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Marcio Honorio de Godoy Dom Sebastião no Brasil: das Oralidades Tradicionais à Mídia Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como requisito para obtenção do título de Doutor em Comunicação e Semiótica, sob orientação da Profa. Dra. Jerusa Pires Ferreira. São Paulo 2007

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Page 1: Dom Sebastião no Brasil: das Oralidades Tradicionais à Mídia Honorio d… · Dom Sebastian – occur. All these procedures are linked to a virtual trip of the mythic king, Desired

Marcio Honorio de Godoy

Dom Sebastião no Brasil: das Oralidades

Tradicionais à Mídia

Tese apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

como requisito para obtenção do título de

Doutor em Comunicação e Semiótica, sob

orientação da Profa. Dra. Jerusa Pires Ferreira.

São Paulo

2007

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Membros da Banca:

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Tese de Doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em

Comunicação e Semiótica da PUC/SP

Dom Sebastião no Brasil: das Oralidades

Tradicionais à Mídia

Orientadora: Profa. Dra. Jerusa Pires Ferrreira

Orientando: Marcio Honorio de Godoy

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RESUMO

Esta pesquisa pretende elaborar uma cartografia do fenômeno cultural chamado

sebastianismo. Desta forma, estaremos verificando que componentes garantem sua

permanência em um dado tempo/espaço, e quais as potências que permitem sua atualização

em diversas épocas e lugares. Busca-se, ainda com isso, investigar aspectos da transmissão

do mito e como se dão os processos comunicacionais e tradutórios envolvendo a figura

encantada do rei Dom Sebastião de Portugal. Todos estes procedimentos estão ligados com

uma viagem virtual do rei mítico, Desejado e Encoberto, que se apresentará na

religiosidade popular, em relatos orais, em movimentos populares rebeldes de cunho

messiânico e em obras artísticas. Além destes espaços por onde trafegou e ainda trafega,

iremos conferir também a presença de Dom Sebastião nas mídias, como no jornal impresso

e em programas televisivos, além de sua importante passagem pelo grande espetáculo

brasileiro chamado Carnaval.

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ABSTRACT

This survey intends to elaborate a cartography on the cultural fenomenum called

sebastianism. On this way, the study verifies which components assure its permanence in a

certain period of time and which strengths allow its update along time and places. It also

has the intention to investigate aspects of the myth’s transmission and how the

communication and translation processes on the delighted figure of the king of Portugal –

Dom Sebastian – occur. All these procedures are linked to a virtual trip of the mythic king,

Desired and Covered king, presented in the popular religiousty, in oral speech, in rebellious

popular movements of messianic character and in artistic works. Besides the places where

he passed and still passes through, the study also shows Dom Sebastian’s presence in the

media, such a mewspapers and television programs and its important passage on the great

brazilian spectacle called Carnival.

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AGRADECIMENTOS

Durante todos estes anos tive apoio de muitas pessoas e me senti amparado por

colaborações que eu nunca imaginei que poderia ter. Fica aqui meu agradecimento a muitos

amigos e amigas, que apenas com uma palavra, um olhar, um gesto, um conselho me

tiraram de momentos estranhos e me revitalizaram, colocando-me de volta nos eixos.

Aos meus pais, irmãos, sobrinha, por terem me recebido novamente em momento

delicado desta tese, agradeço e deixo a promessa de um dia não incomodá-los tanto quanto

venho incomodando.

Por me fazerem redescobrir a magia e felicidade em sentir meu corpo e minha

mente trabalhando juntos, revelando o anima que me fez viver movimentos nunca antes

imaginados por mim, agradeço muito ao Estúdio Nova Dança, aos amigos e professores

com quem convivi e troquei experiências sempre de modo festivo.

Minha gratidão ao CNPq por ter concedido minha bolsa de estudos. Sem esse

incentivo seria impossível levar adiante, com seriedade e dedicação, essa pesquisa que tanto

merecia ser feita e que deve continuar em outras instâncias afetivas.

Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC/SP

por me dar a oportunidade de entrar em contato com professores tão instigantes e

apaixonados por compartilhar suas pesquisas com os estudantes. Entre esses professores

tive contato sempre prazeroso com José Amálio Pinheiro, Cecília Almeida Salles, Lucrécia

D’Alessio Ferrara, Sílvio Ferraz, Leda Tenório. Espero continuar a ter essa proximidade tão

rica.

Não poderia deixar de demonstrar gratidão especial à minha banca de qualificação

formada por Sônia Galvão Gatto e José Amálio Pinheiro. A contribuição deles fez com que

muitas coisas ainda mal exploradas pelo meu trabalho viessem à tona. Espero que eu tenha

sabido aproveitar as colaborações atentas desta banca.

A Gita e Jacó Guinsburg, pessoas maravilhosas que tive grande oportunidade de

conhecer e um dos presentes de Dom Sebastião no caminho de minha jornada. Obrigado a

vocês pelas sempre generosas conversas e opiniões sobre o desenvolvimento dessa

pesquisa.

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Finalmente minha gratidão eterna a Jerusa Pires Ferreira, a quem devo muito desse

trabalho por sua orientação atenta, objetiva, dando-me liberdade de alçar vôos, mas sempre

me chamando de volta quando algum desvio poderia me levar a algum desastre. Durante

esses anos todos recebi toda atenção, carinho e afetos de uma orientadora especialíssima e,

mais que isso, de uma grande amiga de espírito ancestral, que compartilha e entrega suas

experiências nas áreas em que atua e de sua própria vivência no mundo.

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Sumário:

Introdução.......................................................................................................................08

I Parte: Algumas Primeiras Presenças da Figura de Dom Sebastião

no Brasil........................................................................................................................23

1. Rumo a uma História do Futuro..........................................................................24

1.1. Pe. Antonio Vieira e seu Sermão de São Sebastião: Primeiro um Sebastianista........24

1.2. Padre Antonio Vieira e sua História do Futuro: Presença e Papel do Brasil e de sua

Gente no Advento do V Império Cristão Universal....................................................33

1.2.1. De uma Utopia Pessoal.............................................................................................37

1.2.2. Tornar a Utopia Pessoal Consonante à Utopia Coletiva........................................45

2. Rosa Egipcíaca: Uma Santa Popular e seu Matrimônio com o Rei

Encantado e Encoberto: Processos Comunicacionais e Tradutórios em uma

Profecia Mestiça na América.......................................................................................61

2.1. De um Matrimônio para a Sacralização Universal do Mundo: Rosa Egipcíaca e Dom

Sebastião.............................................................................................................................63

II Parte: Presença da Figura de Dom Sebastião em Movimentos

Populares Rebeldes e na Oralidade da Religiosidade Popular...........80

Introdução à Segunda Parte.........................................................................................81

3. Cidade do Paraíso Terreal.......................................................................................93

3.1. Existir num Território de Preparação para a Busca por Jerusalém..............................93

3.1.1. A Santa da Pedra e Dom Sebastião: Delinear Territórios para a Expansão de

Limites em Busca de uma Utopia Misteriosa Maior..........................................................99

3.1.2. A Margem como Existência Excrescente em Relação à Ordem do Poder. Tocaia e

Extermínio........................................................................................................................120

4. Pedra Bonita.............................................................................................................124

4.1. O Segundo Reinado da Pedra Bonita........................................................................128

5. Belo Monte (Canudos)..........................................................................................146

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5.1. Retalhos de uma Profecia Transitam nos Interstícios de Belo Monte/Canudos........146

5.2. Memória Recorrente/ Memória Movente: Olhares Flasheiros da Guerra.................160

5.2.1. Moreira César: Temível Fiel do Anti-Cristo..........................................................162

5.2.2. A Matadeira: Dragão Destruidor inicia o Aniquilamento do Império de Belo

Monte................................................................................................................................166

5.3. Imagens do Profeta e do Santo: Conselheiro Nunca deixou Canudos.......................169

5.4. A Decomposição Compondo uma Memória Apocalíptica: o Fogo, a Água, o Pó....174

6. Dom Sebastião no Grão-Pará e Maranhão........................................................184

6.1. Dom Sebastião na Epopéia da Encantaria Amazônica: Momento Ecumênico para o

Complemento dos Três Anéis da Grande Cobra...............................................................187

6.2. Dom Sebastião em Terras e Mares do Maranhão: na Religiosidade, na Vida, na

Lenda.................................................................................................................................197

6.2.1. Dom Sebastião em Histórias de Vida......................................................................202

6.2.2. Dom Sebastião nas Lendas.....................................................................................211

III Parte: Rei Dom Sebastião Nas Artes e Mídias...................................223

Conclusão.....................................................................................................................225

Bibliografia.....................................................................................................................228

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Introdução

Que especial e curioso trajeto de vida perfaz a história de um rei ao receber, muito

antes do seu nascimento, o sugestivo epíteto de o Desejado e, depois de sua morte, ter

agregado, ao seu nome, um outro qualificativo, de significado não menos instigante, como

o Encoberto. Quantas coisas podem nos tocar, nos fazer viajar nesta vida tão cheia de

singularidades. Dom Sebastião, o Desejado e o Encoberto, não recebeu essas denominações

por alcançar ou construir algum feito extraordinário em vida, mas formou sua

personalidade e agiu, tanto histórica quanto miticamente, através delas, em seu esperado e

festejado nascimento e na configuração fantástica do seu misterioso desaparecimento em

batalha contra os mouros, em Alcácer Quibir, no norte da África.

Os dois epítetos o eternizaram, pois ele já existia antes de nascer, como desejado,

encarnando as expectativas e vontades de uma nação ávida por manter seu papel especial

entre as outras nações do mundo. E ele continua existindo mesmo depois de sua morte, ou

desaparecimento, como o Encoberto, trazendo, ao mesmo tempo, traços humanos e divinos,

além de provocar a possibilidade de se sonhar, de se continuar a desejar.

A trajetória de sua vida continua em processo enquanto há o desejo no homem de se

alçar sobre si mesmo, em busca da proximidade com o encantamento do mundo e com o

sagrado. Assim, Dom Sebastião, o jovem monarca Desejado e Encoberto, permanece

presente, em constante atualização. Enquanto houver a renovação de sonhos e desejos,

enquanto existir no homem a vontade de tornar-se algo além do seu estado atual, algo que o

torne mais potente que sua condição presente, Dom Sebastião retorna eternamente

renovado. Possui, em sua história de vida, e em sua personalidade mítica, a idéia de que o

desejo só é desejo enquanto não for totalmente satisfeito, alçando sempre quem deseja

numa busca, que requer a transformação constante, quando objetos do desejo, ou o objeto

do desejo, ainda permanecem encobertos.

Refletindo muito durante os anos desta pesquisa, iniciada em meu mestrado e

retomada agora, penso que essas características tenham impulsionado minha curiosidade

sobre esse fenômeno da cultura e, mais que isso, alimentado minha vontade em ao menos

aproximar-me das forças envolventes desse rei que, depois de mais de quatrocentos anos,

retorna e se manifesta nos mais diversos espaços e tempos.

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Para dar início a essa “jornada”, acredito ser imprescindível retomar dados

fundamentais trabalhados em meu livro Dom Sebastião no Brasil: fatos da cultura e da

comunicação em tempo/ espaço, editado em 2005, pela editora Perspectiva, resultado do

meu mestrado. Creio que não há como tratar cartograficamente da “viagem” de Dom

Sebastião por épocas e lugares diferentes, sem antes partir do seu trajeto inaugural, em

Portugal, como o Desejado, até seu desaparecimento, quando torna-se também o rei

Encoberto. Alguns detalhes poderão tornar mais claros aspectos da formação do jovem

monarca português antes do seu nascimento, em sua presença histórica e no seu ingresso

em um complexo mítico, que ainda o projeta para uma existência futura, em processo.

Antes do nascimento de Dom Sebastião, além de problemas que diziam respeito à

política externa e interna de Portugal, outra questão mais simples, porém mais devastadora,

afligia a nação portuguesa. Dom João III teve grandes dificuldades para gerar um herdeiro

da coroa. Casado com Dona Catarina, irmã de Carlos V, viu a morte de todos os seus nove

filhos e, conseqüentemente, o quase rompimento do fio hereditário, que determinaria a

independência de Portugal. Porém, dois destes nove filhos conseguiram chegar à idade de

procriação. Foram eles Dona Maria, que se casou com o príncipe Felipe II, sobrinho de

Dona Catarina e mais tarde rei de Castela e Portugal, e o infante Dom João.

Dom João, nascido em 1537, bem cedo revelou uma saúde muito frágil. Deste

modo, o rei ainda tinha grandes preocupações quanto à herança do trono. Resolveu então

casar o infante Dom João, então com 14 anos de idade, com uma prima do jovem: Dona

Joana, filha de Carlos V. Tal matrimônio revelava as desesperadas tentativas para a

manutenção da independência portuguesa.

De fato a estratégia teve êxito, se pensarmos no fruto, advindo do casamento

realizado em 1552, entre o infante Dom João e Dona Joana. Porém, ainda eram bastante

tênues as linhas que poderiam compor a imagem da próxima figura a sentar no trono de

Portugal. Ainda adolescente e de constituição frágil, Dom João foi afastado de sua esposa,

por sentir-se doente, e pouco tempo depois morreu, em decorrência de uma forte crise de

diabetes. Dona Joana, que estava grávida, só foi informada da morte do marido após o

nascimento do tão esperado Dom Sebastião, em 20 de janeiro de 1554, dia do santo que

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daria nome ao tão aguardado filho. Envolvida em luto, Dona Joana deixa Portugal e seu

filho, e retorna a Castela para nunca mais voltar1.

O nascimento de Dom Sebastião parece colocar fim a um período de escuridão e

apreensão em torno do destino do reino português. Este pequeno acontecimento se revela

imenso, por significar um momento no qual, mesmo sendo relâmpago, consegue fazer

coincidir, novamente, os desejos da coroa portuguesa com os do povo.

De um lado, a corte concretiza sua vontade de perpetuação e conservação do poder

institucional, social e territorial através da figura do neto recém nascido de Dom João III.

Novamente se vê garantida a independência portuguesa diante das ameaças externas e

internas. De outro, o nascimento do rei Desejado, esperado pela população exterior ao

castelo, simbolizava um novo fôlego de Portugal como nação independente e importante

na geopolítica da época. Acabava-se a ameaça que pairava sobre o reino de se tornar mero

coadjuvante sob a dependência do reinado de Castela.

O nascimento de Dom Sebastião também acaba despertando novamente o desejo da

retomada de um projeto de conquista de territórios, iniciado pela dinastia de Avis; projeto

este que estava um tanto quanto abandonado pela atual coroa de Dom João III. Enfim,

diversos outros elementos que fizeram as glórias passadas de Portugal, e que se

encontravam em estado de profunda sonolência por causa de um reinado apático, parece

que ganham novo fôlego no dia mesmo da chegada ao mundo do futuro rei.

Tanto é assim, que recriações feitas do dia deste nascimento estiveram presentes,

depois, em várias épocas e em vários autores. O impacto da vinda ao mundo do tão

ansiosamente esperado herdeiro do trono, ganhou grande repercussão no imaginário

português. Um exemplo da força deste acontecimento é encontrado na evocação histórica a

este rei, escrita por Antero de Figueiredo, em 1924, e chamada Dom Sebastião Rei de

Portugal:

Bendito seja São Sebastião, que nos livra da peste, e, em seu dia, nos dá um rei! Riem,

choram, cantam! Deus e Pátria! Que alegria. E essas almas, de leves, como que levantaram o corpo.

(...) Arrepiam caminho, sobem a viela, irrompem de roldão na Sé. Nos vidros das janelas altas

coalha-se a luz alvaiada da primeira hora fresca do dia. No altar-mor acendem-se muitas velas,

1 PIRES, Antonio Machado. Dom Sebastião e o Encoberto: estudo e antologia. Lisboa, Fundação Calouste Gulbekian, 1969, p. 41.

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muitas. Queima-se incenso. Toca o órgão; e, então, aqueles outros cantos de rogo, substituindo-se

por cantos de agradecimento, elevam-se, sonorosos, num Te-Deum laudamus gratíssimo, que

transborda dos corações, se avoluma, e sobe às alturas das abóbadas da velha cátedra, transpassa-se e

ergue-se aos céus. Hossana! Hossana! Nasceu finalmente o Desejado, o Desejado2

Parece claro nesta evocação de Antero de Figueiredo, mesmo separada por tanto

tempo do acontecimento histórico, o quanto o reino se encontrava em suspenso na espera

de um rei que desse continuidade à sua independência e sustentasse o orgulho nacional. O

nascimento de Dom Sebastião estimula a movimentação da nação, e aciona todo um

conjunto de sentidos que pareciam encontrar-se em estado letárgico. Luzes, cores, cheiros

e sons aparecem neste enunciado, ressaltando a passagem de um estado apático a outro,

cheio de vida, despertado por um pequeno grande acontecimento. Eis uma imagem, um

quadro mesmo, do que representou o nascimento do Rei. Todo esse movimento coletivo

tomou conta do ambiente, com a chegada do Desejado. Nome próprio e epíteto se

encontravam, finalmente. Dom Sebastião era o Desejado; e se tornaria a expressão do

desejo de todo o reino.

Agora era preciso que o futuro rei fosse educado de maneira a ganhar ousadia e

força para continuar as glórias de Portugal. Tanto na educação que adiquiria de padres

jesuítas quanto no exercício das armas, Dom Sebastião recebia mensagens formadoras de

sua personalidade. Os ensinamentos direcionavam a atenção do futuro jovem monarca para

que ele se tornasse um rei pronto a lutar contra os mouros para expandir a religião cristã

pelo mundo. Era preciso conquistar novas terras e assegurar as já conquistadas, pois o

antigo reinado teria se descuidado destas premissas. O padre Amador Rebelo, cronista de

Dom Sebastião, deixou muitos registros sobre a educação despendida ao futuro jovem rei

que nos dá a idéia da mentalidade que ia envolvendo as reflexões do infante.

Sendo El-rei menino, não sómente o exortavam com palvras e exemplos de grandes Reis e

de grandes vitórias que houvéram, mas em matéria de escrever e nos livros por onde lhe dávam

lição, o persuadiram a tais emprêsas e exercício militar. [...]

O menino, de sua real condição, éra esforçado e de coração altívo, de tal maneira bebía

estas doutrinas que lógo começou a dar móstras de ânimo invencível: mas como a conquista dêste

Reino seja África, visínha e inimiga, a principal guerra que os Mestres de El-rei mostrávam era ésta,

2 Idem, ibidem.

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contra o qual já o môço, com capital ódio, desejava mostrar seu esforçado caráter, e assim, não

falava em outra cousa senão na Arte Militar3.

A idéia de reconquistar territórios na África nos parece central para os mestres de

exercícios militares de Dom Sebastião. O fato de que a todo o momento o jovem rei tem

gosto em falar de “Arte Militar”, como aponta o cronista, já nos indica traços de que ele

trabalhava para se tornar um monarca guerreiro e conquistador, traços tão almejados por

seus contemporâneos em Portugal.

Outros textos irão atravessar a formação do jovem monarca. Para ilustrar o grupo

de discursos com os quais teve contato el-rei menino, nada melhor que trazer a dedicatória

da maior obra de Camões, Os Lusíadas. A obra é impressa em 1572, quando Dom

Sebastião já estava com dezoito anos de idade.

É assim que Camões, em uma única estrofe, a que inicia a dedicatória do poema a

Dom Sebastião, magistralmente descreve, em oito versos, o desejo da nação incorporado

na figura do monarca Desejado:

E vós, ó bem nascida segurança

Da lusitana antiga liberdade,

E não menos certíssima esperança

De aumento da pequena Cristandade;

Vós, ó novo temor da maura lança,

Maravilha fatal da nossa idade,

(Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,

Pera do mundo a Deus dar parte grande);413

A dedicatória, em primeiro lugar, chama Dom Sebastião para assegurar a

independência de Portugal. Estão em causa as prioridades a serem levadas em

consideração pelo jovem rei, e elas rememoram à “antiga liberdade”, relacionada aos quase

quinhentos anos da formação de Portugal.

3 Crónica de El-re Dom Sebastião, único dêste nóme e dos Reis de Portugal o 16o , composta pelo padre Amador Rebelo, companheiro do Padre Luís Gonçalves da Câmara, Mestre do dito Rei Dom Sebastião. Edição de António Ferreira de Serpa. Porto, Civilizações, 1925. p. 13. 4 CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas: edição comentada. Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército, 1980. Canto I, 6.

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Ainda como preocupação e reverência sobre a liberdade e glória da nação

portuguesa, em sua dedicatória Camões deposita esperanças no homenageado no que se

refere à expansão não apenas das terras, mas também da cristandade. O autor d’Os

Lusíadas qualifica o sujeito ao qual se destina, como competente nova figura que trilhará o

obstinado caminho de impor o cristianismo aos mouros “infiéis”, pois ele é, sem dúvida

alguma, o “...novo temor da maura lança”.

Avançando e transbordando as pretensões portuguesas, Dom Sebastião é chamado

de “Maravilha fatal...”, o que lhe confere um caráter de predestinado, por ser uma

maravilha que fatalmente já estava prevista para ser “Dada ao mundo por Deus”. E é

exatamente neste mundo no qual foi depositado o predestinado, que deve este predestinado

trabalhar para conquistá-lo inteiramente, para “...que todo o mande”. No entanto, deve-se

observar que a conquista deste mundo não está ligada a questões seculares, mas sim à

continuidade do projeto português, iniciado desde sua fundação como nação, de encabeçar

o alargamento da religião de Cristo por todo o mundo, criando o Quinto Império Universal

Cristão. Por isso é necessário mandar em todo o mundo, mas visando entregá-lo a Deus:

“Pera (Para) do mundo a Deus dar parte grande”.

Camões dá expressão aos desejos lusitanos depositados em Dom Sebastião. Procura

inculcar no espírito do jovem rei uma “realidade” que deve lhe caber como um grande

papel, o de novo conquistador. Além disso, busca consagrá-lo como futuro mediador do

poder divino, para que a obra de Cristo na Terra seja iniciada.

Ao apontar tão altos desígnios ao jovem rei, Camões alimenta a sede de aventura

deste monarca, que não era então mais do que um adolescente. Portanto, Dom Sebastião

causava a impressão de ser uma personalidade que ainda estava se formando, e que não

estava completamente direcionada aos desejos da nação. Não obstante apresentasse os

traços de um sujeito imbuído de uma esperança patriótica, atribuída por autores importantes

de sua época, alguns discursos buscavam dar a Dom Sebastião as “medidas do traje” que

lhe fariam vestir melhor as expectativas em torno da sua figura.

E não demorou para que el-rei, já não tão menino, vestisse esse traje. Preocupado

com os avanços territoriais promovidos pelo líder islâmico Muley Malik no norte da

África, Dom Sebastião já preparava, desde 1573, uma organização militar dentro do

território português, e fora dele, graças a alianças com exércitos de outros países. Portugal

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pretendia então dar continuidade a uma política de conquistas territoriais praticamente

abolida por Dom João III, projeto que visava a volta de Portugal como poderio mundial,

econômico e político. Ao mesmo tempo, o avanço mulçumano sobre o norte da África

reavivava um antigo receio escatológico cristão. Ao lado de epidemias, fomes e inundações

que seriam responsáveis pela chegada do fim do mundo, as constantes ameaças de um

crescimento territorial por parte do islamismo também reforçavam a crença em que estava

próximo o final dos tempos5.

O cruzamento dessas séries culturais, políticas e religiosas nos dá uma pista do que

significou a batalha de Alcácer Quibuir para a concretude de alguns elementos míticos

dentro de um processo histórico. Dom Sebastião resume muito bem o sentido de sua

investida ao norte da África através de um pequeno, mas valioso enunciado escrito por ele.

Assim ele se compromete perante todo o seu reino em um dos raros documentos que

trazem seus posicionamentos descritos de próprio punho : “Trabalharey por dilatar a fé de

Christo, para que se convertão todos os infiéis...”. E, demonstrando suas inclinações

guerreiras de conquistador, ele continua: “...para conquistar, e povoar a Índia, Brasil,

Angola e Mina”6.

A jornada para Alcácer Quibir estava prevista para 1577. No entanto, a

expedição teve que ser adiada, em virtude de dificuldades financeiras e militares. Uma

das saídas deste percalço foi transformar em Cruzada os esforços de se lançar contra os

mouros em Marrocos. Entre outras coisas, essa medida tinha um caráter estratégico para

dar continuidade à expedição: os problemas econômicos para se levantar uma armada

seriam amenizados, e também seria possibilitado o envolvimento de outros reinos

interessados na manutenção da cristandade e contra a “ameaça” islâmica.

Dom Sebastião, alguns meses antes da batalha, tomou a iniciativa de procurar o

papa Gregório XIII, e solicitou-lhe uma bula de Cruzada. Prova de que não havia inocência

na atitude de Dom Sebastião é a concessão desta bula pelo papa e, principalmente, de todos

os benefícios que a acompanharam. Com este gesto da Igreja, é entregue, ao exército de

Dom Sebastião, uma quantia de 180 mil cruzados, como parte das rendas eclesiástica, além

5 DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente. São Paulo, Companhia das Letras, 1989. 6 PIRES, António Machado, op. cit., p. 45. Estes pensamentos vêm citados na obra de Queiroz Velloso, Dom Sebastião (1554-1578), 3a edição, Lisboa, 1945, p. 116.

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de outro valor considerável, demonstrando o entusiasmo da Igreja com a empreitada de

Portugal. Outra facilidade encontrada por Dom Sebastião foi a composição da armada,

quando são contratados, a partir do momento em que a expedição ganhou caráter de

Cruzada, homens franceses, alemães e italianos. Tendo apoio popular, uma Corte

articulada em torno do projeto de avançar no norte da África, e recebendo o aval da Igreja

e de reinos cristãos, decerto não se julgava que Dom Sebastião estivesse possuído por uma

mente desvairada.

Em 24 de junho de 1578, parte a armada de Portugal, rumo a Tanger. Segundo a

carta de um autor anônimo, 847 velas levavam vinte e quatro mil homens aos campos

africanos. Um conselho formou-se em Arzila para discutir a melhor estratégia de se atacar

os mouros em Marrocos. Organiza-se então uma investida em campo aberto, por se

entender que tal estratagema é mais eficaz.

Na manhã de 4 de agosto de 1578, finalmente é travada uma batalha em campo

aberto nas campinas de Alcácer Quibir. Vozes esparsas agrupadas pelo historiador António

Machado Pires nos dão uma idéia de como se deu o episódio:

El-rei colocou-se na vanguarda, à frente de uma cavalaria na ala esquerda, sendo a ala

direita comandada pelo Duque de Aveiro; Dom Sebastião procurou manter a organização da batalha,

e ao primeiro rompimento de fogo do inimigo a cavalaria portuguesa acometeu, abrindo largas

brechas na hoste moura. Houve um momento vitorioso em Alcácer. Mas uns momentos de indecisão

e a voz de “ter, ter!” do sargento-mor Pero Lopes, bastaram para a superioridade numérica do

adversário prevalecer sobre a bravura dos portugueses, que foram dispersados. (...) Do rei pouco se

soube. A História fixou que ele combateu denodadamente e se embrenhou pela hoste inimiga até

mais não ser visto. O resto do seu destino perdeu-se na incerteza e na lenda. Na memória nacional

ficou o seu grito, “morrer, mas morrer devagar!” e uma grande página de dor e de luto na História7.

A notícia da derrota chegou semanas depois, com relatos de várias naturezas.

Imediatamente a nação rangeu os dentes por causa do desespero e da dor causados pela

possibilidade da perda dos entes familiares. Em simultâneo a este impacto, sente-se o golpe

nas esperanças da volta de um caminho glorioso destinado a Portugal. A coroa fica

7 PIRES, António Machado, op. cit., p. 56

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16

novamente ameaçada pelo reino vizinho, Castela. O caos se instalou na corte e nas ruas do

reino.

Mas um espectro começava a rondar todos os cantos da nação. Junto às notícias

sobre a derrota do exército português, circulava a informação de que o rei Dom Sebastião

havia desaparecido. De quando em quando testemunhas afirmavam que o corpo do

Desejado nunca fora computado entre os mortos e prisioneiros feitos na batalha. Um fio de

esperança começava a correr por todo o reino, tecendo o espectro de um rei desaparecido,

um soberano que não permitiria o abatimento completo dos ânimos da nação que pressentia

a inevitável anexação ao reino de Castela.

De 1578 a 1580, o cardeal Dom Henrique, tio-avô de Dom Sebastião, sustentou a

coroa em suas mãos, retardando o fim da independência de Portugal. Porém, após sua

morte em 1580, diversas batalhas no campo político e jurídico das Cortes acabam sendo

vencidas pela Corte de Castela, e Felipe II, rei de Castela, finalmente assume também o

trono português.

Nesse ínterim, a crença de que Dom Sebastião estava vivo toma grande vulto, não

só por ser ele um monarca herdeiro da coroa portuguesa, mas por tudo o que já

representava para a história de Portugal.

Enquanto estavam sob o julgo de Castela, os portugueses aguardavam a volta de

Dom Sebastião. Nesse momento alguns casos de embuste foram se alastrando com o

decorrer dos anos. Pelo menos temos notícias de quatro tentivas de se forjar a identidade

do rei desaparecido. Ao longo do tempo, com maior ou menos apoio da população, quatro

personagens se fizeram passar por Dom Sebastião, procurando conseguir o

restabelecimento da independência portuguesa. Houve casos de até mesmo ter sido criada

uma Corte paralela à de Castela, e o rei impostor conseguiu, nesse governo paralelo, apoio

da população, fazendo circular documentos falsificados da Corte, além de distribuir títulos

honoríficos aos que o apoiavam. Porém, um a um dos falsos reis foram desbaratados por

Castela8.

Apesar de ter sua imagem envolvida em casos embebidos em ações fraudulentas,

Dom Sebastião ganhava maior potência no imaginário português: cada vez mais era tido

como um rei desaparecido capaz retornar para trazer a salvação de Portugal. A idéia de que

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o monarca teria que peregrinar para se refazer de possíveis erros provindos de sua

demasiada existência secular, ganhava corpo na configuração de um soberano que voltaria

purificado, santificado e, assim, apto a restabelecer a salvação nacional e, depois, do

mundo. Iniciavam-se os primeiros passos no caminho para a construção do caráter de Dom

Sebastião como herói messiânico, cuja história pessoal não descartava sua qualidade de rei

Desejado. Segundo Maria Isaura Pereira de Queiroz, o messias segue sempre os mesmos

passos:

a) eleição divina;

b) provação;

c) retiro;

d) volta gloriosa9.

Ela afirma ainda, baseada em estudos de Max Weber e Paul Alphandéry, que “o

messias (de tradição judaico-cristã) é alguém enviado por uma divindade para trazer a

vitória do Bem sobre o Mal, ou para corrigir a imperfeição do mundo, permitindo o

advento do Paraíso Terrestre, tratando-se, pois, de um líder religioso e social”10. Seu status

não é adquirido apenas por sua posição privilegiada diante de uma ordem estabelecida;

leva-se em conta também suas qualidades pessoais extraordinárias, as quais lhe dão uma

configuração de líder carismático11.

Dom Sebastião passa por todo o processo que define um líder carismático

conjuminado com traços messiânicos. E esta configuração de sua personalidade irá se

tornar mais contundente quando o rei desaparecido estará presente em outro discurso,

paralelo ao que se quer oficial. Aos poucos o rei Desejado irá ser confundido com uma

8 Aprofundo-me mais na questão dos falsos reis em meu livro Dom Sebastião no Brasil: Fatos da Cultura e da Comunicação em Tempo/Espaço. São Paulo, Perspectiva, 2005, p. 70 -79. 9 QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O Messianismo no Brasil e no Mundo. São Paulo, Editora Alfa-Omega, 1977-2003, 3a edição, p. 30. 10 Idem, p. 27. 11 O carisma é entendido por Max Weber, citado por Maria Isaura, como “a qualidade extraordinária que possui um indivíduo (condicionada de forma mágica em sua origem, quer se trate de profetas, de feiticeiros, de árbitros, de chefes de bandos ou de caudilhos militares); em virtude desta qualidade, o indivíduo é considerado ora como possuidor de forças sobrenaturais ou sobre-humanas – ou pelo menos especificamente extraquotidianas, que não estão ao alcance de nenhum outro indivíduo – ora como enviado de Deus, ora como indivíduo exemplar e, em conseqüência, como chefe caudilho, guia ou líder”. Idem, p. 27.

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figura de textos proféticos, passando a ser um dos fenômenos culturais mais marcantes da

história de Portugal.

Em 1603, Dom João de Castro, um nobre português que lutou pela soberania do seu

reino depois do desaparecimento de Dom Sebastião, inclusive ajudando na falsificação de

um dos reis que se queriam passar pelo rei desaparecido, imprime e comenta, pela primeira

vez, as Trovas de um sapateiro de Trancoso chamado Bandarra. As Trovas haviam sido

escritas entre 1530 e 1540, em Trancoso. João de Castro publica estas trovas de forte teor

profético messiânico com o nome de Paraphrase et Concordancia de Alguas Propheçias

de Bandarra Çapateiro de Trancoso. Certamente, ele não nos entrega o texto original de

Bandarra, que conheceu outras várias edições e versões ao longo dos séculos12.

Vendo fracassar as tentativa de retomar a coroa portuguesa por caminhos oficiais,

percebeu que, em meio a tantas empresas frustradas, sobrevivia a crença na volta do rei

Dom Sebastião. Foi encontrar, no discurso profético do Bandarra, a leitura que preenchia

expectativas e crenças suas e do povo. A partir de sua interpretação, surge, enfim, um

sebastianismo que ressalta contornos milenaristas, utópicos e escatológicos. Dom João de

Castro reforçou um elemento messiânico que já havia sido associado à figura do rei

Desejado, interpretando uma passagem da Trova profética como momento de sua volta

triunfante e redentora.

Dom Sebastião receberá, na leitura de Dom João de Castro sobre as Trovas do

Bandarra, a potência messiânica de um soberano esperado havia muito tempo, e que

navegava em diversas lendas e profecias, em obscuros relatos, nos quais não podemos ver o

seu rosto, mas sabemos de sua existência como o misterioso Rei Encoberto. Este rei

anônimo, conhecido apenas pela alcunha de Encoberto, teve grande divulgação na Espanha

por meio de escritos de Santo Isidoro de Sevilha. Presença anônima em vários textos da

tradição cristã ocidental, o rei Encoberto apareceria sempre envolvido em um papel

importante diante das concepções escatológicas promovidas pela tradição judaico-cristã. O

rei Encoberto seria o Imperador dos Últimos Dias, que viria para preparar o mundo para a

luta final contra o Anti Cristo, para que se desse o Juízo Final, como apontava o

Apocalipse de João no Novo Testamento das Escrituras Sagradas.

12 PIRES, António Machado, op. cit., pp. 68-69.

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Na estrofe LXXV de suas Trovas proféticas, Bandarra introduz o rei Encoberto

como salvador das agruras pelas quais passa Portugal em sua época, antes do nascimento de

Dom Sebastião, sob o reinado de Dom João III. Assim ele diz nas Trovas:

Já o Leão é experto

Mui alerto

Já acordou anda a caminho

Tirará cedo do ninho

O porco e é mui certo.

Fugirá para o deserto

Do Leão, e seu bramido,

Demonstra que vai ferido

Desse bom Rei Encoberto13

Dom João de Castro lê, nessa alusão ao Rei Encoberto, a volta messiânica de Dom

Sebastião no tempo do milênio14 que, para ele, é o tempo em que Portugal deve retomar

seu destino como cabeça do V Império Universal Cristão a se estabelecer em todo o

mundo. Não resta dúvida, então, que a figura messiânica do Rei Encoberto tem papel

fundamental neste processo histórico, desenhado pelo texto profético de Bandarra, que

prevê o fim da história – feita pelos homens – em função da conjunção final e definitiva do

homem com Deus. Ao interpretar que Dom Sebastião era o Rei Encoberto, acreditamos

que Dom João de Castro contribui infinitamente para a criação de uma potência de

permanência e atualização da figura do rei Desejado e agora também Encoberto. A partir

13 BANDARRA, Gonçalo Annes. “Profecias” do Bandarra. Antonio Carlos Carvalho (dir.). s/l, Vega, 1996, 5a edição, p. 57. (Coleção Janus) 14 Jean Delumeau nos indica uma ligação entre febres milenaristas e grupos sociais em crise. Diz ele que “os atores dos movimentos escatológicos são freqüentemente marginalizados, desenraizados ou colonizados que aspiram a um mundo de igualdade e de comunidade”. No cristianismo, ele chama de milenarismo “a crença num reino terrestre vindouro de Cristo e de seus eleitos – reino este que deve durar mil anos, entendidos seja literalmente, seja simbolicamente. O advento do milênio foi concebido como devendo situar-se entre um primeira ressureição – a dos eleitos já mortos – e uma segunda, a de todos os outros homens na hora de seu julgamento. O milênio deve, portanto, intercalar-se entre o tempo da história e a descida da ‘Jerusalém celeste’. Dois períodos de provações irão enquadrá-lo. O primeiro verá o reino do Anticristo e as tribulações dos fiéis de Jesus que, com este, triunfarão das forças do mal e estabelecerão o reino de paz e felicidade. O segundo, mais breve, verá uma nova liberação das forças demoníacas, que serão vencidas num último combate”. Diversamente do que se afirma, o milenarismo não é a expectativa do ano 1000 ou 2000, mas a de mil anos de felicidade na Terra antes do Juízo Final, onde o homem viverá em perfeita harmonia, livre da dor e do mal, além de prescindir das leis do Estado e da própria Igreja. DELUMEAU, Jean. Mil anos de Felicidade: uma história do Paraíso. São Paulo, Companhia das Letras, 1997.

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desse momento, a crença em Dom Sebastião será sempre lançada a desejos individuais e

coletivos direcionados a um futuro de perfeição da humanidade. Dom Sebastião, o

Desejado e Encoberto, ganha o estatuto de fenômeno cultural, religioso e social, e começa

a viajar pelo tempo/espaço.

No Brasil o jovem monarca desaparecido se faz presente logo no primeiro período

da colonização.

[...] é lícito supor que desde os primeiros tempos tivessem aqui chegado indivíduos que

conhecessem as Trovas de Bandarra, tanto mais que boa quantidade de cristãos novos, – talvez a

camada da população portuguesa mais atingida pela crença, – era enviada para a colônia. Da

existência de um pelo menos temos prova concreta, pois foi denunciado, em 1591, ao Santo Ofício,

na Bahia. Tratava-se de um Gregório Nunes, “meo framengo filho de framengo e de cristã nova”, o

qual, sabedor das Trovas, “as dezia pelo Mexias, esperando inda por ele...”15.

Algum tempo depois, algumas visionárias condenadas pela Santa Inquisição são

degredadas para território brasileiro e, tendo mais liberdade para divulgar suas visões em

uma terra ainda sob fraca vigilância da igreja e do estado, puderam espalhar suas

experiências místicas com Dom Sebastião. Em 1647 Luzia de Jesus recebe sua sentença e

em 1660 é a vez de Joana da Cruz ser condenada ao degredo. Ambas recebiam visitas, em

sonho ou em vigília, do jovem rei, disfarçado de animal ou em forma humana16.

Embora essas manifestações se dessem já em território brasileiro, ainda carregavam

forte carga nacionalista e patriótica. Afinal, Dom Sebastião era o salvador e redentor do

povo português, num primeiro momento.

De qualquer forma o rei português desaparecido já dava grandes saltos nos

caminhos de sua existência mítica. O “eterno” retorno de Dom Sebastião, como

personagem messiânica e encantada, configura-se, desta forma, como uma matriz virtual,

“quando a repetição contínua de algumas situações faz com que elas ganhem o estatuto de

matriz oral, que também garante o sentido das novas criações geradas a partir delas”17.

15 QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de, op. cit., pp. 217-218. 16 Maiores informações sobre estes dois casos conferir o livro de Laura de Mello e Souza, Inferno Atlântico – Demonologia e Colonização (Séculos XVI e XVIII). São Paulo, Companhia das Letras, 1993. 17 Sobre a idéia de matriz virtual definida e detalhada no trabalho de Jerusa Pires Ferreira ver, com toda a complexidade que envolve esse termo, o trabalho da autora, Cavalaria em Cordel: o Passo das Águas Mortas. São Paulo, Hucitec, 1993. Em outros momentos desta pesquisa, será citada essa obra que contribuiu para a

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Dom Sebastião, como texto da cultura e matriz virtual, passa a fazer parte de uma

rede de transmissão e recepção que permite sua viagem pelo tempo/espaço. O que garante

sua permanência é a conservação de algumas situações que formam seu contexto de

origem como Desejado e Encoberto. A conservação, por sua vez, está envolvida com o

trabalho da memória, mas “a memória implica, na ‘reiteração’, incessantes variações re-

criadoras”, que Paul Zumthor chamará de “movência”18. Essa movência claramente tem

que ver com movimento, transformação, ou seja, com o que é re-criado e retorna como o

mesmo, mas diferentemente, já que é reiterado em outra performance, partindo de um

outro transmissor que já foi receptor da narrativa por ele transformada e recontada. As

modificações do texto a ser transmitido irão se dar no acréscimo do repetório do

enunciador, em seu interesse específico de transmitir sua narrativa, no pacto que estabelece

com seus destinatários (receptores), buscando compartilhar o mesmo repertório, tentando

causar interesse para que se efetive a comunicação.

Pensando a figura de Dom Sebastião retornando em vários discursos através desta

movência como matriz virtual, busco, neste trabalho, perceber a transmissão e

trasnformação deste texto da cultuta em processos comunicaticavos e tradutórios. Desta

forma, levarei em conta regimes de signos e símbolos sendo trabalhados, para que se dê a

construção e a transmissão das mensagens envolvidas na idéia do retorno de Dom

Sebastião como personagem redentora da humanidade, ou propositora do reencantamento

da vida de determinados grupos de pessoas e de indivíduos isolados em suas experiências.

Nessa cartografia proposta sobre este fenômeno da cultura, não podemos deixar de

lado as espacialidades e as temporalidades nas quais irá se manifestar o rei Desejado e

Encoberto, pois muito nos dirão sobre os usos e hábitos que levaram determinado grupo,

ou uma pessoa específica, a manipular as potências messiânicas que permanecem nesse

grande texto virtual. Desta forma, palmilhamos caminhos e espaços por onde se manifestou

e ainda se manifesta a figura de Dom Sebastião. Mapeando o fenômeno procurei perceber

como ele se abre, como é conectável em todas as suas dimensões, sendo suscetível de

receber modificações constantemente.

abordagem do fenômeno cultural sebastianista trabalhado pela oralidade, tanto em sua transmissão quanto na criação dos discursos em que aparece o rei Desejado e Encoberto. 18 ZUMTHOR, Paul. Performance, Recepção, Leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo, EDUC, 2000, pp. 76-77

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Dos sermões e da grande obra História do Futuro, do padre Antonio Vieira, à santa

popular Rosa Egipcíaca, com sua profecias apocalípticas, de movimentos populares

rebeldes e religiosos do sertão nordestino às narrativas de lendas e às manifestações da

religiosidade afro-brasileira no Maranhão e na região amazônica, estará em jogo um

esforço por perceber como se dão as transformações de Dom Sebastião em sua viagem

virtual. Nesse mesmo sentido, buscamos também mostrar, através da produção de um

DVD, ressonâncias atualizáveis deste fenômeno da cultura nas artes e em linguagens e

códigos midiáticos, como em jornais impressos, programas televisivos ou grandes

espetáculos transmitidos pela televisão, como o carnaval carioca.

Diante deste panorama, passemos agora aos diálogos propostos pelos textos

referidos até o momento, quando Dom Sebastião e seu “eterno” retorno atualizável se dá na

novidade dos seus encontros.

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I Parte: Algumas Primeiras Presenças da Figura de Dom Sebastião no Brasil

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1. Rumo a uma História do Futuro

1.1. Pe. Antonio Vieira e seu Sermão de São Sebastião: Primeiro um

Sebastianista

Vários foram os autores19 que apontaram, no Sermão de São Sebastião proferido

pelo Pe. Antonio Vieira, fortes alusões ao rei Dom Sebastião. Vieira tinha 26 anos, em

1634, quando pronunciou este sermão, numa igreja em Acupe, na Bahia, no dia do Santo

homenageado. Apesar de jovem ainda, já poderemos notar algumas das idéias que iriam

acompanhar o jesuíta por toda a sua vida. Posteriormente elas fariam parte da maioria das

suas elaborações, tanto as usadas para sua famosa eloqüência no púlpito, quanto aquelas

não menos vivazes, quando desempenha, na escritura, suas imagens, conceitos e

pensamentos feitos para saltarem da página e habitar a reflexão de seus destinatários, para

causar movimento às direções apontadas por ele.

Chamo a atenção para este aspecto no sentido de podermos acompanhar o processo

de construção de seus discursos, tendo em vista que a forma não se descola do conteúdo,

mas reforça e colabora na expressão, ou seja, tendo cada artifício discursivo, cada palavra

empenhada, lugar pertinente e estratégico. É nesse sentido que tentarei perceber como se dá

o desenvolvimento discursivo do jesuíta, dentro dos limites propostos, já que estamos

preocupados em perceber o papel da figura de Dom Sebastião no discurso de Vieira.

Também teremos necessariamente de levar em conta sua visão sobre as concepções de V

Império Universal Cristão e a figura do Encoberto, temas que irão se entrelaçar na

progressão dos seus pensamentos.

O sermão-panegírico oferecido a São Sebastião apresenta, primeiramente, quatro

dotes gloriosos dos bem aventurados na terra recolhidos do Novo Evangelho, como que

para designar as qualidades dos bem aventurados; qualidades estas que estariam presentes

no exemplo de vida da personagem enaltecida:

19 Além de constar esta referência no volume da coleção de sermões de onde tiramos este, também autores como Hernâni Cidade fazem este apontamento. Assim procede em sua obra Pe. António Vieira: a obra e o homem, Lisboa, editora Arcádia, 2a ed., 1979. Só para citar mais uma contribuição, constatamos a mesma verificação em Jacqueline Hermann, No Reino do Desejado: a construção do sebastianismo em Portugal, séculos XVI e XVII, São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

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Os corpos dos bemaventurados do céu têm quatro dotes gloriosos; os espíritos dos

bemaventurados da terra têm outros quatro dotes, que, ainda que o mundo lhes não chame de glória,

não são menos para gloriar. A pobreza, que nos alivia do peso e embaraço das coisas da terra,

responde ao dote da agilidade: Beati pauperes. As lágrimas, que entre as sombras da tristeza são os

claros do allivio e consolação, respondem ao dote da claridade: Beati qui lugenti. A fome e a sede

que attenua e adelgaça a quantidade grosseira do corpo responde ao dote da subtileza: Beati qui nunc

esuritis. A paciência generosa, com que os ódios e perseguições se fazem menos sensíveis, responde

ao dote da impassibilidade: Beati estis cum vos oderint homines. Tão parecidos são como isto os

espíritos bemaventurados da terra com os corpos bemaventurados do céu!

Mas entre esta similhança tão grande perguntará com razão alguém: em que se differença

esta bemaventurança d’aquella bemaventurança; em que se distinguem estes bemaventurados

d’aquelles bemaventurados? É tão grande a distância e a differença, que vai e chega do céu à terra. A

bemaventurança do céo é bemaventurança descoberta e visível; a bemaventurança da terra é

bemaventurança invisível e encoberta20.

Veja que Vieira já constrói, no primeiro período deste parágrafo, uma proporção21

de igualdade em seu discurso engenhoso22, para ressaltar uma analogia e reforçar a união

dos termos colocados na frase. Diz ele: “Os corpos dos bem-aventurados do céu têm quatro

dotes gloriosos; os espíritos dos bem-aventurados na terra têm outros quatro dotes”. Tudo o

que possui os corpos dos bem-aventurados do céu como dotes gloriosos, também

comparece no espírito dos bem-aventurados na terra. E prossegue, nomeando os dotes

gloriosos comuns aos bem-aventurados da terra e do céu.

O reforço almejado pela igualdade dos termos, na proporcionalidade do período,

destaca a presença do divino, das coisas do céu, de Deus, manifestando-se na terra. O

20 Pe. A. Vieira. “Sermão de São Sebastião”, em Sermões do Pe Antonio Vieira, v. VI, Porto, Lello & Irmãos, 1947, pp. 339, 340. 21 A “proporção” é, no “discurso engenhoso” de Vieira, um artifício muito utilizado pelo padre. “A cada momento, uma frase chama a outra, acomodando-se a ela uma espécie de equilíbrio próprio. Cada enunciado parece ter necessidade de um contraditor, cada palavra de uma contrapalavra, de tal maneira que o discurso se apresenta a nós como uma sucessão de unidades proporcionais”. SARAIVA, Antonio José. O Discurso Engenhoso: estudos sobre Vieira e outros autores barrocos. São Paulo, Perspectiva, 1980, p. 54. 22 Como vimos na nota acima, discurso engenhoso dá nome ao título do livro de Antonio Saraiva. Ele escolhe estes termos para designar um tipo de retórica da fala sermonária de Vieira. Irá especular mais sobre a construção das estruturas da produção de Antonio Vieira, embora sem deixar de lado os resultados persuasivos surpreendentes e felizes das manobras discursivas. O termo “engenhoso” refere-se especialmente à construção das estruturas dos textos de Vieira e o efeito da forma e do conteúdo engendrando-se um ao outro, dando sentido um ao outro, sem a primazia de um sobre o outro. “Engenhoso”, como me chamou a atenção a leitura atenta de minha orientadora Jerusa Pires Ferreira, vem acompanhando o maneirismo português e depois é a chave do Tratado de Ingenio y agudeza, de Baltazar Gracián, que marcou as literaturas ibéricas.

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Criador vive na terra em toda a Sua criação, pois Dele tudo emana. Mas está presente, em

toda Sua plenitude, com todos os Seus dotes presentes no céu, no bem-aventurado da terra,

onde já encontra Sua vontade unida23 com a do homem. Deste modo, Vieira diz que o

Divino já apresenta-Se no espírito de pessoas especiais e exemplares para a busca a ser

empreendida pela Sua Igreja.

Logo em seguida, o padre Antonio Vieira avança, em sua maneira de apresentar

pouco a pouco suas intenções, com outra proporção, desta vez para reforçar a diferença

entre as bem-aventuranças. As do céu são descobertas e visíveis e as da terra encobertas e

invisíveis. O céu e todo seu conjunto, e todas as suas partes, Deus onisciente, onipotente e,

acima de tudo, onipresente, não tem como ser contestado nem corrompido na fé da Igreja,

mas o espírito bem-aventurado na terra, figura fiel de Cristo e, por conseqüência, de Deus,

habita entre os homens, mas na situação de encoberto, desde quando as vontades de Deus e

do homem foram desunidas pela primeira vez, quando Adão e Eva provaram do fruto

proibido. A partir do episódio primordial do desacordo entre as vontades divina e humana,

a luta “verdadeira” do homem, reconhecida pelo padre Vieira, é pela busca da união da

vontade do homem com a de Deus, é a demanda em ser no Ser, única maneira de ser

“realmente”, e isto dando-se num trabalho de “escavação” do sentido “verdadeiro” dos

sinais emanados da substância de Deus ocultada na terra.

Nas questões dos sacramentos, principalmente o eucarístico, tantas vezes abordadas

por Vieira, Alcir Pécora, em seu livro Teatro do Sacramento24, percebe, com filigrana, a

importância do objeto encoberto para a obra do padre jesuíta. Ali está contida a potência de

exortar à ação o seu destinatário para a demanda da concordância de todos os homens em

direção à composição de um corpo místico. Querer, desejar, ser no Ser, requer descobri-lo

23 Buscar unir-se à vontade de Deus é traço característico da espiritualidade inaciana e dá tons próprios à postura dos jesuítas em seu apostolado. “O homem não se une a Deus pela oração, ou pela ação, mas pela união das vontades; e isso pressupõe um estado de liberdade interior que permite ‘procurar e encontrar a vontade divina na disposição de sua vida’ (Exercício Espiritual 1 de Inácio de Loyola, em Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola). Essa indiferença, orientada pelo desejo de conformidade a Cristo, permite o discernimento dos movimentos interiores (moções espirituais) que surgem diante das alternativas. Nesse sentido, a vida espiritual se decide nesse ponto em que a oração e a ação não são mais duas atividades separadas, mas se unificam num só ato de liberdade que quer o que Deus quer”. Verbete “Espiritualidade Inaciana”, no Dicionário Crítico de Teologia, de Jean-Yves Lacoste, São Paulo, edições Loyola e Paulinas, 2004. Esse tema é freqüentemente tratado por Vieira, que lembra sempre a grande vocação jesuítica para a militância. O ser jesuítico é, acima de tudo, um ser militante dentro do universo do cristianismo; ação e oração devem ter um sentido prático e não parar apenas no deleite da contemplação. 24 PÉCORA, Alcir. Teatro do Sacramento: a unidade teológico-retórico-política dos sermões de Antonio Vieira. São Paulo, EDUSP; Campinas, Editora da Unicamp, 1994.

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nos sinais ocultos apresentados pela história temporal, tanto nos sinais ocultos nas liturgias,

nas cerimônias sacramentais, nos textos bíblicos, como na história das nações,

principalmente no corpo político, que Vieira enxergava como figura do corpo divino na

terra. Mas chegaremos a isso mais adiante. Basta por ora que o encoberto deste exórdio seja

tratado como objeto de fé e de atenção para os destinatários do seu sermão, ajudando-os a

buscarem evidências e esperança na volta da personagem que poderá consertar e concertar

os rumos da história da humanidade em direção à ordem divina.

E assim, após rodear o bem-aventurado encoberto da terra de predicados, portador

das mesmas qualidades do bem-aventurado do céu descoberto, finalmente Vieira chega à

nomeação da personagem da qual irá tratar em seu discurso: São Sebastião. Mas é bastante

sugestivo e esclarecedor o que moveu sua narrativa até aqui, apesar de não explicitar suas

intenções. No final desta apresentação do seu discurso, o padre jesuíta assim condensa este

exórdio, nos dando a primeira pista do que devemos subentender do seu sermão: “(...)

resumindo o meu discurso só a duas palavras, todo o assumpto d’elle será este: Sebastião o

Encoberto”25.

Promovendo a elipse do adjetivo “são” e acrescentando o epíteto-adjetivo “o

Encoberto”, Vieira traz, ao seu sermão, uma matéria que tratará implicitamente – afinal a

nação lusitana, no momento em que é proferido este sermão, ainda está sob o domínio de

Castela. Mesmo não acrescentando a qualidade de “rei” ao nome Sebastião, a abertura de

leitura para esta possibilidade de se estar falando sobre determinada personagem da realeza

lusitana é provocada pela eliminação, no momento em que resume o exórdio, do adjetivo

“são”, e pelo enxerto do epíteto-adjetivo “o Encoberto”, grifado, de modo muito

significativo, em caixa alta e baixa.

25 Pe. A. Vieira. “Sermão de São Sebastião”, em Sermões do Pe Antonio Vieira, op. cit., p. 341. É bem sabido que entre o período da perda da independência de Portugal para Castela até a Restauração do reino português, boa parte da nação lusitana, confiante na volta do rei português Dom Sebastião vivo, por não terem achado seu corpo na batalha contra os mouros em Alcácer Quibir, ainda aguardava e disseminava sua vontade na volta do rei desaparecido. A crença em sua volta foi primeiramente baseada em um retorno de corpo presente, para dar continuidade ao seu reinado (exemplo claro disso são os famosos casos de reis falsos que se fizeram passar por Dom Sebastião e tentaram arrebatar o trono de volta a Portugal). Mais tarde, sua figura entra em ressonância com o espaço do mítico, quando o confundem com o rei Encoberto messiânico de muitas profecias bastante difundidas na península ibérica, sendo a mais respeitada dentre elas, entre os portugueses, as Trovas Proféticas de Gonçalo Annes Bandarra, o Sapateiro Profeta de Trancoso. Nesse momento parece que Vieira segue esta linha de raciocínio, evocando o nome de Sebastião, deixando ambíguo, em muitos trechos do seu sermão, se está tratando do santo ou do rei. Mas não será sempre assim seu tratamento dado à figura do Encoberto, como teremos a oportunidade de perceber mais adiante.

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28

E o sermão continuará trazendo a figura do santo como exemplo do que Vieira

pretende transmitir. No entanto, marcas no discurso do padre jesuíta, sugerem, aos poucos,

que o sermão tem como tema, mesmo que de maneira ambígua, a figura do rei

“desaparecido”. Vejamos um trecho em que seus destinatários, os que provavelmente se

encontravam na Bahia naquele momento, certamente eram levados a imprimir, em suas

reflexões acerca do sermão, a figura do rei Desejado. Eis como o padre jesuíta alterna a

apresentação do nome Sebastião ora com o adjetivo “são”, ora sem ele:

Primeiramente foi S. Sebastião o encoberto, porque encobriu a realidade da vida debaixo da

opinião da morte. São palavras formaes do Texto eclesiástico da sua história: Quem omnium

opinione mortuum, noctu sancta mulier Irene sepeliendi gratia jusit auferri; sed vivum repertur domi

suae auravit; et paulò post confirmata valetudine. Óh milagre! Óh maravilha da Providência divina!

Na opinião de todos era Sebastião morto: omnium opinone mortuum; mas na verdade e na realidade

estava Sebastião vivo: vivum repertum;[...]26

Ora, a frase “Ó milagre! Ó maravilha da Providência divina!” nos faz lembrar de

uma semelhante proferida em homenagem ao rei Dom Sebastião, quando vivo, por Luis de

Camões, ao lhe dedicar sua maior obra, Os Lusíadas. Só para recordarmos, Camões exalta a

predestinação de Dom Sebastião chamando-o de “Maravilha fatal”. Parece que Vieira faz

eco a esta exaltação, ao elaborar seu texto, com vistas a uma estratégia persuasiva que vai

surgindo, aos poucos, em seu discurso: “(...) mas que importa que Sebastião esteja morto na

opinião, se estava vivo na realidade? Isto é ser Sebastião o encoberto; porque encobriu a

realidade da vida debaixo da opinião da morte: opinione mortuum, vivum repertum”27.

É neste momento que percebemos a agudeza de um discurso argumentativo próprio

dos sermões barrocos de Vieira, que põe “em ação um conjunto de técnicas discursivas para

provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se apresentam ao seu

assentimento”28.

26 Idem, pp. 341-342. 27 Idem, p. 342. 28 C. Perelman, Lê champ de l’argumentation, Bruxelas, Presses de L’université de Bruxelles, 1963, p.13, citado por I. Chiampi em “O Barroco e a Utopia da Evangelização (Vieira e o Sermão da Sexagésima”, em Barroco e Modernidade, São Paulo, Perspectiva, 1998, pp. 146-147.

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O Pe. Antonio Vieira pretende, por intermédio do jogo que instala em seu discurso

entre “descoberto” e “encoberto”, “visível” e “invisível”, montar seu enunciado persuasivo.

O descoberto estaria na alçada da evidência e esta, dentro da construção do discurso do

jesuíta, só poderia ser encontrada no espaço celeste de Deus. Já o encoberto se produz no

campo do opinável, do aparente, que necessita de uma maior acuidade do observador para

que este não se perca na ilusão dos fatos. Este jogo é estimulado no Sermão de São

Sebastião afim de buscar a persuasão dos seus destinatários para voltarem sua atenção ao

que não está tão aparente, mas contém os germes da busca do verdadeiro cristão de

nacionalidade portuguesa.

Diz ainda Irlemar Chiampi acerca do discurso persuasivo promovido pelos sermões:

Se a argumentação é a arte de encadear logicamente as proposições para um fim persuasivo,

a persuasão é o efeito produzido pela argumentação no adversário (mudança de atitude,

comportamento), diante de uma questão posta em julgamento. E como para persuadir o enunciador

requer uma estratégia gradual para que o opinável (e não o evidente, que dispensa arrazoados)

transite do duvidoso ao necessário, a argumentação deve conduzir à iluminação e o enunciador deve

provar o que supõe negar a evidência a priori29.

Colocado o sujeito ao qual é dedicado o sermão, que é apresentado com certo grau

de dubiedade, observada a natureza persuasiva de um sermão, atentada a época determinada

em que este enunciado é elaborado, evidenciam-se algumas pistas da intenção de Vieira

para com este texto. E dentro do seu árduo processo persuasivo, ele nos dá vários exemplos

bíblicos buscando demonstrar, tentando fazer-crer que os fatos encobertos precisam de

atenção especial para que se tornem maravilhas a serem descobertas aos olhos do homem

que deve exercitar, deste modo, sua fé. Eis apenas um exemplo ilustrativo, dentre muitos,

deste processo que deve ser observado por todos os seus destinatários, segundo o padre:

Mandou Deus a Abrahão que lhe sacrificasse seu filho Isaac, pai de Jacob; levou Isaac a

lenha, Abrahão o fogo e a espada; compôs o altar, atou a victima, levantou o golpe: tudo verdade

infallivel; mas se alguem n’este passo, movido de piedade, afastasse os olhos, e visse d’ahi a um

pouco que depois de arder a victima ficavam sobre o altar aquellas cinzas, que havia de cuidar?

Havia de cuidar que eram as cinzas de Isaac, e que alli acabára o mallogro do moço: e que aquelle

29 I. Chiampi em “O Barroco e a Utopia da Evangelização (Vieira e o Sermão da Sexagésima”, em Barroco e Modernidade, op. cit., p.148.

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mesmo túmulo, que tinha sido o altar de seu sacrifício, era a sua sepultura. Esta havia de ser a

opinião; mas não era esta a realidade, porque o venturoso Isaac no mesmo tempo estava livre, vivo e

alegre, e com as esperanças confirmadas de se haverem de cumprir n’elle todas as promessas de

Deus feitas a seu pai e à sua casa30.

Vieira compõe toda esta seqüência, na qual verifica a possibilidade de que houvesse

outra testemunha, no dia do sacrifício de Isaac, além da presença do próprio Isaac, do seu

pai Abraão e de Deus. O padre Antonio Vieira habilmente imagina que esta testemunha,

por ele criada e colocada em um fato bíblico, tenha tido um pequeno lapso, minúsculo

mesmo, de contato com a imagem de Isaac sendo sacrificado. Cria-se aí a opinião de que

Isaac teria realmente sido sacrificado pelo seu próprio pai. Esta opinião é totalmente

apoiada por uma ilusão dos juízos da testemunha num momento de desatenção visual

(causa da “invisibilidade” da ação divina), e por sua falta de fé na promessa de Deus, ao

povo de Israel, de garantir Sua continuidade nos descendentes de Abraão.

O Pe. Antonio Vieira, neste momento do seu sermão em que cria esta possibilidade

no evento bíblico, insere na narrativa um diálogo fictício seu com outro personagem

bíblico, Jacob. Vieira como que conversa com Jacob, dando a ele o exemplo de Isaac e

Abraão citado acima, desaprovando a maneira como Jacob acreditou na opinião de que seu

filho José estava morto, enquanto este se firmava em grande posição social no Egito, sem

ter abandonado a fé. O padre jesuíta chega a criticar a falta de fé de Jacob, enganado pelo

sinal “visível” de uma túnica ensagüentada entregue a ele e a falta do corpo de José, pois a

notícia entregue com a túnica era de que seu filho fora devorado por um leão. Novamente

se faz “invisível”, encoberta, a ação divina por intermédio da falta de fé e, mais que isso,

pela leitura menos aguda de sinais dados a iludir os militantes da “verdadeira” fé cristã.

Estes são exemplos de fatos encobertos que exigem atenção e fé de uma vida dedicada à

busca pela volta da união da vontade humana com a divina.

Poderia Vieira dar exemplos de encobertos, criando seqüências de outra natureza

sem ser as trazidas das Escrituras Sagradas. Mas o tratamento discursivo que implementa

caminha para o exame da figura homenageada como alguém da esfera do divino presente

na terra. Reforça os aspectos sagrados da matéria do seu discurso, ao exemplificar

possibilidades de engano dentro da história da humanidade trazida pela Bíblia

30 Pe. A. Vieira, op. cit., pp. 343-344. (Grifos meus)

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(ficcionalizando o famoso caso do momento do sacrifício de Isaac), e mesmo da

consumação de engano dentro do próprio texto bíblico (caso das precipitadas conclusões de

Jacob sobre a notícia da morte de José, seu filho).

É realmente um caminho que se vê sendo traçado, passo a passo, sem precipitações,

como requer um artifício de suspensão do discurso barroco31. Vai ditando o ritmo, sempre

regendo a atenção dos seus destinatários ao destaque que quer dar às dificuldades, aos

perigos de desvio da fé ao se lançar ao encoberto. Exige desejo verdadeiro na busca do

descobrimento do encoberto, não mais um desejo apenas voltado à contemplação e espera

do encoberto, mas ao afinco, astúcia e agudeza no desvendamento parcimonioso dos sinais

divinos na terra.

Em se tratando de Vieira, Alcir Pécora acrescenta uma característica performática

do sermão deste padre, que é a de logo após levar o auditório à suspensão, seguir o gesto

dramático da revelação aguda. Este esforço por comunicar a revelação aguda ao seu

auditório pretenderia significar também o seu encaminhamento para a ocasião em que Deus

(a sua verdade participada) se comunica a ele e torna evidente a razão que sustenta as

correspondências verbais32. Quer dizer, Vieira propõe-se como decifrador e mediador dos

sinais de Deus na terra.

E é através destes exemplos que o padre vai buscando comprovar o valor do

nome Sebastião, Encoberto, sem apontar a posição desta figura como rei ou santo. Como já

dissemos, em 1634, ano em que o sermão foi proferido, Portugal ainda era submisso a

Castela, e Dom Sebastião, o rei desaparecido, representava grande esperança, com sua

possível volta, para a independência do trono português. O Sermão de São Sebastião possui

forte conteúdo sebastianista, apelando para a fé dos portugueses e do mundo quanto ao

descobrimento do Sebastião Encoberto, que levava as graças de ser um bem aventurado.

Naquela ocasião, o Pe. Antonio Vieira afirmava seu lado sebastianista, como um dos

31 Pondera, com isso, as dificuldades em se chegar ao objeto oculto de que trata, deixando o auditório em suspensão, preparando a revelação com maior clareza do intelecto e dos sentidos. Baltazar Gracian, outro jesuíta mestre no discurso barroco, assim nos sugere: “Es gran eminencia del ingenioso artificio llevar suspensa la mente del que atiende, y no luego declararse; especialmente entre grandes oradores, está muy valida esta arte. Comienza a empeñarse el concepto, deslumbra la expectación, o la lleva pendiente y deseosa de ver dónde va a parar el discurso, que es un bien sutil primor, y después viene a concluir com una ponderación impensada”. GRACIÁN, Baltasar. Discurso XLIV “De las suspenciones, dubitaciones y reflexiones conceptuosas”, em Obras completas. 2a ed. Madrid, Aguilar Del-Hoyo, 1960, p. 434. 32 PÉCORA, Alcir, op. cit., p. 183, nota 13.

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grandes incentivadores da fé nesta crença política e religiosa instalada na complexidade

desta personagem histórica e, já naquele momento, mítica.

Então Vieira, após comprovar que apenas a opinião é de que Sebastião é morto, e

que, na realidade, a evidência é que ele está vivo e encoberto, e que há necessidade, além

da fé, de grandes esforços para a fortaleza da busca dos fiéis cristãos pelo encoberto, ele, já

crente na volta descoberta do objeto do seu discurso, fecha seu sermão com um pedido ao

ainda encoberto:

Divino Sebastião encoberto bemaventurado na terra, e descoberto defensor d’este reino no

céu: ponde lá de cima os olhos n’ele, e vêde o que não poderá ver sem piedade, quem está vendo a

Deus: vereis pobrezas e misérias, que se não remedeiam; vereis lágrimas e afflicções, que se não

consolam; vereis fomes e cobiças, que se não fartam; vereis ódios e desuniões, que se não pacificam.

Oh como serão ditosos e remediados os pobres se vós lhes acudirdes: Beati pauperes! Oh como serão

ditosos e alliviados os afflictos, se vós os consolardes: Beati qui lugent! Oh como serão ditosos e

satisfeitos os famintos, se vós os enriquecerdes: Beati qui nunc esuritis! Oh como serão contentes os

odiados e desunidos, se vós os concordardes: Beati estis cum vos oderint homines! D’esta maneira,

Santo glorioso, por meio de vosso amparo conseguiremos a bemaventurança encoberta d’esta vida,

até que por meio de vossa intercessão alcancemos a bemaventurança descoberta da outra: Ad quam

nos perducat, etc33.

O Pe. Antonio Veira confirma as esperanças de que Sebastião interceda por Portugal

como “descoberto defensor d’este reino no céu”. Ele pede a reparação das agruras que sofre

o reino naquele momento, cheio de corrupção, o que produz o encobrimento dos seus

destinos gloriosos com a desunião das suas cabeças políticas, além da incômoda submissão

ao reino de Castela. Gradativamente demonstra que reparadas as agruras de Portugal, o

reino destinado a ser a cabeça do V e Último Império de Cristo na terra, ainda na situação

de encoberto, irá sair de suas trevas e promover sua vocação para a junção final entre o

secular e o sagrado, num mundo a ser descoberto nessa união da vontade de Deus e dos

homens. Deste modo, é bastante insinuante, neste sentido, o desfecho deste Sermão de São

Sebastião exatamente com este pedido final: “D’esta maneira, Santo glorioso, por meio de

vosso amparo conseguiremos a bemaventurança encoberta d’esta vida, até que por meio de

vossa intercessão alcancemos a bemaventurança descoberta da outra: Ad quam nos

33 Idem, ibidem, pp. 353, 354.

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perducat, etc”. O papel da nação portuguesa e da figura mítica e política do Encoberto na

história da humanidade lida por Vieira através dos sinais divinos na terra, revelam-se em

seu discurso, mesmo já em tenra idade, e irá se propagar em toda sua carreira jesuítica e de

mediador entre a palavra de Deus e os homens, sendo coroada com sua grande obra

História do Futuro.

1.2. Padre Antonio Vieira e sua História do Futuro: Presença e Papel do

Brasil e de sua Gente no Advento do V Império Cristão Universal

Tão logo se fez presente a Restauração de Portugal, o padre Antonio Vieira propõe

que a figura do Encoberto seja melhor encarnada por Dom João IV, responsável pela

retomada da independência portuguesa. É o que dizem os estudiosos da personalidade do

jesuíta. Porém, veremos que isto irá sendo mudado ao longo de sua vida, sempre seguindo

uma linha de raciocínio bem própria. Dom Sebastião passa a ser visto por ele, a partir daí,

como um grande monarca que teve o destino interrompido, porém já previsto, para que

sessenta anos de purgação do reino pudessem levar à restauração transformada em evento

importantíssimo de retomada do destino grandioso de Portugal na história da humanidade.

Vieira irá dissociar Dom Sebastião da figura do Encoberto utilizando, como argumento,

profecias populares, do século XIII, que eram revisitadas pelas palavras do dominicano S.

Frei Gil. São os primeiros passos de seu novo olhar sobre a matéria do Encoberto

preparador de Portugal como nação líder do desejado V Império Universal Cristão.

[...] e já que vai de esperanças, não deixemos passar sem ponderação aquelas palavras misteriosas da

profecia: Insperate ab insperato redimeris. – De propósito reparei nelas, para refutar com suas

próprias armas alguma relíquia que dizem que ainda há daquela seita ou desesperação dos que

esperavam por el-rei Dom Sebastião, de gloriosa e lamentável memória. Diz a profecia: Insperate ab

insperato redimiris: Que seria remido Portugal não esperadamente por um rei não esperado. – Segue-

se logo, evidentemente, que não podia el-rei Dom Sebastião ser o libertador de Portugal, porque o

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libertador prometido havia de ser rei não esperado: Insperate ad insperato – el-rei Dom Sebastião era

tão esperado vulgarmente, como sabemos todos34.

Não descarta Dom Sebastião por sua vivência em uma existência mítica, ou melhor

dizendo, provavelmente por ele ter morrido após o desastre de Alcácer Quibir trazendo

consigo as potências de um ser messiânico. Não poderia ir de encontro a um fato que não

afetaria sua lógica de pensamento, já que o Encoberto era, para ele, uma entidade

extraordinária, possuidora da plenitude do corpo divino na terra e vinculada ao poder do

Estado como correspondente do poder Divino no século, porém encoberta por circunstância

de viver na terra corrompida. Mas é que o ser esperado (e ele coloca ênfase nesse

“esperado”) já traz a idéia de contemplação e esperança sem ação. Já o inesperado da

profecia por ele aludida, requer prestar atenção mais uma vez aos sinais e com ele entrar em

consonância para a continuação e o devir histórico.

Alega-se que o padre jesuíta defendia interesses políticos com esta aproximação sua

com Dom João IV, restaurador do reino. Mas podemos atentar também para convicções

pessoais do padre, que são direcionadas pelo seu sistema de crenças que vai sendo

desenvolvido e articulado no decorrer de sua vida. Parece que uma de suas maiores obras,

História do Futuro, escrita desde 1649, com interrupções constantes, e só editada em 1718,

indica-nos traços de sua personalidade e dos seus ideais escatológicos da maneira mais

clara do que em qualquer outro sermão, embora retome eles para evidenciar e corroborar a

maturidade dos seus argumentos e do seu sistema de crenças. O V Império Universal,

símbolo da cristandade unida, apagando as diferenças entre os povos – iniciadas pelo

castigo imposto por Deus no episódio bíblico e mítico do embaralhamento das línguas na

Torre de Babel – parecia, aos cristãos, a visão do paraíso perdido em vias de ser restituído

34 “Sermão de Bons Anos”, pregado em Portugal, na Capela Real, na passagem do ano de 1641-1642. Ver em Sermões. São Paulo, editora das Américas, 1957-1959, 24 vols. (Ed. com ortografia atualizada, com textos segundo a ed. seiscentista, revistos por Frederico Ozanam Pessoa de Barros, sob a supervisão do padre Antonio Charbel e do prof. A. Della Nina). Esta edição foi utilizada por Alcir Pécora em seu livro já citado Teatro do Sacramento. Na nota 119 da página 250 do livro de Pécora, encontramos o seguinte comentário deste autor. “O inesperado, então, se referia a D. João IV, que os portugueses, até dias antes da Revolução de Dezembro, ainda desesperavam de poder contar com seus assentimentos para as ações que o levariam ao trono”.

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aos seguidores da fé cristã35. Também neste sentido dirigia Vieira sua escritura, porém de

maneira bem singular.

Acredito que não custa reforçar agora o modo de proceder de Vieira diante da

matéria a que se propõe revelar. Tudo do céu, da ordem do divino, tem correspondência na

terra, na ordem secular. A tentativa do padre é a de fazer aproximar estas correspondências

até a união total entre o divino e secular, tornando tudo uma coisa só, um corpo místico. Por

isso é preciso perceber no encoberto o descoberto, encontrar o rosto e o corpo perfeito do

Ser no imperfeito da matéria, verificando os sinais da matéria com afinco, com retidão, pois

a ilusão pode ser sugerida por forças diferentes e opostas ao Ser, criando a discórdia entre

os homens e o espedaçamento do almejado corpo místico.

Os sinais da presença do Ser na terra têm que ser lidos no mistério, no ocultamento

da imperfeição da matéria36. A má leitura desta matéria produz o desvio do caminho que

deverá levar ao Ser, à consumação do corpo místico. Por isso, voltemos aos termos

importantes do sermão de São Sebastião comentado anteriormente; “É tão grande a

distância e a diferença [entre a bem-aventurança descoberta visível no céu e a bem-

aventurança encoberta na terra] que vai e chega do céu à terra”.

E é esta distância e diferença que tenta suprimir Vieira. Sua escritura, seus sermões,

sua vida, tanto política como religiosa, tanto em partidas diplomáticas como em sermões e

decifrações exegéticas são, para ele, a tentativa de aproximar a diferença distante entre a

bem-aventurança do céu e a da terra. A atuação dele nesse sentido é investida de uma

hermenêutica assentada em artifícios do discurso jesuítico e barroco. O texto de Vieira tem

sempre a preocupação de trabalhar forma e conteúdo em conjunto, sem primazia de um

sobre o outro, fazendo com que cada palavra, cada artifício de linguagem, cada sintaxe,

cada etimologia, esteja à disposição, em seu travejamento, da clarificação de uma imagem,

de um conceito.

35 TRAGTENBERG, Maurício, “As Utopias a Partir do Renascimento”, em NEOTTI, Clarêncio (org.). Tempo e Utopia. Rio de Janeiro, Vozes, 1973, p. 14. 36 Por “matéria” queremos dizer coisas e objetos da natureza e da cultura, textos sagrados, cerimoniais, liturgias, os sacramentos, além de acontecimento da história das nações, ou seja, tudo o que Vieira utiliza para aprimorar seus conceitos e concepções sobre a “história do futuro” que busca organizar. Não podemos deixar de revigorar e dar a máxima importância ao caráter estésico que tudo isso produz. Só assim irá se sair de uma contemplação passiva para uma ação participativa nesta matéria, cheia de sinais a serem desvendados, revelados, para se descobrir o encoberto no mundo.

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Antonio Vieira experimenta com intensidade, êxtase e alegria uma hermenêutica

barroca de desvendamento do oculto, do encoberto. Não é por acaso que utilizo as palavras

intensidade, êxtase e alegria (com certeza, estes substantivos não dão conta do estado

provavelmente experimentado por Antonio Vieira) para tentar descrever seu estado a cada

passo de sua vida, principamente nos momentos em que consegue descobrir algum mistério

durante sua exegese, já que ele se entrega ao jogo de descobrir o que há de oculto, de

encoberto do divino na terra. A decifração gradual é, podemos imaginar, um prêmio a cada

degrau que se sobe. Não podemos duvidar do estremecimento causado pela sensação de

plenitude quando acontece maior clarificação do cristalino, da retina, ao ser polido o opaco

das coisas, e nelas podendo se sentir, vislumbrar, a proximidade de um rosto se

descortinando, o rosto do Encoberto, do V Império, de Cristo, de Deus. A vontade do

homem vai se achegando à de Deus conforme propõe a Companhia de Jesus de Inácio de

Loyola. Vieira vive os exercícios espirituais inacianos, mas pretende ir além e entrega sua

existência nessa direção. A prática construída por ele com sua retórica é um exemplo de

procedimentos tradutórios e comunicacionais no sentido de tratar de um corpo memorial

ancestral dando roupagem nova, fazendo reviver signos mofados pela exegética da Igreja

contemplativa e entregando aos seus destinatários boas novas previstas, mas paralisadas.

Enfim, enquanto experimenta o amalgama e encaixe de textos, realiza descobertas

para si mesmo no ato da escritura e, como vive o que está escrevendo, quer compartilhar

com o auditório suas experiências e anunciar também o papel dele (do auditório) nas coisas

novas que vão surgindo. Causa, desta forma, impacto e interesse, ao propor o fim de uma

era contemplativa e o início de um tempo de ação coletiva para haver participação no devir

histórico que propõe.

Talvez por esse motivo veja na Restauração portuguesa um momento ímpar de

aproximação, na história do mundo, para se consumar finalmente a formação do V Império.

E é nesse momento que o Pe. Antonio Vieira efetiva sua participação no reino e entra em

movimento constante, trafegando entre Brasil e Portugal durante o processo de restauração

do reino português, tendo grande apoio de Dom João IV até este morrer. Depois tem

problemas com os próximos reinados, mas ainda engaja-se em contendas diplomáticas a

favor de Portugal. Porém instala-se com maior assiduidade no Brasil para dar continuidade

à sua missão. E não é por acaso que isso se dá, nem por impedimentos forçados, ao que

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tudo indica. O fato de viver em uma terra como o Brasil, uma terra nova, de natureza

generosa, com uma imensa quantidade de gentios a serem doutrinados na “verdadeira” fé, a

própria façanha dos descobrimentos não tão recentes das novas terras, mas que ainda

causavam impacto nas mentalidades da época, e a Restauração de Portugal realizada para

revigorar sua importância como uma das nações que empreenderam a magistral descoberta

das novas terras, o faz crer estar próximo do dia em que se formará o V Império Universal

encabeçado pela nação portuguesa.

Sua História do Futuro quer ser a concretização de profecias e de uma utopia que

está próxima. Para isso, primeiramente utiliza sua forte retórica de jesuíta no intuito de

mostrar que ele é um verdadeiro tradutor da história do porvir. Além de defender-se da

Inquisição, ao estar manipulando assuntos tão perseguidos pelos seus pares católicos e

jesuítas, pretende demonstrar também como está preparado e tem condições de ver e

mostrar melhor o que está ainda oculto, mas próximo. Afinal a isso se dedicou toda a vida.

1.2.1. De uma utopia pessoal

Por que chamarmos utopia pessoal o fato de Antonio Vieira autodenominar-se

historiador do futuro? A utopia irá sempre expressar desejos coletivos ou individuais (estes

últimos depois tendem a cair nas malhas do coletivo se assim tiverem forças e estiverem de

acordo com o repertório de determinado grupo) de perfeição, guardando, em alguns casos,

uma lembrança de uma possível situação primordial da humanidade à qual se deseja

voltar37. Parece que para o padre jesuíta em questão, o que traduz o ponto culminante de

sua satisfação pessoal, o que lhe apetece como desejo máximo, o que representa sua utopia

pessoal é ser o escolhido de Deus, o mediador que poderá revelar Seus mistérios na terra. E

estes mistérios, em poder somente do Criador, podendo apenas ser revelado a um escolhido

Seu na terra, estão relacionados com sucessos futuros.

[...] Deus que é a fonte de toda sabedoria, posto que repartiu os tesouros dela tão liberalmente com os

homens, (e muito mais com o primeiro), sempre reservou para si a ciência dos futuros, como regalia

própria da Divindade;38

37 Cf. FRANCO JUNIOR, Hilário. As Utopias Medievais. São Paulo, Brasiliense, 1992. E também NEOTTI, Clarêncio (org.). Tempo e Utopia. Rio de Janeiro, Vozes, 1973. 38 VIEIRA, Padre Antonio. História do Futuro. Organizado por José Carlos Brandi, Editora Universidade de Brasília, Brasília, 2005, p. 121.

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E para elevar ainda mais a figura que receberá do próprio Criador Seus mistérios

sem querer “roubá-Los” – palavras do próprio Vieira – mostra que a vontade do homem em

ter a posse dos mistérios de Deus sem caminhar na “retidão” cristã, foi a grande perdição da

humanidade. Mesmo sendo castigado tão duramente ao ser expulso do Paraíso por querer

provar o fruto da árvore do saber, este desejo de força descomunal continua a persistir no

homem e o fará cair em superstições, o que gerará falsos profetas em toda a história e

interpretações absurdas sobre o devir histórico e a grande missão da humanidade em se

reencontrar com seu Criador.

Demonstrar que o desejo pelos mistérios de Deus é forte em todo o mundo, e que

esta vontade nada mais é do que uma vontade de se chegar à perfeição, de se reunir com

Deus e até mesmo fundir-se a Ele, é o que Vieira explicita para justificar sua investida no

caminho de ler os sucessos futuros. Seu empenho em tarefa tão complicada se faz matéria

de sua própria defesa para legitimar-se como pessoa preparada para esta missão. Quer

explicitar sua competência diante dos destinatários comuns e defender-se de possível

julgamento e condenação como herege na presença das garras afiadas da Santa Inquisição.

Assim ataca todas as formas imagináveis do que era considerado como falsidade profética,

dando exemplos de engano ilusório em que incorriam os homens ao idolatrarem imagens e

consultarem oráculos pagãos sobre as questões do futuro:

Quem fez que fosse tão freqüentado e consultado o ídolo de Apolo em Delfos, o de Júpiter

em Babilônia, o de Juno em Cartago, o de Vênus no Egito, o de Dafne em Antioquia, o de Orfeu em

Lesbo, o de Fauno em Itália, o de Hércules em Espanha e infinitos outros em tantas partes? Não há

dúvida de que o desejo insaciável que os homens sempre tiveram de saber os futuros e a falsa opinião

dos oráculos com que o Demônio granjearam, sendo certo que, se Deus, vindo ao Mundo, não

emudecera (como emudeceu) os oráculos da gentilidade, grande parte do que hoje é fé, fora ainda

idolatria. Tão mal sofreram os homens que Deus reservasse para si a ciência dos futuros, que

chegaram a dar às pedras a divindade própria de Deus, só porque Deus fizera própria da divindade

esta ciência: antes queriam uma estátua que lhes dissesse os futuros, que um Deus que lhos

encobria39.

39 Idem, ibidem, p. 122.

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39

Da mesma maneira condena quatro artes de adivinhar o futuro que se baseiam nos

quatro elementos principais da natureza. O padre detém-se na descrição destas

“superstições”, escancarando seu entendimento sobre as artes de adivinhar, demonstrando

seu total saber dos caminhos perigosos que não quer tomar e pretende se dissociar para

prosseguir na elaboração do seu enunciado. Ao invés de ocultar, de esconder de modo

temeroso algo que poderia lhe ser prejudicial, potencializa o significado de mentira, de mal,

de negativo trabalhado pela Igreja em sua constante autodenominação de detentora da

verdade. Agindo deste modo, o padre não deixa de promover uma conjunção com a dita

“verdadeira” Igreja, ao mostrar que divide o mesmo repertório por ciência e experiência, e

não por medo e ignorância dos caminhos “tortos”:

Sobre os quatro elementos assentaram quatro artes de adivinhar os futuros, que tomaram os

nomes dos seus próprios sujeitos: a geomancia, que ensina a adivinhar pelas cousas da terra; a

hidromancia, pelas da água, a aeromancia pelas do ar e a piromancia pelas do fogo40.

Além de exemplificar, Vieira esbanja em proliferação41 de termos que reclamam a

atenção do auditório ao elucidar e amplificar o significado do engano, da mentira, da

falsidade, do negativo contido no próprio corpo das palavras, na etimologia destes termos,

que indica matérias desvirtuantes da “verdade”. Assim, é interessante que, ao mencionar

uma das artes mais famosas de adivinhação de sua época, a Nigromancia, começa o período

da sua exposição demonstrando falta de vontade em comentar algo sobre a prática que mais

40 Idem, ibidem, p. 123. 41 Severo Sarduy apresenta alguns mecanismos de artificialização do barroco, identificando-os como singulares ao modo de produção deste tipo de enunciado. Assim ele nos revela algo muito próprio de Vieira, no caso em que estamos buscando perceber o esgrimir do padre diante de um destinatário tão crítico e implacável como a Santa Inquisição. Dentre outros mecanismos, Sarduy apresenta a maneira do recurso da proliferação: “Há finalmente na proliferação, operação metonímica por excelência, a melhor definição daquilo que é a metáfora, a realização ao nível da práxis – da decifração que é toda leitura – do projeto e da vocação que a etimologia da palavra nos revela: deslocamento, translação, tropo. A proliferação, trajeto previsto, órbita de semelhanças abreviadas, exige, para tornar adivinhável aquilo que oblitera, para roçar com sua perífrase o significante excluído, expulso, e esboçar a ausência que assinala, essa translação, esse trajeto em torno daquilo que falta e cuja falta o constitui: leitura radial que conota, como nenhuma outra, uma presença, que em sua elipse assinala a marca do significante ausente, este a que a leitura, sem nomeá-lo, em cada uma de suas voltas faz referência, o expulso, aquele que ostenta os vestígios do exílio”. (SARDUY, Severo, “O Barroco e o Neobarroco”, em MORENO, César Fernandez [coord. e introd.], América Latina em sua Literatura, São Paulo, Perspectiva, 1979). No caso de Vieira, o significante que pretende expulsar da sua trajetória de decifrador é o demônio e a sua vocação de fazer os que buscam a “verdade” incorrerem em enganos e ilusões.

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lhe repugna. Porém, quanto mais tem horror ao que vai descrever, mais lhe dá atenção e

melhor tratamento em termos de produção de imagem. “Nem quero falar na triste e funesta

nigromancia, que freqüentando os cemitérios e sepulturas, no mais escuro e secreto da

noite, invoca com deprecações e conjuros as almas dos mortos, para saber os futuros dos

vivos42”. Maneira de consulta prognóstica ridícula, no modo de ver do padre, até mesmo

hilária para ele, pois como poderiam os mortos no escuro, na profundeza das trevas, ou

desfrutando do descanso oferecido à sua alma, perder tempo com o futuro dos vivos?

E continua, com obstinação, discorrendo sobre as práticas adivinhatórias,

detalhando-as cada vez mais vivamente quanto mais quer se disjungir delas. Vai

expulsando, do território que pretende ocupar como historiador do futuro, a figura maior

que ameaça todo aquele que quer tratar de matérias encobertas e mistérios do futuro.

Enxota, rechaça e, por fim, exila o Demônio, ao reconhecer sua cara nas artes de adivinhar

que, ao invés de ciências de presságio, para Antonio Vieira são ignorâncias. Conhecer o

inimigo através do seu desmascaramento, reconhecendo suas armas, já é um passo

importante para não cair em armadilhas e, ao mesmo tempo, disjungir-se do funesto

opositor para seguir com retidão em propósitos coincidentes com os da Igreja Católica.

Tudo isso Vieira produz com emprenho, demorando-se na descrição de cores,

volume, espessura de assuntos tão próximos do que é pervertido, sujo, mentiroso, aos olhos

da Inquisição. É como se fosse necessário descer aos mundos ínferos para saber o que é

estar imaculado. Também, ao proliferar em significantes que conduzem às imagens

detectadas como negativas pela Igreja, Vieira, estrategicamente, faz se evidenciar sua

posição de ciência em conjunção com o saber oficial, ao passo que se ocultasse esse

conhecimento do negativo, estaria incorrendo no perigo de ser taxado como ingênuo e

despreparado para seu grande intuito43.

Se seguirmos mais ainda em sua utopia pessoal, poderemos perceber estratégias do

seu discurso, uma performance mesmo, para instalar um curioso jogo de sua ocupação

espacial diante da matéria da qual irá tratar. Promove ao menos dois movimentos em seu

proceder: um de fortalecer sua competência como singular historiador do futuro e outra de

42 VIEIRA, Padre Antonio, História do Futuro, p. 123. 43 Sobre este corpus de assuntos que sempre foram recalcados e eram absolutamente perseguidos (em alguns momentos com maior intesidade que outros) por um saber oficial e institucionalizado, ver o capítulo “Interdição e Consentimento” do livro O Livro de São Cipriano: uma legenda de massas, de Jerusa Pires Ferreira, São Paulo, Perspectiva, 1992, pp. 115-134.

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aproximação à utopia coletiva à qual buscará confluência. E estes dois movimentos se

completam, porque quanto mais se aproxima da utopia coletiva, mais quer dar mostras de

que pode concretizar sua utopia pessoal e vice-versa. Em seu presente pode descortinar os

sinais, trabalhar índices deixados em textos proféticos do passado por ele considerados

como verdades ainda encobertas e, por estar cada vez mais próximo dos sinais deixados

sobre o futuro, tem melhor visão sobre a plenitude dos acontecimentos reveladores do fim

da História Secular, quando se encarnaria o rei Encoberto, quando iria ser formado o V

Império e tudo confluiria para o Juízo Final. Poderíamos dizer que promove a

espacialização do tempo ao se posicionar em seu presente, conseguindo enxergar a

proximidade do futuro na clarificação do que ainda estaria obscuro em textos do passado.

Assim, pode afirmar que está falando de um futuro que está próximo.

São Paulo, aquele filósofo do terceiro Céu, desafiando todas as criaturas, e entre elas os

tempos, dividiu os futuros em dois futuros: Neque inftantia, neque futura (Nem as coisas presentes,

nem as futuras). Um futuro que está longe e outro futuro que está perto; um futuro que há de vir e

outro futuro que já vem: um futuro que muito tempo há de ser futuro – neque futura e não é este o

futuro da minha história, e outro futuro que brevemente há-de ser presente: neque inftancia. Este

segundo futuro é o da minha História e estas as breves e deleitosas esperanças que a Portugal

ofereço44.

Daí inicia seu posicionamento espacial para comprovar sua melhor capacidade de

ver e discernir sobre matéria ainda oculta nos textos antigos e memoriais. Primeiro dá um

sentido horizontal à sua posição, sempre mais e mais evidenciando sua proximidade sobre

os eventos e entendimentos aos quais quer dar lume. A dimensão espacial horizontal indica

o distante dos profetas passados e o perto da sua figura diante do futuro. Vai do mais escuro

para o mais claro, do maior frio para o calor da hora, tudo isso possibilitado pela posse do

objeto que defere princípio de autoridade em seu enunciado: a candeia. Os Antigos profetas

também tinham excelente candeia, mas estavam longe ainda do que pretendiam iluminar.

Desse modo, iluminavam mal porque:

Os futuros, quanto mais tempo vai correndo, tanto mais se vão eles chegando para nós, e nós

para eles; e como há tantos centos de anos que estão escritas estas profecias, também há tantos centos

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de anos que os futuros se vão chegando para elas, e elas para os futuros; e por isso nós nos atrevemos

a fazer hoje o que os Antigos não fizeram, ainda que tivessem acesa a mesma candeia; porque a

candeia de mais perto alumia melhor45.

Vieira consegue, sem desautorizar a tradição, elevar-se ao mesmo patamar dos

Antigos propagadores da palavra sagrada (possui a mesma candeia). E faz mais que isso,

em operação arriscada e delicada. Chama a atenção do destinatário do seu texto para sua

posição privilegiada ao portar a mesma candeia dos Antigos e, além disso, trazendo ela

mais próxima (maior luz, maior possibilidade para se enxergar o oculto) do futuro onde o

objeto que compartilha com eles ainda está encoberto; define-se, desta forma, como o

sujeito que tem maior possibilidade para clarificar melhor a escuridão dos futuros, trazendo,

ainda com isso, o calor e a chama que vivificaria cada vez mais as palavras de Deus.

É comum em Vieira também aparecer, em meio às metáforas que vai lançando, logo

um exemplo tirado da Bíblia, ou de outro texto que julga à altura das suas especulações,

para conferir mais autoridade ainda aos seus argumentos. Para o caso acima, não poderia

ser mais feliz em sua escolha o modelo de profeta condizente com a utopia pessoal que vai

revelando:

Com uma candeia pode-se ver o que há em uma casa, mas não se pode ver o que há em uma

cidade. O grande precursor de Cristo erat lucerna lucens et ardens (era uma lâmpada que ardia e

alumiava), e ainda que todos os Profetas anunciaram a Cristo, o Batista mostrou-o melhor, porque

era candeia de mais perto; os outros diziam: – Há-de vir; e ele disse – Este é46.

E não é a primeira vez que coloca a figura de São João Batista como seu modelo de

enunciador-intérprete de acontecimentos futuros que quer seguir. Na mesma linha de

raciocínio usada para comprovar seu melhor posicionamento de decifrador e apresentador

das maravilhas futuras próximas de acontecer, traz a idéia de que quanto mais próxima a

palavra do objeto que ela quer representar, maior a crença depositada nesta palavra. Quanto

mais próximos os eventos futuros enunciados, e quanto maior as provas visíveis de que os

sucessos do vir-a-ser já se aproximam na verificação do que está sendo, maior o desejo dos

44 VIEIRA, Padre Antonio, História do Futuro, p. 133. 45 Idem, ibidem, p. 240. 46 Idem, ibidem, p. 240-241.

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destinatários da mensagem de Deus em crer e se movimentar em direção ao enunciado. Por

isso, São João Batista, para Antonio Vieira, é o maior de todos os profetas, afinal foi

contemporâneo do próprio Verbo Divino encarnado, por ele mesmo anunciado:

Não é privilégio este de qualquer profecia, mas daquelas profecias de que se compõe esta

História. Sim, porque são mais que profecias. Um profeta houve no Mundo mais que profeta, que foi

o grande precursor de Cristo. E por que razão mereceu a singularidade deste nome São João entre

todos os profetas do Mundo? Porque os outros profetas prometeram o Cristo futuro, mas não o

viram, nem o mostraram presente: o Batista prometeu-o futuro com a voz, e mostrou-o presente com

o dedo – Cecinit ad futurum, et adesse monstravit (Cantou ao futuro e mostrou que estava

presente)47.

Com todos estes exemplos e imagens que usa, Vieira consegue localizar-se numa

linha horizontal do tempo como decifrador próximo do futuro a ser descoberto. Em outro

momento, é em sentido ascensional que Vieira valoriza sua posição no rol dos profetas.

Uma gradação vertical do mais baixo até o mais alto vai dando conta da melhor

possibilidade de divisar os assuntos a serem entretecidos. A imagem utilizada para

descrever sua situação como privilegiado para apresentar as boas novas é a do pigmeu

levantado pelo gigante. O objeto empregado como metáfora desta elevação é a escada.

Um pigmeu sobre um gigante pode ver mais que ele. Pigmeus nos reconhecemos em

comparação daqueles gigantes que olharam antes de nós para as mesmas Escrituras. Eles sem nós

viram muito mais do que nós pudéramos ver sem eles; mas nós, como viemos depois deles, e sobre

eles por benefício do tempo, vemos hoje o que eles viram, e um pouco mais. O último degrau da

escada não é maior que os outros, antes pode ser menor; mas basta ser o último, e estar acima dos

demais, para que dele se possa alcançar o que dos outros se não alcançava48.

Mais uma vez tem o cuidado de demarcar seu território sem agredir os cânones da

tradição judaico-cristã. Os profetas antigos são gigantes enquanto ele é o pigmeu montado

em toda grandiosidade e segurança da palavra proferida anteriormente, no passado. Goza da

altura e fortaleza do corpo do gigante; toda a corporação de profetas que antes dele olharam

as Escrituras. Em seu presente, ele, humilde pigmeu, apoia-se em toda ancestralidade e com

47 Idem, ibidem, p. 134.

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visão mais aguçada, porque não esperou aos pés do gigante a entrega da luz pela qual

demanda, mas apoiou-se em sua grandiosidade com esforço e tem mérito de ali permanecer

para ir além.

A escada traz consigo a noção de estrutura, mas também de processo para se chegar

ao alto, movimento, ação para galgar a ascensão pretendida. Os degraus pretéritos são

grandes, nos dizeres de Antonio Vieira, e ele, como último degrau, embora possa ser

menor, mais humilde diante da grandeza dos outros, está acima deles. Desfruta da forte

estrutura construída pelos Antigos, conhece bem a estrutura por ter escalado todos os

degraus e agora está em território sedimentado por um entendimento conseguido pelo

processo de escalar. Sua visão é plena de outros horizontes que não poderiam ser

alcançados pelos degraus abaixo dele. Como é de se esperar, para reforçar o entendimento

da imagem e objeto de constatação do seu poder de mira, o padre jesuíta vai atrás de um

exemplo bíblico, do Novo Testamento, novamente relacionado a Jesus49, figura ímpar da

cristandade, da história da humanidade reverenciada por ele e importantíssima para seu

sistema de crenças na busca do homem pela reunião definitiva com Deus.

Entre toda a multidão dos que acompanhavam e rodeavam a Cristo, o mais pequeno de

todos era Zaqueu que, por si mesmo, e com os pés no chão, não podia alcançar e ver o que os outros

viam; mas subido em cima de uma árvore, viu melhor e mais claramente que todos50.

Em toda sua tentativa de demarcar seu território como figura privilegiada para

decifrar os acontecimentos futuro, há a presença do tempo em andamento, ao futuro que,

estagnado, em estado de espera para serem cumpridos os desígnios atribuídos a ele, é

espacializado como território do termo da história que se aproxima. Isso se dá quando o

tempo é apreendido no território de observador, comentador e comunicador dos

acontecimentos futuros demarcado e ocupado por Vieira. Enxerga todos os horizontes em

seu presente, aproximando o passado, porque desvenda sinais contidos nele que esclarecem

48 Idem, ibidem, p. 241. 49 Ver em Teatro do Sacramento, já citado algumas vezes e ainda será algumas outras, a importância dada ao Sacramento Eucarístico nos Sermões de Vieira. Tomar o sangue e comer o corpo de Cristo renova e dá vida ao Cristo na terra, ainda encoberto nos mistérios da cerimônia da Eucaristia. Os objetos tomados e manipulados nesta cerimônia correspondem ao Deus vivo na Terra e, ao ser compartilhado pelos homens, reforçam a união da humanidade na unidade do corpo místico. 50 VIEIRA, Padre Antonio. História do Futuro, p. 242.

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o futuro em seu presente. Já vê o futuro por estar próximo a ele depois de tantos passados

transcorridos prevendo o futuro que se acerca. Constrói, por excelência, um verdadeiro e

excepcional olhar pan-óptico sobre a matéria da qual irá se ocupar. Conjuga, desta forma,

sua utopia pessoal à utopia coletiva primeiramente do seu auditório de nacionalidade

portuguesa, mas que contém um alcance universal.

1.2.2. Tornar a Utopia Pessoal Consonante à Utopia Coletiva

Finalmente, posicionado em seu próprio discurso, Vieira revela o conteúdo que será

tratado em sua obra. Dirige-se aos portugueses e promete a estes o papel principal na

constituição do V Império que durará mil anos na Terra. Por ser um Império universal e

último, deverá comportar, em seu seio, todos os povos e religiões, que deverão passar a ser

cristãos, com o intuito de esperarem a vinda do Anticristo, para a batalha a ser travada em

direção ao Juízo Final. Aqui, finalmente une sua utopia pessoal a uma ancestral e coletiva,

une sua vontade de perfeição, como homem singular perante Deus, a um desejo coletivo há

muito esperado pela tradição judaico-cristã combinada à história da nacionalidade

portuguesa. Com isso, intenta estabelecer uma comunicação com seus destinatários através

da atualização de uma memória, afim de encetar um diálogo e fortalecer sua competência

como portador de revelações para um futuro próximo. Põe em vigor uma memória comum

entre ele e seu auditório, e nela pode navegar em avanços e retomadas, sempre sugerindo

um passo adiante, mas com a certeza de que está conseguindo comunicar sua história.

“Todo funcionamento de um sistema comunicativo supõe a existência de uma memória

comum da coletividade. Sem memória comum é impossível ter uma linguagem comum51”,

já nos preveniu o semioticista russo Iuri Lotman.

O V Império do qual tratará Antonio Vieira, assim se chama por vir depois dos

impérios Assírio, Persa, Grego e Romano. Ele seria a concretização da simbólica pedra

monumental que rola de um monte e destrói gigantesca estátua de pé de barro, que tem seu

corpo composto de diferentes materiais nobres, que vão decrescendo em valor desde a

cabeça, feita de ouro, até o pé de barro destruído pela pedra. Cada material representa um

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império já passado, havendo desgaste de valor na passagem dos impérios e, claro, dos

tempos.

A estátua também dá a idéia de falta de unidade, já que é composta por diferentes

materiais. O valor dos materiais é dado pelos homens, por isso arbitrários. A estátua traz

também consigo a carga de idolatria nociva à fé monoteísta. Mas a enorme rocha que desce

do morro tem unidade, coesão e por isso é um corpo só, sem hierarquia de metais ou

minérios. Não é um ídolo criado e instituído. É uma rocha, sem forma definida e tem

movimento próprio, ação, é uma parte do todo do Deus monoteísta que se manifesta na

natureza. Ao atingir o pé de barro, material que representa o Império mais fraco que passou

pelo mundo, desfaz a estátua e, assim, desfaz a falta de unidade dos povos, impondo-se

como único império universal representado no corpo da grande pedra que tomará o mundo.

Esta imagem, como todos sabemos, faz parte do Antigo Testamento52. Ela é produto

do sonho do imperador Nabucodonossor, e foi interpretada pelo profeta Daniel, que viu na

grande pedra destruidora da estátua, a vinda do maior império que irá se estender sobre a

Terra, o império do Deus do monoteísmo de tradição judaica (Dan. 2:35). Este texto foi

retomado muitas vezes e compareceu em diversas profecias cristãs, que sempre enfatizaram

a figura do V e Último Império correspondente ao papel do cristianismo se espalhando pelo

mundo para criar a unidade entre os povos numa só crença, ou “verdade”.

Aqui Vieira já irá eleger o V e Último Império de Cristo na terra encarnado em uma

nação escolhida. Fará ressonar textos proféticos da escritura bíblica, de tradição judaico-

cristã, em textos da tradição portuguesa. Desde já mostra seu entendimento de que este V

Império é manifesto em um Estado político, correspondente ao poder verdadeiro da

presença divina na terra. Desta forma, sua concepção religiosa é também política. Expressa

sua crença de que o corpo político corresponde ao corpo divino ainda encoberto da verdade

divina. Então une divino e secular quando constata um Estado eleito como representante da

majestade de Deus na Terra. E, procedendo de maneira decifradora, aponta, sem pestanejar,

a nação que irá corresponder ao papel de formadora do V Império Universal Cristão. E não

51 LOTMAN, Iuri M., La Semiosfera II: semiótica de la cultura Del texto, de la conducta y Del espacio, Edición de Desiderio Navarro, Madrid, Ediciones Cátecra, 1998, p. 155. 52 Cf. LIMA, Luís Filipe Silvério. Padre Vieira: Sonhos Proféticos, Profecias Oníricas. O tempo do Quinto Império nos Sermões de Xavier Dormindo. São Paulo, Humanitas, 2004. SILVA, Rafael Rodrigues da. Edição e Heresia. O livro de Daniel. Tese de Doutorado defendida em 2006 no Programa de Comunicação e Semiótica da PUC/SP.

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é de repente que chega a essas conclusões, mas sempre reiterou a excelência da nação

escolhida em seus Sermões, coroando esse papel na História do Futuro, clarificando e

dando brilho ao nome de Portugal e sua expansão.

Muitos são os exemplos enlaçando a história da nacionalidade portuguesa com

personagens e fatos, tanto míticos como reais, desenvolvidos engenhosamente pelo padre

jesuíta para confirmar Portugal como nação do mundo cabeça do V Império. Não poderia

dar conta, e mesmo estaria me desviando demais dos interesses dessa pesquisa, se tratasse

com pormenores desta matéria. Mas de algumas construções neste sentido não posso me

furtar, pois parecem de grande importância para o desenvolvimento de um texto que

colaborou com aspectos do imaginário brasileiro em sua formação.

Os esforços do padre em seus Sermões e na História do Futuro são de provar que

Portugal sempre esteve destinado, como nação, a um futuro glorioso, com papel importante

para o termo da história secular e estabelecimento da aliança definitiva com o Criador. Já

no simbolismo da bandeira de Portugal (veja que sempre descobrirá nos símbolos

nacionais, políticos, a manifestação do divino) encontra sinais do povo eleito por Deus. É

notável como consegue realmente, ao descascar o significante, provocar um jorro de

significados em favor do seu raciocínio. Nada está por acaso no escudo português, e nada

estará fora do lugar no discurso do padre. Bem analisou Alcir Pécora53 a seqüência que

iremos mostrar a seguir. É um impulso voluntário de Portugal para expandir-se pelo

mundo, um favor divino para esse impulso, que busca confirmar Vieira. Ao falar dos “trinta

dinheiros” com que foi vendido Cristo – que aparecem nas quinas do escudo português – e

usado mais tarde, segundo as Escrituras, na construção de um cemitério de peregrinos, o

padre Antonio Vieira irá fixar uma analogia bastante complexa:

E que proporção tem o escudo de Portugal com o enterro dos peregrinos, para que o preço

de um seja esmalte do outro? Grande proporção. Quis Cristo que o preço da sepultura dos peregrinos

fosse o esmalte das armas dos portugueses, para que entendêssemos que o brasão de nascer

português era obrigação de nascer peregrino. Com as armas nos obrigou Cristo a peregrinar, e com a

sepultura nos empenhou a morrer. Mas, se nos deu o brasão, que nos havia de levar da pátria,

também nos deu a terra, que nos havia de cobrir fora dela. Nascer pequeno e morrer grande é chegar

a ser homem.

53 PÉCORA, Alcir. Op. cit., p. 232.

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Por isso nos deu Deus tão pouca terra para o nascimento, e tantas terras para a sepultura.

Para nascer pouca terra, para morrer, toda a terra; para nascer, Portugal, para morrer, o mundo54.

Dentre a complexa riqueza discursiva do Sermão acima, a questão do tempo e do

movimento retorna como sempre. A vocação de peregrinar do povo português embute a

idéia de ocupar o mundo todo. Ter nascido em terra pequena para morrer em terra grande,

estabelece o processo de maturidade daquela nação que, quanto mais se estende no tempo,

mais se expande no espaço. Claro que está sempre enaltecendo as grandes navegações, a

descoberta do novo mundo, sendo Portugal um dos principais personagens dessa aventura.

E todas estas características da eleição de um povo já estariam prognosticadas nos sinais do

próprio escudo de Portugal, um dos símbolos máximos da representatividade de um povo.

Os portugueses já nascem com essa sina. Não há como escapar, mas só assumir seu destino.

Mas vai mais além, já na História do Futuro, quando evoca uma carta de São

Bernardo a Dom Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal. Os sinais ainda encobertos já

estão, progressivamente, dando as caras, sendo personificados pelos acontecimentos do

presente observado por Vieira, principalmente no evento da Restauração:

São Bernardo, em uma carta escrita a El-Rei D. Afonso Henriques, com quem tinha

particular amizade e íntima correspondência, acerca das cousas presentes e futuras do Reino,

profetizou com admirável clareza o termo dos sessenta anos de castigo e a continuação e a sucessão

de reis portugueses, antes e depois dele. A carta é a que segue, conservada em muitos arquivos deste

Reino e divulgada fora dele muitos anos antes da nossa Restauração: “Dou graças a Vossa Senhoria

pela mercê e esmola que nos fez do sítio e terras de Alcobaça para os frades fazerem mosteiro em

que sirvam a Deus, o que em recompensação desta, que no Céu lhe pagará, me disse lhe certificasse

eu da sua parte que a seu Reino de Portugal nunca faltariam Reis Portugueses, salvo se pela graveza

de culpas por algum tempo o castigar. Não será, porém, tão comprido o prazo deste castigo, que

chegue a termo de sessenta anos. De Claraval, 13 de Março de 1136. Bernardo”55.

54 VIEIRA, Padre Antonio, Sermão de Santo Antonio, em Sermões, vol. III, p. 24. 55 VIEIRA, Padre Antonio, História do Futuro, p. 200. Na nota 6 desta página do exemplar da História do Futuro a que estamos nos remetendo, o organizador diz que a carta de São Bernardo é uma clara mistificação de Nicolau Monteiro em Vox Turturis, Portugaliae gemens ad Pontificem Summum pro Rege suo (ut audiatur) juste gemit ac clamat, Lisboa, 1649. Diz também que Besselaar, profundo estudioso de Vieira, também chama a atenção para a falsidade da carta, achando incrível que Vieira tenha sido vítima de tremendo embuste. Mas talvez não haja caso de apontar-se o padre como vítima, quando vimos que tem propósitos claros de extrair provas máximas de confirmação da veracidade de sua escritura, misturando textos de procedências várias.

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É dada à Restauração estatuto de evento marcante da história de Portugal para

continuar seu destino glorioso como representante secular do divino no mundo. A

seqüência acima traz Dom Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, fundador da nação e

personagem importante da narrativa mítica dessa fundação nacional, quando torna-se

receptor direto da voz do Verbo Encarnado que lhe transmitiu a missão, do reino recém

nascido, Portugal, de ser líder da formação do Seu Império Universal na terra56. Logo em

seguida, através da carta de São Bernardo a Dom Afonso Henriques, 60 anos de castigo são

prognosticados no futuro dos portugueses, período de purgação do reino por ter descuidado

da concórdia entre seus reinantes, simbolizado na perda da coroa, quando desapareceu o

último rei, Dom Sebastião, deixando a trono sem herdeiro. E finalmente a Restauração

anuncia a concórdia e fortaleza da coroa portuguesa unida novamente entre si e com o

poder divino, retomando o caminho do cumprimento dos desígnios de Deus como fora

anunciado na fundação do reino.

É interessante notar o processo de unir utopia pessoal e utopia coletiva e, ao mesmo

tempo, comunicar ao destinatário o devir histórico desenvolvido por Vieira. Poderíamos

distinguir até mesmo etapas onde aciona uma memória portuguesa, para iluminar o

caminho retomado de suas glórias, uma memória mundial, para iluminar o caminho da

56 “[...] O Senhor, com um tom de voz suave, que minhas orelhas indignas ouviram, me disse: “Não te apareci deste modo para acrescentar tua fé mas para fortalecer teu coração neste conflito e fundar os princípios do teu reino sobre pedra firme. Confia, Afonso, porque não só vencerás esta batalha, mas todas as outras em que pelejares contra os inimigos da minha cruz. Acharás tua gente alegre e esforçada para a peleja e te pedirá que entres na batalha com título de rei. Não ponhas dúvida, mas tudo quanto te pedirem lhe concede facilmente. Eu sou o fundador e destruidor dos reinos e impérios e quero em ti e teus descendentes fundar para mim um império, por cujo meio seja meu nome publicado entre as nações mais estranhas. E para que teus descendentes conheçam quem lhe dá o reino, comporás o escudo de tuas armas do preço com que remi o gênero humano e d’aquele porque fui comprado dos judeus e ser-me-há o reino santificado, puro na fé e amado por minha piedade”. Eu, tanto que ouvi estas cousas, prostrado em terra o adorei dizendo: “Porque méritos, Senhor, me mostrais tão grande misericórdia? Ponde, pois, vossos benignos olhos nos sucessores que me prometeis e guardai salva gente portuguesa. E se acontecer que tenhais contra ela algum castigo aparelhado, executai-o antes em mim e em meus descendentes e livrai este povo, que amo como único filho”. Consentindo nisto, o Senhor disse: “Não se apartará deles nem de ti nunca minha misericórdia, porque por sua via tenho aparelhada grandes searas e a eles escolhidos por meus segadores em terras mui remotas”. Ditas estas palavras desapareceu e eu cheio de confiança e suavidade me tornei para o real. E que isso passasse na verdade, juro eu D. Afonso pelos Santos Evangelhos de Jesus Cristo, tocados com estas mãos. E portanto mando a meus descendentes que para sempre sucederem, que em honra da Cruz e cinco chagas de Jesus Cristo tragam em seu escudo cinco escudos partidos em Cruz, e em cada um deles os trinta dinheiros e por timbre a serpente de Moisés, por ser figura de Cristo e este seja o troféu de nossa geração. E se alguém intentar o contrário, seja maldito do Senhor e atormentado no Inferno com Judas o traidor. Foi feita a presente carta em Coimbra, aos 29 de Outubro, era de 1152”. Este texto também esteve presente na construção do discurso mítico que se produziu em torno de Dom Sebastião na época em que Portugal esperava o rei para

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humanidade, uma memória da tradição judaico-cristã, unindo todas as memórias anteriores,

dando o tom de sacralidade das revelações que vai entregando. Com isso busca comunicar à

totalidade do seu pretendido auditório universal, o desenvolvimento do devir histórico do

mundo possível pelos últimos acontecimentos apontados por ele, que já estavam

anunciados em profecias anteriores e permitem compreender a projeção do futuro para bem

próximo, contemporâneo ao presente dele e do auditório com que tenta conjuminar-se.

Vieira pratica procedimentos comunicativos de tradições ancestrais que

permanecem no tempo/espaço, promovendo sua atualização. Manipula a memória da

cultura, retira objetos, narrativas, textos sagrados ou profanos, gestos, comportamentos etc

de um estado ossificado, fossilizado, reavivando-os como textos de cultura, passando a

ganhar movimento em outro território consagrado à ação e não mais à contemplação, como

já vimos anteriormente. E faz isso com mais eficácia ao amalgamar um conjunto de textos

antes produzidos em separado e vistos como impossíveis de diálogo.

Iuri Lotman nos aproxima da compreensão da possibilidade de como se dão estes

processos comunicativos e da memória em favor da atualização de elementos tradicionais:

O significado do símbolo não é algo constante, e não devemos imaginar a memória da

cultura como um depósito no qual ficam amontoadas mensagens, invariantes em sua essência e

sempre equivalentes a si mesmas. [...] A memória não é um depósito de informações, mas sim um

mecanismo de regeneração das mesmas. Em particular, por uma parte, os símbolos que se guardam

na cultura levam em si informações sobre os contextos [ou também as linguagens], e, por outra parte,

para que essa informação “se desperte”, o símbolo deve ser colocado em algum contexto

contemporâneo, o que inevitavelmente transforma seu significado. Assim, a informação que se

reconstrói, realiza-se sempre no contexto do jogo entre as linguagens do passado e do presente57.

Vieira trabalha matérias da memória retirando-as do limbo, em etapas, pois uma

coisa depende da outra na revelação do que ainda está oculto e já vai ser iluminado. Desta

maneira, tendo Portugal, com a Restauração retomado seus rumos na história da

humanidade, agora é a vez de compreender o papel das expansões territoriais realizadas

com mais intensidade no século XVI, dando nas descobertas de terras e gentes novas. É o V

Império já mostrando sua face, já que, por ser universal, tem condições agora de se formar.

retomar a coroa perdida para Espanha. Ver com maiores detalhes meu livro Dom Sebastião no Brasil: Fatos da Cultura e da Comunicação em Tempo/Espaço, p. 58-59.

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Ortélius já dizia, e Vieira cita sua obra Theatrum Orbis Terrarum: “O Mundo que

conheceram os Antigos se dividia em três partes, África, Europa, Ásia: depois que se

descobriu a América, acrescentou-lhe à nossa idade esta quarta parte; espera-se agora a

quinta, que é aquela terra incógnita, mas já conhecida, que chamamos Austral58”. O mundo

do presente da História do Futuro era o mundo pós-descobrimentos, o mundo da Terra

redonda, das terras alargadas. Mesmo esta Austral já era conhecida, e assim todo o mundo

estava iluminado, a espera da formação do V Império ainda encoberto, mas com todos os

elementos precisos para a sua formação.

Este foi o Mundo passado e este é o mundo Presente, e este será o Mundo Futuro; e destes

três mundos unidos se formará (que assim o formou Deus) um Mundo inteiro. Este é o sujeito da

nossa História, e este o Império que prometemos do Mundo. Tudo o que abraçar o mar, tudo o que

alumia o sol, tudo o que cobre e rodeia o céu, será sujeito a este Quinto Império; não por nome, ou

título fantástico, como todos os que até agora se chamaram Impérios do Mundo; senão por domínios,

e sujeição verdadeira. Todos os reinos se unirão em um cetro, todas as cabeças obedecerão a uma

suprema cabeça, todas as coroas se rematarão em um só diadema, e esta será a peanha da Cruz de

Cristo59.

Em sua História do Futuro, Vieira, através destes mecanismos de uma memória do

futuro, irá urdir toda a trama que comporá sua revelação. Mas gostaria de chamar a atenção

de apenas mais um fio desta trama, na qual ele faz uma leitura espetacular de uma

passagem de Isaías, capítulo 18, versículo 1, onde reconhece o Brasil e sua gente autóctone

como já prevista na história do mundo escrita pela Bíblia, principal fonte de suas

revelações como historiador do futuro

Num pequeno trecho bíblico, também de teor profético, Isaías anuncia o reino de

Deus finalmente descortinado quando um povo selvagem, ainda desconhecido, localizado

atrás da Etiópia, em terreno cortado por enorme quantidade de rios, for descoberto e levado

a conhecer a palavra divina. Antonio Vieira faz uma tradução detalhada deste texto bíblico

e acredita provar, utilizando-se de seus conhecimentos sobre o estado do Maranhão e seus

autóctones, tratar-se este povo do povo ao qual Isaías se refere. Aqui, de modo brilhante, o

57 LOTMAN, Iuri M., op. cit., p. 157. 58 VIEYRA, Padre Antonio, História do Futuro, p. 141. 59 Idem, ibidem.

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padre constrói um pensamento múltiplo, mostrando conhecimentos magistrais de descrição

etnográfica e da etimologia das palavras indígenas, buscando criar um texto promotor de

encaixes de material completamente heterogêneo. Vejamos uma amostra:

Conhecidos já pela fortuna os descreve o Profeta, e muito particularmente pelo exercício e

arte da navegação, em que eram e são os Maranhões mui sinalados entre os Índios, por serem eles, ou

os primeiros inventores da sua náutica, como gente nascida e mais criada na água que na terra; ou

certamente porque com sua indústria adiantaram muito a rudeza das embarcações bárbaras, de que os

primeiros usavam. Tanto assim, que a principal nação daquela terra, tomando o mesmo nome da arte

de navegar e das mesmas embarcações em que lá navegavam, se chamou Igaruanas, porque as suas

embarcações, que são as canoas, se chamarão na sua língua igara, e deste nome igara derivavam a

denominação de Igaruanas, como se disséssemos, os náuticos, os artífices, ou os senhores das

naus60.

Ou ainda:

Do que temos dito até aqui ficará mais fácil de entender aquele grande enigma do Profeta,

que está nas primeiras palavras desse texto [refere-se ao capítulo 18 de Isaías]: Vae terrae cymbalo

alarum; o qual foi sempre o que maior trabalho deu aos intérpretes e os obrigou a dizerem cousas

mui violentas e impróprias, como aqueles que falavam a adivinhar, e não adivinhavam nem podiam.

Os Setenta Intérpretes, em lugar de terrae cymbalo alarum, leram terrae navium alis e uma e outra

cousa significaram as palavras de Isaías; porque os nomes hebreus de que estas versões foram

tiradas, têm ambas as significações e querem dizer: Ai da terra que tem navios com asas; ou, ai da

terra que tem sinos com asas. Se são sinos, como são navios? E se são navios, como são sinos?

Esta dificuldade foi até agora o torcedor de todos os entendimentos de todos os expositores

sagrados, de 1600 anos a esta parte; mas como podia ser que entedessem o enigma da terra, se não

tinham as notícias, nem a língua dela? Para inteligência do verdadeiro entendimento deste texto ou

enigma, se há-de supor, que a palavra latina cymbalum, com que significamos nossos sinos de metal,

significa também qualquer instrumento com que se faz som e estrondo; [...]

Também se há-de supor que os Maranhões usavam de uns instrumentos a que chamavam

maracás, não de metal, porque não o tinham, senão de cabaços ou cocos grandes, dentro dos quais

metiam seixos ou caroços de várias frutas, duros e acomodados a fazer muito estrondo e ruído,

servindo-se dos menores nas festas e bailes e dos maiores nas guerras. [...]

As maiores embarcações dos Maranhões chamam-se maracatim, derivado o nome da

palavra maracá, que, como dissemos, significa entre eles sino: e a razão de darem este nome às suas

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maiores embarcações era porque, quando iam às batalhas navais, quais eram ordinariamente as suas,

punham na proa um destes maracás muito grandes, atados aos gurupés ou paus compridos; e bulindo

de indústria com eles, além do movimento natural das canoas e dos remeiros, faziam um estrondo

barbaramente bélico e horrível; e porque a proa da canoa se chama tim, tirada a metáfora do nariz dos

homens ou do bico das aves, que têm o mesmo nome, e juntando a palavra tim com a palavra

maracá, chamavam àquelas canoas ou embarcações maiores Maracatim; e este nome usam ainda

hoje, e com ele nomeiam os nossos navios61.

A etimologia é um dos métodos operacionais mais utilizado por Vieira em seus

textos. Antonio J. Saraiva aponta muito bem esse método, chamando a atenção para o

processo empregado com a finalidade de “destruição” da palavra. Quer dizer que não

devemos nos enganar quanto ao uso feito da etimologia por Vieira. Enquanto para outros

autores pode ser um instrumento que permite precisar o sentido e determinar o limite de um

signo, Antonio Vieira faz exatamente o contrário para possibilitar significações novas. Ele

“procura na palavra uma raiz à qual atribui um ou vários sentidos, não importa em que

língua. Essas novas significações ajudam a ‘interpretar’ a palavra em questão”62.

Diríamos mais; também consegue, abrindo os limites do significado de uma palavra

com sua prática etimológica, ter condições de equiparar e comparar duas palavras de

origens completamente diferentes, aproximando objetos e a história de povos antes não

previstos nos costumes e narrativas que compõe culturas diversas. Só assim consegue

introduzir o povo autóctone do Maranhão nos textos da Sagrada Escritura da qual se serve

para compor sua História do Futuro. Com isso, podemos nos arriscar a dizer que seu

processo escritural vai ao encontro do seu sistema de crença e funde-se a ele.

O povo que Isaías profetizava como a última população a ser descoberta para que se

desse a nova e definitiva aliança com Deus era uma terra que se utilizava do cymbalo

alarum (sino alado) ou navium alis (navios com asas) para navegar. Difícil combinação,

imagem absurda que poderia querer ser a alegoria de algo, mas que para Vieira é objeto

concreto, com outro nome, composto de outra etimologia que dará significado renovado à

composição de palavras vindas do latim e, ao mesmo tempo, trazer o povo das novas terras

60 Idem, p. 323. 61 Idem, pp. 305-307 e ss. 62 SARAIVA, Antonio J., op. cit, p. 16 e seguintes.

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como personagem participante e imprescindível para a possibilidade de formação do V

Império.

O caso aqui concorda com o olhar de Alcir Pécora sobre a questão da etimologia em

Vieira:

Importante aí (está falando do método etimológico) é o esforço de recomposição do mistério

essencial que significa o texto bíblico, cuja origem está na inspiração do Verbo. Mas isso, a meu ver,

tem que ser entendido como um movimento especular de ida e volta: assim como se remonta a uma

raiz misteriosa, assim também a descoberta dela recobre de mistério a relação entre termos

diferenciados do presente – quer dizer, se a etimologia vai buscar na origem dos conceitos a sua

razão oculta, ela o faz de maneira a projetar essa razão em conjunto de dados atuais que, antes dessa

projeção, pareciam estranhos ou indiferentes a ela63.

Trazer simplesmente o profeta Isaías ao seu texto seria banal, mas achar nas

palavras de Isaías a inclusão dos povos das novas terras no plano de sua História do

Futuro, é ousadia necessária para dar sentido às sua ambições. Sem medir as

conseqüências, ou muito ciente delas, Vieira ultrapassa os vacilos em que poderia incorrer

já que escreve, pensa, constrói sua obra de dentro da instituição que se quer dona da

“verdadeira” palavra divina. Mas ele não se trai e, ao utilizar o método etimológico,

consegue coerência e honestidade com a Igreja Católica, mas além e acima disso,

impulsiona-se à coerência e honestidade com seu próprio projeto e consigo mesmo, na

alegria de desvendar os mistérios divinos no presente, em projeção ao futuro.

Vieira faz defesa acalorada do Brasil e de sua gente primeva, como importante local

que vivia incógnito, mas finalmente tinha sido descoberto para que se desse a concretização

do projeto do V Império cristão universal. E manifestou, com isso, sua postura de inclusão

do diferente na maravilhosa aventura humana que anunciava. Claro que o outro, o diferente,

o gentio, deveria ser agregado aos costumes cristãos. Mas isto não impediu (ao contrário,

diria que até estimulou) que o padre tivesse o cuidado de conhecer e, mais que isso, até de

se encantar com o outro e seus costumes, promovendo encaixes inusitados, através de sua

escritura, de séries culturais bastante diferentes.

63 PÉCORA, Alcir, op. cit., p. 193, nota 43.

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Este movimento, podemos imaginar, era complexo e perigoso tanto como confecção

de idéias na mescla de diversos textos para um fim comum, quanto na postura humana

diante do índio; coisa bastante difícil na época – diria até nos dias de hoje –, mas que o

padre jesuíta vinha defendendo a tempos, inclusive em seus famosos Sermões.

**********

Mas, voltando ao papel do Encoberto na História do Futuro, é importante notarmos

que o entendimento de Vieira não se restringe a um indivíduo específico. Tomou, como

grande referência desta figura mítica, as Trovas proféticas do sapateiro de Trancoso,

Gonçalo Annes Bandarra. O texto de Bandarra já havia sido citado como “evangelho do

sebastianismo” na época em que o rei desaparecido ganha uma existência mítica. Vários

autores acreditavam que o Encoberto seria Dom Sebastião desaparecido, e aguardavam sua

volta no período em que Portugal foi submetido à Coroa espanhola. Uma seqüência do

texto profético em que aparece a figura do rei Encoberto é esta:

Já o Leão é experto

Mui alerto.

Já acordou anda caminho.

Tirará cedo do ninho

O porco, e é mui certo.

Fugirá para o deserto,

Do Leão, e seu bramido,

Demonstra que vai ferido

Desse bom Rei Encoberto64.

64 BANDARRA, Gonçalo Annes. “Profecias” do Bandarra. Coleção Janus; Série História; Direção: Antonio Carlos Carvalho, Vega, 1996, 5a edição, p. 57. Ver com mais detalhes a importância de Bandarra para as concepções de Vieira e para o processo de elaboração da crença sebastianista em João Lucio de Azevedo, A Evolução do Sebastianismo. Lisboa, Editora Livraria Clássica, 1947; Antonio Machado Pires, Dom Sebastião e o Encoberto. Estudo e antologia, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1969; Alfredo Bosi, “Vieira e o Reino deste Mundo”, em Carlos Alberto Iannone et alii (org.). Sobre as Naus da Iniciação. São Paulo, Unesp, 1998; Jacqueline Hermann, No Reino do Desejado: a construção do sebastianismo em Portugal nos séculos XVI e XVII. São Paulo, Cia. Das Letras, 1998; e em meu livro já citado Dom Sebastião no Brasil: Fatos da Cultura e da Comunicação em Tempo/Espaço. São Paulo, editora Perspectiva, 2005, além de muitos outros referidos nas obras acima mencionadas.

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Anteriormente vimos que o padre jesuíta, no período da dependência da Coroa

portuguesa à espanhola, tinha Dom Sebastião como o rei Encoberto, assim como os adeptos

desta crença naquela época. Entretanto, Vieira deixa de ver o Encoberto em um indivíduo

específico. Assim passou de Dom Sebastião a Dom João IV e, quando este morreu, vê em

cada rei português, que vai se sucedendo, a personagem do Encoberto em potencial de

encarnação da figura mítica e política responsável por ocupar a cabeça do V Império.

Podemos compreender a postura de Vieira quanto à identificação sucessiva do rei

Encoberto, quando nos damos conta de que ele é profundo seguidor da concepção medieval

sobre a monarquia. O soberano monarca, na Idade Média, é visto como possuidor de dois

corpos (um corpo material representativo da hierarquia dos homens, com carisma para levar

uma nação em estado de ordem diante do mundo, e um corpo místico, representante da

parte divina encoberta na instituição secular que corresponde à divina). Ao rei creditava-se

poderes sobrenaturais, inclusive de cura e imortalidade65.

Mas há um outro detalhe importantíssimo, que consta em estudos de Kantorowickz,

sobre a “pessoa particular” e a “pessoa mística” do rei. Ele nos ajuda a esclarecer a posição

de Vieira quanto ao caso sucessório de reis que incorporariam a figura do Encoberto.

Kantorowickz revela peculiaridades jurídicas quanto à continuidade do corpo natural do rei;

Certa continuidade do corpo natural do rei – ou dos reis individuais atuando em sucessão

hereditária como “guardiães da Coroa” – era atestada pela idéia dinástica. A perpetuidade dos

direitos soberanos do corpo político integral, do qual o rei era a cabeça, era entendida como situada

na Coroa, por vaga que possa ter sido essa noção. Ambos os princípios – o da sucessão contínua de

indivíduos e o da perpetuidade corporativa do coletivo – parecem ter coincidido em uma terceira

noção, sem a qual ficariam quase incompreensíveis as especulações em torno de “dois corpos” de um

rei: a Dignitas. [...]

A Coroa [...] era algo que se referia principalmente à soberania da totalidade do corpo

coletivo do reino, de sorte que a preservação da integridade da Coroa tornou-se uma questão “que

toca a todos”. A Dignidade, contudo, diferia da Coroa. Referia-se principalmente à singularidade do

cargo real, à soberania investida no rei pelo povo, e que residia individualmente apenas no rei66.

65 BLOCH, Marc. Os Reis Taumaturgos. São Paulo, Companhia das Letras, 1993. 66 KANTOROWICKZ, Ernst H. Os Dois Corpos do Rei: um estudo sobre teologia política medieva. Tradução de Cid Knipel Moreira. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 233.

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Não se trata de dignidade apenas como termo representativo de questões morais,

como algo que luta contra a indignidade, embora também este sentido esteja embutido na

noção do termo. A dignidade era uma qualidade que investia o rei de soberania emanada do

povo e também de um corpo místico imortal. Em vários decretos papais do século XIII,

relativos às questões de soberania, era trazida a seguinte glosa da expressão dignitas:

“Dignitas numquam perit”, “A Dignidade nunca perece, embora os indivíduos morram todo

dia”; ou então: “[...] porque predecessor e sucessor são entendidos como uma só pessoa, já

que a Dignidade não morre”67. Veja primeiro a idéia de continuidade deste núcleo que não

perece nunca e dá a verdadeira realeza a quem tem ele incorporado. Mas também temos a

noção de unidade, de corporação, de linhagem que se estende no tempo, estando presente

no predecessor e no sucessor, o que nos leva a pensar que mesmo o indivíduo que morre,

como rei, permanece vivo na eternidade da Dignitas.

Uma imagem elaborada por comentadores da época nos dá analogia bastante

clarificadora da composição processual com que a dignitas vai se sucedendo no rei e o rei

se sucedendo nela, o que o torna vivo como corpo coletivo mesmo após a morte do

indivíduo:

Deve-se lembrar que o pássaro mítico era, de fato, uma criatura extraordinária: sempre havia

uma Fênix viva em dado momento, a qual, após haver vivido seu ciclo de muitos anos – quinhentos

ou mais – colocava seu ninho em chamas, atiçava o fogo com suas asas e perecia nas chamas,

embora das cinzas incandescentes se elevasse a nova Fênix. [...] Na arte pagã, bem como na cristã, a

Fênix normalmente significava a idéia de imortalidade, de perpetuitas e aevum. O “pássaro

autogerado”, contudo, exemplificava também a virgindade e, além disso, servia como símbolo da

ressurreição de Cristo e dos cristãos em geral. Na verdade, era o tema da ressurreição que Joannes

Andreae se referia em sua extensa glosa sobre a Fênix. Essa questão, contudo, era apenas lateral,

pois, juridicamente, a singularidade e exclusividade do pássaro mostrava ter uma importância maior.

De qualquer modo, Baldus, ao resumir os argumentos sobre a decreta, Quoniam abbas, valia-se

desse aspecto do símbolo, o qual permitia-lhe tirar uma acurada conclusão filosófica: “A Fênix é um

pássaro único e singularíssimo no qual toda espécie (genus) é conservada no indivíduo”.

Evidentemente, Baldus tinha em mente uma analogia clara. Para ele, a Fênix representava um dos

casos raros em que o indivíduo era, ao mesmo tempo, a totalidade da espécie existente, de sorte que a

espécie e o indivíduo, de fato, coincidiam. A espécie, naturalmente, era imortal; o indivíduo mortal.

O pássaro imaginário, portanto, revelava uma dualidade: era, a um só tempo, Fênix e espécie-Fênix,

67 KANTOROWIKCZ, Ernst H., op. cit, p. 234-234.

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mortal como indivíduo, embora também imortal, porque era a espécie inteira. Era ao mesmo tempo

individual e coletiva, porque a espécie inteira reproduzia não mais que um único espécie por vez68.

Os autores citados acima, Joannes Andreae e Baldus, tentavam, a partir da analogia

entre a Fênix e a noção de dignitas, clarificar o sentido do último termo.

Vieira incorporou todos esses argumentos e analogias para elaborar seu

entendimento sobre o rei Encoberto tão aguardado. Mesmo que morresse cada um dos reis

com potencial para ser o Encoberto, este estaria vivo na imortalidade do corpo coletivo da

linhagem dos reis portugueses, pois a sucessão advinda da mortalidade do indivíduo era

inevitável, porém era assegurada a imortalidade dos reis sucessivos na dignidade do corpo

coletivo no qual atuava a dignitas. Esse rei ainda Encoberto, irá, ao ser descoberto, terminar

a linha sucessória onde ele está potencialmente encoberto. Quando finalmente descoberto,

terá mais que a nomeação de rei, mas será o Vice-Cristo, o último rei do último império,

que será do Cristo, na terra. Por isso, a encarnação do Encoberto, para o padre Antonio

Vieira, irá estar sempre em aberto, dependendo de sua revelação para se chegar ao futuro. A

sucessão de reis pode ser vista como natural, em seu texto, e não como enganos de ilusão.

Pelo menos é assim que faz convergir o entendimento do seu auditório. É notável,

portanto, que já em idade avançada, ainda anunciava o rei Encoberto de linhagem

portuguesa, sempre imantado de um corpo místico e outro político:

[...] todo este texto de Daniel não se entende da pessoa propriamente de Cristo, senão da pessoa do

seu segundo vigário no império temporal, o qual império se levantará depois de vencida a potência

do turco, com nome, com dignidade, com majestade, e com reconhecimento de imperador universal

do mundo. A prova no mesmo texto é milagrosa: Ecce quasi Filius hominis veniebat, et ad antiquum

dierum pervenit, et dedit ei potestatem et honorem: E veio – diz – o quase Filho do homem, e se

presenteou diante do Eterno Padre, o qual lhe deu o reino, a honra e o império universal sobre todas

as gentes. – Note-se muito o quasi Filius hominis. – Quem é o Filius hominis, e quem é o quasi

Filius hominis? O Filho do homem é Cristo; o quase Filho do homem é o quase Cristo, ou Vice-

Cristo. De sorte que, assim como o primeiro Vigário de Cristo, que é o Sumo Pontífice, pela

jurisdição universal que tem sobre toda a Igreja, se chama Vice-Cristo no império espiritual, assim o

segundo vigário do mesmo Cristo, pelo domínio universal que terá sobre todo o mundo, se chamará

também no império temporal Vice-Cristo: Quasi Filius hominis. – E este é o império quinto e último,

68 Idem, p. 236.

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que se há de levantar depois da extinção do turco, não na pessoa de Cristo imediatamente, senão na

de um príncipe seu vigário (vol. XXI, p. 416-417)69.

E Vieira levou esse sistema de crenças adiante até o fim de sua vida, aguardando, na

sucessão de cada rei lusitano, o descobrimento do rei Encoberto, tornado Vice-Cristo e líder

na formação do V Império cristão e último na história secular.

Por fim, o padre acaba promovendo uma leitura histórica como havia proposto, de

forma exuberante, em abundante número de páginas, revelando nomes de personagens e de

regiões, mesmo sem finalizar a sua História do Futuro, por não ter visto o rei Encoberto e

nem a formação do V Império como tanto almejava se fazer partícipe ativo.

Temos, com a proposta do padre, um texto em devir, que nunca se finalizou por não

ter se concretizado o fim dos tempos. É uma obra utópica por buscar o tempo todo ser uma

história do futuro – termo inédito sendo construído como método, ao mesmo tempo em que

descreve seu objeto ainda a ser concretizado; e é também uma obra profética por tratar de

uma memória do futuro. Em nosso exercício memorialístico nunca captamos a “realidade”

física e palpável das coisas, de modo que passado e futuro constituem-se em construções

dentro do tempo de um espaço presente. O esforço de Vieira é a todo momento apresentar

seu ponto de vista da maneira mais concreta possível, procurando achar um mínimo de

ressonância do seu enunciado nos possíveis destinatários, buscando conjugar sua

construção de passado e futuro às concepções destes destinatários em seu presente. Sua

grande utopia é, desta forma, o da unidade de pensamento em direção ao seu ponto de vista,

exercitando toda sua mestria retórica de convencimento em um enunciado barroco

proliferante em imagens do seu universo de vivência, para tentar abarcar a maioria dos

povos em direção à sua crença. Enfim, Vieira embrenha-se em sua obra investido da idéia

de uma história visionária.

**********

69 “Sermão da Palavra de Deus Desempenhada”, de 1688. Retirei este sermão de Vieira do livro de Alcir Pécora, Teatro do Sacramento, ao qual várias vezes nos remetemos até aqui. Capítulo “O Reino do Vice-Cristo”, pp. 254-255, nota 130.

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Poderia passar por nossas cabeças o pensamento de que este padre jesuíta

alimentava um grande egocentrismo, quando se diz apto a desvendar os mistérios do devir

histórico secular da humanidade prestes a se alçar a uma existência divina. Porém, ele deu

provas de sua honestidade sobre o seu próprio pensamento. Seus escritos custaram sua

presença diante da Santa Inquisição, e posterior condenação. No entanto, foi grande

defensor da autenticidade das profecias de Bandarra, que trouxe a promessa da vinda do

Encoberto em momento difícil do reino português. Além disso argumentou em favor de

suas leituras sobre textos proféticos tanto os da Bíblia, como os de procedências diversas,

não acompanhados do selo canonizador da Igreja. Nunca negou nenhuma destas matérias

que sedimentaram a construção da obra História do Futuro e as crenças nela disseminadas.

Jamais deixou de defender suas convicções a respeito do futuro do mundo. Utilizou

novamente sua grande verve retórica, lançando mão apenas de sua memória, em defesa

própria e em defesa do que acreditava, diante da Igreja, que acabou condenando-o por suas

idéias que confrontavam a ordem estabelecida70.

Magistral esta História do Futuro. Sem dúvida pode ser tomada como grande texto

amalgamado e entretecido a diversas outras utopias posteriores. Irá comparecer, mesmo de

modo não reconhecível em sua forma, mas presente com seu rico conteúdo, colaborando

em concepções escatológicas da religiosidade popular e em movimentos populares rebeldes

no Brasil, além de outros campos. Devemos então seguir cientes da importância do texto do

padre Antonio Vieira como grande obra, produzida no Brasil ainda colônia, que contém

material muito ligado ao complexo cultural sebastianista. Mesmo que em dado momento

desvincule-se de Dom Sebastião como o rei esperado, trata das mesmas esperanças

depositadas no jovem rei, ao trazer, de modo extremamente elaborado, o universo que

queria abordar. Vieira tem que ser visto no espaço cultural e social em que desenvolveu sua

obra. Pensador visionário, adere e rejeita ao mesmo tempo de acordo com sua busca e

decifração das coisas divinas ainda encobertas no plano terreno.

70 BOSI, Alfredo, “Vieira e o Reino deste Mundo”, em Carlos Alberto Iannone et alii. Sobre as Naus da Iniciação. São Paulo, Unesp, 1998.

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2. Rosa Egipcíaca: Uma Santa Popular e seu Matrimônio com o

Rei Encantado e Encoberto: Processos Comunicacionais e

Tradutórios em uma Profecia Mestiça na América

Como poderíamos perceber a transformação de um sujeito comum que passa a ser

reconhecido como um místico, ou profeta? O que o faz ser aceito como personalidade

mediadora, que entrega a revelação do Ser Criador à Sua criatura? Todo um processo do

profeta de fazer-crer em suas revelações tem que ver com sua capacidade de reconhecer a

religiosidade tradicional, na qual está inserido, e o seu entorno histórico (trabalha um

tempo/espaço passado). Através de sinais do seu aqui-agora, ele enxerga a si mesmo como

participante dos eventos descritos nas narrativas históricas de sua religião (trabalha um

tempo/espaço presente já previsto num tempo/espaço passado). Toma o passado de fatos

históricos que lê em sua tradição religiosa, e percebe sua contigüidade em sinais que lhe são

revelados no presente. (Já está, neste momento, traduzindo a matéria prevista em

enunciados sagrados e atualizadas em sinais do seu contexto presente). Vai além na prática

tradutória ao apontar fatos ainda não ocorridos, o futuro virtual e possível que está em devir

(em nosso caso, trabalha com um tempo/espaço messiânico, utópico e milenarista de outras

profecias e de textos de diversas procedências, como é próprio da religiosidade popular na

construção dos seus enunciados da, tanto escritos como orais.71).

Nesse processo, o profeta ganha uma clareza sobre sua condição social, histórica e

cultural atualizada, para poder desenvolver e re-elaborar os enunciados proféticos de sua

tradição que guardam uma “memória do futuro”. Esta memória em projeção, sugere nova

etapa da humanidade a ser vivida em uma ordem mundial renovada, à parte da ordem

71 Estou entendendo religiosidade popular amparado nos apontamentos de Paul Zumthor sobre o tema. Para ele a religiosidade popular de tradição judaico-cristã, é trabalhada em uma oralidade laicizada e se constitui em um processo tradutório que amplia e explode a dureza do significado das palavras da Sagrada Escritura. Elas deixam de ser apenas meio de transmissão de uma doutrina, para ganhar a competência de palavra fundadora de uma fé. A “verdade” da religiosidade popular é ligada ao poder vocal, perpetuada por discursos amparados em “...retalhos de Evangelhos aprendidos de cor, lembranças de histórias santas, elementos dissociados do credo e do Decálogo, afogados num conjunto móbil de lendas, de fábulas, de receitas, de relatos hagiográficos. Daí pode-se pensar a profundidade em que se inscrevem, no psiquismo individual e coletivo, os valores próprios e o significado latente desta voz;” ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz: A “Literatura” Medieval. São Paulo, Companhia das Letras, 1993, pp. 76 e 79. Cf. também a excelente obra de Vittorio Lanternari, As Religiões dos Oprimidos. Um Estudo dos Modernos Cultos Messiânicos. São Paulo, Perspectiva, 1974.

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secular, de acordo com uma ordem divina na qual já não existiria mais mediação entre

Criador e criatura.

Daí que o profeta, ao qual chamaremos a partir de agora de enunciador-intérprete,

que se concentra num núcleo de eventos anunciados pela religiosidade judaico-cristã, está

envolvido com textos de natureza peculiar. Em geral suas leituras, re-leituras, traduções,

transcriações provêm de profecias anteriores, que são construídas mediante o uso de figuras

de linguagem. Como se sabe, a figura de linguagem é toda expressão cujo significante

remete a outro significado que não o convencional, dito literal. Assim, os textos proféticos,

podemos adivinhar, podem receber inúmeras combinações de leituras atualizadas quando

diante das novidades trazidas pelo enunciador-intérprete.

A figura de linguagem, quando tratada como o coração do processo narrativo, –

sobretudo em textos proféticos – traz à tona vivências submersas no passado, sendo, por

isso, objeto de reconhecimento do passado. Em outro momento da profecia, a figura é

movida pelo desejo, recebendo o estatuto de configuração de coisas e tempos futuros. A

figura, neste caso, descola-se da sua forma aparentemente estática e mostra sua verdadeira

face de conhecimento antecipado, narrativa dos futuros, visão, profecia72.

Frisamos novamente que as imagens descritas nas profecias guardam consigo

possibilidades múltiplas de significados – a partir de um mesmo significante –, que

dependem da leitura dos sinais do passado e do presente de um sujeito-intérprete. Este

procura comprovar sua interpretação das figuras baseado em acontecimentos do seu tempo

presente.

Passado o momento de receber e interpretar a nova mensagem em seu contexto

presente, atento ao material tradicional de uma “memória do futuro” projetiva, o profeta

deixa de ser apenas um sujeito-intérprete e assume o papel de enunciador-intérprete. Irá

construir seu enunciado profético, conectando materiais de diversas proveniências, como

lendas, vidas de santos, fatos do seu presente etc. Ao mesmo tempo estará trabalhando

também com estratégias comunicacionais, preocupado em edificar um fazer-crer a ser

entregue aos destinatários de sua profecia.

Acontecimentos do seu dia a dia, e de tempos passados, apontam para a necessidade

de acontecimentos futuros, em favor da junção do tempo secular com o sagrado,

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configurando os finais dos tempo (escatologia judaico-cristã) e, conseqüentemente, da

história da humanidade. Dessa maneira, outra dimensão a ser atingida é esperada nestes

discursos apocalípticos; e, quando a dimensão esperada se concretizar, tudo estará revelado

e o homem finalmente não precisará mais de profetas e profecias mediadores da palavra de

Deus com o homem.

No Novo Mundo, estes mecanismos, que envolvem a construção de um enunciado

profético, ganham contornos peculiares. E são abundantes os exemplos de materiais míticos

trazidos do Velho Mundo que aqui foram re-elaborados no encontro do “conquistador” com

novas paisagens, outros ares, profusão de cheiros e cores, enfim, na convergência com o

Outro73.

É neste contexto que surge uma das profecias mais sintomáticas do processo de

formação do sentimento de algo diferente começando a se explicitar no Novo Mundo. Esta

profecia prevê o matrimônio de uma mulher negra, ex escrava, ex prostituta, religiosa

fervorosa e vidente, Rosa Egipcíaca, com o rei Dom Sebastião de Portugal, o Desejado e

Encoberto, esperado como uma expectativa messiânica de restauração do mundo. Esse

roçar de duas culturas, nos indica como um imaginário formado de encaixes de séries

culturais diversas tem capacidade de produzir a novidade. É nesse caminho que iremos nos

concentrar para perceber a riqueza desses procedimentos tradutórios em chave profética e

visionária.

2.1. De um Matrimônio para a Sacralização Universal do Mundo: Rosa

Egipcíaca e Dom Sebastião

Mas nada melhor do que tratar do próprio objeto que traz as fortes pulsações vitais

que inserem movimento no devir de uma “memória do futuro”. Esta personagem singular,

tão bem reconstituída biograficamente pelo pesquisador Luiz Mott, em sua obra Rosa

Egipcíaca, uma Santa Africana no Brasil, só pôde receber algum tratamento histórico por

72 BOSI, Alfredo, “Vieira e o Reino deste Mundo”, em Carlos Alberto Iannone et alii. Sobre as Naus da Iniciação. São Paulo, Unesp, 1998, p. 20. 73 Cf. HOLANDA, Sergio Buarque de. Visão do Paraíso: os motivos edênicos e colonização do Brasil. São Paulo, Brasiliense/Publifolha, 2000.

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meio de documentos de um processo da Santa Inquisição encontrados por Mott, em 1983,

na Torre do Tombo, em Portugal. As visões e profecias que estaremos abordando aqui são

todas encontradas no livro de Mott, talvez o único estudo realizado com mais profundidade

sobre o assunto74. Porém, o intenso vigor de Mott, ao tratar de Rosa Egipcíaca, nos dá um

cenário bastante vivo e rico para podermos entrar em consonância com seu texto e

partilharmos um dos capítulos mais instigantes da vida de sua biografada: o matrimônio

visionado por ela com Dom Sebastião.

Rosa Egipcíaca ganhou grande relevo como vidente respeitabilíssima, contando

com o apoio de um aliado estrategicamente disposto a auxiliar no fazer-crer das revelações

recebidas. Todo um esforço direcionado a esse fazer-crer inicial é dispensado em

impressionantes espetacularizações, quando Rosa desfilava e se apresentava em público

para seus devotos. Assim nos conta Luiz Mott sobre os engenhos de convencimento

trabalhados pelo Capelão Exorcista Francisco Gonçalves Lopes, ex dono da Egipcíaca, que,

de algum modo, viu poderes extraordinários na vidente:

A grandiloqüência do seu imaginário místico, nesta época, reflete a exaltada veneração de

que estava sendo alvo após seu retorno ao seu “Sacro Colégio”, adorada, ao vivo ou em estampa,

como a nova redentora do gênero humano, incensada de joelhos pelo capelão que, orgulhoso,

carregava dependurada no pescoço portentosa relíquia: um dente de sua ex-escrava. (p. 546)

As práticas de convencimento e apresentação da imagem de Rosa Egipcíaca como

uma santa, são realizadas através do espetáculo que presentifica o “objeto” de adoração.

Gestual inflamado, estampas de Rosa como santa, êxtase ritualístico e até mesmo uma

relíquia, um pedaço do corpo da santa viva, um dente dependurado no pescoço do padre

capelão português e exibido em exaltação de sua protegida e protetora, faz-nos lembrar das

grandes romarias e encontros de fiéis para homenagear ou pedir graças a santos e santas

venerados. E foi o dito padre grande promotor dos fascinantes desfiles que levavam algo

inusitado, a santa em carne e osso, viva e presente para os fiéis ávidos por indulgências e

graças. Rosa passou a ser adorada como personalidade portadora de carisma que a elevou à

condição de santa popular em sua época.

74 MOTT, Luiz. Rosa Egipcíaca: uma Santa Africana no Brasil. Rio de Janeiro, Bertrand do Brasil, 1993. Para maior comodidade do leitor, cada profecia e visão de Rosa que for citada neste trabalho trará a página da qual foi retirada do livro de Luiz Mott.

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É significativa a presença do padre capelão Francisco Gonçalves Lopes, organizador

dos espetáculos santificadores de sua protegida e protetora. O sacerdote, muito conhecido

em Minas Gerais, onde teve os primeiros contatos75 com Rosa, levava a alcunha de Xota-

Diabos devido à sua eloqüente, enérgica e impressionante maneira de, aos berros e com

gestos ameaçadores, exorcizar demônios nas regiões onde exerceu sacerdócio. O padre

será, no decorrer do contato com Rosa, um dos maiores transmissores de elementos

apocalípticos incorporados ao imaginário contido nas visões de sua ex escrava.

É evidente, desde já, seu papel como contribuidor de um corpus temático religioso

de tradição católica entregue a Rosa Egipcíaca. Até mesmo o sobrenome dado por ele a

Rosa, a Egipcíaca, irá trazê-la ao rol dos personagens santificados, adequando sua condição

bastante “mundana” de ex escrava e ex praticante do meretrício, às graças da conversão e

beatificação em uma vida penitente. Egipcíaca é uma alusão a Maria Egipcíaca, mulher da

vida que apaixonou-se pelo cristianismo e tornou-se santa muito bem conhecida e

respeitada da hagiografia medieval76. Rosa também foi uma prostituta como Maria

Egipcíaca, e, depois de ter se enamorado das festas, procissões, liturgias, personagens da

religião católica, chegou a fundar um convento que abrigava mulheres enjeitadas pela

sociedade, em especial madalenas arrependidas como ela.

Não poderíamos deixar de abrir o parêntese acima, já que essa condição representa

um dos esforços de santificação de Rosa, ainda em vida, como circunstância notável de

persuasão se imaginarmos que, naquela época, e até mesmo hoje, uma pessoa negra, ex

escrava, ex prostituta, mulher, sofredora de freqüentes ataques epiléticos77, não tinha muitas

vantagens a seu favor para conseguir qualquer destaque que fosse perante a sociedade. No

75 “O citado padre Francisco desempenhará, a partir deste encontro fortuito, papel fundamental na vida de Rosa: será seu anjo da guarda. Este velho presbítero, então com 54 anos, lhe fará os primeiros exorcismos, será seu introdutor no caminho da santidade, seu primeiro devoto e confessor. Será também seu proprietário e lhe dará a carta de alforria. Mais tarde, no Rio de Janeiro, há de ser o capelão do recolhimento da Madre Rosa e o grande divulgador de seus poderes e predestinação celestial”. MOTT, Luiz, op. cit., p. 54. 76 Também ex prostituta, Maria Egipcíaca recebeu tratamento de santa ao se afastar da humanidade. Por volta de 270, ano do Senhor, passou 47 anos no deserto e conseguiu a salvação por meio de uma vida penitente, casta, humilde e frugal. Adoradora da Santa Cruz, encontrou-se com um abade chamado Zózimo, que procurava, no deserto, por um santo eremita. Achou-o, sem duvidar por um instante, desde as primeiras palavras e gestos, na pessoa de Maria Egipcíaca. Ver com maiores detalhes sobre a vida de Maria Egipcíaca a Legenda Áurea: vidas de santos, de Jacopo Varazze, com tradução do latim, apresentação, notas e seleção iconográfica de Hilário Franco Júnior, pela Companhia das Letras, São Paulo, 2003, p. 352-354. 77 Ataques epiléticos e outras manifestações nervosas foram interpretadas desde Hipócrates e do Código de Hamurabi, até recentemente, como manifestação sobrenatural, quer das forças do bem, quer dos espíritos malignos: de qualquer forma, eram vistas como doenças sagradas.

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entanto, sua fama e reconhecimento se estendeu entre a população do Rio de Janeiro,

inclusive nos meios eclesiásticos.

Durante anos conturbados de sua vida como escrava ou já alforriada, em meio à

população ou em exílios forçados em fazendas de amigos e casas sacerdotais, trafegou entre

Minas Gerais e Rio de Janeiro. Com isso ganhou possibilidade de estar diante das mais

variadas experiências. Não se deixava paralisar diante das dificuldades e aproveitava sua

presença em diversos lugares, mesmo que em condições adversas. E entre seus maiores

interesses estava a visita a igrejas, em qualquer rincão palmilhado por ela de Minas e Rio,

ficando admirada e arrebatada pela riqueza das formas, pinturas e esculturas de imagens

barrocas. E não eram poucos os exemplos da exuberância barroca, em se tratando de Rio de

Janeiro e Minas Gerais, principalmente Minas, é claro, por onde ela passou. Basta, como

pequeno exemplo, citarmos a proliferação iconográfica estudada em vários trabalhos sobre

a decoração da arte barroca em igrejas mineiras:

A profusão decorativa no barroco mineiro provoca tal impacto visual que, num primeiro

olhar, é impossível captar os inúmeros temas contidos em suas variadas imagens. É necessário um

segundo olhar, mais vagaroso, que se detenha nos detalhes, nos variados símbolos, signos e sinais

que se sobrepõe e que somados têm a função específica de retratar da melhor maneira possível as

histórias piedosas, que como capítulos isolados ou seriados cumprem o papel de, ao mesmo tempo,

decorar os templos e conferir dramaticidade à mensagem católica78.

A sensibilidade de Rosa, como veremos, era bem afeita aos impactos provocados

pela variedade de imagens dessas igrejas. E indo mais além, impressionava-se com todo o

ritual litúrgico, embrenhando-se de tal forma na combinação de imagens, sons de hinários e

pregações em latim, cheiros de incensários, esfumaçando e dando maior ar onírico ao

quadro proporcionado em algumas ocasiões especiais pela igreja da época, que chegava a

êxtases deslumbrantes, desembocando em desmaios profundos, imprimindo ainda mais as

visões místicas que começaria a receber.

78 ÁVILA, Cristina. “A Ilustração de Textos nas Igrejas Barrocas Mineira”, em ÁVILA, Affonso (org.). Barroco, Teoria e Análise. São Paulo, Editora Perspectiva; Minas Gerais, Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração, 1997, p. 491. Se houver interesse sobre o assunto, ver toda a parte V, “Do Barroco Mineiro”, do referente livro.

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Em favor de suas visões, é necessário ressaltar, ainda, a troca de concepções

religiosas e do mundo, que teve com pessoas que lhe auxiliaram em sua curiosidade

mística. Muitos deles eram amigos do já citado padre Xota-Demônios. Mais longe ainda foi

Rosa ao se emaranhar em textos da sagrada escritura, tanto do Velho como do Novo

Testamento, sempre enviesando um olhar conduzido pelo seu contexto e situação social e

histórica que daria em leituras surpreendentes como se verá.

Como se pode notar, Rosa recebeu a contribuição de todos estes textos da cultura,

símbolos e signos, que compareceram em suas visões proféticas apocalípticas. Por elaborar

leituras novas sobre a matéria tradicional judaico-cristã, evidentemente, com isso, feriu

muitos dos dogmas da própria Igreja, terminando julgada e condenada pela Santa

Inquisição.

Foi em 1760 que o imaginário místico de Rosa Egipcíaca desabrocha, com mais

intensidade, em uma visão iniciática79 repleta de detalhes imagéticos. Este sonho/visão

daria passo largo para a definitiva legitimação e prestígio entre seus fiéis como prova de

sua “eleição” para um acontecimento ulteriormente revelado.

Mas não devemos nos precipitar, porque esse verdadeiro caminho iniciático da

Egipcíaca foi importante para o desenrolar da intensidade simbólica de imagens desenhadas

nos quadros dinâmicos compostos em seus sonhos. Corroborando a isso, entram em jogo as

transformações profundas manifestadas nas cenas cristãs paradigmáticas que visitaram e

estimularam processos cognitivos da nossa vidente. Ao mesmo tempo que experimenta um

estágio de cognição, leituras revolucionárias e reveladoras incitam, mais além ainda, as

ações da Egipcíaca. Passa da contemplação para a entrada em cena, de corpo e alma, em

caminho missionário com alto grau de responsabilidade ativa.

No sonho/visão iniciático de Rosa, tempos se cruzam, o passado se torna presente e

ela poderá atuar, como protagonista, de um dos maiores capítulos da mística sagrada cristã;

a Santa Ceia, a despedida de Cristo do mundo e dos seus principais, a repartição do pão e

do vinho transubstanciados em carne e sangue do Filho de Deus, amplificados e eternizados

79 É bom termos em conta a importância da visão iniciática tanto em sonhos de tribos ditas primitivas, quanto em xamãs e em outros tipos de manifestações visionárias já na ordem das religiões monoteístas. “Os sonhos e visões de fundação social-religiosa são pontos de partida para intensas viragens religiosas, culturais, sociais, políticas de inteiros grupos tribais, nacionais ou mesmo supranacionais[...]. Nos profetas de ramo monoteísta – mosaísmo, judaísmo, cristianismo, islamismo –, as aparições concentram-se em Deus, em Jesus, nos anjos e

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no Sacramento central da Igreja, o Eucarístico. Mas a Egipcíaca irá ser introduzida e como

que interromperá este evento fundamental do cristianismo, em seu sonho, para receber a

incumbência de preparar a tão esperada parúsia. Vejamos a seqüência onírica iniciática de

extraordinária visualidade:

Estando ela, ré, na Igreja de Santa Rita ouvindo missa no altar de Santana, lhe disse uma voz

que a ouvisse no altar de São Miguel, aonde não havia (celebrante) e repentinamente deu seu corpo

uma volta para o dito altar, para onde viu logo missa. Chegando ao ofertório, sentiu um grande abalo

no seu interior e neste tempo se achou de joelhos às portas de uma grande sala ornada com um

cortinado encarnado, e, no meio dela, uma mesa coberta com um pano verde à roda da qual estavam

doze pessoas vestidas de túnicas rosas e, no topo das mesmas, outra (figura) com capa de asperges de

seda branca bordada de ouro. E, sobre a mesa, uma salva e uma pessoa vestida de hábito franciscano

que parecia ser mulher, porque tinha uma toalha na cabeça. E do alto da casa desceu um mancebo

vestido de anjo e, tirando da salva um rosário, disse, benzendo-se: “Deus in adjutorium meum

intende” [Deus, vinde em nosso auxílio], e a dita mulher respondeu: “Deus in adjuntorium me

festina, Gloria Patri” [Deus, vinde em nosso auxílio..., Glória ao Pai] [sic]. E no fim do que,

continuou a dizer: “Santíssima Trindade, Deus Trino em pessoa, eu vos dou o meu coração, vos dou

a minha alma”. E a dita mulher com o mancebo foram rezando pelas contas, alternadamente, o Credo

no lugar dos Padre-nossos e das Ave-marias. E dizia ele: “Pater de coelis Deus” [Pai que estais no

Céu], e ela respondia: “Miserere mei” [Tende piedade de mim]. E por este modo e com diferentes

orações passaram as ditas contas, que, acabadas de rezar, as pôs o mancebo na cabeça e, pondo-as na

salva, desapareceu com a mesma salva. E considerando ela, ré, que lugar seria aquele em que se

achava, lhe disse uma voz que era o cenáculo do amor, e, cobrindo-se a cara com um pano branco,

ela, ré, se achou na dita igreja a tempo que já se queriam fechar as portas, e se foi ela, ré, para casa

(p. 546-547).

Muitas Santas Ceias vistas em afrescos e pinturas de forros e paredes de igrejas

barrocas visitadas por Rosa vibram seus detalhes que vão se encaixando na formação

dinâmica do quadro onírico da santa popular do Rio de Janeiro. Dobras das vestimentas e

dos tecidos geram, ao mesmo tempo, robustez e leveza, dando movimento à cena composta.

Outros detalhes também freqüentam a descrição, aproximando sensações de canais oníricos

ao toque concreto, partindo da visão e quase percebendo a tatilidade da cena. Somos

incitados a estender a mão à visão e sentir texturas diversas e cores vivas doadas pelas

santos [...]. Ver sobre este assunto com mais largueza e detalhes no verbete “Sonho/Visão”, Enciclopédia Einaudi, v. 30, Religião-Rito.

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sedas brancas e minúcias bordadas a ouro, panos esmeraldas e encarnados, utensílios

metálicos litúrgicos. E não poderia faltar um mancebo anjo, figura da anunciação – mas

também presença do palco iconográfico barroco para auxiliar os outros atores da

composição cênica –, descendo lépido para oferecer o rosário e instruir a Egipcíaca na

repetição do credo em lugar dos Padres-Nossos e Aves-Marias, subvertendo a ordem do

rosário, mas prestando reverência ao grupo de apóstolos visionado ao lado do Cristo, que

precisava da certeza de que ela cria no que estava vendo.

Rosa está dentro e fora da cena. É atraída por uma voz que a leva ao ofertório e

ajoelha-se, depois de um abalo repentino, diante das portas de uma grande sala, da Santa

Ceia transportada. Depois pode ver-se de hábito franciscano e toalha na cabeça,

participando daquele rosário eucarístico. Funde-se e confunde-se ao episódio onírico.

A sensibilidade da Egipcíaca faz transbordar detalhes de toda a exuberante

iconografia barroca da qual bebeu e, certamente, se embriagou. Tudo é esplendoroso e

abundante num pequeno espaço territorial e de tempo que se abre epifanicamente, em

deslumbramento, de modo paralelo ao tempo/espaço corriqueiro. E o episódio da Santa

Ceia, no qual participa em sonho, carrega substratos que irão nortear suas visões

posteriores.

Já está contido, na narrativa da Santa Ceia, em seu mistério eucarístico, além da

idéia de transubstanciação do corpo e sangue de Cristo já citada mais acima, elementos da

antiga e nova aliança do homem com Deus, na comunhão de vida com Jesus em seu corpo

místico. A ceia eucarística representa e comunica o dinamismo da vida de Cristo. Há uma

perspectiva escatológica combinada a uma anamnese que faz simultaneamente memória da

morte e ressurreição de Cristo e memória de sua parúsia80. Dá para intuirmos a forte carga

missionária a ser carregada por Rosa quando iniciada, em sonho, num momento apoteótico

e dogma central da Igreja. Magnífica e ousada revelação, tanto como perigosa e letal para a

integridade física e moral do sujeito que crê ter recebido tão altos desígnios.

Mas o que contou, de fato, foi a sensação de plenitude logo que foi acordada para se

retirar da igreja onde havia desfrutado de um cochilo magistral. O edifício católico

continuou em seu tempo/espaço cotidiano e, deste modo, por motivo do horário avançado,

necessitava fechar suas portas. No entanto, Rosa ainda prolongava sua experiência, em

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vigília, mas com resquícios das sensações visionadas. Voltou para casa irradiada pela

luminosa cena em que participara e com alegria incomensurável. Tanto é assim que a dose

foi repetida no dia seguinte, em necessidade de afirmar sua eleição e o entendimento do

episódio do dia anterior.

Disse mais, que, na manhã do dia seguinte, lhe perguntou uma voz se cria [em] tudo o que

crê e ensina a Santa Madre Igreja e se por ela protestava viver e morrer, e se tinha visto e entendido o

Rosário que no dia antecedente ouvira rezar, e que era rogativo, e que ela o havia também de rezar

oferecendo o primeiro terço a Deus Padre, dizendo: Rogo-vos, Senhor, em memória daqueles

quarenta anos que trouxestes pelo deserto vosso povo amado, dando-lhe por sustento o maná, em

memória do altíssimo mistério do Santíssimo Sacramento [da Eucaristia] que havíeis de instituir na

lei da graça pela fonte perene de água de vossa misericórdia com que acompanhastes de dia e de

noite com a ardente coluna de fogo da vossa caridade. Rogo-vos, Senhor, que desterreis [destruais?]

do Egito os ídolos falsos, cismas, idolatria, todos os infiéis, gentios, mouros, turcos, judeus, e os

tragais ao vosso verdadeiro conhecimento. O segundo terço [será] em memória dos quarenta dias em

que Deus Filho jejuou no deserto, rogando em memória deste benefício pela conservação da piedade

católica da cristandade e pela pureza do feliz estado eclesiástico. O terceiro terço [será] em memória

dos quarenta dias em que Deus Nosso Senhor, depois de sua gloriosa ressurreição, esteve sobre a

terra até a sua ascensão, que mandou o Espírito Santo. Rogo-vos, Senhor, pelo vosso ardente amor e

caridade, que inflameis todos os corações dos pais de famílias e pastores, para que saibam dirigir as

suas famílias na guarda dos mandamentos. E perguntando ela, ré, a significação das contas que vira e

das pessoas que estavam na sobredita mesa, lhe respondeu a dita voz que eram os apóstolos e o sumo

sacerdote, o Senhor da Divina Providência, e que a criatura que estava sobre a mesa com figura de

mulher, a seu tempo, saberia quem era. E ela, ré, ficou confundida, imaginando o que seria aquilo,

metida no seu nada (p. 547-548).

Podemos conjecturar que a voz escutada por Rosa indica um rito a ser cumprido

pela escolhida. Um rito iniciático e, ao mesmo tempo, de comprometimento definitivo com

a missão a ser revelada. Luiz Mott chama-nos a atenção para o alto grau de cultura religiosa

da ex escrava africana, tanto no que se refere ao Novo Testamento como ao Antigo. O

número quarenta a ser evocado em cada terço rezado, recorda capítulos dos textos sagrados

bíblicos, perpassando momentos de fé e confirmação da crença na presença de Deus em

momentos críticos: travessia do deserto pelo povo amado de Deus libertando-se do Egito;

80 Verbete “Eucaristia”, em LACOSTE, Jean-Yves (Dir.). Dicionário Crítico de Teologia. Tradução de Paulo Meneses et al. São Paulo, Paulias/ Edições Loyola, 2004

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jejum de Cristo no deserto; presença de Cristo e do Espírito Santo na terra, por quarenta

dias após a ressurreição, continuando a infundir a fé no Pai, no Filho e no Espírito Santo

inspirador. Em todas estas seqüências está explícita a antiga e nova aliança com Deus. Em

processo está ainda a aliança definitiva com o Pai, que Rosa e Dom Sebastião iriam

proporcionar à humanidade nas visões posteriores da Egipcíaca.

Rosa é colocada, desta maneira, como herdeira da continuidade desta tradição.

Como era de se esperar, não poderia ter ainda a ciência do significado do conjunto de cenas

evocado e ritualizado na reza dos três terços. Embora conhecesse muito bem as tradicionais

passagens, caiu em um nada confuso, em uma crise pré “decifratória”, sem compreender a

novidade ainda por vir. Todavia, foi rápida a sucessão de sonhos e visões que teve logo

depois do momento inciático pelo qual passa. E logo poderá, gradualmente, vislumbrar os

desígnios aos quais deveria cumprir, o que lhe proporcionou cada vez mais seu caráter

singular dentre os mortais. A santa negra, africana, ex escrava, ex prostituta, passará a ser

peça fundamental no futuro da humanidade.

**********

Uma de suas principais recorrências visionárias, relacionava-se a uma narração sua

como anunciadora de um novo dilúvio universal, na qual aparece, pela primeira vez, a

promessa da volta messiânica de Dom Sebastião. Eis a profecia da qual a Egipcíaca é porta-

voz, em 25 de junho de 1760:

Na segunda-feira, oitavo dia da novena, estando esta minha filha rezando o Ofício Parvo (de

Nossa Senhora) junto com a que estava presa na cela (Irmã do Coração de Maria), que são

companheiras, diz ela que estando considerando a rara humildade como a Senhora se prostrou

quando o anjo anunciou a encarnação do Divino Verbo, que logo lhe comunicaram no entendimento

dizendo: ‘Diz a sua Mãe e Mestra que aqueles brados que ouviu ontem em Leandra (uma das irmãs

do convento em que ficava Rosa Egipcíaca), que são os brados que há de dar o povo das Minas, e

que aquele rio de justiça que está debaixo daquele monte de piedade é que os há de destruir, o qual

rio está para se soltar e há de destruir e arrasar a maior parte das Minas. Todos os montes hão de cair.

E que essa é a manga de água que lá viste vir das Minas, que o Senhor te mostrou dentro dela muitos

corpos, porque há de ser um dilúvio que nunca se viu outro em todo o mundo, e que esta é a enchente

que aquela criatura de palácio contou a teu padre confessor, que o Senhor lhe mostrou junto com o

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sonho que é porque esse dilúvio há de vir dar o mar derrubando todos esses montes e unir-se com

esse mar salgado que vês defronte do palácio e que todos os rios se hão de soltar e o mar há de sair

fora dos seus limites, ficando toda a cidade dentro das suas entranhas. A coluna se há de ter retirado

para a fazenda a qual o Senhor tem determinado que é a fazenda da Sagrada Família que desta cidade

está desviada. A coluna é tua Mãe e Mestra. Dize-lhe que faça aviso a Pedro Róis e lhe mande dizer

que quando ele vir dentro de sua casa a horas mortas alumiar o sol como dia, que se desterre das

Minas e que venha para a seguir e fazer viagem e fazer-lhe companhia. E que mande dizer ao Padre

João Ferreira de Carvalho, que quando a horas mortas dentro da sua casa clarear a lua como dia, sem

ser tempo de luar, que se prepare e disponha que a hora é chegada das destruições das Minas, e que

Deus o manda avisar e que fará deste aviso diante ao Padre Manuel Pinto e a seu companheiro. E que

Pedro Róis (Arvelos) faça ciente a José Alves e a Dona Escolástica para que se preparem. E diga a

Dona Escolástica que a paz do Senhor a de ser com ela. E que quando vir aparecer uma estrela no

céu muito resplandecente, deitando de si muitos raios, e desta estrela hão de aparecer lanças do sol

afora e vir a horas mortas um tropel grandioso como de besta, que todo o povo das Minas se prepare,

porque está chegando o número dez, que são os dez mandamentos quebrantados e que mande dizer

também a Pedro Róis que o Encoberto está para se descobrir e que ele cedo há de vir, que o mundo

há de se reformar e que todos os maus se hão de destruir, e que este memorial o mandará dentro de

uma carta fechada e que lhe mandará dizer que este aviso o poderá mostrar a várias pessoas, mas não

dizendo quem lhe mandou. E se esta Coluna da cidade se ausentar, é porque o povo a palavra de

Deus não quer aceitar e deste aviso não hão de dizer como costumam a dizerem: isto verão os meus

netos, por sorte que este não o verão os pais e as mães e os filhos que dos pais são e moços de tenra

idade verão e não contarão. E que assim que ouvira esta comunicação, entrara em tormenta a fazer

várias protestações dos artigos de nossa santa fé católica e quanto mais protestava, mais lhe

comunicavam e se lhe dizia que desse parte à sua Mãe e Mestra. (pp. 550-551. O grifo é nosso.)

O anúncio do dilúvio devastador, enredado em imagens apocalípticas, tem

procedência de um relato a muito difundido pelo padre Xota-Demônios. Com o tempo

revelou, com a mesma dramaticidade dos seus exorcismos, o acontecimento à Egipcíaca,

que reparava na proximidade do evento.

Vários nomes de pessoas, com certo destaque no círculo social da época em Minas

Gerais e Rio de Janeiro, são aventados como merecedores de salvação do futuro dilúvio, e

como partícipes das previsões de Rosa. A presença destes nomes nos dá uma idéia das

relações que a visionária tinha até mesmo com personalidades da alta sociedade.

O destaque dado ao aparecimento do rei Encoberto, como salvador, mostra que

havia uma certa circulação, no Brasil, da crença na volta de Dom Sebastião. A mensagem

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da volta do Encoberto deveria ser confiada primeiramente a Pedro Róis Arvelos, sobrinho e

compadre do padre exorcista Francisco, ex senhor e protetor de Rosa Egipcíaca. Pedro Róis

era um português proprietário de terras próximas a São João Del Rei, Minas Gerais. Em

uma ocasião a vidente se hospedou na propriedade de Pedro Róis, e com ele travou

conhecimentos acerca de concepções místicas e sobre as visões que já acometiam Rosa.

Certamente Pedro Róis conhecia a história de Dom Sebastião. Citar Pedro Róis,

dando ênfase na comunicação a ele sobre a proximidade da volta do Encoberto, nos dá

pistas sobre seu papel como transmissor do mito do rei Encoberto a Rosa Egipcíaca. Achou

interessante fazer uma explanação sobre ele a uma visionária que tratava de uma revelação

apocalíptica, relacionada à destruição e posterior salvação do mundo. Estas são pistas de

como encaixes de materiais diversos começam a concorrer para a construção de uma

profecia através de uma personalidade como Rosa, que estaria exposta e aberta a diálogos

externos com seus possíveis destinatários. Com estes diálogos começa a se dar a re-

elaboração de material mítico ancestral e a manipulação, no caso aqui presente, de tradições

judaico-cristãs.

Em 1754, Rosa havia fundado um sacro colégio, chamado Recolhimento de Nossa

Senhora do Parto, no Rio de Janeiro. Este sacro colégio acolhia ex prostitutas e mulheres

desprovidas de qualquer posse, como já foi referido por nós anteriormente. Todas

perambulavam sem ter rumo certo na sociedade da época. Mas o norte destas senhoras de

“caminhos tortos”, estava prometido de modo excepcional na primeira revelação do

desencadear do dilúvio:

Por se guardar no Recolhimento do Parto uma prenda preciosíssima – da sua mestra e

fundadora – Deus destinara grandes coisas a este sacro colégio, havendo de ser venerado e ter as

mesmas indulgências que as casas santas de Jerusalém e as igrejas de Roma e de Santiago de

Compostela, e que em breve seria venerado por reis e imperadores, tornando-se o maior e mais

magnífico de todos os conventos do Reino de Portugal. (p. 565)

Eis um dos principais sinais de um discurso heresiarca aos olhos da Igreja Católica.

O orgulho e a ousadia destas profecias teriam tomado conta da vidente e mexia com os

brios, não só da Igreja oficial, como também da metrópole. Portugal perderia nada mais

nada menos que a primazia de ter um convento tão sagrado quanto o qual apontava a

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Egipcíaca que, além de tudo, estava instalado na colônia, no Brasil, e era composto por

mulheres perdidas. Pensaram, evidentemente, já ir longe demais aqueles ataques visionários

até então vistos como inocentes e, de certo modo, inofensivos.

E o que dizer então do deslocamento dos espaços sagrados promovido pela visão de

Rosa? De um centro único guardado e sob o poder da Igreja Católica, no qual tudo estaria

ligado, e do qual tudo emanaria, como as casas santas de Jerusalém, as igrejas de Roma e

de Santiago de Compostela, o convento do Recolhimento do Parto torna-se a principal

região preparada para a nova aliança da humanidade com Deus.

Como isso não bastasse ainda, a ex escrava leva a profecia mais longe, promovendo

um abalo ainda maior nas concepções teológicas da Igreja oficial e, conseqüentemente, em

sua ditadura acerca de sua importância como centro do universo. Assim, em uma segunda

revelação a visionária aponta “Que no próximo dilúvio, o Recolhimento de Nossa Senhora

do Parto seria a arca de Noé onde o Verbo Divino ia se encarnar numa criatura e

estabelecer um mundo mais perfeito que o presente”(p.566).

Então devemos ir por partes. Muitas são as novidades do discurso de Rosa levadas

como rebeldias e loucuras provindas das artimanhas demoníacas, passíveis de castigos a

serem executados pela “ordeira” e “pia” Igreja Católica daquele momento delicado.

Em primeiro, Rosa escandaliza o Tribunal do Santo Ofício ávido por manter os

cristãos em reta conduta, de acordo com seus dogmas. A vidente toca na crença mais

basilar de todo o cristianismo, sem nenhum pudor, aos olhos do “bom” seguidor das

doutrinas cristocêntricas. A parúsia, tão aguardada por todos os cristãos, finalmente

ganhava data e local para seu acontecimento, num arroubo visionário. A data estava

próxima, o local se mostrava sem fixidez, provocador da vertigem de não se ter a exatidão

territorial da volta de Cristo à Terra, já que isto se daria numa espécie de nau que

perambularia sobre o dilúvio. Como se não fosse suficiente esta falta de rumo, a possível

nau onde renasceria o Verbo Divino, não apresenta relação alguma com os territórios

favorecidos pela Igreja Católica ou pela metrópole, para que se desse tal evento.

O Recolhimento de Nossa Senhora do Parto transformado em uma espécie de Arca

de Noé, singrando por um globo terrestre recoberto pelas águas, acaba por indicar um

mundo destituído de todas as marcas da civilização e da história da humanidade – posto que

foram apagadas pelo dilúvio universal –, sem a primazia de lugares santos sustentados

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pelos poderes hegemônicos da Igreja e do Estado. A profecia sugere que o Cristo redivivo,

centro do universo cristão, surgirá à deriva, contra toda e qualquer delimitação de um ponto

privilegiado, escolhido a priori pelas leis e tradições seculares.

A natureza da visão da Egipcíaca, aos poucos perfaz uma retórica que condiz com

um princípio de uma topologia barroca, que já fora percebida pelo astrônomo Kepler, em

1596, em suas observações sobre o trajeto que marte descreve em torno do Sol; um trajeto

não circular, como se acreditava, mas elíptico. E Kepler já havia tentado negar esta sua

descoberta tão fortes eram as conotações teológicas, em sua época, sobre a autoridade

icônica do círculo; forma natural e perfeita. Seus estudos modificaram o suporte científico

no qual se assentava todo o saber da época, fazendo aparecer um ponto de referência novo,

em relação ao qual se vai situar, explicitamente ou não, toda a atividade simbólica. Nos

apontamentos de Kepler algo se descentra, ou melhor dizendo, desdobra o seu centro:

presentemente a figura matriz já não é o círculo, de centro único, luminoso, paternal, mas a elipse,

que opõe a este foco visível um outro foco igualmente ativo, igualmente real, mas obturado, morte,

noturno, centro cego, reverso do Yang germinador: ausente81.

Ainda especulando o inédito das descobertas de Kepler, discutidas com rigor pelo

pesquisador cubano Severo Sarduy, temos que “uma tal concepção encontra a sua margem,

o seu Outro, o seu limite lógico, na idéia de infinitude, de não-centrado, do que não tem

nem lugar nem espessura precisos; ou seja, no que se tornará o próprio princípio da

topologia barroca”82.

E temos na novidade das observações de Kepler, um desmoronamento de todos os

alicerces dos pontos de vista hegemônicos da Igreja, e das autoridades políticas, das

ciências e das artes e de todo pensamento ocidental. Rosa Egpcíaca não mostraria também

uma sensibilidade que dizemos barroca? Em seu discurso profético não figura um cansaço

da centralização dos dogmas do poder da Igreja e da dependência de uma metrópole

impositiva de suas vontades sobre a colônia? Parece que as concepções da visionária

indicam uma vontade de conexões outras, de novas possibilidades de percepção do mundo,

o que a impulsionou para o rol dos desviantes a serem esquecidos pela História Oficial. Sua

81 SARDUY, Severo. Barroco. Lisboa, Vega, s/d. pp. 57-58. 82 Idem, p. 58.

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sensibilidade não é artística, nem científica ou política, mas abarca todos estes campos,

sendo traduzidos em um enunciado mítico-religioso de traços barrocos. Não é a toa que seu

biógrafo a chamou de uma Santa Barroca.

Mas voltando a seguir no fio que desenvolve a complexa trama do enunciado

profético de Rosa Egipcíaca, vislumbramos uma terceira parte de suas visões. Nesta parte a

ex-escrava ganha definitivamente um papel importante nos acontecimentos que deverão se

desenrolar no futuro previsto em seu discurso. Ela acaba por se tornar atriz principal e

competente para que se dê o começo da renovação do mundo, ao sair navegando em busca

da salvação da humanidade, que sofreria com o dilúvio.

E novamente surge a figura de Dom Sebastião. Desta vez seu papel é o daquele que

é o único que carrega a mesma competência que Deus teria atribuído à vidente em suas

revelações, pois:

Que haveria de sair Rosa com as quatro evangelistas [quatro irmãs que possuíam posição

especial no Sacro Colégio da vidente], com o cajado e a cruz da piedade, para conquistar o mundo e

que, para a reformação do século, já estavam feitas duas grandes naus: numa grande, viria Dom

Sebastião, e na outra nau, chamada dos Cinco Corações, ia Rosa com suas acompanhantes (p.566).

E quando “o dilúvio das Minas vier a dar ao mar salgado, derrubando todos esses

montes e quando todos os mais rios se hão de soltar e o mar há de sair fora dos seus limites,

ficando toda a cidade do Rio de Janeiro dentro de suas entranhas...” (p.572), o

Recolhimento do Parto transformar-se-ia na “Arca dos Cinco Corações, começando a

flutuar, possibilitando o encontro tão esperado com a nau de Dom Sebastião” (p. 572). E

neste encontro “Rosa ia se casar com Dom Sebastião, e suas evangelistas também se

casariam com seus vassalos ou criados, voltando para reformar o mundo e formar o Império

de Cristo” (P.572).

A profecia em questão literalmente promove um roçar de nacionalidades diferentes,

de séries culturais e religiosas heterogêneas, conseguindo montar um retrato do processo de

miscigenação que ocorria na colônia. Há claramente uma “forma em devir” (um ir sendo,

um processo ou mutação) de uma “Paisagem”, de um espírito revelado pela natureza em

ressonância com culturas heterogêneas re-elaboradas, explodindo em uma singularidade do

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processo de formação americano, estabelecendo um sentido, uma visão histórica83 outra

que não a etnocêntrica européia da época.

Os sonhos visionário da Egipcíaca tratam da formação de um Império mestiço

baseado numa visão escatológica e apocalíptica judaico-cristã, que prevê o fim da ordem

estabelecida pela lei secular em benefício do nascimento de uma nova humanidade que

compartilharia uma ordem divina, sem mediação entre o Céu e a Terra. Sendo Dom

Sebastião, e sua tripulação, de origem européia-cristão-ocidental (metrópole), e a Egipcíaca

e suas três evangelistas negras, de tradições africanas em diálogo com a formação cultural

da colônia, o encontro destas duas diferenças, em uma situação de catástrofe, de destruição

para o nascimento do novo, sugere a novidade americana calcada na mestiçagem.

Após o castigo da humanidade concretizado por um dilúvio universal, ocorreria,

segundo a profecia, o Juízo Final, no qual a nova vinda de Cristo se daria em sua

encarnação na Terra, através da união entre a vidente e o rei encantado Dom Sebastião. O

rei Encoberto, que em sua origem mítica teria desaparecido em uma batalha contra “infiéis”

mouros em Alcácer Quibir, também irá se entregar, na visionária novidade trazida por

Rosa, aos sabores da mistura. Por conseguinte, o próprio Verbo Divino seria curiosamente

um mestiço, produto da união e mescla de raças.

Deste modo, a nova leitura do Apocalipse praticada pela vidente vai de encontro e

se choca, novamente, com a visão cristã ocidental acerca da parúsia, na qual ocorreria

muito mais uma assepsia que uma mistura de material heterogêneo concretizada na figura

maior do cristianismo, o próprio Jesus Cristo.

Estamos diante de procedimentos observados por Lezama Lima em sua obra A

Expressão Americana. Particularidades de um ser que não é ainda, em mutação,

apresentam-se como características processuais do devir americano. Lezama sugere que

devem ser observados “traços, partículas, fragmentos de textos que são extraídos de uma

totalidade (Dom Sebastião e toda tradição judaico-cristão ocidental) – como numa tomada

sinedóquica – para serem analogados com outros retalhos de uma outra totalidade84” (Rosa

Egipcíaca, seu entorno e suas leituras sobre a tradição judaico-cristã). Como já revela a

profecia de Rosa, Lezama, em seus estudos sobre a América, percebe que “tudo terá que ser

83 CHIAMPI, Irlemar. “A História Tecida pela Imagem”. In: LEZAMA LIMA, José. A Expressão Americana. São Paulo, Editora Brasiliense, 1988, p. 22. 84 Idem, p. 25.

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reconstruído, invencionado de novo, e os velhos mitos, ao reaparecerem de novo, nos

oferecerão seus conjuros e seus enigmas com um rosto desconhecido”85. Um rosto

desconhecido como o de um Cristo mestiço poderíamos acrescentar aqui.

Em Rosa podemos vislumbrar um autêntico recomeço, posto que é uma forma que

renasce e encontra espaço para movimentar desejos e permitir um devir da humanidade,

sem se preocupar com hierarquias genealógicas, geográficas, culturais etc. A busca por uma

identidade, o problema em se ir atrás de uma origem do ser e da história, não cabem num

enunciado profético como o de Rosa, que se quer processual, em andamento, eterno

movimento que se joga em uma “memória do futuro” sem conhecer o fim, o ponto máximo,

mas sim o constante “sendo”, alavancado pela vontade de interagir no mundo através de

conexões, da curiosidade barroca em processo, inacabada sempre.

Rosa se torna uma Senhora Barroca em seu espaço visionário, como diria Lezama.

Traduz, em seu presente, um passado judaico-cristão ocidental, do qual participou, mesmo

sendo escrava levada à colônia pela metrópole européia. Ao ser liberta, não renega nem o

escravizador nem sua condição passada de escrava, conseguindo prever o novo que se

encerra na conjunção de raças e culturas, como se deu, em parte, na América. A Senhora

Barroca “pinta” o que ainda, na sua época, não é tão claro, o que ainda, em seu tempo,

escandaliza e atormenta. E, para a maior perturbação de tudo e de todos, a Senhora Barroca

faz a construção de sua imagem extrapolar os limites da moldura do quadro; não pode

finalizá-lo e o deixa inacabado para sua continuidade numa “memória do futuro”.

O enlace de Rosa e Dom Sebastião, nesta profecia, indica-nos como será tratada a

figura do rei Desejado pela população da colônia. Já não estamos mais diante de um mito

símbolo do nacionalismo e patriotismo, – inclusive, nas visões da Egipcíaca, Portugal seria

destruído por um terremoto – mas de um fenômeno cultural que é capaz, por possuir alguns

traços de sua história combinados com concepções escatológicas que corriam pela colônia,

de potencializar desejos de composição da nova raça que se forjava na colônia, como o

novo homem capaz de erigir a nova aliança com Deus.

Curiosamente, o último registro do processo de Rosa Egipcíaca é de 1767, segundo

Luiz Mott. O autor afirma ainda que dos mais de um milheiro de processos que passaram

85 Idem, p.29.

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por suas mãos, quando esteve na Torre do Tombo, este era o único inconcluso86. No Brasil

não há nenhum documento que registra as peripécias da ex escrava, ex prostituta, mulher,

vidente e tida como santa em sua época. Até mesmo o sacro colégio do Recolhimento de

Nossa Senhora do Parto já não existe mais no Rio de Janeiro. Sua memória só é possível

através do seu processo inquisitorial que não se deu ao trabalho, e talvez propositadamente

assim procedeu, de produzir um atestado de óbito para esta figura oportunamente resgatada

pelo pesquisador Luiz Mott, e que merece leitura de outros campos da pesquisa além do

histórico. A Semiótica da Cultura, nesse sentido, poderá trazer contribuições.

86 MOTT, Luiz, op. cit. p. 728.

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II Parte: Presença da Figura de Dom Sebastião em

Movimentos Populares Rebeldes e na Oralidade da

Religiosidade Popular

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Introdução à Segunda Parte

A figura de Dom Sebastião continuou a ser manifesta em outros territórios

brasileiros e em épocas mais avançadas. O sertão nordestino foi pródigo em casos onde

aparecia a crença no jovem rei, em movimentos populares rebeldes. Também no litoral, na

religiosidade e na narrativa oral do Maranhão e do Belém do Pará, no Norte, há freqüência

da imagem do rei até hoje. Por ora, é interessante trazer algumas especificidades territoriais,

políticas, econômicas e culturais para localizar o novo contexto em que o rei Encoberto

passa a trafegar. Primeiramente quero focar as particularidades do sertão nordestino. Mais a

frente abordarei alguns elementos da região das águas, ou seja, Maranhão e região

amazônica. Deste modo, muito rapidamente, penetremos pelas territorialidades sertanejas,

buscando trazer alguns dados de sua formação – embora sem muito nos atermos às

complexidades que exigiriam um estudo mais apurado desta região –, tentando apenas nos

situarmos com a presença do nosso objeto de pesquisa dentro desse território.

A tímida entrada no sertão brasileiro se dá, como se sabe, em tempos avançados

após a colonização, que se processou a partir do litoral. Em termos de aproveitamento da

região, formada por vegetação rala, pobreza de terras cultiváveis e irregularidade no regime

de chuvas, o que se deu, inicialmente, foi sua ocupação com gado trazido pelos portugueses

das Ilhas de Cabo Verde. Provavelmente este gado era o mais interessante, para o local, por

estar aclimatado para a criação extensiva, sem estabulação, acostumado a procurar suas

aguadas e seu alimento. Os primeiros lotes instalaram-se no agreste pernambucano e na orla

do recôncavo baiano. E o estabelecimento deste território, para a nova cultura bovina em

início nas terras brasileiras, deu-se pela necessidade de se manter o gado longe dos

engenhos, para que não houvesse danos aos canaviais – uma das maiores fontes de riqueza

da colônia até aquele momento87.

O gado tinha que ser comprado, mas as terras, posse da Coroa, eram concedidas

gratuitamente em sesmarias a quem fosse merecedor das graças do poder real. No começo,

ainda no século XVI, a própria figura privilegiada do senhor de engenho se fez sesmeira da

orla do sertão, criando gado para consumo próprio. Mais tarde a atividade passou para as

mãos de especialistas tornados imensos latifundiários sertão adentro. Os bocados de terra

87 RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a Formação e o Sentido do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 341.

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foram sendo ocupados muito lentamente por currais distanciados em dias de viagens uns

dos outros, instalados ao longo dos raros rios permanentes, e dos dois lados do caudaloso

rio São Francisco. Estes currais eram entregues, despreocupadamente, aos vaqueiros

encarregados do trato e transporte de toda a criação88.

Desde o início das entradas, do esquadrinhamento e da lenta preparação territorial,

para criação e transporte de gado, parece que muitas coisas contribuíram para que a região

sertaneja fosse mal vista, em termos de ocupação primeira. Isto se faz mais evidente se

compararmos estas terras desprivilegiadas às que apresentavam abundâncias de cultivo, de

comodidades naturais, de relações sociais atraentes e facilitadoras do desenvolvimento de

lugares mais próximos do litoral. Alguns víveres para sobrevivência até havia, mas

afiguravam-se opacos e insonsos quando confrontados às delícias e às comodidades do

litoral e adjacências.

Carne e leite haviam em abundância, mas isto apenas. A farinha, único alimento em que o

povo tem confiança, faltou-lhes a princípio por julgarem imprópria a terra à plantação de mandioca,

não por defeito do solo, [mas] pela falta de chuva durante a maior parte do ano. O milho, a não ser

verde, afugentava pelo penoso do preparo naqueles distritos estranhos ao uso do monjolo. As frutas

mais silvestres, as qualidades de mel menos saborosas eram devoradas com avidez89.

A terra insistia em apresentar-se ainda mais inóspita, para seu novo ativo observador

(o vaqueiro), por vários outros motivos relacionados às dificuldades de instalação,

comunicação e transporte. Falta de água, terreno infértil e impróprio à locomoção fácil,

desenhado pela rocha nua e bruta, vegetação ferina de coroas de frade, cactos, mandacarus,

arbustos de galhos secos e pontiagudos etc., são alguns dos percalços naturais a serem

enfrentados. As grandes distâncias, falta de abrigo de qualquer tipo, escassez de contato

com o semelhante, a não ser com o próprio grupo que o acompanha, e com os índios,

logicamente primeiros habitantes daquelas vastas terras, também nos dão idéia dos

obstáculo para a convivência em grupo no primeiro momento das entradas no sertão.

88 Idem, ibidem. 89 CAPISTRANO DE ABREU, João. Capítulos da História Colonial: 1500-1800 & Os Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1982, p. 133.

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Desta forma, o novo terreno, pouco antes de ser desbravado, é visto com

estranhamento em relação ao conhecido espaço já bastante familiar do litoral e

proximidades.

A incerteza dos limites gradua a oposição entre o aqui e o alhures. O aqui focaliza o espaço.

[...] Aqui é um centro: algumas vezes apenas o centro real. Ele só faz referência a ele mesmo. Ele

nega o alhures. Todavia, esta aparente contradição pode perder sua nitidez, atenuando-se em simples

contraste, distinguindo o centro da sua periferia. [...] Ao interior e além da zona assim balizada, a

proximidade ou o afastamento topográficos, fornecendo ao espírito as imagens, à linguagem as

expressões úteis para se notar a diferença, jamais perfeitamente clara, do mesmo e do outro90.

É a partir do foco de um olhar vindo do “centro real” (região litorânea e

adjacências), que é engendrada uma primeira noção de sertão brasileiro. O cotejo com o

litoral, com o “aqui” mais aconchegante, define e gradua os contrastes do “alhures” mais ou

menos estranho percorrido, que, com o passar do tempo, recebe qualificativos produzidos

pelo estranhamento do olhar estabelecido a partir do centro.

A significação [do termo sertão] permanece, em constelação, ilimitada, e abrangente, o

étimo não alcançado, definindo-se, porém, que: dado o rumo aos textos que constituem um corpus,

obviamente terá de confirmar-se o fato de não se tratar de criação brasileira e serem improváveis as

remotas remissões africanas que também poderiam ser asiáticas ou quaisquer outras. Mas o vocábulo

tem ampla realização social e sua vigência procedeu da necessidade de nominar coisas novas, e hoje

tão trágicas.

Pode-se acompanhar a transformação social de um vocábulo, seu crescimento expressivo em

função de condições de várias espécies, literárias ou extraliterárias, sociais, políticas etc. O que se

afirma, sem medo de equívocos, é que, no Brasil, este vocábulo desenvolveu significação de

oposição a litoral e, em condições brasileiras, sertão estaria sempre em interior. No Nordeste, em

circunstâncias que se conhece, dirigiu-se para a preexistente conotação de aridez, documentada em

parte nos textos antigos. Inospitalidade da natureza, povoado, ermo. [...]91

Sertão faz-se mesmo o oposto de litoral por ser o “alhures” estranho, que desafia seu

visitante. Mas terá a vantagem de tudo potencialmente poder ser nomeado, experimentado

90 ZUMTHOR, Paul. La Mesure du monde. Éditions du seuil, 1993, p. 60. Livre tradução minha.

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com sentidos virgens do contato com a novidade territorial. Imagens, expressões, gestos

serão tanto adaptados com as referência trazidas do litoral à territorialidade que vai se

formando, como criados frente ao que ainda apresenta-se como novidade.

É de se supor, então, que a diferença territorial percebida pelas peculiaridades da

natureza sertaneja em contraste com as do litoral, irá contribuir para a configuração de um

espaço diverso, de concepções outras, necessitando de uma outra sabedoria, um outro modo

de comunicar, uma outra atividade, uma outra paisagem a ser plasmada por um olhar atento

e perscrutador. A estesia experimentada pelo corpo diante de todo aquele mundo inculto,

adicionada do inevitável e precário modus vivendi que iriam oferecer os donos das

sesmarias, estimulou ações diversas em um território ainda sendo “esculpido”.

A oligarquia, com o tempo, incentivou a ida de novos homens para explorar suas

terras de fronteiras frouxas e de cultivo minguado. Percebeu que a pecuária ia tornando-se

promessa de fonte de lucros, o que realmente aconteceu, quando em meados do século

XVIII já era importante produto de comércio fornecido pela colônia. Cada vez mais foi se

dando uma verdadeira descoberta desse novo mundo, sendo desbravado e povoado pelos

homens escolhidos para esta empreitada. Mais vaqueiros, por ter algum conhecimento no

trato do gado litorâneo, são mandados para o interior nordestino e, com eles, alguns

aprendizes se dispunham a acompanhá-los. Estes eram os profissionais ideais para o

manejo da pecuária em crescimento. Também o caráter aventureiro desses homens

contribuiu para que fossem escolhidos para a lida com o gado vacum. Logo esse arrojo

traduziu-se num poder de conhecimento do vaqueiro sobre uma região que, de início, o

proprietário das terras não ousava sequer chegar perto.

Com o adensamento da mão-de-obra voltada para a lida com o gado, currais para a

criação do gado e instalação das famílias dos vaqueiros vão se efetuando de modo mais

intenso. Os locais escolhidos, logicamente privilegiados pela existência de água, que era tão

escassa no interior nordestino, são ao longo das duas margens do rio São Francisco – uma

das únicas veias férteis do cáustico sertão – e proximidades aos raros rios perenes do sertão.

Essa pequena quantidade de gente começa a se configurar como minúsculos povoados. Os

pontos habitados são arranjados para uma agricultura de subsistência das famílias e do

91 FERREIRA, Jerusa Pires. “Um Longe Perto: os Segredos do Sertão da Terra”, em Légua e Meia: Revista de Literatura e Diversidade Cultural. Feira de Santana, Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural da Universidade Estadual de Feira de Santana, vol. 3, n. 2, 2004, p. 35.

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gado. A vizinhança familiar torna-se mais efetiva, apesar das distâncias, e criam-se algumas

relações sociais e culturais comunitárias. Mas estas pequenas instalações no interior, ainda

são pontos periféricos acomodados a um trajeto que visa muito mais à constituição de um

traçado mais seguro para o transporte do gado às longínquas paragens a que se destina,

localizadas no litoral baiano e pernambucano primeiramente.

Embora tenha havido uma certa liberdade na criação das primeiras instalações

sertanejas formadas por pequenos sítios organizados pelos vaqueiros e seus familiares, o

desenvolvimento das leis locais mostrou-se, desde sempre, estar nas mãos dos grandes

proprietários das terras. Com conhecimentos dentro da esfera política, e às vezes até

fazendo parte dela, conseguiam vistas grossas quanto à aplicação de leis que não eram as

ditadas pela monarquia e, mais tarde, decretadas pelo regime republicano, mas sim as suas

leis. Os poderes institucionalizados pela nação brasileira, tanto de qualidade executiva,

como legislativa e judiciária, não tinham penetração total nas terras do sertão. Assim, a

contituição política e jurídica desta local, desenvolveu-se de modo bem diferente do que se

praticava no litoral.

Daí que não é novidade nenhuma o fato de que as instituições políticas e jurídicas

que vigoravam no Brasil foram substituídas, no sertão nordestino, pelo elemento despótico,

pelo grande fazendeiro e por uma rede de relações de compadrio estabelecida entre o

latifundiário e seus agregados. Essas relações irão se estender por todo o sertão. A grosso

modo, a hierarquia da rede de compadrio será composta por, em primeiro lugar, com a

confiança nos vaqueiros, depois, por motivos de garantia de vida, o trato com os jagunços

era mais próximo, pois estes faziam o papel de segurança do fazendeiro e dos limites de

suas terras, em seguida havia um certo contato com empregados mais fixos da fazenda e

depois, por último, estabelecia-se algum contato com a população mais movente, mão-de-

obra sazonal, aproveitada de acordo com a necessidade dos donos das terras.

Já do ponto de vista da autoridade religiosa, a igreja pouco se preocupou em se

infiltrar sertão adentro. Alguns padres até chegaram a ser latifundiários, entretanto tinham

mais a postura de fazendeiros que de sacerdotes. Vez ou outra algum padre se arriscava no

cumprimento do voto de pobreza e na intenção principal da igreja de levar a palavra de

Deus aos mais remotos recônditos. Mas isso era raro, e a população que ia se adensando

com o maior cultivo do gado, recebeu suas intruções religiosas vindas de beatos e

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conselheiros profetas, de formação leiga, que, todavia, tiveram contato com os

ensinamentos mais difundidos nas grandes cidades.

Ao longo dos anos, as pequenas populações das margens do São Francisco e dos

rios perenes foram se tornando cidadezinhas e vilarejos. Enquanto isso, mais no interior,

próximos a raros olhos d’água92, entrepostos foram criados por comerciantes, que

perceberam ainda haver grande dificuldade de transporte de gado pelos primeiros vaqueiros

na extensão sertaneja. Com uma energia mais aventureira, querendo transpassar a vida já

inerte pelo inchasso das grandes cidades litorâneas ou capitais, estes comerciantes

lançaram-se no sertão e fizeram alguma fortuna, conseguindo até formar rebanho,

comprando o gado castigado pela viagem dos vaqueiros. Algumas cabeças de rês tornavam-

se esquálidas e inválidas para o comércio no centro.

As pequenas paragens colocadas no caminho do rebanho transportado para o litoral,

serviram, em seu começo, de entreposto de pequeno comércio para sustentar as distantes

marchas do vaqueiro até chegar ao ponto almejado da carga bovina. Com o tempo,

expandiram-se territorialmente e pipocaram por toda a extensão sertaneja. Também

tornaram-se cidades e vilarejos, ganhando legislação e jurisdição própria, que, como

podemos adivinhar, seguiam os passos ditados por algum coronel local.

Contudo, o território sertanejo, extensíssimo, continua a manter distâncias enormes

entre os povoados formados ao longo dos anos. Deste modo, a comunicação das coisas, dos

acontecimentos do mundo, de temas extra cotidianos e além da vida diária isolada de cada

cidadezinha, é feita, de modo mais intenso, por figuras que mais trafegam pelo interior

sertanejo, ou seja: o vaqueiro, cantadores cordelistas93 – que se tornaram figuras

importantes para a poética do imaginário local –, comerciantes de passagem e os religiosos

leigos, que foram ganhando estatuto de beatos. Assim, mais e mais a população sertaneja se

descolava dos costumes e tradições litorâneos, e passava a ter uma vida própria, adaptada,

92 “As cacimbas, poços d’água, congregam quase todo o resto do povoamento [sertanejo]. Assim, o lençol subterrâneo é mais permanente e resistente às secas, bem como acessível aos processos rudimentares de que dispõe a primitiva e miserável população sertaneja, o povoamento se adensa. ‘Olho d’água’ é uma designação que aparece freqüentemente na toponímia do sertão: a atração do líquido é evidente”. Sobre o início do povoamento no sertão nordestino e a importância do olho d’água na ocupação do interior, ver Caio Prado Júnior, “Povoamento Interior”, em Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia, São Paulo, Brasiliense/Publifolha, 2000, p. 56. 93 CASCUDO, Luis da Camara. Vaqueiros e Cantadores. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia; São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1984.

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de acordo com as possibilidades, as intempéries locais, criando hábitos próprios,

religiosidade própria, transformando-se em territorialidade construída de afetos.

Em grandes festas, ou momentos de maior afluência de gente, como as feiras que

iam se organizando nas pequenas povoações, esparramava-se o trânsito de notícias e

narrativas que ultrapassavam o cotidiano do povoado. Assim, as histórias trazidas de

quando em quando nestes momentos isolados eram tomadas com intensidade pelos

moradores e freqüentadores destas ocasiões. Configura-se, desse modo, uma rede

transmissiva e receptiva de matéria narrativa, com notícias de diversas procedências, que

rompia as grandes distâncias.

Por outro lado, a vida no sertão fica cada vez mais limitada aos mandos e

desmandos dos senhores de terras. A atividade com o gado nunca necessitou de grandes

efetivos, muito menos a pequena prática extrativista do mocó – tipo de algodão próprio do

local – e da cera de carnaúba, elementos ancilares da economia da região. A mão-de-obra

que se dispôs a se aventurar no sertão, com perspectiva de alcançar algum grau de

independência, não encontrou facilidades em sua possível nova vida. Mesmo a maioria dos

vaqueiros já sofriam mudanças significativas em sua vivência, recebendo como paga já não

mais uma quantia em gado – como era comum no começo dessa atividade no sertão –, mas

um salário limitador de seus anseios. As grandes fazendas não contratavam mais ninguém

fixamente, servindo-se, apenas sazonalmente, da mão-de-obra que esperava pelo momento

de ser utilizada para o plantio e colha da pequena e rara agricultura estabelecida. Por sua

vez, pequenos proprietários de sítios conseguiam o próprio sustento, e tão pouco tinham

condições de empregar alguém.

Também as vilas e cidadezinhas não produziam atividades diversificadas. Estes

lugarejos, apesar de serem locais já com certo reconhecimento de município, com

autoridades judiciária, legislativa e religiosa próprias, não puderam obter desenvolvimento

a ponto de receber um contingente maior do que o já assentado e estabelecido.

Com todas essas dificuldades, via-se não apenas o empobrecimento dos agregados,

mas também um contingente que perambulava, ou se fixava em algum local, de modo

miserável. Um sistema mercantilista, voltado apenas para o lucro próprio dos latifúndios,

não dava incentivo nenhum a alguma estabilidade da mão-de-obra, e mal conseguia agradar

pequenos proprietários que conseguiram um pedaço de chão. O poder reinante e

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controlador era mesmo o dos coronéis, dificultando qualquer desenvolvimento social,

político e econômico, e limitando qualquer opinião contrária à sua.

Como é que se exige que esses infelizes (os agregados, gente pobre, foreiros) plantem se

eles não têm certeza de colha? Que incentivo existe que os induza a beneficiar um terreno, do qual

podem ser despojados de um instante para outro? Nas terras dos grandes proprietários, eles não

gozam de direito algum político, porque não têm opinião livre; para eles o grande proprietário é a

polícia, os tribunais, a administração, numa palavra, tudo; e afora o direito e a possibilidade de os

deixarem, a sorte desses infelizes em nada difere da dos servos da Idade Média94.

Embora essa fosse a situação comum dos que viviam no sertão sem muitos recursos,

essa condição não foi aceita pela totalidade dos sertanejos. Como dizia, já havia um afeto

com o espaço constituído e um sentimento de pertença que contribuiu para a formação da

cultura sertaneja. Alguns grupos, liderados por figuras carismáticas, apontaram caminhos

que alimentaram a busca por desejos latentes, por vontades além das quais podiam atingir

sob a vigilância dos donos de terra ou de poderes constituídos.

No início do século XIX, alguns destes grupos ganharam aspectos de movimentos

organizados e foram tachados como marginais, anômalos, atrasados, selvagens, bandidos,

fanáticos etc. Toda essa nomenclatura, como podemos perceber, obedecia uma posição de

poderes hegemônicos, envolvendo um pensamento dicotômico tendendo à higienização

para o desenvolvimento de uma nação que teria que atender aos princípios do que se

reconheceria como civilizado, superior, avançado etc. Mas exatamente por receberem

títulos aviltantes, marcadores de um território marginal, anômalo, para certos padrões

ditados pelo poder econômico e político, que estes grupos, ou movimentos, ganharão

notoriedade e individualidade. Libertam-se do anonimato e insignificância que a história

oficial poderia colocar se permanecessem apenas como massa de mão-de-obra livre

utilizada para a servidão, entregue à vontade mercantilista e exploratória dos grandes

poderes locais e nacionais, e ingressam nas discussões do país.

Estes grupos, dispostos a se organizarem por motivos de ordem vária, serão, alguns,

reconhecidos e ligados à prática do banditismo, mais precisamente personificada pela ação

94 FREYRE, Gilberto. Nordeste. São Paulo, Editora Global, 2006, 7a ed. revista., apud, FACÓ, Rui. Cangaceiros e Fanáticos: Gênese e Lutas. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 9a ed., 1991, p. 21.

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dos Cangaceiros, e outros, seguirão a via do misticismo, tendo os beatos, conselheiros e

praticantes de uma religiosidade “popular” recebido o termo depreciativo de Fanáticos95.

Era mais do que natural, era legítimo, que esses homens sem terra, sem bens, sem direitos,

sem garantias, buscassem uma “saída” nos grupos de cangaceiros, nas seitas dos “fanáticos”, em

torno dos beatos e conselheiros, sonhando a conquista de uma vida melhor. E muitas vezes lutando

por ela a seu modo, de armas nas mãos96.

Embora o fenômeno do banditismo nordestino tenha importância inconteste para o

estudo de movimentos marginais formados no sertão do século XIX, estrapolaríamos as

intenções desta pesquisa se a ele nos detivéssemos. Deste modo, o que irá nos interessar é o

fenômeno da religiosidade popular com aspectos místicos, que tem até hoje papel

fundamental na vida do Nordeste. Focando mais ainda nosso objetivo, são os movimentos

populares rebeldes e religiosos, que trazem a figura de Dom Sebastião como um rei

guerreiro e messiânico, que discutiremos nessa parte da pesquisa. Assim, devo continuar

com a descrição de um pequeno panorama de uma parte da formação religiosa do Nordeste

brasileiro.

Podemos indicar que, junto ao adensamento populacional e à efetiva vida cultural e

social nordestina já estabelecida, apresentando singularidades próprias, crescia, nas práticas

religiosas, a difusão de novenas, procissões, festas em homenagem a santos que geraram

uma espécie de “catolicismo popular”. A falta de sacerdotes, como já destacamos, dará

espaço para a atuação de beatos e líderes carismáticos investidos de certa santidade. Eles

irão contribuir na organização das manifestações religiosas locais e, indo mais longe, farão

leituras novas da tradição judaico-cristã em que irão comparecer traços da vivência do

sertanejo, sua concepção de mundo, sonhos e desejos, amalgamados a interpretações

escatológicas e apocalípticas arranjadas em textos proféticos, orais e escritos.

Novos mundos possíveis serão vislumbrados nas prédicas dos beatos e líderes

carismáticos, e daí nascem os movimentos populares religiosos, em espaços escolhidos e

tornados sagrados, preparando-se e constituindo-se em comunidades com a expectativa de

95 Esta palavra, segundo Rui Facó, “veio de fora, designando os pobres insubmissos que acompanhavam os conselheiros, monges ou beatos surgidos no interior, como imitações dos sacerdotes católicos ou missionários do passado. É um termo impróprio, inadequado, sobre ser pejorativo”. FACÓ, Rui. Cangaceiros e Fanáticos: Gênese e Lutas. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 9a ed., 1991, p. 9.

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alcançar esses mundos possíveis. Os adeptos dos movimentos serão pequenos

“proprietários de terras, sitiantes, moradores, vaqueiros, lavradores de diverso tipo, mas

todos levando uma existência modesta, as mais das vezes em nível de agricultura de

subsistência”97, logicamente inconformados com a falta de perspectivas.

Entre as orações, rituais, procissões, enfim, ações voltadas para a sacralização e

reencantamento do mundo motivado em algumas destas comunidades, atravessará a crença

na volta de Dom Sebastião como um messias. Mas o mito português aparece transformado,

sustentando outras expectativas que não as patrióticas e nacionalistas de sua origem em

Portugal.

É a pesquisadora Maria Isaura Pereira de Queiroz quem nos dá pistas do trânsito da

figura messiânica de Dom Sebastião no Nordeste brasileriro. Diz ela que o viajante

Ferdinand Deniz, quando esteve no Brasil em 1816, ficou impressionado com a quantidade

de sebastianistas encontrados entre a gente da colônia e em Portugal, formando, pela sua

contagem, um número de aproximadamente três mil pessoas que esperavam a volta do rei

Desejado e Encoberto. No Brasil, em sua maioria, os crentes estavam instalados no Rio de

Janeiro e Minas Gerais. Entre eles havia muitos comerciantes e militares da guarda

imperial. Porém, não se reuniam em assembléias ou reuniões, nem formavam

congregações, sendo ligados apenas pela mesma fé compartilhada.

O grande número de sebastianistas que aparece nessa época tem explicação em mais

um surto de nacionalismo português. Mas, ao chegarem no Brasil, outras serão as

expectativas em torno do mítico rei lusitano.

Na metrópole, a decadência da nação, a princípio, e mais especialmente a invasão

napoleônica no século XIX, desenvolveram a imagem de um Enviado que seria um grande Príncipe,

destinado a arrancar Portugal das garras do opressor e, ainda mais, a transformá-lo em cabeça das

nações, concentrando o herói todos os caracteres do Rei dos Últimos Dias

No Brasil, pelo que referem os viajantes e outros testemunhos, Dom Sebastião é um grande

rei que distribuirá entre seus adeptos imensas riquezas e cargos honoríficos, instalando no mundo o

paraíso terrestre. País onde os europeus vinham ávidos de enriquecer, a deturpação da lenda é

significativa. Nos tempos de Antônio Vieira, a identidade do país com a Metrópole é tal que as

96 Idem, p. 20. 97 QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O Messianismo no Brasil e no Mundo. São Paulo, Editora Alfa-Omega, 2003, 3a edição, p. 306.

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polêmicas de lá e daqui em torno da lendária personagem são idênticas. Em princípio do século XIX,

não tinha mais sentido para os brasileiros a recondução de Portugal à liderança entre as nações; o que

importava era o enriquecimento individual e a ascensão social, anseio supremo dos que vinham

“fazer a América”. A figura de Dom Sebastião é, pois, a de um monarca de magnificência oriental, a

distribuir bens às mancheias98.

Certamente os ideiais sebastianistas deslocados para expectativas diferentes das

relacionadas ao nacionalismo patriótico português, foram transmitidos junto com a figura

do rei para o sertão. No Brasil, estas novas aspirações depositadas na volta de Dom

Sebastião, refletem-se nos movimentos populares rebeldes do sertão. É renitente a

expressão de anseios de riqueza e ascensão social. Porém, há uma motivação coletiva, que

leva estes desejos a um caráter de realização igualitária.

Ligadas à riqueza e à ascensão social, estão presentes ainda, nos desejos das

comunidades sertanejas, questões raciais e de imortalidade. Além de ser preconizado que o

pobre será rico com o retorno de Dom Sebastião e seu exército, também há a promessa de

que o “preto se tornará branco e velhos ficarão jovens”. Possivelmente o nivelamento

igualitário, justo, entendido como desejos a serem alcançados por todos os integrantes das

comunidades, é sentido com os parâmetros apresentados pelos senhores de terras e pessoas

mais abastadas com as quais os indivíduos trabalhavam antes de participarem dos

movimentos populares. Ser rico, branco, jovem e com saúde era o ideal a ser alcançado

para pôr fim às humilhações e começar uma nova vida digna.

Mas não é só isso. Mais do que a crença dessacralizada em Dom Sebastião dos

portugueses que vieram para o Brasil no século XIX, claramente voltada para os valores

materiais e terrenos, a fé sertaneja almejava também o elemento sacral, que quase sempre

foi uma das características mais marcantes da figura do jovem monarca Encoberto. Os

valores materiais a serem atingidos apresentam-se extremamente ligados aos valores

divinos demandados na busca pela nova ordem universal, que se intalaria com a volta

santificada de Dom Sebastião.

Os grupos irão se formar em torno desses desejos, anciosos por uma nova ordem

estabelecida por leis divinas preparatórias para o Juízo Final. Dom Sebastião será o grande

guerreiro que deve arranjar este tempo apocalíptico para por fim às dores do mundo,

98 Idem, p. 219-220.

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regenerar a terra devastada e trazer justiça entre os homens. O rei Encoberto não perde a

substância messiânica colada à sua personalidade. Mas os anseios depositados em sua vinda

já são traduzidos pelas vontades de mudança proporcionada em cada história, cada

contexto, cada tempo/espaço específico dos diferentes movimentos religiosos em que

comparece no sertão. Não é um tempo de espera que se vive, mas sim um tempo de busca,

de reflexão sobre a condição de vivência, expressa em rituais específicos e na maneira de

estabelecer-se como territorialidade preparatória para uma nova realidade em contato com o

sagrado.

São esses elementos e ações na espacialidade constituída pelos movimentos

populares rebeledes religiosos, que pretendo focalizar, buscando compreender quais vias

levaram a figura de Dom Sebastião por esta viagem santificada de caminhos de pedra, pó e

sangue. Talvez aqui poderíamos nos referir a um Dom Sebastião do Brasil, ultrapassando

sua condição de origem lusitana, ao ser adotado em textos e contextos traduzindo sua

vocação de Desejado e Encoberto numa outra territorialidade.

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3. Cidade do Paraíso Terreal

3.1. Existir num Território de Preparação para a Busca por

Jerusalém

Não é por acaso que, sucintamente, vamos em busca de uma reflexão sobre o

espaço, o local no qual estabeleceu-se o movimento popular da Serra do Rodeador, no

município de Bonito, em Pernambuco. A nomeação99 do local, tornado territorialidade

como Cidade do Paraíso Terreal, já indica contribuições de uma tradição bastante explorada

pelo imaginário cristão da Idade Média100 e reavivada com a chegada dos descobridores ao

Novo Mundo101. Traz consigo não apenas a imagem da abundância, da fartura material, da

beleza exuberante de uma paisagem, mas também outros elementos que trafegam em textos

utópicos que delineiam vontades humanas irriquietamente demandadas.

Antes de tudo me pergunto que forças estariam agindo para tornar singular um

espaço natural, desprovido de qualquer significação por si só, mas que desvenda um

significado para mim no mesmo momento em que é desvendado por mim. Podemos

detectar desde já semelhanças com a noção de “espaço” trazida pela Idade Média. O

espaço, tornado lugar, ganha um intervalo cronológico, ou topográfico, separando duas

referências, significando algo que está entre estas duas referências, afirmando uma vida a

preencher, ou a ser preenchida. Há um trabalho da criatividade traduzido em ação que

constrói como preenchimento do vazio, produzindo, processualmente, inscrições cinzelares,

lendo e marcando o território, transformando-o em territorialidade. Como diria a poética de

Paul Zumthor, o lugar é

cheio de um sentido positivo, estável e rico: [...] ele é o pedaço de terra onde se permanece, de onde

se pode sair, e para onde se pode voltar. Em relação a ele ordenam-se, assim, os movimentos do ser.

Pode-se dividir um lugar em partes, pois ele totaliza os elementos e as relações que o constituem. Um

99 A operação de nomear, neste caso, traz consigo energias do que se está tentando conhecer e dar sentido, do que se está tentando descobrir e, por isso, construir na aventura da existência de algo novo. “Definir de forma diferente, eu acho que é um dos maiores desafios a que podemos nos submeter. [...] Uma vez nominando ou definindo, desinstala-se o habitual, para que se encontre uma nova ‘linguagem’”. FERREIRA, Jerusa Pires, “Nome”, em TOMÁS, Lia (org.), De Sons e Signos: Música, Mídia e Contemporaneidade, São Paulo, EDUC, 1998, p. 95. 100 FRANCO JÚNIOR, Hilário. As Utopias Medievais. São Paulo, Brasiliense, 1992. 101 HOLANDA, Sergio Buarque de. Visão do Paraíso: os motivos edênicos e colonização do Brasil. São Paulo, Brasiliense/Publifolha, 2000. Ver também meu livro Dom Sebastião no Brasil: Fatos da Cultura e da Comunicação em Tempo/Espaço. São Paulo, Perspectiva, 2005, pp. 96-98.

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conjunto de signos se acumula e organiza-se em um Signo único e complexo. De onde podemos

concluir sua coerência, análoga a de um texto. Com efeito, um texto no qual se inscreve uma história.

Os eixos se cruzam, conforme se articulam as propriedades físicas e simbólicas da natureza102.

O lugar já indicava, no tempo medieval – e isso pode ser percebido também nas

ocupações espaciais e formações comunitárias das quais estamos interessados –, a

capacidade do encontro entre a natureza e a cultura, e também do encontro consigo mesmo

e com uma coletividade, desencadeando num processo ontológico, de construção de

pensares sobre uma nova existência, ou melhor dizendo, sobre uma possibilidade de

existência mais aprazível. E nos parece notável, partindo destas forças que conduzem à

construção de um lugar em conjunto com o olhar e a ação de indivíduos, a nomeação de um

dos locais onde houve manifestação popular sebastianista, como Cidade do Paraíso Terreal.

Já é instigante observarmos a perpetuação no tempo e no espaço deste texto-

matriz103 sobre a busca da situação perfeita perdida, ou como um texto que ressalta a

insatisfação perpétua com a condição humana no presente de quem vai atrás da perfeição

estampada na imagem do Paraíso Terrestre. No Ocidente Medieval de tradição judaico-

cristã, esse sonho coletivo teve bases sólidas na Bíblia, que se abre e fecha com a visão do

Paraíso perfeito. Segundo Hilário Franco Júnior, a primeira imagem era a do “jardim do

Éden, reflexo da sociedade agrária do Oriente Médio antigo”, e a segunda a “da Jerusalém

Celeste, reflexo da civilização greco-romana na qual os centro urbanos se constituíam nos

pontos vitais político, econômico e cultural104”. Mais a frente veremos como o movimento

da Serra do Rodeador estará envolto a essas duas imagens, tendo uma como

estabelecimento de uma certa tranqüilidade e estabilidade material e espiritual – momento

preparatório – e outra como lugar a ser alcançado em plenitude, mas que irá requerer

movimento em direção a uma utopia maior.

De início, se pensarmos na fisicalidade da região da Serra do Rodeador, em sua

constituição natural, veremos que o território é privilegiado, apesar de muito próximo à

102 ZUMTHOR, Paul. La mesure du monde: représentation de l’espace au moyen âge. Paris, Éditions du Seuil, 1993, pp. 51-52. 103 Sobre a idéia de um texto-matriz, ou grande texto que é criado e recriado, persistindo e sendo atualizado em soluções adaptativas, em uma poética de onde são captadas as significações míticas e sociais, conferir a importante contribuição de Jerusa Pires Ferreira, que busca definir, em um importante estudo, as complexas e “moventes” relações entre tradições poéticas orais e escritura. Ver Cavalaria em Cordel: o Passo das Águas Mortas. São Paulo, Hucitec, 1993.

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caatinga, porém já participando da região agreste do Nordeste brasileiro. Acompanhando

relatos coletados pelo professor Flavio José Gomes Cabral, “o lugar oferecia um quadro de

beleza indescritível, mormente suas belezas naturais – rochedos, florestas, flores e frutos

silvestres, água, ar puro, além de animais propícios à caça105”.

Visão rara seria esta aos olhos do sertanejo acostumado a todas as intempéries da

região. Além de incomum, a vista ganha aspectos extraordinários quando não há o costume

com a paisagem sempre verde e regada com água minando sem interrupção. Um riachinho,

uma mina d’água, transformam-se logo em uma cachoeira transbordante, um arbusto é

sentido como potencial de frondosa árvore cheia de frutos, uma plantação favorecida por

solo fértil e água contínua é promessa de abundância ininterrupta. Revela-se, com todas as

cores, cheiros, graças, as terras do Paraíso Terreal.

A natureza torna-se elemento de potência estrondosa despertando a memória do

Éden perdido. O Jardim das Delícias sempre foi aludido em textos dispersos e viajantes de

uma religiosidade popular católica embasada em trechos bíblicos da Missão Abreviada, em

orações, ladainhas, hagiografias, lendário do local etc. Sua reelaboração foi aguçada pelas

visões de místicos peregrinos do sertão, cantadores, contadores, enfim, por uma oralidade

nômade, única disposta a entregar-se com abundância imagética em qualquer grotão,

substituindo a parcimônia da presença física da Igreja Católica oficial e de suas palavras.

Nomear a Serra do Rodeador, ou Pedra do Rodeador, como Cidade do Paraíso

Terreal, antes de mais nada é fruto do disparo de uma percepção aguda enlaçando cultura e

natureza, deixando minar fios de algo que vai se desenhando e compondo-se no que

poderíamos reconhecer como paisagem. Um horizonte se abre. E “a paisagem se deixa ver,

mas, além do pitoresco, na ordem própria que a paisagem oferece, o ser humano, ao situar-

se nela visualmente, nela descobre as dimensões do seu ser106”. Portanto,

104 FRANCO JÚNIOR, Hilário, op. cit., p. 113 105 CABRAL, Flavio José Gomes. Paraíso Terreal: a rebelião Sebastianista na Serra do Rodeador – Pernambuco, 1820. São Paulo, Annablume, 2004, p. 66. 106 Conferir ensaio de Jean-Marc Besse sobre as concepções de Éric Dardel acerca de paisagem e geografia, nas quais o geógrafo explana, partindo de idéias pioneiras na área, a respeito de uma geografia como epistemologia e fenomenologia antes de ser uma ciência. Também nos é simpático, dentro das reflexões de Dardel, os caminhos tomados por ele em suas pesquisas relacionadas ao estudo do espaço geográfico como algo vivo. Para ele a geografia, por ser a inscrição do humano sobre o solo, é um sistema de sinais cheios de sentido, ou seja, uma escritura a decifrar e cuja significação última remete ao movimento da existência. Então, se a geografia como realidade é escritura, a geografia como saber deverá ser leitura, decodificação, interpretação dos signos dispostos sobre o solo ou na paisagem. BESSE, Jean-Marc. Ver a Terra: Seis Ensaios sobre a Paisagem e a Geografia. Tradução de Vladimir Bartalini, São Paulo, Editora Perspectiva, 2006.

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a profundidade da paisagem é a da existência. [...] a paisagem é expressão, e, mais precisamente,

expressão de existência. Ela é portadora de um sentido, porque ela é a marca espacial do encontro

entre a Terra e o projeto humano. A paisagem é mais mundo do que natureza, ela é o mundo

humano, a cultura como encontro da liberdade humana com o lugar do seu desenvolvimento: a

Terra107.

Passa-se do espaço como recorte físico, vazio de significados, apenas constatado

pelos limites da visão, a um estatuto de territorialidade, quando a percepção sobre o espaço

age em conjunto com vontades latentes, com um repertório de uma memória individual ou

também compartilhada por uma coletividade que passa, a partir daí, a narrar a sua história.

Ora, a Cidade do Paraíso Terreal, como elemento freqüente de todo um imaginário

constantemente reelaborado, apresentou-se, aos primeiros moradores do local que

avistaram a Serra do Rodeador, como uma revelação viva de suas premências para

finalmente refletir-se como sujeito que alcançou um espaço intuído. Os sertanejos, tanto os

destituídos de um mínimo de chão para cultivo ou atividade de outra ordem, como

pequenos agricultores e proprietários de terra, viam, nessa imagem, fundirem-se seus

sonhos. Daí o batismo da região ter grande significado para o desenvolvimento das

perspectivas dos seus habitantes.

E mais um pouco podemos avançar nesse sentido, quando damos importância ao

fato de que o Paraíso vislumbrado pela comunidade está em uma serra. Daí salta mais aos

nossos olhos retomarmos também outro detalhe sobre a cartografia idealizada para a

localização do Éden bíblico. Desde as primeiras descrições do Paraíso temos que sua

territorialidade se faz em uma montanha, como aparece no Antigo Testamento, mais

propriamente no Gênesis, trazendo uma carga simbólica ancestral da montanha vista, em

quase todas as mitologias, como um eixo do mundo, um local privilegiado de comunicação

com a esfera divina. Não são diferentes os anseios do movimento popular, com tendências

sebastianistas, estabelecido na Serra do Rodeador.

As energias contidas na montanha, e em sua matéria rochosa, concorrem para a

criação desta mística transcriada pelo amálgama de diversos materiais vindos da tradição

judaico-cristã e retrabalhados pela religiosidade popular, e pelo lendário oral que circulou

107 Idem, ibidem.

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por todo o Brasil. Há um sentido ascensional figurado pela montanha como uma elevação

ao Céu, como meio de entrar em relação com a Divindade, como um retorno ao Princípio.

Este aspecto é corrente em várias manifestações religiosas, mas quero destacar algumas

imagens que ocorrem na Bíblia muito relacionadas com sacrifícios (o de Isaac), milagres

(Elias, ao obter a chuva depois de ter rezado no cume de Carmelo), visões (revelação de

Deus a esse mesmo Elias no monte Horeb), teofanias (no monte Sinai para Moisés), e em

textos decorrentes do Livro Sagrado, como a localização do Paraíso Terrestre, por Dante,

na Divina Comédia, situando-o no pico da montanha do Purgatório108.

Quanto à pedra bruta, para muitos povos ela traz consigo a energia primordial do

trabalho da criação divina, quando não há a interferência do gesto humano, por isso mais

valorizada que a pedra entalhada. Ainda tomando a Bíblia, em algumas passagens do

Antigo Testamento, há a recomendação de se construir o Templo com pedra bruta, pois a

talhada recebe a marca do profano. Ainda há pouco a missa romana era celebrada sobre

uma pedra colocada dentro de uma cavidade no altar, na qual eram inseridas relíquias de

santos mártires109.

Ora, na Cidade do Paraíso Terreal todas as atividades relacionadas com milagres e

mensagens reveladas eram feitas em presença da pedra em estado natural, sem nenhuma

marca humana, porém coberta de atração e devoção pelo acontecimento gerado nela a partir

do movimento das expectativas paradoxalmente lançadas a uma matéria inerte, estática.

Poderíamos relacionar, ainda, inúmeras imagens tradicionais sobre materiais ou

acidentes geográficos, que trazem enorme riqueza de significados. Porém, é muito

pertinente ficarmos propensos a dar relevo às caras especulações de Bachelard sobre os

devaneios da vontade, já que ele fala exatamente sobre as forças que se apoderam do

homem e da matéria para gerar algum movimento. E talvez aqui encontraremos muito do

que desencadeia o respiro, o ventilar, o encantamento de olhares anteriormente presos a

108 Cf. verbete “Montanha”. In: CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro, José Olympio, 3a ed., 1990. As imagens bíblicas ganham maior concretude no sertão. Não há dúvidas quanto a isso. Abro aqui um parênteses para relatar experiência própria quando da minha viagem pelo sertão, em 2004, a São José de Belmonte, em Pernambuco. Um filme em DVD sobre uma versão do Êxodo foi apresentada durante a viagem de ônibus. A paisagem do filme era semelhante à que víamos pela janela do veículo, gerando comentários de moradores da região que faziam a mesma viagem. Duas comentadoras traziam especulações profundas da cena bíblica, reforçando que, sem dúvida, a leitura e discussão da Bíblia é prática intensa até hoje nos rincões sertanejos. A paisagem rochosa da Bíblia e a do interior nordestino se equivalem e mesmo se fundem no imaginário local. 109 Cf. verbete “Pedra”. Idem.

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imagens codificadas e decodificadas em signos construídos em torno de rígidos hábitos e

lugares comuns.

Bachelard, ao trabalhar uma poética sobre a rocha, sublinha o frenesi do olhar que

proporciona movimento às imagens estabelecidas pela tradição, quando nos dá indicações

de como se chega a uma alegria de estar diante da pedra, por exemplo, a ponto de promover

um certo desejo curioso frente à matéria dura e aparentemente estática. E constata-se então

que

Para encontrar no mundo de sensações e de signos em que vivemos e pensamos as imagens

primordiais, as imagens princeps, aquelas que explicam, juntos, o universo e o homem, é preciso, em

cada objeto, reavivar algumas primitivas ambivalências, aumentar mais a monstruosidade das

surpresas, é preciso aproximar, até que elas se toquem, a mentira e a verdade. Ver com olhos novos

ainda seria aceitar a escravidão de um espetáculo. Há uma vontade maior: aquela de ver antes da

visão, aquela de animar toda a alma com uma vontade de ver110.

Ver antes da visão consiste em disponibilizar e dar vazão às energias da vontade,

possibilitando a criação das imagens que darão concretude às imagens-pensamento capazes

de construir caminhos para o preenchimento da vida, de permitir o devir existencial sempre

em busca de algo mais, sempre na afirmação da vida. Isso não quer dizer que ícones, ou

representações, resolvam os anseios de imediato de quem os respeita, admira e vê neles

significações. Porém, podemos perceber que neles estão contidas potências de tomadas de

posição, de colocações diante da vida e do mundo, gerando movimento na renovação dos

anseios, auxiliando na lembrança das escolhas tomadas, ou acordando novas vontades,

edificando posturas, gestos, vozes de histórias que vão se desenhando.

A vontade de ver antes da visão, que anima toda a alma, como nos adianta

Bachelard em seus devaneios da vontade, revela-nos a potência da poética desenvolvida no

encontro entre o homem e os materiais da natureza; no caso ao qual estamos preocupados, o

elemento referencial é a rocha, a pedra, além do acidente geográfico montanha, formado

basicamente por esta matéria. Como vimos, sendo a rocha fonte primeva de encontro com o

sagrado, tanto por ser matéria sem profanação constituída com o respiro de Deus, quanto

como matéria formadora de montanhas, que guardam índices ancestrais como elemento

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ascensional às forças celestiais, faz-se muito importante prestarmos atenção às sintaxes aí

formadas, que irão nos dar ao menos pistas das linhas compositoras do movimento popular

rebelde da Serra do Rodeador.

E reforçando este desejo de contato com algo tão animado, beirando a sensação de

proximidade com forças divinas, de reencantamento do mundo, pelo menos duas entidades

faziam as vezes de mediadoras entre a esfera terrestre e a sagrada na comunidade formada:

Dom Sebastião e Nossa Senhora da Conceição. E é exatamente das rochas formadoras do

complexo montanhoso da Serra do Rodeador, que se manifestavam, ou se manifestariam,

estes entes.

3.1.1. A Santa da Pedra e Dom Sebastião: Delinear Territórios para a

Expansão de Limites em Busca de uma Utopia Misteriosa Maior

A voz de Deus, e/ou Seus gestos, geralmente foi recebida, nas escrituras bíblicas, de

modo direto por profetas e patriarcas da religião judaica e cristã. Podemos constatar que

fora desse espaço canônico consagrado, a presença e comunicação da mensagem divina foi

entregue, no catolicismo, a um verdadeiro panteão de homens e mulheres santificados.

Nas práticas da religiosidade popular, há como que uma aproximação maior com

estes santos e santas, uma íntima maleabilidade em termos de contato entre o mundo

profano e o sagrado. O respeito existe, evidentemente, mas pode conter maior ou menor

grau de reverência, chegando-se, em alguns casos, à punição do santo quando se entende

que não há o cumprimento de um pedido feito pelo fiel a ele.

Caso muito conhecido por todos é o da simpatia com Santo Antônio casamenteiro.

Desde meninas encantadas com a idéia de arrumar um esposo de boa cepa, de bolsos cheios

e verdadeiro galã, até solteironas já não muito dispostas a escolher parceiro tão perfeito,

dirigem-se a Santo Antônio para conseguir o matrimônio tão desejado. Coitado do santo,

que muitas vezes não atendendo de imediato o pedido – afinal a demanda deve ser enorme

–, tem sua imagem mergulhada em balde, ou poço, ou coisa que o valha, de ponta cabeça,

permanecendo nesse estado de afogamento até resolver a pendência.

110 BACHELARD, Gaston. A Terra e os Devaneios da Vontade: Ensaio sobre a Imaginação das Forças. São Paulo,

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No Brasil, este modo frouxo, mais relaxado, de trato com os santos e santas, parece

ter se configurado com mais naturalidade desde o período colonial. Já aludia a esta questão

Gilberto Freyre, quando trata das características gerais da colonização portuguesa no Brasil:

[...] Nem era entre eles a religião o mesmo duro e rígido sistema que entre os povos do

Norte reformado e da própria Castela dramaticamente católica, mas uma liturgia antes social que

religiosa, um doce cristianismo lírico, com muitas reminiscências fálicas e animistas das religiões

pagãs: os anjos e santos só faltando tornar-se carne e descer dos altares nos dias de festa para se

divertirem com o povo [...]; as mães ninando os filhinhos com as mesmas cantigas de louvar o

Menino-Deus; as mulheres estéreis indo esfregar-se, de saia levantada, nas pernas de São Gonçalo de

Amarante; os maridos cismados da infidelidade conjugal indo interrogar os “rochedos dos cornudos”

e as moças casadouras os “rochedos dos casamentos”; [...]111

Embora de maneira menos ousada que as descrições de Freyre, a proximidade com

a figura de Maria, mãe de Jesus, também é bastante descontraída. Basta nos lembrarmos de

uma das maiores peças de Ariano Suassuna sobre o universo sertanejo, construída a partir

de relatos populares de cantadores e cordelistas, O Auto da Compadecida, representada

inúmeras vezes no palco e ganhando roupagem nova no cinema de Guel Arraes. O

amarelinho João Grilo, personagem pícaro por excelência, goza de familiaridade, com

Nossa Senhora, semelhante a de filho para com a mãe, com direito a traquinagens e

carinhos próximos deste tipo de relação.

Quanto à importância e prestígio de Maria na religiosidade popular, devemos levar

em conta que isto é manifesto não só no Brasil. Talvez isso se dê por causa das qualidades

relacionadas à continuidade e proteção da vida contidas em seu carisma:

A religião popular, em todo o continente, estrutura-se na base de santuários, romarias,

peregrinações, promessas, devoções, ex-votos, festas. A Virgem Maria e os santos são o símbolo, o

ícone e o significado, que articulam todas essas expressões. Porém, sem dúvida, é a imagem de

Maria, na base de um fundo cultural cristão, a que cerca quase por completo o panorama como objeto

de profunda devoção[...] Se já a simbologia mariana não está diretamente ligada à natureza, como

Martins Fontes, 1991, p. 147. 111 FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo, Global, 2006, p. 84

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fonte de vida, como o é na religião popular agrária, permanece como figura ligada à gestação, ao

crescimento e à proteção da vida112.

A figura de Maria, a mãe de Jesus Cristo e de todos os homens, ganhou também

estatuto de uma maiores interventoras das causas humanas perante Deus. Isto, dentro da

religiosidade popular, é elevado a uma extraordinária potência. No sertão nordestino é

inegável e mais que transparente a devoção e respeito à Nossa Senhora.

Afim de ilustrar melhor todo o carinho para com a santa, vejamos uma “Excelência”

– canto de recomendação das almas muito cantado ainda no meio rural nordestino –

acoplado a um “ABC” – forma de poesia popular do Nordeste bastante utilizada por

cantadores e cordelistas. O exemplo a seguir é uma recriação literária de Ariano Suassuna

empregada por Antonio Nóbrega em seu CD Lunário Perpétuo. A música é composta a

partir de uma versão instrumental gravada pelo Quinteto Armorial, que, por sua vez, se

valeu de toadas populares.

Uma Excelência da Virgem,

Oh, mãe de Deus, rogai por ele, Mãe de Deus } Bis

Mãe de Deus, Mãe de Deus,

Oh, Mãe de Deus, rogai por ele, Mãe de Deus.

Mãe de Deus, Mãe de Deus.

Oh Mãe de Deus, rogai a Deus por ele...

Diz o A ... Ave Maria

Diz o B ... Brandosa e Bela

Diz o C ... Cofrim da Graça

Diz o D ... Divina Estrela

Diz o E ... Esperança Nossa

Diz o F ... Fonte de Amor

Diz o G ... Guia do Povo

Diz o H ... Honesta Flor

Diz o I ... Incenso d’Alma

112 PARKER, Cristián. Religião Popular e Modernização Capitalista: Outra Lógica na América Latina. Petrópolis, Vozes, 1995, p. 151, 167-168.

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Diz o J ... Jóia Mimosa

Diz o K ... Coro dos Anjos

Diz o L ... Luz Formosa

Diz o M ... Mãe dos Mortais

Diz o N ... Nuvem de Brilho

Diz o O ... Orai por Nós

Diz o P ... Por Vossos Filhos

Diz o Q ... Querida Mãe

Diz o R ... Rainha da Paz

Diz o S ... Socorrei Sempre

Diz o T ... Todos Mortais

Diz o U ... Uma Esperança

Diz o V ... Vale Profundo

Diz o X ... Xis dos Mistérios

Diz o Z ... Zelai o Mundo.

Muitos foram os papéis desempenhados, na Serra do Rodeador, por Nossa Senhora

da Conceição, um dos nomes de Maria, mãe de Jesus, reconhecida na região principalmente

pelo nome de Santa da Pedra. Um deles era o de restabelecer o contato com o divino como

interventora e norteadora dos passos daquela comunidade. Mas, antes de tudo, manifesta-se

na figura da santa o projeto de constituir a estabilidade dos participantes da comunidade em

uma memória comum, visando, para um futuro próximo, a jornada em direção a uma utopia

maior.

É claro que está em jogo, nesta espécie de função atribuída à Santa, uma tentativa de

ao menos organizar a comunidade, dando bom andamento e manutenção ao cotidiano do

grupo. Entre outras coisas, a formação populacional da irmandade é de muitas faces, de

diferentes condições sociais, diversos tipos fixos no sertão ou em peregrinação em busca de

sobrevivência. Não faltaram também alguns habitantes vindos do litoral. Um pouco mais

especificamente, instalaram-se na, ou contribuíram para a comunidade do Paraíso Terrestre,

desertores do exército – inclusive o líder do grupo –, pequenos agricultores, comerciantes,

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donos de algumas terras – como, por exemplo, o dono das terras da Serra do Rodeador, no

município de Bonito –, carpinteiros, moradores do mato, sem ocupação fixa, e outras

variedades, de modo que era preciso, primeiramente, um ordenamento destas diferenças em

um objetivo comum.

Porém, mais importante de tudo é o fortalecimento, no contato com a Santa da

Pedra em rezas e através dos seus conselhos entregues aos líderes do grupo, de uma

maneira de se posicionar diante do mundo em busca da vontade de afirmação da vida,

recuperando dignidade pessoal em uma vivência coletiva. Abre-se uma nova perspectiva ao

se posicionar de maneira diferente, que não a totalmente submissa, frente à ordem secular

representada pelos poderes oficiais dirigidos por setores institucionais como a Igreja e

Monarquia, mesmo que tomando características destas em se tratando de hierarquias e

práticas ordenadas de outro ponto de vista dentro da comunidade.

Mas, para melhor se acompanhar as ações e práticas descritas acima, tomemos as

notícias do dia a dia da Cidade do Paraíso Terrestre. Irei me basear, além de empregar

alguns trabalhos mais recentes que começam a ser desenvolvidos sobre este caso, em

documentos encontrados no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Os documentos fazem

parte de uma Devassa do Governo pernambucano realizada logo após o massacre do

movimento popular, em 1820. A intenção do documento era de justificar a ação bruta

desencadeada pelo governo. Desta maneira, há entrevistas de prisioneiros, testemunhas

locais e soldados que participaram da intervenção militar. Por esse motivo, não temos

exatamente a expressão das vozes de elementos da irmandade, mesmo em momentos nos

quais elas são partícipes da entrevista. Mas nas brechas, em detalhes das frases justapostas,

em repetições, dentro dos depoimentos, de passagens significativas de práticas cotidianas

do grupo, tentaremos vislumbrar algumas intenções do movimento.

Nossa Senhora da Conceição, a Santa da Pedra, era reverenciada em um mocambo

de palha onde também seria a morada de outras imagens de santos e do próprio Nosso

Senhor Jesus Cristo citado diversas vezes na Devassa. Este mocambo, construído próximo

a um conjunto de pedras, continha, em seu interior, em posição privilegiada, uma imagem

de Nossa Senhora da Conceição e um altar à sua devoção. A figura da Santa da Pedra foi de

imprescindível importância para os ritos de acolhimento dos indivíduos dentro da

Irmandade. Neste rito inicático de inclusão do neófito na irmandade, estariam envolvidas,

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desde já, qualidades de ações movendo energias transformadoras de uma existência

desencantada para outra encantada.

Perguntados sobre a maneira como era feita a acolhida de cada membro novo à

irmandade, percebe-se uma regularidade dos atos ali empregados, um repetir de gestos que

nos mostra cuidados mínimos para a integração na comunidade e, ao mesmo tempo, para

criar um sentimento de pertença em cada novo membro. Compartilha-se de um novo tempo

e espaço na participação de uma nova existência a ser preenchida.

Em muitas folhas do Auto da Devassa aparecem descrições das práticas de

confissão para o ingresso no grupo. Anteriormente eram feitas por dois padres da

vizinhança, José de Souza e Padre Bastos, que se negaram a prosseguir neste ato quando

souberam a que se destinavam as confissões. Mas logo o problema foi resolvido e nota-se

maior comodidade e conforto na nova maneira de se receber cada aspirante ao ingresso na

nova vida prometida. O ato confessionário de iniciação teve continuidade na presença da

Santa da Pedra, sendo proferida a absolvição e penitência por uma filha de um dos cabeças

do movimento chamado Manoel da Paixão. Vejamos um informe anterior em alguns dias

da invasão da Cidade do Paraíso Terreal:

[...] que os ditos homens são muito devotos por que exigem dos que querem se alistar se confessem,

e por que o Padre que confessou alguns dos ditos assim que soube que hera para similhante fim

reprehendia-os, e nunca mais quis confessar nenhum delles, porém elles vão ao lugar onde os ditos

homens estão e se confessão a Nossa Senhora da Conceição e huma filha do principal cabeça,

chamado Paixão he quem lança a absolvição, e lhe dá a penitência que logo cumpre pondo-se de

joelhos até final: [...]113

Desde os primórdios do cristianismo o exercício da confissão e da penitência está

ligado ao primeiro sacramento do perdão dos pecados, o batismo. Mais para frente estes

costumes são estendidos a uma penitência pós-batismal. Isto se deu de maneira mais forte

na manutenção de pequenas comunidades cristãs, quando estas:

113 ANRJ – Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Secção de Manuscritos. Devassa Acerca do Ajuntamento da Serra do Rodeador. Série Interior, Correspondência dos Presidentes da Província 1820-1821). IJJ9, 245, vol. 9, p. 8v. Doravante, quando extrair algum trecho da Devassa, darei a referência no corpo do texto da seguinte forma: (ANRJ, Devassa, p. 8, 8v.). O “v.” indica o verso da folha.

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[...] se achavam numa situação precária (vexação, ameaças de perseguição) e permaneceram

marcadas por uma viva expectativa da parúsia próxima do Senhor Jesus [...] Desta forma [...] o

“sacramento-juramento” do batismo foi vivido como um verdadeiro pacto entre Deus e o cristão: ele

marcava uma passagem definitiva do reino de Satã para o reino de Cristo, do “homem velho”, para o

“homem novo”, e múltiplos testemunhos nos fazem pensar que essa passagem era vivida de maneira

tão forte, talvez, quanto os votos solenes pronunciados hoje por monges e monjas114.

Ora, variada gama de intenções está contida neste ato, e é interessante notarmos o

poder ancestral, como o que vimos acima, que ele traz consigo, principalmente em

comunidades marginalizadas perante a Igreja oficial tais como as de cristãos, no começo de

sua história. Dentre os propósitos a serem atingidos no ato de se confessar, evidencia-se o

elemento catártico, que expurga o que corrompe e produz um movimento psicológico no

confessado o qual se permite aproximar-se da perfeição de sua busca, colocando-o em um

novo caminho ao qual acreditava não estar apto (passagem do homem velho ao homem

novo). Ao mesmo tempo exprime confiança do confessado no confessor, estabelecendo um

pacto entre estes dois atores, permitindo o compartilhar de crenças e aliança em torno de

uma mesma história, de uma mesma memória que vai se desenhando dentro da

coletividade. A confissão e a penitência estabelece o aceite cedido ao novo integrante da

comunidade, dando-lhe, no caso em que estamos debruçados, um sentido renovado ao seu

estar no mundo, quando é acolhido como indivíduo de uma sociedade através deste voto de

confiança, deste pacto, finalmente, deste diálogo a tanto tempo buscado.

Por outro lado, fica clara a estratégia da irmandade em conhecer o pretendente ao

ingresso no grupo. Há o intuito de proteção territorial e, por conseguinte, dos segredos que

fazem a territorialidade da região, a singularidade daquele espaço na vida cotidiana,

carregada de anseios e projetos coletivos. Eis então uma espécie de rito de aceitação de um

elemento estranho, de transformação deste elemento para inserir-se em uma nova vida a ser

afirmada em outros ritos, costumes, pensamentos e desejos constantemente criadores de

uma territorialidade em devir, com vistas a outras potências de movimento em direção a um

futuro almejado (incluindo elementos da parúsia, por exemplo) como veremos.

A Santa da Pedra, Nossa Senhora da Conceição, tem suas qualidades de protetora,

intercessora e advogada mediadora entre o povo e a divindade maior, exploradas neste

114 LACOSTE, Jean-Yves (dir.). Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo, Paulinas: Edições Loyola, 2004. Cf. verbete

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primeiro ato de passagem para uma nova existência dentro da Cidade do Paraíso Terreal.

Um dos seus papéis é exercido na prática sacerdotal do exercício do sacramento do perdão

dos pecados. Como grande mãe universal, inclui o aspirante no seio da irmandade da Serra

do Rodeador.

Já em outra situação, são relatadas, como algo profuso, as ocorrências de milagres

dentro da comunidade. O agente protagonista destes pequenos eventos singulares no

cotidiano daquela região é também a Santa da Pedra. Embora não tenhamos relatos dos

milagres constantes no possível anedotário do movimento da Serra do Rodeador – afinal, o

Auto da Devassa não se preocupou em dar voz a esse tipo de fenômeno, dando maior

ênfase ao objetivo categórico de classificar os elementos do grupo pejorativamente como

fanáticos e supersticiosos, tratando-os como enbusteiros –, muitas testemunhas e

prisioneiros depoentes repetem o valor dos milagres como algo marcante na vida dentro da

Cidade do Paraíso Terreal. Sabemos que havia um conjunto de narrativas de milagres,

atribuídos à Santa, elaborado e disseminado pelos líderes do movimento como os

citadíssimos, no Auto da Devassa, Silvestre César, o principal, secundado por Manoel

Gomes e Manoel da Paixão. Por exemplo, vejamos alguns extratos de depoimentos que

deixam claro o poder aglutinador de pelo menos boatos sobre milagres na região. Assim

relata o depoente Manoel Gonçalves da Silva, Tenente Quartel do Esquadrão de Cavalaria

número doze:

[...] que a dita gente concorrêo alli, como hé publico, e constante, e concorria já em outras noites

anteriores por effeito da devoção do Terço e Novena que alli se fazião em hum grande mocambo, que

servia de Capella, aonde havia algumas Imagens, sendo toda ella pobre, e miseravel, e muito

ignorante, que alli ia a pé indusida pela crença das penitencias, e milagres de huma Senhora, que alli

se dizia ter aparecido: [...] (ANRJ, Devassa, pp. 55-55v)

Muito parecido também é o depoimento de José Joaquim Pereira, negociante da

região do município de Bonito:

[...] tinhão feito huma especie de Irmandade, erigindo hum mocambo a titulo de Capella, ou Oratorio,

e ahí se conjugavão de noite, rezando Terços, e fazendo novenas, querendo persuadir ao pôvo, que

huma Senhora, que alli havia, fazia milagres [...] (ANRJ, Devassa, p. 74)

“Penitência”.

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Apesar da pouca descrição das práticas alimentadas no local, e da inclinação em

taxar estas ações de absurdos compactuadas por pessoas “pobres”, “miseráveis”,

“ignorantes” (não nos esqueçamos estar diante de um Auto investigativo do governo

Pernambucano), podemos observar propósitos de construção de uma territorialidade

comum aos moradores da Serra do Rodeador e seus visitantes. A memória de milagres faz

parte de uma memória que amalgama eventos, escrevendo uma história possível, criando a

opção de se fazer parte de algo que está em processo, portanto, configurando um

sentimento de pertença dos membros do grupo.

O milagre, em sua dimensão vocabular, traz consigo, desde o início, a tentativa de

expressar acontecimentos que se constituem como exceção às leis da natureza. Atribui-se

estes eventos à divindade, porque inexplicáveis de outra maneira. Há, na acepção da

palavra milagre, a experiência de viver o reencantamento do mundo na sucessão de eventos

milagrosos, como um pensamento do sinal, como “semente de fé” para a teologia cristã. “O

milagre reaparece assim como sinal e, precisar-se-á, como sinal messiânico e escatológico.

Perceber esse sinal requer, portanto, um poder de interpretar, e a interpretação é espiritual

antes de ser racional115”. Sinal messiânico e escatológico, o milagre condiz, desta forma,

com a revelação sendo vivida, narrada, interpretada no processo de reencantamento do

mundo. (Claro que a Igreja Católica Oficial irá requerer a legitimidade de sua leitura sobre

cada sinal, elegendo-se como única instituição capaz de comprovar um verdadeiro milagre,

tachando as demais leituras de fanatismo ou superstição.)

Os milagres de Nossa Senhora, da Santa da Pedra, contêm fagulhas preparativas da

grande revelação desejada e aguardada pelos partícipes da irmandade. Não é por acaso que

as narrativas dos milagres e de outras histórias acerca de Dom Sebastião, que logo iremos

tratar, eram acompanhadas de rituais repetitivos como a devoção do terço e realização

regular de novenas noturnas.

Parece claro, e gostaria de ressaltar novamente, a elaboração, nestes atos, de um

sentido de pertença a uma comunidade, a um espaço que recebe marcas próprias singulares

de territorialidade, a um mundo em construção que dá envergadura a um sentimento de

existência ao se realizar o ritual com repetição. Gera-se, nestas condições, o ordenamento

115 LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário Crítico de Teologia, op. cit., verbete “Milagre”.

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das ações e da temporalidade e espacialidade configurados no momento ritualístico: “[...] o

rito poderia ser entendido como uma ação simbólica que organiza a experiência de sentido

do homem no mundo, onde a ênfase, porém, tende a recair mais sobre a ação e a

organização prática do que sobre a ‘simbólica’ da ação”116.

Importantíssimo esse papel do ritual para nós, já que o caráter topológico e

cartográfico nos dá a base de nossas especulações para compreender a manifestação da

figura de Dom Sebastião em espaços/tempos diferentes. No caso nordestino sertanejo, a

expressão ritualística está intimamente ligada a um processo de reencantamento do mundo,

quando observamos que o desencanto muitas vezes está profundamente relacionado a uma

falta de chão desarticuladora de algum possível sentido de estar no mundo. Deste modo, o

conjunto de ritos, nestes casos, parece-nos reter um fundo importantíssimo para pensarmos

sua contribuição na potência de engendramento de espaços sagrados inaugurais de

movimentos populares rebeldes religiosos como o da Cidade do Paraíso Terrestre:

Na realidade, o sagrado é sagrado porque está aqui e porque nós lhe dedicamos uma atenção

particular. É, pois, o espaço que passa a ser valorizado, sublinhado, tornado significativo até se tornar

sagrado. Mas o espaço adquire essa força sacral e ritual ao mesmo tempo, ao ser um lugar de

clarificação, um lugar que ordena todas as coisas, um lugar onde os homens e as divindades

conquistam a sua transparência, enquanto tudo é ordenado e encontra o seu posto, e, portanto, a sua

importância117.

É uma memória em comum que vai sendo tecida, alimentada com constância e

vivida com intensidade:

[...] é essencial sublinhar que o fenômeno mesmo do ritual tem um caráter peculiar. No ritual,

desempenha um papel fundamental a organização da memória, e o próprio ritual é um mecanismo

para fazer partícipe o indivíduo da memória do grupo118.

A organização da memória, enfeixando-se como texto de cultura, está ligada a

momentos de busca – notadamente no caso da Serra do Rodeador – de uma afirmação de

116 TERRIN, Aldo Natale. “O Rito: Por Necessidade e por Jogo”, em O Rito: Antropologia e Fenomenologia da Ritualidade. São Paulo: Paulus, 2004, p. 162. (Coleção Estudos Antropológicos) 117 TERRIN, Aldo Natale. “Espaço e Rito”, em op. cit., p. 202. 118 LOTMAN, Iuri M. “Sobre la dinámica de la cultura”, em La Semiosfera III – Semiótica de las artes y de la cultura. Tradução para o espanhol de Desiderio Navarro. Madrid: Ediciones Cátedra, 2000, p. 195.

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vida. Experimenta-se, cria-se, entra-se em ação num espaço, sustentando a singularidade do

grupo. Entendemos, portanto, a territorialidade formada daí, não só como elemento

espacial, mas também como tessitura de gestos, modos, costumes, crenças, ritos. Uma

malha social, política, religiosa, cultural vai sendo costurada e estruturada, entretecendo

elementos tradicionais e acontecimentos e eventos do contexto experienciado. Estes

encaixes dependerão das economias “desejantes” dos indivíduos partícipes da coletividade.

Se temos que os desejos geram demanda e deixam de ser desejos quando consumados,

podemos conjecturar que a malha cultural estará em desenvolvimento sempre, com fios

desterritorializados que podem ser territorializados de acordo com as vontades do grupo a

serem almejadas passo a passo.

Em outras palavras, os desejos implicados nas buscas de movimentos criadores que

percebem outras faces da realidade, que extrapolam lugares comuns, são agenciadores de

novas linhas compositoras da malha textual do grupo, em demanda de uma utopia maior;

no caso do movimento da Serra do Rodeador, a utopia central tem ligação direta com a

mística popular cristã.

Afim de ir mais longe em minha tentativa de sentir melhor estes momentos e

movimentos de constituição territorial da Cidade do Paraíso Terreal, permito-me invocar

ainda o conceito-imagem “ritornelo” tão caro a Gilles Deleuze e Félix Guattari. A imagem

de uma grande sinfonia compondo o território, na qual da função se passa à expressão, da

organização a objetivos, resgata o processo de uma espacialidade sendo edificada sempre

em devir, em projeção ao futuro.

Não busco um esquema rígido na tentativa de demarcar estágios operacionais da

constituição de uma territorialidade, mas penso que esta territorialidade é formada pelas

práticas em processo, não em regime evolutivo. Ou seja, se agora separo as ações dentro do

grupo, é para visualizar o conjunto em processo de demanda expressiva dentro da

comunidade, desde sua tentativa de criar um centro estabilizador do indivíduo e do

coletivo, até sua expressão mais como uma vontade de ter do que de ser.

A freqüência de alguns rituais já vistos, funciona como uma espécie de música

repetitiva com a qual uma criança no escuro tranqüiliza-se cantarolando. “Ela anda, pára, ao

sabor de sua canção. Perdida, ela se abriga como pode, ou se orienta bem ou mal com sua

cançãozinha. Esta é como o esboço de um centro estável e calmo, estabilizador e calmante,

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no seio do caos. (...) a canção salta do caos a um começo de ordem no caos...”119. As

novenas, a devoção do terço, a confissão e penitências, as ladainhas, tudo isso, apesar de

constituir práticas diferentes, funciona como um “‘nomo’ musical, uma fórmula melódica

que se propõe ao reconhecimento [de si no espaço], e permanecerá como base ou solo da

polifonia (cantus firmus)”120.

Veja que essas práticas iniciais repetitivas são ainda tomadas de organizações

instituídas, seguindo tradições da ritualística da Igreja Católica. Fazem parte do

reconhecimento do grupo no espaço, no mundo. Se isoladas do conjunto de ações

realizadas na comunidade, nos dão uma idéia de vinculação com os costumes relacionados

à ordem vigente do Estado ou da Igreja. Tanto é assim que são vistas como normativas e até

salutares nos depoimentos do Auto da Devassa. Muitos dos depoentes admitem que aí não

há nenhuma ofensa aos costumes e preceitos da religião instituída, mas sim um alto grau de

crença e fé nestas práticas cotidianas dos devotos da irmandade da Serra do Rodeador.

Porém, há outros intuitos sendo trabalhados nesta repetição de ritos. Edifica-se um

estar em casa, instala-se um estar a vontade, incuti a sensação, em cada membro daquela

coletividade, de fazer parte de algo, inclusive da construção deste algo:

Mas agora são componentes para a organização de um espaço, e não mais para a

determinação momentânea de um centro. Eis que as forças do caos são mantidas no exterior tanto

quanto possível, e o espaço interior protege as forças germinativas de uma tarefa a ser cumprida, de

uma obra a ser feita. Há toda uma atividade de seleção aí, de eliminação, de extração, para que as

forças íntimas terrestres, as forças interiores da terra, não sejam submersas, para que elas possam

resistir, ou até tomar algo emprestado do caos através do filtro ou do crivo do espaço traçado121.

Eis um momento em que a comunidade começa a traçar a sua assinatura, a compor a

sua polifonia singular. A voz de Nossa Senhora da Conceição, a Santa da Pedra, orienta a

comunidade através de suas indicações entregues ao mediador, ou mediadores líderes do

grupo: Silvestre César, Manuel Gomes, Manuel da Paixão e outros. A grande Lei secreta

revelada, aos poucos, à irmandade, também é transmitida pela Santa da Pedra. Ela lança a

proposta da Nova Aliança do Divino com aquele povo que se considerava eleito, seguindo

119 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 4. Coordenação da Tradução, Ana Lúcia de Oliveira, São Paulo, Editora 34, 1997, p. 116. 120 Idem, p. 118.

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os preceitos e crendo no que chamavam de verdadeira religião122. Certamente o momento

dessa revelação harmoniza definitivamente uma história comum, protege e prepara as

forças germinativas de uma tarefa a ser cumprida, ao mesmo tempo em que instala um

instante tensivo na história do grupo. Há uma euforia sendo alimentada pela latência da

promessa ainda misteriosa, ainda espectral, de contornos tênues, mas os movimentos ainda

são retesados.

Vários depoimentos podem nos dar idéia do estado tenso sendo vivido em

exercícios militares realizados diariamente, no período noturno, após as rezas e conversas

da comunidade, até o amanhecer123. Estes exercícios e marchas, incansavelmente

trabalhavam a proteção contra as forças do caos, exteriores à Cidade do Paraíso Terreal,

criando uma disciplina bélica, dentro do espaço social e religioso. Além disso aproveitava e

manipulava as forças tensivas de expectação, em pról de um estágio preparatório,

contribuindo para o fortalecer a hora exigida para qualquer próximo passo em direção às

promessas da Santa da Pedra.

Notável percebermos que é das forças do caos (exercícios e marchas militares

próprios da monarquia) que se apropria o grupo para sua própria proteção. Longe de uma

percepção ingênua do mundo, estamos diante de uma vontade de participar realmente de

todas as conseqüências das tomadas de posição ao se propor como diferente.

E enfim, estabelecida a territorialidade composta por diversas linhas que dialogam

(histórias pessoais, costumes dos membros da irmandade, vivências passadas e presentes

em relação ao grupo, eventos e acontecimentos dentro e fora do grupo, textos bíblicos,

rituais, milagres, sagradas revelações etc), constituído o aconchego territorial como já se

podendo desfrutar da intimidade da casa e de suas extensões, abre-se o círculo:

[...] nós o abrimos, deixamos alguém entrar, chamamos alguém, ou então nós mesmo vamos para

fora, nos lançamos. Não abrimos o círculo do lado onde vêm acumular-se as antigas forças do caos,

mas numa outra região, criada pelo próprio círculo. Como se o próprio círculo tendesse a abrir-se

para um futuro, em função das forças em obra que ele abriga. E dessa vez é para ir ao encontro de

121 Idem, pp. 116. 122 Note-se a tradição ancestral judaica de recepção das Novas Leis de Aliança com Deus na montanha e em rochedos, sendo revisitada neste movimento popular como já havíamos assinalado. 123 Não pode ser tomado com estranhamento a presença de atividade militares na irmandade. Ela é herança dos líderes do grupo e de alguns componentes, que a ele foram se integrando, desertores do exército imperial na colônia.

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forças do futuro, forças cósmicas. Lançamo-nos, arriscamos uma improvisação. Mas improvisar é ir

ao encontro do Mundo, ou confundir-se com ele. Saímos de casa no fio de uma cançãozinha. Nas

linhas motoras, gestuais, sonoras que marcam o percurso costumeiro de uma criança, enxertam-se ou

se põe a germinar “linhas de errância”, com volteios, nós, velocidades, movimentos, gestos e

sonoridades diferentes124.

Eis finalmente a emergência da figura de Dom Sebastião e todas as forças de

movimento que dá ao grupo sua figura, quando relacionada às potências messiânicas,

sustentando elementos do cavaleiro cruzado, de Imperador dos Últimos Dias. A aventura

humana escolhida, com a manifestação de Dom Sebastião em favor da irmandade da Serra

do Rodeador, é direcionada à eterna busca pela utopia maior de outro espaço sagrado,

almejado como encontro definitivo do secular com o divino, no espaço da Nova Jerusalém.

E é ainda a Santa da Pedra que abre o círculo para a entrada da figura bélica, mítica

e messiânica de Dom Sebastião, capaz de lançar a irmandade novamente ao mundo após

seu auto preparo interno. A grande revelação aguardada pelos integrantes da sociedade, que

já se formava há 11 anos organizando suas forças, é a afluição, finalmente, do reino

encantado de Dom Sebastião e do próprio rei. O relato de Manoel Pereira dos Santos,

morador daquela região, nos mostra este momento com bastante clareza:

[...] que naquela vizinhança se tinhão anexado muitas famílias de milicianos desertados, e de outras,

que para alli tinhão concorrido, por ser bom o terreno, os quaes fazendo sociedade, se auxiliavão

mutuamente e andando armados fasião hum corpo respeitavel, que daria por cincoenta pessoas,

sendo estas, as que frequentavao o tal Oratorio, e as que apregoavão o milagre da Senhora, juntando

outras historias, de que por ella se havia de desencantar hum Reino, e vir El Rey Dom Sebastião, e

outras semelhantes, sendo os principaes deste reino hum Silvestre de tal, Francisco Gomes, Rufino

Cardozo, e seus dous filhos, Estevão, Ferreiro e seu filho Jozé [...] (ANRJ, Devassa, pp. 75 v, 76,

76v)

Somos levados a crer que a figura encantada de Dom Sebastião estava presente

desde o início do assentamento humano na região. Possivelmente Silvestre César125 teria

124 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix, op. cit., pp. 116-117. 125 “Silvestre César, esse era o nome pelo qual seus familiares interpelavam o ex-soldado do 12o Batalhão de Milícias de Bonito, Silvestre José dos Santos ou Mestre Quiou, como era conhecido o fundador do arraial da Cidade do Paraíso Terrestre, entre seus seguidores. Foi ele o primeiro a chegar naquelas terras, fazendo alguns acertos com o senhor da referida sesmaria. Ali se estabeleceu, em companhia do cunhado Manoel Gomes das Virgens, desertor do mencionado batalhão de milícias. Os forasteiros chegaram por ali entre os anos de 1811 e 1812, segundo disse João Francisco da Silva,

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tido contato com as narrativas sobre o rei durante sua carreira militar (uma hipótese

bastante plausível é de que a figura bélica – um protótipo de cruzado – de Dom Sebastião

era bem divulgada e difundida dentro do exército português no período do Brasil colônia).

O ex-soldado do 12o Batalhão de Milícias de Bonito havia, de fato, se entusiasmado com

estas narrativas, iniciando sua propagação desde Laje do Canhoto, em Alagoas, de onde, e

há relatos na Devassa (p.57v e 60), já havia sido expulso pelas autoridades exatamente por

tentar difundir profecias sebastianistas.

Partindo das experiências de Sivestre César e das histórias contadas sobre Dom

Sebastião dentro do cotidiano da comunidade, que se vai formando uma mística em torno

da imagem do jovem monarca. Sempre será tido como um elemento potencial que há de vir

para o próximo passo daquele povo cada vez mais crente como eleito a uma grande missão.

Embora presente em relatos proféticos, sua figuração através de uma representação

icônica é impossível por se tratar de um elemento que não está presente ainda, mas deve se

desencantar. Apenas as narrativas orais e um pequeno objeto de fetiche angariam potência

para afirmar e fortalecer as crenças da comunidade.

Dentro do oratório, onde havia vários objetos de culto, imagens de santos, do Bom

Jesus e de Nossa Senhora da Conceição, concorria também uma outra coisa bem intrigante

que chamou a atenção de um dos espias do exército, Manoel Gonçalves da Silva, Tenente

Quartel Mestre do Esquadrão da Cavalaria número 12. Diz o Tenente que na noite do

ataque ouviu inúmeras orações do costume local e que, dentre outras coisas, viu que os

participantes do ajuntamento humano “veneravam hum caixãozinho, em que dizião estar a

Coroa de Dom Sebastião” (ANRJ. Devassa, p. 55v). Este objeto traz consigo potências

simbólicas firmando a crença no Encoberto, no rei desaparecido em uma batalha longínqua,

mística, na qual foi resguardado para uma missão messiânica, tendo seu corpo místico de

rei presente no maior símbolo da realeza que é a coroa.

E parece-nos, antes de tudo, que a grande força desta figura mítica encantada e

invisível é relançada em diversos momentos de resistência humana devotada na fé do fato

apocalíptico. Esta manifestação está profundamente ligada a um território preparado e

definido – com toda sua carga aglutinadora de memória compartilhada e de princípios

identitários –, e deve lançar-se para a conquista de sua definitiva afirmação diante do

em seu depoimento (ANRJ. Devassa, p. 60)”. Cf. CABRAL, Flavio José Gomes. Paraíso Terreal: a Rebelião

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diferente126.

É notável, e pedimos licença aos possíveis interessados nesse trabalho, um exemplo

vindo da vigorosa literatura de Ismail Kadaré. Seu romance Os Tambores da Chuva (O

Castelo), que trata, dentre outras coisas, de um cerco muçulmano a um castelo cristão na

Albânia, dedica algumas palavras colocadas na boca desesperada de um dos chefes da

operação que cerca o castelo e não consegue nunca a rendição dos seus habitantes. Discursa

ele sobre a imagem rápida, solta, fluídica do guerreiro carismático muçulmano convertido

em cristão, que por isso carrega dois nomes, George Kastriota-Skanderbeu. E neste

discurso são apontadas as potências deste tipo de manifestação de uma entidade

carismática, que paira sobre uma guerra, por exemplo, instigando seus aliados à resistência

e defesa de seu cabedal social, político, religioso, cultural, e demonizando, com seus

incertos aparecimentos surpeendentes, a força que tenta ser desmanteladora da diferença

quando na conquista e submissão do outro. Assim contava o chefe da intendência a Mevla

Tcheleb, o cronista islâmico da guerra romanceada por Kadaré:

– É preciso distanciar a Albânia de Skanderbeu, é a única solução – disse o chefe da intendência. –

Mas ele faz o possível e o impossível no sentido contrário. Sabe que vai perder a guerra. Apesar

disso, mantém-se aferrado à Albânia.

“Que vão os dois para o inferno, ele e a Albânia”, pensou o cronista, mas não ousou dizer nada.

– Ele age de maneira pouco usual – prosseguiu o outro.

– Nada, nada usual... Ainda há pouco falei-lhe do céu, onde os povos guardam suas

preciosidades... Ele desde agora atua tendo em mente o céu. Não sei se você me acompanha. Ele

procura criar uma Segunda Albânia, inexpugnável para quem quer que seja, em tempo algum.

De forma que, quando esta Albânia da terra tombar, seu fantasma, sua sombra, vagará pelos

céus... Não sei se me compreende. – Efetivamente o cronista compreendia cada vez menos. – Ele

se entrega a algo que poucas vezes já ocorreu a alguém: a reciclagem da derrota. É como se ele a

relançasse na guerra, mais uma vez e mais outra...

[...] Os dedos do chefe da intendência quase arrancavam as contas do rosário.

– Ele nos obrigará a combater sua sombra, compreende, Mevla Tcheleb? A enfrentar, como direi,

sua miragem, a imagem de sua perda. E pode-se vencer uma perda, uma miragem? É como

Sebastianista na Serra do Rodeador – Pernambuco, 1820. São Paulo, Annablume, 2004, p. 64. 126 Cabe aqui ressaltar que o posicionamento perante o diferente, quando parte da idéia de povo escolhido por um herói mítico salvador, tanto carrega potências de defesa diante de ameaças do esfacelamento de objetivos constituídos dentro de determinada comunidade, quanto pode exaltar-se perigosamente em direção a sentimentos tirânicos. Esses posicionamentos podem ser vistos com profundidade na esplêndida obra de Ernst Cassirer, O Mito do Estado, tradução de Álvaro Cabral, São Paulo, Códex, 2003.

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tentar escavar o que já é um buraco. Ele já é o vazio, nada sofre, ao passo que você pode se

arruinar na escavação...127.

Parece que a imagem de Dom Sebastião tem a mesma vocação da figura à qual

Ismail Kadaré descreve em seu notável romance. Como vencer uma personagem

carismática, ainda mais quando é acompanhada por um misterioso desaparecimento,

ganhando estatuto de figura encantada, prestes a retornar em qualquer tempo, em qualquer

espaço, em qualquer processo criativo e comunicativo, sempre em viagem virtual para ser

atualizada? E como derrotar a derrota, quando esta é tomada não como um fim, mas como

uma ruptura necessária para a continuidade de um processo utópico, um evento não de

morte e aniquilamento de forças, mas de renascimento, reflexão sobre a própria posição no

mundo e renovação de pensamentos já estagnados, altamente hierarquizantes, de signos

extremamente enrijecidos por dogmas de caráter institucionalizador? É muito clara a

presença destes elementos todos na leitura que fazem os integrantes da Serra do Rodeador

sobre o papel de Dom Sebastião em seus destinos.

E nesse momento verificamos também, em alto grau de identificação, a figura de

Dom Sebastião como integrante singular das leituras sobre o Apocalipse empreendida pelo

movimento de religiosidade popular que estamos discutindo. Este tema, tão caro a toda

tradição judaico-cristã, aparece aqui amparado pela narrativa de João, que já é uma

retomada dos outros textos apocalípticos da Bíblia desde o Antigo Testamento, como o

livro de Daniel. Elementos impressionantes desta narrativa são transcriados, por meio de

encaixes de vários textos proféticos, como acontece nas Trovas do Bandarra contendoras

do elemento sebastianista e mesmo apocalíptico escatológico (que certamente corriam no

ambiente militar da colônia de onde provinham os líderes do movimento), e do próprio

Apocalipse de São João. Vejamos um trecho deste texto Bíblico:

O primeiro combate escatológico – Vi então o céu aberto: eis que apareceu um cavalo

branco, cujo montador se chama “Fiel” e “Verdadeiro”; ele julga e combate com justiça. Seus olhos

são chamas de fogo; sobre sua cabeça há muitos diademas, e traz escrito um nome que ninguém

conhece, exceto ele; veste um manto embebido em sangue, e o nome com que é chamado é Verbo de

Deus. Os exércitos do céu acompanham-no em cavalos brancos, vestidos com linho de brancura

127 KADARÉ, Ismail. Os Tambores da Chuva (O Castelo). Tradução do albanês por Bernardo Joffily. São Paulo, Companhia das Letras, 2003, pp. 162-163.

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resplandecente. Da sua boca sai uma espada afiada para com ela ferir as nações. Ele é quem as

apascentará com um cetro de ferro. Ele é quem pisa o lagar do vinho do furor da ira de Deus, o

Todo-poderoso. Um nome está escrito sobre seu manto e sua coxa. Rei dos reis e Senhor dos

senhores128 .

E o Bandarra assim retoma este Apocalipse de São João, amalgamado a outras

narrativas apocalípticas tanto bíblicas como de invenção popular:

SONHO SEGUNDO

XCIX

[...]Já o tempo desejado

É chegado

Segundo o firmal assenta

Já se passam os quarenta

Que se ementa

Por um Doutor já passado.

O Rei novo é acordado

Já dá brado:

Já arressoa o seu pregão

Já Levi lhe dá a mão

Contra Sichem desmandado.

E segundo tenho ouvido,

E bem sabido,

Agora se cumprirá:

A desonra de Dina

Se vingará Como está prometido.

C

O Rei novo é escolhido, E elegido, Já alevanta a bandeira

Contra a Grifa parideira

Que tais pastos tem comido;

Porque haveis de notar, E assentar

Aprazendo ao Rei dos Céus

Trará por ambas as Leis,

128 Bíblia de Jerusalém: Nova Edição Revista e Ampliada. São Paulo, Paulus, 2002. Apocalípse de São João, capítulo 19, versículos de 11 a 16. Este trecho faz parte do que a Bíblia de Jerusalém chama de 3a parte com o

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E nestes seis

Vereis coisas de espantar. [...]

CIV

[...] Este Rei de grão primor,

Com furor,

Passará o mar salgado

Em um cavalo enfreado,

E não selado,

Com gente de grão valor.

CV

Este diz, socorrerá,

E tirará,

Aos que estão em tristura,

Desde, conta a Escritura,

Que o campo despejará,

Os Fidalgos estimados,

E desprezados, Que até agora são corridos,

Com o tal serão erguidos,

E mui queridos,

E com os Reis estimados. [...]

SONHO TERCEIRO

CL

[...]Vejo erguer um grão Rei

Todo bem aventurado, E será tão prosperado,

Que defenderá a grei.

CLI

Este guardará a Lei

De todas as heresias,

Derrubará as fantasias

Dos que guardam, o que não sei.

CLII

tíjtulo de “O Extermínio das Nações Gentílicas”, que contém, com mais evidência, elementos messiânicos,

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Vejo sair um fronteiro

Do Reino detrás da serra,

Desejoso de pôr guerra

Esforçado cavaleiro.[...]

CLVII

[...] Servirão um só Senhor

Jesus Cristo, que nomeio,

Todos crerão, que já veio

O Ungido Salvador.

Ora, todos os textos ditos apocalípticos vindos da tradição judaico-cristã, tomados

em seu contexto histórico, com sua força imaginativa e seu poderoso conteúdo simbólico,

foram uma fonte de esperança para as vítimas da opressão e da alienação. Tratam sempre

de algo revelado a um povo escolhido, marcado para sair dos grilhões do poder secular.

“Escritos ambos durante perseguições, Daniel e Apocalipse de João, recusaram-se, tanto

um como o outro, a aprovar os que queriam opor-se a eles pela violência. Suas visões

inspiraram um modo de ver o mundo para o qual era melhor dar a vida do que renunciar aos

princípios de sua fé”129.

Não é diferente a concepção da irmandade da Cidade do Paraíso Terreal. Dom

Sebastião traz em potência todas estas forças messiânicas para implementar os Mil Anos de

Felicidade que reinariam sobre a Terra, também constantes nas visões apocalípticas de

cunho messiânico. E este rei Encoberto e encantado tem seu espectro intensificado, se

prestarmos atenção nos depoimentos da Devassa, quando se percebe que a ameaça de

ataque aos fiéis da irmandade é iminente:

[...] e que El Rey D. Sebastião havia de vir, sendo desencantado, e que havião de aparecer

Tropas para os defender se fossem atacados, tudo por milagres, e por esta fórma indusião ao

pôvo, quando por ser a coberto de qualquer perseguição [...] (ANRJ, Devassa, pp. 74-74v)

E diziam mais, para receber novos adeptos, que poderiam querer entrar na sociedade

escatológicos e milenaristas. 129 LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário Crítico de Teologia, op. cit., verbete “Apocalíptica”.

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pouco antes do dia fatídico do massacre imposto ao movimento popular. Assim declara o

espia Manoel José da Silva que chegou a receber permissão para entrar na irmandade:

[...] e estava admitido na dita Sociedade, a qual era muito boa, que ali ninguém havia

morrer, e que, ainda que houvesse, quem quisesse atacar os indivíduos, que o compunham,

não haveria chumbo, nem bala, que fizesse mal; que ali havia um encanto de donde e dele

havia sair El Rei Dom Sebastião José, que era o Grande Poderoso, a quem todos devião

obedecer, que toda aquela Sociedade devia estar pronta a defender sempre os direitos de El

Rei Dom Sebastião José e a castigar a todos aqueles que ali quisessem contrariar [...]

(ANRJ, Devassa, pp. 44v-45)

Chegam também a desprezar a autoridade do rei Dom João VI, rei de Portugal

naquela altura, acrescentando que ele seria bem recebido na nova sociedade que se

instalaria no mundo caso ele obedecesse às Novas Leis da Nova Aliança. Mas não

perdoavam o general Luiz Rêgo Barreto, mandante das perseguições e do massacre ainda

por vir, famoso em todo sertão pelas suas atitudes autoritárias e violentas. Dele queriam a

cabeça para cortá-la ao meio e formar duas tigelas, nas quais em uma os líderes tomariam

água e noutra entregariam ao povo para que fizesse o que desejasse. Estavam bem definidas

suas posições e acreditavam em uma felicidade próspera como gente escolhida aos mais

altos desígnios de Deus, fazendo lembrar a todo o instante esse sentimento de pertença a

uma obra que ultrapassa a existência secular, limitada por um poder imposto e não

escolhido:

[...] se prometia uma felicidade imensa a quem ali estivesse, e lamentavam a infelicidade dos que

estavam fora da mesma que quem ali estivesse podia então seguir, e levar de tudo, e que ninguém

governava sobre eles, só Deus e El Rey Dom Sebastião, e a Senhora, e que não temiam dali irem e

marcharem, enquanto tivessem terras firmes, e fariam que todos obedecessem, a seguirem aquela

Santa Enunciação, e que não haveriam mais Milicianos, nem Soldados da primeira Linha, e que tudo

se havia acabar [...] (ANRJ, Devassa, p.40)

E enfim, após a grande catástrofe escatológica prevista neste apocalipse sertanejo

prestes a acontecer, aparecia o objetivo maior da comunidade. Quando o enfrentamento

com as forças seculares fosse consumada, e a vitória do povoado eleito estivesse definida,

seria iniciada a grande jornada rumo à utopia maior de se encontrar com o divino, o grande

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Pai, na Nova Jerusalém restaurada: “[...] assim como asseguravam como iriam, dizendo,

que El Rey D. Sebastião havia de vir, e que todos havião de marchar à restauração da Casa

Santa, sendo desgraçados aqueles que se negassem: [...]” (ANRJ, Devassa, p. 77).

Alcançado o dito objetivo, com sacrifício, unidos na resistência em lutar por suas

crenças que costuravam a singular história daquela sociedade e de seus indivíduos diante

do mundo, era prometida, finalmente, a igualdade entre os homens onde o pobre se tornaria

rico, e o rico mais rico ainda, e o velho retornaria jovem, tudo para a preparação do novo

passo para o abismo, onde não se sabe o que se espera, a não ser uma nova vivência, agora

sob a enigmática lei divina.

Depois de séculos de uma história secular “tão mal contada”, o início de outra,

misteriosa, sem nenhuma aparência com o passado, separada de qualquer idéia de evolução,

ou até mesmo de processo, não é esperada, mas, como um salto no escuro, é procurada

como experiência totalmente inédita. Esta talvez seja a grande potência que moveria a

resistência até o fim de uma comunidade limitada por 400 pessoas flutuantes – com a

fixidez de aproximadamente 150 –, sendo que a maioria era de mulheres e crianças,

esperando o ataque de um exército descomunal da coroa, muito bem preparado, tanto em

armamento quanto em número de homens, além de terem tido a facilidade estratégica em

cercar, encurralar, expulsar e finalmente destruir a Cidade do Paraíso Terreal.

3.1.2. A Margem como Existência Excrescente em Relação à Ordem do Poder. Tocaia

e Extermínio.

De uma parte, a noite da derrocada final da Cidade do Paraíso Terreal teve um dos

expedientes mais diretos, em termos estratégicos, para que se consolidasse o extermínio de

toda a população da Serra do Rodeador e de seus freqüentadores esporádicos. Podemos tirar

daí que o aniquilamento era objetivado para não haver dispersão de costumes, de

pensamentos, das idéias às quais nos referimos serem cultivadas dentro do movimento

popular. No depoimento de Gonçalo Nunes da Fonseca, residente da região de Bonito, ele

afirma que:

[...] ouviu dizer a alguns dos prêsos, que elles ião allí por motivo de devoção e por se ter feito

publico, que huma Imagem, ou Senhora, que alli havia, havia de fallar na noite das prisões, e ouvia

queixar á hum dos prêsos Miguel Corrêa, e á outras mais pessôas, que o Tenente de Milícias,

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Antonio Ribeiro, moradôr neste lugar fôra quem as persuadira, dizendo até a huma sua cunhada, que

éra bom irem á devoção da Pedra naquella noite fazendo isto positivamente, e com engano, por ser

espia da diligencia que se pretendia fazer: [...] (ANRJ, Devassa, pp. 58-58v)

Clara é a estratégia do exército neste depoimento. Serviu-se das crenças da

irmandade sediada na Serra do Rodeador, para conseguir juntar o maior número de pessoas

devotas às práticas que lá eram realizadas, no intuito de aplicar um golpe fatal, não

deixando pedra sobre pedra alguma possibilidade de se alastrar, de algum modo, os ideais

ali propalados.

O Auto da Devassa buscou justificativas para sua ação e obteve, em sua maioria,

apenas palavras acusativas como fanatismo, embuste, persuasão impingida aos fiéis pelos

líderes do movimento. Porém, quase todos os depoentes afirmaram que nada havia de

ameaça contundente contra o Estado ou a religião oficial, deixando a entender que um

diálogo poderia ter resolvido o caso. Não houve tampouco acusações de roubos ou

violência dentro ou fora da irmandade, e até alguma admiração foi externada quanto à

maneira de viver dos habitantes da Serra, que possuíam plantações e criações para sustento

próprio. Também admirava-se a ordem interna seguida pelo grupo, embora esta ordem

tinha sim uma concepção própria e estranha que elevava, dentre outras coisas, a figura de

Dom Sebastião, de toda uma corte e de uma nova postura diante da vida em detrimento da

política e da religião propalada pelo império e seus seguidores mais diletos.

Buscava justificativa, do mesmo modo, o grande comandante do massacre, então

governador de Pernambuco, general Luiz Rêgo Barreto130. Ele possuía determinações

pessoais diante daquele povoado. Via aquela organização como mais uma afronta ao seu

governo, ao poder do império e como ameaça à ordem do Estado por uma gente que se

ajeitava como podia no mato, por pessoas sem ocupação, vivendo intensamente os flagelos

da seca. Sabia que parte das demandas do grupo era de se colocar em posição crítica a um

sistema mercantilista e latifundiário explorador sazonal de pequena mão-de-obra. Sabia do

poder que essa crítica possuía quando trabalhada com bases em tradições religiosas,

profecias, milagres etc. Tinha ainda muito conhecimento da participação de desertores do

exército imperial da colônia, que se transformava em enorme problema para o império,

130 HERMANN, Jacqueline, “Massacre no Reino Encantado”, em Revista Nossa História. Ano 1, n. 6, abril de 2004, pp. 28-30.

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como ocorreu com o primeiro levante pela independência da colônia, em 1817, em

Pernambuco131.

Mas todos estes fatores não justificavam por si só a investida do masssacre, a não

ser quando se atribuía a pecha de fanatismo aos componentes da irmandade, que se arriscou

e se atreveu a constituir-se como um corpo, um território, ganhando posição como presença

marginal.

*****

Voltando ao ambiente do morticínio, os próprios participantes do movimento, já

prevendo a noite do massacre, também instigaram à população que freqüentava a Serra, de

que na noite do ataque um milagre iria ocorrer e a Santa iria falar, entregando a tão

esperada revelação ao povo escolhido da Cidade do Paraíso Terreal. Armados de

bacamarte, parnaíbas (grandes facões utilizados pelos moradores do mato na lida do dia a

dia), paus, pedras, estremecendo as rochas com tambores e gritos de “Viva El Rey Dom

Sebastião”, o exército fiel ao rei cruzado investiu e resistiu à investida do poderio secular

desproporcional, e foi juntar-se ao exército encantado de Dom Sebastião em outros planos.

O massacre esbanjou em mortalidade. A pequena quantidade de sobreviventes foi

feita prisioneira e serviu aos depoimentos que mascaravam provas em favor da necessidade

da repressão feroz. Depois houve a dispersão do povoado, com a execução de homens e

mulheres, e a prática conhecida de entregar as crianças aos cuidados dos oficiais para

servirem como empregados e até mesmo como escravos às sua famílias, inclusive à do

general Luiz Rêgo Barreto.

Mas, em surdina, o espectro do rei Desejado, Encoberto e Encantado continuou

rondando, com seu exército aumentado, as veredas inusitadas do sertão silencioso e terrível.

Seus leves movimentos acompanham ventos inimagináveis e imprevisíveis. Caminha

prestes a habitar um novo castelo encantado, submerso em alguma esquecida paragem, em

alguma vontade de ver um acontecimento saído da pedra bruta, do brilho escaldante de

131 Para este importante levante ocorrido em 1817, predecessor dos movimentos pela independência do Brasil, conferir farta documentação e detalhado trabalho histórico de pesquisa realizado por Carlos Guilherme Mota, em seu livro Nordeste 1817: Estruturas e Argumentos, São Paulo, Perspectiva, 1972.

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rochas instigadoras de um soberbo imaginário narrativo acumulado nas mais diversas

leituras e memórias fugidias e desgarradas, desaguando nas margens de lagos encantados,

nutrindo uma febre pelo miraculoso, pelo reencantamento do mundo, custe o que custar,

integrando outras vozes nesta grande polifonia errante.

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4. Pedra Bonita

Início aparentemente ingênuo do movimento popular formado na localidade

batizada de Pedra Bonita – talvez por falta de material que melhor o descreva –, em todos

os relatos sobre o evento apresenta-se, com maior ou menor detalhes, o motivo que

desencadeou o mais desvairado acontecimento envolvendo a figura de Dom Sebastião no

sertão nordestino, durante o século retrasado. Eis como se instaura o sucedido:

Nos começos de 1836, um mameluco chamado João Antônio dos Santos, que morava em

Vila Bela, mostrava, aos ingênuos habitantes do lugar, duas pedrinhas, que fazia passar por

brilhantes da melhor qualidade, retirados de uma mina encantada.

Dizia o fanático que El-Rei Dom Sebastião o conduzia todos os dias a local que ficava a

pequena distância de sua residência, para mostrar-lhe pequeno lago, que guardava, sob encanto,

suntuosa mina de brilhantes. Aí apontavam duas lindas torres de um templo, que já começava a ser

divisado. Este templo seria a catedral do reino que haveria de surgir com o desencantamento.

Em velho folheto, companheiro inseparável de João Antônio, estava todo o sagrado código

sebastianista. Nele havia a lenda do misterioso desaparecimento de Dom Sebastião, na batalha de

Alcácer-Quibir e de sua esperada ressurreição. Não fora difícil convencer a crédula gente de Flores

de que ele era o enviado de Dom Sebastião, encarregado de ajudá-la a conseguir riqueza e felicidade

eterna. Para inspirar maior confiança, João Antônio mostrava parte do folheto em que se lia:

“Quando João se casasse com Maria/ Aquele reino desencantaria...” [...]

Velha pretensão, sempre recusada, foi agora satisfeita: casara-se com a bonita jovem, de

nome Maria. E, conseguiria mais ainda: recebera, por empréstimo, de fazendeiros locais, bois,

cavalos e dinheiro, na condição de restituir-lhes “muitos dobros” logo que o milagre do

desencantamento do reino se realizasse132.

Os relatos dizem ainda da esperteza do mameluco João Antônio, que sabia falar

sobre o desencantamento, usando discurso de acordo com seus destinatários. Ganhava a

confiança de todos ao estar investido de competência, tanto como privilegiado em dominar

a arte da leitura – tão rara no sertão daquela época, até mesmo entre alguns fazendeiros –

132 VALENTE, Waldemar. Misticismo e Região (Aspectos do Sebastianismo Nordestino). Pernambuco: Editora ASA, 2a edição aumentada e revista, 1986, p. 53, 54. Ver ainda o raríssimo e primeiro de todos os relatos, SOUZA LEITE, Antonio Áttico de. Memória sobre a Pedra Bonita ou Reino Encantado na Comarca de Villa Bela – Província de Pernambuco. Rio de Janeiro: Instituto Typográphico do “Direito”, 1875. E ainda PEREIRA DA COSTA, F. A. Folk-Lore Pernambucano. Pernambuco: Arquivo Público Estadual, 1a edição autônoma, s/d; WILSON, Luis. Vila Bela, os Pereiras e Outras Histórias. Recife: Editora da Universidade Federal de Pernambuco, 1974; etc.

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quanto como depositário de mistérios sagrados. Além de tudo, conhecia as necessidades da

região, e viu a possibilidade de realizá-las exatamente nas histórias que divulgava sobre o

rei Dom Sebastião133.

O reino do jovem monarca aguardava o desencantamento para que se desse seu

retorno, e estava localizado ali, num sítio de pedras pronto a se tornar o lugar da redenção

humana diante da miséria. Certamente fundido ao texto que trazia, de modo astucioso João

trabalhava em mais um fio da história para torná-la mais convincente, além de procurar

atingir propósitos pessoais há muito desejados por ele. Alegava, em seu discurso – e esse

foi o único fragmento do texto conservado, das prédicas de João Antônio, sobre Dom

Sebastião –, que a profecia indicava, antes de tudo, a necessidade do seu casamento com

Maria, para se iniciar o desencantamento do reino do jovem soberano desaparecido em

Alcácer-Quibir.

Pelo menos três temas se (con)fundem para preparar o movimento da Pedra Bonita:

o amor impedido, Dom Sebastião e seu retorno redentor, e a natureza, a paisagem da

região, acalentando a probabilidade de ali se iniciar uma nova vida.

O amor proibido, ou dificultado por diversas razões, tema dos mais insistentes e

incisivos na literatura e no sentimento universal (basta recordarmos o romance de Tristão e

Isolda, a dramaturgia de Romeu e Julieta, e as cartas arrebatadoras dos personagens

históricos Abelardo e Heloísa), também é peça marcante na vida de João Antônio dos

Santos, o mameluco que irá edificar as crenças na mística da Pedra Bonita.

Embora esteja envolto em interditos tão ou mais dramáticos que os dos casais

conhecidíssimos apontados acima (afinal os problemas de João giravam em torno da falta

de terras, de dinheiro, de posses, de condições materiais, e também por ser visto como um

mestiço incapaz de subir a um patamar elevado como o de sua amada), seu desfecho é

ardiloso, até mesmo picaresco, além de poético. Transforma a dificuldade pessoal em

conseguir sua amada, num objeto de fé que deve ser seguido para o bem da coletividade.

Esperta e malandramente, mas muito sincero em sua intenção, eleva a consumação do

133 Provavelmente, pelo que se tem notícias, infelizmente sem provas concretas, João Antônio se baseava num folheto português que contava a vida e o desaparecimento de Dom Sebastião. Como não podia deixar de comparecer nas histórias difundidas sobre o rei, sempre está ressaltada sua condição messiânica prestes a voltar e redimir a humanidade.

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amor, por meio do seu matrimônio com Maria134, a evento necessário para o início do

advento de um reino de riquezas materiais, espirituais e de igualdade.

Pensando bem, nos damos conta de que o artifício de João Antônio não foi só o de

ler o trecho sobre seu casamento com Maria. Com certeza ele mesmo criou o fragmento ao

qual deu grande importância e, obviamente, elegeu como peça chave para concretizar a

vontade das pessoas a quem comunicava as boas novas. Afinal, em todas as minhas leituras

sobre Dom Sebastião, e são relativamente abrangentes, nunca encontrei esse tipo de

situação na bibliografia do rei, tanto a histórica como a mítica. O fato é que a artimanha do

mameluco foi de resultado incontestável.

Mas não pára por aí. De fato consegue casar-se com Maria, convencendo o sogro

dos prêmios a serem recebidos como dádiva pela efetivação do ato matrimonial. Seu

imaginário progride, amalgamando esta história de amor salvadora à personagem que traz

consigo as possibilidades de sua promessa. Mediante o folheto que possui com a história do

rei português encantado, apostando no poder da escritura e de sua capacidade de

convencimento, instala a crença na volta de Dom Sebastião como emissário dos altos

desígnios preparados ao povo escolhido, como preparador da redenção e fim dos

infortúnios da população sertaneja.

Entra em cena a natureza dando corpo a essa crença: os encontros furtivos do

mameluco João Antônio com Dom Sebastião irão se dar em uma lagoa encantada, uma

mina repleta de riquezas, como as pedrinhas brilhantes apresentadas à população. E ali é

revelado o sítio que contém um complexo rochoso ímpar, onde se elevam duas rochas-

torres de mais de trinta metros cada, que tornaram-se índice, à população local, das torres

da catedral, do reino encantado de Dom Sebastião, querendo precipitar-se do seu encanto

para restituir o encanto ao sertão.

Novamente está em jogo uma vontade de ver no elemento natural uma alma

animadora, uma reconciliação do homem, da cultura, com a natureza. A natureza enfim

repleta de espiritualidade, quando tocada pela imaginação, desafia a razão e permite o

alimento de desejos contidos.

Recorro ao escritor e pesquisador Lezama Lima que nos dá a medida da percepção

das forças e energias contidas no encontro entre natureza e cultura, nutrindo uma “história

134 Maria era a filha de um fazendeiro local. João Antônio fazia loucuras só para avistá-la por algum tempo.

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tecida pela imagem”, como apresenta Irlemar Chiampi em sua introdução à obra de

Lezama, A Expressão Americana. Dentre suas buscas para compreender a formação

política, social, cultural da América, finalmente introduzindo a maneira de existir de modo

processual do Novo Mundo na história da humanidade, a pesquisadora Irlemar Chiampi

ressalta uma das maneiras com a qual Lezama se aproxima do material americano:

Observe-se, ainda, que Lezama propõe uma visão histórica de forma em devir de uma

“paisagem” – termo que forçosamente inclui a natureza. Enquanto Hegel tomava a natureza como

uma entidade inerte, sem evolução, a-histórica, Lezama (contrariando-o outra vez) considera que a

natureza tem espiritualidade. Este conceito, tomado de outro idealista alemão, Schelling – que Hegel

repudiou por considerá-lo uma fantasia mística dos românticos – proverá o embasamento filosófico

para considerar que a paisagem (a cultura) surge quando o espírito é revelado pela natureza. [...]

[...] O “espaço gnóstico” é a natureza espiritualizada, plena de dons em si, que guarda para

expressar-se a mirada do homem para iniciar o imediato diálogo (de espíritos, o humano e o natural)

que impulsiona a cultura135.

Partindo dessas premissas, podemos conjecturar que o sítio da Pedra Bonita,

constituído como paisagem pelo olhar humano carregado de ancestral simbolismo religioso,

alimentado por desejos e vontades de uma nova vida, de uma efetiva existência, constitui-se

em um espaço gnóstico que culminará em acontecimento trágico estigmatizador da região.

Porém é conveniente nos atermos, mesmo com falta de detalhes, no

acompanhamento da formação de uma comunidade no local que já ganhava nome de Pedra

Bonita.

Dos fazendeiros locais João Antônio recebeu dinheiro, bois, cavalos, tudo por

empréstimo a ser restituído quando fosse desencantado o reino de Dom Sebastião. João faz-

se, neste momento, o primeiro rei entronizado na Pedra Bonita; rei provisório que

prepararia o trono para o monarca messiânico esperado e prometido pelos papéis em posse

de João Antônio, pela narrativa à qual ia acrescentando elementos redentores do povo,

acompanhados da concretização dos desejos dos indivíduos que começam a compartilhar

do modo de vida formador da comunidade.

Mas sempre foi repelido em seus intentos. 135 CHIAMPI, Irlemar. “A História Tecida pela Imagem”. In: LIMA, Lezama. A Expressão Americana. Tradução, introdução e notas de Irlemar Chiampi, São Paulo, Brasiliense, 1988, p. 23.

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O primeiro monarca da Pedra Bonita, também conhecida como Pedra do Reino, não

demorou a conseguir adeptos ao seu reino. Primeiramente seu séquito foi composto por

familiares e conhecidos seus: seu pai, Gonçalo José dos Santos; seu irmão, Pedro Antônio;

seus tios e afins, Joaquim, Manuel Vieira, José Vieira, Carlos Vieira, José Maria Juca e

João Pilé. Estes propalaram as idéias de João Antônio em sucessivas peregrinações às

regiões do Piancó, Cariri, Riacho do Navio e margens do rio São Francisco136.

Logo ganhou fama o ajuntamento da Pedra Bonita com a integração dos

trabalhadores sazonais de diversas fazendas dos arredores, esvaziando a mão-de-obra dos

latifúndios, o que acabou por chamar a atenção das autoridades locais. Isso levou a uma

tentativa, ainda pacífica, de desbaratar a formação da comunidade. Foi chamado o padre

Francisco José Correia, grande interventor de acirradas disputas políticas de Vila Bela e

arredores, para interceder junto ao líder do ajuntamento pela paz da região. O missionário

convence João Antônio a renunciar seu apostolado e distanciar-se daquelas terras o mais

longe possível. Assim o faz o primeiro rei da Pedra Bonita, levando sua mulher Maria, mas

deixando em seu lugar um preposto de nome João Ferreira, mameluco como ele, que toma

o cetro e coroa, vindo a ser o segundo rei, este sim o arquiteto dos costumes sociais e

religiosos da comunidade, elegendo o sítio da Pedra Bonita como corte de suas reuniões.

4.1. O Segundo Reinado da Pedra Bonita

Este segundo reinado instaurou efetivamente uma aura de espaço sagrado para as

ações ritualísticas que se seguiram na comunidade já formada em torno da Pedra Bonita. O

complexo rochoso ali existente foi ganhando estatuto de uma expressão de existência

voltada para o retorno de Dom Sebastião, como grande curador das feridas, culpas e

imperfeições das quais aquela sociedade acreditava ter de se ressentir. Seu novo líder, João

Ferreira, aproveitou o reconhecimento daquele povo em seu carisma (o rei tinha tratamento

136 VALENTE, Waldemar, op. cit., p. 54. Todos os relatos de que dispomos nomeiam os adeptos da nova comunidade da Pedra Bonita como gente fanática, ambiciosa, ignorante. Estes termos denigridores encobrem qualquer tipo de leitura sobre os acontecimentos, deixando de lado os aspectos religiosos, sociais e políticos do evento e sua complexidade. Acredito não ser apenas uma visão elitista ou da oficialidade que se impõe aqui, mas também a configuração trágica e de aparência gratuita do grande auto-sacrifício da comunidade – o qual ainda tentaremos esboçar observações de acordo com nossas preocupações –, que de fato choca e dificulta qualquer distanciamento de olhar. Buscando não contaminar nossa análise do evento com leituras precipitadas, mas já sabendo da quase impossibilidade deste exercício, não reproduzimos aqui os taxativos adjetivos que negativizam a imagem dos adeptos que participaram do auto-sacrifício da Pedra Bonita.

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de sua santidade el-rei, e todos lhe beijavam os pés137) e escolheu uma via na qual prometia

a volta do rei messiânico através de rituais de sacrifício humano e de leis internas que se

remetiam diretamente para esforços de desencantamento da personagem esperada como

redentora. Preparava-se a comunidade para os primeiros passos em direção ao juízo final.

Embora este líder traga o princípio do enunciado em que irá se apoiar a massa que

lhe seguirá, é preciso também percebermos que o fenômeno de “contaminação” da sua

proposta só pode ser realizado na troca de alguns sentimentos, idéias e desejos básicos e

comuns entre o líder e o povo ao qual se dirige. Gabriel Tarde já apontava para isso, de

alguma forma, em seu ensaio “As Multidões e as Seitas Criminosas” escrito em 1892:

Uma assembléia ou uma associação, uma multidão ou uma seita, não tem outra idéia a não

ser a que lhe insuflam, e essa idéia, essa indicação mais ou menos inteligente de um objetivo a

perseguir, de um meio a empregar, por mais que se propague do cérebro de um só ao cérebro de

todos, permanece a mesma; o insuflador é, portanto, responsável por seus efeitos diretos. Mas a

emoção que se junta a essa idéia e que se propaga com ela não permanece a mesma ao se propagar,

intensifica-se por uma espécie de progressão matemática, e o que era desejo moderado ou opinião

hesitante no autor dessa propagação, no primeiro inspirador de uma suspeita, por exemplo, lançada

contra uma categoria de cidadãos, torna-se prontamente paixão e convicção, ódio e fanatismo, na

massa fermentescível em que esse germe se instalou. A intensidade da emoção que move esta e que a

conduz aos excessos, para o bem ou para o mal, é, portanto, em grande parte sua obra própria, o

efeito do mútuo aquecimento dessas almas reunidas por seu mútuo reflexo; e seria tão injusto

imputar a seu líder todos os crimes decorrentes dessa superexcitação quanto atribuir-lhe todo o

mérito das grandes obras de libertação patriótica, dos grandes atos de devoção suscitados pela mesma

febre138.

Nas pretensas reuniões de João Ferreira com Dom Sebastião encantado, a

manifestação do jovem monarca desaparecido continuava a prometer as mesmas coisas que

as dos seus reinados anteriores: os pobres voltariam ricos, os velhos voltariam jovens, os

pretos tornar-se-iam brancos e todos viveriam em igualdade em seu reino sertanejo de

pedra e sangue. Mas agora havia uma condição para que isso tudo se concretizasse à qual

ainda iremos no deter.

137 PEREIRA DA COSTA, F. A., op. cit., p. 54. 138 TARDE, Gabriel. “As Multidões e as Seitas Criminosas”, em A Opinião e as Massas. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo, Martins Fontes, p. 147.

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Como vimos, o sítio da Pedra Bonita tornou-se corte das reuniões da comunidade. E

as duas grande pedras, pirâmides ou torres do Reino da Pedra Bonita, apresentavam-se

como o eixo central definidor daquela paisagem, já que nelas habitavam índices do reino

esperado despontando do solo. As descrições sobre seus aspectos naquela época – hoje já

um tanto quanto modificadas –, não deixam de ser impressionantes. Os dois penedos

são quase de igual altitude, sendo, porém, o mais baixo de grossura superior; e o mais elevado, de

meia altura para cima, é coberto por uma espécie de chuvisco prateado, – que parece infiltrações de

malacacheta, e que pelo aspecto que apresenta, principalmente, quando recebe de frente raios solares,

brilhando como se fossem de prata polida, recebeu do vulgo a denominação de Pedra Bonita139.

Mas aquele espaço recebeu leituras que extrapolaram a condição de índice de um

reinado prestes a ser desencantado. O sítio tornou-se um grande templo com a disposição

de outras rochas convertidas em lugares ritualísticos. Como afirma a pesquisadora Vernaide

Medeiros Wanderley, dialogando com o geógrafo Eric Dardel e sua obra L’Homme et la

réalité géographique, há um processo de sacralização do espaço geográfico quando este

ultrapassa a idéia de mera superfície, e passa a ser percebido também em sua profundidade,

espessura e solidez. “A Terra transcende sua função de base ou de simples elemento e suas

forças agem, como afirma Dardel, de forma concreta : ‘comme puissance tellurique

d’eternisation [...], comme un impénétrable mystère de la naturese terrestre’”140.

A intensidade e expressão desse mistério, interpretados sob o prisma mítico-poético,

revela a interação homem/meio processando-se na ambiência de um mundo mágico, que

possui uma lógica própria e um sentido basicamente qualitativo. Nessa esfera, a Terra pode

ser vista como o mito de origem, o grande mistério, ou o grande princípio, capaz de

interferir na vida inter e intragrupal, e assumir um papel significativo na coesão e

permanência de comunidades, bem como na configuração de seus lugares141. O espaço

escolhido pelos adeptos das crenças daquela comunidade é carregado de uma aura de

espera e trabalho para uma auto valorização através de rituais de carga sagrada,

instaurando-se um tempo/espaço ritualístico para a mudança de estado que se quer

139 PEREIRA DA COSTA, F. A., op. cit, p. 53. 140 WANDERLEY, Vernaide Medeiros. Pedra Bonita: Reino Encantado de Granito e Sangue. Rio Claro/SP, UNESP-IGCE, Tese de Doutorado, 1996, p. 8. 141 Idem, ibidem.

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conseguir: de um estado desencantado, impuro, de trevas, para o reencantamento, a

restituição da pureza e nova luz pela via do sacrifício pessoal a ser impregnado naquele

lugar, com o intuito de receber do espaço sacrificial os desejos latentes incutidos nas

preces, orações, gestos, discursos relativos às promessas a serem cumpridas com a volta de

Dom Sebastião e seu reino. Os esforços são voltados para a criação de uma territorialidade

ritualística sacrificial, permeada por uma concepção apocalíptica e escatológica.

Vejamos as descrições dos locais e as ações neles contidas, para termos um

panorama do grande templo natural dedicado às práticas ritualísticas empenhadas em

concretizar os desejos daquele povo. É bom lembrar que os desejos fermentados na

comunidade eram mediatizados pelas concepções e vontades do seu segundo líder. Eis a

disposição natural das rochas e a transformação destas rochas em lugares destinados a

práticas diferentes:

� Santuário ou cenáculo: configurado por três grandes matacões graníticos, que, a

partir de deslizamentos, tocam a base de uma das torres, formando uma espécie

de sala subterrânea, transformada em lugar de refeição para épocas festivas. Foi

também lugar dos rituais de desvirginamento ou de dispensa, nos quais as

noivas eram oferecidas ao rei, por um período de vinte e quatro horas, antes de

passarem a viver com seus maridos142;

� Púlpito ou trono: formado por vários matacões graníticos sobrepostos, que, na

sua parte inferior, abre-se numa espécie de bacia ou terraço pênsil, sobre o qual

o rei pregava, manifestando o seu poder sobre os “súditos” ou seguidores;

142 WANDERLEY, Vernaide Medeiros, op. cit., p. 23. As cerimônias de casamento eram realizadas por um falso sacerdote ali escolhido, que ganhou o codinome de Frei Simão. O frei Simão cuidava das orações invocando, segundo os diversos autores que vêm repetindo o mesmo relato, palavras cabalísticas. Podemos nos certificar, ainda, do respeito angariado pelo frei, como autoridade religiosa, ao consagrar os matrimônios, terminando a cerimônia com a frase “Eu vos caso pelos poderes que Deus me deu”. Mas o que nos interessa é o que se sucede ao casamento. A prática do rei da Pedra Bonita desvirginar as esposas no primeiro dia do casamento, parece-se muito com um costume medieval comumento conhecido como o “direito de pernada”, no qual, na primeira noite de núpcias, a camponesa era obrigada a entregar sua virgindade ao patrão ou ao capataz por ele indicado. Também no sertão era realizado este ato por alguns coronéis. Este costume é retomado na Pedra Bonita, mas sua intenção é atualizada em prol dos ritos de entrega do sangue puro, que só encontra-se neste estado, segundo largo estudo de GIRARD, René, em A Violência e o Sagrado, São Paulo, editora Paz e Terra, 1998, p. 52, quando participa de um ambiente ritualístico. O desvirginamento pelo rei, tirando os aspectos imorais que poderiam ser levantados por outras leituras, pode ser visto, naquele momento vivido pela comunidade da Pedra Bonita, como um ato muito pertinente dentro da lógica sagrada em que se

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� Casa-santa: um grande subterrâneo formado, naturalmente, por um enorme

matacão granítico que abrigava umas duzentas pessoas143. Nele realizavam-se os

casamentos e as beberagens com o “vinho sagrado”144: mistura de manacá e

jurema, plantas locais que provocavam efeitos alcoólico e opiáceo. Este ritual

era induzido pelo rei, quando pretendia conseguir alguma vítima voluntária para

seu reino145;

� Lugar ou pedra do sacrifício: constituído por um pequeno declive ou rampa

sobre um dos matacões graníticos, servindo para a matança ou sacrifício146.

Podemos constatar, desde já, uma dentre tantas diferenças evidentes entre o

movimento popular da Cidade do Paraíso Terreal e o da Pedra Bonita. O modo de interagir

no espaço, a maneira de ver, sentir e entrar em ressonância com o espaço, efetivando-o em

abeberou a seita de pedra e sangue. Não descartamos, no entanto, alguma propensão a um ato arbitrário do líder do movimento, aproveitando-se de seu carisma e aura santificada. 143 Na verdade o subterrâneo foi aumentado pela escavação dos fiéis, para haver melhor e maior acomodação durante as pregações e cerimônias. 144 O vinho sagrado ao qual nos referimos é uma bebida composta de jurema e manacá. “A jurema era usada ritualmente por tribos de dois grandes grupos indígenas que habitaram o Nordeste: os tapuias e os kariris. Mas [...] as descrições de cerimônias em que os índios bebiam jurema são de rituais com influência católica e espírita”. SANGIRARD JR. O Índio e as Plantas Alucinógenas: um Estudo Impressionante sobre as Drogas e seus Efeitos, Rio de Janeiro, Ediouro, 1989, p. 140, 141 e 147. (Coleção Astral). Parece que bem cedo, durante a colonização, se dá a mescla de religiões distintas no Nordeste, com contribuições nas quais há um ir e vir sem a possibilidade de hegemonia de uma. Assim, “Os pajés indígenas ensinaram aos brancos e mestiços os mistérios da pajelança. Esta influiu no catimbó. Uma e outra receberam a mescla do espiritismo, da feitiçaria européia e, nas orações e imagens de santos, do catolicismo. Depois, completando o ciclo, o pajé indígena recebe de volta, sincretizado, tudo aquilo que ensinara”. Idem, p. 141 A jurema era usada, ritualisticamente, para haver contato com as forças da natureza e com encantados. As visões eram gloriosas segundo Robert H. Lowie, estudioso que passou a ser chamado pelos índios e mestiços como o grande Nimuendajú. As visões grandiosas eram dos espíritos da terra, com flores e pássaros. A abertura dos canais sensitivos do corpo permitia a percepção do estrondo de rochas, traduzido pelos participantes dos rituais como a destruição da alma dos mortos que marchavam rumo ao seu destino. Também viam o Pássaro-do-Trovão, desferindo raios por um enorme tufo de penas na cabeça, um após o outro, o ribombo dos trovões. Idem, p. 147. Tudo o que se via tinha relação com o imaginário construído pela mística daquelas práticas religiosas mestiças. Uma espécie de exacerbação e potencialização das imagens era permitida pela ingestão da bebida sagrada, e daí se faziam as leituras de mensagens vindas de um outro tempo/espaço, quando da conjunção do profano com o sagrado. Mas, na Pedra Bonita, a ingestão do vinho sagrado foi potencializada ainda mais ao se misturar jurema e manacá, e também seu contato com o mundo encantado torna vigorosa a mensagem sempre em torno do sacrifício para a redenção daquela comunidade, tudo através do advento do reino de Dom Sebastião a ser desencantado. 145 Fica aqui comprovado que antes do grande sacrifício coletivo de três dias iniciado em 14 de maio de 1838, que praticamente aniquilou a comunidade, já eram feitos sacrifícios humanos periódicos depois de cerimônias nas quais o vinho sagrado era ingerido. Nestas ocasiões ou se escolhia uma pessoa a ser sacrificada, ou esta apresentava-se para que seu sangue alimenta-se o processo de desencantamento do reino de Dom Sebastião. Tudo isso será melhor comentado daqui para frente.

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um regime de signos que transformarão o local em uma espacialidade específica, traz, com

essa ação, percepções e afetos diversos. Os modos variantes de constituir-se em

territorialidade tornam claro o específico de cada comunidade, mesmo que tenham a mesma

figura mítica como orientadora dos seus passos. A relação entre o homem e o espaço, a

depender de como se dá essa interatividade, pode modificar também o tratamento dos

mitos, costumes, modos sociais e culturais etc.

Se na Cidade do Paraíso Terreal a mobilização se dá no sentido de edificar-se de

modo preparatório a um tempo futuro, de movimento dos membros da irmandade em

direção à busca da Nova Jerusalém, para finalmente desfrutar da ordem divina, na Pedra

Bonita constatamos outras demandas. Não enxergamos aqui a preparação para a saída, mas

sim para o recebimento das graças no próprio território. O terreno já está preparado. Tudo

que se encontra nele é índice do reino de Dom Sebastião prestes a se desencantar. As

pedras verticais, as rochas justapostas, formando subterrâneos naturais, a disposição ímpar

destas rochas numa serra que aparenta estar disposta de maneira singular em relação ao

plano mais baixo e horizontal da região, tudo isso dispara lembranças e concorrem para o

desejo de se efetivar e se viver no reino de Dom Sebastião. A cidade do rei português, com

suas riquezas e promessas de nova ordem, está na visão da torre de seu castelo saindo da

rocha com sua majestade, compartilhando melhores dias com os crentes na sua volta. O

movimento é mais de fixação territorial do que de expansão. Tudo se volta então para ações

ritualísticas em função de agilizar a plenitude da promessa de vida melhor, de riquezas mais

materiais que espirituais, dando-se no próprio local encantado.

A maneira trabalhada para se conseguir agilizar o processo de volta do rei encantado

e de todo seu séquito em esplendor imperial, é a de rituais cotidianos no solo sagrado.

Rituais que vão desde rezas, modos de viver sem preocupação com vestimentas e asseio

material, até o ápice disso tudo com a prática do sacrifício humano em oferecimento a Dom

Sebastião, que supostamente pediria ao rei secular da comunidade, João Ferreira, seu

desencanto através do sangue dos seus fiéis. Não havia, na comunidade, preocupações com

o trabalho em plantações ou criação de animais para consumo, ou atividade ligadas à

manutenção dos membros em uma vida organizada por princípios que chamaríamos vindos

da necessidade em se manter secularmente. Tudo o que se faz já é em desempenho às

146 Uma das descrições do local por WANDERLEY, Verlaine Medeiros, op. cit. p. 23-24. Em todos os outros

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demandas para se viver o sagrado reino de Dom Sebastião, já despontando das pedras.

Como dissemos, o mais importante desempenho para nutrir e cumprir o chamado do rei é

voltado para o rito sacrificial quase cotidiano, que se dará de modo mais contundente no

fim do movimento. Vejamos tudo isso de modo processual para tentarmos acompanhar os

fluxos desejantes envolvidos nesses atos, desembocando numa euforia de sensação de

últimos dias, quando a comunidade sentiu-se perto da volta de Dom Sebastião em alto

sacrifício coletivo.

Apesar de nos apoiarmos em estudos famosos acerca do sacrifício, como a obra

“Ensaio sobre a Natureza e a Função do Sacrifício” de Henri Hubert e Marcel Mauss147, e

com menos entusiasmo no livro A Violência e o Sagrado de René Girard148, sentimos a

necessidade de compreender as singularidades do evento na Pedra Bonita sem seguirmos

fielmente as teorias citadas, apesar de sua seriedade e competência. É impossível e

desconcertante uma tentativa de seguir ipsis litteris estas visões, por mais detalhadas que

sejam.

Sentimos ser preciso apontarmos que vontades estão em jogo no ato de auto-

sacrifício coletivo condenado por muitos, de modo bastante simples, como um ato de

loucura, de fanatismo infantil e sem propósitos, ingênuo e irracional. Porém, vestígios nos

podem dizer muito sobre os fatos que concorreram em direção a este acontecimento.

Vamos nos propor, a partir de agora, a tentar perceber quais agenciamentos são acionados

neste complexo e tortuoso evento, interrogando sempre quais são as vontades coletivas e

pessoais aí constantes, observando os movimentos da fé e, por incrível que pareça, uma

valorização da vida na morte, enquanto sacrifício e ato sagrado para se atingir a plenitude

do desejo de ser e de ter.

Será preciso, deste modo, cercar-me de muitas outras vozes, mas tentar ouvir o eco

das vozes dos homens, mulheres e crianças da Pedra Bonita, que ultrapassaram o senso

comum, porque desejavam e cumpriram o movimento em busca deste desejo, mesmo na

incerteza de receber o que ainda era apenas construção discursiva, esperando sua

atualização no movimento do sacrifício coletivo.

relatos encontraremos exposições mais ou menos parecidas com pequenos outros acréscimos ou omissões. 147 HUBERT, Henri & MAUSS, Marcel. “Ensaio sobre a Natureza e a Função do Sacrifício”, em MAUSS, Marcel. Ensaios de Sociologia. São Paulo, Perspectiva, 2a ed., 1999, p. 141-227. 148 GIRARD, René, op. cit.

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*****

Pois bem, como vimos o ato de sacrifício humano era processual ao longo do

reinado de João Ferreira, o segundo rei da Pedra Bonita. Lavar as pedras do complexo

rochoso com sangue humano significava a proximidade de se viver em estado pleno, na

perfeição, na eternidade, quando tanto o rei Dom Sebastião voltaria purificado e agora

cheio de glórias, quanto aquele povo, que se achava escolhido para participar daquele reino,

também participaria do estado puro, de perfeição absoluta, identificação total com a

personagem sagrada, fundindo-se ao sagrado, vivendo o sagrado para todo o sempre.

Isto já vai de encontro à maior definição de Marcel Mauss e Henri Hubert acerca de

uma unidade que definiria todos os sacrifícios. Dizem eles que sobre a diversidade das

formas que revestem o sacrifício, algo de comum a todos, em seu processo, é o que lhes

defini como sacrifício, ou seja: “Este processo consiste em estabelecer uma comunicação

entre o mundo sagrado e o mundo profano por intermédio de uma vítima, isto é, de uma

coisa destruída no decurso da cerimônia”149. Pode ser que assim pareça o processo do

primeiro ciclo de sacrifícios na Pedra Bonita, no qual vítimas eram escolhidas, após

cerimoniais com o vinho sagrado, para que houvesse o desencantamento e, por

conseqüência, a comunicação entre o mundo sagrado e o profano. No entanto, Mauss e

Hubert estão dizendo de um momento especial de tempo/espaço ritualístico, bem definido

para que isso ocorra e logo depois se desfaça, enquanto os sacrifícios da Pedra Bonita,

mesmo em seu primeiro momento, já era vivido como contínuo no cotidiano e tinha a

intenção de viver o sagrado eternamente, numa nova ordem das coisas, em mudança total

de estado.

O sacrifício concorria para a fusão de sagrado e profano, e não apenas para sua

comunicação, por isso o sítio era um templo e nele se vivia agenciando forças para

transformar a natureza em espaço sagrado permanente, sem mediações. Talvez as vítimas

individuais e o seu sangue, no primeiro momento dos sacrifícios, eram vistas como

mediadoras, símbolos do desejo para o processo em direção ao sagrado, mas quando o

discurso foi apontando para a necessidade da morte para a vida no sagrado, entendeu-se que

149 HUBERT, H.& MAUSS, M., op. cit, p. 223.

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o passo final, o movimento intenso e total era necessário para a grande transformação do

profano em sagrado e não apenas sua comunicação, para a concretização do homem em

deus, e a concretização da possibilidade de novamente, por meio da convivência com Dom

Sebastião, caminhar-se com Deus lado a lado na eternidade.

As ações ritualística no espaço nos mostram que esta era a vontade maior dos

membros da comunidade: a fome de imortalidade, como nos diria Miguel de Unamuno. E

uma paixão tão forte está contida neste desejo, que está aberta a visão para um outro mundo

possível, vencendo o destino, sendo lei e liberdade. Novamente é Unamuno que especula

sobre a força desta vontade expressa muitas vezes na poesia, mas também em momento

cruciais de percepções sobre a existência no mundo. E em seus volteios para captar e

mesmo expressar seu sentimento acerca da fome de imortalidade, damos voz ao poeta-

filósofo Unamuno:

O universo visível, o universo que é filho do instinto de conservação, me é estreito, como

uma jaula pequena para mim e contra cujas barreiras minha alma bate em seus vôos; falta-me no ar o

que respirar. Mais, mais, cada vez mais, quero ser eu e, sem deixar de sê-lo, ser ademais os outros,

adentrar a totalidade das coisas visíveis e invisíveis, estender-me ao ilimitado do espaço e prolongar-

me ao inacabável do tempo. Não ser tudo e para sempre é como não ser; pelo menos ser todo eu, e

sê-lo para sempre. E ser todo eu é ser todos os demais. Ou tudo, ou nada! [...] Ser, ser sempre, ser

sem fim! Sede de ser, sede de ser mais! Fome de Deus! Sede de amor eternizante e eterno! Ser

sempre! Ser Deus!150.

Toda a existência da comunidade da Pedra Bonita converge para essa vontade. Até

mesmo a saída de membros da territorialidade ritualística ali constituída, para a busca de

novos adeptos e víveres para consumo da comunidade, é vigiada por pessoas de confiança

do reinado de João Ferreira. Não há dados de produção de alimentos no local da

comunidade, apontando para uma visão extremamente internalizada para as questões do

desencantamento do reino de Dom Sebastião e, finalmente, para a vida no eterno. Também

vive-se com intensidade o que se poderia pensar como profano, como a falta de asseio

pessoal e das roupas, tudo para identificar o estado atual de impuro, pois o movimento

deverá ser abrupto, marcante. A materialidade já conta pouco.

150 UNAMUNO, Miguel de. “A Fome de Imortalidade”. In: Do Sentimento Trágico da Vida. São Paulo, Martins Fontes, 1996, p. 38-39.

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E eis que em 14 de maio de 1848, como foi narrado por um dos crentes que fugiu

perante o ato total da comunidade, declarou o rei João Ferreira, do alto do seu púlpito,

usando sua coroa tecida de cipós de japecanga, depois de ingerir e distribuir grandes

quantidades do vinho sagrado a toda a gente:

– Que Dom Sebastião estava muito desgostoso e triste do seu povo.

– E por quê? – perguntaram todos muito aflitos e chorosos...

– Porque são incrédulos! Respondeu ele, e repetia suas frases em voz lamentosa, que parecia vir de

longe...

– Porque são falsos! Porque são falsos! E finalmente porque o perseguem, não regando o campo

encantado e não lavando as duas torres da catedral do seu reino com o sangue necessário para

quebrar de uma vez este cruel encantamento151.

E deu-se então o início do auto sacrifício em massa. Sem questionamentos, sem

réplicas, sem manifestações contrárias. Não há dúvidas de que o vinho sagrado contribuiu

para o gesto, porém talvez tenha apenas aberto canais sensitivos e aguçado todo o

sentimento que já se convivia no dia a dia da comunidade. Além do mais, o composto de

jurema e manacá fazia parte das cerimônias diárias, que convergiam processualmente para

o desejo em viver o reino de glória de Dom Sebastião. O discurso de João Ferreira, em que

Dom Sebastião reclama a falta de coragem do povo escolhido para o seu auxílio (afinal o

jovem monarca também necessitava daquele povo, da fé daquela gente para viver na

eternidade como messias redivivo. São as potências de Dom Sebastião ecoando durante os

séculos, desde a batalha de Alcácer Quibir, na qual “desaparece”), é a prova final para a

verdadeira fé, a fé que está fora da compreensão moral, por isso compreende um ato fora do

senso comum, do geral. Aí estava o momento tão esperado para a entrada definitiva na

eternidade.

Aqui abrimos um parêntese para refletirmos sobre as ações de auto sacrifício

desencadeadas após os apelos de João Ferreira. E é no pensamento de Kierkegaard a

respeito da fé que me apóio, na tentativa de seguir os sucessos dos três dias de sacrifício

coletivo ocorridos na Pedra Bonita.

151 PEREIRA DA COSTA, F. A., op. cit., p. 56.

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Em seu comentário sobre o ato de Abraão ir ao monte Morija para sacrificar seu

único filho, Isaac, a pedido de Deus, Kierkegaard percorre um caminho reflexivo rumo ao

entendimento daquele ato como ato de pura fé. E o que nos instiga, dentro de sua

explanação, é a crença no absurdo levantada por ele. “Abraão creu, não que um dia fosse

feliz no céu, porém que seria repleto de alegrias aqui na terra. Deus poderia dar-lhe

novamente Isaac, chamar outra vez à existência o filho sacrificado. Creu pelo absurdo,

porque todo cálculo humano estava, desde há muito tempo, abandonado”152.

Entretanto, não é fácil consumar o ato pela crença no absurdo. Resta-nos a razão

exigindo o tempo inteiro, por causa do impossível do absurdo, o recuo quando se está em

direção ao grande movimento da fé, e é isso que torna a fé algo fora do senso comum, algo

que é inexplicável para quem olha de fora, mas que individualiza o praticante do ato de fé.

É preciso resignar-se ante o absurdo para querer crer no absurdo do sacrifício de fé. É

preciso antes o desejo de crer no desejo de eternidade, de vida plena, para saltar no absurdo

como prova de fé pelo sacrifício. Movimento complexo, pois é um momento no qual pode-

se ainda voltar atrás. Eis a dificuldade de se chegar a crer pelo absurdo. O movimento de

auto sacrifício pela fé é rápido, pois houve um longo processo para se chegar a ele. É

silencioso, porque borbulhou em barulho interno, quando a dúvida chama a razão e luta

contra a resignação perante o absurdo.

Assim, retomando o cenário ao qual estamos especulando, os três dias de auto

sacrifício na Pedra Bonita exemplifica um gesto de rompante dos membros da comunidade.

Mal havia terminado a prédica do rei sertanejo João Ferreira, trazendo a comunicação de

liberdade de Dom Sebastião com o auto-sacrifício da comunidade para finalmente entregar

a justiça aos seus fiéis, um velho chamado Juca correu e abraçou-se às pedras de sacrifício,

entregando o pescoço a Carlos Vieira, um dos sacrificadores, que lá já esperava, desferindo

um golpe seco em seu pescoço. Deste momento em diante a comunidade precipitou-se a

imitar o gesto.

Mulheres e homens agarravam os filhos que estavam ali, ou iam buscá-los fora,

entregando-se e entregando-os aos sacrificadores que lhes cortavam o pescoço ou

espatifavam a cabeça nas pedras, untando de sangue as bases dos monólitos, como era

requerido no discurso de João Ferreira para que se desse o desencanto do reino de Dom

152 KIERKEGAARD. Temor e Tremor. São Paulo, Livraria Exposição do Livro, 1964, p. 29.

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Sebastião e a sua volta transformada nos anseios e desejos de todos aqueles que estavam se

doando para tão grandioso evento.

Eis que surge então um paradoxo neste ato, no qual poderíamos pelo menos tocar na

grande força que move o homem de fé. “De uma parte, a fé é expressão do supremo

egoísmo: empreende o aterrorizante, efetua-o por amor a si mesmo; de outra parte é a

expressão do mais completo abandono, age por amor de Deus”153. De maneira que nas

forças moventes desse ato absoluto, do absurdo da fé, entra em jogo a entrega do que mais

se ama (um filho, alguém muito querido, a própria vida) para ser e ter o que mais se ama (a

eternidade no sagrado, transformar-se em sagrado).

É bom termos em vista ainda que o que se entrega e o que se quer em troca por

causa da entrega, desvenda-se nas particularidades individuais do que é mais amado pelo

envolvido no sacrifício, e o que é mais querido para receber em troca. Apesar de se praticar

um ato coletivo, anseios individuais irão ser manifestos.

Daí vemos a individualização, no ato coletivo, de cada movimento absoluto

praticado pelos diferentes indivíduos da comunidade. Um deles, por exemplo, para dar

arras de sua fé, que pretendia o melhor quinhão do reino, sobe ao cume de um rochedo e

precipita-se com dois netos nos braços; mas, no meio da queda, não consegue realizar o ato

absoluto e agarra-se aos ramos de um robusto catolezeiro, perdendo, no entanto, os dois

netos. Mais tarde este homem entrou em crise profunda.

Está contido, em sua crise, logicamente a perda de seus netos por sua ação culposa,

e sente culpa não apenas por perder os netos e sobreviver, mas também por não ter

realizado o ato absoluto, por ter voltado ao senso comum, ao geral. Por não haver efetuado

o movimento total, voltou a participar do julgamento da moral, ao render-se à dúvida da

razão, anulando a fé no absurdo, um dos moventes do ato absoluto.

Em outro momento, uma viúva, alimentando a pretensão de ser rainha quando fosse

quebrado o encanto, imola a si mesma e a dois filhos menores, sem antes entrar em

desespero ao ver dois de seus filhos, os mais velhos, fugirem da ação sacrificial. Desespera

por não saber o que aconteceria aos dois filhos fugitivos, que não participaram do

movimento total, e por ser impedida de entregar o todo do que mais ama para realizar seu

153 Idem, p. 64.

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desejo, porém continua com rapidez a ação, porque a fé não tem a ver com espera, e sim

com ação pela fé e crença no absurdo.

Um outro toma o filho de dez anos, coloca-o na pedra dos sacrifícios e decepa-lhe –

devido à falta de prática por não ser um dos sacrificadores e também pelo estado de grande

comoção de todo o processo que acompanha o que vamos chamando de movimento total –

o braço ao primeiro golpe. A descrição da cena nos diz que o homem permanece surdo à

voz da própria natureza e às súplicas da pobre vítima, que, ajoelhada e de mão postas,

bradava-lhe: “Meu pai, você não me dizia que me queria tanto bem?”. O silêncio do pai e a

continuação do sacrifício diz muito sobre o paradoxo da fé, e novamente me rendo às

considerações de Kierkegaard quando ele aponta, em seu Temor e Tremor, para a

impossibilidade de se enunciar algo a qualquer um sobre o ato de fé sacrificial, já que não

se está mais num patamar do geral, mas do absoluto.

Lembremos que Kierkegaard está o tempo todo discorrendo sobre a cena de Abraão

e Isaac, e o silêncio também está presente durante o relato bíblico, pois é no absurdo que se

crê; ou seja, no caso de Abraão, o absurdo experimentado pelo patriarca bíblico é ter em

mente sempre que, mesmo sendo sacrificado Isaac por suas mãos, Deus traria seu filho de

volta de alguma forma, ou mandaria, no momento exato, um bode expiatório para tomar o

lugar do seu filho. É este burburinho interno que acompanha Abraão. É sobre a incerteza,

mas com extrema crença no absurdo, que tanto barulho interno o povoa, levando-o ao

silêncio externo, à falta de comunicação sobre o ato que irá praticar, porém não pára diante

destas conjecturas que faz apenas para si mesmo, porque o absurdo permanece

incomunicável, fora do senso comum.

Talvez não seja diferente o caso aqui do pai que amputa o braço do filho e continua

concentrado no sacrifício deste, sem ouvi-lo, envolvido em um silêncio externo diante da

atribulação interna causada pela fé, embalada pela crença no absurdo.

De fato, parece que o sacrifício pela fé havia arrebatado as pessoas da comunidade

ao participarem diariamente das revelações trazidas pelo rei da Pedra Bonita, João Ferreira,

sobre o desencantamento de Dom Sebastião e seu reino. Todo um processo discursivo foi

instalado na comunidade, e também foram aguçadas as imagens referentes a esse discurso

através da beberragem do vinho santo, além do clima criado para a auto-imolação; um

conjunto processual foi sendo palmilhado na preparação do grande rito final.

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Isso fica muito evidente quando sabemos do fato de que uma moça, donzela ainda,

segundo os relatos, chegada com seus pais naquele mesmo dia, é designada para o

sacrifício, mas, durante a tentativa de executá-la, consegue fugir. No entanto, é novamente

capturada pelos sacrificadores. Aquela família não podia compreender o que se passava ali,

quanto mais participar do ritual. Porém, já faziam parte da comunidade e dali não podiam

sair, não podiam quebrar o ritual de sacrifício, assim como nenhum ritual de sacrifício pode

ser quebrado154.

O problema de haver uma ruptura da continuidade do rito de sacrifício não está na

fuga em si, já que muitos da comunidade também fugiram durante a confusão, por não

estarem convencidos do ato total. A possibilidade do mau funcionamento daquele ato está

na percepção da fuga, que significava a interrupção do ritual. Por isso a captura e a morte

da moça faz parte da extirpação de um movimento estranho e perturbador do rito de

sacrifício. Prova disso é que o corpo da garota foi colocado em local separado das demais

vítimas, em sinal de repúdio à sua falta de fé isolada, que comprometeria o resto do grupo.

Então o rito de sacrifício pôde ter continuidade e a base das duas pirâmides e dos

terrenos adjacentes formadores do campo santo estavam regados, ao término de três dias de

sacrifício intenso, com o sangue de 30 crianças, 12 homens, 11 mulheres e 14 cães. Todos

os cadáveres estavam dispostos simetricamente junto das pedras, por ordem de idade, sexo

e qualidade das vítimas. Em separado jazia indigno o corpo da moça fugitiva.

Para haver o término do sacrifício que caminhava para a imolação completa da

comunidade, foi preciso um recurso que estivesse em sintonia com os votos

potencializadores daquele movimento. E foi assim, na manhã de 17 de maio de 1838. Pedro

Antônio, irmão do primeiro rei, que já há muito tinha deixado seu reinado da Pedra Bonita,

sentiu o caminho de liquidação inteira, ao qual o atual rei levava a todos. Indignou-se, com

tudo aquilo, quando mandaram imolar suas duas irmãs. No entanto, não poderia enfrentar a

154 Segundo nos indica Hubert e Mauss, o processo de continuidade do sacrifício percebe e da ênfase à força de concentração do ato, que não permite interrupção: “[...] devemos notar um caráter essencial do sacrifício: é a perfeita continuidade que nele se requer. A partir do momento em que é iniciado, deve continuar até o fim sem interrupção e na ordem do ritual. É preciso que todas as operações de que se compõe se sucedam sem lacuna e estejam em seu lugar. As forças que estão em ação, escapam ao sacrificante e ao sacerdote e se voltam contra eles, terríveis. Esta continuidade exterior dos ritos não é suficiente. É preciso ainda um espécie de constância igual no estado de espírito em que se encontram o sacrificante e o sacrificador no tocante aos deuses, à vítima, ao voto cuja execução é pedida. Devem ter uma confiança no resultado automático do sacrifício que nada desmente. Em suma, trata-se de realizar um ato religioso em um pensamento religioso; é preciso que a atitude interna corresponda à atitude externa. HUBERT, H.; MAUSS, M., op. cit, p. 166.

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massa simplesmente mandando parar o ritual. Deste modo, proferiu um discurso que o

colocou em sintonia com os participantes e lhe personificou como sujeito carismático e

competente para dar continuidade ao ritual.

Em um momento sobe ao trono e troveja o anúncio derradeiro do ato de fé. Diz que

“Dom Sebastião, cercado de sua corte, lhe aparecera na noite antecedente, e reclamara a

presença do rei, única vítima que faltava para verificar-se o seu desencantamento”. E um

grito uníssono, ainda embriagado pelo frenesi de três dias de profundo êxtase, explode e se

derrama na amplidão do espaço com a boa nova: “Viva el-rei Dom Sebastião! Viva o nosso

irmão Pedro Antônio!” É pelo místico, pela prova de um discurso religioso e da fé, que

Pedro Antônio consegue a comunicação com a multidão e pode dar termo ao ritual para

trabalhar um novo reinado, agora sob sua coroa.

João Ferreira, o segundo rei, não reconhece o discurso de Pedro Antônio e tenta

escapar do sacrifício. É detido e tem um fim brutal, quando é arrastado ao sacrifício,

deposto, tendo seu crânio esmigalhado e arrancadas suas entranhas. Depois é conduzido

para fora do campo santo e tem seu corpo amarrado, pés e mãos, ao tronco de duas grossas

árvores. Teve o fim exemplar como o da moça fugitiva, já que tentou livrar-se do sacrifício

mais importante do desencantamento do reinado de Dom Sebastião.

Pedro Antônio é coroado e comanda a retirada da comunidade daquele sítio,

dizendo que o desencantamento ocorreria no lago encantado de onde seu irmão havia tirado

as duas pedrinhas brilhantes com as quais deu início àquele movimento místico. Em grande

festa, um cortejo eufórico dando vivas a Dom Sebastião, caminha para o lago encantado.

Está composto o terceiro e último reinado da Pedra Bonita de existência efêmera.

Uma tropa comandada por oficiais e fazendeiros já havia sido avisada dos

acontecimentos, e lançou-se no encalço da comunidade que tentava se recompor. Não se

perdeu a fé no desencantamento e todos os componentes do movimento enfrentaram a tropa

quase desnudos de roupas, de armas, alimentos, água, porém cobertos pela fé à flor da pele.

Os oficiais encontraram

Pedro Antônio, com uma grande coroa de cipós na cabeça, seminu e acompanhado de um numeroso

séquito de homens, mulheres e crianças, também seminus, e armados de facões e cacetes.

– Não os tememos!... Acudam-nos as tropas do nosso reino!... Viva el-rei Dom Sebastião!...

grita furioso Pedro Antônio, agitando no ar a sua coroa e arremessando-se com toda a sua gente

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sobre o grupo de cavalheiros, já então reunidos aos seus companheiros, e trava-se uma luta tremenda,

renhidíssima, corpo a corpo e desigual, uma vez que os fanáticos eram em número muito superior; e

desejosos do martírio, com a idéia fixa de uma imediata ressurreição, combatiam arrojada e

valentemente, entoando as mulheres e crianças os cânticos da ladainha e outras rezas, batendo palmas

ou brandindo espetos e cacetes, entrando mesmo na liça em auxílio dos seus, ouvindo-se em geral,

como um grito de guerra: – É tempo. É chegado o tempo. Chegou o tempo. Viva! Viva! Viva!155.

De pau e pedras em riste dominaram alguns dos soldados e civis que compunham o

batalhão, chegando a matar alguns e ferir outros. A bravura e a força da fé não viram

nenhum cordeiro se colocando como vítima para o sacrifício final, nem Dom Sebastião e a

corte encantada do seu reino saíram em socorro das vítimas, mas estavam em cada gesto,

em cada grito, em cada fervura do sangue exaltado querendo existir, querendo ser, até as

últimas conseqüências, sem volta diante da realização do movimento total. Finalmente o

movimento é massacrado pela tropa, sem que fosse polpado quase nenhum dos fiéis da

irmandade da Pedra Bonita

Durante mais de cem anos guardou-se um estranho silêncio sobre estes

acontecimentos. Benedita Carvalho Barros, moradora de São José de Belmonte* e escritora

de um opúsculo sobre o evento, além de mais outros estudos, diz que até mais ou menos a

década de 1980, pouco se comentava ainda sobre o desconcertante episódio. Um misto de

respeito pelo movimento e ódio pela mancha negativa deixada na região tomou conta do

imaginário estendido a um grande perímetro sertão afora, dando largas a uma memória

silenciosa e proibida.

Um dos personagens que mais recebeu esta ambígua carga, e foi singularizado como

uma espécie de traidor da causa do movimento, um judas mesmo, é José Gomes, vaqueiro

empregado na fazenda de Manuel Pereira da Silva. Este vaqueiro esteve sumido da fazenda

durante um mês inteiro, pois havia se tornado seguidor da comunidade. Escapou no último

dos três dias de sacrifício em massa, indo avisar ao seu patrão das ações que ocorriam na

Pedra Bonita. É pela boca de José Gomes que temos toda a descrição até agora apresentada

155 PEREIRA DA COSTA, F. A., op. cit., p. 59 * São José de Belmonte é o município que detém a legislação do sítio da Pedra Bonita. O local fica a aproximadamente trinta quilômetros da cidade e faz divisa com o município de Serra Talhada e o estado da Paraíba.

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sobre os sacrifícios, o que o coloca como memória e disseminação dos atos, portador da

construção narrativa de lembrança detalhada do episódio que se tornou traumático. Além de

portador dessa memória, sua conduta de dirigir o caminho da tropa que se formou para dar

fim à comunidade da Pedra Bonita, teve conseqüência, como vimos, esmagadora do

terceiro reinado que iniciava sua renovação, possivelmente em outra sintonia,

reestruturando-se como comunidade.

**********

Depois de cem anos, o caso da Pedra Bonita reaparece em algumas obras literárias,

como, por exemplo, no romance Pedra Bonita156, de José Lins do Rêgo, ficção que nos dá

uma dimensão clara dos aspectos da vida marginalizada dentro do mundo do patriarcalismo

rural sertanejo. Neste vigoroso romance, os elementos marginais transitam pelos espaços e

são acusados pela atmosfera e ambiência de desolação causados pelo ato traumático da

mística construída em torno dos acontecimentos passados há cem anos (o romance é

editado em 1938 e este também é o ano em que se passa o enredo) na Pedra Bonita.

O romance trabalha aspectos de uma maldição sobre as redondezas da Pedra Bonita

por causa do ato de auto-sacrifício e também pela atitude de judas tomada pelo traidor do

sacrifício, o vaqueiro que avisou o exército e os sitiantes locais sobre o ritual de

mortandade que estava acontecendo no sítio “sagrado”. José Lins do Rêgo ressalta essa

sensação ambígua sobre a o evento da Pedra Bonita. Ao mesmo tempo em que é

amaldiçoada por ser palco de práticas ritualísticas vistas como atos de crueldade, também é

amaldiçoada por ter sido interrompido esse processo ritualístico vivido pela comunidade

que poderia ter alcançado seus desejos se fosse completado o rito de sacrifício. No final do

romance um novo profeta aparece na Pedra Bonita e várias personagens que acreditavam

estar sob a maldição do local voltam a seguir os passos das profecias sobre Dom Sebastião.

O rei encantado retorna mesmo após o trauma da região que envolve o seu nome. O rei

continua sendo escolhido como um redentor da humanidade mesmo após um ato vistio

como execrável, mas, ao mesmo tempo, sagrado.

156 RÊGO, José Lins. Pedra Bonita. Rio de Janeiro/ São Paulo: José Olympio Editora/ Editora Civilização Brasileira/ Editora Três, 1973.

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Num outro romance, este de Ariano Suassuna, o autor trabalha sua personagem

principal como herdeira da traição da Pedra Bonita. Porém aqui serão tratadas imagens de

uma leitura do país através da estética e ideologia do que Suassuna chama de Armorial,

além de expor tudo em planos diversos a partir de uma memória construída por Quaderna, a

personagem picaresca principal do Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue

do Vai-e-Volta157. Quaderna, em seus devaneios sobre a formação cultural, política e

econômica do país, acredita que o Brasil é a nação propícia para cumprir o papel de V

Império Universal Cristão, tornando-se símbolo da vontade do homem de alçar-se sobre si

mesmo para conseguir torna-se partícipe do sagrado.

Ariano, ou a personagem Quaderna, que é o narrador em primeira pessoa do

romance, mistura fatos históricos, lendários e literários buscando compreender o Brasil e

seu povo como entidades eleitas para o retorno de Dom Sebastião. Ele mescla fatos

passados com acontecimento atuais, construindo, ficcticiamente, o território e sua gente que

quer comprovar como atores principais da história da humanidade, da história tão esperada

que deve levar o mundo a um patamar de maior liberdade e justição. E o rei Desejado e

Encoberto é, para Suassuna, quem representa as potência que deverão dar início a esse

tempo:

A lenda de Dom Sebastião adquiriu, no Brasil, uma dimensão revolucionária, que Suassuna

exalta e que considera como uma das constantes da história brasileira. Sua interpretaç~ioa dos fatos

históricos, do real verificado, permite-lhe inserir o fato estabelecido numa rede feita de um “quase

real”, de verdadeiro do tipo verossímil, tanto quanto de mito, de sonho e de delírio. Nesse sentido, o

Romance d’A Pedra do Reino é um romance histórico, um romance que rememora o passado para

exorcizá-lo e tentar explicar o presente. [...] O Século do Reino reserva ainda surpresas, e o príncipe

do Povo ainda pode renascer... sob que identidade e que vestes?158.

Lançado em 1972, o livro de Suassuna recebeu grandes elogios e comparações com

grandes obras literárias do Brasil e do exterior. Ao mesmo tempo despertou a lembrança do

caso ocorrido na Pedra Bonita. Há mais de 10 anos uma cavalgada é realizada, todo último

domingo de maio, até a Pedra Bonita para rememorar o que se passou. No entanto, o que

mais se vê nesta festa é um amalgama do fato histórico com a obra de Ariano Suassuna,

157 SUASSUNA, Ariano. Romance D’a Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta. Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 3a edição, 1974.

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sendo este homenageado todo ano como Imperador da Pedra, e Danta Suassuna, seu filhos,

praticamente desfilou todos os anos da cavalgada como o rei da Pedra do Reino. Até

mesmo uma intervenção espacial no sítio onde foram realizados os mostram que Suassuna

ganhou e sua obra confundem-se aos acontecimentos de 1848. Mas este é um tema bastante

complexo que fugiria do nosso terreno de leitura.

De qualquer forma, o Romance d’A Pedra do Reino traz e redimensiona, com sua

poética magistral sobre os fatos da Pedra Bonita, a discussão daquele acontecimento

singular realizado por uma movimento popular rebelde e religioso, que a oficialidade tentou

calar. Em 2006 o romance recebeu releitura muito bem elaborada em direção teatral de

Antunes Filho. Dom Sebastião avança em territórios nunca dantes imaginados quando

lançou-se na fileira de mouros, em Alcácer Quibir, em 1578, para desaparecer em favor do

seu reaparecimento sempre encantado.

5. Belo Monte (Canudos)

5.1. Retalhos de uma Profecia Transitam nos Interstícios de Belo

Monte/Canudos

Depois de mais de um século dos acontecimentos de Canudos, depois de ser

esmiuçado o evento por meio de várias retomadas da grande obra de Euclides da Cunha, Os

Sertões, além da visita constante a O Rei dos Jagunços, de Manuel Benício – dois escritos

produzidos no calor da guerra – e a autores mais distantes, em tempo, da guerra, como

Edmundo Moniz, Maria Isaura Pereira de Queiroz e o maior especialista no assunto de que

temos notícia, José Calazans Neto, só para citar alguns dos mais comentados, até hoje são

engendrados novos estudos sobre Canudos. Entretanto, as pesquisas mais recentes têm

revelado uma postura mais crítica diante do material registrado por Euclides em sua

Caderneta de Campo159.

158 SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em Demanda da Poética Popular: Ariano Suassuna e o Movimento Armorial. Campinas, Editora da Unicamp, 1999, pp. 81-90. 159 Eis dois exemplos destes estudos mais recentes a que me refiro. GALVÃO, Walnice Nogueira. O Império de Belo Monte: vida e morte de Canudos. São Paulo, Fundação Perceu Abramo, 2002; VILLA, Marco Antonio. Canudos: o povo da terra. São Paulo, editora Ática, 1995.

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É certo que o material recolhido por Euclides da Cunha foi retrabalhado em Os

Sertões, sob a ótica de um republicano ancorado na ciência positivista. Traz, muitas vezes,

em suas observações, “de um modo chapado e sem mediações, as teorias clássico-

europeizantes, de extração positivista, de seu tempo”160. Claro que fica por conta desta

postura as distorções que aparecem em sua obra-prima.

Porém podemos sentir, com nitidez, um dualismo no tratamento de Euclides com as

questões do sertão e do sertanejo. Em algumas sequências de Os Sertões, reparamos seus

impasses sobre percepções que lhe tiravam do possível cômodo olhar claramente

preestabelecido por algumas teorias da época, tanto políticas como sociais e científicas.

Aparece, nesses lampejos, a interessante face de “pesquisas migrantes e andarilhas [...], em

que as relações entre natureza e cultura propõem a superação da dualidade entre o dentro e

o fora, por exemplo, a erudição de gabinete, de um lado, e a investigação dos fatos culturais

ao aberto, de outro” 161.

Numa mesma página, em parágrafo seguido de outro, encontramos a dualidade

vacilante de Euclides, na descrição do sertanejo. Começa o terceiro capítulo da Parte “O

Homem”, da seguinte forma: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo

exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral”. E no parágrafo seguinte completa: “A sua

aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica

implacável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas”162.

Já com as formas de religiosidade percebidas por ele em Canudos, não teve dúvidas

de taxá-las de atraso e recurso de fanáticos para desestabilizar a ordem. Porém trouxe

documentos importantíssimos, que nos dizem muito acerca da vivência mística do

movimento canudense. Mesmo com todas as distorções e cortes feitos ao material recolhido

para dar acabamento ao seu texto finalizado, ou seja, Os Sertões, guardou, em sua

Caderneta de Campo, profecias e versos populares de fundo apocalíptico, investidos de

visão política e social. Em Os Sertões, Euclides irá tratar desses assuntos como fanatismo e

visão retrógrada de mundo, estágios anteriores ao espírito positivista. Talvez esta maneira

160 PINHEIRO, José Amálio. “Euclides: a Crônica da Paisagem”, em FERNANDES, Rinaldo de (org.). O Clarim e a Oração. Cem anos de Os Sertões. São Paulo, Geração Editorial, 2002, p. 332. 161 Idem, p. 331-332. 162 CUNHA, Euclides. Os Sertões. São Paulo, Editora Três, 1973, p. 128.

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de ver o fato canudense acabou dando em interpretações que preferiram anular a força dos

textos proféticos que perambulavam, inegavelmente, nos becos e praças de Canudos.

Percebo, em alguns dos estudos referidos, a dificuldade em se aceitar, como

material importante do fato canudense, a presença da figura de Dom Sebastião e de alguns

escritos proféticos que trafegavam entre a população acompanhante de Antônio

Conselheiro. Já nos convenceram, estas importantes análises, de que o movimento popular

político e religioso de Canudos, não teve como bandeira o sebastianismo, porém é inegável

que estes elementos conviveram com a população do Conselheiro, mesmo já em sua

peregrinação, até quando estabelece-se em Belo Monte. (Império de Belo Monte é o nome

de Canudos rebatizado, como a comunidade queria que se chamasse o lugar onde buscava

fundar-se em uma nova ordem a ser conquistada em seu dia a dia.)

Parece-nos que estes textos proféticos, embora apresentem-se de modo difuso na

memória atual dos que conservam imagens sobre os acontecimentos de Canudos, faziam

parte de um contexto no qual um imaginário vinha sendo construído enquanto compreensão

de uma vivência escolhida diante da unilateralidade impositiva do poder estabelecido como

regime republicano. E, até mais do que isso, podemos constatar uma maneira de enxergar a

monarquia não como um poder temporal e distante da sociedade – comportamento comum

da monarquia na colônia –, mas sim com uma carga simbólica de elementos sagrados

provenientes de textos correntes entre a população. Exemplo nítido disso são os diversos

textos da Idade Média trazidos à colônia pela população vinda da metrópole, e reelaborados

na produção de poetas e cantadores sertanejos. Câmara Cascudo – e muitos outros

poderiam ser consultados nesse sentido – tem largos estudos sobre a errância de ricos textos

medievais no sertão brasileiro163. Também nessa mesma visada, não poderíamos deixar de

citar mais uma vez o importante passo dado, na investigação de reelaboração da matéria

literária e lendária medieval no sertão, por Jerusa Pires Ferreira, em Cavalaria em

Cordel164.

163 Farto material em Luís da Câmara Cascudo, citado como fonte riquíssima em estudos e autores de área de interesses afins. Cinco Livros do Povo; Introdução ao Estudo da Novelística no Brasil; pesquisas e notas. Rio de Janeiro, José Olympio, 1953; Flor dos Romances Trágicos. Rio de Janeiro, Edição do Autor, 1966; Os Melhores Contos de Portugal. Rio de Janeiro, Edições de Ouro, 1969; Vaqueiros e Cantadores. Porto Alegre, Globo, 1939. 164 FERREIRA, Jerusa Pires. Cavalaria em Cordel: o Passo das Água Mortas. São Paulo, Hucitec, 1993.

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Componente a mais, que forma o caudal textuário difuso que nos interessa, em se

tratando de movimentos religiosos populares – e já nos referimos a isso em casos acima –,

temos o ideário religioso escatológico que não pode ser descartado como formador do

pensamento em processo dentro da comunidade de Canudos/Belo Monte. Existe, como nos

outros casos já trazidos aqui, uma profunda percepção espácio-temporal de mundo, visando

a afirmação em se viver neste mundo secular, conquistando-se uma nova ordem a ser

traduzida em cada enunciado e em cada gesto que constrói a espacialidade chamada

Império de Belo Monte165. Ora, esses elementos, essas séries culturais que se cruzam, não

excluem o que se entende sobre o fato histórico. Aliás, trazer estes enunciados à discussão

em conjunto aos problemas sociais, políticos e religiosos da época podem nos mostrar

reflexos do passado na composição do presente da região, que ainda nutre especial

entendimento sobre os acontecimentos canudenses em sua oralidade, em seu

posicionamento singular crítico e ainda efervescente diante de um fato que não cansa de ser

recriado com excepcional potência de narrativa local. Por isso, ao tratarmos destes

discursos produzidos pela religiosidade popular em Canudos, nos posicionamos de modo

semelhante ao historicismo proposto por Vittorio Lanternari, quando ele se coloca diante do

que chama de religiões dos oprimidos. Isso incluindo sempre, como o próprio Vittorio

aponta, uma concepção etnológica:

Nosso historicismo nasceu e se formou das próprias exigências da pesquisa histórico-

religiosa: na verdade, não se pode escrever uma autêntica “história das religiões” sem uma visão

histórica da vida cultural no seu todo. Dentro de uma visão histórica integral, a história religiosa

surge, pois, como um dos momentos da dinâmica cultural. Entendemos, portanto, a história religiosa

165 Aliás, o nome Império de Belo Monte já nos indica uma criação com intenções bem próprias de um lugar preparatório para uma nova ordem divina que é percebida como próxima. A troca de nome, de Canudos, nome oficial da região, para Belo Monte, nos faz refletir sobre uma tentativa de se singularizar como nova comunidade atenta à aproximação de um topos definido pela sua beleza natural diante da tortuosa paisagem sertaneja, da qual já nos dispusemos a falar anteriormente. Podemos especular que há um dado utópico nesta mudança de nome, no sentido de haver desejo em se transpor um único mundo apresentado, para engendrar-se um mundo possível através da vivência em movimento, por meio de práticas e costumes locais e dos textos de cultura (tanto profanos como religiosos), elaborados já como ação em busca de algo afirmador da existência daquela gente. Por outro lado, trazer o adjetivo Império, para qualificar a cidade que ali vai se formando, tem mais a ver com a idéia utópica da formação do Quinto e Último Império Universal Cristão na terra, ao qual já nos referimos várias vezes nesse trabalho. O nome escolhido para a região traz marcas de uma idéia de quiliasmo, transformando-se em local de preparação dos seus habitantes, que viveriam mil anos de felicidade na terra, para a espera da grande luta final contra o Anti-Cristo e, finalmente, para o julgamento do dia do Juízo Final. Estes temas foram insistentes em movimentos religiosos marginais da Idade Média e, como já vimos, permaneceram com grande força em nossas terras.

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[...] como o estudo das inter-relações dialéticas entre vida religiosa e vida profana (isto é, cultural,

social, política etc.): o todo dentro de um processo dinâmico concreto e determinado, próprio de toda

civilização166.

Veremos então que, mesmo não sendo todos os textos proféticos de autoria do líder

de Belo Monte, Antônio Conselheiro, há uma ressonância destes discursos apocalípticos em

textos produzidos por ele. Além do mais, tinha sim importância formadora e força reflexiva

dentro da comunidade a alusão a Dom Sebastião e seu exército dentro do imaginário

daquele povo, mesmo que quantitativamente restrito à profecia encontrada por Euclides nos

escombros da cidade devastada, e ao ABC também encontrado, no território destruído, e

transcrito pelo mesmo autor em sua Caderneta de Campo. E nessa direção, é nos processos

da memória que vai se diluindo a figura do jovem rei e seu exército, dando lugar, com o

passar do tempo, à força da imagem de Antônio Conselheiro, dos seus enunciados e das

narrativas construídas sobre sua pessoa como personagem protagonista de Canudos, além

das passagens da guerra e das outras figuras que ganharam fama e longevidade nos relatos

orais e impressos feitos na região.

Gostaria, antes de mais nada, de me deter mais sobre a profecia encontrada e

recolhida por Euclides da Cunha, buscando pontos de conexão com o imaginário próprio

daquelas gentes e com o pensamento do Conselheiro. Transcrevo na íntegra a profecia para

que, a partir daí, possamos verificar a diversidade do corpus que compõe seu tecido, a

complexidade de encaixes de materiais diferentes, apontando para uma leitura de um

momento rico de transformação pela qual passa a comunidade. Este trajeto que tentarei

tomar, também será conveniente para mais tarde, quando poderemos verificar a

longevidade de alguns traços desse pensamento introjetado no movimento político e

religiosos de Canudos/Belo Monte.

Profecia –

De antes de haver Mundo, Conta ela que não havia Terra, nem mar, nem Mundo e nem Céo e só

existia Deus em si próprio e daí foi confirmado pela Profecia do princípio do Mundo. Conta ela dos

tempos mais perigosos até a vinda de Jesus Cristo e foi passada p.ª a Profecia de Jerusalém e a de

Jerusalém conta quando estava-se aproximando os tempos da sua prisão e da sua morte e Paixão.

166 LANTERNARI, Vittorio. As Religiões dos Oprimidos: um Estudo dos Modernos Cultos Messiânicos. Trad. de Geraldo Gerson de Souza. São Paulo, editora Perspectiva, 1974, p. 10

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Então na hora nona discançando no monte das Oliveiras um dos seus apóstolos, pergunta-lhe –

Senhor, para o fim desta idade que sinais vós deixais? Ele respondeu: Muitos signais na Lua, no Sol

e nas Estrelas; e faltará a luz nos homens. Há de apparecer um Anjo mandado por meu Pai terno

pregando sermão pelas portas, fazendo Povoações nos desertos, fazendo Igrejas e Capelinhas e dando

seus conselhos. Muitos acreditarão, e muitos dismoralizarão seus preceitos; e daí há de aparecer

muitos contra ele desdizendo a sua doutrina, Quando aparecer uns homens dizendo eu sou Cristo

comendo muito e [ilegível] nega que está se aproximando o fim desta idade. Antes deste tempo deste

homem há de apparecer muitas linhas de ferro e daí quando meu Corpo entrar no dia de S. João

Batista, daí principiará as dores do Mundo, e daí quando veres o Sol escuro e daí quando correrem as

Estrelas, será o princípio do fim desta idades e daí quando os sujeitos forem livres, e daí haverá uma

grande fome e no fim destes tempos haverá um tempo de prêmio de frutos de flores e de sementes no

meio deste tempo, haverá uns bichos p.ª distruir estas sementes

Há de aparecer umas Sinagogas muito gerais obrigando muitos de nós p.ª se assinarem nesses papéis

muitos de nós serão presos e remetidos às casas de subdelegacias, de Presidente ou rei. Rei não há de

haver muitos muitos deverá ser mortos por causa de meu nome. Será mais fácil passar a terra pelo

Céu, do que minhas palavras deixarem de ser verdadeiras. Um dos apóstolos tornou a perguntar.

Vós acabais de dizer os últimos sinais desta idade. Ele respondeu – o fim, o dia e a hora pertence a

meu Pai Eterno. Em verdade vos digo, quando as Nações brigarem com as Nações, o Brasil com o

Brasil, a Inglaterra com a Inglaterra, a Prúcia com a Prúcia; das ondas do mar Dom Sebastião sairá

com todo seu exército desde o princípio do mundo que se encontrou com todo seu exército em

guerra, e restituiu em guerra. E quando encontrou-se afincou a espada na pedra ela foi até os copos e

ele disse – adeus Mundo, até mil e tantos, a dois mil não chegarás. Neste dia quando sair com seu

exército terá a todos no fio da espada, deste papel da república – o fim desta guerra se acabará na

casa Santa de Roma e o sangue há de ir até a junta Grosa?

Ah! Quando veres os montes de maravilhas e quando veres o mar sair dos seus limites com grande

bramido e lançar-se aos montes e na sua retirada deixar os peixes nos montes como gados nas

campinas. Quando os montes caírem por cima de vós, os altos a terra, os baixios e os outeiros cair

por cima de si próprio, quando veres os terrores e prantos aparecerá o Filho do Homem em uma

nuvem.

Fim167

É óbvio o teor apocalíptico desta profecia. Do começo ao fim fica clara a filiação

desse texto ao Apocalipse de São João. Vários elementos do evangelho de São João estão

presentes, mas fica mais evidenciado, como tema que vai se sobressaindo – e quero chamar

a atenção para isso – o caráter explosivo de renovação no âmbito religioso e político,

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enfatizado pela certeza da Segunda Vinda de Cristo para reparar as agruras disseminadas

por poderes vistos como tirânicos.

Desde que foi escrito, o evangelho de São João foi retomado por diversos

movimentos populares de vocação rebelde. Não encontramos tão facilmente nele o “amor

cristão” difundido pelos outros evangelhos, pelo contrário, as palavras jorram sentimentos

de ódio e repúdio aos governantes da terra e ao Império Romano. Gershom Scholem, um

dos maiores pensadores das tradições judaicas, credita a este texto um lugar especial na

literatura religiosa e política da qual trata. Chama a atenção para o componente

revolucionário que se espalhou em todas as manifestações que elegeram este texto como

material de reflexão sobre o momento incômodo do mundo que se queria ultrapassar:

Composto durante as perseguições do reinado do imperador Domiciano, o livro pretendia

dar força e coragem aos mártires cristãos. As visões exaltadas de seu autor estavam de acordo com a

tradição apocalíptica judaica – acrescentada de elementos cristãos – mas bem longe de qualquer coisa

que pudesse ser chamada de “amor cristão”. Elas mostraram ser uma fonte inesgotável de inspiração

a todos os sonhadores revolucionários sob a égide da Igreja cristã168.

Scholem chama o messianismo, que aflora do Apocalipse de São João, de utópico. E

trará componentes do messianismo catastrófico verificado por ele nas tradições populares

judaicas apocalípticas. Estas concepções incutiam a consciência, em certos grupos, de um

cansaço de se viver sob um poder oficial paternalista e escravizante, responsável pela

devastação de costumes e das “verdadeiras” leis divinas em nome da superioridade de uma

autoridade estranha. Todo um arcabouço revolucionário vai sendo formado para

transformar essa condição de uma existência subjugada por poderes ilegítimos, ou seja, não

escolhidos, mas impostos. Rejeita-se o caráter contemplativo de igrejas institucionalizadas

e enrijecidas em seus dogmas, para se dar vazão a novas forças imbuídas de vontade para se

ultrapassar leis ordinárias vindas de poderes já caducos, que não mais correspondiam aos

anseios de determinado grupo.

167 CUNHA, Euclides da. Caderneta de Campo. Introdução, notas e comentário de Olímpio de Souza Andrade. São Paulo, Editora Cultrix, 1975, p. 73-74. 168 SCHOLEM, Gershom. Sabatai Tzvi: O messias místico I. São Paulo, Perspectiva, 1995, p. 94.

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A lenda messiânica dá vazão a livres fantasias sobre os aspectos catastróficos da redenção.

Valendo-se em parte de antigas mitologias e criando, por outro lado, uma mitologia popular própria,

essa lenda pinta um quadro de violenta sublevação, de guerras, pragas, carestia, de uma geral

apostasia de Deus e de sua Lei, de permissividade e heresia. [...] Sem ser de modo algum o resultado

de um processo histórico, a redenção surge das ruínas da história, que entra em colapso no meio das

“dores de parto” da era messiânica. A amarga experiência de muitas gerações que provaram o pesado

jugo de governos alienígenas e a opressão; e a humilhação aparentemente não contribuiu para mitigar

a violência deste tipo de escatologia...169.

E diria mais! As amargas experiências do jugo, além de não mitigarem, sempre

inflamaram a construção de imagens escatológicas. Afinal, vivesse as “dores de parto” de

uma nova era, a era messiânica por vir. Toma-se consciência de que algo não está bem. E o

responsável maior pelas dores que exigem mudanças ou retomadas de leis condizentes com

as divinas é, no caso cristão, o Anti-Cristo do Apocalipse de João.

Não é diferente a visão do movimento de Canudos, ou de Belo Monte. E o regime

republicano encarna, nas leituras político-religiosas de líderes canudenses, a figura do Anti-

Cristo, sendo responsável pela devastação dos costumes e harmonia da natureza, dando em

momento catastrófico universal.

Alguns autores vêem as prédicas manuscritas atribuídas ao Conselheiro sem a

violência trazida na profecia anônima que citamos acima. Viam nele um homem que tinha

um discurso condizente com a Igreja Católica, sem presença inovadora própria de

profetismos. Ele mesmo sempre se disse apenas um Peregrino, e sempre quis assim ser

chamado até o fim da vida. Porém, apresentar discurso próximo das tradições amparadas na

Bíblia, não quer dizer que não haja um novo olhar surgindo, ou uma nova postura diante da

tradição. Sempre que uma visão profética consistente atingiu alto grau de crença, e levou

germes desviantes do discurso oficial, sofreu antes um processo profundo de

reconhecimento dos textos cânones da tradição. Não há ruptura total, mas antes o aflorar de

outra sensibilidade, dando em outra leitura, em uma revelação170.

169 Idem, p. 9. 170 Scholem discute bem duas características que curiosamente convivem na vida de místicos e líderes religiosos. Ele parte da idéia de que “todo místico possui dois aspectos contraditórios ou complementares: um conservador e outro revolucionário”. SCHOLEM, Gershom, no capítulo “Autoridade Religiosa e Misticismo”, em A Cabala e seu Simbolismo. São Paulo, Perspectiva, 2002. Ao meu ver, não são diferentes as ações e prédicas do Conselheiro em Canudos/Belo Monte.

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Só o fato de ver o regime republicano como o Anti-Cristo apocalíptico já traz algo

diferente para o discurso que paira sobre Belo Monte/Canudos, como algo inovador e

revolucionário, partindo das tradições da Sagrada Escritura. Além disso, a maior evidência

de um discurso revolucionário, partindo das tradições, é a própria formação da cidade

Império de Belo Monte, estruturada como uma nova Jerusalém, ou território de preparação

para se chegar à nova Jerusalém. Isso já era inadmissível e mostrava-se como postura

heresiarca para a Igreja Católica, além de ser uma afronta ao poder de Estado da República,

que pretendia trabalhar a unidade nacional. Se o Conselheiro não escreveu a profecia

anônima citada, há nela muito da contribuição do seu pensamento e de suas prédicas.

Uma das fontes da qual se embebia o Conselheiro em seus estudos religiosos era a

Missão Abreviada, obra que levava consigo o tempo todo. A Missão Abreviada, de autoria

do padre Manoel José Gonçalves Couto, era livro indicado pela Igreja para ser empregado

na doutrinação do povo. Mesmo leigos afim de espalhar à população a palavra das

Escrituras tinham licença da Igreja para utilizá-la. Correu por todo o sertão e fazia parte dos

livros de maior devoção do Peregrino Antônio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro, ao

lado das Horas Marianas (a presença de Maria, como no movimento da Cidade do Paraíso

Terreal, também é um grande alento nas pregações da comunidade de Belo Monte).

Honório Vilanova, comerciante que se instalou em Belo Monte tão logo foi criado o

povoado, atesta a grande contribuição que a Missão Abreviada exerceu nas prédicas do

Conselheiro, e a potência que o texto dava às suas palavras verificadas diante da multidão

em seus sermões.

O livro do Peregrino era a Missão Abreviada, onde muito se fala da morte, do inferno, do

céu, do juízo final, dos açoites e espinhos e da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. Os frades

pregadores daquele tempo conduziam sempre esse livro, que de tão cru, nas palavras, fechava sem

piedade as portas do céu. Também o Peregrino amava esse livro e varava o dia e a noite copiando as

Meditações e os exemplos dos Santos171.

Estava presente o Apocalipse de São João na Missão Abreviada. E estavam mais

encorpados os elementos catastróficos impressionantes e impressionáveis. A Meditação 11a

da Missão Abreviada, que fala sobre o Juízo Final, pode nos dar uma idéia do teor

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apocalíptico e modo inflamado de comunicar, aos seus possíveis leitores, o irremediável

final dos tempos:

Considera, pecador, que este mundo brevemente há de acabar; e perto de seu fim elle há de

ser atribulado com grandes pestes, fomes, guerras, inundações e terremotos. Tudo isto é o princípio

das grandes dôres e grandes males: todo êste mundo há de ser abrazado com espantosos redemoinhos

de fogo, e será reduzido a montão de cinzas com os seus viventes! (Meditação 11a – Sobre o juízo

final.) [...] [E Honório Vilanova nos indica os sentimentos e sensações que este texto causava no

Peregrino]:

“O Peregrino meneava a cabeça, aprovando o terrorismo místico do reverendo Padre

Manoel José Gonçalves Couto [...] E só, no seu casebre de palha, confinante ao santuário, traduzia a

seu modo as elocubrações sinistras da Missão Abreviada. Ele próprio escrevendo ou ditando ao Leão

da Silva, o evangelista que lhe chegara um dia de Natuba, como um presente do céu. Encontrariam

mais tarde, em seu ‘breviário’, estas Meditações:...”172.

Dentre as Meditações produzidas pelo Conselheiro em um Breviário, inspiradas nas

Missões Abreviadas, e que Honório Vilanova conservou, uma nos chama a atenção, quando

coloca a República como um mal, por ser poder constituído ilegitimamente, que deverá ser

destruído no fim dos tempos. Nitidamente agora percebe-se as reflexões do Peregrino e

posições críticas a respeito da política, sendo construídas a partir de uma visada religiosa.

Eis o material inovador de Antonio Conselheiro, observando, através das palavras sagradas,

o mundo profano. Traduz, no Juízo Final, o poder nocivo do reino do Anti-Cristo já

vaticinado em tempos remotíssimos. Sob a pele da República estaria o Anti-Cristo, que,

quase na mesma época em que se formava Belo Monte, tomava o poder do regime

monárquico brasileiro. Este regime monárquico sim era reconhecido pelo Peregrino como o

único constituído sob a legitimação de Deus. Eis as palavras de Conselheiro em suas

Meditações sobre a Missão Abreviada:

IMPÉRIO E REPÚBLICA – “A república... é incontestavelmente um grande mal para o

Brasil... Quer acabar com a religião, esta obra-prima de Deus, que há dezenove séculos existe e há de

171 Talvez esta seja a única entrevista com alguém que viveu, na maturidade, a guerra de Canudos. MACEDO, Nertan. Memorial de Vilanova. Rio de Janeiro, Renes; Brasília, INL, 2a edição, 1983, p. 49. 172 Idem, p. 58. Infelizmente não encontrei nenhum exemplar da raríssima, hoje em dia, Missão Abreviada. Mas Nertan Macedo escolheu alguns trechos dela que nos auxiliam nas observações acerca dos textos com os quais tomou contato o Conselheiro.

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permanecer até o fim do mundo... O Presidente da República entende que pode governar o Brasil

como se fora um Monarcha legitimamente constituído por Deus; quanta injustiça os catholicos

contemplam amargurados... Todo o poder legítimo é uma emanação da omnipotência eterna de Deus,

e está sujeito a uma regra divina, tanto na ordem temporal como na espiritual, de sorte que,

obedecendo ao pontífice, ao príncipe, ao Pai,... a Deus, só... obedecemos... É evidente que a

república permanece sobre o princípio falso... Ainda que ela trouxesse o bem para o Paiz, por si é

má, porque vai de encontro... à Divina Lei... [...]173.

Embora se referisse à monarquia de Dom Pedro II como poder legitimado por Deus,

o Conselheiro, na verdade, dava ênfase, acima de tudo, ao forte substrato da concepção de

monarquia como autoridade investida de sacralidade, aceita pela população, mesmo que

distante desta. Mais que a individualização do poder divino em um rei, o Conselheiro

defendia a coroa como símbolo do sagrado na terra, não sendo à toa a mudança de nome de

Canudos para Império de Belo Monte. A cidade rebatizada torna-se local escolhido para se

viver de acordo com as leis divinas e não de acordo com as profanas que eram vistas, pela

comunidade, como regras emanadas da República.

Bom, acredito que não são poucos os exemplos acima para termos uma idéia de

como se coadunam a visão do líder religioso e político de Belo Monte, com a profecia

anônima encontrada por Euclides no arraial destruído. O que estou querendo ressaltar é

que, a meu ver, não se pode desprezar este material só por ele supostamente não ter sido

escrito pelo Conselheiro. Essa profecia, antes de mais nada, manifesta maneiras com que

uma comunidade vê o mundo e seu entorno, participando concretamente neste tipo de

discurso político-religioso. Não há a separação destes dois campos de atuação nas reflexões

cotidianas dos canudenses.

Ademais, a Missão Abreviada era material para outras vozes que dela se embebiam

e certamente faziam parte de Belo Monte. Para sermos mais claros, a Missão comparecia

como uma das leituras indispensáveis de cantadores nordestinos, que a utilizavam e

manipulavam em suas criações poéticas. Câmara Cascudo indica essa leitura como fonte

indiscutível e inseparável de cantadores letrados. Esse livro era presença certa ao lado de

outros como o Lunário Perpétuo, a História do Imperador Carlos Magno, e dos Doze

173 Idem, p. 61-62.

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Pares de França, Donzela Teodora, Princesa Magalona, Imperatriz Porcina, Roberto do

Diabo etc174.

A Missão Abreviada, partindo das diretrizes processuais sofridas até chegar à

profecia apocalíptica que pairava sobre Belo Monte, pode ser vista como um contra-texto

no sentido de não apenas mediar as novas composições textuais e orais, com mais ênfase no

episódio do juízo final, mas também por ser fôrma matriciadora das novas criações que

partem dela. Contituiu-se, portanto, em um “texto matriz concreto”, do qual partem outras

versões que conservam sua força e potencializam questões mais próximas do grupo ao qual

se destina a nova criação. A matriz textual concreta “Trata de arquêtipos,

como queria o etnólogo russo Vladimir Propp, e não de arquétipos, no sentido yunguiano, atendendo

porém ao caráter de variação, à permanente recriação, aos mecanismos adaptativos que têm tanto

peso e que se oferecem como índices da história social dos grupos que os produziram. O texto

popular aí enfocado, gerado em condições pré-modernas e fortemente arcaizantes, se apresenta como

uma espécie de grande texto, na medida em que se articula pelos mesmo códigos, segundo o

semioticista Iúri Lotman. Por sua vez, se firma e confirma no tratamento individualizado, como se

pode ver na expressão poética de cada criador/recriador. É desse grande texto, das soluções

adaptativas, de sua poética que são captadas as significações míticas e sociais, e não ao contrário175.

Atendo-nos aos processos transmissivos e atualizantes desse material, constatamos

que o grande texto matriz, anterior a todos, para se chegar na profecia anônima encontrada

em Belo Monte, é o Apocalipse de João. Diríamos que este é o texto avô levado

“geneticamente” pela Missão Abreviada, já com novos traços, para grande parte da região

sertaneja. Lida pelo Conselheiro e tornada matéria de suas prédicas, a Missão fica prenhe

de uma visão renovada, na qual aparece a República como a encarnação do Anti-Cristo.

Certamente recebida a Missão Abreviada e as prédicas do Conselheiro pelos ouvidos da

população belomontense, estará presente ainda, na boca destes, a linha apocalíptica vinda

desde o Evangelho de João, incorporada a outros textos de procedência oral e escrita.

174 CASCUDO, Luis da Camara. Vaqueiros e Cantadores. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia; São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1984, p. 130-134. 175 FERREIRA, Jerusa Pires, op. cit., p. XV da introdução do livro citado. As idéias de matriz textual e contra-texto podem ser vista com maiores detalhes e aplicabilidade no livro de Jerusa Pires Ferreira algumas vezes citado neste trabalho.

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E dentre os outros textos que irão compor a profecia anônima de Belo Monte,

aparece a figura de Dom Sebastião, revestida de um texto matriz, ou de um

“matriciamento”, agora virtual. Amalgamada à figura de Dom Sebastião, percebemos

gestos de uma outra personagem vinda da literatura arturiana e traduzida pela simbologia

do cristianismo.

Não é nova essa fusão da figura de Dom Sebastião com alguma personagem do

mundo lendário arturiano. Em tempos bem anteriores, ainda em Portugal, quando o rei

desaparecido passa a habitar uma região extramundana, tomando parte do panteão de

personagens míticas de Portugal, ele é muitas vezes aproximado à figura do grande

cavaleiro puro cristão, Galaaz, o único que consegue chegar ao Graal, ver e experimentar a

luz do vaso sagrado impossível aos sentidos profanos despreparados. Mas no caso da

profecia anônima de Canudos, a referência é mais próxima ao rei Artur, no que se refere à

terra devastada, quando o rei afasta-se do reino, fisica ou emocionalmente. Outro elemento

importante seria a presença da espada encantada, que só mesmo Artur poderia fincar na

pedra e retirá-la para defender as causas justas da humanidade.

Tênues linhas são aproximadas entre os universos de um rei e outro, apontadas já

por Jerura Pires Ferreira, quando diz que podemos notar o “entrosamento deste mundo

arturiano com o sebastianismo, com os elementos ritualizados das estórias do rei encantado,

que ao morrer não desapareceria”176. Se a história de Dom Sebastião como rei desaparecido

e encantado veio através dos colonizadores portugueses, também a matéria arturiana teve

esta mesma rota transmissiva para chegar ao Brasil, sendo que estava fortemente arraigada

ao mundo português e tinha influência e penetração social em toda região ibérica. Em Belo

Monte a fusão se deu de modo surpreendente e diríamos que com uma poética refinada,

quando trabalha o sentido da simbologia presente neste entrelaçamento das duas

personagens.

O rei guerreiro previsto para enfrentar as forças devastadoras contrárias à natureza e

às leis divinas, como que sobrevoa pela seqüência narrativa apocalíptica. É como se

estivesse investido de um simbolismo que traduz forças contrárias ao Anti-Cristo e ao mal

estar universal que preenche a terra. O rei guerreiro Artur/Dom Sebastião aparece como um

Imperador dos Últimos Dias.

176 Idem, p. XVII.

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O trecho em que de repente aparece Dom Sebastião com todo seu exército

encantado, cavalgando por sobre as ondas do mar, fincando sua espada na pedra até os

copos, em meio às dores que já sente o mundo, indica que ainda ele está em plena viagem

mística, mas estabele um marco para sua volta ao mundano. O par espada-pedra poderia ser

visto como um “narrema” vindo de tempos bastante recuados. Na história do lendário rei

Artur, torna-se bastante famosa a passagem em que ocorre este par:

No mundo arturiano é surpreendente a importância do par pedra-espada, realizado numa

transgressão à possibilidade física e só realizada pela possibilidade mágica. Artur conquistara o seu

direito divino ao reinado de Inglaterra pela superação da prova da espada, quando conseguiu retirar

uma espada que penetrara numa grande pedra quadrangular, gesto que se interpreta como a liberação

da materialidade, significado de que se sobrecarrega a pedra177.

Já na profecia de Belo Monte, no contexto em que é colocado o narrema, ainda que

bastante sucintamente, fincar a espada na pedra pode indicar coisas a mais do que a

interpretação acima sobre o caso do rei Artur. Além de uma escolha e delimitação territorial

para o retorno do rei encantado, verifica-se um pacto entre o divino – presente e nutrido na

natureza dura da pedra – e o homem em busca do sagrado – que se faz representar pela

espada, objeto da cultura que carrega, ancestralmente, um ideal de justiça178.

O Dom Sebastião imerso em gestos simbolicamente poderosos do rei Artur, já não

traz consigo um sentido patriótico e nacional (já vimos isso algumas vezes no caso de Dom

Sebastião nos movimentos populares acima tratados), mas tem reforçada sua condição de

rei nebuloso, em busca do reino renovado e feliz perdido com a degradação dos costumes

na terra. O Império de Belo Monte, dentro da profecia, se faz território de preparação para

novos valores condizentes com a harmonia divina, contra o Anti-Cristo. Por isso Dom

Sebastião, no dia do seu retorno com seu exército, já terá território para o início da

transformação de leis seculares em divinas a ser começada pela guerra santa do final dos

tempos. E este território demarcado com sua espada fincada antes de sua viagem mística,

177 Idem, p. 93. 178 Jerusa, citando Gilbert Durand, indica as potências contidas na espada e emanadas dela. Assim nos diz: “Afirma-se que não há de fato, distinção moral entre o uso de armas mas que a contingência de vária espécie fizeram do gládio um símbolo ascencional; a arma dos conquistadores e dos chefes passa a ser a espada, arquétipo para o qual deveria ser orientada a significação profunda de todas as outras armas, que teria razões

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preparou-se e constituiu-se, em meio às turbulências do mundo, num território sagrado para

uma guerra santa universal. Finalmente ele retirará a espada e fará valer seu pacto com o

divino, combatendo o Anti-Cristo, rasgando o papel da República, para fazer vigorar a lei

divina a partir do Império de Belo Monte, como se esse fosse o V Império Universal

Cristão.

Dom Sebastião, nesse caso, em uma seqüência bem pequena da profecia anônima de

Belo Monte, atravessa toda a composição apocalíptica do texto, potencializando a idéia de

justiça divina ecarnada em sua pessoa e em sua espada. Tudo isso faz frente e é enaltecido

como posição contrária ao Anti-Cristo. Belo Monte passa a ser o vórtice dos poderes justos

atuando contra as dores da devastação secular representada pela República. A profecia faz-

se matéria tradutória dos sentimentos e modo de reflexão, daquela gente, com relação ao

contexto em que vive, tomando forma sua posição crítica frente a um poder (a República)

que se impunha de modo repentino. A profecia indica a preparação difícil de um mundo

possível em outra ordem. Faz transparecer toda a carga explosiva dos ideais revolucionários

passados pelas palavras do Conselheiro – às vezes de modo afável e outras com mais vigor

enérgico. Portanto, se o discurso profético anônimo de Belo Monte não pode ser atribuído

ao Conselheiro, creio que tem nele filiação inconteste, inclusive acompanhando os passos

do Peregrino em sua existência terrena e em outra, nas especulações que formam o

imaginário de Belo Monte até hoje.

5.2. Memória Recorrente/ Memória Movente: Olhares Flasheiros da

Guerra

E é tão forte o misticismo que contribuiu para a formação do imaginário de Belo

Monte, que até mesmo um corpus narrativo das batalhas travadas entre o Império

inaugurado pelo Conselheiro e as forças republicanas foi sendo elaborado ao longo dos

anos até nossos dias. São muitas as seqüências narrativas do episódio dos embates com as

para se fazer atuante em diversos universos sociais, principalmente e na medida em que a ele se associa um ideal de justiça”. Idem, p. 92.

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expedições republicanas. Todas elas vivem as cores de uma maneira de ver-se filiado a uma

época em que se lutou e, na luta, mostrou-se os valores dos ancestrais.

A cada vez que se relata algo, são escolhidas e reverenciadas as personalidades

marcantes, tanto de um lado como de outro. Cada episódio relembrado é um acontecimento

fulcral de veneração a um tempo que deu sentido e avivou, mais do que nunca, os

sentimentos de pertencer ao mundo, de participar da construção do mundo e da construção

ativa de si mesmo nesse mundo. Então, por vezes, a personagem retratada em cenas e em

ação, tem seu nome relembrado, e em outras é lembrado apenas o seu gesto bombástico. De

outro modo ainda, um episódio pode ir sendo recontado ao longo do tempo até que um

gesto ganha versões cada vez mais próximas de energias correspondentes a um mundo

extraordinário, onde recursos mágicos ou “mandingueiros” reencantam o universo passado

por meio desses racontos.

Tenho a tendência de afirmar que é o aspecto e a postura religiosa, visando um

reencantamento do mundo, comum ao ambiente de Belo Monte, que parece ter deixado

uma aura dessas energias, ainda permanentes na “epopéia” em contrução nas vozes dos

mais antigos ou de alguns especiais narradores habitantes da Nova Canudos (cidade

construída para abrigar antigos moradores da cidade velha de Canudos inundada pelo açude

de Cocorobó. A isso retornaremos mais à frente). A Guerra ganha toques mítico poéticos

desde quando se iniciou essa narração andarilha até os dias de hoje.

José Calazans apontava para esse universo já em sua tese de doutoramento179, e

quero apenas resvalar nesses elementos da guerra, para buscar perceber que uma memória

em processo vai se desenvolvendo de acordo com os afetos do grupo que a ela se adere.

Elementos, que dão mais sentido às experiências afetivas de um grupo, ou de um indivíduo,

quando entra em contato com seu passado, aparecem e são enaltecidos, outros vão sendo

dissipados ou transfigurados, ou ainda transferidos para outras imagens que têm mais

potência no imaginário do presente em que é desenvolvida a memória.

179 CALASANS, José. O Ciclo Folclórico do Bom Jesu Conselheiro: uma contribuição ao estudo de canudos. Edição fac-similada. Salvador: EDUFBA: UFBA/ Centro de Estudos Baianos, 2002. Não posso deixar de citar também a contribuição, para o mesmo tema, de Ana Paula Silva Oliveira, em sua dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, em 2001, com o título de Objetos Deflagadores da Memório: um estudo sobre alguns vestígios da Guerra de Canudos.

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5.2.1. Moreira César: Temível Fiel do Anti-Cristo

A figura que mais se sobressai nesta espécie de ciclo místico sobre a batalha é a do

coronel Moreira César. O famoso oficial já trazia consigo, muito antes dos acontecimentos

de Belo Monte, a alcunha de O Corta-Cabeças, em decorrência dos seus serviços coroados

de êxitos prestados ao exército e ao seu modo truculento de agir. Se a República era uma

entidade abstrata encarnada no Anti-Cristo, segundo a visão dos conselheiristas e do

próprio líder do movimento, para a personalidade de Moreira César transfere-se um pouco

dessa substância das forças maléficas que atacariam Belo Monte. Este aspecto ganha maior

relevo ainda se notarmos que sua expedição, esperança republicana de vitória e extermínio

do movimento conselheirista, tem uma potente carga mística nas narrativas sobre a guerra,

sendo que as energias responsáveis dos males do mundo, na concepção dos simpáticos a

Belo Monte, concentram-se no Corta-Cabeças, Moreira César.

O homem sertanejo guardou uma impressão terrífica do coronel. Ficaram marcados

os traços impulsivos e violentos que formavam sua personalidade. Estas qualidades foram

matéria para a construção da imagem de Moreira César como um adversário temeroso,

capaz de aniquilar os ideais e sonhos da comunidade. A volta dele em versos, prosa, ou nas

conversas sobre os acontecimentos canudenses, guardam um misto de respeito e ridicularia

em torno de sua derrota. Referência à bravura do comandante, em versos da época da

batalha, é encontrada no exemplo da natureza que dá a qualidade de sua postura.

Capitão Moreira César

Nó de cana caiana

Tomou chumbo nas Queimadas

Foi morrer nas Umburanas180.

O nó de cana, pedaço mais duro de roer da cana de açúcar, dá à personalidade do

Corta-Cabeças uma dimenção do respeito aos atributos que carregava de sujeito duro e

obstinado. Moreira César possue quase que as mesmas substâncias do sertanejo, embora

fosse do Sul e estivesse combatendo do lado oposto. Talvez por isso seja tão comum sua

imagem aparecer nas seqüências da poesia popular, como o antagonista a altura do herói,

obstáculo quase que intransponível para forças comuns, mas que dão o sentido e a medida

180 Idem, p. 70.

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do poder das forças do Conselheiro, única pessoa capaz de derrotá-lo. Em outra quadrinha

podemos ver que a simples menção ao Conselheiro arrrebata maior confiança dos

conselheiristas, quando o poeta dá a ele os louros da vitória contra Moreira César:

Antônio Conselheiro

É home de opinião

Matou Moreira César

E venceu seu batalhão181.

Ainda nos dias atuais, Moreira César é personagem em processo dentro da epopéia

oral ainda em construção em torno do episódio de Canudos/Belo Monte. Seu Ioiô da

Professora, apelido de João Siqueira Santos, tem hoje mais de 90 anos. Recebeu-me em sua

casa, em Euclides da Cunha, nome da antiga cidade de Cumbe desde 1938. De modo lúcido

e vibrante, o homem magro, de pernas longas – parecendo assimétricas com relação ao

resto do corpo –, olhar vivíssimo ressaltado por lentes de óculos “fundo de garrafa”, de

cabelos espetados e eriçados, parecia uma águia apontando para o passado com seus dedos

tentaculares, enquanto descrevia detalhadas batalhas e milagres de Antônio Conselheiro.

Seu Ioiô tem um modo diferente de narrar os acontecimentos de Belo Monte. Faz

descrições minuciosas das quatro expedições republicanas e não cansa de enumerar os

artifícios estratégicos de guerrilha usados pelos jagunços. Cria diálogos e falas de

momentos bem íntimos, momentos que nunca pensaríamos dar atenção, mesmo porque

seriam de difícil acesso, como as seqüências em que narra o recrutamento dos comandantes

da expedição, dando nomes todos verificáveis em qualquer livro de história. De repente,

sua fala entra na guerra e, em meio a batalha, dá ênfase a algum pronunciamento que ganha

especial tom dramático em pontos cuminantes de sua narrativa.

Sobre Moreira César, não põe em dúvida, em nenhum momento, a valentia e o

especial respeito que mereceu este comandante por parte da gente de Canudos. E carrega o

verbo quando fala de episódios protagonizados pelo Corta-Cabeças. De início destaca a

empáfia do coronel, que dizia querer entrar em Canudos para cortar a cabeça do

Conselheiro, fazendo jus ao seu codinome e alimentando uma estratégia de aniquilar o

grupo “rebelde” ao anular seu líder. Primeira demonstração da violência de Moreira César.

181 Idem, p. 64

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Mas também sinal da falta de conhecimento sobre o inimigo. Mesmo tendo sido prevenido

por alguém – “Moreira César, Moreira César, cuidado, Canudos não é brincadeira não” –, o

comandante resolveu investir contra o povoado, a cavalo, de espada em punho.

Deste modo seu Ioiô vai comentando algumas das características violentas e

impulsivas do comandante. E o narrador pontua as qualidades acima em pequenos trechos

que vão elevando a figura de Moreira César a um universo de potências sobrenaturais

liberadas na narração destes fatos. A mescla de elementos fantasiosos com os

acontecimentos hipoteticamente mais verossímeis, é feita de modo parcimonioso, com

lógica interna sobre o que se está tentando passar. O cavalo do Corta-Cabeças é

singularizado em sua cor malhada de ruço pombo, a figura do comandante sempre

aparecerá de espada em punho e traz uma carapaça de metal no peito, o que o torna quase

que invencível, como um cavaleiro medieval. Esse retrato pintado ao longo da narrativa

identifica Moreira César investido de uma aura quase sobrenatural. E é nesse sentido que se

desenvolve as artimanhas dos conselheiristas na batalha fantástica contra essa força

estranha.

O comandante, repentinamente, tenta investir de modo total dentro de Canudos.

Quer tomar a cidade rapidamente, causando confusão, apenas com baionetas, capturando e

matando o Conselheiro. De fato o exército invade a cidade, mas os jagunços já haviam

preparado um ato fatal, de vida ou morte, para atingir o alvo central da expedição, ou seja,

o Corta-Cabeças. Este é surpreendido em uma emboscada, ao ser reconhecido por causa do

seu cavalo singular. Aqui novamente um tom místico preenche o episódio. Seu Ioiô faz

questão de lembrar que a bala que feriu Moreira César era de ferro fundido em Belo Monte

mesmo. E tinha um preparo especial para minar as forças daquele cavaleiro do apocalipse.

Os ferreiros da empreitada foram conhecidos de sue Ioiô: José Elias Profeta e Antonio

Barbosa. Descreve magistralmente a fabricação de munição dos canudenses. Os dois teriam

fabricado a extraordinária bala de ferro, única capaz de transpor a carapaça de metal usada

como escudo por Moreira César, quando era colocada em seu peito182.

182 Sobre a munição especial usada para destruir o invencível comandante, outra versão, que eu já tinha ouvido ou lido, dá ênfase ao caráter mágico da arma e da munição especialmente preparada para vencer o corpo fechado do cavaleiro do Anti-Cristo. No Almanaque de Canudos de 1996, assim está narrada essa curiosidade: “Antônio Fogueteiro: desde os tempos do arraial do Bom Jesus (hoje Crisópolis), foi encarregado dos fogos de artifício nas festas. Em Canudos era responsável pela fabricação da munição utilizada nos clavinotes e armas de caça dos canudenses. Há um relato que atribui ao Antônio Fogueteiro o projétil feito de

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Desde a investida de Moreira César até seu tombamento na batalha, seu Ioiô entra

pelas veredas da narrativa circundando tudo, não deixando escapar nada. É um momento de

atuação total, com descrições, sons onomatopaicos de cavalos, de corridas a pé, de balas

zunindo e da bala de ferro fatal. O corpo do narrador não pára de gesticular como se

atirasse das trincheiras, junto com os jagunços, criando uma espécie de coreografia usando

os braços e tronco, pois as pernas já não têm forças para mantê-lo de pé, apesar de arriscar

alguns saltos sentado mesmo.

Em outro momento seu Ioiô enaltece as forças poderosas dos soldados do Rio

Grande do Sul, escolhidos a dedo por Moreira César. Mas, percebendo que já deu crédito

demais ao comandante, abruptamente passa para outro episódio, contando uma das vitórias

dos jagunços sobre as tropas da terceira expedição. É significativa esta passagem, pois

desafia a única força armamentícia do exército temida pelos jagunços; o canhão, ou a

famosa e emblemática “matadeira”, como era chamada a peça pelos conselheiristas. Assim

ele introduz, de repente, a narrativa de um ato de heroísmo isolado, apesar de esquecer o

nome do herói:

Meu amigo, quando ele chegou, do lado assim de Canudos, chamava Curral Velho, ou

Fazenda Velha, era uma trincheira danada, aonde você entrava assim... Teve um [jagunço] que

montou em cima [de uma “matadeira”] e disse: “Viu, canalha, o que é ter coragem”. Os atirador se

arribaram com medo... Fica tão covarde que acha que é assombrado. Lá em riba do canhão. Chegou,

montou e disse: “Viu, canalha, o que é ter coragem”. Largou a arma, montou em riba e disse: “Viu,

canalha, o que é ter coragem”. Canalha era o soldado, os comandantes, tinha muito canalha. Esses

canalha não tinham coragem de morrer.

Até deram o nome desse homem... que pediram... mandaram pedir lá do Rio de Janeiro, se

descobria o nome do homem, no combate do cambaio, que sarto em cima do canhão e montou e

gritou: “Viu, canalha, o que é ter coragem”. E mandaram um nome aí que eu esqueci. Aí diz os

homem: “Buli com sertanejo é um sacrifício...” E era mesmo.

chifre de boi que vitimou o coronel Moreira César”. Veja que aqui o material que provocou a morte de Moreira César, o chifre de boi usado como projétil, dá ao relato um tom mais espetacular e sobrenatural ainda. Uma força maior que surge não apenas da fabricação corriqueira de armamentos, mas algo que foi iluminado com poderes de vencer a força mística do Anti-Cristo é forjada pelo mestre dos foguetórios de Canudos. Almanaque de Canudos 1996. Organizado pela irmã Jelda Zorzo, presidente do Instituto Popular Memorial de Canudos, p. 96.

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A repetição da frase do jagunço quando monta no canhão é irresistível. Seu Ioiô

desafoga o sentimento de heroísmo que até agora não tinha conseguido encontrar em seu

relato com tanta contundência. Ele como que grita junto com o jagunço. Finalmente acha a

bravura, os aspectos fantasmagóricos que assombravam os soldados da República e a

unidade por uma causa que revestia todo conselheirista de uma aura gestual heróica, que o

tira do senso comum a ponto de cometer atos como esse, sem querer saber se ia morrer ou

viver, contanto que estivesse lutando por algo em comum. Tanto é assim que seu Ioiô não

lembra o nome do homem que ganhou a cena em seu relato numa atitude heróica e

desafiadora. O nome não importa, mas o que é relevante é a aura heróica daquele gesto

contida, para seu Ioiô, em todo sertanejo. Para reforçar essa característica própria do

sertanejo, nosso narrador faz questão de encerrar o episódio com comentários feitos sobre

aquela cena “Buli com sertanejo é um sacrifício...”. Aliás, dificilmente seu Ioiô cita um

nome de jagunço, mas sobrecarrega de significados as ações coletivas.

Por outro lado, ainda o que deu mais notoriedade ao ato do jagunço foi ele ter

dominado, naquele instante, o objeto mais temido por todo o povo do Conselheiro.

Exatamente a “matadeira” teria sido domada como se doma um cavalo selvagem. E não é a

toa que a matadeira é tão temida. Se nenhum sertanejo tinha medo do combate direto, do

corpo a corpo, a matadeira representava o aniquilamento à distância, de um grupo grande

de conselheiristas. Ioiô da Professora sabe muito bem disso e já havia contado sobre o

desastre feito pelo canhão 32, que praticamente aniquilou a guerra e selou a derrocada do

Império de Belo Monte.

5.2.2. A Matadeira: Dragão Destruidor inicia o Aniquilamento do Império de Belo

Monte

Todas as expedições trouxeram canhões, com exceção da primeira. Eles já haviam

se tornado presença corriqueira nos ataques a Belo Monte. O canhão Krupp foi a peça de

artilharia que mais causou danos a Belo Monte. Mas não se esperava o derradeiro, o canhão

Whitworth, a temível matadeira de calibre 32, disparadora de terrível bala descomunal,

destruidora, evaporadora de alvos. Ganhou, conseqüentemente, um capítulo nessa epopéia

mítica oral de Belo Monte, ao participar da destuição do símbolo mais aglutinador da

comunidade belomontense.

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Puxado por 12 bois, pesando 1700 quilos, o canhão 32 tinha que permancer fixo.

Era, portanto, um objeto específico para, estrategicamente, debelar a guerra. Acompanhou a

última expedição a Canudos, comandada por Artur Oscar e, de fato, foi o golpe fatal no

movimento conselheirista. Seu alvo principal: o sino e a torre da igreja de Canudos. Seu

alvo objetivo: atingir o santuário onde residia Antonio Vicente Maciel e,

conseqüentemente, acabar com a vida do Peregrino. Objetivos adjacentes: acabar com o

local de ajuntamento das forças conselheiristas que ali traçavam suas estratégias, reuniam-

se para os conselhos e rezas, constituindo-se num centro catalisador de forças terrenas e

divinas.

Depois de várias tentativas de acertar o sino da igreja, especialistas são chamados

para aprumar a mira do canhão. Ioiô da Professora conta o episódio clímax que deflagrou o

fim da luta:

Artur Oscar diz: “Como é que nós pode tirar esse sino?”. Diz: “A poder de bala de canhão

32”. Aí chama um bom atirador. Aí veio um e deu muito tiro errado... a torre... pra pegar a torre... pra

derrubar o sino com tudo... pra acabar com esse negócio de sino PEN, PEN, PEN, pra reunir, pra

chamar pra reza, pra reunir, pra conversar, pra dar a direção de guerra, a direção de trincheira, tudo

isso. Aí veio um comandante [...] Aí mandou pedir, veio um major. Major especial em tiro de canhão

pesado. Que o 32 pesou 1700 quilos, puxado por 12 bois pra vir pra Canudos [...]

Aprumava bem, quando tava bem aprumado, puxava... PEN, PON... batia na torre. Não

derrubou a primeira. Pegou mas não botou abaixo. O negócio ali era de pedra, as paredes de Canudos

não era de barro, era uma cerâmica... E pegava duas pedras assim, eu queria ver você apartar. Nem se

fosse machado. Eu mesmo quis um pedaço, da igreja, que derrubaram, um pedação assim que caiu

quebrado. [...] O canhão, quando derrubou a torre... Foi quando morreu Timotinho, caiu uma peça e

pegou ele. O anãozinho que tocava o sino. Ele estava embaixo. E o canhão veio que bateu e que

espatifou, uma pegou ele. Ele não esperava. Esses tiros de canhão, eles não sabiam que hora que

tocavam lá do alto do mato. Tá compreendendo? No alto do mato, avistava toda a frente de Canudos,

com igreja, com tudo. Era isso que eles queriam. Fácil com o canhão. Bombardear.

De fato, segundo Ioiô da Professora, não há dúvidas que o alvo do 32 era mesmo o

sino e a torre da igreja. O sino agia como uma voz de chamado estratégico no arraial. Tudo

ali ocorria em função dos toques do sino. Durante toda a guerra ele pontuou o ritmo dos

jagunços para as batalhas, para os momentos de reza e conselhos, os dias de festas

iluminados pelo foguetório de Antônio Fogueteiro. E em anexo à igreja estava o santuário

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onde residia o Conselheiro. O sino era o primeiro som da voz do Conselheiro ecoando pelo

arraial e pela vizinhança de Belo Monte, chamando para a reunião da comunidade em um

corpo só.

O tom da narração demonstra um lamento indicando um ataque cruel e covarde das

forças militares. O canhão poderia ser acionado a qualquer momento, sem dar chance de

reação, pois tinha visão privilegiada da cidade a uma distância enorme.

É a era da guerra tecnocrata e tecnológica que se aproxima, devastando valores

humanos com um simples disparo. A voz estratégica do sino chamando para as reuniões –

PEN, PEN, PEN – é sufocada pelo berro individual e imperativo – PEN, PON –, que não dá

chance do mirar olho no olho no corpo a corpo da batalha campal, ou dos ataques

relâmpagos e fantasmáticos dos jagunços, defendendo seu território. Seu Ioiô fala com um

fio de voz plangente quando lembra que Timotinho, um anão, perito nos toques do sino, em

sua constituição frágil foi esmagado, sem nenhuma chance, pelos estilhaços do cuspe fatal

do Dragão Destruidor. Nas entrelinhas acusa um ato covarde das forças militares. O

Conselheiro também foi atingido e morreu, segundo versões várias, com os agravantes dos

ferimentos provocados pela destruição da bala derradeira.

Mesmo assim a resistência foi muita. Alguns pediram para sair de Canudos, como o

comerciante Antônio Vilanova, que teve autorização do próprio Peregrino. Mas a grande

maioria dizia que se o Conselheiro morria ali, ali queriam morrer também. E a resistência

continuou até quando, no fim, dia 05 de outubro de 1897, o arraial destruído ainda

apresentava um velho, uma criança e um ferido que não queriam se entregar. Mas já não

havia mais voz de alento sobre Belo Monte. A última voz que se ouviu foi de Artur Oscar,

proferindo uma espécie de excomungo sobre aquela terra e última lembrança de

reconhecimento aos oficiais ali derrubados. Seu Ioiô eleva a voz nesse instante:

Ele apoiou e disse: “Vire um pouquinho aí”. Olhou pra Canudos... já esfumaçando ainda.

Fogo pra aqui, fogo pra acolá... que eles tocaram em tudo. Aí ele olhou e disse, de onde estava.

Disse: “Canudos, terra de um profeta maldito!”. O general falando do Conselheiro né. Que ele era

um maldito, um profeta, aí ajuntava tudo era um profeta mardito. “Canudos, terra de um profeta

mardito! Aqui sucumbiram-se muitos colegas de farda”. Isso era Artur Oscar falando: “Aqui

sucumbiram-se muitos colegas de farda. Uns sepultados e outros insepultos. Coronel Moreira César,

insepulto; Tamarindo, insepulto; major Felinto, sepultado, outros mais insepultos e outros sepultos”.

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Disse e se depediu. E pra acabar, montou e disse: “Eu deixo o meu pesar aqui. E até logo”. E viajou.

Ele disse: “E aqui deixo o meu pesar, os mortos, meus colegas etc. etc.”.

Nenhum sentimento de orgulho, de glória, ou de festejo pela vitória estava presente

nas últimas palavras do vencedor sobre a derrota do vencido. Somente pesar e rancor e,

depois, o incômodo silêncio pós barbárie.

5.3. Imagens do Profeta e do Santo: Conselheiro Nunca deixou Canudos

Em paralelo a esse corpus da batalha, que não cessa de ser recontado, a figura de

Antônio Conselheiro ganha dimensões cada vez mais míticas e de santificação quando vai

se esmiuçando suas atitudes, suas palavras e sua passagem pelo mundo. Definitivamente, o

Peregrino torna-se a personalidade mais marcante da história bordada pela comunidade dos

antigos moradores de Canudos e atuais habitantes da Nova Canudos.

Dom Sebastião, figura que aparece nas profecias anônimas como um guerreiro

messiânico daquela Nova Jerusalém sertaneja, desaparece da memória da região. A não ser

em um comentário de seu Ioiô, que se lembra da história de um São Sebastião, que voltaria

para comandar as hostes celestiais em nome de Jesus, em combate contra as forças

antagônicas ao povo de Deus. Mas nos demais encontros que tive com narradores, ou

mesmo com habitantes da Nova Canudos, que têm incrustrado em suas vidas as passagens

das histórias da região e das personagens que fizeram e fazem parte desse “épico”, Dom

Sebastião não diz e não quer dizer nada sobre os fatos passados atualizados no presente.

Há, sem dúvida, um esboroamento dessa figura na memória local relativa ao

acontecimento de Canudos, pois não encontra terreno na continuidade da ordem dos fatos

ainda vivíssimos e em engendramento na oralidade da região. Poderíamos ver aqui um

esquecimento necessário e ativo para a vida da memória processual dos fatos canudenses.

Comumente visto como noção oposta à memória, o esquecimento, pelo contrário, atua, no

caso em questão, como “responsável pela continuidade, pela memória e até pela lembrança.

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[...] é o esquecimento que vem quebrar uma certa continuidade na ordem mental, sendo

responsável pela criação de uma outra ordem”183.

Dom Sebastião não apresenta mais potencialidades compatíveis com a teia que

enreda o tema de Canudos nos relatos orais. Brechas sempre existem, mas, neste momento,

sua presença imaginária heróica e messiânica não resiste diante da forte manifestação de

outra personagem, que teve participação fundamental em carne e osso na aventura

canudense, que emanou energias vocais e corporais em ato, constituindo-se, muito por

esses motivos, numa matéria vivíssima do imaginário local. Essa presença carismática,

respeitada e venerada, leva consigo energias de outra esfera que não a beligerante. O Bom

Jesus Conselheiro, o Peregrino Antônio, flui pela boca e ouvido de gerações de canudenses,

cada vez mais envolto numa aura de santidade beatífica, permanecendo numa recordação

de outra ordem, gravando os momentos de felicidade da época do arraial de Belo Monte,

lutando por uma memória ainda ameaçada de sepultamento e extermínio por outras

instituições mascaradas em outras atitudes.

Um exemplo disso vem da história mais repetida no imaginário envolvendo o

Conselheiro. Ela tem que ver com a construção da igreja que continha a torre do sino onde

tudo convergia em termos de organização e de forças seculares e divinas. Mais uma vez é

Seu Ioiô da Professora que comunica, com elevado grau de vivacidade, este episódio

considerado como um dos milagres do Bom Jesus Conselheiro. Simplesmente este relato é

um ápice de consagração do Peregrino como homem santo, carismático e portador de

poderes sobrenaturais. O episódio retrata o milagroso transporte da madeira central que

sustentaria a cumeeira do edifício religioso de Belo Monte. Trata-se, portanto, de um ato

que afirma a figura do Antônio Conselheiro como eixo catalisador e manipulador de

poderes terrenos e divinos.

Acontece que a madeira de sustentação da cumeeira foi escolhida a dedo, pelos

jagunços, dentre diversos madeirames doados por um tal Sinhozinho. Foram convocados

dezesseis jagunços para transportar o enorme tronco de maçaranduba. Mas logo que

tentaram pegar o tronco para ser levantado, tiveram suas intenções frustradas; não

conseguiram sequer dar um passo.

183 PIRES FERREIRA, Jerusa. “O Esquecimento, Pivô Narrativo”, em Armadilhas da Memória e Outros

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Quando pegaram, cadê. Batiam com ela no chão. Pegava dezesseis: “Vamo marchar, não

vai, não vai, aêêêê, tira... O que nóis faiz?” Que a principal coisa, da igreja, das madeiras, é essa aí...

era o eixo de tudo. Aí ele só mandava. Veja só que foi que aconteceu. Conselheiro mandou ele

[Antônio Fogueteiro] ir lá. Daí Antônio se queixou, Antônio Fogueteiro [...] Aí ele [Antônio

Conselheiro] se levantou e disse: “Antônio, fica muito longe a cumeeira?” Ele disse: “Não, é perto.

Dá meio quilômetro mais ou menos, um quilômetro”. “Eu vou lá. Vamos?”; “Vamos!” Aí saíram.

Pegou o cajado dele. Aí Sinhozinho: “E agora vou reparar o que é que vai acontecer. Porque se

dezesseis não trouxe, quero ver na chegada dele [o Conselheiro] o que é que vai acontecer”. Aí ele

veio tuque, tuque, tuque, tuque, tuque... O Conselheiro chegou... Que não saía com dezesseis. De

jeito nenhum. Aí ele veio, o Conselheiro, ele disse pro Antônio Fogueteiro. “Se é por isso que é

dezesseis homens. Dezesseis homens que você botou aí são fortes. Era de saí pra malhar. Mas eu vou

dar um jeito. Vamo se aquietá”. Ele preparou, olhou pra ela. Pediu a eles que se disse; “54 palmos”.

E ele: “Tá bom, 54”. Aí pegou o cajado... veja... abriu um livro... leu, leu, leu... pegou o cajado dele e

chegou na ponta onde já estava o pau. Chegou e Pan, pan, pan, pan... Chegou no meio e pan, pan,

pan, pan... Chegou na ponta e pan, pan, pan... “pega o pau rapaziada”. Foi o mesmo que pegar uma

caixa de fósforo. Olha só: “Ave Maria... Viva Nosso Bom Jesus Cristo...” A cumeeira ficou leve...Aí

agarram...

Interessante toda a cadência dada por Seu Ioiô ao relato. Os passos do Conselheiro

até chegar ao local da madeira como que se dão de modo decidido. Ao chegar, quando se

depara com a madeira e os homens, prepara um tempo ritualístico. A descrição é ralentada,

ambientando os ritos mágicos do Conselheiro, não só pelas imagens que evoca a narrativa,

mas também por meio do ritmo imprimido. O líder carismático pede para que digam o

tamanho da madeira, apanha o cajado com calma, abre um livro, que provavelmente

contém palavras mágicas que permitem ao Peregrino evocar forças naturais e sobrenaturais,

depois utiliza o cajado, objeto mediador de ações mágicas, como o de Moisés e de lendárias

figuras de magos medievais. Bate com o cajado na madeira em pontos estretégicos e está

realizado o milagre. A partir daí a narrativa ganha ritmo alucinante. Rapidamente o

Conselheiro manda pegar o tronco. A madeira se faz leve, os jagunços pegam-na com

agilidade e assim transportam aceleradamentre até Canudos.

Curioso episódio este. Lembra muito – e já ouvi esta referência algumas vezes –

uma ação do lendário Mago Merlin relativo ao transporte e disposição do monumento

conhecido como Stonehenge:

Ensaios. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004, p. 94.

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O nome Stonehenge se origina de stan (pedra) e hencg (eixo), palavras do inglês arcaico.

Geoffrey de Monmouth corajosamente atribuiu a construção de Stonhenge ao mítico mago Merlin,

que magicamente teria transportado as pedras que já existiam na Irlanda para Salisbury, por ordem

de Aurélio Ambrósio, tio do rei Arthur. A narrativa de Geoffrey teve enorme repercussão no coração

dos ingleses porque evocava o mago Merlin e a legendária cavalaria arturiana, o patriotismo, as

aventuras heróicas, a bravura e principalmente o mistério184.

Mais uma vez comparece a matéria lendária arturiana na rede de histórias sobre

Canudos/Belo Monte. De um lado temos como personagem salvadora das dores do mundo

o rei Artur/Dom Sebastião, com a espada, o objeto nobre símbolo de justiça e da bravura

guerreira, nesta outra ponta, toma a frente, como personagem salvadora da continuidade da

memória épica em processo, a figura do mago Merlin/Antônio Conselheiro, com o objeto

mágico cajado, mediando as forças da natureza e divinas, lutando para não se calar, através

destas narrativas encantadas, a voz do evento canudense.

Antônio Conselheiro deixou também um legado de crenças e costumes até hoje

persistentes. Dona Duru, moradora de um sítio em Umburanas, filha de João de Régis, um

dos mais respeitados narradores de Canudos, falecido há mais ou menos dez anos, conta

como mantém rezas e como a penetração das palavras do Conselheiro acontece de maneira

insólita. Ela diz que seus avós foram moradores de Canudos/Belo Monte. O que mais fica

em sua memória são as rezas de benção dirigidas ao dia a dia feliz de festas e trabalhos no

arraial. Até hoje sabe, de cor, as sete colunas que compõe o Santo Ofício de Nossa Senhora,

difundida pelo Peregrino. Dona Duru diz que essa oração foi tão conhecida na vizinhança,

que quase todas as famílias locais até pouco tempo participavam desse momento de graças

em muitas madrugadas. A repetição foi tão intensa que Dona Duru soube, por ouvir contar,

de um caso inusitado que nos dá a dimensão do alcance de voz do Conselheiro.

Minha avó, esse pessoal mais velho, mais velho assim da idade da minha vó, minhas bisavó,

não passava a madrugada sem rezar o Santo Ofício não. Óia, era tanto que eles tinham papagaio

dentro de casa... tinha uma conhecida, conhecia a finada Manésia, ela rezava o Santo Ofício,

184 Trecho tirado da matéria “Stonehenge – o Círculo Sagrado Celta”, da jornalista, escritora educadora e professora de mitologia Marilu Martinelli. Site www.ippb.org.br/modules. php%3Fop%... acessado em 11/01/07. Este site é do Portal do IPPB – Instituto de Pesquisas Projeciológicas e Bioenergéticas.

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chamava os filho, era todo mundo... chamava os filhos de madrugada pra rezar o Santo Ofício.

Tradição, diz que é tradição de Antônio Conselheiro. E tinha aqueles papagaio...

Oxente, quando aqueles papagaio avoava e se juntava com os outros... as pessoas iam atrás

de umbu, no mato... só via os papagaio: “Nos lábios meus...” Aí no mato: “Ai meu Deus, o que é

aquilo? Quem que tá rezando no mato, numa hora dessas, de madrugada?” Quando olha, era os

papagaio. (risos)

Eu não vi não, mas eu vi contá. Meu pai contava. Pois era... Os papagaio ouviam e

aprendiam. E aí, quando voavam e iam pro mato... aí... é, você não ouviu dizer?... de ir pro umbu, e

aí só ouvia era rezar o Santo Ofício... “Mas o que é aquilo? Quem é que tá rezando no mato uma hora

dessa?” E quando chegava perto, o papagaio, aquele bando de papagaio... uns não sabiam não né... os

do mato não sabiam não, mas onde um rezava, tinha papagaio sabido, tinha uma voz bonita, tem...

E Dona Duru relembra, em outra chave da narrativa, indo para o lado profético do

Peregrino, uma de suas profecias, onde comparece visões apocalípticas às vezes proferidas

durante uma reza ou outra, uma conversa ou outra, em tom de conselho. Ela puxa com

dificuldades esse fio de sua memória:

Que iam aparecer essas mulas de fogo. De Norte a Sul, do Nascente ao Poente... Que aí

estava perto o Fim do Mundo. Ele [o Conselheiro] falava muito isso: “Ai, meus filhos, se apegue

com Deus que vai haver tempo, que aí pai não conhece filho, filho não reconhece pai e aí haverá

muita devastidão no mundo, muita peste, muita fome. As pessoas não acreditam, as pessoas não tem

palavra. Triste do homem que acreditar em outro...”. Falava tudo isso.

Dona Duru já fez sua leitura sobre esta profecia. Acredita que as mulas de fogo

representam os ruídos ensurdecedores dos carros e principalmente das motos das épocas

atuais. Seu entendimento sobre a profecia do Conselheiro revela a percepção de um mundo

em processo de degradação. Por exemplo, a dificuldade em se manter relações estáveis

entre membros de uma mesma família nos dias de hoje, passa a ser um sinal dos fins dos

tempos contido nas profecias que ela diz terem sido pronunciadas pelo Conselheiro nos

tempos de Belo Monte.

**********

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Em paralelo às descrições de casos sobre o Conselheiro, outros relatos ganham força

em Canudos nos dias de hoje. Inclusive não são raros. Mostram a questão apocalíptica

ainda muito forte nos herdeiros da memória de Canudos/Belo Monte. As visões

apocalípticas que aparecem nos relatos dos narradores do presente, têm que ver com a

dificuldade em se preservar a memória de Canudos durante todos esses anos por causa dos

diversos ataques ao território onde ficava a antiga cidade, hoje inundado pelo açude de

Cocorobó.

5.4. A Decomposição Compondo uma Memória Apocalíptica: o Fogo, a

Água, o Pó

Não temos mais como visitar a espacialidade que compunha a cidade de Canudos,

ou o Império de Belo Monte. Em 1969 a cidade foi inundada pelo açude de Cocorobó,

numa ação do governo que se justificou de tal ato ao apresentar projeto de melhorias e

combate à seca da região. Muitos vêem a construção do açude como algo positivo para o

local e adjacências, porém, há um certo rancor quando se fala no ato do governo e aflora-se

um sentimento de indignação por se ter invadido um território sagrado que não devia ter

sido tocado.

Para alguns estudiosos da região, a construção do açude em Canudos foi um ato de

represália a uma memória que insiste em persistir no tempo. Eldon Canário, nascido em

Canudos onde viveu até os doze anos, antes da inundação, formou-se em Direito pela

UFBA. Nunca deixou sua ligação com a cidade natal. Em 2002 lançou o livro Canudos:

sob as águas da ilusão185. Nesta obra, Eldon Canário expõe a opinião de que o projeto de se

construir um açude sobre Canudos teve que ver com estratégias de governos ainda

incomodados com o local. Canudos teria ganho força como símbolo de resistência e

possibilidade de discussão e ação por uma outra ordem, que não as impostas pelos poderes

hegemônicos quando se trata do ancestral descaso com o sertão e sua gente. Canário fez um

levantamento histórico e revela que o açude foi projetado no governo ditatorial de Getúlio

Vargas. A região recebeu visitas de especialistas no assunto durante vários anos. Mas a

realização do açude ocorreu em 1969, durante a fase mais dura do regime militar.

185 CANÁRIO, Eldon. Canudos: sob as águas da ilusão. Salvador: UNEB e CEEC-Centro de Estudos Euclydes da Cunha, 2002.

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Eldon levanta a questão como um duro golpe à memória nacional dado por poderes

instituídos no Brasil. Vai em defesa de sua tese, apresentando argumentos científicos que

tentam demonstrar outras possibilidades de construção do açude e melhorias para a região.

Inclusive chega a afirmar que não havia necessidade de o açude passar pela antiga

Canudos. Seu livro assume uma posição de desabafo e de continuador da memória de

Canudos através de sua denúncia:

Neste ensaio, analisamos as causas e as conseqüências da destruição da histórica vila de

Canudos, submersa pelas águas do Açude Cocorobó, que apesar de ter sido construído com a

promessa explícita de tirar a região do atraso crônico, não teve seu objetivo alcançado. Se, porém, os

seus idealizadores, trancafiados em escritórios distantes, imaginaram apagar uma página tão

importante da nossa História, não conseguem, felizmente. [...] Por tudo isso, é mister registrar, para

as gerações futuras, o crime que se cometeu contra Canudos, ao destruí-la mais uma vez186.

Sim, destruída mais uma vez. Como já dizia Sergio Guerra, professor de História da

UFBA, em entrevista ao excelente documentário do diretor Antonio Olavo, Paixão e

Guerra no Sertão de Canudos:

Era preciso que a República, que o positivismo, que a ciência militar se afirmasse, de tal

forma que nunca mais fosse questionada. Repare que não só Canudos é destruída, derrotada, mais do

que derrotada ela é destruída, ela é queimada, ela é bombardeada, ela é salgada, ela é alagada187.

Reparemos que as destruições constantes de Canudos são vistas, por muitos

pesquisadores, como ato de abafar e, mais que isso, de evaporar a memória de tudo o que

representou o arraial de Belo Monte para os poderes institucionais de diferentes épocas. Já

nos relatos que compõe a épica oral de Canudos/Belo Monte, a insistente ação de devastar o

território canudense é lida como estratos temporais apocalípticos.

A imagem da destruição, no sentido de sufocar a memória, se dá nos elementos do

fogo, da água e do pó, matéria final à qual Canudos deverá voltar para renascer, como uma

fênix. Há uma espécie de cisma, de receio em se falar dos diferentes momentos em que

Canudos sofreu ataques com intuito de ser varrida da memória. Trata-se da percepção de

186 Idem. Texto da contra-capa.

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um espaço sagrado a cada momento sendo invadido, e a denúncia se faz na rememoração

desses ataques, sempre carregada de um comentário às vezes duro, quando se quer chamar

a atenção para um futuro violentado pela falta de respeito à memória, e outras vezes

receioso, cheio de silêncios, como que proferido nas raias de um mistério ainda a ser

desvendado em fúria por causa da profanação do solo sagrado.

É para essa memória que gostaria de chamar a atenção, por tratar-se de leituras

sobre eventos passados, dando sentido ao renascimento constante dessa história no

presente, lançando um olhar ao futuro. Queremos levar em consideração, com as potências

dessas narrativas orais ainda hoje freqüentes, um sentimento de pertença a uma história

própria, que não cessa de ser contada e recontada.

**********

Anos após o fim da guerra, alguns canudenses retornaram ao local e reconstruíram o

povoado. Canudos ressurgia em paz, tentando livrar-se dos traumas da guerra, reunindo o

que foi dispersado em termos de famílias e tradições ali praticadas na época do

Conselheiro. Dona Salu, hoje moradora em Bendengó, povoado próximo ao açude de

Cocorobó, morou em Canudos nessa época. Mais tarde viveu uma cena isolada até hoje

comentada pelas pessoas. Quando do alagamento da Canudos reconstruída, ela foi a última

pessoa a deixar a cidade. As águas já chegavam no batente da porta de sua casa e invadia

tudo, quando ela resolveu não ter mais possibilidade de resistir. Iam embora, submersas

pelas águas, as dores e recompensas da luta no trabalho do roçado produtivo local.

Inundava-se as reuniões e trocas de experiência entre remanescentes da Canudos antiga.

Fugiam lentamente da visão as imagens das festas locais preparadas em torno da Igreja de

Santo Antônio, feitas em homenagem a este padroeiro do povoado, mas que lembravam

também um outro Antônio, o Vicente Maciel, o Peregrino e Conselheiro.

Diz dona Salu que a festa trazia gente de Salvador, de outras capitais e até gente de

outros países. Para ela o alagamento da cidade pelo açude foi então um golpe contra aquela

vivência efervescente reanimadora de Canudos, que voltava a existir com forças renovadas,

recordando sempre a cidade antiga destruída pela guerra, com seus heróis e antagonistas,

187 Vídeo Paixão e Guerra no Sertão de Canudos, direção de Antonio Olavo. Salvador, Portfolium,

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embora não se reerguesse com os mesmos propósitos de Belo Monte. A inundação de

Canudos, para ela, foi uma guerra da água, muito mais devastadora que a do fogo, pois

Dona Salu viveu plenamente o ressurgimento de algo momentaneamente sepultado pela

guerra.:

Sei que guerra mais ruim foi a da água. A do fogo morreu muita gente, muita gente. Na

guerra da água eu tava. Eu saí com água no batente. Que eu disse mesmo ao engenheiro: “Óia, da

minha casa eu só saio quando tiver água no batente. Entrando aí no batente aí eu saio”. Na hora que

eu saí, deixei a porta aberta. Ela já estava entrando aí na porta. Eu era contra...

Ver a água entrando pela porta soou como uma invasão indesejada na vida e no

íntimo de Dona Salu. A imagem ressurge até hoje muito viva na memória dessa senhora de

87 anos, quando ela diz que a água estava entrando “aí na porta”, sendo que o “aí na porta”

reapresenta esse momento violentador do passado ainda no presente.

**********

Em outro pedaço da oralidade de Canudos, temos narrativa lancinante gravada no

documentário de Antonio Olavo feito em 1993. Para seu Zé de Isabé, que tinha 100 anos na

época do registro em vídeo, a inundação era assunto sagrado, difícil de ser externado em

seu fluente depoimento. Contrastando com o jorro de frases que vão se ligando e dando

excelente visualidade memorial sobre a história de Canudos, ao falar da inundação surgem

apenas poucas palavras, sendo toda sua consternação muito mais comunicada pelas

reticências, silêncios e gestos.

“Eu acho que eles não deviam ter feito este açude aí. Por causo deste pessoal ter

sido derramado esse sangue aí no Canudos. E ser coberto d’água”. Seu Zé da Isabé fica em

silêncio. Olha para vários locais e se fixa em algo, com os dedos na boca, claramente

incomodado pela lembrança. Tenta voltar: “E o senhor sabe... água, derramar sangue assim

(Abaixa a cabeça e põe a mão nela, coçando o couro cabeludo com força), sei não, sei

não...”. Seu relato lembra do gesto emblemático de Pilatos, quando este lavou as mãos de

sangue para se livrar da culpa sobre a morte de Jesus Cristo. Aqui, as autoridades

Laboratório de Imagens, 1993.

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institucionais não lavam só as mão, mas um campo todo que foi coberto de sangue por um

massacre ainda gritante na consciência da nação. Para seu Zé de Isabé, as águas do açude

de Cocorobó serviram para apargar e destruir um passado vergonhoso, na tentativa de

poderes políticos isentarem-se de ações pretéritas. A construção do açude escancara a

covardia em não se assumir a culpa de sangue inocente derramado, e provoca, em seu Zé de

Isabé, incomodo físico e náuseas diante de ato tão aviltante.

**********

Mas em chave mais afeita à continuidade de uma memória apocalíptica sobre

Canudos, outro tipo de visão marcante sobre o episódio das constantes devastações da

cidade pode ser encontrado em discursos como os de Manuel Travessa. Ele já foi vereador

local e mantém luta ativa pela preservação histórica e cultural de Canudos. Montou um

pequeno museu, em Bendengó, com objetos da época do Conselheiro e ajudou na criação –

junto da UFBA e do CEEC-Centro de Estudos Euclydes da Cunha – do Memorial de

Canudos, construído no povoado de Nova Canudos. É um grande colecionador de tudo o

que se refere à Canudos Antiga e coloca-se sempre a disposição de todo aquele que o

procura para conhecer os eventos canudenses.

Embora tenha um trabalho ligado às instituições que mantêm a memória da região

em outras esferas, Manuel Travessa está mais envolvido com uma prática discursiva

voltada ao viés oral, ancorado em percepções de seus ancestrais canudenses. Em nosso

encontro isso ficou muito claro, quando evocou uma memória do futuro, projetiva, que vê

com outros olhos a preservação da memória da região. Esta memória liga-se a profecias

escatológicas que estão se concretizando com as reiteradas destruições de Canudos. Todos

os ataques sofridos pela terra canudense são vistos por ele como ações predatórias,

obedecendo ao caminho processual do último aniquilamento, para que tudo o que foi

proposto, composto, articulado às energias divinas e da natureza, ressurja do pó, das cinzas.

O ressurgimento, ainda por se cumprir, representaria a vitória de vivências

harmônicas dos homens com a natureza, que buscam sentido em palavras e obras voltadas

aos sinais de Deus na terra. A afirmação dessa maneira de constituir-se na terra, em busca

da confluência com a natureza e com as forças divinas, seria a derrocada do que ele percebe

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como empáfia da altivez tecnocrata e suas construções destrutivas e arrasadoras de uma

memória sagrada. É convicto, em suas especulações, de que Canudos já viveu dois dos

arrasamentos prognosticados em profecias. Aguarda agora o derradeiro, o tempo final para

o advento do império da nova ordem:

Se fosse hoje a época de ter construído este açude, não construía por questão de recordação

do passado aonde houve o massacre de Canudos, entende. Então hoje, se pela cultura que tem hoje,

não ia destruir... já destruiu um lugar histórico. E egora não dá pra voltar atrás, porque é como se

diz... [Manuel Travessa muda de idéia] e poderá voltar, porque Canudos, meu avô e minha mãe dizia,

que Canudos tinha que ser destruída três vezes. Ele foi destruído duas vezes. Meu avô dizia:

“Canudos tem que ser destruída por fogo, água e pó”, não é. Quer dizer, os mais jovens hoje... que eu

tô com 64 anos [...] quer dizer, já vimos a destruição de Canudos duas vezes, nós como filhos de

Canudos. Porque vimos... sabemos da história da guerra, sabemos que o açude acabou com Canudos.

E Canudos está revivendo, mesmo em redor do local, mas o açude está aí. Nós não sabemos se essa

barragem não estoura amanhã e vira pó. E voltará Canudos novamente. Terceira destruição. Que era

a conversa do meu avô no passado. Era uma profecia dos mais velhos e de Antônio Conselheiro. E

que Canudos, Canudos tinha que virar mar e o mar virar sertão. Quer dizer, hoje é um mar né.

Amanhã pode ser sertão. Só vai depender de quê? Nós não sabemos [...] mas tudo o que é feito pela

mão do homem é destruído. E principalmente esta barragem, que ela não foi feita uma barragem

positiva. Qualquer um tempo que a gente não quer ver isso, mas muitas coisas mais seguras que nós

já vimos que se destruiu. Mas nós não sabemos se não cai um mundo de água aqui e não leva essa

barragem e Canudos vai virar pó.

Como os depoimentos anteriores, é com a luta pela memória da história da região

que Manuel Travessa cerca suas reflexões direcionadas aos sucessivos assolamentos de

Canudos. Mas são de outra ordem as elaborações do seu olhar presentificado sobre questões

passadas. Para ele, a memória viva de Canudos está garantida nas três lutas travadas

prognosticadas em profecias catastróficas relacionadas ao tema. Três ciclos de destruição e

retorno revelam duas forças em combate.

Uma pretende arrasar qualquer indício e propagação da utopia canudense, aliando a

capacidade de criação tecnológica dos homens com um caráter destrutivo do passado,

desrespeitando tradições e costumes em nome de uma suposta necessidade de progresso.

Apresenta-se ávida por atropelar qualquer entrave que impeça o que acredita ser melhor

para o desenvolvimento da região e do mundo. Com esta postura, não escuta a memória em

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engendramento dos que vivem, ou viveram, à flor da pele, o processo histórico

extremamente rico do lugar que luta para compor e escolher caminhos diversificados de

leituras sobre si e sobre o universo. O destino dessa força antagônica à memória de

Canudos, segundo Manuel Travessa, é de sucumbir sempre por ser uma criação puramente

humana, sem laços com a natureza ou com o divino, fadada, por isso, ao processo de

desgaste inerente ao ser humano.

Outra força atuante neste embate mostra-se como caráter de resistência e renovação

diante da força destrutiva tecnocrata. Faz com que retorne eternamente a utopia canudense.

Enaltece a confluência dos poderes divinos e da natureza em harmonia com o homem.

Garante um sentimento de pertença a uma história em devir, permitindo percepções de si e

do universo, transbordando a alegria em se fazer partícipe do engendramento de um mundo

possível, por meio da percepção da concordância da ação do homem com a natureza e o

divino.

Os três ciclos de batalha pela memória da região foram nomeados de acordo com o

elemento que agiu, ou age, catastroficamente, na evolução do devir histórico lido em chave

profética local.

Primeiro esteve presente o elemento fogo, com a guerra e seus aparatos tecnológicos

militares (melhor representandos pelo devastador canhão 32 Withworth). Este período foi

vencido pelos canudenses com o retorno de sobreviventes da guerra ao local para

reconstruir a cidade. O homem canudense recupera e leva adiante a história da qual faz

parte.

Numa segunda vez a catástrofe apresentou seu rosto mascarado sob o elemento

água, com a construção do açude de Cocorobó, que varreu a cidade de Canudos do mapa

com seu alagamento. Novamente a memória resiste, nas vozes dos arredores do campo

santo inundado, quando o sertão virou mar na citação de Manuel Travessa de uma outra

profecia dos tempos de Canudos encontrada e registrada por Euclides da Cunha em sua

Caderneta de Campo. A memória resiste, mas algo está fora do lugar. Só haverá nova

vitória total da memória quando houver a intervenção da natureza, quando uma enchente

estourar as barragens do açude ou coisa parecida.

Eis assim a era do pó pela qual se espera, na qual Canudos deve renascer na

eternidade, com sua memória restabelecida, cumprindo seu destino como uma Nova

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Jerusalém. Como diz Manuel Travessa, esse é o momento que o sertão voltará a ser sertão.

Irá se dar, nesta volta ao pó, um tempo de glória e tranqüilidade tão esperada, agindo na

afirmação de ser sertanejo, de pertencer a uma vida, a uma existência diferente, nem melhor

nem pior que a desenvolvida no litoral, mas própria, sem o fantasma plantado da suposta

superioridade das grandes metrópoles.

Então a idéia de o sertão virar mar na antiga profecia anônima encontrada em

Canudos, é vista por Manuel Travessa como um momento negativo, de mal estar, pelo qual

vem passando o território de Canudos. Não que a água seja elemento indesejável, mas

inundar um lugar de memória sagrada revela a soberba de cabeças da metrópole sempre

prontas a resolver, paternalistamente, os problemas dos quais são tão distantes. Todas essas

percepções são discutidas na elaboração dessa profecia apocalíptica de três etapas pelas

quais deverá passar Canudos para que renasça em plenitude eterna. Esse tempo Manuel

Travessa prepara, recolhendo pedaços da destruição em seu pequeno museu, para que

Canudos não perca o fio de continuidade do seu destino sagrado.

**********

Não retornará, nem ressurgirá, junto com a Nova Jerusalém sertaneja da profecia de

Manuel Travessa, a figura de Dom Sebastião. Da memória canudense atual ele some e dá

passagem à volta do Peregrino, que tem sua voz ecoada pelo sertão. Dom Sebastião entra

no esquecimento como “noção de quebra, de hiato, para futuras e renovadas retomadas e

reconstruções, algo como a morte provisória que se faria seguir de ressureição”188.

Podemos dizer que o jovem monarca português dá lugar a um novo personagem símbolo do

comando da marcha ao retorno da união do homem com Deus em território sagrado. Mas

mesmo assim, deixa marcas fundamentais na reconstrução oral da história sobre o

Conselheiro.

Dom Sebastião entra no esquecimento, mas, como Jerusa Pires Ferreira diz, citando

Paul Zumthor, “nos mitos antigos, o esquecimento quer dizer, ao mesmo tempo, morte e

retorno à vida; destaca-se uma função simbólica que faz dele o momento crucial para

reencarnações e escatologias. Ele (Zumthor) constata que a vontade de esquecimento se

188 PIRES FERREIRA, Jerusa, Armadilhas da Memória..., op. cit, p. 94.

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identifica com uma realização frágil da experiência pessoal ‘a fim de que renasça, no seio

da linguagem, uma vida mais assegurada’”189.

Nesse esquecimento de uma personagem para a vivência de outra na narrativa épica

mítica de Canudos, Antônio Conselheiro leva algo de Dom Sebastião; a qualidade de um

ser encoberto, sempre retornando. Aliás, essa talvez seja a qualidade que mais

proporcionou ao jovem monarca sua permanência em tempos/espaços diversos, e um fio

dela perpassa pelo Peregrino Antônio Vicente Maciel. A morte deste ganhou diversas

versões, mas uma se refere ao não reconhecimento do corpo do Conselheiro por alguns

habitantes de Canudos/Belo Monte no momento de exumação do corpo. Pedrão, um dos

jagunços, reiterou muitas vezes o que ele presenciou e constatou. Também a filha de

Manoel Quadrado, manipulador de ervas e médico popular de Canudos, dizia que o corpo

exumado era do seu pai, muito parecido com a figura do Conselheiro. Até pouco tempo,

Rufino Calixto, morador de Vila da Ema-BA, filho de Pedrão, lembrava essa história:

Meu pai disse: “E vocês sabem se o Conselheiro vaisembora ou vai morrer?” No terceiro, no

amanheceu não teve que o visse mais. Não sabem pra que se dormiu nem se morreu. Quando foi no

outro dia caçaram o Conselheiro e não tava mais lá. Morto não acharam. E não sabe. Assim contava

ele.

E assim permanece a voz de Antônio Conselheiro, visitando a oralidade da região,

mantendo viva ainda a chama da memória de Canudos. No momento de sua despedida

dessa vida, quando sabia já da derrota de Canudos/Belo Monte para o exército, de sua voz

ecoava palavras parecidas com as de Dom Sebastião na profecia anônima que copiamos no

começo desse capítulo. No entanto, em sua última prédica, de modo menos truculento que o

rei de Portugal encoberto, mostra todo seu amor à vida, à natureza, à sua gente. Dom

Sebastião diz, ao se depedir da terra em processo de se devastar: “adeus Mundo, até mil e

tantos, a dois mil não chegarás”. O Conselheiro, em sua partida dessa existência, expressa-

se em estado de beatitude:

[...] É chegado o momento para me despedir de vós; que pena, que sentimento tão vivo ocasiona esta

despedida em minha alma, à vista do modo benévolo, generoso e caridoso com que me tendes

189 Idem, ibidem.

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tratado, penhorando-me assim bastantemente! São estes os testemunhos que me fazem compreender

quanto domina em vossos corações tão belo sentimento! Adeus povo, adeus aves, adeus árvores,

adeus campos, aceitai a minha despedida, que bem demostra as grata recordações que levo de vós,

que jamais se apagarão da lembrança deste peregrino, que aspira ansiosamente a vossa salvação e o

bem da igreja. Praza aos céus que tão ardente desejo seja correspondido com aquela conversão

sincera que tanto deve cativar o vosso afeto190.

Assim o Conselheiro despede-se, mas fica na memória do seu povo e da sua terra.

Dom Sebastião dá adeus a Canudos e não retorna, porém vai visitar outras paragens, em

outras vozes, em outros gestos, em outras memórias.

190 Despedida de Antônio Conselheiro, A última prédica, em http://dhnet.org.br/desejos/sonhos/predica.htm. Acessado em: 17/01/2007.

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6. Dom Sebastião no Grão-Pará e Maranhão

Não é por meio da contigüidade territorial ao sertão que se manifesta, de modo

marcante, a figura de Dom Sebastião no solo brasileiro onde a presença da água e das

florestas é fator relevante para a vivência social, cultural e religiosa. Outras são as rotas de

chegada do rei encoberto e as maneiras de se relacionar com ele.

Sabe-se que a colonização, pelos portugueses, do Grão-Pará e Maranhão, acontece

de maneira tardia e com muito custo, devido às invasões destas terras mais abandonadas

pela metrópole no começo da chegada dos primeiros habitantes portugueses nas novas

terras. Aproveitando o descaso português com a região e a apatia em resistir a qualquer

ataque estrangeiro, já que Portugal vivia sob o jugo de Castela no período de 1580 até 1640,

franceses penetraram no território e aportaram na Ilha Grande, em agosto de 1612. Logo

depois da chegada, os colonos franceses ergueram um forte em homenagem a um dos seus

reis, Luis XIII, e chamaram o edifício de Forte São Luís. Junto a isso cristianizaram a ilha e

a rebatizaram com o mesmo nome do Forte. Em 8 de dezembro de 1612 era implantada a

cruz na ilha de São Luís. O pesquisador Raul Lody cita o Guia Histórico e Sentimental de

São Luís do Maranhão de Astolfo Serra, para ilustrar como se deu a fundação da cidade:

Procedendo-se em seguida à benção da mesma [refere-se à cruz implantada] ao tocar da artilharia do

Forte e dos navios franceses em sinal de regozijo. Esse ato, pela magnificência e excepcional

solenidade de que se revestiu, é considerado como o verdadeiro Auto de Fundação da cidade de São

Luís191.

Alertado sobre a eminente perda do território, Portugal inicia a colonização do local

depois da França tê-lo invadido. Isto se estende às terras do Grão-Pará, que na época

confundia-se com o Maranhão. Apenas entre 1641 e 1644, ou seja, após a restauração e

independência conquistada de Portugal, pode ser efetivada a expulsão e reconquista

territorial. Não deve ter sido fácil essa tarefa, pois holandeses também tentaram invadir e se

instalar naquelas terras, porém, com forças renovadas e espírito mais aliviado com a

191 LODY, Raul. O Povo do Santo: religião, história e cultura dos orixás, voduns, inquices e caboclos. Rio de Janeiro, Pallas, 1995, p. 258. Com mais profundidade, ver Astolfo Serra, Guia Histórico e Sentimental de São Luís do Maranhão. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965.

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restauração da independência a tanto tempo pretendida, o português lançou-se

aguerridamente contra os sucessivos inimigos invasores.

Com toda essa carga heróica das batalhas retomadas em nome das glórias

portuguesas, fez-se o reconhecimento deste território pelos navegadores portugueses

buscando consolidar, em definitivo, a colonização do Brasil. Um novo encontro se dava

entre os espíritos animados desses homens e o espírito das paisagens antes abandonadas

pelo descaso da metrópole em dores de nação subjugada.

Um depoimento importante dado pelo babalaô Jorge Itacy, chefe do Tambor de

Mina Iemanjá, localizado no bairro Fé em Deus, de São Luís, nos dá pistas do sabor que a

paisagem da Ilha dos Lençóis teria despertado nos primeiros colônos daquele território.

Segundo o chefe religioso, a paisagem singular da Ilha dos Lençóis, ligada ao município de

Cururupu, no Maranhão, despertou a memória dos portugueses relativa a Dom Sebastião e

seu estado de Encoberto, esperando seu desencantamento para voltar e continuar o projeto

de instaurar o V Império Universal cristão. Jorge Itacy conta que tendo os portugueses

navegado pelo litoral maranhense, avistaram as dunas da Ilha dos Lençóis, e acharam

semelhanças com as areias de Marrocos, onde se deu a batalha de Alcácer-Quibir, na qual

Dom Sebastião teria tido seu corpo desaparecido e encantado. “Então fundiram que o reino

de Sebastião voltava encantado nas areias dos Lençóis na praia do Maranhão”192.

A essa conjectura, outra se acopla na tentativa de explicar a escolha da Ilha dos

Lençóis como morada do rei Encoberto português. O pesquisador Pedro Braga193 infere que

a paisagem contribuiu ainda para a revivência de outro aspecto já convivente à história do

rei Sebastião. A Ilha poderia trazer muito bem a lembrança da Ilha Afortunada, ou a ilha

encantada de Avalon, onde repousaria, em preparação e purificação espiritual, segundo

lendas medievais, o mítico rei Artur. Novamente cruzam-se as histórias desses dois reis

com potências de retorno para o reencantamento do mundo de presente desarranjado.

Pode-se especular que estas hipóteses, sobre a transmissão da história do rei

Sebastião em terras maranhenses – e em terras do Grão-Pará, aí sim em contigüidade

afetiva e confluência de crenças parecidas, como se verá –, tenham forte capacidade de

192 Cf. vídeo A Lenda do Rei Sebastião.Ano de Produção: 1979; Duração: 14 minutos; Produção: Tempo Filmes; Roteiro e Direção: Roberto Machado 193 BRAGA, Pedro. O Touro Encantado da Ilha dos Lençóis: o sebastianismo no Maranhão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001, p. 32.

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verificação se nos ampararmos em estudos de Sergio Buarque de Holanda, ao tratar de

imagens edênicas, que ganharam revivência na visão dos primeiros colonizadores que

desembarcaram nas Américas. A paisagem do Novo Mundo acionou imediatamente a

imaginação dos primeiros europeus que aqui chegaram com os descobrimentos. O

imaginário transportado era carregado de um conjunto de utopias relacionadas ao Paraíso

Terreal muito divulgadas na Idade Média194. A geografia, a natureza, a fauna, as cores, os

ares eram muito semelhantes às imagens maravilhosas descritas em textos sobre o Paraíso

Terrestre levados da Idade Média ao Renascimento. Estas imagens inculcaram a crença, nos

descobridores, de que eles estavam bem próximos do Paraíso Terreal, isto se não estavam

nele efetivamente. Daí a disseminação deste imaginário dentro de uma região com

características próximas às descritas pelo conjunto de utopias trazidas do Velho Mundo195.

Assim como a paisagem do Novo Mundo despertou o imaginário medieval sobre o

Paraíso Terreal nos descobridores das Américas, a Ilha dos Lençóis, depois da retomada

das terras do Grão-Pará e Maranhão pelos portugueses, também trouxe de volta imagens da

guerra de Alcácer-Quibir e a lembrança do rei desaparecido que deveria voltar

gloriosamente à existência terrena, investido de uma aura messiânica.

A restauração de Portugal como pátria, recuperando sentimentos de pertencimento

aos grandes feitos da humanidade, tirou a nação lusitana da apatia em que se encontrava

diante do jugo de Castela. Isso proporcionou a retomada também da soberania sobre as

terras do Maranhão e Grão-Pará, em heróica vitória sobre invasores franceses e holandeses.

Com isso, despertava-se também a figura de Dom Sebastião como um rei guerreiro

encoberto, pronto para voltar e retomar o projeto cristão de instaurar o V Império cristão

em terras que pareciam trazer novas possibilidades de vida, sepultando as agruras e

humilhações pelas quais tinham passado Portugal e sua gente. Não há dúvida de que os

navegadores portugueses, que reconquistaram o território esquecido, traziam estas

aspirações amortecidas, que ganhavam movimento diante da paisagem e do contexto

histórico vivido por eles. História e natureza entram em conjunção e perpetuam um

194 Já nos ocupamos com este assunto, de maneira resumida, no capítulo sobre o movimento popular e religiosos Cidade do paraíso Terreal. 195 HOLANDA, Sergio Buarque. Visão do paraíso. Os motivos edênicos do desenvolvimento e colonização do Brasil. São Paulo, Brasiliense/Publifolha, 2000.

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fenômeno cultural que deverá ampliar seus territórios e, mais tarde, receber leituras

renovadas ao cruzar com outras culturas, histórias e naturezas.

6.1. Dom Sebastião na Epopéia da Encantaria Amazônica: Momento

Ecumênico para o Complemento dos Três Anéis da Grande Cobra

Efetivamente Dom Sebastião passa a fazer parte, lentamente, do imaginário local

maranhense, como rei encoberto e encantado habitando e construíndo seu reino

extramundo, nos subterrâneos da Ilha dos Lençóis e no mar circundante à ilha. Isto se dá

provavelmente a partir do século XVII. A ilha passa a ser o centro irradiador do reino e da

encantaria referente ao monarca português. Torna-se tão poderosa a crença na história e nas

ações de Dom Sebastião dentro da religiosidade local e do imaginário cotidiano das

populações ribeirinhas do Maranhão, que passa a estender-se em larga faixa territorial,

participando de forma ativa em lendas e crenças paraenses e da Amazônia.

Por hora, antes de visitarmos as potências germinadoras de permanências e

atualizações da figura de Dom Sebastião em terras maranhenses, gostaria de verificar a

participação e contribuição desse fenômeno da cultura exatamente no Grão-Pará, incluindo

a Amazônia, com sua floresta e seus rios, e o Pará, com seu litoral e interior. Uma narrativa

mítica abarca toda essa região, apontando preciosíssimas concepções da criação de uma

religiosidade construída sob a égide do ecumenismo. Trataremos então da história da

descoberta da Amazônia por turcos encantados, inaugurando uma era de encontros

inusitados na esfera mítica em paralelo ao nível terreno de manifestações.

A esfera mítica aparece como espaço de organização de forças cosmogônicas para

refletir, pensar e agir diante dos problemas caóticos e devastadores do nível terreno. Dá-se

então a narrativa mítica da criação e formação da religiosidade afro-brasileira chamada

Tambor de Mina, no centro da floresta amazônica.

Esta narrativa foi capitada pelo diretor e roteirista Luiz Arnaldo Campos em um

filme que mistura documentário e ficção chamado A Descoberta da Amazônia pelos Turcos

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Encantados196. Todo o relato foi, ao que tudo indica, trabalhado pelo sacerdote de Mina,

Pai Luiz Tayandô, que busca, de modo parecido aos aedos das grandes epopéias de diversos

povos, dar liga a fatos históricos e míticos. Nesta tessitura, o mito traz sua orientação

funcional, explicando e sancionando

a ordem social e cósmica vigente numa concepção de mito, própria de uma dada cultura, explicando

ao homem o próprio homem e o mundo que o cerca para manter essa ordem. [...] O mito se ocupa da

harmonização das relações mútuas do grupo social com o meio natural em medida ainda maior que

da harmonização do indivíduo e do socium. O mito é profundamente social e até mesmo

soiocêntrico, tendo em vista que a escala axiológica é determinada pelos interesses sociais do clã e da

tribo, da cidade e do estado197.

O relato de Pai Tayandô traz as características descritas acima. O começo de sua

narrativa se dá a partir de um fato histórico vindo do Velho Mundo, muito antes da

conquista das novas terras pelos europeus. E aponta uma crise das mais graves da

humanidade, uma das maiores razias do homem, que se reflete até os dias de hoje no campo

religioso, social, político, cultural revestida por idéias e concepções que criam hierarquias

raciais dentro da própria raça humana. O foco inical da epopéia da fundação do Tambor de

Mina cai sobre a primeira Cruzada que derrotou mulçumanos e tomou Jerusalém, em 1099.

A religião perdia seu sentido primordial para dar vasão aos problemas de não aceitação do

diferente. O resultado é a dispersão, o exílio forçado de membros de uma família do

sultanato turco derrotada na “guerra santa”.

Três filhas de Toy Darssalam, sultão da Turquia, são enviadas, de navio, com a

intenção de serem salvas, para a Mauritânia. Porém, nunca chegaram ao destino. Quando

passam pelo Estreito de Gibraltar entram em um dos portais da encantaria e passam a vagar

numa outra dimensão, sem saber onde e em que época estão. Tempo e espaço míticos

passam a fazer parte da epopéia contada por Pai Luiz Tayandô. O tempo e o espaço são

sentidos e percebidos de maneira diferente do comum da terra. Tudo passa a trabalhar em

função dos desígnios do mundo encantado. Eis o espaço e o tempo mítico primordial a ser

manejado por Pai Luiz Tayandô.

196 CAMPOS, Luiz Arnaldo (Direção, Roteiro e Produção). A Descoberta da Amazônia pelos Turcos Encantados. DocTV, TV Cultura, 2005.

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Ao relatar este tempo mítico de exceção, que sai dos limites do fluxo temporal

ordinário, mas que irá se dar em paralelo ao cronológico dos homens, Pai Luiz irá intalar

uma temporalidade em seu processo narrativo que irá alternar o acontecimento mítico com

o evento histórico. Ou seja, irá trabalhar os episódios paralelos como se houvesse uma ação

no plano histórico e uma reação no plano mítico. Afinal é disso que irá tratar a “epopéia”

por ele contada.

Retornando ao relato mítico, já temos um primeiro exemplo de como irá se dar essa

alternância temporal/espacial e poderemos perceber do que irá tratar a narrativa. Depois de

muito perambular, as filhas do sultão turco Toy Darssalan chegam em terras brasileiras, no

Amazonas, e são recebidas por uma velha Tapuia. A velha chora o tempo todo formando a

Pororoca, símbolo da resistência da natureza contra invasores brancos. Seu choro copioso

está ligado à violenta visita do espanhol Vicente de Pizon, em 1500, em terras Tapuias.

Pizon chegou pelo litoral atlântico do Pará e fez escravos índios e índias que levou para a

Europa. A Velha Tapuia e seu choro simbolizam a tentativa de preservação do local e dos

seus habitantes através de um expediente possível apenas por uma entidade encantada.

Percebendo que as princesas também são encantadas, recebe-as em seu mundo.

Estamos em 1500, data marcada no plano terreno com a invasão de Pizon a terras do

Pará. Data também da chegada das princesas encontrando a Velha Tapuia, a Pororoca, no

plano das encantarias.

É nesse período também que ocorre o primeiro encontro entre a cultura turca e a

indígena, no plano espiritual. As princesas, em suas andanças indefinidas pela floresta,

deparam-se com uma aldeia da Ilha de Parintins, e conhecem um espírito ancestral da mata,

Caboclo Velho, também conhecido como Xaramundim. O espírito convida-as para dançar e

festejar com a aldeia. Todas aceitam e ficam para os festejos, mas, logo após, duas delas

despendem-se da aldeia. Apenas Erondina, uma das irmãs, fica maravilhada com aquele

modo de vida e resolve ficar na convivência dos encantos da floresta, ajuremando-se198. As

outras continuam seu vagar, em busca do pai e do seu povo.

197 MIELIETINSKI, E. M. A Poética do Mito. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1987, p. 197-198. 198 Termo que expressa a aceitação e, mais que isso, a efetiva adoção dos costumes e tradições indígenas por pessoas vindas de fora da tribo, de outras culturas e tradições.

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A narrativa, nesse momento, já introduz elementos de harmonia no encontro de

diferenças, indicando os primeiros laivos de uma nova consciência surgindo a partir do

plano das encantarias. Há um trabalho do pensamento mestiço199 engendrando o encontro

de diferentes culturas nesta epopéia que procura resolver o traumático encontro da

diferença na época dos descobrimento. Essa resolução irá se dar na confluência destas

diferenças na criação do pensamento mítico.

O relato recua no tempo histórico neste momento. Darssalan, depois de alguns anos

da partida das filhas, deixa seu sultanato para encontrar-se com elas. Antes da partida

recebe apoio do seu povo, deixando esperanças em seu regresso para retomar a dignidade

dos turcos. Da mesma maneira que suas filhas, ao ultrapassar o Estreito de Gibraltar,

também o sultão entra no portal extramundano e fica à deriva. Somente em 1612 aporta no

Grão-Pará. Nesse período anda sem rumo pela floresta, tentando descobrir o rastro das

filhas apartadas. Encontra-se também com o Caboclo Velho, o espírito ancestral da floresta,

e é confundido com Sumé200, herói cultural da região.

Em épocas imemoriais, Sumé, um homem branco, integrou-se e ensinou os

primeiros povos indígenas, daquele local, a caçar, pescar, cozinhar. Mostrou também como

preparar os primeiros rituais, as festas, danças, enfim, introduziu elementos culturais na

vivência dos homens primevos201. Depois de grande convivência com diversas tribos, Sumé

parte e promete voltar um dia, quando aquele povo mais necessita-se de sua presença.

A época de chegada de Darssalam, como vimos, é 1612, momento em que franceses

invadem o Grão-Pará e agridem todas as tribos encontradas pelo caminho, expulsando-as

das terras onde viviam. Mais um momento caótico no plano histórico serve para pontuar

encontros e alianças, no plano encantado, de duas tradições diferentes. Porém, dessa vez o

199 GRUZINSKI, Serge.O Pensamento Mestiço. Tradução de Rosa Freire d’Aguiae. São Paulo, Companhia das Letras, 1999, principalmente no capítulo “O Choque da Conquista”. 200 A lenda de São Tomé, ou Sumé, como chamam os indígenas, foi trazida de Portugal e pode ter se fundido a outro personagem mítico dos ancentrais das Novas Terras. No capítulo “Um Mito Luso-Brasileiro”, da p. 133 a 159, do livro Visão do Paraíso, Sérgio Buarque de Holanda nos mostra como se alastrou a crença neste herói cultural para além dos limites do território brasileiro, e exemplifica como se configurou o caráter demiurgo de Sumé. Além disso, são apresentados indícios da estadia desse herói civilizador em vários locais por onde teria peregrinado. 201 A respeito da importância dos heróis culturais na mentalididade mítica de vários povos do mundo, ver o capítulo “Os Ancestrais-Demiurgos: Heróis Culturais”, p. 206-225 do livro, já citado, A Poética do Mito, de Mielietinski. Apontamos apenas esse (pois me deu noções importantes para este momento do trabalho), mas há muitos outros estudos sobre o mesmo tema apontando relevante interesse em pesquisas antropológicas e literárias.

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elemento turco se torna mais marcante, já que traz consigo as esperanças em um herói

cultural civilizador, Sumé, com quem é confundido Toy Darssalam. O momento dramático

vivido na dimensão terrestre exacerba mais o significado desse encontro, já que Sumé teria

prometido voltar quando houvesse perigo para as tribos. Darssalam aceita viver entre os

índios, mas não assume a liderança oferecida pelo povo da floresta num primeiro instante.

Em 1619 outro golpe no plano terrestre. Tupinambás expulsos de suas aldeias

juntam-se e entram em combate contra portugueses. A derrota dos autóctones é flagrante e

instala-se mais uma dor na história indígena do reino de Pindorama. Darssalam fica

instigado e comovido com a derrota arrasadora dos índios e resolve, talvez lembrando-se

das batalhas que teve com as Cruzadas cristãs no plano terrestre, aliar-se ao Caboclo Velho

no plano espiritual. Desse modo é coroado rei Marajó. O universo encantado das florestas

ganha mais um reforço diante das agruras por que passa o mundo material. É na pajelança

que se dá essa aliança. Caboclo Velho diz que Darssalam irá promover o fechamento dos

três anéis da Cobra Grande, para que seja consumada a nova consciência universal voltada

para o entendimento e convívio entre povos de costumes e tradições diferentes. Esta

primeira aliança, entre indígenas e turcos, corresponde ao fechamento do primeiro anel da

Cobra-Grande.

A partir daqui um novo elemento da encantaria habita o relato mítico de Pai Luiz

Tayandô, significando o sentido e os alicerces em que estava sendo edificada a novidade

religiosa no Grão-Pará e Maranhão. A lenda da Cobra-Grande cumpre papel preponderante

na estruturação da narrativa sobre uma nova consciência que vai se despertando.

A tradição de cobras encantadas vive em quase todo o Brasil.

O mito da Cobra Grande [...] é o mais poderoso e complexo das águas amazônicas,

exercendo grande influência nas populações que vivem às margens do Amazonas e dos seus

afluentes. Faz parte do ciclo dos mitos d’água, de que a cobra é um dos símbolos mais antigos e

universais. Senhora dos elementos, a Cobra-grande tinha poderes cosmogônicos, explicando a

origem de animais, aves, peixes, o dia e a noite202.

Essa carga simbólica, que trabalha o mito da Cobra-Grande na chave de personagem

condutora de poderes cosmogônicos, sobreviverá na região do Amazonas, dando lugar, com

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o passar do tempo, às lendas em torno deste mito. No entanto, em certo momento, são

exarcebados traços que revelam o medo humano em se deparar com essas forças tão

poderosas capazes tanto de criar como arrasar cidades inteiras, tanto de elevar como de

destruir com a vida de quem individualmente experimenta o contato com energias tão

arrebatadoras.

No relato do qual nos ocupamos, o motivo dos anéis da Cobra-Grande, que serão

fechados um a um, retoma potências cosmogônicas ligadas ao mito da cobra, fazendo

transparecer a complexidade que envolve os processos de criação. Parece realmente que há

uma revivência e atualização do pensamento mítico, sobre a organização do universo, no

qual a figura de Uróboro, a serpente que morde a própria cauda, representa muito bem as

concepções que impedem a desintegração material e espiritual da criação no abraço de um

círculo contínuo.

Aqui, a circunferência vem completar o centro para sugerir, segundo Nicolau de Cuse, a

própria idéia de Deus. A Uróboro também é símbolo da manifestação e da reabsorção cíclica; é a

união sexual em si mesma, autofecundadora permanente, como o demonstra a sua cauda enfiada na

boca; é transmutação perpétua de morte em vida, pois suas presas injetam veneno em seu próprio

corpo ou, segundo os termo de Bachelard, a dialética material da vida e da morte, a morte que sai da

vida e a vida que sai da morte. [...] A Uróboro, animadora universal, não é apenas promotora da vida,

mas da duração: cria o tempo, como a vida, em si mesma203.

Representante da própria idéia de Deus, símbolo da perpetuação da criação em

processo eterno, em devir sempre, com a vida surgindo da morte e da morte a vida,

promotora da instauração da duração, do tempo, a Cobra-Grande, na narrativa sobre a

fundação da religiosidade afro-brasileira, Tambor de Mina, em terras do Amazonas,

congrega todas essas características.

Como figura estrutural do enredo, fuciona como inauguradora de tempo dos

acontecimentos que falam sobre a confluência de diferentes tradições no mundo encantado.

Já no fundamento da gênese da nova religiosidade, cada anel fechado da Cobra-Grande

202 Cf verbetes “Cobra Encantada” e “Cobra-Grande” do Dicionário do Folclore Brasileiro: Revisto e atualizado, de Luís da Câmara Cascudo, São Paulo, Global, 11a edição, p. 114-115. 203 Cf verbete “Serpente” do Dicionário de Símbolos, organizado por Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1990, 3a edição, p. 814-825.

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representa grandes eventos, no plano espiritual, envolvendo a aliança de povos e tradições

diversas.

A idéia de fechar cada anel da Cobra-Grande relaciona-se às etapas pelas quais deve

passar a criação da nova religiosidade em formação no plano encantado. Cada etapa

também serve de ponte entre a dimensão espiritual e a terrena. A nova religiosidade vai

ganhando forma no plano espiritual para ser praticada no plano terrestre.

E é nessa direção que um novo encontro insólito irá propor mais um passo para a

preparação do Tambor de Mina arranjado na dimensão da encantaria. No século XVII, o

mítico rei Dom Sebastião já reina absoluto nas praias da Ilha dos Lençóis. E é por essa

época que, no plano encantado, se dá o encontro entre o jovem monarca e as princesas

turcas, que continuavam em busca do pai. Num primeiro momento, existe a desconfiança

das princesas quanto à recepção de inimigo feroz ancestral dos muçulmanos, afinal Dom

Sebastião teria desaparecido justamente numa batalha contra os mouros, há muitos anos, no

plano terrestre. Mas logo depois desse momento de dúvida, acontece o inimaginável em

outra esfera que não a das encantarias. Dom Sebastião acolhe as filhas do sultão Darssalam.

Séculos e séculos de inimizade violenta são esquecidos no mesmo instante. “Inimigos

terrenos, este ato mostra que no reino da encantaria o que acontece é a oportunidade de as

pessoas se confraternizarem na construção de um mundo melhor.(...) O mundo da encataria

derruba todas as dores e toda inimizade”204. Pai Luiz Tayandô ressalta uma das

características mais marcantes do espaço no qual vai se formando o Tambor de Mina;

“confraternização na construção de um mundo melhor”.

De fato, o tempo todo essa característica irá retornar, não deixando dúvidas quanto

ao motivo que sustenta a narrativa. O pensamento mítico cria condições e ressalta a

vocação da encantaria e do Tambor de Mina para reestruturar relações mal resolvidas no

plano material. Por isso aparecerá, na narrativa mítica, as lembranças das dores e

inimizades guardadas pelo encantado quando vivia em outra dimensão. Com o decorrer do

relato, um dado de transformação nas relações se destaca, e a quebra das razias tornadas

habituais e sem solução no plano terrestre vão sendo narrados. O mundo encantado da

gênese do Tambor de Mina mostra ser, definitivamente, um espaço/tempo reflexivo

atentando para uma cosmogonia direcionada a interesses que buscam resolver questões

204 Pai Luiz Tayandô, em A Descoberta da Amazônia pelos Turcos Encantados, op. cit.

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relacionadas à falta de respeito à cultura, costumes, tradições e história do Outro, do

diferente.

Reparemos que logo depois de Dom Sebastião encontrar e hospedar uma das filhas

de Darssalam, é o próprio sultão que aparece nas praias da Ilha dos Lençóis e é recebido

pelo rei português. Jarina, a única das princesas turcas que resolveu entrar para a família de

Dom Sebastião nas encantarias, tem a possibilidade de reencontrar o pai. Um momento de

festa ecoa por todo o reino encantado, partindo da Ilha dos Lençóis. São reatados laços de

sangue e a possibilidade de uma aliança com o inimigo, sem interesses, a não ser o de

recomeçar o mundo em outra sintonia, passa a ser possível na nova dimensão de existência.

Tempos traumáticos de séculos de separação são resolvidos, quando se pretende outros

objetivos ancorados na mudança de consciência em preparação no mundo encantado. Toy

Darssalam cada vez mais compreende e se convence da experiência que está vivendo.

Aceita o convite do rei português cristão, antes seu inimigo declarado, e hospeda-se no

palácio localizado nos subterrâneos da Ilha dos Lençóis. A aliança sacramenta um

acontecimento tão relevante que promove o fechamento do segundo anel da Cobra-Grande.

Logo em seguida o relato diz que no século XVIII, uma descoberta causa grande

espanto no plano terrestre, trazendo novidade para a pajelança praticada no Grão-Pará e

Maranhão. As cidades aí formadas com a colonização “eram habitadas por índios, mestiços

e principalmente por portugueses degredados, que tinham em sua religiosidade a fé no

sebastianismo”205.

Tempos depois de aportarem em novas terras e se misturarem com os indígenas,

portugueses instalados na região amazônica passaram a conviver com a pajelança.

Interessaram-se pela prática religiosa dos índios que apresentava, dentre outras coisas,

novidades medicinais manipuladoras de elementos da vegetação das florestas, sabedoria

que valorizava contato direto com a natureza e envolventes danças e mistérios, incluindo a

possibilidade mágica de invocar espíritos ancestrais. Depois de anos de coexistência com os

novos costumes, os portugueses, já adaptados à sua realidade presente, freqüentavam os

salões de pajelança, manifestando lá também a sua devoção ao rei Sebastião.

Nessa confluência de crenças, uma espécie de portal se abre aos encantados para a

realidade terrestre com as repetidas invocações ao rei Sebastião na pajelança, e três jovens

205 Idem, ibidem.

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da corte encantada do rei passam a se manifestar nas sessões de rituais indígenas.

Sebastiãozinho, Aruaninha e Guaiazinho são os primeiros a concretizar a possibilidade da

jornada que se apresentava. Isso representou uma grande novidade que também causou

espanto aos próprios encantados de procedência portuguesa, antes limitados apenas à

dimensão da encantaria. Puderam, a partir desse acontecimento, vivenciar novamente a

realidade do mundo real ao se manifestarem na religiosidade indígena. A família de Dom

Sebastião e o próprio rei ganham respeito na pajelança, ao promoverem a aceitação do

Outro, da diversidade, já não mais no plano encantado apenas, mas também na esfera

secular.

Em 1755 mais uma época de dores é inaugurada no plano físico da região

amazônica. No porto de Belém e de São Luís o tráfico negreiro intensifica-se. A história se

repete, com separações traumáticas de famílias, de tradições, do homem de sua terra natal.

Mas os africanos não vieram sozinhos. Os orixás das tradições africanas acompanham os

negros de diversas etnias e tribos, preservando e afirmando a unidade que tendia a se

dispersar nas condições em que se encontravam. A companhia dos orixás mantém a

dignidade humana dos escravos negros. Sua cultura religiosa preserva traços que o

escravizador tenta apagar quando os subjuga.

Entre o cortejo de escravos que sai dos portos de Beblém e São Luís, um dos orixá

que os acompanha se destaca: é Verequeti, “aquele que vai a frente, aquele que enxerga

longe, aquele que desbrava, faz alianças, cede privilégios para manter unidos os povos”206.

Verequeti tem a característica de grande líder e mediador entre seu povo e outras tradições.

A epopéia que trata exatamente do encontro de diferenças sem haver a subjugação de um

povo por outro, vê em Verequeti o primeiro orixá africano a compreender a nova

consciência que surgia naquelas terras estranhas.

Diz o relato de Pai Tayandô que no começo as divindades africanas manifestavam-

se apenas em seu povo, através de rituais próprios. Mas Verequeti percebe que a divisão era

negativa para a nova consciência ainda em formação. Assim aproxima-se das casas de

caboclos, da pajelança, e reconhece as entidades que se manifestavam lá em pé de

igualdade. As divindades africanas começam então a se manifestar também na pajelança.

206 Idem, ibidem.

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Completa-se, desta forma, a união de povos tanto no plano espiritual como no

físico. Pajelança, Turquia, Orixás, Cristãos e outros seres encantados agora já se conhecem

e convivem entre si, e sentem a necessidade de inaugurar um novo território para praticar

aquela consciência de respeito e convivência entre diferentes.

Verequeti mais uma vez toma a frente nas ações e convida a todos para uma

reunião, no centro da floresta amazônica. Darssalam, quando chega ao local, vislumbra um

grande encontro de cores e tradições. No centro estão dispostas divindades típicas da

Amazônia, em seguida vêm caboclos, pajés, mestiços, em outra roda comparecem os

encantados, depois senhores de toalha, os vodunços, os gentis e, por último, as divindades

africanas formadas por voduns, orixás, inquíces. Todos participam da festa, irmanados,

trazendo cada um seus costumes, enfeites, panos, comidas, crenças, tradições etc. A

convivência da diferença concretiza-se totalmente. O signo do ecumenismo revela-se na

alegria dos contatos e trocas culturais da grande festa amazônica. A grande “utopia

concreta” (ou passível de concretização no plano da realidade), realiza-se no pensamento

mítico que narra a gênese do Tambor de Mina. O impossível estava acontecendo, reunindo

tradições e teologias diferentes criadas na possibilidade da epopéia narrada.

A grande festa final resolve, no plano da criação de um relato mítico, na elaboração

complexa deste enredo mestiço, os traumas da truculência da conquista invasora européia

no novo mundo. A nova consciência nascida da gênese do Tambor de Mina coloca essa

religiosidade como uma das principais ferramentas para se refletir o tratamento com o outro

que trouxe, em princípio, um grande prejuízo para os povos subjugados.Descarta-se

sentimentos de vingança e de ressentimento que poderia durar até o aniquilamento de uma

das partes. Ressalta-se, ao contrário, a possibilidade de troca na experiência com o outro,

sem se deixar subjugar, mas realçando a vontade de convivência no mesmo patamar, de

transferências mútuas de culturas, na compreensão e respeito de valores.

Esta situação não deixa de lembrar as palavras do poeta e ensaísta Haroldo de

Campos, quando reconhecia, na origem da literatura e da cultura brasileiras, a propensão ao

ecumenismo. Em seu lúcido ensaio De Babel a Pentecostes, fecha suas reflexões sob o

signo bíblico da “Torre de Babel”, apontando para a vocação ecumênica da novidade

formada na confluência de tradições dentro do espaço do novo continente logo após os

descobrimentos:

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[...] o homem dispersou-se, dividiu-se em línguas e nações. A balbúrdia dos particularismos – ensina-

nos a história – poucas vezes tem encontrado condições harmoniosas de coexistência não-excludente.

Sob o signo da reconversão de Babel em Pentecostes – de que a literatura e a cultura podem muito

bem ser portadoras – a humanidade do Novo Milênio conseguirá, quem sabe, reencontrar-se num

espaço convival, planetário, plural e trascultural [...]207

As palavras de Haroldo fazem coro com o relato da gênese do Tambor de Mina e

seu desfecho. Há um diálogo claro entre o discurso poético/ensaístico de Haroldo de

Campos com a narrativa mítica/poética do sacerdote pai Luiz de Tayandô. Todos os anéis

da Cobra-Grande são fechados no momento mágico da aliança festiva que dá à luz à nova

consciência ecumênica, partindo da perspectiva do encontro de religiosidades diversas para

um mesmo fim. Funda-se, finalmente, o Tambor de Mina em plena selva amazônica,

realizando a possibilidade ecumênica de convivência plural e planetária tão desejada por

Haroldo nas criações literárias e na cultura. Dom Sebastião, o rei Encoberto do V Império

Universal Cristão, colabora nessa construção de mundos, fazendo parte da narrativa não

como alguém preocupado com a unidade de uma crença, mas com a unidade do universo na

convivência e troca de diversas crenças.

6.2. Dom Sebastião em Terras e Mares do Maranhão: na

Religiosidade, na Vida, na Lenda

Em 2004, visando dar prosseguimento à cartografia iniciada em meu mestrado,

continuei minhas pesquisas de campo sem deixar de lado o trabalho empreendido

anteriormente. Assim, nessa busca, que achei necessária para trazer outras questões, pude

perceber detalhes que fugiam à minha primeira abordagem ou eram tratados ainda de modo

muito en passant.

Em minha segunda ida ao Maranhão, tive a oportunidade de conhecer e conversar

com Pai José Itaparandy. Há 10 anos Itaparandy mantém sua casa de Tambor de Mina208 e

207 CAMPOS, Haroldo. “De Babel a Pentecostes”, em Interpretação. São Paulo, Editora Lovise, 1998, p. 19-35. (Série Linguagem) 208 “Um dos recursos encontrados pelos negros do Maranhão para preservarem sua identidade, tanto cultural quanto racial, foi a estruturação do culto jeje-daomeano, denominado tambor-de-mina, cuja base é um

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Cura no bairro do Maiobão, em São Luís. A pedra fundamental do edifício foi preparada e

colocada pelo Caboclo do Olho d’Água, entidade que acompanha Itaparandy desde quando

era criança e foi responsável pela sua iniciação na religiosidade afro-brasileira. Pai José

trouxe informações importantíssimas no que diz respeito ao grande reconhecimento dado a

Dom Sebastião por grande parte dos maranhenses. A partir daí podemos compreender que

este reconhecimento se deu processualmente, de acordo com as conquistas das ações do

encantado dentro dos rituais e pelo amalgama de energias de elementos da natureza que

conduzem e formam os territórios dominados pelo rei no Tambor de Mina e na Cura209.

Itaparandy comenta que incorpora o rei Sebastião todo ano, no dia do aniversário do

rei e de São Sebastião, em 20 de janeiro. Diz que a experiência é muito marcante, tanto para

ele como para todos seus filhos de santo e assistência. Percebe um peso enorme na

incorporação, algo que toma seu corpo físico violentamente, causando sensações de

desmaio e falta de pernas para conseguir permanecer de pé. A incorporação se dá logo de

manhã, antes, depois ou no fim de ladainhas cantadas ao longo do rito de festejos a Dom

Sebastião. De fora, quem vê a presença do encantado no pai de santo, comenta sentir ondas

enormes de vibrações expandindo-se e preenchendo todo o ambiente. Dom Sebastião

manifesta-se em Itaparandy como um velho, uma das idades e caracteristícas do encantado

português. Fica alguns minutos na casa, abençoa, conversa com alguns e diz ter pressa, pois

ainda deve visitar muitas outras casas de Tambor de Mina. Depois de ir embora, deixa uma

alegria diferenciada de outros momentos daquele ambiente sagrado a ponto de ser permitida

a execução de músicas profanas acompanhadas de dança, comida e bebida, como se

houvesse a afirmação da continuidade da presença do rei tanto na vivência do sagrado

matriarcado em que as mulheres iniciadas recebem seus orixás, encantados ou voduns. O tambor-de-mina, religião de origem africana que se organizou no Maranhão como em nenhuma outra parte do país, teve suas duas casas mães fundadas em São Luís, no século XIX. A Casa das Minas, situada na rua São Pantaleão, e a Casa Nagô, localizada na rua Cândido Ribeiro”. SANTOS, Maria do Rosário Carvalho Santo. O Caminho das Matriarcas Jeje-Nagô: uma contibuição para história da religião afro no Maranhão. São Luís, Prefeitura Municipal de São luís, 1999, p. 22. Esta é a descrição de algumas características do Tambor de Mina, porém, como vimos em Belém do Pará, há mutações no culto e na história do culto. Apesar de as duas casas citadas manterem a maioria das características da origem desta religião, muitas outras crenças foram incorporadas e adaptadas. Até mesmo a questão do matriarcado já sofre, há algum tempo, modificações que permitem, em algumas casas, a presença de homens na chefia do culto. 209 A Cura é denominação maranhense dada à pajelança. Ela se forma por um conjunto de ritos de tradição indígena que trabalha no tratamento de doenças físicas e espirituais, apresentando, em cada sessão, práticas de benzimento, de tiramento de malefícios, exorcismo etc.

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quanto no profano. Itaparandy afirma que isso acontece com mais evidência na festa de

Dom Sebastião.

De noite, prossegue-se a festa, mas agora o rei irá manifestar-se na Cura, como

Oxóssi, uma das entidades com a qual se funde. Nesse momento sua vibração é mais leve e

conduzida para as práticas da Pajelança.

Quanto às oferendas dedicadas ao rei nos festejos do seu dia, são preparados três

banquetes dedicados a Dom Sebastião. Um será entregue ao rei, na personalidade de um

nobre português, outro para Xapanã, entidade africana na qual se funde Dom Sebastião, e

outro ainda para Oxóssi, entidade africana que trabalha na Cura e também é (con)fundida à

personalidade do encantado português. A composição de três entidades em uma caracteriza

as ações e os elementos manipulados pela entidade no Tambor de Mina e na Cura. Essa

fusão de energias é a pista do poder que se acredita pertencer a Dom Sebastião na

religiosidade afro-brasileira do Maranhão.

Talvez seria interessante buscar como se deu a confluência de três personalidades

encantadas em uma só, mas gostaria de me ater às potências contidas e manipuladas por

esta singularidade da manifestação do rei, porque é a partir daí que podemos compreender

as afetividades e crenças depositadas nessa figura tão respeitada e cultuada. Aliás, ao

chegarmos nessa peculiar característica de Dom Sebastião, quando conversava com Pai

Itaparandy, ele refletiu o por quê das vibrações tão intensas no momento do seu transe.

Acontece que esse encantado leva consigo a força e energia dos três elementos mais

importantes para o Tambor de Mina e Cura, além de essencias para a vida em nosso

planeta: a água, a mata, a terra. Dom Sebastião vive na água, onde construiu seu palácio

encantado embaixo da ilha dos Lençóis e o estendeu nas profundezas dos mares próximos à

ilha. Como Oxóssi vive nas matas, desbravando a floresta e manipulando ervas e folhas

para a Cura, a Pajelança. Xapanã maneja os mistérios da mãe terra, indicando o processo da

vida, de onde viemos e para onde retornaremos.

Mata e água. Na mata ele é como Oxóssi. Nas águas ele é o rei Sebastião. Tanto é que a

doutrina diz:

Oxóssi mora na aldeia

Ele é o rei Sebastião

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Dai-nos força pai Oxóssi

Da mata e dos ancião

Xapanã tem relação da natureza com a terra. Xapanã é o rei da terra, que nos alimenta. Da

terra tudo vem pra gente. E é quem nos recebe, porque pra terra é que nós vamos. Então Xapanã é o

rei da terra. É uma força muito grande. E quando a gente vai analisar mata, terra e água, não tem

como não ficar arriado com tanta energia em cima de mim. Porque o rei Sebastião vem com três

elementos fortes. A água é o princípio e o meio do mundo. A mata é o equilíbrio da gente, é a

natureza, é o natural de tudo. E a terra é nossa mãe que nos alimenta, nos dá e depois nos toma tudo.

Por isso ele é um encantado muito poderoso. Porque o rei Sebastião consegue agregar Xapanã e

Oxóssi nesse conjunto energia. Quando nós estamos falando de rei Sebastião, nós podemos falar

uniformemente, quando nós vamos falar da energia do rei Sebastião, não podemos dividir. Você está

me entendendo? Porque rei Sebastião se agregou com essas energias Oxóssi e Xapanã. Não é

verdade? Xapanã é o orixa que veio da África. Oxóssi também. Mas houve uma junção... Rei

Sebastião é europeu, veio de Portugal pro Maranhão.

Por meio do culto e do respeito depositado nas entidades do Tambor de Mina e da

Cura, principalmente no rei Sebastião, que carrega os principais elementos com os quais

trabalham os terreiros, chega-se à percepção de que não é só de dádivas, de ritos e de rezas

que vivem as comunidades preservadoras destas formas de religiosidade. As divindades,

encantados, voduns, orixás dependem da ação do homem de modo efetivo, para se

concretizar a via de contato entre o mundo espiritual e o terreno. Há trocas constantes entre

o fiel e as entidades que se manifestam. As ações e consciência humana relativas à

preservação do mundo material, na natureza, garantem a convivência entre a esfera

espiritual e encantada com o cotidiano humano.

Inclusive outro dia eu estava aqui sentado, temos uma área verde lá no fundo, e a gente fala

muito da degradação, muito da natureza se acabando... Fala não, a gente vive isso. E eu fico me

perguntando: “Meu Deus, se os matos se acabarem, o que vai ser...? A religiosidade afro vai acabar”.

Porque não existe orixá sem folha

Pergunta: Mas os orixás têm força de isso não acontecer não é?

Pai Itaparandy: Mas eles dependem do humano. Por que? Eles dependem do humano para

incorporar e para se manter. Porque o humano que vai ter que cuidar das folhas. Não é? E o humano

que estiver cuidando das folhas vai estar cuidando do orixá. Então eu fico pensando, meu Deus, tem

ervas que a gente já não encontra. Então não deixa de não ficar complicado.

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Dom Sebastião é tão respeitado, pois, além do seu papel como grande curandeiro,

traz a lembrança e a consciência, a todo instante, de que se não forem preservadas e

trabalhadas as energias da natureza, não haverá mais possibilidade do processo de vida. Os

elementos manipulados por sua personalidade encantada traduzem a idéia de dinâmica da

vida, de movimento e transformação.

Eu sinto quando ele vem jovem. Ele canta assim:

Chegou capitão da mata chegou

Chegou capitão da mata chegou

Soldado guerreiro da encantaria

Soldado guerreiro da encantaria

Soldado guerreiro da encantaria da mata

Aí ele está trazendo com ele a força de Oxóssi. Então é isso. Ele tem uma mutação.

Entendeu? Ele tem uma transformação. Que o próprio Xapanã também tem. Xapanã tem as suas

transformações. Tem dia que você molha a terra ela está úmida. Tem dia que você vai ver ela está

poeirenta, tá dura, tá rachada. Então a terra também tem as suas mutações. Xapanã tem as suas

mutações.

Tem dia que a mata tá calma, não venta. Tem dia que as folhas estão amarelas, tem dia que

estão verdes. São as mutações da natureza que explica a mutação do Orixá. Entendeu? É

movimento.

Em outra chave para especularmos as potências do rei encantado no Tambor de

Mina e na Cura, Dom Sebastião também traz a memória do encontro entre culturas

ancestrais no Novo Mundo. Em sua personalidade trina estão conjugadas, ligadas, unidas,

harmonizadas, tradições diferentes que podem ser percebidas na unidade de Dom

Sebastião, porém respeitando-se e transparecendo-se a singularidade de cada uma dessas

tradições. Amalgamam-se ancestralidades de continentes diferentes: Europa, África e Novo

Mundo (Américas). Também estão em jogo religiosidades bem diversas em seus

fundamentos: tradição judaico-cristã e mourisca, quando há o encontro com os turcos

encantados, tradições de etnias africanas como o Candomblé e o próprio Tambor de Mina e

tradições indígenas da Pajelança.

Podemos dizer que todas essas características presentes em Dom Sebastião formam

a síntese da consciência do Tambor de Mina, como vimos anunciadas na narrativa da

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gênese desse culto no Brasil pelo sacerdote de Belém do Pará, Pai Luiz de Tayandô. No

Maranhão, esta consciência desperta a respeito do trato com os elementos vitais, com o

processo de vida percebido nas mutações da natureza refletidas no comportamento do

encantado e a possibilidade de convivência de tradições diferentes, estão contidas em toda a

manifestação do rei português encantado. Por isso a demanda pela invocação de Dom

Sebastião é nitidamente das mais freqüentes na religiosidade do Tambor de Mina e da Cura.

Exemplo disso encontramos ainda no depoimento do Pai Itaparandy. Em sua casa não há

rito de Cura em que não se cante para Dom Sebastião.

Essa pujança e presença respeitada e desejada estende-se para outras casas de

Tambor de Mina. Porém não fica confinada a esse espaço ritualístico. Outras evidência da

importância dessa figura encantada no Maranhão encontra-se na profusa matéria lendária

criada em torno do rei. Além disso, mais próxima ainda se faz sua manifestação, quando

comparece na vida de algumas pessoas escolhidas por ele para ser incorporado, ou quando

é desejado afetivamente por pessoas que o admiram e pedem sua presença. A existência do

encantado liga-se de tal modo com a do seu escolhido, ou com a de quem o escolheu, que

laços afetivos vão além da morte física dessas pessoas, que deverão participar de sua

companhia em seu reino encantado.

6.2.1. Dom Sebastião em Histórias de Vida

Há um certo cuidado da parte de quem teve a oportunidade de se encontrar com

Dom Sebastião através de sonho ou visão, pois não é coisa para se contar em qualquer

momento, nem para qualquer pessoa. Os motivos de se dificultar o acesso às histórias

pessoais são vários. Pode ocorrer de o narrador tornar-se esquivo por sentir-se lesado pelo

aproveitamento de sua narrativa, sendo esta deturbada ou fonte de ganhos dos quais ele não

poderá beneficiar-se, já que não foi sua intenção ao compartilhar sua experiência. Em

outros casos, os motivos são mais de ordem pessoal, por alguma interdição imposta pelo

próprio narrador a si mesmo ou por diagnósticos vindos de fora.

Seu Francisco Rabelo tinha 78 anos quando conversamos, na Ilha dos Lençóis, em

2002. Ele é pescador local e sempre viveu na ilha. Tive muita dificuldade em conseguir

uma entrevista com seu Chico (como é chamado por todos da ilha), porque sentia-se traído

por jornalistas que usaram sua história de maneira “folclorizada” para conseguir, segundo

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ele, ganhar dinheiro. Depois de algumas explicações sobre o meu trabalho a respeito do rei

Sebastião, seu Chico concordou em falar sobre sua familiaridade e intimidade com o rei.

Seu primeiro contato com Dom Sebatsião foi através de um estado de sonolência,

num espaço entre a vigília e o sono. Assim ele narra a visita que fez ao palácio do rei

encantado, como um caso pessoal, que não irá se repetir no relato de outros narradores. O

que ele me contou não está na esfera do lendário, apesar de poder contribuir com essa

matéria ao serem aproveitados alguns detalhes por alguns contadores locais. Mas no geral a

experiência foi dele e apenas a ele teve importância e sentido para sua vida. Eis o caso de

Francisco Rabelo:

Quando foi uma vez uma... Mas isso daí foi por intermédio de sonho, né? Mas é daquele

sonho assim que a gente tá quase acordado. Vinha de lá (seu Chico quer dizer que vinha da casa

onde morava), vinha de lá numa canoa e quando chegou bem ali atrás do muro (muro seria um

paredão composto pelas areias das dunas) que tinha um lugar onde brota água, então eu

desembarquei da canoa e fui beber água. E quando eu meti a mão na água, respondia uma voz

pra mim. Disse: “Num meta a mão na água aí que a empregada do rei vai lavar”. Aí vou eu

respondi pra ela assim: “E quem ta falando pode aparecer porque eu quero ver?” Aí ela disse:

“Espere um pouco...” Aí esperei, né? Quando ela veio mais, aí ela apareceu na barreira do poço

[...] Uma dona apareceu e disse: “Entre que o rei quer conversar com o senhor” .Aí eu não sei de

onde vinha e perguntei: “E por onde eu vou?” Ela disse: “Venha por aqui mesmo”. Aí eu desci

né. E quando eu abaixei pra entrar na barreira do poço, quando não deu pé, o pé pisa no dregrau

da janela do palácio. Aí eu entrei né. O palácio dele é assim do tipo dessa casa aqui, mas grande

né. E ele tava numa rede, se embalando. Aí ele pega, e manda puxar uma cadeira, perto dele logo

na rede dele tinha uma mesa. Aí ele disse, disse pra mim: “Se encontrou a vontade com o desejo.

Eu tinha muita vontade de lhe ver, e justamente como você tinha vontade de me ver também”.

Mas isso talvez já faz uns quarenta e tantos anos. Talvez alguma passagem eu esqueça...

Observamos que todos os elementos da encantaria estão presentes nesse relato.

O palácio do rei fica no subterrâneo, num tipo de universo paralelo. Uma espécie de

portal entre a barreira de água e a janela do palácio do rei, mostra-se fora da lógica do

“real”, quebrando noções espaciais e temporais. No espaço do entre dos dois mundos

não é possível descrição. O corpo entra por um lado, estica-se até alcançar o outro, e,

como um estilingue solto depois de esticado, já se coloca por completo do outro lado.

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Quanto ao encontro entre encantado e não-encantado, ele só pôde existir, nesse

caso, graças a uma vontade mútua. Seu Chico não participa de nenhum culto e não

tinha, até então, proximidades com os elementos da encantaria. A concretização do

encontro dos dois seres – como acontece no relato do seu Chico – ocorre pela junção de

dois desejos; um direcionado do encantado para o vidente, e o outro do vidente para o

encantado. Os desejos se completam e permitem o fechamento da narrativa em si

mesma. Um novo encontro pode ocorrer em outras condições, em outro cenário, e não

segue nenhuma estrutura narrativa fixa, pois na verdade é o relato de uma experiência.

A descrição do encontro entre seu Chico e o mítico rei Dom Sebastião nos

mostra um mecanismo parecido com a proposta de Lévi-Strauss, quando trata da

bricolage no pensamento “selvagem”210. Seu Chico, ao descrever o palácio do rei

Sebastião, produz uma aproximação do mito com a terra que o adotou como encantado.

O jeito de ser, a maneira de agir do rei no contato com o vidente, a gestualidade do rei,

tudo expressa a atualização constante do mito, através de encaixes de séries

heterogêneas e, sem que exista a proposta de torná-las homogêneas, mas funcionais,

como sugere a prática da bricolage. É talvez nesse processo que se dá a possibilidade da

permanência da figura de Dom Sebastião, pelo fato de não haver perda de certos traços

que o identificam como tal. Por outro lado, também é possível a atualização do mito por

serem aceitas novas séries que se encaixam a cada nova narrativa, corroborando para a

permanência, em eterno processo, desse fenômeno cultural.

O palácio, a empregada que cuida da limpeza do mesmo, e membros da corte

que aparecem em outros momentos da narrativa trazem traços do modo de ser de um

nobre como a figura histórica do rei. A rede, o embalar do próprio rei na rede, seu

pedido ao visitante para que puxe uma cadeira para se acomodar, esses dados retratam a

maneira de viver dos moradores da ilha. A mistura dos traços é que permite uma

aproximação do mito com o grupo que o adotou em suas crenças.

O encontro gerou certa intimidade entre o rei e seu Chico. Dom Sebastião

relatou toda a história de como teria ido parar no litoral maranhense, especificamente

naquela ilha. Depois de ter perdido uma guerra, o rei embarcou em um navio com todos

os sobreviventes da batalha e saiu em viagem sem destino. Quando chegou na costa do

210 LÉVI-STRAUSS, Claude. O Pensamento Selvagem. Companhia Editora Nacional, São Paulo, 2a ed., 1976.

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Maranhão, descobriu um estranho acidente na natureza: um “calombo” na maré. Esse

“calombo” aparecia e passava, aparecia e passava. Dom Sebastião tirou sua espada e a

enterrou bem no meio daquele calombo. Desta forma “se encantou ele, o navio, e o

pessoal dele”. Interessante notarmos a semelhança dessa passagem com a do momento

do encantamento do rei na profecia de Canudos. Mas agora a espada não se enterra na

pedra como no sertão, mas na água, no mar, adaptação do local de encantamento

escolhido pelo monarca para viver em sua eternidade nas encantarias maranhenses. Não

havia ainda ilha na região, nem o palácio imerso nas águas. Tudo isso foi construído

pelo rei e sua gente, de modo que, segundo seu Francisco Rabelo, Dom Sebastião é

dono de tudo aquilo que é visto e do que está oculto.

Depois dessa experiência, seu Francisco é levado de volta, pelo próprio rei, ao

seu mundo. Novamente a passagem é imediata, através de uma estrada muito grande, de

terra firme, cheio de mata em toda sua extensão, localizada nas profundezas do mar, que

logo ganha uma inclinação de uns dez metros. Dom Sebastião fica na porta, no limite

entre o mundo encantado e o mundo “real”, depois desaparece. Seu Chico, por sua vez,

aparece deitado nos areais da ilha e ali permanece, durante oito dias, sem comer nem

beber, em estado de profundo êxtase. Só volta a si depois de tomar um banho aviado por

dona Isaura, uma mulher que manipulava os conhecimentos do Tambor de Mina.

Mesmo antes de saber do ocorrido, esta senhora repetiu à mãe do seu Chico as mesmas

palavras do rei, diagnosticando o caso: “Já sei o que você quer. Juntou a vontade com o

desejo”. E receitou o banho para quebrar aquele estado de arrebatamento.

O que aconteceu a ele, se nos reportarmos às leis da encantaria, é muito raro. Foi

dado a seu Chico a oportunidade de retornar ao seu mundo depois de visitar o universo

encantado. O pescador foi, na verdade, iniciado para poder visitar e sair quando quisesse

do palácio subterrâneo de Dom Sebastião.

Mas com o tempo a história de vida do seu Chico entrelaçou-se com o universo

encantado. Em um outro sonho, ele passa a ser testado por uma prova. Uma espécie de

corrida por um labirinto, faz-se uma corrida pelo retorno à dimensão da realidade.

Daí eu tive outro sonho com ele. Aí ele já estava numa outra casa aqui atrás do muro, na

casa branca. Eu e um secretário dele. Agora eu num cavalo e ele (o secretário do rei) em outro.

Então era muito grande (a casa) e tinha muita porta. Então nós fomos pra ver quem chegava lá

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primeiro e ver onde ele (rei Sebastião) estava. Ele estava no derradeiro quarto. Aí entrava numa

porta e saía aqui, entrava numa e saía aqui, e eu cheguei na frente. Aí ele (o rei) disse pra mim:

“Quando você... vou deixar meu voto... venceu”. Disse: “Olha, aqui tem uma bola desse

tamanho”. Diz: “Aqui, seu retrato está aqui. Se você não vencesse você ficava, seu corpo

amanhecia lá, morto. Seu espírito ficava aqui”. Aí ele disse: “Olhe, tá aqui. Inda tem uma, se a

derradeira, se você não vencer, você fica aqui”. Será? E eu penso que nunca tenha essa. Ele já me

avisou. Que daí eu não posso vencer. E eu posso ficar.

Seu Francisco, há algum tempo, percebendo as limitações do corpo com a idade

avançada, nunca mais quis encontrar-se com Dom Sebastião. Acredita que não pode

mais vencer a prova e prefere continuar a viver em sua dimensão. Enquanto puder

escolher, continua seu dia a dia de pescador, mesmo tendo admiração pelo rei, como

fica explícito em seu depoimento. Foi permitido a ele, em uma exceção, a visita ao

universo das encantarias, mesmo que nunca tenha praticado, na dimensão terrena, os

cultos que permitem o contato entre esses dois mundos paralelos. Mas o pacto não

deixou de estabelecer-se e acredita que, quando morrer, fará parte do mundo encantado

do rei, como um privilégio nascido na intimidade do compartilhar de desejos.

Talvez seu Chico seja o único que escolheu conhecer o rei e por ele foi

escolhido. Esse desejo mútuo deu a esse pescador uma vida de exceção. Percebe-se,

com facilidade, haver, na ilha e adjacências, um respeito e reconhecimento muito

grande por seu Chico e sua singular história. Sua maneira de conviver socialmente na

comunidade é cheia de mistérios e bastante silenciosa. Sabe-se que foi tocado pelo

maior encantado da região e tem sua existência presa a este, num pacto estranho, que o

coloca como personalidade fora do normal, quase como alguém iluminado por forças

secretas. O fato de o velho pescador saber o que o espera depois da morte, torna-o

realmente uma pessoa especial no meio da existência comum dos outros habitantes da

ilha. Assim, seu Chico aguarda seu destino fatal em direção à corrida derradeira pelo

labirinto das encantarias, com a certeza do reencontro com um antigo conhecido.

**********

Desde minha primeira viagem ao Maranhão, não pude esquecer de minha

vontade em conversar com Lucília Maria de Jesus, dona Lúcia, a chefa da Casa de Nagô

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e uma das últimas matriarcas do Tambor de Mina em plena atividade na época. Quando

estive na Casa de Nagô, em uma festa de São Sebastião, no dia 20 de janeiro de 2002,

impressionei-me com aquela senhora de 96 ou 97 anos. A condução dos ritos, ladainhas,

da festa toda era feita com grande energia e vitalidade, e também com incrível

naturalidade, como se tudo fosse organizado sem titubeios. A figura de dona Lúcia, com

a qual não pude ter contato muito próximo na época, deixou-me a impressão de uma

simpatia rara. Suas mãos para trás, olhos arregalados e um sorriso no rosto, andando de

lá pra cá, estendendo uma das mãos vez ou outra para indicar a colocação de algum

objeto de culto para as festas de São Sebastião, palavras divertidas brincando com um

ou outro filho de santo ou ajudante da casa, fizeram com que eu passasse o tempo todo

olhando para ela e desejasse trocar algumas palavras, sobre qualquer assunto. Mas isso

só se concretizou em 2004, com minha segunda passagem por São Luís.

Foi com certa decepção e tristeza que soube que dona Lúcia tinha deixado de ser

chefa da Casa de Nagô. Embora estivesse agora com 99 anos, há algo nessas pessoas

que nos levam a imaginar uma existência humana sem limite de corrupção corporal.

Mas não é assim, embora sua memória não tenha sofrido o mesmo processo de declínio

como o seu corpo sofreu. Dona Lúcia agora estava quase cega e se locomovia com certa

dificuldade. Atendeu-nos sentada em uma rede, na sala de sua casa. Por muito tempo

falou apenas das doenças e tratamentos pelos quais vinha passando. Resistia em falar

sobre a Casa de Nagô, sobre sua intimidade no Tambor de Mina e sobre o encantado

que incorporava, Xapanã/Rei Sebastião. Disse nunca ter incorporado esse encantado e ia

além, contando não haver a visita dessa entidade na Casa de Nagô. Entretanto, com

insistência e citando dona Dudu (chefa anterior a dona Lúcia na Casa de Nagô) e seu

depoimento sobre o rei Sebastião, pouco a pouco a matriarca revelou seus

conhecimentos e iniciações no Tambor de Mina.

Muito jovem ainda, com 12 anos apenas, foi chamada para fazer parte da Casa

de Nagô. Todos acharam estranho o chamado, já que ninguém em sua família fazia

parte dos cultos da casa. Por ser tão criança, sua única responsabilidade era tocar o ferro

(agogô). Durante muitos anos essa foi a atividade desempenhada por dona Lúcia no

culto. No entanto, tinha visões que ainda não compreendia direito.

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Quando jovem ainda, com uns vinte anos, visitou uma amiga. Por um lapso de

tempo pensou estar sonhando com algo, pois foi transportada para uma situação

completamente diferente da qual estava vivendo. Diz que via passar pela rua um homem

montado em um tipo estranho de cavalo, de cor avermelhada. O homem vestia um roupa

de “soldado 24”, uniforme de gala. O soldado passou por ela, sozinho, pois não havia

desfile de 7 de setembro, e de repente voltou e parou bem ao lado de dona Lúcia.

Perguntou a ela: “Sabe quem eu sou?”. Ela disse que nunca o tinha visto. Ele continuou:

“Sou Sebastião. Dizem que sou o rei Sebastião. Avisa a dona dessa casa pra ela fazer

isso e isso...”. E saiu trotando calmamente até desaparecer. Por fim, ela voltou à

situação na qual encontrava-se antes da visão. Percebeu que não se tratava de um sonho,

pelo menos de um sonho comum, porque ela estava de pé, encostada no batente da

porta, como no final de sua visão, mas sentindo que passara por um estado paralelo de

percepção. Era a primeira vez que encontrava-se com o encantado que haveria de

escolhe-la para sua grande missão, mas ainda não sabia a importância daquela visita

nem do que se tratava .

Curiosa a descrição de dona Lúcia. Ela diz que o rei vestia o uniforme de

soldado de gala 24. Segundo ela, são aqueles uniformes de desfile em homenagem ao

dia da independência. Nos cultos maranhenses de Tambor de Mina ou Cura, não há

imagem de Dom Sebastião. O ícone pelo qual é reconhecido e cultuado o rei, é o da

famosa imagem de São Sebastião com as chagas das flechas pelas quais foi crivado.

Também a imagem de Xapanã, Obaluaiê, com roupa de palha e postura arqueada do

corpo, utilizando cajado revestido de palha da mesma forma que as vestimentas, pode

representar a figura do rei Sebastião, pois é uma das entidades que confluem com a

personalidade do rei no culto. No entanto, para dona Lúcia a imagem que mais a

impressionava na época, como símbolo de imponência e poder, além da beleza do traje,

era a do soldado de gala dos desfiles em comemoração à independência do Brasil.

Nas encantarias e no Tambor de Mina, o rei Sebastião já era tido como poderoso

encantado, mas sua imagem nunca foi representada por escultura ou retrato pintado.

Certamente há, na memória de dona Lúcia, a percepção de signos de poder e

imponência investidos na roupa do soldado de gala. Através desse repertório da

memória perceptiva e afetiva, são deslocados esses signos no processo compositório da

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imagem do rei Sebastião visto por dona Lúcia em seu momento epifânico. Tudo o que a

matriarca tinha ouvido falar de Dom Sebastião sobre seu poder, sua imponência e

beleza, irá ser concretizado na atualização da imagem do rei, por meio de um processo

adaptativo bem marcante na composição significativa dos trajes vestidos por ele,

quando ele se faz presente à visão, pela primeira vez, à dona Lúcia.

O caso se passou e ela não deu muita importância. Na Casa de Nagô não queria

usar toalha, nem as roupas de culto e não entrava nas danças onde ocorriam as

incorporações de encantados no terreiro. Preferia continuar batendo ferro e relutava em

responsabilizar-se por outras atividades. Entretanto, numa época em que construía sua

moradia junto com seus filhos de criação, recebeu a visita de uma amiga. Essa senhora,

já falecida hoje, nunca participou dos cultos de Tambor de Mina. Um dia ela chegou na

casa de dona Lúcia e começo uma conversa estranha. Dona Lúcia quebrava pedras com

seus filhos para a construção da casa.

Minhas crianças tomavam benção e ela chegou e eu estou quebrando pedra e eu: “Bom

dia! Bom dia, minha velha!”. Ela disse: “A senhora não acha que já chega?”. E eu: “Ainda não.

Mas antes sobrar do que faltar”.; “Não é sobre isso que eu estou me referindo. A senhora não

acha que já chega?”.; “Eh menina, traz uma xícara de café...”. Do jeito que eu estava falando

assim... Ela vai e disse: “Obrigado!”. Agradeceu. “Pois eu acho que já chega”. Querendo dizer,

adiante daqueles homens todos, que era pra ele vir e ele não vinha. Porque eu não queria saber

disso. Faz não sei quantos anos. Ela despediu-se, foi embora, mas como se fosse ela que

estivesse falando. Mas que mistério. Não sei, não sei... Em maio não tinha Tambor. Quando foi

em junho, dia de São João... Aí eu me levantando, vou tomar um café com pão, descansar bem,

“que que eu tô me lembrando disso?”. E sentei, disse: “Bom...”. E tinha minha madrinah, minha

mãe, tudo dançando, ele desceu, me pegou. Esta era em junho.

A visita misteriosa daquela amiga, os repetidos avisos de “acho que agora já

chega”, aos poucos vai nos dando a entender que se tratava de Dom Sebastião

incorporado chamando dona Lúcia para assumir sua missão.

Dona Lúcia conta aqui como foi escolhida e não poderia recusar a incorporação

do rei. O encantado aguardou a preparação de dona Lúcia e foi chamá-la, mesmo com a

resistência dela, pois sua missão já estava traçada. Sem nenhuma história familiar

dentro do culto de Mina, de tocadora de ferro passa a incorporar o grande encantado rei

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Sebastião/Xapanã. Com isso investe-se de poder extraordinário a ponto de ser respeitada

por todas as participantes de culto mais antigas e é escolhida como matriarca, chefa de

uma das mais tradicionais casas de Tambor de Mina, a Casa de Nagô. Dona Lúcia

finalmente contou a junção de sua história de vida com a trajetória da casa de culto e do

rei Sebastião. A essa altura já falava com carinho do encantado, dizendo ser ele um bom

e respeitado irmão.

No decorrer da entrevista percebemos que dona Lúcia foi ficando cada vez mais

à vontade, mais ágil na fala e nos gestos. No começo ouvia mal nossas perguntas ou

comentários, mas depois ouvia tudo com nitidez. Ela revela o por quê relutava em nos

contar suas experiências de natureza espiritual. Estava proibida, pelos médicos, de

evocar esse tipo de memória. Mais uma vez forças institucionais, a sabedoria ancorada

nos pilares da razão, nesse caso representada pelos médicos, tenta abafar um outro tipo

de saber vindo de outras vivências que não as ditas “corretas” e “normais”.

Não sei os motivos dessa tentativa dos médicos em matar uma memória como a

de dona Lúcia, mas percebi que com a sugestão dada a ela para se esquecer desta parte

“sombria” de sua vida, estava levando a matriarca à morte de forma mais rápida e triste.

Isso ficou evidente quando, ao fim de nossa conversa, ela se agitou toda, pegando em

minha mão com extraordinária força e me abençoando, pedindo que eu levasse a força

do rei Sebastião comigo. Naquele momento me parece que dona Lúcia libertou-se um

pouco dos preceitos mortuários dos médicos e ganhou uma energia alegre e vital quando

retomou suas memória sobre o Tambor de Mina e Xapanã/Dom Sebastião. Dona Lúcia

sentia prazer e orgulho por ter sido escolhida pelo encantado que a defendeu e foi

defendido por ela.

A matriarca levou sua vida ligada a ele até os cem anos, quando faleceu. Este

depoimento representou sua luta por levar a memória até o fim dessa vida,

compartilhando sua história na religiosidade, mesmo com os impedimentos de opiniões

vindas de fora, contrárias a um pensamento e uma sabedoria diferente das práticas

reconhecidas pelas instituições.

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211

6.2.2. Dom Sebastião nas Lendas

Neste outro campo da presença da figura de Dom Sebastião, muitas outras

peculiaridades têm que ser levadas em conta para se compreender como se dá e porque se

dá a manifestação do rei. O problema da autoria dos relatos reconhecidos como lenda tem

significativa importância na medida em que guarda um valor estratégico de legitimação da

narrativa. Nos casos que trataremos, a autoria não aparece da mesma forma como estamos

acostumados a perceber em uma obra literária escrita, em uma composição musical, ou em

qualquer outro tipo de produção criativa inserida nas peculiaridades trazidas pela lei autoral

de todo o mundo. Por terem sido contados por alguém, terem sido ouvidos de alguém, e

terem o intuito de serem apresentados como fatos reais, sempre é evocado o nome e

detalhes da pessoa, ou pessoas, que contou, ou contaram, os casos ao narrador atual. E este

faz questão de indicar a importância e a integridade da pessoa de quem recebeu o relato,

tentando, com isso, chamar a atenção para o merecimento da repetição do relato como

prova da “realidade” do acontecimento.

A Lenda da Farinha é uma das narrativas mais conhecidas do Maranhão envolvendo

a figura de Dom Sebastião. Ela trata da recorrente visita do rei ao mundo terrestre em busca

de víveres para o seu reino localizado na superfície da ilha dos Lençóis e do mar. Com isso,

a lenda demarca o território “dominado” pela figura de Dom Sebastião na encantaria e

também a longevidade de sua manifestação atualizada nesse território.

Seu Simião Machimeno, um pescador de profissão e conhecedor de diversas

histórias nas quais desfilam seres, visões, eventos, paisagens de um mundo outro que não o

cotidiano, revelou-se uma espécie de depositário de narrativas dentre as quais circula a

figura do jovem monarca português.

Quando iniciou seus relatos, a Lenda da Farinha surgiu entre muitas outras, apenas

fazendo parte de um conjunto diversificado, heterogêneo, de narrativas. Traços estratégicos

para relatar a lenda permitem sua existência e dá fôlego a um projeto de narração que se

quer comprovadora de algo realmente acontecido. É nestes detalhes que pretendo me fixar

para compreender os processos comunicacionais envolvidos no relato para dar o caráter

realístico da lenda. Assim é narrado o caso por seu Simião:

Inclusive ele (seu sogro Saturnino de Oliveira que morreu com 114 anos) contou e eu

tava perto. Ele mesmo dizia pra mim. É assim... começou, começou assim... ele contando pra

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mim. Chegou aqui... Antigamente aqui tinha pouquinha casa aqui nos Lençóis. Aí chegou um

homem de outro lugar, um lugar chamado Cachoeirinha. Chegou oferecendo farinha aqui na

praia, quem queria comprar farinha d’água né. Farinha desse que a gente come aqui. Aí não

achou quem comprasse. Aí ele foi e disse assim, pro dono do bar. Disse assim, disse: “Se eu

achasse quem comprasse essa farinha toda agora. Eu vendia ela...” Aí quando ele foi fechando a

boca aparece um homem; um homem grande, de chapéu de couro ouvindo o que ele contava,

montado num cavalo. Aí chegou e disse assim: “Você vende essa farinha?” Ele disse: “Vendo!”;

“Quanto você quer?”, e ele disse quanto ele queria né. “Eu quero dois cruzados no paneiro.

Vendo tudinho.” Ele disse: “Eu compro tudo a farinha.” Disse: “Onde você leva a farinha?” Ele

disse: “Bote toda dentro da água. Jogue toda ela dentro da água.” Foi o homem que disse né, que

chegou pra comprar a farinha toda. Aí ele falou: “Ta certo!” Aí ele conferiu todos os paneiro de

farinha e jogou tudo dentro da água. Aí ele disse assim: “ Quem vai buscar o dinheiro com ele?”

Aí o dono da farinha, o dono da embarcação disse: “Ele não vai.” Aí eram três pessoas; o dono, o

marinheiro e o cozinheiro. Na embarcação, destas embarcaçãozinha velha, sempre quem é mais,

a gente manda mais é o cozinheiro né. Aí o cozinheiro disse assim : “Eu vou!” Aí ele disse: “ Ói,

feche o olho e monte aqui na cela do cavalo.” Ele fechou e desceu. Quando chegou lá embaixo

ele disse: “O que você vê aqui você não conta quando você chegar lá. Não importa a quem você

conta, porque o dia em que você contar você morre.” Aí ele pagou todinho e disse: “Fecha o

olho.” Aí ele fechou o olho, aí quando ele subiu quando chegou lá, deixou ele na beira da

embarcação. O dono perguntou o que é que ele tinha olhado, ele disse: “Nada!” Aí foi um ano,

foi dois anos, foi três anos, foi quatro, aí com dez anos ele conta num lugar chamado Outeiro,

chegou e contou lá. E lá é uma brincadeira de, de carnaval de bloco né, uma escola de samba. Aí

ele agarrou e contou. Este dito cara que tinha ido receber o dinheiro aqui a mando do que

comprou a farinha, que era o rei Sebastião. Aí no dia que ele contou, quando ele terminou de

contar ele morreu. Agora ficou a história porque a história ele já tinha contado já.

Pesquisador.: E o que ele viu lá?

O que ele viu lá embaixo foi justamente que ele viu lá embaixo outra cidade muito bonita. Diz

que aqui abaixo aqui, tem outra cidade aqui abaixo. Diz que o dia em que desencantar Lençóis, São Luís

vai ao fundo e aqui vira a melhor cidade.

De saída notamos a evocação importante do nome de quem passou o relato ao

narrador. O sogro de Simião, falecido com 114 anos, em vários momentos da entrevista

era citado como o maior conhecedor das encantarias da Ilha dos Lençóis. Saturnino de

Oliveira era respeitado pela comunidade como alguém especial, guardador de memórias

de visões, acontecimentos vividos, que de alguma forma compões uma história ímpar da

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pequena ilha do litoral maranhense. Desta forma, a ilha vai ganhando uma existência

geográfica no mundo, por sua peculiardidade em conter, em paralelo ao seu dia a dia, a

morada do encantado Dom Sebastião e sua gente. Essa história que vai se fazendo

oralmente, age como que lutando contra um esquecimento de uma ilha e dos seus

moradores, geralmente ocorrido em uma história oficial preocupada apenas com

grandes acontecimentos marcadores de uma cronologia e uma hierarquização

privilegiadora de alguns territórios. Isto fica mais evidente ao constatarmos que as

narrativas de eventos “fantásticos” da Ilha dos Lençóis se estendem a todo litoral do

Pará, na chamada região litorânea do Salgado. A Ilha dos Lençóis é tida,

respeitosamente, no imaginário de pescadores, videntes, feiticeiros, pajés etc, como um

centro de onde emana toda a importância da presença do reino encantado de Dom

Sebastião, agindo na natureza, nas crenças religiosas, discutindo e refletindo sobre uma

maneira melhor de se estar no mundo.

Por este caráter presentificado, de uma potência capaz de perceber o mundo com

sentidos próprios de quem convive e vive seu contexto, sem deixar-se levar pela visão

que modela o mundo através das mídias e de outras atitudes globalizantes, é que

observamos várias séries se cruzando e se encaixando durante a construção que envolve

a figura do jovem rei português Encoberto. Podemos notar, a partir da chegada do

homem misterioso, que vem “do nada”, para comprar a farinha do dono do barco, um

exemplo claro de como já se percebe o elemento encantado introduzido na vida do

povoado. A grandeza do misterioso homem não se refere apenas à sua estatura, mas a

todas as sua dimensões corporais. Seu Simião, nosso narrador, deixa isto bem claro em

sua performance, ao abrir os braços e esbugalhar os olhos, na tentativa de explicar as

dimensões fora do comum do homem. Ele faz isso tomando como referência a estatura

mais modesta dos moradores da ilha e de qualquer outro ser humano comum já visto por

ele.

Essa presença estrangeira sabemos ser Dom Sebastião, porque a lenda traz

sempre o mesmo modo da chegada do estrangeiro, com seu cavalo, querendo comprar

toda a farinha oferecida, que deve ser jogada no mar para ser transportada ao reino

subterrâneo. O material cultural, vindo de Portugal, vai sendo trabalhado ao longo do

tempo; ocorrem atualizações, recriações em forma de conteúdo e de expressão. O Dom

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Sebastião desta narrativa aparece usando, no lugar de sua coroa, um chapéu de couro,

que, como se sabe, foi símbolo do “reinado” dos cangaceiros no Nordeste brasileiro,

além de ser uma peça típica do traje cotidiano do vaqueiro. Esta narrativa dá a idéia de

que o encantado adotou costumes culturais locais mais reconhecíveis pelo imaginário da

região. Há uma aclimatação do estrangeiro. Desta maneira adaptativa é possível a

continuidade de um fenômeno da cultura nascido em Portugal, que irá sendo adotado de

acordo com trocas de séries culturais quando ocorre o encontro de tradições diferentes.

Esse detalhe torna-se importante especificamente neste caso, por tratar-se de uma lenda

que demarcara o território de domínio do encantado, como já observamos.

Dados sobre a longevidade do relato se dão na pequena descrição do povoado da

ilha, e em marcadores constantes na narrativa. O marcador “Naquele tempo” nos dá a

idéia de algo acontecido num passado indefinido; no entanto, o sinal de que havia

poucas casas no povoado já traz alguma colocação “concreta” do tempo em que se passa

a história.

Ocorre ainda, no final da narrativa, alusões a uma cidade utópica, que é

construída e desenvolvida no subterrâneo de Lençóis. A cidade, como se sabe, está

encantada assim como toda sua população e seu rei. Porém é aguardado o

desencantamento desta cidade, para finalmente Lençóis se colocar como um local

conhecido e respeitado, ultrapassando sua referência maior que deverá submergir – São

Luís, no caso – da qual Lençóis se sente, no presente, como sombra apenas. Faz-se

evidente, não um descontentamento melancólico com o presente da comunidade, mas

sim uma vontade de superar as limitações impostas pelo momento presente. Podemos

conjecturar que estamos diante de uma “vontade de potência”, “vontade de algo mais”

que não pode ser satisfeita de imediato, como num passe de mágica, e acaba gerando

um movimento, um processo criativo de ir narrando uma presença, mesmo que

encantada ainda, mas que vai em direção à concretude desta vontade por intermédio de

construções utópicas.

Por sua vez, as pessoas colocadas na trama da história – o dono do barco,

comerciante da farinha, e sua tripulação – reforçam ainda mais o intuito do narrador em

apresentar o fato contado como real. Se elas não possuem nome, indica-se uma

localidade que se pretende existente no tempo e no espaço referente ao plano do nosso

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narrador. O local de onde provêm as personagens é chamado de Cachoeirinha, e situa-se

nas proximidades da ilha.

Outro detalhe principal, fundamental para a continuidade da história na memória

da região, além de fortalecer as tonalidades reais do fato acontecido, é a interdição

imposta pelo encantado rei Sebastião ao cozinheiro do barco, e que não é cumprida pelo

mesmo. Em uma sugestiva festa de carnaval em Outeiro, entre bebedeiras e conversas

de todo o tipo, o cozinheiro acaba esquecendo do interdito e conta o que viu no reino

submerso para outras pessoas. Por causa disso o cozinheiro do barco morre( logo após

ter revelado que viu a cidade encantada submersa do rei Sebastião) e este acontecimento

compõe uma linha imprescindível na trajetória desta história. Esta linha passa

sutilmente a dar lógica e vitalidade à “realidade” proposta pela narrativa. Por não

respeitar o interdito de Dom Sebastião que proibia a revelação do que havia sido visto

nos subterrâneo do mar, o cozinheiro morre, mas a lenda sobrevive, pois foi contada

pelo cozinheiro antes de sua morte. O esquecimento do cozinheiro, que provocou o

desrespeito ao interdito do rei, é papel importante para a continuidade da memória da

lenda, e nos leva a pensar, mais uma vez, no eixo memória/esquecimento não como

duplos opostos, mas sim como algo em movimento, que traz uma dinâmica de

continuidade da comunicação de algo acontecido no passado.

Temos de distinguir alguns tipos de esquecimento que ocorrem no universo narrativo da

poesia e do conto popular. Há o esquecimento profundo, a incapacidade absoluta de lembrar,

aquilo que se esgarça, se perde ou por algum motivo se sepulta, não deixando que emerja para a

narrativa, e há o que desliza, sob os mais diversos pretextos, nas seqüências narrativas [...] A

dupla esquecimento/memória, portanto, é apenas uma aparente oposição. Numa grande medida,

estas oposições são instrumentos conjuntos e indipensáveis em projetos narrativos que dão conta

de eixos de conflito. Há também o caso de, no corpo da própria narratividade, formarem-se

núcleos em que lembrar é um fluxo, um processo, uma razão de ser e então o ato de esquecer se

faz pivô daquilo que se desenvolverá, detonando uma série de transformações ou a

transformação211.

211 FERREIRA, Jerusa Pires. O Esquecimento, Pivô Narrativo, em Armadilhas da Memória e outros ensaios. São Paulo, Ateliê Editorial, 2003, p. 92-93

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O cozinheiro se esquece que não pode contar o que lembra constantemente,

durante toda a vida, e, ao esquecer disso, contando o proibido, morre, mas a memória

ganha continuidade na narrativa. O esquecimento nesse caso vem como indiscrição,

com o excesso de comunicação para outrem212, produzindo continuidade da memória da

lenda.

Bastante humano este trabalho da memória/esquecimento. Perguntaríamos como

é que alguém poderia guardar um segredo como aquele guardado pelo cozinheiro há dez

anos? Uma cidade encantada não é algo tão corriqueiro, não é uma visão banal,

ordinária. Acredito que dez anos guardando um segredo desta envergadura é um feito e

tanto para nossa condição humana. O que o cozinheiro guardou em sua memória era,

portanto, quase uma maldição. Como não revelar, guardar só para si, a visão de uma

cidade encantada, ainda mais a de Dom Sebastião, ainda mais a cidade utópica, que traz

em seu seio a consciência de um estado atual de existência precária em comparação com

a capital, e contrói as esperanças de um mundo melhor criado nestes tipos de relatos? O

cozinheiro prefere então dar a vida, se sacrificar, talvez inconscientemente através do

esquecimento do interdito, para haver o renascimento, a memória de uma vida mais

assegurada na conscientização da possibilidade em se viver sabendo que algo pode ser

alcançado.

Muitas versões existem sobre essa lenda, mas alguns conteúdos que se repetem

marcam a recorrência do relato e possibilitam tratar essa narrativa como um

acontecimento local. A farinha, alimento básico para a economia e culinaria da maior

parte da população maranhense, é escolhida para compor a base alimentícia do rei

encantado. O monarca não vai atrás de produtos típicos lusitanos, pois já está adaptado à

sua nova realidade. É claro que isto nos mostra que os narradores trabalham seus relatos

com o comum do local amalgamado ao elemento estrangeiro sendo narrado. Entre

outras coisas, esse procedimento é essencial para conseguir se comunicar com a

memória e imaginário da comunidade que divide os mesmos repertórios culturais. A

existência da figura do jovem rei vai sendo moldada, traduzida quando se dão encaixes

entre imaginários e tradições diferentes, e entre o passado e o presente.

212 LÉVI-STRAUSS, Claude, Mito e Esquecimento, em O Olhar Distanciado. Lisboa, Edições 70, 1986.

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Mais uma particularidade da composição desta narrativa é o fato de os paneiros

de farinha misteriosamente aparecerem no seco, na praia, depois de serem depositados

na água do mar para o transporte até o castelo encantado do rei. Esta seqüência nos diz

muito sobre a certeza, do narrador, de estar tratando de uma entidade encantada. O

detalhe é enfatizado como algo fora do normal, trazendo o ar de mistério do encontro

com o encantado. A atmosfera da lenda se faz fantástica e será sempre assim que irá ser

contada por outros narradores em outras circunstâncias e em outros locais, pontuando a

presença do território maravilhoso abarcado por Dom Sebastião.

Parece que a Lenda da Farinha não encerra somente um forte significado de sua

permanência enquanto recorrência. Há de se ressaltar também um projeto criativo que

garante a continuidade de uma crença na existência de um rei encantado transitando em

terras maranhenses, que vai construindo uma história maior em constante atualização. A

qualidade das várias versões desta lenda pode ser verificada nos detalhes de cada uma.

Isso não quer dizer que há uma melhor que a outra. Estes detalhes dizem muito do

contexto de cada narrador, da comunidade em que está inserido e de sua história

pessoal. Mas o seu intuito maior é o de comprovar que a figura encantada de Dom

Sebastião ainda tem presença na região em seus constantes deslocamentos, transitando

entre seu mundo encantado, no fundo do mar e no subterrâneo da ilha dos Lençóis, e o

mundo dos não encantados, o mundo cotidiano. Os que contam essa história em

processo estão em busca de outros universos, de outros mundos possíveis criados em

cada relato repetido com atualizações que dependem da singularidade de cada narrador.

Nessa busca há um ganho de consciência da atual condição do narrador e transbordam

seus desejos. Por isso contam e recontam ad infinitum esta lenda para compor um texto

maior na busca de uma nova ordem desejada. Afinal, como diria o consagrado escritor

peruano Mario Vargas Llosa, “ninguém que está reconciliado com a realidade cometeria

a ambiciosa loucura de inventar realidades verbais”.

**********

Nesse sentido, uma das lendas mais conhecidas no Maranhão sobre o rei

encantado, dá a medida desta falta de reconciliação com a realidade, desta insatisfação

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com o próprio presente. Ela costuma ser chamada de Lenda do Touro Negro, ou Lenda

do Touro Encantado.

Diz-se que na Ilha dos Lençóis, na noite de São João, em 25 de junho, aparece

entre as dunas da ilha um enorme touro negro, soltando fogo enfurecido pelas narinas,

mugindo de modo infernal, correndo desembestado, em atitude de desafio a quem por

acaso tiver essa visão. O touro seria o rei Dom Sebastião, querendo ser desencantado,

mas só podendo isso ocorrer quem suplantar os próprios medos advindo da visão

terrível. Se por acaso aparecer homem de bravura suficiente para enfrentar o touro, terá

que trazer consigo uma espada ou punhal com lâmina virgem. Quando se der o embate,

na primeira investida de um contra o outro, o herói terá que enterrar seu objeto em uma

estrela de prata localizada na testa do touro e fazer verter sangue. Realizado o ato,

imediatamente o rei Sebastião será desencantado e todo seu reino, com sua corte de

finos e galhardos fidalgos e lindas damas, emergirá das profundezas do mar. Ao mesmo

tempo, São Luís irá ser submersa para dar lugar ao reino de igualdade e riqueza de Dom

Sebastião. Este fato repete-se em uma das mais famosas doutrinas cantadas no Tambor

de Mina para Dom Sebastião:

Eh eh eh, rei Sebastião

Eh, eh, eh, rei Sebastião

Quem desencantar Lençóis

Vai abaixo o Maranhão

Enquanto isso não ocorre, muitos pescadores da baía dos Lençóis, que passam

noites e dias solitários em alto mar, dizem ainda ouvir e ver os fidalgos dançarinos ao

som de espinetas cadenciando seus passos em salões ricamente ornados. Não é tão rara

essa visão, mas raro é ouvir alguém disposto a contá-la, pois os segredos e mistérios do

mar requerem cuidados e discrição.

Mas a idéia de que a Ilha dos Lençóis possuía um reino encantado em suas

profundezas é anterior à lenda do rei Sebastião, segundo a pesquisadora Simone Freitas.

Em tempos remotos, as redondezas da ilha era rica em cardumes de peixes e passou a

ser freqüentada por pescadores, em épocas próprias. Mais tarde, os mais ousados

resolveram fixar-se na ilha. Esses primeiros pescadores é que deram o nome de Lençóis

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à ilha, por causa da enorme quantidade de cômoros de areia. Com o tempo as dunas

elevaram-se e os vales que se formaram entre elas ganhavam o aspecto de bacias que,

com as chuvas, deram em lagos de extraordinária beleza como até hoje isso pode ser

verificado. As areias da praia, talvez ricas em minério, formam fenômeno belíssimo de

noite, quando são pisadas. A cada pegada pode ser visto pequenos pontos que brilham

com a luz do luar.

Todos esses “milagres” da natureza podem devem ter impressionado àquela

recente população da ilha.

Os pajés da vizinhança iam conversar com as caruanas naquelas praias solitárias, que

emergiam do coração do oceano.

Desde então, pela exaltação supersticiosa dos nossos mestiçoes vulgarizou-se a lenda de

que era um reino encantado, reino de mães-d’água e de gênios protetores do mar, rival da velha

São Luís, da Ilha de Upaon-Açu, dos nossos avós tupinambás. E quando aparecesse um homem

corajoso e capaz de enfrentar vitoriosamente perigos mil, criados pelos gênios das águas, São

Luís seria tragada pelas ondas e o reino encantado dos Lençóis se transformaria numa bela

cidade, conforme ensinavam os velhos pagés quando sorviam a diamba, embriagante erva,

queimada em longos cachimbos 213.

Provavelmente a referência a São Luís, como uma cidade que deveria ser

apagada do mapa dando lugar ao desencantamento de uma cidade maravilhosa, curadora

das feridas do tempo, tenha se dado pelas dores provocadas pela expulsão à que foram

submetidos os índios quando da tomada e fundação de São Luís pelos franceses. Uma

utopia foi criada para enfrentar as agruras da nova vida de submissão, e para não se

perder a lembrança de que aquele mundo poderia ser suplantado com o reencantamento

do mundo para que fosse retomado o sentido da vida. Não é a toa que esperava-se um

homem com coragem o suficiente para conseguir desencantar a cidade maravilhosa. O

ato de bravura traduz a vontade de vencer o caos, pois ao ser desencantada a cidade

maravilhosa, iria ruir a cidade de onde provinham os problemas daquela gente expulsa

de suas terras, e a lei do usurpador submergiria com ela.

213 FREITAS, Simone M. R. Lendas do Maranhão. São Luís, Sioge, 1979, p. 23.

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Com a chegada do português na região, para retomar as terras da colônia

invadida pelos franceses, a crença na volta do rei messiânico Dom Sebastião acompanha

esses guerreiros (já vimos esse movimento em páginas anteriores).

Aquele panorama onde se desdobravam as areias alvas e subiam os cômoros que se

desmanchavam ao sabor dos ventos, feriu o sentimentalismo de alguns lusitanos. Numa

expansão patriótica, recalcada há muito, viram na ilha maranhense a imagem dos desertos

longínquos e, sabendo por informações da existência do reino encantado, afirmaram desde logo

que era o de Dom Sebastião. A assertiva criou forma no espírito imbele da gente praiana e

aglutinou-se à mitografia regional214.

A composição da lenda dá-se na confluência de dois materiais míticos

diferentes, que consegue resolver as distâncias pelo idéia comum de um reino encantado

e utópico. Em Portugal acreditava-se que Dom Sebastião estava encoberto,

recuperando-se material e espiritualmente nas Ilhas Afortunadas. A Ilha dos Lençóis,

contendo um reino maravilhosamente submerso, poderia muito bem ser o local de

repouso do rei Encoberto. Por sua vez, a crença na cidade encantada já existia na ilha

dos Lençóis, permitindo a aglutinação do mito português. Dom Sebastião tornou-se,

assim, o encantado dono daquele reino subterrâneo.

Não ganhou força como o homem corajoso que poderia vencer os mil encantos

para fazer submergir São Luís, mas passou a ser o principal dos encantos a desafiar

pessoas dispostas em fazer emergir seu reino de justiça e igualdade material e espiritual.

Sua corte de gentis portugueses combinou-se com outros encantados já cultuados

regionalmente e com os pajés que acreditam numa passagem para outra dimensão

quando despedem-se desta vida. A corte do rei português encoberto mesclou-se com o

passar dos anos, formando um reino mestiço.

Um outro dado da lenda é difícil de ser definido; ele se refere à transfiguração do

rei Sebastião em touro na composição da lenda. Mas há pistas de que esta figura pode

ter nascido na confluência de uma das maiores festas do Maranhão, o Bumba meu Boi,

com a crença no rei encantado da ilha dos Lençóis215. A festa se dá na época de São

214 Idem, p. 24. 215 Ver com mais detalhes o livro de Pedro Braga, O Touro Encantado da Ilha dos Lençóis: o sebastianismo no Maranhão. Petrópolis, Editora Vozes, 2001.

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João e o boi, presonagem principal do auto que acompanha a festividade, traz sempre

uma manta (o couro do boi colocado sobre uma carcaça de madeira ou de outro

material) coloridíssima, decorada com lantejoulas, fitas, apresentando diversos desenhos

e dizeres. Assim como seu corpo, a cabeça do boi é negra e leva sempre uma estrela na

testa.

Por sua vez, o touro encantado da Ilha dos Lençóis aparece sempre no dia 25 de

junho, dia de São João. Em algumas descrições da lenda ele traz muitos enfeites e

brilhos no corpo, além da estrela na testa que sempre o acompanha. Pensando nessas

coincidências podemos perceber pelo menos contribuição entre esses dois fenômenos da

cultura. Não há como definir quem viria primeiro. (E não nos interessa saber quem

nasceu primeiro: se o ovo ou a galinha). Mas é inconteste que, no decorrer do tempo,

elementos da lenda do Touro Encantado foram incorporados pelo boi do Bumba meu

Boi e vice-versa. Além da semelhança física do boi com o touro, e o fato de a data do

auto do Bumba meu Boi ser a mesma em que aparece o touro encantado na Ilha dos

Lençóis, estes são dois dos fenômenos culturais mais relevantes do Maranhão.

A Lenda do Touro Encantado é conhecida por todo o povo maranhense, tanto na

capital como no interior. Ela está presente no relato de narradores e pescadores de

diversas gerações. Um morador da Ilha dos Lençóis, José Mario, em depoimento ao

documentário A Ilha de Dom Sebastião, produzido pela TV Senado, diz que quando

criança falava para sua mãe de sua vontade em encontrar o Touro Dom Sebastião para

desencantá-lo. Ele argumentava que não tinha medo, porque sabia que o rei não iria feri-

lo. A mãe logo tirava essa idéia de sua cabeça, dizendo que ele morreria de medo só de

ver a figura do touro. Antes da concretização de um mundo mais justo, de igualdade, de

felicidade, é preciso enfrentar a visão do monstro que tudo isso dificulta, apesar de,

paradoxalmente, ser o mesmo ser que deve permitir a realização dos desejos ainda em

estado de utopia. É preciso passar por uma espécie de Apocalipse, lutar para conquistar

o privilégio de ver a face desejada do encantado, que proporcionará a união ao objeto

desejado e a revelação do mistério ainda encoberto.

O relato do Touro Encantado embrenhou-se tanto na comunidade de moradores

da Ilha dos Lençóis, que tornou-se costume oferecer um boi ao rei Sebastião no dia 25

de junho. Esta espécie de rito consegue manter uma certa organização das atividades

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sociais e econômicas da ilha. A prática pretende trabalhar com as forças sagradas do

local, tornando-se um rito de sacrifício religioso no sentido de permitir à comunidade

festejar o grande encantado que protege a ilha e ligar-se mais profundamente a ele, com

pedidos pessoais e coletivos. O rito exerce poder tão grande na comunidade que quando

não cumprido gera confusão e perturbação durante o ano todo. Foi assim em 2002,

quando tive a oportunidade de visitar a ilha.

Naquele ano tentava-se construir uma pequena igreja em homenagem a São

Sebastião. Em janeiro, a comunidade escolheu um boi e vinha tratando dele para

oferecê-lo em sacrifício a Dom Sebastião. Por descuido o boi ficou atolado em um

lamaçal e morreu. Uma profunda tristeza e desânimo abateu alguns moradores da ilha e

a construção da igreja não teve andamento. Além disso a pesca decaiu bastante, e

surgiram muitos problemas de ordem social e pessoal na convivência entre os habitantes

da ilha. Simião Machimeno contou-me sobre os fracassos que vinham ocorrendo

naquele ano e atribuiu ao descuido que levou à morte o boi escolhido para ser oferecido

em sacrifício ao rei Sebastião.

Tendo rito de sacrifício ou não, seja ele cumprido ou não, o desafio continua a

ser lançado a cada ano, na mesma data. Através da lenda dá-se a oportunidade a

qualquer um de suplantar os medos para conquistar uma vida plena. Neste período

reflete-se sobre a própria condição de existência e a lenda é recontada como lembrança

de que sempre há algo mais para ser trabalhado e conquistado, para que ocorra o

desencantamento do rei e do seu reino. Podemos dizer que é no dia a dia que acontece o

enfrentamento simbólico com o touro. Os desejos depositados no desencantamento de

Dom Sebastião alimentam a lenda, tornando a cidade encantada cada vez mais viva no

relato que retorna. A lenda permite a meditação sobre a incompletude da condição

humana, numa existência sempre em devir, em transformação, fazendo com que a lenda

retorne também com modificações, acompanhando os desejos demandados tanto

coletivamente como individualmente.

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III Parte:

Rei Dom Sebastião Nas Artes e Mídias

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Esta terceira parte da pesquisa será apresentada em um DVD que mostra, através

de entrevistas, matéria de jornal impresso, espetáculos e trabalhos artísticos, as

transformações e permanências da figura de Dom Sebastião nas concepções e opiniões

em diversas áreas de atuação da criação e comunicação humana. O trabalho realizado de

direção e edição do material pesquisado para compor o DVD Rei Dom Sebastião: Nas

Artes e Mídias, é voltado para uma tentativa de se mostrar o que iremos chamar de

“ressonâncias atualizáveis” da figura do rei que, como já nos indica a expressão

anterior, não pára sua viagem virtual no tempo/espaço e em diferentes linguagens e

códigos que contribuem para novas retomadas possíveis no futuro.

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Conclusão

A proposta dessa tese, desde o começo, era de cartografar o fenômeno cultural

chamado sebastianismo. O cartografar, neste caso, foi compreendido como

possibilidade de conhecimento do objeto, de traçar suas linhas que compõem

territorialidades e de leitura deste fenômeno cultural observando três instâncias: as

permanências que nos permitem localizar o sebastianismo, suas atualizações no

cruzamento e encaixes de materiais heterogêneos e a singularidade de uma leitura

promovida pelo sujeito-pesquisador que, sem dúvida, traz um olhar específico, e que

realiza um ir e vir afetivo entre o objeto ao qual procura em diversas instâncias se

reunir.

Neste sentido, fazemos coro com o que Deleuze e Guattari compreendem por

cartografar. Ao tentarem expor o que é um livro para eles, e como este é melhor

aproveitado como movimento ao ser lido ou escrito, atentam para alguns elementos

contidos num objeto a ser observado, e que devem ser levados em consideração: “Num

livro, como em qualquer coisa, há linhas de articulação ou segmentaridade, estratos,

territorialidades, mas também linhas de fuga, movimentos de desterritorialização e

desestratificação”. E estar atento a estes elementos já é cartografar um livro, ou um

fenômeno cultural, ou processos de movimento que se territorializam, desterritorializam

e se reterritorializam. Então, a leitura de um livro ou de qualquer outra coisa que nos

cause curiosidade, segundo Deleuze e Guattari, pede específico tipo de abordagem.

“Não se perguntará nunca o que um livro quer dizer, significado ou significante, não se

buscará nada compreender num livro, perguntar-se-á com o que ele funciona, em

conexão com o que ele faz ou não passar intensidades, em que multiplicidades ele se

introduz e metamorfoseia a sua...”. Ao mesmo tempo, escrever para os dois autores em

questão, “nada tem a ver com significar, mas com agrimensar, cartografar, mesmo que

sejam regiões ainda por vir”216.

Ora, esta prática cartográfica, este contínuo viajar em uma singularidade, ou

numa potência que produz singularidades, é ler mundos possíveis, encontrar conexões

216 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. “Introdução: Rizoma”, em Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo, Editora 34, 1995, pp.11-37.

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em vários tempos/espaços e fazer outras no tempo/espaço do sujeito-pesquisador. Daí o

cartografar, no caso dessa tese, esteve muito ligado com a verificação de processos de

transmissão, de leitura e tradução do fenômeno cultural sebastianista, contribuindo para

uma observação do “objeto” sem que haja seu engessamento, muito pelo contrário,

buscando realçar seus movimentos.

Nesse processo cartográfico uma das questões que naturalmente se ressaltaram

foi a idéia de Dom Sebastião ser personagem protagonista de demandas pelo re-

encantamento de um mundo. Muitos dos grupo por nós tratados, que traziam Dom

Sebastião como uma figura messiânica ou com poderes de aglutinar crenças sobre um

mundo mais harmônico e justo com a nartureza e entre si, viviam a perda de sentido e

de legitimidade dos seus valores, de sua sabedoria, dos seus costumes, o que provocava

o desencantamento do mundo com o qual se relacionavam. Este aspecto vai ao encontro

de suposições de Max Weber sobre o processo de busca pelo re-encantamento. Ele diz

que esse movimento se dá pelo desejo de se situar no cotidiano como uma

singularidade. Isso favorece agrupamentos coletivos que pretendem criar uma nova

ordem para estabelecê-la como outra, alternativa à uma ordem que torna o indivíduo

apenas parte disforme e descartável de uma massa perante um poder abstrato que, por

sua vez, conforma o cidadão aos seus desígnios217.

Na introdução já apontava para as potências que Dom Sebastião tinha adquirido

com seu nascimento e desaparecimento, levando em seu nome dois qualificativos que

permitiram sua circulação por diversos textos da cultura. No decorrer da minha tese,

parece que essas especificidades de Desejado e Encoberto, presentes em sua

personalidade, confirmaram o poder de mobilidade desta figura mítica. A busca pelo

desejo encoberto não pára de lançar Dom Sebastião a tempos futuros, fazendo-o

trânsitar como personagem salvadora e encantada. Com isso modifica-se não só seu

“rosto” nas leituras diferentes feitas sobre ele, mas também há uma transformação das

experiências de vida de quem encontrou-se com as energias do rei Desejado e

Encoberto, acreditando que nesse encontro poderia realizar suas utopias, em seu

217 Ver estas idéias de Max Weber no livro de Duglas Teixeira, Os Errantes do Novo Século. São Paulo, Duas Cidades, 1974. Também podemos ver esse processo de desencantamento e re-encantamento no livro de Serge Gruzinski, O Pensamento Mestiço. Tradução de Rosa Freire d’Aguiae. São Paulo, Companhia das Letras, 1999, principalmente no capítulo “O Choque da Conquista”.

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presente, ou num futuro buscado através de ações e criações em diveros campos das

manifestações humanas.

Diante de tudo isso, podemos concluir que Dom Sebastião é um fenômeno

cultural de movimentos rizomáticos que:

[...] não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser,

intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o

verbo “ser”, mas o rizoma tem como tecido a conjunção “e... e... e...”. Há nesta conjunção força

suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser.

Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e

reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal, que as carrega uma

e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio218.

Sendo assim, como dizermos mais alguma coisa? Ou como deixarmos de dizer

sempre algo mais sobre o rei Desejado e Encoberto? Por isso concluímos essa pesquisa

nesse entre, onde inevitavelmente nos encontramos também.

218 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix, op. cit.

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Obras de Referência

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São Paulo, Paulus, 2a impressão, 2003.

� Dicionário de Filosofia em 4 Tomos. José Ferrater Mora. São Paulo, edições Loyola,

2000.

� Dicionário do Folclore Brasileiro. Revisto, atualizado e ilustrado. Luís da Câmara

Cascudo. São Paulo, Global, 11a edição, 2005.

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Olympio, 3a ed., 1990.

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Casa da Moeda, 1994. (coord. da edição portuguesa: Fernando Gil).

� LACOSTE, Jean-Yves (dir.). Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo, Paulinas:

Edições Loyola, 2004.

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1997.

Matérias e Ensaios em Jornais e Revistas

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presidente do Instituto Popular Memorial de Canudos.

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Janeiro, Editora Vozes, 1973.

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São Paulo, Domingo 03 de novembro de 2002, p. A13.

Outros Materiais Impressos

� Cordel do Reino Encantado. Autor: Francinaldo Oliveira. Patrocínio Associação

Cultural Grupo Pedra do Reino. São José de Belmonte – PE, s/d.

� Carnaval 2002: Aclamação e Coroação do Imperador da Pedra do Reino: Ariano

Suassuna. Autor: Ernesto Nascimento. São José de Belmonte, PE, março/ 2002.

� Missa em Ação de Graças da XII Cavalgada à Pedra do Reino. São José de Belmonte

– PE, 30 de maio de 2004.

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Vídeos e DVDs

� CAMPOS, Luiz Arnaldo. A Descoberta da Amazônia pelos Turcos Encantados. Ano de

Produção: 2005. DocTV, TV Cultura. (DVD)

� CAMACHO, Francisco. Dom São Sebastião. Coreografia de 2000 apresentada em

Portugal. (Cópia em DVD)

� Carnaval da Mangueira 1996 e Carnaval da Grande Rio 2002. Imagens da TV Globo

gravadas em DVD.

� MACHADO, Roberto. A Lenda do Rei Sebastião. Ano de produção: 1979; São Paulo,

Tempo Filmes. (VHS)

� OLAVO, Antonio. Paixão e Guerra no Sertão de Canudos. Ano de Produção: 1993.

Salvador, Portfolium, Laboratório de Imagens. (VHS)

� OLIVEIRA, Manoel. Um Filme Falado. Ano de Produção: 2004. Paris Filmes. (DVD)

� PROGRAMA ENSAIO. Entrevista com o grupo Cordel do Fogo Encantado. Ano de

Produção: 2002. Tv Cultura. (DVD)

� PROGRAMA RODA VIVA. O Brasil Passa Por Aqui. Entrevista com Ariano

Suassuna. Ano de Produção: Maio/2002. Cultura Marcas. (DVD)

� CD ROM Canudos Documentos, em 09 volumes, contendo toda a documentação do

exército e algum material jornalístico sobre a Guerra de Canudos. Luiz Paulo Almeida

Neiva (org.). Trabalho realizado em conjunto pela UFBA e CEEC – Cemtro de Estudos

Euclydes da Cunha, Salvador, 2003.

Material Fonográfico:

� BAIANO, Paulo e MACHADO, Roberto. A Lenda do Rei Sebastião: registros sonoros

do Maranhão. Produção: Rec Play Tempo Filmes; Apoio: Ministério da Cultura. São

Paulo, 2000.

� BIÃO DE CANUDOS. Bião de Canudos Canta Canudos. Produção Independente. S/l,

s/d.

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� CORDEL DO FOGO ENCANTADO. Cordel do Fogo Encantado. Produção: Rec Beat.

Recife, 2000.

� MALVEZZE, Roberto (Gogó). 100 Canudos. Cantando com o Povo. Cantos das

partorais. Produção: Editora Fonte Viva. Apoio: Instituto Popular Memorial de

Canudos. Salvador, 1997.

� OLIVEIRA, Francinaldo; OLIVEIRA, José. A Pedra do Reino Cantado por Nós.

Repentes e canções. Apoio: Associação Cultural Grupo Pedra do Reino. São José de

Belmonte e Serra Talhada, 2004.

� PAES, Fábio. Canudos e Cantos do Sertão. Produção: Fábio Paes. Salvador, 1997.

Sites da Internet

� Despedida de Antônio Conselheiro, A Última Prédica, em

http://dhnet.org.br/desejos/sonhos/predica.htm. Acessado em: 17/01/2007.

� Stonehenge – o Círculo Sagrado Celta, da jornalista, escritora educadora e professora

de mitologia Marilu Martinelli. In: www.ippb.org.br/modules. php%3Fop%... Acessado

em: 11/01/07. Este site é do Portal do IPPB – Instituto de Pesquisas Projeciológicas e

Bioenergéticas.

� O Sebastianismo no Brasil e Portugal, por Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior, em

21/05/2001. Acesso em: 24/06/2001. In:

http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.phtml?cod=1863&cat=Artigos

� Antônio Conselheiro: um herói popular. Alô Escola da TV Cultura Home sobre Os

Sertões de Euclides da Cunha. In: http://

www.tvcultura.com.br/aloescola/estudosbrasileiros/sertoes/sertoes3.htm. Acesso em:

24/06/2001.

� Herança Lusa: Dom Sebastião está de Volta, por Marcos Toledo, JC- Jornal do

Comércio On Line 05/09/1999. In:

http://www2.uol.com.br/JC/_1999/0509/cc0509b.htm. Acesso em: 10/11/2001.

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