RENATO SILVA DE ALMEIDA PRADO
Arquitetura de Interface. Análise de formas de organização
da informação na interação entre pessoas e códigos.
Comunicação e Semiótica
PUC/SP
São Paulo, 2006
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RENATO SILVA DE ALMEIDA PRADO
Arquitetura de Interface. Análise de formas de organização
da informação na interação entre pessoas e códigos.
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em
Comunicação e Semiótica
Orientadora: Profa. Dra. Giselle Beiguelman.
PUC/SP
São Paulo, 2006
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Banca Examinadora
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Resumo
Dois importantes acontecimentos são observados nos processos comunicacionais das duas últimas décadas. O primeiro é o uso massificado dos computadores em escala mundial — suporte digital — e o segundo é a conexão entre eles — a rede. Ambos os fatos foram acompanhados de significativas mudanças na interface entre o homem e a máquina. A difusão do computador teve início, em grande parte, pela adoção de uma interface gráfica em detrimento da linha de comando e pela incorporação do mouse. O crescimento da rede — internet — deu-se, também em grande parte, através de uma mudança de interface, com o surgimento do Mosaic em 1993. Antes basicamente constituída de informação textual, a internet passa a trabalhar de forma multimídia, com textos, sons e imagens. Este trabalho tem como objetivo analisar desdobramentos destes dois importantes acontecimentos, por meio da leitura e análise de alguns aspectos da cultura digital e da cultura de rede, e levantar características e conceitos pertinentes a estes contextos para o desenvolvimento de novas interfaces que possam representar um novo salto ou progresso na forma de interação. Mais de dez anos se passaram e os sinais destas mudanças são cada vez maiores e cada vez mais imbricados com o cotidiano social e cultural. A discussão sobre a necessidade de novas interfaces já é significativa, como colocam Steven Johnson, Richard Grusin, Jay David Bolter, Lev Manovich, Giselle Beiguelman e Peter Weibel. O trabalho está fundamentado em grande parte, além dos autores acima citados, nos pontos de vista de Alexander Galloway e Howard Rheingold. A relevância deste estudo se dá na medida em que as interfaces digitais encontram-se cada vez mais presentes em diversas camadas e atividades sociais, mas que, hoje, tem sua capacidade colocada em questionamento. Com características atribuídas na década de 1970, e desenvolvidas para, a priori, trabalhar com uma quantidade de informação restrita a apenas um computador, a interface gráfica, atualmente, acessa e manipula uma quantidade de informação muito maior, distribuída e provinda de bilhões de computadores.
Palavras-chave: Interface, Interface gráfica, Internet, Cultura de interface, Cultura de
rede, Cultura digital
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Abstract
Two important facts are observed in the communicational processes in the last two decades. The first one is the mass use of the computers on a global scale – digital support – and the second one is the connection between them – the net. Both facts were accompanied by significant changes in the interface between man and machine. The wide spread of the computer had its beginning connected with the adoption of the graphic interface rather than the command-line interface and also the assimilation of the mouse. The growth of the net – internet – also was influenced by an interface change, when Mosaic appeared in 1993. The early internet, basically formed by textual information starts to work in a multimedia way, with sound and image along with the text. This project intends to analyze the unfolding of these two facts, by means of reading and analysis of some aspects of the digital culture and net culture, as well as to raise concepts and characteristics pertinent to these contexts for the development of new interfaces that can represent a new step or progress in an interaction form. More than ten years have passed and the signs of these changes are more and more evident and intricate in our social and cultural daily life. The discussion about the needs for new interfaces is already significant as Steven Johnson, Richard Grusin, Jay David Bolter, Lev Manovich, Giselle Beiguelman and Peter Weibel put it. This work is based greatly, besides the authors above, in the points of view of Alexander Galloway and Howard Rheingold. The relevance of this study is more evident as the digital interfaces are more and more present in so many social layers and activities, but now they have their capacity questioned. Today’s graphic interface still has some of their characteristics attributed in the 70’s, and developed to work basically with a quantity of information restricted to one computer. At the same time it accesses and manipulates a much bigger quantity of information, come from and distributed to billions of computers. Key words: Interface. Graphic interface, Internet, Interface culture, Net culture, Digital culture
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Sumário
Apresentação_________________________________________________________ 7
1 Introdução à cultura de interface ____________________________________ 12 1.1 Processo de crescimento e esgotamento do atual modelo de interface_______ 14
1.2 Um novo contexto para as interfaces ________________________________ 18
1.3 A busca de um melhor entendimento da rede __________________________ 21
1.4 A digitalização dos instrumentos e da comunicação_____________________ 25
1.5 Uma questão de autoria___________________________________________ 31
1.6 O contexto é físico, a rede é física __________________________________ 35
1.7 Internet não é papel, internet não é site, internet não é browser ____________ 37
2 Organização da informação em interfaces gráficas ______________________ 43 2.1 Zapping, bookmarks e interfaces ___________________________________ 44
2.2 Pastas, filtros e classificações ______________________________________ 51
2.3 Indexar é preciso, indexar não é preciso ______________________________ 59
2.4 Manipulação física da informação __________________________________ 66
2.5 Design da informação ____________________________________________ 76
Considerações finais __________________________________________________ 85
Anexo I_____________________________________________________________ 92
Anexo II ____________________________________________________________ 97
Referências ________________________________________________________ 104
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Apresentação
Este estudo trata das interfaces digitais entre homens e máquinas, das que fazem
a mediação de entradas e saídas de informação entre esses dois lados, daquelas que
possibilitam que pessoas possam manipular informações e realizar atividades através de
diversas camadas de códigos sem que precisem necessariamente entender e ter
conhecimento da maioria delas.
Quanto mais uma interface permitir que alguém consiga executar exatamente o
que desejar, quanto mais real parecer a representação da informação, mais eficiente ela
será. A interface tem de ser entendida, em última instância, como uma ferramenta de
manipulação destes códigos e linguagens, uma série de recursos que represente, para as
pessoas, as sensações envolvidas na comunicação. Este é o caminho do seu
desenvolvimento: permitir que as pessoas realizem atividades de sua prática cotidiana.
A relevância deste estudo se dá na medida em que as interfaces digitais
encontram-se cada vez mais presentes em diversas camadas sociais, mas que, hoje, têm
sua capacidade colocada em questionamento. Com características atribuídas na década
de 1970, e desenvolvidas para, a priori, trabalhar com uma quantidade de informação
restrita a apenas um computador, a interface gráfica, atualmente, acessa e manipula uma
quantidade de informação muito maior, distribuída e provinda de bilhões de
computadores. Um número considerável para se ter uma noção da dimensão de sua
responsabilidade.
Porém, é importante ressaltar que a interface, por si só, mesmo apresentando
características relevantes, como colocado por Steven Johnson (2001) e Lev Manovich
(2001) e citadas ao longo do texto, não age sozinha e não pode ter seu caminho de
desenvolvimento analisado de forma isolada. Se dois importantes passos foram dados
com o auxílio de melhorias nas interfaces — o primeiro com a consolidação da interface
gráfica e o segundo com o surgimento do Mosaic —, não se pode atribuir a relevância
destes fatos exclusivamente a elas. Se Manovich (2001: 65) pontua que as interfaces
moldam a forma com que entendemos o computador e seu conteúdo — o que inclui
todo o conteúdo acessado através da internet —, é importante ter ressaltado que elas o
fazem pois, naturalmente, estão na ponta da relação entre as pessoas e os códigos.
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De fato, o desenvolvimento das interfaces deveria ser encarado mais como um
reflexo de um contexto, do que uma forma de mudá-lo. Assim, a intenção deste trabalho
não é a de definir uma nova fórmula ou regras para o desenvolvimento das interfaces
que nos conduzirá a uma nova forma de agir e interagir. Não procuro dar uma resposta
prática de como deve ser a interface ou um manual para regrar seu desenvolvimento
como fez, por exemplo, Jakob Nielsen (2001), mas criticar e apontar algumas formas de
pensar interfaces que possam apresentar algum caráter paradigmático com relação às
características limitadoras do potencial deste contexto. Por isso, é importante destacar
que novas soluções e formas de interação surgem cotidianamente e que, mesmo antes, já
haviam sido criticadas, principalmente através da arte. Isso significa que muitas coisas
que hoje já são possíveis talvez venham a ser bem mais baratas, mais fáceis de serem
usadas ou até encaradas com uma concepção diferente da atual e farão parte do futuro
cenário popular das interfaces.
O objetivo deste trabalho é, a partir de análises sobre o desenvolvimento de
algumas práticas da sociedade em diversos âmbitos — capítulo 1— e do processo de
desenvolvimento das próprias interfaces digitais — capítulo 2 —, levantar uma série de
funcionalidades e características que elas devem possuir para atender sua atual
demanda. Ou seja, analisar diversas variáveis de um contexto de transformações e
apontar um conjunto daquelas que colaboram para o melhor aproveitamento de todo o
aparato digital.
Assim, uma primeira análise pode ser feita a partir dos dois exemplos citados no
início do texto: a consolidação da interface gráfica em detrimento à interface com linha
de comando que se deu após o lançamento do Apple Macintosh, em 1984, e o
surgimento do Mosaic, primeiro browser multimídia, em 1993. Apesar da importância
da interface gráfica, percebe-se a existência de outras variáveis atuando em conjunto no
seu processo de desenvolvimento. Primeiro, que não foi em 1984 a primeira vez que
uma interface gráfica foi colocada no mercado — antes já haviam sido lançados em
computadores da Apollo Computers, Symbolics, Inc., Xerox e da própria Apple mas
seus resultados não obtiveram êxito econômico. Segundo, que os computadores pessoais
só tinham adquirido potência suficiente para rodar sistemas operacionais gráficos no fim
do século passado. Terceiro, que nada como uma campanha de marketing com filme
produzido por Ridley Scott — carregando consigo o peso de Blade Runner (1982) —,
baseado no romance 1984 de George Orwell e lançado durante o Superbowl, para
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alavancar as vendas1. Quanto ao surgimento do Mosaic, que possibilitou que formas
mais elaboradas de conteúdo fossem trocadas através de redes de computador, também
há outros fatores. De nada adiantaria uma interface como a do Mosaic se não houvesse a
presença de uma série de protocolos que possibilitassem uma troca de informações mais
consistente entre os computadores.
A divisão do trabalho em duas partes se deve pela relevância que eu dou para
este contexto de variáveis que se desenvolvem imbricadas com a interface. É
condicional para mim entender razões que levaram as interfaces ao seu estado atual
para, posteriormente, compreender quais são suas reais demandas e o porquê delas.
Tendo uma análise destas exigências, foi possível realizar uma pesquisa de campo e
selecionar soluções que apontassem para este objetivo. No primeiro capítulo, após a
análise de um quadro teórico, faço a exposição de diferentes leituras deste contexto que
tem por objetivo desnudar a idéia da escala digital e da própria internet, relacionando o
desenvolvimento das interfaces com o desenvolvimento do contexto como um todo.
Essa desmistificação serve para limpar idéias equivocadas que possam atrapalhar seu
melhor entendimento e, conseqüentemente, limitar seu desenvolvimento e incorporação.
Assim feito, no segundo capítulo há a descrição e análise provinda de pesquisa de
campo, apontando diversas formas de organização da informação que sejam pertinentes
ao contexto explorado no primeiro capítulo.
Por isso, quando falo sobre o “atual contexto” ou o “novo contexto”, estou me
referindo a toda esta quantidade de variáveis — globalização, linguagem digital,
computação, física quântica, supercondutores, ou seja, todas as características que têm
influência na velocidade do fluxo de informação — que, juntas, no mesmo diagrama,
compõem a atualidade e possuem papel ativo no desenvolvimento de interfaces. Em
especial, me refiro também aos fatores ligados à cultura digital e a cultura de rede,
quadro que exponho durante todo o texto.
Entretanto, para a melhor compreensão do trabalho, há alguns pontos que devem
ser ressaltados. Por acreditar que as interfaces terão influência condicional nas nossas
atividades sociais, uma vez que estão progressivamente mais presentes e mediando cada
vez mais as trocas de informações culturais, me ative a evitar o uso do termo “usuário” 1 http://video.google.com/videoplay?docid=-5398217822617288804&q=Macintosh. O Superbowl — anual — é uma das transmissões televisivas mais assistidas dos Estados Unidos.
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— salvo citações — para me referir à pessoa que se relacionará com os códigos através
da interface. Isso, pois sou partidário da idéia de que seu uso será tão comum e tão
imbricado com as experiências pessoais que precisam ser tratadas assim, como se faz
com a energia elétrica ou até mesmo com o ar. Ninguém se refere a um usuário de
energia elétrica ou usuário do ar. São pessoas que vão estar em contato com as
interfaces tão naturalmente quanto acendem uma luz ou quanto respiram. Não param
para pensar nessas atividades — com exceção do momento em que não as tem. Assim,
chamá-las de usuários remeteria a uma situação ultrapassada e antiquada para o
contexto que se forma. Isso ressalta ainda mais a relevância das interfaces. A interação
com os códigos não podem requerer um conhecimento complexo das pessoas. Tem de
se apresentar quase que intuitivamente para que seu uso seja imperceptível e plenamente
incorporado à sociedade.
Por último, atento ao fato de que este trabalho caminha muito próximo da prática
de mercado, como as soluções apresentadas nos anexos I e II. Isto se deve não apenas
pela possibilidade prática de experimentação que meu trabalho cotidiano permite, mas
por estas experiências estarem de acordo com algumas demandas condicionais do
mercado. A pesquisa sempre teve a preocupação de que suas críticas e análises não se
restringissem às situações estritamente teóricas ou fora dos padrões econômicos. De
forma alguma pretendo, com esta posição, diminuir qualquer importância das
experimentações que não seguem esta linha, pelo contrário, elas são justamente uma das
principais fontes desta pesquisa. O ponto de vista deste texto é o de indicar o uso, entre
outros, destas experimentações em atividades e usos cotidianos. Entendo que, com isso,
nem todas as discussões agregadas em experimentações artísticas, por exemplo, sejam
discutidas, mas este é um dos limites do recorte. Também, não foi intenção neste projeto
discutir a questão estritamente estética das interfaces. Sou adepto de uma estética
funcional, onde os elementos da interface devam ser utilizados para simplificar seu uso,
porém, não acredito ser essa a única nem a melhor forma de fazê-lo.
A possibilidade de atuação prática no estudo das interfaces gerou um diálogo
direto com o estudo teórico. Desta troca, algumas qualidades da interface puderam ser
melhor desenvolvidas e a dissertação, além da análise programada, incorporou algumas
propostas e soluções para o desenvolvimento geral das interfaces digitais. Porém, o
maior esforço deste projeto se deu na aplicação de um pensamento diagramático para a
análise das interfaces, o que tornou mais inteligível seu contexto e, conseqüentemente,
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suas qualidades. Apesar de não estar entre os autores mais citados durante o texto, o
trabalho de Alexander Galloway (2004) foi fundamental para isso. Talvez a mais
importante referência do projeto, pois ajudou a fundamentar e entender a materialidade
da escala com que estamos lidando ao interagir com os aparatos computacionais em
rede e suas possíveis linguagens. Pensamento fundamental para o estudo do objeto
escolhido, uma vez que, como dito no início desta apresentação, a materialização destas
linguagens e das suas representações é o principal desafio das interfaces digitais.
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1 Introdução à cultura de interface
Desde a introdução do computador2 na sociedade, em meados do século
passado, estamos atravessando uma revolução digital, um processo que vem levantando
toda uma gama de sensações e reações desde as mais esperançosas às mais pessimistas.
Sua derivada de crescimento parece longe de alguma inversão. Os computadores estão
cada vez mais presentes e desempenhando papéis mais fundamentais3.
Em função deste crescente número e do conseqüente aumento no número de
aplicativos digitais, a discussão sobre interface ganhou uma nova importante vertente:
as interfaces digitais. Nova, pois, apesar de ser parte integrante do computador,
naturalmente, não é restrita a ele. Interface é um conjunto de elementos que
proporcionam uma ligação física ou lógica entre dois sistemas, sejam eles de qualquer
natureza — mecânicos, biológicos, digitais, etc.
O volante, os pedais, o câmbio, os espelhos de um automóvel são, entre outros,
integrantes da interface entre um motorista e o aparato mecânico que possibilita esse
automóvel funcionar. A interface de um livro consiste no conjunto de elementos que
colaboram para um bom entendimento do conteúdo cultural a ser transmitido — capa,
índice, tipologia, numeração de páginas, bibliografia, índice remissivo, etc.
O sistema de percepção de um organismo vivo funciona como interface entre as
qualidades físicas do meio e as sensações nas quais são traduzidas — a interface mais
elementar para os homens. Por exemplo, para os humanos, a transformação de uma
onda eletromagnética na sensação da cor é uma transformação mediada. A intensidade
de pressão do ar em determinado instante traduzida em sensação sonora é uma
transformação mediada.
Diferente dos anos 1980, quando o computador ganhou maior projeção, a
importância das interfaces digitais aumentou após a massificação da internet na década
2 Apesar de o primeiro computador digital a ser reconhecido tenha sido o “relógio de calcular”, criado em 1623 por William Schickard, foi apenas em 1948 que o MADAM — obra de Alan Turing —, o primeiro computador eletrônico digital com programa armazenado, entrava em ação. 3 Segundo matéria publicada na revista Computer World, “o mercado brasileiro comercializou 5,5 milhões de computadores pessoais [em 2005], crescimento de 37,5% na comparação com 2004.” http://computerworld.uol.com.br/AdPortalv5/idc_pcs_190106.html
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de 1990. Segundo Lev Manovich, o crescente uso de computadores em rede permitiu
que grande parte do conteúdo cultural mundial fosse transmitido e acessado através de
interfaces — as quais denominou de interfaces culturais (Manovich, 2001:70). Ele ainda
coloca que essas interfaces culturais fazem a mediação da transmissão de informação
entre o homem e a máquina e assim moldam a maneira que uma pessoa concebe o
computador e ainda determina como pensam sobre um objeto midiático acessado
através dele (Manovich, 2001:65). Apenas esta última colocação já evidencia a
importância do estudo crítico sobre as interfaces, pois são elas que definem ou, no
mínimo, têm participação fundamental na percepção que as pessoas têm sobre os
sistemas digitais e conseqüentemente sobre as novas formas de comunicação, acesso e
manipulação de informação, entre outros. São elas que permitem que a prática dos
sistemas digitais se torne accessível a uma parte maior de pessoas. E na medida em que
estes sistemas e interfaces aumentam sua participação na sociedade, possuindo funções
cada vez mais imbricadas com o cotidiano, a importância da discussão e crítica
aumenta.
Não entendemos a ação de dirigir um automóvel diretamente como a
movimentação dos pistões, o acionamento de correias dentadas, a combustão da
gasolina. A aceleração está ligada à pressão feita nos pedais, na marcha escolhida.
Assim como a direção em que se movimenta um veículo fica relacionada com a rotação
do volante, e não com a movimentação de eixos ligados às rodas.
Mesmo tendo uma idéia sobre o funcionamento do sistema, as formas como o
percebemos são mais próximas da concepção que a interface proporciona. São nelas que
reconhecemos nossas ações — fechar uma janela, pressionar um botão —, e não em
outros códigos de programação. Quando movemos um arquivo nos sistemas
operacionais atuais não entendemos este ato como o processamento infindável de séries
de zeros e uns. Estamos apenas movendo um arquivo. O mesmo ocorre para o sistema
perceptual. Não fazemos nenhuma relação consciente entre as qualidades físicas do
meio. Não enxergamos as qualidades físicas de uma onda eletromagnética provinda da
reflexão de um objeto. Um morango é vermelho, uma folha de árvore é verde, o céu é
azul. Nosso sistema é praticamente transparente. A interface permanece oculta e a
sensação que temos é de um contato direto com o meio (Goldstein, 2002: 72). É esta
sensação de estar em contato direto com as coisas que as coloca mais próximas da nossa
realidade ou do que podemos entender por “natural”, como algo inato.
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Ou como apontou Paul D. Miller (2004:16):
”As gerações futuras não dependerão da tecnologia. Elas terão a tecnologia
como um aspecto essencial de sua existência — assim como o ar que respiramos e o
alimento que comemos são aspectos da tecnologia (...) A dependência é basicamente
parte do processo de ser[mos] humano[s]. ”
Nossa interface é que determina a noção de realidade que temos sobre o meio e o
mesmo ocorre para os sistemas digitais: as interfaces dos aparatos eletrônicos atuam
como os tradutores da linguagem digital — fica factível concordar com Manovich e
compreender que o conhecimento e as conseqüências desta característica são
imprescindíveis para a definição das emergentes interfaces digitais.
1.1 Processo de crescimento e esgotamento do atual modelo de interface
Se o uso das interfaces digitais é recente, sua difusão é mais recente. Sua
presença no cotidiano é evidente — ainda mais com o crescimento da internet —,
porém a sua adaptação à sociedade necessita de crítica e tempo. Há uma grande
insatisfação com alguns atributos dos sistemas e interfaces digitais, que, mesmo assim,
aumentam progressivamente sua participação na sociedade.
“Aquilo que se concentrava antes no computador (...) invadiu os caixas
automáticos, apossou-se do forno microondas, do DVD player, apareceu no toca-discos
do carro, tomou conta do celular (...), popularizou-se e parece ter se transformado num
parâmetro de relacionamento entre homens e máquinas.” A citação acima é de Giselle
Beiguelman, em seu trabalho esc for escape4. Nesse trabalho, entre outras discussões,
Giselle explora com muita ironia um lado crítico das interfaces digitais: a clareza com
que as mensagens de erro dos sistemas são comunicadas5.
4 http://www.desvirtual.com/escape/portugues/index.htm 5 “Exceção unknown software exception (0x80000003) em 0x7c901230. clique em ok para encerrar o programa.” Não poderia deixar de registrar a mensagem bilíngüe do meu sistema durante a tentativa de produção deste texto.
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Seria surpreendente encontrar alguém que possui relação estável com as
máquinas digitais e suas interfaces e que não possua uma porção de sugestões para uma
melhor interação. Os inconvenientes entre homem e sistemas levantados pelo projeto de
Giselle Beiguelman são um retrato da discussão sobre interfaces: faltam soluções que
permitam uma interação satisfatória. Os computadores deixaram de ser uma ferramenta
técnica e passaram a ser um aparato pessoal, mais íntimo. Um sistema que será usado
por diferentes pessoas, com diferentes formações e idades, não deveria, entre outras
ações, se comunicar com uma pessoa em momento agudo como se estivesse falando
com um técnico em computação.
É importante ressaltar que por ser uma realidade recente — o aumento do
número de computadores —, características que dificultam uma boa interação como
essas acima citadas não são uma surpresa. Entretanto, sua afirmação na sociedade,
mesmo com diversas ressalvas, é cada vez mais presente, pois, apesar das dificuldades e
dos problemas de relacionamento com as interfaces digitais, os benefícios da presença
destes sistemas no cotidiano parecem ter, por algum motivo, um valor que justifique a
razão de seu crescimento.
Para usar exemplos simples e até antigos, por mais que mensagens estranhas
apareçam na tela de um computador ao usar os serviços de um banco via internet, por
mais que a velocidade de conexão esteja aquém do esperado — se bem que em certas
ocasiões essa questão pode ser crônica — e por mais que inconvenientes informações
saltem na frente do seu extrato bancário, ainda assim, parece mais vantajoso realizar tais
atividades através da internet do que ir a um banco para realizar uma transferência com
a possibilidade de se deparar com uma fila mais assustadora que a fraca conexão.
E o que dizer de possuir todos os volumes de uma grande enciclopédia alocada
em um computador? A possibilidade de uma procura mais rápida por uma determinada
informação e um número de respostas superior do que ao de folhear, através do índice,
as páginas de livros é uma das potencialidades que fazem os sistemas digitais estarem
cada vez mais presentes.
Enfim, seja através da internet ou através de softwares locais, os sistemas e suas
interfaces estão colaborando no fortalecimento de uma cultura baseada, fortemente, nos
processos em rede e nos processos digitais. Um contexto que, da mesma forma que seus
instrumentos, é recente e ainda pouco compreendido.
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Assim, além de tentar entender a forma com que a interface digital pode
influenciar na concepção que teremos dos sistemas e de seu conteúdo — como dito no
início do capítulo —, é importante compreender este contexto em que serão usadas,
quais limitações podem ser impostas, quais os suportes, quem as usará, etc. Entender
um pouco mais os aspectos destas culturas é essencial para guiar uma discussão sobre as
características que as interfaces digitais devam possuir e, ao mesmo tempo, por que
adaptações as pessoas poderão passar — ou já estão passando — para poder usufruir
deste potencial e permitir uma interação mais rápida e, acima de tudo, precisa e
eficiente. A interface digital antes de tudo é que possibilita que uma atividade seja
realizada através da linguagem digital.
Atualmente, os mais populares conceitos de interface estão baseados em idéias e
soluções estabelecidas nos anos 80, e quase 20 anos depois, ressaltando que neste meio
tempo emergiu a internet, continuam ditando a mesma forma de interação com sistemas
computacionais.
Como contou Ted Nelson em palestra realizada em outubro de 2005 na PUC-SP,
em 1973, engenheiros da Xerox PARC desenvolveram o primeiro computador pessoal,
o Xerox Alto, primeiro computador a usar a metáfora do desktop e a interface gráfica,
com características similares às encontradas hoje. Ela foi inicialmente criada para ser
usada pelas secretárias da empresa e, segundo Nelson, elas acharam-na muito eficiente.
Em 1981, a Xerox resolveu produzi-la em larga escala com o 8010 Star Information
System. Apesar de ser considerado o primeiro computador pessoal com interface gráfica
a ser comercializado, seu sucesso não foi contundente. Posteriormente, a idéia chegou a
Steve Jobs, com a possibilidade de introduzi-la nos novos computadores da Apple. Em
1982 , também sem muito sucesso, foi lançada com o Apple Lisa. Mas foi em 1984,
com o lançamento do Apple Macintosh, com direito a filme de lançamento dirigido por
Ridley Scott, que o GUI6 (Graphical User Interface) — interface gráfica — apareceu
para o público geral sendo fulminante para seu antecessor, o CLI (Command-line
interface) — interface de linha de comando baseada em texto. E pensar que muitos
especialistas da época achavam absurda a idéia de arrastar um arquivo prestes a ser
inutilizado na lixeira.
6 Os mais populares sistemas operacionais — Linux, OS X, Windows — são exemplos de interfaces gráficas (GUI).
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Porém a interação mais intuitiva, a linguagem gráfica mais próxima do
repertório das pessoas, a visualidade da informação e a sensação de uma informação
mais palpável tornaram o GUI uma unanimidade. O que antes necessitava de um bom
tempo dedicado a estudos passava a ser entendido de forma mais clara e rápida — afinal
fora desenvolvido para pessoas nada íntimas com computadores na época — , o que
permitiu que o público geral dos computadores crescesse em grande proporção.
Contudo, as premissas que guiaram o desenvolvimento das interfaces digitais
precisam ser atualizadas. É claro que os conceitos evoluíram desde os anos 80, mas as
mudanças não foram em sua base.
É bom ressaltar que esta interface gráfica vigente foi desenvolvida em um
contexto onde a quantidade de informação que seria armazenada e manipulada estava
restrita basicamente ao disco rígido de um computador — e para isto se mostravam bem
eficiente. Hoje, entretanto, a quantidade de informações restrita ao disco rígido de um
computador é praticamente nula se comparada à quantidade total de informação
possível de ser acessada através de interfaces digitais.
É fato que estamos usando, ainda, muito pouco do potencial que os sistemas
digitais podem proporcionar. Se há 20 anos o modelo de interface gráfica proporcionava
maior velocidade no manuseio das informações para as práticas daquela época, hoje já
não tem o mesmo rendimento.
Porém, uma mudança de padrão de interface dificilmente será similar a esta
última. A quantidade de pessoas que utilizam computadores é muito maior do que em
1984, e uma mudança desta magnitude, hoje, demandaria um processo mais vasto. Isto
não quer dizer que este padrão não pode ser alterado. Ele, entretanto, deve ser alterado
— e já está sendo — de maneira mais suave.
Agora, se o contexto originário das atuais interfaces não corresponde mais à
realidade, qual é sua forma atual? Quais variáveis relevantes devem interferir na
elaboração das interfaces? Enfim, quais mudanças e transformações ocorreram nos
últimos 20 anos e, em razão destas, quais atributos das interfaces ainda tem uso
eficiente, quais necessitam de atualizações e quais são, hoje, um limitador.
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1.2 Um novo contexto para as interfaces
Em geral, um novo conhecimento ou uma nova descoberta afeta de alguma
forma os aspectos culturais de uma sociedade e, dependendo de sua relevância, requer
mais ou menos tempo de adaptação, apropriação ou rejeição.
Ainda, na medida em que os traços de uma novidade são expostos de forma mais
clara, passa-se a ter mais informações a seu respeito. Em pouco, o conhecimento sobre
ela passa por ordenações, agrupamentos, classificações, para, assim, poder ser melhor
compreendida.
Este processo de aprendizagem pode ser analisado na recente transformação
cultural e social que vem ocorrendo com a introdução dos sistemas digitais e mais
recentemente da internet7. Não apenas na aprendizagem das linguagens computacionais,
dos códigos, das padronizações, das convenções e na forma de manipulação de
informações, mas na aprendizagem cultural e nas atividades sociais que todas essas
mudanças acarretam.
Na introdução de seu livro Smart Mobs (2003), Howard Rheingold conta que os
primeiros sinais da próxima mudança social revelaram-se para ele no ano 2000 quando
notou nas ruas de Tóquio pessoas olhando para seus aparelhos celulares e trocando
informação de texto — “texting” — em vez de usar o aparelho para falar.
“Texting”, segundo o autor, é apenas uma pequena porção de mudanças mais
profundas que ocorrerão nos próximos dez anos. Chips com comunicação via rádio em
substituição aos atuais códigos de barras, internet sem fio em diversos estabelecimentos,
a compra de um refrigerante em uma máquina através da interface do celular, a
obtenção de um livro usado de uma pessoa em uma pequena cidade em um país
longínquo através de sites especializados, são todos exemplos destas transformações,
exemplos desta cultura digital e de rede que estão sendo paulatinamente incorporadas ao
nosso cotidiano, um tipo de comportamento que o autor denomina de smart mobs —
multidões inteligentes.
7 Naturalmente não é a introdução destes sistemas a responsável por todas essas transformações sociais. O contexto destas mudanças é resultado de milhares de variáveis, incluindo as citadas. Porém, o recorte feito foi utilizado para exemplificar melhor os conceitos abordados. Os sistemas digitais e a internet não emergiram do nada, são partes de um processo em constante movimento.
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A óbvia questão é que a incorporação destes hábitos caminha a passos mais
acelerados do que seu esclarecimento frente a todos; o uso vem à frente das reflexões.
Não há ainda uma geração que tenha crescido em um contexto em que essas
mudanças poderiam ser encaradas como “naturais”, inatas. Contudo, em menos de dez
anos uma boa parte da sociedade olhará para estas mudanças de hoje com outro
potencial e, da mesma forma, se surpreenderá com novas mudanças de sua época.
Ainda há de surgir uma massa de críticos com o ponto de vista em que questões
gerais sobre o uso cotidiano de sistemas digitais e a comunicação pela internet, por si
só, não serão necessariamente o foco da discussão, e sim questões mais específicas
como a forma com que a economia funciona neste contexto, ou como a música, a
medicina, o jornalismo, a sociologia, o marketing, etc., porque, para eles, muitas das
importantes questões de hoje parecerão “naturais”8. As respostas estarão na própria
experiência do cotidiano e as discussões serão sobre um novo paradigma. Um ponto de
vista em que as conseqüências destas transformações não serão apenas especuladas, mas
experimentadas por um número maior de pessoas com maior capacidade para usufruir e
compreender tais hábitos. Paul D. Miller argumenta que “jovens compositores precisam
pensar no mundo em sua volta, um contexto composto de redes wireless, retransmissões
de aparelhos celulares, sistemas híbridos …” (Miller, 2004). Seremos todos
especialistas das novidades de hoje.
Entretanto, hoje, neste contexto inicial de transformações, a falta de uma
reflexão especializada pode ser observada no uso cotidiano das interfaces culturais.
Assim como o conhecimento das características destas transformações sociais, da noção
popular de internet, de linguagem e de sistemas digitais, o uso que atribuímos às
interfaces também é pouco específico, e até certo ponto, ingênuo. Como o uso vem
antes da reflexão, é natural que diversas soluções sejam incorporadas a determinadas
funções sem uma adaptação crítica profunda — ainda mais em um contexto de
produção coletiva.
Uma ressalva que deve ser feita à ação coletiva é que a produção vernacular
apesar de muito valiosa não é, hoje, a única responsável pelo desenvolvimento das
formas de interação com os sistemas.
8 É claro que houve e há críticos que o fazem atualmente, mas estes são uma exceção. A massificação deste pensamento ainda está por vir.
19
Modelos de sites institucionais como os colocados por Jakob Nielsen e Marie
Tahir — alguns deles estão em seu livro Homepage Usability (2001) — destacam
características de grande apelo popular como o uso da marca ou logotipo no canto
esquerdo superior de uma página ou o uso de títulos e terminações para indicar funções
específicas em um site e ratificam essas qualidades com números e pesquisas que
demonstram que a maioria das pessoas entendem que esta é a melhor forma. Há um
pensamento de que o mais simples e óbvio será o que melhor se adequará e o que
proporcionará melhor rendimento.
É preciso apenas ter cuidado para que o mais simples não seja um limitador.
Steven Johnson, no livro Emergence (2003), alerta sobre o perigo no excesso de
pensamento em grupo. Comentando sobre a forma com que o site Slashdot — de Rob
Malda — se utiliza para moderar as infindáveis informações postadas, ele discorre sobre
uma possível tirania da maioria em sistemas que se norteia por um visitante médio. Os
pontos de vista da maioria são amplificados, enquanto os da minoria são silenciados
(Johnson, 2003:119), o que poderia afastar novas idéias que, por talvez serem fora de
padrões cotidianos, não teriam inicialmente o apoio necessário para a maior maturação.
Graves problemas que podem surgir com essa situação podem ser levantados a
partir do livro Words made flesh, de Florian Cramer. Em sua opinião, quanto maior a
distância entre o código e a percepção, mais selvagem é a imaginação. Quanto mais
abstrato for o código, mais especulável a interpretação obtida (Cramer, 2005:8).
A questão é extremamente importante, pois essa maioria, com uma força
incrível, tem pouco ou quase nenhum entendimento sobre os códigos que estão agindo
por trás da interface gráfica — que ela reconhece. Seria similar a um arquiteto que não
tivesse conhecimento sobre engenharia —, o que talvez explique a qualidade de grande
parte das moradias atuais.
Se estamos utilizando pouco do potencial que o digital nos permite, uma forte
razão é pois estarmos ainda lidando com uma grande massa de informações não
organizadas e desordenadas. Esta falta de organização é refletida diretamente na forma
como estas informações são absorvidas e nos comportamentos em que essa
incorporação se resolve. E apesar do grande volume de idéias e soluções para a melhor
utilização das interfaces e dos sistemas, as mudanças necessárias parecem ser um pouco
maiores e mais técnicas do que como se discute no âmbito da maioria. A difusão e a
popularização das novas tecnologias e linguagens não foram acompanhadas de
20
transformações significativas na concepção de interfaces que permitissem a
manipulação da informação de forma direta e organizada.
1.3 A busca de um melhor entendimento da rede
Para exemplificar esse amontoado de informação basta tomarmos um elemento
representativo desta cultura: um site na internet.
Um site — sítio — é um lugar, um espaço. Não requer maiores definições, são
genéricos. É apenas um local onde podem ocorrer infinitas formas de comunicação,
ações, encontros, transações, processamentos, trocas e ainda um local onde informações
podem ser simplesmente armazenadas e acessadas. E é desta última forma que grande
parte dos sites são tratados — como se fosse possível dizer que existe um estereótipo de
site. São basicamente sites informacionais e institucionais que dispõem conteúdo para
ser acessado por pessoas conectadas à internet, exatamente com a mesma lógica com
que eram utilizados no meio acadêmico antes da generalização da internet.
Entretanto, algumas especializações já começam a surgir. Entre elas os sites de
busca, sites de comércio eletrônico, sites de entretenimento e uma gama de outros
serviços. Porém, a idéia de uma especialização ainda é meio difusa, e isso poderá
perpetuar enquanto atividades econômicas e sociais continuarem a ocorrer em interfaces
gráficas como as que foram criadas no século passado sem esta finalidade. Basta acessar
diferentes sites especializados e diferentes sites informacionais que não será difícil
deparar-se com uma estrutura, arquitetura e hierarquia de informação similares, com
seus menus e páginas ressaltados pela aparente rigidez do código, carentes de novos
conceitos de organização digital e de novas formas de interação. É fato que diversos
sites trazem formas de navegação diferenciadas, com efeitos que lembram a produção
televisiva, com soluções que exploram mais a fundo as potencialidades do digital, mas
ainda estão nivelados pelas atribuições mais elementares da atual interface gráfica.
21
Ferramentas de busca, lojas, portais de entretenimento, feiras livres. A grande maioria dos sites segue um padrão visual com topo, marca situada na parte superior, campo para procura, muito conteúdo distribuído pela página e organizado em colunas, entre muitas outras características.
Fator contundente desta padronização é a presença determinante dos softwares
que permitem este acesso — os browsers. Usados para carregar a maioria desses sites,
são extremamente modeladores, têm grande influência na determinação dos atributos do
conteúdo, podendo se sobressair, inclusive, frente a ele. Essa característica modeladora
não é de fato o problema, é mais uma constatação como observou Manovich (2001:65),
mas as referências culturais usadas na definição das interfaces destes programas não são
as mais adequadas à demanda desta nova cultura e podem servir de barreira para novas
idéias. Por exemplo, a linearidade imposta com os comandos de avançar e retroceder às
páginas, como se faz em um livro, ou a própria idéia de página já embutem na
22
navegação digital conceitos utilizados na mídia impressa, limitando-a a determinadas
formas de leitura. A informação vem formatada de maneira inadequada, como
amplamente questionado por Lev Manovich (2001) e Giselle Beiguelman (2003).
Não é à toa que a busca por outras soluções, como softwares próprios para
determinadas atividades, já estejam funcionando em larga escala. Softwares como os
p2p — ponto a ponto — utilizados para a troca de arquivos, e os comunicadores —
ICQ9, Microsoft Messenger10, Google Talk11, Skype12 — são exemplos que mostram
que uma rede digital ativa, onde ações socioeconômicas possam ser desempenhadas,
está crescendo e tornando viável o desenvolvimento de novas soluções de interface.
Entretanto, esta herança cultural deve ser entendida como um processo natural.
No momento em que a nova tecnologia foi incorporada à sociedade, esta atribuiu-lhe
significados referentes aos conteúdos culturais pré-existentes. Mesmo porque no
momento em que estas atribuições foram dadas não havia pistas de que pudessem ser
usadas da forma que são hoje.
É esta a idéia apontada por Jay David Bolter e Richard Grusin em seu livro
Remediation (2000). Seria no momento de competição, de remontagem, de co-
existência entre antigas e novas formas culturais, que as novas mídias visuais atingiriam
sua significância cultural. Esta constatação é relevante, pois para mudar a forma de
apresentação das atuais interfaces é interessante, a priori, saber o que as levou a possuir
tais características. Contudo, não pode ser usada como uma justificativa para o fraco
aproveitamento do aparato digital.
Quanto mais as ações socioeconômicas forem realizadas através de sistemas
digitais, mais precisão e controle na manipulação da informação serão necessários. O
controle mais rigoroso permite não apenas uma interação mais rápida com a
informação, mas formas de interação que antes não eram possíveis.
É necessário também que a informação esteja disponível de forma ubíqua,
onipresente, e exemplos assim são mais próximos, como a possibilidade de conexão à
internet através dos aparelhos celulares e as redes sem fio — wireless — conectadas,
também, à internet.
9 http://www.icq.com/ 10 http://messenger.msn.com/ 11 http://www.google.com/talk/ 12 http://www.skype.com/
23
Porém, essa grande massa de informação pouco definida parece estar presente
em elementos mais básicos que os sites, afinal a própria internet parece ser um grande
mistério. A concepção popular sobre internet não dá conta da sua materialização, o que
abre espaço para mal-entendidos. Como enfatiza Eugene Thacker em seu prefácio para
o livro Protocol: how control exists before descentralization, de Alexander Galloway
(2004):
“As redes (…) podem envolver informação como uma entidade imaterial, mas
esta informação sempre trabalha em direção a efeitos e transformações reais. Assim, de
um importante modo, redes não são metáforas. A metáfora da rede induz ao erro, é
limitante. (…) Com a metáfora da rede, é possível apenas ver algo nebuloso chamado
‘informação’ que misteriosamente existe em uma igualmente nebulosa coisa chamada
ciberespaço ou internet” (Galloway, 2004:xiv).
A descrição detalhada que Galloway faz sobre a rede, na sua estrutura e nas suas
regras, nos capítulos iniciais de Protocol deixa claro que a rede é tão física quanto seus
efeitos.
Se a disseminação mundial de computadores ocorreu na década de 80, na década
seguinte apenas tiveram o trabalho de conectá-los. A rede consiste de inúmeros
computadores conectados, um acessando informação do outro. Porém, a idéia de um
espaço nebuloso ainda é muito forte. Algumas expressões parecem transmitir a idéia de
que a internet é um local metafísico, de onde é possível, por exemplo, baixar arquivos,
mesmo não entendendo que tal arquivo ainda não saiu da internet. Seria similar se há 20
anos as pessoas baixassem uma música da rádio direto para uma fita cassete.
Portanto, se não há o entendimento disseminado de que um site está armazenado
em um outro computador, não importando sua localização física — e não em um local
misterioso —, se não há o entendimento de que a internet e qualquer rede de
computador não é algo desconhecido, fica mais complicado haver um entendimento
sobre os efeitos reais deste contexto e conseqüentemente mais obstáculos para o
entendimento destas novas culturas que se erguem.
24
Se não há o esclarecimento do contexto em que a sociedade constrói suas novas
formas de relacionamento, fica mais complexo para ela determinar o modo como quer
fazê-lo.
1.4 A digitalização dos instrumentos e da comunicação
A primeira maneira de interpretar este contexto é observando dois grandes
eventos que o estruturaram e que, apesar de terem emergido em momentos distintos, são
imbricados e usualmente interpretados como a mesma entidade. O primeiro é a forte
presença da linguagem digital — presente em diversos aparatos em substituição a outros
mecânicos e analógicos —, que teve sua disseminação através do computador pessoal,
como dito anteriormente, a partir da década de 1980. O segundo é a rede criada a partir
da conexão entre parte destes computadores na década seguinte.
Entender como ambos se desenvolveram gera uma boa base para compreender
melhor este contexto e para a discussão acerca das interfaces digitais. Como coloca
Manovich (2001:69):
“No início da década [1990], o computador era amplamente compreendido
como uma simulação de máquina de escrever, pincel ou régua para desenho, ou seja,
uma ferramenta usada na produção de conteúdo cultural que, uma vez criado, seria
armazenado e distribuído na mídia apropriada — página impressa, filmes, impressão
fotográfica, gravação eletrônica. No fim da década, com o uso comum da internet, a
imagem popular do computador não era mais apenas de uma ferramenta, mas também
de uma máquina de mídia universal, que poderia ser usada não apenas para criar, mas
para armazenar, distribuir e acessar todas as mídias.”
Manovich aponta claramente que o computador teve sua identidade alterada
durante a década de 90, sendo, antes, aproveitado exclusivamente pelo seu potencial
digital e posteriormente, também, como um meio de comunicação. A importância de
entender estes dois eventos se dá na análise de suas conseqüências, pois, mais que saber
quais são suas formas atuais, é importante compreender como essas formas evoluíram.
25
É possível tornar este contexto mais claro entendendo, por exemplo, o recorte de
como evoluíram a produção e distribuição de programas televisivos. Em meados do
século passado, ambas — produção e distribuição — eram restritas a governos ou
grandes corporações que detinham poder econômico para tal. A infra-estrutura
necessária para a produção de um conteúdo cultural como os programas televisivos,
câmeras, instrumentos para a iluminação, ilhas de edição, entre outros, eram muito
caros, assim como as gigantes antenas usadas na difusão do sinal. Entretanto, com o
advento da linguagem digital e com o crescente número de aparatos eletrônicos
incorporados à sociedade, não apenas a disseminação da técnica usada para manusear
estes aparatos foi ampliada como os preços dos aparatos caíram vertiginosamente.
Não é segredo que as novas técnicas e tecnologias permitem a redução de custos
de produção, fabricação, criação em geral. Para se ter uma idéia genérica, um aparelho
de televisão que custava na primeira metade do século passado aproximadamente US$
7.000,00 chega a custar hoje menos de US$ 50,00; e um aparelho de DVD, que há
pouco mais de 10 anos nem existia no mercado e que custava, 5 anos atrás, mais de US$
300,00, hoje pode custar menos de US$ 50,00.
Com os custos mais baixos e um maior número de adeptos, câmeras digitais,
softwares simulando uma ilha de edição e toda uma gama de aparatos digitais está mais
acessível à sociedade. Esse movimento possibilita, também, que mais corporações e
grupos menores possam arcar com os custos de uma produção e conseqüentemente uma
maior variedade de programas começa a ser produzida. Porém, num primeiro momento
esses novos produtores de conteúdo ainda dependiam das grandes emissoras para
transmitirem e divulgarem suas criações.
O que se seguiu pode ser observado com o crescimento das redes de televisão
fechada e com o aumento de canais disponíveis. Não que as redes de televisão aberta
tenham acabado — assim como o livro e o rádio mantiveram suas tradicionais formas
de distribuição — mas a produção deixa de ser centralizada como antes e programas
começam a ser produzidos também de forma independente. A distribuição, entretanto,
prosseguia muito cara. Essas redes criadas na década de 1940 ainda estavam sob
controle das ‘mesmas’ corporações. Assim, a redução dos custos exigiu uma
transformação das grandes emissoras — que também marcaram presença neste novo
cenário —, mas os fatos mais relevantes foram que a tecnologia foi disseminada, seu
custo baixou e mais fontes de informação, principalmente aquelas independentes das
26
tradicionais, passaram a produzir conteúdo. É claro também que a edição de todo este
conteúdo que era produzido e transmitido ainda estava a cargo de quem detinha aparato
para tal, no caso, ainda as grandes corporações, mantendo sob seu controle o que era
divulgado.
O preço de produção de conteúdo, entretanto, continuou caindo, proporcionando
a uma parcela ainda maior da sociedade a elaboração deste tipo de realização cultural.
Isto se deu, em grande parte, pelo início da difusão do computador pessoal e a
potencialidade instrumental que ele proporcionava. Se apenas estúdios profissionais
podiam antes possuir a infra-estrutura para editar uma imagem, com o computador
pessoal essa potencialidade foi levada a muitas pessoas. “Há informação demais no ar,
há mensagens demais armazenadas nos suportes eletrônicos e tudo isso se torna cada
vez mais disponível a um leque cada vez maior de pessoas”, comenta Arlindo Machado
(2001).
Porém, como o próprio Manovich afirma, a forma de distribuição desta produção
ainda usava outras mídias tradicionais. Por mais que a música tenha passado a ser
produzida com a utilização da linguagem digital, por mais que livros, revistas e jornais
tenham passado a ser diagramados, e muitas vezes criados, em programas de editoração
digitais, eles ainda eram distribuídos sob formas tradicionais — livros e CDs — que
exigem custos elevados. Por mais que tenha aumentado o número de canais geradores
de conteúdo, desde o barato JackAss até produções mais abastadas, especialmente
aquelas sob muito investimento de grandes produtoras como a Fox e a Warner, por
exemplo, sua distribuição ainda demandava muito investimento.
Com o crescimento da internet esse quadro sofreu outra grande transformação. A
comunicação vertical do modelo funcionalista, tal como a conhecemos desde o início do
século passado, foi e está sendo afetada por uma comunicação organizada em redes,
baseada na descentralização da informação. Enquanto o modelo funcionalista, ainda
hegemônico, opera em função de um emissor e n receptores —, uma emissora de
televisão define seu conteúdo, sua forma de apresentação e coloca à disposição seu sinal
para que as pessoas possam acessá-lo —, o modelo de organização baseado em uma
trama de personagens, permite que todos tenham a possibilidade de desempenhar tanto
o papel do emissor quanto o do receptor. A distribuição já não é mais uma barreira. O
custo para transmitir um conteúdo cultural televisivo já não é um limitante. A tecnologia
27
de transpor o espaço físico, se comunicando através de ondas, estava acessível a uma
grande parte da sociedade.
Essa forma de organização é possível graças ao modo pelo qual a comunicação
entre computadores foi desenhada: qualquer computador conectado à rede pode acessar
qualquer outro também conectado. Dessa trama resulta uma relação não-hierárquica
(Galloway, 2004), cujos nós — cada ponto da rede cada computador — possuem as
mesmas características e potencialidades. Tal descrição possibilita que as pessoas
devidamente conectadas — e não é distante a idéia que uma grande parte delas
efetivamente esteja — possam comunicar, acessar, transmitir e trocar informações com
outras pessoas, ou seja, produzirem e distribuírem seus próprios conteúdos culturais.
A partir deste quadro, é possível entender a importância que as interfaces
culturais têm de possibilitar que as pessoas tenham fácil acesso à produção e
distribuição de cultura. Não adianta apenas ter uma tecnologia disponível a um baixo
custo e não estar apto tecnicamente para aproveitá-la. Blogs, Fotoblogs, Fóruns, Orkut,
etc. Hoje, há uma série de ferramentas que possibilitam este tipo de função, mas além de
entraves na própria interface, algumas barreiras externas fazem uma grande pressão
contra esse movimento. Afinal, que grande corporação ou governo quer perder controle
do conteúdo cultural e informacional amplamente divulgado? Que grande corporação ou
governo quer abrir mão de um forte canal de formação de opinião?
Outra situação que envolve a digitalização da produção cultural e sua
distribuição está ocorrendo com a indústria fonográfica. Com a digitalização e o
conseqüente barateamento do aparato tecnológico, a realização de um produto musical
deixou de ser restrito aos grandes conglomerados desta indústria. Pequenos selos
começaram a gravar o conteúdo musical em formato digital mas, apesar de ganhar
importância no seu cenário, ainda eram dependentes das grandes corporações que
investiam pesado na divulgação e na distribuição dos produtos.
Esta estrutura parecia estável até surgir, através da internet, os chamados
softwares p2p — ponto a ponto —, com seu primeiro representante de peso, o Napster.
Esses softwares permitem, através de uma rede específica, a troca direta de arquivos
digitais, incluindo os de áudio, isto é, funcionam como um canal gratuito para a
obtenção de uma música. Bem mais ‘leves’ que os dos programas televisivos, estes
arquivos começaram a ser trocados entre as pessoas causando um grande problema para
a indústria fonográfica que começou a se movimentar.
28
A guerra travada em cima da aquisição gratuita de músicas parece longe de um
fim, mas já dá amostras do que pode ocorrer. Redes de distribuição livre de músicas são
perseguidas, softwares são recolhidos ou até comprados pelas grandes corporações na
tentativa de conter este movimento, porém, novas redes e softwares surgem mais rápido
que sua proibição ou compra. Diversas batalhas judiciais, algumas inclusive com a
ingênua intenção de prejudicar quem adquire as músicas, resultou, entre outros, no
manifesto publicado em janeiro de 2005 na revista semanal francesa "Le Nouvel
Observateur", no qual vários artistas tomaram partido a favor da pirataria e da discussão
aberta sobre esta problemática.
Liberem @música! No momento em que dezenas de internautas serão julgados
por terem baixado arquivos musicais em programas p2p, nós denunciamos essa política
repressiva e desproporcional, da qual são vítimas alguns bodes expiatórios. Assim como
oito milhões de franceses, pelo menos, nós também, um dia, já baixamos uma música e
somos, portanto, delinqüentes em potencial. Pedimos que esses processos absurdos
sejam interrompidos. Propomos a abertura de um amplo debate público, envolvendo o
governo, todos os representantes da indústria musical, todos os artistas, com o intuito de
obtermos uma melhor defesa dos direitos autorais, e também os consumidores, para
juntos encontrarmos respostas justas e, sobretudo, adaptadas à nossa época.
Uma rede, pessoas pondo à disposição seus arquivos e uma interface capaz de
procurá-los sem a necessidade de deslocamento físico até uma loja para adquiri-los —
em troca de dinheiro —, ou mesmo comprar através da internet e esperar o produto ser
distribuído em um CD. Com uma nova forma de distribuição, estes arquivos são
diretamente difundidos. Todos estes elementos estão proporcionando, talvez, o início de
uma transformação de mentalidade da sociedade para as potencialidades do contexto
digital e em rede. Um movimento que não ficará restrito aos arquivos musicais e que já
incomodam a indústria do cinema, a indústria do videogame, de softwares e todas
aquelas que têm seu conteúdo digitalizado.
Em artigo publicado por Daniel Cohen em 29 de março de 200513, no jornal
francês Le Monde, o assunto é colocado de forma intrigante. “De um ponto de vista
estritamente financeiro, o debate parece claro: ao piratear arquivos musicais o usuário
13 Traduzido e editado em http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/lemonde/2005/03/29/ult580u1476.jhtm
29
está evitando pagar por um produto, o que onera e ameaça a indústria do disco, em
primeiro lugar, e prejudica por tabela os artistas e a criação musical como um todo.”
Porém o autor pondera:
“De fato, o papel das ‘majors’ [grandes corporações] é bastante ambíguo. Elas
gastam certamente bastante dinheiro com o objetivo de promover a divulgação dos
artistas, mas, em grande parte, são as suas despesas com esta atividade que contribuem
para a inflação das tarifas de promoção, inflação esta que tem por efeito, entre outros,
de excluir os selos independentes. [...] Defender as ‘majors’ em nome das despesas de
promoção que elas efetuam equivale, de certa forma, a defender os grandes canais de
televisão em nome da idéia de que somente eles podem pagar pelos direitos de
retransmissão das partidas de futebol, esquecendo-se na passagem de que eles são os
principais responsáveis pela inflação que pesa sobre esses direitos.”
É um problema cada vez mais freqüente a tecnologia alcançar um âmbito
popular e alterar o funcionamento de algumas atividades sociais, algo que pode também
ser encontrado no antigo embate entre os direitos autorais das publicações impressas e a
possibilidade de serem multiplicadas por máquina fotocopiadora, sem o pagamento dos
devidos créditos. Recentemente, em universidades brasileiras, as cópias de textos
usados em sala de aula foram proibidas, incluindo aquelas as quais a instituição não
possuía em acervo, ou até mesmo aquelas que raramente são encontradas em um acervo.
É possível compreender que os entraves para uma absorção desta nova cultura
estão enraizados em diversas camadas da sociedade. Não são apenas questões culturais,
mas econômicas, políticas, sociais, filosóficas, etc., e que, por isso, as mudanças serão
gradativas, demandando um bom trabalho de divulgação científica e desmistificação de
alguns conceitos, e que tem como um dos principais meios a interface digital.
Um fato interessante que ilustra este período de transição é o espanto de Ted
Nelson e George Landow ao se depararem com uma série de cópias de filmes, softwares
e videogames nos polêmicos, populares e importantes shoppings de São Paulo. Como
se, para a sua cultura — e fica nítida a diferença —, a presença da pirataria significasse
muito mais um crime do que um reflexo econômico14.
14 Não convém entrar neste mérito no trabalho, mas a questão da pirataria não é restrita nem teve início com a digitalização de parte do conteúdo cultural. Hoje, e de maneira contundente como muitas outras potências o fizeram no passado, a China — que não atende à lei internacional de patentes — fortalece este movimento. Empresas, como a Reebok, que não possuem fabricação própria, contratam empresas na China, uma vez que o preço para a produção — devido, inclusive, ao preço da mão-de-obra — para a
30
É nítido que uma mudança de concepção está em movimento, e esta está se
mostrando tão densa que parece inviável tentar contê-la. É mais factível um bom
entendimento crítico.
1.5 Uma questão de autoria
Envolta a uma imensidade de informação disponível na rede e às idéias
equivocadas sobre ela, vem à tona outra série de conceitos. Há aqueles que considerem
este movimento como o início de uma nova ordem mundial, onde as estruturas sociais
possam, finalmente, chegar a uma situação ideal, como há aqueles que anunciam o fim
dos tempos e o domínio das máquinas.
Criar um modelo de comunicação que trabalha com a produção cultural de forma
unificada, ou seja, trocar, através da internet, informações no formato digital, não vai
mudar diretamente a ordem básica da sociedade. A presença da rede e de uma
comunicação horizontal não acabará necessariamente com grandes empresas de
comunicação em massa, nem fará com que pessoas comuns tenham o mesmo potencial
de divulgação que grandes empresas. O portal da Folha de S. Paulo continuará
funcionando como uma mídia de massa e o blog de um profissional liberal continuará
tendo seus objetivos bem menos ambiciosos. Não será a tecnologia que proporcionará
uma mudança tão drástica. Não é por, simplesmente, estar em rede que o tornará
acessível a todos15.
Muitas discussões, entretanto, trazem à tona mais interpretações equivocadas
sobre a internet e suas características, quadro que gera certo desconforto na sua
adaptação e incorporação. “A ignorância sobre a radicalidade das transformações com
fabricação de seus produtos é muito mais barato que nos EUA. Uma vez na China, em uma fábrica que não é da Reebok, em um país que não atende às leis de patente, parte da produção é vendida sem intermediação da própria Reebok e distribuída ao mundo todo, inclusive em shoppings especializados de São Paulo. 15 Não cabe aqui, também, discutir como se dará essa mudança no lado econômico, mas se as grandes corporações e governos ‘perderam’ parte do controle sobre a produção e sobre a distribuição, uma nova forma de fazê-lo já está surgindo. Em um contexto repleto de pessoas aptas para produzir e distribuir conteúdo cultural, uma grande questão se encontra no método utilizado para que estas informações possam ser encontradas; não é à toa que o Google cresce de forma assustadora.
31
que nos defrontamos hoje é o atestado de nossa miséria epistemológica” (Beiguelman,
2005:57).
Temas como a credibilidade da informação, que carrega consigo a questão da
autoria, levantam questionamentos que não são apropriados ao atual contexto e que
acabam — naturalmente — criando mais barreiras para essa incorporação. Dependendo
dos objetivos e da cultura pré-existente, não saber a procedência nem mesmo a
veracidade de uma informação pode ser um tanto quanto preocupante. Da mesma forma
que Monteiro Lobato, um dos primeiros adeptos da máquina de escrever, teve um
trabalho recusado por não se ter a garantia de que o texto fora escrito por ele mesmo,
afinal sua caligrafia não estava presente. Cabe às pessoas, entretanto, traduzir este
contexto de forma adequada e entender quais as formas coerentes de adaptação e
integração. Entender e interagir com os aspectos destas novas formas culturais para
recriá-los de maneira diferente.
“É espantoso. E esse espanto nos leva a uma conclusão e um alerta. No que diz
respeito aos aspectos conclusivos, revela o vazio da discussão que pretende preservar a
autoria pela manutenção do vínculo entre um nome próprio e sua obra.
No que tange aos alertas, mostra o quanto são infundados os temores de
submergirmos em um oceano de informações que invadem telas e e-mails, de forma
anárquica e sem chancela de veículos autorizados.” (Beiguelman, 2005:57)
Vale ressaltar que o anonimato e a veracidade das informações não são aspectos
exclusivos dos processos que ocorrem através da internet. O anonimato é um recurso de
comunicação e está presente em cartas, livros, conversas, etc. Lidamos com ele o tempo
todo, sem ser necessariamente um entrave na comunicação.
O anonimato associado a uma falta de confiança é, para uma grande maioria —
se não quase uma totalidade — um fator de difícil controle. É claro que esta falta de
credibilidade se apresenta em diversas intensidades, desde fofocas colocadas em um
blog longínquo, como — ou principalmente — as informações noticiadas sob a
chancela de grandes corporações de comunicação. Afinal, qual a credibilidade da
informação gerada pela CNN durante a guerra do Golfo? Qual a credibilidade da
informação passada pelos telejornais da Rede Globo? Qual a credibilidade da
32
informação passada em programas como Tarde Quente do “humorista” João Kleber na
Rede TV — que inclusive foi suspenso por conter conteúdo de baixa qualidade16.
Não são, entretanto, apenas os pequenos e pouco ambiciosos e os grandes grupos
de comunicação que têm, hoje, sua credibilidade em jogo como da forma discutida por
Orson Welles em Citizen Kane (1941) e sua “edição brasileira” Beyond Citizen Kane
(1993)17 18. Jogar com a credibilidade também foi uma prática utilizada, entre outros,
por escritores como Daniel Defoe em 1719 com seu clássico Robson Crusoé e mais
atualmente por Dan Brown em O código da Vinci. Nestes casos, o recurso foi
propositalmente utilizado parar gerar dúvida no leitor para o fato de que a história
contada poderia ser real e não ficção, isto é, fazendo parte da construção da narrativa.
O que a internet propicia, aparentemente, é um número de informações
surpreendentemente maior do que outras formas tradicionais. A dificuldade de
entendimento está atrelada justamente à grande quantidade de informação, pois, ao
passo que — simplificando — aumenta o número de inverdades, aumenta também o de
verdades. Não há nada intrínseco na estrutura e concepção das redes de informação
como a internet que as tornem proporcionalmente menos confiáveis que outras formas
mais tradicionais; mesmo na internet, a Folha de S. Paulo mantém, sob a chancela de
sua marca, um conteúdo “confiável”.
As conseqüências do fato de uma pessoa ter acesso a uma informação sem saber
seu autor e sua credibilidade — por mais que não sejam o ponto central — são outras
barreiras para a incorporação das práticas digitais e de rede na sociedade.
Ainda, junto da questão do anonimato, há muito esforço voltado para a discussão
da autoria. Afinal, ter informações equivocadas sobre um assunto específico pode ser
pior que não tê-las. Quem discutiu com muito sucesso sobre o tema foi Cícero Inácio da
16 Não é intenção deste trabalho generalizar sobre a produção destas emissoras, mas não dialogar com seu conteúdo e não filtrar determinadas informações pode ser um equívoco. 17 Beyond Citizen Kane, ou Muito além do Cidadão Kane (br), é um documentário de Simon Hartog produzido em 1993. O filme, que conta a história da Rede Globo de Televisão, foi proibido no Brasil desde 1994 graças a uma ação judicial efetuada por Roberto Marinho. Atualmente existem poucas cópias em circulação no Brasil. Foi produzido pela tv inglesa Channel Four. O documentário conta com a participação de alguns artistas, políticos, e especialistas como Chico Buarque, Leonel Brizola e Washington Olivetto. O documentário jamais esteve no circuito de cinemas brasileiros e a exibição que ocorreria no Museu de Arte Moderna-MAM, do Rio de Janeiro, foi proibida pelo, na época, presidente da República, Itamar Franco. http://pt.wikipedia.org/wiki/Beyond_Citizen_Kane18 Não cabe aqui discutir o que move essa falta de credibilidade e em quais situações não são meros equívocos, mas a questão é que essa prática é comum das formas de comunicação em geral.
33
Silva com seu desconcertante projeto Assina: do texto ao contexto19, apresentado no
FILE 2003 (Festival Internacional de Linguagem Eletrônica). Seu projeto pretende, a
partir de alguns exemplos práticos, demonstrar como os limites da autoria ficam
rompidos neste novo contexto cultural, preocupando-se com a visão do receptor, que
tem uma infinidade de dados apresentados a partir dos inúmeros e recentes produtores e
difusores de conteúdo cultural.
A idéia parece simples: gerar textos automáticos, com pouco sentido, colocá-los
como obra de grandes personalidades como Platão, Pierre Levy, Michel Foucault, Gilles
Deleuze e investigar os rastros dos autores que os utilizam, a partir de buscas na
internet, rastreando os usos que os leitores fizeram desses textos. O resultado é
interessante: por mais que em todos os textos houvesse um texto — este coerente —
revelando toda a brincadeira, as pessoas que os usaram não se preocuparam muito em
lê-lo.
A importância deste trabalho se deve, em muito, pela discussão de uma
problemática inserida neste contexto em rede — regulamentada por protocolos de
comunicação entre os computadores — e não se esquivando dele.
Como argumenta Galloway (2004:17):
“Cada novo diagrama, cada nova tecnologia, cada nova forma de administração
é uma melhoria dos seus precedentes e contém um ‘germe’ que precisa crescer e
adquirir formas maiores. Não estou sugerindo que as pessoas precisam aprender a amar
os aparatos de controle, mas, ao contrário, com todos os seus problemas, o controle
protocológico ainda é uma melhoria perante outros métodos de controle social. Eu
espero mostrar neste livro que é através do protocolo que alguém deve obter conquistas,
e não contra ele.”
Seguindo esta mesma linha, Giselle Beiguelman (2005:58) coloca um ponto de
exclamação no assunto:
“É essa chamada que está implícita nos recursos de acesso à informação que
pautam nossa contemporaneidade. Recusá-la é iludir-se com a possibilidade de negar o
presente. Ignorá-la é mais perverso. Significa aderir ao ridículo da citação
inconseqüente e ao escândalo do valor do nome como marca.” 19 http://www.pucsp.br/~cicero/assina/
34
1.6 O contexto é físico, a rede é física
Em 2005, comemorou-se o ano mundial da física, não apenas em homenagem
aos 100 anos das descobertas de Einstein, mas, principalmente, para seus conceitos
serem divulgados e aplicados em outras escalas da ciência.
“… em 1905, Albert Einstein publicou diversos artigos científicos que
influenciaram profundamente o entendimento do universo. Ele introduziu idéias
totalmente revolucionárias em questões fundamentais, incluindo a existência de átomos,
a natureza da luz e os conceitos de espaço, energia e matéria. O objetivo do Ano
Internacional vai além da mera celebração de uma das mais brilhantes mentes da física
no século XX. O Ano fornecerá uma oportunidade para a maior audiência possível
compreender o progresso e a importância do grande campo da ciência.
Este Ano deve, também, ser a ocasião para o início de futuros debates sobre a
grande necessidade de pesquisas científicas no século XXI. Os debates devem também
se relacionar com a questão social, que acompanha a prática da física em geral e da
física em particular”20.
Naturalmente não foi Einstein quem inventou o laser, o leitor de CDs, a fibra
ótica, mas 100 anos após as primeiras publicações de seus trabalhos, seja através da
quântica, seja através da Teoria da Relatividade, é possível encontrar seus reflexos na
sociedade, tanto pela presença dos computadores, de aparatos como os citados acima e
por materiais como os supercondutores e semicondutores — os semicondutores são a
base da tecnologia dos chips dos computadores atuais —, como pela presença das redes
que os conectam.
Se a relatividade do tempo não se mostrou, como anunciaram diversas histórias
— livros, filmes —, como a idéia de viagens na velocidade da luz que possibilitassem
um percurso através do tempo, hoje pode ser observada de forma mais simples, por
exemplo, na velocidade em que o homem acessa a informação com um controle do
tempo muito mais eficaz que em tempos atrás. Se em meados do milênio passado
demorava meses para uma notícia da América atravessar o Atlântico e chegar na 20 http://www.un.org/News/Press/docs/2004/ga10243.doc.htm
35
Europa, em 2005 a notícia da morte do papa chegou por aqui antes mesmo de ter
realmente ocorrido.
Esta nova forma de entender a matéria que os novos conceitos da física
possibilitavam começou a se embrenhar por outras áreas do conhecimento. E quem,
posteriormente, entrou em contato com os desenvolvimentos da Teoria da Relatividade
e da Quântica foi o matemático inglês Alan Turing convivendo não apenas com
Einstein, mas com outras diversas personalidades do mundo científico — Max Born,
Paul Dirac, Schrödinger. Depois de realizar trabalhos relacionados com a Teoria das
Probabilidades, Turing criou uma máquina capaz de processar informação em dígitos
binários — bits. Essa máquina, a qual levou seu nome, era capaz, teoricamente, de
calcular qualquer equação existente, possibilitava um grande poder de representação e
pode ser entendida como o precedente do computador.
Assim, associando as potencialidades físicas de se trabalhar em uma escala não
antes manipulável e inteligível somada à capacidade de representação do código binário,
tem-se uma máquina ou ferramenta que pode representar — contanto que possa ser
descrita matematicamente — qualquer atividade real da escala humana. Porque a
capacidade de representação da linguagem digital caminha no sentido de simular
situações cotidianas “enganando” os nossos sentidos, isto é, trabalhando em cima de seu
funcionamento.
O que temos hoje com a internet e as redes de computadores é fruto destes
estudos. Um contexto repleto de máquinas de representação interconectadas, rompendo
com a barreira física da matéria, do tempo e do espaço. Um contexto que permite que
pessoas possam se comunicar e gerar laços sociais, independentemente do espaço
geográfico.
É exatamente neste ponto que se encontra o embrião de uma nova interface. Este
novo contexto, com novas concepções, como define Antonio Negri, como um mundo
“globalizado, organizado em redes que integram produção e circulação [,] cada vez mais
baseado na produção de conhecimento”21, é estruturado em cima da linguagem digital,
da presença cada vez maior de aparatos digitais e de sistemas digitais que permitem que
não só sejam possíveis a prática de diversas atividades sociais e econômicas realizadas
na escala humana, como a prática de novas atividades não antes possíveis. 21 “Bolsa-Família é embrião da renda universal“ texto de Antonio Negri E Giuseppe Cocco, publicado na Folha de S. Paulo, 5 de janeiro de 2006. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0501200610.htm
36
É difícil conceber uma empresa ter sua sede em Nova Iorque, com a fabricação
de seus produtos em Hong Kong e distribuição por todo o planeta sem que haja
componentes eletrônicos e computacionais envolvidos na comunicação entre as partes.
Se o computador — linguagem digital — pode representar essas atividades sociais, a
ponta desta representação pode ser concentrada na interface. A interface faz a tradução
final do código binário, passando por toda uma hierarquia de códigos, para, enfim,
representá-las na tela e no som do computador.
Se Lev Manovich definiu em 2001 que interfaces culturais são aquelas que
determinam a forma com a qual os computadores apresentam e possibilitam a interação
com dados culturais, hoje já é possível dizer que, mais que permitir a interação com
dados culturais, através delas é possível a realização de práticas sociais. E é neste
contexto que uma nova interface tem de ser pensada, não como a ponta de uma rede de
computadores, mas uma rede de pessoas em ação.
“Os killer apps22 da indústria da informação/comunicação do futuro não serão
dispositivos ou programas computacionais, mas práticas sociais.” (Rheingold, 2003:xii)
1.7 Internet não é papel, internet não é site, internet não é browser
É inteligível que conhecimentos tão recentes que trabalham com novos aspectos
da matéria não sejam facilmente interpretados pela sociedade de formas desprendidas da
quais conhecemos e estamos acostumados em nossa cultura. Um novo objeto, um novo
conceito vem sempre pautado de referências pré-existentes em nosso conhecimento.
Nossa interpretação, isto é, o resultado de todo o processo de percepção de um novo
elemento, referencia-o para poder compreendê-lo.
“A incorporação do ‘conhecimento’ no processo perceptual nos permite distinguir dois
diferentes tipos de percepção. Processos que começam com informação captada por
nossos receptores — sistema visual, auditivo, etc. — são chamados de bottom-up. Mas
22 Killer apps, abreviação de killer aplication, se refere a programas computacionais tão relevantes que as pessoas possam comprar um aparato digital apenas para usá-lo.
37
a presença do ‘conhecimento’ (...) nos indica que o cérebro não é um computador vazio
esperando receber informações. Processos que começam considerando os efeitos do
‘conhecimento’ que uma pessoa carrega consigo são chamados de top-down. (...) [O
processo de] percepção freqüentemente envolve ambos os processos.” (Goldstein,
2001:8)
A colocação de Bolter e Grusin em seu livro Remediation (2000), que o processo
de remodelação das mídias visuais é constituído de um diálogo entre novas e antigas
formas culturais, é uma analogia à percepção. Não será de um dia para outro que novas
tradições culturais irão se estabelecer, pelo contrário, é no embate com a pintura,
fotografia, televisão que elas se fortalecerão. O processo de percepção destas novas
tradições culturais necessita de novas informações e de referências anteriores para que
estes códigos sejam compreendidos. Porém, como já alertado anteriormente, este
diálogo tem de progredir de maneira a permitir que as novas tecnologias apresentem
potencial informacional mais amplo, que novas formas de interface possibilitem maior e
mais precisa interação com os dados. Não é apenas uma questão de adaptação. É um
processo de evolução da velocidade da informação. Processo que pretende alcançar uma
suposta ubiqüidade da informação.
Algumas formas culturais, entretanto, já estão em discussão e diálogo há mais de
uma década, e reflexos deste embate já são presentes. Exaustivamente colocado por
inúmeros teóricos, as tradições da mídia impressa e da mídia televisiva ainda possuem
forte influência sobre a linguagem digital. “É inegável que o livro impresso seja ainda a
referência central do universo da leitura on line” (Beiguelman, 2003:11). Parece que o
atual diálogo entre diferentes mídias persegue um caminho onde a linguagem digital
permitiria juntar em uma só forma de comunicação a liberdade temporal do impresso
com a convergência de imagens e sons em movimento do cinema.
A editora Magwerk tem nas suas publicações em rede — Encore,
Playmusicmagazine e Probe — um reflexo deste diálogo23. Por um lado são revistas
com o mesmo formato e diagramação das revistas impressas, com editorial e indicações
de rodapé. Para mudar de página “puxa-se a folha” seguinte da mesma forma que na
cultura impressa — uma representação fiel à nossa prática atual de leitura. Por outro
lado, a cada página, ilustrações e imagens estáticas ganham movimento, fotografias 23 http://www.magwerk.com
38
podem ser ampliadas e a presença de vídeos e jogos é também muito explorada.
Naturalmente, e com exceção da opinião dos mais radicais, uma revista com estes
recursos é bem mais informativa que uma revista impressa, pois agrega outras formas de
comunicação — desconsiderando o fato que é vista apenas no computador. Entretanto,
agregar estes conteúdos não significa necessariamente agregar seus formatos e aspectos.
Não basta apenas juntar as qualidades do material impresso com as qualidades do
cinema e da televisão. O potencial da linguagem digital é mais amplo. Um diálogo
crítico deve indicar quais características têm capacidade para explorar as possibilidades
presentes na representação da linguagem digital. Um diálogo não apenas entre pessoas,
mas entre as pessoas e através das interfaces/máquina. Uma troca de experiência que
seja capaz de gerar repertório crítico em torno da presença de outras tradições culturais.
O caminho não é simples, uma vez que, além de sites que simulam a forma de
leitura dos materiais impressos, o próprio browser também segue os mesmos padrões de
leitura como a linearidade dos botões de avançar e retroceder. Porém, não são apenas
essas referências culturais — mídia impressa e cinema — que estão funcionando como
barreiras para o desenvolvimento de interfaces. A própria idéia do browser já é, hoje,
paradoxal. De forma simples, se por um lado há um sistema operacional que regula as
formas de representação da informação de um computador — ou de alguns restritos a
uma rede fechada —, por outro, há o browser que regula as formas de representação da
informação de outros computadores conectados à internet. Ora, a quantidade de
informação acessada através do browser é muito maior do que a acessada através do
sistema operacional. É certo que o desenvolvimento dos sistemas operacionais vem
gradativamente possibilitando e facilitando a conexão das pessoas às redes, mas as
transformações precisam ser mais estruturais. Parece, hoje, haver uma clara troca de
papéis entre os browsers e os sistemas operacionais. Manovich apontou que, durante a
década de 90, o computador deixou de ser uma ferramenta, passou a funcionar como
uma máquina de mídia universal e que, em pouco tempo, será a principal forma de
comunicação e transmissão cultural (Manovich, 2001). E, de fato, nos últimos cinco
anos a internet passou a exercer ainda mais esta função comunicativa. O browser passou
a ter uma função extremamente importante na transmissão cultural, muito maior do que
suas características permitem. É um aparato limitado e a informação da rede não deve
ser regulada por ele.
39
“A associação corrente entre “browser” e navegador foi promovida pelos
programas mais comuns de utilização da Web (Netscape e Internet Explorer, por
exemplo) que quase transformaram a idéia de rede na idéia de uma grande biblioteca
oitocentista.” (Beiguelman, 2003:65)
Se a interface possui um grande poder de definição de modelos culturais, como
proferiu Manovich, é importante que ela o faça destacando funções que se adaptem não
mais ao seu antigo uso como simulação de algumas ferramentas, mas às atuais práticas
sociais em rede.Com o aumento do número de softwares que trabalham com
informações na rede — p2ps, ICQ, Skype, Yahoo Widgets24, Google Desktop25,
Hamachi26—, novas formas de interação com a informação na rede surgem.
Por trás, o Soulseek —peer to peer ou ponto-a-ponto — conecta dois computadores e coloca em rede determinados arquivos para qualquer pessoa. No centro, embaixo, está o ICQ, software de troca de mensagens textuais. Na esquerda, o Skype, software de mensagens instantâneas entre 24 http://widgets.yahoo.com/ 25 http://desktop.google.com/ 26 http://www.hamachi.cc/
40
duas ou mais pessoas. Trabalha com mensagens textuais e com a voz. Na direita, o Hamachi, software que cria uma rede e permite conexão direta entre dois ou mais computadores sem nenhuma configuração específica, como uma rede local. No alto à direita está o Yahoo Widgets, o relógio é sua versão mais simples. Parte deles se conecta à rede e busca informações específicas, como o tempo em Londres, uma câmera nas ruas de Nova Iorque, manchetes de importantes jornais, etc. E o Google Desktop que, após indexar um computador, passa a procurar qualquer informação desejada, seja nessa própria máquina, seja em outras através da internet.
Como plug-ins para os browsers, diversos aplicativos irão paulatinamente tornar
os sistemas operacionais aptos para uma grande interação externa. Não é, de fato, uma
inversão de papéis entre o browser e o sistema operacional que se mostra uma solução.
Na verdade, hoje pouco interessa a distinção entre os arquivos encontrados em
servidores e computadores conectados à rede e nos localizados no computador pessoal.
Hoje, os arquivos e informações encontrados pela internet são tão importantes quanto os
locais, pois o acesso a eles não é tão restrito como há uma década. As interfaces
precisam, cada vez mais, evidenciar estas informações e torná-las aptas para um uso
corriqueiro.
O mais importante é que diversas formas de acesso a informações remotas co-
existam. A essência do sucesso da navegação pelo browser não é a funcionalidade que o
software apresenta, mas sua capacidade de representar códigos universais como o html,
xml e outros que vão surgir. “Sua virtude não é diversidade, mas universalidade.”
(Galloway, 2004:76) Esta capacidade permite que o browser, ou qualquer outro
software que possibilite a leitura via http de um arquivo html, trabalhe como uma
plataforma única para diversos sistemas operacionais. Esta plataforma universal deve se
manter, mas as funções agregadas a ela não podem ser restritas aos plug-ins, ou seja, o
browser não pode, como colocou Giselle Beiguelman, ser o ícone da transmissão de
dados pela internet.
O browser tem de ser dissolvido. Seus plug-ins devem ganhar ‘status’ de
softwares — mais independentes dos atributos dos navegadores e mais complexos que
os plug-ins — e outros softwares devem ganhar a mesma importância do browser. A
internet não pode ser restrita a um site acessado via browser. A internet não se encerra
em informações alocadas em um servidor para serem acessadas como uma televisão,
cinema ou impresso. A internet tem de funcionar como uma rede distribuída, onde
sejam exaltadas formas de comunicação direta entre pessoas para que práticas sociais
possam existir representadas e simuladas pelos códigos.
41
Entretanto, para que este quadro seja possível, mudanças ainda maiores são
necessárias. Mudanças que extrapolam o poder de representação das interfaces gráficas.
Se a disseminação dos computadores pessoais, com início em meados da década de
1980, e a conexão entre eles, uma década depois, foram um dos grandes catalisadores da
internet, estes computadores ligados em rede começam, hoje, a ser interpretados como
um limitador. A internet possui a capacidade de dispor a informação de forma ubíqua,
onipresente, e práticas sociais acontecem a todo momento, e não apenas na frente dos
computadores. A partir do momento em que essas práticas se resolvam através do
computador, a rede, como já mencionado, precisa ser entendida como uma rede de
indivíduos e não uma rede de computadores.A mobilidade e flexibilidade dos aparatos e
suas interfaces culturais são essenciais para que a internet possa ser de fato parte
constituinte da sociedade. É certo que os aparelhos de telefonia digital a cada vez se
aproximam mais dos computadores, mas é preciso pensar além.
Em resumo, a computação, as telecomunicações e interfaces estão sendo
paulatinamente incorporadas a uma variedade de objetos e espaços e, em breve, será
comum deparar-se com um objeto inteligente, capaz de interagir com as pessoas, ou
mesmo que possibilite a interação entre pessoas. Da mesma maneira que, atualmente,
telas dinâmicas constituem uma pequena porcentagem de qualquer superfície em
qualquer espaço, um dia, qualquer superfície pode, potencialmente, funcionar como
uma tela conectada a uma rede27. Esse quadro colocado por Lev Manovich mostra que
num breve futuro as informações e os objetos ligados à rede serão representados não
apenas pelos dispositivos de interação hoje disseminados, mas por uma série de objetos
presentes no cotidiano de nossa escala — a Nissan, no salão de Detroit em 2004, lançou
um automóvel cujo teto funcionava, por inteiro, como uma tela28. Portanto, pensar em
interfaces não pode estar restrito ao pensamento direcionado ao atual computador, e sim
a uma infinidade de objetos/aparatos que permearão nosso cotidiano e que terão
influência fundamental em nossa forma de se comunicar. Objetos que hoje, apesar de
distante da grande maioria da sociedade, terão suas raízes atreladas ao desenvolvimento
atual das interfaces.
27 Lev Manovich (Interview) Cluster Magazine 3-2004 p.32. 28 Lev Manovich (Interview) Cluster Magazine 3-2004 p.33.
42
2 Organização da informação em interfaces gráficas
A realização de práticas sociais através da rede é um dos objetivos do próximo
estágio no desenvolvimento de interfaces. Crescendo sob o rótulo Web 2.0, esta fase
será marcada por novas formas de se pensar a rede e de pensar em rede. Não se trata,
entretanto, de uma nova versão da internet, como o rótulo pode deixar parecer. De fato,
usam-se as mesmas técnicas já utilizadas, porém, agora, com uma metodologia
diferente. Enfim, mais importante que a nomenclatura é o que de fato pode acontecer e
como as interfaces se envolvem com esta evolução. Muitos dos conceitos atrelados a
esta nova fase — social bookmarks, tagging, RSS, playlists29 — estão ligados à
organização e disponibilidade da informação. Esta é a palavra de ordem do início do
século XXI.
A priori, em uma época marcada pela crescente produção de conhecimento e
pela organização da sociedade e sua produção em redes, este movimento tem como
objetivo tornar todas estas informações identificáveis, assimiláveis e claras. As
inúmeras possibilidades de acesso à informação criaram o dilema da seleção do que é
relevante às pessoas. Um processo desafiador que a cada momento se depara com uma
quantidade ainda maior de informação e que, além de organizá-la, torna-a apta para ser
manipulada, editada.
“O dramático crescimento na quantidade de informação, fortemente acelerada
pela internet, vem acompanhado de um outro desenvolvimento fundamental [,] (…) —
um processo de transformações aonde a informação e mídia que organizamos e
trocamos podem ser recombinadas e reconstruídas para gerar novas formas, conceitos,
idéias, mashups e serviços” (Manovich, 2005).
29 Estes são alguns exemplos citados por Manovich, em Remixability (Manovich, 2005). Social bookmarks é o ato de colocar à disposição seus bookmarks — favoritos — em rede. Tagging é a ação de relacionar a um objeto uma palavra-chave. Palavras-chave iguais permitem estabelecer alguma relação entre estes dois objetos. RSS é a forma de oferecer o conteúdo de um site através de um formato padrão — web syndication. A disponibilidade de playlist — lista de músicas —, e dos outros exemplos citados acima, se revelam importantes pois amplificam as formas de publicação individual de informação e da criação de uma opinião coletiva.
43
A organização da informação, entretanto, não se limita apenas à classificação da
informação. Organiza-se a informação para poder encontrá-la com facilidade. Em um
contexto com números inimagináveis de informação, encontrar rapidamente o conteúdo
cultural desejado passa a ser uma tarefa fundamental. E organizar informação não se
refere apenas à sua estrutura de armazenamento e aos bons sistemas de busca como o
Google. Refere-se também à sua forma de manipulação, ao seu desenho e à cultura de
lidar com todas estas novas formas. E é sobre isto o que segue neste capítulo: algumas
abordagens sobre a organização da informação que sugerem e relatam novas formas de
interação e que explorem as potencialidades encobertas da linguagem digital.
2.1 Zapping, bookmarks e interfaces
A necessidade de organizar informações no meio eletrônico surgiu quando os
canais de televisão disponíveis ainda eram poucos (rede de televisão aberta) e os
programas, naturalmente, eram mais escassos e menos variados. Para esta quantidade de
informações aquela velha televisão com botões giratórios de sintonia pareciam mais que
suficiente. Cada emissora possuía um ângulo específico no seletor de canais e era
associada a um número.
Uma mudança que se sucedeu neste contexto foi a incorporação do controle
remoto (com fio!) — não era mais necessário levantar do sofá para mudar a
programação escolhida. Estes aparatos eram capazes de mudar os canais, modificar o
volume e algumas outras funções básicas. Depois, o fio deu lugar aos raios
infravermelhos e, com o aumento do número de emissoras e canais e, principalmente,
com a disseminação das redes de televisão fechada, os controles começaram a ter
função condicional tanto para alternar entre as diversas opções de programas quanto
para definir, também, o conteúdo produzido.
Efeito zapping, como coloca Arlindo Machado (2001:143), “é a mania que tem o
telespectador de mudar de canal a qualquer pretexto, na menor queda de ritmo ou
interesse do programa e, sobretudo, quando entram os comerciais”. Mesmo ressaltando
que o zapping não é restrito à televisão, citando “leituras interesseiras, seletivas e até
44
mesmo, ‘atravessadas’ (...) do romance [impresso]”, Machado ratifica como esse efeito
cresceu com a presença do controle remoto:
“Zapa-se agora indiscriminadamente tanto em spots publicitários como em
programas de estúdio, filmes ou transmissões esportivas. Zapa-se a pretexto de tudo e
de qualquer coisa. O espectador de televisão não mais assiste a programas inteiros, nem
acompanha mais histórias completas. Ele salta continuamente, fazendo ‘amarrar’, de
forma desconcertante, as imagens de repressão na África do Sul, com a cena de alcova
numa telenovela ou o anúncio sobre as virtudes de um creme dental [...]. Às vezes, ele
assiste a dois ou três canais ao mesmo tempo [...], saltando para lá e para cá, num jogo
de comutação que nem precisa mais de uma justificativa baseada no interesse ou na
sedução, mas que tende a ser cada vez mais aleatório, busca frenética e sempre
insaciável da surpresa ou da indiferença.”
O efeito zapping seria apenas mais uma forma de selecionar informação, se não
tivesse reflexos mais profundos. Em função deste movimento — que pode ser tratado
como um diálogo com o telespectador — as redes de televisão tiveram de repensar os
tradicionais formatos usados em seus programas. É preciso ressaltar que o controle
remoto é parte integrante da interface de uma televisão, que, através dele, as pessoas
podem tanto selecionar mais facilmente a informação desejada como podem manipular
e editar com cortes a sua própria programação —, como exemplificou Arlindo
Machado. A inserção do recurso in script ad — comercial inserido dentro de um
programa —, o aumento da fragmentação da seqüência da programação e a presença de
programas completamente recortados sem começo, meio e fim — isso para que um
espectador não se sinta perdido ao “cair” no meio de um programa — foram algumas
das modificações geradas. A interface atuou de maneira substancial na modificação do
conteúdo cultural televisivo e na maneira de acessar a informação.
Essa nova dinâmica fez surgir um outro problema: memorizar alguns poucos
números — canais — e suas respectivas emissoras não era uma tarefa muito
complicada, mas guardar dezenas de canais, como ocorria com as redes de televisão
fechada, parecia ser uma tarefa mais complicada. Era preciso algum método para
ordenar estas informações. Não que não fosse possível fazê-lo de “cabeça”, mas essa
prática demandava bem mais tempo e memória.
45
Diante disso, alguns controles remotos começaram a apresentar funções que
permitiam que os espectadores selecionassem e armazenassem seus canais favoritos
para poder zapear apenas entre eles. Mais que isso, esta função permitia usá-lo com
qualquer regra que lhe conviesse, fosse para acompanhar os jornais noturnos ao mesmo
tempo, fosse para zapear em apenas programas esportivos num domingo à tarde, fosse
para simplesmente separar todos os canais que mais gostasse.
É certo que nem todas as pessoas, ou quem sabe até muitas delas, não entendiam
o que significavam todos aqueles botões que não eram os tradicionais seletores de
canais e volume, mas mesmo assim, e ainda mais importante, é que foi provavelmente a
primeira função agregada à interface que possibilitava ao espectador a organização da
informação cultural acessada através da televisão. A história da televisão é marcada por
uma comunicação unidirecional — 1 emissor e n receptores — e, como dito no capítulo
anterior, a difusão do sinal de televisão, tanto na rede aberta como na fechada, era
controlada. Era, portanto, um grande passo a seleção de informação estar oficialmente
agregada ao aparato televisivo.
Além disso, a possibilidade de selecionar alguns canais já anunciava um dos
caminhos de organização da informação que seriam amplamente usados nas interfaces
culturais. E não podia ser diferente. Se navegar por dezenas de canais diferentes já era
algo complicado, o que se pode dizer de mais de um bilhão deles!30 Novamente os
aparatos eletrônicos não tinham capacidade para atender à quantidade de informação
requisitada. Com o crescimento do uso da internet, e mais especificamente do browser,
o computador passou a ser parte de uma rede de comunicação, atuando como um
“aparato de mídia universal” (Manovich, 2001). Da mesma forma que o ocorrido com o
controle remoto, hoje, parte das funções disponíveis através da interface dos
computadores, se não são muito usadas, são pouco exploradas.
Atualmente os links são a principal forma de navegação. Grande parte das
pessoas ainda acha muita informação através dos índices de grandes editoras de
conteúdo, tanto os grandes portais que trazem a informação editada — AOL, Terra,
UOL, iG, etc. — quanto grandes diretórios de informação — Google, Yahoo, Cadê?,
etc.
30 Números divulgados pelo Google e restritos às URLs contida no seu índice. http://www.google.com.br/intl/pt-BR/why_use.html
46
Se por um lado, mesmo através da internet, onde há a possibilidade de uma
comunicação horizontal ocorrer de fato, as formas tradicionais de comunicação têm
presença marcante — o UOL possui mais de sete milhões de visitantes mensais —, por
outro lado, a presença de serviços de busca, como os oferecidos pelo Google, indica
uma nova forma de organizar esta informação, uma forma que não substitui o conteúdo
jornalístico, mas com certeza o transformará.
Para classificar e organizar a informação, eles operam em cima de determinadas
regras e algoritmos.
“A classificação das páginas (PageRank) confia na natureza excepcionalmente
democrática da Web, usando sua vasta estrutura de links como um indicador do valor de
uma página individual. Essencialmente, o Google interpreta um link da página A para a
página B como um voto da página A para a página B. Mas o Google olha além do
volume de votos, ou links, que uma página recebe; analisa também a página que dá o
voto. Os votos dados por páginas ‘importantes’ pesam mais e ajudam a tornar outras
páginas ‘importantes’.
Sites importantes, de alta qualidade, recebem uma nota de avaliação maior, que
o Google grava a cada busca feita. Naturalmente, uma página importante não significa
nada se não combinar com a sua busca. Assim, o Google combina os resultados de alta
qualidade com a busca que você está realizando para que o resultado seja o mais
relevante possível. O Google pesquisa quantas vezes a palavra procurada aparece nas
páginas e examina todo o aspecto delas (e conteúdo das páginas ligadas a ela) para
determinar o melhor resultado para a sua busca"31.
Esta forma de classificação no entanto não é uma exclusividade do sistema do
Google. Como Steven Johnson coloca, o primeiro grande caso que mais se aproximou a
um sistema auto-organizável na Web foi o Slashdot.com e seu método de avaliação de
conteúdo. Como havia se tornado impossível para um grupo de ‘notáveis’ julgar todo o
conteúdo que chegava ao site, a solução encontrada por Rob Malda — fundador do
Slashdot.com — foi repassar esta função a todas as pessoas cadastradas em seu sistema,
assim todas julgariam com notas as matérias publicadas (Johnson, 2003).
31 http://www.google.com.br/why_use.html
47
Com a mesma lógica, Amazon, E-bay e sites semelhantes também usaram seus
clientes e visitantes para criar formas de classificação coletiva. Neste caso, entretanto,
ao invés de usarem as notas para classificação, é usado o seu comportamento. Quem
compra dois livros diferentes tem alguma razão para tal, razão esta que pode ser
imperceptível a milhares de pessoas que não fariam a mesma relação ou que não
tivessem os mesmos interesses. Mas, se milhares de pessoas o fazem, parece existir um
senso comum que concorda que ambos possuem uma identificação. Porém, conforme
alertado no primeiro capítulo, e como cada pessoa provavelmente tem consciência, o
senso comum nem sempre corresponde àquilo que pensamos. Por mais que o
pensamento coletivo tenha um grande poder, ao mesmo tempo fantástico e monstruoso,
não podemos estar restritos a ele.
Tanto os grandes portais quanto os sistemas de busca são métodos fixos,
determinados por algum “especialista” ou por um grupo deles. Por um lado é fixado
pelos editores de conteúdo dos grandes portais, por outro, é fixado em uma regra
algorítmica.
Ter a possibilidade de escolher quais informações deseja armazenar usando a
regra mais adequada para determinado objetivo e determinado instante é diferente e
exige mais crítica do que ter esse processo já adiantado. Além de termos à disposição
informações provindas dos editores de conteúdos profissionais e coletivos, é importante
e necessário, em uma época em que pensamento em grupos, redes, e outras formas
coletivas ganham cada vez mais destaque, que essa classificação seja exercida, também,
de forma pessoal. É uma resposta crítica e necessária de contraponto a este movimento.
Como afirma Rogério da Costa (2002):
“Seja através da internet, do celular ou da televisão digital, os agentes
inteligentes já estão colaborando e vão colaborar ainda mais para que possamos
perceber as várias comunidades às quais pertencemos, relacionando perfis por
afinidade, nos informando sobre a presença de outras pessoas em rede, nos sugerindo
produtos e serviços, etc.
A construção dessa percepção de comunidade, que é diferente e no entanto
convive com o ato efetivo de participar de uma comunidade virtual, vê sua importância
ligada à necessidade crescente que as pessoas têm de se sentirem situadas no dilúvio
informacional que tomou conta de nossa sociedade’’.
48
Desde o surgimento do Mosaic a navegação pela rede apresentava uma função
com lógica semelhante às criadas através do controle remoto. Os bookmarks — hotlists,
favoritos — permitem a seleção de uma URL visitada e o armazenamento de seu
‘endereço’ para futuras consultas. Normalmente são usadas para guardar a URL de sites
freqüentemente visitados ou para não perder de vista uma iguaria ou conteúdo
imperdível. É possível criar pastas e mais pastas para refinar ainda mais a classificação,
o que poderia ficar parecido, por exemplo, aos diretórios dos sites de busca. Nas
interfaces culturais de hoje, e especialmente com os bookmarks, as formas de
armazenamento e organização de informação ainda são um pouco limitadas porquanto
são presas à rígida hierarquia de informação e sua forma de manipulação nos sistemas
operacionais.
Alguns métodos diferentes de organizar informação começam a surgir como os
live bookmarks do Firefox. Recurso semelhante ao de aplicativos como os leitores de
RSS foi integrado ao browser da Mozilla e, mesmo pouco difundido, mostra um
caminho para se pensar as interfaces. Sua idéia está baseada na utilização de um arquivo
XML para a transmissão de dados.
Sem entrar em detalhes muito técnicos, XML é um formato de arquivo de texto
que facilita a troca de dados através de diferentes sistemas. Mais ainda, pretende ser
adotado como um formato universal de troca de informação. Para fazer uma
comparação, se o sucesso do Mosaic (1993) pode ser atribuído muito ao seu potencial
multimídia e à sua interface, não devemos ignorar o fato de que poucos anos antes, Tim
Barners Lee estava desenvolvendo o protocolo HTTP (1990). O HTTP é um protocolo
que permite que a integração entre diversos servidores de informação seja facilitada.
Além disso, por ter seu código-fonte distribuído de forma gratuita, foi rapidamente
incorporado — a grande maioria dos sites atuais são organizados segundo o HTTP — e
possibilitou que o Mosaic pudesse atuar.
O XML possui função parecida. Um exemplo simplificado do poder de um
arquivo como o XML pode ser encontrado na velocidade de acesso a determinada
informação. Normalmente, quando acessamos uma URL que usa informação de um
banco de dados, executamos um arquivo — podem ser de diversos tipos — que ‘busca’
a informação e a apresenta com uma formatação específica. Imagine que muitas pessoas
simultaneamente acessam informações — um site de notícias, por exemplo. Cada
49
pessoa que deseja olhar uma notícia acessa — via HTTP — o banco de dados para gerar
a página com informação requerida. Se mudar de notícia, a página é recarregada, o
banco de dados é acessado novamente e um novo conteúdo é mostrado. A cada nova
requisição, uma nova página e mais uma consulta ao banco. Imagine então milhares de
pessoas requisitando ao mesmo tempo que o banco de dados lhe forneça a informação
desejada. Isto sobrecarrega o sistema e demanda servidores muito poderosos. Com o
XML, este mesmo acesso pode funcionar de forma diferente. Ao acessar um site, uma
‘cópia’ do banco de dados é gerada no formato XML, que é passada para um visitante.
Cada vez que este requisitar uma informação, a página buscará a informação no arquivo
XML local, aumentando a velocidade sem sobrecarregar o banco de dados. Tornando-se
universal, a troca de informações ganhará outras proporções.
O mais interessante deste formato, e o que importa para a discussão das
interfaces, é que, desta forma, pode-se destacar a informação do conceito de página.
Com o arquivo XML não precisamos mais, necessariamente, acessar a página com a
informação desejada. É possível termos acesso direto ao conteúdo.
Isso possibilita que, para chegar em uma informação no site UOL, por exemplo,
não precisemos mais acessar sua homepage. Se tivermos um live bookmark de suas
últimas notícias, é só entrarmos na lista dinâmica — favoritos — e as últimas notícias já
estarão listadas. Se cadastrarmos live bookmarks das últimas publicações dos principais
portais de notícias, não precisamos mais acessá-los para escolher a informação que
desejamos ver. Cada um poderá fazê-lo a partir da própria seleção, da própria
programação.
Se antes era possível armazenar nos bookmarks algumas notícias de forma
manual, com o live bookmark podemos armazenar todas as notícias que forem
publicadas em um site de forma dinâmica, isto é, se um live bookmark estiver
cadastrado e se uma nova notícia for publicada, ela automaticamente será adicionada
aos seus favoritos. É como se a notícia desejada viesse até você, e não o contrário.
Entretanto, apesar de ser uma resposta a um problema que vem sendo exaustivamente
colocado, ainda não está sendo muito usado neste sentido.
Esse será um dos desafios das novas interfaces: permitir que as pessoas
personalizem seus aplicativos de forma a receber mais rapidamente as informações que
lhes convêm, além de não coibir que outras informações não previamente cadastradas
fiquem excluídas. Ou seja, uma interface que possibilite tanto a personalização e
50
programação do conteúdo de um jornal diário como a possibilidade, como destacou
Arlindo Machado, de algo inesperado, atendendo à “busca frenética e sempre insaciável
da surpresa ou da indiferença” (Machado, 2001). Selecionar e categorizar informação
parece estar se tornando práticas sociais. Não serão apenas as grandes empresas de
busca que terão mapeados alguns comportamentos sociais em seus bancos de dados.
Cada pessoa poderá mapear e analisar seu próprio comportamento e de outras pessoas
de uma forma não antes possível.
Entretanto, a evolução das interfaces está intrinsecamente relacionada com a
forma que as informações são qualificadas e, como colocado anteriormente, as
interfaces culturais de hoje são limitadas por ainda serem presas à rígida hierarquia de
informação e à rígida forma de manipulá-la. Vale lembrar que as interfaces digitais
atuais foram desenvolvidas em uma época em que a quantidade de informação acessada
através dela era praticamente nula se comparada aos dias de hoje. Portanto, é necessário
pensar além do gráfico. É necessário pensar que informação — dados — e interface
gráfica têm de acompanhar juntas as demandas deste novo contexto em rede.
2.2 Pastas, filtros e classificações
“A idéia da biblioteca não organiza mais o conhecimento”32.
32 http://www.desvirtual.com/thebook/portugues/prologue.htm
51
Durante a década de 1980, a mudança da interface com linha de comando para a
interface gráfica foi criticada por criar uma metáfora visual que desafiava a lógica e a
seriedade daqueles que estavam acostumados a usá-la (Johnson, 2001). Entretanto, a
tradução da linguagem digital em uma forma gráfica mais palpável — metáfora do
desktop —, muito responsável pela disseminação dos computadores, provou suas
qualidades e se tornou um padrão que dura até hoje. Com a internet, o uso da metáfora
se ampliou, sendo referenciada, principalmente, pela cultura da mídia impressa e do
cinema, que praticamente apossou-se da interface (Manovich, 2001). Esse processo foi
muito criticado, e os questionamentos passaram a estimular uma busca por soluções que
usassem efetivamente o potencial da linguagem digital, esquivando das metáforas
limitadas de outras formas culturais. Contudo, o sucesso da interface gráfica foi tão
grande e sua presença tão forte que algumas de suas deficiências em sua estrutura
parecem passar de forma desapercebida.
Mesmo antes do surgimento das interfaces gráficas — na era das interfaces com
linha de comando —, sem a presença de ícones que ilustravam lixeira, pastas, arquivos,
já havia uma metáfora mais intrínseca: a estrutura dos arquivos em diretórios e pastas.
Uma alusão à forma de organização de livros, papéis e documentos que usamos em
nossa escala.
“Lamentavelmente, a metáfora do desktop tem tantas limitações e pontos cegos
conceituais quanto seus predecessores de linha de comando. A diferença é que essas
restrições decorrem de uma excessiva fidelidade à própria metáfora original, com a
extensão do desktop original a espaços tridimensionais mais plenamente realizados,
como prédios de escritórios e salas de estar.” (Johnson, 2001)
“A armazenagem de dados é feita de acordo com padrões arquivísticos de
documentos impressos, seguindo à risca o modelo de ‘pastas e gavetas’.” (Beiguelman,
2003:11)
O problema desta forma de hierarquia de informação é que ela é estruturada em
cima de uma rígida ordenação de pastas. É possível transferir um arquivo de posição,
mudar sua posição dentro dessa hierarquia, alterar seu nome, extensão, etc. Mas se
52
alguém quiser colocá-lo, também, dentro de outra pasta, isso só será possível se for
gerada uma cópia — neste caso, já não teríamos apenas uma informação. Há alguns
recursos como os atalhos para pastas e arquivos, mas não é esta a lógica central das
atuais interfaces. Ora, as bibliotecas seguiam esta regra pois os livros tinham uma
disposição fixa. Os livros estavam em uma determinada ala, em uma determinada
prateleira, em uma determinada posição. Não podiam estar em mais de uma prateleira
ao mesmo tempo. Pensava-se em uma forma melhor de dispor o conteúdo cultural — os
livros nas prateleiras — e um sistema de busca separado por algumas categorias. Claro
que mais importante que sua ordenação física, eram as diferentes formas de catalogação
usadas, mas seu número era limitado e freqüentemente determinado a partir de
classificações tradicionalmente estabelecidas — assunto, autores, etc. Para cada forma
de classificação havia uma ficha relativa a cada livro. Assim, para possuir, por exemplo,
quatro formas de classificação — autor, tema, data, nacionalidade — haveria quatro
vezes mais informação. No disco rígido de um computador também há uma estrutura
física onde os dados estão escritos. Porém, esta não interfere na organização dos
arquivos. Existe um índice — FAT, NTFS33 — que relaciona cada informação à sua
localização física no disco.
“Como a maioria dos grandes avanços tecnológicos, a metáfora do desktop
nasceu por acaso” (Johnson, 2001). Não há uma limitação crônica para uma livre
organização de informação. Inclusive, linguagens de programação como o MS-DOS, e
até mais elementares, já eram capazes de criar atalhos como os atuais sistemas
operacionais. Mas não são assim que se estruturam visualmente para os usuários.
Na passagem da interface com linha de comando para a interface gráfica esta
condição não foi alterada, pelo contrário, foi ratificada com a presença dos ícones de
arquivos, pastas e menus. Há uma única e aparente hierarquia. Suponha que exista uma
pasta minuciosamente organizada em um computador de um fã, chamada The Beatles,e
que este siga à risca as indicações de organização de arquivos do mais atual sistema
operacional Windows. Desta forma, esta pasta estará dentro de uma outra pasta
chamada Minhas músicas — padrão do sistema operacional — que, por sua vez, estará
dentro da pasta Meus documentos, também padrão. Dentro da pasta The Beatles haverão
33 FAT — File Allocation Table — e NTFS — New Technology File System — são formatos desenvolvidos pela Microsoft e utilizados em seus sistemas operacionais. Eles são os responsáveis por indexar o disco rígido. http://www.microsoft.com/mscorp/ip/tech/fat.asp , http://www.ntfs.com/
53
diversas pastas, uma para cada disco, que conterá os arquivos de áudio referentes a cada
uma das músicas daquele álbum34. Tudo muito organizado.
Este fã, depois de organizar suas músicas — o que deve ter lhe tomado algum
tempo —, começa a arquivar também vídeos de sua banda predileta. Estes, entretanto,
ao invés de estarem dentro da pasta The Beatles, que estava dentro de Minhas músicas,
que estava dentro de Meus documentos, estarão na pasta The Beatles, que estarão em
Meus vídeos e que também estão em Meus documentos — há duas pastas chamadas The
Beatles com conteúdos diferentes. Se em determinado instante o desejo da pessoa for de
acessar todo o conteúdo relacionado com os Beatles, mais de uma pasta terá de ser
procurada e acessada — além de músicas e vídeos, pode haver ainda fotos, cifras, letras,
etc.
Apenas esta duplicação pode não ser para muitos um alerta de que algo está
errado, mas é relevante. Os sistemas operacionais mais populares sugerem uma forma
de organização — provavelmente para auxiliar aqueles que não têm prática para fazê-lo.
O sistema operacional Windows sugere que seus clientes organizem seus arquivos de
acordo com o tipo de mídia: imagens, músicas, vídeos — o OS, da Apple, o faz de
forma semelhante. Mas esta sugestão não precisa ser aceita. Cada pessoa pode criar
pastas e organizar seus arquivos da forma que escolher, porém terá de escolher apenas
uma forma se não quiser multiplicar o número de arquivos.
Essa rigidez não se mostra tão ineficiente para organizar todas as músicas dos
Beatles, mas o mesmo não se pode dizer de uma biblioteca que pode conter milhares de
músicas. Com a quantidade de informação disponível com a internet, organizá-las passa
a ser uma questão básica35. É importante saber em que ano uma produção foi realizada,
seu gênero, quem a compôs, etc. — uma série de informações que são consumidas nos
encartes dos CDs. Se fôssemos criar pastas para organizar estas informações estaríamos
frente a um grande problema: a catalogação cronológica é feita antes da ordenação por
artistas? E a classificação por gênero, antes ou depois da cronológica? E se houver mais
de um compositor em um disco? Seja qual for a questão, quanto mais complexo vai
ficando, mais rígida e singular se torna a busca pela informação. Exatamente por isso
34 A classificação por discografia é normalmente usada por softwares para gerenciar músicas. 35 O soulseek, um dos programas p2p — ponto-a-ponto — é característico por ser um software livre de propagandas e spywares e por possuir uma forte comunidade. Nesta comunidade é freqüente o número de pessoas que carregam discursos contra: “unorganized mp3s” e “people who tag their mp3’s incorrectly”, isto é, “mp3 desorganizados” e “pessoas que classificam seus mp3s de forma incorreta”.
54
foram criados recursos que possibilitassem formas de classificação que não dependem
da estrutura de endereços dos arquivos.
As metadatas — informação sobre informação — foram introduzidas á estrutura
dos sistemas operacionais exatamente para permitir classificações mais complexas. Com
elas, é possível qualificar um arquivo com informações adicionais. Especificamente
para os arquivos de música foi desenvolvido o id3 — IDentify an MP3. Com esta forma
de classificação as possibilidades de seleção de informação são muito mais ricas36.
Porém, alterar estas informações não é simples uma vez que essas funções não
são normalmente apresentadas de forma clara às pessoas. Se a interface possui um
grande poder de definição de modelos culturais é importante que ela o faça destacando
funções que se adaptem não mais ao seu antigo uso, como simulação de algumas
ferramentas, mas também, e principalmente, às atuais práticas sociais em rede. Permitir
que as pessoas tenham um fácil acesso à edição de informações é uma demanda das
novas interfaces.
O iTunes37 — aplicativo de áudio da Apple — possui algumas funcionalidades
que permitem uma manipulação diferenciada. Primeiro, os arquivos das músicas podem
estar organizados em qualquer forma no disco rígido. Não importa. Não há nem relação
visual com o endereço na hierarquia do sistema operacional. Sua classificação dentro do
software é praticamente realizada em cima das informações contidas nas metadatas.
Assim, todas as músicas ficam armazenadas juntas na “biblioteca” do iTunes, que
funciona como o grande banco de dados das músicas.
36 A versão atualizada id3v2 pode armazenar, entre outras, informações muito maiores que a primeira versão, imagens — capa do disco — e as letras das músicas. 37 www.itunes.com
55
A biblioteca do iTunes ao centro com seleção rápida de artistas e álbuns logo acima. À esquerda ficam as listas e a capa do álbum, enquanto no topo à direita uma busca geral por palavra-chave.
O software dá tanto valor para a organização das músicas que até parece ser mais
interessante organizá-las do que ouvi-las — quase toda a interface do programa opera
de forma a classificar e procurar um arquivo.
A biblioteca do software é uma tabela com uma linha para cada música e uma
coluna para cada tipo de classificação — nome da música, artista, álbum e mais 23
outras possibilidades. É possível ordenar cada coluna por ordem crescente ou
decrescente — algo que praticamente todos os softwares que trabalham com tabelas
fazem.
Outras funções, entretanto, não estão nesta forma de visualização — tabela. Elas
se encontram nas listas, na seleção rápida de artistas e álbuns logo acima da “biblioteca”
e em outro recurso bem conhecido, que é a procura livre por uma seqüência de
caracteres — busca por palavras-chave. Estes campos funcionam como uma espécie de
filtro. Se nenhum destes filtros for selecionado, no campo central são listadas todas as
56
músicas existentes. Caso um artista seja selecionado na lista rápida, serão ordenadas no
campo central todas as músicas de todos os seus álbuns. Se um álbum for selecionado
na lista rápida, apenas as músicas deste disco estarão listadas. Depois de filtradas, é
possível usar os recursos padrão de ordenação por coluna para apenas essa amostra de
músicas. Ainda, um outro filtro — tanto a seleção de um álbum quanto a busca livre —
pode ser aplicado com a seleção de um artista para refinar mais ainda a procura.
Entretanto, todas as formas de classificação citadas acima trabalham com
informações fixas, isto é, qualquer pessoa que possuir a mesma versão de uma música
— a não ser que tenha informações equivocadas ou até não as tenha — terá acesso à
mesma informação: nome da música, do artista, do álbum, tempo de duração, qualidade
do arquivo, etc.
São exatamente três filtros que possibilitam que cada pessoa classifique uma
música, ou uma seleção delas, de acordo com uma informação personalizada que
merecem o maior destaque. O primeiro é chamado My rating e diz respeito, a priori, a
uma classificação por notas de 1 a 5 que alguma pessoa deseje dar — ou não —,
conforme seu apego — ou qualquer outra regra — por determinada música. O segundo
são as listas livres que ficam no menu à esquerda. Aparentemente essas listas funcionam
de forma similar à limitada estrutura dos sistemas operacionais. São, também, listas
dentro de pastas — e dentro de mais pastas — com a possibilidade de incluir quais
músicas forem mais adequadas, seja uma seleção de músicas calmas para dormir, seja
uma seleção de músicas barulhentas para manter-se acordado. Seria similar à forma
limitada da hierarquia dos sistemas operacionais não fosse o fato de que as listas
funcionam como filtros e não como pastas.
Os filtros são uma maneira eficiente de seleção que as interfaces podem
proporcionar, pois eles não trabalham com arquivos diferentes — como criar uma nova
pasta no sistema operacional faz. Não há uma música dentro de um filtro, ele apenas
peneira toda a base de dados e deixa passar somente aquelas informações que se
equiparem com o que foi requerido. Podem haver dez listas diferentes com a mesma
música presente em todas que, mesmo assim, teremos apenas um arquivo. Se ele for
alterado em qualquer uma destas listas, será alterado em todas, pois é o mesmo arquivo.
Ele é apenas visto sob outro ponto de vista — ou regra. A lista tem o mesmo
funcionamento que as seleções rápidas — também são filtros —, porém, se nelas a
escolha está limitada a gênero, artista e álbum, aqui a regra de escolha está na lógica de
57
quem a produziu, e não na máquina — crie as listas que tenham uma lógica pessoal e
deixe que o iTunes cria aquelas que são ‘universais’!
O terceiro filtro, e o mais interessante de todos, são as chamadas smart playlists
ou listas inteligentes. De inteligentes, no entanto, elas não têm nada — a não ser a
pessoa que as tenha colocado ali. São dinâmicas, funcionam como os live bookmarks do
Firefox e, como toda forma inovadora de seleção, são apresentadas timidamente, sem
muito acesso a quem não as conhece. Como padrão do software — e seguindo a mesma
lógica de ‘ensinar’ as pessoas as funcionalidades da interface — algumas destas listas
inteligentes já vêm criadas automaticamente. Alguns de seus nomes são as 25 mais
tocadas ou tocadas recentemente. Aparentemente não são manipuláveis. Uma pessoa
não escolhe quais são as 25 músicas mais tocadas acrescentando-as a esta lista, nem
tampouco define as tocadas recentemente. Porém, é possível editá-las. E, ao fazê-lo, nos
deparamos com uma interface que permite a criação de praticamente qualquer regra.
Regra para a seleção das 25 mais ranqueadas músicas dos anos 1980.
É uma forma muito eficiente de manipulação de grande parte das informações
contidas nas metadatas de todas as músicas da biblioteca. Em teoria, qualquer regra que
possa ser escrita logicamente pode ser criada. (ver anexo I)
Olhar por este ponto de vista chega até a ser cômico. As listas ‘livres’ se
mostram como um grande desafio aos computadores. As regras criadas para as smart
playlists usam alguns operadores simples como o ano é 1980 — com o é substituindo o
operador = — e o ano entre 1980 e 1989 — usando dois operadores comparativos.
Entretanto, para gerar uma regra que traduza logicamente o conteúdo da lista músicas
para dormir — que é uma lista livre —, seria necessária uma função matemática com
58
complexidade ‘invejável’. E assim, ironicamente, o software gentilmente deixa esta
tarefa para as pessoas38.
Além de apresentar diversas funções para ordenar a informação — o que facilita
em uma busca ou um recorte —, o iTunes tem uma outra característica importante.
Editar a informação de uma música como nome e artista é possível de qualquer lugar da
‘biblioteca’, sem necessitar abrir um formulário de edição da metadata id3v2 — o que
também é possível. Esta funcionalidade, que também está presente nos sistemas
operacionais, tem de ser melhor aproveitada nas interfaces. Não pode haver barreiras
para uma pessoa qualificar um arquivo ou uma informação, pelo contrário, a interface
deve possibilitar que a edição seja feita de forma simples e palatável.
Afinal, como que uma smart playlist que possui uma regra para ordenar todas as
músicas dos anos 1980 o fará se as músicas não estiverem datadas? Se, por um lado,
todas estas funcionalidades que geram inúmeras formas para encontrar um dado são
essenciais para a manipulação de muitas informações, por outro, perderiam grande parte
do seu potencial se as informações não estiverem classificadas e indexadas. Sem
informação nas metadatas, não há organização das músicas, não há organização das
informações.
2.3 Indexar é preciso, indexar não é preciso
Em agosto de 2005, circulou pela rede um artigo que trazia à primeira vista um
título curioso: “Google anuncia que planeja destruir todas as informações que não
possam ser indexadas”. Essa mensagem pareceria hilária se não fosse trágica. Primeiro
porque o Google não é uma empresa qualquer. Ele apresenta crescimento similar ao da
Microsoft em seu início e, como publicado na Folha de S. Paulo, “O Google est[á] em
posição (...) poderosa em termos de controle. Tem um potencial de controle monopolista
38 Este comportamento de “complexidade invejável” é aqui reconhecido como o Complexo de Borges, em homenagem antecipada ao computador que primeiro gerar uma regra para a lista de animais citada por Borges, que teria sido encontrada em uma ‘certa’ antiga enciclopédia chinesa (Borges, 2000:103). Nela, os animais seriam ordenados por (a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas. Uma possível regra — se assim pode ser chamada — está no prefácio de A Palavra e as Coisas de Michel Foucault (1992).
59
sobre o acesso à informação”39 . Segundo, pois, mais que a curiosidade inicial
proporcionada pelo título, ao longo do texto a sensação chegava a ser estarrecedora:
“‘Nossos usuários querem um mundo tão simples, limpo e acessível quanto a
homepage do Google’, disse o CEO do Google, Eric Schmidt em conferência à
imprensa (...). ‘Em breve ele será.’ O novo projeto, Google Purge juntará serviços
populares como Google Images, Google News e Google Maps (...).
Como parte da primeira fase, executivos vão destruir todo material com direitos
autorais que não podem ser buscados pelo Google. ‘Um ano atrás, o Google se ofereceu
para escanear todos os livros do planeta para seu projeto Google Print. Agora, eles estão
prometendo queimar o resto’, escreveu John Battelle no seu ‘Searchblog’ amplamente
lido. ‘Graças ao Google Purge você não precisará mais se preocupar que sua busca não
encontrou um livro obscuro, isso porque este livro não mais existirá. E o mesmo será
para os filmes, artes e música’. A queima dos livros é só o começo 40.”
Após uma rápida pesquisa no próprio Google é possível sentir-se seguro de que
essa história — pelo menos por enquanto — não passa de uma brincadeira de muito
bom gosto. Proposta que, em um âmbito mais amplo, remete ao projeto de Cícero
Inácio da Silva, Assina: do texto ao contexto41, uma vez que seu conteúdo, como a
rápida pesquisa acima também mostrou, é da mesma forma levado a sério por alguns
sem uma simples crítica. Brincadeiras à parte, o bom gosto, entretanto, não diz respeito
a esta característica, mas a um importante ponto caricaturizado pelo artigo.
O processo de globalização está estruturado em cima da potencialidade de novas
formas de comunicação. A presença da internet se dá e se dará, principalmente na
possibilidade de que práticas sociais sejam amplamente realizadas independentemente
do contexto geográfico. Comunidades em rede existem por outros motivos, mais do que
pelos de proximidade espacial. A produção e o contato com toda esta diversidade
cultural geram um crescente aumento de fluxos de informação, um contexto onde ter
informação é mais que um privilégio — como nas décadas passadas —, mas uma
necessidade. Encontrar uma informação passa a ser fator condicional.
39 F. de São Paulo, 25 de agosto de 2005: B10. A frase é de Brian Lent, presidente da Médio Systems, empresa de Seattle que trabalha em buscas para telefonia móvel. 40 http://www.theonion.com/content/node/40076/1 41 http://www.pucsp.br/~cicero/assina/
60
Claro que as informações sem classificação não deveriam ser queimadas da
forma que ilustra o The Onion, mas é preciso atentar para o fato de que não ser
encontrada em um contexto repleto de informações similares significa quase o mesmo
que esquecê-la. Não indexá-la, pode ser similar a excluí-la.
“Quando mandamos um computador ‘deletar’ um arquivo, ele aparentemente
nos obedece. Mas, na realidade, ele não elimina o texto daquele arquivo. Elimina
simplesmente todos os seus indicadores. É como se um bibliotecário, recebendo a
ordem de destruir O amante de Lady Chatterley, simplesmente rasgasse o cartão no
índice do acervo, deixando o livro na estante.” (Dawkings, 2003:255)
Se esta biblioteca que contém o livro O amante de Lady Chatterley tiver pouco
mais de mil livros, não demorará muito para achá-lo. Agora, se tiver dezenas de milhões
de livros distribuídos em centenas de quilômetros de prateleiras, não teríamos o trabalho
de queimá-lo pois sequer iríamos encontrá-lo!
Porém, nem sempre queremos encontrar uma informação direta como o arquivo
de uma música ou um livro. A busca, muitas vezes, é por informações subjetivas, menos
precisas em torno de um tema específico ou geral. Nestes casos, a indexação não pode
se limitar às palavras-chave. Indexar informação não deve ser interpretado apenas como
uma classificação de metadatas, músicas, livros. Classificar informação deve ser
entendido de forma mais ampla, como qualquer tipo de qualificação: link, publicação de
mensagens em fóruns, comentários em um blog, tagging, publicação de imagens
classificadas em sistemas especializados — Fotolog42, Flickr43 —, publicação de
arquivos de áudio — Podcast —, produção e troca de informação em sistemas como o
Orkut44 e Multiply45, comentários sobre determinadas reportagens nos portais de
notícia, comentário sobre determinado produto — Amazon46, E-bay47, Mercado
Livre48. Ou seja, qualquer forma de publicação de informação aberta — não editada —
como um simples nome de uma música, como Black Bird dos Beatles, passando pelas
42 http://www.fotolog.com 43 http://www.flickr.com 44 http://www.orkut.com 45 http://www.multiply.com 46 http://www.amazon.com 47 http://www.ebay.com 48 http://www.mercadolivre.com.br
61
publicações do blog do projeto Linc49 — laboratório de inteligência coletiva —,
mantido por Rogério da Costa, ou a construção de um portal como o Net Art50, de
Giselle Beiguelman, hospedado na incubadora virtual da Fapesp51. Classificar
informação é um comportamento social, e, por isso, a possibilidade de publicação,
edição e classificação que a internet possibilita tem de ser mais explorada. O que todos
estes exemplos citados acima têm em comum é a presença de interfaces que
possibilitam às pessoas inserirem, editarem e classificarem um conteúdo sem nenhum
conhecimento técnico de programação52. É a possibilidade de serem emissores de
informação sob um baixo custo, como discutido no primeiro capítulo. Não há
necessidade de aprendizado técnico específico, não é necessária uma taxa mensal para
hospedar suas informações e nem mesmo é necessário saber que estas variáveis existem.
São ferramentas com interfaces voltadas para a edição da informação.
Uma das grandes representantes destas interfaces é a utilizada nos blogs. Em sua
definição mais ampla — e que praticamente não diz muita coisa — o blog é um site. O
que, entretanto, o difere de sites convencionais é que este tem a intenção de que seu
conteúdo publicado não seja apenas informativo, mas que vá além, que possa ser
classificado e indexado pelas pessoas. Um blog tem funcionalidades que lembram as
listas de e-mails e fóruns de discussão — formas de discussão muito utilizadas nos anos
90.
Tudo em um blog gira em torno do conteúdo e de seu mantenedor — ou
mantenedores. Os textos publicados são abertos para discussão, são arquivados para
futuras consultas e sites relacionados são indicados ao lado. Normalmente são usados
para um determinado assunto, mas é uma ferramenta de publicação tão simples de ser
usada, que foi reutilizada para uso geral: o blog virou uma importante ferramenta
popular de comunicação. Entretanto, tantas funcionalidades para um grande público tão
díspar acabam gerando algumas limitações. O fato de os blogs, hoje, serem criados —
programados — automaticamente por sistemas faz com que as opções de configuração
sejam as mesmas para todas as pessoas. Mesmo havendo diferentes padrões de layout, 49 http://www.pucsp.br/linc/blog/ 50 http://netart.incubadora.fapesp.br/portal 51 http://incubadora.fapesp.br/ 52 Normalmente este tipo de interface é conhecido como interface Web por apresentar aparência e funcionalidade similares às de um site. Entretanto, por ainda ser presa a uma rígida estrutura do código de programação — o que significa que a interface ainda possui características modeladas por estas linguagens —, ter conhecimento específico destas proporciona um grande diferencial. Buscas utilizando recursos como as aspas duplas, operador de subtração, entre outros, são métodos muito próximos da linguagem computacional e ao mesmo tempo distantes do conhecimento popular.
62
todos contêm o mesmo tipo de informação e formas estruturais similares de
visualização. Muda a roupa, mas mantém o mesmo corpo, a mesma estrutura53.
Com tamanho sucesso, variações de conteúdo começaram a surgir. Para publicar
imagens surgiu o Fotolog e mais recentemente o Flickr. Se o blog tinha como conteúdo
principal o texto, outros sistemas para outros tipos de mídia foram surgindo, como o
Putfile54. Recentemente, vários sites que permitem a publicação de qualquer tipo de
arquivo estão aparecendo para fortalecer este movimento de publicação e classificação
de informação.
Outras formas de publicação e classificação são as comunidades fechadas. Seu
maior representante é o Orkut, uma comunidade com conteúdo restrito sob a tutela do
Google. É uma ferramenta que possibilita a publicação de imagens, textos, fóruns e
grupos de discussão, entre outros. Os links são a principal forma de acessar informação,
pois sua idéia inicial — representada pela interface e estrutura — é a visualização de
relacionamentos e seus respectivos conteúdos. Uma pessoa é amiga de outra, que é
amiga de outra... Talvez, por isso, o método de classificação mais interessante do Orkut
seja a relação que se estabelece entre as pessoas cadastradas. Todas as pessoas estão
ligadas a, ao menos, uma outra. Não há informação — pessoa — que esteja isolada, não
indexada ou não classificada. Todas as pessoas pertencentes ao Orkut estão
necessariamente linkadas a outra. Por uma exigência na hora da adesão ao sistema e,
para fazer parte desta rede, é preciso ser convidado por alguém já pertencente a ela, no
caso, o seu primeiro e inevitável link55 —, por sinal, uma estratégia de muitos dos
sistemas relacionados ao Google, como o Gmail56. Assim, seguindo links, é possível ter
acesso a qualquer pessoa do sistema e todo o conteúdo por ela gerado.
Com o vultoso crescimento da internet, diversos sistemas privados começaram a
oferecer ferramentas de classificação para seus conteúdos, como a Amazon57 com sua
wishlist58 — ferramenta usada para guardar alguns produtos desejados —,
GettyImages59 e sua lightbox — ferramenta para guardar imagens — e Art.com60 —
53 Com conhecimento técnico, diversas características dos blogs podem ser modificadas. 54 http://www.putfile.com/ 55 Este tipo de procedimento hoje é usado por vários outros sistemas valorizando o “convite” e “quem indica”. Desta forma, já é possível encontrar o mercado negro dos convites. http://www.360invites.com/ 56 www.gmail.com 57 http://www.amazon.com 58 http://www.amazon.com/wishlist 59 http://creative.gettyimages.com 60 http://www.art.com
63
ferramenta para guardar pôsteres e gravuras, e muitos outros. Em tempo, guardar a
informação pode ser entendida como arquivar informações ou produtos escolhidos em
pastas, grupos ou listas que estes sistemas permitem, para assim, torná-los disponíveis
facilmente a uma pessoa que deseja ter acesso a eles.
As ferramentas citadas acima — tanto públicas quanto privadas —, entretanto,
não suportaram um uso mais variado que pudesse abrigar diversos tipos de informação e
diversos tipos de mídia. Organizar um sistema que possibilitasse todo um
gerenciamento de um grande número de informações não era tão simples como os
desenvolvidos para alimentar e gerenciar blogs e fotoblogs. Com mais pessoas usando
estes serviços, agrupar algumas discussões foi a próxima etapa. Assim, as ferramentas
de publicação de informação abertas — blog, fotoblogs, etc. — evoluíram, ganharam
diversas funcionalidades, passaram a abranger conteúdos maiores e mais complexos.
Surgiram os CMS — Content Management Systems —, sistemas de gerenciamento de
conteúdo que possibilitavam que sites e portais fossem criados sem o conhecimento
técnico das linguagens computacionais. Entre alguns dos sistemas mais divulgados
estão MediaWiki61, PHP-Nuke62, Spips63, Xoops64, Xaraya65, Plone66, entre outros.
Este último — Plone — foi usado para desenvolver a incubadora da Fapesp. Segundo a
própria, “a Fapesp coloca à disposição da comunidade um projeto com características
inovadoras, que disponibiliza ambientes para criação cooperativa de conteúdos digitais
abertos, de interesse acadêmico, tecnológico ou social”67. Estes sistemas de
gerenciamento são ferramentas muito úteis e revolucionárias pois uma grande parte — e
as que mais merecem destaque aqui — é feita com código aberto. O que eles têm de
especial, além de seu funcionamento, é que não há custo para sua estrutura na rede. Se
alguém quiser criar um jornal on-line pode precisar investir em pessoas e máquinas, mas
não precisará de recursos para colocá-lo na internet.
Ferramentas como essas são importantes pois aumentam o número de pessoas
publicando informações mais complexas e agindo em rede. Assim, novas formas de
pensar e agir podem surgir. Um sistema baseado em CMS que está crescendo e
61 http://www.mediawiki.org 62 http://www.phpnuke.org 63 http://www.spip.net/ 64 http://www.xoops.org 65 http://www.xaraya.com/ 66 http://plone.org 67 http://incubadora.fapesp.br/apresenta
64
desafiando antigos conceitos é a Wikipedia68, a enciclopédia livre da Wikimedia
Foundation — o software usado é o MediaWiki. Seu grande trunfo é ser um sistema
colaborativo, onde qualquer pessoa possa publicar, editar e classificar um conteúdo e,
ainda, estar disponível em mais de cem línguas. Sua interface pode ser editada,
adaptando-se a diferentes conteúdos e formas de apresentá-los — tópicos, gráficos,
tabelas, posicionamento, diagramação, etc. Suas principais críticas, entretanto, giram em
torno de sua credibilidade. Em uma reportagem na revista Nature69, uma comparação
entre a Wikipedia e a Britannica70 mostra exatamente este ponto. Como dar
credibilidade a uma informação sobre física avançada se o valor de uma publicação
realizada por um físico é a mesma da realizada por qualquer outra pessoa? E como
transmitir a informação correta sem um editor que controle a qualidade e legibilidade
dos textos? O fato é que, segundo a Nature, a Wikipedia chega perto da Britannica em
precisão — ao menos em questões científicas.
Enquanto essas argumentações ressaltam questões futuramente inadequadas,
novas discussões são colocadas. A matéria ressalta que o principal ponto de destaque da
Wikipedia — em contraponto à possível falta de qualidade editorial — é a velocidade
com que pode ser atualizada. O sistema digital e sua interface desburocratizam o
processo. Ao invés de haver um grupo limitado de especialistas como por trás do
conteúdo da Britannica, no Wikipedia este grupo, que pode conter exímios especialistas,
é muito maior. O grande diferencial, de fato, fica por conta da interface. O
desenvolvimento de todos esses sistemas — blogs, fotoblogs, videoblogs, CMSs — está
evoluindo de forma a permitir que uma pessoa não só publique informação, mas que o
possa fazer definindo mais variáveis de sua formação e classificando esta informação
com palavras-chave, links, comentários, discussões, imagens, vídeos. (ver anexo II)
Todos estes sistemas, entretanto, trazem consigo traços muito rígidos da
estrutura do código, com formas de manipulação de informação similares. Se por um
lado essas ferramentas — Wikipedia, Netart, e muitos outros — são adaptadas para
diversos tipos de conteúdo, por outro esta adaptação ocorre em cima de regras
parecidas. Todos estão limitados por alguma estrutura que os fazem próximos. O latente
código ainda mostra sua cara e determina como a interface das principais novidades na
68 http://www.wikipedia.org 69 http://www.nature.com/news/2005/051212/full/438900a.html; http://www.nature.com/news/2005/051212/exref/supplementary_information.doc 70 http://www.britannica.com/
65
internet evolui — e não são apenas as informações formatadas pelos sistemas de
gerenciamento de conteúdo que se enquadram neste grupo, mas a grande maioria dos
sites compartilha desta limitação.
2.4 Manipulação física da informação
Com a consolidação da interface gráfica em detrimento à interface com linha de
comando, a utilização de metáforas com elementos do nosso cotidiano, da nossa escala,
revolucionou a forma de encarar e entender mais sobre o computador. A opção por
arquivos e pastas ilustradas funcionou pois, ao identificar tais elementos, a forma de
organizá-los já estava subentendida. Os arquivos iam para dentro de pastas, pastas
dentro de outras pastas. A classificação dos documentos digitais não se caracterizava
mais como um grande enigma.
Por mais que com a interface com linha de comando esta metáfora também
existisse, como dito anteriormente, esta sensação não era visível. Era necessário
descrever os comandos que se desejasse executar. Para procurarmos um arquivo dentro
de uma pasta, deveríamos digitar um comando para mudar de pasta ou diretório — cd,
abreviação de change directory —, indicar qual pasta será acessada — nome da pasta
— e, por fim, um comando para listar todos os arquivos daquela pasta — cd/nome da
pasta; dir. Para deletar um arquivo, idem, o comando de apagar deveria ser seguido do
arquivo — delete arquivo.doc. Com a interface gráfica, para verificar o conteúdo de
uma pasta, basta abri-la com um clique em substituição ao texto anteriormente
necessário. Da mesma forma, colocar um arquivo no lixo é um recurso da interface para
que uma pessoa exclua um arquivo sem precisar escrever uma linha de comando.
Na verdade, além da desmistificação de um arquivo através de um ícone, o que o
tornou ainda mais palpável foi a presença do cursor. Ter a impressão de um contato
direto com o arquivo gera uma sensação de realidade, de contato físico. Não há a idéia
de estar manipulando um desenho que representa um arquivo escrito no disco rígido.
Mesmo indiretamente — afinal uma pessoa move o mouse na mesa e o cursor se move
com o arquivo na tela —, a sensação é de contato físico. Esta materialidade não facilita
apenas o entendimento da organização dos arquivos em pastas, mas na manipulação de
66
um arquivo como um todo. As ações de arrastar, mover, copiar, excluir e agrupar que as
interfaces gráficas apresentam, potencializaram a visualidade e a interatividade da
informação.
Entretanto, com o crescimento da rede, o caminho de desenvolvimento da
interface apresentou um certo desvio. Limitadas pela baixa taxa de transferência de
dados através da internet e pela incompatibilidade de sistemas operacionais, essas
interfaces não poderiam contar com os mesmos recursos locais de um computador. É
como se fosse necessário regredir no desenvolvimento e nas formas de se pensar
interfaces para encontrar um caminho que se adaptasse a esta limitação. Por esta razão,
o HTML é usado amplamente como difusor de informação.
“A mais importante qualidade do HTML é que ele é apenas texto. Não contém
tabelas, tipografias, figuras. No entanto, contém as instruções para as tabelas, fontes,
figuras” (Galloway, 2004:76).
Apesar das semelhanças, a interface de um sistema operacional e as interfaces
visualizadas através dos browsers — HTML — têm diversas especificidades. A
começar pela sua criação. Enquanto uma foi fruto de pesquisa e estudos desde meados
do século passado por poucos grupos espalhados pelo mundo, a outra é criada e
reinventada todos os dias por milhares de pessoas. Com isso, perde-se uma
padronização em troca de um bom senso — mesmo apesar de inúmeras tentativas para
tal. Essa falta de padronização, ao invés de ser prejudicial, acaba estimulando uma
diversidade e ampliando o campo de pesquisa e desenvolvimento das interfaces.
Durante as primeiras décadas de transmissão de informação através de grandes
redes, as práticas adotadas eram basicamente acadêmicas e predominantemente voltadas
para a troca de artigos, documentos, teses, com interfaces mais ligadas à cultura
impressa. Como colocou Manovich, seriam, no fim, impressas e lidas no papel — forte
razão para que seu desenvolvimento tenha seguido este caminho que, mesmo depois,
com o aumento da taxa de transferência de dados e conseqüentemente o grau de
interatividade, a referência da mídia impressa persistia muito forte.
Entretanto, paralelamente a este desenvolvimento, algumas novas formas de
representação gráfica começaram a surgir. Sob as qualidades e vantagens da linguagem
67
Actionscript, da Macromedia, o Flash — em razão da proporção peso/qualidade gráfica
e interativa —, junto com o Java, Lingo, VRML entre outros, foram revolucionários,
pois, mesmo que, desde meados de 1990 com o Mosaic, já fosse possível transmitir
vídeos, sons, imagens e texto ao mesmo tempo, o nível de interatividade e de potencial
gráfico era muito baixo. A experiência que uma pessoa retinha era a de leitura com algo
mais. Essas novas linguagens, entretanto, permitiam uma forma de interação
diferenciada, pois trabalham com outro tipo de código, além das formas apresentadas
pelos arquivos HTML. Enquanto que muitas interfaces desenvolvidas em HTML são
procedentes de formas relacionadas à cultura impressa, os formatos apresentados pela
Macromedia vêm de formas atreladas à animação e ao cinema. E foi justamente por
agregar estes recursos a um alto grau de interatividade que seu uso foi disseminado no
início deste século.
Milhares de sites adotaram esta linguagem e começaram a potencializar o uso da
linguagem e das interfaces digitais. Entre eles, os trabalhos de Hugo Nakamura71 e
Joshua Davis72 merecem destaque. Explorando tanto novas formas de interatividade
quanto estéticas algorítmicas foram responsáveis por disseminar novas formas de
navegação que rompiam com as estruturas rígidas do código HTML. Atualmente, a
busca por novas formas de organização da informação aliadas a uma marcante
manipulação dos dados é explorada, divulgada e discutida através da internet. Dentre as
muitas produções três casos devem ser exemplificados. O primeiro é o arquivo digital
da Aiga73 — American Institute of Graphic Arts — com sua interface voltada para a
organização da informação. O segundo, é o trabalho de Alex Frank, dontclick.it74, que
pesquisa novas formas de manipulação da informação. O terceiro é o experimento de
Stefan Richter, Someone keep stealing my letters75, que trabalha com formas de
manipulação de informação coletiva.
À primeira vista, o arquivo de design em rede da Aiga parece ser mais um site,
entre muitos, que se utiliza da linguagem Actionscript —, afinal, a tecnologia é apenas
um suporte para as interfaces . Tipografias fora dos padrões dos sistemas operacionais,
tratamento de imagens diferenciado e, principalmente, a ausência de uma rigidez
estrutural imposta por componentes HTML. Entretanto, o trabalho de Brad Johnson e 71 http://www.yugop.com/ 72 http://www.joshuadavis.com/ 73 http://designarchives.aiga.org/ 74 http://www.dontclick.it/ 75 http://web.okaygo.co.uk/apps/letters/flashcom/
68
Julie Beeler se mostra uma ferramenta extremamente organizada, com sua interface que
possibilita uma visualização quase que holística das informações disponíveis. Os
eventos de interação são rigorosamente divididos entre a interação tátil do “passar o
mouse por cima” de um objeto para uma rápida informação adicional e clicar para obter
informações mais específicas. Em ambos os casos, a resposta é rápida e reveladora.
Ainda, apesar de demonstrar o uso da tecnologia, o trabalho não apresenta uma estética
futurista com simulação de textura de metal e plástico como muitos projetos,
equivocadamente, o fazem. Não há botões simulando uma tridimensionalidade pois não
há a necessidade de fazer referência a alguma interface não-digital de um aparato em
nossa escala — mesmo porque ele não seria tão prático como este projeto.
Mas o potencial do projeto não se encerra na questão estética. A ergonomia
frente à problemática da resolução de tela e tamanho das janelas é outro ponto que
merece destaque. Um já clássico limitador de projetos para a internet, a incerteza quanto
ao tamanho de área disponível é colocada à prova neste trabalho. Assim como grande
parte dos sites, destacando o Google e o A976, independentemente do tamanho da janela
e da resolução, as informações se ajustarão para serem visualizadas. O problema é que,
com esta flexibilidade, estranhas diagramações começam a aparecer e deturpar o
conteúdo divulgado. Diagramar um campo de texto para um material impresso ou para a
televisão e cinema, onde o suporte e a forma de apresentação são quase padronizados, é
muito diferente de diagramar um campo de texto que pode sofrer distorções e se
apresentar da forma que o usuário definir. Diferente dos sites Google e A9, o arquivo da
Aiga tem um cuidado especial para que os elementos da interface sejam adaptáveis a
diferentes formatos e que ao mesmo tempo não percam em qualidade gráfica, estética e
informacional. Não que o projeto tenha encontrado uma forma completamente flexível
de se dispor informação, mas apenas levar em conta esta variável, com o êxito estético
obtido, já o faz por merecer o destaque. A adaptação do projeto A Grande Linha, de
Daniel Trench, Edu Marin e Felipe Julián, exposto na Mostra Sesc de Artes
Mediterrâneo (2005), também retrata esta problemática77. O projeto original consistia
em uma grande linha do horizonte composta por inúmeras fotos coletadas ao longo da
preparação do projeto a convite dos artistas, somada à ambientação sonora de
composições eletroacústicas. A adaptação para o meio digital seguiu a mesma linha do
projeto original, porém adotando a incerteza do espaço como ponto principal. Por um 76 http://www.a9.com/ 77 http://www.sescsp.org.br/sesc/hotsites/grandelinha/index.html, adaptação de Renato de Almeida Prado.
69
lado, a incerteza espacial da paisagem do horizonte que se modifica a cada olhar é
evidenciada pela aleatoriedade das imagens que invadem a área visual. Uma imagem
que saia do horizonte visual da janela não mais volta na mesma posição. Por outro, a
aleatoriedade do campo visual — estipulada pelo tamanho da janela do browser — não
só é levada em conta como é aproveitada para uma navegação diferenciada. A busca por
um novo horizonte pode ser feita tanto através de um movimento horizontal do cursor
como no ato de redimensionar a janela. Não importa o tamanho da área, a linha do
horizonte permanecerá no centro visual horizontal da tela. E não importa quantas
imagens apareçam que a estética do trabalho se mantém. Uma questão de adaptação.
Outro ponto que chama atenção no arquivo da Aiga é o seu sistema de procura.
Apresenta uma demonstração de indexação de conteúdo, com o uso cruzado de filtros
— como já fora discutido anteriormente. As informações não estão à disposição
unicamente de forma cronológica, ou por tema. Com todos os trabalhos devidamente
indexados, a procura pode ser feita cronologicamente, por tema ou relacionando os
filtros, por um tema específico em determinada data. Assim como o tamanho da janela,
esta interface possibilita que uma pessoa configure de forma simples quais informações
e como devem estar disponíveis na tela. E isso não se limita apenas à procura. A própria
apresentação dos trabalhos pode ser filtrada de forma a encontrar ou procurar uma
informação específica de maneira simples. Uma interface adaptável, mas que mantém
sua qualidade de publicação invariável.
70
Além de todas estas características, o que faz deste projeto relevante quanto à
manipulação da informação é que são acompanhadas de interação peculiar. Não há os
tradicionais links que mudam de página. Nem mesmo há o conceito de página atrelado
ao projeto. As informações requeridas são acessadas em algo que mais parece um
ambiente que uma página. As formas de interação são instrumentos para que as pessoas
compreendam a interface e saibam quase que intuitivamente usufruir o sistema.
É nesta linha de interação e manipulação da informação que o projeto
dontclick.it se enquadra. O próprio endereço — http://www.dontclick.it — já denota
uma forma diferenciada de usar a rede. A extensão .it não se refere a um site italiano, e
sim ao objeto de interação. Da mesma forma que o site del.icio.us — http://del.icio.us
— utiliza-se da extensão .us para tornar seu endereço mais palatável. Entretanto, as
experimentações vão bem além do endereço.
O alemão Alex Frank desafia os curiosos a interagirem sem o uso do clique do
mouse, com uma leve punição gráfica àqueles que se atreverem intencionalmente, ou
não, à prática do indicador. Também não utiliza estéticas futuristas e texturas espaciais,
seu trabalho gráfico é baseado em cima da informação. Depois de alguns instantes de
contemplação, a navegação sem o clique passa a ser natural e as conseqüências deste ato
ficam evidentes. O tempo de acesso à informação cai drasticamente, pois apenas a
interação do cursor já ativa os eventos da interface — abrir um menu, escolher um
tópico, movimentar um objeto, etc. Frank vai além e desenvolve diversos experimentos
de interação sem o clique, como intervenções gráficas, modelação de objetos e interação
com botões. Se no projeto da Aiga, a interação do cursor com um objeto já era
condicional para a qualidade da interface, aqui foi levado ao extremo. E o projeto
demonstra que com pouca prática isto já é possível.
Salvo a interação com alguns botões, todas as soluções encontradas por Frank
são extremamente simples, ágeis e, acima de tudo, didáticas. Naturalmente algumas
pessoas podem se perder e se verem completamente desorientadas com a velocidade da
informação, mas não é nada mais que falta de prática. A busca por uma informação não
pode ser exaustiva, não pode demorar. Deve ser rápida para que sua prática seja útil.
Não é à toa que o Google dispõe junto com o resultado de uma busca o ínfimo tempo
necessário para seu sistema realizá-la. A interface deve facilitar a busca e possibilitar
que mais variáveis sejam incorporadas para torná-la mais eficiente.
72
Além de todo o trabalho de manipulação de informação voltado para uma busca
e uma interação mais eficiente — rapidez, precisão, organização —, as interfaces, como
já explorado nesta dissertação, passam a ser importantes formas de comunicação entre
pessoas.
73
O terceiro exemplo, ao contrário dos dois primeiros, é relativo às interfaces que
possibilitam uma interação conjunta entre pessoas. Não possuem o mesmo caráter
informativo, nem a mesma primazia estética, mas são relevantes pelo seu resultado
coletivo.
74
Someone keep stealing my letters é uma espécie de projeto de entretenimento
coletivo. Dezenas de letras são colocadas à disposição em uma área para que até mais de
70 pessoas embaralhem, organizem, atrapalhem, incomodem, ajudem umas às outras.
Não há um objetivo, não há regras. Há apenas as limitações e possibilidades que as
interfaces proporcionam. Assim como este projeto, Richter criou também o
Scratchpad78, sistema semelhante que ao invés de trabalhar com letras, apresenta para
ser desenhada por um grande número de pessoas. Também uma interação coletiva, com
as regras estabelecidas apenas pela interface.
A interação entre pessoas na internet não é nenhuma novidade, mas e-mails,
fóruns, blogs dificilmente possibilitam que as discussões se dêem em tempo real. Os
chats, comunicadores — ICQ, Google Talk, MSN — chegam mais próximos a este
objetivo, mas ainda têm a comunicação enviada por pacotes — alguém finaliza uma
frase e depois a envia —; já o Skype — voz — se assemelha mas não trabalha isso
graficamente. Em ambos os casos — Someone keep stealing my letters e Scratchpad —,
a interação é gráfica e coletiva, os resquícios da comunicação continuam evidentes —
assim como nos fóruns e chats, e ao contrário do Skype. Claro que dos chats ao Skype o
desenvolvimento foi grande, e que experimentos semelhantes aos de Richter sucederão
estas simples intervenções. Mas as potencialidades gráficas de interação coletiva —
instantânea — e suas implicações já são necessárias. Na verdade, as formas citadas nos
três exemplos acima — arquivo de design da Aiga, dontclick.it e Someone keep stealing
my letters — vão paulatinamente se tornando condicionais para o desenvolvimento da
rede.
A velocidade que a informação chega a uma pessoa está atrelada à facilidade que
esta tem de encontrá-la, razão pela qual as interfaces caminham neste sentido. Uma
pessoa não vai realizar uma tarefa através da internet se houver forma mais prática e
rápida de fazê-la. Se encontrar uma informação específica em um site não for uma
tarefa fácil, uma pessoa o fará em livros, jornais, ou até por telefone — caso haja algum
para tal —, mas não se aventurará pelas dezenas de áreas que se apresentam logo de
início. Se as interfaces digitais não apresentarem soluções diferenciadas, que explorem
seu potencial, ficarão sempre à sombra de suas referências e dificilmente serão usadas
de maneira ampla para as práticas sociais que demandem tal qualidade. 78 http://web.okaygo.co.uk/apps/scratchpad/flashcom/
75
2.5 Design da informação
Ordenar a informação graficamente é uma prática humana, uma forma de
comunicação. Inscrições, pergaminhos, guias de navegação, mapas, folhetos, livros,
televisão, entre muitos outros, refletem esta atividade. Quanto mais informação para ser
representada, mais complexo é o desafio e parte desta complexidade se dá,
principalmente, pelas limitações do suporte. Um pergaminho não deve conter uma
quantidade ilimitada de conteúdo se não suas dimensões seriam desproporcionais.
Assim como um livro, a televisão, etc. Os suportes apresentam limitações físicas que
requerem de elementos da interface soluções de representação da informação.
Um exemplo simples é um gráfico, como o colocado abaixo. Este,
especificamente, representa a variação do número de artigos em diversas línguas na
Wikipedia ao longo dos últimos anos. O eixo horizontal representa uma escala temporal
— bimestral —, o eixo vertical representa a quantidade de arquivos. Cada linha, com
sua respectiva cor, representa essa variação para um idioma específico.
76
Neste caso, entre outras possibilidades, este gráfico permite uma leitura
individual do crescimento de artigos para cada idioma como também possibilita uma
comparação entre os idiomas. Ou seja, permite diversas leituras acerca das qualidades
dos dados devido à forma com que esta informação foi desenhada e disposta. Por
exemplo, se a escala temporal representada fosse relativa às décadas, e não aos
bimestres, a leitura seria, naturalmente, outra, mesmo não alterando o tipo de dado —
tempo. A representação gráfica seria outra. Isso mostra que, para uma leitura específica,
as informações precisam de uma organização específica.
“Compreender as características qualitativas de um conjunto de informação é o
primeiro passo para entendê-las. A busca por representações qualitativas é uma conduta
funcional porque seria desnecessário ou impossível levar em consideração somatórias
individuais para um grande conjunto de informações (...) Impossível pois a mente não é
capaz de lidar com centenas de milhares de quantidades individuais simultaneamente.
(...) [D]esnecessária pois apenas uma pequena parcela da informação será de fato usada,
e tempo será desperdiçado analisando as partes inúteis.” (Fry, 2000:14)
Uma somatória de elementos gráficos é usada como instrumento para que mais
informações de um mesmo conteúdo possam ser encontradas. O gráfico abaixo, criado
para CNN, utiliza cores e números em um mapa dos Estados Unidos para apresentar o
resultado final das apertadas e polêmicas eleições norte-americanas de 2004.
77
Algumas conclusões ficam claramente expostas e outras muitas podem ser
analisadas. Por outro lado, demais formas de representação de informações similares ao
gráfico da CNN podem ser aplicadas, como a criada por Steve Duenes e equipe, do New
York Times, para o resultado das mesmas eleições.
Claro que esta segunda representação possui muito mais informação do que a
primeira, mas não é esta comparação que merece atenção. Embora ambos permitam que
seja visualizado um quadro geral por estado, o primeiro gráfico utiliza-se de números
para quantificar o número de votos de uma região, enquanto o segundo utiliza a
dimensão dos círculos para o mesmo feito.
No primeiro gráfico das eleições de 2004, este quadro geral e imediato não teria
a mesma visualização se os números fossem referentes a cada pequena área como
mostra o segundo exemplo. Não seria possível analisá-los individualmente de forma
rápida, o que torna claro que a escolha de uma variação gráfica — diâmetro do círculo
— para a representação de uma informação, neste caso, é condicional para uma ampla
interpretação.
Por mais que haja diferenças significativas, vale ressaltar que ambos os gráficos
são estáticos. Sua informação é fixada e desenhada de forma a representar alguns fatos e
78
permitir diversas análises, e será assim para sempre, esteja ele impresso em um jornal,
em um cartaz, em uma parede. Estes suportes têm um limite físico. E é aí que reside um
dos grandes diferenciais da representação através da linguagem digital. Não pela
possibilidade de juntar em um mesmo ambiente diversas mídias — impresso, vídeos,
imagens em movimentos, gráficos, entre outros — e sim pelo seu grau de interatividade
e dinamismo. Muitos gráficos das eleições americanas poderiam estar relacionados e à
disposição de uma pessoa através de pouca interação.
Quem soube aproveitar muito bem estas potencialidades das interfaces digitais
foi Martin Wattenberg79. “Quero que meus trabalhos respondam instantaneamente aos
visitantes” 80, diz ele. E é esta a sensação ao interagir com seus projetos. Alguns
parecem gráficos estáticos muito bem resolvidos, mas, ao interagir com eles, novas
informações são apresentadas e novas leituras são possíveis.
O exemplo abaixo se refere ao projeto Map of the Market (1998)81, uma
interface que apresenta informações sobre o mercado financeiro. Um único mapa que
permite uma rápida visualização geral sobre as condições do mercado.
79 http://www.bewitched.com/ 80 http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/421,1.shl 81 http://www.smartmoney.com/marketmap/
79
O grande potencial desta interface é de possibilitar que determinadas
informações possam ser analisadas em diferentes escalas, ou seja, é possível analisar
quais empresas estão em alta e quais estão em baixa através da intensidade das cores e,
segundo seus agrupamentos, é possível analisar que setores e que tipo de indústrias
seguem o mesmo caminho. Ainda, o valor de mercado de uma empresa é determinado
pelo tamanho da área que a representa. Através do controle à direita, seleciona-se a
situação do mercado atual, no dia anterior, há seis e 12 meses passados além de outras
opções. Apenas passeando com o cursor sobre cada célula, informações adicionais são
mostradas. Após o clique, uma série de opções de dados sobre cada empresa surge —
estas, entretanto, serão acessadas em outra janela.
Simplificadamente, é possível visualizar um plano geral — do mercado de
ações ou como em ambos os gráficos das eleições norte-americanas — e ao mesmo
tempo entrar em especificidade — de cada empresa ou como os números do primeiro
gráfico eleitoral e a diversidade gráfica do segundo. O potencial de leitura do gráfico
digital — dinâmico — é bem maior que um impresso — estático — e precisa ser mais
explorado e melhor aproveitado.
Não apenas os gráficos, mas todas as formas de comunicação digital
possibilitam este potencial de leitura e organização da informação. Bons sistemas de
busca podem representar gráfica e interativamente seus resultados, assim como ocorre
80
em um outro projeto de Wattenberg, o Idea Line (2001)82, uma história interativa da
arte na internet.
A primeira leitura, assim como o Map of the market, lembra um gráfico estático.
O eixo horizontal representa uma escala temporal — ano —, a vertical é relativa às
possíveis categorias de arte na internet. Ainda, para cada categoria em determinado ano
há uma grau de intensidade na cor da linha. Quanto mais trabalhos houver em uma
determinada época, mais clara será a linha.
Desta forma já é possível analisar algumas tendências como o grande uso de
hipertextos entre 1996 e 2000, ou de animações a partir de 1999. Porém, aqui também
possui um novo mundo a ser desvendado com o cursor. Ao passá-lo sobre uma linha —
categoria — ela se abre apresentando o nome dos trabalhos separados por ano, e o
trabalho selecionado ganha informações adicionais em um pequeno quadro. Ou seja,
82 http://artport.whitney.org/commissions/idealine.shtml
81
uma outra escala de visualização é oferecida. Antes era possível ver um contexto macro,
enquanto que agora é possível analisar algumas especificidades. Ainda, na relação
vertical das categorias, há dois indicadores de relacionamento. Estes representam outras
categorias em que o mesmo trabalho também se encontra. Quadrado laranja cheio
significa que o trabalho é representativo de uma outra categoria, enquanto que o
quadrado laranja vazio significa que há relação, mas não é o foco principal.
As informações não param por aí. Há um campo de busca no alto à esquerda que
tem funcionamento interessante. Ao procurar alguma informação neste campo, o
sistema gera, a cada caractere digitado, uma lista de supostas opções que estão no banco
de dados do sistema e, ao selecionar uma opção desejada ou digitar por completo a
palavra a ser buscada, ao invés do resultado da busca ser listado, como no Google, ele é
apenas indicado graficamente na interface.
82
A representação é similar à citada anteriormente. Quadrado amarelo cheio indica
a categoria principal em que o trabalho procurado se encontra e os quadrados amarelos
vazios indicam temas secundários. Com isso, é possível analisar, por exemplo, quais
tendências o trabalho procurado seguia à época de sua criação.
83
Ainda, se a seleção do trabalho se der através do botão direito do mouse, é
possível visualizar todos os outros projetos do mesmo artista seguindo as mesmas
lógicas gráficas, isto é, abrem-se novas possibilidades de leitura, novas formas de
visualização. É uma série de recursos que permitem que as informações sejam
percebidas e entendidas sob diversos pontos de vista.
Se em uma maior abordagem o que estamos vivenciando é um aumento brutal na
quantidade e na velocidade do fluxo de informações e todas as conseqüências que isto
proporciona, essa organização se faz extremamente necessária, pois permite um
potencial de análise muito maior. A velocidade com que é possível realizar tais análises
é muito menor.
Assim, as muitas formas de visualização e as diversas escalas de leitura fazem
dos trabalhos de Wattenberg um caso de organização da informação que extrapola as
formas das já tradicionais culturas e que se mostra apto para esta nova quantidade de
informação. Assim como o arquivo digital da Aiga, Someone keep stealing my letters,
donclick.it, blogs, CMSs, links, filtros, live bookmarks. Cada um com sua
84
particularidade, cada um suportado por formas de interação e tecnologia específicas,
mas que devem ter no seu desenvolvimento um mesmo sentido, uma mesma lógica: o
entendimento das especificidades do aparato digital e, a partir deste conhecimento, uma
aplicação bem mais eficiente, capaz de não apenas transmitir muito mais informação,
mas contextualizá-las trabalhando-as em diversas escalas. Se estamos — a grande
maioria — nos acostumando a procurar informações através dos tradicionais sistemas
de busca — Google, Yahoo, entre outros —, que trabalham basicamente com textos, é
sinal de que as interfaces ainda têm muito potencial de desenvolvimento.
Considerações finais
Os diagramadores de jornais e revistas impressas, aqueles que, após a definição
de determinado conteúdo, minuciosamente se esforçam para que a informação
permaneça clara e inteligível para um leitor, não estarão aptos para diagramar e
organizar informações digitais dinâmicas, caso utilizem as mesmas qualidades
adquiridas em seus ofícios. Elas não serão suficientes ao se depararem com uma
informação dinâmica que se altera constantemente. Diagramar uma coluna de texto com
um número de palavras contadas é diferente de diagramar um texto que pode, em
determinado momento, conter um número de palavras e, depois, outro, algumas vezes
maior ou menor. Alocar uma imagem de tamanho indefinido e flexível requer outras
metodologias. Diagramar um conteúdo dinâmico, de fato, mais se parece com o trabalho
de um jardineiro do que com o de um tradicional diagramador. Isso, pois este conteúdo
que evolui possui mais traços de um organismo vivo do que os de um objeto inanimado.
Sua representação final não é estabelecida, é administrada.
Entender como este conteúdo se desenvolve cria condições para que seu
crescimento se dê de maneira ordenada e inteligível.
“Ao aprender como um organismo utiliza suas peculiaridades para lidar com
seu ambiente, uma pessoa pode inferir como a visualização pode gozar de
características similares.” (Fry, 2000:43)
85
Em breve, não desenharemos mais interfaces diretamente. Nosso trabalho será
focado na construção de programas que desenharão interfaces. Esta prática, inclusive, já
é comum nos sites com grande quantidade de dados, pois, normalmente, dispõem de
informação dinâmica armazenada em uma base. Nestes casos, as informações não são
desenhadas anteriormente, mas são montadas na hora, segundo regras que determinam
sua forma de se apresentar na hora em que forem acessadas. A disposição das
informações na publicação digital do jornal O Estado de S. Paulo83, por exemplo, é
realizada desta forma. Não há o tal diagramador que recebe o conteúdo e o aplica
definindo uma determinada diagramação. Um simples aplicativo — se assim pode ser
chamado — é escrito para acessar a informação armazenada em um banco de dados,
inserida diretamente por um jornalista, diagramá-la segundo regras pré-estabelecidas
para, então, gerar o arquivo da forma que o vemos quando o acessamos através do
computador. O mesmo ocorre para o Google, que possui a mesma diagramação para
qualquer busca de seu principal serviço de procura. Seus diagramadores nunca
souberam quais as informações que iriam aparecer no momento em que alguém
efetuasse uma determinada busca, mas souberam criar uma regra para que a
apresentação final — por mais duvidosa esteticamente que seja — se mantivesse
organizada.
Esta lógica de usar programas para criar programas para realizar algumas
funções específicas pode ser encontrada em outros tipos de aplicativos. Johnson
(2003:126) descreve um projeto de Danny Hillis para classificar números aleatórios, um
problema antigo da matemática. A especificidade deste programa é que ele não foi
desenhado diretamente para ordenar os números, e sim criado para desenvolver
programas que possam fazê-lo. Os 72 passos alcançados por um destes programas
criados pelo programa de Hillis chegam muito próximo do recorde de 70 passos
alcançados por programas estruturados especificamente para ordenar os números —
feito impressionante se considerado que seu programa demorou apenas 20 minutos para
escrever um aplicativo que desenvolvesse esta forma de ordenar enquanto os homens
levaram alguns anos para escrever tal aplicativo. Nos programas tradicionais, a lógica
do programador é que define o procedimento. No software de Hillis, não. Ele não sabe
nem ao certo dizer se a lógica usada na ordenação é compreensível.
83 http://www.estadao.com.br/
86
Aproveitar-se do potencial digital é uma prática imprescindível para lidar com
uma quantidade de informação superior ao que somos humanamente capazes. Esta
mesma idéia é apresentada por inúmeros jogos digitais, entre eles os famosos Simcity84
e The Sims85. Em Simcity — simulador de cidades —, seus criadores evidentemente não
pensaram em todas as possibilidades de desenvolvimento de uma cidade para criar o
jogo. Eles inventaram regras para este desenvolvimento. O jogo é basicamente a
administração do crescimento das cidades segundo alguns instrumentos colocados à
disposição pela interface do jogo — o mesmo mecanismo na simulação de
relacionamentos pessoais representada pelo The Sims. O jogador recebe o poder de
alterar algumas variáveis importantes e, ao mesmo tempo, se encontra alheio e passivo
diante de outras que o sistema promove.
Todos estes exemplos possuem fortes características de sistemas auto
generativos e emergentes que se desenvolvem, também, de acordo com seu próprio
código e em reação aos reflexos de nossas ações. É interessante notar que este latente
aumento no número de informações que regem o desenvolvimento destes sistemas vai
além de uma escolha consciente por parte das pessoas. Não fica a cargo delas
determinarem, sozinhas, os reflexos de uma ação. O sistema reage por si só a elas. Em
The Sims, por mais que alguém possa controlar muito rigorosamente, através de uma
interface, as ações de seu personagem, não será possível isolá-lo de ações e reflexos
externos. Os sistemas tendem, cada vez mais, a processar dados de forma inteligente,
para que o grau de informação seja mais elevado e para que uma pessoa experimente
uma sensação mais próxima do seu contato com o mundo natural e em uma escala de
análise superior. Entretanto, estas informações só poderão ser utilizadas com todo seu
potencial caso haja uma interface que seja capaz de interpretar e apresentar de forma
adequada todas estas informações dinâmicas com a mesma capacidade auto generativa e
emergente — utilizando-se de regras para reinventar sua capacidade representativa de
acordo com cada novo e inusitado conteúdo. Uma interface que atue de forma
inteligente, organizando a informação seguindo regras que ela mesma possa criar.
Se por um lado as interfaces têm de desenvolver essa ampla capacidade de
apresentar informação, por outro, terão de evoluir na forma de receber — e
84 http://www.simcity.com/ 85 http://www.thesims.com/
87
conseqüentemente transmitir — informações provindas das pessoas. Futuros passos no
desenvolvimento de interfaces devem prever que a troca de informação com o sistema
não deve estar restrita à entrada e saída de informações simples como um clique do
mouse, uma tecla apertada. Se há a intenção de que processos comunicativos e
atividades sociais sejam potencializados pela ausência da relevância do espaço físico, é
importante que, através de interfaces e máquinas, outras formas de informação possam
ser representadas.
O trabalho Perversely Interactive System86, de Lynn Hughes e Simon Laroche,
extrapola este conceito e leva a troca de informação entre homem e máquina a um novo
limite. Com o uso de interfaces não tradicionais, ao invés de entradas de informação
consciente, elas trabalham com inputs de biofeedback — um sistema relacionado com o
nível de stress de uma pessoa. Dependendo de quão calma uma pessoa estiver na frente
da obra, ela se comportará de forma diferente.
Aparelho que mede o nível de stress de uma pessoa. As informações colhidas são passadas para um computador que as interpretará modificando a reação do sistema.
86 http://interstices.ca/
88
Imagem de uma mulher que se aproxima e se afasta dependendo do nível de stress da pessoa que usa o aparelho. Os mais calmos a atraem, enquanto os menos calmos a afugentam.
Não há interação aparentemente direta para a grande maioria das pessoas. O
sistema se comunica mais com as informações químicas do organismo do que com as da
consciência simplesmente. É bem diferente de um sistema reagir a um comando
proposital como, por exemplo, o movimento do cursor. Uma interface que tenha — não
apenas, mas inclusive — a pretensão de representar uma realidade, tem de transmitir
bem mais informações do que as possíveis através das atuais formas de input de dados.
Sensores de movimento, acústica trabalhada de forma periférica, monitores de
mais alta precisão, entre outros, colaboram na construção de um conjunto de formas
mais sinestésicas de interagirmos. Uma qualidade que pode representar um grande passo
na potencialização da atividade das interfaces nos processos comunicacionais, e em uma
integração ainda maior na sociedade.
Assim, a influência das interfaces poderá se imbricar de forma tão ampla em
nossas atividades básicas do cotidiano que será possível dizer, ao contrário de que os
meios de comunicação sejam uma extensão de nós, que seremos, nós, os homens, que
nos comportaremos como a extensão de um contexto repleto de máquinas, interfaces,
89
fluxo de informação, etc. Nós que estaremos condicionados a esta nova realidade como
muito bem analisou Miller (2004:16).
Esse quadro, entretanto, não pode ser interpretado erroneamente como uma era
de domínio das máquinas como diversas histórias de ficção científica protagonizam. As
interfaces conseguem permitir que a manipulação dos códigos seja mais efetiva, que
muitas informações possam ser alocadas e representadas de forma organizada e que sua
alteração tenha efeitos maiores que sua própria dimensão. Os exemplos expostos no
final do segundo capítulo apontam para o fato de que práticas sociais são realizadas
através das interfaces e dos aparatos digitais, potencializando, assim, a formação de
informação e inteligência coletiva.
Imbricadas com o seu contexto, as interfaces têm a responsabilidade de
comandar a representação da informação na escala digital que, sucessivamente, amplia
sua participação na nossa interpretação da realidade. As interfaces, cada vez mais
presentes, acompanharão ainda mais nossa mobilidade, ampliarão nossa capacidade de
percepção e permitirão que realizemos tarefas antes não possíveis, atuando ativamente e
decretando condições. Afinal, apesar do seu aspecto abstrato, a informação digital
sempre trabalha com ações e efeitos concretos. Desta forma, a manipulação destas
informações através das interfaces dispõe de potência cada vez maior. Um poder que,
como esclareceram Gilles Deleuze e Michel Foucault, “produz realidade” (Deleuze,
1988:38). É esta a percepção que as interfaces digitais devem passar, de estarmos,
através delas, atuando de forma concreta e gerando efeitos reais. Devem transmitir a
real sensação de, ao manipularmos as informações digitais, estarmos manipulando,
também, e de uma nova forma, o nosso contexto e a nossa realidade.
Para tanto, é necessário que cheguemos a esse ponto cientes do processo que
envolve o desenvolvimento das interfaces. Que saibamos sua utilidade e suas
potencialidades. É essencial termos a consciência de que arquitetar uma interface é um
planejamento interdisciplinar e que não deve ser pensado apenas sob o ponto de vista
estético-visual nem tampouco de forma simplificada, reduzindo a interface à membrana
que liga as pessoas e os códigos. Todo o ambiente que as legitima e todo o trabalho de
arquitetura da informação e formas de interação devem estar presentes nos
questionamentos recorrentes àqueles que se propuserem a tal atividade. A compreensão
destas variáveis é necessária e envolve tanto questões filosóficas, como a discussão
sobre os laços sociais e a questão da autoria, quanto discussões tecnológicas sobre
90
ergonomia, manipulação e usabilidade em sistemas digitais. Uma compreensão
fundamental para que o desenvolvimento das interfaces não apenas amplie sua
relevância nos processos sociais, mas que o faça estruturado em conceitos e conjecturas
bem sedimentados e apoiados em novos formatos de arquitetura da informação.
91
Anexo I
No final de 2005, foi desenvolvida pela Epigram Comunicação87 uma interface
restrita para a consulta, edição e manipulação do banco de dados do escritório L+M
GETS que contém informações de todos os seus contatos e suas relações com a
empresa. O trabalho consistia em substituir o banco de dados Acess — local — para um
banco de dados SQL — remoto — a fim de torná-lo apto para trabalhar com os
diferentes sistemas e ferramentas em rede que estavam sendo criados para os negócios
da L+M GETS88. Assim, todas as informações poderiam ser acessadas de qualquer
computador conectado à internet — funcionalidade importante para uma empresa que
possui parte do seu pessoal fora do escritório físico onde o banco de dados antigo estava
localizado.
87 Epigram Comunicação Ltda. é o escritório no qual, além de sócio, coordeno a equipe de pesquisa, desenho e desenvolvimento de interfaces. 88 O banco de dados da L+M GETS alimenta uma série de ferramentas na internet, como o site da empresa, o site de um de seus produtos, http://www.hospitalcontemporaneo.com.br/ uma área restrita de compra de cotas para feiras, ferramenta de comunicação e relacionamento, entre outros.
92
A interface do banco de dados possui funcionamento simples. À esquerda, há
uma lista de empresas e pessoas ordenada alfabeticamente e um campo de pesquisa para
uma rápida procura. À direita, são apresentados dados e informações relativas à empresa
escolhida e no topo ficam os filtros de pesquisa. Não há páginas. Todo o conteúdo se
concentra em um único ambiente. Isso porque o sistema trabalha com abas que abrem e
fecham verticalmente revelando seu conteúdo e mantendo-o “visível” mesmo que
fechados — dessa forma, evita-se os tradicionais menus que funcionam como links para
outras páginas. Ainda, as informações do banco podem ser facilmente manipuladas
através dos controles de edição.
93
Os controles de edição estão identificados pelos quadrados magenta. Há o controle verde para inclusão de informação, amarelo para a edição e vermelho para a exclusão.
Optando pela edição — clique no controle amarelo — a interface passa a ser editável, porém sem perder a sua estrutura de abas, ou seja, mantendo o mesmo funcionamento. Assim, os campos, antes restritos à visualização, podem ser alterados e a nova informação salva. Para retornar ao modo de visualização, basta fechar a edição no mesmo local onde ela foi acessada, substituída agora por um controle de saída — indicado pelo quadrado magenta. Esse processo para a edição é necessário, pois nem todas as pessoas que têm acesso ao sistema possuem permissão para editar o banco, algumas podem apenas visualizar. Para estas, os controles de edição ficam ocultos.
94
Desta forma, esta interface permite a organização visual das informações do
banco de dados além da possibilidade de uma fácil edição. Porém, é no filtro — parte
superior — que pode ser encontrada a forma mais flexível de organizar a informação.
Ele também funciona como uma ‘aba’, e ao ser aberto revela um funcionamento
muito similar ao das smart playlists do iTunes. Uma interface que possibilita a criação
de inúmeras regras para filtrar apenas as empresas e pessoas que têm suas informações
congruentes com o requerido no filtro.
No caso acima, os filtros buscavam uma empresa cujo nome é Epigram e cuja rua é Haddock Lobo. As regras desta busca podem ser salvas e usadas posteriormente sendo selecionada no campo destacado com o retângulo magenta, isto é, não é necessário montar o filtro novamente para realizar a mesma busca.
95
Porém, a manipulação com os filtros não se encerra nesta interface. Como dito
anteriormente, há a integração com as outras ferramentas. Logo abaixo do resultado da
busca — à esquerda — há a opção de salvar o resultado da busca. No caso acima o
resultado contém apenas uma empresa — Epigram —, mas se a regra do filtro estivesse
direcionada para todas as empresas estabelecidas em Campinas e que possuem contrato
ativo com a L+M GETS o resultado seria bem maior. Assim, se a L+M GETS fosse
participar de um seminário em Campinas e achasse relevante avisar seus atuais clientes
residentes na cidade, o resultado desta busca seria salvo nesta interface e estaria
disponível no banco para um outro módulo, uma ferramenta de relacionamento. A
ferramenta de relacionamento permite que a L+M GETS construa newsletters digitais
complexas e comunicados institucionais para serem enviados individualmente para seus
contatos. Nesta ferramenta, então, um comunicado seria produzido e na hora de
selecionar seu remetente o grupo criado na interface do banco de dados seria escolhido.
Não seria necessário saber quais são as empresas estabelecidas em Campinas e que têm
contrato ativo com a L+M GETS para enviar o comunicado. Mas certamente todas as
empresas de Campinas com contrato ativo seriam avisadas.
96
Anexo II
Além de diversos sistemas que possibilitam uma edição coletiva — Net Art,
Wikipedia, blogs, Orkut, entre outros —, muitos sites na internet possuem, também,
ferramenta de gerenciamento de conteúdo para sua edição. Entretanto, ao contrário das
ferramentas citadas, estes não têm a intenção de abrir para edição pública sua
informação — afinal, o UOL não é um site de participação coletiva. A ferramenta é
usada apenas por poucas pessoas que têm especificamente essa função — razão pela
qual as ferramentas de edição não são visíveis ao público em geral, que, por sua vez,
ignora sua existência. Assim, um jornalista pode atualizar o site de esportes do UOL
sem conhecimento técnico e, ainda por cima, assistindo a um jogo de sua casa89.
Entretanto, estas ferramentas têm pouca preocupação com a qualidade das
interfaces. Seus primeiros usuários eram pessoas com conhecimento técnico em
computação e, em função disto, o sistema seguia uma lógica relacionada às linguagens
computacionais. Porém, com o crescimento da internet, diversos sites passaram a contar
com este tipo de ferramenta e pessoas não-técnicas passaram a usá-las.
89 http://blogdojuca.blog.uol.com.br/
97
A ferramenta de conteúdo do UOL, o maior site brasileiro, e um dos maiores do mundo em conteúdo, tem sua área de jornalismo atrelada a uma ferramenta de método similar ao acima.
98
A questão é que os novos editores não detêm o conhecimento técnico necessário
e, por mais que estas ferramentas tenham evoluído, permitindo uma interação, ainda são
confusas, pouco intuitivas e demandam mais tempo do que poderiam para uma edição.
Normalmente há um outro site que funciona exclusivamente para gerenciar o conteúdo
de um outro site, como ilustram as imagens acima.
A primeira imagem se refere ao site que aparece ao público. Em seguida há uma
tela de identificação para entrar na ferramenta de gerenciamento de conteúdo — o
endereço da ferramenta é diferente do endereço do site; enquanto que para acessar um
site alguém digitaria www.site.com.br, para acessar a ferramenta de gerenciamento de
conteúdo o endereço poderia ser www.site.com.br/admin. Após a identificação, a pessoa
acessa uma interface que possui cadastradas as páginas, tópicos, subtópicos e grande
parte do conteúdo do site original. Assim, conforme a terceira imagem — já dentro da
ferramenta —, é possível inserir textos, imagens, arquivos, ou seja, inserir, editar e
excluir conteúdo do site final.
Ao julgar inapropriadas essas ferramentas, a Epigram construiu uma própria,
usada na grande maioria de seus projetos. A idéia central desta ferramenta, e que a
difere das outras, é que uma pessoa tenha maior materialidade do que está publicando
ao usá-la, que perceba aonde este conteúdo será inserido, como ele será apresentado e
que tenha às mãos as possibilidades para isto. Assim, a comunicação entre o sistema e a
pessoa deve ter tratamento diferenciado. Vale relembrar que esta questão tem relação
com o já comentado projeto esc for escape de Giselle Beiguelman90, que critica a forma
de comunicação — ou os erros — dos sistemas operacionais e seus termos peculiares,
para não dizer, temerosos.
A primeira mudança é a ferramenta de gerenciamento de conteúdo não ser
desprendida do site original, ou seja, que não haja um sistema separado visualmente do
conteúdo final para alterá-lo — uma pessoa não pode alterar um conteúdo sem conceber
esta mudança. É preciso que a interface do site permita que ela o edite de forma fácil.
Assim, após a identificação, ao invés de entrar em um outro site, o site ‘original’ é
acessado novamente, porém, agora, controles de edição ficam visíveis — conforme
destacam os quadrados magenta na figura abaixo.
90 http://www.desvirtual.com/escape/portugues/index.htm
99
A interface permanece quase intacta — salvo os controladores de edição.
Se o editor tiver a necessidade de alterar o texto relativo à área festas ele não
precisará abrir o gerenciador de conteúdo, procurar na ferramenta o local de edição
desta área, editar o conteúdo e voltar ao site para visualizá-lo.
100
O nível de complexidade da ferramenta está ligado intimamente à liberdade de edição concedida a uma pessoa. No caso, apenas a alteração de parte do conteúdo.
Nesta interface, ele acessa a informação a ser alterada no próprio site e, ao
acionar o controle de edição relativo ao conteúdo escolhido — destacado no quadrado
magenta —, uma nova janela se abre com a parcela da ferramenta de gerenciamento de
conteúdo que se refere àquela informação. Depois de editado e confirmada a decisão,
esta janela se fecha automaticamente e o site é recarregado com a nova informação. Ou
101
seja, a ferramenta de gerenciamento de conteúdo é dissolvida em pequenas ferramentas
exclusivas para cada informação.
O mais relevante deste método de edição é que ele desmistifica a ferramenta de
conteúdo. Não há a sensação de se estar diante de uma série de menus com tópicos e
subtópicos de edição, onde o primeiro desejo é um manual de utilização do sistema.
Basta saber o funcionamento dos três controladores — inclusão, edição e exclusão —
que a ferramenta pode ser usada.
A complexidade da ferramenta pode aumentar quanto maior for o número e os
tipos de informação com possibilidade de alteração. Mas, mesmo assim, algumas
soluções podem facilitar a edição, como no método usado no calendário abaixo.
102
Ferramenta de edição de conteúdo para o sistema energia consult, utilizado para coordenação de equipes de manutenção e administração de usinas hidrelétricas.
Este último exemplo mostra uma ferramenta mais complexa de edição, que
requer conhecimentos mais específicos. Entretanto, estes conhecimentos estão muito
mais ligados a um conhecimento técnico do conteúdo da informação do que da
interface. A edição permanece localizada, o que gera uma personalização da edição para
cada conteúdo, além de não misturar funções distintas para conteúdos distintos. A
interface fica limpa.
103
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