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ARTIGOS
DO MÉTODO BIOGRÁFICO EM SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO
Pedro Abrantes1
Alexandra Aníbal2
Flávia Paliotes3
Resumo:
No presente artigo, discutem-se as oportunidades e desafios da aplicação do
método biográfico na pesquisa em sociologia da educação, partindo de uma
discussão teórico-metodológica e propondo algumas condições e pistas profícuas
para a consolidação desta linha de trabalho. Assente numa revisão bibliográfica,
esta reflexão sobre o método desdobra-se em três níveis de abstracção: (1) no
contexto histórico e internacional das ciências sociais, como um todo; (2) no âmbito
da sociologia da educação, como se tem vindo a consolidar nas últimas décadas; (3)
no quadro do sistema português de educação de adultos, cujo enfoque actual nas
abordagens biográficas nos confere, em simultâneo, uma fonte inesgotável de dados
e um convite estimulante à sua desconstrução analítica.
Palavras-chave: metodologia, biografia, sociologia, educação
Abstract:
Opportunities and challenges in the application of the biographical method to
research in sociology of education are discussed, including an initial theoretical and
methodological debate in order to propose some accurate conditions and clues to 1 Doutorado em Sociologia. Investigador do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-ISCTE-IUL), Lisboa,
Portugal; Investigador-Visitante do Centro de Investigación y Estudios Superiores en Antropología Social, México. 2 Doutoranda em Sociologia no ISCTE-IUL. Técnica Superior do Instituto do Emprego e Formação Profissional, Lisboa,
Portugal. 3 Finalista da licenciatura em Sociologia no ISCTE-IUL. Investigadora estagiária no Centro de Investigação e Estudos de
Sociologia (CIES-ISCTE-IUL), Lisboa, Portugal.
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the consolidation of such research line. Based on a bibliographical review, this
essay on the method is developed in three levels of abstraction: (1) in the
historical and international context of social sciences, as a whole; (2) within
sociology of education, as it is being established during the last decades; (3) in the
frame of Portuguese system of adult education, where the currently focus on
biographical approaches offer us, simultaneously, a huge data source, as well as an
invitation to analytical de-construction.
Key words: methodology, biography, sociology, education
Todos sabemos que os processos e resultados educativos não se reduzem à
interacção em salas de aula, ao desempenho em provas de avaliação ou ao diploma
atribuído no final do ciclo, pelo que uma sociologia da educação limitada a esses
fenómenos é, necessariamente, redutora. Tal como a intensidade emocional e
simbólica que envolve esses momentos se pode esfumar com o passar dos dias,
muitas aprendizagens aparentemente irrelevantes, invisíveis ou até falhadas, tanto
formais como informais, adquirem sentido ao longo da vida, constituindo uma boa
parte da “matéria” de que são feitos os indivíduos e as sociedades. Assim sendo, só
podemos estranhar o lugar marginal que, como veremos adiante, têm ocupado as
abordagens biográficas na sociologia da educação, sobretudo num momento em que
são reconhecidas pelos próprios sistemas educativos, nomeadamente, nos
dispositivos de formação e certificação de adultos, o que não deixa de proporcionar
uma fonte preciosa e quase inesgotável de material empírico, convidando a esforços
interpretativos acrescidos.
No entanto, dada a extrema complexidade do ser humano e das relações
sociais, uma interpretação científica dos modos de socialização e formação de
competências, identidades, trajectórias de classe ou histórias de vida que
ultrapasse o domínio impressionista ou ideológico implica que, enquanto sociólogos
da educação, mobilizemos modelos analíticos e instrumentos metodológicos mais
elaborados, não cedendo à atracção de uma análise imediatista de causas e efeitos,
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que nos tem aproximado do “sound-byte” político-mediático e dos estudos
organizacionais, mas afastado dos debates teóricos mais pujantes em ciências
sociais. O presente artigo, escrito a três mãos, procura contribuir para a superação
do hiato observado, discutindo diferentes usos do método biográfico, as suas
virtudes e riscos na análise dos fenómenos educativos e, por fim, uma aplicação
concreta ao estudo das histórias de vida dos participantes num programa de
reconhecimento, validação e certificação de competências de adultos (RVCC), com
grande expressão no Portugal de hoje.
Dado o carácter polissémico de alguns dos conceitos centrais deste ensaio
metodológico, o rigor científico aconselha a alguns esclarecimentos terminológicos
prévios. Na linha de autores como Becker (1974), Bertaux (1981), Denzin (1989),
Pujadas (1992) ou Conde (1994), entendemos o método biográfico, nas ciências
sociais, como produção controlada de uma narrativa sobre a vida de uma pessoa,
através de um sistema teoricamente orientado de procedimentos explícitos
(distinguindo-se assim das suas versões literárias e jornalísticas) de recolha,
selecção e análise de um conjunto (ou “corpus”) relevante de informações, com o
intuito de observar e compreender certos processos sociais (diferenciando-se do
seu uso, por exemplo, na psicologia). Como técnicas de investigação empírica,
realizam-se “interlocuções biográficas”, mas também se recolhem outros registos
produzidos pelo indivíduo, por solicitação do estudo ou com outros propósitos — em
particular, aqueles que pretendem expressar ou representar fragmentos
significativos da sua vida (ex. autobiografias, cartas, ensaios, gravações, páginas na
internet) —, e ainda testemunhos de pessoas próximas, documentação oficial e
objectos pessoais.
Sabemos que qualquer auto-representação da vida não é o seu mero reflexo
mas uma interpretação subjectiva, contextual e interessada, pelo que deve ser
cruzada com outros dados empíricos e analisada à luz das condições e relações
objectivas da sua produção, mas defendemos que essa mesma “ilusão biográfica”,
devidamente desconstruída, contém um poder simultaneamente descritivo e
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explicativo não negligenciável sobre as aprendizagens, disposições e percursos dos
indivíduos. Como produtos científicos do método biográfico, podemos apontar três
principais, implicando opções metodológicas importantes: (1) os biogramas, série
limitada de informação mas que, no caso de dizer respeito a amostras significativas
da população, permite o tratamento quantitativo; (2) os relatos de vida, cuja
profundidade relativamente a certos aspectos, contextos ou etapas da vida
alimenta análises temáticas de cariz qualitativo, sobretudo mediante o cruzamento
das narrativas de um conjunto de indivíduos; (3) as histórias de vida, cujo olhar
abrangente e integrado sobre as várias dimensões, fases e relações que constituem
o percurso vivencial de um indivíduo implica condições metodológicas específicas,
nem sempre alcançáveis, mas que, como veremos adiante, confere às ciências sociais
um tipo singular de raciocínios e de conhecimentos.
Trata-se, pois, de uma acepção lata, por um lado, ao reconhecer uma
multiplicidade de técnicas e de registos, e restrita, por outro, ao incluir requisitos
propriamente científicos de teorização, sistematicidade e racionalidade.
1. O método biográfico nas ciências sociais
O recurso ao método biográfico, em ciências sociais, é herdeiro, ainda que
problemático, da sua longa tradição no campo dos estudos históricos. Sabemos que,
pelo menos, desde a Grécia Antiga, a biografia constitui não apenas matéria prima
mas também produto cobiçado do trabalho dos historiadores, pois o interesse
público que tem despertado atrai frequentemente interesses comerciais e políticos,
mas, também por isso, lhe granjeia críticas não menos recorrentes das escolas
eruditas e teóricas, sempre dispostas a denunciar o populismo destes trabalhos, a
sua promiscuidade com o género literário e a ilusão inscrita na redução de
processos socio-históricos aos desígnios de personalidades famosas (Revel, 2005).
Esta tensão acentuou-se, a partir do século XIX, quando se consolidou a história
social como disciplina científica, com requisitos teórico-metodológicos próprios, mas
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seria precipitado recusar o método biográfico como componente legítima do ofício
historiográfico, quando constatamos que inúmeros profissionais conceituados —
incluindo alguns que, como Fernand Braudel, Lucien Febvre ou Michel Foucault, não
podem ser acusados de recusar o peso das estruturas sociais — continuaram a
produzir biografias dos representantes mais conhecidos das diferentes épocas e,
em alguns casos, também de desconhecidos.
A partir do século XIX, o método biográfico alarga-se à Antropologia, através
de estudos sobre “histórias de vida” de indígenas, sendo que, à semelhança da
disciplina vizinha, a qualidade literária destas primeiras obras superava
frequentemente o seu rigor metodológico, suscitando interesse na opinião pública
mas também reservas entre os académicos (Pujadas, 1992). Em todo o caso, ao
explorar a força de vontade, os dilemas, as crises, as mudanças, as transgressões
que assolavam a vida destes indivíduos, mesmo que de forma algo mitificada, não
deixaram de matizar o modo normativo e reificado como as etnografias clássicas,
dominantes no campo antropológico, descreviam as culturas “primitivas”, enquanto
conjunto rígido de regras e valores que pareciam anular a individualidade, o que se
manteve como tónica das pesquisas biográficas até hoje.
A adopção do método biográfico pela sociologia realizou-se, durante o primeiro
quartel do século XX, sob o auspício da prolífica Escola de Chicago, na qual
figuraram Park, Mead e Burguess, entre outros, muito influenciados por pensadores
como Simmel e Dewey. Neste quadro, a famosa obra de Thomas e Znaniecki (1984)
sobre a imigração dos camponeses polacos, publicada originalmente em 1918, a
partir da correspondência pessoal de um conjunto alargado de indivíduos e da
autobiografia de um jovem (Wladek), como modo de “determinação das leis da
mudança social”, tem sido apontada como percursora, inaugurando uma linha de
estudos biográficos na Polónia que se manteve ao longo do século XX e cujas
traduções são, infelizmente, escassas. O positivismo dos autores é evidente, em
várias passagens, em que, talvez pela necessidade de legitimarem cientificamente o
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método, afirmam o princípio de que os valores, comportamentos e atitudes de um
indivíduo são reflexo directo das condições e culturas de um grupo, classe ou povo.
Dentro deste marco e com ramificações na psicologia cultural, várias outras
pesquisas, no segundo quartel do século, utilizaram as “histórias de vida” —
reconstituídas, sobretudo, a partir do recurso sistemático a cartas, às entrevistas
em profundidade e à observação participante — como elemento central para o
estudo de fenómenos como a mudança social, a imigração, o desvio e a
marginalidade, enfoque temático que tem persistido até aos dias actuais (Pujadas,
1992), em curiosa homologia com a própria posição relativamente marginal do
método nas ciências sociais. Tratando-se de objectos de estudo em que a análise
quantitativa apresenta lacunas evidentes e que tendem a ser menosprezados pelos
autores mais institucionais, não deixa de ser intrigante, tanto pelo seu carácter
“holista” como pelo entusiasmo dos seus promotores, o acantonamento do método
em temas bastante específicos e a sua quase total omissão, até bem recentemente,
em áreas como a sociologia da educação (ver tópico seguinte).
Entre os anos 40 e 60, o método biográfico entra, contudo, num relativo
esquecimento entre os sociólogos, remetido para o âmbito da psicologia, o que
Becker atribui (1974) à sua desadequação ao aparelho teórico-metodológico
funcionalista e que se tornou hegemónico, durante este período, afirmando a
supremacia dos estudos quantitativos. O autor recupera, assim, o legado da Escola
de Chicago, frisando o interesse do método biográfico para desafiar e aprofundar a
teoria sociológica, em particular, permitindo identificar novas variáveis e hipóteses
que reactivam áreas de investigação “estancadas”, bem como observar processos
em curso e formas de reconstrução do self. Nota ainda que, sendo um importante
antídoto para os próprios preconceitos dos sociólogos, o método biográfico não
deixa de lhes abrir caminho para uma comunicação mais profícua com outros
sectores da sociedade.
O método biográfico conhece, nos anos 70 e 80, uma certa revitalização na
Sociologia, por autores que recusam tanto o teoricismo como o positivismo,
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dominantes nas décadas anteriores, propondo refundar a disciplina a partir de um
enfoque no actor e nas relações sociais. Bertaux (1981) assume, então, a
importância do conteúdo humanista e historiográfico dos sociólogos, na busca de um
conhecimento sobre os processos sociais concretos e que contribua para a
superação dos sistemas de dominação. No seu estudo sobre os padeiros numa
província francesa, o autor introduz também inovações metodológicas, ao definir
uma estratégia de representatividade por saturação que consiste numa sucessão de
entrevistas a membros de uma categoria, até que, pela sobreposição de discursos,
os traços estruturais e culturais do grupo possam emergir a partir dos
particularismos individuais. Ferrarotti (1990), outro autor influente desta corrente,
realça que a história de uma sociedade é o resultado das vidas dos seus membros,
mas também que estas são uma síntese de processos estruturais e históricos, pelo
que defende a importância de estudar as relações dialécticas entre biografia e
sociedade, em particular, a partir da identificação e análise dos seus elementos
mediadores, entre os quais, destaca os “grupos primários”.
Porém, o afã com que, neste período, se defendeu o método biográfico como
instrumento de ruptura com as perspectivas hegemónicas nas ciências sociais
acabou por limitar o seu alcance, ao conferir-lhe uma certa aura de radicalismo que
alimentou a negação do rigor e da validade de uma análise propriamente científica
dos fenómenos sociais, deixando-se assim enredar por vias ideológicas, filosóficas,
jornalísticas ou artísticas. Importa, pois, notar que uma descrição (ou transcrição)
exaustiva de relatos de um indivíduo, sustentada por desígnios críticos, humanistas
ou activistas — anulando a função de comando da teoria ou os processos que
escapam à consciência (ou ao discurso) dos actores mas que se impõem e
condicionam a sua trajectória —, pode ter um valor heurístico bastante reduzido
(ou mesmo contraproducente) para a compreensão objectiva dos fenómenos,
reduzindo notavelmente o campo de análise das ciências sociais. A este propósito,
leiam-se, por exemplo, as duras críticas de Bourdieu (1986) à “ilusão biográfica”,
método que permitiria a conversão de cada sujeito em ideólogo da sua própria
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existência, seleccionando acontecimentos significativos (reordenando sequências,
apagando passagens incómodas, procurando coerência) em função de uma intenção
de auto-justificação, mais ou menos consciente, enquanto se ilude ou distorce a
influência dos sistemas de relações de poder (ou campos sociais) na produção tanto
da narrativa como da própria trajectória.
Estas importantes ressalvas não parecem considerar, contudo, que, entre
historiadores, sociólogos e antropólogos, o método biográfico, não deixando de
expor algumas insuficiências das perspectivas dominantes nas ciências sociais, tem
conhecido importantes aprofundamentos teóricos e metodológicos.
Recusando a suposta neutralidade do investigador, tem-se apelado à definição
e explicitação detalhada dos protocolos de pesquisa, tanto na interacção com o
próprio sujeito como na apresentação dos resultados, enquanto a “entrevista
biográfica” se tem instituído como uma técnica de pesquisa com características
particulares (Demàziere e Dubar, 1999) e que deve ser “triangulada” com outros
materiais (Blanchet e outros, 1985). Têm-se vindo a clarificar critérios na
construção do corpus de dados a recolher, como a relevância, a sincronidade e a
homogeneidade (Bauer e Aarts, 2000). Também os objectos pessoais do quotidiano,
bem como os espaços e os tempos que pautam as vidas, dotados de uma
materialidade própria, têm sido convocados, sobretudo pela Antropologia, na busca
por desenredar a teia de experiências quotidianos, sentidos íntimos e auto-
definições múltiplas que marcam as biografias, assumindo que o self não é uma
essência unificada, mas uma construção pautado pela contradição e desunião, um nó
onde se cruzam vários discursos e interpretações (Hoskins, 1998).
Entretanto, a revitalização da “história oral” tem resgatado processos não
considerados pelas análises estruturais (Thompson, 1981), enquanto os estudos
sobre os processos sociais de produção da memória colectiva analisam os modos
“como as sociedades recordam” (Connerton, 1993). No campo dos estudos
históricos, a “biografia reconstituída no contexto” permite explorar as condições
sociais que tornaram possível (e pensável) uma determinada “história de vida” e,
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desta forma, elaborar uma perspectiva mais rigorosa dessas condições, em figuras
emblemáticas de movimentos sociais ou em momentos particularmente intensos de
transformação social (Revel, 2005).
Num movimento análogo, tem-se vindo a afirmar uma “inteligibilidade
sociológica centrada no indivíduo”, na qual se procura restituir o sujeito, “no quadro
da sua específica experiência social de subjectividade”, através do triângulo
memória-identidade-narração, no cruzamento da noção necessariamente redutora
de trajectória com o conceito forçosamente vago e dificilmente operacionalizável
de vida (Conde, 1994 e 1996). Nesta linha, Denzen (1989) estabelece a diferença
entre vidas “vividas”, “experimentadas” e “contadas”,4 mostrando como estas
últimas são influenciadas por aspectos estruturais, culturais e conjunturais, pelo
que cabe ao sociólogo evitar a busca pela veracidade dos testemunhos — todas as
histórias de vida são ficções e, por isso, todas são, num certo sentido, verdadeiras
— e, ao invés, descobrir que forças sociais, económicas, culturais e interaccionais
moldam a percepção que o indivíduo transmite ao investigador sobre a sua própria
vida.
Devemos, pois, reconhecer as diferenças entre os modos de análise
“paradigmático” e “narrativo”, mas aceitar também que não são mutuamente
exclusivos (Bolívar, 2002) e que, aliás, as ciências sociais, ao longo da sua história,
têm sido marcadas por inúmeros esforços, mais ou menos conscientes, de conciliá-
los.5
2. Socialização, educação e biografia
4 A “vida vivida” refere-se ao conjunto de acontecimentos na vida de uma pessoa; a “vida experimentada” às imagens, às
sensações, aos sentimentos, aos desejos bem como aos significados que o indivíduo atribui a um determinado acontecimento; e
a “vida contada”, é uma narrativa, influenciada por noções culturais e pelas condições em que é apresentada e pelo(s)
destinatário(s). 5 A este propósito, é significativo que, após transcrever entrevistas a actores em diversas posições sociais, em A Miséria do
Mundo, a derradeira obra de um dos principais críticos do método (Bourdieu, 2005) seja uma análise da sua própria vida
escolar, profissional e intelectual, iniciada com a afirmação orgulhosa “isto não é uma auto-biografia” para nos mostrar, em
seguida, como o método biográfico é, afinal, compatível com (ou enriquece mesmo) o seu quadro teórico.
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O papel secundário que têm representado as “histórias de vida” nas ciências
sociais reforça-se nos estudos sociológicos de alguns temas que, como a educação,
raramente têm merecido abordagens propriamente biográficas. No entanto, é
possível advogar que a compreensão do modo como os indivíduos aprendem, se
tornam actores e participam na (ou produzem a) vida social — objecto por
excelência da sociologia da educação — é reificada em muitas das teorias da
Antropologia, da Sociologia ou da História, estando, de alguma forma, orfã de uma
análise aprofundada das relações entre educação e biografia.
É verdade que o carácter supostamente holista deste método pode afastar os
estudos temáticos, visto que, excepto no caso dos professores, pode dizer-se que a
educação constitui apenas uma dimensão da vida dos indivíduos,6 com a agravante de
que uma parte importante ocorre numa idade precoce e, portanto, tende a escapar
à consciência dos próprios sujeitos. Não será, pois, de estranhar que a excepção
resulte de uma linha sólida de estudos endogâmicos, nas ciências da educação, sobre
as “histórias de vida” dos professores, na qual se tem mostrado como as suas
identidades, saberes e práticas profissionais estão fortemente ancorados a
experiências de vida marcantes e, em muitos casos, remotas, na instituição escolar
e noutros contextos de vida, irredutíveis aos momentos de especialização no ensino
superior (Knowles, 1992; Nóvoa, 1992; Bueno, 2002). Esta perspectiva tem-se
alargado aos usos do método como instrumento central, em simultâneo, de
dispositivos de formação de adultos e de investigação sobre esses mesmos
dispositivos (Pineaud e Michele, 1983; Couceiro, 1993; Josso, 1999; Cavaco, 2007).
Apesar da sua inegável importância, a primeira corrente tende a constituir-se,
sobretudo, como modelo de análise da formação de um corpo profissional (os
professores) e de uma instituição (a escola), enquanto a segunda se encontra
impregnada na própria prática da formação (ver ponto seguinte), o que, em qualquer
6 Em analogia, veja-se, por exemplo, como a aplicação do método ao estudo da criminalidade se tende a reduzir à
reconstituição de “histórias de vida” dos delinquentes.
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dos casos, apresenta limitações, aliás reconhecidas pelos autores, para o
desenvolvimento de uma teoria mais lata sobre a educação e a socialização, nas
sociedades contemporâneas.
Porém, desde que a falácia empirista dos estudos biográficos foi denunciada
nas ciências sociais, este método tem-se comprovado útil para a discussão de
problemas teóricos diversos e, de facto, têm surgido recentemente alguns
contributos importantes para uma perspectiva biográfica sobre os processos
educativos, entre os quais, nos centraremos aqui em três: o macro-projecto sobre
as “vidas aprendentes”, de uma equipa britânica na qual se incluem Phil Hodkinson,
Ivor Goodson, entre outros; a “sociologia à escala individual”, através da qual
Bernard Lahire tem coordenado estudos sobre a formação das disposições dos
actores; uma linha de pesquisas sobre identidades e trajectórias juvenis, em
particular, na “transição para a vida adulta”.
No primeiro caso, os autores, com uma ampla experiência no campo educativo,
lançam-se na análise de um conjunto alargado de “histórias de vida”, reconstituídas
através de entrevistas biográficas, como modo de explorar a dimensão educativa
inscrita na vida social, entrando assim em diálogo com as famosas teorias de
Giddens e de Bourdieu sobre as relações entre estrutura e acção (Hodkinson et al.,
2008). Através da análise biográfica, torna-se também evidente que, estando os
“horizontes de aprendizagem” duplamente limitados pelas condições sociais
(passadas e presentes), bem como pela própria identidade pessoal, os processos
educativos, implicando uma dose variável de intencionalidade, não são, em qualquer
caso, mera adaptação aos papéis atribuídos pela sociedade, afirmando-se como
centrais na agência dos indivíduos e na construção do seu “projecto identitário”, em
particular, em momentos de viragem, pretendidos ou não, na sua existência social
(“turning points”). Adquirem especial expressão os repetidos casos em que o êxito
ou o fracasso dos processos educativos, formais ou informais, em diferentes fases
da vida, adquirem um peso determinante na (re)configuração das vidas e
identidades, superando, frequentemente, as próprias expectativas dos actores.
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Esta linha de pesquisas, ainda em curso, mostra também que se a educação
informal tende a sobrepor-se, pela sua transversalidade, à educação formal, o que
inverte uma certa dominação da segunda no campo académico, na verdade, ambas
surgem intimamente entrelaçadas, ao longo da vida da grande maioria dos indivíduos
nas sociedades modernas, sendo, de certo modo, artificial e equívoca a sua
distinção em tradições de investigação diferenciadas. Contudo, o recurso exclusivo
às narrativas dos próprios sujeitos, gerador de uma certa “teorização” das próprias
vidas, subestima os aspectos físicos, emocionais ou contextuais (frequentemente
inconscientes, embaraçosos e/ou tomados por garantidos), em detrimento de uma
descrição cognitiva e unificada do self. Entre outras limitações, este aspecto
metodológico conduz a que se negligenciem os processos de socialização, cuja
amplitude não se reduz ao que se pode definir como educação informal.
Embora evite usar o conceito de biografia, os “retratos sociológicos” de Lahire
(2002) baseiam-se num aparato metodológico mais inovador, implicando seis
entrevistas ao mesmo indivíduo sobre diferentes dimensões da sua vida (escola,
trabalho, família, sociabilidades, lazer e corpo), de modo a estudar a variação intra-
individual dos comportamentos, atitudes e gostos, segundo os contextos sociais.
Confirmando os seus enunciados anteriores sobre o “homem plural” (Lahire, 2002),
esta análise aprofundada de oito casos permite ao autor concluir que “cada
indivíduo é produto de uma paleta assaz subtil de disposições variáveis” (p. 404),
sem um elo de necessidade lógica ou de perfeita harmonia entre si, ou seja, que
cada ser humano é uma “heterogeneidade irredutível”. Sendo, em geral,
diferenciáveis tanto das competências (mais práticas e delimitadas) como das
crenças (mais conscientes e intencionais), as disposições distinguem-se,
internamente, consoante são fortes ou fracas, apaixonadas, rotineiras ou
contrariadas, mostrando que a sua activação depende de uma interacção entre
forças internas e externas (ou contextuais), enquanto a inibição prolongada pode
conduzir à sua dissolução. Tudo depende, portanto, da maneira como se
desenvolveram essas disposições e hábitos, do momento da biografia individual em
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que foram adquiridos e, ainda, do “contexto” actual da sua (eventual) actualização.
Por sua vez, a constituição das disposições ocorre na relação com as instituições
legítimas, através de três modalidades de socialização não necessariamente
coerentes: o treino ou prática directa; a organização das situações; a inculcação
ideológica. É curioso que, apesar da multiplicidade de narrativas sobre o self, o
autor também confie exclusivamente no discurso do próprio, não realizando a
“triangulação” com testemunhos de outros (familiares, amigos de longa data, ex-
professores), o que poderia evitar as limitações das memórias pessoais, em
particular, quanto ao seu objectivo de identificar a génese socializadora das
disposições, caso esta se situe, por exemplo, na infância.7
De notar que um primeiro esboço desta proposta já havia sido experimentado
no estudo dos jovens de meios populares com trajectórias de sucesso escolar
(Lahire, 1995). Contudo, se a constatação de que as práticas de socialização
familiar, em particular, na relação com a leitura, constituem um elemento
determinante para o êxito escolar, em contextos desfavorecidos, coloca em causa
as teorias clássicas da reprodução, não deixa de reafirmar o primado do habitus
familiar sobre o trabalho pedagógico escolar, não sendo evidentes os efeitos da
socialização nos contextos propriamente educativos, algo que seria de esperar de
uma abordagem plural das disposições.
Recentemente, uma versão simplificada deste aparelho metodológico foi
aplicada ao estudo das trajectórias de um conjunto alargado de jovens do ensino
superior, em Portugal (Costa e Lopes, 2008), mostrando a enorme diversidade e
complexidade dos percursos, não inteiramente redutíveis às condições sociais, à 7 Segundo o autor, apreender as matrizes e os modos de socialização que formaram tal ou tal tipo de disposições sociais
deveria ser parte integrante de uma sociologia da educação, concebida como uma sociologia dos modos de socialização
(escolares e extra-escolares) e articulada a uma sociologia do conhecimento. Preocupados durante muito tempo
principalmente com a questão da reprodução social pela família, a escola e as diferentes instituições culturais e sociais, os
sociólogos satisfizeram-se em fazer a constatação de uma desigualdade face às instituições legítimas (escola e outras
instituições culturais) e/ou de uma herança cultural e social intergeracional (família). Resumindo, poderíamos dizer que à
força de insistir no “isso reproduz-se”, acabou-se por negligenciar “o que é que se reproduz” e “como, segundo que
modalidades, isso se reproduz”
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socialização familiar ou às experiências e projectos no mercado de trabalho. Neste
caso, já se procurou identificar variáveis organizacionais, sobretudo nas
instituições do ensino superior, que moldam os percursos de vida, não deixando de
ser influenciadas por estes. Em todo o caso, tal como nos estudos de Lahire, sente-
se que a riqueza empírica proporcionada por este aparato (que os próprios autores
caracterizam como “experimental”) excede, até ao momento, o conhecimento
teórico a que dá origem, ressentindo-se de um certo primado (prudente) da análise
de caso sobre a extrapolação ou generalização, o que, evitando um certo
“fetichismo do método”, não deixa de abrir um campo fértil à produção futura em
ciências sociais.
Vale a pena equacionar alguns dos resultados produzidos por uma linha recente
de estudos sobre identidades e trajectos juvenis (Pais, 2001; Guerreiro e
Abrantes, 2004; Jeffrey e Dyson, 2008; Saraví, 2009). É verdade que a análise dos
impactos dos processos formativos pode beneficiar de uma visão de mais longo
prazo, mas a proximidade temporal relativa a uma etapa de vida decisiva para a
formação dos indivíduos e ocupada, cada vez mais, em instituições educativas,
permite, por seu lado, uma riqueza narrativa que pode ser preciosa para uma
sociologia (ou antropologia) da educação, caso se aborde a dimensão propriamente
formativa das experiências, identidades e trajectórias.
Embora privilegiando as questões da inserção laboral, das culturas juvenis ou
dos movimentos sociais, esta linha de pesquisas mostra claramente que se, por um
lado, a educação, o trabalho ou a família permanecem instituições fundamentais da
socialização juvenil e da construção de itinerários de vida (em oposição às ideias
mais apocalípticas da sociedade contemporânea), as relações e transições entre
elas deixaram, em sociedades modernas e plurais, de ser lineares para se tornarem,
em muitos casos, problemáticas. Implicando novos desafios e riscos, esta situação
está associada a uma maior liberdade dos jovens para gerir as tensões na esfera de
um projecto identitário singular que não se encontra plenamente definido no seu
“ADN social” (sexo, origem de classe, diploma escolar, etc.). Mas estas
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investigações indicam também que, para muitos jovens, a socialização entre pares
se converteu no principal sentido da escola, sendo a utilidade das aprendizagens
formais, tanto para sua vida quotidiana como para o seu futuro pessoal e
profissional, muito questionada e frequentemente reduzida à obtenção pragmática
do respectivo certificado. Reconhecendo que, obviamente, as aprendizagens não são
redutíveis ao seu sentido consciente e intencional, em todo o caso, esta “relação
distanciada” com o lado formal da escola não deixa de limitar o seu potencial
formativo e transformador.
Neste sentido, salientamos o recente e interessante trabalho de Almeida et
al. (2010), enquadrado numa comparação internacional, no qual se estuda o percurso
de várias famílias residentes numa cidade brasileira, ao longo de três gerações,
enfatizando as experiências escolares, bem como os trajectos profissionais
subsequentes, como forma de compreender os processos de constituição e
transgressão de “fronteiras sociais”. O estudo mostra que as realidades educativas
disponíveis para as diferentes classes sociais são profundamente distintas,
demarcando campos de possibilidades muito assimétricos, ainda que se identifiquem
também vias escolares que permitem a uma minoria, por uma combinação de
factores, atravessar as referidas barreiras sociais, consagradas pelas relações de
produção.
3. Pontes entre educação de adultos e investigação sociológica
Desde os anos 80, um novo paradigma veio revolucionar a educação de adultos,
muito influenciado por estudos que, em detrimento dos modelos clássicos —
basicamente, adaptações ad-hoc da formação inicial —, propõem dispositivos de
formação e certificação que partem do adulto e da sua experiência de vida (Pineau,
1983; Couceiro, 1993; Josso, 1999; Cavaco, 2007). A União Europeia tem vindo a
consolidar e a difundir esta perspectiva em referenciais orientadores das políticas
de educação e formação de adultos nos estados-membro, como o Memorando sobre
20
a Aprendizagem ao Longo da Vida (Comissão Europeia, 2000), no qual se clarificam,
legitimam e promovem, lado a lado, os conceitos de educação formal, informal e não
formal. Em Portugal, estas ideias têm conhecido uma rápida difusão, desde o final
dos anos 90,8 constituindo a base conceptual e metodológica do recém-criado
Sistema Nacional de Qualificações, bem como da Iniciativa Novas Oportunidades
(programa concebido para formar e certificar um milhão de adultos, cerca de 10%
da população portuguesa), consagrada no postulado de que tudo o que se aprende ao
longo da vida — não só de modo formal, mas também de modo não-formal ou
informal — pode contribuir para um reconhecimento social, profissional e
académico.
Esta aposta estratégica passa pela “disponibilização de ofertas de qualificação
flexíveis, em particular estruturadas a partir das competências adquiridas”,
considerando-se essencial “valorizar e reconhecer as competências já adquiridas
pelos adultos — por via da educação, da formação, da experiência profissional ou
outras — como via de estruturar percursos de qualificação adequados à realidade
de cada cidadão e orientados para o seu desenvolvimento pessoal e para as
necessidades do mercado de trabalho, num contexto económico particularmente
exigente e em acelerada mudança” (Decreto-Lei nº 396/2007 de 31-12-2007).
Assim, a política nacional de educação e formação de adultos, baseia-se no
imperativo (de justiça social) de ver reconhecidas oficialmente competências
adquiridas e desenvolvidas em contextos não-escolares, dando sequência a
directivas europeias no sentido de promover saberes e capacidades resultantes de
experiências de vida.
8 Este impulso foi dado com a criação da Agência Nacional de Educação e Formação de Adultos (ANEFA), posteriormente, Direcção Geral de Formação Vocacional (DGFV), estrutura integrana no Ministério da Educação; hoje, Agência Nacional para a Qualificação (ANQ), voltando ao um modelo autónomo, sob a tutela conjunta da Educação e do Trabalho.
21
Este nova andragogia, aplicada a percursos formativos flexíveis9 e aos
processos de reconhecimento, validação e certificação de competências10, assume
uma “abordagem (auto)biográfica” de “investigação-formação-acção”, na qual a
produção, por parte do adulto, de uma narrativa sobre a própria vida, orientada
pelos técnicos (profissionais RVC e formadores), constitui, simultaneamente, um
elemento fundamental para o conhecimento (“consciência de si”), a (auto-)formação
e a transformação do sujeito, bem como um instrumento válido e útil para a sua
avaliação e certificação. Por outras palavras, o trabalho de reflexão e elaboração
da “história de vida” constitui uma actividade formativa per si, fundamental para
que o adulto tome consciência das competências que adquiriu ao longo da vida e, a
partir daí, defina e contextualize aquelas que vai desenvolvendo em contexto
formativo e/ou demonstrando em contexto de reconhecimento de competências,
sendo, simultaneamente, um instrumento para que os técnicos concebam actividades
ajustadas ao adulto e o avaliem com base naquilo em que ele é competente.
Será legítimo discutir os motivos pelos quais o princípio de uma
educação/formação centrada no indivíduo e desenvolvida com base nas suas
experiências e trajectórias não se aplica também a crianças e adolescentes, mas, 9 Estes percursos formativos de dupla certificação, escolar e profissional, designam-se Cursos de Educação e Formação de
Adultos (Cursos EFA) e têm como ponto de partida um balanço de competências, baseado na história de vida de cada
formando (vertida num Portefólio Reflexivo de Aprendizagens) e na sequente validação inicial das competências já adquiridas
através das suas experiências de vida. Partindo-se do princípio de que não se deve voltar a aprender o que já se aprendeu, a
formação necessária à validação das restantes competências (exigidas pelo referencial de competências-chave do nível e
vertente de qualificação em causa) deve ser ministrada “à medida”, tendo cada adulto de efectuar o seu próprio percurso
formativo, mais ou menos longo, conforme o número de unidades de competência em falta. 10 O Processo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (Processo RVCC), nas vertentes escolar e/ou
profissional, não é um processo formativo, centrando-se nos saberes já adquiridos e desenvolvidos pelos adultos ao longo da
vida, em diversos contextos. Este processo tem por base estruturante a construção de um Portefólio Reflexivo de
Aprendizagens, ancorado no relato auto-biográfico (produzido pelo candidato tendo como grelha orientadora o referencial de
competências-chave). Pode desembocar directamente numa certificação total das competências demonstradas pelo candidato,
com emissão do Diploma de Qualificação, ou numa certificação parcial. Neste segundo caso é emitido um Certificado de
Qualificações (em que constam as unidades de competência validadas) e prescrito ao candidato um Plano Pessoal de
Qualificação (identificação das unidades modulares de formação que o candidato deverá frequentar de forma a adquirir as
competências correspondentes às unidades em falta).
22
para o tema do presente artigo, o que importa ressalvar é que, ao abrigo desta nova
metodologia, muitos milhares de adultos, como parte do seu processo formativo
e/ou de reconhecimento de competências, têm sido sujeitos a extensas entrevistas
biográficas e elaborado, sob orientação, detalhadas “histórias de vida”.
É claro que esta actividade não escapa às limitações, ilusões e “auto-
justificações” que caracterizam a tradição erudita das autobiografias, além de que
os constrangimentos dos autores, ao nível da literacia escrita, reduzem, por vezes,
de forma considerável a riqueza das suas memórias orais. Além disso, a bem do
rigor científico, é necessário advertir que se a “abordagem (auto)biográfica”
assumida nestes programas se aproxima da utilização do método nas ciências
sociais, na medida em que visa “a construção de um sentido vital dos factos
temporais” (Couceiro, 2002: 31) e apela à interrogação permanente,11 os próprios
referenciais assinalam também diferenças entre estes dois géneros (Gomes et al.,
2006). Assim, a (auto)biografia tem sido aplicada nos Centros Novas Oportunidades
fundamentalmente como instrumento para orientar o trabalho com os adultos e
para reconhecer as suas competências, em permanente confronto com um
referencial de competências-chave, enquanto a produção científica de histórias de
vida, como referimos anteriormente, implica uma orientação, mais ou menos
assumida, pela e para a teoria, ou seja, é baseada em protocolos teórico-
metodológicos e pretende alargar o conhecimento científico (de uma pessoa, época,
classe ou processo social).
Porém, considerando a amplitude dos conceitos de “competência” e de
“experiência geradora de competências”, podemos apreciar que as narrativas
produzidas pelos adultos são frequentemente muito investidas pelos próprios, sendo
verdadeiros espaços de reflexão de si para si e de transformação, potenciadora de
alterações nas trajectórias de vida. Tendo sido produzidos para fins que se
11 “Colocar-se face à vida, atribuir-lhe um sentido, construir um pensamento legitimado pela experiência existencial, compreender o modo como o sujeito se formou e deu forma à sua existência é, de facto, um processo de interrogação, de descoberta, de criação e não de adequação ou eventual transformação em função de algo previamente definido e conhecido” (Honoré, 1992 in Couceiro, 1995:360)
23
diferenciam da pesquisa, não deixam de ser documentos legítimos de apresentação
da vida pelo próprio indivíduo que a viveu, cujas condições de produção se prestam a
um trabalho de interpretação propriamente sociológico, existindo dois aspectos que
o tornam particularmente interessante para o tema deste artigo.
Por um lado, o processo RVCC é de produção interactiva, orientado por
técnicos com base em entrevistas sucessivas e na discussão de várias versões do
documento, pelo que é suposto que o adulto vá adquirindo, ao longo do processo,
diferentes ferramentas para ler e escrever a sua vida, apresentando-as no final, a
um júri de certificação. Existe, pois, um duplo estímulo para o rigor, o sentido
crítico e a auto-reflexividade na produção das “histórias de vida”, embora se deva
considerar também a possibilidade da sua progressiva formatação aos preconceitos
dos profissionais RVC, formadores e/ou avaliadores. De notar que a construção dos
“Portefólios Reflexivos de Aprendizagens” deve incluir três dimensões: (1) a
recolha de elementos que permitam a reconstituição da história de vida individual
(diários, fotografias, correspondência, certificados/diplomas, comprovativos de
funções desempenhadas, objectos pessoais, obras produzidas, etc.); (2) a produção
de uma narrativa sobre a vida, escrita, na qual se integram e articulam reflexões
sobre as várias experiências de vida produtoras de aprendizagens (ocorridas em
diferentes contextos e momentos da trajectória individual), tendo sempre como fio
condutor e grelha orientadora o referencial de competências-chave; (3) a
reconstrução contínua do percurso individual, a partir da consciencialização acerca
da agência pessoal e colectiva (empowerment). Na verdade, muitas das pessoas que
criticam o simplismo destes documentos nunca realizaram exercício semelhante,
negligenciando a complexidade e morosidade da tarefa. Sendo que as questões da
veracidade da informação, dos limites da consciência e da memória, dos mitos e
crenças, das estratégias de afirmação e auto-legitimação, sempre se colocaram no
estudo das narrativas autobiográficas, neste caso, existem alguns dispositivos que
podem reduzir ou, pelo menos, apoiar a desconstrução desses vários factores.
24
Por outro lado, estas autobiografias não são dominadas pelo propósito idealista
de descrever e explicar a exaustividade de uma vida, mas sim deliberadamente
orientadas para um fim mais realista: compreender o processo de aquisição e
mobilização de competências ao longo da vida. Em termos concretos, após a
contextualização de alguns aspectos centrais da “história de vida”, é solicitado ao
adulto que procure identificar as aprendizagens mais marcantes, tanto nas
experiências de educação formal como noutros contextos de vida, com vista à
elaboração posterior do “Portefolio Reflexivo de Aprendizagens”, do qual faz parte
um “balanço de competências”.12 Tal como os sociólogos pioneiros no uso do método
biográfico buscavam, de várias formas, aprofundar os aspectos das “histórias de
vida” que permitiam ampliar o conhecimento sobre a criminalidade ou a mudança
social, os sociólogos da educação têm hoje, à mão de semear, milhares de narrativas
focadas na relação entre processos educativos e trajectos biográficos.
É verdade que, ao pretender isolar a dimensão educativa, há o risco de se
perder (ou distorcer) a relação com outros aspectos da vida ou mesmo de ignorar
algumas das aprendizagens fundamentais na vida dos indivíduos, pelo facto de
ocorrerem em formas e espaços muito diversos, pelo que uma parte central do
trabalho dos técnicos dos Centros Novas Oportunidades tem sido levar os adultos a
reconhecer — contra o preconceito enraizado, que os inferioriza, de um suposto
monopólio da educação formal — que em contextos tão díspares como a família, a
fábrica, o exército ou o café, não só se accionam mas também se desenvolvem
competências decisivas para a sua vida. Em poucas palavras, conduzir os adultos a
atribuir um sentido de aprendizagem à sua existência. O desafio contrário, com o
12 É através da construção do seu Portefólio Reflexivo de Aprendizagens que cada adulto evidencia as aprendizagens que foi
efectuando ao longo da vida e as competências que delas decorreram. O Portefólio Reflexivo de Aprendizagens (PRA) dos
candidatos é um documento que se articula e decorre do Balanço de Competências. Ao contrário de um dossier que compila
certificados e provas de aprendizagens feitas, o PRA enquadra-se num processo de “investigação/acção/formação”. Supõe o
desenvolvimento de competências meta-cognitivas e meta-reflexivas do adulto sobre o próprio conhecimento que devem, elas
próprias, estar evidenciadas no portefólio. A construção de um Portefólio desta natureza é, assim, em si mesma, uma
experiência promotora de aprendizagens e de aquisição de novas competências (Gomes et al., 2006).
25
qual também se enfrentam com frequência, é uma apropriação simplista e
interessada deste novo paradigma educativo, que conduz o adulto a deduzir
competências legítimas de todas as suas acções, sendo necessário um trabalho de
clarificação do conceito, distinguindo-o de outros como memorização, atitude,
crença, hábito, truque, etc.
Com todas estas ressalvas, não temos dúvidas em afirmar que não apenas os
milhares de narrativas autobiográficas produzidas têm um valor inestimável para as
ciências sociais, permitindo inúmeras análises, como a reconstituição de todo o seu
processo de produção, a partir de inúmeros registos, poderá enriquecer, em muito,
o trabalho interpretativo. Além da sua utilidade para uma visão mais ampla e
rigorosa de aspectos complexos e variados da nossa história social recente, como a
guerra colonial, o êxodo rural, a revolução ou a transição para a modernidade,
escapando à hegemonia das fontes poderosas ou eruditas, as referidas narrativas
tornam-se especialmente ricas para o estudo dos agentes, movimentos e processos
educativos, escolares e não escolares, bem como o seu impacto nas trajectórias de
vida individuais e colectivas.
Entre inúmeros outros exemplos, leiam-se os inúmeros relatos sentidos sobre
as experiências penosas proporcionadas pela educação primária do antigo regime, do
ponto de vista daqueles que fracassaram, contrapondo-se, assim, a um discurso
erudito e hegemónico nos media de glorificação das virtudes do ensino tradicional,
produzido, em geral, pela minoria “eleita” por esse mesmo sistema e que a ele deve a
legitimação do seu estatuto de elite, a quem foi sempre reconhecido o monopólio do
“saber pensar” e do “saber falar”. Ou, ao invés, atente-se na abertura de
horizontes culturais e sociais, propiciada pelo contacto inusitado com certos
professores e colegas, em instituições escolares, bem como através dos laços
sociais construídos, nos contextos de vida mais diversos.
Importa assinalar que não somos os descobridores deste filão analítico. Em
projectos recentes de mestrado ou de doutoramento, a abordagem biográfica dos
adultos envolvidos em processos de RVCC começa a ser explorada, no sentido de
26
compreender e ilustrar impactos da formação e certificação de adultos nas
trajectórias de vida (Ávila, 2005), lógicas que subjazem à construção dos saberes
experienciais e de outras formas de aprender (Barroso, 2005), transformações das
competências implicadas nos processos de êxodo rural (Santos, 2006) ou conceitos
e competências de cidadania, associados às identidades de género (Quaresma,
2009). Trata-se de importantes contributos pioneiros para pensarmos esta relação
entre educação e histórias de vida, que não deixam de revelar a infinitude dos
objectos de estudo em que se pode desdobrar tal empresa, bem como a riqueza dos
dados empíricos em que se pode sustentar.
Notas finais
Se o método biográfico tem funcionado, nas ciências sociais, como contraponto
aos excessos da sobre-interpretação teórica e às omissões provocadas por outras
metodologias, não se abdicando de reflectir, explicitar e desenvolver os seus
fundamentos e procedimentos, a sua consolidação parece ainda encontrar-se “a
meio caminho”, ressentindo-se de um certo complexo de inferioridade, visível na
tensão permanente com certos requisitos de cientificidade, o que conduz ora a
assumpções forçadas dos primados positivistas, ora à sua refutação radical, em
projectos de refundação da própria ciência.
Estamos em crer que ambos os argumentos são pouco sustentáveis, mas que é
possível (e importante) desenvolver estudos biográficos, cuja validade,
objectividade e representatividade sejam reconhecidas, desde que estes conceitos
não sejam pensados em homologia com o paradigma quantitativo. A objectividade a
que devemos almejar é, então, a reconstituição rigorosa, orientada pela teoria e a
partir de múltiplas fontes, de um percurso de vida, na interacção constante entre
forças internas e pressões externas — não pressupondo a sua essência, unidade ou
coerência, nem o seu carácter necessariamente ilusório, fracturado ou pré-
determinado — como forma de ampliar o nosso conhecimento sociológico sobre
27
problemas teóricos e sociais relevantes. Também a representatividade, impossível
de alcançar a partir da sua definição estritamente estatística, deve ser
(re)pensada no sentido do conjunto de evidências empíricas necessárias para a
compreensão de uma “história de vida”, em vez da busca de uma suposta fórmula
mágica que demonstre que uma série necessariamente reduzida de percursos
individuais pode resumir a história de uma classe ou população.
Claro que permanece o debate sobre que constatações resultantes de uma
biografia são extrapoláveis para o entendimento de grupos e processos sociais mais
amplos, mas, considerando as limitações da informação produzida pelas pesquisas
quantitativas ou pelos estudos etnográficos, em vez da aporia obstinada do “seu”
método ou da negação em bloco das possibilidades de existência de uma abordagem
científica do social (apanágio de alguns sociólogos em crise de identidade), será
preferível questionar a “auto-suficiência” dos diferentes métodos, aprofundando o
diálogo e a complementaridade entre eles, na produção de um conhecimento mais
prudente, mas também mais consistente.
No caso particular da sociologia da educação, consideramos que o método
biográfico pode ser um meio interessante de, tal como propunha Becker (1974),
fazer avançar o conhecimento sobre controvérsias e bloqueios que se arrastam pela
utilização hegemónica de outros métodos, lançar novas problemáticas teóricas e
empíricas, bem como comunicar de forma eficaz com outras áreas das ciências
sociais ou mesmo da opinião pública, permitindo-nos participar mais activamente nos
grandes debates científicos e sociais do nosso tempo.
Por fim, o artigo apresenta algumas condições propícias e orientações
propostas para que, através do recurso comum ao método biográfico, a investigação
em sociologia da educação possa reforçar a sua relação com os programas de
educação de adultos, ampliando de forma substancial o material empírico das suas
pesquisas e, simultaneamente, contribuindo para uma utilização mais consciente e
rigorosa desta metodologia, construindo e dotando os intervenientes de uma
28
perspectiva sociológica sobre a relação entre formação de competências e histórias
de vida.
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