HVMANITAS - VOL. LIV (2002) 333-350
ANDRÉS POCINA Universidade de Granada
AS TRAGEDIAS DE SÉNECA, COMO MODELO DO TEATRO DOS JESUÍTAS: DOIS MODELOS,
DA ESPANHA Ε DA POLÓNIA
1. CONSIDERAÇÕES PRÉVIAS
De cada vez que novamente me aproximo das Tragédias de Séneca, mais sinto um temor profundo, a repetir coisas já ditas, lugares comuns, verdades convertidas em autênticos tópicos à força de se encontrarem em artigos, ensaios e livros do mais variegado teor; muito, com efeito, é o que se escreve e publica acerca deste interessante produto da Literatura Latina, desde há séculos, nos cantos mais afastados do planeta. Todavia, apesar de que não posso ser insensato ao ponto de pretender possuir um conhecimento exaustivo da indestrinçável selva da bibliografia sobre as tragédias senequia-nas, considero que nem há de estar tudo já dito, nem se há de conhecer de modo suficiente a significação delas, até o dia em que disponhamos de uma visão panorâmica da sua enorme importância na história do Teatro Universal, bem fundada e estabelecida sobre bases amplas e rigorosas; uma visão que, por suposto, não conheça fronteiras, e que abranja do momento da sua gestação até aos nossos dias.
A ambiciosa visão de conjunto assim desenhada, só poderá ser construída - tijolo trás tijolo - quando nos tivermos detido na consideração das múltiplas criações do teatro ocidental que, ao longo dos séculos, fazem remontar as suas origens aos dramas de Séneca. É esta uma empresa de alargados horizontes que será preciso realizar tendo sempre na mão o texto das Tragédias, enquanto observamos com atenção de que maneira, sobre os seus alicerces, se foram erguendo novas edificações, que se iam conformando aos gostos e às ideias de cada época. Para levar a termo tal tarefa, preciso será partirmos da premissa de que não nos achamos perante meras cópias nem plágios, mas ante novas elaborações de uma parcela específica, inserida num tudo contínuo que é o desenvolvimento histórico do teatro ocidental.
334 ANDRES POCINA
Muito bem sei que talvez me podia ter furtado a este longo excurso sobre coisas já bem conhecidas. Porém, o facto de levar mais de trinta anos dedicado ao estudo do Teatro Romano, labor que precisamente começou com uma investigação sobre as Tragédias de Séneca1, fez com que eu pudesse perceber com certa claridade a enorme significação que tão-somente trinta e seis dramas, escritos em latim, tiveram na História - são eles: as vinte e seis comédias de Plauto e Terêncio, e as nove tragédias de Séneca, às quais há que acrescentar a anónima pretexta Octavia. Aspecto este, ao qual, em múltiplas ocasiões, considero-que não lhe é concedida toda a atenção que ele mereceria.
Ao enfrentarmos estas questões, jamais poderemos esquecer que as tragédias, bem como as comédias latinas, que tiveram essa significação fundamental que venho de assinalar-vos, ao longo dos séculos, por sua vez eram uma reelaboração de dramas Gregos, sendo desta maneira como os dramaturgos Romanos, no seu jeito de se comportarem em relação aos seus modelos, traçaram, também, umas pautas de comportamento que se haviam de seguir nos tempos futuros, mesmo até os nossos dias. Momentos cimeiros no desenvolvimento do teatro dos países da România, bem como dos teatros dos Países Baixos e da Inglaterra, Alemanha, Polónia, Hungria, a Boémia e, através deles, dos teatros das duas Américas, afundam as suas raízes no par Plauto-Terêncio - de forma muito semelhante a como ambos os comedió-grafos fizeram, enraigados, por sua vez, nas criações dos cultores da comédia Néa Grega - e nos dramas de Séneca, que bebeu nos inesgotáveis mananciais dos trágicos Gregos, nomeadamente em Eurípides, o preferido nos ambientes Romanos3.
! Cf. A. Pocifia, Reflexiones políticas en las Tragedias de Séneca, Memoria de Licenciatura, Univ. de Salamanca, 1969 (ined.); "Una vez más sobre la representación de las tragedias de Séneca", Emérita 4! (1973) 297-308; "Finalidad político-didáctica de ias tragedias de Séneca", Emérita 44 (1976) 297-308.
2 Cf. J. Jacquot (ed.), Les tragedies de Sénèque et le théâtre de la Renaissance, Paris, C.N.R.S., 1964; K. A. Blnher, Séneca en Espana. Investigaciones sobre la recepción de Séneca en espana desde el siglo XIII hasta el siglo XVII, versión esp. de Juan Conde, Madrid, Ed. gredos, 1983 (ed. orig., Munchen, 1969); G. Braden, Renaissance tragedy and the Senecan tradition. Anger's privilege, New Haven - London, Yale Univ. Press, 1985; R. S. Miola, Shakespeare and Classical tragedy. The Influence of Séneca, Oxford, Clarendon Press, 1992; M. von Albrecht, Geschichte der rõmischen Literatur, Munchen, K. G. Saur Verlag, 1994, p. 948 s.; etc.
Cf. A. Pocifia, "Aspectos de la recepción de Eurípides en Roma", en J. V. Baíiuls et ai. (edd.), El teatre clàssic ai marc de la cultura grega i la seua pervivència dins la cultura Occidental, Bari, Levante editori, 1998, pp. 265-289.
AS TRAGEDIAS DE SÉNECA, COMO MODELO DO TEATRO 335
Isto que estou a sublinhar é coisa que convém repetir quantas vezes for preciso, e sobre a qual se deverá reflectir com rigor e seriedade. Antes do mais, é preciso perguntarmo-nos sobre a maneira como poderemos explicar o facto de que umas tragédias como as de Séneca, que, a partir da chegada -para elas, funesta - do Romantismo4 tantas vezes foram e são denegridas pelos seus excessos retóricos e argumentais, pelas suas deficiências dramáticas, o seu barroquismo, a sua pesadez, tenham sido interpretadas, apesar disso tudo, como modelo digno de emulação, todo ao longo dos tempos. Quando, nos séculos XVI e XVII, observamos, por exemplo, a construção, sobre o modelo das Tragédias de Séneca, de obras dramáticas da excelência de tantas de Shakespeare, ou as tragédias dos Jesuítas, das que mais adiante me ocuparei, não nos podemos conformar com a consideração simplista de que, faltando uma leitura assídua das obras de Esquilo, Sófocles e Eurípides, não ficou mais remédio, aos dramaturgos da altura, do que recorrer ao teatro do cordovês. Muito pelo contrário, havemos de chegar ao convencimento de que o filão dramático senequiano oferecia o material adequado a essas novas construções.
Suponho que estas precisões surpreenderão de maneira especial a aqueles estudiosos que, como no meu caso, pensam que as Tragédias de Séneca são um tipo de obra bastante questionável do ponto de vista da dra-maticidade, mercê ao facto de não terem sido concebidas pelo seu autor para ser representadas num cenário qualquer, mas antes, em todo caso, para ser recitadas, e, com total certeza, como obras de leitura, nunca, por tanto, passíveis de plena posta em cena5. Muito é o que se tem escrito e debatido acerca de tal questão, e quiçá haveremos de dar a razão a Michael von Albrecht, quando afirma que ela tem menos importância daquilo que à primeira vista poderia parecer , ou à sage interpretação de Florence Dupont, quem resume a questão a qualificar os dramas de Séneca com esta frase: "des tragedies desti-
Cf. E. Paratore, Storia dei teatro latino, Milano, Francesco Vallardi, 1957, p. 244.
5 Cf. espec. O. Zwierlein, Die Rezitationsdramen Senecas. Mit einem kritisch-exegetischen Anhang, Meinsenheim am Glan, Hain, 1966; A. Pocifia, "Una vez más sobre la representación de las tragedias de Séneca", Emérita 41 (1973) 297-308; L. Braun, "Sind Senecas Tragõdien Buhnenstiicken oder Rezitationsdramen?", RPL 5 (1982) 43-52; E. Fantham, Seneca's Troades: a Literary Introcduction with Text, Translation and Commentary, Princeton, Univ. Press, 1982; D. F. Sutton, Séneca on the Stage, Leiden, Brill, 1986; J. G. Fitch, "Playing Séneca?", en G. M. H. Harrison (ed.), Séneca in Performance, London, G. Duckworth, 2000, pp. 1-12; etc.
6 M. von Albrecht, Geschichte der rõmischen Literatur, cit, p. 937.
336 ANDRES POCINA
nées à la recitatio et donc jouables"7. Voltar a ressuscitar este tema equivaleria a deter-nos neste ponto e não passarmos mais adiante; há, portanto, que posicionar-se num ou noutro sentido. O meu posicionamento já foi defendido em ocasiões anteriores, e fica já exposto. Também convirá lembrar (embora só lembrar, sem nos determos na sua consideração) os importantes conteúdos ideológicos que nos apresentam as nove tragédias de tema mitológico, tantas vezes analisadas como espelho literário do estoicismo senequiano8. E, em último lugar, e embora não sendo uma teoria maioritariamente aceite, não quero esquecer a tese que defendi sempre, ao lado doutros autores9, segundo a qual nos encontraríamos perante um teatro de concepção e propósito didácticos, programado por Séneca como útil e apropriado meio de difusão ideológica, especialmente orientado ao adoutrinamento de Nero, sobretudo no que diz respeito a questões relativas a comportamentos de tipo moral e à arte de governar rectamente.
Partindo de uns semelhantes pressupostos, as Tragédias de Séneca pareceriam, em princípio, não ser capazes de oferecer-se como modelo precisamente cómodo, nem adequado, para a posterior criação doutras novas, quando consideradas do ponto de vista da construção dramática; no aspecto relativo aos conteúdos, perderiam bastante a respeito de possíveis receptores, devido ao seu excessivo pendor filosófico, de signo muito particular, e à sua orientação ad usum principis. Por isso tudo, quando chegamos a um tipo de obras dramáticas tão curioso e interessante como é o teatro dos Jesuítas, resulta surpreendente descobrir que precisamente são essas, as peculiaridades - por não as chamar de deficiências, ou inconvenientes - das Tragédias de Séneca que provavelmente terão motivado tão grande interesse por estas, e que as fizeram converter-se em modelo recorrente e fonte inesgotável de inspiração.
F. Dupont, Les monstres de Sénèque. Pour une dramaturgie de la tragedie romaine, Paris, Belin, 1995, p. 12.
8 Cf. B. M. Marti, "Seneca's Tragedies. A New Interpretation", TAPhA 76 (1945) 216-245; N. T. Pratt, "The Stoic Base of Senecan Drama", TAPhA 79 (1948) 1-11; C. G. Giardina, "Per un inquadramento dei teatro di Séneca nella cultura e nella società dei suo tempo", RCCM 6 (1964) 171-180; J. Dingel, Séneca und die Dichtung, Heildelberg, Winter, 1974; etc.
' Espec. Th. Birt, "Was hat Séneca mít seinem Tragõdien gewollt?", Neue Jahrb. 27 (1911) 336-364; A. Sippie, Der Staatsmeann und Dichter Séneca ais politischer Erzieher, Diss. Tiibingen, Wiirzburg, Trilsch, 1938; I. Lana, Lúcio Ânneo Séneca, Torino, Loescher, 1955; A. Pocifia, "Finalidad político-didáctica de las tragedias de Séneca", Emérita 44 (1976) 397-308; etc.
AS TRAGEDIAS DE SÉNECA, COMO MODELO DO TEATRO 337
Passo, pois, ao exame de dois exemplos representativos de duas maneiras distintas de construir dramas no teatro dos Jesuítas, tomando, como ponto de partida, quer uma só tragédia concreta, quer o conjunto das tragédias de Séneca.
2. O "LÚCIFER FURENS" DE PEDRO PABLO DE ACEVEDO
Um dos mais competentes estudiosos do teatro dos Jesuítas, Nigel Griffm, num breve mas enxundioso trabalho, publicado em Espanhol en 1975, sob o título - talvez ambicioso demais - "El teatro de los jesuítas; algunas sugerencias para su investigación", assinalava como conclusão principal do mesmo o seguinte:
"Es de esperar que, en vez de prestar demasiada atención ai estúdio literário de este fenómeno dei teatro de colégio - y ya nos amenazan algunos con cierto examen minucioso de la estilística y la métrica de estas piezas - alguien se dedique ai estúdio de los mismos elementos formales mediante los cualès la mayoría de los espectadores dei siglo XVI 'se ensenaban y deleitaban', y que dicho estúdio sea de carácter verdaderamente internacional"10.
Ao defender a necessidade de estudar, primordialmente, os elementos formais - termo com que se referia à música, gestos, vestes, a prodigiosa memória dos alunos actores, a nobreza e importância dos convidados, etc. -mais do que o aspecto literário, Griffm tinha in mente a então recente proposta doutra grande estudiosa, a professora Polonesa Lídia Winniczuk, quem, num congresso celebrado en Lovaína no ano 1971, salientara, como primeiro ponto de um programa de aspectos a investigar, a análise e estudo da métrica dos dramas de colégio. Nem por Griffm, nem por Winniczuk, parece-nos bom tomarmos partido, nem necessário será facê-lo quando já passou mais de um quarto de século desde a aparição de tais postulados. Quero porém lembrar que, no momento en que, tanto um como a outra, formulavam essas suas propostas, era assaz difícil o levá-las a termo, mercê sobretudo à grandíssima carência de edições, então existentes, das incontáveis obras dramáticas escritas pelos Jesuítas de todo o mundo, nomeadamente nos séculos XVI e XVII. As surpreendentemente amplas bibliografias publicadas pelo próprio Griffin
10 N. Griffin, "El teatro de los jesuítas: algunas sugerencias para su investigación". Filologia Moderna 54 (1975) 407-413, p. 412 s.
338 ANDRES POCÍNA
a partir de 1976" se deixavam clara alguma coisa, era ela que a lacuna maior que existia na investigação acerca deste teatro era, justamente, a referente às edições do mesmo.
Tal situação resultava especialmente penosa no que ao teatro jesuítico produzido na Espanha diz respeito: apenas há quatro anos que, graças ao labor de uma equipa de investigadores da Universidade Autónoma de Madrid, dirigido pelo Doutor Vicente Picón, podemos dispor do primeiro volume, com quatro obras, de Pedro Pablo de Acevedo12, provavelmente o principal representante deste tipo de teatro no meu país, e, sem lugar a dúvidas, o mais interessante. É no dito volume onde deparámos com a tragédia Lúcifer Furens, editada por Esperanza Torrego1'', obra que há de centrar, em primeiro lugar, a minha atenção.
Muito abundante e variegada foi a produção teatral de Pedro Pablo de Acevedo, jesuíta nascido em Toledo, em 1522, e morto em Madrid, em 1573, mas que exerceu o seu papel de professor de Gramática e Retórica, fundamentalmente, na "província" da Andaluzia - concretamente nos colégios de Córdova e Sevilha14. Os seus começos teatrais remontam-se ao ano 1555, consistindo, segundo ele próprio explica numa carta, numa adaptação da comédia Acolastus de G. Gnaphaeus, suprimindo "de ella, lo más comodamente que ser pudo, algún lugar que pudiera ofender la piedad de los oyentes", com a finalidade de a representar na festividade de São João no Colégio de Córdova ; um ano após, em 1556, encenará em idêntico lugar as duas primeiras obras que conservamos, neste caso, criação já dele próprio: a
Cf. N. Griffin, Jesuit School Drama: A Checklist of Criticai Literature, London, Grant & Cutler, 1976; Id., Id, Supplement No. 1, London, Graot & Cutler, 1986; cf. igualmente J. IJsewijn, Companion to Neo-Latin Studies, Amsterdam, North-Holland Publishing Company, 1977, pp. 277-287.
V. Picón (coord.), Teatro escolar latino dei s. XVI: La obra de Pedro Pablo de Acevedo S. /., /.• Lúcifer furens, Occasio, Philautus, Charopus, Madrid, Ediciones Clásicas, 1997.
13 V. Picón (coord.), Op. cit, pp. 45-119. Cf. J. Garcia Soriano, El teatro universitário y humanístico en Espana, estúdios
sobre el origen de nuestro arte dramático: con documentos, textos inéditos y un catálogo de antiguas comedias escolares, Toledo, Gómez Menor, 1945, pp. 45-81; O. E. Saa, El teatro escolar de los jesuítas: la obra dramática de Pedro Pablo de Acevedo (1522-1573), Doct. dissert., Tulane University (cf. Diss. Abstracts International 34, 2807A); A. Domingo Malbadi, La producción escénica dei Padre Pedro Pablo Acevedo. Un capítulo en la pedagodía dei latín de la Compartia de Jesus en el siglo XVI, tese de Doutoramento (1997), Salamanca, Ediciones Universidad de Salamanca, 2001; V. Picón (coord.), Teatro escolar..., cit., pp. 7-41; etc.
Cf. V. Picón (coord.), Teatro escolar..., cit., p. 15.
AS TRAGÉDIAS DE SÉNECA, COMO MODELO DO TEATRO 339
écloga In honorem divae Catherinae e a comédia Metanea . Posterior em alguns anos, é a tragédia Lúcifer Furens, que aparece datada, na Colecção de Cortes, no ano 1563.
Antes de entrarmos na comparação do Lúcifer Furens de Acevedo com o modelo de Séneca, convém salientar alguns aspectos deste drama, aos quais não poderemos prestar uma atenção pormenorizada nesta ocasião. Ele foi concebido para a sua representação, por motivo da festa da Epifania, segundo se fez constar no título:
TRAG<0>EDIA LVC1FER FVRENS in diem Circunciskmis Domini
Já desde o começo, verbos em primeira pessoa de plural (canimus no coro inicial, ad uos adducimus no prólogo argumentai, com o recurso ad spectatores), esclarecem de forma inquestionável que vamos assistir à representação de uma típica obra escolar jesuítica, quer dizer, a mais um dos incontáveis dramas que na altura eram representados nos colégios da Companhia ao longo da Europa toda, de Portugal e Espanha, à Polónia, Hungria ou Boémia17; um tipo de teatro cujo sentido soube definir magistralmente, em poucas palavras, M. Scaduto:
"Símile nelle sue origini alie altre forme di dramma scolastico, il cosiddetto teatro gesuitico fu il risultato di un impegno didattico, che aveva di mira un traguardo educativo e religioso insieme. La rappre-sentazione di un dramma tendeva ai profltto degli alunni che si esibi-vano come attori, e degli spettatori. Tuttavia, il grado di enfasi di questo mezzo visivo differenzia notevolmente il dramma gesuitico da qualsiasi altra forma di spettacolo scolastico nella misura in cui conta sul potere di persuasione delia parola viva"18.
Pelo que à língua do Lúcifer Furens diz respeito, haveremos de dizer que estamos perante uma das raras peças do teatro jesuítico Espanhol escrita em latim na sua integridade, sem mais excepção do que os quatro versos
16 Cf. M. Molina, "El teatro de los jesuítas en la Província de Andaiucía: nuevos datos para su estúdio", in J. M?. Maestre Maestre e J. Pascual Barea (edd.), Humanismo y pervivencia dei mundo clásico I, Cádiz, Universidad, pp. 643-654, p. 650.
17 Cf. S. D'Amico, "Gesuiti, teatro dei", in Enciclopédia dello spettacolo fondata da Silvio d'Amico, Roma, Casa Editrice Le Maschere, 1975, vol. V, pp. 1159-1179.
18 M. Scaduto, "II teatro gesuitico", Arch. Hist. Societ. Iesu 36 (1976) 194-215, p. 194.
^m
3-iO ANDRES POCINA
finais com que a tragédia remata: neste aspecto, o nosso autor e a sua obra
resultam assaz originais, visto que o teatro de colégio escrito em Espanha
utiliza a língua nacional muitíssimo mais do que o feito noutros países, como
o Português, o Francês ou o Alemão. O próprio Acevedo não abdica do
recurso a usar as duas línguas, simultaneamente, numa mesma obra: por
exemplo, a comédia Ocassio tem cinco compridas séries de versos em caste
lhano, que perfazem um total de 675 versos nesta língua. Por sua parte, na
comédia Philautus, no Prólogo, representado pela personagem abstracta de
Timor, depois de nos contar o argumento da comédia em prossa Latina, sus
peita que existam muitas pessoas, no meio do público, que não compreendam
a língua antiga, razão pela qual ele repetirá os mesmos conteúdos em cento e
dez versos em Castelhano, língua que ele qualifica de materna {nunc, quia
bonam partem uestrum nescire arbitror Latine, quae dixi materna língua
eloquar, p. 330). Na comédia Charopus, enfim, para além de se repetir esta
solução de se nos oferecer um duplo argumento, primeiro em latim e depois
em Castelhano, entremeiam-se, logo após, no desenvolvimento do texto
Latino, um argumento em treze versos Castelhanos antes do Acto II, e um
outro, semelhante, em quinze versos, antes do Acto III.
N o que à forma se refere, é ao nosso caro colega Manuel Molina
Sánchez que devemos o especial relevo dado a uma notável peculiaridade do
teatro jesuítico de Espanha, e que consiste na preferente utilização, nele visí
vel, da prosa; é assim que este professor explica o facto num seu recentíssimo
trabalho:
"En cuanto ai verso, frente a las tragedias y comedias alemanas
o portuguesas compuestas en los metros dei drama clásico, exceptuando
la ludithis tragoedia [...], no hay en el domínio espanol otra obra escrita
integramente en verso latino; es más, cuando los autores se deciden a
hacer uso de este, lo hacen muy de pasada, sin apenas variedad y sin un
cierto critério específico. En contrapartida, son abundantes los versos
casteilanos ensayados, de ahí el interés suscitado por este teatro entre
los filólogos hispanistas ,19
Tais asserções vêem-se confirmadas no Lúcifer Furem, tragédia em que
a presença do metro é bem pequena, e reduzida às passagens seguintes,
segundo o próprio Molina Sánchez as estabeleceu20 - assim figuram no texto
19 M. Molina Sánchez, "La ludithis tragoedia: reflexiones sobre el uso de las formas métricas [atinas en el teatro jeruita espanol", in J. Luque (ed.). Estúdios de métrica latina, Granada, Universidad, pp. 631-651, p. 638.
20 Op. cit.,p. 640)
AS TRAGEDIAS DE SÉNECA, COMO MODELO DO TEATRO 341
de Esperanza Torrego: 4 estrofes sáficas no Preâmbulo (p. 64); 34 dísticos elegíacos em IV. I (pp. 92-96); 6 estrofes ambrosianas em IV.3 (pp. 102-104); 5 dímetros iâmbicos acatalécticos em V.2 (p. 114); adónios, em 5 séries de 6+6+7+8+5 versos, em V.2 (pp. 114-116). Resulta, portanto, um total de cento e quarenta e cinco versos, distribuídos de jeito irregular na obra, e corri uma relativa variedade. Apesar do qual, o remarcável predomínio da prosa é óbvio, facto este que, em certo modo, determinará as características do influxo aqui exercido pelos versos de Séneca.
Passemos agora, portanto, ao tratamento deste aspecto. Para começar, convém advertirmos que, muito embora o grande influxo de Séneca seja com muita frequência salientado nos trabalhos dedicados ao estudo do teatro jesuítico, sobretudo nas obras que se podem denominar tragédias, porém, neste senso, mal existem aportações específicas: excepcionais são, por exemplo, um artigo de Lídia Winniczuk sobre a imitação de Séneca nas tragédias do Polaco Gregorius Cnapius", e, no referente ao nosso Lúcifer Furem, um estudo publicado pela sua editora, Esperanza Torrego, que incide, de forma acertada -embora muito breve - em vários aspectos dos quais não teremos o ensejo de nos ocupar nestas páginas22.
Bom conhecedor, sem dúvida, das tragédias de Séneca, torna-se claro que para Acevedo o motivo inspirador, num começo, do seu Lúcifer Furem foi o Hercules Furem do cordovês, obra à qual se refere, abertamente, nas últimas frases do argumento: Furentem sibi quaerant Herculem: nos satis esse duximus cum tenero infante balbutire eiusque laudes per adolescentes hos ingénuos decantare (p. 66). Nestas frases fica encerrado todo um programa de actuação, em que o autor assinala o ponto de partida, a tragedia clássica, mas ao mesmo tempo sublinhando que a sua finalidade é a construção de algo de diferente, uma louvança ao Jesus menino, posta em boca dos escolares do Colégio. Ε é assim, com efeito, que acontece, pois se bem que a presença da antiga tragédia seja constante, nomeadamente ao longo dos actos I e V, em que continuadamente se faz uso de fragmentos da obra Latina para a construção da nova, o resultado porém será uma obra completamente distinta, entanto produto de se superporem, conjugarem e articularem dois temas de procedência muito diferente.
21 L. Winniczuk, "De Gregório Cnapio L. Annaei Senecae imitatore", Eos 40 (1965)368-382.
E. Torrego, "Lúcifer Furens de P. de Acevedo: relación con el Hercules Furens de Séneca", in M. Puig Rodríguez-Escalona (ed.), Tradiciò Clássica. Actes de l'XI Simposi de la Secció Catalana de la Societat Espanyola d'Estudis Clàssics, Andorra laVella, 1996, pp. 677-683.
.142 ANDRÉS POCINA
O primeiro destes temas consiste no furor de Lúcifer que dá título à
obra e que, como consequência, poderia à primeira vista crer-se que seria o
tema central da trama: a suspeita, por parte de Lúcifer, de que o menino que
vai ser circuncidado no dia oitavo após seu nascimento pode ser o Messias
que acabaria com o seu poder mundano. O Lúcifer suspeitoso do Acto I envia
um Mensageiro a indagar sobre a verdade acerca da natureza do Menino, e
desaparece da trama até ao Acto V, onde reaparecerá, vencido pela confirma
ção de que o recém-nado é realmente o Filho de Deus.
O segundo tema é a circuncisão de Jesus, tema este de origem escriturá
ria e doutrinária, e que centra os actos II, III e IV, completamente distintos do
I e do V, em que nos achamos ante um ambiente de tudo mudado, povoado
de crenças Cristãs, em boca de personagens alegóricas, o que faz com que
pensemos em termos experimentado a passagem de uma obra com certa
parecença com uma tragédia clássica, à representação de um mistério ou de
um auto sacramental.
O reflexo mais directo, desta superposição de temas, percebe-se, de
forma bem simples, na comparação dos elencos de personagens entre ambas
as tragédias:
Herc. furens Iuno
Amphitryon
Megara
Lycus
Hercules
Theseus
Chorus
Lucif. Furens Lúcifer
Magaera
Nuntius <I>
Lex Vetus
Tempus Gratiae uel Lex Nova
Nuntius <II>
Dolor
Gaudium
Humilitas
Charitas
Hieronimus
Esq.
Benedictus
AS TRAGEDIAS DE SÉNECA, COMO MODELO DO TEATRO 343
Gonçaluus
Domenicus
Ludovicus
Leo
À parte estes sete personagens que aparecem no final do elenco do
Lúcifer Furens, intérpretes dum acréscimo final, à margem da obra, como
logo haverei de comentar, apenas uma personagem coincide em ambas as
tragédias, id est, o Hércules de Séneca e o Lúcifer de Acevedo, j á que, pese a
semelhança dos seus nomes, a Mégara de Séneca não se corresponde,
sabendo-se esposa de Hércules, com a Megera de Acevedo, uma das Fúrias
da Mitologia Clássica.
Ao dizer que o Hércules de Séneca e o Lúcifer de Acevedo se super
põem, não pretendo afirmar que se trate da mesma personagem: as parecen
ças entre ambos os dois são de importância, mas não são menos as diferen
ças: Esperanza Torrego salientou com acerto que são duas, as personagens do
Hercules Furens que servem de modelo para a construção de Lúcifer, Juno e
Hércules, e que, em última análise, "Lúcifer es el producto de la combinación
entre Juno y Hércules, por una parte, y el Satanás de la Bíblia, por otra"23.
Isto sendo assim, e tendo presente o facto de o resto das personagens de
Séneca não aparecerem em Acevedo, e o desenvolvimento do argumento ter
pouco a ver, deduzimos que a tragédia de Séneca fundamentalmente serviu
ao Jesuíta Espanhol como ponto de partida: com efeito, o motivo originador
da trama é, naquela, a descida de Hércules aos infernos, para realizar o duo
décimo dos seus trabalhos, é dizer, someter o Cérbero. Essa personagem que
deambula pelos âmbitos infernais sugere, no mundo das crenças bíblicas, o
tema de Lúcifer, que sabemos ter grandemente interesado aos Jesuítas para o
teatro destes24. É assim que Acevedo constrói este Lúcifer, angustiado pela
inquietação que lhe é produzida pela aparição dum menino, que pode ser o
Messias prometido, mas quem, estranhamente, vão circuncidar, facto este que
parece incongruente ante tal suposição. Para sair de dúvidas quanto à verdade
de assunto tão inquietante, pois a aparição de Jesus e a consequente Reden
ção, significaria o final do seu poder, Lúcifer manda um mensageiro para se
enteirar sobre que há de certo em tudo aquilo; esse mensageiro confirmará os
23 E. Torrego, ed. de Lúcifer Furens, in V. Picón, Teatro escolar..., cit, p. 56 s.; cf. também "Lúcifer Furens de P. de Acevedo: relación con e! Hercules Furens de Séneca", cit., p. 681.
~4 Cf. H. Bekker, The Lúcifer Motif in the Cerman and Duch Drama of the Sixteenth and Seventeenth Centuries, Dissertação de doutoramento, Universidade de Michigan, 1958 (cf. Diss. Abstracts International 19, 1364 A).
344 ANDRÉS POCINA
seus temores na primeira cena do Acto V, pondo fim, com isso, à obra pro-piamente dita.
Os actos II, III e IV constroem os seus argumentos em volta da doutrina da circuncisão de Jesus, dando lugar a diálogos, de inspiração totalmente bíblica e doutrinal, entre personagens alegóricas: Lei Antiga e Lei de Graça em li 1, IV 2; Dor e Gozo em IV 1; Caridade e Humildade em IV 3. Encon-tramo-nos, segundo ficou mais acima dito, num ambiente absolutamente distinto, tão-somente conectado com o acto I e com o desfecho pela presença do Mensageiro enviado por Lúcifer.
Em resumo, e para o dizer de uma maneira muito mais rápida do que teríamos gostado, o conjunto contém dois actos de inspiração mais directamente senequiana, I e V, os quais representam a parte mais argumentativa da tragédia: entre ambos os dois, os actos II, III e IV são de natureza mais teórica, não acrescentando ao argumento (que, aliás, resulta de uma notável pobreza) mais do que os dados confirmando que o menino que vai ser submetido à circuncisão é Jesus.
Um aspecto que conviria debater é até que ponto nos achamos perante uma autêntica tragédia. A preceptiva clássica, embora o respeito nela amostrado pela norma dos cinco actos, ou pelas unidades de tempo e espaço, dificilmente iria admitir o tom, frequentemente burlesco, da obra: nada tem em verdade a ver, neste senso, a personagem do Hércules de Séneca, autêntico herói trágico, com o comicamente furibundo Lúcifer do Padre Acevedo: o produto resultante permite ser com razão qualificado de spudaio-geloion em muitos trechos, e a presença recorrente do elemento leue vai agindo em detrimento do graue, cuja ocorrência constante é inexcusável em todo o desenvolvimento de uma tragédia clássica.
Não podemos contudo esquecer que nos encontramos num mundo bem distinto daquele da tragédia antiga, mesmo desse produto, já muito serôdio, que eram as Tragédias de Séneca. O cúmulo da novidade é a cena segunda do acto V: uma vez que Lúcifer reconhece a sua desfeita ante o Mensageiro, e ambos os dois deixam a cena, facto que devia em rigor ter feito culminar a tragédia com o fim adequado (p. S09), Acevedo ainda acrescenta uma outra cena com sete personagens que até esse momento não apareceram, e que são os moços, autênticos escolares, com os nomes tão actuais, na Espanha como em Portugal, de Jerónimo, Domingo (Domingos), Gonzalo (Gonçalo) ou Benito (Bento), que se hão de entreter a celebrar a derrota de Lúcifer, a jogar "el toro de las coces": todos em roda, rodearão um deles, que fará as vezes do touro; este, com os seus brados e couces, tentará, em vão, romper o cerco com que o sitiam e fustigam os seus companheiros, para acabar vencido e rendido por causa dos ataques, de palavra e de obra, dos outros rapazes. "El
AS TRAGEDIAS DE SÉNECA, COMO MODELO DO TEATRO 345
toro de las coces", que nos é apresentado como um jogo normal na altura, identifica, nesta ocasião, o touro com Lúcifer; quando, no final, o touro derrotado "fugit in siluam", a troça e escárnio de Lúcifer resulta completa; mas não é menos a ruptura das convenções próprias dum desfecho de tragédia. Por tal razão, havemos de admitir que Acevedo acrescentasse esta cena de forma consciente, sabendo que quebrava algo de fundamental na construção daquelas tragédias de Séneca que ele próprio demonstra conhecer tão bem, até de cor, ao continuadamente utilizar frases, de mais ou menos longitude, para a construção do texto, segundo podemos comprovar no aparato de referências da edição que andamos a utilizar.
Em resumo, o Hercules Furens de Séneca, uma das peças nas que com maior nitidez brilha esse carácter exemplar e didáctico que defendemos terem as suas Tragédias, foi usada nesta ocasião por Pedro Pablo de Acevedo para a construção de uma peça escolar; as teorias de base estóica, às quais aquelas serviam de veículo, converteram-se, no seio do Lúcifer Furens, em ensinamentos dogmáticos em relação à circuncisão de Jesus. O produto literário que disso resultou deixa muito que desejar, quer desde a perspectiva puramente criativa, quer desde a perspectiva dramática: todavia, não podemos negar ao Jesuíta a inteligência com que soube construir um drama, interessante, nesse tempo e nas circunstâncias em que foi representado, a partir de uma outra obra, anterior em milénio e meio.
Quero enfim pôr de relevo que Lúcifer Furens, apesar de trinta e tantos anos anterior à regulamentação sobre representações, que se estabeleceria na edição definitiva da Ratio Studiorum dos Jesuítas, no ano de 1599, ajusta-se bastante bem às normas ali preconizadas: Tragoediarum et comoediarum, quas non nisi latinas ac raríssimas esse oportet, argumentum sacrum sit ac pius; neque quicquam actibus interponatur, quod non latinam sit et decorum, nec persona ulla muliebris vel habitus introducatur" . Com efeito, o. texto deste drama de Acevedo está inteiramente redigido em latim, segundo já foi dito, sem mais excepção do que os quatro versos em castelhano que aparecem na conclusão do jogo do "touro dos coices", e o tema é tão sacrum e pius como se poderá esperar do assunto da Circuncisão. A dúvida fica no ar no que respeita à quarta e derradeira regra, que rejeitava a presença de mulheres nas obras. Que se fazia, pois, da personagem da fúria Megaera, que tem um papel de certa importância no decurso do Acto I? A sua natureza de Fúria
' E. Gil, El sistema educativo de la Compania de Jesus. La "Ratio Studiorum", Madrid, Universidad Pontifícia de Comíllas, 1992, p. 92; cf. N. Griffin, "El teatro de los jesuítas: algunas sugerencias para su investigación", Filologia Moderna 54 (1975) 407-413.
346 ANDRES POCINA
prevaleceria por cima do seu indubitável carácter feminino? Ε o que aconte
cia com Humilitas e Charitasl O seu carácter abstracto desculpava a sua natureza eminentemente feminina? São perguntas para as quais, hoje em dia, ainda não possuo as respostas. Ocorre-me pensar que talvez estejamos perante mais um exemplo daquilo a que Griffin fazia menção ao declarar que "el inmenso abismo que separaba la postura oficial adoptada por el generalato en Roma y la práctica que se seguia en los colégios de la varias províncias de la Companía"26. De qualquer forma que isto fosse, nem Megaera, nem Humilitas e Charitas parecem ser personagens femininas capazes de preocupar em excesso às autoridades da Companhia.
3. A TRAGÉDIA POLONESA "MAURJTIUS"
A tragédia Mauritius conserva-se, junto àquela outra intitulada Belisa
rius e mais algumas, no manuscrito R380 da Biblioteca da Universidade de Uppsala, aonde foi parar, como depredação de guerra, desde o seu lugar de origem, o Colégio Jesuíta de Pozna (Polónia). Ambas as tragédias foram cuidadosamente editadas, com um breve mas muito ilustrativo prefácio, aparato crítico e utílimos apêndices, por Zdzislaw Piszczek27. Para não alongar excessivamente a minha intervenção, resumirei alguns dados que nos podem interessar, a seguir Piszczek: na actualidade não semelha possível o saber quem foi o autor do Mauritius - quiçá o mesmo autor do Belisarius - resultando pouco provável que ele fosse Gregorius Gnapius (Grzegorz Knapski, 1550-1615), o mais importante dos autores do teatro jesuítico em Polónia. Mauritius foi copiada no códice de Pozna, agora em Uppsala, entre os anos 1604 e 1611; o texto consta de 2191 versos, em latim, não se conservando a sua cena final. A tragédia articula-se em cinco actos, ajustando-se, portanto, à regra horaciana que prescrevia o número deles; porém, como destacou Lidia Winniczuk, a mesma coisa se não pode dizer a respeito da norma de as obras não serem curtas nem compridas demais: acabamos de dizer que Mauritius,
mesmo sem a sua cena final, sobejamente excede os dois mil versos; nisto segue uma prática habitual do teatro dos Jesuítas, pois a sua companheira, a tragédia Belisarius tem nada menos do que 3354 versos, extensão absolutamente exagerada, mas que ainda fica bem arredada dos 4033 versos da tragi-
N. Griffin, "El teatro de los jesuítas...", cit, p.409. Z. Piszczek, Tragoediae Mauritius Belesarius Ε códice manu scripto
Uppsaliensi R 380 eddidit praefatione, apparatu critico, annotationibus appendicibusque instruxit Ζ. P., Wroctaw, Academia Scientiarum Poiona, 1971.
AS TRAGEDIAS DE SÉNECA, COMO MODELO DO TEATRO 347
comédia Prodigus, representada em 1586 em Coimbra, e escrita pelo Jesuíta Portugês P. Luís da Cruz28.
Mauritius apresenta-nos uma tragédia histórica, acerca do funesto final de Maurício, imperador de Oriente entre os anos 582 e 602. Trata-se dum tema muito caro ao teatro dos Jesuítas: Piszczek oferece, no apêndice I da sua edição, um quadro das representações do Mauritius e do Belisarius nos teatros escolares dos séculos XVII a XIX; nele observamos29 que tragédias sobre o imperador Maurício, em Latim a maior parte, mas também em Polaco, Alemão, Flamengo, Francês, são com grande frequência representadas, nestes séculos, na Polónia e nos países da Europa central; no que à Polónia diz respeito, tais tragédias são encenadas não apenas em colégios da Companhia de Jesus, como também nas Escolas Pias, em escolas reformadas e, inclusive, em escolas seculares.
O argumento de Mauritius, resumido de forma sucinta, arranca do momento em que o imperador, movido pela cobiça com que é usualmente representado, nega-se a resgatar os soldados do seu exército, que foram reduzidos ao cativeiro, negativa que motiva a que sejam assassinados de forma atroz e cruel; isto provoca uma rebelião militar, escolhendo-se para imperador o centurião Focas, quem julga e condena Maurício e os seus cinco filhos.
Mauritius resulta assim um estupendo exemplo de drama histórico concebido para a sua representação escolar. O primeiro que chama a nossa atenção, aliás de forma bem poderosa, é o seu enorme elenco de personagens, com cinquenta e nove delas, incluindo-se Maurício, os seus filhos, o genro, o irmão, senadores, amigos, pretorianos e cortesãos de todo tipo, bem como Focas e os partidários deste; mas a estas personagens, por assim dizer dotadas de nome próprio, acrescentam-se uma série de papéis mudos e de coros, designados com as pouco precisas indicações de senatores quinque, legati
duo, senatus urbis, milites, milites laureati, populus, vulgus, eives, exercitus,
chorus (cf. Dramatis personae, p. 14). Não tenho qualquer tipo de dúvidas quanto à razão que envolvem as palavras de Lidia Winniczuk quando explica que com isto se oferecia acolhimento na representação ao número maior possível de alunos, para assim desfrutarem da encenação não eles sós, mas sobretudo os parentes deles, "who could watch with interest and satisfaction the performance of theirs sons and admire their progress in Latin"j0. Possuímos, de facto, o testemunho directo do já mencionado Português Luís da
2 Cf. L. da Cruz, O Pródigo (Tragicomédia), Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 2 vol., 1989.
29 Z. Piszczek, Tragoediae Mauritius Belisarius, cit., pp. 206-210. 30 L. Winniczuk, op. cit., p. 723.
348 ANDRES P0C1NA
Cruz, quem, consciente de ter multiplicado, na sua obra Prodigus, o número de personagens muito para além do que permitia a normativa horaciana, confessa porém que fez tal coisa por o argumento o exigir, mas também porque sabia que os espectadores preferiam a abundância à escasez de actores: De personarum vero numero, non est quod multis agam. Ita seruiendum fuit rerum verarum argumento, et spectantium voluptati, cum copia magis acto-rum, quarn inópia delectaret .
Vemos assim que nem só o argumento, como também o delineamento dramático, nada têm a ver com aquilo que podemos descobrir numa tragédia de Séneca. E, todavia, é difícil encontrarmos um texto mais semeado de reminiscências senequianas do que o nosso Mauritius. O seu anónimo autor constrói uma tragédia, totalmente distinta, a basear-se não numa só peça de Séneca, mas em todas dez, isto é, nas nove de tema mitológico mais na anónima pretexta Octavia, das quais continuadamente toma frases e expressões para fazer falar às suas personagens. Nada menos do que 277 passagens das dez tragédias ressoam no Mauritius, com ecos de maior ou menor extensão, correspondendo, por ordem de maior a menor frequência, 46 a Thyestes, 40 a Hercules furens, 37 a Oedipus, 27 a Medea, 27 a Phoenissae, 26 a Agamem-non, 23 a Hercides Oetaeus, 23 a Octavia, 21 a Phaedra, e 7 a Troades.
A modo de exemplo, lembraremos um único caso, em que podemos observar de que maneira o anónimo autor de Mauritius utiliza un monólogo de Atreu no Thyestes de Séneca (w. 491-507); nele, Atreu comenta a terrível vingança que vai tomar-se sobre o seu irmão; na tragédia Mauritius, é Focas, já convertido no novo imperador, quem prepara o castigo, para o deposto imperador Maurício e para seus filhos:
Sen. Thy. 491-507 ed. Zwierlein:
Plagis teneíur clausa dispositisfera: et ipsum et una generis inuisi indolem iunctam parenti cerno. iam tuto in loco uersantur odia. uenit in nostras manus tandem Thyestes, uenit, et totus quidem. uix tempero animo, uix dolor frenos capit. sic, cum feras uestigat et longo sagax loro tenetur Vmber ac presso uias scrutatur ore, dum procul lento suem odore sentit, paret et tácito locum rastro pererrat; praeda cum proprior fuit,
L. da Cruz, O Pródigo (Tragicomédia), cit, vol. I, p. 12.
AS TRAGEDIAS DE SÉNECA, COMO MODELO DO TEATRO 34')
ceruice tota pugnai et gemitu uocat dominum morantem seque retinenti eripit: cum sperat ira sanguinem, nescit tegi-tamen tegatur. aspice, ut multo grauis squalore uultus obruat maestos coma, quam foeda iaceat barba, praestetur jides.
Anon. Maur. 1926-1934 ed. Piszczek
In carcerem advolate et huc adducite! Cum styrpe pereat! sit timori posteris! Plagis tenetur clausa dispositis fera Et ipsa et una generis invisa Índoles. Ne qua parenti iuncta fugiat, cernite! Vix tempero animo, vix teneo frenos modo. Loro tenetur Vmber, praeda cui propior fuit. Dum spirat, ira sanguinem nescit regi. Sed nunc regetur.
Os dois textos amostram bem às claras a grande habilidade do desconhecido escritor Polonês para a construção do discurso de um irritado Focas, a partir daqueloutro pronunciado pelo Atreu de Séneca, seja a tomá-lo literalmente (v. 1928), seja a mudar algumas palavras (v. 1931), mudança esta que por vezes resulta de singelas variações de uma consoante ou vogal (v. 1933), seja, enfim, a compor um texto próprio sobre uma estrutura idêntica ao original senequiano (v. 1934).
A se basear sempre nas tragédias de Séneca, e a ter sempre como meta derradeira a construção de uma tragédia para ser representada pelos alunos de um colégio da Companhia, num caso em Sevilha (Espanha), noutro em Pozna (Polónia), os resultados são, porém, bem diferentes: Pedro Pablo de Acevedo construía-nos uma espécie de auto sacramental, de argumento assaz fraco e singelo, para celebração da festa da Epifania, a se servir, exclusivamente, de uma tragédia de Séneca, o Hercules Furens. Meio século após, o anónimo Polaco possui um argumento muito mais rico, que desenvolve e preenche de episódios até à saciedade, com vistas a conseguir um enorme drama de mais de dois mil versos, que nos traz à memória qualquer coisa de semelhante ao Ricardo III de Shakespeare; o nosso anónimo dramaturgo conhece de jeito surpreendente as Tragédias de Séneca e a Octavia, e não amostra dificuldade qualquer em as retalhar e redigir, a partir dos seus fragmentos, uma obra
350 ANDRES POCINA
muito distinta, num Latim que*dissimula com agilidade o seu frequentíssimo carácter centenário. O resultado final é essa tragédia Mauritius, retórica, declamatória, passional, que conserva, depois de tantos séculos passados, boa parte das essências dos dramas de Lúcio Aneio Séneca, o filósofo-drama-turgo nascido em Córdova há pouco mais de dois mil anos.
[Desejaria que constasse o meu agradecimento ao doutor Andrés-José
Pocina López, professor da Universidade de Extremadura, pela ajuda que me
prestou ao redigir a versão portuguesa deste trabalho]
HVMANITAS-Vol. LÍV (2002) 351-396
PEDRO CORRêA
Universidad de Granada
LA FABULA DE PIRAMO Υ TISBE DE MIGUEL BOTELLO
La primera octava sirve de íntroducción. Es un exórdio anunciador dei sentido profundo dei poema. Por un lado, un caso lastimoso, fatal dice, y con dicho adjetivo adelanta el papel reservado a la muerte en el destino de los protagonistas. Por otro, un amor manifestado hasta el final, sin fisuras aunque con sobresaltos. En consecuencia, amor y muerte se dan un abrazo en la fábula, caminan juntas, codo con codo, porque así había sido trazado por el prímer creador dei mito1. La popularidad dei tema se refugia en una hipérbole propia de los poetas barrocos. Un anhelo de universalidad ampara los mitos en boca de los creadores literários y no podia faltar en el caso que tratamos. La octava es una amplificación ai verso primero; vários modificadores indirectos dependen tanto de suceso como de historia y suponen una audaz progresión comparativa que le permite insertarlo en el terreno de la más compleja hipérbole vindicativa de su propia creación. La maldición terrible y lastimosa dei dios Pactolo que lo condujo ai suicídio en el rio Crisórroas le parece un juego de ninos comparado con el sufrimiento y destino de los dos amantes. Así como el de cualquier viajero que tratase de ir dei uno ai otro polo, en el sentido de universalidad; también pudo cruzar por su mente el recuerdo de Faetón quien dio con su carro varias vueltas a la tierra o bien los fatigosos trabajos de Hércules, una de cuyas hazanas se desarrolla en el país de los hiperbóreos y también lo encontramos deambulando por el norte como
1 La fuente originaria de la fábula se encuentra en Ovidio y a é! remontan directa o indirectamente todos los escritores que han poetizado o tratado la fábula. El ser Ovidio una cantera inagotable de temas míticos, trajo en consecuencia que sus obras fueran traducidas constantemente con mejor o peor acierto. El tema se encuentra en Metamorphoseon, liber quartus, vv. 55-166; v. OVIDIO, Metamorfosis, ed de A. RUIZ DE ELVIRA, vol. 1, Barcelona 1964, p. 124-129.