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UNIVERSIDADE DE TAUBATÉ
Márcia Maria de Moraes
A LEITURA DO CONTO EM SALA DE AULA:
SUBSÍDIOS PARA A PRÁTICA DE LEITURA NA
ESCOLA
Taubaté – SP
2012
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UNIVERSIDADE DE TAUBATÉ
Márcia Maria de Moraes
A LEITURA DO CONTO EM SALA DE AULA:
SUBSÍDIOS PARA A PRÁTICA DE LEITURA NA
ESCOLA
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Linguística Aplicada da Universidade de Taubaté. Área de concentração: Língua Materna e Línguas Estrangeiras Orientadora: Profª Drª Maria Aparecida Garcia Lopes Rossi.
Taubaté – SP
2012
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MÁRCIA MARIA DE MORAES
A LEITURA DO CONTO EM SALA DE AULA: SUBSÍDIOS PARA A PRÁTICA DE
LEITURA NA ESCOLA
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Linguística Aplicada da Universidade de Taubaté. Área de concentração: Língua Materna e Línguas Estrangeiras
UNIVERSIDADE DE TAUBATÉ, TAUBATÉ, SP
Data: 24/04/2012
Resultado: ________________________
BANCA EXAMINADORA
Profa. Dra. Maria Aparecida Garcia Lopes Rossi Universidade de Taubaté
Assinatura:_____________________________
Profa. Dra. Miriam Bauab Puzzo Universidade de Taubaté
Assinatura: _____________________________
Profa. Dra. Maria Inês Batista Campos Universidade de São Paulo
Assinatura: _____________________________
4
Dedico este trabalho
A meus pais, pelo amor e pela vida.
À minha filha Júlia, pela compreensão nos momentos de ausência.
A Eduardo Castilho, por todo o amor e a compreensão.
5
AGRADECIMENTOS
Minha gratidão a todos que colaboraram para a obtenção deste sucesso.
Especialmente a Deus, por guiar e iluminar o meu caminho.
À CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior), pelo
apoio financeiro a esta pesquisa, em forma de bolsa de estudos, como parte do
Projeto Observatório/UNITAU nº 23038010000201076.
A minha orientadora e modelo profissional, Profa. Dra. Maria Aparecida
Garcia Lopes Rossi, pela orientação, dedicação e sugestões extremamente
preciosas para minha experiência acadêmica.
Aos professores participantes de minha banca de qualificação, Profa. Dra.
Miriam Bauab Puzzo e Profa. Dra. Vera Lúcia Batalha de Siqueira Renda e ao
suplente Prof. Dr. Orlando de Paula, pelos comentários e sugestões de melhoria.
A todos os professores do Programa de Pós-graduação em Linguística
Aplicada (PPG-LA) Universidade de Taubaté, pelos conhecimentos apreendidos
durante o período da realização do curso.
A todos os colegas da Turma de 2010 do Mestrado em Linguística Aplicada,
especialmente a Maurílio de Carvalho, pela amizade e estímulo, compartilhando os
momentos bons e os momentos difíceis da jornada.
Aos funcionários da secretaria do PPG-LA, pela dedicação e competência no
atendimento.
A todos os amigos que contribuíram direta ou indiretamente para a conclusão
deste trabalho, especialmente, aos professores participantes das reuniões semanais
do Projeto Observatório/UNITAU.
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“[...] a escrita é uma invenção permanente do mundo e a leitura é uma reinvenção.”
Luiz Antonio Marcuchi
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RESUMO
A prática cotidiana do professor de língua portuguesa, apesar de ele estar ciente da necessidade de intensificar o trabalho com leitura, muitas vezes carece de materiais de pesquisa, tempo e informações mais específicas para o desenvolvimento de propostas de leitura que atendam as demandas dos documentos oficiais de ensino e das matrizes de referência das provas externas. É para suprir parte dessa necessidade que o objetivo geral desta pesquisa se estabelece: indicar possibilidades de trabalhos de leitura do gênero discursivo conto em sala de aula, visando a subsidiar propostas didático-pedagógicas de leitura desse gênero discursivo. O conto é um gênero discursivo sugerido pelos documentos oficiais de ensino para a leitura no Ensino Fundamental e Médio e, como explicam os PCN (BRASIL, 1998), por meio da literatura é possível confrontar linguagens nas práticas sociais e na história, explorar recursos de linguagem, reconhecer valores sociais e humanos. Especificamente, esta pesquisa tem os objetivos: 1) identificar as características e especificidades do gênero conto que devem ou podem ser consideradas nas práticas de leitura em sala de aula; 2) indicar habilidades de leitura que podem ser exploradas no gênero discursivo conto, considerando inclusive as habilidades de leitura sugeridas pela Matriz de Referência do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica e pelos níveis de proficiência na escala de leitura do PISA ; 3) exemplificar, a partir de um corpus de cinco contos, atividades de leitura desenvolvidas a partir das Matrizes de Referência e da escala de leitura citadas, a partir das potencialidades do gênero discursivo conto. Teoricamente, esta pesquisa se fundamenta em estudos literários sobre o conto; na concepção socioenunciativa da linguagem advinda dos trabalhos do filósofo russo Bakhtin, particularmente nos conceitos de gênero discursivo e dialogismo; na abordagem sociocognitiva de leitura e no trabalho pedagógico com gêneros discursivos proposto por Dolz e Schneuwly. Essa fundamentação teórica forneceu os subsídios necessários para a análise qualitativa dos dados desta pesquisa, que se desenvolveu no âmbito do projeto OBSERVATÓRIO/UNITAU 2011 – 2014 Competências e habilidades de leitura: da reflexão teórica ao desenvolvimento e aplicação de propostas didático-pedagógicas, financiado pelo Programa Observatório da Educação CAPES/INEP sob nº 23038010000201076. O resultado dessa pesquisa é a elaboração de uma sequência didática como sugestão para a leitura do conto que deverá fornecer subsídios para o desenvolvimento de práticas de leitura em sala de aula. A leitura de obras literárias, como é o caso do conto, permite amplas possiblidades do diálogo entre sentidos e conhecimentos. Concluímos essa pesquisa, acreditando que o trabalho com a sequência didática de leitura em projetos contribui para o desenvolvimento da competência leitora de nossos alunos. Por meio da exploração de habilidades de leitura, a sequência didática pode favorecer a apropriação do conhecimento de modo significativo, capacitando os jovens a se tornarem sujeitos críticos e capazes de agir em sociedade.
Palavras-chave: Leitura; Literatura; Gêneros discursivos; Conto; Formação do leitor.
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ABSTRACT
Even though Portuguese teachers are aware of the necessity of intensifying reading
activities, they lack research material, time and more specific information for the
development of reading proposals which cater for the demands of the official
documents and of the reference matrix of external evaluation. Starting from this
necessity, the aim of this research is to show possibilities of classroom reading
activities involving the discursive genre “short story” so as to subsidize didactic-
pedagogic proposals about this genre. The reading of short stories is recommended
in Elementary, Junior and High Schools by the official documents. According to PCN
(Brazil, 1998), Literature provides the possibility to confront languages in social
practices and History; explore language resources and recognize social and human
values. Our specific aims are: 1) identify the characteristics and specificities of this
genre “short story” which should be considered in classroom reading activities; 2)
show reading abilities that can be explored by means of the given genre, taking into
account the reading abilities suggested by Reference Matrix of the Elementary
School National Evaluation System and by the PISA reading proficiency levels; 3)
based on a corpus composed of five short stories, give examples of reading activities
developed according to the documents mentioned above, exploring the potentialities
of this genre. The theoretical foundation for this research are literary studies of short
stories; Bakthin’s socio-enunciative conception of language, especially the concept of
discursive genre and dialogism; the sociocognitive reading approach and the
pedagogical work with discursive genres proposed by Dolz and Schneuwly. The
theoretical framework mentioned provided us with the necessary subsides for a
qualitative analysis of our data, which was developed within a project called
“OBSERVATÓRIO/UNITAU 2011 – 2014 Competências e habilidades de leitura: da
reflexão teórica ao desenvolvimento e aplicação de propostas didático-pedagógicas”,
sponsored by the “Programa Observatório da Educação CAPES/INEP sob nº
23038010000201076”. The result of this research is the development of a didactic
sequence as a suggestion for the reading of short stories which will help develop
classroom reading activities since the reading of literary works, such as short stories,
promotes great possibilities for dialogue between senses and knowledge. In
conclusion, we believe that the work with reading didactic sequence in projects
contribute to the development of students’ reading competence. By exploring reading
abilities, the didactic sequence can favor knowledge appropriation in a significant
way, enabling youngsters to become critical and to act in society.
Keywords: Reading. Literature. Discursive genre. Short story. Reader formation.
9
LISTA DE QUADROS
Quadro 1: Gêneros literários, segundo Moisés (1972)..................................... 22
Quadro 2: Gêneros literários, segundo Coelho (2010)..................................... 23
Quadro 3: Tipos de foco narrativo, segundo Moisés (1972)............................. 30
Quadro 4: Tipos de foco narrativo, segundo Coelho (2010)............................. 33
Quadro 5: Classificações dos contos de acordo com alguns estudiosos........ 41
Quadro 6: Concepções de leitura...................................................................... 53
Quadro 7: Níveis de leitura................................................................................ 63
Quadro 8: Matriz de Referência de Língua Portuguesa da Prova Brasil e do SAEB para o 9º ano...........................................................................................
77
Quadro 9: Aspectos em que a Matriz de Referência Matriz de Referência de Língua Portuguesa da Prova Brasil apresenta imprecisões teóricas ou de redação, conforme Lopes-Rossi e Paula (2012)................................................
79
Quadro 10: Porcentagem de acertos para os descritores referentes ao Tópico I: Procedimentos de Leitura...................................................................
81
Quadro 11: Porcentagem de acertos para os descritores referentes ao Tópico II: Implicações do Suporte, do Gênero e/ou enunciador na Compreensão do Texto......................................................................................
81
Quadro 12: Porcentagens de acertos para os descritores referentes ao Tópico III: Relação entre Textos........................................................................
82
Quadro 13: Porcentagem de acertos para os descritores referentes ao Tópico IV: Coerência e Coesão no Processamento do Texto...........................
83
Quadro 14: Porcentagens de acerto para os descritores referentes ao Tópico V: Relações entre Recursos Expressivos e Efeitos de Sentido.............
84
Quadro 15: Porcentagens de acerto para os descritores referentes ao Tópico VI: Variação Linguística..........................................................................
84
Quadro 16: Níveis de proficiência para a avaliação do PISA...........................
87
Quadro 17: Comparativo dos resultados em leitura dos alunos brasileiros no PISA ..................................................................................................................
89
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................
12
CAPÍTULO 1 – O GÊNERO DISCURSIVO CONTO........................................ 17
1.1 O conceito de gênero discursivo................................................................ 17
1.2 Os gêneros literários .................................................................................. 20
1.3 O conto e sua origem................................................................................. 24
1.4 O conto: uma narrativa ímpar.....................................................................
1.5 O conto e suas variações...........................................................................
27
36
CAPÍTULO 2 - A LEITURA E O TEXTO LITERÁRIO EM SALA DE AULA.. 45
2.1 A concepção interativista ou cognitiva de leitura....................................... 45
2.2 Conceitos que contribuíram para a abordagem sociocognitiva de leitura 50
2.3 O conceito de conhecimento prévio........................................................... 54
2.4 A importância do conhecimento prévio para o processo inferencial......... 56
2.5 A leitura de textos literários: competências e funções............................... 58
2.6 A leitura do gênero discursivo conto em sala de aula................................ 63
2.7 O texto escrito e a imagem........................................................................ 67
2.8 A importância do texto literário como proposta de leitura dentro e fora da
sala de aula......................................................................................................
68
CAPÍTULO 3 – AS AVALIAÇÕES INSTITUCIONAIS E O CONTEXTO DE
APRENDIZAGEM.............................................................................................
70
3.1 O INEP e os dados estatísticos educacionais............................................ 71
3.2 A importância de conhecer a Prova Brasil para empreender um bom
trabalho com a leitura.......................................................................................
73
3.3 A Matriz de Referência da Prova Brasil e seus descritores: buscando
caminhos para formar leitores..........................................................................
75
3.4 Alguns dados sobre desempenho de alunos na Prova Brasil.................... 80
3.5 O PISA – Programa para Avaliação Internacional de Estudantes
(Programme for International Student Assessment) e os níveis de
proficiência..................................................................................................
85
11
3.6 A sequência didática para a leitura do conto.............................................. 89
CAPÍTULO 4 – AS APLICAÇÕES DA SEQUÊNCIA DIDÁTICO-
PEDAGÓGICA NA LEITURA DO GÊNERO DISCURSIVO CONTO..............
100
4.1 Procedimento prévio ao início da sequência didática de leitura do conto 100
4.2 Leitura do conto “A devota das almas”, versão segundo Cascudo (1952) 102
4.3 Leitura do “Conto de escola” (1884)........................................................... 108
4.4 Leitura do conto: “Com certeza tenho amor” (COLASANTI, 2005)............ 118
4.5 Leitura do conto “Restos do carnaval” (LISPECTOR, 1998)...................... 126
4.6 Leitura do conto “O arquivo” (GIUDICE, 1986)..........................................
132
CONCLUSÃO...................................................................................................
140
REFERÊNCIAS................................................................................................
143
ANEXOS........................................................................................................... 147
12
INTRODUÇÃO
Ou o texto dá um sentido ao mundo, ou ele não tem sentido nenhum. E o mesmo se pode dizer de nossas aulas. (LAJOLO, 2002, p. 15)
Esta pesquisa desenvolveu-se no âmbito do projeto
OBSERVATÓRIO/UNITAU 2011 - 2014 Competências e habilidades de leitura: da
reflexão teórica ao desenvolvimento e aplicação de propostas didático-pedagógicas,
aprovado pelo Programa Observatório da Educação CAPES/INEP sob nº
23038010000201076. Sendo assim, ela colabora para a consecução do projeto
acima descrito, enfocando possibilidades de desenvolvimento de habilidades de
leitura de contos nas salas de aula das séries finais do Ensino Fundamental: 7ª
série/8º ano e 8ª série/9º ano. Os resultados desta pesquisa também poderão ser
úteis a outros professores de Língua Portuguesa, bem como aos graduandos da
Universidade de Taubaté participantes dos Projetos PIBID e Prodocência.
O conto é um gênero discursivo que pode motivar os alunos para a leitura
literária, com todos os benefícios que a influência da literatura na visão de mundo e
na formação integral do jovem pode trazer. É um gênero sugerido pelos documentos
oficiais de ensino para a leitura no Ensino Fundamental e Médio e, como explicam
os PCN (BRASIL, 1998), por meio da literatura é possível confrontar linguagens nas
práticas sociais e na história, explorar recursos de linguagem, reconhecer valores
sociais e humanos.
A escolha desse gênero como abordagem de leitura e de exploração deu-se,
especialmente, em função de suas múltiplas possibilidades de trabalhos didáticos
pedagógicos, visando a suprir as muitas necessidades de desenvolvimento das
habilidades requeridas e esperadas de um aluno, seja em função de bons resultados
diante dos sistemas de avaliação, seja em função das práticas sociais vivenciadas
nas mais diversas realidades de suas vidas, levando-os a refletir sobre seus
conhecimentos para agirem com autonomia em sociedade.
Por sua brevidade, em comparação ao romance ou à novela, também pode
servir de mote para atividades que representem a compreensão leitora dos alunos
por meio de diferentes linguagens, como a linguagem audiovisual e teatral, por
exemplo, de forma que atividades de leitura e compreensão do conto não se
13
restrinjam somente a exercícios escritos. Assim, o conto se presta também à
exploração de muitas habilidades de leitura esperadas de um aluno.
Esta pesquisa tem, ainda, como motivação para a consecução dos objetivos
acima expostos, o baixo rendimento em leitura dos alunos brasileiros em relação às
avaliações externas, entre elas, a Prova Brasil e o PISA. A Prova Brasil visa a
avaliar as habilidades em Língua Portuguesa (foco em leitura) e Matemática (foco
em resolução de problemas), avaliando competências construídas e habilidades
desenvolvidas pelos alunos, além de detectar as dificuldades de aprendizagem. A
Prova Brasil abrange somente alunos de 4ª e 8ª séries (ou 5º e 9º anos) do Ensino
Fundamental (nas redes estaduais, municipais e federais), de escolas da área
urbana com no mínimo vinte alunos matriculados na série avaliada e é aplicada a
cada biênio. A avaliação é censitária, permitindo retratar a realidade de cada escola,
em cada município.
O PISA (Programa para Avaliação Internacional de Estudantes ou Project for
International Student Assesment) é o maior estudo internacional e sistemático sobre
as competências de jovens com quinze anos de idade e pretende traçar o perfil dos
estudantes que terminam a escolaridade obrigatória, avaliando seu conhecimento
em leitura, matemática e ciências e apurando até que ponto os jovens estão
preparados para enfrentar os desafios do futuro. Os testes são realizados em alguns
países, e os resultados são por amostragem. Desde o ano de 2000, eles são
aplicados de três em três anos, pela Organização para Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE). A última avaliação foi realizada em 2009, na
qual, entre 65 países participantes, o Brasil ficou em 54º lugar.
O lugar ocupado pelo Brasil mediante os demais países demonstra-nos uma
situação alarmante e possibilita-nos muitos questionamentos sobre os problemas em
relação à compreensão do texto que estão levando nosso país a ficar entre os
últimos lugares; os motivos pelos quais não estamos formando leitores; o papel do
professor para tentar reverter essa situação; as possibilidades de reverter essa
situação e de alcançar os conhecimentos e as habilidades exigidos pelas avaliações
externas.
É nesse contexto e acreditando na possibilidade de mudanças para
formarmos uma nação mais justa e com menos desigualdades sociais, pois a
capacidade leitora também é parte fundamental na formação de um ser autônomo e
capaz de construir sua própria identidade, com ética e cidadania, que esta pesquisa
14
se insere. Delimitamos nosso objeto de pesquisa no conto e em possibilidades de
atividades de leitura desse gênero em sala de aula, para alunos das séries finais do
Ensino Fundamental, 7ª série (8º ano) e 8ª série (9º ano).
A prática cotidiana do professor de língua portuguesa, apesar de ele estar
ciente da necessidade de intensificar o trabalho com leitura, muitas vezes carece de
materiais de pesquisa, tempo e informações mais específicas para o
desenvolvimento de propostas de leitura que atendam às demandas dos
documentos oficiais de ensino e das matrizes de referência das provas externas. É
para suprir parte dessa necessidade que o objetivo geral desta pesquisa se
estabelece: indicar possibilidades de trabalhos de leitura do gênero discursivo conto
em sala de aula, visando a subsidiar propostas didático-pedagógicas de leitura
desse gênero discursivo.
Especificamente, são objetivos desta pesquisa: 1) identificar as características
e especificidades do gênero conto que devem ou podem ser consideradas nas
práticas de leitura em sala de aula; 2) indicar habilidades de leitura que podem ser
exploradas no gênero discursivo conto, considerando inclusive as habilidades de
leitura sugeridas pela Matriz de Referência do Sistema Nacional de Avaliação da
Educação Básica e pelos níveis de proficiência na escala de leitura do PISA; 3)
exemplificar, a partir de um corpus de 5 contos, atividades de leitura desenvolvidas a
partir das Matrizes de Referência e da escala de leitura citadas, a partir das
potencialidades do gênero discursivo conto, nas séries finais do ensino fundamental
(7ª série/8º ano e 8ª série/9º ano).
As atividades de leitura aqui propostas serão posteriormente desenvolvidas
em sala de aula pelos professores participantes do Projeto OBSERVATÓRIO DA
EDUCAÇÃO/UNITAU, do qual esta pesquisa também faz parte. A divulgação mais
ampla deste trabalho contribuirá ainda para os estudos da Linguística Aplicada
voltados à leitura em sala de aula.
Para a consecução desses objetivos específicos estabelecidos, o
levantamento dos dados necessários e sua análise dar-se-ão das seguintes formas:
1) uma pesquisa bibliográfica e análise qualitativa das informações sobre o gênero
discursivo conto da perspectiva didático-pedagógica da leitura em sala de aula; 2)
análise das Matrizes de Referência do Sistema Nacional de Avaliação da Educação
Básica, do Exame Nacional do Ensino Médio e dos níveis de proficiência de leitura
do PISA para identificação das habilidades de leitura que podem ser exploradas no
15
gênero discursivo conto; 3) constituição de um corpus de 5 (cinco) contos de autores
nacionais e sua análise para indicação e exemplificação das habilidades de leitura a
serem exploradas em atividades de leitura em sala de aula.
Teoricamente, esta pesquisa se fundamenta em estudos literários sobre o
conto; na concepção socioenunciativa da linguagem advinda dos trabalhos do
filósofo russo Bakhtin, particularmente nos conceitos de gênero discursivo e
dialogismo; na abordagem sociocognitiva de leitura e no trabalho pedagógico com
gêneros discursivos proposto por Dolz e Schneuwly. Essa fundamentação teórica
fornecerá os subsídios necessários para a análise qualitativa dos dados desta
pesquisa.
Esta dissertação se divide em quatro capítulos, além desta Introdução. O
primeiro capítulo aborda as características do gênero literário conto e os aspectos
relevantes para o trabalho com a leitura desse gênero em sala de aula. Sendo
considerados, especialmente, seu conceito, origem e variações.
O segundo capítulo trata das concepções de leitura que permitem um
entendimento melhor do professor em relação ao processo de leitura e de
desenvolvimento de habilidades de leitura, tecendo ainda considerações sobre a
leitura do texto literário em sala de aula.
O terceiro capítulo aborda uma breve análise das Matrizes de Referência do
Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica e dos níveis de proficiência de
leitura do PISA, identificando as habilidades de leitura que podem ser exploradas a
partir do gênero discursivo conto, nas séries finais do Ensino Fundamental (7ª e 8ª
séries/ 8º e 9º anos). A fim de explorar as habilidades identificadas, será proposta
uma sequência didática básica para a leitura do conto, que poderá ser aplicada
pelos professores participantes dos Projetos Observatório da Educação, PIBID e
Prodocência, bem como por outros professores que busquem subsídios para suas
atividades de leitura em suas aulas.
No quarto e último capítulo, essa sequência didática básica será
exemplificada para a leitura dos contos: “A devota das almas” (CASCUDO, 1952);
“Conto de escola” (ASSIS, 1884); “Com certeza tenho amor” (COLASANTI, 2005);
Restos do carnaval” (LISPECTOR, 1971) e “O arquivo” (GIUDICE, 1972).
Escolhemos esses contos cada qual por sua razão: o primeiro, por se tratar de um
conto de origem remota, levando os alunos a conhecerem um pouco dos contos que
tiveram origem na tradição oral; o segundo, com o objetivo de que os alunos tenham
16
a oportunidade de conhecer a realidade da escola do século XIX, podendo compará-
la à realidade atual; outra razão para a escolha é o fato de se tratar de Machado de
Assis, um autor clássico da literatura brasileira; o terceiro foi escolhido por se tratar
de uma autora contemporânea que traz de volta todo o encanto dos contos de fadas,
capaz de envolver tanto crianças como adultos por sua linguagem poética; o quarto,
por se tratar de um conto psicológico, introspectivo, ao qual poucos alunos têm
acesso antes do Ensino Médio. E o quinto e último conto, por registrar, de modo
surpreendente, a exploração do ser humano, ainda persistente em nossa sociedade
atual. Portanto, os contos não foram escolhidos em razão de uma temática, mas de
acordo com as características de cada texto que poderiam supostamente despertar
a atenção e o gosto pela leitura, segundo a faixa etária dos alunos nos últimos dois
anos do ensino fundamental.
Seguem a Conclusão, as referências e os textos anexos.
17
CAPÍTULO 1
O GÊNERO DISCURSIVO CONTO
Eu não sabia ainda ler, mas já era bastante esnobe para exigir os meus livros... Peguei os dois volumezinhos, cheirei-os, apalpei-os, abri-os negligentemente na “página certa”, fazendo-os estalar. Debalde: eu não tinha a sensação de possuí-los. Tentei sem maior êxito tratá-los como bonecas, acalentá-los, beijá-los, possuí-los. Quase sem lágrimas, acabei por depô-los sobre os joelhos de minha mãe. Ela levantou os olhos de seu trabalho: “O que queres que eu te leia, querido? As fadas?’”. Perguntei, incrédulo: “As fadas estão aí dentro?”
Jean-Paul Sartre
Este capítulo apresenta o conceito bakhtiniano de gênero discursivo e traz a
fundamentação teórica para a caracterização do gênero discursivo conto. Faz,
também, um breve retrospecto do conceito de gêneros literários de acordo com a
tradição dos estudos literários, apresentando as características do gênero literário
conto de acordo com esses estudos.
1.1 O conceito de gênero discursivo
Para Bakhtin (1992), a palavra é o lugar privilegiado da ideologia, pois é
produto da interação social e meio para retratar a realidade. Dessa forma, o sujeito
(locutor) é aquele que dará expressão à palavra, refletindo a ideologia e o meio
social em que vive.
Nesse sentido, Bakhtin (1992) afirma que o enunciado, seu estilo e sua
composição são determinados pelo objeto do sentido e pela expressividade, ou seja,
pela relação valorativa que o locutor estabelece com o enunciado. Bakhtin vê a
linguagem como um fenômeno social e histórico, que visa à comunicação entre os
indivíduos. Assim, para o filósofo, a palavra possui natureza dialógica. As palavras
são usadas a partir de um efeito de sentido que o sujeito pretende alcançar no
momento da enunciação, ou seja, no momento do uso concreto da língua.
De acordo com Bakhtin o dialogismo é característica essencial da linguagem:
O enunciado vivo, surgido pensadamente num determinado momento histórico e num meio social determinado, não pode deixar de tocar milhares de fios vivos e dialógicos, tecidos pela consciência
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social-ideológica em torno de um objeto dado de enunciação, não pode deixar de tornar-se um participante ativo do diálogo social. (BAKHTIN, 1992, p. 93)
Esclarece o autor:
O fato de ser ouvido, por si só, estabelece uma relação dialógica. A palavra quer ser ouvida, compreendida, respondida e quer, por sua vez, responder a resposta, e assim ad infinitum. Ela entra num diálogo em que o sentido não tem fim. (BAKHTIN, 1992, p. 357)
Esse diálogo vai além da troca de enunciados. Ele é construído em razão da
relação com o sentido, a partir da compreensão de um enunciado. Um discurso, até
atingir seu objetivo, que é o de persuadir e construir sentidos, baseia-se nas
relações que mantém com o Outro, com o interlocutor. Dessa forma, as palavras não
são exclusividade de um único enunciador. Elas são sempre escolhidas, levando-se
em consideração as palavras de um Outro. São palavras que já foram ditas em
algum lugar da história e, por isso, impregnadas de valores ideológicos,
modificando-se o sentido em função do momento do uso.
Baseado nesses pressupostos, Bakhtin também elabora a sua teoria
polifônica, afirmando a existência de uma pluralidade de vozes que compõem um
discurso, sem que uma delas se sobressaia ou julgue as demais. Cada enunciado
reflete as condições e finalidades específicas da situação de uso da linguagem, é a
unidade real da comunicação.
Assim, os textos orais ou escritos se materializam nas situações de uso e
cada situação apresenta características específicas de acordo com o momento e o
lugar social em que acontece a interação. Cada ato da linguagem é considerado de
acordo com a esfera de utilização da língua e, segundo Bakhtin (2000), cada esfera
de utilização produz tipos relativamente estáveis de enunciados, com características
específicas em sua composição estrutural, distinguindo-se pelo conteúdo e pelo
estilo.
A esses tipos, marcados por suas esferas de atuação, o filósofo denominou
gêneros do discurso. Por serem inúmeras as esferas de utilização da língua, são
inúmeros os gêneros do discurso, pois são infinitas as possibilidades de atos de
linguagem envolvendo propósitos e condições sociais específicas. Podemos citar
19
como exemplos de gêneros: fábula, conto, bilhete, piada, e-mail, edital de concurso,
conferência, aulas virtuais entre outros.
Para a identificação das circunstâncias de utilização dos gêneros, Bakhtin
(2000, p. 281) divide-os em gêneros primários e gêneros secundários. Os primários,
como aqueles que acontecem em situações cotidianas, situações informais de uso,
como a conversação espontânea, por exemplo; os secundários, como aqueles mais
complexos, em situações principalmente escritas, por serem mais formais, como o
artigo científico. Nessas situações de uso, estão envolvidos indivíduos que por
alguma razão estão concluindo um propósito comunicativo, utilizando-se da
linguagem com alguma determinada finalidade, partindo de um determinado lugar
social. Bakhtin (2000, p. 290) coloca, então, a importância desse processo de
interação e afirma a existência do caráter dialógico da linguagem: os interlocutores
durante o processo de interação produzem um movimento dialógico. Nesse sentido:
[...] o ouvinte que recebe e compreende a significação (lingüística) de um discurso adota simultaneamente, para com este discurso (total ou parcialmente), completa, adapta, apronta-se para executar, etc., e esta atitude do ouvinte esta em elaboração constante durante todo o processo de audição e de compreensão desde o início do discurso, às vezes já nas primeiras palavras emitidas pelo locutor. (Bakhtin, 2000, p. 290)
Dessa forma, produzimos discurso para alguém, situados em um determinado
contexto social e cultural, levando em consideração a atitude responsiva desse
alguém. O outro, a partir dos atos da linguagem, expressa sua posição como
interlocutor de um discurso, assumindo uma posição responsiva, ratificando o
dialogismo inerente à comunicação. Vale lembrar aqui nesse ponto, que esse
movimento de produção/recepção/compreensão envolve não somente a utilização
da linguagem na interação face a face, mas qualquer atividade com propósito
comunicativo, seja oral ou escrita.
Portanto, para Bakhtin, um gênero discursivo não se constitui apenas de sua
materialidade linguística, ou seja, de suas características linguístico-textuais. Para o
caso desta pesquisa e considerando essa fundamentação teórica, o gênero conto
não poderá ser abordado apenas do seu ponto de vista estrutural, embora seja
necessário observar que a compreensão de um conto envolva a percepção dos
elementos do enredo da narrativa. Em atividades em sala de aula para o
desenvolvimento de habilidades de leitura, pode ser útil enfocar também esses
elementos. A Matriz de Referência da Prova Brasil cobra algumas habilidades (duas
20
ou três) de leitura referentes ao reconhecimento da estrutura de gêneros que se
organizam na forma narrativa.
1.2 Os gêneros literários
Muito se discutiu a respeito do conceito de gênero no decorrer da história até
chegarmos ao conceito de gênero do discurso ou discursivo, segundo Bakhtin
(2000), que os entende inúmeros, pois são dinâmicos, variando em razão de sua
constituição e de seus aspectos sociocomunicativos.
Numa breve retrospectiva histórica, podemos afirmar que, na antiguidade
clássica, de acordo com a divisão que nos foi apresentada pelo filósofo Platão (428
a.C. – 347 a.C.), em sua obra República (394 a.C.), os gêneros são subdivididos em
Comédia e Tragédia: imitação (teatro), Ditirambos (exposição do poeta, poesia lírica)
e Epopeia (poesia épica). Com a Poética de Aristóteles, temos a primeira reflexão
profunda sobre a existência e a caracterização dos gêneros literários e até hoje essa
obra é considerada como um dos textos fundamentais para os estudos relacionados
a esse assunto (SILVA, 1979, p. 204). Aristóteles demonstrou grande preocupação
em distinguir o mundo empírico da realidade da arte, estudando a constituição do
trabalho poético (o meio, o objeto e o modo). O filósofo divide a poesia em dramática
(tragédia e comédia, obras que representavam sem a intervenção do poeta) e
narrativa (poesia ditirâmbica). Segundo Silva (1979, p. 207), os críticos de
Quinhentos viam-se na necessidade de classificar algumas obras como as de
Horácio e de Petrarca, que não podiam ser enquadradas nem na poesia dramática,
nem na narrativa, razão pela qual, seguindo a lição da Epístola ad Pisones, de
Horácio, defenderam um terceiro gênero: a poesia lírica, em que a pessoa do poeta
narrava os fatos acontecidos e colocava as suas reflexões.
Portanto, durante o período supramencionado, houve grande preocupação de
ordem estética com relação à arte literária, nesse sentido:
Cada um destes grandes gêneros literários se subdividia em outros gêneros menores, e todos estes gêneros maiores e menores se distinguiam uns dos outros com rigor e com nitidez, obedecendo cada um deles a um conjunto de regras particulares. Estas regras indiciam tanto sobre aspectos formais e estilísticos como sobre aspectos do conteúdo, e a obediência de uma obra às regras do gênero em que se integrava, constituía um fator preponderante na avaliação do seu merecimento. (SILVA, 1979, p. 208)
21
Outro aspecto importante da teoria clássica dos gêneros literários e apontado
pelo mesmo autor é a hierarquização estabelecida entre os gêneros, relacionada
aos movimentos e estados do espírito humano e ao nível social das personagens.
No entanto, durante o período da Idade Média, conforme Moisés (1973, p.
31), houve um rompimento com a tradição clássica e as sistematizações rigorosas
se voltaram para a produção da poesia trovadoresca. Foi um período de “relativa
pobreza doutrinária em matéria literária”. Com o Renascimento (século XVI),
novamente são retomados os estudos literários, somando-se a esse período outros
gêneros herdados da tradição medieval, além de subgêneros ou modalidades
descobertos (MOISÉS, 1973, p. 32). Para os renascentistas, somente a obra perfeita
era valorizada e, tal qual a estética clássica, a produção dos gêneros deveria seguir
preceitos e normas.
Com o advento do Pré-Romantismo e do Romantismo, na Alemanha e na
Inglaterra (século XVIII), ocorre a valorização da liberdade individual sem limites, da
primazia dos sentimentos, contrariando-se as regras clássicas. Para os romancistas,
não há limites para o número de gêneros, bem como não há regras para os autores:
gêneros tradicionais podem mesclar-se e, assim, ocorrer o nascimento de um novo
gênero (MOISÉS, 1973, p. 34).
Moisés (1973, p. 36), ao posicionar-se a respeito da questão do conceito dos
gêneros literários, lembra-nos também a importância da etimologia da palavra
gênero. Segundo o autor, de acordo com o sentido empregado em história natural, o
termo vem do Latim Vulgar generu, acusativo de generus pelo Latim Clássico genus,
significando “família”, “raça”, “agrupamento de indivíduos ou seres portadores de
características comuns”. Em Literatura, o autor aponta para o sentido de a palavra
designar famílias de obras dotadas de características iguais ou semelhantes.
Lembra-nos, ainda, que “o gênero divide-se em espécies, e estas em subespécies a
que se pode dar o nome de formas”.
A partir dessa divisão entre gêneros, espécies e formas, o autor afirma a
existência de dois gêneros: a poesia e a prosa. As espécies, que Moisés coloca
como sinônimo de formas, são consideradas as divisões ou configurações dos
gêneros. Para o estudioso, a poesia subdivide-se em lírica (poesia confessional,
subjetiva, como o soneto, o rondó ou a balada) e épica (poesia épica, como o poema
ou a epopeia). Quanto à prosa, Moisés (1972, p. 41) explica que ela não apresenta
22
espécies e que os contos, as novelas e os romances são identificados por suas
características fundamentais do conteúdo.
Moisés (1972, p. 42) ilustra seu entendimento a respeito dos gêneros literários
a partir do quadro que representamos a seguir:
Quadro 1: Gêneros literários, segundo Moisés (1972)
Gêneros Literários Espécies Formas
Poesia Lírica
Épica
Soneto, ode
Poema, poemeto, epopeia
Prosa
_____
Conto
Novela
Romance
Por essa abordagem de Moisés (1972) a respeito dos gêneros literários, bem
como pela posição dos filósofos clássicos, observamos que os gêneros, até então,
eram organizados de acordo com suas características estruturais, que preexistem ao
texto literário. Podemos afirmar, entretanto, que essa classificação não é perfeita,
mesmo da perspectiva estrutural, porque um mesmo gênero literário pode
apresentar uma combinação de formas e não apenas uma forma única.
Encontramos, sim, a predominância de uma ou outra forma, pois existem textos
épicos com traços da lírica, por exemplo, mas não uma pureza de forma.
Atualmente, Coelho (2010, p. 163) adota a seguinte classificação dos
gêneros: poesia, ficção e teatro. Segundo a autora, gênero “é a expressão estética
de determinada experiência humana de caráter universal”. Ela divide os gêneros de
acordo com a vivência lírica (se a expressão essencial é a poesia, marcada pela
expressão de emoções do “eu”); vivência épica (se a expressão é a prosa, a ficção,
marcada pela relação do “eu” com o mundo social) e a vivência dramática (se a
expressão básica é a representação, marcada pelo diálogo, ou seja, o teatro). Para
a autora, os subgêneros ou formas básicas (simples), tais como: a elegia, o soneto,
o hino (Poesia); o conto, o romance, a novela (Ficção); e a farsa, a tragédia (Teatro),
entre outros, se diversificam em diferentes categorias, de acordo com o tema, a
problemática, a intriga, a trama, a intenção e a matéria ficcional. Daí a classificação
em novela de aventuras, conto de mistério e romance policial, por exemplo.
23
Coelho (2010, p. 164) ainda classifica como formas simples as narrativas que
surgiram há milênios e que, sobretudo pela simplicidade e autenticidade de
vivências que elas singularizam, transformaram-se com o tempo no que
conhecemos hoje como tradição popular. Assim, muitos dos contos tradicionais que
conhecemos podem ser enquadrados nessa classificação, como os contos de fadas
ou os contos exemplares.
O entendimento de Coelho (2010) a respeito dos gêneros literários é
representado a partir do quadro a seguir:
Quadro 2: Gêneros literários, segundo Coelho (2010)
Gêneros Literários Subgêneros ou formas
básicas
Diferentes categorias, de
acordo com o tema, a
problemática, a intriga, a
trama, a intenção e a matéria
ficcional.
Alguns exemplos:
Poesia
(vivência lírica; expressões e emoções do eu)
Elegia
Soneto
Hino
Ficção
(prosa, vivência épica; relação do eu com o mundo)
Conto
Romance
Novela
Conto de mistério, contos de
fadas, contos exemplares,
entre outros
Romance policial, entre outros
Novela de aventuras, entre
outros
Teatro
(vivência dramática, marcada pela representação e pelo diálogo)
Farsa
Tragédia
Pela classificação estrutural dos gêneros literários proposta pelos autores
citados, podemos então concluir que o conto é um subgênero literário ou uma forma,
dentre outras possíveis, do gênero literário prosa.
Por ser o conto o objeto de estudo desta pesquisa, passaremos a enfocá-lo,
nas próximas seções, mostrando que os diversos estudiosos do gênero não são
unânimes na abordagem de suas características e na classificação de suas
variações ou subtipos.
24
1.3 O conto e sua origem
Moisés (1973, p. 120) traça um percurso histórico importante sobre a origem
do conto e afirma que são levantadas hipóteses de que ele tenha se constituído
como matriz das demais formas literárias em prosa, em especial, da prosa de ficção,
ou até mesmo da própria historiografia. Ou seja, o ato de contar histórias, relatar
acontecimentos, pode ter acompanhado o homem desde as mais remotas idades da
história de vida humana na Terra, até mesmo antes da linguagem escrita.
Parece não haver dúvidas de que o conto tenha nascido na oralidade, dada a
necessidade natural do homem em transmitir ensinamentos e exemplos a suas
futuras gerações. Contar histórias seria um meio de compartilhar esses
ensinamentos e não deixar extinguir a cultura e os costumes de uma determinada
sociedade. O advento da escrita contribuiu para que muitas dessas remotas histórias
se preservassem até os dias atuais.
A respeito da literatura oral, Cascudo (1952, p. 171) explica que ela “é
mantida e movimentada pela tradição. É uma força obscura e poderosa, fazendo
transmissão de geração a geração”. Um dado interessante apontado pelo autor é o
fato de que muitas das histórias contadas e transmitidas para os filhos e os netos
eram narradas pelas mulheres, o que podemos constatar até os dias atuais, visto
que muitas das histórias que nos são contadas, sejam elas lendas, contos
maravilhosos, contos de fadas ou fábulas, geralmente o são por via de nossas
mães ou de nossas avós.
Nesse sentido, vale destacarmos os dizeres de Cascudo, em relação ao conto
popular, cuja metáfora de “primeiro leite intelectual”, lembra-nos o fato anteriormente
mencionado:
O conto popular revela informação histórica, etnográfica, sociológica, jurídica, social. É um documento vivo, denunciando costumes, ideias, mentalidades, decisões, julgamentos. Para todos nós é o primeiro leite intelectual. Encontramos nos contos vestígios de usos estranhos, de hábitos desaparecidos que julgávamos tratar-se de pura invenção do narrador. (CASCUDO, 1952, p. 249)
Segundo Moisés (1973, p. 119), a palavra conto, em Português, tem quatro
acepções dentre as quais, para sua obra, ele destaca a acepção literária, que
significa “história, narração, historieta, fábula, ‘caso’”.
25
Ainda de acordo com Moisés (1973, p. 119), trata-se de uma palavra de uma
remota existência, nos vários sentidos que ela pode receber, sendo que o autor
aponta duas hipóteses para sua origem: a primeira estaria em commentu, do Latim,
significando “invenção”, “ficção”. Uma segunda hipótese apresentada pelo autor é a
de que a palavra conto seria um deverbal, procedendo do verbo “contar”, de
computare, significando inicialmente “enumerar objetos”. Com o tempo, esse
significado foi obtendo gradativa especialização de sentido, passando,
metaforicamente, a significar “enumeração de acontecimentos”.
Durante a Idade Média, a palavra conto foi utilizada no sentido de
“enumeração de fatos”, “relato”, “narrativa”. Provavelmente, ela não era empregada
literariamente, segundo os registros, mas é inegável que a forma já existia como tal
(MOISÉS, 1973, p. 119). A partir do século XVI, quando surge o primeiro contista em
Língua Portuguesa (Gonçalo Fernandes Trancoso, sob influência de D. Juan
Manuel, Boccaccio, Bandello e outros), o termo passou a ser empregado em seu
sentido específico. No século XVII, surgiram ideias doutrinárias acerca do conto e
ele não mais perderia sua denotação literária, embora ainda fosse possível
surpreender no século XIX escritores empregando o vocábulo na acepção medieval,
como Camilo Castelo Branco.
Conforme Moisés (1973, p. 121), é durante a Alta Idade Média (séculos XII –
XIV) que o conto tem sua época áurea com a transposição das gestas cavaleirescas
à prosa e o aparecimento, logo em seguida, de alguns grandes contistas como
Boccaccio (na Itália), com suas novelle; Margarida de Navarra, com Heptâmeron (na
França) e Geoffrey Chaucer (na Inglaterra), com The Canterbury Tales (Os Contos
da Cantuária), cuja estrutura geral é inspirada no Decamerão, de Boccaccio.
Graças ao influxo de Boccaccio (Giocanni Boccaccio, 1313-1375) –
importante humanista, autor de um número notável de obras, dentre as quais se
destaca “Decamerão” (uma coleção de cem novelas) – nos séculos XVI e XVII, o
conto é largamente cultivado Espanha, na França e, principalmente, na Itália. No
entanto, conforme apontado por Moisés (1973, p. 121), esses dois séculos tem
menos importância qualitativa, se comparados ao período da Idade Média, pois são
marcados por uma espécie de paralisia e por um certo artificionismo (uso exagerado
de artifícios) que domina o conto. Foi um período de declínio que se estendeu pelo
século XVIII, quando somente poesia e prosa doutrinária mereceram aplausos, não
se destacou a ficção em prosa.
26
Moisés (1973, p. 121) nomeia a fase anteriormente descrita de um estágio
folclórico, empírico e indeciso, tendo tornado forma nobre com a entrada do século
XIX, tornando-se produto tipicamente literário, o que antes aparentava tão somente
forma popular, ficando às margens de outras formas poéticas consideradas cultas e
nobres.
Nesse sentido, também Gotlib (1990, p 7) justifica a ascensão do conto:
No século XIX o conto se desenvolve estimulado pelo apego à cultura medieval, pela pesquisa popular e do folclórico, pela acentuada expansão da imprensa, que permite a publicação dos contos nas inúmeras revistas e jornais.
No Brasil, Luís Câmara Cascudo (1898-1986), foi um dos grandes
pesquisadores de nossa fortuna cultural literária. O estudioso (CASCUDO, 1952, p.
178) afirma que algumas das histórias ainda hoje muito apreciadas por adultos e
crianças, como as aventuras de Pedro Malazarte, são exemplos de contos populares
tradicionais trazidos pelos portugueses ao Brasil. “O português emigrava com seu
mundo na memória. Trazia o lobisomem, a moura encantada, as três cidras de
amor” (CASCUDO, 1952, p. 171). Segundo o autor, os portugueses trouxeram para
o Brasil histórias religiosas, de encantamento, entre outras muitas de muitas raízes
étnicas, de modo que se torna impossível dizer que um conto pertence a uma
determinada raça, uma vez que ele pode ser uma mescla de várias procedências.
Outros estudiosos que se destacam na pesquisa dos contos da tradição oral
são Charles Perrault (1628-1703), que recolheu histórias como “Cinderela”, muito
conhecidas entre as crianças; Os irmãos Grimm (Brüder Grimm, 1785-1863, e
Gebrüder Grimm, 1786-1859), dois alemães que, diante de grande encantamento
com a língua, recolheram várias histórias contadas oralmente por pessoas comuns,
além de haverem criado suas próprias histórias, especialmente contos de fadas. E
por fim, podemos citar Hans Christian Andersen (1805-1875), dinamarquês que
também registrou muitas histórias da tradição oral, além de escrever seus próprios
contos, como A Menina dos Fósforos, que é sucesso até os dias atuais.
O gênero literário conto foi se transformando no decorrer da vida humana:
momentos de oralidade e de escrita, momentos de declínio e de ascensão. Mas
como, afinal, podemos caracterizar o conto? Esse problema de indefinição também
é questionado por Gotlib (1990, p. 9), que relata esse problema de definição do
27
conto como angustioso e inábil, citando alguns famosos autores que encontraram
essa indagação durante seus percursos de escrita: Mário de Andrade, Maupassant e
Machado de Assis.
Apesar dos questionamentos teóricos, o gênero não parou de ser produzido e
grandes contistas contribuíram de modo decisivo para o respeito e o
amadurecimento desse gênero narrativo curto, que adentrou o século XX e
permanece até os dias atuais com as suas nuances e tendências atravessadas pelo
cunho histórico e social.
1.4 O conto: uma narrativa ímpar
O conto é uma narrativa que se encontra em uma classificação especial no
modo de narrar histórias. Dentro das categorias de gêneros existentes na arte
literária, ele não se enquadra nas características do romance nem nas
características da novela. Gotlib (1990, p. 64) coloca como a base diferencial do
conto a contração da matéria para a apresentação de seus melhores momentos,
relembrando um conhecido ditado que compara os gêneros conto e romance: “No
conto não deve sobrar nada, assim como no romance não deve faltar nada.”.
Nesse sentido, Soares (1993, p. 54) também destaca:
Ao invés de representar o desenvolvimento ou o corte na vida das personagens, visando a abarcar a totalidade, o conto aparece como uma amostragem, como um flagrante ou instantâneo, pelo que vemos registrado literariamente um episódio singular e representativo.
A autora ainda afirma que quanto mais o conto aparece concentrado, mais se
caracteriza como arte de sugestão. Arte porque trabalho com a linguagem, com a
representação da realidade social, em uma harmoniosa seleção de ações, evitando
complicações do enredo e delimitando cuidadosamente o tempo e o espaço. E,
sendo arte, fica assim compreendida a ideia de que não existe um compromisso
com a realidade, senão uma representação dessa em maior ou em menor grau de
proximidade, uma elaboração ficcional de maior ou de menor impacto no leitor.
Assim, o autor de um conto busca uma aproximação do leitor de maneira sintética,
resumida, envolvendo-o em um curto espaço de tempo em uma narrativa que o leve
a refletir sobre suas experiências vividas ou fantasiadas.
28
Moisés (1973, p. 124-125) caracteriza o conto por seu caráter unívoco: um só
conflito, um só drama, uma só ação, portanto de uma unidade dramática. Todos os
conflitos do conto se direcionam a um mesmo ponto, assim também como os
pormenores, as digressões e as divagações, por exemplo, são raras e, quando
presentes, convergem em direção a um único objetivo, compondo uma unidade de
início, meio e fim. Assim, a estrutura básica de um conto é sempre a mesma: uma
única situação conflituosa, um único momento na vida de um reduzido número de
personagens. Essa síntese dramática é caracterizada por Moisés (1973, p. 125)
como um trecho ou embrião do romance (resumindo-o), como uma fração dramática,
a mais importante e decisiva, de uma continuidade em que o passado e o futuro
possuem significado menor ou nulo.
Segundo o autor, a unidade de ação condiciona as demais características do
conto, cabendo nela também as unidades de espaço e de tempo, ou seja, a
narrativa é condensada em um espaço restrito e em um curto lapso de tempo. O
autor ainda acrescenta a unidade de tom ao conto, no sentido de provocar no leitor
uma só impressão, seja ela qual for: pavor, piedade, ódio, simpatia, indiferença,
entre outros.
Como consequência dessas “unidades”, também o número de personagens é
reduzido, limitando-se o autor a uma pequena descrição dos aspectos físicos e
psicológicos na maioria das vezes. As ações das personagens é que revelarão sua
personalidade.
Nesse sentido é importante ressaltar que o ponto de vista do narrador influi
imensamente na revelação no modo de revelar as características de uma
personagem. Moisés (1973, p. 132) apresenta quatro tipos de foco narrativo:
1º) A personagem principal conta sua história. 2º) Uma personagem secundária conta a história da personagem. 3º) O escritor, analítico ou onisciente, conta a história. 4º) O escritor conta a história como observador.
Segundo o autor, nos 1º e 4º focos existe uma ocupação da análise interna
das ações, ao passo que nos outros dois, a observação é externa.
O autor destaca ainda que, no primeiro foco, quando o narrador emprega a
primeira pessoa do plural ou do singular, o ponto de vista do narrador fica limitado à
sua percepção pessoal. É sua própria história que é contada. O mesmo caso
29
acontece no segundo tipo de foco narrativo, pois ainda que a história gire em torno
de um terceiro, o narrador se vê limitado a dispensar a atenção a sua própria
pessoa, correndo o risco de oferecer, na maioria das vezes, uma imagem otimista e
positiva de si próprio, relegando às demais personagens um caráter negativo.
Por outro lado, o autor nos lembra dos aspectos positivos que existem ao se
contar uma história em primeira pessoa, especialmente quando o narrador conta sua
própria história. Ao se valer desse foco narrativo, aos olhos do leitor, a história
ganha um caráter maior de verossimilhança, causando a impressão de uma maior
proximidade entre leitor e fatos narrados na ficção, bem como a impressão de uma
comunicação imediata, contemporânea, a qual aparenta direta e fascinante, em que
leitor e narrador podem assumir o papel de confidentes íntimos. Essa aproximação
intensa ausenta-se nos outros três focos narrativos.
O terceiro tipo de foco narrativo também apresenta grandes vantagens ao
narrador, permitindo a revelação da vida dos personagens, seja ela social ou íntima,
consciente ou inconsciente. Porém, em razão da brevidade, característica inerente
ao conto, esse detalhamento não ultrapassa muito além da superfície. A história
pode até perder o caráter de impacto imediato e direto com o leitor, mas este
ganhará em riqueza de detalhes, favorecendo a construção de significados, pois o
leitor pode juntar quantos aspectos contados sejam necessários à sua
compreensão.
Diferentemente do narrador analítico ou onisciente, o quarto enfoque narrativo
impossibilita a sondagem psicológica das personagens, limitando-se a contar a
história tal qual ela acontece.
De acordo com Moisés (1973), a partir do uso das pessoas do discurso, das
vantagens e desvantagens apresentadas devido à escolha do narrador quanto ao
foco narrativo, podemos organizar o quadro seguinte, sintetizando as informações
de maior relevância.
30
Quadro 3: Tipos de foco narrativo, segundo Moisés (1973)
Foco narrativo Pessoa do discurso Vantagens Desvantagens
A personagem principal conta sua história.
1ª pessoa do singular ou do plural
Permite caráter maior de verossimilhança; Permite maior aproximação entre leitor e fatos narrados.
O ponto de vista do narrador fica limitado à sua percepção visual.
Uma personagem secundária conta a história da personagem.
1ª pessoa do singular ou do plural.
Permite ao narrador entrar e desvendar o mundo psicológico das personagens.
O ponto de vista do narrador fica limitado à sua percepção visual. Distancia entre leitor e conteúdo da narrativa aumenta.
O escritor, analítico ou onisciente, conta a história.
3ª pessoa do singular ou do plural.
Permite revelação da vida dos personagens; (no conto, por sua brevidade, o detalhamento não ultrapassa muito da superfície).
A história pode perder o caráter de impacto imediato e direto com o leitor.
O escritor conta a história como observador.
3ª pessoa do singular ou do plural.
Torna a narrativa mais linear, menos complexa, uma vez que diminui a penetração psicológica, favorecendo a ação.
O narrador é compelido a contar apenas o que observou.
Para o estudioso (MOISÉS, 1973, p. 136/137), o contista é obrigado a
escolher um dos focos para cada narrativa, dadas as limitações próprias do conto.
No entanto, ele afirma também que é possível encontrar contos modernos em que o
escritor muitas vezes mescla os enfoques narrativos, justamente para não ser
penalizado com alguma desvantagem relativa a algum tipo de foco.
É oportuno destacar a conclusão de Moisés (1973, p. 137) com relação ao
foco narrativo presente nas histórias:
À guisa de encerramento deste tópico, julgo cabível a seguinte observação: em última instância, o ficcionista é sempre onisciente, ainda quando pareça conceder às personagens a primazia da narrativa ou do diálogo. É que os vários pontos de vista constituem truques dramáticos, disfarces ou encarnações teatrais com que o escritor dissimula que conhece tudo quanto ocorre nas suas obras, ao menos por ser quem as escreve.
31
Decerto, a colaboração do mundo inconsciente ou/e subconsciente existe, e deve ser ponderada, mas o ficcionista não trabalha em transe, fora de si. Mesmo nas ocasiões em que a personagem “escapa” e se põe a comportar-se ao contrário do que espera o ficcionista, percebemos que este continua onisciente, na medida em que “sabia”, de antemão, com as antenas da sensibilidade. Enfim, onisciente porque a obra nasce dele, sobretudo entendendo onisciência não como consciência, mas como conhecimento integral (isto é, pela memória, pela imaginação, pela reflexão) dos materiais da ficção (isto é, o Homem, a Natureza, o Tempo, a História).
Assim, no tocante à estrutura do conto, o autor supracitado (1973, p. 127)
argumenta que, por ser essencialmente objetivo, costuma ser narrado em terceira
pessoa, fugindo ao introspectivo, às divagações ou digressões, uma vez que o conto
procura conferir sempre à narrativa uma proximidade maior à realidade da vida, em
um curto espaço de tempo.
Tal qual Moisés (1973) relaciona importantes aspectos referentes à estrutura
do conto, Coelho (2010, p. 66) também destaca dez fatores estruturantes na
composição do gênero narrativo literário (denominado por ela de “matéria narrativa”)
e que, consequentemente, podem ser aplicados ao gênero discursivo conto. São
eles:
1. O narrador (a voz que fala, enunciando a efabulação); 2. O foco narrativo (o ângulo ou a perspectiva de visão, escolhida pelo
narrador para ver os fatos e relatá-los; 3. A história (a intriga, argumento, enredo, situação problemática,
assunto, etc.); 4. A efabulação (a trama da ação ou dos acontecimentos, seqüência dos
fatos, peripécias, sucessos, situações...); 5. O gênero narrativo (dependente da natureza do conhecimento de
mundo e implícito na narrativa, podendo assumir três formas distintas: conto, novela e romance);
6. Personagens (aqueles que vivem a ação); 7. Espaço (ambiente, cenário, paisagem, local...); 8. Tempo (período de duração da situação narrada); 9. Linguagem ou discurso narrativo (elemento concretizador da invenção
literária); 10. leitor ou ouvinte (o provável destinatário, visado pela comunicação); (o
destaque em itálico foi dado pela autora) – {não sei se devo mencionar isso}
Dentre esses fatores apontados por Coelho (2010), é importante explicitarmos
alguns de grande importância para melhor entendimento das particularidades do
conto, especialmente quando da leitura desse gênero em sala de aula. Como por
exemplo, com relação ao narrador, à personagem, ao espaço e ao tempo.
32
O narrador, segundo Coelho (2010, p. 67), não deve ser confundido com o
autor implícito, que é aquele que produziu um texto de um determinado lugar social
e histórico; o narrador não existe fora do texto. A autora ainda define o narrador em
seis categorias diferentes de acordo com a natureza de suas relações com a matéria
narrada e com o destinatário (leitor ou ouvinte) da seguinte forma:
1- O contador de histórias ou narrador primordial é aquele que é mediador de
fatos e acontecimentos realmente acontecidos, por ele próprio presenciados ou que
lhe foram contados por outros, e não como inventor. A autora exemplifica o caso do
arrador nos contos de fada e nos contos maravilhosos.
2- O narrador demiurgo ou onisciente é aquele que conhece os fatos e
conflitos, dentro e fora das personagens, bem como o presente, o passado e o
futuro.
3- O narrador confessional ou intimista é aquele que expõe as próprias
experiências pessoais ou as de outros por ele testemunhadas. Segundo Coelho
(2003, p. 68), é o tipo de narrador mais encontrado na literatura.
4- O narrador dialógico (ou dialético) é aquele “que se dirige continuamente a
um tu” e esse não se faz ouvir na narrativa, embora a provoque. A autora
exemplifica esse tipo de narrador por meio de Guimarães Rosa, no romance
“Grande Sertão: Veredas”.
5- O narrador insciente é um tipo de narrador encontrado na modernidade e
na pós-modernidade, que ignora as razões do que acontece à sua volta, convivendo
com a dúvida, a incerteza ou certezas contraditórias.
6- O narrador in off é aquele que fala a um tu que fala, que responde as
prováveis ou evidentes perguntas do eu-narrador “cujas falas não se fazem ouvir na
narrativa, mas permanecem in off”. Nesse tipo de narrador, não se ouve a voz do
narrador, somente as vozes das personagens que com ele interagem.
Quanto ao ângulo de visão em que se coloca o narrador, ou seja, quanto ao
foco narrativo, Coelho (2010, p. 68) aponta que é um dos fatores mais importantes
na elaboração da narrativa, visto que revela o grau de conhecimento que o narrador
tem dos fatos que são narrados.
Diferentemente de Moisés (1973, p. 132) que indica quatro posições do
narrador, são cinco as posições declinadas por Coelho (2010, p. 69): foco
memorialista (em 3ª pessoa, conhece apenas o mundo exterior das personagens);
foco onisciente (em 3ª pessoa, além de esclarecer os acontecimentos narrados,
33
conhece o interior das personagens. Quando se limita ao ângulo de visão de apenas
uma personagem, é chamado de foco de consciência parcial; quando revela pleno
conhecimento de tudo que se passa dentro da narrativa, é chamado de foco de
consciência narrativa total); foco confessional ou intimista (o eu do narrador está
dentro dos fatos narrados, também chamado pela autora de interno subjetivo. Se é
apenas testemunhal, observador, é chamado foco interno objetivo); foco dialético (o
narrador dialoga com um tu) e foco dialógico (a voz do narrador não aparece, só é
percebida pelas vozes das personagens).
Assim, temos:
Quadro 4: Tipos de foco narrativo, segundo Coelho (2010)
Foco narrativo Características relevantes Subdivisões de acordo com características específicas
Foco memorialista
Conhece apenas o mundo exterior das personagens.
_____
Foco onisciente Conhece o interior das personagens, além de esclarecer os fatos narrados.
- foco de consciência parcial: limita-se a apenas uma personagem; - foco de consciência narrativa total: revela pleno conhecimento de tudo.
Foco confessional ou intimista
O eu do narrador está dentro dos fatos narrados ou é apenas observador.
- interno subjetivo: se o narrador está dentro dos fatos; - interno objetivo: se o narrador é apenas testemunhal.
Foco dialético O narrador dialoga com o tu. Uma 2ª pessoa que se mantém silenciosa até o fim da narrativa.
_____
Foco dialógico A voz do narrador presente/ausente só é percebida pelos comentários e respostas da (s) personagem (ns) que responde (m).
_____
Outro elemento de grande importância na narrativa e que cabe a nós remeter-
nos à Coelho (2010) para nossos estudos é a personagem.
Dentro dos contos, são poucas e breves as características atribuídas às
personagens. Assim, é normalmente mais pelas ações que acontecem no decorrer
da narrativa que nos servimos para compreender suas representações.
34
Coelho (2010, p. 74-75) enumera a existência de três categorias de
personagens: a personagem-tipo, a personagem-caráter e a personagem-
individualidade.
A personagem-tipo, segundo autora, é bastante simples em sua construção,
estereotipada, nunca muda suas ações ou reações, agindo sempre do modo
esperado, comuns às narrativas infantis e à literatura popular, tais como as rainhas,
as bruxas, as fadas, os caçadores, apenas citando alguns exemplos da autora. A
personagem-caráter é mais complexa e suas ações revelam sempre aspectos do
caráter, sendo frequente nas narrativas exemplares e na literatura tradicional. A
autora revela que não há uma linha demarcatória entre essas duas categorias de
personagens sendo que a mesma personagem-tipo pode passar a personagem-
caráter quando atuação se torna mais complexa e se aprofunda no questionamento
dos valores. Já a personagem-individualidade representa o homem da
contemporaneidade, de natureza questionadora, como o protagonista de O Pequeno
Príncipe, de Saint-Exupéry; ou, no Brasil, a boneca Emília, de Monteiro Lobato.
(2010, p. 76)
Muito pertinente também a colocação de Coelho com relação às funções do
espaço dentro das narrativas (2010, p. 77-78). Ela afirma que o espaço é o ponto de
apoio para as ações das personagens, podendo conferir maior verossimilhança aos
fatos narrados ou contribuir para a construção de significados.
[...] Meio familiar, social e econômico; tipo de habitação; clima; nação; objetos que nos rodeiam na intimidade; a moda de nossos trajes; o local de trabalho; etc., são elementos do espaço que nos servem de apoio para vivermos; condicionam nosso ser social e atuam decisivamente em nosso ser interior. Da mesma forma, a ficção narrativa decorre sempre em um determinado local ou espaço que lhe dá significação e verossimilhança. (COELHO, 2010, 77)
A autora afirma, então, a existência de três espécies de espaço: o natural,
como aqueles não modificados pelo homem; o social, elementos da natureza ou do
ambiente modificados pelo trabalho de transformação do homem e o trans-real,
existente nas novelas de cavalaria, nos contos maravilhosos e nas fábulas, por
exemplo. (idem, 2010, p. 77)
De acordo com as funções do espaço nas narrativas, ela subdivide em duas
funções principais: função estética e função pragmática. A função estética é a
exercida pelos ambientes que servem de cenário à ação, descrito com riqueza de
35
detalhes, visando a conferir verossimilhança ao conflito, mas sem auxiliar no
desenvolvimento dos acontecimentos.
Já na função pragmática, os elementos do espaço servem de instrumento
para o desenvolvimento da ação narrativa, segundo a autora. Ela ainda cita três
funções pragmáticas mais frequentes: provocar, acelerar, reatar ou alterar a ação
das personagens; ajudar a caracterizar a personagem e criar uma atmosfera
propícia para o desenrolar do conflito.
O tempo também é um elemento de fundamental importância dentro da
narrativa, visto que toda narrativa obedece a uma movimentação das ações dentro
de um determinado tempo, seja ele cronológico ou psicológico. Coelho nomeia a
esses dois tipos de tempo: tempo exterior (comum às narrativas que decorrem em
um mundo semelhante ao nosso, dos dias e das noites) e tempo interior (registros
das emoções vividas pelas personagens, o tempo vivido de acordo com o
sentimento da personagem), respectivamente, acrescentando à classificação o
tempo mítico também, que corresponde ao tempo eterno, imutável, que não se
desgasta (ideal da literatura infantil, como nos contos de fada e das lendas).
(COELHO, 2010, p. 79-80)
Considerando a origem do conto, bem com as características do gênero
discursivo apresentadas nesta seção e que um dos objetivos desta pesquisa é de
fornecer subsídios para o professor de língua portuguesa trabalhar com a leitura de
contos no ensino fundamental, cabe perguntar: em essência, quais características
do conto devem ser consideradas pelo professor, nas atividades de leitura em sala
de aula, para proporcionar aos alunos melhores condições para compreensão da
leitura?
A escolha do trabalho com a leitura de contos nessa pesquisa não é por
acaso, pois o conto, por sua pequena extensão pode vir a ser uma peça-chave ou
um atrativo para a formação de futuros adultos proficientes e sedentos de leitura.
Corroborando essa afirmação, Silva (2010, p. 43) aponta uma justificativa que pode
ter contribuído para a intensa produção das narrativas curtas nos últimos tempos: a
técnica de produção do conto ao criar o máximo de efeito com um mínimo de
elementos (reduzido número de personagens, unidade de ação, de tempo e de
espaço) favorece uma leitura crítica no tempo reduzido de uma aula segundo a
autora.
36
A reduzida dimensão do conto provoca uma reação no leitor, ao mesmo tempo intelectiva e emocional. Intelectiva, na medida em que essa trama bem urdida desperta-lhe sentimentos e sensações. O papel do leitor de contos deve ser, pois, ativo, participante, sob pena de escaparem os significados e intenções dissimulados nas entrelinhas do texto. (SILVA, 2010, p. 43)
Por suas próprias características estruturais, no conto nem tudo precisa ser
dito, deixando sempre margem às inferências e sensibilizando o leitor à atitude
crítica. Concluímos, pois, esta seção, com destaque para a importância do papel do
educador em despertar no aluno o interesse para a leitura, atuando como um leitor-
mediador. Para Perrone-Moisés (1990, p. 108), a criação literária só existe de fato se
recriada pela leitura. A autora afirma ser imprescindível a existência de dois polos: o
escritor e o leitor, cuja tarefa deve ser tão ativa quanto à do escritor. É o professor
quem propõe atividades para os alunos encontrarem os caminhos para a
compreensão, despertando-os para detalhes da elaboração do conto como: a
posição do narrador, as personagens, o tempo, o espaço, as figuras de linguagem, a
pontuação, de acordo com os que forem mais relevantes para a construção de
sentidos de cada conto lido, a fim de que possam superar os limites do texto. A
utilização desses elementos em sala de aula será exemplificada no quarto capítulo.
1.5 O conto e suas variações
Conforme já afirmado anteriormente, o conto tem como característica básica a
brevidade. Não obstante esse seu caráter essencial e que lhe é inerente desde os
tempos mais remotos, o conto pode apresentar-se em uma multiplicidade de
variações. Moisés (1973, p. 137) atenta-nos para o fato de que existem muitas
classificações possíveis para o conto, sem que ele perca seu objetivo singular de
transmitir uma única impressão ao leitor. Ou seja, a variação entre os contos seria
sempre acidental e nunca essencial. Além disso, em um mesmo conto podemos
vislumbrar características múltiplas, com a predominância de uma só, que o
fundamenta e o localiza em determinada classificação. Muitas vezes, casos há, em
que não se consegue defini-lo em uma categoria. Tal fato, provavelmente, se deve à
ampla liberdade que os autores adquiriram, ao longo da evolução dos contos na
história, de imprimir as mais diversas características ao conto.
37
Assim, há diferentes classificações para os diversos tipos de conto existentes,
normalmente nomeados de acordo com alguns critérios.
Para apresentar uma amostra da diversidade de critérios existente para
classificar os contos, baseando-se no acidental e não no essencial, insistindo em
comprovar a classificação oscilante, Moisés (1973, p. 138) dá destaque em sua obra
à classificação apresentada por Herman Lima (1952, apud MOISÉS, 1973), que ao
tratar a respeito da variação entre os contos, divide-os em duas categorias:
universais e regionais, subdividindo-os em contos humorísticos, psicológicos,
sentimentais, de aventura e de mistério e policiais. Apanhando a questão de outro
ângulo, o mesmo estudioso, apresentado por Moisés, classifica mais estritamente
em contos históricos, urbanos, comemorativos, puramente imaginários ou
fantásticos.
No entanto, em sua obra, Moisés (1973, p. 138) opina a favor da classificação
apresentada por Carl H. Grabo (1912, apud MOISÉS, 1973), pois acredita que esse
estudioso sugere uma classificação que mais atende à orientação nos estudos, visto
ser a mais simples. Nessa classificação, os contos são subdivididos em cinco
grupos: “1º histórias de ação; 2º de personagem; 3º de cenário ou atmosfera [...]; 4º
de ideia; 5º de efeitos emocionais”.
O “conto de ação” é o tipo mais comum, nele existe a predominância da
aventura. Trata-se de uma narrativa linear, cujo objetivo é entreter e divertir o leitor.
Atualmente, os contos policiais e de mistério são os seus exemplares.
O segundo tipo de conto, o “conto de personagem”, é menos comum. Como,
no conto, o enredo é mais voltado para a ação, o contista poderá até centrar sua
atenção em uma personagem principal, mas esta nunca atingirá o grau de plenitude,
não haverá uma demorada análise, pois a narrativa sempre deverá obedecer a sua
característica de ser curta, visando sempre à unidade. Um exemplo desse tipo de
conto citado por Moisés é “Feliz Aniversário”, Clarice Lispector.
O “conto de cenário ou atmosfera” é raro. “A tônica dramática transfere-se
para o cenário, o ambiente, de modo que este quase se transforma no herói do
conto”. (MOISÉS, 1973, p. 140).
Já o “conto de ideia” é mais frequente. Caracteriza-se como aquele em que o
escritor aproveita-se de um personagem, de uma história para transmitir uma ideia.
Houve um tempo, segundo Moisés (1973, p. 140), no século XVIII, em que ele
predominou, visto que havia muitas narrativas de caráter moralista, em torno de uma
38
ideia, como é o caso de Voltaire, cuja obra oferece uma visão filosófica da
existência, com observações que a vida lhe permitiu fazer sobre os homens e o
mundo. No conto de ideia, a ideia a transmitir sobrepõe a todos os outros aspectos
secundários, a atenção do escritor e do leitor encontra-se inteiramente voltada para
ela. Um exemplo importante de nossa literatura brasileira citado por Moisés (1973, p.
141) é “O Alienista” de Machado de Assis, em que todas os fatos narrados se aliam
para fornecer ao leitor uma única ideia. Entretanto, essa ideia permite inúmeras
interpretações, posto que Machado provavelmente tenha como objetivo instigar
vários questionamentos com relação à espécie humana.
O “conto de efeitos emocionais” frequentemente aparece mesclado ao de
ideia, visto que tem por objetivo transmitir uma emoção ao leitor. Nele, tudo
converge para o objetivo de despertar emoção que, durante a leitura, vai sendo
tomado de um sentimento misto de curiosidade e de sofreguidão, e por isso mesmo,
ele se utiliza de expedientes próprios dos contos de mistério ou de terror. Exemplo
desse tipo de narrativa é encontrado em algumas obras de Edgar Allan Poe, como
“O Gato Preto”. (MOISÉS, p. 141).
Coelho (2010, p. 181-183) também nomeia e aponta algumas outras
classificações para o conto, dentre elas: contos exemplares, contos jocosos,
facécias, contos religiosos, contos etiológicos e contos acumulativos.
Os “contos exemplares” são contos de moralidades, contados antigamente
nos longos serões do inverno europeu e trazidos ao Brasil pelos portugueses.
Possuem uma moral sensível e popular, facilmente perceptível no enredo.
Os “contos jocosos” são narrativas breves e centradas no cotidiano, que
circularam com grande sucesso na França medieval, expandindo-se também,
posteriormente, para outras nações. Possuem caráter moralizante, diferenciando-se
do conto exemplar por ser recheado de comicidade, de vulgaridade nas situações,
gestos ou palavras, aproximando-se do gênero narrativo anedota, porém com uma
intencionalidade crítica.
As “facécias” são narrativas em que existem situações imprevistas, materiais
e morais. “Pode deixar de ter uma finalidade moral, mas um sentimento de
aprovação, crítica, repulsa ou apenas fixação de caracteres morais.” (COELHO,
2010, p. 182).
39
Os “contos religiosos” se caracterizam, segundo a autora, como histórias que
fundem naturalmente tradições seculares anteriores ao cristianismo, denunciando
vestígios de ritual, de respeitoso uso sagrado.
O “conto etiológico” é aquele que foi inventado “para explicar e dar razão de
ser de um aspecto, propriedade, caráter de qualquer ente natural”, por exemplo,
contos que explicam o pescoço longo da girafa (COELHO, 2010, p. 182).
Por fim, os “contos acumulativos” são histórias muito populares e divertidas,
podendo também se apresentar como um desafio à articulação da fala, como na
brincadeira dos trava-línguas, transformando-se em um jogo. É importante ressaltar
que todas essas classificações do conto acima expostas foram apresentadas por
Coelho (2010) a partir da lição de Cascudo (1952, p. 277/278), que apresentou
outras classificações além daquelas mencionadas pela autora.
Vale, então, relembrarmos algumas delas também importantes. São elas:
contos de encantamento (com elementos sobrenaturais, dons, amuletos, varinha de
condão, virtudes acima da medida humana); contos de animais (são as fábulas
clássicas, em que os animais vivem o exemplo dos homens); demônio logrado
(contos em que “o Diabo é um logrado inevitável”, perdedor); contos de adivinhação
(histórias que se caracterizam pela decifração de enigmas); natureza denunciante (o
autor (p.278) cita como exemplo a história em que os cabelos da menina que a
madrasta sepultou viva transformaram-se em capim e cantam, denunciando); contos
acumulativos (são trava-línguas, histórias sem fim, que se caracterizam pela
disputa); ciclo da morte (contos da Morte personalizada; ao contrário do Demônio
Logrado, a Morte é sempre vencedora).
Retomando as classificações apontadas por Coelho (2010), é muito pertinente
também remetermos à classificação dual evidenciada pela autora (COELHO, 2010,
p. 172), diferenciando o conto em “maravilhoso” e “de fadas”. E essa nomenclatura
utilizada para os contos já nos é mais familiar que as anteriormente citadas. A autora
identifica o conto maravilhoso como aquele que tem raízes em narrativas orientais,
com personagens contrariando a lei da gravidade, personificadas, com poderes
sobrenaturais ou beneficiadas com milagres, dentre outras características
misteriosas. Já o conto de fadas, segundo a mesma autora teve origem entre os
celtas, com heróis e heroínas, com experiências ligadas ao sobrenatural, ao mistério
do além-vida e visavam à realização do ser humano. Nesse sentido:
40
Limitado pela materialidade de seu corpo e do mundo em que vive, é natural que o homem tenha desejado sempre uma ajuda mágica. Entre ele e a possível realização de seus sonhos, aspirações, fantasia, imaginação... sempre existiram mediadores (fadas, talismãs, varinhas mágicas...) e opositores (gigantes, bruxas ou
bruxos, feiticeiros, seres maléficos...). (COELHO, 2010, p. 173).
Entre esses personagens com características especiais, encontra-se, em
destaque, a figura da fada, que, pertencente a um lugar privilegiado, pois encarna a
possível realização dos sonhos inerentes à condição humana, apesar dos séculos e
da mudança de costumes, continua ainda mantendo seu poder de atração sobre
homens e crianças (COELHO, 2010, p. 173).
Dentre os autores que apresentam classificações para o conto, também
encontramos Faria (2010, p. 24) que traz em sua obra uma classificação
fundamentada a partir de R. Leon (apud FARIA, 2010), especialista francesa que
distingue os diferentes tipos de contos em duas categorias: tradicionais e modernos.
Os tradicionais, como os de contos de fada e os contos maravilhosos, abordam
aspectos importantes de nossa natureza e de nossa história, com atividades de
sobrevivência, por exemplo. Os contos modernos trazem uma renovação no
maravilhoso, abordando o dia a dia atual das crianças, de situações aparentemente
banais até temas sociais, religiosos, existenciais e éticos.
O quadro a seguir tem como objetivo abreviar todas essas classificações
acima expostas, segundo seus teóricos:
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Quadro 5: Classificações dos contos de acordo com alguns estudiosos.
AUTOR
CLASSIFICAÇÃO
OBSERVAÇÕES
Lima (1952, apud MOISÉS, 1973)
Universais e regionais
Subdivide em: humorísticos; psicológicos; sentimentais; de aventura; de mistério; policiais. E mais estritramente: Contos históricos; urbanos; comemorativos; imaginários ou fantásticos.
Grabo (1912, apud
MOISÉS, 1973)
Contos de ação; contos de personagem; contos de cenário ou atmosfera; contos de ideia; contos de efeitos emocionais.
Moisés (1973) acredita que esse estudioso sugere uma classificação que mais atende à orientação nos estudos, visto ser a mais simples.
Coelho (2010)
Contos exemplares; contos jocosos; facécias; contos religiosos; contos etiológicos e contos acumulativos.
A autora também apresenta uma classificação dual: conto de fadas e conto maravilhoso
Cascudo (1952)
Contos de encantamento; Contos de exemplo; Conto de animais; Facécias; Contos religiosos; Contos etiológicos; Demônio logrado; Contos de adivinhação; Natureza denunciante; Contos acumulativos e Ciclo da morte.
O autor compara a lenda ao conto, destacando que o mundo sobrenatural é parte essencial nas lendas e sua intervenção independe do término feliz, o que não ocorre nos contos de encantamento. (CASCUDO, 1952, p. 279)
Leon (..., apud FARIA, 2010)
Contos tradicionais e Contos modernos
Tradicionais: contos de fada e maravilhosos Modernos: temas sociais, religiosos, existenciais e éticos.
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Podemos concluir, a partir da organização da classificação dos subtipos de
contos, que a classificação frequentemente utilizada para nomeá-los não é unânime
entre os autores. Pela experiência que temos como professores, podemos constatar
essa multiplicidade de classificações também em materiais didáticos, provando que
os autores não se fundamentam apenas em um único teórico para optar pela
classificação. O conto pode receber outras classificações de acordo com a ideia
tematizada.
Enfim, em todas as classificações, deve-se lembrar que a estrutura básica de
um conto é sempre a mesma: apresentação, desenvolvimento ou complicação,
clímax e desfecho; nos contos encontraremos os mesmos elementos: narrador, foco
narrativo, personagens, tempo e espaço. Portanto, observa-se que toda a
abordagem dos autores da tradição literária citados nesse capitulo é estritamente
estrutural.
No trabalho em sala de aula com leitura de contos, embora os aspectos
estruturais não sejam os únicos que devam ser abordados, eles devem também se
considerados. Nesse aspecto, Faria (2010, p. 24-25) expõe que as narrativas, sejam
elas tradicionais ou modernas, estruturalmente podem ser sintetizadas por três
fases: a situação inicial, em que há um estado de equilíbrio ou já há um problema; o
desenvolvimento, momento em que ocorre o surgimento de um problema
desestruturando o equilíbrio; e o desenlace, que poderá ser feliz, quando se
soluciona o problema, ou infeliz, quando o equilíbrio inicial não é alcançado, pois
não se resolveu o problema.
A autora explica a estrutura das narrativas como essencialmente temporal,
dividindo-a em relação aos “momentos-chave no fluir das ações” (FARIA, 2010, 35),
nomeando as divisões da história de “sequências narrativas”. Partindo dessas
considerações, Faria sugere como bom trabalho para o docente, auxiliar os alunos a
compreenderem os momentos-chave da história, a entenderem os “cortes da
narrativa”, marcando os momentos significativos da história. Esses cortes têm a
função de “amarrar ou desamarrar a ação, abrir ou fechar perspectivas” (FARIA,
2010, p. 36), portanto a sugestão da autora torna-se uma atividade verdadeiramente
interessante para os iniciantes na prática da leitura, pois entender a organização das
partes auxilia no processo de entendimento da construção de uma história em sua
totalidade.
43
Não podemos esquecer também que é por meio dessas partes “maiores”, que
é possível elaborar atividades de compreensão que explore elementos estruturais
“menores”, tais como, personagens, lugares, tempo, determinadas ações, que levem
ao leitor a compreensão de qual o distanciamento entre o texto objeto de leitura,
escrito por alguém em um determinado tempo, e a realidade atual vivenciada pelo
leitor, que também está situado em um tempo e espaço específicos.
As relações de sentido que um leitor constrói durante a atividade de leitura é
que fazem com que ela se torne um momento dialógico entre escrita e vida em
sociedade e permita o entendimento do texto como participativo da construção de
uma identidade social e cultural, corroborando o dialogismo inerente ao enunciado,
conforme nos explica Bakhtin (1992, p. 357).
Dessa forma, essas propriedades sócio-comunicativas, dialógicas e
estruturais do conto serão exploradas na sequência didática que será proposta no
capítulo 3, pois é dessa maneira que um texto literário é capaz de fascinar, de
encantar, de aproximar o leitor de sua cultura, de raízes históricas, fazendo-o
conhecer-se melhor, organizando sua existência, sua realidade física e psicológica.
Acredito ser pertinente, nesse momento, compartilhar as ideias de Gregorin:
Trabalhar com literatura infantil em sala de aula é criar condições para que se formem leitores de arte, leitores de mundo, leitores plurais. Muito mais do que uma simples atividade inserida em propostas de conteúdos curriculares, oferecer e discutir literatura em sala de aula é poder formar leitores, é ampliar a competência de ver o mundo e dialogar com a sociedade. (GREGORIN FILHO, 2009, p. 77-78)
Assim, não obstante as mais diversas categorias que são apresentadas por
diferentes autores, podemos concluir que o conto oferece uma multiplicidade de
opções para que se desperte o prazer pela leitura. Quando se trabalha com a leitura,
além da formação de um leitor proficiente, estamos formando leitores com gosto
pelo ato de ler. A leitura do texto literário em sala de aula ou fora dela apresenta
novas possibilidades de ver e entender o mundo pelos inúmeros saberes
compartilhados. Poder proporcionar esse contato por meio da criação de condições
para o aprendizado da leitura e para o gosto de ler, é participar da formação de um
mundo melhor, composto por cidadãos plenos.
Corroborando as ideias expostas acima, Held (1980, p. 57) deixa claro que a
leitura deve ser oferecida pelo simples prazer de ler e não como “tarefa escolar”,
pois muitos ainda acreditam que as atividades com a leitura devem sempre se
44
pautar pela racionalidade e pela decodificação do texto, em nome de uma literatura
utilitária, esquecendo do caráter gratuito e prazeroso da literatura. Somente com o
oferecimento de uma leitura gratuita é possível fazer acontecer verdadeiramente a
interação texto/leitor, possibilitando a construção dos sentidos feita a partir da
capacidade criadora da criança, que terá a liberdade de construção dos sentidos. A
apresentação do conto, podendo ser mediada por um adulto em um “clima mais livre
e calmo”, trará impressões muito mais fortes e duráveis, alimentando a magia da
palavra.
Assim, ao educador cabe encontrar o melhor caminho para o trabalho com
esse gênero, pois em uma mesma sala pode ele encontrar os mais diversos gostos,
uma vez que podem ser múltiplas as crenças e as expectativas dos alunos de uma
mesma sala de aula, pois cada ser é único, bem como seu contexto de vida também
é único, ou seja, enquanto alguns alunos podem ter tido contato com muitas leituras
de obras literárias, outros podem não ter tido o mesmo privilégio.
A partir do despertar para o gosto da leitura, o processo de se formar um leitor
proficiente, que adquira as habilidades necessárias para a efetiva compreensão de
um texto, tornar-se-á muito mais fácil e interessante, uma vez que os alunos estarão
motivados a aprender e o professor desejoso por ensinar.
Podemos concluir, ao término desse capítulo, que para se trabalhar a leitura
do conto em sala de aula é importante explorar, além dos aspectos estruturais que
ainda são cobrados pelas avaliações institucionais, o gênero discursivo conto
segundo a perspectiva bakhtiniana.
Essa fundamentação teórica sobre o conto será utilizada na elaboração da
sequência didática de leitura, proposta no capítulo 3, complementada com a
fundamentação teórica sobre leitura, apresentada no capítulo a seguir.
45
CAPÍTULO 2
A LEITURA E O TEXTO LITERÁRIO EM SALA DE AULA
Somente quando se ensina ao aluno a perceber esse objeto que é o texto em toda sua beleza e complexidade, isto é, como ele está estruturado, como ele produz sentidos, quantos significados podem ser aí sucessivamente revelados, ou seja, somente quando são mostrados ao aluno modos de se envolver com esse objeto, mobilizando os seus saberes, memórias, sentimentos para assim compreendê-lo, há ensino de leitura.
(KLEIMAN, 2002, p. 28)
Existem muitos questionamentos por parte dos professores em relação à
prática de leitura com os alunos: Como ensinar ao aluno a compreensão de um
texto? Como desenvolver habilidades de leitura em nossos alunos? Quais os
gêneros que podem facilitar no processo de torná-los leitores proficientes? Como
formar leitores críticos? E o mais doloroso dos questionamentos: como fazer com
que os alunos gostem de ler? Este capítulo aborda concepções de leitura que
permitem um entendimento melhor do professor em relação ao processo de leitura e
de desenvolvimento de habilidades de leitura e traz, ainda, considerações sobre a
leitura do texto literário em sala de aula.
2.1 A concepção interativista ou cognitiva de leitura
O conceito de leitura como decodificação de um texto, durante muito tempo,
foi o que dominou os trabalhos pedagógicos. Como explica Kato (1995, p. 41), na
vigência da teoria estruturalista, a concepção de leitura era entendida como
decodificação do texto. Até fins da década de setenta, aproximadamente,
acreditava-se que o sentido do texto estava nele mesmo e um bom leitor conseguiria
entender perfeitamente o que o autor queria dizer. Por essa concepção, a
informação iria do texto para o leitor, num processo ascendente (do inglês buttom
up). O leitor começaria seu entendimento pelas letras, passando às palavras e às
frases.
No entanto, não tardou para que os pesquisadores concluíssem que os
sentidos não estão contidos nas unidades da língua, que a leitura não depende só
46
da decodificação de letras, palavras e frases e que muitos fatores são importantes e
estão envolvidos no processo de compreensão de um texto. O modelo de leitura
como decodificação, portanto, passou a ser criticado por desconsiderar
completamente a ação do leitor durante a compreensão, seus conhecimentos
prévios e seus processos cognitivos, como comentam Kato (1995), Kleiman (1989) e
Solé (1998).
Hoje sabemos, a partir de muitas pesquisas, algumas das quais serão
comentadas em detalhes a seguir, que os processos de inferência e a percepção da
existência do diálogo entre os textos são de extrema importância para a formação de
um leitor crítico e apto a operar mudanças no meio em que vive. Ao professor, no dia
a dia de sua prática docente, cabe a sensibilidade de entender que práticas de
leitura atenderão às necessidades de formação de seu aluno-leitor e ao mesmo
tempo aguçarão sua curiosidade para a atividade da leitura, uma vez que cada
comunidade, cada indivíduo, constrói os sentidos de um texto a partir das
experiências que tem. Esse caminho pode ser complexo, mas provavelmente trará
muitos resultados positivos em relação ao desenvolvimento de competências sócio-
comunicativas necessárias para um leitor proficiente.
Nesse sentido, podemos lembrar a afirmação de Perrone-Moisés (1990, p.
109) de que “a leitura é um aprendizado de atenção, de sensibilidade e de
invenção”. Ou seja, a leitura requer cuidado: para que uma obra não seja
compreendida de acordo com a pura subjetividade de um leitor; sensibilidade: a fim
de que um leitor entenda as novas possibilidades de uso da linguagem
empreendidas no texto literário, compreendendo a sua relação com a beleza da vida
humana; e recriação: para que um leitor ultrapasse seu próprio aprendizado,
reinventando, recriando novos significados de maneira coerente a partir da leitura.
Assim, concluímos que não existem leituras prontas e as teorias sobre leitura
tentam auxiliar no entendimento do processo de compreensão de um texto. O
desenvolvimento das teorias sobre leitura vem passando por constantes
movimentos, pois elas acompanham as transformações pelas quais passa a própria
linguística. A linguagem como interação aponta para um redimensionamento da
leitura. Esta pesquisa toma como pressuposto teórico de seus estudos a abordagem
sociocognitiva de leitura, por acreditarmos que ela pode oferecer subsídios teóricos
importantes para as práticas de leitura em sala de aula. O que se assume hoje como
leitura, de acordo com essa perspectiva, como explicam Marcuschi (2008), Koch e
47
Elias (2010) e Koch (2005), começou a se delinear no início dos anos 80, do séc.
XX, com pesquisas sobre leitura numa abordagem cognitiva. Por isso é importante
apresentar as principais características dessa abordagem para fundamentar melhor
o entendimento dos atuais pressupostos da leitura como um processo
sociocognitivo.
Estudos sobre processos cognitivos envolvidos na leitura mostraram que
esses são bem mais complexos do que um processamento linear de palavras. A
compreensão envolve a interação entre os conhecimentos do leitor e as informações
trazidas pelo texto, ou seja, um processo que funde dois movimentos de
interpretação, o ascendente (bottom-up ou de decodificação) e o descendente (top-
down ou de acionamento de conhecimento prévio do leitor).
Como explicam Kato (1995), Kleiman (1989) e Solé (1998), o leitor constrói
sentidos para o texto pela interação de seus conhecimentos prévios (de mundo,
linguístico e textual) com as informações do texto, num constante processamento
cognitivo. Nessa concepção, a leitura é vista como um processo de construção de
sentidos, pois um texto pode ter vários sentidos, sendo alguns explícitos e outros
não. Estes últimos precisam ser inferidos. O processo de inferência é outro aspecto
importante dessa abordagem e será detalhado mais adiante. “Processos cognitivos”
e “interação entre os conhecimentos do leitor e informações do texto” são palavras
chave que justificam o fato de essa concepção de leitura ser chamada de “Cognitiva”
ou “Interativista” ou “Interativa”, dependendo do autor.
Solé (1998) é uma das autoras que abordam em sua obra a perspectiva
interativista de leitura. Sobre o processo de construção de sentidos a partir da
atividade de leitura, explica:
[...] o significado que um escrito tem para o leitor não é uma tradução ou réplica do significado que o autor quis lhe dar, mas uma construção que envolve o texto, os conhecimentos prévios do leitor que o aborda e seus objetivos. [...] Para ler necessitamos nos envolver em um processo de previsão e inferência contínua, que se apoia na informação proporcionada pelo texto e na nossa própria bagagem, e em um processo que permita encontrar evidência ou rejeitar as previsões e inferências antes mencionadas. (SOLÉ, 1998, p. 22-23)
Portanto, essa concepção não critica ou despreza totalmente o ato de
decodificar, pois a decodificação acontece junto à construção de sentidos, que
envolve habilidades semânticas e sintáticas. Essa concepção pressupõe ainda que o
leitor não é um sujeito passivo diante do texto, pois é responsável ativo pela
48
construção do sentido, alguém que controla a compreensão, formulando, a partir do
texto e de suas habilidades, hipóteses, verificando-as durante a leitura. A leitura
passa a ser vista como atividade criativa. Solé (1998, p. 27) explica que, ao assumir
o controle da própria leitura e regulá-la, o leitor já coloca um objetivo para ela. Tanto
quanto essa autora, outros, como Kleiman (1989), destacam a importância de o
leitor ter objetivos de leitura.
Corroborando as colocações de Solé, Koch (2005, p. 96-97) afirma que os
vários tipos de conhecimentos mobilizados “on line” por ocasião do processamento
textual, se atualizam nos textos por meio de diversos tipos de estratégias
processuais. Para a autora, o processamento textual é, portanto, estratégico e as
estratégias cognitivas são estratégias do uso do conhecimento. Esse processo se
realiza de modo automático, inconscientemente. Ela explica que o leitor tem a
possibilidade de construir não somente o sentido intencionado pelo autor do texto,
mas também outros não previstos ou até mesmo não desejados, uma vez que esse
uso dependerá, em cada situação, dos objetivos do leitor, da quantidade de seu
conhecimento disponível, partindo do texto e do contexto, bem como de suas
crenças, opiniões e atitudes.
Visto que um texto não explicita todos os sentidos possíveis, pois eles não
estão apenas nos elementos explícitos (possíveis apenas no nível da decodificação),
muitas informações ficam implícitas. Por essa razão, Koch (2005, p. 97) também
menciona o fato de que diferentes interlocutores poderão construir diferentes
sentidos para um mesmo texto. A autora argumenta que as inferências constituem
estratégias cognitivas e que, por ocasião da produção, o próprio autor já as prevê,
pressupondo que o leitor preencherá essas lacunas sem dificuldades, levando em
consideração os seus conhecimentos prévios e o contexto. Fulgêncio e Liberato
(1992, p. 28) traduziram esse processo de levantamento de inferências como um
jogo:
A compreensão da linguagem é então um verdadeiro jogo entre aquilo que está explícito no texto (que é em parte percebido, em parte previsto) e entre aquilo que o leitor insere no texto por conta própria, a partir de inferências que faz, baseado no seu conhecimento do mundo.
E é nesse “jogo”, nesse processo de elaboração ativa de conhecimentos, que
se estabelecem as relações entre o que é dito e o que já é conhecido anteriormente,
dando origem à inferência. (FULGÊNCIO e LIBERATO, 1992, p. 29)
49
Kleiman (1989, p. 25) também aborda a importância das inferências para
relacionar as “diferentes partes discretas de um texto num todo coerente”. Ela atribui
à ativação do conhecimento prévio o papel essencial à compreensão, pois é em
decorrência do conhecimento sobre o assunto que o leitor possui, motivado pelos
elementos lexicais do texto, que se dá o processo inconsciente do leitor proficiente.
Como reflexo da importância dessas inferências, a autora aponta que “há evidências
experimentais que mostram com clareza que o que lembramos mais tarde, após a
leitura, são as inferências que fizemos durante a leitura” (KLEIMAN, 1989, p. 25), ou
seja, é justamente a contribuição dos conhecimentos de mundo durante o processo
de compreensão, num esforço inconsciente, que ficam armazenados em nossa
memória e não a simples atividade de decodificação.
Dessa forma, entende-se que um leitor proficiente desenvolverá estratégias
de leitura eficientes, de maneira que saiba relacionar seus conhecimentos já
adquiridos à leitura de um texto, em um processo de compreensão. Nesse sentido,
Solé (1998, p. 114) coloca a importância do papel do professor no ensino dessas
estratégias. As estratégias metacognitivas, ensinadas pelo professor, auxiliam um
leitor pouco proficiente a conduzir melhor sua leitura, usando conscientemente os
princípios já mencionados, por meio de procedimentos que visam a melhorar sua
compreensão leitora.
Kato (1985, p. 108) propõe duas estratégias metacognitivas de leitura: o
estabelecimento de um objetivo explícito para a leitura e a monitoração da
compreensão tendo em vista esse objetivo.
Além de Kato (1985), Kleiman (1989) também discute a importância de se
estabelecerem objetivos e propósitos para a leitura. Nesse sentido, Kleiman (1985,
p. 30 e 35) critica o contexto escolar, que muitas vezes não favorece o
estabelecimento desses objetivos, utilizando a leitura como pretexto para outras
atividades do ensino da língua, mas esquecendo a importância de, previamente,
estabelecer propósitos. Assim, ela entende que quando a leitura não surge de uma
necessidade para se chegar a um fim, não é propriamente uma leitura. Quando
lemos porque outra pessoa quer que leiamos, a atividade é mecânica e pouco tem a
ver com significado e sentido.
Ela ainda explica que a capacidade de estabelecer esses objetivos é uma
estratégia metacognitiva, de controle e de regulamento do próprio conhecimento. A
estratégia metacognitiva implica uma reflexão sobre o nosso conhecimento, uma
50
consciência de estar realizando determinado procedimento com determinado
objetivo. Outro importante resultado do estabelecimento de objetivos apontado por
Kleiman (1985) no processo de compreensão é a formulação e testagem de
hipóteses. Assim, o leitor realiza um controle consciente para atingir o objetivo de
compreensão utilizando estratégias metacognitivas de monitoração do
entendimento.
Não obstante esse modelo de leitura tenha trazido importantes contribuições
para a compreensão dos processos envolvidos na leitura e para o desenvolvimento
de habilidades de leitura dos alunos, ele entende a leitura como uma atividade
individual, considerando o contexto mais imediato da interação autor-texto-leitor, não
incluindo no processo de leitura e produção de texto os aspectos discursivos da
linguagem em um contexto sócio-histórico mais amplo. Como comenta Lopes Rossi
(2010), a abordagem cognitiva não ignora os aspectos sociais envolvidos na
compreensão, mas não os explora.
Um avanço em relação a essa abordagem foi promovido pelas considerações
mais recentes sobre o caráter sócio-histórico e dialógico da linguagem, a partir das
idéias do filósofo russo Bakhtin. Passamos a seguir a expor as características da
abordagem sociocomunicativa de leitura, que servirá de base teórica para esta
pesquisa.
2.2 Conceitos que contribuíram para a abordagem sociocognitiva de leitura
A partir dos anos 80, baseando-se em concepções enunciativas e discursivas
da linguagem, especialmente fundamentadas nos trabalhos dos autores do círculo
do filósofo russo Bakhtin, os estudiosos da linguagem passaram a entender a leitura
por meio de uma concepção sociocognitiva. O texto, agora entendido como unidade
real da comunicação verbal e parte de um elo de uma cadeia complexa de muitos
outros enunciados (BAKHTIN, 2000, p. 293), passa a ser considerado em um
contexto sócio-histórico, cultural e ideológico de produção e de circulação muito
mais amplo, no qual os sujeitos são entendidos como atores sociais.
Nesse sentido, Lopes-Rossi (2011) comenta que o leitor deve considerar o
texto como representante de um gênero discursivo específico, determinado por
aspectos sociocomunicativos (condições de produção, de circulação, temática,
propósito comunicativo), com características verbais e visuais específicas, ou seja, o
51
texto como evento, em sua situação real de interação. Todos esses elementos
constitutivos dos gêneros discursivos devem ser considerados na leitura. Para
realizar o complexo processo inferencial de compreensão, o leitor precisa ter
conhecimentos prévios de várias naturezas.
Particularmente, para compreendermos a abordagem sociocomunicativa de
leitura, é necessário conhecer a concepção de linguagem e os conceitos de gênero
discursivo e de dialogismo de Bakhtin (2000), conforme já explicitado no capítulo 1.
Assim, a linguagem, segundo essa concepção, é vista como um lugar de
interação, diferentemente da concepção de linguagem que a entende como
expressão do pensamento ou como instrumento de comunicação tão somente. Ao
produzir o discurso, já temos pré-estabelecidos nossos objetivos, bem como
levamos em consideração as características do gênero utilizado, adequando
aspectos linguísticos ou não-linguísticos, tais como o estilo e o vocabulário, de
acordo com o contexto de interação. Bakhtin afirma que a própria seleção que o
locutor faz ao produzir o discurso, de uma forma gramatical, já é um ato estilístico.
(BAKHTIN, 2000, p. 286)
Por isso, destaca-se a importância de se reconhecer a língua não mais
apenas como produto de um código a ser decifrado, mas sim como um organismo
vivo, passível de uma multiplicidade de sentidos inerentes ao contexto de vida dos
falantes de um determinado tempo e lugar social. Desse modo, lembramos
novamente as ideias do filósofo russo: segundo Bakhtin (2000, p. 326), uma análise
linguística que queira englobar todos os aspectos do estilo deve atentar para “o todo
do enunciado e, obrigatoriamente, analisá-lo dentro da cadeia da comunicação
verbal de que o enunciado é apenas um elo inalienável.”
Lembrando que os textos escritos se fazem presentes em vários períodos da
história, significando por muitas gerações, Marcuschi (2008) e Koch (2005) também
optam pela concepção de linguagem que a entende como lugar de interação (2005,
p. 100), concebendo o texto como evento construído na relação situacional (2008, p.
237).
Nesse sentido, Marcuschi (2008) faz uma importante colocação:
Escrever não é comunicar ou transmitir para o papel algo que está na mente e no mundo e que deve ser captado por outras mentes. Pois se a língua não é um sistema de representação ou espelhamento da realidade ou de ideias, a escrita é uma invenção permanente do mundo e a leitura é uma reinvenção. (MARCUSCHI, 2008, p. 243)
52
Portanto, a partir dessa concepção do texto compreendido como um evento
comunicativo, em permanente elaboração ao longo de sua história e das diversas
recepções pelos diversos leitores (MARCUSCHI, 2008, p. 242), faz-se importante
entender a relação que se estabelece entre leitura e concepção de linguagem
sociocognitiva. Importante entendermos também quais foram as mudanças ocorridas
com relação à concepção de conhecimento prévio e quais as implicações para o
entendimento do processo de compreensão antes, durante e depois da leitura.
Resumindo as concepções de leitura e suas principais contribuições para o
entendimento do processo de construção de sentidos, organizamos quadro a seguir:
53
Quadro 6 : Concepções de leitura
Concepção de
leitura
Principais pressupostos
Movimentos de compreensão
Como atividade de DECODIFICAÇÃO
O texto é um código a ser decodificado
O sentido está contido no texto Crítica: Entende que o leitor não cria nem constrói sentidos durante a compreensão.
A informação vai do texto para o leitor (processamento Bottom up)
Como atividade INTERATIVISTA ou COGNITIVA
Um texto pode ter vários sentidos: explícitos ou não
Leitura é um processo de construção de sentidos
O leitor usa estratégias cognitivas e metacognitivas
O leitor faz inferências com base em seus conhecimentos prévios e nas informações do texto
Crítica: entende a leitura como atividade individual.
Funde dois movimentos:
Ascendente (bottom up) +
Descendente (top down) Ou seja: Interação entre os conhecimentos do leitor e as informações trazidas pelo texto
Como atividade SOCIOCOGNITIVA
O sentido de um texto é construído na interação texto-sujeitos
A leitura é uma atividade social, situada
O leitor usa estratégias cognitivas e metacognitivas
O texto é um evento comunicativo em sua situação real de uso.
O leitor mobiliza conhecimentos prévios sobre o assunto, sobre o gênero e sobre toda a situação de comunicação
Os conhecimentos prévios são construídos socialmente
O leitor faz inferências
O leitor responde ativamente, dialogicamente, ao texto
Funde dois movimentos:
Ascendente (bottom up) +
Descendente (top down) Considera a interação entre os conhecimentos do leitor e as informações trazidas pelo texto, porém parte de conceitos de base socioenunciativa sobre língua, conhecimento prévio, contexto, texto (como exemplar de um gênero discursivo)
54
2.3 O conceito de conhecimento prévio
A mudança e a elaboração de novos conceitos acerca da linguagem,
promovidas pelas ciências cognitivas acabaram por afetar também o conceito de
conhecimento prévio e o conceito de inferência. O texto é visto como um lugar de
interação entre sujeitos, pois nele se constituem e são constituídos, uma vez que
participam da construção do significado, compartilhando propostas de sentido nos
mais diferentes contextos sociocognitivos.
Comentando a abordagem sociocognitiva de leitura, Koch e Elias (2010)
destacam o conceito bakhtiniano de dialogismo. Explicam que, na concepção
interacional (dialógica) da língua, os sujeitos agem dialogicamente, pois o sentido de
um texto é construído na interação texto-sujeitos. Os sujeitos são vistos como
construtores sociais, considerando o próprio lugar da interação e da constituição dos
interlocutores, ou seja, deve-se ter sempre como pano de fundo o contexto de
produção e de circulação dos textos (KOCH e ELIAS, 2010, p.10). Portanto, as
autoras entendem a leitura como atividade de produção de sentidos, na qual se
colocam em ação várias estratégias sociocognitivas.
Koch e Elias (2010, p. 39) explicam-nos que durante a atividade de leitura
colocam-se em ação várias estratégias sociocognitivas, por meio das quais se
realiza o processamento textual. As estratégias mobilizam vários tipos de
conhecimento que o leitor tem em sua memória durante a leitura, simultaneamente,
sem se dar conta, que o levam à compreensão a partir de hipóteses de
interpretação. As autoras remetem-nos a uma outra obra de Koch (2002), na qual a
autora afirma que, para o processamento textual, é necessário recorrermos a “três
grandes sistemas de conhecimento”. O conhecimento linguístico, o enciclopédico e o
conhecimento interacinal.
Segundo as autoras, o conhecimento linguístico é todo o conhecimento que
temos acerca da gramática e do léxico. Por meio dele, é possível compreender “a
organização do material linguístico na superfície textual; o uso dos meios coesivos
para efetuar a remissão ou sequenciação textual; a seleção lexical adequada ao
tema ou aos modelos cognitivos ativados.”.
Assim, por exemplo, podemos entender que, já a partir da leitura do título, é
possível levantar hipóteses somente pelo léxico. Assim, também, ao nos atentarmos
para as locuções adverbiais ou para as conjunções dentro do texto, podemos fazer
55
antecipações das ações das personagens ou dos acontecimentos; ao observarmos
a escolha da variação lingüística, seja pelo narrador ou pela personagem, é possível
fazer inferências com relação ao local de onde eles falam, e até mesmo criticar, se
está adequada ou não à personagem, ao tema ou ao público alvo daquela leitura.
O conhecimento enciclopédico ou o conhecimento de mundo, conforme
apontado pelas autoras (2010, p. 42), são aqueles referentes aos conhecimentos
vivenciados pelos leitores, ou seja, de acordo com todas as suas experiências de
vida familiar e social. Ao serem mobilizados esses conhecimentos, um texto ganhará
sentidos, que podem ser múltiplos, pois para um mesmo texto temos inúmeros
leitores, de múltiplas experiências, identidades e crenças. Assim, algum leitor poderá
não conseguir atingir qualquer sentido para um texto, mantendo-se no nível de
decodificação. Se, por exemplo, o texto a ser lido mantém diálogo com outro texto,
por meio da intertextualidade, aquela leitura pode não fazer parte de seu
conhecimento de mundo, a compreensão do texto estará, então, comprometida.
O conhecimento interacional engloba os conhecimentos ilocucional,
comunicacional, metacomunicativo e superestrutural (KOCH e ELIAS, 2010, p. 45).
O conhecimento ilocucional é aquele que nos permite reconhecer os objetivos
ou propósitos pretendidos pelo autor do texto em uma determinada situação
interacional. (KOCH e ELIAS, 2010, P. 46).
O conhecimento comunicacional, segundo as mesmas autoras, está
relacionado à quantidade de informação necessária para que haja a interação, à
adequação da variedade lingüística ao propósito comunicativo e à adequação do
gênero textual à situação comunicativa. Quando se desconsidera quaisquer desses
itens corre-se o risco de que a compreensão seja prejudicada.
O conhecimento metacomunicativo é aquele que permite ao locutor assegurar
a compreensão por meio de vários tipos de ações lingüísticas, tais como o uso do
aposto, o uso de expressões em realce (em letras maiúsculas de tamanho maior) ou
os comentários sobre o próprio discurso. (KOCH e ELIAS, 2010, p. 52).
As autoras finalizam apontando o conhecimento superestrutural ou o
conhecimento sobre gêneros textuais como aquele que permite ao leitor o
reconhecimento de textos como exemplares adequados aos diversos eventos da
vida social, de acordo com sua ordenação textual e com os objetivos pretendidos,
distinguindo-os dos demais. Esse tipo de conhecimento permite ao leitor distinguir
uma fábula de um conto, ou um conto de um romance, entendendo o texto como um
56
gênero discursivo, ou seja, sob a perspectiva bakhtiniana: construído nas interações
sociais, imbuído de funções sociais.
Assim, o conceito de conhecimento prévio aparece de modo muito mais
abrangente, uma vez que envolve relações sociais, histórico e culturalmente
vivenciadas por e entre os indivíduos de uma determinada sociedade. Nesse
sentido:
Os conjuntos de conhecimentos, socioculturalmente determinados e vivencialmente adquiridos, sobre como agir em situações particulares e realizar atividades específicas vêm a construir o que chamamos de “frames”, “modelos episódicos” ou “modelos de situação”. (KOCH e ELIAS, 2010, p. 56).
Podemos concluir, a partir das colocações das autoras, que os modelos são
constitutivos do contexto. É a partir desse conjunto de conhecimentos apontados
pelas autoras que nos aproximamos do sentido de um texto, durante o processo de
sua compreensão. Quando um leitor mobiliza quaisquer desses conhecimentos
socioculturalmente adquiridos, ele está se utilizando de estratégias para a
compreensão de um texto.
Portanto, enquanto para a abordagem cognitivista o conhecimento era um
conjunto de dados armazenados individualmente e acionados para resolução dos
problemas, para a abordagem sociocognitiva de leitura o conhecimento é muito mais
abrangente, pois envolve não apenas as operações que acontecem nas mentes dos
indivíduos, mas várias ações conjuntas por eles praticadas. Koch (2005, p. 100)
ainda reforça a importância da qualidade da ação para que o conhecimento seja
significativo. O conceito de conhecimento prévio, pois, configura-se como o
elemento mais importante nesse processo de compreensão, como também o é o
conceito de inferência.
2.4 A importância do conhecimento prévio para o processo inferencial
Corroborando as afirmações de Koch e Elias (2010), Marcuschi (2008, p. 242)
lembra-nos que o texto já não é mais visto como um produto acabado ou como
depósito de informações. Segundo o autor, o texto agora é entendido como um
evento ou um ato enunciativo, “acha-se em permanente elaboração ao longo da
história e das diversas recepções pelos diversos leitores”, em atividades situadas.
Os contextos (cognitivo, social, histórico, cultural) de produção e de recepção são
57
partes importantes no processo de compreensão: quanto mais um leitor é exposto à
diversidade de eventos de interação social, melhor será sua compreensão. O autor
apresenta em seus estudos uma importante conclusão com relação à interação
entre aspectos discursivos, leitor e texto no processo de compreensão dos sentidos:
Portanto, se a língua é atividade interativa e não apenas forma, e o texto é um evento comunicativo e não apenas um artefato ou produto, a atenção e a análise dos processos de compreensão recaem nas atividades, nas habilidades e nos modos de produção de sentido bem como na organização e condução das informações. Como o texto é um evento que se dá na relação interativa e na sua situacionalidade, sua função central não será a informativa. Os efeitos de sentido são produzidos pelos leitores ou ouvintes na relação com os textos, de modo que as compreensões daí decorrentes são fruto do trabalho conjunto entre produtores e receptores em situações reais de uso da língua. (MARCUSCHI, 2008, p. 242)
Nesse sentido, a compreensão dos textos deve ser entendida além de uma
simples atividade cognitiva. Visto ser o texto um lugar de interação, a compreensão
envolve uma participação interativa do leitor, cuja reflexão requer uma atividade
intensa e múltipla de produção de sentidos, tornando-o competente para agir com
criticidade em sociedade.
É importante ressaltar, também, que Marcuschi (2008) alerta-nos de que é
necessário cuidado na construção de sentidos diante de um texto. Não obstante um
texto abra a possibilidade para uma multiplicidade de sentidos por meio das
inferências, existem limites para a compreensão textual, por isso a relevância de se
observar sua situacionalidade, tomando o texto como um evento comunicativo em
que convergem ações linguísticas, sociais e cognitivas.
Os conhecimentos prévios, portanto, segundo a concepção sociocognitiva
não englobam somente os conhecimentos de um indivíduo isolado no processo de
compreensão, levando em consideração apenas o psicológico, mas do indivíduo
participante de uma ação colaborativa, na qual o ato de ler sustenta-se em contextos
históricos e culturais. Marcuschi (2008, p. 238) adota a metáfora da compreensão
como construção coletiva: “Compreender um texto é realizar inferências a partir das
informações dadas no texto e situadas em contextos mais amplos.” (MARCUSCHI,
2008, p. 239). O conceito de inferência nasce, pois, nesse processo de
compreensão ativa e interacional, onde os conhecimentos partilhados irão influenciar
na construção dos sentidos, participando o leitor como um coautor.
58
Na maioria das vezes, quando o aluno ainda não está preparado para sozinho
levantar seus conhecimentos para o entendimento de um texto, ele necessita da
ajuda do professor, para que desperte sua sensibilidade para utilizar as estratégias.
Por isso, a leitura em conjunto do professor com a sala de aula favorece essa
prática, pois ele pode interferir nesse processo de entendimento do texto,
fornecendo objetivos para a leitura, por exemplo, a partir de relações com o
conhecimento prévio trazido pelo aluno. Essa ideia remete-nos às colocações de
Kleiman (1985) no tocante às estratégias metacognitivas de monitoração do
conhecimento, as quais são de grande importância no processo de compreensão de
um texto, pois, conforme nos é argumentado pela autora, quando o leitor estabelece
também objetivos para a leitura, ele está exercendo um controle consciente no
processo de compreensão.
Cumpre-nos lembrar o conceito de leitura que nos é colocado por Koch e
Elias (2010, p. 11):
[...] A leitura é, pois, uma atividade interativa altamente complexa de produção de sentidos, que se realiza evidentemente com base nos elementos linguísticos presentes na superfície textual e na sua forma de organização, mas requer a mobilização de um vasto conjunto de saberes no interior do evento comunicativo.
Assim, compartilhamos com as ideias das autoras citadas e entendemos que
a leitura passa a ser compreendida como um evento e o professor, segundo Kleiman
(2006, p. 87), torna-se um agente do letramento, “[...] um agente social e, como tal, é
conhecedor dos meios, fraquezas e forças dos membros do grupo e de suas
práticas locais, mobilizador de seus saberes e experiências [...]”.
Um mesmo texto abre um leque de possibilidades de leitura, pois no processo
de construção de sentidos um leitor mobiliza importantes domínios com relação à
língua e diferentes conhecimentos, para os diferentes objetivos e níveis de leitura
que se pressupõe necessário para a compreensão, daí o fundamental papel do
professor como mediador, desvelando caminhos para um encontro mais íntimo com
a leitura. No caso desta pesquisa, por meio da Literatura.
2.5 A leitura de textos literários: competências e funções
Faria (2010, p. 12) apresenta em sua obra dois especialistas franceses que se
debruçaram sobre a prática de leitura dos textos literários para crianças e jovens na
59
França: Poslaniec e Houyel. Esses autores afirmam que existem competências
ligadas à compreensão do texto e que a formação do leitor na infância não pode
prescindir delas. Os autores apontados por Faria (2010, p. 18), afirmam a existência
de duas fontes de onde provêm essas competências: a família e a escola.
Segundo esses autores, há quatro competências que as crianças já têm antes
da alfabetização, ou seja, competências advindas da experiência familiar:
1. o domínio da língua oral;
2. o domínio da capacidade abstrata de associar. Esse domínio está
relacionado às competências fundamentais na leitura das imagens que se
ligam às palavras do texto ou àquelas que são usadas quando da conversa
com o adulto sobre a página ilustrada;
3. o conhecimento sobre objetivos da leitura, em que a criança tem “uma
noção, mesmo inconsciente, sobre para que a leitura pode lhe servir”, visto
que já teve contatos com os mais diversos textos escritos e imagens em sua
vida familiar e social, como frases de propagandas, cartazes nas ruas etc.;
4. o conhecimento intuitivo de que ler é compreender, em que a criança “já
sabe que ler é compreender”, que “há um sentido global a descobrir”.
Essas competências já são trazidas pela criança à escola, em diferentes
graus de domínio: umas mais, outras menos, visto que as realidades vivenciadas por
cada criança são diferentes.
Faria (2010, p. 19) aponta, então, para a importância do papel que a escola
tem em ampliar essas competências que a criança já possui antes mesmo de serem
alfabetizadas, destacando nesse sentido a importância da contribuição que o texto
narrativo literário tem a oferecer:
Sabemos que o texto literário narrativo oferece ao leitor a possibilidade de “experimentar uma vivência simbólica” por meio da imaginação suscitada pelo texto escrito e/ou pelas imagens. “A literatura (e portanto a literatura para a juventude) é portadora de um sistema de referências que permite a cada leitor organizar sua função psíquica com o vivido e a sensibilidade que lhe é própria”. Tornar-se leitor de literatura é um “vaivém constante entre realidade e ficção que permite avaliar o mundo, se situar nele”. (FARIA, 2010, p. 19)
Embora nossa pesquisa não esteja voltada para as crianças das séries
iniciais, vale lembrar que todos os nossos alunos já passaram por essas séries e
trazem em sua identidade a bagagem de leitura que lhes fora proporcionada
60
naquelas séries, que podem ser marcadas por experiências relevantes para o resto
de suas vidas.
No entanto, muitas vezes falta, ou ainda é insuficiente, esse encontro mais
íntimo com as narrativas literárias nas séries iniciais da vida escolar, pois muitas
vezes o profissional da educação se atém a expor conteúdos gramaticais ou a
trabalhar apenas com o livro didático, deixando o texto literário para um segundo
plano, ou seja, deixando de mostrar o prazer do texto para as crianças e o valor da
linguagem literária, deixando de mostrar toda a vida que existe dentro dele. Não
queremos aqui criticar o trabalho desses profissionais, visto que os conteúdos
gramaticais e o livro didático também são importantes, mas apenas alertar para o
fato de que talvez esses materiais não sejam os mais importantes e que
provavelmente falte o contato mais íntimo e prazeroso com o texto literário,
enquanto trabalho com a linguagem, enquanto representação da realidade.
Se prestarmos atenção às questões atuais das avaliações institucionais e às
questões de vestibulares, por exemplo, podemos observar que as competências que
se requerem desse aluno avaliado estão além dos conteúdos, estão voltadas para a
sensibilidade, para as experiências como seres humanos participantes de uma
sociedade viva e em transformação.
É importante, assim, que o professor possua um íntimo encontro com os
textos literários. Conhecer o texto literário deve ser atitude constante de um
professor ávido por formar leitores proficientes, em especial, de um professor de
língua materna. Portanto, em razão do exposto no parágrafo anterior, paralelamente
à ação de conhecer a realidade de seus alunos e de seus anseios, é preciso
conhecer materiais de leitura literária que possam vir a ser oferecidos. A partir desse
conhecimento, ampliam-se as possibilidades de motivação aos alunos, seja por meio
de indicação de uma leitura, ou por meio de uma roda de leitura, a princípio, com o
objetivo de despertar o interesse para ler, sem a tarefa de responder questões pré-
estabelecidas, como nos livros didáticos.
Não raro, a atividade de diagnosticar a realidade de leitura dos alunos em
salas de aula do Ensino Fundamental (do 6º ao 9º ano) se torna uma atividade árdua
e complexa, pois o professor tem, no máximo, a carga horária semanal de 6 horas e
essas salas são muitas vezes numerosas, dificultando uma relação mais estreita
entre professor e aluno. Por outro lado, não obstante possa haver certa dificuldade,
essa é uma etapa necessária, a fim de que se atente também aos diferentes níveis
61
de leitura em relação à recepção dos textos. A respeito disso, sobre os níveis de
leitura para a recepção do texto literário infanto-juvenil, muitos estudiosos já se
debruçaram, propondo diferentes classificações. Dentre elas, Faria (2010, p. 14)
destaca a classificação proposta por três autores: Maria Helena Martins; Baudelot,
Cartier e Detrez; e Poslaniec e Houyel.
Em primeiro lugar, Faria (2010) traz as ideias de Martins (1982), que
considera que há três níveis de leitura: sensorial, emocional e racional. O nível
sensorial abrange apenas os aspectos externos de recepção, tais como o tato e a
visão, ou seja, o prazer de se ter o livro em mãos, com interessantes ilustrações e
papel agradável. O nível emocional “é aquele que incita a fantasia e liberta as
emoções” (p. 36), o plano das emoções, portanto. Por outro lado, o nível racional
está relacionado ao plano intelectual; é aquele que pressupõe que o leitor já possua
uma carga de conhecimento formal relacionado ao texto literário, ao tratamento dado
ao tema, às ideias dos autores, entre outros aspectos. Martins (1982) afirma que
esses níveis interagem nas atividades de leitura e a respeito disso, Faria (2010, p.
15) alerta que, embora a obra de Martins não apresente uma proposta pedagógica
para o trabalho com a literatura infantil em sala de aula, deixa implícito que “o
professor não deve tratar cada um daqueles três níveis de leitura separadamente”,
uma vez que conclui que “o homem lê como em geral vive, num processo
permanente de interação entre sensações, emoções e pensamentos”.
A seguir, Faria (2010) apresenta Baudelot, Cartier e Detrez, que publicaram
na França, em 1999, uma pesquisa sobre leitura cuja realização se deu no período
de quatro anos, acompanhando mil alunos, entre 14 e 18 anos, em escolas públicas
francesas. A partir da análise das entrevistas feitas durante a pesquisa, eles
distinguiram duas modalidades de leitura entre aqueles alunos: a leitura erudita e a
leitura comum.
Na leitura comum, a relação do leitor com a obra é afetiva, pois se manifesta
uma identificação do leitor com a história, com os temas, com as personagens,
promovendo a formulação de “julgamentos éticos a propósito de situações ou
personagens, prolongando ao mesmo tempo nas leituras, experiências ou
questionamentos pessoais” (BAUDELOT; CARTIER; DETREZ, 1999 apud FARIA,
2010, p. 16). Esse tipo de leitura é considerado pela autora como muito válido, por
seu caráter formador ou ético.
62
A “leitura erudita é aquela consagrada pela tradição humanista e assimilada
pela escola tradicional como a única leitura válida”. Sua finalidade prioriza a estética,
uma vez que o leitor se mantém distante do texto. Existe apenas a fruição estética,
“segundo os padrões eruditos estabelecidos pela crítica literária de seu tempo”. De
acordo com os pesquisadores franceses, esse tipo de leitura coincide com a
proposta de leitura literária dos Parâmetros Curriculares do Ensino Fundamental,
pois ela reúne contemplação e análise estrutural.
Por fim, Faria (2010, p. 16) traz a classificação proposta por Poslaniec e
Houvel, que resumem a leitura em três níveis:
1. leitura comprometida, semelhante à leitura emotiva de Martins (1982), em
que as crianças se identificam com as personagens, em permanente
diálogo entre livro e leitor;
2. leitura aprofundada pela experiência pessoal; a que é feita por um adulto.
Nesta, a leitura emotiva também pode acontecer, até mesmo
concomitantemente. Nela o leitor já possui certa “maturidade” para a
leitura, sendo capaz de discernir as conotações presentes no texto, a
ideologia, as questões de ética colocadas pelo tema, situá-lo em seu
contexto histórico, prevalecendo assim a fruição de uma leitura
espontânea, ligada às experiências de vida do leitor;
3. leitura literária, que seria a capacidade de perceber o modo de construção
de um livro, a que os autores nomeiam de “prazer do tipo intelectual”.
Faria (2010, p. 17) considera a proposta destes últimos autores como uma
indicação pedagógica básica ao professor, uma vez que entende que desde o início
do ensino fundamental esses três modos de leitura podem ser praticados sem uma
ordem de sequência obrigatória. A priorização de um ou outro nível durante o
trabalho com o aluno dependerá do contexto de trabalho do professor, das
competências de leitura que são inerentes às crianças de sua realidade de ensino-
aprendizagem. O importante é que haja o domínio dos três, que, consequentemente,
será o responsável pelo comportamento de um leitor autônomo.
Resumindo os níveis de leitura apresentados por Faria (2010), com base nos
vários autores citados, temos o seguinte quadro:
63
Quadro 7: Níveis de leitura
Autor Níveis de leitura Observações
MARTINS (1982) Leitura sensorial
Leitura emocional
Leitura racional
Segundo Martins (1982), esses níveis de leitura não acontecem separadamente.
BAUDELOT, CARTIER, DETREZ (1999)
Leitura erudita
Leitura comum
Faria (2010) considera a leitura comum muito válida por seu caráter formador ou ético.
POSLANIEC e HOUVEL (1999)
Leitura comprometida
Leitura aprofundada
Leitura literária
Faria (2010) considera essa uma indicação pedagógica básica ao professor.
Não existe uma fórmula mágica para que o trabalho pedagógico com a leitura
transforme alunos com dificuldades na leitura em leitores eficientes, mas é
importante esclarecer que esta pesquisa visa a auxiliar o professor a encontrar
caminhos que ajudem os seus alunos (cada aluno vem de uma realidade diferente,
não podemos esquecer isso) a dominarem todos e quaisquer níveis de leitura, a
tornarem-se leitores verdadeiramente proficientes. É o que todos nós almejamos. No
Ensino Fundamental, ao qual se destina esta pesquisa, buscamos ajudar os alunos
a fazerem uma leitura de contos comprometida e aprofundada, nos termos de
Poslaniec e Houvel (1999).
2.6 A leitura do gênero discursivo conto em sala de aula
Pelo exposto, podemos concluir que promover atividades de leitura em sala
de aula exige atenção ao contexto em que elas serão aplicadas (conhecimento
prévio do aluno, suas experiências de vida familiar e comunitária, idade, sexo),
conforme já vimos anteriormente. Mas, sobretudo, é necessário planejamento por
parte do professor, dosando e aprofundando os elementos que compõem o gênero
de acordo com o nível de desenvolvimento de leitura atingido pelos alunos. Esse
planejamento deve levar também em consideração que o estudo dos gêneros na
escola, neste caso o conto, deve envolver os alunos em atividades que diminuam a
distância entre os textos escritos e o leitor. Isso significa que devemos estar atentos,
além dos aspectos cognitivos, às questões afetivas que envolvem o processo de
leitura em sala de aula.
64
Nesse sentido, Renda e Tápias-Oliveira (2007, p. 325) ressaltam que o
conhecimento adquirido por meio de atividades obrigatórias acaba na própria sala de
aula, enquanto que os adquiridos em atividades prazerosas perpetuam-se em
interações extra-classe. Fundamentadas no pensamento de Vygotsky (2004, p. 163),
segundo o qual “toda aprendizagem só é possível na medida em que se baseia no
próprio interesse da criança”, as autoras enfatizam que o ato educativo deveria
“incorporar o interesse dos alunos”. Sendo assim, podemos dizer que o professor
tem a função de impulsionar os alunos aos desafios do conhecimento, incentivando
a curiosidade, para que, dessa forma, eles possam dar saltos, desenvolvendo
habilidades e competências leitoras.
Existem ainda outros autores que condenam o costume aparentemente
comum nas escolas de impor a leitura de textos literários ou qualquer outro tipo de
texto tão somente por obrigação, como atividade mecânica. Entre esses autores,
transcrevemos aqui a colocação de Kleiman (1989):
Cabe lembrar que a leitura que não surge de uma necessidade para chegar a um propósito não é propriamente leitura; quando lemos porque outra pessoa nos manda ler, como acontece frequentemente na escola, estamos apenas exercendo atividades mecânicas que pouco têm a ver com significado e sentido. (KLEIMAN, 1989, p. 35)
Mais à frente a autora afirma que não condena o preestabelecimento de
objetivos pelo professor antes da leitura; pelo contrário, ela acredita que criar
objetivos para um leitor iniciante, que ainda não adquiriu a proficiência, pode
favorecer o aprendizado para que ele próprio possa vir a estabelecer seus objetivos
quando do processo de leitura, desenvolvendo estratégias metacognitivas
necessárias e adequadas à atividade de leitura. (KLEIMAN, p. 35)
Diante disso, podemos afirmar que o uso das estratégias nas aulas de língua
materna, especialmente nas aulas em que nos dedicamos à leitura, favorece o
interesse do aluno na compreensão dos textos, uma vez que cria um ambiente de
“sede” (VYGOTSKY, 2010, p. 145) que antecede a leitura. Segundo Vygotsky (2010,
p 145), “o momento da emoção e do interesse deve necessariamente servir de ponto
de partida a qualquer trabalho educativo”.
A leitura do conto utilizada em sala de aula como instrumento de ensino-
aprendizagem torna-se uma importante atividade para desenvolver a capacidade
imaginativa e crítica dos alunos, uma vez que as narrativas literárias são
65
representações da realidade dos seres humanos, são verossimilhantes. O professor,
ao levantar hipóteses previamente à leitura junto aos alunos, retira o caráter de
obrigatoriedade anteriormente criticado pelos estudiosos, ao mesmo tempo em que
fomenta o interesse pela leitura, dando sentido ao ato de ler, entendendo que ler não
é simplesmente decodificar, que a leitura implica o entendimento de outras
possibilidades, tais como as propostas do autor e a crítica à temática, por exemplo.
Naspolini (2009) produziu uma obra destinada a professores do Ensino
Fundamental que traz importantes caminhos para um trabalho pedagógico com a
leitura que vise a ampliar as possibilidades cognitivas da criança. Em suas
colocações ela aponta que o trabalho escolar deve considerar três enfoques no
decorrer das atividades de leitura: o enfoque conteudístico, o enfoque estruturalista
e o enfoque discursivo. Ela denomina a cada uma dessas possibilidades de leitura
de enfoque de compreensão (NASPOLINI, p. 46, 2009).
A estudiosa na área da Psicologia da Aprendizagem afirma que quando
lemos, extraímos informações que são oferecidas pelo conteúdo, pela estrutura e
pela análise do discurso. Assim, o enfoque conteudístico acontece quando o aluno é
levado a compreender a mensagem do texto e a responder a questões referentes ao
conteúdo. Nesse enfoque o aluno tão somente reproduz as palavras e as ideias do
texto, há somente o aspecto decodificador do texto, não havendo elaboração do
leitor. No enfoque estruturalista, o aluno é levado a identificar aspectos e elementos
estruturais de um texto, como no caso do conto: o clímax, o desfecho, as
personagens, o espaço, por exemplo. (NASPOLINI, 2009, p. 47-48). Já o enfoque
discursivo é o que prevê uma interação entre leitor e texto. “Isso significa que leitor e
texto se influenciam mutuamente.” (NASPOLINI, 2009, p. 49). Nesse enfoque, o
processo de leitura visa a buscar o efeito que o texto tem sobre o aluno, priorizando
a leitura dialógica em que a atitude responsiva do leitor frente ao texto é significante.
Para a autora (2009, p. 51), um trabalho que leva em consideração esses três
enfoques requer atividades que explorem o conteúdo, a estrutura, a antecipação, a
transformação, a inferência, a crítica, a extrapolação, a resolução de problemas e
sentimentos, em um processo de “destrinchar textos”. O trabalho com a leitura de
contos nos permite a elaborar questões que englobem todos esses procedimentos
de compreensão.
O “destrinchar” dos contos, portanto, envolve uma análise de todos os seus
elementos estruturais, tais como, personagens, tempo, espaço, ações, mas sem se
66
esquecer de extrapolar esse nível da superfície do texto para inferências, críticas,
hipóteses que tornem a leitura mais interessante ao aluno, de maneira que seu
mundo particular de experiências possa intervir também, ou talvez principalmente,
na construção dos sentidos do texto.
Com relação a esse papel ativo do leitor na leitura de contos, em específico,
pelo favorecimento de sua extensão curta, Silva (2009, p. 43) afirma:
A mobilização intensiva da atenção do leitor, que responde ativamente completando lacunas, tirando conclusões e confrontando a todo momento as imagens apresentadas com as de seu próprio repertório cultural, dificilmente se efetua com a mesma eficiência numa narrativa mais estendida, até mesmo por causa do necessário fracionamento de sua leitura em diversas sessões. A brevidade, a interação texto/leitor, assim como o efeito emocional que provoca, aproximam o conto simultaneamente do texto dramático e do texto lírico.
É por meio dessa impressão descrita por Silva (2009, p. 43) que podemos
concluir que o conto, como leitura a ser trabalhada em sala de aula, favorece a
aproximação do aluno à arte literária, possibilitando mais sua fruição. O conto é um
texto breve e intenso. Ao professor, cabe estimular os alunos à leitura dos contos,
seja ela individual e silenciosa, seja ela estabelecida em um ambiente de interação1,
como, por exemplo, propondo atividades em grupo no qual os membros possam
pensar, falar, perguntar e discutir sobre:
elementos do conto que retomam e representam as suas próprias
experiências de vida;
questões como a forma, o conteúdo ou o estilo que revelam as características
da época em que a obra foi escrita;
sentimentos ou valores percebidos nas atitudes das personagens.
Desse modo, é possível propor uma intensa comunhão com o texto literário
de maneira que os alunos se apropriem do texto por meio de uma atividade
interativa2, na qual terão a oportunidade de indagar e ensinar uns aos outros,
dialogando vidas. Talvez esse também seja um caminho para que os alunos venham
1 Segundo Tishman, Perkins e Jay (1999), as disposições para o pensar são adquiridas no contexto
de um ambiente cultural e são influenciadas por este contexto; as disposições são cultivadas todo o tempo mediante a interação social. De acordo com os autores (1999, p. 60), “a meta em uma sala de aula não é tanto ensinar disposições para o pensar, mas sim cultivar disposições para o pensar dentro do contexto de uma cultura.” 2 Nesse sentido, Vygotsky (1998) teoriza a respeito da importância das interações sociais para a
constituição do indivíduo, razão pela qual também damos destaque às atividades sociointerativas para a aprendizagem significativa.
67
a descobrir e a redescobrir toda a vida existente dentro do texto literário,
preparando-os para fazerem suas próprias escolhas como leitores proficientes,
preparando-os leitores críticos e atentos para a vida em sociedade.
2.7 O texto escrito e a imagem
Não obstante seja pouco comum encontrarmos imagens em livros de contos
para a faixa-etária dos alunos de 7ª e 8ª séries (8º e 9º anos), que são o público a
quem irá se dirigir a proposta de nossa pesquisa, abrimos aqui um subtítulo para
relembrarmos algumas ideias a respeito da leitura de imagens, que podem aparecer
em determinados contos. Essas imagens, normalmente aparecem marcando as
cenas da narrativa, especialmente em livros didáticos e paradidáticos. É importante
que o professor esteja atento para essas ilustrações, pois elas podem enriquecer o
processo de compreensão das sequências narrativas, por meio da interação em sala
de aula a fim de que se estimule o pensar, o sentir3, o questionar e o opinar.
Sobre a importância da imagem para a construção do sentido de um texto,
Lerner (2008, p. 21) afirma que, por meio dela, o leitor faz antecipações sobre o
sentido do que está lendo e tenta verificá-las recorrendo à informação visual.
As ideias de Faria (2010, p. 39) também vão ao encontro das afirmações
acima, uma vez que ela explica que os livros em que aparecem as ilustrações,
acompanhadas das histórias, apresentam dupla narração: o texto escrito e a
imagem.
Faria (2010, p. 40) ainda argumenta que a relação entre a imagem e o texto
poderá ser de repetição e/ou de complementaridade, o que dependerá dos objetivos
do livro e da própria concepção do artista sobre ilustração do livro infantil. Assim, ela
conclui que quando um livro não tem função pedagógica, como auxiliar na
alfabetização, a ilustração, para ser considerada boa, deve ser de
complementaridade, dizer o que a outra linguagem não atinge por sua própria
constituição.
Quando a imagem é de repetição, especialmente nos casos dos livros de
histórias infantis, a criança identifica na imagem o que foi lido pelo adulto, cabendo a
3 Conforme Vygotsky (2010, p. 139), a emoção é um chamamento à ação ou uma renúncia a ela. O
autor (2010, p. 143) nos lembra de que “as reações emocionais exercem a influência mais substancial sobre todas as formas do nosso comportamento e os momentos do processo educativo.” A emoção é, portanto, fator importante em um processo de construção do conhecimento.
68
este interagir com a criança no momento da leitura, ampliando a leitura para além do
texto. (FARIA, 2010, p. 41). Já quando a imagem é da complementaridade, o texto
escrito e a ilustração têm funções diferentes, cabendo ao texto escrito as
articulações indispensáveis à narrativa, como as que indicam tempo, ou elementos
de causa e efeito, além das revelações quanto às personagens, aos ambientes, aos
objetos, não deixando margens à ambiguidade que a imagem poderia vir a produzir.
Em alguns casos, quando o texto é mais longo, é o elemento principal da
narrativa, Faria aponta que a ilustração terá a finalidade de descanso do texto
escrito, fixando momentos-chave na narrativa, simplesmente tornando a leitura mais
prazerosa e diminuindo o esforço, estimulando o prosseguimento. (FARIA, 2010, p.
42)
Para finalizar este tópico, é importante observar que, não obstante a leitura
das imagens na maioria das vezes auxilie a compreensão dos textos, deve haver um
bom senso por parte do professor em relação à interrupção da leitura do texto
escrito para a leitura da imagem, visto que no caso de algumas histórias, pode-se
atrapalhar o encantamento vivenciado individualmente pelo leitor. Por outro lado,
haverá ocasiões em que a interrupção é essencial para que se desperte para outras
emoções ou outras leituras.
2.8 A importância do texto literário como proposta de leitura dentro e fora da
sala de aula
Para finalizar este capítulo, resta-nos reiterar a importância que a literatura
tem no processo de formação de um indivíduo. Argumentamos essa afirmativa a
partir do próprio conceito do que vem a ser a literatura. Segundo Moisés (1973, p.
25), literatura é um tipo de conhecimento, expressão dos conteúdos da ficção, ou da
imaginação, por meio de palavras de sentido múltiplo e pessoal.
Como privar o ser humano do contato com a linguagem literária plena de
significados, fonte de conhecimento e prazer? Nesse sentido, Moisés (1973) conclui:
A arte literária assim concebida não se reduz apenas a uma forma banal de entretenimento. Quando é entretenimento, é-o duma forma superior, visto que o jogo e a arte jamais se separam. Entretanto, mais do que forma elevada de recreação, a Literatura constitui uma forma de conhecer o mundo e os homens: dotada duma séria “missão”, colabora para o desvelamento daquilo que o homem, conscientemente ou não, persegue durante toda a existência. E, portanto, se a vida de cada um corresponde a
69
um esforço contínuo de conhecimento, superação e libertação, à Literatura cabe um lugar à parte, enquanto ficção expressa por palavras de conteúdo multívoco. (MOISÉS, 1973, p. 29)
Muitas vezes a família não reconhece a importância de se fornecer a
aproximação de uma criança com a literatura e à escola cabe o fundamental papel
de apresentá-la. Ocorre que, em alguns casos, não há tempo disponível para que os
professores planejem suas atividades de leitura que priorizem o contato com o
material literário, não raro limitando-se a trechos de obras provenientes dos
materiais didáticos (livros ou apostilas) utilizados com fins pedagógicos e que não
fazem sentido à vida dos alunos. Isso pode acontecer porque a obra, ou o trecho da
obra, na maioria das vezes não é lido em profundidade, aproximando a obra à
realidade vivenciada pela comunidade. Nosso compromisso aqui é refletir: qual é a
colaboração que um educador pode trazer ao aluno enquanto ser leitor em
formação? De que maneira o professor pode ensinar além da leitura, o prazer dela,
e assim, possibilitar novas leituras de mundo, novos encontros com o outro?
Nesse sentido, é importante lembrarmos a colocação de Candido (2004, p.
174), para o qual a literatura é um bem indispensável à vida plena de um ser
humano. Para Candido (2004), a literatura é uma necessidade que não pode deixar
de ser satisfeita sob pena de desorganização pessoal, ou de frustração que acaba
por prejudicar o seu desenvolvimento psíquico de maneira íntegra. O autor defende
que a literatura é um direito, cuja principal função é a humanização do ser humano.
Vale destacarmos o conceito de humanização proposto por Candido (2004):
Entendo aqui por humanização (já que tenho falado tanto nela) o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres. O cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante. (CANDIDO, 2004, p. 180).
As colocações de Moisés (1973) e Candido (2004) reiteram a importância de
se promover atividades de leitura que priorizem o conhecimento do texto literário
pelos alunos, não mais apenas como opção de aprendizagem da ortografia ou da
gramática, mas de maneira que possibilite a reflexão sobre a literatura enquanto arte
da palavra, que transforma e revitaliza as atitudes humanas.
70
CAPÍTULO 3
AS AVALIAÇÕES INSTITUCIONAIS E O CONTEXTO DE
APRENDIZAGEM
[...] para conseguir formar um cidadão, consciente de seu lugar social, é preciso levá-lo a reconhecer quais identidades sociais o formam e, para isso, inevitavelmente, passar por questões de língua e de significados sociais do texto escrito. (JUNG, p. 102)
A universalização do acesso à escola não foi acompanhada de sucesso na
qualidade de ensino, isso é um fato. Nas últimas décadas, são inúmeros e
constantes os esforços para que haja uma educação de qualidade, seja em nível
nacional, estadual ou municipal. Muitas são as pesquisas motivadas pela
necessidade de se encontrarem os caminhos para que se atenda às demandas
sociais, culturais e científicas. As avaliações institucionais promovidas pelo Ministério
da Educação tornaram-se, assim, fonte de informações importantes visando à
intervenção de projetos de pesquisa que venham a colaborar na elevação dos
índices apontados pelas provas. Esta pesquisa também objetiva colaborar na
elaboração de estratégias que busquem uma melhora na qualidade da educação.
Ela está inserida em um projeto maior: “Competências e habilidades de leitura: da
reflexão teórica ao desenvolvimento e aplicação de propostas didático-pedagógicas”,
Projeto OBSERVATÓRIO/UNITAU 2011-20144.
Este capítulo visa a apresentar um breve resumo histórico e conceitual de
duas das avaliações institucionais externas: a Prova Brasil e o PISA (Programa para
Avaliação Internacional de Estudantes ou Project for International Student
Assesment), bem como as habilidades e competências por elas exigidas,
promovendo discussões sobre como priorizar determinadas atividades de leitura
com nossos alunos, a fim de que, progressivamente, se alcance o nível de
desenvolvimento compatível com um bom resultado nessas avaliações, sem nos
4 Este projeto é coordenado pela Profa. Dra. Maria Aparecida Garcia Lopes Rossi; foi inscrito em
resposta ao Edital nº38/2010/CAPES/INEP, para participar de um Programa de fomento que visa ao desenvolvimento de estudos e pesquisas na área da educação. As normas do Programa preveem a utilização dos dados produzidos pelo INEP como subsídio ao aprofundamento de estudos sobre a realidade educacional brasileira.
71
esquecermos, entretanto, de outros desafios maiores que consolidem competências
necessárias para o exercício efetivo da cidadania, como nas relações interpessoais,
no mercado de trabalho, enfim, nos desafios da vida.
3.1 O INEP e os dados estatísticos educacionais
O INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira) é uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Educação (MEC), cuja
missão é promover estudos, pesquisas e avaliações sobre o Sistema Educacional
Brasileiro com o objetivo de subsidiar a formulação e implementação de políticas
públicas para a área educacional a partir de parâmetros de qualidade e equidade,
bem como produzir informações claras e confiáveis aos gestores, pesquisadores,
educadores e público em geral. Para gerar seus dados e estudos educacionais, o
INEP realiza levantamentos estatísticos e avaliativos em todos os níveis e
modalidades de ensino. Além dos levantamentos estatísticos e das avaliações, o
INEP promove encontros para discutir os temas educacionais e disponibiliza
também outras fontes de consulta sobre educação.
Dentre as avaliações desenvolvidas pelo INEP/MEC para diagnóstico, está o
Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb)5. Ele é composto por
dois processos: a Avaliação Nacional da Educação Básica (ANEB) e a Avaliação
Nacional do Rendimento Escolar (ANRESC). A ANEB, que também recebe o nome
de Saeb, é realizada em cada unidade da Federação, por amostragem das Redes
de Ensino e tem foco nas gestões dos sistemas educacionais. A ANRESC, por seu
caráter universal, também recebe o nome de Prova Brasil. Ela é mais extensa e
detalhada que a ANEB, pois tem o foco em cada unidade escolar. As provas que
compõem o Saeb são realizadas a cada dois anos e são compostas por testes de
Língua Portuguesa e de Matemática, que objetivam avaliar a qualidade do ensino
oferecido pelo sistema educacional brasileiro. Há, além dos testes, um questionário
socioeconômico.
A Prova Brasil, objeto de estudo nesta primeira etapa de trabalho do Projeto
Observatório/UNITAU e que também fornece parâmetros para as propostas de
leitura desta dissertação, abrange somente alunos de 4ª e 8ª séries (ou 5º e 9º anos)
5 As informações aqui detalhadas estão disponíveis no site do INEP: http://portal.inep.gov.br, acesso
em: 15 de nov. de 2011.
72
do ensino fundamental público (nas redes estaduais, municipais e federais), em
escolas de área rural e urbana com no mínimo 20 alunos matriculados na série
avaliada. A Prova Brasil é uma avaliação censitária, criada em 2005, com o objetivo
de avaliar as habilidades em Língua Portuguesa (foco em leitura) e Matemática (foco
na resolução de problemas), permitindo retratar a realidade de cada escola, em cada
município, avaliando competências construídas e habilidades desenvolvidas pelos
alunos, além de detectar as dificuldades de aprendizagem.
Os resultados contribuem para dimensionar os problemas da educação
básica brasileira e orientar a formulação, a implementação e a avaliação de políticas
públicas educacionais que conduzam à formação de uma escola de qualidade. As
médias de desempenho nessas avaliações também subsidiam o cálculo do Índice de
Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB)6, ao lado das taxas de aprovação
nessas esferas.
O IDEB foi criado pelo INEP em 2007 e é o indicador de dois conceitos
igualmente importantes para a educação: o fluxo escolar e as médias de
desempenho nas avaliações. O indicador é calculado a partir dos dados sobre
aprovação escolar, obtidos no Censo Escolar e nas médias de desempenho nas
avaliações do INEP: o SAEB (para as unidades da federação e para o país) e
a Prova Brasil (para os municípios).
O PISA (Programa para Avaliação Internacional de Estudantes ou Project for
International Student Assesment) foi desenvolvido conjuntamente pelos países
participantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE). No Brasil, o PISA é coordenado também pelo Instituto Nacional de Estudos
e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). É o maior estudo internacional e
sistemático sobre as competências de jovens com quinze anos de idade e pretende
traçar o perfil dos estudantes que terminam a escolaridade obrigatória, avaliando
seu conhecimento em leitura, matemática e ciências e apurando até que ponto os
jovens estão preparados para enfrentar os desafios do futuro. Os testes são
realizados em alguns países, e os resultados são por amostragem. Desde o ano de
6 Segundo o Inep (BRASIL, 2011), disponível em http://portal.inep.gov.br/web/portal-ideb/, o IDEB é o
indicador objetivo para a verificação do cumprimento das metas fixadas no Compromisso Todos pela Educação, eixo do PDE que trata da Educação Básica. Com o IDEB, ampliam-se as possibilidades de mobilização da sociedade em favor da educação, uma vez que o índice é comparável nacionalmente e expressa em valores os resultados mais importantes da educação: aprendizagem e fluxo.
73
2000, eles são aplicados de três em três anos, pela Organização para Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE). Em 2000, o foco foi em Leitura; em 2003, em
Matemática e em 2006, em Ciências. A última avaliação foi realizada em 2009,
novamente com a ênfase recaindo sobre o domínio da Leitura, na qual, entre 65
países participantes, o Brasil ficou em 54º lugar.
Por meio dos resultados das avaliações do PISA, são colhidas informações
para a elaboração de indicadores contextuais, possibilitando relacionar o
desempenho dos alunos a variáveis demográficas, socioeconômicas e educacionais
(conteúdo dos questionários específicos aplicados para os alunos e as escolas,
sendo que esses mesmos questionários também foram aplicados para os pais dos
alunos na última avaliação, em 2009).
Um dado interessante apontado pelos resultados do PISA 20097 é o de que
menos estudantes estão lendo por prazer atualmente. As informações dos
questionários da última avaliação foram comparadas às informações dos
questionários da avaliação de 2000, revelando que os estudantes de 15 anos de
idade em 2009 estavam menos propensos a se empolgarem com a leitura do que os
estudantes do ano de 2000. A porcentagem dos estudantes que disseram ler
diariamente por prazer diminuiu cinco pontos percentuais durante esse período: de
69% (sessenta e nove por cento) em 2000 para 64% (sessenta e quatro por cento)
em 2009.
O foco desta pesquisa é na melhora dos índices apresentados por essas
avaliações institucionais, por meio de uma contribuição ao trabalho docente para o
desenvolvimento de habilidades leitura e, consequente melhora da qualidade de vida
e da participação dos alunos na vida social.
3.2 A importância de conhecer a Prova Brasil para empreender um bom
trabalho com a leitura
Segundo o INEP (BRASIL, 2008), se o aprendizado da leitura é um direito, é
necessário definir operacionalmente o que é saber ler para uma criança de 11 anos
ou um jovem de 14. Durante a realização da Prova Brasil, são oferecidos diversos
7 Entretanto, conforme a OCDE (BRASIL, 2011), ler todos os dias por prazer está associado a
melhores desempenhos no PISA. Disponível em http://portal.inep.gov.br/pisa-programa-internacional-de-avaliacao-de-alunos. Acesso em: 20 de jan. 2012.
74
textos, gêneros discursivos de tamanho e complexidade diferentes, que são
analisados previamente, sendo que o erro ou o acerto de cada questão –
denominada item – reflete o nível de leitura em que o aluno se encontra.
O INEP (BRASIL, 2008) também aponta que para cada escola participante é
calculada uma média da proficiência dos seus estudantes participantes da avaliação
expressa em uma escala de 0 a 500. Os números são agrupados e, a partir desses
grupos conhecidos como níveis, é realizada uma interpretação pedagógica de seu
significado. A proficiência média em leitura é expressa em 10 níveis, em uma escala
única utilizada para alunos de quarta série/quinto ano e alunos de oitava série/nono
ano, em que se espera que a proficiência dos alunos de quarta série/quinto ano
concentre-se em níveis mais baixos que a proficiência dos alunos de oitava
série/nono ano, uma vez que, normalmente, o que é lógico é que aqueles tenham
desenvolvido menos competências leitoras que estes. Com a interpretação
pedagógica dos níveis da escala, é possível compreender as fragilidades que devem
ser superadas no processo de compreensão da leitura e assim poder influenciar no
processo de ensino para que haja uma melhoria na qualidade da educação,
permitindo consolidar competências fundamentais para o pleno exercício da
cidadania.
As competências, de acordo com o INEP (BRASIL, 2008), são utilizadas no
processo de construção do conhecimento. No documento “Saeb 2001: Novas
Perspectivas” (2002, apud BRASIL, 2011), competência é definida, na perspectiva
de Perrenoud, como a “capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de
situação, apoiando-se em conhecimentos, mas sem se limitar a eles”. No processo
de confecção da Prova Brasil, associam-se os conteúdos da aprendizagem e as
competências.
Em determinadas situações em que é preciso resolver um conflito, são
mobilizadas as competências necessárias para que se reestabeleça o equilíbrio.
Assim, o sujeito se utiliza de recursos cognitivos, estabelecendo relações com e
entre os objetos físicos, conceitos, fenômenos e pessoas, em operações que
transformam competências em habilidades. Refletindo sobre esse conceito e sobre a
fundamentação teórica já apresentada nos capítulos anteriores, destacamos a
importância do trabalho com as sequências didáticas8 que envolvem o conhecimento
8 As sequências didáticas serão objeto de estudo no quarto e último capítulo deste trabalho.
75
dos gêneros discursivos, visto ser uma maneira de trabalhar as competências
necessárias para reconhecimento dos textos em situações reais de uso, com
propósitos comunicativos reais, colocando-se em relação conteúdo e competências
desenvolvidas na resolução de problemas, transformando competências em
habilidades, a fim de que se produza o resultado pretendido. A proposta de nossa
pesquisa é envolver os professores na busca por estratégias que atendam às
diferentes realidades de seus alunos, de maneira que se encontrem caminhos para
o gosto da leitura sem se perder de vista o objetivo de um bom resultado também
em provas externas de nível nacional. Por esse motivo, as habilidades de leitura
cobradas pela Prova Brasil merecem nossa atenção.
3.3 A Matriz de Referência da Prova Brasil e seus descritores: buscando
caminhos para formar leitores
A Matriz de Referência de Língua Portuguesa da Prova Brasil, disponível em
Brasil (2011) e também no site www.inep.gov.br, é o referencial curricular do que
está sendo avaliado em leitura em cada série, informando as competências e
habilidades esperadas dos alunos. Ela tem por referência os Parâmetros
Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998) e foi construída de acordo com uma consulta
nacional aos currículos propostos pelas Secretarias Estaduais da Educação e por
algumas redes municipais. O INEP consultou também professores das redes
municipal, estadual e privada, bem como examinou os livros didáticos mais
utilizados nessas séries e redes (BRASIL, 2008).
Com relação ainda à Matriz de Referência, é também importante transcrever
a seguinte informação:
Torna-se necessário ressaltar que as matrizes de referência não englobam todo o currículo escolar. É feito um recorte com base no que é possível aferir por meio do tipo de instrumento de medida utilizado na Prova Brasil e que, ao mesmo tempo, é representativo do que está contemplado nos currículos vigentes no Brasil. (BRASIL, 2008, p. 17)
Diante disso, é possível afirmar que a Matriz de Referência da Prova Brasil é
um norte para que, tendo em vista cada realidade em particular, possamos refletir
quais estratégias podemos planejar a fim de que haja uma melhora no desempenho
da leitura pelos nossos alunos. Consequentemente, eles tornar-se-ão aptos a uma
76
melhora também no desempenho expressivo por meio de múltiplas linguagens em
suas vidas em sociedade.
Estruturalmente, a Matriz de Referência de Língua Portuguesa se divide em
duas dimensões: uma denominada Objeto do Conhecimento e outra denominada
Competência. Na dimensão denominada Objeto do Conhecimento, são listados seis
tópicos: Procedimentos de Leitura; Implicações do Suporte, do Gênero e/ou do
Enunciador na Compreensão do Texto; Relação entre Textos; Coerência e Coesão
no Processamento do Texto; Relações entre Recursos Expressivos e Efeitos de
Sentido; e Variação Linguística.
A dimensão denominada Competência é composta por descritores
específicos que indicam habilidades a serem avaliadas em cada tópico
anteriormente descriminado. Para a 4ª série/5º ano do Ensino Fundamental, são
contemplados quinze descritores; e para a 8ª série/9º ano do Ensino Fundamental e
a 3ª série do Ensino Médio, são acrescentados seis descritores, totalizando vinte e
um descritores. Eles aparecem em ordem crescente de aprofundamento e/ou
ampliação de conteúdos ou das habilidades exigidas. (BRASIL, 2008, p. 21-23)
Reproduzimos a seguir a Matriz de Referência de Língua Portuguesa da
Prova Brasil e do SAEB para o 9º ano do Ensino Fundamental porque esse é o ano
para o qual esta pesquisa propõe atividades de leitura.
77
Quadro 8: Matriz de Referência de Língua Portuguesa da Prova Brasil e do SAEB para o 9º ano
Tópico I. Procedimentos de Leitura
D1 - Localizar informações explícitas em um texto
D3 - Inferir o sentido de uma palavra ou expressão
D4 - Inferir uma informação implícita em um texto
D6 - Identificar o tema de um texto
D14 - Distinguir um fato da opinião relativa e esse fato
Tópico II. Implicações do suporte, do gênero e/ou Enunciador na compreensão do texto
D5 - Interpretar texto com auxílio de material gráfico diverso (propagandas, quadrinhos, fotos, etc.)
D12 - Identificar a finalidade de textos de diferentes gêneros
Tópico III. Relação entre textos
D5 - Reconhecer diferentes formas de tratar uma informação na comparação de textos que tratam do mesmo tema, em função das condições em que ele foi produzido e daqueles em que será recebido
D21 - Reconhecer posições distintas entre duas ou mais opiniões relativas ao mesmo fato ou ao mesmo tema
Tópico IV. Coerência e coesão no processamento do texto
D2 - Estabelecer relações entre partes de um texto, identificando repetições ou substituições que contribuem para a continuidade de um texto
D10 - Identificar o conflito gerador do enredo e os elementos que constroem a narrativa
D11 - Estabelecer relação de causa e conseqüência entre partes e elementos do texto
D15 - Estabelecer relações lógico-discursivas presentes no texto, marcadas por conjunções, advérbios, etc.
D7 - Identificar a tese de um texto
D8 - Estabelecer relação entre a tese e os argumentos oferecidos para sustentá-la
D9 - Diferenciar as partes principais das secundárias de um texto
Tópico V. Relações entre recursos expressivos e efeitos de sentido
D16 - Identificar efeitos de ironia ou humor em textos variados
D17 - Identificar o efeito de sentido decorrente do uso da pontuação e de outras notações
D18 - Reconhecer o efeito de sentido decorrente da escolha de uma determinada palavra ou expressão
D19 - Reconhecer o efeito de sentido decorrente da exploração de recursos ortográficos e/ou morfossintáticos
Tópico IV. Variação linguística
D13 - Identificar as marcas lingüísticas que evidenciam o locutor e o interlocutor de um texto
Fonte: Brasil (2008).
78
É importante destacar que os descritores 7, 8, 9, 18,19 e 21 não aparecem na
Matriz de Referência para o 5º ano. Os demais aparecem nessa Matriz, apenas com
alguma variação de numeração em relação à Matriz do 9º ano. Embora quinze
descritores sejam idênticos para 4ª série/5º ano do Ensino Fundamental e 8ª série/9º
ano do Ensino Fundamental, os testes são formulados nas provas, mesmo que
derivados de um mesmo descritor, considerando as diferenças de idade e
escolaridade e apresentando um grau de dificuldade maior para o 9º ano.
Também há que se ressaltar que, embora essa Matriz de Referência da Prova
Brasil forneça subsídios importantes para o planejamento do trabalho do professor
de Língua Portuguesa, uma análise detalhada de sua estrutura e da redação de
vários dos descritores revela a existência de alguns problemas, seja por imprecisão
teórica ou por pouca abrangência dos Tópicos, conforme concluem Lopes-Rossi e
Paula (2012). A leitura dessa Matriz pode dar uma falsa impressão ao professor que
não conhece profundamente uma fundamentação teórica sobre leitura, tipologia
textual e gêneros discursivos de que os tópicos abrangem um processo de leitura
completo e de que os descritores se aplicam sempre à leitura de todos os textos.
Apresento a seguir um quadro resumo das opiniões de Lopes-Rossi e Paula
(2012) sobre os aspectos em que a Matriz de Referência de Língua Portuguesa da
Prova Brasil apresenta imprecisões teóricas ou de redação. O apontamento desses
aspectos serve de referência para o professor entender melhor a Matriz e como
sugestão para futuros aprimoramentos desse documento que possam ser
realizados.
79
Quadro 9: Aspectos em que a Matriz de Referência Matriz de Referência de Língua Portuguesa da Prova Brasil apresenta imprecisões teóricas ou de redação, conforme Lopes-Rossi e Paula (2012).
TÓPICO I
O conceito de “Procedimentos de leitura” não parece claro, pois os 5 descritores apresentados nesse tópico não abrangem um processo de leitura completo (do reconhecimento inicial do texto à apreciação crítica) que possa ser aplicado a toda leitura. Os descritores não orientam professores e alunos para uma prática de leitura completa para a formação de um leitor proficiente. “D11 – Distinguir um fato da opinião relativa a esse fato” é uma habilidade restrita a alguns textos que se refiram a fatos e que apresentem opinião relativa ao fato, implícita ou explicitamente.
TÓPICO III
“D15 - Reconhecer diferentes formas de tratar uma informação na comparação de textos que tratam do mesmo tema, em função das condições em que ele foi produzido e daquelas em que será recebido” é um item impreciso. Compreende-se a proposta de D 15, desde que se corrija a redação para: [...] condições em que eles foram produzidos e daquelas em que serão recebidos. “D21 - Reconhecer posições distintas entre duas ou mais opiniões relativas ao mesmo fato ou ao mesmo tema.” Refere-se a uma habilidade restrita a alguns textos que se refiram a fatos e que apresentem opiniões distintas relativas ao fato. A redação do descritor não esclarece que essas “posições distintas” podem estar expressas num mesmo texto ou em textos diferentes.
TÓPICO IV
Aspectos de coesão e coerência textuais são constitutivos de qualquer produção textual, representante de qualquer gênero discursivo. Os descritores referentes a esse tópico deveriam ser abrangentes a qualquer gênero, como de fato o são apenas D2 e D12. Os demais descritores (reproduzidos abaixo) são restritos a gêneros de organização textual narrativa ou argumentativa clássica, porém induzem o leitor menos familiarizado com o assunto a crer que essas habilidades se aplicam a qualquer texto:
“D7 - Identificar o conflito gerador do enredo e os elementos que constroem a narrativa”;
“D8 - Estabelecer relação causa/consequência entre partes e elementos do texto”;
“D7 - Identificar a tese de um texto”; (somente p/ 9º ano)
“D8 - Estabelecer relação entre a tese e os argumentos oferecidos para sustentá-la”; (somente p/ 9º ano)
TÓPICO VI
A importante propriedade de variação linguística da Língua Portuguesa – melhor seria o termo “sociolinguística” – ficou parcialmente reconhecida pelo D10:
“D10 - Identificar as marcas linguísticas que evidenciam o locutor e o interlocutor de um texto”. A habilidade esperada para esse tópico inclui também a identificação de marcas linguísticas que evidenciam elementos da situação de comunicação, como nível de formalidade, época, relações hierárquicas entre os interlocutores, idade e nível de escolaridade dos interlocutores, entre outros. A redação do descritor não capta todas essas possibilidade.
80
Assim, ao concluir a análise da Matriz de Referência da Prova Brasil, Lopes-
Rossi e Paula (2012) apontaram que, embora o conceito de gênero discursivo seja
norteador de sua elaboração, apenas algumas propriedades constitutivas dos
gêneros discursivos são contempladas nos descritores de habilidades de leitura.
Também puderam concluir que os conceitos de gênero discursivo e tipologia textual
estão pressupostos, mas se confundem nas propostas dos descritores.
Outra constatação relevante é o fato de não haver descritor referente ao
posicionamento crítico do leitor, comprovando-se que os descritores da Matriz de
Referência não abrangem um processo de leitura completo, do reconhecimento
inicial à apreciação crítica. Segundo os autores, ainda, os descritores, da forma
como se apresentam, carecem de maior abrangência e sintonia com o conceito
bakhtiniano de gênero discursivo.
Nesta pesquisa, baseamo-nos na Matriz de Referência da Prova Brasil para a
proposta de procedimentos de leitura do conto, porém consideraremos a apreciação
do documento realizada por Lopes-Rossi e Paula (2012) para fazermos os ajustes
necessários. Esses ajustes estão em consonância com a fundamentação teórica
sobre leitura e gêneros discursivos apresentada nos capítulos 1 e 2.
3.4 Alguns dados sobre desempenho de alunos na Prova Brasil
A partir da análise dos dados sobre o desempenho dos alunos na Prova Brasil
apresentados pelo INEP (BRASIL, 2008), podemos ter uma idéia sobre quais
habilidades são dominadas pela maioria dos alunos e quais ainda não são
dominadas. Pelos dados que serão apresentados a seguir, podemos perceber que
há descritores em que o percentual de acerto pelos alunos em uma questão, seja na
4ª série/5º ano ou 8ª série/9º ano do Ensino Fundamental, chega a ser inferior a 50%
(cinquenta por cento). Sendo assim, acreditamos ser oportuno transcrever esses
dados divulgados pelo INEP para que saibamos em quais habilidades os alunos
podem encontrar maior dificuldade e para que possamos refletir sobre quais
estratégias de leitura desenvolvidas em sala de aula seriam as mais adequadas a
fim de atender à demanda dessas habilidades e competências requeridas.
Organizamos os quadros referentes às percentagens de acerto, a partir dos
dados divulgados em Brasil (2008), distribuindo os descritores de acordo com o
81
Tópico (Objeto do Conhecimento). Seguem os seis quadros e os comentários a
respeito dos resultados.
Quadro 10: Porcentagem de acertos para os descritores referentes ao Tópico I: Procedimentos de Leitura
Descritores 4ª/5º EF 8ª/9º EF
Localizar informações explícitas em um texto
72% 76%
Inferir o sentido de uma palavra ou expressão
35% 50%
Inferir uma informação implícita em um texto 60% 58%
Identificar o tema de um texto
53% 49%
Distinguir um fato da opinião relativa a esse fato
36% 58%
Fonte: BRASIL, 2008.
Podemos observar que em quatro dos cinco descritores o percentual de
acerto é inferior a setenta por cento. Os percentuais indicam ainda, principalmente, a
grande dificuldade em identificar o tema de um texto e inferir o sentido de uma
palavra ou expressão. Quanto ao descritor referente a localizar informações
explícitas, observamos que os alunos têm menos dificuldade e no entanto, muitas
das questões propostas em livros didáticos, segundo pesquisas, são apenas para
localização das informações explicitas. Em razão desses dados, os procedimentos
de leitura sugeridos neste trabalho buscam focar os descritores em que os alunos
apresentam mais dificuldade.
Para o segundo objeto de conhecimento da Matriz, os resultados de acertos
dos alunos brasileiros são os seguintes:
Quadro 11: Porcentagem de acertos para os descritores referentes ao Tópico II: Implicações do Suporte, do Gênero e/ou enunciador na Compreensão do Texto
Descritores 4ª/5º EF 8ª/9º EF
Interpretar texto com auxílio de material gráfico diverso (propagandas, quadrinhos, foto etc.).
40% 66%
Identificar a finalidade de textos de diferentes gêneros.
41% 53%
Fonte: BRASIL, 2008.
82
Podemos observar que nesses dois descritores as porcentagens são
inferiores a setenta por cento. Os resultados demonstram que cerca de cinquenta
por cento dos alunos têm dificuldade em identificar a finalidade de textos de
diferentes gêneros. Podemos concluir, nesse sentido, que o trabalho com as
sequências didáticas, como é o caso desta pesquisa, visa a uma melhor
compreensão dos gêneros discursivos, apropriando-se de suas características para
entender melhor suas funções sociais, como é o caso do conto, por exemplo.
Para o terceiro objeto de conhecimento da Matriz, os resultados de acertos
dos alunos brasileiros são os seguintes:
Quadro 12: Porcentagens de acertos para os descritores referentes ao Tópico III: Relação entre Textos
Descritores
4ª/5º EF 8ª/9º EF
Reconhecer diferentes formas de tratar uma informação na comparação de textos que tratam do mesmo tema, em função das condições em que ele foi produzido e daquelas em que será recebido.
45% 49%
Reconhecer posições distintas entre duas ou mais opiniões relativas ao mesmo fato ou ao mesmo tema.
_ 71%
Fonte: BRASIL, 2008.
Podemos observar que os alunos apresentam maior dificuldade em
reconhecer diferentes formas de tratar uma informação na comparação de textos
que tratam do mesmo tema, em função das condições em que ele foi produzido e
daquelas em que será recebido. Para esse descritor, o resultado foi inferior a
cinquenta por cento, justificando a importância de se trabalhar os gêneros e seus
contextos sociais, promovendo um diálogo entre eles.
Para o quarto objeto de conhecimento da Matriz, os resultados de acertos dos
alunos brasileiros são os seguintes:
83
Quadro 13: Porcentagem de acertos para os descritores referentes ao Tópico IV: Coerência e Coesão no Processamento do Texto
Descritores 4ª/5º EF 8ª/9º EF
Estabelecer relações entre partes de um texto, identificando repetições ou substituições que contribuem para a continuidade de um texto.
54% 56%
Identificar o conflito gerador do enredo e os elementos que constroem a narrativa
28% 44%
Estabelecer relação causa/consequência entre partes elementos do texto.
45% 76%
Estabelecer relações lógico-discursivas presentes no texto, marcadas por conjunções, advérbios etc.
60% 27%
Identificar a tese de um texto.
_ 35%
Estabelecer relação entre a tese e os argumentos oferecidos para sustentá-la.
_ 61%
Diferenciar as partes principais das secundárias em um texto.
_ 43%
Fonte: BRASIL, 2008.
Podemos concluir que os resultados referentes a esse tópico são bastante
alarmantes, uma vez que, dentre sete descritores, apenas um obteve porcentagem
superior a setenta por cento; quatro apresentaram porcentagens inferiores a
cinquenta por cento. Desses quatro descritores, procuramos atender com ênfase
maior, especialmente por se tratar de um gênero narrativo, os descritores: “Identificar
o conflito gerador do enredo e os elementos que constroem a narrativa” e
“Estabelecer relações lógico-discursivas presentes no texto, marcadas por
conjunções, advérbios etc.”
Para o quinto objeto de conhecimento da Matriz, os resultados de acertos dos
alunos brasileiros são os seguintes:
84
Quadro 14: Porcentagens de acerto para os descritores referentes ao Tópico V: Relações entre Recursos Expressivos e Efeitos de Sentido
Descritores
4ª/5º EF 8ª/9º EF
Identificar efeitos de ironia ou humor em textos variados.
37% 74%
Identificar o efeito de sentido decorrente do uso da pontuação e de outras notações.
38% 59%
Reconhecer o efeito de sentido decorrente da escolha de uma determinada palavra ou expressão.
_ 34%
Reconhecer o efeito de sentido decorrente da exploração de recursos ortográficos e/ou morfossintáticos.
_ 49%
Fonte: BRASIL, 2008.
Podemos concluir, a partir dos resultados apresentados pelo quadro acima,
que novamente a maioria dos descritores apresentaram porcentagens inferiores a
setenta por cento. Sendo assim, justifica-se nossa preocupação em promover a
leitura dos contos, procurando atender à dificuldade que os alunos têm
principalmente em reconhecer efeitos de sentido decorrente da escolha de uma
palavra ou expressão, cujo resultado aponta menor porcentagem de acerto em
comparação aos demais, inferior a quarenta por cento.
Para o sexto e último objeto de conhecimento da Matriz, os resultados de
acertos dos alunos brasileiros são os seguintes:
Quadro 15: Porcentagens de acerto para os descritores referentes ao Tópico VI: Variação Linguística.
Descritor
4ª/5º EF 8ª/9º EF
Identificar as marcas linguísticas que evidenciam o locutor e o interlocutor de um texto.
24% 33%
Fonte: BRASIL, 2008.
Considerando as porcentagens baixas de acertos apresentadas em alguns
descritores, podemos concluir que muito ainda há que ser repensado a respeito das
aulas de Língua Portuguesa a fim de que ocorra uma melhora no desempenho de
85
nossos alunos. Muitos desses descritores requerem habilidades fundamentais para
uma leitura adequada ao nível de escolaridade dos alunos. Esses resultados,
portanto, podem servir de alerta para que o professor priorize determinadas
atividades, objetivando a melhora nesses índices.
Além da Matriz de Referência da Prova Brasil e dos resultados já conhecidos
sobre o desempenho em leitura dos alunos, também consideraremos os parâmetros
para avaliação de habilidades de leitura do PISA, cujas características principais são
apresentadas na próxima seção.
3.5 O PISA – Programa para Avaliação Internacional de Estudantes
(Programme for International Student Assessment) e os níveis de proficiência
O PISA (Programme for International Student Assessment) é um programa
desenvolvido e coordenado internacionalmente pela Organização para Cooperação
e Desenvolvimento Econômico (OCDE), sendo que em cada país participante há
uma coordenação nacional. No Brasil, o PISA é coordenado pelo INEP (Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.
Ele tem como objetivo avaliar o desempenho dos estudantes de 8ª série/9º
ano do Ensino Fundamental, por meio de uma avaliação que acontece a cada três
anos, verificando os conhecimentos e competências em Leitura, Matemática e
Ciências, de modo a subsidiar políticas de melhoria da educação básica. Em 2000, o
foco foi em leitura; em 2003, em matemática; e em 2006, ciências. Em 2009,
novamente o foco foi em leitura, reiniciando um novo ciclo de provas que segue a
seguinte ordem: leitura, matemática e ciências.
A avaliação é um importante meio de verificação de como as escolas de cada
país participante estão preparando seus jovens para exercerem o papel de cidadãos
na sociedade contemporânea.
O PISA considera os conhecimentos e competências devem ser
continuamente adquiridos pelos estudantes, a fim de que eles sejam capazes de
gerirem e organizarem seu próprio aprendizado. Dessa forma, o PISA procura ir
além do aprendizado escolar, examinando a capacidade dos alunos de analisar,
raciocinar e refletir ativamente sobre seus conhecimentos e experiências, enfocando
competências que serão relevantes para suas vidas futuras. (BRASIL, 2011).
86
Para o PISA, o jovem deve ser capaz de compreender, refletir e relacionar o
texto com suas experiências de vida, pois assim ele se desenvolve plenamente para
participar ativamente da vida em sociedade. Sendo assim, a Leitura, a partir da
perspectiva do PISA, é vista como um processo ativo, ao que essa avaliação
denomina letramento em leitura9.
As competências avaliadas pelo PISA são: acessar e recuperar informações,
identificando as informações essenciais; integrar e interpretar o que é lido, além de
comparar e contrastar informações; refletir sobre e analisar o conteúdo e a forma.
Essas competências podem ser avaliadas em um mesmo texto.
O objetivo principal do PISA não é avaliar cada jovem individualmente, mas
saber como está o sistema educacional de cada país. Existe, ainda, um objetivo
implícito, que é o da redução da desigualdade educacional, pelo qual cada país deve
almejar. Assim, para interpretar os resultados, o PISA estabeleceu um quadro de
desempenhos, que identifica as habilidades que os estudantes devem ter para
alcançar o nível de proficiência adequado.
9 Segundo o Portal INEP (BRASIL, 2011), “o letramento em leitura consiste em compreender, utilizar,
refletir sobre e envolver-se com textos, a fim de alcançar objetivos pessoais, construir conhecimento, desenvolver o potencial individual e participar ativamente da sociedade.”. Disponível em http://portal.inep.gov.br/pisa-programa-internacional-de-avaliacao-de-alunos. Acesso em: 30 de jan. 2012.
87
Quadro 16: Níveis de proficiência para a avaliação do PISA Nível Limite
inferior
O que os estudantes em geral podem fazer em cada nível
6 708 No nível 6, as tarefas exigem que o leitor faça múltiplas inferências, comparações e contraste que são tanto detalhados como precisos. Requerem a demonstração de completa e detalhada compreensão de um ou mais textos e pode envolver a integração das informações de mais de um texto. As tarefas podem pedir que o leitor lide com ideias desconhecidas, na presença de informações contrastantes, e que possa gerar categorias abstratas de interpretação. Refletir e avaliar são tarefas que requerem que o leitor possa levantar hipóteses ou avaliar criticamente um texto complexo ou um tópico não lhe seja familiar, levando em conta vários critérios e perspectivas, e aplicando sofisticados conhecimentos externos ao texto. Uma condição relevante para as tarefas de acessar e resgatar informações nesse nível é a precisão da análise e a atenção cuidadosa aos detalhes imperceptíveis dos textos.
5 626 No nível 5, as tarefas que envolvem a recuperação de informações requerem que o leitor localize e organize várias partes de informações embutidas no texto, deduzindo quais informações são relevantes. As tarefas de reflexão requerem avaliação crítica, levantamento de hipóteses, com base em conhecimento especializado. Tanto as tarefas de interpretação como as de reflexão requerem uma compreensão completa e detalhada de um texto cujo conteúdo ou forma não seja familiar. Para todos os aspectos da leitura, as tarefas típicas deste nível envolvem lidar com conceitos contrários às expectativas.
4 553 No nível 4, as tarefas que envolvem a recuperação de informações requerem que o leitor seja capaz de localizar e organizar várias partes de informações embutidas no texto. Algumas tarefas requerem a interpretação do significado de nuances de linguagem em uma parte do texto, levando em consideração o texto como um todo. Outras tarefas de interpretação requerem compreender e aplicar categorias em um contexto pouco familiar. As tarefas de reflexão nesse nível requerem que os leitores utilizem conhecimento formal ou púbico para levantar hipóteses e avaliar criticamente um texto. Os leitores devem demonstrar compreensão exata de textos complexos cujo conteúdo pode não ser familiar.
3 480 No nível 3, as tarefas exigem que o leitor localize e, em alguns casos, reconheça as relações entre vários trechos de informação que preenchem diversos requisitos. As tarefas de interpretação nesse nível requerem que o leitor integre várias partes de um texto a fim de identificar a ideia principal, compreender relações ou explicar o significado de uma palavra ou frase. Precisam levar em conta vários aspectos ao comparar, contrastar e categorizar. Muitas vezes as informações necessárias não são óbvias ou encontram-se no meio de outras informações não-relevantes; ou há outros obstáculos no texto, tais como ideias contrárias ao esperado ou expressas na negativa. As tarefas de reflexão nesse nível podem requerer conexões, comparações e explicações, ou podem pedir ao leitor que avalie um aspecto do texto. Algumas delas podem exigir
88
que o leitor demonstre compreensão refinada de um texto em relação a conhecimentos familiares e cotidianos. Outras tarefas não requerem compreensão detalhada, mas exigem que o leitor trabalhe com conhecimento pouco usual.
2 407 No nível 2, algumas tarefas requerem que o leitor localize uma ou mais peças informativas, que podem ser inferidas e podem precisar atender a várias condições. Outras exigem o reconhecimento da ideia central de um texto, a compreensão de relações ou a explicação do significado dentro de uma parte limitada do texto, quando a informação não for explícita e o leitor precisar fazer algumas inferências simples. As tarefas envolvem comparações e diferenciações tendo por base um único aspecto do texto. As tarefas típicas de reflexão nesse nível requerem que o leitor seja capaz de fazer comparações ou diversas conexões entre o texto e algum conhecimento externo, a partir de experiências e atitudes pessoais.
1ª 335 No nível 1a, as tarefas requerem que o leitor localize uma ou mais partes independentes de uma informação explícita; reconheça o tema principal ou a intenção do autor em um texto sobre um tópico familiar; ou faça uma conexão simples entre a informação no texto e o conhecimento comum, cotidiano. Geralmente, a informação que se requer no texto é explícita e há pouca informação não-relevante que atrapalhe sua localização. O leitor é dirigido explicitamente a considerar aspectos relevantes da tarefa e do texto.
1b 262 No nível 1b, as tarefas requerem que o leitor localize apenas uma informação explícita posicionada de forma facilmente observável em um texto curto, de sintaxe simples, em um contexto familiar, tais como uma narrativa ou uma simples lista. O texto geralmente ajuda o leitor por meio de repetição da informação, figuras ou símbolos familiares. Praticamente não há informação não-relevante que atrapalhe a localização. Nas tarefas que requerem interpretação o leitor precisa fazer conexões simples entre trechos de informação colocados lado-a-lado.
Fonte: (BRASIL, 2011).
Quando um nível é classificado em mais de 600 pontos, significa que ele é
muito difícil. Por outro lado, quando um nível é classificado abaixo dos 400 pontos,
ele é muito fácil. O esperado é que a maioria dos jovens consiga alcançar os níveis
três ou dois, pois, como as avaliações são de larga escala, é previsível que poucos
alunos consigam alcançar os níveis mais difíceis.
Pelos resultados das últimas avaliações apresentados pelo Portal Inep (2012),
o Brasil obteve as seguintes pontuações:
89
Quadro 17: Comparativo dos resultados em leitura dos alunos brasileiros no PISA
Ano 2000 2003 2006 2009
Pontuação 396 403 393 412
Fonte: BRASIL, 2011.
Podemos concluir que o Brasil obteve uma melhora na última prova (de
2009), avançando do nível 1 para o nível 2 e ocupando a 54ª posição. Participaram
da prova 20 mil estudantes. Foi um dos países que mais cresceram em
desempenho, no entanto, em comparação com outros países, esse resultado ainda
é baixo. Atualmente participam do Pisa 34 países membros da OCDE, além de
outros países convidados, totalizando a participação de 65 países. O Brasil é o único
país sul-americano que participa do PISA desde a sua primeira aplicação. Na última
prova, em 2009, participaram seis países sul-americanos: Brasil, Argentina, Chile,
Colômbia, Uruguai e Peru. Dentre esses países, o Brasil ocupa o 3º lugar, depois do
Chile e do Uruguai.
A meta para o ano de 2021 é a de que o Brasil alcance o nível 6. Isso significa
que deve haver um esforço constante a fim de que se superem as dificuldades em
leitura, alçando, enfim, o nível adequado a cada situação. Nenhum progresso é
alcançado sem esse esforço, fazendo-se necessária uma constante preocupação
em capacitar o professor, cedendo-lhe oportunidades de fazer a melhor escolha
quanto aos materiais didáticos, bem como quanto às atividades pedagógicas que
facilitem o encontro e o diálogo entre o aluno e o texto. Assim, a aprendizagem da
leitura não se esgotará na escola e alcançará novos horizontes, indo ao encontro do
foco estabelecido pelo PISA.
Como contribuição a essa meta, propomos, a seguir, a sequência didática
para a leitura do conto.
3.6 A sequência didática para a leitura do conto
É muito comum encontrarmos, nos materiais didáticos que fazem parte de
nossa rotina de profissionais da educação, várias atividades de leitura para
verificação da compreensão de um texto ou de um trecho de um texto. Não obstante
haja uma tentativa de se seguir as indicações feitas pelos documentos oficiais, tais
como as dos PCN (BRASIL, 1998) no sentido de que é importante priorizar o ensino
90
da leitura e da produção de textos orientado por gêneros discursivos, na maioria das
vezes, os materiais didáticos deixam de levar em consideração as diferentes
realidades socioculturais, étnicas e regionais vivenciadas pelos nossos alunos. As
tarefas são aleatórias, obedecendo a certa “grade curricular”, além de serem
intercaladas de exercícios gramaticais ou de produção de texto descontextualizadas
e sem um objetivo de circulação social.
Nesse sentido, é pertinente lembrarmos as colocações de Martins (1982) que
também acredita que o aprendizado da leitura deve capacitar o aluno para uma
melhor qualidade de vida em sociedade.
Quando começamos a organizar os conhecimentos adquiridos, a partir das situações que a realidade impõe e da nossa atuação nela; quando começamos a estabelecer relações entre as experiências e a tentar resolver os problemas que se nos apresentam – aí então estamos procedendo leituras, as quais nos habilitam basicamente a ler tudo e qualquer coisa. Esse seria, digamos, o lado prazeroso do aprendizado da leitura. Dá-nos a impressão de o mundo estar ao nosso alcance; não só podemos compreendê-lo, conviver com ele, mas até, modificá-lo à medida
que incorporamos experiências de leitura. (MARTINS, 1982, p. 17).
Entendemos, então, que o aprendizado da leitura está muito além das
atividades realizadas em sala de aula. Para que esse aprendizado seja concretizado
em ações futuras, as atividades propostas pelos professores (não somente os de
Língua Portuguesa, bem como os de outras disciplinas) precisam auxiliar os alunos
a apropriarem-se de características sociocomunicativas e lingüístico-textuais de
diversos gêneros, em situações de comunicação real (LOPES ROSSI, 2002, p. 30).
A autora propõe que essa apropriação aconteça “por meio de projetos de leitura que
visem ao conhecimento, à leitura, à discussão sobre o uso e as funções sociais dos
gêneros escolhidos” (p. 31). Essa é uma prescrição dos PCN (BRASIL, 1998)
também corroborada por outros autores.
Bueno (2011, p. 38-39) também acredita que o trabalho com os gêneros que
circulam efetivamente na sociedade favorece a construção da compreensão em um
processo de leitura e de produção de textos na escola. Para a autora, muitos livros
didáticos desconsideravam esse importante papel dos gêneros, o que dificultaria
fazer um bom ensino de leitura.
Sendo assim, o professor precisa encontrar caminhos para que seus alunos
obtenham bom êxito dentro e fora da escola, ou seja, tornem-se plenamente
competentes em suas práticas sociais. Nesse sentido, as atividades a serem
91
propostas em sala de aula necessitam voltar-se para a reflexão acerca dos gêneros,
verificando o que o aluno já sabe e promovendo a construção da aprendizagem pelo
aluno com o trabalho de mediação do professor.
Dolz e Schneuwly (2004) propõem que para se organizar esse tipo de
trabalho, as atividades devem ser planejadas em sequências didáticas. O trabalho
desse autores, pesquisadores do grupo de Didática da Língua da Universidade de
Genebra, foi pioneiro na proposta de o ensino de línguas tomar os gêneros
discursivos como objetos de ensino e organizar-se em sequências didáticas. Isso
ocorreu no final dos anos 90 e influenciou os PCN (1998). Estamos aqui citando a
edição de 2004 dos textos desses autores, que se refere à tradução brasileira, mas
ressaltamos que essas propostas remontam aos anos 90.
Para Dolz e Schneuwly (2004, p. 97), uma sequência didática é um conjunto
de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um
gênero discursivo oral ou escrito. As sequências didáticas são importantes para dar
acesso aos alunos a práticas de linguagem novas ou dificilmente domináveis, pois
quando o gênero adentra a escola sofre modificação, ao menos parcial, em sua
função social, ele visa à prática didática tão somente.
Para a elaboração de uma sequência didática, devemos considerar, segundo
os autores, as dimensões ensináveis dos gêneros. “Essas dimensões ensináveis
dizem respeito às características de um texto de um dado gênero nos níveis do
contexto de produção, da organização textual [...] da linguagem.” (BUENO, p. 36).
Bueno (2011, p. 41) cita Kato (1995), que embora não colocando o gênero
como o centro no ensino da leitura, afirmara que durante a leitura de um texto,
ocorrem alguns processos, entre outros, que dependem do gênero que se está
lendo. Bueno também lembra que Kato menciona o fator do grau de maturidade de
um leitor naquele processo. Ao lembrar essas colocações de Kato, Bueno coloca
que um bom trabalho com os gêneros pode contribuir para essa maturação, na
medida em que leva a conhecer diversos gêneros, mobilizando o aluno tanto para a
produção, como para a compreensão de outros.
Assim, o trabalho com a sequência didática deve considerar o nível de
dificuldade dos alunos, bem como sua realidade social, a fim de que a aprendizagem
seja significante. Por meio da análise dos exemplares do gênero a ser explorado,
podemos facilitar o processo para que os alunos se apropriem das características do
gênero, compreendendo melhor as condições efetivas da produção de um gênero,
92
os possíveis temas abordados pelo gênero, o tipo de suporte em que comumente
poderemos o encontrar, a finalidade, além dos elementos estruturais que
normalmente o compõem. Dessa forma, a sequência didática tem o papel de
orientar a intervenção dos professores, evidenciando as dimensões ensináveis.
Cabe ao professor, entretanto, priorizar ou descartar determinadas etapas
dessas dimensões, pois cada sala de aula, cada aluno, tem a sua realidade.
Colaborando para que isso seja possível, neste trabalho, pretendemos
apresentar uma proposta de leitura com enfoque em uma abordagem enunciativo-
discursiva da linguagem, ou socioenunciativa da linguagem, fundamentada na
concepção de linguagem do filósofo russo Bakhtin (BAKHTIN, 2000).
Ao elaborarmos a sequência didática para a leitura de contos, podemos
observar que nem todos os descritores da Prova Brasil aplicam-se às habilidades de
leitura adequadas ao gênero discursivo conto. Observamos que alguns deles
dificilmente podem ser aplicados à leitura de textos narrativos, como por exemplo, o
descritor que exige a habilidade de “identificar texto com auxílio de material gráfico
diverso (propagandas, quadrinhos, foto etc.)”. Sendo assim, tomamos o cuidado de
selecionar os descritores da Matriz de Referência da Prova Brasil que podem ser
aplicados ao conto e, ainda, de acrescentar elementos na nossa sequência didática
que contemplem características do gênero, mas que não são citados pela Matriz de
Referência por causa dos problemas já citados na seção 3.3.
Para elaboração da sequência didática para a leitura do conto, tomamos
como referência os seguintes descritores:
D1: Localizar informações explícitas em um texto;
D3: Inferir o sentido de uma palavra ou expressão;
D4: Inferir uma informação implícita em um texto;
D5: Interpretar texto com auxílio de material gráfico diverso (somente haverá
possibilidade de trabalhar atividades a partir desse descritor, se no suporte do conto
houver ilustrações.);
D6: Identificar o tema de um texto;
D10: Identificar o conflito gerador do enredo e os elementos que constroem a
narrativa;
D11: Estabelecer relações lógico-discursivas presentes no texto, marcadas
por conjunções, advérbios etc.;
D12: Identificar a finalidade de textos de diferentes gêneros;
93
D16: Identificar efeitos de ironia ou humor em textos variados;
D17: Identificar o efeito de sentido decorrente do uso da pontuação e de
outras notações;
D18: Reconhecer o efeito de sentido decorrente da escolha de uma
determinada palavra ou expressão;
D19: Reconhecer o efeito de sentido decorrente da exploração de recursos
ortográficos e/ou morfossintáticos.
Procurando contemplar esses descritores da Matriz de Referência da Prova
Brasil, bem como as competências e habilidades estabelecidas pelo PISA e, ainda,
tendo como referência a sequência didática proposta por Lopes-Rossi et al (2011)
para a leitura de contos de mistério, propomos neste trabalho uma sequência
didática básica para a leitura do conto.
Lembramos que a escolha dos descritores leva em consideração o gênero
discursivo e a série/ano na qual ela será aplicada. A sequência didática proposta
deve ser reavaliada de acordo com a realidade de cada sala de aula, uma vez que
as etapas da sequência didática devem atender às necessidades do aluno e,
portanto, devem também ser reavaliadas quando do planejamento do professor,
adequando-as ao seu contexto de ensino.
Não podemos esquecer que o trabalho com a sequência didática em projetos
pedagógicos permite que se flexibilize a aprendizagem de acordo com o
desenvolvimento e a aprendizagem dos alunos, de modo que eles possam transpor
o conhecimento também a situações fora do âmbito escolar. Nesse sentido, é
importante que haja reflexões a respeito da maneira como o texto literário é recebido
pelos alunos, ou seja, entendendo, junto aos alunos, como a obra literária dialoga
com cada história pessoal e em que medida ela é cara ao equilíbrio humano em
sociedade.
Antes de iniciarmos um projeto de leitura de contos, tomando como ponto de
partida a sequência didática sugerida, acreditamos ser interessante procurar
despertar nos alunos o interesse à leitura, convidando-os a falarem sobre suas
experiências de ouvirem histórias, promovendo discussões como:
1- Ouviram histórias em sua infância? Quais histórias costumavam ouvir?
2- Gostavam de ouvir tais histórias? Por quê?
3- Quais os sentimentos elas despertavam?
4- Em algumas das vezes, pensaram que elas poderiam ser verdadeiras?
94
5- Sentem saudades das narrativas que lhes eram contadas?
Esses questionamentos são importantes na medida em que despertam,
àqueles que já ouviam histórias quando crianças, sentimentos de nostalgia e de
vontade de querer ouvir mais, relembram o tempo passado ao lado de pessoas
queridas que lhe contavam tais histórias.
A fim de mobilizar os conhecimentos prévios a respeito do gênero discursivo
conto que os alunos já trazem consigo para a sala de aula, é importante promover
ainda questões como:
1- Vocês sabem o que é um conto?
2- Já leram um conto?
3- Onde podemos encontrar os contos?
4- Sabem para que serve um conto?
5- Quais os assuntos que podemos encontrar em um conto?
6- Existe, em especial, algum conto que vocês já leram e que ainda se
recordam da história?
7- O que normalmente encontramos nos contos: personagens, conflitos...?
8- Esses conflitos se resolvem ou não?
Esses questionamentos apontados como opção de um diálogo com a turma
são sugeridos para serem aplicados antes dos procedimentos de leitura constantes
da sequência didática proposta. O professor pode, durante o processo de ativar os
conhecimentos prévios dos alunos, ir construindo na lousa uma seleção de tópicos
com as palavras-chave mencionadas pelos alunos, a fim de que eles possam
visualizar suas ideias destacadas.
Seguem, a seguir, os quadros com os quatro procedimentos de leitura: a
leitura rápida, a leitura completa, a leitura detalhada e a leitura crítica, ficando a
critério do professor uma possível adaptação com outras possibilidades de
atividades que possam ser contempladas durante a prática desses procedimentos.
95
Primeiro procedimento: leitura rápida (leitura global ou pré-leitura).
ATIVIDADES PROPOSTAS
O QUE SE PRETENDE: Descritores da Matriz de Referência da Prova Brasil associados às atividades.
1- Entregar uma cópia do conto escolhido aos
alunos, a fim de que seja feita uma leitura rápida do título, ilustração (se houver), alguma palavra que se destaque para ativação do conhecimento prévio do aluno sobre o conto a ser lido;
2- Fazer perguntas aos alunos para que eles respondam oralmente:
• Que pistas o título ou as ilustrações nos dão sobre o assunto do conto que iremos ler?
• Se houver imagens: de acordo com as imagens, quem são as personagens? O que deve ter acontecido na história?
• De acordo com as imagens, que sensações esse texto poderá provocar nos leitores?
CONHECIMENTO SOBRE O
GÊNERO CONTO
Levantamento das características sociocomunicativas do conto: condições de produção, circulação, temáticas, propósito comunicativo/finalidade/objetivo. (Esse levantamento já é feito antes da entrega do conto, conforme questionamentos sugeridos acima).
localização de informações explícitas (D1)
interpretação com auxílio de material gráfico (D5)
identificação da finalidade do texto (D12)
Nível de compreensão esperado: reconhecimento do gênero conto, aquisição de conhecimento novo sobre o gênero, levantamento de algumas hipóteses sobre a história, compreensão mínima.
96
Segundo procedimento: Estabelecimento de objetivos para leitura completa
do conto.
ATIVIDADES PROPOSTAS
O QUE SE PRETENDE Descritores da Matriz de Referência da Prova Brasil associados às atividades.
1- Fornecer as perguntas antes da leitura e solicitar as respostas às perguntas por escrito, após a leitura:
O que aconteceu com as personagens?
Onde e quando acontecem as ações?
O que motivou o conflito?
O conflito se resolveu?
2- Pedir para que os alunos leiam o texto em silêncio e respondam as perguntas. (essa primeira leitura pode ser silenciosa, a fim de que os alunos desenvolvam a habilidade de concentração na leitura de um texto).
Em um segundo momento, o professor pode pedir para que os alunos leiam em voz alta: cada aluno pode ler um parágrafo ou se houver personagens, pode haver um narrador e um leitor para cada personagem. (esse tipo de atividade pode favorecer a desinibição de alguns alunos que sentem vontade de ler, mas são tímidos). Em um terceiro momento, caso o professor acreditar que seja necessário, fazer, ele próprio, a leitura para os alunos, a fim de que eles percebam a entonação e a expressividade, que porventura não tenham acontecido quando da leitura feita pelos alunos. 3- Retomar as perguntas respondidas pelos alunos
e corrigi-las. Deve-se dar abertura e tempo necessário para que os alunos possam se expressar a respeito dos personagens, do espaço, do tempo, do conflito.
localização de informações explícitas (D1);
Inferências sobre o comportamento das personagens (D4)
Identificação do conflito gerador do enredo e dos elementos que constroem a narrativa (D10);
Estabelecimento de relação causa e consequência entre partes e elementos do texto (D11);
Nível de compreensão esperado: compreensão básica dos fatos que compõem a história (a narrativa).
97
Terceiro procedimento: Estabelecimento de objetivos para uma leitura
detalhada de certas partes do conto.
ATIVIDADES PROPOSTAS
O QUE SE PRETENDE Descritores da Matriz de referência da Prova Brasil associados às atividades.
1- Fornecer as perguntas e solicitar respostas por escrito.
• De acordo com o enredo do conto, qual é o
tema (ideia) central da narrativa?
• Como vocês puderam identificar o tema do
conto?
• Que elementos do conto favorecem ou
provocam o conflito na narrativa?
• Existem palavras ou expressões do texto
ajudam a criar o ambiente da narrativa,
favorecendo a identificação do tema do
conto?
• No texto, o que significa a palavra (...)?
(esse item se aplica quando houver termos
ou expressões difíceis e que mereçam ser
explorados)
• Pergunta para distinção de fato ou opinião
do personagem ou narrador. (se houver
possibilidade de explorar isso no conto).
2- Corrigir oralmente com os alunos.
Identificação do tema do texto (D6)
Inferência de informações implícitas (D4)
Estabelecimento de relações entre partes do texto (D11)
Identificação de efeito de sentido
decorrente do uso da pontuação e de outras notações (D17)
Reconhecimento do efeito de sentido decorrente da escolha de uma determinada palavra ou expressão (D18)
Reconhecimento do efeito de sentido decorrente da exploração de recursos ortográficos e/ou morfossintáticos (D18) e (D19)
Identificação de ironia ou humor
(D16)
Inferência de sentido de palavra ou expressão (D3)
Nível de compreensão esperado: Compreensão minimamente crítica do conto; percepção dos elementos da narrativa com ênfase nos característicos do conto; identificação das informações relevantes; utilização de conhecimento formal ou público para levantar hipóteses e avaliar criticamente um texto.
98
Quarto procedimento: Posicionamento crítico do leitor relacionado à qualidade
do texto e ao tratamento das informações, de acordo com as características do
gênero.
ATIVIDADES PROPOSTAS
O QUE SE PRETENDE Descritores da Matriz de Referência da Prova Brasil associados às atividades
1- Fornecer as perguntas e solicitar as
respostas por escrito:
Você gostou da história? Por quê?
O desfecho da narrativa correspondeu ao que você esperava? Você daria um desfecho diferente?
Esse tipo de história pode acontecer em nossa realidade? (deixar os alunos comentarem fatos reais que pode haver acontecido nos últimos tempos e que remetem ao tema da narrativa)
A leitura do conto despertou em você algum sentimento? Por quê? Em que momento?
2- Estimular os alunos a colocarem sua
opinião oralmente a respeito de determinados momentos do conto, colocarem seu ponto de vista; dar oportunidade para que, mesmo os alunos mais tímidos, emitam sua opinião, seus sentimentos.
3- Discutir as respostas oralmente, pedindo para que os próprios alunos as comparem, concluindo se existe alguma colocação que se possa elegê-la melhor.
OBS.: Não há descritores da Prova Brasil referentes a esse nível de inferência.
Esse último procedimento visa à reflexão para que haja a possibilidade de múltiplas leituras, com comparações e contrastes com outras obras, a partir do texto lido. Visa também à sensibilização do aluno ao interesse e prazer por novas leituras, de novos textos.
As questões propostas nesse procedimento buscam ratificar o dialogismo inerente à comunicação.
Nível de compreensão esperado: Reflexão e avaliação crítica do conto.
Essas perguntas constantes da sequência didática se apresentam como
sugestões, que podem ser complementadas ou adaptadas pelo professor de acordo
com contexto de sua realidade de sala de aula e com o interesse dos alunos em
explorar o texto. Elas podem ser aplicadas à leitura de qualquer conto.
Lembramos, ainda, que os alunos podem ser desafiados a dramatizarem a
narrativa, montando cenário e figurino de acordo com o período histórico (pode ser
interessante apresentar aos alunos quem é o autor do texto e em que período
99
histórico ele foi produzido, como meio de contextualizá-lo). Também podemos
sugerir aos discentes que adaptem a narrativa aos nossos dias, escrevendo e
dramatizando o conto recriado por eles.
No próximo capítulo, são sugeridos cinco contos, a partir dos quais
exemplificamos sua leitura e análise de acordo com a sequência didática básica
proposta neste trabalho.
100
CAPÍTULO 4
AS APLICAÇÕES DA SEQUÊNCIA DIDÁTICO-PEDAGÓGICA NA
LEITURA DO GÊNERO DISCURSIVO CONTO
O necessário é fazer da escola uma comunidade de leitores que recorrem aos textos buscando resposta para os problemas que necessitam resolver, tratando de encontrar informação para compreender melhor algum aspecto do mundo que é objeto de suas preocupações... desejando conhecer outros modos de vida, identificar-se com outros autores e personagens ou se diferenciar deles, viver outras aventuras, inteirar-se de outras histórias, descobrir outras formas de linguagem para criar novos sentidos. (ABRAMOVICH, 2004, p. 17-18)
A escola é o lugar social de ensino e aprendizagem em que temos a chance
de compartilhar leituras, descobrindo nossa capacidade de compreensão para além
das letras grafadas em um papel; em que temos a chance de nos posicionarmos,
relacionando nossos valores e ideologias ao discurso de um texto. Tomar o texto
literário como objeto de estudo em sala de aula é nos acercarmos do uso da palavra
elaborada, o que requer do professor conhecimento de toda a riqueza e diversidade
da linguagem literária: sutilezas e ambiguidades. Segundo os Parâmetros
Curriculares Nacionais (1998), a literatura deve ter lugar de destaque na formação
escolar.
É com o intuito de despertar o interesse pela literatura enquanto necessidade
metodológica para o ensino da leitura significativo e formador, que apontamos a
análise de cinco contos, a partir da sequência didática básica, apresentada no
capítulo anterior.
4.1 Procedimento prévio ao início da sequência didática de leitura do conto
Conforme argumentado no capítulo anterior, no início de um projeto de leitura
de contos, é importante ouvir os alunos e destacar os termos apontados pelos
alunos que rementem à palavra conto. Repetimos aqui as principais questões a
serem atribuídas aos alunos como motivação de atividades de leitura:
1- Ouviram histórias em sua infância?
2- Quais histórias costumavam ouvir?
101
3- Gostavam de ouvir tais histórias? Por quê? Quais os sentimentos elas
despertavam?
4- Em algumas das vezes, pensaram que elas poderiam ser verdadeiras?
5- Sentem saudades das narrativas que lhes eram contadas?
6- Vocês sabem o que é um conto?
7- Já leram um conto?
8- Onde podemos encontrar os contos?
9- Sabem para que servem os contos?
10- Quais os assuntos podemos encontrar em um conto?
11- Existe, em especial, algum conto que vocês já leram e que ainda se
recordam da história?
12- O que normalmente encontramos nos contos: personagens, conflitos...?
Esses conflitos se resolvem ou não?
Para exemplificar as atividades de leitura a partir dos procedimentos de leitura
da sequência didática básica, escolhemos os contos: “A devota das Almas”,
Cascudo (1952); “Conto de escola”, Assis (1840); “Com certeza tenho amor”,
Colasanti (2005); “Restos do carnaval”, Lispector (1998) e “O arquivo” (Giudice,
1986). Escolhemos esses contos cada qual por sua razão: o primeiro, por se tratar
de um conto de origem remota, levando os alunos a conhecerem um pouco dos
contos que tiveram origem na tradição oral; o segundo, com o objetivo de que os
alunos tenham a oportunidade de conhecer a realidade da escola do século XIX,
podendo compará-la à realidade atual; outra razão para a escolha é o fato de se
tratar de Machado de Assis, um autor clássico da literatura brasileira; o terceiro,
escolhemos por se tratar de uma autora contemporânea que traz de volta todo o
encanto dos contos de fadas, capaz de envolver tanto crianças como adultos por
sua linguagem poética; o quarto, por se tratar de um conto psicológico, introspectivo,
ao qual poucos alunos tem acesso antes do Ensino Médio. E o quinto e último conto,
por registrar, de modo surpreendente, a exploração do ser humano, ainda
persistente em nossa sociedade atual.
Lembramos que cabe ao professor a preparação do ambiente em que serão
realizadas as leituras dos textos. Havendo possibilidade, o professor pode planejar
uma sala ambiente de acordo com a história a ser lida, como por exemplo,
102
preparando a sala disposta em forma círculo ou decorando-a de acordo com a
temática da narrativa, favorecendo a capacidade imaginativa.
4.2 Leitura do conto “A devota das almas”, versão segundo Cascudo (1952)
O conto sobre o qual nos debruçamos relembra as narrativas de tradição oral
e que traziam ensinamentos de ordem moral ou religiosa, tratando de supostos
seres sobrenaturais. Ele é uma versão de um conto muito antigo de tradição oral nos
países nórdicos, tendo sido registrado pela primeira vez pelos Irmãos Grimm, com o
título “As três fiandeiras”.
Reproduziremos aqui novamente os procedimentos da sequência didática, um
a um, com os comentários que acreditamos pertinentes ao conto. As perguntas
básicas dos procedimentos de leitura foram adaptadas, acrescentadas ou
suprimidas, em alguns poucos aspectos, de acordo com as possibilidades de
exploração do conto.
Primeiro procedimento: leitura rápida (leitura global ou pré-leitura).
ATIVIDADES PROPOSTAS
1- Entregar uma cópia do conto escolhido aos alunos, a fim de que seja feita uma
leitura rápida do título, ilustração (se houver), alguma palavra que se destaque para ativação do conhecimento prévio do aluno sobre o conto a ser lido;
2- Fazer perguntas aos alunos para que eles respondam oralmente:
• Que pistas o título nos dá sobre o assunto do conto que iremos ler? • Por meio do título é possível prever quem serão as personagens e o que
acontecerá a elas?
O título poderá dar pistas importantes aos alunos a respeito do conto a ser
lido: “A devota das almas”. A palavra “devota” é feminina, antecedida de artigo
definido, deixando claro que no conto teremos, provavelmente, uma personagem
protagonista feminina. Por que o nome da personagem não aparece no título?
Talvez com a proposta do autor de que seus leitores espelhem suas vidas na vida
da personagem.
103
E por que seria a personagem devota das “almas”? Que “almas” haveriam de
ser essas? Será que se trata de um conto de mistério ou de assombração, por conta
da existência do substantivo “almas” no título do conto? Somente pelo título não dá
para prevermos de que tipo de conto se trata, mas pelo conhecimento de mundo que
os alunos possam ter, eles poderão acreditar que se trata de algum conto de
assombração. No entanto, se nos voltarmos ao significado da palavra “devota”,
veremos que dificilmente essa possibilidade de o conto ser de mistério ou de
assombração fica remota, pois “devota” significa “dedicada”, “piedosa” (FERREIRA,
2011, p. 321).
Segundo procedimento: Estabelecimento de objetivos para leitura completa
do conto.
ATIVIDADES PROPOSTAS
1- Fornecer as perguntas antes da leitura e solicitar as respostas às perguntas por escrito:
O que aconteceu com as personagens?
Onde e quando acontecem as ações?
O que motivou o conflito?
O conflito se resolveu?
2- Pedir para que os alunos leiam o texto em silêncio.
Essa primeira leitura pode ser silenciosa, a fim de que os alunos desenvolvam a habilidade de concentração na leitura de um texto.
Por fim, caso o professor acreditar seja necessário, fazer, ele próprio, a leitura para os alunos, a fim de que eles percebam a entonação e a expressividade, que porventura não tenham acontecido quando da leitura feita pelos alunos.10
3- Retomar as perguntas respondidas pelos alunos, confirmando as respostas ou
corrigindo-as. Deve-se dar abertura e tempo necessário para que os alunos possam se expressar a respeito dos personagens, do espaço, do tempo, do conflito.
Antes da leitura do texto, e ainda por meio da leitura do título, podemos
levantar junto aos alunos hipóteses a respeito da personagem “devota”. Por que ela
foi nomeada pelo seu adjetivo? Podemos entender que esse adjetivo será definitivo
10
Segundo Silva (2009, p. 35), quando a leitura é feita por um “leitor-guia” que vai desvendando junto com os leitores as entrelinhas do texto, esse tipo de leitura prepara o leitor para uma leitura autônoma. Um professor que pratica esse tipo de leitura junto aos seus alunos pode levar os jovens do prazer de ler à apreciação do texto. (SILVA, 2009, p. 44).
104
para o desenvolvimento do enredo, bem como a presença do substantivo “almas”
será decisiva para a resolução do conflito, pois a devoção que a personagem
despende em relação às personagens favorecerá a resolução da situação de conflito
em que a personagem se envolveu em razão de uma brincadeira.
Há outras personagens na narrativa, além da “devota” e das “almas”? Elas
são importantes para desenvolvimento do enredo. Existem outras personagens: as
amigas, personagens que geram o conflito, pois elas que promovem a intriga para a
personagem protagonista; o “rei”, que se casa com a “devota” e as três velhas
senhoras. Deixar os alunos se posicionarem a respeito das características que
observaram ser mais interessantes nas personagens, como, por exemplo, o fato de
nenhum personagem ser denominado por seu nome próprio.
Podemos inferir que as “três senhoras altas, magras e muito esquisitas,
vestidas de branco” são as almas, cujas vestes são brancas. O branco remete à
pureza, qualidade que, pela tradição popular, se entende como inerente às “puras
almas”. As características físicas das velhas senhoras foram carregadas pelo
exagero, já antecipado pelo advérbio de intensidade “muito”, ou seja, “muito
esquisitas”: uma corcovada, outra de olhos esbugalhados e a terceira, com os
braços exageradamente cumpridos.
Ao discutirmos a questão do espaço da narrativa, é interessante lembrarmos
aos alunos de que a narrativa é de tradição oral, cuja origem é muito remota,
remetendo-nos ao tempo em que havia castelos, príncipes e princesas, cujos
costumes também eram muito diferentes dos nossos. Haverá castelos ou reinados
no conto a ser lido? No conto temos a referência ao palácio, local em que moravam
o rei e a devota. Pode-se pedir aos alunos que imaginem como deveria ser esse
palácio: o tamanho dos cômodos, os empregados, a torre, as cores, os materiais de
que era feito.
O conflito, motivado pela intriga realizada pelas amigas da devota, culmina
com o casamento, que acontece mesmo com a personagem sabendo que seria
degolada, uma vez que não haveria de saber fazer a camisa. No entanto, para
surpresa de todos, aparecem no palácio três senhoras “muito esquisitas” que se
diziam tias da protagonista. Essas senhoras são a razão da solução do conflito
vivido pela personagem, pois vieram trazer a solução para o problema sofrido. Com
suas aparências estranhas. Seus aspectos físicos foram a razão para que o rei
105
desistisse da ideia de fazer com que sua esposa fosse “escrava do lar”, pois não
queria que a mulher “tão moça, tão bonita, ficasse feia como as três velhas”.
É importante dar tempo para que todos tenham a oportunidade de falar se
confirmaram suas hipóteses.
Ao finalizarmos esse segundo procedimento de leitura, podemos dar
continuidade com o terceiro procedimento: estabelecimento de objetivos para uma
leitura detalhada de certas partes do conto.
ATIVIDADES PROPOSTAS
1- Fornecer as perguntas e solicitar respostas por escrito.
• De acordo com o enredo do conto, qual é o tema (ideia) central da narrativa?
• Como vocês puderam identificar o tema do conto?
• Que elementos do conto favorecem ou provocam o conflito na narrativa?
• Existem palavras ou expressões do texto ajudam a criar o ambiente da narrativa
que favorece a identificação do tema do conto?
• No texto, o que significam as palavras “fiar”, “fuso” e “cutelo”?
• O que se pode entender do título e das últimas palavras do conto?
2- Corrigir oralmente com os alunos.
Percebemos que o tema central da narrativa está voltado para “as
consequências de uma brincadeira impensada”. A ideia central está relacionada ao
fato que gerou o conflito. Podemos identificar o tema da narrativa logo no primeiro
parágrafo. A conjunção “mas” indica que haverá uma quebra no estado inicial de
equilíbrio, o que se confirma logo a seguir, no mesmo parágrafo, com a traição das
amigas, que culmina com o casamento.
Podemos concluir que a brincadeira provocou o conflito, favorecido pela
“intriga” das “amigas”. A atitude imprudente de confiar nas amigas e inventar uma
brincadeira acerca de uma tarefa que não poderia cumprir acabou quase lhe
custando a vida. Será que isso acontece ainda hoje, em nossa realidade cotidiana?
Como os alunos se posicionam diante da atitude dessas “falsas amigas”? É uma
atitude aprovável?
Podemos observar também, junto com os alunos, a presença de elementos
do conto fantástico, uma vez que as almas são seres sobrenaturais que
transpassam, portanto, a realidade. Seres que assumem a imagem do humano,
106
livrando a protagonista da morte em situações improváveis, e promovendo um final
feliz.
As expressões “correram e foram mais que depressa contar ao rei o que a
moça havia falado” indicam que os fatos aconteceram de modo muito rápido,
provando que as “amigas”, na verdade, não passavam de traiçoeiras que queriam o
pior para a protagonista. O rei acolhe a “intriga” como uma boa novidade e diz que
irá se casar, mas intima: “se ela não fizesse a camisa como havia prometido, iria
para o cutelo. A moça ficou muito triste porque sabia que seria degolada, mas não
teve outro jeito senão se casar com o rei”. Após a afirmação de que a moça ficara
muito triste porque seria degolada, o significado de “cutelo” já pode ser inferido por
todos. Para entender que cutelo será a sentença de morte da “devota”, os alunos
não precisam saber o que é cutelo, mas podemos explicar-lhes que, segundo
Ferreira (2011, p. 276), “cutelo” é um instrumento cortante, semicircular, de ferro. No
Brasil, é comum a referência ao cutelo como o “facão” utilizado pelos açougueiros.
Existem ainda outros termos que podem ser desconhecidos pelos alunos
como: “fiar”, “bordar”, “engomar” e “fuso” e que remetem a atividades femininas, não
mais comuns em nossos costumes contemporâneos. Os verbos fiar, bordar e
engomar estão relacionados a atividades de costura.11 Logo, os alunos poderão,
sem o auxílio do dicionário, inferir de que “fuso” é um instrumento também
relacionado à costura.
As características das velhas que aparecem no palácio estão relacionadas a
cada uma das ações de fiar, bordar e engomar. Ao conversarem com o rei e com a
moça, explicaram as razões de suas aparências: “A primeira disse que estava assim
corcovada de tanto engomar; a segunda, que estava com os olhos esbugalhados
assim de tanto bordar; e a terceira, com os braços tão compridos, de fiar.” Desse
modo, o rei desistiu de exigir o cumprimento da tarefa por sua mulher, por medo de
que ficasse “feia com as três velhas”.
No quarto e último procedimento, privilegiamos o posicionamento crítico do
leitor relacionado à qualidade do texto e ao tratamento das informações, de acordo
com as características do gênero.
11
Fiar significa “reduzir a fio (lã, algodão, etc., em estado bruto)” (FERREIRA, 2011, p. 430); bordar, “fazer bordado” (FERREIRA, 2011, p. 151) e engomar, “pôr goma em; gomar [...] Passar roupa com goma.” (FERREIRA, 2011, p. 366).
107
ATIVIDADES PROPOSTAS
1- Fornecer as perguntas e solicitar as respostas por escrito:
Você gostou da história? Por quê?
O desfecho da narrativa correspondeu ao que você esperava? Você daria um desfecho diferente?
Esse tipo de história pode acontecer em nossa realidade? (deixar os alunos comentarem fatos reais que pode haver acontecido nos últimos tempos e que remetem ao tema da narrativa)
A leitura do conto despertou em você algum sentimento? Por quê? Em que momento?
2- Estimular os alunos a colocarem sua opinião oralmente a respeito de
determinados momentos do conto, colocarem seu ponto de vista; dar oportunidade para que, mesmo os alunos mais tímidos, emitam sua opinião, seus sentimentos.
3- Discutir as respostas oralmente, pedindo para que os próprios alunos as comparem, concluindo se existe alguma colocação que se possa elegê-la melhor.
A protagonista se vê obrigada a aprender a fiar, a bordar e a engomar, como
consequência de uma brincadeira feita com as amigas. A partir dessa informação, é
interessante discutir com os alunos qual o provável período do acontecimento dos
fatos narrados. Os costumes referidos na narrativa como os de fiar, bordar e
engomar, são próprios de uma época bastante remota, em que predominava o
machismo exacerbado, para o qual as mulheres deveriam ser exímias cumpridoras
dos deveres domésticos, portanto, a narrativa remete a tempos muito antigos, no
qual as mulheres não tinham voz.
No entanto, é interessante discutir com os alunos que na atualidade em nossa
sociedade, embora não sejam comuns as atividades de bordar, fiar e engomar,
ainda é comum a exploração das mulheres por outros motivos. Podemos deixá-los
expor quais motivos seriam estes: na sociedade ou na família; deixá-los à vontade
para comentarem se conhecem algum caso de exploração de mulheres. Ainda é
comum encontrarmos casos de homens machistas que exigem que suas mulheres
cumpram atividades domésticas de modo abusivo.
108
Para inibir abusos contra as mulheres, atualmente, existem leis que protegem
a mulher, como a Lei Maria da Penha12, de número 11.340, que entrou em vigor em
22 de setembro de 2006 (BRASIL, 2012). Ainda assim, podemos encontrar muitos
casos de mulheres que sofrem com a agressão, sendo que muitas sequer
denunciam os agressores, por medo de sofrerem ainda mais violência.
Dialogando as realidades vividas pelos alunos e a ideia central do texto,
podemos concluir que o texto traz a lição de que não devemos fazer promessas as
quais não teremos condições de cumprir, pois isso pode ter consequências
desastrosas para nossas vidas. Também faz-nos refletir a respeito de nossas
amizades e prestar atenção àqueles que gostam de fazer intrigas. Será que
devemos confiar em todos aqueles que se dizem nossos amigos?
A narrativa tem como desfecho a salvação da vida da personagem pela
intervenção das almas. Portanto, pelo desfecho, podemos concluir que o título “A
devota das almas” permite e confirma a hipótese de que as personagens das velhas
como figuras fantásticas tiveram papel decisivo no final feliz atribuído à protagonista
graças à sua devoção.
4.3 Leitura do “Conto de escola” (1884)
“Conto de escola” foi publicado pela primeira vez no jornal “Gazeta de
Notícias”, em 1884. A leitura do “Conto de escola”, de Machado de Assis, pode ser
muito gratificante para todas as idades, pois tal qual o conto anteriormente
explorado, “A devota das almas”, traz lembranças de um tempo passado,
reavivando-nos a memória. A linguagem é simples, em um curto espaço de tempo,
ações e sentimentos, promovendo reflexões acerca de como era a escola no século
XIX. No entanto, podemos encontrar nesse conto alguns aspectos próximos à
realidade vivenciada pelos alunos, uma vez que apresenta uma personagem que
tem contato, pela primeira vez, com a corrupção e a delação.
12
Essa lei foi criada com o objetivo de proteger os direitos da mulher, na tentativa de impedir que haja qualquer violência doméstica e familiar contra a mulher, seja ação ou omissão “que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.” (BRASIL, 2012, Disponível em: <http://www.in.gov.br/visualiza/index.jsp?data=08/08/2006&jornal=1&pagina=1&totalArquivos=56> Acesso em: 22 mar. 2012.)
109
Primeiro procedimento: leitura rápida (leitura global ou pré-leitura).
ATIVIDADES PROPOSTAS
1- Entregar uma cópia do conto escolhido aos alunos, a fim de que seja feita uma
leitura rápida do título, ilustração (se houver), alguma palavra que se destaque para ativação do conhecimento prévio do aluno sobre o conto a ser lido;
2- Fazer perguntas aos alunos para que eles respondam oralmente:
• Que pistas o título nos dá sobre o assunto do conto que iremos ler? • Se houver imagens: de acordo com as imagens, quem são as personagens? O
que deve ter acontecido na história? • De acordo com as imagens, que sensações esse texto poderá provocar nos
leitores?
Já a partir da leitura do título podemos questionar os alunos a respeito de que
hipóteses podem levantar com relação ao assunto que irá ser abordado no conto.
Quais os assuntos mais comuns relacionados à escola: a educação? O estudo? Os
livros? As provas? As tarefas? As relações entre professor e aluno? As relações
entre os colegas de sala? A indisciplina? O gostar ou não da escola? E o que mais?
Deixar os alunos levantarem as hipóteses.
Assim, de acordo com a sequência didática proposta neste trabalho, após a
exploração da leitura do título, reiterando também as questões apontadas no
primeiro procedimento de leitura (a leitura rápida), estabelecemos alguns objetivos, a
fim de que os alunos possam fazer uma primeira leitura da narrativa com foco na
resolução dos questionamentos.
De acordo como o título, podemos prever que, entre as personagens, estarão
envolvidos alunos em uma escola, hipótese que irá se confirmar, uma vez que o
próprio protagonista é um aluno. O termo “conto” já antecipa que o gênero discursivo
a ser lido será um conto, prevendo que a narrativa se desenvolverá em um curto
espaço de tempo, com reduzido número de personagens.
110
Segundo procedimento: estabelecimento de objetivos para uma leitura
detalhada de certas partes do conto.
ATIVIDADES PROPOSTAS
1- Fornecer as perguntas antes da leitura e solicitar as respostas às perguntas por escrito:
O que aconteceu com as personagens?
Onde e quando acontecem as ações?
O que motivou o conflito?
O conflito se resolveu?
2- Pedir para que os alunos leiam o texto em silêncio.
Essa primeira leitura pode ser silenciosa, a fim de que os alunos desenvolvam a habilidade de concentração na leitura de um texto.
3- Retomar e confrontar as hipóteses anteriormente levantadas pelos alunos,
confirmando-as ou eliminando-as. Deve-se dar abertura e tempo necessário para que os alunos possam se expressar a respeito dos personagens, do espaço, do tempo, por exemplo.
A maior parte do desenvolvimento do enredo acontece dentro da escola,
conforme nos remete o título. Pilar é um garoto que gosta de cabular aulas. Assim, a
narrativa tem como enredo um desses dias em que Pilar resolve aparecer na escola,
movido pela lembrança do último castigo que recebera de seu pai. Pilar recebe um
desafio de seu colega de sala, Raimundo, um desafio contrário às regras da escola,
e Policarpo, que era o professor, acaba por descobrir o ato ilícito praticado pelos
alunos. Há ainda, o “delator”, Curvelo, o garoto também colega de sala, responsável
pela descoberta pelo professor.
O conto é narrado em primeira pessoa, um narrador-protagonista, em que o
narrador, ele próprio, tece lembranças da escola, promovendo um caráter maior de
verossimilhança aos olhos do leitor. O narrador conta sobre um dia que marcou sua
vida por ter lhe trazido o conhecimento de dois conceitos: o da corrupção e o da
delação.
O fato de o conto ser narrado em primeira pessoa, sendo um narrador-
protagonista, favorece o fato de ele ter atribuído a si uma imagem otimista e positiva,
relegando às demais personagens um caráter negativo. Pilar era um dos alunos
mais inteligentes e espertos como o próprio narrador-protagonista afirma:
111
Começou a lição de escrita. Custa-me dizer que eu era dos mais adiantados da escola; mas era. Não digo também que era dos mais inteligentes, por um escrúpulo fácil de entender e de excelente efeito no estilo, mas não tenho outra convicção. Note-se que não era pálido nem mofino: tinha boas cores e músculos de ferro. Na lição de escrita, por exemplo, acabava sempre antes de todos, mas deixava-me estar a recortar narizes no papel ou na tábua, ocupação sem nobreza nem espiritualidade, mas em todo caso ingênua.
No entanto, “não era um menino de virtudes”, quando menciona o fato de
cabular aulas e de receber o castigo do pai. Esse deveria ser, provavelmente, seu
maior defeito ante os olhos do pai, que “era um velho empregado do Arsenal de
Guerra, ríspido e intolerante” e que sonhava para o filho “uma grande posição
comercial”. A característica de ser ríspido se comprova pelos castigos que Pilar
recebe, pois as sovas de vara de marmeleiro lhe “doíam por muito tempo”. A última
sova recebera há uma semana dos relatos do conto e podemos inferir ainda lhe
doessem por ocasião da decisão de ir à escola naquele dia.
O professor, Policarpo, também não era diferente do pai na intolerância e na
rispidez. Isso se comprova pela fala do narrador: “Subi a escada com cautela, para
não ser ouvido do mestre, e cheguei a tempo; ele entrou na sala três ou quatro
minutos depois”. Podemos perceber o extremo cuidado que tem para não contrariar
o professor: uma figura bastante antiquada de acordo com as descrições do
narrador: “em chinelas de cordovão, com a jaqueta de brim lavada e desbotada,
calça branca e tesa e grande colarinho caído”. O professor era considerado
bastante severo por conta das palmatórias, mas não tão severo quanto o era com o
filho, Raimundo (“O mestre era mais severo com ele do que conosco” [...] “buscava-
o muitas vezes com os olhos, para trazê-lo mais aperreado.”).
Raimundo, filho de Policarpo e colega de Pilar:
[...] gastava duas horas em reter aquilo que a outros levava apenas trinta ou cinquenta minutos; vencia com o tempo o que não podia fazer logo com o cérebro. Reunia a isso um grande medo ao pai. Era uma criança fina, pálida, cara doente; raramente estava alegre.
Raimundo tinha grande dificuldade e, ao contrário do colega, Pilar acabava a
lição antes de todos, e é por isso que Raimundo se atreveu a pedir ajuda. A ajuda
viria em troca de uma moedinha, à qual o protagonista demonstrou interesse: “Era
uma moeda do tempo do rei, cuido que doze vinténs ou dois tostões, não me
lembro; mas era uma moeda, e tal moeda que me fez pular o sangue no coração.”
112
O conflito tem início, portanto, quando Pilar recebe a oferta da moeda por
Raimundo. Ele “não queria recebê-la”, mas custava-lhe recusá-la ante a insistência
de seu colega, apresentando-lhe a moeda, que, segundo o narrador-protagonista,
era “bonita, fina, branca, muito branca; e para mim, que só trazia cobre no bolso,
quando trazia alguma coisa, um cobre feio, grosso, azinhavrado...”.
Para tristeza de Pilar e de Raimundo, seu colega de sala, Curvelo, “um pouco
levado do diabo”, com onze anos e mais velho que os outros dois, presencia a
atitude de ambos. Pelas descrições, já podemos prever que o ato não ficará às
escondidas, será delatado ao professor por Curvelo que não tirou os olhos dos dois
colegas, aguardando pelo motivo e pelo desfecho da conversa dissimulada.
O conflito tem como clímax o contrato descoberto pelo professor, ou melhor, o
momento em que o ato inadequado havia sido delatado por Curvelo ao professor. A
descoberta foi o estopim para mais uma das sessões de palmatória e xingamentos
de Policarpo.
O conflito tem seu desfecho, pois, com o castigo, levando o protagonista a
refletir diante de sua atitude e primeira experiência ante a corrupção. Mas, por fim,
deixa-se seduzir novamente pelo “tambor” dos fuzileiros, esquecendo a moeda e a
vingança, cabulando as aulas novamente em sua inocência de infância.
113
Terceiro procedimento de leitura: estabelecimento de objetivos para uma
leitura detalhada de certas partes do conto.
ATIVIDADES PROPOSTAS
1- Fornecer as perguntas e solicitar respostas por escrito.
• De acordo com o enredo do conto, qual é o tema (ideia) central da narrativa?
• Como vocês puderam identificar o tema do conto?
• Que elementos do conto favorecem ou provocam o conflito na narrativa?
• Existem palavras ou expressões do texto ajudam a criar o ambiente da narrativa
que favorece a identificação do tema do conto?
• No texto, o que significa a palavra (...)? (esse item se aplica quando houver termos
ou expressões difíceis e que mereçam ser explorados)
• Pergunta para distinção de fato ou opinião do personagem ou narrador. (se houver
possibilidade de explorar isso no conto).
2- Corrigir oralmente com os alunos.
Podemos concluir que o tema central da narrativa é o da corrupção, uma vez
que ela é a principal geradora do conflito e em torno dela se desenvolvem as ações
principais das personagens.
Mas o que motivou a corrupção? Conforme descrito pelo narrador-
personagem, Raimundo era uma criança que sofria com os castigos do pai mais que
os colegas da escola. À severidade do pai, soma-se a dificuldade em cumprir com
facilidade as lições da escola, razão pela qual se vê na necessidade de pedir ajuda
ao colega, Pilar. Em troca da ajuda de uma lição de sintaxe, oferece uma
“moedinha” que havia ganhado da mãe, possivelmente mais compreensiva e amável
que o pai. O ato ilícito, dessa maneira, surge do medo do pai que também era o
professor.
Pilar, por sua vez, não queria aceitar, apesar de sua inocência própria da
infância e de admitir que sabia bem enganar com mentiras de criança, sentiu que
aquela não seria uma atitude aprovada:
Tive uma sensação esquisita. Não é que eu possuísse da virtude uma ideia antes própria de homem; não é também que não fosse fácil em empregar uma ou outra mentira de criança. Sabíamos ambos enganar ao mestre. A novidade estava nos termos da proposta, na troca de lição e dinheiro, compra franca, positiva, toma lá, dá cá; tal foi a causa da sensação. Fiquei a olhar para ele, à toa, sem poder dizer nada.
114
Explica, por suas palavras, que a razão da “sensação esquisita”, estava na
“novidade”, “nos termos da proposta”. Afirma ser “novidade” a experiência de alguém
lhe oferecer dinheiro em troca da lição, ou seja, lhe era novidade a ideia da
corrupção.
A insistência foi tamanha que não resistiu à “tentação”, a “pratinha fuzilava-lhe
entre os dedos, como se fora diamante...”. O medo do mestre foi vencido pelo
desejo de possuir a moeda. No entanto, a posse da moeda durou menos tempo que
a negociação e surtiu efeitos por demais dolorosos.
As consequências sofridas pelo narrador remetem-nos às características de
um conto de exemplo. Podemos inferir que, quando o narrador-personagem afirma
ter uma “sensação esquisita” diante da ideia de aceitar a moeda em troca da ajuda,
ele já tem uma formação moral, embora ainda criança, de que tal atitude não seria
aprovada pela sociedade. Essa inferência se confirma após a descoberta do ato pelo
professor: “Ele enterrou-me pela consciência dentro um par de olhos pontudos”, ao
se referir à consciência, refere-se à questão moral, que fica arraigada à consciência.
Os “olhos pontudos” revelam a dor de se ter a consciência ferida, como algo que lhe
perfurasse atingindo o mais profundo de um ser humano.
No entanto, a dor não fora suficiente para que esquecesse a moeda: “E
sonhei com a moeda; sonhei que, ao tornar à escola, no dia seguinte, dera com ela
na rua, e a apanhara, sem medo nem escrúpulos...”. Acordou com a ideia de
buscar a moeda e saiu de casa, “como se fosse trepar ao trono de Jerusalém.”
Expressão que nos remete à posição de rei, que é bem como ele já estava se
sentindo: havia ganhado uma calça nova de sua mãe e foi correndo para a escola,
cuidando para que não a sujasse. Seu objetivo era encontrar a moeda, mas “o
diabo do tambor” o fez esquecer a moeda, voltando para a casa com as calças
sujas, manchadas.
O desfecho do conto nos mostra que apesar de tudo, não restou
ressentimento na alma de Pilar. Sua ingenuidade infantil prevaleceu sobre a
ambição e a vingança.
É interessante discutir com os alunos o uso de alguns termos que remetem ao
tempo e ao espaço dos acontecimentos da narrativa. Com relação ao período
histórico temos, no texto, a referência ao tempo “no fim da Regência”.
O período regencial, na História do Brasil, aconteceu entre 1831 a 1840,
compreendido entre a abdicação de D. Pedro I e o chamado “Golpe da
115
Maioridade”, quando seu filho D. Pedro II teve a maioridade proclamada. Foi um
dos mais importantes e agitados períodos da História brasileira, pois nele se
firmaram a unidade territorial do país e a estruturação das Forças Armadas. Várias
rebeliões marcaram o período regencial, como a Revolução Farroupilha ou Guerra
dos Farrapos (1835-1845), que foi a considerada a mais importante e duradoura.
Apesar das intensas revoltas ocorridas no período, a ordem social latifundiária e
escravista foi mantida. (DOMINGUES; FIUSA, 2000, p. 104)
Ainda nos remetendo ao período histórico, o narrador-protagonista faz
referência ao fato de que “Policarpo tinha decerto algum partido”. Quando se refere
a partido, refere-se às facções políticas que surgiram à época: os liberais e os
restauradores. Os liberais, subdivididos entre moderados (designados também
como “chimangos”) e exaltados (também denominados “farroupilhas” ou
“jurujubas”), tinham posições políticas diversas que iam desde a manutenção de
estruturas monárquicas à formulação de um novo governo republicano. Os
restauradores, dos quais faziam parte funcionários públicos, militares
conservadores e comerciantes portugueses, acreditavam que a estabilidade
deveria ser reavida com o retorno de D. Pedro I. (DOMINGUES; FIUSA, 2000, p.
101-102)
Com relação ao espaço temos a referência à Rua do Costa, ao morro de S.
Diogo, ao Campo Sant’Ana e à praia da Gamboa, todas referências à cidade do Rio
de Janeiro. Interessante observar com os alunos que a referência à praia da
Gamboa, também aparece em outra obra de Machado de Assis, “Quincas Borba”,
publicado em 1892. Gamboa, localizado em uma região de águas mais calmas da
Baía de Guanabara, é um bairro da Zona Portuária do Rio de Janeiro, bairro central
da cidade, com comércios, indústrias e residências da classe média baixa. No
entanto, entre o final do século XVIII e boa parte do século XIX, era um local
escolhido pelas pessoas de maior poder aquisitivo para suas chácaras e mansões.
Outros termos como: “chinelas de cordovão” (chilenas feitas de couro de
cabra); “calça branca e tesa” (esticada); e “boceta de rapé” (um acessório
indispensável que acompanhava a indumentária masculina brasileira no período
colonial; uma caixa pequena e oval que carregava o rapé, um pó feito do tabaco e
estimulante do nariz para provocar o espirro; ainda hoje é possível encontrá-lo em
tabacarias) são usados para caracterizar Policarpo, apresentando-o como uma
figura típica do século XIX.
116
Quarto procedimento: Posicionamento crítico do leitor.
ATIVIDADES PROPOSTAS
1- Fornecer as perguntas e solicitar as respostas por escrito:
Você gostou da história? Por quê?
O desfecho da narrativa correspondeu ao que você esperava? Você daria um desfecho diferente?
Esse tipo de história pode acontecer em nossa realidade? (deixar os alunos comentarem fatos reais que pode haver acontecido nos últimos tempos e que remetem ao tema da narrativa)
A leitura do conto despertou em você algum sentimento? Por quê? Em que momento?
2- Estimular os alunos a colocarem sua opinião oralmente a respeito de
determinados momentos do conto, colocarem seu ponto de vista; dar oportunidade para que, mesmo os alunos mais tímidos, emitam sua opinião, seus sentimentos.
3- Discutir as respostas oralmente, pedindo para que os próprios alunos as comparem, concluindo se existe alguma colocação que se possa elegê-la melhor.
O narrador finaliza o conto da seguinte maneira: “E contudo a pratinha era
bonita e foram eles, Raimundo e Curvelo, que me deram o primeiro conhecimento,
um da corrupção, outro da delação; mas o diabo do tambor...”. Por meio dessa
afirmação, podemos duvidar que houve verdadeiro arrependimento por parte de
Pilar. Apesar de haver sofrido diversos “impropérios”13 por parte do professor,
sentiu vontade de reaver a moeda e por conta de uma atração irresistível ao tambor
dos fuzileiros, esquece a moeda, esquece a vingança e esquece a escola. Por final,
na última frase, utiliza da adversativa “mas”, como que contrariado pela ideia de
haver perdido a moeda em troca do tambor, ao qual se refere com um xingamento:
“o diabo”.
Assim, podemos concluir que, não obstante se trate de um conto de exemplo,
Machado de Assis se utiliza de um tom de ironia ao tratar do tema da corrupção,
deixando aos leitores a tarefa de refletir acerca do arrependimento ou não por parte
do narrador-protagonista: será que ele não aceitaria a moeda, se novamente fosse
interpelado por algum colega? Pelo texto, podemos inferir que sim, pois estava
13
Impropérios, segundo Ferreira (2011, p. 498) significa ato ou palavra repreensível, ofensiva; vitupério; repreensão injuriosa.
117
decidido a voltar e obter a moeda de volta, bem como a se vingar de Curvelo.
Esqueceu momentaneamente, em virtude de suas brincadeiras de moleque.
Há que se ressaltar também que o autor deixa subjacente a ideia de que nós,
seres humanos, desde a infância, já tomamos conhecimento de atitudes ilícitas, e
muitas vezes podemos ser atraídos por elas. Pilar sentiu teve uma sensação
esquisita quando lhe fora oferecida a moeda, no entanto, o instinto de possuir a
moeda foi mais forte. Será que já nascemos predispostos às atitudes ilícitas?
Segundo Freud (1930), o homem é constituído de duas naturezas distintas dirigidas
por “Eros” e “Tânatos”, que, segundo a mitologia grega, são duas figuras que se
opõem, o deus grego do amor e a personificação da morte. O homem é movido por
estas duas pulsões: Eros, a pulsão da vida, e Tânatos, a pulsão da morte. Portanto,
será o meio em que vive o homem que fará com que no homem se sobressaia uma
ou outra natureza.
No caso de Pilar, quando afirma: “Ele enterrou-me pela consciência dentro um
par de olhos pontudos”, utilizando-se do termo consciência, demonstra que tinha
formação ética e moral internalizada, no entanto, agiu movido pela pulsão, que não
se encontra na consciência, e sim, em um reservatório de pulsões, ao qual Freud
(1930) denominou “id”, que também se manifestou quando não mente para a mãe
(mas não conta exatamente a verdade), evitando assim mais castigos e
xingamentos: “Em casa não contei nada, é claro; mas para explicar as mãos
inchadas, menti a minha mãe, disse-lhe que não tinha sabido a lição.”
É interessante discutir com os alunos que os castigos aplicados naquela
época, meados do século XIX, tais como, a “vara de marmeleiro” e a “palmatória”, e
aprovados pela sociedade daquele século, são muito dolorosos e não são mais
tolerados. Atualmente, existem leis que protegem a criança e o adolescente de
qualquer situação de abandono ou de violência, como, por exemplo, o ECA
(Estatuto da Criança e do Adolescente), instituído pela Lei 8.069, no dia 13 de julho
de 1990.
Durante séculos, a “palmatória” era instrumento permitido dentro das escolas
para castigar os alunos indisciplinados, com golpes em suas mãos. No entanto,
hoje é considerado crime em muitos países, inclusive no Brasil. Os castigos físicos
não são mais permitidos nas escolas ou dentro das famílias. Países do primeiro
mundo, hoje, autorizam pais e professores a usarem os antigos instrumentos de
castigo. Recentemente, em 2004, o parlamento inglês voltou a discutir a
118
necessidade de aplicar castigos físicos como medida educacional legítima. (LIMA,
2004). Propor um diálogo entre os alunos para que opinem a favor ou não a
respeito desses meios coercitivos pode ser um meio de proporcioná-los uma
atividade de interação de modo que eles possam argumentar diante dessa
situação, imaginando-se como partícipes daquela realidade.
4.4 Leitura do conto: “Com certeza tenho amor” (COLASANTI, 2005)
O conto faz parte do livro “23 histórias de um viajante”, de Marina Colasanti
(2005). A leitura do conto de Marina Colasanti, “Com certeza tenho amor”, remete-
nos ao mundo dos príncipes e princesas, ao mundo dos contos de fadas, sendo
assim, também nos faz reavivar a memória, retomando narrativas imortalizadas
pela tradição oral. A sensibilidade da linguagem literária da autora nos transporta a
um mundo de castelos e de sonhos, fazendo-nos refletir sobre valores reais da
alma humana.
Primeiro procedimento: leitura rápida (leitura global ou pré-leitura).
ATIVIDADES PROPOSTAS
1- Entregar uma cópia do conto escolhido aos alunos, a fim de que seja feita uma
leitura rápida do título, ilustração (se houver), alguma palavra que se destaque para ativação do conhecimento prévio do aluno sobre o conto a ser lido;
2- Fazer perguntas aos alunos para que eles respondam oralmente:
• Que pistas o título ou as ilustrações nos dão sobre o assunto do conto que iremos ler?
• Se houver imagens: de acordo com as imagens, quem são as personagens? O que deve ter acontecido na história?
• De acordo com as imagens, que sensações esse texto poderá provocar nos leitores?
O título permite-nos inferir que a narrativa irá tratar de uma história de amor;
a hipótese levantada irá se confirmar no decorrer da narrativa. Pelo uso da primeira
pessoa no título, podemos inferir que existe uma personagem que descobriu o
sentimento de amor. Logo, também é possível prever que nessa narrativa haverá
119
ao menos duas personagens e que uma delas acaba por afirmar a certeza no
amor.
Segundo procedimento: estabelecimento de objetivos para uma leitura
detalhada de certas partes do conto.
ATIVIDADES PROPOSTAS
1- Fornecer as perguntas antes da leitura e solicitar as respostas às perguntas por escrito:
O que aconteceu com as personagens?
Onde e quando acontecem as ações?
O que motivou o conflito?
O conflito se resolveu?
2- Pedir para que os alunos leiam o texto em silêncio.
Essa primeira leitura pode ser silenciosa, a fim de que os alunos desenvolvam a habilidade de concentração na leitura de um texto.
3- Em um segundo momento, o professor pode pedir para que os alunos leiam em voz
alta: cada aluno pode ler um parágrafo ou se houver personagens, pode haver um narrador e um leitor para cada personagem. (esse tipo de atividade pode favorecer a desinibição de alguns alunos que sentem vontade de ler, mas são tímidos).
Por fim, caso o professor acreditar seja necessário, fazer, ele próprio, a leitura para os alunos, a fim de que eles percebam a entonação e a expressividade, que porventura não tenham acontecido quando da leitura feita pelos alunos.
Retomar as perguntas respondidas pelos alunos, confirmando as respostas ou corrigindo-as. Deve-se dar abertura e tempo necessário para que os alunos possam se expressar a respeito dos personagens, do espaço, do tempo, do conflito.
O texto é narrado em terceira pessoa, por um narrador que conhece os
sentimentos e emoções das personagens, favorecendo a revelação da vida íntima
das personagens, deixando entrever seus sentimentos. Podemos confirmar a
existência de duas personagens que são tocadas pelo sentimento de amor: uma
moça e um jovem saltimbanco, protagonistas dessa narrativa. Há, também,
personagens secundárias: a ama, o pai da moça e os irmãos do jovem.
Podemos confirmar a existência de um sentimento de amor por meio das
atitudes das personagens descritas pelo narrador. O jovem valente é tomado por
120
“uma fraqueza que não conhecia deslizou para dentro de seu peito”, “à noite
suspirava” como se estivesse doente. A moça ria e cantava – note-se o uso do
pretérito imperfeito, conferindo a ideia de ações que se repetiam por muitas vezes.
Ambos deixavam a comida de lado, uma vez que o amor lhes consumia os
pensamentos.
Mas o narrador deixa claro que se trata de um amor proibido. O texto não
menciona o nível social da moça, mas podemos prever que se tratava de alguma
filha de pessoa nobre, uma vez que tinha uma “ama”, uma criada, que a
acompanhava. O pai acreditava ter criado a filha com “tanto esmero”, ou seja, com
tanto cuidado e refinamento, que não admitia que a filha saísse para a feira, com
medo que ela se engraçasse por um “saltimbanco”: “Artista popular que se exibe,
geralmente, em circos e feiras, sobre estrado.” (FERREIRA, 2011, p. 792).
Quanto ao jovem, sabemos que é um saltimbanco, provindo de família
humilde. Entre os onze irmãos, “era o mais jovem era o mais forte era o mais
valente”, dotado, pois, de características nobres, embora não ocupasse posição
social nobre.
Não nos é mencionado a época em que ocorreram os fatos da narrativa, mas
as personagens nos remete à um tempo bem distante de reis e rainhas, de príncipes
e princesas, de castelos e de heróis salvando donzelas: a moça, acompanhada
sempre por uma ama, usava um véu, cobrindo metade do rosto, e o rapaz usava
“calçados de feltro”.
O espaço também é muito restrito: as ações acontecem em uma rua próxima
à feira e sabemos que a moça mora em uma casa, pois o pai “trancou-a no quarto
mais alto de sua alta casa”, portanto não seria uma princesa que morasse em um
castelo, mas sim filha de um nobre e este almejava para ela um bom casamento.
A moça era “tão resguardada” por seus pais. O primeiro período do texto traz
pistas para entendermos a razão do início do conflito: a moça “não deveria ter ido à
feira”. O uso do futuro do pretérito anuncia uma ação que não poderia ter
acontecido, mas a locução verbal “ter ido” indica que a ação já se consumou: ela
não foi à feira, mas convenceu a ama a tomar outro caminho para a igreja, passando
por uma rua “tão perto da feira que seus sons a percorriam como água e as cores
todas da feira pareciam espelhar-se nas paredes claras”.
Ir à feira seria considerado um perigo para a filha, na opinião de seus pais,
que queriam protegê-la de algo que previam que poderia acontecer: a moça deixar-
121
se encantar por alguém de um nível social menos privilegiado, encantar-se por
alguém em uma “feira”: “um lugar público, onde se expõem e vendem mercadorias”
(FERREIRA, 2011, p. 426).
O clímax da narrativa acontece quando o pai da moça resolve trancá-la no
quarto mais alto da casa, pois as atitudes da moça dentro de casa denunciaram que
ela havia se encontrado com alguém, por quem havia se apaixonado.
De nada adiantou o pai trancar a filha. A adversativa “mas” indica que a
contrariedade da filha em relação ao pai levará ao desfecho: “Mas era com o
saltimbanco que ela queria se casar”. Ao mesmo tempo a adversativa prenuncia um
desfecho que será contrário à atitude do pai: “o saltimbanco, ajudado por seus dez
irmãos, começou a se preparar para chegar até ela”.
O desfecho, entretanto, fica em aberto para levantarmos hipóteses. Após
grande esforço, o saltimbanco consegue chegar até a “donzela”, mas o narrador não
nos convida a entrar e descobrir que rumo tomará esse encontro. Podemos levantar
hipóteses: haverá fuga do casal? O pai irá descobrir e matar o jovem? O pai irá
aceitar o relacionamento dos dois? Eles serão felizes para sempre? Fica como
sugestão ao professor, deixar que os alunos deem uma conclusão ao desfecho de
acordo com suas expectativas.
Terceiro procedimento de leitura: estabelecimento de objetivos para uma
leitura detalhada de certas partes do conto.
ATIVIDADES PROPOSTAS
1- Fornecer as perguntas e solicitar respostas por escrito.
• Qual é o tema (ideia) central da narrativa?
• Como, ou em que parte do texto, vocês identificaram o tema da narrativa?
• Que elementos do conto favorecem ou provocam o conflito na narrativa?
• Trata-se de um conto de suspense, de humor, de terror, de fadas, de exemplo,
religioso? (conforme os alunos forem levantando outras classificações).
• Que palavras ou expressões do texto ajudam a criar o ambiente da narrativa que
favorece a identificação da espécie do conto narrado?
• No texto, o que significam as palavras “ama” e “saltimbanco”?
2- Corrigir oralmente com os alunos.
122
Quem conhece Marina Colasanti sabe de sua predileção por histórias de
fadas e princesas. Embora aparentemente seja um mundo tão distante de nós, em
pleno século XXI, após a leitura do texto, podemos concluir que se trata de um tema
capaz de tocar a todo ser humano, de qualquer lugar ou época. Os contos de fadas
nos seduzem pela fantasia, pelo sentimento de nostalgia, de necessidade de
completude. Os contos de fadas dialogam com nossa realidade sonhada ou
concreta, por isso é tão fundamental para o encontro do “eu” consigo mesmo,
fazendo-o refletir a respeito de suas atitudes, formando identidades.
O conto “Com certeza tenho amor” pode ser classificado também como um
conto de amor, pois temos que o tema central da narrativa é o amor proibido entre
uma jovem donzela e um jovem saltimbanco. O jovem enfrenta obstáculos para
encontrar sua amada, como qualquer jovem valente e apaixonado o faria nos dias
atuais.
Por outro lado, o conto de Colasanti permite a intertextualidade com o conto
“Rapunzel”, conto de fadas alemão, dos Irmãos Grimm. Nesse conto, a princesa
também fica presa em uma torre por uma bruxa malvada e é salva por um príncipe,
que luta contra a bruxa vilã, sendo castigado com a cegueira. No final, recupera a
visão pelas lágrimas da amada e são felizes para sempre. O fato de o protagonista
do conto “Com certeza tenho amor” escalar uma torre alta, necessitando da ajuda
dos outros irmãos, nos remete ao conto de fadas, em que se destacam a valentia e o
ato heroico do protagonista, que em uma atitude de muita força de vontade, uma vez
que a torre composta de irmãos (algo mágico) não dá conta de alcançar a janela, ele
a alcança por seu próprio esforço.
Há, ainda, outras referências na narrativa que nos remetem a esse tipo de
conto, como a menção à figura da “ama”; ao pai que se preocupa em resguardar a
filha e a tranca no quarto mais alto da casa; além do fato de os personagens não
serem nomeados, apontando para uma situação universal, em que não se necessita
que sejam nomeados personagens e espaços.
O termo “rubor” não é muito comum de encontrarmos em nossos diálogos
cotidianos. Podemos levantar hipóteses com os alunos: o termo “rubor” foi utilizado
pelo narrador, revelando que algo estranho lhe acontecia. O que poderia ser esse
“rubor”, sendo que é precedido da questão: “- Que tens?”? Antes de responder,
abaixou “a cabeça sobre o seu rubor”, ou seja, tinha vergonha de seus sentimentos,
dos quais já tinha certeza: “creio... que tenho amor”. O verbo “crer” remete-nos a sua
123
certeza, pois ele não disse “acho”, ou “penso”, ele já tinha a certeza. Para o
protagonista, ter certeza do amor seria razão de vergonha, visto que o
relacionamento seria provavelmente reprovado pela sociedade.
Também a moça revela seus sentimentos à ama, quando esta lhe pergunta o
que tinha. Ela responde que com certeza tem amor.
Após a revelação das personagens, contrariando os sentimentos das
personagens, o narrador utiliza da adversativa, mencionando o fato de tais
revelações não terem alegrado nem aos irmãos e nem a ama. No entanto, também
não disse que tal revelação entristeceu, deixando ao leitor a tarefa de entender
como tristeza ou não.
Logo após, o narrador lança, como que estabelecendo um diálogo com o
leitor, uma pergunta: “Pois como alegrar-se com um amor que não podia ser?”.
Agora o narrador não mais utiliza o verbo no futuro do pretérito, como utilizara no
primeiro período do texto: “poderia”; ele utiliza “podia”, o verbo no pretérito
imperfeito, portanto conferindo ao texto a ideia de prolongamento de uma ação que
se mantém, mesmo após o acontecido.
Há ainda muito que se discutir com relação à riqueza da linguagem literária
que encontramos nesse conto, a começar pela comparação, que colabora para
construção de uma imagem composta pelo encantamento, como no trecho: “[...] e a
rua que tomaram passava tão perto da feira que seus sons a percorriam como a
água e as cores todas da feira pareciam espelhar-se nas paredes claras.”. A
comparação aqui confere ao texto toda a singularidade que a rua havia ganhado em
função de ser a rua na qual os olhares dos protagonistas se encontraram pela
primeira vez. Percebemos também nesse trecho a musicalidade proporcionada pela
aliteração: repetição do som consonantal da sibilante /s/.
Outra comparação também a se destacar é com relação ao estado emocional
em que ficou o saltimbanco depois do primeiro encontro com a moça: “[...] À noite
suspirava como se doente.” Remetendo-nos à ideia de que o amor pode doer como
uma doença.
Há que se destacar também as repetições como em: “Sabia apenas que a
moça velada aparecia em seus sonhos, e que parecia sonhar mesmo acordado
porque mesmo acordado a tinha diante dos olhos.” Percebemos a musicalidade
deste trecho, como em um poema, novamente podemos perceber a aliteração pela
repetição das sibilantes, conferindo também a possível confusão de sentimentos
124
pela qual ainda passava o saltimbanco, uma vez que ainda não havia confirmado
sua certeza diante de seu sentimento, havia uma perturbação do estado de espírito
diante de um sentimento estranho que se desperta pela primeira vez.
Temos a repetição de expressões novamente em: “Mas ele a procurou em
todas as outras ruas da cidade até vê-la passar, esperou diante da igreja até vê-la
entrar, acompanhou-a ao longe até vê-la chegar em casa.” Nesse trecho ocorre a
repetição da mesma ordem sintática, com destaque para a anáfora por meio da
expressão: “[...] até vê-la [...]”, conferindo o sentido de que houve uma insistência por
parte do rapaz em ver a moça novamente e vê-la muitas vezes era muito importante.
Por fim, podemos entrever a sensibilidade da linguagem poética da autora por
meio da personificação presente no trecho: “Seus pés calçados de feltro calavam-se
sobre as pedras.”, fazendo referência ao calçado feito de uma espécie de lã ou de
pelo e que não fazia barulho.
Quarto procedimento: Posicionamento crítico do leitor.
ATIVIDADES PROPOSTAS
1- Fornecer as perguntas e solicitar as respostas por escrito:
Você gostou da história? Por quê?
O desfecho da narrativa correspondeu ao que você esperava? Você daria um desfecho diferente?
Esse tipo de história pode acontecer em nossa realidade? (deixar os alunos comentarem fatos reais que pode haver acontecido nos últimos tempos e que remetem ao tema da narrativa).
A leitura do conto despertou em você algum sentimento? Por quê? Em que momento?
2- Estimular os alunos a colocarem sua opinião oralmente a respeito de
determinados momentos do conto, colocarem seu ponto de vista; dar oportunidade para que, mesmo os alunos mais tímidos, emitam sua opinião, seus sentimentos.
3- Discutir as respostas oralmente, pedindo para que os próprios alunos as comparem, concluindo se existe alguma colocação que se possa elegê-la melhor.
O narrador deixou o desfecho inacabado uma vez que o leitor desconhece o
que aconteceu após a janela ter sido aberta pela protagonista. Cabe a nós, leitores,
formularmos hipóteses do que teria acontecido. O final surpreende não pelo fato de
125
o saltimbanco haver alcançado a janela, mas porque não segue a tradicional
assertiva máxima dos contos de fadas: “E viveram felizes para sempre...”, este é o
final esperado para as histórias que contém atos heroicos em razão de um amor por
uma donzela. Portanto, muitos dos leitores poderiam criticar a atitude da autora e
sentir-se seduzidos a darem um desfecho mais concreto, sem que a felicidade do
casal ficasse à mercê de hipóteses.
Por outro lado, podemos entender o desfecho como mágico, permitindo-nos à
reflexão, favorecendo o dialogismo entre o imaginário e o real. Aquele final em que,
após tempos do término da leitura, ainda estamos a fantasiar e a criar, e a fantasia é
essencial ao bom desenvolvimento humano, para compreendermos melhor nossas
crenças e identidades.
Lembrando as colocações de Candido (2004): a literatura tem a capacidade de
humanizar os homens – no sentido de que ela é capaz de organizar nossas
emoções, propiciando uma vida mais humana e, portanto, uma melhor qualidade de
vida a todos os seres humanos, sem distinção – a literatura é também (quando
utilizada na escola, desvinculada de funções pedagógicas pré-determinadas pelos
livros didáticos) a possibilidade de uma vida melhor aos alunos, a possibilidade de
encontro com o mundo da fantasia, do sonho, do desejo, tão necessário para
construção da identidade de um homem “inteiro”, livre das amarras sociais,
autônomo para a construção de sua própria realidade, autônomo para agir no mundo
real, de maneira consciente e responsável, capaz de se conhecer e de se entender
enquanto sujeito social e histórico.
Esse texto de Colasanti (2005), portanto, é capaz de despertar nos
questionamentos acerca dos preconceitos que ainda hoje existem em nossa
sociedade em relação à diferença social, à diferença cultural e à diferença racial.
Faz-nos refletir: até que ponto nós mesmos somos preconceituosos com relação à
diferença? O que podemos fazer para mudar essa situação? Muitas pessoas,
atualmente, casam-se pelo “status”, fazem, na verdade, um contrato, preocupados
com a mera aparência social.
Se pudéssemos mudar a história, certamente tentaríamos convencer os pais
da moça de que não deveria haver a proibição, visto se tratar de um amor
verdadeiro. Sabemos ser verdadeiro porque houve um grande esforço por parte do
protagonista em atingir o alto da torre, o fato não se deu por uma simples mágica.
Podemos discutir com os alunos a respeito da metáfora da torre, que simboliza todos
126
os obstáculos que existem entre um casal que se ama e a oposição da família e da
sociedade.
A moça, ao abrir a janela, contraria a oposição imposta pelo pai, atitude que
pode levar-nos a refletir se essa seria uma atitude virtuosa ou não. Afinal, ela não
teria outra chance de ficar com seu amado a não ser esta, pois podemos inferir pela
ação do pai no conto que não havia possibilidade de diálogo entre eles, muito menos
com a mãe, personagem que, por não possuir voz alguma, sequer aparece no conto.
Interessante discutir nesse momento com os alunos a respeito da importância do
diálogo com os pais, com as outras gerações.
Reiteramos aqui a necessidade e o direito à literatura defendidos por Candido
(2004). Um texto literário pode ser um veículo de discussões entre o universo
pessoal e social de nossos alunos com os temas inerentes à sociedade. As
possibilidades de trabalho com a literatura são capazes de formar, promovendo o
crescimento de um ser humano competente para agir em um ambiente social.
Produzimos, ainda, mais duas análises de dois contos a seguir, porém não
faremos a repetição dos procedimentos de leitura, evitando que o texto dessa
pesquisa não se torne prolixo.
4.5 Leitura do conto “Restos do carnaval” (LISPECTOR, 1971)
O conto “Restos do Carnaval” foi publicado no livro “Felicidade clandestina”
de Clarice Lispector em 1971. Não obstante, tenha sido publicado em tão remota
data, esse é um dos muitos contos da autora que se destacam até os nossos dias
por suas temáticas de caráter universal, marcadas pela introspecção. Como em
grande parte dos textos dessa autora, sua narrativa não obedece ao tempo
cronológico, pois é envolvida pelas lembranças de um passado vivido pela
personagem, privilegiando o tempo psicológico. Quem conhece um pouco da história
de vida de Clarice Lispector sabe que muitos de seus contos, especialmente os que
fazem parte da obra “Felicidade Clandestina”, dialogam com sua própria história de
vida.
Por meio do primeiro procedimento de leitura, o da leitura rápida, podemos
fazer algumas inferências a partir do título. Ele nos dá pistas de que o assunto
principal do texto será a festa do carnaval. No entanto, o termo “restos” nos remete a
algo melancólico contrastando ao termo carnaval, que lembra a alegria. Conhecendo
127
as características da escritora, que privilegia em suas obras o psicológico, inferimos
que o conto nos trará lembranças saudosistas de um remoto carnaval.
Quando da primeira leitura e a partir do segundo procedimento da sequência
didática, podemos compreender quem são as personagens, o que aconteceram a
elas, onde e quando aconteceram as ações, o que motivara o conflito e se ele se
resolveu.
O texto é narrado em primeira pessoa, sendo que a narradora é a
personagem protagonista do conto, relatando lembranças e sensações relacionadas
àquelas. A narradora-personagem relembra um dos carnavais de sua infância e,
junto à sua lembrança, também traz a figura da mãe e faz menção às irmãs, à mãe
de uma amiga, à amiga e a um garoto “de uns 12 anos”.
As lembranças se referem a um carnaval que se passava nas “ruas e praças
do Recife”. A narradora-protagonista inicia a narrativa tecendo lembranças da
emoção inexplicável que a tomava quando a data da festa ia se aproximando.
Considerava o carnaval dela: “Carnaval era meu, meu.” Entretanto, a própria
narradora nos alerta para o caráter imaginário dessa posse, marcando com a
adversativa: “No entanto, na realidade, eu dele pouco participava.” Essa afirmação
nos remete para o fato de que a festa do carnaval para a narradora era de muita
alegria, mas, ao mesmo tempo, suas lembranças eram tristes.
Pelas pistas que nos dá o texto, podemos caracterizar a personagem como
uma criança triste, “aprendera a pedir pouco”, vivia em função da doença da mãe (na
vida real, sabemos que a mãe de Clarice Lispector morreu quando ela tinha 11 anos
e sua família passava muitas dificuldades financeiras). Ela tinha o sonho de ser
moça, escapar da “meninice”. A mãe, talvez em virtude da doença, nunca lhe dera
uma fantasia para o carnaval, bem como talvez nunca lhe contara histórias sobre
fadas ou príncipes encantados. A narradora não se refere à mãe, em momento
algum, como alguém que lhe havia inspirado a fantasia. Podemos inferir isso, pois a
narradora diz que ela mesma lia as narrativas encantadas: “[...] como nas histórias
que eu havia lido sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas [...]”. Além
disso, a mãe sequer poderia lhe confeccionar uma fantasia para o carnaval, pois era
doente.
Quanto às irmãs, também viviam em função da doença da mãe, mas
tentavam agradar a menina.
128
A mãe da amiga foi uma personagem importante na vida da narradora-
protagonista, que talvez atendendo ao seu “apelo mudo”, ao seu “mudo desespero
de inveja”, ou “talvez por pura bondade”, construiu-lhe uma fantasia rosa com o
papel que sobrara da fantasia de sua filha, amiga da protagonista.
Observamos que as personagens não receberam nomes no texto, podemos
contemplá-las como a imagem de qualquer ser comum ao nosso real.
Até o quarto parágrafo existe uma intensa recordação da festa do carnaval
que em todos os anos eram iguais para a menina: “Nunca tinha ido a um baile
infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas
11 horas da noite à porta do pé da escada [...] olhando ávida os outros se
divertirem.” Por essas palavras da narradora-protagonista, inferimos que essa
menina sentia muita vontade de participar efetivamente do carnaval, mas era
impedida. Muito pouco que ela alcançava do carnaval já a fazia feliz. Essas
recordações são tão tristes, que ao começar a escrevê-las suspira: “Ah, está se
tornando difícil escrever.”
Os fatos relembrados na narrativa acontecem na cidade do Recife e temos a
prevalência do tempo psicológico, em que a personagem se vê envolvida nas
sensações do passado. Temos poucos momentos de referência ao tempo
cronológico na narrativa, podemos destacar, entre esses, as ações que ocorreram
quando dos preparativos para a primeira vez em que a menina iria vestir uma
fantasia para o carnaval: “[...] Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade.”.
A partir do quinto parágrafo, a narradora introduz uma adversativa, indicando
que haverá um acontecimento que mudará a situação de frustração anteriormente
descrita de outros carnavais. A este carnaval especial ela se refere milagroso: “Mas
houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia
acreditar que tanto me fosse dado [...].”
A partir dessa afirmação entendemos a importância desse carnaval relatado
no conto, que se destacou entre os demais. Começa, então, a descrever todas as
sensações advindas da expectativa de finalmente participar de um carnaval com
uma fantasia feita pela mãe da amiga. Era mais que isso, a possibilidade de ser
outra, de sair do mundo de tristezas vividas em sua casa: “[...] ia ser outra que não
eu mesma.”. O fato de ter conseguido a fantasia por causa das sobras da amiga,
aceitou com humildade, pois nada mais lhe importava: “[...] engoli com alguma dor
meu orgulho que sempre fora feroz, [...]”.
129
A grande expectativa, entretanto, é quebrada por uma situação inesperada.
Novamente a autora se utiliza da adversativa para marcar outro momento importante
na narrativa: o momento em que seu sonho de usar a fantasia se vê ameaçado pelo
agravamento da enfermidade da mãe. Assim, no oitavo parágrafo, a narradora
adjetiva este carnaval como “melancólico”: “Mas por que exatamente aquele
carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico?”. Tem início o conflito na
narrativa.
O fato do agravamento da situação da mãe fora por demais doloroso à
menina sonhadora: “Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já
perdoei. No entanto essa não posso sequer entender agora[...]”. Com a piora do
estado de saúde da mãe, foi-lhe dada a ordem de ir à farmácia comprar um remédio.
Ela já estava vestida de rosa para o carnaval, mas o rosto “ainda nu não tinha a
máscara de moça” que cobriria sua “tão exposta vida infantil”. Ela enfatiza: “fui
correndo, correndo”. O carnaval deixara, por alguns instantes de ser sinônimo de
felicidade; a alegria dos outros por quem ela passava a espantava. Observamos que
a narradora-protagonista em nenhum momento cita algum sentimento de dor em
relação à situação da mãe. O que mais lhe dói é perder a alegria do carnaval, por
tantas vezes lhe arrebatada.
Depois que a situação tinha se acalmado, a irmã a penteou e a pintou. Mas já
era tarde, ela se sentia “desencantada”, sentia como se algo havia morrido em seu
espírito. Às vezes começava a ficar alegre novamente, mas a narradora revela sentir
remorso em, mesmo com o advento da piora da mãe, continuar com a “fome de
sentir êxtase”, ao lembrar a mãe.
Ao chegarmos ao final do conto, vemos que não há propriamente uma
resolução do conflito, há um abrandamento da tristeza que chega com a “salvação”:
um menino, de uns 12 anos, que parou a sua frente e lhe cobriu os cabelos de
confete, ficando por um instante a defrontá-la. Para ela, esse menino significava um
rapaz que finalmente a considerava “a moça” que ela tanto desejara ser. Tal qual
nas histórias de contos de fadas, o menino aparece na narrativa para “salvar” a
protagonista, como um príncipe encantado salvando sua princesa.
Com o término desse segundo procedimento de leitura, passaremos a uma
leitura mais detalhada, discutindo os tópicos relacionados no terceiro procedimento.
O primeiro deles diz respeito ao tema da narrativa. Podemos entender que o
tema é o contraste da festa do carnaval com a tristeza da menina em não poder
130
participar da comemoração da maneira desejada. A festa do carnaval seria a chance
de a menina sair de seu mundo de privações da infância, tornar-se moça poderia
salvar-lhe dessas privações. Tal qual imaginam ou imaginaram muitas das jovens
que pensam que ao saírem de casa para um casamento, como em um conto de
fadas, salvas por um príncipe, elas serão felizes para sempre. Portanto, concluímos
que o tema central é a superação da infância.
O tema vai se delimitando a partir das descrições que a narradora-
protagonista faz das emoções que a festa do carnaval lhe proporcionava,
enriquecidas pelas comparações:
Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se as vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim.
A narradora faz referência à rosa escarlate logo no primeiro parágrafo do
conto, apresentando-a como resultante da abertura de um botão. Temos o marcador
textual “enfim”, ou seja, significando algo muito desejado. Esse fato nos remete ao
desejo da menina em se tornar moça na tentativa de se livrar da vida angustiada que
sofria em sua infância. A metáfora do botão que se abre para uma rosa vermelha
remete ao início de uma nova etapa na sexualidade da menina, sedenta para o
desabrochar de uma nova vida. A rosa vermelha ainda nos remete ao sangue e à
carne, tal qual a festa do carnaval, que significa a “festa da carne”.
No segundo parágrafo, ela apresenta quão dura era sua realidade de infância:
do carnaval pouco participava. Intensifica essa afirmação por meio do advérbio de
negação “nunca”, que confere ainda mais força ao fato de ainda não ter ido a um
baile, bem como a ninguém tê-la fantasiado.
Devido a tantos aspectos introspectivos, podemos classificar esse conto como
um conto psicológico, no qual o foco está no interior da personagem. Mais
importantes que os acontecimentos, são as reflexões acerca das consequências
daqueles para os sentimentos da personagem.
A expressão negativa “nunca” e as adversativas “mas” repetidas por diversas
vezes reforçam a ideia do tema do contraste entre a felicidade do carnaval e a
angústia da sofrida infância vivida pela personagem.
131
No final do texto, ela reforça a ideia da importância de fantasiar-se para o
carnaval, no figurino “rosa”. Novamente temos a menção ao termo “rosa”, que pode
ter diversas conotações. De acordo com o contexto do conto, a cor “rosa” nos
remete à pureza ou à inocência e à feminilidade, contrastando ao escarlate que tem
conotação de ordem carnal, sensual. Quanto à flor rosa, também é interessante
lembrarmos que é do senso comum que ela é oferecida a quem se ama, é a flor do
amor.
Podemos inferir também que a rosa represente a inocência que fora roubada
da menina de maneira precoce. Ela afirma:
[...] se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.
É interessante observar junto aos alunos que a narradora deixa clara a
importância do elemento fantasia para o desenvolvimento das crianças. No entanto,
logo mais ela afirma também: “Não me fantasiavam: no meio das preocupações com
minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança.”. Ela
conhecia as fantasias das crianças, mas delas era privada.
Quanto à referência à palavra máscara, remete-nos ao mistério e também ao
contraste entre real e fantasia. Quando utilizada, permite ao homem se esconder por
trás de um real, reinventando-se, tornando-se apto a enfrentar qualquer situação
adversa.
O conto termina com a frase: “E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei
pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.”.
Contrastando a figura de uma mulher com a criança de 8 anos, a narradora se
qualifica como “mulherzinha”: acredita que o menino mais velho que ela a havia
reconhecido como figura feminina. Até então, não obstante usasse a fantasia e os
lábios pintados, ela “não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios
encarnados”, pois estava frustrada.
Feitas essas análises, podemos expor nossa opinião e ouvir o que os alunos
têm a dizer acerca do conto lido. Passamos dessa forma aos procedimentos que
privilegiam o posicionamento crítico do leitor.
132
A narrativa é capaz de despertar o sentimento de piedade com relação à
menina que sofria as privações em sua vida da infância, em virtude da vida de
menina ser sacrificada em favor da doença da mãe.
Ela afirma, no final do conto, que após “a atmosfera em casa” ter-se
acalmado, “alguma coisa tinha morrido” nela. Nesse sentido, ela compara esse fato
com as histórias de fadas que ela já havia lido “que encantavam e desencantavam
pessoas”, ela “fora desencantada”, saíra do mundo da fantasia que a transportava a
um jogo real/imaginário essencial à espécie humana. Essa importância ao elemento
fantasia dada pela autora nos remete às ideias de Huizinga, que entende o jogo
como elemento essencial à vida humana, desde a mais tenra idade. A capacidade
de criar e de representar é inata ao ser humano, daí decorrer o fato de que todas as
formas de jogo carregarem em si o belo e o sagrado, o lúdico e a seriedade.
(HUIZINGA, 1971, p. 3-31)
A narradora-protagonista acostumara-se com pouco durante toda a sua vida
de criança, seja em virtude das dificuldades financeiras (“Duas coisas preciosas eu
ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias [...]”), seja
em virtude da doença da mãe. Ela afirma se sentir triste, “de coração escuro”, ao
constatar: “mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta
que um quase nada já me tornava uma menina feliz.”.
Podemos inferir que a menina do conto era carente de tudo um pouco: do
amor de mãe, de bens materiais e das fantasias de criança, o que a faziam querer a
“salvação”, o que significaria para ela a libertação de um estado, ou de uma situação
indesejável: a busca de sua identidade enquanto pessoa.
Concluímos que os fatos narrados são passíveis de serem vivenciados por
muitos seres humanos reais, pois refletem a busca da felicidade em meio às
situações adversas. Não podemos esquecer que há muitas crianças que trabalham
para ajudar no sustento da família, seja no trabalho escravo, na prostituição ou nas
ruas pedindo esmolas, permanecendo a fase da infância privadas das condições
mínimas de dignidade.
4.6 Leitura do conto “O arquivo” (GIUDICE, 1972)
“O arquivo” foi publicado pela primeira vez na obra “Necrológio”, em 1972,
que foi o primeiro volume de contos do autor. O conto “O arquivo” denuncia uma
133
situação muito comum em nossa sociedade: as leis de mercado e a consequente
coisificação do ser humano. Esse conto de Victor Giudice foi um dos contos
brasileiros mais publicados no exterior. Foi publicado originalmente no livro “O
necrológio”, em 1972.
A partir do título tão somente, no caso de não haver imagem alguma, pouco
podemos inferir a respeito do assunto a ser tratado no texto. Notamos, porém, que o
substantivo “arquivo” é precedido do artigo definido “o”; logo, não se trata de um
arquivo qualquer, ele está singularizado.
Ainda como procedimento inicial de leitura, podemos inferir que o enredo do
conto se passa provavelmente em um escritório, onde normalmente encontramos
arquivos. É possível discutir com os alunos também qual é a finalidade de um
arquivo, ou seja, para que ele serve; de que material ele é feito.
O título não nos dá muitas pistas de quem serão as personagens desse
conto, mas podemos levantar hipóteses de que, por haver no título a referência ao
“arquivo”, se trata de um objeto encontrado comumente em escritórios ou junto a
secretarias, imaginamos que no conto haverá também pessoas que normalmente
frequentam esses locais, como empregados, clientes ou patrões.
Confirmaremos, após a primeira leitura, que existe como personagem
principal do conto um empregado de nome João.
O conto é narrado em terceira pessoa e tem início delimitando o início do
tempo na narrativa: “No fim de um ano de trabalho.” Já sabemos, portanto, que se
trata realmente de um conto relacionado ao trabalho, confirmando a hipótese
anteriormente aventada.
Logo no primeiro parágrafo temos também a referência à personagem
protagonista: “João”. O dado que nos causa estranheza é o fato de que, após um
ano de trabalho, “João obteve uma redução de quinze por cento de seus
vencimentos.” O comum é, após um ano de trabalho, o empregado obter aumento
de salário e não redução. Esse fato nos faz levantar a hipótese de que os
acontecimentos que se sucederão na narrativa não serão felizes para a
personagem.
No início do segundo parágrafo, o nome da personagem aparece com a inicial
minúscula e isso se repete no restante do texto, contrariando as normas ortográficas
que exigem o uso da inicial maiúscula para substantivos próprios. Então,
questionamos: o nome de João deixou de ser substantivo próprio para se tornar
134
substantivo comum? A partir da leitura do conto, podemos verificar que esse foi um
meio simbólico de direcionar ao desfecho metafórico e fantástico da narrativa: a
personagem se transformar em um objeto, em um arquivo.
Podemos inferir que as ações se passam em uma cidade grande, pois o
narrador nos dá pistas: “[...] mudou-se para um quarto mais distante do centro da
cidade. [...] Passou a tomar duas conduções para chegar ao trabalho.” Mas a
narrativa ocorre, principalmente, no escritório em que o protagonista trabalha, lá
acontecem as ações que acarretam mudanças na vida da personagem.
Ao final do conto descobrimos que os fatos aconteceram durante um período
de 40 anos de vida da personagem. Não houve um conflito, mas vários conflitos que
se sucedem na vida de “joão”, iniciam-se quando tinha apenas um ano de trabalho,
e podemos concluir, ao final da leitura, que não há uma resolução deles aceitável
como fato real, mas um fato pertencente ao mundo fantástico ou ao mundo do
absurdo: um ser humano se transformar em um arquivo, havendo, assim, a morte
enquanto pessoa.
Após essas breves análises iniciais do conto, aprofundamo-nos em uma
leitura detalhada, a partir da qual compreendemos que o tema central da narrativa é
a desintegração do ser humano em razão das necessidades exacerbadas do
mercado.
Situando a publicação do texto de Victor Giudice (1934-1997) em seu
contexto de produção, relembramos que o ano de 1972 está situado no período do
Governo Médici (1969 a 1974), que teve como objetivo central manter o índice de
crescimento econômico e estabilizar a taxa da inflação em torno de 20% ao ano.
(DOMINGUES; FIUSA, 2000, p. 358-362). Esse período da História do Brasil
também foi conhecido como o período do “Milagre Econômico”, uma vez que houve
um crescimento econômico acelerado, ocasionando uma acentuada concentração
de renda nas classes alta e média.
Para as camadas de menor poder aquisitivo houve aumento da oferta de emprego. [...] Além disso, muitas empresas elevaram ao máximo a intensidade de trabalho, generalizando-se o trabalho em horas extraordinárias. [...] Por conseguinte, nas classes populares cresceu o número de acidentes de trabalho, que, em 1974, já era um dos mais altos do mundo. Agravou-se a desnutrição das camadas mais pobres da população urbana [...]. Esses dados demonstram que houve realmente queda do padrão de vida dessas classes. (DOMINGUES; FIUSA, 2000, p. 360).
135
Interessante notar com os alunos esse diálogo existente entre a História e os
fatos presentes na narrativa. Podemos relacionar, portanto, o tema do conto a esse
crescimento econômico desordenado e voraz pelo qual passava nosso país, do qual
muitos dos brasileiros, especialmente os da classe menos favorecida, sofreram
diretamente as consequências.
Destacamos, a partir dessas ideias expostas, o dialogismo inerente a todo
discurso, segundo afirma Bakhtin (2000, p. 313):
Pode-se colocar que a palavra existe para o locutor sob três aspectos: como palavra neutra da língua e que não pertence a ninguém; como palavra do outro pertencente aos outros e que preenche o eco dos enunciados alheios; e, finalmente, como palavra minha, pois, na medida em que uso essa palavra numa determinada situação, com uma intenção discursiva, ela já se impregnou de minha expressividade. Sob estes dois últimos aspectos, a palavra é expressiva, mas esta expressividade, repetimos, não pertence à própria palavra: nasce no ponto de contato entre a palavra e a realidade efetiva, nas circunstâncias de uma situação real, que se atualiza através do enunciado individual.
Quando lemos o conto, também estamos dialogando com a palavra, com a
ideologia de uma época, com o outro, com nossas próprias convicções, a todo o
momento. Por isso, o caráter dialógico da língua, que produz ecos.
As palavras do narrador, logo no início do texto, evidenciam que os fatos não
eram os melhores para o protagonista: “uma redução de quinze por cento em seus
vencimentos.” No entanto, resignado, mesmo tendo se esforçado durante o tempo
de trabalho, um ano de seu primeiro emprego, sem ter “uma só falta ou atraso”,
agradeceu a seu chefe, limitando-se a sorrir. Todo o texto é composto de ironias,
vale discutir com os alunos a respeito do conceito de ironia e qual o efeito de seu
uso.
Todas as “promoções” e “recompensas” conferidas à personagem são
negativas, portanto, irônicas. No dia seguinte, começam as sequências de
desventuras pelas quais a personagem irá passar após a primeira redução do
salário. A primeira delas foi mudar-se “para um quarto mais distante”, o salário havia
sido reduzido e não poderia pagar aluguel maior. Notemos que a palavra “quarto”
nos remete a apenas um cômodo – para que precisava de mais, se sairia do
emprego apenas para dormir – sendo a nova moradia mais longe do centro,
136
chegaria mais tarde em casa e sairia mais cedo: “Passou a tomar duas conduções
para chegar ao trabalho.”
Nesse sentido, podemos entender a metáfora (ou a ironia) da redução dos
vencimentos relatada pelo narrador como sendo simbolicamente a redução do poder
aquisitivo da personagem. Podemos confirmar essa hipótese pelos dados históricos
que nos remetem a uma situação econômica real, que mostrava que as altas taxas
da inflação atingiram duramente as camadas sociais menos privilegiadas, em que os
salários eram mantidos abaixo do índice do custo de vida. (DOMINGUES; FIUSA,
2000, p. 358).
Assim, observamos que, em contraste com o desenvolvimento da empresa
em que trabalhava – “a empresa atravessava um período excelente” –, seus ganhos
eram cada vez mais insuficientes para se sustentar. Sua situação foi se agravando
cada vez mais: uma redução do salário maior ainda, de 17%; novamente a mudança
de moradia; três conduções para o local de trabalho; comia menos; sua pele tornou-
se menos rosada; ficou mais esbelto. Entretanto, ironicamente, o narrador reitera por
diversas vezes a maior disposição, os agradecimentos e o contentamento de “joão”,
reforçando a ideia de “satisfação” por parte da personagem. A personagem não se
dá conta do desgaste físico e mental que está lhe tomando o corpo e o espírito: não
tem família, não tem amigos, não tem vida social, come mal e dorme mal.
Podemos comparar essa situação vivenciada pela personagem com situações
reais em nossa sociedade, pois muitas pessoas não percebem que estão deixando
de viver em função do trabalho, estão se desgastando em nome de um capitalismo e
de um consumismo exacerbado presentes no mundo pós-moderno. Muitos acabam
perdendo a família, a dignidade ou até mesmo a vida, em função de uma vida de
trabalho desenfreada, coisificam-se.
O fato de a personagem se transformar em um arquivo, remete-nos a outra
obra literária que tematiza ironicamente a mesma questão: “o trabalho excessivo
desumanizador”. Podemos entender que o conto “O arquivo”, dialoga com o texto de
Franz Kafka, “A metamorfose”, publicado pela primeira vez em 1915. Nessa obra, o
protagonista acorda um dia acreditando ser uma barata, sua família pouco se
importa com ele, que valia apenas pelo seu trabalho, excessivo, pois era ele que
sustentava a família. Portanto, o desfecho é também da ordem do fantástico: a
personagem se transforma em uma barata. Podemos concluir que o conto “O
137
arquivo” é um conto fantástico uma vez que trata de uma situação surreal, ou seja,
uma situação que transpassa a realidade pelo caráter absurdo.
Importante observarmos com os alunos que há uma gradação da gravidade
das situações pelas quais passa a personagem até chegar à situação absurda de se
tornar um arquivo (podemos aqui inferir que talvez arquivo também remeta à ideia
que conhecemos como “arquivo morto”, onde se colocam os documentos que não
irão mais ser utilizados com frequência).
No início do texto, “João” tinha um nome com a inicial maiúscula. Logo da
primeira vez que perde uma porcentagem de seu salário, já perde a dignidade de se
ter um nome próprio. No final do conto, quando já lhe fora retirado tudo com todos os
“prêmios”, e ele já nem tinha resposta para “agradecer”, resta-lhe pedir a
aposentadoria, mas ele não a recebe, transforma-se no arquivo antes do benefício.
Muitas pessoas foram reféns de um crescimento desenfreado do capitalismo
e, como “joão”, não tinham voz. O texto nos traz a impressão de que a única vez que
o protagonista coloca sua posição: “Agradeço tudo que fizeram em meu benefício.
Mas desejo requerer minha aposentadoria”, essa posição é marcada pela
adversativa “mas”, indicando contrariedade a todas as situações adversas sofridas
pela personagem. Entretanto, de nada valeu colocar seu desejo, não foi
compreendido, morreu antes de adquirir o verdadeiro benefício de todo o texto,
marcado pela ironia.
Antes de se tornar um arquivo, entretanto, o protagonista também passou por
uma animalização. Ou seja, antes se alimentava, ainda que fosse difícil a situação,
ele se alimentava. Quando da segunda redução do salário, “comia menos”, além de
se mudar para mais longe ainda, pois desta vez precisava esperar três conduções.
Quando da terceira redução, seguida do rebaixamento do posto com menos dias de
férias, o narrador faz referência ao local onde “joão” morava: o subúrbio. E ainda
assim, mudou-se mais uma vez e agora já não mais jantava; o almoço era um
sanduíche; já não precisava de muita roupa, não tinha mais lavadeira e pensão.
Porém, ainda ia de ônibus e de trem para o trabalho.
A consumação do estado de animalização acontece quando seu ordenado
passa a equivaler “a dois por cento do inicial” (o que equivale à perda salarial que é
uma situação muito comum em nossa realidade social). A partir dessa situação, seu
“organismo acomodara-se à fome. Uma vez ou outra, saboreava alguma raiz das
estradas.” – Tal imagem nos remete à atitude de um animal, como por exemplo, um
138
asno que se alimenta de raízes ou capim, à beira de uma estrada. – Agora ele era
transportado por um caminhão anônimo. Como um animal, ou até mesmo em pior
situação – pois até um animal irracional necessita de uma moradia – “não tinha mais
problemas de moradia ou vestimenta. Vivia nos campos, entre árvores refrescantes,
cobria-se com os farrapos de um lençol adquirido há muito tempo.”
A situação é dramática: ele sequer conseguia falar quando foi convocado pela
última vez, para receber a função de limpador de sanitários, sem direito a férias. E
quando, finalmente, o chefe lhe dá a chance de emitir sua opinião a respeito de ser
um “desassalariado” e tendo que, dentro de alguns meses, “pagar a taxa inicial para
permanecer” naquele quadro de profissionais, “joão” começa a tomar a forma de um
arquivo. “Tornou-se cinzento”.
A cor cinza pode ser associada à tristeza e a morte. Os dias nublados,
cinzentos, normalmente, são mais tristes, as pessoas tendem a ficar em suas casas.
Podemos inferir, que “joão” era todo tristeza, bem como foi a maior parte de sua
vida, vindo a tornar-se cinzento, por evasão, para separar-se de tudo e permanecer
à margem, morrer para todos os problemas, definitivamente.
Vemos na mídia diversos casos de pessoas que morrem no local de trabalho,
vítimas de acidente; há ainda muitas outras pessoas que não conseguem a “tão
sonhada” aposentadoria, morrem à espera desse benefício. Logo, a narrativa pode
despertar em nós o sentimento de tristeza e de piedade, pois ainda hoje, em nossa
sociedade, existem muitas vítimas da situação de desigualdade social, de
consumismo, de exploração de trabalho. Não obstante a existência de muitas leis
que protegem o trabalhador, muitas vezes elas são ineficientes, causando frustação,
tornando os indivíduos pacíficos e incrédulos, reféns da injustiça social.
Por outro lado, a narrativa pode despertar nos leitores a criticidade e a ação
na tentativa de reverter as situações de exploração, como: promover debates nas
comunidades, criando meios para se ajudar as pessoas idosas a conseguirem,
enfim, o benefício da aposentadoria (que costuma ser um processo tão burocrático);
participar ativamente de campanhas sociais e zelar para que as leis sejam
cumpridas. Essas são as atitudes que esperamos de todos os cidadãos.
Por meio dessas breves análises, esperamos que haja uma contribuição ao
trabalho do professor em seu papel de mediador nas atividades de leitura,
enriquecendo suas aulas, oferecendo as condições necessárias para que os jovens
139
cresçam e se desenvolvam intelectualmente, promovendo a construção do
conhecimento de modo significativo.
Há muitas outras leituras que podemos fazer do texto literário e os
significados devem ser construídos de modo dialógico: leitor/texto; texto/leitor;
leitor/mundo. A construção do conhecimento e o desenvolvimento de habilidades
para compreender um texto devem ser construídos no diálogo e no coletivo.
140
CONCLUSÃO
Certa palavra dorme na sombra De um livro raro. Como desencantá-la? É a senha da vida A senha do mundo. Vou procurá-la. [...]
(Carlos Drummond de Andrade)
Essa pesquisa teve como objetivo geral indicar possibilidades de trabalhos de
leitura do gênero discursivo conto em sala de aula, visando a subsidiar propostas
didático-pedagógicas de leitura desse gênero discursivo e colaborando para a
consecução do projeto OBSERVATÓRIO/UNITAU 2011 - 2014 Competências e
habilidades de leitura: da reflexão teórica ao desenvolvimento e aplicação de
propostas didático-pedagógicas, aprovado pelo Programa Observatório da
Educação CAPES/INEP sob nº 23038010000201076.
Considerando a Matriz de Referência do Sistema Nacional de Avaliação da
Educação Básica e os níveis de proficiência na escala de leitura do PISA, essa
pesquisa indicou habilidades de leitura que podem ser exploradas no gênero conto.
A proposta dessa pesquisa atentou, principalmente, para a carência de materiais
didáticos disponíveis que abordem especificamente a leitura e compreensão do
conto, objetivando a melhoria nos níveis de proficiência na qualidade da leitura,
especialmente nas séries finais do Ensino Fundamental. Sendo assim, esperamos
que os professores de todas as redes de ensino, bem como os graduandos da
Universidade de Taubaté participantes dos projetos PIBID e Prodocência, possam
utilizá-la como referência auxiliar para aprofundamento em seus conhecimentos
teóricos e aperfeiçoamento em seus trabalhos em sala de aula.
Por meio da pesquisa, conforme apontado no capítulo 3, pudemos identificar
que os resultados apontados pelas avaliações oficiais quanto à leitura no Ensino
Fundamental no Brasil apresentam, com relação a determinadas habilidades, uma
baixa porcentagem de acerto. Dessa forma, essa pesquisa cumpre parte da
urgência na tentativa de conquistar uma melhoria nos resultados, ao apresentar
propostas que favoreçam o desenvolvimento de competências de leitura nas séries
141
finais do ensino fundamental, a fim que os alunos adquiram habilidades que os
preparem também para os desafios da vida social.
A literatura é um importante caminho para se buscar uma melhor qualidade
da educação. Corroborando o que afirmam os PCN (BRASIL, 1998), podemos
concluir que por meio da literatura é possível confrontar linguagens nas práticas
sociais e na história, explorar recursos de linguagem, reconhecer valores sociais e
humanos.
Para colaborar com o conhecimento acerca da origem e das especificidades
do conto, no capítulo 1, destacamos algumas abordagens teóricas básicas acerca
desse gênero. Constatamos que, não obstante a estrutura de um conto seja sempre
a mesma: apresentação, desenvolvimento ou complicação, clímax e desfecho,
assim como seus elementos: narrador, foco narrativo, personagens, tempo e
espaço, a classificação frequentemente utilizada para diferenciá-lo não é unânime
entre os autores. Provavelmente essa seja a razão pela qual podemos encontrar as
mais diversas classificações em nossos materiais didáticos disponíveis.
No intuito de colaborar para o entendimento do processo de compreensão na
leitura, relacionamos as principais concepções de leitura no capítulo 2, destacando
para nossos estudos a abordagem sociocognitiva de leitura, na qual sobressaem no
processo de compreensão os conceitos de conhecimento prévio e de inferência.
Segundo essa concepção, as operações que envolvem a apreensão do
conhecimento são muito mais abrangentes, uma vez que envolvem várias ações
conjuntas praticadas pelos indivíduos.
Destarte, ao elaborarmos a sequência didática básica para a leitura de contos
no capítulo 3, visamos a um trabalho que proporcionasse aos alunos, além do prazer
pela leitura, uma compreensão melhor do gênero, em toda a sua dimensão dialógica
e contextualizada. A leitura do conto permite um diálogo entre ficção e realidade,
favorecendo a construção de sentidos que colaboram para a construção da
identidade de um jovem, permitindo-o refletir também acerca de suas práticas
sociais em sociedade.
É importante lembrar que os procedimentos de leitura apontados na
constituição da sequência didática e que foram exemplificados na leitura dos cinco
contos são apenas sugestões, cada professor, portanto, fará as adequações
necessárias à sua realidade de sala de aula.
142
Os procedimentos constantes da proposta da sequência didática que
organizamos contemplam, além dos aspectos explícitos dos contos e das hipóteses
prévias à leitura indispensáveis para um processo de compreensão abrangente,
reflexões críticas que podem fomentar o interesse pela leitura, promovendo sentidos
ao ato de ler, entendendo que ler não é simplesmente decodificar, que a leitura
implica o entendimento de outras possibilidades.
Por meio da elaboração da sequência didática e tomando-a como referência
para a análise dos contos no capítulo 4, chegamos à conclusão de que a leitura do
conto, quando utilizada em sala de aula como meio de prazer e de desenvolvimento
de habilidades de leitura, torna-se também uma importante atividade para
desenvolver a capacidade imaginativa e crítica dos alunos, uma vez que as
narrativas literárias são representações da realidade dos seres humanos, são
verossimilhantes.
Esperamos, dessa forma, que essa pesquisa contribua para que os
professores encontrem mais subsídios para sua prática em sala de aula,
promovendo projetos de leitura que contemplem a leitura do conto como fonte de
fruição estética e saber, em que dialogam sentidos e conhecimento.
143
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147
ANEXOS
ANEXO A A DEVOTA DAS ALMAS (1952)
ANEXO B CONTO DE ESCOLA (1884)
ANEXO C COM CERTEZA TENHO AMOR (2005)
ANEXO D RESTOS DE CARNAVAL (1971)
ANEXO E O ARQUIVO (1972)
148
ANEXO A
A DEVOTA DAS ALMAS (1952)
Havia uma moça que era muito devota das almas. Ela não sabia nem fiar,
nem bordar, nem engomar, mas, um dia, conversando com as amigas, disse por
pilhéria que se se casasse com o rei havia de lhe fiar, bordar e engomar uma
camisa, como ele nunca tinha vestido. Por intriga, correram e foram mais que
depressa contar ao rei o que a moça havia falado. O rei mandou chamá-la e disse-
lhe que ia se casar com ela, porém, se ela não fizesse a camisa como havia
prometido, iria para o cutelo. A moça ficou muito triste porque sabia que seria
degolada, mas não teve outro jeito senão se casar com o rei.
Quando foi no dia seguinte ao do casamento, apareceram em palácio, para
visitá-la, dizendo que eram suas tias, três senhoras altas, magras e muito esquisitas,
vestidas de branco. A moça nunca as tinha visto, porém estava tão desgostosa da
vida, que nem disse nada. Uma era demais alta e muito corcovada, com uma giba
enorme; outra tinha os olhos esbugalhados e vermelhos, que fazia medo; e a outra,
por fim, tinha os braços tão compridos, que quase arrastavam no chão. Começaram
a conversar com o rei e com a moça. A primeira disse que estava assim corcovada
de tanto engomar; a segunda, que estava com os olhos esbugalhados assim de
tanto bordar; e a terceira, com os braços tão compridos, de fiar. O rei, que estava
com a mulher tão moça, tão bonita, com medo de que ela ficasse feia como as três
velhas, disse-lhe muito depressa:
- Está vendo? Eu não quero mais, nem por sonho, que você pegue no fuso
para fiar, nem na agulha para bordar, nem no ferro para engomar.
A moça ficou logo com o coração aliviado, muito alegre, reconhecendo que
aquelas três senhoras eram almas que tinham vindo livrá-la da morte. Não disse
nada ao marido, com quem viveu feliz por muitos anos sem deixar nunca a sua
devoção. (CASCUDO, p. 286-287)
Obs.: classificado como conto de encantamento por Cascudo.
149
ANEXO B
CONTO DE ESCOLA (1884)
A escola era na Rua do Costa, um sobradinho de grade de pau. O ano era
de 1840. Naquele dia - uma segunda-feira, do mês de maio - deixei-me estar
alguns instantes na Rua da Princesa a ver onde iria brincar a manhã. Hesitava
entre o morro de S. Diogo e o Campo de Sant'Ana, que não era então esse parque
atual, construção de gentleman, mas um espaço rústico, mais ou menos infinito,
alastrado de lavadeiras, capim e burros soltos. Morro ou campo? Tal era o
problema. De repente disse comigo que o melhor era a escola. E guiei para a
escola. Aqui vai a razão.
Na semana anterior tinha feito dois suetos, e, descoberto o caso, recebi o
pagamento das mãos de meu pai, que me deu uma sova de vara de marmeleiro.
As sovas de meu pai doíam por muito tempo. Era um velho empregado do Arsenal
de Guerra, ríspido e intolerante. Sonhava para mim uma grande posição comercial,
e tinha ânsia de me ver com os elementos mercantis, ler, escrever e contar, para
me meter de caixeiro. Citava-me nomes de capitalistas que tinham começado ao
balcão. Ora, foi a lembrança do último castigo que me levou naquela manhã para o
colégio. Não era um menino de virtudes.
Subi a escada com cautela, para não ser ouvido do mestre, e cheguei a
tempo; ele entrou na sala três ou quatro minutos depois. Entrou com o andar
manso do costume, em chinelas de cordovão, com a jaqueta de brim lavada e
desbotada, calça branca e tesa e grande colarinho caído. Chamava-se Policarpo e
tinha perto de cinquenta anos ou mais. Uma vez sentado, extraiu da jaqueta a
boceta de rapé e o lenço vermelho, pô-los na gaveta; depois relanceou os olhos
pela sala. Os meninos, que se conservaram de pé durante a entrada dele, tornaram
a sentar-se. Tudo estava em ordem; começaram os trabalhos.
- Seu Pilar, eu preciso falar com você, disse-me baixinho o filho do mestre.
Chamava-se Raimundo este pequeno, e era mole, aplicado, inteligência tarda.
Raimundo gastava duas horas em reter aquilo que a outros levava apenas trinta ou
cinquenta minutos; vencia com o tempo o que não podia fazer logo com o cérebro.
Reunia a isso um grande medo ao pai. Era uma criança fina, pálida, cara doente;
150
raramente estava alegre. Entrava na escola depois do pai e retirava-se antes. O
mestre era mais severo com ele do que conosco.
- O que é que você quer?
- Logo, respondeu ele com voz trêmula.
Começou a lição de escrita. Custa-me dizer que eu era dos mais adiantados
da escola; mas era. Não digo também que era dos mais inteligentes, por um
escrúpulo fácil de entender e de excelente efeito no estilo, mas não tenho outra
convicção. Note-se que não era pálido nem mofino: tinha boas cores e músculos de
ferro. Na lição de escrita, por exemplo, acabava sempre antes de todos, mas
deixava-me estar a recortar narizes no papel ou na tábua, ocupação sem nobreza
nem espiritualidade, mas em todo caso ingênua. Naquele dia foi a mesma coisa;
tão depressa acabei, como entrei a reproduzir o nariz do mestre, dando-lhe cinco
ou seis atitudes diferentes, das quais recordo a interrogativa, a admirativa, a
dubitativa e a cogitativa. Não lhes punha esses nomes, pobre estudante de
primeiras letras que era; mas, instintivamente, dava-lhes essas expressões. Os
outros foram acabando; não tive remédio senão acabar também, entregar a escrita,
e voltar para o meu lugar.
Com franqueza, estava arrependido de ter vindo. Agora que ficava preso,
ardia por andar lá fora, e recapitulava o campo e o morro, pensava nos outros
meninos vadios, o Chico Telha, o Américo, o Carlos das Escadinhas, a fina flor do
bairro e do gênero humano. Para cúmulo de desespero, vi através das vidraças da
escola, no claro azul do céu, por cima do morro do Livramento, um papagaio de
papel, alto e largo, preso de uma corda imensa, que bojava no ar, uma coisa
soberba. E eu na escola, sentado, pernas unidas, com o livro de leitura e a
gramática nos joelhos.
- Fui um bobo em vir, disse eu ao Raimundo.
- Não diga isso, murmurou ele.
Olhei para ele; estava mais pálido. Então lembrou-me outra vez que queria
pedir-me alguma coisa, e perguntei-lhe o que era. Raimundo estremeceu de novo,
e, rápido, disse-me que esperasse um pouco; era uma coisa particular.
- Seu Pilar... murmurou ele daí a alguns minutos.
- Que é?
- Você...
- Você quê?
151
Ele deitou os olhos ao pai, e depois a alguns outros meninos. Um destes, o
Curvelo, olhava para ele, desconfiado, e o Raimundo, notando-me essa
circunstância, pediu alguns minutos mais de espera. Confesso que começava a
arder de curiosidade. Olhei para o Curvelo, e vi que parecia atento; podia ser uma
simples curiosidade vaga, natural indiscrição; mas podia ser também alguma coisa
entre eles. Esse Curvelo era um pouco levado do diabo. Tinha onze anos, era mais
velho que nós.
Que me quereria o Raimundo? Continuei inquieto, remexendo-me muito,
falando-lhe baixo, com instância, que me dissesse o que era, que ninguém cuidava
dele nem de mim. Ou então, de tarde...
- De tarde, não, interrompeu-me ele; não pode ser de tarde.
- Então agora...
- Papai está olhando.
Na verdade, o mestre fitava-nos. Como era mais severo para o filho, buscava-
o muitas vezes com os olhos, para trazê-lo mais aperreado. Mas nós também
éramos finos; metemos o nariz no livro, e continuamos a ler. Afinal cansou e tomou
as folhas do dia, três ou quatro, que ele lia devagar, mastigando as ideias e as
paixões. Não esqueçam que estávamos então no fim da Regência, e que era
grande a agitação pública. Policarpo tinha decerto algum partido, mas nunca pude
averiguar esse ponto. O pior que ele podia ter, para nós, era a palmatória. E essa lá
estava, pendurada do portal da janela, à direita, com os seus cinco olhos do diabo.
Era só levantar a mão, despendurá-la e brandi-la, com a força do costume, que não
era pouca. E daí, pode ser que alguma vez as paixões políticas dominassem nele a
ponto de poupar-nos uma ou outra correção. Naquele dia, ao menos, pareceu-me
que lia as folhas com muito interesse; levantava os olhos de quando em quando, ou
tomava uma pitada, mas tornava logo aos jornais, e lia a valer.
No fim de algum tempo - dez ou doze minutos - Raimundo meteu a mão no
bolso das calças e olhou para mim.
- Sabe o que tenho aqui?
- Não.
- Uma pratinha que mamãe me deu.
- Hoje?
- Não, no outro dia, quando fiz anos...
- Pratinha de verdade?
152
- De verdade.
Tirou-a vagarosamente, e mostrou-me de longe. Era uma moeda do tempo do
rei, cuido que doze vinténs ou dois tostões, não me lembro; mas era uma moeda, e
tal moeda que me fez pular o sangue no coração. Raimundo revolveu em mim o
olhar pálido; depois perguntou-me se a queria para mim. Respondi-lhe que estava
caçoando, mas ele jurou que não.
- Mas então você fica sem ela?
- Mamãe depois me arranja outra. Ela tem muitas que vovô lhe deixou, numa
caixinha; algumas são de ouro. Você quer esta?
Minha resposta foi estender-lhe a mão disfarçadamente, depois de olhar para
a mesa do mestre. Raimundo recuou a mão dele e deu à boca um gesto amarelo,
que queria sorrir. Em seguida propôs-me um negócio, uma troca de serviços; ele
me daria a moeda, eu lhe explicaria um ponto da lição de sintaxe. Não conseguira
reter nada do livro, e estava com medo do pai. E concluía a proposta esfregando a
pratinha nos joelhos...
Tive uma sensação esquisita. Não é que eu possuísse da virtude uma ideia
antes própria de homem; não é também que não fosse fácil em empregar uma ou
outra mentira de criança. Sabíamos ambos enganar ao mestre. A novidade estava
nos termos da proposta, na troca de lição e dinheiro, compra franca, positiva, toma
lá, dá cá; tal foi a causa da sensação. Fiquei a olhar para ele, à toa, sem poder
dizer nada.
Compreende-se que o ponto da lição era difícil, e que o Raimundo, não o
tendo aprendido, recorria a um meio que lhe pareceu útil para escapar ao castigo
do pai. Se me tem pedido a coisa por favor, alcançá-la-ia do mesmo modo, como
de outras vezes, mas parece que era lembrança das outras vezes, o medo de
achar a minha vontade frouxa ou cansada, e não aprender como queria, - e pode
ser mesmo que em alguma ocasião lhe tivesse ensinado mal, - parece que tal foi a
causa da proposta. O pobre-diabo contava com o favor, - mas queria assegurar-lhe
a eficácia, e daí recorreu à moeda que a mãe lhe dera e que ele guardava como
relíquia ou brinquedo; pegou dela e veio esfregá-la nos joelhos, à minha vista,
como uma tentação... Realmente, era bonita, fina, branca, muito branca; e para
mim, que só trazia cobre no bolso, quando trazia alguma coisa, um cobre feio,
grosso, azinhavrado...
153
Não queria recebê-la, e custava-me recusá-la. Olhei para o mestre, que
continuava a ler, com tal interesse, que lhe pingava o rapé do nariz. - Ande, tome,
dizia-me baixinho o filho. E a pratinha fuzilava-lhe entre os dedos, como se fora
diamante... Em verdade, se o mestre não visse nada, que mal havia? E ele não
podia ver nada, estava agarrado aos jornais, lendo com fogo, com indignação...
- Tome, tome...
Relancei os olhos pela sala, e dei com os do Curvelo em nós; disse ao
Raimundo que esperasse. Pareceu-me que o outro nos observava, então
dissimulei; mas daí a pouco deitei-lhe outra vez o olho, e - tanto se ilude a vontade!
- não lhe vi mais nada. Então cobrei ânimo.
- Dê cá...
Raimundo deu-me a pratinha, sorrateiramente; eu meti-a na algibeira das
calças, com um alvoroço que não posso definir. Cá estava ela comigo, pegadinha à
perna. Restava prestar o serviço, ensinar a lição e não me demorei em fazê-lo, nem
o fiz mal, ao menos conscientemente; passava-lhe a explicação em um retalho de
papel que ele recebeu com cautela e cheio de atenção. Sentia-se que despendia
um esforço cinco ou seis vezes maior para aprender um nada; mas contanto que
ele escapasse ao castigo, tudo iria bem.
De repente, olhei para o Curvelo e estremeci; tinha os olhos em nós, com um
riso que me pareceu mau. Disfarcei; mas daí a pouco, voltando-me outra vez para
ele, achei-o do mesmo modo, com o mesmo ar, acrescendo que entrava a
remexer-se no banco, impaciente. Sorri para ele e ele não sorriu; ao contrário,
franziu a testa, o que lhe deu um aspecto ameaçador. O coração bateu-me muito.
- Precisamos muito cuidado, disse eu ao Raimundo.
- Diga-me isto só, murmurou ele.
Fiz-lhe sinal que se calasse; mas ele instava, e a moeda, cá no bolso,
lembrava-me o contrato feito. Ensinei-lhe o que era, disfarçando muito; depois,
tornei a olhar para o Curvelo, que me pareceu ainda mais inquieto, e o riso, dantes
mau, estava agora pior. Não é preciso dizer que também eu ficara em brasas,
ansioso que a aula acabasse; mas nem o relógio andava como das outras vezes,
nem o mestre fazia caso da escola; este lia os jornais, artigo por artigo, pontuando-
os com exclamações, com gestos de ombros, com uma ou duas pancadinhas na
mesa. E lá fora, no céu azul, por cima do morro, o mesmo eterno papagaio,
guinando a um lado e outro, como se me chamasse a ir ter com ele. Imaginei-me
154
ali, com os livros e a pedra embaixo da mangueira, e a pratinha no bolso das
calças, que eu não daria a ninguém, nem que me serrassem; guardá-la-ia em casa,
dizendo a mamãe que a tinha achado na rua. Para que me não fugisse, ia-a
apalpando, roçando-lhe os dedos pelo cunho, quase lendo pelo tato a inscrição,
com uma grande vontade de espiá-la.
- Oh! Seu Pilar! Bradou o mestre com voz de trovão.
Estremeci como se acordasse de um sonho, e levantei-me às pressas. Dei
com o mestre, olhando para mim, cara fechada, jornais dispersos, e ao pé da
mesa, em pé, o Curvelo. Pareceu-me adivinhar tudo.
- Venha cá! Bradou o mestre.
Fui e parei diante dele. Ele enterrou-me pela consciência dentro um par de
olhos pontudos; depois chamou o filho. Toda a escola tinha parado; ninguém mais
lia, ninguém fazia um só movimento. Eu, conquanto não tirasse os olhos do mestre,
sentia no ar a curiosidade e o pavor de todos.
- Então o senhor recebe dinheiro para ensinar as lições aos outros? disse-me
o Policarpo.
- Eu...
- Dê cá a moeda que este seu colega lhe deu! - Clamou.
Não obedeci logo, mas não pude negar nada. Continuei a tremer muito.
Policarpo bradou de novo que lhe desse a moeda, e eu não resisti mais, meti a
mão no bolso, vagarosamente, saquei-a e entreguei-lha. Ele examinou-a de um e
outro lado, bufando de raiva; depois estendeu o braço e atirou-a à rua. E então
disse-nos uma porção de coisas duras, que tanto o filho como eu acabávamos de
praticar uma ação feia, indigna, baixa, uma vilania, e para emenda e exemplo
íamos ser castigados. Aqui pegou da palmatória.
- Perdão, seu mestre... - solucei eu.
- Não há perdão! Dê cá a mão! Dê cá! Vamos! Sem-vergonha! Dê cá a mão!
- Mas, seu mestre...
- Olhe que é pior!
Estendi-lhe a mão direita, depois a esquerda, e fui recebendo os bolos uns
por cima dos outros, até completar doze, que me deixaram as palmas vermelhas e
inchadas. Chegou a vez do filho, e foi a mesma coisa; não lhe poupou nada, dois,
quatro, oito, doze bolos. Acabou, pregou-nos outro sermão. Chamou-nos sem-
vergonhas, desaforados, e jurou que se repetíssemos o negócio apanharíamos tal
155
castigo que nos havia de lembrar para todo o sempre. E exclamava: Porcalhões!
Tratantes! Faltos de brio!
Eu, por mim, tinha a cara no chão. Não ousava fitar ninguém, sentia todos os
olhos em nós. Recolhi-me ao banco, soluçando, fustigado pelos impropérios do
mestre. Na sala arquejava o terror; posso dizer que naquele dia ninguém faria igual
negócio. Creio que o próprio Curvelo enfiara de medo. Não olhei logo para ele, cá
dentro de mim jurava quebrar-lhe a cara, na rua, logo que saíssemos, tão certo
como três e dois serem cinco.
Daí a algum tempo olhei para ele; ele também olhava para mim, mas desviou
a cara, e penso que empalideceu. Compôs-se e entrou a ler em voz alta; estava
com medo. Começou a variar de atitude, agitando-se à toa, coçando os joelhos, o
nariz. Pode ser até que se arrependesse de nos ter denunciado; e na verdade, por
que denunciar-nos? Em que é que lhe tirávamos alguma coisa?
- Tu me pagas! tão duro como osso! dizia eu comigo.
Veio a hora de sair, e saímos; ele foi adiante, apressado, e eu não queria
brigar ali mesmo, na Rua do Costa, perto do colégio; havia de ser na Rua larga São
Joaquim. Quando, porém, cheguei à esquina, já o não vi; provavelmente
escondera-se em algum corredor ou loja; entrei numa botica, espiei em outras
casas, perguntei por ele a algumas pessoas, ninguém me deu notícia. De tarde
faltou à escola.
Em casa não contei nada, é claro; mas para explicar as mãos inchadas, menti
a minha mãe, disse-lhe que não tinha sabido a lição. Dormi nessa noite, mandando
ao diabo os dois meninos, tanto o da denúncia como o da moeda. E sonhei com a
moeda; sonhei que, ao tornar à escola, no dia seguinte, dera com ela na rua, e a
apanhara, sem medo nem escrúpulos...
De manhã, acordei cedo. A idéia de ir procurar a moeda fez-me vestir
depressa. O dia estava esplêndido, um dia de maio, sol magnífico, ar brando, sem
contar as calças novas que minha mãe me deu, por sinal que eram amarelas. Tudo
isso, e a pratinha... Saí de casa, como se fosse trepar ao trono de Jerusalém.
Piquei o passo para que ninguém chegasse antes de mim à escola; ainda assim
não andei tão depressa que amarrotasse as calças. Não, que elas eram bonitas!
Mirava-as, fugia aos encontros, ao lixo da rua...
Na rua encontrei uma companhia do batalhão de fuzileiros, tambor à frente,
rufando. Não podia ouvir isto quieto. Os soldados vinham batendo o pé rápido,
156
igual, direita, esquerda, ao som do rufo; vinham, passaram por mim, e foram
andando. Eu senti uma comichão nos pés, e tive ímpeto de ir atrás deles. Já lhes
disse: o dia estava lindo, e depois o tambor... Olhei para um e outro lado; afinal,
não sei como foi, entrei a marchar também ao som do rufo, creio que cantarolando
alguma coisa: Rato na casaca... Não fui à escola, acompanhei os fuzileiros, depois
enfiei pela Saúde, e acabei a manhã na Praia da Gamboa. Voltei para casa com as
calças enxovalhadas, sem pratinha no bolso nem ressentimento na alma. E
contudo a pratinha era bonita e foram eles, Raimundo e Curvelo, que me deram o
primeiro conhecimento, um da corrupção, outro da delação; mas o diabo do
tambor... (ASSIS, 1985)
157
ANEXO C
COM CERTEZA TENHO AMOR (2005)
Moça tão resguardada por seus pais não deveria ter ido à feira. Nem foi,
embora muito o desejasse. Mas porque o desejava, convenceu a ama que a
acompanhava a tomar uma rua em vez da outra para ir à igreja, e a rua que
tomaram passava tão perto da feira que seus sons a percorriam como água e as
cores todas da feira pareciam espelhar-se nas paredes claras. Foi dessa rua,
olhando através do véu que lhe cobria metade do rosto, que a moça viu os
saltimbancos em suas acrobacias.
E foi nessa rua, recortada como uma silhueta em suas roupas escuras, o
rosto meio coberto por um véu, que o mais jovem dos saltimbancos, atrasado a
caminho da feira, a viu.
Era o mais jovem era o mais forte era o mais valente entre os onze irmãos. A
partir daquele encontro, porém, uma fraqueza que não conhecia deslizou para
dentro do seu peito. À noite suspirava como se doente.
- Que tens? – perguntaram-lhe os irmãos.
- Não sei – respondeu. E era verdade. Sabia apenas que a moça velada
aparecia nos seus sonhos, e que parecia sonhar mesmo acordado porque mesmo
acordado a tinha diante dos olhos.
Àquela rua a moça não voltou mais. Mas ele a procurou em todas as outras
ruas da cidade até vê-la passar, esperou diante da igreja até vê-la entrar,
acompanhou-a ao longe até vê-la chegar em casa.
Agora sorria, cantava, embora de repente largasse a comida no prato porque
nada mais lhe passava na garganta.
- Que tens? – perguntaram-lhe os irmãos.
- Acho, não sei... – respondeu ele abaixando a cabeça sobre o seu rubor –
creio... que tenho amor.
Na sua casa, a moça também sorria e cantava, largava de repente a comida
no prato e se punha a chorar.
- Tenho... sim... com certeza tenho amor - respondeu à ama que lhe
perguntou o que tinha.
Mas nem a ama se alegrou, nem se alegraram os dez irmãos. Pois como
alegrar-se com um amor que não podia ser?
158
De fato, tanto riso, tanto choro acabaram chamando a atenção do pai da
moça que, vigilante e sem precisar perguntar, trancou-a no quarto mais alto da sua
casa. Não era com um saltimbanco que havia de casar a filha criada com tanto
esmero.
Mas era com o saltimbanco que ela queria se casar.
E o saltimbanco, ajudado por seus dez irmãos, começou a se preparar para
chegar até ela.
Afinal uma noite, lua nenhuma que os denunciasse, encaminharam-se os
onze para a casa da moça. Seus pés calçados de feltro calavam-se sobre as pedras.
O mais jovem era o mais forte, teria ele que sustentar os demais. Pernas
abertas e firmes, cravou-se no chão bem debaixo da janela dela. O segundo irmão
subiu para os seus ombros, estendeu a mão e o terceiro subiu. O quarto escalou os
outros até subir nos ombros do terceiro. E, um por cima do outro, foram se
construindo como uma torre. Até que o último chegou ao topo.
O último chegou ao topo, e o topo não chegou à altura da janela da moça. De
cima a baixo os irmãos passaram-se a palavra. Os onze pareceram ondejar por um
instante. Então o mais jovem e mais forte saiu debaixo dos pés do seu irmão
deixando-o suspenso no ar, e tomando a mão que este lhe estendeu subiu
rapidamente por ele, galgando seus irmãos um a um.
No alto, a janela se abriu. (COLASANTI, 2005)
159
ANEXO D
RESTOS DO CARNAVAL (1971)
Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou
para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde
esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu
cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se
segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa já ia se
aproximando, como explicar a agitação que me tomava? Como se enfim o mundo se
abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do
Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas
enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era
meu, meu.
No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um
baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até
umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos,
olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e
economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um
saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de
coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era
de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.
E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque
vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também
fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado
falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo
interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas
com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para
mim.
Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente,
ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de
minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto
desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante
três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso
de ser uma moça - eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável - e
160
pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces.
Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.
Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não
conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É
que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era
no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa,
com os quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu
assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o
papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das
fantasias mais belas que jamais vira.
Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel
crepom, e muito. E a mãe de minha amiga - talvez atendendo a meu mudo apelo, ao
meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel -
resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de
material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre
quisera: ia ser outra que não eu mesma.
Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira tão
ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da
fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia se derretesse pelo
menos estaríamos de algum modo vestidas – à idéia de uma chuva que de repente
nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito anos, de combinação na rua,
morríamos previamente de vergonha - mas ah! Deus nos ajudaria! não choveria!
Quando ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de outra, engoli
com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o
destino me dava de esmola.
Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser
tão melancólico? De manhã cedo no domingo eu já estava de cabelos enrolados
para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não passavam, de
tanta ansiedade. Enfim, enfim! Chegaram três horas da tarde: com cuidado para não
rasgar o papel, eu me vesti de rosa.
Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No
entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é
irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado,
ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge - minha mãe de súbito
161
piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me
comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa - mas o
rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida
infantil - fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos
de carnaval. A alegria dos outros me espantava.
Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me
penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas
histórias que eu havia lido, sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas,
eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina.
Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios
encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas
com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.
Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é
porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim
significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa
mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já
lisos de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu
então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me
havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa. (LISPECTOR, 1998)
162
ANEXO E
O ARQUIVO (1972)
No fim de um ano de trabalho, João obteve uma redução de quinze por cento
em seus vencimentos.
joão era moço. Aquele era seu primeiro emprego. Não se mostrou orgulhoso,
embora tenha sido um dos poucos contemplados. Afinal, esforçara-se. Não tivera
uma só falta ou atraso. Limitou-se a sorrir, a agradecer ao chefe.
No dia seguinte, mudou-se para um quarto mais distante do centro da cidade.
Com o salário reduzido, podia pagar um aluguel menor.
Passou a tomar duas conduções para chegar ao trabalho. No entanto, estava
satisfeito. Acordava mais cedo, e isto parecia aumentar-lhe a disposição.
Dois anos mais tarde, veio outra recompensa.
O chefe chamou-o e lhe comunicou o segundo corte salarial.
Desta vez, a empresa atravessava um período excelente. A redução foi um
pouco maior: dezessete por cento.
Novos sorrisos, novos agradecimentos, nova mudança.
Agora joão acordava às cinco da manhã. Esperava três conduções. Em
compensação, comia menos. Ficou mais esbelto. Sua pele tornou-se menos rosada.
O contentamento aumentou.
Prosseguiu a luta.
Porém, nos quatro anos seguintes, nada de extraordinário aconteceu.
joão preocupava-se. Perdia o sono, envenenado em intrigas de colegas
invejosos. Odiava-os. Torturava-se com a incompreensão do chefe. Mas não
desistia. Passou a trabalhar mais duas horas diárias.
Uma tarde, quase ao fim do expediente, foi chamado ao escritório principal.
Respirou descompassado.
— Seu joão. Nossa firma tem uma grande dívida com o senhor.
joão baixou a cabeça em sinal de modéstia.
— Sabemos de todos os seus esforços. É nosso desejo dar-lhe uma prova
substancial de nosso reconhecimento.
O coração parava.
163
— Além de uma redução de dezesseis por cento em seu ordenado,
resolvemos, na reunião de ontem, rebaixá-lo de posto.
A revelação deslumbrou-o. Todos sorriam.
— De hoje em diante, o senhor passará a auxiliar de contabilidade, com
menos cinco dias de férias. Contente?
Radiante, joão gaguejou alguma coisa ininteligível, cumprimentou a diretoria,
voltou ao trabalho.
Nesta noite, joão não pensou em nada. Dormiu pacífico, no silêncio do
subúrbio.
Mais uma vez, mudou-se. Finalmente, deixara de jantar. O almoço reduzira-se
a um sanduíche. Emagrecia, sentia-se mais leve, mais ágil. Não havia necessidade
de muita roupa. Eliminara certas despesas inúteis, lavadeira, pensão.
Chegava em casa às onze da noite, levantava-se às três da madrugada.
Esfarelava-se num trem e dois ônibus para garantir meia hora de antecedência.
A vida foi passando, com novos prêmios.
Aos sessenta anos, o ordenado equivalia a dois por cento do inicial. O
organismo acomodara-se à fome. Uma vez ou outra, saboreava alguma raiz das
estradas. Dormia apenas quinze minutos. Não tinha mais problemas de moradia ou
vestimenta. Vivia nos campos, entre árvores refrescantes, cobria-se com os farrapos
de um lençol adquirido há muito tempo.
O corpo era um monte de rugas sorridentes.
Todos os dias, um caminhão anônimo transportava-o ao trabalho.
Quando completou quarenta anos de serviço, foi convocado pela chefia:
— Seu joão. O senhor acaba de ter seu salário eliminado. Não haverá mais
férias. E sua função, a partir de amanhã, será a de limpador de nossos sanitários.
O crânio seco comprimiu-se. Do olho amarelado, escorreu um líquido tênue. A
boca tremeu, mas nada disse. Sentia-se cansado. Enfim, atingira todos os objetivos.
Tentou sorrir:
— Agradeço tudo que fizeram em meu benefício. Mas desejo requerer minha
aposentadoria.
O chefe não compreendeu:
— Mas seu joão, logo agora que o senhor está desassalariado? Por quê?
Dentro de alguns meses terá de pagar a taxa inicial para permanecer em nosso
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quadro. Desprezar tudo isto? Quarenta anos de convívio? O senhor ainda está forte.
Que acha?
A emoção impediu qualquer resposta.
joão afastou-se. O lábio murcho se estendeu. A pele enrijeceu, ficou lisa. A
estatura regrediu. A cabeça se fundiu ao corpo. As formas desumanizaram-se,
planas, compactas. Nos lados, havia duas arestas. Tornou-se cinzento.
João transformou-se num arquivo de metal. (GIUDICE, 1986)