dor no parto dor não, parto ignacio spina

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“Dor no parto? Dor não, parto.1 – Ignacio Spina Só na sala de espera do ginecologista é que eu resolveria ler uma matéria tão absurda e de tão pouco valor. Sabe aqueles artefatos antigos para guardar revistas que jamais faltam na sala de qualquer médico? Bom, foi de lá que eu tirei a revistinha em questão... É engraçado como esse tipo de revistas só se encontra em salas de espera. Essas revistas de mulheres são antes revistas de consultórios e de salão de beleza. Não só não conheço ninguém que compre, como também não saberia onde conseguir se eu resolvesse um dia dar uma oportunidade àquele tipo de jornalismo tão comercial. O fato é que o título da matéria era algo como “Como controlar a dor no parto”. É verdade que as dicas – que recomendavam métodos de relaxamento impossíveis de lembrar em momentos desses ou até a anestesia peridural, que bem sabemos nem todo o mundo pode usar – eram absurdas, mas o que mais me chamou a atenção era o nome do autor: Wagner Araújo. Wagner? Em toda a minha vida tenho conhecido milhares de pessoas e poderia jurar – se necessário assinando um papel em troca da minha alma – que Wagner é nome de homem. O problema não é apenas o conteúdo, mas quem pode falar do assunto. Teve uma vez que ouvi, num documentário, um treinador de elefantes de um circo dizer que o animal não sofria por ter de fazer as provas do show. O rapaz que perguntava chamou poderosamente a minha atenção. Dava para perceber que ele não concordava com o sacana, pois era impossível ele fazer tal afirmação. O jornalista tentou não demonstrar que discordava, mas eu percebi bem rápido. Se a ironia tivesse existência física, seria a cara daquele sujeito ao escutar isso. Sim... É... Claro... falava para o entrevistado enquanto seus olhos delatavam o “Não concordo, esse cara está mentindo”. Para o moço era obvio que o outro mentia. Olhava para ele e ficava pensando como podia fazer aquela afirmação. Ele teria sido elefante em outras vidas? Com certeza não. E foi assim que troquei de canal. A leitura dessa matéria me fez lembrar aquela anedota que eu considerava esquecida faz tempo. Pois é, Wagner, você acha que sabe mesmo o quanto dói? Não, você não sabe, pois somente nós sabemos. Vou te explicar: na verdade o substantivo “dor” não é realmente muito exato para definir o que a gente sente nesse momento. “Dor” não é suficiente. Dor é o que você sente quando a faca bate por engano em alguma parte do seu corpo. Ai! (seguido, na maioria dos casos, de palavras que na TV costumam ser proibidas até as dez da noite). Dor é o que você sente quando apanha uma porrada de outrem (e aí a palavra chula não precisa de “ai” nenhum para sair livremente). Dor é o que aparece na barriga ao você beber do leite uma semana depois da data que diz na garrafa. Dor é o que você tem na cabeça quando alguém não pára de fazer alguma coisa que te atrapalha. Mas o parto não é isso não. É, de fato, tudo isso e mais. Se pudesse ter uma foto que demonstrasse a frialdade da sala, qualquer um acharia impossível o quanto a gente se cobre de suor naquele momento. É, porém, apenas uma aparência estética, pois todo o mundo sabe que não há lugar mais caloroso do que uma sala 1 SPINA, Ignacio. "Dor no parto? Dor não, parto." em Encontro Literário Cronicando II. Instituto Camões. Centro de Línuga Portuguesa, Buenos Aires, 7 de Junho de 2012.

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SPINA, Ignacio. "Dor no parto? Dor não, parto." em Encontro Literário Cronicando II. Instituto Camões. Centro de Línuga Portuguesa, Buenos Aires, 7 de Junho de 2012

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“Dor no parto? Dor não, parto.”1 – Ignacio Spina 

Só na sala de espera do ginecologista é que eu resolveria ler uma matéria tão absurda e de 

tão pouco valor. Sabe aqueles artefatos antigos para guardar revistas que jamais faltam na sala 

de qualquer médico? Bom, foi de lá que eu tirei a revistinha em questão... 

É engraçado como esse tipo de revistas só se encontra em salas de espera. Essas revistas de 

mulheres são antes revistas de consultórios e de salão de beleza. Não só não conheço ninguém 

que  compre,  como  também  não  saberia  onde  conseguir  se  eu  resolvesse  um  dia  dar  uma 

oportunidade àquele tipo de jornalismo tão comercial. 

O fato é que o título da matéria era algo como “Como controlar a dor no parto”. É verdade 

que  as  dicas  –  que  recomendavam  métodos  de  relaxamento  impossíveis  de  lembrar  em 

momentos desses ou até a anestesia peridural, que bem sabemos nem  todo o mundo pode 

usar – eram absurdas, mas o que mais me chamou a atenção era o nome do autor: Wagner 

Araújo. Wagner? Em toda a minha vida tenho conhecido milhares de pessoas e poderia jurar – 

se necessário assinando um papel em troca da minha alma – que Wagner é nome de homem. 

O problema não é apenas o conteúdo, mas quem pode falar do assunto. Teve uma vez que 

ouvi, num documentário, um treinador de elefantes de um circo dizer que o animal não sofria 

por ter de fazer as provas do show. O rapaz que perguntava chamou poderosamente a minha 

atenção. Dava para perceber que ele não concordava com o  sacana, pois era  impossível ele 

fazer tal afirmação. O  jornalista tentou não demonstrar que discordava, mas eu percebi bem 

rápido. Se a  ironia tivesse existência física, seria a cara daquele sujeito ao escutar  isso. Sim... 

É... Claro... falava para o entrevistado enquanto seus olhos delatavam o “Não concordo, esse 

cara  está mentindo”.  Para  o moço  era  obvio  que  o  outro mentia. Olhava  para  ele  e  ficava 

pensando  como podia  fazer aquela afirmação. Ele  teria  sido elefante em outras vidas? Com 

certeza não. E foi assim que troquei de canal. 

A  leitura dessa matéria me fez  lembrar aquela anedota que eu considerava esquecida faz 

tempo. Pois é, Wagner, você acha que sabe mesmo o quanto dói? Não, você não sabe, pois 

somente nós sabemos.  

Vou te explicar: na verdade o substantivo “dor” não é realmente muito exato para definir o 

que a gente sente nesse momento. “Dor” não é suficiente. Dor é o que você sente quando a 

faca bate por engano em alguma parte do seu corpo. Ai!  (seguido, na maioria dos casos, de 

palavras  que  na  TV  costumam  ser  proibidas  até  as  dez  da  noite). Dor  é  o  que  você  sente 

quando apanha uma porrada de outrem (e aí a palavra chula não precisa de “ai” nenhum para 

sair livremente). Dor é o que aparece na barriga ao você beber do leite uma semana depois da 

data que diz na garrafa. Dor é o que você  tem na cabeça quando alguém não pára de  fazer 

alguma coisa que te atrapalha. Mas o parto não é isso não. É, de fato, tudo isso e mais. 

Se  pudesse  ter  uma  foto  que  demonstrasse  a  frialdade  da  sala,  qualquer  um  acharia 

impossível  o  quanto  a  gente  se  cobre  de  suor  naquele momento.  É,  porém,  apenas  uma 

aparência estética, pois todo o mundo sabe que não há  lugar mais caloroso do que uma sala 

                                                            1 SPINA, Ignacio. "Dor no parto? Dor não, parto." em Encontro Literário Cronicando II. Instituto Camões. Centro de 

Línuga Portuguesa, Buenos Aires, 7 de Junho de 2012. 

de partos. Se a gente tivesse um espelho nesse momento, seria ainda pior poder perceber a 

situação  com  três ou quatro pessoas olhando as nossas misérias enquanto nos exibimos ao 

mundo da maneira mais desarrumada possível.  Mas se fosse realmente dor, como você acha, 

nada teria a ver o clima ou com a nossa aparência física. 

Primeiro é dor, sim. Ela desce lentamente dos pulmões à base da barriga como se fosse um 

litro de bromo tentando percorrer um canudinho apenas  inclinado. E assim, o que antes era 

uma  opressão  interna,  acrescenta  um  profundo  sentimento  de  ardor  até  virar,  finalmente, 

uma queimação  insuportável. Só depois de perceber que  será  impossível  fazer mais  força é 

que você ativa os ouvidos para escutar os sons que provêm do exterior. Alguém impossível de 

identificar pretende interagir: 

– Força! 

É lá que a gente não se furta da irritação. Força? Tô fazendo o quê? A expulsão de palavras 

chulas não se faz esperar.  

– Força! 

  E continua do mesmo jeito, mas agora sentindo aquela queimação um pouquinho mais 

abaixo. Pois é, no lugar que você está imaginando.  

– Força, mais uma vez! 

Mais uma vez? Caramba! Se, nesse momento, alguém me informasse que eu morreria nos 

próximos cinco minutos, com certeza eu choraria só por ter que esperar todo aquele tempão. 

 – Força, meu bem, força! Já tá saindo, já! 

  Mas  a  situação,  mesmo  acabando,  só  acrescenta  o  pranto  –  tranqüilizador  por 

natureza – de um bebê. Pranto que a gente ouve com muito amor e gostaria de ouvir pelo 

resto da vida. Só dura, porém, uns cinco minutos, quando os médicos resolvem levar a criança 

para continuar com a rotina.  

  Tá vendo, Wagner? Não é dor. É parto... parto é a palavra. E para provar que dor é 

apenas uma mínima parte do que a gente sente, basta entender o pranto da  recém‐mamãe 

nesse  preciso  momento:  de  dor,  pela  opressão  que  se  transformou  em  queimação;  de 

emoção, por  ter  conhecido aquele anjinho  com quem  conversou durante nove meses; e de 

tristeza, por ter que esperar até os médicos terminarem de prepará‐lo para poder ficar em paz 

com o bebezinho. 

  E aí, Wagner, tá com vontade de escrever mais uma matéria de partos? Com certeza 

deve ter um monte de revistas ansiosas de publicá‐la. Quando estiver pronta, me avise para eu 

marcar hora no médico para poder ler.