a nova ciência da política - eric voegelin

Download A Nova Ciência da Política - Eric Voegelin

If you can't read please download the document

Upload: melquisedec-ferreira-da-silva-santos

Post on 02-Jan-2016

185 views

Category:

Documents


22 download

TRANSCRIPT

  • A NOVA CINCIA DA POLTICAEric Voegelin

    "A posteridade poder saber que no deixamos, pelo silncio negligente, que as coisas se passassem como num sonho."

    APRESENTAO...................................................................................... 5

    PREFCIO ........................................................................................................ 11

    AGRADECIMENTOS ..........................................................................................13

    INTRODUO ...................................................................................................17

    1. A teoria poltica e a filosofia da histria. O declnio da cincia poltica e sua restaurao.

    2. A destruio da cincia poltica atravs do positivismo. Premissas positivistas. A subordinao da pertinncia ao mtodo. A natureza dopositivismo.

    Manifestaes do positivismo. Acumulao de fatos irrelevantes. Interpreta o errnea de fatos pertinentes. O movimento da metodologia. Aobjeti vidade atravs da excluso dos julgamentos de valor.

    3. A posio transitiva de Max Weber. A cincia isenta de valores de Weber.

    O demonismo dos valores. As contradies da posio de Weber. A reapresentao dos valores. O tabu das metafsicas clssica e crist. Opositivismo desencantado.

    4. A restaurao da cincia poltica. Obstculos e xito.

    I REPRESENTAO E EXISTNCIA ...............................................................33

    1. O procedimento aristotlico. Os smbolos da realidade e os conceitos da cincia.

    2. A representao no sentido elementar.

    3. A insuficincia do conceito elementar da representao.

    4. A representao no sentido existencial. A sociedade capaz de atuar. A distino entre representante e agente.

    5. A representao e a articulao social. A Magna Carta. Notificaes ao Parlamento. O caso Ferrers. A frmula dialtica de Lincoln.

    6. A teoria ocidental da representao. A consolidao dos reinos no sculo

    XV. A teoria de Fortescue. A erupo e a prorrupo. O corpo mysticum. A intendo populi.

    7. As fundaes migratrias. O mito de Tria. Paulus Diaconus.

    8. A desintegrao. Maurice Hauriou. A ide directrice. O poder e o direito. O representante constitucional e o existencial.

    9. Sumrio. A definio de existncia. Das instituies representativas. O provincianismo da teoria contempornea da representao.

    2 A NOVA CINCIA DA POLTICA II REPRESENTAO E VERDADE .................................................................49

    1. A simbolizaro social e a verdade terica.

    2. A sociedade como representante da ordem csmica. A verdade e a mentira. A Inscrio de Behistun. A ordem mongol de Deus. O monadismoda ver dade imperial.

    3. O desafio verdade imperial. O tempo crucial da histria humana de Jaspers. As sociedades fechadas e abertas de Bergson.

    4. O princpio antropolgico de Plato. Como princpio para a interpretao da sociedade. Como instrumento de crtica poltica. O padro daverdadei ra ordem da alma.

    5. O significado da teoria. A teoria aristotlica do homem maduro. A teoria como explicao de experincias. A base experiencial da teoria.

    6. A autoridade da verdade terica. A abertura da alma. A psique como o centro da transcendncia. O princpio teolgico. Plato e os tipos deteologia.

  • 7. A representao trgica. Os Suplicantes de Esquilo. O significado da trama. A atuao persuasiva do Governo. A deciso em favor de Dike.O sofrimento representativo.

    8. Da tragdia filosofia.

    9. Sumrio. A representao no sentido transcendental. A teoria como a cincia da ordem. O critrio da verdade na cincia.

    IIIA LUTA PELA REPRESENTAO NO IMPRIO ROMANO ............... 65

    1. Problemas tericos. Os tipos concorrentes da verdade. Distino entre a verdade antropolgica e a verdade soteriolgica. Definio dasubstncia da histria. A dependncia da teoria com relao gama de experincias clssicas e crists.

    2. Varro, Santo Agostinho e os tipos de teologia.

    3. A funo poltica do Civitas Dei. O ataque ao culto romano. A questo do Altar de Vitria. As posies de Smaco e Santo Ambrsio, oimperator felix de Santo Agostinho. O culto romano como problema candente.

    4. O problema existencial na teologia civil romana. A incompreenso de Santo Agostinho com relao posio de Varro. Ccero e acontraposio do princeps civis ao princeps philosophiae. O arcasmo de Roma. A verdade roma na contra a verdade da filosofia.

    5. O princeps como representante existencial. O patronato e o principado. Os prncipes como chefes polticos e militares no fim da repblica. Ostrin-viros. O principado imperial.

    6. A debilidade sacramentai do principado imperial. Experincias com a teologia imperial. A experincia com o Cristianismo.

    7. Celso e o carter revolucionrio do Cristianismo.

    8. O monotesmo metafsico de Flon. A teologia poltica de Eusbio de Cesaria. O trinitarismo e o fim da teologia poltica.

    IV GNOSTICISMOA NATUREZA DA MODERNIDADE ............................. 85

    1. A vitria do Cristianismo. Desdivinizao da esfera poltica e redivinizao. O milnio da Revelao e a teoria da Igreja de Sto. Agostinho.Representao espiritual e temporal. A sobrevivncia da idia romana na sociedade ocidental.

    2. O simbolismo da redivinizao. A especulao trinitria de Joaquim de Fiora. Os smbolos de Joaquim: (a) o Terceiro Reino; (b) o Lder; (c) oProfeta Gnstico, (d) a Irmandade de Pessoas Autnomas. O Terceiro Reino nacional-socialista. Moscou a Terceira Roma. Reconhecimentoocidental do problema russo. O tipo russo de representao.

    3. O contedo terico dos novos smbolos. O significado de histria trans cendental em Sto. Agostinho. A imanentizao do significado dahistria em Joaquim. Secularizao. O eidos da histria como construo falaciosa. Os tipos de imanentizao falaciosa do eschaton:progressivismo, utopismo, ativismo revolucionrio.

    4. Motivos e alcance do imanentismo gnstico. O desejo da certeza e a incerteza da f. O xito social do Cristianismo e a queda da f. O recurso auto-divinizao gnstica. O espectro psicolgico de tipos: contemplativo, emo tivo, ativista. O espectro da radicalizao: do paracleto aosuper-homem. O espectro civilizacional: do monasticismo ao cientificismo.

    5. A evoluo da modernidade. Origens no sculo IX. O problema do progresso e declnio simultneos. O prmio da salvao aocivilizacional. A imortalidade da fama e os poos de esquecimento. Morte espiritual e assassinato de Deus. O Totalitarismo como forma final dacivilizao progressivista.

    V A REVOLUO GNSTICA O CASO PURITANO ................................101

    1. Periodizao da histria ocidental. A modernidade como o crescimento do gnosdcismo. A era moderna como um smbolo gnstico. A eramoderna como revoluo gnstica.

    2. O retrato do puritano por Hooker. A causa e o movimento.

    3. A revolta contra a cultura intelectual. A camuflagem das Escrituras. A codificao da verdade gnstica. A interdio dos instrumentos de crtica.A proibio do argumento terico. A reao de Hooker. A soluo islmica. Apelo autoridade governamental.

    4. O anjo da Revelao e o exrcito puritano. Um Vislumbre da Glria de Sion. O homem comum. Q reino gnstico dos santos. O programa darevoluo. As Perguntas a Lord Fairfax. A liquidao do Velho Mundo. A guerra entre os mundos. Reflexes metodolgicas.

    5. A teoria da representao de Hobbes. Ordem pblica contra a revoluo gnstica. A ressurreio da theologia civilis. A abertura da almareexaminada. A tenso essencial entre a verdade da sociedade e a verdade da alma. A so luo de Plato. Vacilaes crists. A idiahobbesiana da constituio perene.

    VI O FIM DA MODERNIDADE .........................................................................119

    1. A verdade da ordem csmica reafirmada. O gnosticismo como uma teologia civil. Sua tendncia de reprimir a verdade da alma. O ciclo deadvento e recesso. Dinmica futura da civilizao ocidental.

    2. A negligncia gnstica para com os princpios da existncia. Criao de um mundo de fantasia. Suas motivaes. O resultado

  • pneumopatolgico. Ataque s virtudes do intelecto e propaganda em prol da insanidade moral. As causas do estado permanente de guerra. Aimpossibilidade da paz.

    3. Liberalismo e comunismo. A situao dos intelectuais liberais. Dinmica da revoluo gnstica. O perigo comunista. As causas da paralisiaocidental.

    4. Hobbes. Imanncia radical da existncia. A vida do esprito como libido dominandi. A abolio do summum bonum. Paixo e medo da morte.A pessoa e o Leviat.

    5. O simbolismo hobbesiano. A psicologia do homem desorientado. A enfermidade como natureza do homem. O Leviat como destino dointelectual.

    6. Resistncia contra o gnosticismo. A relao das revolues nacionais no Ocidente com o gnosticismo. Conservadorismo ingls e norte-americano. A restaurao das tradies.

    ndice onomstico ..........................................................................................135

    APRESENTAO

    NAS PROFUNDEZAS DO PENSAMENTO POLTICO: REALIDADES HISTRICAS E MITOS IDEOLGICOS

    Os homens concretos, na sua convivncia histrica, eis o dado fundamental da cincia poltica. Por isso mesmo, a teoria poltica uma teoria dahistria.

    As diversas formas mediante as quais se estruturam a sociedade e o poder que a governa representam essa realidade, cuja significao maisprofunda decorre do prprio destino humano.

    Mas o subjetivismo do pensamento moderno, apartando a inteligncia do seu objeto natural o ser e enclausurando-a no mundo das idiaspor ela mesma forjadas, deu origem, no campo da filosofia poltica e da Teoria do Estado, s construes esvaziadas de todo o contedohistrico, num abstracionismo fechado, incapaz de alcanar o transcendente. Nas ideologias da resultantes bem pode ver-se uma reproduo dagnose dos primeiros tempos do cristianismo.

    Tal a temtica desenvolvida ao longo das pginas deste volume, a qual pode reduzir-se a trs importantssimos tpicos, a saber:

    1) historicidade das sociedades polticas;

    2) teoria da representao;

    3) gnosticismo, essncia da "modernidade".

    Consideremos brevemente esses trs pontos capitais para concluirmos com uma referncia personalidade do autor e atualidade da obra.

    1. A historicidade do conviver humano

    A conexo entre o histrico e o politico resulta da prpria natureza das sociedades, isto , do conviver humano. Se o homem o "animal poltico"do conceito aristo-tlico, tambm e, por isso mesmo, um ser histrico. O que distingue os agrupamentos humanos dos agregados animais asua variedade no espao e no tempo, decorrente precisamente do que h de especfico no homem, diferenciando-o dos demais seres danatureza: a razo.

    Sendo racional e, portanto, livre, o homem coopera livremente com os seus semelhantes, constituindo assim as diversas sociedades de que fazparte.

    Cabe razo ordenar as coisas e as aes para um fim, e quando reunidos os indivduos racionais, isto , as pessoas, eles tm conhecimentodo fim ou bem comum a atingir, determinando eles mesmos os meios adequados. Com os seres destitudos de razo isto no se d, e se vivemgregariamente como ocorre, por exemplo, com as formigas, as abelhas e os castores so movidos pelo instinto e sujeitos a leis naturaisque atuam por um processo de determinao necessria.

    S por analogia metafrica o socilogo francs Espinas podia dar ao conhecido livro que escreveu, a respeito, o ttulo Les socits animales.

    Sociedade, no sentido prprio, supe racionalidade e liberdade, donde lhe decorre tambm a nota da historicidade. No se pode confundir ahistria natural dos animais com a histria do homem e das civilizaes. A organizao de uma colmia sempre a mesma, em todas aspocas e em qualquer parte do mundo. Que contraste com a multiplicidade de formas humanas de convivncia e com a diversificao dosregimes polticos desde a tribo primitiva at ao Estado nacional de nossos dias!

    A sucesso de tais formas, em meio aos episdios tambm os mais variados da vida em sociedade, faz a histria. Esta emerge da ordem dosacontecimentos que se vo sucedendo no decurso do tempo e, por sua vez, serve de lastro para a ordem instituda pelos homens numacorrelao com os costumes, as tradies, o legado de cultura recebido e transmitido.

    O homem , por isso mesmo, naturalmente tradicionalista. Vive e se aperfeioa graas educao que lhe dada e ao acervo de bensacumulados pelos seus ancestrais. Sem herana, sem tradio, no h progresso, isto , sem a entrega de um patrimnio de cultura de umagerao a outra. Originariamente a palavra traditio significa exatamente essa transmisso ou entrega, sem a qual as sociedades se

  • imobilizariam ou retrocederiam barbrie. Por onde vemos que a tradio, longe de ser conservadorismo esttico, a prpria movimentao dadinmica social, ligando o presente ao passado e ao futuro. Se nos colocarmos, por exemplo, no terreno das cincias, como ser possvelconceber a o progresso sem a tradio, ou seja, sem aprendermos com a experincia dos que nos precederam e sem tomarmos conhecimentodas suas descobertas e invenes? Se um cientista fizesse tbua rasa destas aquisies e pretendesse comear tudo de novo, estariaregressando idade do homem das cavernas.

    Ora, as ideologias difundidas, sobretudo a partir do sculo XVIII, representam uma ruptura com a tradio. Eis por que, no dizer de Voegelin, noso apenas \ uma revolta contra Deus, mas tambm uma rebelio contra o homem. Ao contrrio da filosofia, que tem por objeto o ser, isto , arealidade, a ideologia leva o homem para um mundo de quimeras, substituindo-se histria e substituindo a realidade pela idia enquanto meroproduto da mente, sem aquela "adequao" com a coisa, segundo a definio clssica da verdade.

    As ideologias revolucionrias de nossa poca criaram novos mitos os mitos da Humanidade, do Povo, da Raa, da Classe (ou doProletariado), da Liberdade, da Igualdade, do Paraso na Terra , mas mitos que no simbolizam entidades concretas como eram os dasantigas religies, e sim abstraes que, aplicadas poltica real na vida dos povos, acabam por se dissolver na Realpolitik, na poltica do poder,na fora totalitria.

    Afirmar a historicidade no cair no erro do historicismo, pelo qual o homem submetido aos impulsos de uma pretensa conscincia coletiva,nem tampouco incidir na grosseira superstio desse progressismo que faz dos homens cata-ventos movidos pelos ventos da histria econsidera sempre o moderno superior ao antigo.

    A teoria poltica sem base histrica ser uma concepo desencarnada, inspira-dora de formas de governo e de Estado desajustadas dascondies reais dos povos. o que temos visto freqentemente, da resultando o conflito entre o "pas legal" e o "pas real", entre a constituiojurdico-formal e a constituio social e histrica, entre o Estado e a Nao.

    Note-se finalmente que alm e acima da ordem dos fatos no domnio da histria e imprimindo-lhe um sentido, est a ordem dos princpios edos valores, no plano da tica e do direito natural. A poltica uma cincia prudencial, a prudncia ordena para os fins humanos e estaordenao s vlida e eficaz quando leva em conta a situao concreta do homem como ser histrico.

    2. O significado poltico da representao

    A representao uma idia-chave da cincia poltica. Tenho feito ver, nos meus cursos de Teoria Geral do Estado, que esta disciplina pode serdividida em trs partes, concernentes sociedade, ao poder e representao. A sociedade civil ou I poltica, constituda por famlias e outrosgrupos, o meio em que se forma o Estado. O poder o elemento organizador da sociedade, princpio de unidade social, centro propulsor ecoordenador. E a representao um vnculo entre a sociedade e o poder, sintonizando a ao dos governantes e as aspiraes dosgovernados.

    Mas temos a apenas o primeiro sentido da representao poltica, dizendo respeito s denominadas instituies representativas. Trata-se dasociedade representada junto ao poder. Alm disso, cumpre considerar o poder enquanto ele representa a sociedade, ou, por outras palavras, asociedade representada pelo poder. Assim, mesmo num pas onde no existam instituies representativas, o poder que o governa no deixade represent-lo perante os outros Estados, sendo reconhecido por estes no plano das relaes internacionais. A este segundo tipo derepresentao, Eric Voegelin chama de representao no sentido existencial.

    Finalmente, a representao assume ainda um terceiro significado, como valor simblico manifestando uma ordem transcendente. O queclaramente se verifica no apenas na Antigidade oriental, desde o fara, tido por uma divindade presente na terra, at os reis babilnicos,considerados comissrios de Marduk, e os aqu-menides, representantes de Ahuramazda, mas tambm em povos primitivos nas reas doPacfico, da Amrica e da ndia. A mesma concepo reflete-se nos califa-dos islmicos e na China e no Japo at o nosso sculo. Casosingular o do povo hebreu, quer sob a teocracia, quer sob a monarquia. Nas monarquias crists medievais, a sagrao real apresenta umaspecto novo, e observa-se a distino entre as esferas do poder eclesistico e do poder civil, o que no ocorre no cesaro-papismo bizantino enas "monarquias de direito divino" de inspirao protestante.

    -Com a secularizao- das sociedades' modernas, h uma deslocao do transcendente para o imanente, surgindo aqueles mitos querepresentam a deificao de entidades ou valores temporais. o caso tpico do totalitarismo, deificando o Estado. O que nos faz passar aoterceiro tpico acima indicado.

    3. O fundo gnstico do pensamento moderno

    A ruptura do pensamento moderno com o transcendente encontra, no domnio poltico, suas primeiras grandes expresses em Maquiavel eHobbes, sem falarmos no precursor medieval de ambos, Marslio de Pdua. Em Hobbes h uma sistemati-zao rigorosa da conceponaturalista do universo, reduzido este a um mecanismo corpreo ou fsico e sendo o Estado igualmente regido por normas de leis fsicas, comtotal subordinao do homem ao corpo poltico, o Leviat.

    Isso no quer dizer que, na sua significao mais profunda, seja o pensamento poltico especificamente moderno destitudo de qualquervinculao com motivaes religiosas. Donoso Corts que, com quase um sculo de antecipao, previu genialmente a propagao dosocialismo e o expansionismo imperialista da Rssia fez ver nas concepes revolucionrias de sua poca, de Rousseau a Proudhon, a prticade uma filosofia panteista e afirmou que entre os erros contemporneos no h nenhum que no se resolva numa heresia 2. E aindarecentemente o renomado matemtico sovitico Igor Chafarvitch estudou as origens do socialismo entre os ctaros e albigenses (do sculo XIao XIV), nas heresias pantestas do sculo XIII ao sculo XV e em seitas ligadas ao movimento protestante, como a dos valdenses e a dosanabatistas 3.

    Eric Voegelin, neste ponto continuador de Donoso Corts, em anlise profunda do imanentismo moderno, filia-o gnose dos primeiros sculoscristos. Na Idade Mdia, esta heresia reaparece em alguns pensadores, entre os quais de se destacar Joaquim de Flora, cuja interpretao

  • da histria segundo as trs idades, uma antecipao do progressismo de Turgot, Condorcet, Comte, Hegel e Marx. O marxismo tambmimanentista, e alis Marx, unindo a dialtica de Hegel ao materialismo de Feuerbach, transpe para a Matria o que Hegel afirmava da Idia. Agnose apresenta vrias formas. Em sua modalidade predominantemente intelectual, procura penetrar especulativamente no mistrio da criao eda existncia. Tal a gnose especulativa de Schelling e do sistema hegeliano. A gnose volitiva, vol-tada para a ao e estabelecendo o primadoda prax, destina-se a redimir o homem e a sociedade. o caso de Comte, Marx, Lenin e Hitler, "ativistas revolucionrios".

    Note-se que a expresso gnose palavra grega que significa o conhecimento, sendo usada para designar no o processo discursivo prprio darazo, mas uma revelao da verdade divina, alcanada por via intuitiva e trazendo ao "iniciado" alegria e certeza de salvao. O movimentognstico remonta a Simo Mago, cuja histria nos foi transmitida pelos Atos dos Apstolos. Desenvolveu-se no sculo II, mas, longe dedesaparecer ante a refutao de seus erros por Irineu, Tertuliano, Clemente de Alexandria e outros, ficou sendo uma vegetao religiosaparasitria ao longo da histria da Igreja, corroendo a doutrina crist e suscitando outras tantas heresias4. Extraordinariamente reavivado emnosso sculo, palpita no fundo da heresia modernista e do chamado "progressismo"5. Da resultou a "teologia da libertao", difundida hojeespecialmente na Amrica Latina e cujo significado essencial foi anunciado por Eric Voegelin, antes mesmo de ter sido elaboradosistematicamente pelos seus adeptos, como se pode depreender do seguinte trecho do livro cuja apresentao aqui est sendo feita:

    "A especulao gnstica venceu a incerteza da t recuando da transcendncia e dotando o homem e seu raio de ao intramundano com osignificado da realizao escatolgica. Na medida em que essa imanentizao avanou sobre o terreno da experincia, a atividade civilizadoratransformou-se num trabalho mstico de auto-salvao. A tora espiritual da alma, que no Cristianismo se devotava santifi-cao da vida, podiaagora ser desviada rumo criao do paraso terrestre, tareta esta mais atraente, mais tangvel e, acima de tudo, muito mais fcil" (IV, 5).

    4. O autor e o livro

    Eric Voegelin , sem dvida, um dos mais penetrantes pensadores de nossa poca. Graduado pela Universidade de Viena em 1922,familiarizou-se com a vida universitria na Alemanha, na Frana, na Inglaterra e nos Estados Unidos. Como muitos de seus compatriotas, teve dedeixar o Velho Mundo, em circunstncias aflitivas e entre trgicas perturbaes, procurando refgio na Amrica, onde encontraria condies paraconsagrar-se vocao de um scholar, atrado pelas questes mais altas da filosofia poltica e da filosofia da histria.

    Um e outro desses dois tipos de conhecimento conjugam-se na sua obra, que ficar assinalando um marco na trajetria do pensamento poltico. o que se pode notar desde logo, s primeiras linhas da introduo por ele escrita para o seu livro The New Science of Politics, agora traduzidoentre ns: "A existncia do homem na sociedade poltica a existncia histrica; e a teoria poltica, desde que penetre no terreno dos princpios,deve ser, ao mesmo tempo, uma teoria da histria".

    Descortinando horizontes novos para o perfeito entendimento do assunto versado, Voegelin ultrapassa a tentativa de Haller, quando este tericodo Estado suo escreveu sobre a restaurao da cincia poltica. Cumpre lembrar, neste sentido, sua notvel obra Order and History, ummonumento do nosso sculo, na expresso de Gerhart Niemeyer, recenseando-a em The Review of Politics, e a propsito da qual Crane Brintonno hesitou em colocar Voegelin no plano de Toynbee, Spengler, Sorokin e Collingwood.

    No primeiro volume daquele to alentado estudo volume tendo por objeto Israel e a Revelao, remontando Mesopotmia e ao Egito, emmais de quinhentas pginas, e sendo os dois tomos imediatamente seguintes dedicados ao mundo da "Polis" e a Plato e Aristteles o autorcomea por delinear ao leitor a perspectiva histrico-filosfica em que se situa.

    Vamos s suas palavras textuais: "A ordem da histria emerge da histria da ordem". E logo a seguir: "Cada sociedade leva sobre si o peso datarefa de criar uma ordem que dar ao fato de sua existncia histrica um sentido em termos de fins divinos e humanos" 6.

    Dessa ordem as sociedades modernas tm sido afastadas pela deformao ideolgica da realidade do homem, no s no domnio poltico, mastambm no cientfico. Voegelin refere-se especialmente aos liberais e socialistas, a Marx e Freud, s variedades de nacionalismo, progressismoe positivismo, s metodologias neo-kantianas, para concluir: "A ideologia a existncia em rebelio contra Deus e o homem" 7.

    Em face de tal rebelio, marcada com o signo da gnose, ele apela para a filosofia enquanto "amor ao ser atravs do amor ao Ser divino", fonteda ordem 8. No que lembra Santo Agostinho ao dizer que, sendo a sabedoria o prprio Deus, verdadeiro filsofo o que ama a Deus 9.

    Jos Pedro Galvo de Sousa

    PREFCIO

    Durante os ltimos trinta anos ou mais tm surgido, dentre os estudiosos da poltica, aqueles que se opem maneira tradicional de considerar ogoverno e a poltica e que remonta aos tempos de Aristteles. Houve, assim, os que fundamentaram a cincia poltica sobre bases estatsticas,psicolgicas e sociolgicas. Os propugnadores das novas teorias ignoraram ou rejeitaram a considerao de qualquer sistema de valores aoabordarem a poltica por um ngulo cientfico. Apesar de sua grande aceitao nos dias de hoje, essa corrente vem enfrentando incisivacontestao em vrios setores, sobretudo no prprio bero da escola cientfica, a Universidade de Chicago. Neste livro, o Professor Voegelinpresta uma contribuio inovadora e estimulante aos objetivos e mtodos da poltica. Seu renome no campo da teoria poltica uma garantia dotratamento exaustivo e objetivo dado ao tema.

    A obra baseia-se numa srie de conferncias pronunciadas durante o inverno de 1951 na Universidade de Chicago, sob o patrocnio daFundao Charles R. Walgreen. A cooperao do autor e da Universidade de Chicago permitiu Fundao publicar essas conferncias sob aforma de livro.

    Jerome G. Kerwin,

  • Presidente da Fundao Charles R. Walgreen para o Estudo das Instituies Norte - Americanas

    AGRADECIMENTOS

    Por ocasio do lanamento deste livro, gostaria de expressar minha gratido John Simon Guggenheim Memorial Foundation por me haverpermitido atualizar a anlise dos problemas nele tratados mediante estudos realizados na Europa, durante o vero de 1950. Esses estudosforam tambm facilitados por um auxlio do Conselho de Pesquisa da Louisiana State University.

    Meu colega, o Professor Nelson E. Taylor, teve a gentileza de ler o manuscri-to; agradeo-lhe os conselhos que me foram dados em matriaestilstica.

    Agradeo tambm a colaborao secretarial da Srta. Josephine Scurria. A Viking Press gentilmente permitiu a citao de trechos de um livro porela publicado.

    O presente livro foi desenvolvido a partir de seis conferncias sobre "A Verdade e a Representao", dadas em 1951 sob os auspcios daCharles R.

    Walgreen Foundation. Aproveito essa agradvel oportunidade para renovar meus agradecimentos Fundao, assim como a seu ilustrePresidente, Professor Jerome G. Kerwin.

    EricVoegelin

    Baton Rouge, Louisiana

    A NOVA CINCIA DA POLTICA

    INTRODUO

    A existncia do homem na sociedade poltica a existncia histrica; e a teoria poltica, desde que penetre no terreno dos princpios, deve ser,ao mesmo tempo, uma teoria da histria. Por conseguinte, os captulos que se seguem, referentes ao problema central da teoria poltica, o darepresentao, estender-se-o alm da descrio das chamadas instituies representativas, ocupando-se da natureza da representao comoa forma pela qual a sociedade poltica passa a existir e atuar na histria. Alm disso, a anlise no se interromper nesse ponto, masprosseguir na explorao dos smbolos pelos quais as sociedades polticas interpretam-se a si mesmas como representantes de uma verdadetranscendente. Finalmente o conjunto desses smbolos no representar uma mera listagem, prestando-se, pelo contrrio, a um esforo deteorizao, como uma sucesso compreensvel de fases num processo histrico. Qualquer investigao sobre a representao, desde que suasimplicaes tericas sejam consistentemente desdobradas, tornar-se-, na verdade, uma filosofia da histria.

    No usual, hoje em dia, levar a discusso de um problema terico at o ponto em que os princpios da poltica se encontram com os princpiosda filosofia da histria. Este procedimento no pode, no entanto, ser considerado como uma inovao em cincia poltica; seria antes umarestaurao, se se tem em conta que os dois campos, hoje cultivados separadamente, estavam indissoluvelmente ligados quando a cincia foifundada por Plato. Esta teoria integral da poltica nasceu da crise da sociedade helnica. As horas de crise, quando a ordem da sociedadefraqueja e se desintegra, so mais propcias considerao dos problemas fundamentais da existncia poltica em perspectiva histrica que osperodos de maior estabilidade relativa. Pode-se dizer que, desde ento, a concepo estreita da cincia poltica como a descrio dasinstituies existentes e a apologia dos seus princpios, ou seja, a degradao da cincia poltica a um instrumento do poder, tm sido tpicasdas situaes de estabilidade, enquanto a concepo ampliada at os limites de sua grandeza, como a cincia da existncia humana nasociedade e na histria e dos princpios da ordem em geral, tem sido tpica das grandes pocas de natureza revolucionria e crtica. Trs dessaspocas ocorreram no desenrolar da histria ocidental. A fundao da cincia poltica por Plato e Aristteles marcou a crise helnica; o CivitasDei, de Santo Agostinho, marcou a crise de Roma e do Cristianismo; e a filosofia hegeliana da lei e da histria marcou o primeiro grandeterremoto da crise ocidental. Estas so apenas as grandes pocas e as grandes restauraes; os perodos milenares que as separamcaracterizam-se por pocas menores e restauraes secundrias; com relao ao perodo moderno, em particular, deve ser lembrada a grandetentativa de Bodin na crise do sculo XVI.

    A restaurao da cincia poltica deve ser entendida como uma volta conscincia dos princpios, mas no necessariamente o retorno aocontedo especfico de uma tentativa anterior. No se pode restaurar hoje a cincia poltica atravs de uma volta ao platonismo, ao augustinismoou ao hegelianismo. Evidentemente, muito se pode aprender dos filsofos anteriores no que concerne extenso dos problemas e a seutratamento terico; mas a prpria historicidade da existncia humana, ou seja, o desdobramento do que tpico em instncias significativas econcretas, impede que uma reformulao vlida dos princpios se faa atravs da volta a uma instncia concreta anterior. Portanto, a cinciapoltica no pode ser restaurada em sua dignidade como cincia terica, em sentido estrito, por meio de um renascimento literrio dasconquistas filosficas do passado; os princpios devem ser retomados atravs de um trabalho de teorizao que tenha origem na situaohistrica concreta do seu prprio tempo e leve em conta a amplitude global do conhecimento emprico desse tempo.

    Formulado nesses termos, o empreendimento parece gigantesco sob todos os pontos de vista; e pode parecer fadado ao fracasso devido fabulosa quantidade do material que a histria e as cincias empricas da sociedade pem nossa disposio atualmente. No entanto, estaimpresso , na verdade, enganosa. Sem subestimar de modo algum as dificuldades, o empreendimento comea a tornar-se factvel em nossapoca em virtude do trabalho preparatrio realizado no ltimo meio sculo. J h duas geraes as cincias humanas e sociais esto envolvidasem um processo de renovada teorizao. O novo desenvolvimento, inicialmente lento, cobrou fora aps a primeira guerra mundial e hoje tomouvelocidade alucinante. A empresa se aproxima agora da factibilidade porque, em grande medida, o produto da teorizao convergente demateriais pertinentes apresentados em estudos monogrficos. O ttulo destas exposies sobre a representao, A Nova Cincia da Poltica,indica a inteno de confrontar o leitor com um desenvolvimento da cincia poltica at aqui praticamente desconhecido do pblico em geral e

  • tambm de mostrar que a explorao monogrfica dos problemas alcanou um ponto tal que a aplicao dos seus resultados a um problematerico bsico em poltica pode ser tentada.

    O novo esforo de teorizao no bem conhecido nem em seu alcance nem em suas realizaes. Esta no , porm, a ocasio deempreender uma descrio que, para ser adequada, teria de ser consideravelmente longa. No obstante, podem-se apresentar algumasindicaes a respeito de suas causas e de suas intenes, a fim de responder a algumas das questes que inevitavelmente ocorrero ao leitor.A restaurao dos princpios da cincia poltica implica que esse trabalho necessrio porque a conscincia dos princpios foi perdida. Omovimento no rumo da nova teorizao deve ser compreendido, com efeito, como uma recuperao a partir da destruio da cincia quecaracterizou a-poca positivista, na segunda metade do sculo XIX. A destruio causada pelo positivismo conseqncia de duas premissasfundamentais. Em primeiro lugar, o esplndido desenvolvimento das cincias naturais foi responsvel, juntamente com outros fatores, pelapremissa segundo a qual os mtodos utilizados nas cincias matematizantes do mundo exterior possuam uma virtude inerente, razo por quetodas as demais cincias alcanariam xitos comparveis se lhe seguissem o exemplo e aceitassem tais mtodos como modelo. Essa crena,por si s, era uma idiossincrasia inofensiva, e teria desaparecido quando os entusiasmados admiradores do mtodo-modelo se pusessem atrabalhar em sua prpria cincia e no obtivessem os resultados esperados. Ela tornou-se perigosa por se haver combinado com uma segundapremissa, qual seja a de que os mtodos das cincias naturais constituam um critrio para a pertinncia terica em geral. A combinao dessesdois conceitos resultou na bem conhecida srie de afirmaes no sentido de que qualquer estudo da realidade somente poderia ser qualificadocomo cientfico se usasse os mtodos das cincias naturais; de que os problemas colocados em outros termos eram apenas ilusrios; de que asquestes metafsicas, em especial, que no admitem resposta atravs dos mtodos das cincias fenomenolgicas, no deveriam serformuladas; de que os domnios da existncia que no fossem acessveis explorao por meio dos mtodos-modelo no eram pertinentes; enum ponto extremo, de que tais domnios da existncia nem ao menos existiam.

    A segunda premissa a verdadeira fonte do perigo. a chave para a compreenso da destrutividade positivista e no tem recebido, de modoalgum, a ateno que merece. Isto porque essa segunda premissa subordina a pertinncia terica ao mtodo e, por conseguinte, perverte osignificado da cincia. A cincia a busca da verdade com respeito aos vrios domnios da existncia. Para ela, pertinente o que quer quecontribua para o xito dessa busca. Os fatos so pertinentes na medida em que seu conhecimento contribua para o estudo da essncia,enquanto que os mtodos so adequados na medida era que possam ser usados efetivamente como meios para chegar a esse fim. Objetosdiferentes requerem mtodos diferentes. Um cientista poltico que deseje compreender o significado da Repblica de Plato no encontrarmuita utilidade na matemtica; um bilogo que estude a estrutura da clula no julgar convenientes os mtodos da filologia clssica ou osprincpios da hermenutica. Isto pode parecer trivial, mas ocorre que a desateno para com as verdades elementares uma das caractersticasda atitude positivista; da que se torne necessrio elaborar o bvio. Talvez sirva como consolo lembrar que essa desateno um problemaperene na histria da cincia, uma vez que o prprio Aristteles teve de recordar a alguns elementos nocivos do seu tempo que "um homemeducado" no deve esperar exatido de tipo matemtico em um tratado sobre poltica.

    Se no se medir a adequao de um mtodo pela sua utilidade com relao ao propsito da cincia; se, ao contrrio, se fizer do uso de ummtodo o critrio da cincia, ento estar perdido o significado da cincia como um relato verdadeiro da estrutura da realidade, como aorientao terica do homem em seu mundo e como o grande instrumento para a compreenso da posio do homem no universo. A cinciaparte da existncia pr-cientfica do homem, de sua participao no mundo com o seu corpo, sua alma, seu intelecto e seu esprito, e daapreenso primria de todos os domnios da existncia, que lhe assegurada porque a prpria natureza humana a sntese desses domnios. Edessa participao cognitiva primria, prenhe de paixo, nasce o caminho rduo, o methodos, rumo contemplao desapaixonada da ordemda existncia, que constitui a essncia da atitude terica. A questo de saber se, no caso concreto, o caminho correto s pode porm serresolvida ao se olhar para trs, do fim para o comeo. Se o mtodo trouxe clareza essencial ao que era apenas vislumbrado, ento eraadequado; se no conseguiu faz-lo, ou mesmo se trouxe clareza essencial a algo sobre o que no havia interesse concreto, ento ele se revelouinadequado. Se, por exemplo, em nossa participao pr-cientfica na ordem de uma sociedade, em nossas experincias pr-cientficas do queseja certo ou errado, do que seja justo ou injusto, sentimos o desejo de penetrar no entendimento terico da fonte da ordem e da sua validade,podemos chegar, no curso de nossos labores, teoria de que a justia da ordem humana depende de sua participao no Agathon platnico, noNous aristotlico, no Logos estico, ou na ratw aeterna tomista. Por diversas razes, nenhuma dessas teorias talvez nos satisfaacompletamente; mas sabemos que estamos em busca de uma resposta desse tipo. Se, no entanto, o caminho nos levar noo de que a ordemsocial motivada pela nsia do poder e pelo medo, saberemos que a essncia do problema perdeu-se em algum ponto no transcurso da nossainvestigao ainda que os resultados obtidos sejam valiosos para o esclarecimento de outros aspectos essenciais da ordem social.Examinando a pergunta a partir da resposta, verificamos, portanto, que os mtodos da psicologia das motivaes no so adequados explorao do problema e que, neste caso concreto, seria melhor confiar nos mtodos da especulao metafsica e da simbolizao teolgica.

    A subordinao da pertinncia terica ao mtodo perverte o significado da cincia em matria de princpio. A perverso ocorrer qualquer queseja o mtodo escolhido como modelo. Assim, o princpio deve ser cuidadosamente distinguido de sua manifestao especial. Sem essadistino torna-se extremamente difcil compreender o fenmeno histrico do positivismo em sua natureza e em seu alcance; e, provavelmenteporque essa distino no tem sido feita, o estudo adequado desta importante fase da histria intelectual do Ocidente ainda se faz esperar.Embora tal anlise no possa ser empreendida nesta ocasio, impe-se expor as regras que teriam de ser seguidas nesse caso, de modo aproporcionar o enfoque dos vrios fenmenos do positivismo. A anlise comearia inevitavelmente mal se o positivismo fosse definido como adoutrina deste ou daquele destacado pensador positivista se fosse definido, por exemplo, nos termos do sistema de Comte. A forma especialda perverso tornaria obscuro o princpio e os fenmenos correlatos no poderiam ser reconhecidos como tal porque, ao nvel da doutrina, osadeptos de diferentes mtodos-modelo tendem a discordar entre si. Assim, seria aconselhvel comear pelo impacto que o sistema newtonianocausou sobre intelectuais ocidentais como Voltaire; tratar esse impacto como um centro emocional a partir do qual o princpio da perverso,assim como a forma especial do modelo da fsica, pde irradiar-se, seja independentemente, seja em combinao com outros conceitos, eidentificar os efeitos, qualquer que seja a forma que eles assumam. Este procedimento especialmente recomendvel porque, a rigor, no setentou ainda a transferncia dos mtodos da fsica matemtica, em qualquer sentido estrito da palavra, para as cincias sociais, pela simplesrazo de que tal intento estaria claramente condenado ao fracasso. A idia de encontrar uma "lei" dos fenmenos sociais que correspondessefuncionalmente lei da gravitao da fsica newtoniana nunca passou do estgio de tema de conversas extravagantes na era napolenica. Aotempo de Comte, essa idia j se havia reduzido "lei" das trs fases, ou seja, a uma especulao falaciosa a respeito do significado dahistria, que se auto-interpretava como a descoberta de uma lei emprica. Caracterstico da diversificao precoce do problema o destino que

  • tomou o termo phynque soale. Comte queria us-lo em sua especulao positivista, mas viu-se impedido de faz-lo porque Qutelet apropriou-se da expresso em suas prprias investigaes estatsticas; a rea dos fenmenos sociais que efetivamente se prestam quantificaocomeou a diferenciar-se da rea em que brincar com imitaes da fsica constitui um passatempo para diletantes de ambas as cincias. Assim,se o positivismo for encarado, em sentido estrito, como um desenvolvimento da cincia social que usa modelos matematizantes, pode-se chegar concluso de que o positivismo nunca existiu; se, no entanto, ele for entendido como o propsito de tornar as cincias sociais "cientficas"atravs do uso de mtodos que se assemelhem o mais possvel aos mtodos empregado? nas cincias do mundo exterior, ento os resultadosdesse propsito (embora no intencionais) sero muito variados.

    Os aspectos tericos do positivismo como fenmeno histrico devem ser expostos com algum cuidado; a prpria variedade de suasmanifestaes pode ser brevemente descrita, uma vez que o vnculo que as une tenha sido explicitado. O uso do mtodo como critrio da cinciaelimina a pertinncia terica. Em conseqncia, todas as proposies referentes a quaisquer fatos sero aladas dignidade de cincia,independentemente de serem ou no pertinentes, desde que resultem do correto uso do mtodo. Uma vez que o oceano dos fatos infinito,torna-se possvel uma prodigiosa expanso da cincia no sentido sociolgico, que d emprego a pretensos tcnicos cientficos e leva a umaacumulao fantstica de conhecimentos irrelevantes atravs de grandes "projetos de pesquisa", cuja caracterstica mais interessante o gastoquantificvel acarretado por sua realizao. grande a tentao de examinar mais atentamente estas flores de estufa do positivismo recente eacrescentar algumas reflexes a respeito do jardim acadmico onde elas crescem, mas o ascetismo da teoria no permite esses prazeresbotnicos. A preocupao presente com o princpio de que todos os fatos so iguais como j houve quem dissesse desde que possamser determinados atravs de algum mtodo. Esta igualdade dos fatos independente do mtodo usado no caso especial. A acumulao defatos irrelevantes no requer o emprego de mtodos estatsticos; pode perfeitamente ocorrer no contexto dos mtodos crticos usados na histriapoltica, na descrio de instituies, na histria das idias ou nos vrios ramos da filologia. A acumulao de fatos no digeridos teoricamente,e talvez indigerveis, excrecncia para a qual os alemes inventaram o termo Materialhuberei, , portanto, a primeira das manifestaes dopositivismo e, por estar to difundida, tem importncia muito maior que excentricidade atraentes como a "cincia unificada".

    A acumulao de fatos irrelevantes, no entanto, est inextricavelmente ligada a outros fenmenos. Na verdade, raro, se no impossvel,encontrar grandes empreendimentos de pesquisa que contenham apenas material irrelevante. O pior dos exemplos produzir uma pgina ououtra de anlises pertinentes, e pode mesmo haver pepitas de ouro enterradas em meio ao material, espera de sua descoberta acidental poralgum estudioso que lhes reconhea o valor. Isto porque o fenmeno do positivismo ocorre numa civilizao que tem tradies tericas; e praticamente impossvel encontrar um caso de irrelevncia absoluta porque, sob a presso do ambiente, at mesmo a coleo mais volumosa eintil de material de pesquisa tem de sustentar-se por um fio, ainda que tnue, que a ligue com a tradio. Mesmo o mais ferrenho positivistaencontrar dificuldades em escrever um livro totalmente sem valor sobre o direito constitucional americano, desde que, com um mnimo de conscincia, siga as linhas de raciocnio e os precedentes indicados pelas decises da Suprema Corte; ainda que o livro seja um trabalho ridoe que no relacione o raciocnio dos juizes (que nem sempre so os melhores tericos) com uma teoria crtica da poltica e do direito, o materialter obrigatoriamente de submeter-se pelo menos ao seu prprio sistema de pertinncia.

    A segunda manifestao do positivismo tem atingido a cincia com muito maior profundidade que o facilmente identificvel acmulo detrivialidades.

    Consiste ela na elaborao de material pertinente a partir de princpios tericos deficientes. H exemplos de estudiosos altamente responsveisque se dedicaram a um imenso trabalho de erudio na absoro de material histrico e que desperdiaram quase totalmente seus esforosporque os princpios utilizados na seleo e interpretao do material no tinham fundamento terico correto, derivando, pelo contrrio, doZeitgeist, de preferncias polticas ou idiossincrasias pessoais A esta classe pertencem as histrias da filosofia grega que, de suas fontes, sconseguiram extrair uma "contribuio" para a criao da cincia ocidental; os tratados escritos sobre Plato, nos quais ele visto como umprecursor da lgica neo-kantiana ou, de acordo com a voga poltica da poca, como um constitucio-nalista, um utpico, um socialista ou umfascista; as histrias do pensamento poltico que definem a poltica nos termos do constitucionalismo ocidental e so por isso incapazes dedescobrir que tenha havido teoria poltica na Idade Mdia; ou ainda a outra variante, que descobriu na Idade Mdia uma boa dose de"contribuio" para a doutrina constitucional, mas ignora completamente os movimentos polticos sectrios que culminaram na Reforma; ou umempreendimento gigantesco como o Genossenshaftsrecht, de Gierke, seriamente viciado pela convico do autor de que a histria dopensamento poltico e legal estava providencial-mente encaminhando-se em direo ao clmax, materializado na sua prpria teoria daRealperson. Nesses casos, o dano no devido acumulao de material intil; ao contrrio, os tratados deste tipo so, com muita freqncia,indispensveis por conter informaes fidedignas a respeito de fatos (referncias bibliogrficas, comprovaes crticas de textos, etc). O dano produzido pela interpretao. O contedo de determinada fonte pode estar expresso corretamente e, no entanto, o trabalho pode produzir umaimagem totalmente falsa porque partes essenciais foram omitidas. E foram omitidas porque os princpios no-crticos da interpretao nopermitem que sejam reconhecidas como essenciais. As opinies no-crticas, pblicas ou privadas (doxa, no sentido platnico), no podempreencher o lugar da teoria na cincia.

    A terceira manifestao do positivismo foi o desenvolvimento da metodologia, sobretudo no meio sculo que vai de 1870 a 1920. Estemovimento foi claramente uma fase do positivismo na medida em que a perverso da pertinncia, atravs do deslocamento da teoria para omtodo, foi o princpio responsvel por sua existncia. Por outro lado, foi tambm til na superao do positivismo porque, ao generalizar apertinncia do mtodo, fez ressurgir o entendimento de que mtodos diferentes so especificamente adequados a cincias diferentes.Pensadores como Husserl ou Cassirer, por exemplo, eram ainda positivistas de tendncia comtiana no que concerne filosofia da histria; masa crtica do psicologismo, de Husserl, e a filosofia das formas simblicas, de Cassirer, foram passos importantes no rumo da restaurao dapertinncia terica. O movimento como um todo , portanto, demasiado complexo para admitir generalizaes sem qualificaes extensas ecuidadosas. Um nico problema pode, e deve, ser selecionado por ter importncia especfica na destruio da cincia: trata-se da tentativa detornar "objetiva" a cincia poltica (e as cincias sociais em geral) atravs da excluso metodolgica-mente rigorosa de todos os "julgamentos devalor".

    Para analisar-se com clareza esta matria necessrio, em primeiro lugar, que se saiba que as expresses "julgamento de valor" e "isento devalores", referidos cincia, no faziam parte do vocabulrio filosfico antes da segunda metade do sculo XIX. A noo de julgamento de valor(Werturteil) em si carente de sentido: ganha sentido a partir de uma situao em que se contrape a um julgamento concernente a fatos(Tatsachenurteile). E esta situao foi criada pelo conceito positivista de que apenas as proposies relativas a fatos do mundo exterior eram

  • "objetivas", enquanto que os julgamentos referentes ao ordenamento correto da alma e da sociedade eram "subjetivos". Somente asproposies do primeiro tipo poderiam ser consideradas "cientficas", enquanto que as do segundo tipo expressariam apenas preferncias edecises pessoais, no passveis de verificao crtica e portanto despidas de validade objetiva. Essa classificao s poderia ser vlida se odogma positivista fosse aceito por princpio; e tal dogma s poderia ser aceito por pensadores que no dominassem a cincia clssica e cristdo homem. Isto porque nem a tica nem a poltica clssica e crist contm "julgamento de valor", mas sim elaboram, emprica e criticamente, osproblemas da ordem derivados da antropologia filosfica, como parte de uma ontologia geral. Somente quando a ontologia se perdeu comocincia e quando, em conseqncia disso, a tica e a poltica j no podiam ser entendidas como cincias da ordem na qual a natureza humanaalcana sua mxima realizao, passou a ser possvel considerar este campo do conhecimento como suspeito de ser o repositrio de opiniessubjetivas e no-crticas.

    Na medida em que os metodologistas aceitaram o dogma positivista, eles participaram da destruio da cincia. Ao mesmo tempo, no entanto,tentaram valentemente salvar as cincias histricas e sociais do descrdito em que estavam prestes a cair por causa da destruio de que elesprprios participaram. Quando o episteme se arruina, os homens no param de falar em poltica; mas agora eles so obrigados a expressar-se maneira da doxa.

    Os chamados julgamentos de valor poderiam tornar-se uma sria preocupao para os metodologistas porque, em linguagem filosfica, eramdoxai, opinies no-crticas a respeito do problema da ordem; e a tentativa dos metodologistas no sentido de tornar novamente respeitveis ascincias sociais, pela eliminao do opinar no-crtico da poca, ao menos despertou a conscincia para os padres crticos, embora no fossesuficiente para restabelecer uma cincia da ordem. Assim, tanto a teoria dos "julgamentos de valor" quanto a tentativa de estabelecer umacincia "isenta de valores" foram ambivalentes em seus efeitos. Na medida em que o ataque aos julgamentos de valor foi um ataque s opiniesno-crticas disfaradas de cincia poltica, produziu um efeito purificador sobre a teoria. Na medida em que o conceito de julgamento de valorinclua todo o corpo da metafsica clssica e crist e especialmente da antropologia filosfica, o ataque s poderia resultar na confisso de queno existia qualquer cincia de ordem humana e social.

    A variedade das tentativas concretas perdeu j grande parte do seu interesse agora que as grandes batalhas metodolgicas so coisa dopassado. Elas eram em geral orientadas pelo princpio de expulsar os "valores" da cincia, colocando-os na posio de axiomas ou hiptesesno questionadas. Por exemplo, de acordo com a premissa de que o "estado" era um valor, a histria poltica e a cincia poltica seriamlegitimadas como "objetivas" na medida em que explorassem as motivaes, aes e condies que se correlacionavam com a criao, apreservao e a extino dos estados. Evidentemente, o princpio levaria a resultados duvidosos se o valor legitimador fosse deixado ao arbtriodo cientista. Se a cincia fosse definida como a explorao dos fatos com relao a um valor, haveria tantas histrias e cincias polticasquantos so os estudiosos que diferem em suas idias a respeito do que seja valioso. Os fatos tratados como pertinentes por terem relao comos valores de um progressista no so os mesmos considerados pertinentes por um conservador; e os fatos pertinentes para um economistaliberal no o sero para um marxista. Nem o mais escrupuloso cuidado no sentido de manter o trabalho concreto "isento de valores", nem aobservncia mais consciente do mtodo crtico na determinao dos fatos e das relaes causais poderiam impedir que as cincias histricas epolticas naufragassem num mar de relativismo. Na verdade, chegou-se a formular a idia, que alis obteve ampla aceitao, de que cada novagerao teria que reescrever a histria, uma vez que os "valores" determinantes da seleo ds problemas e dos materiais so mutveis. Aconfuso resultante s no foi maior porque, uma vez mais, a presso das tradies da nossa civilizao manteve a diversificao das opiniesno-crticas dentro de seus limites gerais.

    O movimento da metodologia, no que concerne cincia poltica, atingiu o extremo de sua lgica imanente na pessoa e no trabalho de MaxWeber. No se pode tentar, no contexto desta obra, uma corroborao integral desta afirmao. Sero traadas apenas algumas linhas que ocaracterizam como um pensador situado entre o fim de um estgio e um novo comeo.

    Uma cincia isenta de valores significava para Weber a explorao das causas e efeitos, a construo de tipos ideais que permitissem distinguiras regularidades das instituies, assim como seus desvios, e, sobretudo, a construo de relaes causais tpicas. Tal cincia no estaria emcondies de dizer a ningum se ele deveria ser um liberal ou um socialista em matria econmica, um constitucionalista democrtica ou umrevolucionrio marxista, mas poderia indicar-lhe quais seriam as conseqncias se tentasse aplicar os valores de sua preferncia prticapoltica. De um lado estavam os "valores" da ordem poltica, insuscetveis de avaliao crtica; do outro lado estava uma cincia da estrutura darealidade social que podia ser usada como conhecimento tcnico por um poltico. Com esse pragmatismo, Weber agudizou a discusso emtorno da cincia "isenta de valores" e deslocou os debates para alm das escaramuas metodolgicas, focalizando novamente a ordem depertinncia. Ele queria a cincia porque queria clareza sobre o mundo do qual participava apaixonadamente; percorria assim, novamente, aestrada no rumo da essncia. A busca da verdade, no entanto, cessava ao nvel da ao pragmtica. No clima intelectual do debatemetodolgico, os "valores" tinham que ser aceitos como inquestionveis e a procura no podia avanar at a contemplao da ordem. ParaWeber, a ratio da cincia se estendia no aos princpios, mas apenas causalidade da ao.

    Por isso, o novo sentido de pertinncia terica podia expressar-se apenas na criao das categorias de "responsabilidade" e "demonismo" napoltica.

    Weber reconheceu os valores pelo que eram, ou seja, idias ordenadoras da ao poltica, mas atribui-lhes a condio de decises"demonacas", insuscetveis de argumentao racional. A cincia s poderia confrontar o demonismo da poltica alertando os polticos sobre asconseqncias de suas aes e despertando neles o senso de responsabilidade. Esta "tica da responsabilidade" weberiana no deve sernegligenciada. Foi ideada para mitigar o ardor revolucionrio dos polemistas intelectuais polticos, especialmente depois de 1918; para ressaltarque os ideais no justificam nem os meios nem os resultados da ao, que ao envolve culpa e que a responsabilidade pelos efeitos polticoscabe exclusivamente ao homem que se transforma numa causa. Mas ainda, o diagnstico "demonaco" revela que no se podia derivar "valores"inquestionveis de fontes racionais de ordem, e que a poltica da poca tinha-se transformado efetivamente num campo de desordemdemonaca. A rematada sutileza com que este aspecto do trabalho de Weber tem sido, e ainda , ignorado por aqueles aos quais se dirigeconstitui talvez a melhor prova de sua importncia.

    Caso Weber se houvesse limitado a revelar que a cincia poltica "isenta de valores" no uma cincia da ordem e que os "valores" sodecises demonacas, a grandeza do seu trabalho (que mais sentida que compreendida) poderia ser posta em dvida. A marcha ascendente

  • em direo essncia ter-se-ia interrompido no ponto em que, da estrada principal, sai um caminho convencionalmente denominado"existencialismo" uma sada para os perplexos que, nos anos recentes, entrou em moda internacional atravs do trabalho de Sartre. Weber, noentanto, foi muito alm embora o pesquisador se encontre na difcil posio de ter que extrair os resultados a partir dos conflitos econtradies intelectuais em que Weber se envolveu. A maneira de considerar o problema da cincia isenta de valores, que acaba de serdescrita, suscita mais de uma questo. O conceito weberiano da cincia, por exemplo, supunha uma relao social entre o cientista e o poltico,ativada na instituio da universidade, onde o cientista, como professor, informa seus estudantes, os homines politici potenciais, a respeito daestrutura da realidade poltica. Pode-se ento perguntar: que propsito deve ter essa informao? Os valores polticos dos estudantessupostamente no poderiam ser tocados pela cincia de Weber, uma vez que os valores esto alm da cincia. Os princpios polticos dosestudantes no poderiam ser formados por uma cincia que no se estendia aos princpios da ordem. Poderia ela talvez ter o efeito indireto deincentivar os estudantes a rever seus valores, quando verificassem as insuspeitadas e talvez indesejadas conseqncias que suas idiaspolticas trariam na prtica? Nesse caso, ento, os valores dos estudantes no estariam to demoniacamente fixados.

    Poder-se-ia fazer um apelo reflexo e ao julgamento; e o que seria um julgamento que resultasse na preferncia racional por um valor comrelao a outro seno um julgamento de valor? Afinal de contas, seriam possveis os julgamentos de valor racionais? O ensino da cincia polticaisenta de valores na universidade seria um empreendimento sem sentido a menos que fosse concebido de maneira a influenciar os valores dosestudantes, colocando a sua disposio um conhecimento objetivo da realidade poltica. Como grande professor que era, Weber pde desmentirsua idia dos valores como decises demonacas.

    At que ponto seu mtodo de ensino poderia ser efetivo outra questo. Em primeiro lugar, era um ensino por vias indiretas, porque ele evitoudeliberadamen-te um enunciado explcito dos princpios positivos da ordem; em segundo lugar, o ensino, mesmo atravs da elaborao diretados princpios, no poderia ser eficaz se o estudante estivesse na verdade demoniacamente preso s suas atitudes.

    Como educador, Weber poderia confiar apenas na vergonha (o aidos aristotlico) do estudante como o sentimento que o induziria considerao racional. Mas o que fazer, se o estudante estivesse alm da vergonha? Se o apelo a seu senso de responsabilidade somente ofizesse sentir-se desconfortvel, sem resultar numa mudana de atitude? Ou se nem sequer lhe provocasse tal sentimento, mas sim o fizesse cairno que Weber chamava a "tica da inteno" (Gesinnungsethik), ou seja, na tese de que sua crena contm sua prpria justificao e de que asconseqncias no importam se a inteno da ao correta? Tampouco esta questo foi esclarecida por Weber. Como ilustrao de sua"tica da inteno" ele usou uma moralidade crist "extra-terrena" que nunca foi bem definida; jamais considerou o problema de que seus valoresdemonacos talvez fossem demonacos precisamente porque tinham a ver com a "tica da inteno", e no com a "tica da responsabilidade",uma vez que conferiam a qualidade de um comando divino a uma veleidade humana. A discusso dessas questes somente seria possvel aonvel da antropologia filosfica, que Weber evitou.

    No obstante, enquanto fugia dessa discusso, ele tomara a deciso de entrar em conflito racional com os valores pela simples existncia deseu empreendimento.

    O conflito racional com os valores inquestionveis dos intelectuais polticos era inerente a seu empreendimento de atingir a cincia polticaobjetiva. A concepo original de uma cincia isenta de valores estava em dissoluo.

    Para os metodolo-gistas que precederam Max Weber, a cincia social ou histrica podia ser isenta de valores porque seu objeto consistiana "referncia a um valor " (Wertbeziehende Methode); no campo assim constitudo, o cientista devia trabalhar, supostamente, sem julgamentosde valor. Weber reconheceu que havia uma srie de "valores" conflitantes na poltica de seu tempo; cada um deles poderia ser tomado paraconstituir um "objeto". O resultado teria sido o relativismo antes mencionado, e a cincia poltica ter-se-ia degradado, transformando-se em umaapologia dos ca-prichos duvidosos dos intelectuais polticos, como era de fato o caso, e ainda o em larga medida. Como Weber escapou aessa degradao pois certo que o fez? Se nenhum dos valores conflitantes constitua para ele o campo da cincia e se ele preservava suaintegridade crtica perante os valores polticos correntes, quais eram ento os valores que constituam sua cincia? A resposta exaustiva a estasperguntas transcende o propsito da presente obra. Apenas o princpio de sua tcnica ser ilustrado. A "objetividade" da cincia de Weber,onde existia, poderia derivar apenas dos autnticos princpios da ordem, tais como haviam sido descobertos e elaborados no transcurso dahistria da humanidade. Uma vez que, na situao intelectual de Weber, no se podia admitir a existncia de uma cincia da ordem, seucontedo (ou tanto quanto possvel de seu contedo) tinha de ser apresentado por meio do reconhecimento de suas expresses histricas comofatos e fatores causais da histria. Se, por um lado, Weber, como metodologista da cincia isenta de valores, professaria no ter objeescontra um intelectual poltico que houvesse assumido "demoniacamente" o marxismo como o "valor" de sua preferncia, por outro lado podiadedicar-se tranqilamente ao estudo da tica protestante e demonstrar que certas convices religiosas desempenharam um papel muito maisimportante que o da luta de classes na formao do capitalismo.

    Ressaltou-se por diversas vezes nas pginas anteriores que a arbitrariedade do mtodo no degenerou na total irrelevncia da produocientfica porque a presso das tradies tericas permaneceu como um fator determinante na seleo dos materiais e dos problemas. Pode-sedizer que essa presso foi elevada por Weber condio de princpio. Os trs volumes da sua sociologia da religio, por exemplo lanaram nodebate sobre a estrutura da realidade uma enorme quantidade de verdades, vistas com maior ou menor clareza, a respeito da ordem humana esocial. A objetividade da cincia podia ser possivelmente retomada atravs da explicitao do fato indiscutvel de que as verdades a respeito daordem eram fatores da ordem da realidade e talvez no apenas o desejo de poder e riqueza ou o medo e a fraude , muito embora osprincpios tivessem que entrar pela porta dos fundos das "crenas", em competio e em conflito racional insolvel com os "valores"contemporneos de Weber.

    Uma vez mais, Weber ignorou as dificuldades tericas que esse procedimento lhe acarretaria. Se o estudo "objetivo" dos processos histricosrevelasse, por exemplo, que a interpretao materialista da histria estava errada, ento, obviamente, existiria um padro de objetividade nacincia que impediria a constituio do objeto da cincia pela "referncia" dos fatos e problemas ao "valor" de um marxista; ou sem o jargometodolgico um homem de saber no poderia ser marxista. Mas, se a objetividade crtica tornava impossvel que um homem de saber fossemarxista, seria possvel para qualquer pessoa ser marxista sem abrir mo dos padres de objetividade crtica que todos estamos obrigados aobservar como seres humanos responsveis? No h respostas a essas perguntas no trabalho de Weber. No havia ainda chegado o tempo dedizer claramente que o "materialismo histrico" no uma teoria, mas sim uma falsificao da histria, ou que o intrprete "materialista" da

  • poltica um ignorante que melhor faria se estudasse os fatos elementares. Como segundo componente do "demonismo" dos valores,transparece uma boa dose de ignorncia, no reconhecida como tal por Weber. E o intelectual poltico que se decide, ele prprio,"demoniacamente" por seu "valor" nada mais que um ignorante megalomanaco. Pareceria que o "demonismo" uma qualidade que o homempossui em proporo inversa ao alcance de seu conhecimento pertinente.

    Todo o complexo de idias "valores", "referncia a valores", "julgamentos de valor" e "cincia isenta de valores" pareceria estar a ponto dedesintegrar-se. Havia-se retomado uma "objetividade" cientfica que claramente no se enquadrava nos padres do debate metodolgico. E, noentanto, nem mesmo os estudos sobre a sociologia da religio chegaram a induzir Weber a tomar o passo decisivo no rumo da cincia daordem. A razo ltima de sua hesitao, se no foi o medo, talvez seja inescrutvel; mas o ponto tcnico onde ele se deteve pode ser claramentediscernido. Seus estudos sobre a sociologia da religio sempre despertaram admirao, quando nada por representar um tour de force. Ovolume do material analisado nesses alentados estudos sobre o protestantismo, o confucionismo, o taosmo, o hindusmo, o budismo, o jainismo,Israel e o judasmo, a serem completados com um estudo sobre o islamismo, , na verdade, assombroso. Talvez nao se tenha ressaltadosuficientemente, em vista do impressionante vulto da obra, que essa srie de estudos ganha seu tom geral atravs de uma omisso significativa,qual seja, a do cristianismo anterior Reforma. A razo dessa omisso parece bvia. praticamente impossvel efetuar um estudo srio docristianismo medieval sem descobrir, entre os seus "valores", a crena numa cincia racional da ordem humana e social e, sobretudo, do direitonatural.

    Alm disso, tal cincia nao constitua simplesmente uma crena, pois era elaborada na prtica como um trabalho de construo racional. Nesseponto, Weber ter-se-ia defrontado com a cincia da ordem como um fato objetivo, como teria acontecido se ele se houvesse dedicadoseriamente ao estudo da filosofia grega. A disposio de Weber para apresentar verdades a respeito da ordem sob a forma de fatos histricoscessava antes de chegar metafsica grega e medieval. Para poder degradar a poltica de Plato, Aristteles ou So Toms ao nvel de"valores", um estudioso responsvel teria primeiramente que demonstrar no ter fundamento a considerao daquelas formulaes comocientficas. E essa demonstrao impossvel. Quando o pretendente a crtico houver penetrado no significado da metafsica com profundidadesuficiente para que a sua crtica tenha peso, ele j se ter transformado em um metafsico. A metafsica s pode ser atacada de s conscinciaquando o crtico se coloca a uma distncia suficiente, que lhe garanta o conhecimento imperfeito. O horizonte da cincia social de Weber eraimenso; assim, sua cautela em aproximar-se demasiado do centro decisivo dessa cincia a melhor prova de suas limitaes positivistas.

    Deste modo, o resultado do trabalho de Weber foi ambguo. Ele havia reduzido ad absurdum o princpio da cincia isenta de valores. A idia dacincia isenta de valores, cujo objeto se constitusse pela "referncia a um valor", somente poderia concretizar-se caso o cientista estivessedisposto a decidir-se a respeito de um "valor" como referncia. Se, ao contrrio, o cientista se recusasse a optar por um "valor", se tratassetodos os "valores" como iguais (como fazia Max Weber) e se, alm do mais, os tratasse como fatos sociais entre outros ento no restariam"valores" que pudessem constituir o objeto da cincia, porque se teriam transformado em parte do prprio objeto. A abolio dos "valores" comoelementos constituintes da cincia levava a uma situao de impossibilidade terica porque, afinal, o objeto da cincia tem uma "constituio",isto , a essncia rumo qual nos deslocamos em nossa busca da verdade. No entanto, uma vez que a ressaca positivista no permitia aadmisso de uma cincia da essncia, de um verdadeiro episte-me, os princpios da ordem tinham de ser apresentados como fatos histricos.Quando construiu o grande edifcio da sua "sociologia" (isto , a fuga positivista cincia da ordem), Weber no considerou seriamente todos os"valores" como iguais. Ele no se dedicou a organizar uma intil coleo de quinquilharias, mas sim mostrou preferncias bastante sensatas porfenmenos "importantes" da histria da humanidade; ele sabia distinguir perfeitamente as principais civilizaes de outros desenvolvimentosperifricos e secundrios, assim como as "religies mundiais" dos fenmenos religiosos sem importncia. Na ausncia de um princpio deteorizao bem fundamentado, ele deixou-se guiar no por "valores", mas sim pela auctoritas majorum e por sua prpria sensibilidade comrespeito qualidade do trabalho intelectual.

    At aqui o trabalho de Weber pode ser caracterizado como uma tentativa bem sucedida de desembaraar a cincia poltica das impertinnciasda metodologia e de restaurar-lhe a ordem terica. No entanto, a nova teoria em direo qual caminhava no pde ser explicitada, porqueWeber observou religiosamente o tabu positivista a respeito da metafsica. Ao invs disso, outras coisas foram explicitadas, pois Weberdesejava ser explcito sobre os seus princpios, como o deve ser um terico. Ao longo de toda sua obra ele se esforou por elaborar umaexplicao de sua teoria mediante a construo de "tipos". No se podem considerar nesta ocasio as diversas fases pelas quais passou esseesforo. Na ltima fase, ele usou tipos de "ao racional" como os tipos padres e construiu os outros tipos como desvios da racionalidade. Oprocedimento ter-lhe- ocorrido porque Weber compreendia a histria como uma evoluo rurno racionalidade e sua poca como o ponto maisalto at ento alcanado na "auto-determinao racional" do homem. Esta idia foi desdobrada em diferentes graus de desenvolvimento, comrelao histria econmica, poltica e religiosa, e, de maneira mais completa, com relao histria da msica. Sua concepo globalderivava claramente da filosofia da histria de Comte; e a interpretao weberiana da histria pode ser vista com justia como o ltimo dosgrandes sistemas positivistas. Nota-se, no entanto, uma tonalidade nova na execuo que Weber deu ao plano. A evoluo da humanidade emdireo racionalidade da cincia positiva era para Comte um processo nitidamente progressista; para Weber, era um processo dedesencantamento (Entzau-berung) e de desdivinizaco (Entgottlichung) do mundo. Por seu sentimento de pena de que o encantamento divinohouvesse desaparecido do mundo, por sua resignao ao racionalismo como uma sina a ser aturada, mas no desejada, pelas queixasocasionais de que a sua alma no estava em sintonia com o divino (religies unmunkalisch), Weber deixou revelar sua afinidade com ossofrimentos de Nietzsche muito embora, apesar de tal confisso, sua alma estivesse suficientemente em sintonia com o divino para que eleno seguisse Nietzsche em sua trgica revolta. Weber sabia o que almejava, mas, por alguma razo, no conseguiu chegar ao objetivo. Ele viu aterra prometida, mas no lhe foi dado nela entrar.

    Com o trabalho de Max Weber, o positivismo foi to longe quanto podia e se tornaram visveis as linhas atravs das quais a restaurao dacincia poltica teria que' ser empreendida. A correlao entre o "valor" constituinte e a cincia constituda "isenta de valores" se havia rompido;os "julgamentos de valor" haviam retornado cincia sob a forma de "crenas legitimadoras" que criavam unidades de ordem social. O ltimobaluarte foi a convico de Weber de que a histria evolua em direo a um tipo de racionalismo que relegava a religio e a metafsica ao reinodo "irracional". E mesmo esse baluarte no era to inexpugnvel, desde que se compreendesse que ningum estava obrigado a nele penetrar sepodia simplesmente dar-lhe as costas e redescobrir a racionalidade da metafsica em geral e da antropologia filosfica em particular, ou seja,das reas da cincia com relao s quais Weber se havia conservado deliberadamente distante.

    A frmula do remdio mais simples que sua aplicao. A cincia no a conquista individual deste ou daquele estudioso: um esforo de

  • cooperao. O trabalho efetivo s possvel se inserido numa tradio de cultura intelectual. Quando a cincia fica completamente arruinada,como foi o caso por volta de 1900, a simples reconquista do artesanato terico uma tarefa de monta, para no mencionar as quantidades dematerial que deve ser reelaborado para reconstituir a ordem de pertinncia dos fatos e problemas. Alm disso, as dificuldades pessoais nodevem ser ignoradas; a exposio de idias novas, aparentemente aberrantes, inevitavelmente desperta resistncias. Um exemplo ajudar acompreender a natureza dessas dificuldades.

    Weber, como se assinalou acima, ainda concebia a histria como um aumento do racionalismo no sentido positivista. Do ponto de vista de umacincia da ordem, no entanto, a excluso da scientia prima dos domnios da razo no constitui um aumento, mas sim uma diminuio doracionalismo. O que Weber, na esteira de Comte, entendeu por racionalismo moderno teria de ser reinterpretado como irra-cionalismo moderno.Esta inverso dos significados socialmente aceitos dos termos despertaria uma certa hostilidade. Mas a reinterpretao no poderiainterromper-se nesse ponto. A rejeio de cincias que j se encontravam desenvolvidas e o retorno a um nvel inferior de racionalidade devemter motivaes experiencial-mente profundas. Uma investigao mais minuciosa revelaria que certas experincias religiosas estavam na origemda resistncia a reconhecer a ratio da ontologia e da antropologia filosfica; e, na verdade, na ltima dcada do sculo XIX comeou aexplorao do socialismo como movimento religioso, explorao que mais tarde se transformou no estudo extensivo dos movimentos totalitrioscomo um novo "mito" ou religio. A investigao levaria ainda ao problema geral da conexo entre tipos de racionalidade e tipos de experinciareligiosa. Algumas experincias religiosas teriam de ser classificadas como superiores e outras como inferiores pelo critrio objetivo do grau deracionalidade que admitem na interpretao da realidade. As experincias religiosas dos filsofos msticos gregos e do cristianismo seriamconsiderados de nvel elevado por permitirem o desenvolvimento da metafsica; as experincias religiosas de Comte e Marx seriam classificadascomo inferiores por proibirem a colocao de perguntas metafsicas. Estas consideraes afetariam radicalmente a concepo positivista daevoluo da humanidade de uma fase religiosa ou teolgica primitiva para o racionalismo e a cincia. A evoluo no s teria ocorrido de umgrau mais elevado de racionalismo para outro inferior, pelo menos no que concerne ao perodo moderno, mas, alm disso, esse declnio darazo teria de ser interpretado como conseqncia da regresso religiosa.

    Seria necessrio revolucionar uma interpretao tradicional da histria ocidental, desenvolvida ao longo de sculos; e uma revoluo dessamagnitude enfrentaria a oposio dos "progressistas", que, repentinamente, se encontrariam na posio de irracio-nalistas retrgrados.

    As possibilidades de uma reinterpretao do racionalismo e da concepo positivista da histria foram colocadas no modo condicional demaneira a indicar o carter hipottico da restaurao da cincia poltica na passagem do sculo. Circulavam idias deste tipo, mas havia umagrande distncia entre a certeza de que algo estava profundamente errado com o estado da cincia e o entendimento preciso da natureza do malque a acometia.

    Igualmente longa era a distncia entre as conjecturas inteligentes a respeito da direo a ser tomada para a consecuo do objetivo. Eranecessrio preencher um bom nmero de condies antes que as proposies, neste caso, pudessem ser apresentadas no modo indicativo.Tinha-se que retomar o entendimento da ontologia e o artesanato da especulao metafsica, e, sobretudo, cumpria restabelecer a antropologiafilosfica como cincia. Pelos padres assim reconquistados, era possvel definir com preciso os pontos tcnicos de irracionalidade daposio positivista. Com esse propsito, os trabalhos dos principais pensadores positivistas tinham de ser analisados com cuidado a fim de seexplicitar sua rejeio crtica de argumentos racionais; era preciso, por exemplo, trazer luz as passagens dos trabalhos de Comte e Marx emque estes pensadores reconheciam a validade das questes metafsicas, mas se recusavam a consider-las porque tal considerao tornariaimpossvel a articulao de sua opinio irracional.

    Quando o estudo chegasse s motivaes do irracionalismo, o pensamento positivista teria de ser caracterizado como uma variente dateologizao, novamente com base nas fontes, e as experincias religiosas subjacentes teriam que ser diagnstico somente poderia ser feitocom xito se estivesse suficientemente elaborada uma teoria geral dos fenmenos religiosos que permitisse o enquadramento do caso concretonum tipo. A generalizao ulterior relativa conexo entre graus de racionalidade e experincias religiosas, bem como a comparao comexemplos gregos e cristos, requereriam um estudo renovado da filosofia grega, que revelasse a ligao entre o desenvolvimento da metafsicagrega e as experincias religiosas dos filsofos que a elaboraram; e um novo estudo da metafsica medieval teria de comprovar a ligaocorrespondente no caso cristo. Deveria ainda demonstrar as diferenas caractersticas entre as metafsicas grega e crist capazes de serematribudas a diferenas religiosas. E, quando todos esses estudos preparatrios estivessem prontos, quando os conceitos crticos para otratamento dos problemas estivessem estabelecidos e as proposies tivessem apoio nas fontes, ter-se-ia que enfrentar a tarefa final de buscaruma ordem histrica teoricamente inteligvel na qual estes mltiplos fenmenos pudessem ser organizados.

    Na verdade, essa tarefa de restaurao j teve incio; e hoje alcanou um ponto em que se pode dizer que j foram lanados ao menos osalicerces sobre os quais se construir a nova cincia da ordem. A descrio em detalhe desse ousado em-prendimento est alm do escopodesta obra e, alm disso, tomaria a forma de uma volumosa histria da cincia na primeira metade do sculo XX1. Os captulos seguintes, arespeito do problema da representao, pretendem apresentar ao leitor esse movimento, bem como a promessa de restaurao da cinciapoltica nele contida.

    A histria intelectual da primeira metade do sculo XX extremamente complexa, por ser a histria de uma lenta recuperao (com muitastentativas que terminaram em impasses) da completa destruio oa cultura intelectual ocorrida ao final do sculo XIX. Talvez seja prematuroefetuar o estudo crtico desse processo enquanto a.poeira dos combates ainda no assentou; e, com efeito, nenhum estudo abrangente nessesentido foi feito at aqui. H, no entanto, uma recente introduo filosofia contempornea que (apesar de certas imperfeies tcnicas)demonstra o quanto pode ser feito atualmente. I rata-se de Europische Phosophie der Gegenwart (Berna, 1947), de I. M. Bochenski. Ainterpretao do autor tem como guia dois motos colocados na pgina inicial do seu livro um, de Marco Aurlio: "O filsofo, este sacerdote eajudante dos deuses"; outro, de Bergson: "Tambm a filosofia tem seus escribas e seus fariseus". As vrias filosofias so classificadas segundoseu valor como ontologias, dos nveis mais baixos aos mais altos, em captulos intitulados "Matria", "Idia", "Vida", "Essncia", "Existncia eSer". O ltimo captulo, sobre as filosofias do ser, trata dos metafsicos ingleses e alemes (Samuel Alexander, Alfred N. Whitehead, NicolaiHartmann) e dos neotomistas. O primeiro captulo trata as filosofias situadas nos nveis inferiores, comeando por baixo com Bertrand Russell, oneopositivismo e o materialismo dialtico.

  • I REPRESENTAO E EXISTNCIA

    A cincia poltica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua prpria natureza, como cincia do homem em sua existncia histrica. Umavez que o homem no espera pela cincia at que ela lhe explique a prpria vida, quando o terico aborda a realidade social encontra um campoj ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretao da sociedade. A sociedade humana no simplesmente um fato ou umaocorrncia do mundo exterior, que o observador devesse estudar como se fosse um fenmeno natural. Embora a exterioridade seja um de seuscomponentes importantes, ela em seu todo um pequeno mundo, um cosmion, cujo significado provm do seu prprio interior, atravs dos sereshumanos que continuamente o criam e recriam, como modo e condio de sua auto-realizao. A sociedade iluminada por um complexosimbolismo, com vrios graus de compactao e diferenciao desde o rito, passando pelo mito, at a teoria e esse simbolismo a iluminacom um significado na medida em que os smbolos tornem transparentes ao mistrio da existncia humana a estrutura interna desse pequenomundo, as relaes entre seus membros e grupos de membros, assim como sua existncia como um todo. A auto-iluminao da sociedadeatravs dos smbolos parte integrante da realidade social, e pode-se mesmo dizer que uma parte essencial dela, porque atravs dessasimbolizao os membros da sociedade a vivenciam como algo mais que um acidente ou uma convenincia; vivenciam-na como pertencendo asua essncia humana. Inversamente, os smbolos exprimem a experincia de que o homem inteiramente homem em virtude de suaparticipao em um todo que transcende a sua existncia particular, em virtude de sua participao no xynon, o comum, na expresso deHerclito, o primeiro pensador ocidental que desenvolveu esse conceito. E, em conseqncia, toda sociedade humana compreende a si mesmaatravs de uma variedade de smbolos, alguns deles smbolos lingsticos altamente diferenciados, independentes da cincia poltica; talautocom-preenso precede historicamente de alguns milnios o surgimento da cincia poltica, do episteme politike, no sentido aristotlico.Assim, ao se iniciar, a cincia poltica no parte de uma tabula rasa na qual pudesse inscrever seus conceitos; comea inevitavelmente a partirdo rico conjunto de auto-interpretaes da sociedade e prossegue atravs do esclarecimento critico dos smbolos sociais preexistentes. QuandoAristteles escreveu as obras tica e Poltica, quando formulou seu conceito da polis, da constituio, do cidado, das vrias formas degoverno, de justia, de felicidade, etc, ele no inventou esses termos nem os dotou de significados arbitrrios; ao invs, recolheu os smbolosencontrados em seu ambiente social, examinou cuidadosamente a variedade dos significados que tomavam na conversao comum e organizoue esclareceu esses significados com os critrios de sua teoria1.

    Estas preliminares de modo algum esgotam a situao peculiar da cincia poltica, mas abrem suficientes perspectivas para o propsito maisimediato, pois permitiro algumas concluses tericas que, por sua vez, podem ser aplicadas ao tpico da representao.

    Quando um terico reflete sobre sua prpria situao terica, defronta-se com dois conjuntos de smbolos: os smbolos da linguagem produzidoscomo parte integrante do mundo social em seu progresso de auto-iluminao, e os simbolos da linguagem da cincia poltica. Ambos serelacionam entre si, na medida em que o segundo conjunto se desenvolve a partir do primeiro atravs de um processo provisoriamente chamadode esclarecimento crtico.

    No transcurso desse processo, alguns dos smbolos que ocorrem na realidade sero abandonados por no se prestarem utilizao cientfica,enquanto novos simbolos se desenvolvero dentro da prpria teoria para a descrio crtica adequada dos smbolos que fazem parte darealidade. Se, por exemplo, o terico descrever a idia marxista do reino da liberdade, a ser estabelecida pela revoluo comunista, como ahipstase imanen-tista de um smbolo escatolgico cristo, o smbolo "reino da liberdade" parte da realidade; parte de um movimento seculardo qual o movimento marxista uma subdiviso, enquanto que termos como "imanentista", "hipstase" e "escatologia" so conceitos da cinciapoltica. Os termos usados na descrio no ocorrem na realidade do movimento marxista, enquanto que o smbolo "reino da liberdade" no temvalor para a cincia crtica. No h, portanto, nem dois conjuntos de termos com significados diferentes, nem um conjunto de termos com doisconjuntos diferentes de significados; o que h so dois conjuntos de smbolos com uma grande rea de fonemas que se superpem. Alm disso,os smbolos da realidade so, eles prprios, em grande parte, o resultado de processos de esclarecimento, de modo que os dois conjuntostambm se aproximaro com freqncia um do outro com respeito aos seus significados, e, em alguns casos, chegaro a alcanar a identidade.Esta complicada situao uma inevitvel fonte de confuses, entre as quais a iluso de que os smbolos usados na realidade poltica soconceitos tericos.

    Infelizmente, esta iluso e a confuso dela resultante corroeram profundamente a cincia poltica contempornea. Por exemplo, ningum hesitaao referir-se "teoria contratual de governo", ou "teoria da soberania", ou "teoria marxista da histria", muito embora, na realidade, sejamuito duvidoso que qualquer dessas chamadas teorias possa ser considerada como tal, em sentido crtico; e volumosas historiografiassobre "teoria poltica" do tratamento a smbolos que, na maior parte das vezes, encerram escasso contedo terico. Essa confuso chega aanular alguns avanos logrados pela cincia poltica desde a antigidade. Veja-se, a propsito, a chamada teoria contratual. Neste caso, ignora-se o fato de que Plato j realizara uma anlise exaustiva do smbolo contratual, no s estabelecendo seu carter no-terico, como aindaexplorando o tipo de experincia do qual se origina. Mais ainda, ele introduzira o termo tcnico doxa para a classe de smbolos da qual a "teoriacontratual" um exemplo, a fim de distingui-los dos smbolos teticos. Os tericos de hoje no usam o termo doxa com esse propsito nemdesenvolveram um termo equivalente. A diferenciao foi perdida. Por outro lado, entrou em moda o termo "ideologia", que, em alguns aspectos,se relaciona com a doxa platnica. Mas justamente esse termo tornou-se uma nova fonte de confuso porque, sob a presso do que Mannheimchamou allegemeine Ideologieverdacht, a suspeita geral da ideologia, seu sentido se estendeu de tal maneira que cobre todos os tipos desmbolos usados para proposies polticas, inclusive os prprios smbolos tericos; hoje, h numerosos cientistas polticos que classificariamcomo ideologia at mesmo o episteme platnico-aristotlico.

    Outro sintoma dessa confuso dado por certos hbitos de discusso. Acontece com certa freqncia que, em discusses sobre um temapoltico, um estudante na verdade, nem sempre um estudante me pergunte como eu defino o fascismo, o socialismo ou qualquer outro ismodo gnero. Com igual freqncia sou forado a surpreender o meu interlocutor que aparentemente absorveu, como parte da sua educaouniversitria, o conceito de que a cincia um depsito de definies de dicionrio com minha afirmao de que no me sentia obrigado afazer esse tipo de definio porque os movimentos do tipo mencionado, assim como os seus simbolismos, eram parte da realidade; que apenasos conceitos podiam ser objeto de definies, e no a realidade; e era altamente duvidoso que os smbolos de linguagem em questo pudessemser criticamente esclarecidos at o ponto em que tivessem alguma utilidade cognitiva na cincia.

  • O terreno est agora preparado para a considerao do tema da representao. luz das reflexes anteriores torna-se claro que a tarefa noser mais simples se a investigao for realizada de acordo com os padres crticos da busca da verdade. Os conceitos tericos e os smbolosque formam parte da realidade devem ser cuidadosamente distinguidos; na transio da realidade teoria, os critrios empregados noprocesso de esclarecimento devem ser bem definidos; e o valor cognitivo dos conceitos resultantes deve ser verificado, colocando-os emcontextos tericos mais amplos. O mtodo assim esboado , substancialmente, o procedimento aristotlico.

    E apropriado iniciar pelos aspectos elementares do tema. De modo a determinar o que teoricamente elementar, cabe recordar o incio destaexposio. A sociedade poltica foi caracterizada como um cosmion, um pequeno mundo, iluminado internamente; esta caracterizao foi, noentanto, qualificada com a nfase dada ao tato de que a exterioridade um dos componentes importantes da sociedade poltica. Tal cosmiontem um reino interior de significado, mas esse reino existe tangi-velmente no mundo exterior, em seres humanos dotados de corpos e queparticipam fisicamente da exterioridade orgnica e inorgnica do mundo. A sociedade Poltica pode dissolver-se no apenas pela desintegraodas crenas que fazem dela uma unidade atuante na histria, mas tambm pode ser destruda pela disperso de seus membros de tal maneiraque a comunicao entre eles se torne fisicamente impossvel ou, mais radicalmente, por sua eliminao fsica; pode, igualmente, sofrer danossrios, destruio parcial da tradio ou paralisia prolongada mediante o extermnio ou opresso dos membros ativos que constituem asminorias polticas e intelectuais que dirigem a sociedade. A existncia exterior da sociedade ser entendida neste sentido quando, por razes aserem dadas proximamente, falarmos do aspecto teoricamente elementar do nosso tema.

    Nos debates polticos, na imprensa e nas obras de direito internacional, as instituies polticas de pases como os Estados Unidos da Amrica,o Reino Unido, a Frana, a Sua, os Pases Baixos e os reinos escandinavos so normalmente consideradas representativas. Nesses contextos,o termo instituio representativa usado como um smbolo na realidade poltica. Caso algum que usa esse smbolo fosse solicitado a explicaro que entende por ele, certamente responderia que as instituies de um pas podem ser consideradas representativas quando os membros daassemblia legislativa ocupam seus lugares em virtude de eleies populares. Se a pergunta se referisse ao excutivo, tal pessoa aceitaria aeleio popular do chefe do governo, como nos Estados Unidos da Amrica, mas tambm estaria de acordo com o sistema ingls, em que umcomit da maioria parlamentar compe o ministrio, ou com o sistema suo, em que o executivo eleito pelas duas casas em sesso conjunta;e provavelmente no consideraria que a presena de um monarca afete o carter representativo, desde que tal monarca s possa atuar convali-dado por um ministro responsvel. Caso se pedisse ao nosso interlocutor que fosse um pouco mais explcito a respeito do significado daexpresso "eleio popular", ele inicialmente se referiria eleio de um representante por todas as pessoas de maior idade que residam emdeterminado distrito territorial; mas, provavelmente, no negaria o carter representativo do processo se as mulheres estivessem excludas dosufrgio ou se, em um sistema de representao proporcional, a repre-sentatividade fosse pessoal e no territorial. Finalmente, ele poderiasugerir que as eleies se realizassem com freqncia razovel e