado e que sao perfeitamentecompativeis e mesmo complementares.
Algumas proposi<;6es normativas
Epor isso que, se posso me permitir enunciar recomenda,Des que ninguem me pediu, direi que em vezde desperdi0'r tanta energia em disputas internas, ques6 tem por efeito desenvolver uma forma perversa,exasperada e esteril de lucidez Oucidez, por vezes total e nula porque sempre parcial e destinada a justificar uma forma mais profunda de cegueira), os membros do INRA deveriam unir seus esfor,os para desenvolver e acentuar 0 que faz a sua especificidade, istoe, a dualidade de fun,Des da pesquisa: longe de se oporcomo autonomas e heter6nomas, as pesquisas ditasbasicas e aplicadas - que, alias, jamais sao tao basicasque nao tenham alguma implica,ao na ordem das apli-
,. ca,6es e nem jamais tao estreitamente aplicadas que.nao tenham algum fundamento au prolongamento napesquisa basica - tem em comum serem igualmente.,autonomas e inscritas na 16gica universalista de umawtitui,ao estatal consagrada e dedicada ao servi,o. -blico e ao interesse gera!.
59
Pierre Bourdieu
Uma polftica que visa desenvolver as vantagenscompetitivas potenciais da institui~ao au, a que vern
a dar na mesma, sua jusrifica,iio social (e a satisfa,iiode seu pessoal, que depende muito do sentimento deter uma justifica,iio ou uma raziio de ser sociais) deveria trabalhar ao mesmo tempo, e sem contradi,iio,
para acentuar a diferenciar;:iio das fun,oes e das estru
turas que, supostamente, as servem (com 0 efeito, entre outros, de tornar mais diffceis os jogos duplos, conscientes ou inconscientes) e para a integrar;:iio dosdiferentes agentes e institui,oes num projeto coletivocomum, mediante uma organiza,iio sistematica dacircula,iio da informa,iio (seminarios comuns, projetos de pesquisa que integrem 0 aspecto inven,iio e 0
aspecto inova,iio; logo, os departamentos e os pesquisadores correspondentes etc.). Eevidente que paraser um verdadeiro fator de integra,iio numa defini\'iioclara e claramente aceita por lodos, portanto cientificamente eficaz e politicamente democratica da divisiiodo trabalho cientffico, 0 refor,o consciente da diferencia,iio das fun,oes (que, certamente, implica a supressiio ou 0 enfraquecimento de urn certo numero de gru
pos ou de departamentos que vivem e sobrevivem daambiguidade de fun,oes) supoe uma profunda desierarquizar;:iio dessas fun,6es que deve ser operada portodos os meios e de infcio, nos cerebros (0 que nao e
o mais f:ici!).
Essa "desierarquiza,iio" e uma das condi,oes daconstru,iio de verdadeiros objetivos comuns, dos quaiso mais imporranle seria, cerramente, a organiza,ao daluta coletiva pela defesa da aUlonomia (da qual ja deium exemplo a prop6sito da polftica de contratos). Umatal luta suporia, evidentemente, a consrfw;ao, contra
60
as usos sociois do ciencio
tados os fatores de desagrega\'iio de um patriatisma oude um "sentimento de dignidade da institui\'iia", isto e,de uma solidariedade na cancorrencia entre todos ospesquisadores sem distin,oes (inventores e inovadoresunidos) cujos vereditos informais (a reputa,iio, 0 prestlgio etc.) por vezes difusos, nao formulados e profun
damente ressentidos e respeitados, ou formais (publica,6es em revistas prestigiasas, premios especiais etc.)
seriam capazes de se impor como unica medida e unica san,iio pratica e imediata das realiza,oes e das falhas em materia de inava,iio, principia de avalia,aocomum aos invenrores e aos inovadores; e ao mesmo
tempo, opor uma for,a social indiscutivel aos pr6priosrespansaveis administrativos e tambem as autaridadesextemas e as suas injun,oes ou sedu,6es.
Deve ter ficado claro que me parece inteiramentedesejavel refor,ar a capacidade coletiva de resistencia
que os pesquisadores devem ter, apesar das concorrencias e dos conOitos que os opoem, para estar em condi~6es de resistir as inrerven<;:6es mais au menos tira
nicas dos administradares cientificos e de seus aliadosna mundo dos pesquisadores (e na "saciologia de plantaa", pronta a se fazer valer, propondo os criterias "indiscutlveis" uleis para fundamentar as decis6es de urn
despotismo esclarecida).
De fato, e claro que, aa supor que se aceita levarem conta os objetivos que proponho, isto e, a refor,osimultiineo da diferencia,aa e da integra,ao, tada bu
rocracia da pesquisa (refiro-me aos responsaveis adminisuativas da institui\'iio) teria, cerramente, por primeiroreOexo, solicitar a uma comissao urn trabalho para esclarecer e reduzir a imprecisao, propondo, com a ajuda de um desses "gabinetes assessores" (ou cangeneres)
61
,,
I!
Pierre Bourdieu
que vendem, com altos custos, dispositivos tecnocd.ticos, tais como a "cientometria" ou a "bibliometria",novos sistemas de criterios capazes de fundar "cientifi
camente" decisoes burocraticamente impecaveis.
Mas a imprecisao do sistema de criterios l com geometria variavel, que sao efetivamente levados em con
ta nas decisoes de recrutamento e de progressao (e que
seria preciso extrair de uma analise met6dica de umaamostra de resultados de concursos) favorece, de for
ma par demais evidente, as manobras do aparato para
que se possa esperar dos homens do aparato, digam a
que disserem, que eles trabalhem realmente para redu
zi-10 e combate-lo. Alem disso, par mais importante que
tal medida possa ser em seu principio, ela nao poderia
bastar para transformar profundamente a funcionamen
to da institui~ao.
E sob 0 risco de me intrometer no que uma institui
~ao cientffica tern de mais fntimo e mais sagrado, isto e,
o conjunto de mecanismos e procedimentos pelos quais
ela assegura sua reprodu~aol gostaria, apoiando-me so
br~ a conhecimento geral que eu possa ter do funcio
namento das instituic;oes cientfficas, de chamar a aten~ao para a fato de que os discursos reformadores nesses
assuntos, em especial quando emanam das instanciasdirigentes, repousam sabre uma profunda hipocrisia.
Se penso que medidas administrativas visando me
lhorar a avalia~ao da pesquisa e colocar em pratica um
sistema de san~6es (como as "pomos da escala de pro
gressao na carreira") proprias para favorecer as melho
res pesquisas e os me1hores pesquisadores seriam asmais ineficazes e teriam como efeito, mais provavelmentel favorecer ou reforc;ar as disfunc;oes que supostamen
te deveriam ser reduzidas, e porque tenho serias duvi-
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Os usos sociois do ciencio
das e seriamente fundadas sabre a capacidade das ins
tancias administrativas para produzirem avaliac;oes realmente objetivas e inspiradas. E iS50, fundamentalmen
te porque a fim real de suas opera,iies de avalia~aonao
e a da propria avalia~ao, mas a poder que ela permite
exercer e acumular controlando a reprodu,ao do cor
po (especialmente mediante a composi<;ao das comiss6es examinadoras).
Aqui, no entanto, como em outros lugares, a ques
tao e saber quem e legftimo para julgar e quem sera
juiz da legitimidade dos juizes. Para simplificar, direi que
a questao do justo julgamemo se remete, praticamen
te, aquestao da adequa~aoe da justip da escolha dos
jufzes au, para avan~ar um pouco, da escolha daque
les que tem condi~6es de instituf-los como tais (com
por as comissoes examinadoras) e de fixar - medianteas comissoes que eles instituem - os criterios segundoas quais eles deverao julgar.
E chega-se, pais, aos responsaveis pela administra
,ao da institui~ao, aos administradores cientfficos. Enotavel que essas pessoas que so falam de criterios de
avalia,ao, qualidade ciemffica, valor do dossie cientffi
co, que se precipitam com avidez sobre os "metodos
cientometricos" e "bibliometricos" e que sao apreciadares de auditorias imparciais e objetivas (destinadas,
em geral, a produzir, com grandes despesas, constata
,iies triviais e proposi~6es inuteis, como a auditoria
recente sobre os procedimentos de avalia~aodo CNRS)
sabre 0 rendimento ciemffico das institui~6es ciemffi
cas isemam-se eles proprios de qualquer avalia~ao e
colocam-se cuidadosameme ao abrigo de tudo 0 que
poderia levar a aplicar as suas prMicas administrativas(~ nao somente a suas praticas cientfficas como 0 faz a
63
Pierre Bourdieu
polemica comum) OS procedimemos dos quais preconizam, rao generosameme, a aplica<;iio.
Ora, creio fortemente que urn certo numero dedisfun~6esestruturais s6 pedern ser reduzido submetendo os responsaveis pela organiza~ao aos criterios queeles pretendem impor aos outros, ou pelo menos aoequivaleme especifico dos procedimemos de avalia<;iio que eles preconizam. Aelabora<;iio de criterios deinven~ao e de inova~ao em materia ciemffica e economica, seria precise acrescentar criterios em materia
de inovai'ao organizacional e conferir urn reconhecimemo explicito aos agentes capazes de brilhar segundo esses criterios. 0 que teria, talvez, por efeito,a mais ou menos lange prazo, atrair em dire~ao asposi~oes administrativas nao as pesquisadores (de inven<;iio ou de inova~ao)mediocres au em declinio ou,muito simplesmente, ambiciosos e carreiristas (como eo caso, quase sempre, hoje, com todas as conseqiiencias que logicameme se seguem, especialmeme emmateria de avalia~ao), mas de verdadeiros empreendedores especificos.
Esses dirigentes de urn novo tipo se atribuiriamcomo objetivo, a moda de alguns editores ou diretoresde galerias, agir como descobridores capazes de favorecer pesquisadores atipicos, de animar e organizarempresas coletivas, elaborar as editais de maneira aajudar os pesquisadores menos experientes a conciliaras demandas externas com as exigencias internas; logo,de se comportarem menos como executivos encarre·
gados de sancionar do que como preparadores encarregados de estimular, assistir, apoiar, encorajar e organizar nao s6 a pesquisa, mas tambem a forma~ao (porprogramas de educa~ao permaneme e de imerforma~ao) e a circula<;iio da informa<;iio dentifica.
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Os usos sociais do ciencia
Uma convers60 coletiva
Por todas as razoes que acabo de enunciar, e ainda par outras que seria preciso evocar com detalhes eque sao tambem sistematicamente omitidas ou ignoradas pelas comissoes de reformas de todas as ordens
(sem falar da "avalia<;iio coletiva" a qual os laborat6riosdo INRA sao submetidos), e claro que uma politica denlillca verdadeiramente conforme aos interesses da institui~ao (e nao daqueles que a dirigem) nao pode serelaborada e instaurada por decreto (daqueles que adirigem, par mais esclarecidos que sejam). E s6 umareflexao coletiva, capaz de mobilizar todas as for~as
vivas da institui~ao (e em panicular, os pesquisadoresmais ativos e mais inspirados, sobretudo entre os mais
jovens) e todos os seus recursos (que seria preciso recensear e mobilizar e dar a conhecer a todos os membros da institui~ao), poderia conduzir a essa especie deconversao coletiva que e a condi~ao de uma verdadeira atualiza<;iio.
Sou bern conscieme de que 11 imensidao de vantagens que tal conversao coletiva - parque e bern dissoque se trata - poderia !razer, tamo para a inven~ao denlifica quanto para a inova~ao economica, corresponde
. a imensidao de obstaculos sociais que se opoem napratica a uma tal transforma,;;'o de toda a representa
': cao da divisao do trabalho cientifico e, mais profundamente, da maneira de perceber os outros e de perceber a si mesmo. A demoli~ao, que mal comecei a esbo'~r, de todo a conjumo desordenado de preno,oes, de'pressupostos, de preconceitos que constr6i a socieda.' esponranea dos agemes em concorrencia (e que.' lillca, a pretexto de objetivar, a rna sociologia) e s6
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Pierre Bourdieu
urn primeiro passo, que eu creio absolutamente decisivo, para uma especie de libera,ao coletiva.
o movimento para ir aU:m e operar essa socioana
lise coletiva, que e a condi,ao absoluta de uma verdadeira conversao coletiva, s6 pode, no entanto, ser executado, ao pre,o de urn longo trabalho de cada urn sobre si mesmo e sobre todos os outros, pelo conjuntodo grupo. Por isso, 0 essencial seria organizar instancias de discussao em que - eventualmente com a participac;ao e a assistencia modestas, mas creio inteiramente necessarias, de soci610gos - todos os membros dainstitui,ao fossem levados a se exprimir e a pensar coletivamente e, para alem de toda imposi,ao ou san,aohierarquica, os problemas que as diferentes categoriasde pesquisadores podem ter em comum e que podemdividi-Ios e opo-Ios. Nos lugares de confronto ou dlScussao comuns, pequenos grupos de discussao, expostos ao rumor ou a tagarelice, partidos, associa,oes ousindicatos, expostos a todas as self deceptions dos sistemas de defesa coletiva, comites ou comissoes, expostos as falsas comprova,6es realistas e aos votos piedosos do jargao burocratico, esses problemas sao menosdiscutidos do que deslocados para formas faceis de de
nuncia ou de "politiza,ao".Tenho a convic,ao (e meu lado Auf/darer) de que
se pode tirar de uma visao realista, mas nao desencantada da vida cientifica, preceitos ou maximas, procedlmentos e processos, especialmente em materia de organiza,ao da discussao e da circula,ao da informa,aoque permitiram tornar a pratlea e a vida cientifica aomesmo tempo mais eficazes e mais felizes ou menosinfelizes (porque e claro que uma das fun,oes maiores de todas as representa,oes antagonicas que produ
zem as diferentes categorias de pesquisadores e a d
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Os usos socia is do ciencio
conjurar e exorcizar todas as formas espedficas de infelicidade ou de miseria que estao ligadas a inser,aonum campo cientffico estruturalmente destinado a proporcionar muito mais fracasso do que sucesso).
E penso que, apoiando-se sobre uma analise rigorosa dos campos cientfficos, tal como eles sao realmente, podem-se propor os principios concretos de umaRealpolitik da razao. Diferentemente de uma filosofiada "a,ao comunicativa" tal como a de Jurgen Habermas,te6rico alemao muito respeitavel e hoje muito ouvido,que atribui urn lugar consideravel aos problemas e asnormas da comunicac;ao nos espac;os sociais como 0
campo politico, essa Realpolitik da qual estou tentandodar uma ilustra,ao propoe que, para que se realize 0
ideal que se da como a verdade cia comunica,ao, e preciso agir sobre as estruturas nas quais se concretiza a comunicac;ao, por uma ac;ao po}ftica, mais espedfica, istoe, capaz de atingir os obsraculos sociais especificos dacomunicaC;ao radonal e da discussao esclarecida.
Ainda que os campos cienrificos sejam universos deexcec;ao (e tanto mais quanta sao mais autonomos),nem rudo e para 0 melhor, eu 0 disse, no melhor dos
r mundos cientfficos posslveis, e ha obstaculos sociais ainstaura,ao da comunica,ao racional que ea condi,aodo progresso da razao e do universal. Porranto, e pre-
•aso lutar praricamente, isro e, polirleamente (no senti"do especifico do rermo), para dar for,a a razao e as
Oes, apoiando-se para tanto no que ja se pode rerrazao realizada na hisroricidade do campo.
Mas nao nos enganemos, as lutas de que falo (em'cular, as lutas para a defesa da auronomia, para a
esa das condip5es economicas e sociais que jamaisadquiridas de uma vez por rodas, como creem als dos defensores da rerirada e da reclusao na rorre
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Pierre Bourdieu
de marfun) sao lutas espedfieas que se trata de fazer comarmas especffieas, no proprio interior de cada campo,em vez de desloca-las, como acontece tao frequentemente, para outros domfnios, como as cia poHtica comum.
Nada e mais funesto, com efeito, do que a upolitiza~ao" no sentido corrente do termo, do campo cientificoe das lutas que a1 se desenrolam, isto e, a importa~ao
dos modelos politicos para 0 campo cientlfico - que emuito pratieada na Fran~a, inclusive no INRA. A upoli_tiza~ao" e quase sempre obra daqueles que, quer setrate de dominantes temporais (e temporarios) quer dedominados, sao os mais fracos segundo as normas especificas e tern, portanto, interesse na heteronomia (e
o que chamo a lei de Jdanov): fazendo intervir poderesexternos nas lutas internas, eles impedem 0 pleno desenvolvimento das trocas racionais.
Dito isso, 0 que torna as coisas muito complexas eos jogos duplos tao faceis e que as luras mais especfficas em materia de arte, de Iiteratura ou de ciencia naosao totalmente desprovidas de consequencias no espa~o social global. A defesa do que ha al de rnais especffico por lutas autonomas - por exemplo, tal luta dosartistas americanos contra a censura - pode ter efeitospoliticos. E sobretudo a defesa da autonomia dos campos cientfficos, em especial, e do campo das cienciassociais, em particular, epar si urn ato politico. especialmente num momento e em sociedades nas quais oshomens politicos e os dirigentes economicos se armam,sem cessar, da ciencia, economica principalmente, naopara governar, como 0 querem fazer crer, mas para legitimar uma a~o polftica inspirada por raz6es que naclatern de cientfficas.
Depois desse longo parentese, importante, creio eu,para evitar mal-entendidos sobre minhas inten~oes,
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Os usos sociois do ciencio
volto as minhas questoes, isro e, ao INRA e ao quepoderia ser uma Realpolitik da raziio visando integraressa institui~ao de duplo fim em e par urn domlniocoletivo e concertado de sua diferencia~ao estrutural efuncional. Tratar-se-ia de instaurar e fazer funcionar urndispositivo de discussao coletiva orientado para a inven,ao de novas estrulUras organizacionais pr6priaspara favorecer essa integra~o na diferencia~o.
Tenho 0 habiro de dizer, generalizando uma observa~o de Max Weber a prop6sito do papel respectivodo progresso das armas de fogo e das formas de organiza,ao das For,as Armadas (com inven,oes Como aFalange), que tambem no domlnio da ciencia os grandes progressos estao Iigados as inven~oes organizacionais (como 0 laborat6rio ou 0 seminario) no caso particular, com inven~OeS concernentes amaneira de fazer
trabalhar em conjunto pesquisadores dotados de interesses diferentes porque inseridos em campos dotadosde 16gicas quase anragonicas. E tambem gra~s a umtal dispositivo que se poderia dar algumas possibilidades de coloear convenientemente e resolver verdadeiramenre, para alem de todas as mentiras para si mesmo, individuais e coletivas, a terrlve! questao da"demanda social", das condi~oes nas quais ela podee deve ser definida e elaborada e nas quais se pode ese deve a ela responder eficazmente. Mas ficarei poraqui, por hoje.
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Discussao
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Pierre Bourdieu: Responderei primeiro a duasquestoes que me foram colocadas durante 0 intervalo,por M. Raymond Fevrier, antigo diretor-geral do INRA.A primeira trata das rela,oes entre a posi,ao do professor e a do pesquisador; a segunda trata dos problemas postos pelo enorme afluxo de documenta,ao como qual somos confrontados pelo desenvolvimento dosmeios de comunica,ao.
Aposi,ao do professor, em qualquer nivel que seja,',me parece, de fato, muito dificilmente compativel com.j! posi,ao do pesquisador. Pode-se objetar que existem:POsi,oes de professor-pesquisador, que ha um certo
umero de institui,oes, de institui,oes hospitalares, de.borat6rios de pesquisa etc., onde estruturas pedag6
estao integradas a pesquisa. Infelizmente, 0 quechama ensino, de modo corrente, sao lugares de
missao codificada, rotinizada do saber, e uma parteidecivel da inercia dos campos cientfficos vincuao atraso estrutural resultante do fato de que as
Pierre Bourdieu
pessoas que ensinam sao comumente desconectadas daatividade de pesquisa. Assim, bizarramente, nao eexagerado dizer que 0 ensino e, em parte, um fator deinercia. as professores tern interesses inconscientes pelainercia. Vma vez que nao estao diretamente conectados11 pesquisa viva, sao solidirios da rotina, pelo simplesfato de estarem, estatutariamente, um pouquinho 11margem, e eles tern, mesmo, as vezes, urn interesseinconsciente em desqualificar 0 que e eminente. Issoe particularmente visivel nas disciplinas literarias, nasquais 0 professor permaneceu como urn lector, no sentido medieval do termo, que tem uma especie de desconfian~a com rela~ao aos auctores, inventores, criadores etc. Mas 0 mesmo fen6meno observa-se emmedicina e em ciencia. Assim como, segundo Weber,o padre rotiniza a mensagem do profeta, 0 professorrotiniza banaliza 0 discurso do criador, em particular,,fazendo desaparecer 0 que e fundamental, isto e, 0problema tal como 0 colocou 0 criador.
No que concerne a invasao de documentos, acredito que seria preciso fazer um estudo empirico sobre 0que se Ie realmente. Quando vejo as referencias que saocitadas nas footnotes de artigos cient!ficos, sobretudoanglo-saxoes, e a maneira pela qual elas sao utilizadas,penso freqiientemente que haveria motivos para testaro que e, realmente, lido. Seja 0 que for, esse problemada invasao pela documenta,ao e inteiramente real edeveria ser abordado nos lugares de reflexao. Isso fazparte desses problemas verdadeiramente importantesque, em sua rnaioria, jamais sao discutidos. Cada urn searranja, na intimidade. Cada urn os resolve a seu modo,de maneira um pouco envergonhada, nem sempremuito honesta, nem muito racional, quando, segundopenso, eles deveriam ser tratados nos espa,os de dis-
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Os uses seciois do ciencio
cussao cientffica. Entao, assim se descobriria que muitos dos problemas, com freqtiencia, vividos no drama ena ansiedade nada tem de pessoal e que os pesquisadores, pessoalmente, nao tern grande coisa a ver com des,o que teria por efeito dissipar muitas falsas angustias.
A vida cientifica e extremamente dura. Os pesquisadores estao expostos a sofrer muito e eles inventamuma por,ao de estrategias individuais destinadas aatenuar 0 sofrimento. Os coletivos de reflexao permitiriam abordar e tratar essas questoes de frente. 0 movimento feminista tentou, num dado momento, trabaIhar assim, encorajando os coletivos de testemunhos.Sob 0 risco de parecer ingenuo, diria que haveria umlugar para coletivos de testemunhos de sofrimento cient!fico. Eu Ihes asseguro que hi material.
Questiio: 0 senhor insiste muito na defesa da autonomia, mas nao diz como essa defesa pode ser conciliada com a preocuparao da ahertura e da sensibilidadeda ciencia aos prohlemas que se poem na sociedade eaosproblemas da inovarao que obrigam 0 pesquisadora sair dos limites do campo.
Pierre Bourdieu: Encontra-se ai uma dessas falsasantinomias que a no,ao de campo permite desfazer. Aalternativa escolar do engajamento e da torre de marfim e um falso problema. Em duas palavras, 0 arquetipo inaugural do engajamento intelectual e representado pela a,ao de 20la no momento do caso Dreyfus. Umescritor, num certo momenta, faz urn ato poIrtico, mascomo escritor (e nao como homem politico), Se um talato foi possivel, e porque nessa epoca um campo literario aut6nomo havia se constituido hi pouco: iniciado desde 0 seculo XVI, 0 campo ascende 11 plena au-
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Pierre Beurdieu
tonomia no seculo XIX. E e sobre a base dessa autonomia conquistada que 0 erudito ou 0 escritor se destacae vai ao campo politico para dizer, com a autoridadeque the da seu capital especifico autonomo de eruditoau de escritor, que tal decisao nao e aceitavel, que elaecontraria aos valores inerentes ao seu campo, isto e,no caso do escritor, os valores de verdade. Em outraspalavras, quanta mais se e aut6nomo, rnais se ternchance de dispor da autaridade especifica, isto e, cient!fica ou literaria, que autoriza a falar fora do campo com
uma certa eficacia simb6lica.
o principio de toda Realpolitik da razao, que eu
prego, consiste em acumular 0 maximo possive! deautoridade especifica para fazer dela, se for a caso, umafar~a politica sem, e claro, para isso tornar-se urn homem politico. 0 erudito ou a literato que sai do campo para exprimir-se apoiando-se sobre sua autoridadeespecifica retorna a seguir para os seus amados estu
dos. 0 que eu desejaria muito e que isso que se chama comunidade cientifica - que, alias, nao euma comunidade, mas urn campo com concorrencias etc. - numapalavrd, que os eruditos, os artistas, os escritores se eonstitulssem pouco a pouco em instancia coletiva capaz deintervir como uma for~a politica para dar opiniao so
bre problemas que sao de sua competencia. Urn dosobst<iculos a tais iniciativas sao os habitos mentais. Quando defendem tais interesses, as intelectuais, artistas,
eruditos etc. tern sempre a impressao de que se sacrifieam ao eorporativismo. S6 se sentem universais quando defendem interesses que nao sao os seus e quandose fazem porta-vozes de uma "demanda social", ou me
lhor de uma "causa" universal. Ora, penso que deveria~ eomer;ar por afirmar sua autonomia, por defenderseus interesses espedficos, isto e, para os eruditos, as
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Os uses seciois do ciencio
condi~6es da cientificidade etc. e, sobre essa base, intervir em nome dos prindpios universais de sua existencia e em nome das conquistas do seu trabalho.
Por que, entao, os artistas, os escritores e os eruditos nao participariam eles pr6prios da defini~aoda demanda social? Armados das conquistas do trabalho dos
soci610gos e dos conhecimentos especializados quepossuem as eruditos, eles poderiam intervir eficazmentesobre problemas de interesse geral e nao somente par
ilumina~6ese par eclipses, como hoje, quando as poHticos passam da medida, mas sim de maneira corriqueira, eonstante. Os eruditos estariam, assim, continuamente presentes no debate social ou politico, e creio queisso contribuiria para esclarecer bern os problemas. Eles
poderiam, alias, come~ar por contribuir diretamentepara definir a famosa demanda social em materia depesquisa cientifica. Se existisse uma estrutura de delibera~ao coletiva, capaz de ultrapassar as divis6es que
evoquei, ainda agora, entre te6ricos, pratieos, basieos,aplicados, homens, mulheres e todo 0 resto e que enunciasse as questoes, ao mesmo tempo, importantes eurgentes, certamente isso seria uma boa coisa tanto paraa ciencia como para a sociedade. 0 INRA deveria poder funcionar assim, pelo menos a prop6sito dos pro
blemas que the sao estatutariamente atribuidos e quesao de sua al~ada.
Questiio: 0 senhor poderia precisar mais as rela,Des entre campo polftico e campo cientifico, em particular voltando anOf'iio de "demanda social" que eessencialmente apresentada ao cientista pelo polftico?
Pierre Bourdieu: Abordei esse problema a minha
maneira, porque penso que a afirma~ao da aurano-
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,\
Pierre Bourdieu
mia e 0 primeiro principia e espero te-Ios convencido
de que essa afirma9-o nada tern a ver com uma fugasonhadora. Eclaro que isso pode e deve se retraduzirem proposi<;Oes concretas, a serem imaginadas. Seriapreciso, par exemplo, constituir grupos de trabalhoad hoc e dar provas de imagina<;ao jurfdico-organizacional, reivindicar, por exemplo, que os pesquisadoresestejam representados em muitas das instancias nasquais se preparam as decisoes publicas, para ai introduzir 0 ponto de vista da ciencia. Em suma, seria preciso inventar e inovar, de tal maneira que essa maldita demanda social nao possa ser definida nas nossas
costas.
E parece-me que uma Realpolilik orientada para adefesa da autonomia poderia se deter, com prioridade,num estudo sociol6gico da genese real do que se chama hoje demanda social. Patrick Champagne poderia,par exemplo, lhes dizer, melhor do que eu, que umaparte enorme dos problemas ditos sociais sao, na realidade, produtos de uma especie de circula,ao circularentre os jomalistas, que em boa parte saem da Escolade "Ciencias Politicas", ja que os professores dessa escola contratados pelos institutos de opiniao transformam as questoes da Escola de "Ciencias Politicas" emquestOes para as pesquisas, cujos resultados sao dissecados e comentados pelos analistas e jomalistas quefizeram eles proprios tal curso etc, E e assim que seconstituem as problematicas de opiniao, esse conjunto de problemas que nao tern quase nada de pertinente, mas que de bom ou de mau grado todos n6s temosna cabel'". As ciencias sociais sao mais expostas do queas outras ciencias a esse perigo, e, quando, acreditamos responder a problemas autonomos, isto e, postospor n6s mesmos para n6s mesmos, estamos sempre ex-'
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postos a responder problemas que realmente sao constituidos segundo esses processos.
Epor isso que urna das particularidades do nossogrupo de pesquisas tem sido sempre interessar-se, aomesmo tempo, por seu objeto e pelos instrumentos deconhecimento desse objeto: as problematicas, os sistemas de cJassifica<;ao, os instrumentos de codifica<;aoetc., todas essas coisas que, comumente, sao evidentes. Por exemplo, as pesquisas demograficas do I ED9e seu sistema de codifica<;ao ocultam, em si, uma teoria da familia. Evidentemente, quando voces dizem issoaos pesquisadores do INED, eles respondem que vocessao politizados! Eles acreditam-se "neutros". Os maisbelos trabalhos de Remi Lenoir mostram como me-,diante a a<;ao de urna combina9-o de pensadores e depesquisadores majoritariamente cat6licos, uma filosofia da familia com tonalidade crista habita todos essesquestionarios e, sob a forma de categorias e de enunciados de aparencia inteiramente an6dina, "chefe defamilia" etc., produz dados pre-constituidos que sao, aseguir, tratados como se se tratasse de estalisticas taoobjetivas quanto as da pluviometria", Sugeri, mesmo,recentemente, a um pesquisador estudar os editais dasinstitui<;oes europeias que, confrontados com a politica economica dessas institui,Oes, dao uma boa ideia dadivisao do trabalho entre a economia e a sociologia, talcomo a concebem as autoridades politicas,
Questiio: Uma obserua{:iio: a prop6silO dos usossociais da ciencia queforam 0 lema desla conferencia,
9 INED - Insriw[ National d'Ewdes Demographiques (Institu
to Nacional de Estudos DemogrJ.ficos), (N.T.)
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o senbor tratou amplamente e em definitivo dos usossociais que se podem jazer das conquistas da sociologia no proprio campo cientifico e no que a sociologiapode ajudar no funcionamento do campo cientifico.Mas quais seriam os usos sociais da ciencia no exteriordo campo cientifico? Quem se apodera dos resultadosda ciencia e para produzir quais ejeitos sociais? Essaquestao sepoe, por exemplo, a prop6sito das rela~6es entre as ciencias e as mfdias, pelas quais 0 senbor se interessou recentemente. Par outra lado, e euma a/usda aLa misere du monde, quais sao os usos sociais que a 50
ciologia pode jazer de seus proprios resultados paracomunicd-Ios ao mundo social? [SSG Iiga-se, em parte,1I questao que 0 senbor evocou bd pouco, do momentode devolver ao mundo social os trabalbos quepodem serconseguidos gra~as 1I autonomia.
Pierre Bourdieu: !sso poe muitos problemas aomesmo tempo, mas tentarei responder! Sabendo queo publico de hoje se dividiria num grande numero dedisciplinas diferentes, esforcei-me, quando pude, porfalar das ciencias em geral, mas evidentemente a sociologia tern sua posi\;'Jo inteiramente particular e mesmoperfeitamente singular. Dito isso, a sociologia, por causada extravag:lncia de sua posi<;iio, e, talvez, urn reveladorpara as outras ciencias, porque ela se confronta demaneira mais visfvel, mais crttica, as vezes mais dramatica com problemas que as outras ciencias podem fingir ter resolvido.
Por exemplo, a prop6sito do problema da restitui<;iio do saber, que voce evocou, a primeira questiio esaber se hi uma obriga~ao de restitui<;iio do saber. Adivulga~ao cientifica e uma especie de inje~ao de animo para 0 pesquisador que envelhece, tranquilamente,
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ocupando de forma uti! seu tim de carreira, ou e qualquer coisa que e constitutiva do ofkio de erudito' Defato, as eruditos, quaisquer que sejam, deveriam, parece-me, se nao trabalhar, eles pr6prios, pela divulga<;iiodos resultados do seu trabalho, pelo menos trabalharpara controlar tanto quanto possivel esse processo dedivulga<;iio; interven<;iio que se imp6e a eles de maneira tanto mais imperativa quanto seus resultados podemser usados num debate bern ou mal estabelecido.
!sso introduz 0 problema da rela~ao com a lelevisao e com as midias em geral. Se dei duas aulas sobrea lelevisao que foram publicadas sob a forma de urnpequeno livro, foi uma 16gica que se poderia chamarde missioniria. Isso nao me agradou nada, esse nao eraurn lema sobre 0 qual eu trabalhava naquele momenta, mas pensei que, do ponto de vista dos interesses dademocracia, da discussao cientffica etc., fosse importantelevar ao conhecimento de urn publico tao amplo quantopossivel urn certo numero de resultados da pesquisa.
Urn problema apresentado para todos os eruditos,em graus diversos, mas que se pae de modo particularpara os soci610gos, uma vez que, supostamente, estesproduzem a verdade sabre 0 mundo social, eo de restituir os resultados da ciencia nos dominios em queesses resultados possam contribuir de forma positivapara resolver problemas que chegaram a conscienciapublica. Mas a fun~ao mais uti!, em rnais de urn caso,seria dissolver as falsos problemas ou os problemas malcolocados. Evidentemente, se voces estao com essadisposi,Jo, voces nada tern a fazer na televisao, porque 0 pressuposto que e preciso aceitar, quando se eemrevistado na televisao, e 0 de levar a serio esses falsos problemas. Como fazem os falsos m6sofos: seu ver
dadeiro oficio consiste em levar a serio os falsos pro-
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blemas. Quando, na verdade, seriam necessarios comandos de interven~aofilos6fica rapidos para destruiros falsos problemas, para funcionar como 0 Wittgenstein na vida de todos os dias e muito especialmente nasmldias. Em lugar disso, urn editorialista vai tomar posi~ao, urn outro vai the responder, 0 campo jornalisticovai se p6r a funcionar plenamente, e voces {erno assimurn "debate da sociedade" que produzira uma demanda social etc.; e, finalmente, seriio voces os pesquisadores intimados a responder aos jornalistas: sera preciso matar as vacas-loucas? Pode-se comer carne? Enecessario clonar ou nao? Ah, 0 clone e impecavel. Ecomo a eutanasia, urn verdadeiro falso problema quefaz urn sucesso nas midias!
QuestaQ: Farei, de infcio, uma observar;ao: 0 senhorfalou de verdadeiros efatsosproblemas e os exemplos que deu sao inteiramente convinc<mtes. Mas nemsempre eassim, sobreludo noproprio momenlo, quando falla dislanciamenlo. Quando e que os problemassao verdadeiros e quando eque saofalsos, mas com eslaluta deproblemas, eis 0 que nao etaofacil discernir. ..E concordo com 0 senhor: seria preciso dispor de umapluralidade de espar;os para debater isso e dar ao pr6prio queslionamenlo umapolifonia suficienlepara quese possa comefar a ve-Io se projelar de modo plausfvel.Dito isso, minha questao ea seguinte: 0 senhor pensaquepode acontecer de ospoderes estahelecidos ou mesmo de os movim<mlos sociais em 0posifao poderem in
lerpelar 0 mundo cientifico para quesliona-Io de qualquer lugar polftico que seja? E sera que faz parte dopapel das instituifoes e dos individuos cientistas aceilar compreender essas quest6es e, de umaforma ou deoutra, arriscar-se a proporuma resposta, em quais con-
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dir;6es? Porque a sociedade tem uma expectaliva emrelar;ao aos cientislas. A demanda social, sou de plenoacordo com 0 senhor, niio etao Simples, maspor vezesela exprime, no entanto, ciaramente essa expectativa,ela a exprime justamente porque ela se faz compreender. Por exemplo, na Alemanha, no momento da crise
do desaporecim<mto das florestas, houve uma demanda fantastica junto aos cientistas que, alids, responderam extremamente mal.
Pierre Bourdieu: Essa quesrao e imponante. Infelizmente, penso que ha muito poucas demandasdirigidas aos cientistas e provenientes dos movimentossociais, exceto 0 movimento ecol6gico que, por raz6essociol6gicas, esta em condi~6esde faze-las. De fato, eurn movimento de pessoas dotadas de urn alto nivel deinstru~o cujo discurso empresta muito dos argumentos cientificos. Ora, tambem no domlnio da manifesta~o po\[tica que, se esquece, e uma maneira particularmente eficaz e legltima de formular e de constituiruma demanda social, uma boa parte das inova~6es esraligada ao nlveJ de instru~ao.Assim, as grandes subvers6es simb6licas que foram feiras pelos estudantes americanos no momento da guerra do Vietna eram manifesta~6es com alto nlvel de investimento de capitalcultural. Ha, arualmente, muito poucos exemplos demovimentos de massas suscetiveis de dirigir quest6esaos cientistas. Tome-se 0 problema da polui~ao emParis, do qual se fala cada vez rnais, e voces vemo queos protestos emanam de meios muito cultos, muitofavorecidos, que se esfor,am para tentar suscitar umademanda social.
Na realidade, ha dois problemas: 0 de saber 0 queepreciso fazer das demandas que podem ser esponta-
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neamente formuladas, articuladas, elaboradas, sejaporque ha pessoas que tern as capacidades culturaispara formuli-las elas pr6prias, seja porque ha, entre osporta-vozes politicos, religiosos ou outros, pessoas quetern interesse em formuli-Ias; e hi 0 problema de decidir se e preciso limitar-se a demanda formulada (oumanifestada, especialmente nas manifesta~6es)ou contribuir para explicitar as demandas nao formuladas (porurn trabalho de pesquisa empirica, por exemplo), oumesmo, de algum modo, chegar ate a formuli-Ias autoritariamente, como 0 fazem sempre os politicos.
Pode-se, realmente, pretender exprimir demandasvirtuais demandas potenciais mas nao formuladas, 0
que e ~videntemente muito perigoso. Eem nome desse processo que misticas marxistas faziam falar os povos, com tudo 0 que isso implicava de perigos. E, noentanto, e verdade que nao e possivel contentar-se emaguardar que as questoes se configurem de uma forma clara... Torno urn exemplo: penso que, atualmente exisre uma enorme demanda concernente ao sistem~ de educa~aoque ninguem formula e sobretudo queninguem quer entender! Hi tambem uma enorme demanda concernente ao problema do trabalho, 0 problema da defini~ao da divisao do trabalho, 0 problema do sentido do trabalho no mundo economico atual.Mas como as grandes profecias escatol6gicas nao saomais correntes, como e de born-tom no meio intelec
tual dizer que tudo isso esti ultrapassado, essas demandas nao tern rnais eco e sao abafadas (e verdadeque hi muitos precedentes infelizes, dos ventriloquosque fazem falar 0 povo: "Eu sou 0 povo", dizia Robes
pierre ...)Dito isso, pense que uma das responsabilidades dos
cientisras, no caso das ciencias sociais I mas talvez mais
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amplamente, e tambem estar atenlQ a lodos esses problemas que nao chegam a ter formula~ao. A produ~ao
de problemas, hoje, e compartilhada por aqueles quePlatao chamou de "dox6sofos". Euma palavra magnifica que se pode traduzir de-duas formas e designar, aescolha, os eruditos da opiniao ou os eruditos aparentes. Para mim, os dox6sofos sao os eruditos aparentesda opiniao ou das aparencias, isto e, as pesquisadorese as analistas de pesquisas, essas pessoas que nos fazemacreditar que 0 povo fala, que a povo nao cessa de falar sobre todos as temas importantes. Mas 0 que jamaise colocado em questao ea prodU<;do dos problemas quesao postos para 0 povo. Ora, esses problemas sao engendrados segundo 0 processo circular de circula~ao
entre pesquisadores, jornalistas e politic610gos que P.Champagne descreveu e que lembrei hi pouco.
Mas, ao mesmo tempo, n6s sabemos mediantenumerosos trabalhos cientificos, pela anilise das naorespostas principalmente nas pesquisas, que 0 poderde produzir uma opiniao explicita e muito desigualmente repartido. Pia tao dizia "Opinar e falar". Ora, nada emais desigualmente repartido do que essa capacidade,e essa constata~ao choca a boa consciencia democratica: todas as pessoas sao iguais, e 0 dogma. Ora, dizerque todas as pessoas sao iguais diante da questao daopiniao e urn erro, e urn erro polftico. Nem todo mundo tern os instrumentos de produ~ao da opiniao pessoal. A opiniao pessoal e urn luxo. Hi pessoas, nomundo social, que "sao faladas", por quem se fala,porque elas nao falam, para as quais se produzem problemas porque elas nao os produzem. E, hOje, chegase mesmo, no grande jogo da mistifica9io democratica, ate a dar oportunidade para que respondam a problemas que nllO seriam capazes de praduzir. E se faz,
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entiio, que produzam falsas respostas que fazem esque
cer que elas nao tern questoes.
Esse fenomeno da desigualdade no acesso a produ<;iio de opini6es explicitas, discursivas, e urn fatomuito importante, que da uma responsabilidade enorme aos eruditos. E a questao que voce colocou e es
sencial: devem eles suprir as insuficiencias que podemconstatar no trabalho de explicita~aodas expectativassociais? E se sao interpelados, devem responder ou naoas questOes que lhes sao colocadas? Tudo bern pesado, respondo que sim, e eVidente. Se se tern a oponunidade de ser interrogado, como erudito especialistanum dominio qualquer, por urn poder qualquer queseja, isso e tiio raro, que e preciso responder. Muitasvezes, a questao e idiota, mas creio que e preciso res
ponder, ao menos para reformular a questiio, e uma
especie de obriga~aodvica.
Dito isso, devemos ir mais longe e trabalhar para ademoli~ao dos falsos problemas, ao mesmo tempo quepara a produ~ao de problemas reais, mas coletivamente,de maneira organizada e, por isso, ao mesmo tempo,eficaz e autorizada. Volto aquestao sobre a televisao,que e hoje urn dos lugares de produ~ao de problematicas, urn dos lugares de produ~ao da filosofia, urn doslugares de produ~ao de ciencia ou de representa~oes
da ciencia etc. Diante da televisao, seria preciso umaespecie de movimento de resistencia dvica (voces vaopensar que exagero quando penso que ainda ficoaquem) contra a imposifdogeneralizada deproblema
licas que nero sempre sao mesma dvicas, que sendoapenas 0 produto de habitos de pensamento, das rotinas, dos alrno~os fora de casa, das camaradagens, saosimplesmente bestas e por isso terrivelmente perigosas.
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Os usos socia is do ciencio
Tomemos 0 exemplo de urn problema concreto eserio, que se colocam muito seriamente muitos membros do INRA, 0 da escolha entre produtividade e desenvolvimento duravel. Posto nesses termos, 0 problema pode parecer urn poUCCi). simplista, mas, se se elabora urn pouquinho a problematica, ve-se que esse eurn domfnio sobre 0 qual 0 INRA deveria e devera intervir. sera que 0 INRA nao e responsavel, de uma certamaneira, pela rela<;iio com a natureza? Sera que nao ha
nada a colocar ex officio ou a contribuir para colocarnum certo numero de problemas que sao deixados aosfilosofos de televisao?
Trata-se de problemas que devem ser discutidos detal maneira que a competencia nao seja deixada novestiario - 0 que supoe a organiza~ao de coJetivos adboc, a cria~ao de espa~os que, como disse no inicio,nao podem seT os sindicatos, os comites, as comissoes(tenho em mente 0 exemplo desse sindicato do ensino superior que tinha por principio a necessidade dedeixar de lado os criterios cientfficos na avalia~ao dospesquisadores). E importante instituir espa~os de discussao, ao mesmo tempo regulados e livres, onde sepossa vir, com seus interesses profissionais, sua COffi
petencia profissional, suas pulsoes profissionais, suasrevoltas profissionais, para discutir em termos profissionais - 0 que nao quer dizer corporativistas e menos
ainda de mandarins - com ou[tos profissionais, quer seu-ate de problemas praticos, pessoais, quer de problemas muito mais gerais, e isso sem esperar ser consul
tado. E e desejavel que 0 trabalho de reflexao coletiva, realizado nesses Jugares, desencadeie tomadas deposi~oes publicas, ao mesmo tempo competentes, rigorosas, autorizadas e engajadas, crfticas, eficazes (euma forona moderna e coletiva do modele de Zola).
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Se e isso que voces come~aram a fazer no INRA,especialmente mediante esse grupo Sciences en Questions, s6 posso encoraja-los a prosseguir, e digo queestou disposto a ajuda-los se voces 0 desejarem, na
medida das minhas possibilidades.
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SOBRE 0 LIVRO
Formato: 12 x 21 emMancha: 20.5 x 39.5 poicosripe/agio: Gotineou 10,5/14Popel, Offset 90 g/m' (miolo)Cortco Supremo 250 g/m1. {capo)Jg edir;ao: 2004
EQUIPE DE REAlIZA<;AO
Coordeno,;oo Geral
Sidnei Simonelli
Produr;ao Gr6ficoAnderson Nobaro
Edir;oo de TextoNelson luis Barbosa (Assistenle Editoriol)
Nelson LUIS Barbosa (Preporo<;oo de Original)
Carlos Villorruel eF6bio Gonr;olves (Revis6o)
Editorar;oo EletronicaLourdes Guociro do Silva Simonelli (Superviseo)
Jose Vicente Pimento {Oiogromo<;oo)
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