BIANCA SORDI STOCK
ENCONTROS NA CIDADE: A PSICOLOGIA E OS ÍNDIOS KAINGÁNG
EXPERIMENTANDO POSSIBILIDADES DE VIDA
Trabalho de Conclusão de Curso
Requisito parcial para a obtenção do título de graduado em Psicologia
Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS
Curso de Psicologia
Orientadora: Ms. Lígia Hecker Ferreira
Segunda avaliadora: Drª Rejane Czermak
São Leopoldo
2006
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ENCONTROS NA CIDADE: A PSICOLOGIA E OS ÍNDIOS KAINGÁNG
EXPERIMENTANDO POSSIBILIDADES DE VIDA
RESUMO
O presente trabalho problematiza a Psicologia e suas práticas clínicas no encontro com a demanda atual produzida pelos índios no urbano. O contemporâneo e seus movimentos acelerados de homogeneização das subjetividades são explicitados na complexa realidade de descaso público experimentada pela numerosa população indígena que hoje vive nas metrópoles do Brasil. Há uma urgência por políticas públicas que atendam a esta demanda em sua singularidade, no que diz respeito à saúde, educação, moradia e renda, reivindicadas pelas próprias comunidades indígenas. A Psicologia é então capturada pelo olhar Kaingáng e instigada a se produzir neste encontro. E que imagens da cidade serão possíveis a partir de então? Cidade pensada como produtora de subjetividade e subjetivada nos diferentes movimentos dos corpos no campo social. Desta maneira, por meio de afecções e de uma pesquisa-intervenção produzida durante o curso de Psicologia da UNISINOS na comunidade indígena Kaingáng da cidade de Porto Alegre - capital do RS, este trabalho – ensaio realiza uma cartografia dos movimentos do desejo nos encontros entre a Psicologia e os índios Kaingáng. Uma cartografia onde vida e teoria estão agenciadas em todo o percurso, afirmando um modo de fazer pesquisa e a potência criativa coletiva de um processo realizado durante a graduação em Psicologia. Como referencial teórico fundamental, utiliza a Filosofia da Diferença de Gilles Deleuze e Félix Guattari, com importante contribuição de Suely Rolnik. Nestes aportes, captura o devir-antropofágico dos Kaingáng e o agencia aos conceitos de Subjetividade Antropofágica de Rolnik, com alusão ao Movimento Antropofágico da década de 20, e de Inconstância da Alma Selvagem do antropólogo Eduardo Viveiro de Castro. Instigado pela prática, cria uma linha de fuga aos modos de subjetivação homogeneizantes do contemporâneo, apropriando-se da concepção de Regurgitofagia proposta pelo artista Michel Melamed. Possibilidades de vida experimentadas na pesquisa-intervenção, tanto para os índios Kaingángs, quanto para a Psicologia hoje.
Palavras chaves: Subjetividade – Índios Kaingáng – Cartografia
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Parecer da orientadora recomendando o presente trabalho de
conclusão de curso ao Prêmio Silvia Lane - ABEP
Indico o Trabalho de Conclusão de Curso em Psicologia da autora Bianca Sordi Stock, com o título “Encontros na cidade: a psicologia e os índios Kaingáng experimentando possibilidades de vida”, para concorrer ao Prêmio Silvia Lane 2007. Devido a alguns motivos que exponho a seguir.
O Trabalho apresenta consistência, pertinência e clareza tanto na definição
como no desenvolvimento do problema de investigação. O tema desenvolvido é atual, pouco trabalhado pela psicologia o que o torna de significativa relevância científica. O modo singular – falando desde sua implicação, com registros de fotos ou narrativas de cenas -, como a autora trabalha o seu objeto de estudo destaca-se na medida que suas idéias vão ganhando consistência, devido sua boa fundamentação conceitual e seu olhar inovador.
O texto é fluente, coerente e reflete a implicação da autora durante todo o
processo de elaboração tanto da experiência que provocou a escrita quanto da escrita propriamente dita. As fontes utilizadas são atuais não se restringindo à psicologia, mas inserem-se no campo contemporâneo de problematização psi pertinentemente. É perceptível no texto a compreensão, a postura crítica e a articulação da autora denotando sua apropriação da formação acadêmica.
Lígia Hecker Ferreira CRP07/3752
Professora do curso de Psicologia – UNISINOS Orientadora do presente trabalho de conclusão
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...Alma vai além de tudo que o nosso mundo ousa perceber casa cheia de coragem, vida
todo afeto que há no meu ser te quero ver, te quero ser
Alma...
Milton Nascimento - Änïmä
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..........................................................................................................06
1 DEVIR FORASTEIRO: O DISPARAR DE UMA VIDA...........................................11
1.1 Um corpo estranho na cidade.........................................................................16
1.2 Subjetivação coletiva e antropofagia ..............................................................19
1.3 Da urgência de políticas públicas ...................................................................26
2 O INÉDITO VIÁVEL DA PESQUISA-INTERVENÇÃO..........................................29
2.1 Um pouco de bulimia por favor... ...................................................................37
2.2 Extensos e intensos mapas............................................................................42
2.3 Outras imagens da cidade são possíveis .......................................................50
3 ENSAIOS DO SER: PSICÓLOGAS? ...................................................................56
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................59
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INTRODUÇÃO
“Escrever nada tem a ver com significar, mas com agrimensar, cartografar, mesmo que
sejam regiões ainda por vir” (Deleuze & Guattari, 1996b, p. 13)
Escrever, por vezes, encabula. As bochechas enrubescem, o coração palpita, o
suor escorre no corpo gelado, tudo silencia. Isso por que, por mais que neguemos,
escrevemos para ninguém ler, quando muito para nós mesmos. Ler é furto, quando
não um abuso. Deleuze, como ele mesmo afirmava, era prestimoso em fazer filhos
pelas costas dos autores, filhos monstruosos1.
Agora, sinto-me nua aos olhos de um leitor anônimo. Sabe-se lá o que farão
destas palavras...
Estas que já não são mais minhas.
Alívio. Sim, não sou mais eu que estou nua. Há uma desautoria da escrita na
leitura do outro. Pensando assim, talvez sejam estas palavras-imagens que deixem nu
o pensamento do leitor... Hum... Acho que enfim encontrei uma via de passagem para
este ensaio. Comecemos.
Só há enrubescer na escrita quando ela está amarrada com a vida. Este ensaio,
chamado assim por ser mesmo um ensaio de existências, se propõe a cartografar os
movimentos do desejo suscitados nos encontros que fiz com os índios Kaingáng na
cidade de Porto Alegre, durante a trajetória na graduação de Psicologia da UNISINOS.
1 “[...] Durante muito tempo ‘fiz’ história da filosofia [...] Eu me imaginava chegando pelas costas de um autor e lhe fazendo um filho monstruoso [...] era necessário que o filho fosse monstruoso, por que era preciso passar por toda espécie de descentramentos, deslizamentos, quebras, emissões secretas que causaram muito prazer.” (DELEUZE, 1990, apud ALLIÉZ, 2000, p.246)
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Encontros da ordem da extensão, pois desde 1998 acontecem, mas sobretudo da
ordem da intensidade2. Encontros que me carregaram (e ainda o fazem) para
mudanças no modo de ser, de pensar, de ensaiar o ser psicóloga.
A sorte de desfrutar de professores sensíveis e capazes, que nos componentes
curriculares ligados à Psicologia Social, Análise Institucional, Práticas Disciplinares,
Processos Grupais, Seminários Clínicos e de Pesquisa, desacomodavam e insistiam
para os estudantes irem além, foi fundamental. Pude alimentar-me de diversos
pensadores, mas, sobretudo da Filosofia da Diferença3 inaugurada por Deleuze &
Guattari. Decorrente disto, um dos vetores da vida que compõe este escrever são as
impressões nele contidas da experiência de uma aluna na proposta de um currículo de
graduação em Psicologia inovador, fundamentalmente por ser generalista e instigante.
Evidentemente, a graduação não se fez apenas das aulas formais e sim, povoada de
vivências em outros espaços com todas as relações saborosas ou não que delas
desencadeiam-se.
Para a cartografia partilhada neste ensaio, capturo o conceito de “encontro”
criado por Spinoza (1973) e ampliado por Deleuze (2002) para pensar a vida e a
clínica psicológica. Encontros que potencializam ou despotencializam os corpos.
Assim como os encontros com os Kaingáng e mais os outros corpos que os habitavam
e ainda estão por habitar, documentados ao longo dos anos em Diário de Campo,
fotografias, trabalhos acadêmicos, etc. Em especial, houve um específico momento
onde foi possível alargar ainda mais os corpos. Junto com mais três colegas da
graduação realizei uma pesquisa-intervenção em Psicologia com a comunidade
Kaingáng da Lomba do Pinheiro, na cidade de Porto Alegre / RS, em 2003, por seis
meses.
O ensaio remonta infielmente a trajetória até este momento especial. Uma rede
complexa onde joguei tinta de contraste para dar a ver algumas imagens: a cidade se
transmutando nos encontros, uma certa clínica com os índios Kaingáng, o coletivo
2 Ver o capítulo “O inédito viável da pesquisa - intervenção”, onde estão desenvolvidos os conceitos de extensão e intensidade na cartografia, segundo Deleuze (1997). 3 Gilles Deleuze e Félix Guatari inauguram com a sua obra a afirmação de uma filosofia da diferença , “na medida que ‘a filosofia é uma teoria das multiplicidades’ (...) Uma filosofia da diferença vital que apresenta o múltiplo como ser problemático por excelência, considerando o devir como a dimensão do vivo através da individuação, teatro de individuação do ser e do pensamento do devir vital”. (ALLIEZ, 2000, p 257, grifos do autor). A Psicologia social e institucional captura a filosofia da diferença e ainda se apropria de uma outra nominação para a prática analítica agenciada por este modo de subjetivar a filosofia, a qual a dupla chamou de esquizoanálise.
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Kaingáng no contemporâneo e no urbano, uma certa trajetória como estudante de
Psicologia. Enfim, acompanhar as intensidades dos movimentos do desejo em
diferentes espaços.
A organização cronológica dos encontros ao mesmo tempo em que foi uma
barreira para a escrita, na medida em que não dá conta em diversos momentos dos
jogos de intensidades atemporais do desejo, foi também organizadora para esta
parada que é o Trabalho de Conclusão. Um rearranjo interno da experiência em mim.
Entretanto, uma cronologia ilimitada, pois por todos os lados escapam da experiência
possibilidades de aprofundamentos conceituais, agenciamentos artísticos e teóricos,
idéias de intervenções. Projetos futuros para quem sabe outros espaços de estudo e
trabalho.
E por que índios? Resposta que não interessa. O que interessa é o como, no
sentido de “o que se passou?”. Como nos encontramos? Como nos apaixonamos?
Como escrevemos de várias maneiras, destes encontros em nossas existências?
Escrever com, com aquilo que nos dá vida. Um ensaio escrito nos acontecimentos,
onde as teorias por vezes se infiltram silenciosamente, por outras vem em socorro, ou
são abandonadas, ou ainda reinventadas. Cartografia. Esta é a tentativa, uma escrita
cartográfica como foi a cartografia-pesquisa-intervenção com os kaingángs.
Isto, de maneira alguma, refuta a potente (e exaustivamente utilizada durante
todo o processo) ferramenta da Análise de Implicação. Sem dúvida, uma psicologia
híbrida só foi possível de acontecer nos momentos onde insistimos em estourar com
uma suposta neutralidade e nos pensarmos nos encontros. O não saber responder da
pergunta “por que índios?” é uma fuga aquilo que tendemos reduzir, simplificar, tornar
útil. Há pretensões subliminares em um Trabalho de Conclusão de Curso que se
preocupa com um coletivo ainda pouco aproximado da Psicologia, e tão carente de
políticas públicas; não nego. Entretanto, o que vale à pena, é o desejo do ensaio,
ensaios de modos de subjetivação, tanto meu, quanto de meus colegas, mas mais
ainda do coletivo Kaingáng.
Encontrei ressonância dos movimentos de experimentação que os kaingángs
realizam no contemporâneo no conceito de subjetividade coletiva (GUATTARI;
ROLNIK, 1996) e subjetividade antropofágica de Suely Rolnik (1998), inspirados pelo
Movimento Antropofágico da década de 20, protagonizado por Oswald de Andrade. A
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autora pensa a antropofagia como um importante componente de subjetivação do
brasileiro e uma das hipóteses para a esquizoanálise ter tido terreno fértil no país.
Faço dialogar este conceito com o coletivo Kaingáng, cuja vivência ancestral de uma
antropofagia cultural em território brasileiro cria aberturas para virtualidades da ordem
do inédito. Ainda, os estudos antropológicos de Eduardo Viveiro de Castro (2002),
abrem conexões com o que o autor denomina ser a inconstância da alma selvagem,
traço marcante no convívio com os Kaingáng.
E como se atualizam estas forças no contemporâneo? Não escapando dos
processos de subjetivação massificadores do capitalismo os índios Kaingáng que
optam por viver no espaço urbano, são também atravessados por estas forças e
mudam a paisagem da Cidade Subjetiva (GUATTARI, 2000). E como reagem, se
submetem, criam e constroem um presente? Estas são algumas das problemáticas
que discuto neste ensaio e como o encontro com a psicologia pode ser linha de fuga
para ambos os corpos e invenção de outras imagens da cidade. Surge então a
alternativa da “regurgitofagia”, proposição ético-estética de resistência e criação do
artista e poeta Michel Melamed (2005) para problemáticas semelhantes no campo das
artes, cuja potência capturo como alternativa possível para as fugas da massificação
capitalística atuantes na Psicologia e na vida dos índios Kaingáng.
Diversos foram os dispositivos artísticos agenciados nesta cartografia. Durante
a escrita recupero alguns deles, como fotos, músicas, desenho, teatro. Ainda, há fotos
que nos carregam para os momentos onde aquela prática está sendo contada e
discutida teoricamente, onde uma não existe sem a outra: prática – produção teórica.
Por isso, as fotos, na versão impressa, em transparência e na versão digitalizada
compondo com o texto, sem a necessidade da obviedade de referenciá-las no mesmo.
Que não encerrem uma imagem, mas que abram outros universos virtuais para as
sensações durante a leitura.
Pela potência que possuem, acredito que me ajudam a dizer também sobre as
combinações éticas realizadas com os Kaingáng para a pesquisa-intervenção. Sendo
um campo novo para a Psicologia, as invenções partiram desde este nó conceitual. Os
movimentos decorrentes desta problemática são desenvolvidos durante o ensaio, mas
creio que cabe colocar que os contratos éticos são mais da ordem das palavras e do
compromisso corporal da presença, do que dos formulários. Adianto também, que as
imagens utilizadas no ensaio foram previamente autorizadas pela comunidade
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Kaingáng para trabalho acadêmico e os Kaingáng envolvidos na pesquisa-intervenção
não foram identificados, seus nomes são fictícios.
O primeiro capítulo, denominado “Devir-forasteiro: o disparar de uma vida”, é
de estranhamentos, pois remete as primeiras aproximações realizadas com o campo
analítico “Kaingáng na cidade”. Entre outros signos, somos levados por uma criança
Kaingáng a problematizar o vidro que nos separa da alteridade. Alguns conceitos
significativos são abertos pela necessidade da prática, como o de Encontro, Cidade
Subjetiva, Subjetividade Coletiva e Antropofágica, Clínica Ampliada além de uma
importante parada para levantar subsídios antropológicos, econômicos, culturais,
políticos e estéticos dos índios Kaingáng no urbano.
Posteriormente, no segundo capítulo - “O inédito viável da pesquisa-
intervenção” - entramos intimamente no campo analítico com a concretização da
intervenção na comunidade Kaingáng da Lomba do Pinheiro. Outras imagens da
cidade são criadas nos encontros sistemáticos, fazendo com que se atualizassem
conceitos como o de Inconstância da Alma Selvagem, Cartografia, Mapas, Grupo
Dispositivo e a Arte como potente dispositivo de fazer vibrar os corpos e produzir
novos sentidos.
Ao fim, “Ensaios do ser: Psicólogas?”, um suspiro dentro deste ensaio maior
chamado “Trabalho de Conclusão”, produzido durante o processo da intervenção em
2003. Considero-o como enunciado literário das transformações que uma experiência
como esta desenvolvida pode disparar na formação de psicólogos. A escrita impediu
conclusões finais devido ao risco eminente de se tornarem uma ilha incoerente e
estéril com a proposta cartográfica a que se propõe o ensaio.
“Não vê que isto aqui é como filho nascendo? Dói
Dor é vida exacerbada O processo dói
Vir-a-ser é uma lenta dor boa É o espreguiçamento amplo
até onde a pessoa pode se esticar.” Clarice Lispector (1973, p.69)
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1. DEVIR-FORASTEIRO: O DISPARAR DE UMA VIDA
Que imagens eram estas? Não lembrava de ter tirado tantas fotos de índios.
Índios na cidade?... Senti-me como uma estrangeira em minha própria terra natal,
diante da viva ancestralidade de meu povo. Estas foram as primeiras sensações
despertadas após um trabalho feito com fotografia para a faculdade. Fez lembrar-me,
quando pequena, a passear pelo centro de Porto alegre de mão com a minha avó. Via
aqueles índios e pensava que eles estarem ali era algo muito esquisito, pois aprendia
na escola que moravam em ocas, viviam pelados e eram felizes. Perdia-me na
desconexão da escola com a realidade. Agora, como psicóloga, percebo como nos
versos de Milton Nascimento4: Alguém que vi de passagem / Em uma cidade
estrangeira / Lembrou dos sonhos que eu tinha / E esqueci sobre a mesa.
Estranho.
Uma das fotos me fez lembrar desta
outra que eu guardava5...
A mulher índia, mãe leiteira... Tão
parecidas. Uma no mato, tomada de coragem e
esperança, quase bucólica. A outra?... Há algo
deslocado nesta cena. A repetição da diferença
singela, pequena e estridente ao mesmo tempo. A mulher índia no urbano carrega em 4 Versos da música “Um Gosto de Sol” - Composição: Milton Nascimento e Ronaldo Bastos. 5 A foto da esquerda é de autoria do grupo Realis Pictures / USA – índia Kayapó no Brasil, não identificada, s.d.
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si a ancestralidade da outra, porém algo no seu olhar se foi, se perdeu. O que faz esta
mulher na cidade? O que faz da cidade esta mulher?
Cidade de agenciamento de intensidades, afecções, de encontros e
desencontros, jogos de forças. Spinoza, em Ética III (1973) especialmente, trata do
tema das afecções abrindo, a partir de então, um vasto campo para pensarmos a
potência do corpo nos encontros. Ele diz: “Por afecções entendo as afecções do
corpo, pela qual a potência de agir desse corpo é aumentada ou diminuída, favorecida
ou entravada, assim como as idéias dessas afecções” (1973, p.178). Os encontros
alegres, ou bons encontros, longe de um reducionismo moralista, seriam aqueles que
fariam aumentar a potência do corpo, ao contrário dos encontros tristes, ou maus
encontros. Um jogo de forças que se produz no acontecimento dos encontros, onde
pressupõe a capacidade do corpo em afetar e ser afetado.
Por isso, um corpo vibrátil (ROLNIK, 1989) ou então, um CsO – Corpo sem
Órgãos , como propõe Deleuze e Guattari (1996b) inspirados em Artaud.
É nesse corpo que os encontros com o outro, não só humanos, geram intensidades que os autores definiram como ‘singularidades pré-individuais’ ou ‘proto-subjetivas’. Os agenciamentos de tais singularidades são exatamente aquilo que irá vazar dos contornos dos indivíduos, e que acaba levando a sua reconfiguração” (ROLNIK, 2000, p. 453)
A cidade como corpo subjetivo que subjetiva os sujeitos e os coletivos, uma
imensa máquina produtora de subjetividade e sentido, “onde se cruzam questões
econômicas, sociais, culturais” (FONSECA, 2003, p.256). Desta forma, “o porvir da
humanidade parece inseparável do devir urbano” (GUATARRI, 2000, p.170). Território
onde coexiste uma geografia, uma arqueologia, uma história, uma música e uma
genealogia6 do ser-sendo da cidade. Mais além,
pode ser pensada no sentido de uma obra de arte coletiva, visto ser o espaço não apenas organizado e instituído, mas também esculpido, apropriado por este ou aquele grupo. O urbano corresponde a uma forma de encontro e dispersão dos elementos da vida social: coisas, pessoas, signos. A cidade possui uma realidade espessa de sentidos relacionados aos seus habitantes. (FONSECA, 2003, p.256)
6 Genealogia é um conceito desenvolvido por Nietzsche, do qual Deleuze se apropria para fazer filosofia. A “característica mais elementar é o fato de ela se propor mais como uma geografia do que propriamente uma história, no sentido em que, para ela, o pensamento, não apenas e fundamentalmente do ponto de vista do conteúdo, mas de sua própria forma, em vez de constituir sistemas fechados, pressupõe eixos e orientações pelos quais se desenvolve. O que acarreta a exigência de considerá-lo não como história linear e progressiva, mas privilegiando a constituição de espaços, de tipos” (MACHADO, 1990, p. 09).
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Territórios, não apenas geográficos, mas sim, territórios existenciais. Falo de
uma Cidade Subjetiva (GUATARI, 2000), por qual se mostra corpo fecundo ao
profissional psi atento aos movimentos do desejo, que em todo o momento rompem e
criam novos territórios de existência, onde a produção de saúde/doença está
implicada. Algo escoa, vaza, foge do encontro do índio com o urbano. Qual a potência
desta fuga? Que índios são estes? O que a Psicologia tem a ver com isto?
Algo me afetou, estranhamentos que fizeram com que eu fosse adiante. Pensar
e se embrenhar nesta terra perdida dos índios no urbano foi, a partir de então, uma
escolha. Como sugere Barros (1994a, p. 425),
toda escolha tem uma história, melhor seria talvez dizer que toda escolha é uma história, porque ela é produzida por um conjunto de forças que faz irromper, num dado momento, a si mesma como escolha. Em verdade, se nos pensamos colhidos neste campo de forças, a escolha se faz em nós e nos constitui ao mesmo tempo em que a constituímos como escolha.
História, mas também genealogia. Encontros que deságuam em outros, sempre
na eminência de promover outros mais, ou de sucumbir. A clínica psicológica se faz de
escolhas e é viva se nos deixamos escolher. Nesta afecção que os índios fazem com
o passado da gente, iniciar esta viagem era como Marco Pólo (CALVINO, 2003, p.30)
pelas cidades imaginárias:
aquilo que ele procurava estava diante de si, e, mesmo que se tratasse de um passado, era um passado que mudava à medida que ele prosseguia a sua viagem, por que o passado do viajante muda de acordo com o itinerário realizado. Não o passado mais recente, mas um passado mais remoto. Ao chegar em uma nova cidade, o viajante reencontra um passado que não lembrava existir: a surpresa daquilo que você deixou de ser ou deixou de possuir revela-se nos lugares estranhos, não nos conhecidos.
O desafio então era fazer do cotidiano um lugar absolutamente novo de
possibilidades de existência. “Como sabemos, muitas vezes o que nos torna mais
próximo e íntimo, também é o que nos torna mais invisível” (FONSECA, s.d., p.02).
Souza (2003, p.64), citando Walter Benjamin, diz que “saber orientar-se em uma
cidade não significa muito, no entanto, perder-se em uma cidade requer instrução”.
Capturar o devir-forasteiro – “devir como soma do ser, ser sempre devir” (LINS, s.d.,
p.02), que questiona o que está dado, chega mais perto e se perde cada vez mais,
podendo encontrar novas saídas para os lugares onde se está. Quem melhor para
abrir-nos ao Fora, se não o forasteiro? Esgarçar um tanto do gargalo subjetivo da
clausura contemporânea (PELBART, 1989). A instrução para se perder e dar lugar
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para um outro campo de afecções, como sugere a imagem de Benjamim, vem com o
caminhar.
Inclusive, correndo-se o bem-vindo risco da produção de um outro passado,
uma outra história tanto minha, como dos outros corpos que surgem do encontro com
os índios. Pois há nesta história mal contada dos índios no Brasil, muitas outras
narrativas que merecem voz e estão para serem inventadas.
Para que possamos experimentar as sensações do que me proponho a discutir,
seguem-se recortes de Diários de Campo7 das primeiras observações e conversas
com os Kaingáng, cujas imagens às vezes falam mais que as divagações que as
seguem:
No ponto já tradicional da Praça da Alfândega, os índios espalham seus artesanatos pela rua. (...) Sentadas ao chão, seis mulheres cuidavam dos produtos e das crianças (...) Chamou-me a atenção que não falavam muito bem português, com um sotaque carregado de outra língua, provavelmente deveria ser o Kaingáng.
Em um primeiro momento rodei, rodei o lugar onde se encontravam para descobrir uma maneira de me aproximar que não fosse invasiva. Olhei os produtos e em silêncio me respondiam com um sorriso estreito, mas simpático. Então me aproximei e pedi permissão para passar aquela tarde com elas. Sutilmente não me autorizaram e pediram que eu as encontrasse no Brique da Redenção no Domingo.
(...) Me afastei, e fiquei a observá-las de longe, dentro de uma lanchonete próxima. A visão que possuíam de mim era mais restrita do que eu da delas.
O raio de afastamento das crianças de suas mães era pequeno, e aquilo parecia ser absolutamente natural. (...) em determinado momento as crianças notaram a minha presença e sorriram. Continuei a observá-las. Alteram a brincadeira, sendo mais sorridentes e brincando de se esconderem e aparecerem da minha visão. Chegaram perto do vidro que nos separava encostando a ponta de seus pequenos narizes nele. Pareciam que também desejavam me observar, ou chamar atenção. Olhavam desconfiadas para o que eu escrevia. De repente uma delas pegou um dos vidros que estava no tele-entulho e colocou em frente ao seu rosto e ficou a me fitar...
A menina. O vidro. O encontro. Potências vibrando e “o que era vidro se
quebrou”. Quebrou a linha dura de pensamento e transformou o vidro em signo,
arrastando-nos para um outro estado (ORLANDI, 2006). A menina cutuca com vara
7 Os diários de campo do capítulo “Devir-forasteiro: o dispara de uma vida” foram escritos por mim. Já os do capítulo “O inédito viável da pesquisa intervenção” foram escritos tanto por mim, quanto pelos demais colegas envolvidos na cartografia. Quando da descrição destes, o texto será marcado por recuo e borda na margem esquerda.
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curta a dureza das instituições em meu corpo: a Academia, a Psicologia, o “Branco”, o
Cientificismo. Escancara o vidro e faz enunciar algo do mal-estar contemporâneo,
questionando por que a Psicologia pouco escolheu e se fez escolher para as
populações indígenas até hoje. São pouquíssimos trabalhos publicados e apenas
recentemente o Conselho Federal de Psicologia está se propondo a olhar para esta
outra margem do Brasil.
Ainda, ela autoriza o olhar, diferente da cautela das mulheres com quem
primeiro conversei. Era como se ali estivesse já sendo feito um pedido de escuta, de
encontro. A curiosidade com o diferente, tanto minha quando dela estava abrindo
naquele momento um espaço possível para a troca, singelamente iniciada pela troca
de olhares. Um campo de virtualidades. Sentir que transborda o ser e se espalha para
o pensar, “obrigando o pensamento a pensar o impensável” (ORLANDI, 2006).
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1.1 UM CORPO ESTRANHO NA CIDADE
“Eu não sou da sua rua, eu não sou o seu vizinho eu moro muito longe, sozinho, estou aqui de passagem
este mundo não é meu, este mundo não é seu” Branco Mello e Arnaldo Antunes8
Atualmente, o Brasil conta com uma população de aproximadamente 350 mil
índios, falando em torno de 180 línguas, sendo mais de 245 etnias diferentes. Estes
números contrastam com o cenário que se tinha em 1500, onde havia por volta de três
a cinco milhões de índios no território nacional, em 970 etnias (COMIN, 2003). Mesmo
com dados insuficientes e controversos, pois se estima um número muito mais
elevado, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no censo 2000 aponta
que cerca de 52% moram nas metrópoles. Gente brasileira que ri, sofre, fica doente,
faz festa, trabalha, estuda, tem filhos, viaja, politizada ou não, quer saúde, educação,
renda e moradia. Mas, sobretudo, quer reconhecimento e autonomia (OLIVEIRA,
2001) na diversidade. Como aponta CAMPOS (2003, p. 02),
tal situação vem atraindo a atenção de outros segmentos sociais, e aumentando a pressão para que os índios urbanizados passem a integrar a pauta das políticas indigenistas do país. Um desafio para gestores e também para a sociedade que, em face desta recém-descoberta realidade, se vê obrigada a repensar seus conceitos sobre o que significa ser índio e sobre como estas populações devem ser tratadas.
Temos nos pés a cidade de Porto Alegre, capital do Estado do Rio Grande do
Sul, onde duas etnias indígenas organizadas estão compondo atualmente o cenário:
Guarani e Kaingáng. Diferentes entre si, o Guarani tem tradição pacífica e de
significativa religiosidade, além de outros tantos atravessamentos que neste ensaio
não serão abordados devido ao enfoque ser a comunidade Kaingáng. Por sua vez, o
Kaingáng9, é povo de tradição nômade, guerreiro e hostil – inclusive em relação a
outros grupos também Kaingáng - artesão e historicamente baseado na economia de
caça e coleta, além de insipientes plantações de milho (RIBEIRO, 1996).
Ser Kaingáng na contemporaneidade é viver em um mar de paradoxos e
ambigüidades, onde por um lado é possibilidade de criação, mas por outro de
aniquilação. Ocupam hoje a região sul, sendo um dos povos indígenas mais populosos 8 Versos da música “Eu não sou da sua rua”. 9 Historicamente, receberam diversas denominações: Bugres, Coroados, Socré, Shokléng, Kamé, Guainá (BEKER, 1995), Botocudos, Aweikomá (RIBEIRO, 1996). Atualmente, autodenominam-se Kaingáng.
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do Brasil, superando 20.000 pessoas espalhadas em cerca 25 áreas indígenas. No
Rio Grande do Sul há 14 áreas de demarcação kaingáng. A tradição oral prevalece e,
segundo a lingüista Ursula Wieseman (TORAL, 1997), existem cinco dialetos,
derivados do tronco lingüístico Jê, falados hoje pelas comunidades Kaingáng que se
embrenham em quatro Estados.
Todavia, algo intrigante acontece. Diferente dos outros coletivos que
historicamente ficaram à margem, aos quais se acompanham debates e discussões
políticas na imprensa e academia, sobre os índios no urbano pouco se fala. Que temor
há aí? Adotados pelo campo da antropologia que os cuidam como filhos, as outras
áreas do conhecimento parecem ainda tímidas para implicar-se com os índios no
urbano. Sociologia, medicina, economia, filosofia, arquitetura... Psicologia. Na
paisagem bucólica da floresta diversas produções acadêmicas se realizaram, porém
na paisagem urbana há silêncio, ou quem sabe apenas ruídos. Neste panorama, a
distinção do lugar onde o índio está e quer estar é fundamental, desvelando uma pista,
pois a presença no aqui agora suscita a implicação, compromisso e transformação das
áreas do conhecimento. Com os índios na cidade da gente, é complicado falar em
pesquisa sem intervenção.
A mais, percebemos no ar certo receio quando uma área do conhecimento que
não a antropologia se arrisca a discutir a problemática indígena. Este diz de um
“sentir-se devendo” à antropologia por seus inesgotáveis conhecimentos produzidos
com as populações indígenas, o que faz vigorar na maioria das vezes a omissão do
encontro, como, por exemplo, fez a Psicologia por tanto tempo. Afinal, o outro-índio é
emblematicamente outro.
Como derivações deste silêncio das ciências, temos um campo aberto para as
forças da intolerância atuarem, esta “fundada na impossibilidade de convívio do sujeito
e do grupo social com a diferença do outro. Tendo desta maneira como desenlace
inevitável a violência predatória do sujeito e grupo social” (BIRMAN, 1999, p.70). O
mundo hoje pode ainda favorecer a atualização destas forças, pois vivemos em “fluxos
variáveis, sem totalização possível em territórios demarcáveis, sem fronteiras estáveis,
em constantes rearranjos” (ROLNIK, 2006, p.01), dando-nos a sensação de estarmos
sempre um passo atrás: a velocidade das inovações tecnológicas, das transmissões
de informações, como também a efemeridade dos territórios de existência.
18
Cilada fácil para a prevalência do referencial identitário, pois
hoje acontecem nas subjetividades dois processos que correspondem a destinos opostos dessa insistência na referencia identitária em meio ao terremoto que transforma irreversivelmente a paisagem subjetiva: o enrijecimento de identidades locais e a ameaça de pulverização de toda e qualquer identidade. (ROLNIK, 1997, p.23)
Este, aliado a celeridade do mercado, apresenta a todo o momento uma nova
identidade para ser consumida prêt-à-porter, aplacando assim o desamparo das
desterritorializações absolutas. Nesta lógica, não há suspensão de sentido, um tempo
para tomarmos fôlego, e, portanto, não há criação, favorecendo o narcisismo. O
contemporâneo remete-nos a pensar que as tentativas de exterminação das
populações indígenas, advindas com a colonização européia nas Américas, toma
novas configurações e pode ganhar força. Lipovetsky (1983, p.60) nos alerta de como
pode se configurar a existência neste tempo de narcisismo:
Viver no presente, apenas no presente e não mais já em função do passado e do futuro, é esta perda de sentido da continuidade histórica, esta erosão do sentimento de pertença e uma sucessão de gerações enraizadas no passado e prolongando-se no futuro.
Para a Psicologia que se dedica à diferença, agenciada com o corpo
esquizoanalítico da Psicologia Social, configura-se um desafio, como na fala de
FONSECA (2006, p. 09) em um artigo sobre os índios:
Como, na posição de psicóloga social, encontrar um justo lugar de onde pudesse regular nosso olhar sobre os Guaranis? Como recorrer à extensa bibliografia, sem deixarmo-nos seduzir pela repetição discursiva, pela apresentação descritiva que, por sinal, face ao avançado estado da arte sobre o tema, sempre se tornaria muitíssimo parcial e fragmentária? Como entraríamos na questão proposta de forma a aproximá-la dos pressupostos de nosso campo de estudos? (...) Sim, sempre estivemos a tratar de nós próprios quando pensávamos tratar do outro, e, ao reverso, sempre estivemos com o outro quando pensávamos tratar a nós próprios.
Por sorte, “sempre escaparão afetos aos territórios, e isso, mais cedo ou mais
tarde, decreta o seu fim” (ROLNIK, 1989, p.50). Num olhar repleto de receio e
curiosidade, desconfiança e esperança, a menina Kaingáng por trás do vidro fez
escapar afetos. Que outros territórios de existência criarão a Psicologia Social e os
índios no urbano? Aproximemos-nos, então, um pouco mais para dar a compreender o
que faz desta gente um coletivo.
19
1.2 SUBJETIVAÇÃO COLETIVA E ANTROPOFAGIA
“De todas as mudanças de linguagem que o viajante deve enfrentar em terras longínquas, nenhuma se compara à que
se espera na cidade de Ipásia, por que a mudança não concerne às palavras, mas às coisas.”
Ítalo Calvino – Cidades Imaginárias
Duas crianças me chamaram a atenção em especial. Eram duas meninas que estavam mexendo em um tele-entulho em frente ao local da janela em que eu as observava. O tele-entulho estava realmente lotado de entulhos, como sapatos, papel, isopor, madeira e coisas em geral que as pessoas deixavam ali por não quererem mais. Nestas diversas coisas, possuíam algumas que considero perigosas, como vidros quebrados, moscas, pregos, tudo muito mal acomodado, prestes a cair. Porém, as meninas subiam e desciam daquele montante com uma destreza impressionante. Mexiam em tudo. Isto pode ser por elas terem uma intimidade com a rua e isso aos olhos delas sejam coisas das quais já saibam se proteger, como também não tenham noção do perigo que aquilo poderia causar. Constituía-se uma outra relação com o lixo, (...) as crianças brincavam com o lixo e quando não o queriam mais, jogavam no chão, produzindo mais lixo. Em segundos vem um funcionário do serviço público de limpeza urbana e recolhe a sujeira, quase de forma automática (...).As mulheres e crianças ficavam sentadas no chão perto de seus produtos. Ali comiam, brincavam, conversavam. Tudo o que se faz numa casa comum. A rua toma outra dimensão. Por estarem sentadas, e as crianças serem pequenas em estatura, parecia se formar outra cidade ali embaixo, não se relacionando em nada com aquela multidão de pessoas rápidas, sem nem olhar para baixo. A rua toma a dimensão de lar. Andar descalços, sentar no chão, tocá-lo. Parece bobagem, mas são coisas que realizadas por muitas pessoas causariam asco. Ali a relação era diferente. Pareciam muito à vontade.(...) As pessoas que passavam, pouco paravam para ver os seus produtos. Aliás, nem olhavam para as pessoas também. As Kaingáng eram como seres invisíveis. (...) As mulheres conversavam muito. Percebi que não eram como os outros vendedores ambulantes da zona que não paravam de gritar um segundo a propaganda de seus produtos, forçando as pessoas a comprar, muitas vezes sendo inconvenientes. Pelo contrário, estas mulheres não faziam nenhuma menção de publicidade. (...)
À medida que vamos conhecendo esta gente Kaingáng percebemos que, sim,
temos que enfrentar mudanças, como as em Ipásia. Em um primeiro momento
podemos até pensar que as mudanças se dão apenas referentes à linguagem, aquilo
que comunica no corpo-fala, corpo-olhar, corpo-escrita... Contudo, há uma dimensão
que ainda não é, e talvez nunca seja, algo que não tem nome, que está por vir, em
suspensão de sentido.
20
Falo de uma subjetivação coletiva. “A subjetividade é essencialmente fabricada
e modelada no registro do social” (GUATARI; ROLNIK, 1996, p. 31). Contudo, aqui se
apresenta uma individuação singular no campo subjetivo, do qual chamamos de
Kaingáng. O que faz liga para serem chamados assim? No que diferem e se
assemelham? O que os faz ser um coletivo individuado? Um atravessamento intenso
de composição da subjetividade que fabrica os sujeitos, a ponto do eu ser um eu-
multidão, eu-matilha (LINS, s.d). A coletividade que liga o ser Kaingáng é rizomática,
onde não se parte de um eu – “a grande raiz” (p.5) – mas um meio, de múltiplas
raízes, um entre dos seres. Este atravessamento pode ser observado em diversos
grupos sociais, minoritários ou até mesmo no sentimento de nação – somos todos
brasileiros. Nas sociedades ameríndias, todavia, há este caráter de afirmação do
coletivo e um coletivo que muitas vezes dilui o sujeito, se tornando assim um desafio
cabal ao atravessamento ocidental de afirmação de eu-narcísico.
Seria possível pensar uma clínica para esta singularidade? Este coletivo de
enunciação? Paulon (2004) propõe um adjetivar da clínica: Clínica Ampliada. Contudo,
alerta que mais do que pensar uma clínica que amplie seu campo de atuação, é
preciso que se amplie a clínica no que diz respeito à técnica e a própria concepção de
sujeito que as outras ampliações demandam. Uma clínica que se faz nos
acontecimentos. Ainda, seria “colocar o saber do analista a serviço da transformação,
da crítica e da construção de formas variadas de pensar/agir autonomamente”
(FERREIRA, 1998, p.16).
Os Diários de Campo evidenciam no modo de ser Kaingáng no urbano, um
outro modo de ser da cidade. Ela como coisa se modifica, transmuta na relação com
quem a usa e se apropria. O Kaingáng faz uma outra apropriação da cidade, singular e
intrigante, que não a do “branco”, seja ele o engravatado ou menino de rua.
Como moradores do mato (este é o significado do termo Kaingáng), sobem em
montes de tele-entulho como se subissem em árvores, deitam-se no chão da rua como
se deitassem em um verde gramado, andam com os pés descalços como se
estivessem sentindo a temperatura da terra. E não que não lhe faltem sapatos,
colchões ou até mesmo, brinquedos. Não é esta a questão. A cidade lhes é outra
coisa, ou ainda está por ser. Soa o espaço do entre. Uma tensão entre a
ancestralidade de subjetivação tribal no mato e o cinza gelado da cidade.
21
Por isso a opção neste ensaio de não denominá-los índios urbanos como fazem
algumas literaturas, e sim, índios no urbano. Entendendo índio como um componente
de subjetivação social significativo que compõe, inclusive, aqueles os quais chamamos
índios. Assim, tentando escapar o máximo possível de um grude identitário que a
própria designação “índio” incita e afirmando dois vetores: um coletivo que se organiza
neste nome e uma instituição índio que atravessa todos os corpos da rede social.
Deste estranhamento podemos recorrer a uma história e uma antropologia do
Kaingáng. A vida e os modos de subjetivar desta etnia foram sismicamente alterados
do que se passava nos séculos passados. O choque com a cultura ocidental e o
avanço da tutela federal sobre os povos indígenas, relegou uma cultura nômade e
coletora às cercanias das aldeias, espantando qualquer vestígio dos “selvagens” das
metrópoles econômicas. Da mesma maneira como por muitas décadas as cidades
foram palco de práticas higienistas em saúde, associadas a uma suposta neutralidade
das ciências, onde todo aquele diferente que de alguma forma pudesse desestabilizar
a ordem e progresso da nação era jogado à solidão do exílio, seja coletivo ou
individual. Os loucos, os leprosos, órfãos, artistas, revolucionários... e os índios.
Aos Kaingáng, resultou, entre outras realidades, uma dependência forçada da
“agricultura, hoje relativamente mecanizada, criação doméstica de animais e intensa
produção e venda de artesanatos” (TORAL, 1997, p.12). Além, da intimidação da
realização de rituais, ensino monolíngüe do português e interferência no regime de
autoridades tradicionais. As tentativas de esfacelamento da cultura Kaingáng foram
decisivas para o quadro de crônicas dificuldades econômicas de subsistência e,
sobretudo, a desvalorização do Kaingáng pelas outras culturas e por eles mesmos.
Contudo, os Kaingáng sempre carregaram consigo uma tangente
antropofágica10. Historicamente, por muito decorrente da subjetivação nômade,
capturavam em seus corpos vibráteis afectos, elementos, sons, objetos e modos de
ser das culturas ou lugares que encontravam. Os sítios arqueológicos evidenciam esta
prática, como por exemplo, no uso bastardo de porcelana portuguesa nos artesanatos
Kaingáng. Mas não como uma repetição imóvel e apenas deglutida sem critério, ou
mesmo ruminação ressentida. Pelo contrário, de uma maneira especial e na estética
10 Esta, não se refere à antropofagia no sentido literal de comer a carne do inimigo de guerra morto, como praticavam outros grupos étnicos ameríndios, pois os Kaingáng a ela eram avessos (BECKER, 1995). Fale-se aqui da antropofagia como metáfora e como atravessamento na subjetivação Kaingáng no encontro com o outro.
22
da criação, davam outros sentidos, lugares e destinos para as coisas do fora. O devir
lhe és próprio.
Com o retorno à cidade metrópole – sim, é retorno, pois Porto Alegre era um de
seus territórios ancestrais – não foi diferente. Ao irmos a um dos pontos de comércio
do artesanato Kaingáng, como no centro de Porto Alegre, percebemos que não há
colares, enfeites e objetos decorativos feitos apenas de palha ou sementes. Há corpos
estranhos: plásticos, metal, sintéticos. Entretanto, aos olhos do romântico, desavisado
e narcisista “não -índio” (se é que este termo é possível), estes índios já perderam
suas “verdadeiras” origens...
A antropofagia aqui, é muito mais do que apenas uma característica
antropológica. É sim, modo de subjetivação, cuja atualização ética pode ser uma
potente arma contra a homogeneização capitalística e globalizante do desejo para
qualquer indivíduo ou coletivo, seja ele os próprios Kaingáng, como também a
Psicologia. Rolnik (1998) desenvolve a idéia de uma subjetividade antropofágica
sendo vetor importante de subjetivação do brasileiro. Captura a antropofagia realizada
pelos índios Tupi, que, como nos Kaingáng com a produção artística e artesanal,
comiam o outro admirado a fim de potencializar no corpo vibrátil a intensidade gerada
no encontro da alteridade e assim serem mais.
No modernismo brasileiro da década de 20, Oswald de Andrade foi precursor da
apropriação da antropofagia na cartografia das estratégias do desejo, especialmente
no campo das artes, com o Movimento antropofágico. Todavia, mais do que isso, ele a
afirmava como saída possível contra a ditadura do referencial identitário que naquele
momento começava a se delinear e hoje impera no mundo globalizado. Os grupos
étnicos acabam por se deparar com o dilema da identidade, como anteriormente
expus, contudo,
o que se coloca para as subjetividades hoje não é a defesa de identidades locais contra identidades globais, nem tampouco da identidade em geral contra a pulverização; é a própria referência identitária que deve ser combatida, não em nome da pulverização (o fascínio niilista pelo caos), mas para dar lugar aos processos de singularização, de criação existencial, movidos pelo vento dos acontecimentos. Recolocado o problema nesses termos, reivindicar identidade pode ter o sentido conservador de resistência a embarcar em tais processos. (ROLNIK, 1997, p. 23)
23
A subjetivação antropofágica sugere uma mistura e uma transmutação de
sentidos afinados com o campo que nele atuam. Nós brasileiros seríamos portadores
de uma “Vacina antropofágica”, como designa o “Manifesto Antropofágico”.
A única “lei do antropófago”: “só me interessa o que não é meu”. A antropofagia
seria a nossa única liga enquanto brasileiros, “socialmente, economicamente,
filosoficamente”. Todavia, como os kaingángs estão fazendo funcionar o devir
antropofágico? Com que critérios estão a deglutir o fora? Igualmente as perguntas
valem para a Psicologia no país.
O contexto social em que se insere este recorte é muito diverso. (...) A quantidade de marginalizados é gritante. Muitos meninos e meninas sujos, magros de semblante mórbido passavam cheirando cola. Mendigos, indigentes e engravatados compunham o cenário. Acontecia o estranho de parecer que cada uma destas cenas não tinha relação entre si, tamanho o distanciamento das pessoas. Enxergavam-se, mas não olhavam. Ninguém muda a sua rotina em função do outro. (...) A miscigenação de cultura produzida neste recorte é impressionante. Uma delas é a língua. As crianças brincavam, as mulheres conversavam em uma língua que não era a oficial. Isto leva-nos a questionar o papel cultural protagonizado pelas Kaingángs de preservar um dos dialetos mais antigos e maternos daquele mesmo povo que caminhava ignorando e desconhecendo-as. Diversas vezes relatei que parecia não haver relação nas diversas configurações daquele espaço e daqueles desejos, mas quando aguçamos a sensibilidade percebemos que um implica o outro. Finas e firmes teias, que hoje a mim fica a dúvida de que encontros produzem. (...)
A clínica é parcial, insuficiente, recorte. Por isso, potência e saúde, finita-
ilimitada. Quando nos dispomos a intervir como psicólogos com uma população tão
singular, ancestral e historicamente do campo da antropologia como os índios
Kaingáng, os riscos de paralisarmos, por medo deste gigante desconhecido, é
eminente. Contudo, há alternativas se entendemos o caráter ético (pois não nos
fazemos donos da verdade, mas sim potencializadores de uma saber ferramenta) e
estético (pois há uma estética da prática clínica, de criação ou repetição) da condição
humana finita – ilimitada (ROLNIK, 1989, p. 54).
Como o Senhor Palomar de Ítalo Calvino (1994, p.30) na praia a observar o
movimento de uma onda, tentando isolá-lo dos demais. Ao perceber que este é
impossível, pois a onda está imbricada por outros movimentos de repuxo, força,
nascimento de onda, geografia da areia, e etc., Palomar se toma nervoso e deixa a
praia, tenso e despotencializado por não conseguir dar contra do infinito. No encontro
24
da psicologia com os índios, também não é viável o devir onipotente. Há que se
alternar os movimentos: por vezes caminhar na praia, outras mergulhar no mar, e
ainda, sentar-se em silêncio a contemplar, mas, sobretudo, entender-se parcial.
E por que não uma clínica com os Kaingáng? O que eles pensam sobre isto? O
que podemos juntos pensar? Fazer? Inventar?
- Oi, queria conversar contigo, eu sou estudante de... - Estudante? Ah! Tu és mais uma daquelas que vem tomar cafezinho nas costas dos índios? Todo mundo vem estudar o índio, mas ninguém fica para ajudar o índio!
É, esta gente Kaingáng raramente é hipócrita. A exploração colonial e a
apropriação utilitarista que a ciência faz deste atravessamento no encontro com os
povos indígenas, são marcas profundas e ressentidas. Para quem deseja o encontro
com o outro-índio a capacidade de se perder é realmente fundamental. Muitas vezes
somos capturados pelo devir-colonialista-vilão-culpado oferecido largamente pelos
Kaingáng, resultando em uma paralisação de nossos corpos. Em uma relação tão
marcada de exploração e dor, acreditar na possibilidade que um outro encontro é
possível, um encontro antropofágico, é o que por muitas vezes sustenta o
investimento.
Continuamos nossa conversa e o seu Silas, importante liderança Kaingáng, me
contou que estava descrente da Funai, que dava duro na produção de artesanato para
sustentar sua família e achava que a cultura Kaingáng estava se perdendo.
Guardavam a língua, a produção de artesanato e alguns outros costumes. Contei a ele
que estava interessada naquela história e gostaria de conhecer o lugar onde eles
moravam.
Chegando no local, periferia da cidade, os barracos de lona preta, amontoados
em um pequeno espaço de terra, contrastavam com o frio que fazia, além de
banhados por uma lama devido à falta de saneamento e água encanada. Para
podermos conversar, pediram-me que voltasse outro dia, quando o cacique estivesse
e trazendo um rancho de comida. No mesmo momento compreendi uma porção de
coisas. As pessoas criam estratégias de sobrevivência em meio à opressão. Cansados
de serem explorados pela academia, acharam algo para trocar. A economia de troca
os subjetiva ancestralmente, entretanto, agenciada com a exploração quinhentista e a
situação de miséria em que se encontrava, transformou seu significado. Um terreno
25
perigoso e cheio de ciladas capitalistas, quase oportunistas. Este fato ocorreu
novamente em um outro momento, quando chegada à concretização da intervenção,
onde o olharemos com lentes de aumento e cuidado. Evidentemente voltei e levei o
rancho, pois as rupturas nos territórios muitas vezes são lentas e naquele momento
estávamos apenas iniciando um proto-vínculo11. Entretanto é fundamental a
problematização: Que alimentos afectivos desejavam? De que ordem? Que alimentos
eu desejava? Como poderíamos nos alimentar? O que ofereceríamos de nós ao outro
como alimento? Aos poucos teria que mostrar que o meu desejo era o inverso, o
verso.
Aos domingos ia ao parque e ficávamos conversando, pois, mais do que
qualquer pretensão de pesquisa, mutuamente começávamos a gostar da presença um
do outro em nossa existência. Tomávamos chimarrão e falávamos da vida. Em tantas
conversas com esta gente Kaingáng, inesperadamente ganhamos, meu marido e eu,
uma pequenina afilhada, a convite de sua avó e sua mãe, ambas Kaingáng. Como
toda kaingáng, ganhou um segundo nome da língua, Cãfe: flor do mato. Sua mãe
contou-nos que o pai da menina era “branco”, causando a expulsão desta mãe da
comunidade, ficando a bebê aos cuidados da avó para que “não perdesse suas
origens”. Mesmo ajudando nas vendas aos domingos, a mãe de Cãfe, não morava
com a família, tendo uma relação conturbada com o seu pai, um dos líderes da
comunidade. A vida destas pessoas desnuda com um vigor impressionante toda a dor,
o sofrimento, a loucura, a resistência e a esperança de ser índio na cidade
contemporânea. Ficamos amigos desta família, que surpreendentemente nos acolheu
e nos trouxe literalmente para dentro do ser Kaingáng. Desde então, nossas prosas
não pararam mais.
11 Vínculo é entendido neste ensaio como “algo mais” que faz uma relação ser especial. Winnicott (1994) traz a imagem da relação mãe-bebê para pensarmos o que faz com que uma relação consiga despertar nos sujeitos a vontade de se desenvolverem e criar - o que entendo como “vontade de potência” nos termos nietzschianos. O alimento que a mãe dá ao bebê pode ser apenas automático e sem comunicação. É necessário que haja identificações cruzadas e assim se estabeleça a comunicação entre os corpos, gerando uma mutualidade, onde uma alimenta de afectos o outro. Penso que se cria uma memória-corpo, e com ela a vontade de que este bom encontro se repita na diferença.
26
1.3 DA URGÊNCIA DE POLÍTICAS PÚBLICAS
No ensejo da amizade e confiança que nascia, fui convidada pelos kaingángs
para acompanhar reuniões com a prefeitura de Porto Alegre, cuja discussão na época
era sobre um lugar para oficializar uma Área Indígena na Cidade. Iniciativa que fazia
frente a um sintoma dos gestores públicos atuais: a invizibilidade dos índios
urbanizados. Esta discussão é ampla e suscita diferentes olhares.
Iniciemos pela saúde mental, que no Brasil, devido à tutela federal a que as
populações indígenas estão submetidas, tem como responsável pela atenção à saúde
o órgão do governo federal chamado FUNASA – Fundação Nacional de Atenção à
Saúde. Pelos seus documentos, fica evidente a preocupação com questões ligadas à
saúde mental das populações indígenas, por outro lado, nos mesmos documentos
comprova-se a quase inexistência e ineficiência de ações afirmativas neste sentido.
Ainda, segundo a Assembléia legislativa do Estado do Rio Grande do Sul
(RELATÓRIO AZUL, 1999/1998), historicamente as populações indígenas reivindicam
ações afirmativas dos poderes públicos que dêem conta de sofrimentos de ordem
subjetiva. Contudo, há um grande problema hoje no que diz respeito à efetivação de
políticas públicas com populações indígenas no urbano, pois, fora dos aldeiamentos,
são como seres que inexistentes para os órgãos públicos.
A Fundação Nacional do Índio (FUNAI) se recusa a fornecer a carteira de
identidade indígena e o registro de nascimento indígena para aqueles que vivem na
cidade. Evidentemente, “definições em relação ao tema tornam-se cada vez mais
urgentes, devido inclusive ao crescimento de políticas de cotas e bolsas de estudo
para índios em concursos públicos e instituições de ensino” (CAMPOS, 2003, p.03).
Além disto, muitas vezes aqueles que têm a carteira de identidade indígena encontram
resistência de estabelecimentos comerciais, bancos, ou até mesmo acessar serviços
públicos, por questionarem a validade do documento.
Contudo, nas discussões com a prefeitura de Porto Alegre já se iam doze anos.
Recheadas de atrapalhações, soavam o entendimento por parte da Prefeitura de que
a consolidação da Área Indígena era um “problema a ser resolvido”, e que para tanto
estavam se esforçando, mesmo que desinformados, atrapalhados e autoritários. Era
27
evidente a infantilização, entendida aqui como uma forma de despotencialização, que
o poder público faz dos povos indígenas, desconsiderando e relegando para segundo
plano, atravessamentos culturais, políticos e religiosos que compõe estes grupos.
Naquele momento, os ouvidos estavam cerrados para pensar que talvez não
fosse a melhor alternativa cercar novamente os índios, estes que já haviam
conseguido romper com esta imposição social, saindo das aldeias no interior do
Estado e vindo para a cidade. Que algo eles estavam tentando dizer com este
movimento. Por outro lado, os índios eram seduzidos a ganharem cercas na cidade
em troca de terra, casa e reconhecimento social12.
Pouca voz eles tinham. Muito batalharam para a prefeitura entender que não
era possível, ao menos, fazer um loteamento único para Guarani e Kaingáng, povos
com divergências históricas. Mesmo hoje estando juntos, lado a lado, lutando por esta
especificidade e a obviedade que índio não é tudo a mesma coisa.
Enfim, em 2003, saiu a terra, a ser ocupada por 24 famílias Kaingáns. E qual
não foi a surpresa? Área de preservação ambiental, o que significa que nada pode ser
alterado e construído sem autorização da prefeitura, se não, configura-se crime
ambiental. Não é oficializada como aldeia indígena, mas sim comunidade, o que faz
com que a FUNASA, burocraticamente, não possa desenvolver nenhuma ação de
saneamento, ou de qualquer outra espécie. Para o Estado, índio só é índio se cercado
em aldeia, se não, é cidadão comum, o que fazia com que também experimentassem
a afirmativa de que
o sistema único de saúde nem sempre é acolhedor a essas pessoas. Num verdadeiro jogo de empurra-empurra, são comuns histórias de índios que não são atendidos nos postos do Sistema Único de Saúde (SUS), sob a alegação de que a responsabilidade seria da FUNASA – entidade que por sua vez tem como política não atender os índios na cidade (CAMPOS, 2003, p.03)
Entretanto, este é apenas o início. Nesta terra, periferia da cidade de Porto
Alegre, em uma zona alta e longínqua do centro, porém bastante povoada, viviam
famílias de “não-índios”, morando irregularmente, devido às ocupações. Para alojar os
Kaingáng, a prefeitura da cidade despejou estas famílias, gerando a revolta e
12 Os Kaingángs afirmam ter uma relação singular com a terra, sendo esta, importante agenciamento da
subjetivação coletiva. Terra que é mais do que lugar de habitação, mas também campo de afirmação da existência. Mais adiante poderemos ver como a subjetivação nômade se alia e dá sentido para esta fala, assim como, imprime na terra um território de existência, construindo outras imagens da cidade.
28
indignação de todos da redondeza, por que além de vizinhos, muitos ali eram parentes
dos que foram despejados. Irresponsavelmente, a prefeitura se retirou do conflito,
permitindo que os moradores locais projetassem todo ódio e indignação pelo despejo
nos Kaingáng, os quais chegaram sem muito saber o que estava acontecendo. Por
sua vez, com sua tradição de guerra, assumiram o conflito. Para ainda agravar a
situação, alguns moradores a prefeitura deixou a cargo dos próprios Kaingáng
despejarem.
Uma relação de alteridade, tolerância e respeito que começava a se construir
como cena da cidade, quando os Kaingáng ainda estavam espalhados pelo Bairro
Lomba do Pinheiro, foi abortada. As cercas ficaram ainda mais rígidas. As crianças
Kaingáng que antes iam a escolas regulares e começavam a causar estranhamento e
pressão para uma adaptação e invenção da escola frente as suas necessidades
específicas, principalmente quanto à língua, eram então ameaçadas e rechaçadas.
As redes de inclusão foram se empobrecendo, sendo que inclusive para pegar
um ônibus e ir até a venda já estava sendo complicado, devido à ameaça de violência
e desprezo dos moradores locais para com os Kaingáng. Sem falar de atos extremos
de violência, como por exemplo, confrontos armados entre vizinhos. Vemos aí atuação
de uma política governamental causando sofrimento e empobrecimento subjetivo, na
medida em que restringe e incita a violência entre os diferentes. A prefeitura de Porto
Alegre historicamente teve boas intenções, podemos chamar assim, quanto às
políticas de atenção ao índio. Contudo, evidenciou-se um constante despreparo e
irresponsabilidade para fazê-las acontecer.
29
2. O INÉDITO VIÁVEL DA PESQUISA-INTERVENÇÃO
“E não sabendo que era impossível, ele foi lá e fez”. (autor desconhecido)
Os anos e a intensidade dos encontros com os índios Kaingáng fez vibrar a
vontade de potência13 e a pesquisa desejou ser também intervenção. Abertura para
um encontro possível e híbrido da Psicologia com os índios Kaingáng. Uma Psicologia
para este acontecimento, um Psicólogo para este encontro, pois “se produzem sujeitos
em cada acontecimento, sujeitos para esse acontecimento, sujeitos variavelmente
protagonistas destes acontecimentos, ou se pode dizer, é o acontecimento que os
produz” (BAREMBLITT, 1996, p.50). Todavia, as conversas até então traçadas com a
comunidade, não deixavam de ser também intervenção e pesquisa.
Desta forma, mais do que uma metodologia irrompe um modo de ser psicólogo-
cartógrafo, gestado silenciosamente no estranhamento-índio. Pois, entende-se que a
teoria sempre vem depois, e agora faz sentido como nome, como constituição de um
território possível de referência para uma intervenção em Psicologia. Para o
cartógrafo “a teoria é sempre cartografia, ela se faz juntamente com as paisagens cuja
formação ele acompanha” (ROLNIK, 1989, p. 66), inclusive a própria teoria sobre a
cartografia.
Os índios Kaingáng não são mais os índios de 500 anos atrás, tampouco são
“brancos”. O que desejam ser? O que pode o corpo Kaingáng? A cartografia, segundo
Rolnik (1989, p.66), “diz respeito, fundamentalmente, às estratégias de formações do
desejo no campo social” e tudo aquilo que servir para dar vias de expressão e criação
de sentido é bem-vindo. Rouba-se o conceito de cartografia, que nas ciências da
geodésea é “considerada como a ciência e a arte de expressar, por meio de mapas e
cartas, o conhecimento da superfície terrestre” (SANTOS, 1989, p.02). O que significa,
fazer um mapa e deles uma carta cartográfica de um determinado território.
13 Vontade de Potência ou Vontade de Poder é um conceito de Nietzsche. “Onde encontrei ser vivente, lá encontrei vontade de poder. E este mistério segregou-me a própria vida: ‘Veja’, disse ela, ‘eu sou aquela que sempre tem de superar a si mesma’” (NIETZSCHE, 1989, p.74). É a criação para além-do-homem, para aquilo que o faça ser mais, mais devir, superando-se a si mesmo. A Vontade de Potência é enfraquecida ou anulada quando o ressentimento toma lugar e paralisa os corpos em uma repetição estéril do mesmo (GIACOIA, 2000).
30
Este território pode ser algo absolutamente novo, como na época das grandes
expedições com as cartas de navegação ou cartografias de terras inexploradas pelos
europeus. Ou ainda, um território já cartografado em algum momento, mas carente de
um novo mapa, pois sua paisagem se transformou. Para um bom cartógrafo, seu
mapa deve ser detalhado, contudo não poluído. Enfim servirá de ferramenta de
orientação para aqueles que desejarem embrenharem-se neste território por outros
motivos.
Na antiga cartografia não existiam as fotos aéreas hoje utilizadas, onde o macro
se sobrepõe ao micro e a implicação do cartógrafo é menor. Os croquis eram feitos à
mão, servindo-se muito da sensibilidade e escolhas do cartógrafo, que ia a campo
apenas com sua caneta, papel e bússola, cujo norte sempre o indicaria, quais fossem
as paisagens que encontrasse. Como se fosse sua ética, a única coisa da qual não
poderia se perder. Inclusive, para poder fazer seu mapa, era necessário que ele
tivesse em si a capacidade de se perder. E por fim, de volta à sua terra de origem,
realizava a arte final de seu efêmero mapa, pois sabia que pela mão do homem ou,
seja lá por que forças, logo este seria apenas uma lembrança de uma terra que já se
foi.
Ao pensarmos a cidade subjetiva e as formações do desejo atravessadas pelo
devir índio, entendemos subjetividade como algo que não é dado, “ela é objeto de
incansável produção que transborda o indivíduo por todos os lados. (...) Assim, as
figuras da subjetividade são, por princípio, efêmeras, e sua formação pressupõe
necessariamente agenciamentos coletivos e impessoais”, como aponta Rolnik (2000,
p.453), falando da concepção Guattari-Deleuzeana de subjetividade.
A cartografia quer saber que modos de subjetivação estão sendo possíveis no
corpo e como inventar outros. Reconfiguração dos mapas em seus trajetos e devires,
“essenciais à atividade psíquica” (DELEUZE, 1997, p.73). Mapas que por serem da
ordem do Corpo sem Órgãos, são, além de extensivos (trajetos), intensivos (devires).
A cartografia dos movimentos do desejo no encontro entre a Psicologia e os índios
Kaingángs que aqui se propõe partilhar, é extensiva por sua finitude, pelos trajetos que
aconteceram. De outra forma, também é intensiva pelos múltiplos devires que dela
puderam ser disparados e ainda podem acontecer, tanto da leitura deste ensaio,
quanto das evocações de um vivido que os corpos envolvidos puderem ainda
agenciar.
31
É o mapa de intensidade que distribui os afectos, cuja ligação e valência constituem a cada vez a imagem do corpo, imagem sempre remanejável ou transformável em função das constelações afetivas que a determinam. (...) É o devir que faz, do mínimo trajeto ou mesmo de uma imobilidade no mesmo lugar, uma viagem; é o trajeto que faz do imaginário um devir. Os dois mapas, dos trajetos e dos afectos, remetem um ao outro. (DELEUZE, 1997, p. 77)
Para então propor uma intervenção em Psicologia com a Comunidade Kaingáng
da Lomba do Pinheiro em Porto Alegre, formou-se um grupo de trabalho com outros
colegas da Psicologia14, além do suporte com supervisões regulares15. Cada um que
se envolveu, era muitos, possibilitando diálogos inusitados com as artes plásticas, a
fotografia, o masculino e o feminino, a música e outros tantos corpos. Pudemos
experimentar ser outras coisas, outros corpos inumanos. Um grupo potente,
inexperiente e fluido.
Assim, iniciamos as conversas com as autoridades da comunidade para a
concretização da intervenção, ocasionando com que experimentássemos a frustração
e o desafio de entender que o vínculo com a comunidade era algo a ser afirmado e
investido a todo o momento. Embora tivessem ali pessoas com quem já havíamos
construído uma amizade e envolvimento, no campo grupal estavam significativamente
marcados por experiências anteriores, onde, no devir-colonialista, roubavam-lhes os
conhecimentos, ou trocavam a preço de banana. Se por um lado estavam
interessados e empolgados com a proposta, percebendo-nos como portadores do
novo, também nos viam como portadores da opressão quinhentista.
Deixavam-se capturar tentando vender o que lhes era próprio pela permissão
de atuarmos na comunidade. O pagamento era levarmos camisetas para o time de
futebol da comunidade. Na medida em que desejamos um outro encontro, não
aceitamos a oferta. Diferente da primeira vez em que esta cena aconteceu como
anteriormente relatada, quando levei um rancho em troca de uma entrevista. Agora, já
nos sentíamos mais fortes para oferecer e sustentar uma outra troca. Aos poucos
fomos propondo um descobrir junto das outras possibilidades de vida a serem
trocadas.
Neste ensejo, as mulheres Kaingáng por diversas vezes foram as tradutoras do
sofrimento da comunidade. Se ao primeiro contato parecem silenciosas e tímidas,
14 Os imprescindíveis colegas foram Andréa Frick Duarte, Fabian Zanotto e Mayra Martins Redin. 15 As professoras que supervisionaram a pesquisa-intervenção durante as disciplinas que ministravam foram Lígia Hecker Ferreira, Simone Mainiere Paulon, Sandra Torossian e Rejane Czermack.
32
ocupam lugar decisivo na organização coletiva Kaingáng. Percebemos que são elas
que freqüentemente sustentam, fazem o holding16 da comunidade perante as
angústias dos novos modos de ser que nascem no território contemporâneo. Se os
homens assumem a frente das discussões políticas e deliberações com órgãos
públicos, por outro lado, as mulheres agenciam as demandas sociais da comunidade
com a mesma intensidade e são, muitas vezes, mais articuladas politicamente do que
os homens.
O que os eles denunciavam pelo alcoolismo e violência, elas nos diziam pela
palavra. Como na vez em que uma nos disse: - “Vou dizer para vocês como é que as
coisas realmente acontecem por aqui: vocês são brancos, e o Kaingáng é muito
desconfiado”. Éramos “brancos” em um tempo onde eles viviam um importante conflito
entre o modo-de-ser branco, o modo-de-ser Kaingáng e o medo e desejo de outras
possibilidades de ser. O falso dilema da identidade se atualizava neste campo e lutava
contra as forças de uma potente subjetivação antropofágica, pensada sob outra ótica,
na ótica do devir.
Ao analisarmos o campo que nos propomos a cartografar, segundo os seus
próprios termos, temos na hibridação do campo que encontraremos a sua maior
potência. Retomando, Rolnik (2000) traz a afirmação do inconsciente maquínico-
antropofágico na clínica como possibilidade de resistência e criação frente à ordem
globalizante das identidades. A antropofagia está para além das identidades, é avessa
a identidades. Os antropófagos são aquilo que os separa incessantemente de si
mesmos. Podemos dizer então, que a nossa escuta clínica nesta pesquisa-intervenção
estava comprometida em dar voz ao devir-antropofágico dos Kaingáng. Mas não só.
Também, ao devir-antropofágico do psicólogo. Como sustenta o antropofagismo
oswaldiano, “contra todos os importadores de consciência enlatada, a experiência
palpável da vida” (1990, p.48), “contra o gabinetismo, a prática culta da vida” (p. 42). A
psicologia amarrada com a vida, que só é na vida, e não nos gabinetes assépticos.
Se a antropofagia é um importante fator de subjetivação ameríndia, ela só o é
agenciada com o da inconstância. Segundo Castro (2002, p.187), “a inconstância é
uma constância da equação selvagem”. O autor vem ao encontro das sensações que
16 Winnicott (1994) utiliza o termo holding, para designar a sustentação física que a mãe deve fazer do seu bebê, sendo a maneira como esta o segura e o encaixa, acalmando em seu corpo. “Uma ampliação da palavra ‘sustentação’” (p.200). Neste sentido, sugere-se a metáfora de holding para outras situações onde seja necessário uma sustentação, um ambiente acolhedor para as angústias humanas.
33
experimentávamos, retomando desde relatos de padres jesuítas que tentavam
converter os ameríndios no início do século XVI, até o que ficou destas marcas hoje.
Há uma “alma selvagem” nos kaingángs e dialogar com ela é sempre um desafio para
a parte de “alma européia” que todos temos. Combinações e contratos são de outra
ordem, e a constância da presença fala muito mais que meros acertos burocráticos.
Assim, a inconstância
de fato corresponde a algo que se pode experimentar na convivência com muitas sociedades ameríndias, algo de indefinível a marcar o tom psicológico, não só de uma relação com o cardápio ocidental, mas também, e de um modo ainda mais difícil de analisar, de sua relação consigo mesmas, com suas próprias e ‘autênticas’ idéias e instituições. Por fim, e sobretudo, ela constitui um desafio cabal às concepções correntes de cultura, antropológicas ou leigas, e aos temas conexos de aculturação ou da mudança social, que dependem profundamente de um paradigma derivado das noções de crença e de conversão. (Castro, 2002, p.187)
A inconstância dos Kaingáng é também em relação à sua própria cultura. A
antropofagia transmuta de todo o ser e tudo o que o atravessa, ao deglutir os
elementos admirados do outro, este não se faz territorialização dura no ser
antropofágico. Assim como é comido, é expelido. Assim como é pensado, é
indispensável (CASTRO, 2002). “Nunca fomos catequizados”, afirma duas vezes
Oswald de Andrade no “Manifesto Antropófago” (1990, p.48 - 49). Desta maneira,
seguimos levantando questões: “O que muda quando o sujeito da ‘história’ não é mais
ocidental? Como se apresentam as narrativas de contato, resistência ou assimilação
do ponto de vista de grupos para os quais é a troca, não a identidade, o valor
fundamental a ser afirmado?” (CLIFFORDO, 1988, p. 34, apud CASTRO, 2002, p.
196)
Por mais que nos documentos oficiais era visível a demanda por profissionais
atentos à saúde mental, estávamos em um delicado território onde a Psicologia era
completa novidade. Neste sentido, a Análise Institucional (BAREMBLITT, 1992) ajuda-
nos a pensar que havia ali a necessidade de uma produção de oferta em Psicologia. E
o que tínhamos a ofertar? Tentávamos nos libertar dos resquícios de uma visão
romanceada dos índios, porém, mesmo que de forma sutil, ela ainda aparecia no
projeto inicial e sobre tudo nas expectativas narcísicas do nosso grupo. Embora, para
dar um início, seja ele qual fora, em primeiro lugar haveria de ter uma admiração
mútua, para assim a antropofagia, também mútua, acontecer.
34
Um caminho possível foi a poderosa ferramenta de trabalho da análise de
implicação do profissional psi, forçando a percepção de quais conexões, movimentos
institucionalizantes e instituintes vibravam nos corpos envolvidos na cartografia,
dizendo fundamentalmente da ética da pesquisa-intervenção. Pois, “se a análise de
implicação é a análise do compromisso sócio-econômico-político-libidinal que a equipe
interventora, consciente ou não, tem de sua tarefa, ela começa pela análise de
implicação existente na oferta, ou seja, na produção de demanda” (BAREMBLITT,
1992, p. 107).
Uma das vezes que chegamos para uma reunião na comunidade, marcada com
antecedência, em um dia sinistro e cinzento, sentimos a raiva e o ressentimento de
uma história de opressão projetada em nós. Com o cacique alcoolizado, assim como
outros jovens, por, aparentemente, não estarem “a fim” de nenhuma “visita”,
expulsaram-nos da comunidade. Isto causou a atuação inconsciente de fazermos o
hiato de duas semanas sem irmos à comunidade. Importantes analisadores17, cuja
análise possibilitou que voltássemos para não repetir, por mais raiva que nos habitava,
o abandono que eles denunciavam das práticas acadêmicas.
Isto nos remete a pensar na continência necessária para a constituição de
qualquer processo analítico, conceito explorado por Bion (1994), tendo Winnicot
(1990) também desenvolvido no entendimento de mãe suficientemente boa. O
psicólogo deve ter em si a capacidade de ser côncavo, de conter em si as angústias e
identificações projetivas do paciente. Contudo a continência não é uma posição dura
do analista, sendo apenas depositário dos conteúdos dos pacientes. Ela provoca uma
comunicação, pois os conteúdos não são mortos, eles possuem vida e fazem vibrar o
corpo do psicólogo, produzindo pontes entre ele e o paciente. Não apenas conter, mas
também dialogar, criar territórios de existência para intensidades flutuantes, como faz
a mãe suficientemente boa.
Processos que não ocorreram apenas nos momentos iniciais de combinações
da intervenção na comunidade, mas durante todo o caminhar desta cartografia.
Mesmo Freud já apontava esta capacidade do analista no próprio conceito de
übertragung (HANZ, 1996), embora muito do entendimento desta capacidade se
17 Entende-se analisador, como, “não apenas um fenômeno cuja função específica é exprimir,
manifestar, declarar, evidenciar, denunciar. Ele mesmo contém os elementos para se auto-entender, ou seja, para começar o processo de seu próprio esclarecimento” (BAREMBLITT, 1996, p.70)
35
perdeu no termo utilizado na tradução para o português: Transferência. Hanz aponta
para as idéias em alemão de “suportar”, “carregar”, “conter dentro de si” e ainda, que
“o termo em alemão carrega em si uma plasticidade, uma reversibilidade: aquilo que
se busca, traz e deposita pode ser levado de novo embora para outro lugar e outro
tempo” (p. 412).
Por outro lado, as crianças principalmente, traziam para o encontro a beleza e a
doçura de uma gente que estava aberta a acolher o outro. Depois de cada ida a
comunidade, as crianças Kaingáng nos presenteavam com buquês de flores colhidas
ali mesmo, parecendo afirmar toda a contradição presente neste cenário híbrido de
uma Cidade Subjetiva. Ainda, abria-se o diálogo entre a oferta que fazíamos de uma
constância continente pela presença e escuta, com a inconstância da subjetivação
ameríndia. Diálogo, não embate, por isso hibridação.
A nossa implicação possibilitou implicá-los aos poucos. Um tempo necessário e
criativo, inclusive porque “o abandono do escudo protetor formado pelas idéias
conhecidas deixa a pessoa e o grupo que o larga, expostos à força demolidora
(mesmo quando criativa) de idéia contida” (BION, 1994, p.169). A nosso ver, a
comunidade Kaingáng realizava um intenso movimento de ensaiar-se, pois estavam
tendo que aprender a viver em comunidade, compondo com os moldes de seus
antepassados, contudo atravessados profundamente pelos ideais de democracia
ocidental, e, evidentemente pela subjetivação capitalística.
Dos Kaingáng adultos vinha o pedido de “darmos um jeito” nos jovens que se
mostravam desinteressados de sua cultura ancestral e apresentavam problemas com
alcoolismo e gravidez na adolescência, tendo como saída apontada por eles ensaios
de músicas e danças tradicionais. Este dar um jeito nos parecia grudado a uma
repetição imóvel da cultura, com pouco espaço para criação e demonstrava a
preocupação dos adultos em relação à saúde física, orgânica e psicológica dos jovens,
mesmo que desta derivassem mais proibições do que possibilidades de produção de
saúde. Contudo, como afirma Paulon (s.d., p.02), “se temos algo a ofertar em
Psicologia – tal como a entendo, pelo menos – não há de ser a resposta pronta àquilo
que se apresentou como sintoma aos olhos do solicitante”.
Em especial, um kaingáng nos ajudou muito nestes contratos iniciais. Luis tinha
uma história de vida muito interessante. Nascido em uma aldeia de Nonoai, norte do
36
Rio Grande do Sul, recebeu auxílio de pessoas de fora da comunidade e resolveu
estudar, chegando a fazer o curso técnico agrícola. Uma pessoa muito doce, como
uma visão ímpar da situação da comunidade e da problemática indígena.
Por suas andanças, ao mesmo tempo em que tinha o respeito da comunidade,
recebia represálias por já ter se tornado mais “branco” do que deveria, aos olhos de
alguns líderes Kaingáng. Éramos recebidos em sua casa, com chimarrão e prosa. Sua
esposa, Arlete, também mostrava um outro entendimento da comunidade, sendo lá
uma liderança feminina fundamental. Luis e Arlete já estavam polidos no modo
“branco” de tratar das coisas, obviamente nos causando um pouco mais de abertura.
Sim, pois os Kaingáng expressam sem hipocrisia, com uma verdade crua no corpo,
aquilo que os agrada ou desagrada, ao mesmo tempo nos encantando e assustando.
37
2.1 UM POUCO DE BULIMIA POR FAVOR...
A partir do que conversamos com a comunidade, nossos desejos e
possibilidades, construímos a proposta de um grupo com jovens que se reuniria
semanalmente por seis meses, cujas atividades e temas seriam desenvolvidos à
medida que o grupo caminhava. Estratégia que nos dava outros vetores de escuta,
para assim entendermos o que demandavam os jovens Kaingáng para além da pedido
dos adultos, como descrito anteriormente, que insistentemente falavam por eles.
Buscamos então o olhar do grupo-dispositivo (BARROS, 1994b), e vimos que o
imprevisível é inerente aos processos, dando passagem às vibrações nos Corpo sem
Órgãos e a possibilidade de agenciamento de singularidades. Pensando assim,
A noção de dispositivo aponta para algo que faz funcionar, que aciona um processo de decomposição, que produz novos acontecimentos, que acentua a polivocidade dos componentes de subjetivação. O grupo assim produzido, como dispositivo analítico, poderá servir as descristalizações de lugares e papéis que o sujeito constrói e reconstrói em suas histórias. (BARROS, 1994b, p.15)
Para a primeira reunião, fomos de casa em casa convidá-los. O apoio de Luis
para este início foi imprescindível, dando, através do seu olhar, a confiança necessária
aos jovens para que participassem do primeiro encontro. Nestas visitas às casas,
fomos descobrindo gentes loirinhas, cheias de sardas no rosto; negros de cabelo
enroladinho. Alguns com traços de mistura étnica, mas outros muito diferentes daquela
fisionomia tão marcante que os Kaingáng tem. Uma complexa teia de configurações
vinculares, onde se evidenciavam significativos paradoxos e contradições. Às vezes,
uma destas pessoas pode ser considerada tão Kaingáng, quanto qualquer outra que
ali vive. Contudo, expulsam meninas que casam com brancos. Como também, não
aceitam namoro entre duas pessoas da mesma linhagem Kaingáng – Kamé e Kairu.
Neste panorama, corre-se o risco de cairmos na tentação de fazermos interpretações
reducionistas e despotencializadoras. Por mais que às vezes seja necessário entender
o porque de determinadas leis e exceções, cabe-nos ir além e perceber que
movimentos do desejo são agenciados nestas configurações.
O lugar onde a comunidade escolheu para o grupo acontecer ficava no centro
da área, ao lado do espaço maior de convivência deles: o campo de futebol. Se por
um lado ficava visível aos olhos desconfiados das famílias, por outro selava uma
38
confiança na proposta que ofertávamos. Embaixo de árvores, sentados em pedaços
de troncos de árvores, pôde-se criar um setting de intervenção.
A comunidade, com suas famílias, casebres de lona ou madeira, árvores e
cheiros, crianças, velhos, mulheres, homens, cachorros, tanques, roupas, carros
velhos, cercas, flores, sons, lixo, artesanatos, terra, língua, passou a ser o campo de
intervenção. O grupo era uma dobra daquele campo subjetivo.
Ainda, combinamos com as autoridades que o grupo seria aberto aos jovens.
Contudo, o que é jovem? Esta definição desenvolvimentista é historicamente datada e
pode ser clara – ou não – para uma sociedade ocidental europeizada. Nos primeiros
encontros foram chegando para participar crianças de 6, 7 anos, até jovens de 19
anos. Acontece que para os Kaingáng não era uma questão, algo relevante, a
delimitação da idade dos participantes do grupo. Isto fez com que parássemos para
sentir que outra cartografia estava se dando ali, onde a divisão entre infância,
adolescência e mundo adulto era outra. Desde muito pequenas as crianças Kaingáng
já realizam tarefas de gente grande. Por exemplo, traziam para o grupo outras
crianças que ajudavam a cuidar, tendo em alguns momentos inclusive a participação
de bebês. Algumas meninas de 14, 15 anos já eram mães. O que fomos percebendo
era que estava se formando um grupo onde a gente menor da comunidade desejava
que fosse um espaço para se expressar e conhecer - comer este outro “branco”
repleto de desejos.
A demanda levantada pelo grupo nos primeiros encontros ia de contramão
daquilo que os adultos traziam. Os mais velhos, de 16, 17 anos principalmente,
gostavam de beber, ouvir funk, dançar, ter roupinha da moda e namorar. Falava de
querer aprender inglês, capoeira, de ser jogador de futebol, modelo. Analisadores que
evocavam outras culturas e modos de ser, o outro admirado e desejado, a ser
deglutido, exigindo que estivéssemos dispostos a simular todos os territórios de
existência que o grupo conseguisse. Entretanto, denunciavam também algo de
excesso. Admiravam este outro, mas sentíamos que a seleção altamente crítica que
faziam os antropófagos, que faziam os Kaingáng daquilo que escolhiam deglutir do
ocidental e transformar na sua singularidade, como exemplo no artesanato, estava se
perdendo. Mesmo que correndo o risco de sermos moralistas, era visível um consumo
sem critério, estereotipado no uso de drogas lícitas e ilícitas, na predominância de
39
roupas, músicas e bens de consumo que atuam como homogeneizadores das
subjetividades.
O que propor então? Melamed (2005), ator, escritor e poeta, sensível para a
mesma problemática no campo das artes, faz uma leitura de vanguarda do
antropofagismo oswaldiano e cria uma linha de fuga para a ordem capitalística do
excesso:
Regurgitar: expelir, fazer sair (o que em uma cavidade está em excesso, principalmente no estômago)
Fagia: comer. Oswald de Andrade, no Manifesto Antropofágico de 1928, aludia à
deglutição do Bispo Sardinha pelos índios antropófagos, para propor que, inspirados neles, deglutíssemos as vanguardas européias a fim de criarmos uma arte genuinamente brasileira. E hoje? Continuamos a “deglutir vanguardas” ou tem-nos sido empurrada goela abaixo toda a sorte de informações? Conceitos? Produtos?
Em suma, o que fazer com a impossibilidade de assimilação, o estado de aceleração, a síndrome do excesso de informação (dataholics), os milhões de estímulos visuais, auditivos, diários, que crescem em ritmo diametralmente oposto a reflexão?
Regurgitofagia: “vomitar” os excessos a fim de avaliarmos o que de fato queremos redeglutir.
A ‘descoisificação’ do homem [...]. (p. 65 - 73, grifos do autor)
Uma bulimia vital, já apontada por Castro (2002) para o modo de ser dos
ameríndios. Não só os Kaingáng, mas também e inclusive nós como psicólogos que
propúnhamos a intervenção. O capitalismo sufoca a todos com o excesso de
informações e consumo, como também somos comida para este modo de subjetivar.
Era preciso que também estivéssemos dispostos a vomitar os nossos excessos,
excessos de ordem teórica, acadêmica.
O desprendimento para uma escuta extra-moral, saída para possível cilada que
o cenário sugeria, deu-se muito do quanto que nós, cartógrafos, conseguíamos nos
desterritorializar. Diversas vezes passamos por situações onde, inconscientemente,
reproduzíamos um ideal de grupo-tarefa e ao voltarmos para casa dar-nos conta de
nossa prática endurecida. Como sugere Morin (1999, p.26), corríamos
em direção de uma pesquisa aberta. (...) o problema que se coloca atualmente não é o de substituir a certeza pela incerteza, a separação pela inseparabilidade ou a lógica clássica por não sei o quê. Trata-se de saber como vamos dialogar entre a certeza e incerteza, separação e inseparabilidade, etc.
Pensado assim, requer uma plasticidade do profissional psi. Rolnik (1989) trata
deste tema apontando para o quanto que o cartógrafo consegue entrar em contato
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com o caráter finito – ilimitado da condição humana. Construir um setting, o que
demanda a postura ética do psicólogo, para ser possível dar espaço para o ilimitado
na clínica. Condições para dar passagem a múltiplos devires no entre do profissional
psi com o campo de análise.
Importante analisador neste sentido foi o uso da língua. Nós não falávamos
Kaingáng. Todos falavam o português. Eles falavam em Kaingáng por que é o traço
mais forte de sua cultura, o que significativamente lhes diferencia de qualquer outro
povo. Também porque não entediamos a língua e isto se estabelecia como um poder
sobre nós, como abertamente revelado por eles em um dos encontros. Evidentemente,
este nó foi de encontro a nossa onipotência de querer ter o controle do grupo e falava
de um instituído modelo de coordenação grupal. Mas também, falava-nos de uma
invisibilidade expressa no uso da língua materna. Por exemplo, na vez em que um de
nós pede silêncio devido à “borburinho” no grupo. A resposta vem na continuação da
conversa, só que trocando o idioma do português para o Kaingáng. Pareceu que em
kaingáng não eram escutados.
Desta forma chegamos a pensar que, para ser possível a intervenção ter-se-ia
que aprender a falar o Kaingáng. Mas não, o desafio que se apresentou e ainda é
questão, não é o psicólogo ser fluente na língua, tampouco os Kaingáng só falarem
português. Este é um falso problema. A questão é o quanto de plasticidade se
consegue no encontro com o diferente, sendo capaz de construir um presente híbrido
de muitas línguas e formas de expressão.
Os primeiros encontros do grupo foram no sentido de nos conhecermos mais,
sabermos ambos das expectativas para o trabalho. Utilizamos música e brincadeiras
dirigidas, quebrando o gelo com a gurizada, liberando os nossos corpos para o
encontro. Nós éramos quatro no grupo de trabalho, sendo três mulheres e um homem,
o que foi importante para as identificações dos meninos nas aproximações iniciais e a
participação deles no grupo, visto que as diferenças de papéis sociais por gênero são
significativo atravessamento para este coletivo.
A simulação de territórios de existência dizia de uma comunidade que há pouco
estava naquela área geográfica de história tão conturbada, de uma cidade que se
ensaiava acolhendo o índio, de uma psicologia para estes acontecimentos, de uma
gente que se ensaiavam no contemporâneo, para não dizer outras tantas
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configurações que este campo fértil era palco. Não apenas os participantes do grupo
eram atravessados pela intervenção que estávamos desenvolvendo.
42
2.2 EXTENSOS E INTENSOS MAPAS
“Algo me dirá, desta história misteriosa nascerá Não conheço estas paragens, que clarão
Me carrega, me empurra, desconcerta a razão [...] Vivo a vida com o laço da paixão, jogo o laço, pego o traço da paixão...”
Milton Nascimento18
Chegamos na comunidade por volta das 15 horas. Era um dia ensolarado, o que já havíamos percebido ser indício de um bom encontro. (...) A nossa proposta foi que eles fizessem em conjunto, sobre papel pardo e com tinta guache e pincel, um mapa da comunidade. Colocassem as casas, quem morava em tais casas, o campo de futebol, o espaço onde gostavam de dançar, etc. Deixamos livre para que eles pudessem pintar, naquele momento, o que achassem que deveria ter, como deveria ser ou então, como era para eles a comunidade. No começo desta atividade estávamos ansiosos e por isso não parávamos de sugerir e dar idéias, sendo que não conseguíamos ver ninguém parado pensando. Mas pudemos notar isso ainda durante este momento, o que nos fez recuar. Uma de nossas angústias era que eles pintassem o local de onde nós realizávamos o grupo, toda a segunda-feira. O que não aconteceu. A atividade nos pareceu muito envolvente. Crianças e jovens pareciam dialogar, o que talvez seja estranho para a nossa realidade, mas não
18 Versos da música “O Cavaleiro”.
43
para a deles, já que desde o início o grupo se configurou sem divisão de idades. Houve a participação de todos. Alguns chegaram depois, mas mesmo assim, aos poucos foram se inserindo na atividade. Enquanto pintavam, conversavam sobre o que estavam pintando, às vezes em português, outras em Kaingáng. Também as palavras escritas no mapa indicando os desenhos mesclavam a língua. Todo o espaço de papel que disponibilizamos foi ocupado. Começaram pelas bordas e pela delimitação da entrada na comunidade, aos pouco ocuparam todo o centro do papel com casa, o futuro posto de saúde, escola, campo de futebol (bem no centro), estradas, árvores e flores, cachorros e até episódios narrados, como por exemplo, uma criança desenhou um menino que havia sido atropelada, e outro quando caiu de uma árvore. Estavam muito empolgados. Um dos jovens sugeriu que o mapa fosse colocado na escola quando esta estivesse pronta. Também propuseram de apresentá-lo à comunidade.
Impregnados pela experiência da cartografia, a idéia de fazermos um mapa da
comunidade aconteceu durante os encontros. Subjetivados intimamente com a terra
que ocupam e com a cidade que os acolhe/exclui, os Kaingáng são pessoas da terra.
São gentes que se identificam pelo provisório lugar onde moram no momento,
relembremos que Kaingáng significa “morador do mato” e que carregam um
nomadismo ainda atuante. Guattari (1990) nos fala de três rubricas complementares: a
ecologia social, a ecologia mental e a ecologia ambiental. Seria extremante
reducionista e até, por que não violento, pensar o campo subjetivo indígena excluindo
algum destes três registros. A esta articulação ético-política, Guattari dá o nome de
ecosofia.
Apostamos na arte como dispositivo de vibração dos corpos, com as cores,
texturas e cheiros da tinta, do papel. Fazer dialogar, criar coletivamente.
A ecosofia mental, por sua vez, será levada a reinventar a relação do sujeito com o corpo, com o fantasma, com o tempo que passa, com os mistérios da vida e da morte. Ela será levada a procurar antídotos para a uniformização midiática e telemática, os conformismos da moda, as manipulações da opinião pela publicidade, pelas sondagens, etc. sua maneira de agir aproximar-se-á mais daquela do artista do quer a dos profissionais psi, sempre assombrados por ideal caduco de cientificidade. (GUATTARI, 1990, p. 16)
Por que não cartografarmos juntos? Agenciávamos junto o mapa geográfico e
subjetivo daquela recente comunidade que construía suas casas, lugares de trabalho
e convivência. Dando lugar para o que já estava lá, como a paisagem local, as cercas,
os barracos de lonas, as árvores e o campo de futebol. Abrindo lugares para o devir,
para o sonho, casas bonitas, posto de saúde, escola.
44
O mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre ele mesmo, ele o constrói. Ele contribui para a conexão dos campos, para o desbloqueio dos Corpos sem Órgãos, para a sua abertura máxima sobre um plano de consistência. Ele faz parte do rizoma. O mapa é aberto, é conectável em todas as dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Um mapa tem sempre muitas entradas, diferente do decalque que volta sempre ao mesmo. (DELEUZE; GUATARRI, 1996, p.22)
Junto, cartografávamos um campo subjetivo de lembranças, poderes, palavras
e coisas. Desejos de uma vida diferente, reconhecimento e invenção do território de
cada coisa naquela comunidade que estava se fazendo. Queríamos num furor
academicista que eles nos identificassem, que dissessem sim, vocês fazem parte
desta comunidade. Responderam com cautela, ainda não dando o lugar para este
acontecimento, deixando uma suspensão de sentido. Sim, já estávamos, nós
psicólogos, ali, no próprio fazer do mapa, nas tintas e riscos, nos trajetos e
intensidades do mapa. Entender isto não foi imediato, pois de início ainda nos
descobrimos duros por um modelo representacional de fazer psicologia. Ainda,
segundo Guattari (1990, p. 22), “o povo psi, para convergir nessa perspectiva com o
mundo da arte, se vê intimado a se desfazer de seus aventais brancos, a começar por
aqueles invisíveis que carrega na cabeça, em suas linguagens e suas maneiras de
ser”.
O mapa construído foi criação, transbordamento de vida. Por mais que
anteriormente ainda estávamos grudados em um modelo representacional,
caminhávamos para um campo problemático e o corpo foi “devir grávido de
acontecimento, o oposto da representação ou da imitação” (LINS, s.d., p. 14). A
pintura não encerrava uma imagem apenas, possibilitava sim a inauguração de
aberturas para a virtualidade. Inventaram lugares, falaram de lembranças
significativas, conversaram muito entre si e conosco. Um signo que fez sentido. A fala
do jovem ao final, sugerindo que o mapa fosse levado para a futura escola ou então
mostrado para comunidade, fez-nos perceber que aquela produção artística poderia
estar sendo via de expressão de sentimentos, medos, angústias, sonhos, alegrias que
eles, jovens e crianças sentiam, e que talvez estivessem soterradas pela ansiedade e
dureza dos adultos.
Queriam compartilhar com as suas gentes aquilo que o que lhes era próprio, um
fazer junto, uma vontade de potência. Ao mesmo tempo em que nos contavam como
era o seu jeito de ser, de viver, produzir, brincar e se relacionar, contavam e criavam
45
para si mesmos. Concordamos com Guattari (1990, p. 14) quando afirma que “A
juventude, embora esmagada nas relações econômicas dominantes que lhe conferem
um lugar cada vez mais precário, e mentalmente manipulada pela produção de
subjetividade coletiva da mídia, nem por isso deixa de desenvolver suas próprias
distâncias de singularização com relação à subjetividade normalizadora”.
Se para nós o campo subjetivo índio era algo completamente novo, para a
gurizada que trabalhávamos a cidade e aquela área que ocupavam também era.
Éramos muitos corpos tentando construir um presente, falar do encontro com muitos
diferentes. Quando entendemos esta demanda, a alteridade começou a se fazer e a
produção de saúde também. Ficaram mais envolvidos com o grupo que ali estava se
fazendo a cada segunda-feira. Uma cena foi marcante da relação de confiança que
crescia. Na reunião seguinte a esta, o pai de um dos jovens do grupo passa e fala algo
em Kaingáng muito bravo para o filho. Ele nos olha e diz em português: “Vou apanhar
hoje. Vou levar uma surra”. O jovem vai para casa e por algum tempo instaura-se um
gritante silêncio, até que os demais nos contam que a família daquele jovem é
evangélica e que por isso os pais dele não deixavam que participasse do grupo.
Impressionaram-nos três vetores. O primeiro, da ousadia do menino em querer
fazer algo diferente, em fazer uma linha de fuga (DELEUZE; GUATTARI, 1996b) para
a dureza daquele modo-de-ser que os pais lhe impunham. A outra, da importância
instituínte que eles estavam conseguindo fazer daquele grupo na comunidade, sendo
experimentação de devir. Por fim, o uso da língua, pois era a primeira vez que nos
traduziam algo de espontânea vontade, nos autorizando saber de suas intimidades, ao
mesmo tempo em que anunciavam o papel que estavam construindo ali para nós. Já
não era mais assunto de índio apenas. A partir daquele momento houve passagens
possíveis no grupo para falar e denunciar diversas formas de violência que estavam
vivendo.
Experimentamos no relatado de linhas acima algo que desejávamos no
encontro com os índios: potencializar as forças do corpo, do corpo antropófago, para
sermos mais e mais singulares. A alegria, quando há experimentação desta qualidade,
toma conta dos corpos e é ativada sugerindo a produção de outras idéias. É a
empolgação dos meninos e meninas ao pintar o mapa, é o desejo de partilhar aquilo
de belo que foram capazes de produzir. “Quando encontramos um corpo que convém
à nossa natureza e cuja relação se compõe com à nossa, diríamos que sua potência
46
se adiciona à nossa: as paixões que nos afetam são de alegria e nossa potência de
agir é ampliada e favorecida” (DELEUZE, 2002, p.34).
Evidentemente, como já relatado por diversas vezes neste ensaio, o encontro
com os índios Kaingáng não são sempre bons encontros. A visão romântica dos índios
é profundamente desmontada quando conhecemos os índios Kaingáng. Contudo, é só
a partir desta ruptura de território e a sustentação do estranhamento em nós, que se
faz possível uma Psicologia para este acontecimento.
Vamos ampliar a imagem. Onde estão os Kaingáng na cidade de Porto Alegre?
Este foi o mote do encontro seguinte e, repetindo a dose de tintas e papel pardo, a
proposta era pintar a cidade e a comunidade na cidade. Começaram pintando o
Gasômetro, o lago Guaíba, os monumentos mais importantes e parques. Mais uma
vez, inebriados de ansiedade, perguntávamos: “vocês não vão se pintar no mapa?” A
resposta era o silêncio, eles continuavam a fazer Porto Alegre. “Onde estão no mapa?
Pintem. Vocês não vão se pintar?”. Bom, os Kaingáng se pintaram. Sim, pintaram os
seus corpos, braços, pernas, mãos, barrigas. Devir inumano: eles eram o mapa. A
euforia era tanta, o tesão em criar, comunicar, alegrava-nos. A tinta virou contorno e
fluidez de um corpo nômade.
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Lins (s.d.) se põe a dialogar com os signos corporais dos ameríndios da
Amazônia. Povos que pintam, tatuam, marcam os seus corpos em um devir-artista na
estética da criação. Mais do que característica, é enunciação da potência de vida
destes povos em um devir-artista. Agenciado com a tradição oral, o corpo tela diz da
efemeridade, de um esquecimento em contraposição a função que legaram outros
povos à arte como pura documentação (representação). “A estética do esquecimento,
presente nos rituais e artes de alguns povos Ameríndios do Amazonas, atesta que o
esquecimento como arte, não é denegação da memória nem passado, mas
capacidade à transcender o tempo mediante uma a-temporalidade muitas vezes
simbólica” (LINS, s.d., p.01). Proposição que dialoga com a inconstância da alma
selvagem, trazida anteriormente.
Quando pintaram os seus corpos neste mapa que fizeram vazar, os Kaingáng
dizem de muitos atravessamentos. Podemos, por exemplo, pensar o que Daniel Lins
(s.d.) afirma ser “museu imaginário” pela prática de pintar o corpo que levam consigo.
A pintura corporal fala de uma “linguagem que é puro desejo, experimentação e não
túmulo do pensamento” (p.09). Diferente do modelo europeu de viver a expressão
artística, como afirma Castro (2002, p.195), sobre a diferença da arte e da
subjetivação ameríndia em relação à européia, a exemplo dos museus,
entendemos que toda a sociedade tende a preservar no seu próprio ser, e que a cultura é a forma reflexiva deste ser; pensamos que é necessário uma pressão violenta, maciça, para que ela se deforme e transforme. Mas, sobretudo, cremos que o ser de uma sociedade é seu perseverar: a memória e a tradição são o mármore identitário de que é feita a cultura. Estimamos, por fim que as sociedades que perderam sua tradição, não tem volta. Não há retroceder, a forma anterior foi ferida de morte; o máximo que se pode esperar é a emergência de um simulacro inautêntico de memória (...). Talvez, porém, para sociedades cujo (in)fundamento é a relação aos outros, não a coincidência consigo mesmas, nada disso faça o menor sentido.
Para os Ameríndios a arte como pintura do corpo não tem função de referência
pós-morte ela é para o presente, para intensidades. Se dela derivar uma história, é
acaso e não objetivo primeiro. Os Kaingáng faziam da pintura corporal comunicação,
quando nos seus rostos marcavam com urucum um círculo ou um traço, significando
respectivamente suas duas linhagens: Kamé e Kairu. “Uma espécie de geografia que
os localiza e os identifica em seu universo sócio-cultural: mostra-me teu corpo pintado,
tela andarilha, e direi de onde vens!” (LINS, s.d., p. 10, grifos do autor)
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Algo estava sendo comunicado e agido sobre o corpo naquela pintura e algo de
suas ancestralidade foi agenciando no encontro, dando sentido a outro
atravessamento Kaingáng: o nomadismo. Daniel Lins não aborda especificamente
neste artigo o nomadismo, mas joga as redes quando ao fim de seu artigo diz de um
corpo-terra que se faz no devir-artista dos Ameríndios. O nomadismo parece que nos
dá pistas do lugar que inventaram para si na cidade. Por um lado, podemos pensar
em um não-lugar pelo olhar da cidade. Esta não tem lugar para os índios. Ou melhor,
tem, mas não para o índio nômade. Os lugares que até hoje lhes foram dados foram
os dos museus, nomes de rua e monumentos. De nomadismo, talvez só os espíritos
que saem dos sambaquis enterrados em Porto Alegre, ancestral território de
passagem Kaingáng. A Cidade tenta dar um lugar para o índio “genérico”, mas um
lugar demarcado, cercado, encarcerado, se possível com ocas, gente pelada e lucro
como atração turística.
Na intervenção, ativou-se o CsO Kaingáng, podendo conosco dizer e agir no
corpo de um outro lugar que desejam para si e que é seu. Rompe-se com a visão de
polis (DELEUZE; GUATTARI, 1996a), cujo espaço é estriado – demarcado, codificado
- e afirma seu nomadismo como território de existência em um espaço liso – aberto a
tudo. Não é um não lugar, é sim um outro lugar. Um lugar que está no corpo, que é
localizado e não delimitado. “Para o nômade, ao contrário é a desterritorialização que
constitui sua relação com a terra, por isso ele se reterritorializa na própria
desterritorialização. É a terra que se desterritorializa ela mesma, de modo que o
nômade ai encontra um território. A terra deixa de ser terra, e tende a tornar-se
simples solo ou suporte” (DELEUZE; GUATTARI, 1996a, p.34).
Ao cercarem este corpo que se pinta e cria para si um devir-artista no devir-
inconstante-nômade-antropofágico, a civilização ocidental - que também faz morada
nos corpos Kaingáng - violenta-o e força a sua envergadura ao máximo. Quando
arrebentada, a doença, o sofrimento e a anulação da potência ganham lugar na
comunidade Kaingáng. Quando dotada de resistência e criação, a vida em diferentes
formas de expressão inventa possibilidades de ser, produzindo saúde.
Meses depois que já havíamos encerrado a intervenção, veio a notícia que um
grupo dos Kaingáng da Lomba do Pinheiro havia rachado com os demais e ocupado
uma área de mata nativa de Porto Alegre, localizada do outro lado da cidade,
chamada Morro do Osso. Uma linha de fuga para as cercas da cidade, cuja
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incomodação por esta não adaptação ficava explícita no tom ressentido com que os
jornais da cidade divulgaram o acontecimento.
Nesta ocupação desmantelaram uma ação criminosa da prefeitura, cuja
conseqüência era a venda de parte da área para um grande condomínio residencial.
Atualmente, conseguiram, após terem sido despejados, uma liminar do Ministério
Público que garante a permanência das famílias na área. Lutam agora pela
demarcação correta da área, pesquisas sobre os vestígios de passagem Kaingáng
que lá se encontram, e ações afirmativas dos órgãos públicas para as áreas da saúde,
direitos humanos, moradia, cultura e lazer.
A subjetivação Kaingáng é polifórmica e múltipla. Alguns de seus componentes
de subjetivação dialogam estreitamente com o que Deleuze e Guattari chamam de
máquina de guerra. Como a prevalência do espaço estriado da cidade dialoga com
uma subjetivação nômade, guerreira, antropofágica, artística e inconstante?
Entendemos que esta incomodação que os kaingángs fazem nas fronteiras da cidade
são um dos motivos pelo quais são poucos assistido pelo Estado, pouco investidos em
pesquisas e muitos menos em políticas públicas de atenção à saúde, cidadania e
direitos humanos. O índio na cidade incomoda. O índio Kaingáng, muito mais.
Todavia, é justamente esta subjetivação híbrida que pode os fazer
desreguladores da neurose da cidade, fazer imanar saúde na variação. Ela é forçada a
ser outra na exposição ao olhar Kaingáng. O que pode devir daí pudemos em parte
experimentar no encontro seguinte.
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2.3 OUTRAS IMAGENS DA CIDADE SÃO POSSÍVEIS
“Há uma ruptura no meu olhar por onde escoa a loucura” Peça Haloperidol 19
Forçávamos o pensamento em um campo problemático e este, por sua vez, nos
forçava a inventar. Como grupo de trabalho, pensamos em algo que fosse potente o
suficiente para potencializar a cartografia iniciada. E por que não o olhar? Corpo –
câmera, que achando estar retratando o mesmo, na fotografia se surpreende com o
obtuso (BARTHES, 1984). “Podemos pensar a fotografia, nesta cartografia, também
como tentativa, ou possibilidade, de um possível território, onde as tantas linhas, fios,
poros e pontas encontram uma morada, ainda que temporária, para suas tantas
possibilidades desejantes e temporais” (REDIN, 2005).
Levamos máquinas fotográficas e os ensinamos a manusear. Em pequenos
grupos, acompanhados por um de nós, os jovens e crianças Kaingáng foram
orientados a capturar na lente de seus afetos tudo o que desejassem na comunidade.
O que escaparia daquelas cercas? Estávamos com um vínculo muito especial com a
gurizada e literalmente nos entregamos em suas mãos. As máquinas e nós,
inconsciente-maquínico sendo escutado. Estavam (e nós também) tão empolgados
com os últimos encontros que qualquer idéia que trazíamos para o grupo eles
pegavam-na e a transformavam em outra coisa. Propuseram que as fotos deveriam
ser expostas junto aos mapas, pois era “o jeito que a gente tem de mostrar para os
nossos pais como a gente vê aqui”, nas palavras de um dos meninos. A cidade
podendo ser re-inventada, re-singularizada e re-experimentada pelo corpo de jovens e
crianças Kaingáng (GUATTARI, 2000). Logo espalharam a idéia para as famílias,
convidando-as para aquele ser o encerramento da intervenção.
Com as máquinas em punho, a gurizada ultrapassou qualquer pretensão mais
otimista que pudéssemos ter. Não sabíamos onde aquilo ia dar, entretanto
acompanhava-nos a certeza de que éramos coadjuvantes e que eles haviam se
produzido também como cartógrafos e mapas daquilo tudo que estavam vivendo com
a mudança para a área demarcada. O nosso desejo de cartografia agenciou o desejo
dos Kaingáng em serem cartógrafos, possibilitando que a nossa cartografia fosse
19 Trecho do texto da peça “Haloperidol” – Porto Alegre: Grupo Trupe do Morro, montagem 2006.
51
cartografia dos movimentos do desejo. A partir de então, fica para os kaingángs a
impressão que o psicólogo é o cartógrafo que ativa o devir-cartógrafo naqueles com
quem trabalha.
De início foram fotografando suas casas, suas gentes. Mais um pouco, algumas
façanhas, como subir em árvores, dançar, fazer caretas. Além, autorizaram-se a
romper as cercas. O nomadismo criou força e nos levaram à terras alheias onde,
surpreendentemente, haviam descoberto uma cachoeira e mata nativa em plena Porto
Alegre.
Estávamos um pouco assustados, pois sendo a terra de um vizinho que por
eles não tinha simpatia e usava de tiros para assustá-los, corríamos riscos. Confiamos
no grupo, talvez um pouco inconseqüentes, pois havia crianças pequenas junto com
os adolescentes. Mas o desejo e alegria de partilha eram maiores. Ficava clara a
também competência Kaingáng de extrair de onde se está e daquele com quem
encontra o seu melhor, para além da homogeneização capitalística que atualmente
agenciavam. Antropofagia cultural fazendo com que transformem e tomem para si a
52
paisagem onde vivem. As máquinas fotográficas em poucos instantes já eram deles, já
as tinham deglutido e transformado-as.
Durante as caminhadas um Kaingáng adulto acompanhou-nos por um tempo.
Enquanto conversávamos, outras nuances da cultura kaingáng começavam a
aparecer, até então veladas sob a cortina de que o único traço cultural que
reconheciam em si era a língua. Ele nos contou sobre umas ervas utilizadas pelos
antigos como contraceptivos femininos. Estavam em busca destas ervas que ao que
parece apenas uma índia do norte do Estado ainda sabia. Esta não queria revelar o
segredo pois havia entrado para uma religião evangélica que a proibia de falar.
Para além do choque que produz a interdição de morte que a tal religião produz,
o que surpreendeu-nos foi o desejo para nós revelado de buscar esta sabedoria.
Becker (1995) em seu livro sobre o Kaingáng no RS descreve estas ervas, cujo
consumo de seu preparado após a primeira menstruação em seguida ao nascimento
do filho, faziam com que a mulher não mais menstruasse até o nascimento do
próximo, sem que trouxesse malefícios ao corpo da mulher. Ainda, fala de outra
53
mistura tomada pelas índias Kaingáng de antigamente quando não queriam mais ter
filhos, esterilizando-as permanentemente.
No devir-índio, produziram híbridas imagens da cidade. Ao entrarmos na mata
fechada que haviam descoberto era como se voltássemos 400 anos atrás, entrando
em contato com uma ancestralidade nômade. Entretanto, ao abrirmos os olhos para
além do romantismo que a cena sugeria, víamos a tecnologia nas mãozinhas
pequenas e nos víamos como os interlocutores da vida que ali se produzia numa
criação do contemporâneo.
Marcamos o encerramento do trabalho com a sensação de um novo começo.
Como haviam sugerido, levamos material para uma exposição das fotos que haviam
tirado, expressão deste novo lugar que habitavam acompanhando os adultos. Todos
participaram da montagem do painel, curiosos para se verem no que escolheram para
ver através das lentes. Os mapas também foram pendurados nas árvores e fomos
todos organizando aquele espaço, onde por seis meses havíamos nos encontrado,
todas as semanas.
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As famílias foram chegando, olhares curiosos e faceiros em ver as casas, os
filhos, as cores naqueles recortes de papel. As mulheres e homens foram sentando-se
nos troncos, ficamos conversando. Uma delas trouxe os ingredientes, outro foi buscar
as folhas de palmeira, as crianças com as mãos cheias de fuá (erva gostosa feito
espinafre que ali mesmo haviam achado, aos nossos olhos, não mais do que capim).
Cozendo a conversa e a vida, presentearam-nos com um pão nas cinzas. Feito com
farinha de mandioca, água e outros condimentos, a índia de cabelos longos se
esmerava no capricho para trocar conosco aquilo que haviam de mais precioso e
vulnerável: sua cultura ancestral.
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Cozido nas cinzas da terra, no calor do solo para eles sagrado, efêmero da
existência. Sovado aos poucos, em cada encontro. Um fuá revelado como segredo ao
final, embora sempre estivesse ali. Ao tentarmos codificar o que mesmo fez com que
fosse possível aquela troca genuína, podemos estar sendo reducionistas e inclusive
desnecessários. Desconfiamos que houve um cuidado recíproco, uma regurgitofagia
coletiva: nós vomitando os excessos de psicologismos e os Kaingáng, os excessos de
capitalismo. Aliviados, escolhemos aquilo que do outro havia de melhor, admirado,
deixando para os urubus as carniças de preconceito, intolerância e clichês, deglutimos
uns aos outros e a alegria, nos termos de Espinoza, teve lugar. Pois, é
preciso retomar o corpo naquilo que lhe é mais próprio, sua dor no encontro com a exterioridade, sua condição de corpo afetado pelas forças do mundo. (...) um sujeito afetado, um corpo que sofre de suas afecções, de seus encontros, da alteridade que o atinge, da multidão de estímulos e excitação, que cabe a ele selecionar, evitar, escolher, acolher... para continuar a ser afetado, mais e melhor, o sujeito afetado precisa ficar atento às excitações que o afetam e filtrá-las, rejeitando aquelas que o ameaçam. A aptidão de um ser vivo de permanecer aberto à alteridade, ao novo, ao estrangeiro também depende da sua capacidade de evitar a violência que o destruiria. (PELBART, 2004, p. 45)
O que sentíamos era apenas uma simplicidade dos gestos, como se aquilo
fosse óbvio, natural. As famílias levaram as fotos consigo, ficando nós com os
negativos, como havíamos combinado. Nós, muito felizes pelo processo, mas
chateados por termos que ir embora. Tentamos inúmeras parcerias para a
continuidade o que resultou em um coroado de insucessos. Mesmo assim,
permanecemos tentando.
No afã narcisista, achávamos que por nós estarmos no tesão de continuar a
pesquisa - intervenção, também estariam eles sentindo nossa falta. É... Sempre faltará
plasticidade para o psicólogo ocidentalizado que se propõe ao encontro de grupos
indígenas. Trazendo novamente Castro (2002) a inconstância é sempre desafio para o
narcisismo. Dois meses depois do encerramento, fui à comunidade partilhar da minha
angústia pela dificuldade de firmar parcerias para um trabalho posterior em psicologia,
como havíamos parcialmente conversado. Se por um lado estavam mobilizados, por
outro: “Não se preocupe, o índio esquece rápido. Talvez esqueceremos até de você”,
falou uma das mulheres da comunidade.
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3. ENSAIOS DO SER: PSICÓLOGAS?20
A palavra que o silêncio exprime extravasa os ruídos do dentro do fora. Este
de dentro da gente que não quer calar, mas que só conseguimos ouvir quando tudo
em volta silencia lentamente, como a noite que acontece, e aparece a primeira estrela
no horizonte. Aprender esse silêncio foi e continua sendo um estado processual da
alma, instância de nossos afetos consumados na delícia dos acontecimentos. Delícia e
dor, lembra-nos Caetano Veloso: “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”.
Neste aprendizado de nos descobrir a cada dia, inventamos na trajetória do curso de
psicologia fazeres. Muitos. E que fazeres seriam estes? Desenrolar tramas de vida
enlaçadas, escutar sofrimentos e durezas, não só do tempo que nos atravessa, mas
da história que se vive nos corpos das gentes, promover encontros, desfazer os
fantasmas que enraízam medo e dor nos corações cansados.
Como um salto no escuro, também desvendamos os avessos, ingressamos
vertiginosos na entranha, e tentamos dar continência a tantos sentimentos.
Sentimentos que quase não se separam, é preciso o aproximar-se do espelho e sentir
no próprio corpo, que é corpo e que traduz, muitas vezes, o que a palavra cala. Uma
palavra que nem sempre acontece, como o falar do indígena do nosso tempo.
Pensamos nisso num exercício do duplo. De um duplo momento idealizado de uma
forma de vida que foi perdida, de sociedades comunitárias e auto-gestivas, num
mundo não industrial, e na fantasia nossa romântica, também não violento. Encarar a
outra face deste ser-índio contemporâneo, capitalista, destituído da viabilização da sua
cultura ou como de fato o encontramos, mal podendo dar suporte ao que restou de
seus antepassados, vivendo radicalmente o processo da exclusão que conhecemos
há tempos dessa América Latina. Os índios Kaingáng, seu traço estético, sua língua
preservada, e também uma rudeza que nos aproxima. Uma fala recostada: “o índio
Kaingáng difere do Guarani por parecer conosco (brancos) – é um povo de muitos
vícios”.
Compor essa história, reconhecer o terreno, delimitar os espaços. Uma
experimentação profissional esbarrada e ao mesmo tempo fluída no campo do inédito.
20 Ensaio produzido em conjunto por mim e pela colega Andréa Frick Duarte, também formanda em Psicologia pela UNISINOS, artista e uma das integrantes do grupo que realizou a pesquisa-intervenção com os índios Kaingángs.
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De um ainda não existir diálogo que acreditamos desde sempre possível: da psicologia
com o indígena, com essa parcela da nossa história, nós viajantes do Cosmo, nação
brasileira, do sul do país.
Retomamos as perguntas – que história seria essa, que possibilidade ou
impossibilidades teríamos pelo caminho? A resposta não é fácil. A vida não é fácil. Um
aproximado seria o imperativo: viver, experimentar, tentar, quantas vezes forem
necessárias. Por isso continuamos tentando.
As descobertas muitas desse encontro semanal, segundas-feiras
inesquecíveis/especiais a partir de agora. Um grupo de jovens e crianças, um irromper
na comunidade da Lomba do Pinheiro. Porto Alegre, Rio Grande do Sul.
Que índio é esse? Que branco é esse?
“Que índio que branco que preto o quê? Que índio que branco que preto o
quê? Somos inclassificáveis, somos inclassificáveis!” (Arnaldo Antunes)
Desconstrução total, de papéis, de saberes acadêmicos instituídos,
descobertas de um outro fazer ciência, de um outro ser psicólogo. Será, será, será?
Sempre dúvidas, cadê o manual, cartilha existencial? Para quê? Não tem! É tempo de
inventar. Perguntar escutar. E como compor uma linguagem numa língua que ainda
não se conhece? Talvez esse tenha sido nosso desafio, descobrir no devir psicólogo
também um devir artista – criar.
Aqui então inicia a nossa fala sobre o silêncio, brevemente incitada no início
deste nosso pensar. Que silêncio é este que insistimos? O que ele grita, ou melhor, o
que ele nos comunica? Quando a língua Kaingáng se torna uma defesa grupal e
quando o português pela via da oralidade da palavra de fato cala. Por quais outros
caminhos poderíamos trilhar? Antes de inventar a resposta, foi apenas necessário
afinar a escuta, ou ainda, despertar para uma nova escuta, um novo olhar, de novo,
nos re-aprender, nos re-configurar, nos repensar. Pois os índios Kaingáng diziam,
aliás, em altos brados: pela via do corpo, da tinta, da cor, da arte, da dança, da
música. Na sua singularidade de silenciar, um mundo outro de inúmeras possibilidades
foi possível. Aprender a conhecê-los ainda faz parte do processo.
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Processo este, que quer queimar. Fazer arder o corpo. Os nossos corpos.
Mas por que diabos fomos escolher ser psicólogos/as??? E ainda mais, ser psicólogo
assim... Estas paixões nos movem. No olhar daquelas que apóiam, que acreditam no
sonho. Que cutucam, perguntam, rompem e dizem: “vão além. Vocês podem!”.
Feminino afirmando-se como potência criadora, atravessando fronteiras.
É... O caminho se faz caminhando. O que haveremos nós de saber aonde
dará estas paragens? Foi acontecendo de entrarmos todos em reconhecer-nos. No
possibilitar que os índios se apresentassem para nós, estão eles apresentando-se a
eles próprios. Não para endurecer num ser. Tampouco para perceberem-se ser
nenhum. É sim, reconhecer a possibilidade de mutação, de afirmação de um sendo...
E nós? O que estamos sendo? Sendo pessoas... sendo humanos... sendo
psicólogos, psicólogas... sendo cartógrafas... sendo agenciamentos... sendo dor...
sendo encontro... sendo alegria... sendo mulheres... sendo, sendo, sendo... vento.
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