CIDADE, TIPOGRAFIA, FOTOGRAFIA_ Chico Homem de Melo
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ENQUADRAMENTO Nossa percepção do mundo que nos cerca não se dá no vazio, mas
ocorre sempre dentro de um contexto. A eliminação desse contexto é uma
diferença fundante entre a percepção que um espectador tem quando está
mergulhado num determinado ambiente e quando contempla uma imagem
fotográfica desse mesmo ambiente. No primeiro caso, o espectador está
dentro da cena, está envolvido por informações visuais por todos os lados. No
segundo caso, o espectador está fora, a informação visual lhe é externa, os
limites da cena são pré-definidos e arbitrários.
A arbitrariedade do enquadramento que o fotógrafo faz da cena é
decisiva para gerar a imagem final. Esse é o recurso mais poderoso para a
seleção das informações visuais desejáveis e eliminação das indesejáveis. O
estúdio fotográfico é a concretização dessa operação arbitrária, na qual tudo é
explicitamente controlado visando a obtenção de uma determinada imagem
da realidade. Toda a fotografia publicitária é produzida dessa forma. No
entanto, o estúdio é apenas a explicitação desses recursos, que na verdade
ocorrem na geração de qualquer imagem fotográfica, independente de sua
natureza. A fotografia sempre reduz a um campo geometricamente definido,
uma realidade que não tem limites determináveis.
EXCLUSÃO DE ELEMENTOS
A desarticulação que o enquadramento produz na realidade
observada, ao isolar um fragmento e descontextualiza-lo, tem por isso mesmo
o poder de surpreender-nos. O enquadramento reconstrói a realidade,
operando com uma fração isolada do visível, e esse isolamento pode por
vezes nos revelar o imprevisto. A prática mais corrente do enquadramento, na
verdade, uma operação inevitável, é a eliminação de parte das informações
visuais da cena representada. O fotógrafo limpa a cena através da retirada de
informações que poderiam vir a se constituir em ruído na imagem desejada.
O cartão-postal é um exemplo privilegiado desse recurso. Ele está a serviço de
uma determinada visão da cidade e, com o objetivo de potencializá-la,
elimina tudo que não estiver a seu serviço.
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Esse procedimento repete-se nas fotos dos compêndios de arquitetura,
visando dar a maior nitidez possível às obras.
Os edifícios são vistos sempre como
protagonistas incontestes da cena urbana. Suas
linhas são enfatizadas, seu desenho é destacado
do entorno, ele aparece com uma clareza de
concepção que somente em circunstâncias
muito particulares podemos contemplar. A foto
da Figura 1, do edifício Guaranty Trust Bank, de
Louis Sullivan, ilustra bem esse procedimento.
A imagem enfatiza as linhas da
perspectiva, isola o edifício de seu entorno,
elimina qualquer vizinhança que possa rivalizar
com seu desenho. Ele adquire uma legibilidade
máxima. No entanto, se examinarmos os esquemas da
Figura 2, feitos a partir da foto, veremos como sua imagem
perde o poder de impacto quando aparece mergulhada num
hipotético contexto de edifícios vizinhos. Apesar da
manutenção do ponto de vista da foto, que por si só já lhe
assegura o lugar de centro das atenções, podemos perceber
a nitidez de seu desenho diluir-se na paisagem.
Essa estratégia de construção da imagem ajuda a
explicar nossa surpresa quando tomamos contato direto
com a escala de edifícios e ambientes urbanos que
conhecemos somente através de fotografias. A sensação
mais frequente é que as obras têm dimensões menores do
que nossa expectativa poderia supor. Entre outras razões,
esse fenômeno ocorre em virtude da exclusão – pelo recurso
do enquadramento – de informações visuais do contexto em
que as obras estão mergulhadas, estabelecendo uma
hegemonia absoluta delas em relação ao entorno. Dessa
2. Esquemas mostrando a inclusão e exclusão de elementos na imagem
fotográfica.
1. K Kitajima. Guaranty Trust Bank, de Louis Sullivan. Foto sem data.
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forma, o esforço das imagens fotográficas em concentrar toda a atenção na
obra faz com que ela sofra um processo de diluição no momento em que a
presença do contexto passa a estimular nossos sentidos. Ao mesmo tempo,
isso não implica numa perda de qualidade da informação arquitetônica. Pelo
contrário, o fenômeno mais comum é que o contato direto com as obras
supera nossa expectativa global em relação a elas, frequentemente revelando
aspectos insuspeitados da linguagem da arquitetura.
O procedimento do fotógrafo não constitui uma falácia. É um recurso
usado para representar determinados aspectos da linguagem dos edifícios.
Uma vez que o objetivo é descrever com a máxima nitidez o desenho do
edifício, nada melhor que destacá-lo do contexto para se poder observá-lo de
um ponto de vista privilegiado. O prejuízo que a difusão indiscriminada
desse tipo de imagem causa está no fato de que esse olhar particular da
fotografia instaura-se como o olhar universal pelo qual apreende-se a
arquitetura. Passamos a acreditar subliminarmente que é assim que se vê a
arquitetura e, por consequência, passamos a projetar para esse olhar. O
modelo de representação do espaço próprio da fotografia institui-se como o
modelo de representação do espaço por excelência, sem mediações.
A radicalização do recurso de eliminar toda informação visual
supérflua e a explicitação do uso do enquadramento rigorosamente seletivo
podem revelar uma realidade insuspeitada. É o caso do conjunto de fotos de
Anna Mariani, reunidas no livro
Façades, das quais são
reproduzidas três na Figura 3. São
imagens de habitações simples do
Nordeste brasileiro, nas quais o
enquadramento elimina toda a
informação visual que não seja a
fachada da casa retratada, além de
faixas de piso e de céu de
tamanhos equivalentes. Não há 3. Anna Mariani. Fachadas. Foto de 1988.
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vestígios de edificações vizinhas, e o ângulo de visada é sempre o mesmo –
perpendicular ao plano da fachada, centralizado em relação a ele, na altura do
olho do pedestre. O resultado é surpreendente. Defrontamo-nos com um
conjunto de fachadas que apresentam, aliados ao caráter singelo das
habitações, um requinte gráfico e cromático insuspeitado. Nosso repertório
visual normalmente nos remete, em se tratando de pequenas cidades do
interior nordestino a cenários de pobreza e precariedade. Mesmo em nossas
vivências diretas desses ambientes, há pouco espaço para a percepção da
singularidade das casas retratadas pela fotógrafa. O recorte radical nos revela
uma paisagem com características opostas às nossas expectativas – riqueza de
desenhos e rigor de composição que nos remetem até mesmo a tradição da
pintura abstrata erudita.
INCLUSÃO DE ELEMENTOS
Se por um lado a exclusão de elementos indesejáveis é a prática mais
corrente – e inevitável, é bom que se lembre –, por outro a inclusão de
elementos aparentemente estranhos aos objetos retratados é um recurso
frequente para a construção de significados normalmente ausentes da
linguagem fotográfica dos cartões-postais.
Na fotografia de um aeroporto
americano reproduzida na Figura 4,
de autoria dos suíços Peter Fischli e
David Weiss, podemos ver a
desintegração da hierarquia habitual
das fotos oficiais através da
incorporação de elementos
normalmente eliminados pelo
enquadramento padrão. Os aviões,
invariavelmente os protagonistas da
cena fotográfica ícones do avanço tecnológico da humanidade, estão
equiparados aos demais elementos da paisagem: carros dispostos
aleatoriamente por toda parte, postes enferrujados, cercas tortas, edifícios de
4. Peter Fischli e David Weiss. Sem título. Foto de 1989.
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formas variadas e, em primeiro plano, um monte de terra e entulho.
O enquadramento-padrão providenciaria a eliminação dos elementos
de cena que ofuscam o brilho dos aviões, e o primeiro a ser eliminado seria
indiscutivelmente o monte de terra. O próprio enquadramento dos aviões está
deslocado da hierarquia habitual das fotos oficiais de aeroporto, pois além de
dispostos em desacordo com qualquer princípio compositivo que lhes garanta
o papel de protagonistas da cena fotográfica, o poste em primeiro plano
esconde sua cabeça e rompe a integridade do desenho da aeronave. A força
da imagem constrói-se exatamente através da quebra da composição
equilibrada que se espera da cena retratada, e pela revelação de uma
banalidade da paisagem incompatível com nossas expectativas culturais.
Nessa outra realidade revelada, o monte de terra informe equipara-se às
formas rigorosas e precisas dos aviões.
INFORMAÇÃO EXTRACAMPO
Na foto da Figura 47 fica explicitado o recurso da informação extra-
campo usada pelos cartões-postais para criar uma imagem idealizada do
ambiente urbano. A informação extracampo é a continuidade virtual da
imagem para além dos limites impostos pelo enquadramento, obedecendo
aos modelos figurativos que constituem nossa cultura visual.
Assim, um cartão-postal de um monumento não nos permite sequer
considerar a possibilidade de que contigua a ele pudesse estar localizada uma
favela escondida pelo enquadramento. Ao contrário, imaginamos sempre
uma continuidade harmônica da cena retratada. O mesmo gesto que exclui
elementos da cena, inclui virtualmente outros elementos que não podemos
contemplar naquele enquadramento, mas que ficam subentendidos. E o
mesmo recurso que faz com que, numa foto, enfatizando o garbo de
aeronaves dispostas numa pista de aeroporto, não possamos supor que
contiguo a elas estejam presentes cercas e postes enferrujados ou um monte
de terra e entulho. Na medida em que os cartões restringem todos os
elementos de cena a um único sentido, a informação extracampo vem sempre
reforçar esse sentido, e nunca contradizê-lo.
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Os cartões-postais que transformam a paisagem urbana numa textura
regular de prismas como na Figura 5, são exemplos de exploração do recurso
da informação extra-campo. Através do enquadramento fechado num campo
visual que repete um padrão uniforme de distribuição de edifícios, a imagem
torna-se contínua para além dos limites do
visível, sem interrupções previsíveis desse
padrão. A cidade ganha homogeneidade de
um tecido que se estende indefinidamente
sobre um território. O resultado é uma
paisagem idealizada, vista como um padrão
gráfico contínuo e homogêneo, sem relação
com nossa experiência sensorial dos
ambientes urbanos, mas que, apesar disso,
não perde sua verossimilhança.
PONTO DE VISTA Quando olhamos o mundo, nossa atenção normalmente volta-se para o
que se olha, e negligencia-se o lugar de onde se olha. No entanto, sempre
olhamos o mundo a partir de um ponto de vista, e esse ponto de vista molda
nosso olhar. Trata-se de um componente subliminar das imagens fotográficas,
responsável muitas vezes pelo fascínio que elas exercem sobre nós. Fotos
tiradas de lugares inacessíveis, de ângulos surpreendentes, de pontos de vista
desconhecidos, nos revelam o mundo sob um prisma que por vezes nunca
tivemos oportunidade de olhar.
DE BAIXO, DE CIMA
As três fotos de Robert Frank das Figuras 6,
7 e 8 exemplificam pontos de vista distintos. Na
primeira, a imagem das autoridades vistas de baixo
para cima amplifica-lhes o poder já conferido pelo
palanque, pela postura e pela indumentária. Na
5. São Paulo – Avenida Paulista. Cartão Postal da Mercator. Sem autor e data.
6. Robert Frank. Hoboken, New Jersey. Foto de 1955-56.
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segunda, a imagem dos transeuntes vistos do ponto de vista de quem está
entre eles estabelece um sentido de solidariedade
com o espectador. Na terceira, o casal é visto de
cima para baixo. A contrariedade do homem é
evidente, tanto em virtude da invasão de sua
intimidade, quanto da situação de inferioridade a
que ele se vê submetido pelo ponto de vista
sobranceiro do fotógrafo. Uma foto mais recente
do mesmo Robert Frank, reproduzida na Figura 9,
um retrato do músico Tom Waits para a
contracapa do disco Rain Dogs, alia o recurso do
ângulo ao do enquadramento. O fotógrafo olha o
mundo a partir de um ponto de vista
normalmente ausente de nossa percepção do
mundo, numa altura próxima a 80 cm do piso.
Como o ângulo de visada continua paralelo ao
plano do piso e os objetos retratados estão
próximos, as figuras humanas aparecem cortadas
na altura do peito, eliminando-se os rostos,
sempre presentes em imagens de pessoas. No
entanto, o músico está agachado, e o que poderia
ser um ponto de vista fora do lugar passa a
estabelecer um vínculo de cumplicidade entre
observador e fotografado. Na verdade, ambos
estão fora do lugar, mas ambos estão juntos,
olham o mundo a partir desse lugar particular,
descentrado. Trata-se de um exemplo de ângulo
surpreendente, obtido através de um
deslocamento de poucos palmos em relação ao
nosso olhar cotidiano, deslocamento capaz de
registrar um outro olhar possível sobre a
imagem habitual.
7. Robert Frank. New Orleans. Foto de 1955-56.
8. Robert Frank. San Francisco. Foto de 1955-56.
9. Robert Frank. Tom Waits. Foto de 1985.
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Nos cartões-postais e nas fotos dos
compêndios de arquitetura alternam-se o ponto
de vista de cima para baixo e de baixo para
cima. Raramente temos o ponto de vista de um
transeunte ao nível da via pública, o seu espaço
habitual. Nos planos gerais, adotados para
retratar paisagens em grande escala, o ponto
de vista é sempre de cima para baixo, como
veremos adiante. Nos planos médios,
normalmente adotados para retratar edifícios
de destaque, o ângulo de baixo para cima é o
recurso mais usual. Ele confere
monumentalidade aos edifícios, acentua sua
volumetria através da ênfase na ordem
perspectiva e a pequena o espectador, como
pode ser visto nas Figuras 10 e 11.
DE DENTRO, DE FORA
Assim como se vê o mundo de baixo ou de cima, pode-se vê-lo de
dentro ou de fora da cena. O grau de envolvimento que a imagem produzirá
no espectador dependerá de sua inclusão ou exclusão na construção da
imagem. É possível traçarmos um paralelo com a narração em primeira e em
terceira pessoa do texto literário. Quando se narra em primeira pessoa, o
leitor partilha do ponto de vista do narrador, ele participa dos acontecimentos
pelo lado de dentro. Na narração em terceira pessoa, normalmente a distância
em relação aos acontecimentos aumenta, acompanha-se a trama pelo lado de
fora.
Nas manifestações de maio de 1968 em Paris, muitos dentre os maiores
fotógrafos do mundo estiveram no palco dos acontecimentos. Cada um
produziu um conjunto de imagens que revelava aspectos diversos dos
acontecimentos, e que se construía em função do grau e do tipo de
envolvimento de cada um com as manifestações. Tomemos duas dessas
10. Templo de Netuno. Cartão-postal da Alterocca Terni. Sem autor e data.
11. São Paulo – MASP. Cartão-postal da Postais do Brasil. Sem autor e data.
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imagens para exemplificar a diferença entre o olhar
de dentro e de fora das cenas retratadas. As fotos
que se enquadram no primeiro caso são abundantes,
pois invariavelmente os fotógrafos tomaram o
partido dos manifestantes revoltosos, e partilharam
ativamente de seu ponto de vista. A foto da Figura
12, de Gilles Caron, é eloquente para exemplificar a
identificação entre o olhar do fotógrafo, que passa a
ser o nosso, e o do manifestante. Na verdade, o que
se vê é a luta contra uma grande névoa, é a luta
contra um inimigo sem rosto, é a luta do pequeno,
que atira uma pedra, contra o grande, que não pode
ser atingido porque nem sequer materialidade tem.
Tomamos imediatamente o partido do manifestante,
pois partilhamos seu ponto de vista, estamos mergulhados dentro da cena.
As fotos que se enquadram no segundo caso são
mais raras. Um dos fotógrafos presentes alinhava-se
contra os manifestantes, e seu olhar retratou os
acontecimentos de forma peculiar, sempre de fora.
Tratam-se das fotos do chefe de polícia de Paris da época,
Maurice Grimaud. Suas imagens são sempre distantes,
em planos gerais, nos quais os manifestantes reduzem-se
a uma pequena massa frente à grandiosidade de Paris.
São imagens nítidas, claras, analíticas, verdadeiros
diagramas de um general que dispõe suas tropas nos
pontos chave, visando minar as forças do inimigo. Na
foto da Figura 13, o desenho das aglomerações de
manifestantes revela-se com frieza, visto de longe, de
cima para baixo, de fora da cena. Torna-se impossível
partilhar do ponto de vista dos manifestantes, e resta-nos um papel de
espectadores analíticos dos acontecimentos. O cartão-postal repete o mesmo
procedimento. Seu discurso é em terceira pessoa, um discurso à distância que
12. Gilles Caron. Rua Saint-Jacques. Foto de 1968.
13. Maurice Grimaud. Manifestação de 13 de maio. Foto
de 1968.
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descreve a cidade sem inscrever o espectador no ambiente urbano, como pode
ser observado no exemplo da Figura 14.
PLANO GERAL
O plano geral com ponto de vista de cima para baixo é um recurso
recorrente em toda a iconografia fotográfica urbana. As cidades são vistas a
partir de lugares altos ou de tomadas aéreas,
ambas situações normalmente inacessíveis ao
espectador comum. O resultado são imagens
produzidas por um olhar situado em lugar
nenhum – não há primeiros planos que
forneçam qualquer referência de escala ou de
origem da tomada. São imagens que nos
seduzem pelo seu poder de recuperar um
sentido de totalidade perdido na percepção cotidiana da cidade, frutos de
uma espécie de desterritorialização do olhar. O ponto de vista do cidadão
mergulhado no ambiente urbano está eliminado
em favor de um olhar globalizante que nos
oferece uma cidade ao mesmo tempo
compreensível e invisível no cotidiano, como na
Figura 15. Encontramos nessas imagens um
mapeamento da estrutura da cidade, uma
dimensão descritiva que se impõe como um
componente fundamental na construção de sua
linguagem. A nós, espectadores, não está
reservado um lugar cena, mas apenas um lugar
na representação da cena. Como contraponto, a
foto de Cartier-Bresson da Figura 16 estabelece
com clareza um lugar geográfico a partir do
qual se vê o skyline de uma metrópole
pontuado por silhuetas de edifícios. Não é mais
um olhar totalizante, mas o olhar de um
14. Vaticano – São Pedro. Cartão-postal da Alteroca Terni. Sem autor e data.
15. São Paulo – Parque do Ibirapuera com Avenida 23 de Maio. Cartão Postal da Postais
do Brasil. Sem autor e data.
16. Henri Cartier-Bresson. Hudson e Manhattan. Foto de 1946.
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observador mergulhado numa situação específica. Através do contraste entre
o primeiro e o último plano, a imagem subverte o arquétipo da massa de
edifícios grandiosos que compõe a imagem oficial da metrópole.
As fotos de Reinhart Wolf de edifícios célebres da cidade de Nova York
abandonam os planos gerais e optam por planos fechados em detalhes das
obras. Como os cartões-postais, elas também são
realizadas a partir de ângulos inacessíveis, através do
uso de lentes de aproximação que conferem às imagens
um caráter fantástico, como na Figura 17. No entanto, ao
contrário do que ocorre nos cartões-postais, as imagens
surpreendem o espectador pela enunciação clara da
inacessibilidade do ponto de vista fotográfico. Por serem
edifícios célebres, suas imagens são reconhecidas, ao
mesmo tempo em que causam um choque pelo olhar
inesperado. Eles são vistos como nas elevações das
pranchas de arquitetura. Contempla-se um ângulo
virtual dos edifícios, uma imagem que eles poderiam ter
se pudessem ser vistos daquela maneira. No entanto,
sabemos que não se trata de um desenho técnico, mas
de uma imagem do edifício real construído. Cria-se uma espécie de hiper-
realidade, uma realidade moldada até o limite da perfeição pelos recursos da
linguagem fotográfica explicitamente revelados.
HORIZONTE INCLINADO
Inclinar a linha do horizonte é um recurso recorrente utilizado por
fotógrafos na tentativa de romper o caráter
abstrato e totalizante dos planos gerais e explicitar
o olhar de um espectador particular. Rodchenko
foi o primeiro a utilizar sistematicamente esse
recurso. A horizontalidade do horizonte – quase
uma tautologia – é uma vivência profundamente
introjetada na experiência humana. Quebrar essa
17. Reinhart Wolf. Edifício General Eletric. Foto de 1976.
18. Estocolmo. Cartão-postal da Immenco. Foto de Svenska Aerobilder AB, sem data.
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regra introduz imediatamente um ruído na imagem, substituindo o olhar
"neutro" por um olhar particular. Paradoxalmente, o rompimento de um
hábito perceptivo tão enraizado aproxima a imagem da experiência humana,
uma vez que é possível reconhecer com nitidez o ponto de vista do
observador. Substitui-se a naturalidade da percepção da imagem fotográfica
por uma explicitação de seus recursos enquanto construção deliberada da
vontade do fotógrafo. Não por acaso, os cartões postais evitam inclinar a linha
do horizonte e sempre que possível reafirmam sua horizontalidade, na
tentativa de estabelecer uma condição de neutralidade da representação,
como pode ser visto na Figura 18.
A célebre foto da Figura 19, da Brooklyn Bridge em Nova York, de
Sherril Schell, nos mostra os componentes da estrutura clássica de construção
da imagem fotográfica tomada em plano geral, ponto
de fuga central, ênfase na regularidade do desenho da
estrutura da ponte, nitidez conferida por claros e
escuros bem delineados. William Klein revisita a
Brooklyn Bridge na foto da Figura 20, de 1954, desta
vez com outro ponto de vista. A nitidez de claros e
escuros se acentua, temos uma imagem quase em alto-
contraste, uma silhueta de fragmentos da estrutura
contra o céu. O plano geral fecha-se num plano médio,
e o que era regularidade na estrutura transforma-se
em irregularidade. O horizonte inclina-se e toda a
simetria da imagem
anterior cede lugar a uma
composição tensa, inacabada, desequilibrada.
Temos agora uma imagem particular da ponte, de
um espectador determinado, e não mais o
absolutismo da imagem anterior, a ilusão da
descrição fiel. O fotógrafo explora o recurso do
estranhamento ao romper com a naturalidade da
representação e reconhecer o objeto a partir de um
19. Sherril Schell. Brooklyn Bridge. Foto sem data.
20. William Klein. Brooklyn Bridge. Foto de 1955.
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novo ponto de vista. Trata-se de um movimento de dois tempos que inclui
um afastamento do objeto seguido de nova aproximação, no qual reconhecer
é efetivamente conhecer outra vez.